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Caballeros Solitários Rumo do Sol Poente

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CABALLEROS SOLITÁRIOS RUMO AO SOL POENTE<br />

{romance}<br />

xico sá


To<strong>do</strong>s os direitos estão libera<strong>do</strong>s para reprodução não-comercial. Qualquer parte desta edição pode<br />

ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia,<br />

gravação, etc., bem como apropriada ou estocada em sistema de banco de da<strong>do</strong>s, desde que não<br />

tenha objetivo comercial e seja citada a fonte (autor e editora), tradução e prefácio.<br />

projeto gráfico Pinky Wainer<br />

produção gráfica GFK<br />

Editora Clara Ltda.<br />

Rua Melo Alves, 278<br />

CEP 01417-010 SP SP Brasil<br />

Tel. 55 11 3064 8673<br />

www.editora<strong>do</strong>bispo.com.br<br />

www.<strong>do</strong>bispo.zip.net<br />

www.videolog.com.br/editora<strong>do</strong>bispo<br />

i s b n 978 85 60054 07 7<br />

Nihil obstat<br />

Imprimatur<br />

ANO DA GRAÇA DE 2007<br />

2


CABALLEROS SOLITÁRIOS RUMO AO SOL POENTE<br />

{romance}<br />

xico sá<br />

3


PRÓLOGO {ON THE ROCKS} PARA O LEITOR SALTA-PÁGINAS<br />

Até a mais analfabeta das traças <strong>do</strong>s sebos deste pueblo sabe que os prólogos são<br />

feitos para serem pula<strong>do</strong>s como cercas de um latifúndio, cancelas de rodagem ou<br />

barreiras de provas hípicas.<br />

Um volume que tem como personagem principal um cavalo, jamais um bípede,<br />

nem mesmo um corvo miserável e agourento, é para ser li<strong>do</strong> mais aos pulos ainda.<br />

(...)<br />

Insisto, porém. A teimosia é a espada nua de um escriba, na velha lição de<br />

Lazarillo de Thormes, parente muy longínquo pero distante apenas no tempo e nos<br />

mapas, insisto, digo, em uma nobre e cerimoniosa advertência:<br />

“No hay libro, por malo que sea, que no tenga alguna cosa buena”.<br />

Ou seja, em livre tradução deste portunholista selvagem que não vale um falso<br />

guarany em cédula rasgada: até mesmo no mais odiável <strong>do</strong>s compêndios poderemos<br />

pescar alguma nobre manjuba perdida nos mares gutenberguianos.<br />

Eu bebo sim em Lazarillo de Thormes e em to<strong>do</strong>s os pícaros que os castelhanos<br />

estrela<strong>do</strong>s ostentam.<br />

Bebo sem culpa alguma porque o misterioso autor de fabuloso volume picaresco<br />

já estava a beber no sábio Plínio, o Velho, naturalista romano, algo semelhante cuja<br />

memória carcomida por bebedeiras tantas não me permite um registro mais honesto.<br />

(...)<br />

5


“Só o leitor que salta me importa”, disse, pelo que entendemos <strong>do</strong> seu escorreito<br />

castelhanês, voz miúda, o recém-chega<strong>do</strong> à taberna <strong>do</strong>s bravos cavaleiros forja<strong>do</strong>s a ferro,<br />

bronze e esquecimento.<br />

“Ao leitor que pula páginas me dirijo. Asseguro-te que lestes to<strong>do</strong> o meu romance<br />

sem te dares conta, te tornastes leitor segui<strong>do</strong> à tua revelia, à medida que vou te contan<strong>do</strong><br />

tu<strong>do</strong> dispersamente e antes de iniciar o romance. Comigo, o leitor que salta é quem mais se<br />

arrisca a ler segui<strong>do</strong>”, deu tintas finais à tese-chiste, era de fala pouca, voz miúda, <strong>do</strong>n<br />

Mace<strong>do</strong>nio Fernández, egresso da província de Buenos Aires, ainda com cheiro de estradas e<br />

margens perdidas.<br />

Don Diegues de la Verga, muy amable, astronauta <strong>do</strong>s chacos paraguayos, bebia o<br />

seu composto de sete ervas guaranys ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> impagable Doma<strong>do</strong>r de Yacarés, filósofo<br />

rupestre, verdadeiro xamã como to<strong>do</strong> poeta da tríplice fronteira.<br />

El Doma<strong>do</strong>r hablava algo sobre a verossimilhança ou não <strong>do</strong> amor e as suas<br />

possibles malasartes.<br />

Bieveni<strong>do</strong>s, comancheros!<br />

Donde outro forasteiro, novidade em nuestra tertúlia, pula <strong>do</strong> seu místico biombo<br />

com os segre<strong>do</strong>s típicos daquelas criaturas que vêm de longe, muito longe, ponha longe<br />

nisso, de las tabernas <strong>do</strong> fim <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s:<br />

“Se vocês quiserem que eu conte, eu conto, mas têm de me pagar uma bebida<br />

antes, para que eu possa molhar a prosódia e agradar mi suerte”, diz o sr. Steven Brust,<br />

chamemos assim o distinto viajante igualmente empoeira<strong>do</strong>.<br />

Sabe-se que o sr. Steven Brust toca bateria e dumbek, aquele tambor árabe da<br />

dança <strong>do</strong> ventre, numa banda gypsi-punk <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s também finais. O distinto<br />

cavaleiro, conforme a mística, sempre muda de nome para fugir das groupiesmotosserras,<br />

aquelas garotas selvagens <strong>do</strong>s trópicos que decepam to<strong>do</strong>s os paus, troncos e<br />

membros <strong>do</strong>s seus í<strong>do</strong>los estrangeiros.<br />

Na tempestade, Steven Brust estica a mão na janela com o seu copo longo de<br />

uísque, enchen<strong>do</strong>-o de granizo até as bordas. Celebra a vida nos trópicos, onde se diverte,<br />

deixan<strong>do</strong> para trás o passa<strong>do</strong> de menino cria<strong>do</strong> num castelo escuro. Agora tem o sol o dia<br />

inteiro para brincar com as mungangas da própria sombra.<br />

Steven também bebe previsíveis cowboys quan<strong>do</strong> a melancólica besta-fera <strong>do</strong><br />

lusco-fusco embaça seus óculos verdes com a poeira <strong>do</strong> amor ou da ira.<br />

Steven Brust tem aquele jeitão de cigano húngaro, é o que dizem, mas como<br />

nunca vi um cigano húngaro na minha frente, Steven continua a ser apenas aquele escriba<br />

vagabun<strong>do</strong> que encontrei na secção Luz, sítio deste pueblo, <strong>do</strong> Sandman´s Drinks, célebre<br />

no recinto por trocar boas histórias e solos de dumbeck por bebida e sexo. O que mais o<br />

diverte nesta vida é contar com a musa da encomenda e a velha da foice a bafejarem<br />

prazos fatais no juízo, pequenas biografias de assombrações nocturnas. Tínhamos a<br />

mesma impressão sobre o mun<strong>do</strong>, além <strong>do</strong> mesmo ofício, pelo menos é o que me ficou<br />

como areia especulativa na ampulheta <strong>do</strong> enferruja<strong>do</strong> cocoruto.<br />

6


“Anjos e demônios habitam as coincidências”, disse a nuestra garota predileta, de<br />

cujos olhos saltavam melancólicos peixes de água <strong>do</strong>ce e aquela fagulha de beleza que<br />

habita a alma <strong>do</strong>s esquizofrênicos desta selva. Tinha o <strong>do</strong>m também, igualmente<br />

extraordinário, de fazer pedras de gelo virarem betas, rumble fish, nos drinques colori<strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong>s forasteiros.<br />

Viejo cigano, te pago todas, nos vemos mais adiante na taberna <strong>do</strong> sr. Knut, ninho<br />

das melhores narrativas <strong>do</strong>s seres fantásticos aos quais restam apenas histórias<br />

esburacadas como os seus próprios fíga<strong>do</strong>s bolaños.<br />

Cavaleiros nativos e viejos freqüenta<strong>do</strong>res, per<strong>do</strong>em-me, mas queria fazer as<br />

honras bíblicas, imbatíveis filhos pródigos, aos recém-chega<strong>do</strong>s de outras fronteiras<br />

perdidas. O amor aos deserda<strong>do</strong>s cativos, porém, é o de sempre. Aguardem os próximos<br />

informes de la calle e as aventuras de um cavaleiro que sabia, mais <strong>do</strong> que nunca, que a<br />

vida, a cada dia, tem cada vez menos o aroma <strong>do</strong> triunfo e cada vez mais o gosto de<br />

pólvora de um perigoso beijo em uma comprometida dama deste e de qualquer outro<br />

pueblo <strong>do</strong>s orgulhosos e destemi<strong>do</strong>s bigodes de latinoamérica sangue-quente.<br />

Esta é a verdadeira história, balada, fulgor e quase morte, dantes fosse, <strong>do</strong>s<br />

cavaleiros solitários.<br />

Don Augusto Sombra, cronista de costumbres, biógrafo e andarilho, San Pablo de<br />

Piratininga, maio <strong>do</strong> ano da graça de 2006, uma das noites pontuadas pelos massivos<br />

ataques <strong>do</strong>s Gângsteres <strong>do</strong> <strong>Sol</strong> Quadra<strong>do</strong>.<br />

7


PARTE I - Na escadaria <strong>do</strong> manicômio ilumina<strong>do</strong><br />

eu ouço o sino com farpas sacudin<strong>do</strong> a pradaria<br />

9


Cap. I - Donde lentamente adentramos o bosque e especulamos<br />

sobre nossos próprios demônios<br />

Não havia sequer um cão despluma<strong>do</strong> e lazarento a lamber a bocarra <strong>do</strong> cavaleiro<br />

solitário. A dentição mais parecia uma espiga de milho atacada pelos famintos pássaros <strong>do</strong><br />

bosque escuro.<br />

Se o ilustríssimo Satã se fazia presente, pouco sabemos, não havia nada de<br />

extraordinário que o entregasse àquela altura. Muito menos algum pacto secreto.<br />

É evidente que o cavaleiro gostava de contar para os desalma<strong>do</strong>s da taberna <strong>do</strong> sr. Knut<br />

a história de O Mestre e Margarida(1), na qual o diabo se apossa, elegantemente, de todas as<br />

freguesias e criaturas daquele pueblo mui distante, mui gela<strong>do</strong>...<br />

Até o gato preto <strong>do</strong> sr. Knut miava como se cantasse um indecifrável blues nessa hora,<br />

de maneira a assombrar mais ainda aqueles refugos bêba<strong>do</strong>s na taberna da chance alguma.<br />

Os desalma<strong>do</strong>s ouviam gargalhadas nervosas, mas tinham dúvidas se lhes<br />

pertenciam tais gargalhadas.<br />

Ali sobravam apenas ecos de gargalhadas antigas guarda<strong>do</strong>s entre o destampar e outra<br />

das pingas que comem fíga<strong>do</strong>s e memórias como burgueses franceses devoram foie-gras.<br />

As cobras <strong>do</strong>s garrafões de envelhecidas bagaceiras faziam daquele antro um pesadelo<br />

desenha<strong>do</strong> sob encomenda, antes <strong>do</strong> sono impossível.<br />

Quem estivesse encosta<strong>do</strong> às paredes ouvia vozes com sotaque típico de quem voltou ao<br />

mun<strong>do</strong>, mas ainda vaga sem corpo por esse vale de lágrimas <strong>do</strong>ravante conheci<strong>do</strong> como<br />

Baixada <strong>do</strong> Glicério y arre<strong>do</strong>res.<br />

O diabo, porém, não estava por perto, aquelas almas não mais lhe interessavam, melhor<br />

comprar seus fajutos faustos, como se gabava o aliteratoso elemento, nas baciadas <strong>do</strong> exército<br />

de reserva das filas de segunda ou na Bolsa de Merca<strong>do</strong>rias & Futuro.<br />

(1) “Il Maestro e Margherita”, como preferia traduzir o cavaleiro, trata-se de um romance <strong>do</strong> ucraniano Mikhail<br />

Afanasievich Bulgakov (1891-1940).<br />

11


Nem mesmo os morcegos em festim sob as copas das árvores <strong>do</strong> bosque noticiavam,<br />

àquela noite, a presença <strong>do</strong> demo, no que o cavaleiro de alma perra, na inércia da sua ressaca<br />

monstruosa, mirava, calmamente, o cavalo lunar de São Jorge refleti<strong>do</strong> na poça em câmera<br />

lenta. Tentava montá-lo a to<strong>do</strong> custo, debalde, en vano, como narraria tempos depois a este<br />

biógrafo de mal-assombradas criaturas de la noche.<br />

“O silêncio é a zoada mais demoníaca e buliçosa dentro da cabeça de um homem”,<br />

pensava coisas siberiosas, odiava aquela hora, lusco-fusco, ângelus, além muito além <strong>do</strong><br />

jiboiamento precioso, as vozes no juízo de to<strong>do</strong>s os pentecostes não-ditos, benzia-se num gesto<br />

automático das mãos ainda governadas por forças <strong>do</strong> mamulengo de Édipo.<br />

12


“A vida é um pangaré paraguayo que nos pega na curva”, cismava ainda o cavaleiro<br />

solitário, desembestadamente, capaz de transformar a mais encorpada bílis que escorria pelo<br />

canto da boca em gracejo ou chiste; eis a vantagem suprema de quem já havia perdi<strong>do</strong> tu<strong>do</strong><br />

que um homem pode perder neste deserto.<br />

As gargalhadas nervosas não escondiam lágrimas russas. Era a vida-vidinha, senhores,<br />

ordinária, minúscula como um anzol de pegar manjubas como se fossem Moby Dicks, baleias<br />

para a fartura de nuestra língua gracilianíssima.<br />

“Ninguém ampara o cavaleiro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> delirante”(2), ouviu uma voz ao longe. A voz<br />

se aproximava com as correntes da friaca. “Ninguém ampara o cavaleiro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> delirante”,<br />

a voz se repetia. “Nin-nin-guém-guém... am-am-pa-ra...”, agora como se o vento fizesse um<br />

scratch sobre um vinil, 75 rotações por minuto, na vitrola da ante-sala <strong>do</strong> inferno.<br />

Não havia um cão feridento a lamber-lhe os beiços e muito menos um problema a<br />

atormentar a vida <strong>do</strong> cavaleiro que se despedira, há tempos, das marmotas da glória e da<br />

maciez das falsas plumas.<br />

Não havia uma testemunha com olhos de suga<strong>do</strong>res corvos, apenas este biógrafo à<br />

espreita, por dever de ofício, e um gigante e leso traveco recém-chega<strong>do</strong> de Espanha que ali<br />

batia ponto na parte mais erma <strong>do</strong> bosque.<br />

“Bem-aventura<strong>do</strong>s os que perdem de vez o rumo, estes herdarão apenas o desassossego<br />

particularíssimo <strong>do</strong>s seus próprios e solenes blues”, o cavaleiro tangia os morcegos com o seu<br />

chapéu negro de cowboy sem nome. ”No máximo ouvirão uma voz ou outra a lembrar-lhes a<br />

inútil verdade <strong>do</strong>s poemas”, agora o cavaleiro dava um tapa em uma ratazana que roía-lhe as<br />

<strong>do</strong>bradiças das janelas d´alma e suas remelas pessoanas.<br />

Agora o cavaleiro imagina-se tocan<strong>do</strong> um banjo melancólico que ri da vida, como uma<br />

balada de Bob Dylan no paraíso perdi<strong>do</strong>.<br />

Agora o cavaleiro pensa que é Tom Sawyer, pescan<strong>do</strong> no rio <strong>do</strong> Bronx.<br />

Agora o cavaleiro copia a autobiografia de Lawrence Ferlinghetti e ouve um sermão de<br />

rock´n´roll com direito a trombone no solo desta noche.<br />

O cavaleiro viaja to<strong>do</strong>s os mun<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong> lava os olhos nas turvas águas <strong>do</strong> bosque<br />

<strong>do</strong> parque da Luz.<br />

Agora o cavaleiro leva uma vida mansa, len<strong>do</strong> os classifica<strong>do</strong>s das criaturas que não<br />

levam jeito para a coisa <strong>do</strong>ravante denominada bida nueves fuera nada.<br />

“Restaurar sonhos não me interessa, minha ourivesaria é outra”, o cavaleiro resmunga<br />

para o olhão <strong>do</strong> Monstro da Piedade que pastoreia nos derre<strong>do</strong>res, disposto a gastar toda a<br />

remela cristã com os piores trastes da área.<br />

Profissão: tenho vaguea<strong>do</strong> nas pradarias de la noche.<br />

(2) Embora o cavaleiro atribuísse a Jorge de Lima (1893-1953), a memória havia si<strong>do</strong> carcomida pela síndrome de<br />

Korsacov, trata-se de um verso de “Overmun<strong>do</strong>”, poema de Murilo Mendes (1901-1975)<br />

13


Uma mulher ainda sem nome, pernas não tão grandes pero alongadas por lindas botas<br />

em couro de lagartos vulcânicos, ojos corta<strong>do</strong>s com navalha de cão andaluz...<br />

Esta mujer está por perto e é capaz de fazer boiar na travessia melancólica <strong>do</strong>s seus<br />

zolhinhos até mesmo o mais babiloniza<strong>do</strong> <strong>do</strong>s cavaleiros deste pueblo.<br />

Se o desejo envelheci<strong>do</strong> <strong>do</strong>s kabrones por esta chica destilasse de uma hora para outra...<br />

daria no melhor uísque cowboy <strong>do</strong> fim <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s.<br />

Ela traz marcas de agulhas, fabriquetas coreanas de confecções e uma tatuagem de<br />

Simon Bolívar nas costas.<br />

O nome de um filho também tatua<strong>do</strong> pelo próprio pai, que se perdeu na selva escura de<br />

Cochabamba.<br />

Juan, eis o batismo <strong>do</strong> chico.<br />

Não, ela não está triste, mesmo ouvin<strong>do</strong> uma canción desesperada de La Lupe.<br />

“Teatro, tu és puro teatro... falsidade ensaiada, estudia<strong>do</strong> simulacro”.<br />

Agora ela ouve Johnny Cash ladeira acima, como num trote de uma bela égua que foge<br />

<strong>do</strong> barulho <strong>do</strong>s fogos de artifício:<br />

“Cry,Cry,Cry...”<br />

(...)<br />

Benveni<strong>do</strong> Granda, um bolero:<br />

“Eu vengo a la barra a tomar un trago<br />

A ver si con eso pue<strong>do</strong> disipar<br />

La angustia que llevo dentro de mi alma<br />

a ver se consigo tu amor olvidar...”<br />

Uma guarânia...<br />

O relato desde o manicômio <strong>do</strong> grupo Querembas, rock pesa<strong>do</strong> da sua Bolívia natalícia.<br />

(...)<br />

Chavela Vargas canta “Luz de luna”, ela não imaginava que a faixa estava na lista, não<br />

pode ouvi-la sem machucar-se um pouco mais.<br />

Os céus minguam por alguns minutos, “Saturno em virgem”, ela especula com os astros.<br />

Su horóscopo naquele dia, Sagitário, segun<strong>do</strong> um ex-astrólogo del Clarin com o qual<br />

teve um romancito acá en San Pablo:<br />

“Amor: Auspicioso. Deja atrás el rancor y expone sus necesidades sin perder la<br />

confianza. El amor fluye con naturalidad. Despejar dudas logra suavizar tensiones y ayudará a<br />

los reencuentros que permiten aban<strong>do</strong>nar la soledad. Busque encuentros sin mucha exigência.<br />

Salud: Haga ejercicios de elongación. Sopresa: Com um cambio de actitud supera escollos.”<br />

14


Agora renova o gloss-urucum no espelho das ruas.<br />

Pensa nos homens como um cemitério de sapatos que poderiam estar naquela vitrine.<br />

Os homens são apenas um cemitério de sapatos que ficam embaixo das camas,<br />

enquanto nos comem ou nem isso.<br />

Sapatos de bicos finos.<br />

Sapatos bem engraxa<strong>do</strong>s.<br />

Sapatos sujos na poeira <strong>do</strong> trabalho e <strong>do</strong>s dias.<br />

Sapatos cujos bicos já pedem água.<br />

Sapatos de to<strong>do</strong>s os números.<br />

Quantas vezes, como num mergulho, numa vertigem, avistara aquele cemitério de<br />

homens mortos de véspera na sua memória.<br />

“Os homens já sobem mortos para as nossas camas”, pensava ela.<br />

Ela sempre gostou de <strong>do</strong>rmir bem na beirada da cama, quase como se imaginasse que<br />

cairia dali em sonhos e seria levada por mares artificiais de filmes de Fellini.<br />

(...)<br />

“Naci para llorar”, com Roberto Carlos, no portuñol levemente selvagem e casto de<br />

vossa majestade enquanto rei de la juventud brasileña.<br />

(...)<br />

Agora, como se o lin<strong>do</strong> rabo fosse la rendeción das <strong>do</strong>res <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, a pequena criatura<br />

rebola, saltos no horizonte, com “Walk On The Wild Side”, <strong>do</strong> viejo Lou Reed, o hino de todas<br />

las calles <strong>do</strong> universo, seu mun<strong>do</strong>.<br />

Ela ouve uma antologia eclética que abarca várias fases <strong>do</strong> seu quarto de século sob o<br />

signo de Sagitário.<br />

Quan<strong>do</strong> vai se aproximan<strong>do</strong> mais uma vez <strong>do</strong>s becos das trevas, volta a ouvir aquela de<br />

Roy Orbinson, que descobriu recentemente em uma película:<br />

“Lloran<strong>do</strong> por ti,/ lloran<strong>do</strong> por ti,/ y tú lo dijiste tan claro/ y me deixaste tan solo/ solo e<br />

lloran<strong>do</strong>/ lloran<strong>do</strong>, lloran<strong>do</strong>, lloran<strong>do</strong>...”<br />

15


O inferno sobre botas se aproxima.<br />

16


Cap. III - Do recurso <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> ou como escrever a biografia<br />

<strong>do</strong>s fracassa<strong>do</strong>s<br />

É tempo de tu<strong>do</strong>, menos de contar as desventuras <strong>do</strong>s perde<strong>do</strong>res, melhor, <strong>do</strong>s refugos<br />

que vagam no mun<strong>do</strong> sem encontrar mais sequer o rodízio inglês das suas operárias camas<br />

quentes. O destino, todavia, com a sua mão peluda e invisível, delegou a este cronista de<br />

costumbres o penoso ofício, ofício por sua vez tão obsoleto quanto o jejua<strong>do</strong>r profissional, o<br />

homem-bala, o calígrafo, o faroleiro, o amola<strong>do</strong>r de facas, o taxidermista...<br />

Apresento-me orgulhosamente como biógrafo possível <strong>do</strong>s refugos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que<br />

encontraremos pelas ruas, nuvens de cachimbos fatais, becos e tabernas deste pueblo.<br />

Velho Charles Dickens, aqui não haverá esperanza, a não ser que algo, no calor da hora<br />

deste repórter-biógrafo, mude o rumo das coisas.<br />

Um biógrafo.<br />

Não um simples cataloga<strong>do</strong>r ou fria alma com pen<strong>do</strong>res estatísticos.<br />

Um biografo passional, por supuesto.<br />

“Um Daniel Defoe no seu Diário <strong>do</strong> Ano da Peste?”(3), provoca o amigo inseparável<br />

<strong>do</strong>n Fracasso Morales, que faz temporal de perdigotos nos meus óculos-pára-brisa de mo<strong>do</strong> a<br />

obnubilar-me. “Te gusta los miserables, non?, sempre a copiar algum modelito, hein, seu<br />

aproveita<strong>do</strong>r de assombraciones da Zumbilândia”, o desgraça<strong>do</strong> ainda fala no portunhol que,<br />

aos poucos, ainda inexplicavelmente, tomava conta de la calle àquela altura.<br />

“Não basta os lambe-lambes que retratam o miserere-nóbis?”, seca os beiços com a<br />

língua depois de mais uma aguardente envelhecida nas ancoretas <strong>do</strong> sarcasmo.<br />

Donde Fracasso Morales aproveita para humilhar mais ainda este biógrafo:<br />

“Seu Maníaco <strong>do</strong> Trechinho, sempre a copiar, sample ao infinitum, pedaços,<br />

fragmentos, intimidades, delicadezas... Que coisa feia: até o teu Complexo de Édipo é com a<br />

mãe alheia!”<br />

(3) Naquele instante, <strong>do</strong>n Fracasso Morales, capaz de decifrar em segun<strong>do</strong>s qualquer truque ou armadilha de<br />

escolha narrativa <strong>do</strong> amigo biógrafo, acabara de tirar o pirulito da boca de uma criança, no que o biógrafo, puto da bida,<br />

é obriga<strong>do</strong> a mudar de rumo e referências, por supuesto, bamus nessa, trata-se de um invencible caballero.<br />

Desde já peço-lhes as devidas desculpas, perdões e cerimoniosas vênias pela demão de<br />

romantismo que possa empregar nos retratos destas criaturas. Não aceitaria o peso da<br />

encomenda sagrada caso estes galões de tinta fresca me fossem subtraí<strong>do</strong>s.<br />

Se um desalma<strong>do</strong>, numa noite de inverno, toca a sua caneca de aguardente em outra<br />

caneca de aguardente e celebra, à beira de uma fogueira, o fiapo de vida que teima em mantêlo<br />

vivo, é lá que estarei por perto <strong>do</strong>ravante, onipresente, melhor, ubíquo qual Santo Antônio de<br />

Pádua, testemunha bipolar da história, <strong>do</strong>nde as duas canecas fazem o brinde qual o fiat lux de<br />

Shazan, aquele milagroso berro selvagem de um sítio mui distante.<br />

17


Cap. IV - Dos esqueci<strong>do</strong>s, los olvida<strong>do</strong>s<br />

Quis o destino, este virtuoso maestro <strong>do</strong> óbvio, que o velho e negro gato fosse<br />

esqueci<strong>do</strong> no sótão da casa pelos <strong>do</strong>nos sem memória. Ali sobrou também um rato, o mesmo<br />

que agora avança sobre a ratoeira armada cuja isca é um corte de queijo ataca<strong>do</strong> pelos vermes.<br />

O gato, com o seu apuradíssimo senso de justiça, impede a morte <strong>do</strong> inimigo histórico. Não é<br />

justo morrer por um pedaço de queijo apodreci<strong>do</strong>. Para salvá-lo da morte injusta, o gato foi<br />

obriga<strong>do</strong>, porém, como determina a ordem natural das coisas, a devorar o rato.<br />

Os mal-assombros da taberna <strong>do</strong> sr. Knut, Knut Petersen(4), onde o crachá de acesso é<br />

um rosário de fracassos nem sempre naturais e explicáveis, ouvem a historieta ali contada por<br />

um ex-funcionário da firma responsável pela demolição <strong>do</strong> antigo imóvel <strong>do</strong>s arre<strong>do</strong>res.<br />

O ex-funcionário chegou ao local <strong>do</strong> suposto crime quan<strong>do</strong> o gato ainda sufocava o rato e<br />

entendeu que não havia o que fazer diante da ordem natural das coisas, apenas salvar o felino<br />

da demolição <strong>do</strong> antigo imóvel.<br />

Ninguém na taberna toma como fábula moralista o episódio. Era apenas a historieta de<br />

um velho e negro gato aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> pelos <strong>do</strong>nos sem memória que salva da morte injusta um<br />

rato atraí<strong>do</strong> por um pedaço de queijo da ratoeira esquecida no sótão. Os zumbis apenas<br />

miram, agora em silêncio, o velho e negro gato que salta sobre o balcão por desconfiar que<br />

era sobre ele que girava a conversa na taberna, naquele instante.<br />

(4) Por mais que se esforçasse, o sr. Knut não convencia os místicos admira<strong>do</strong>res de Knut Hamsun (1859-1952) de<br />

que não haviam laços, nem sanguíneos e muito menos espirituais, entre ele e o autor <strong>do</strong>s lendários “Fome” e “Um vagabun<strong>do</strong><br />

toca em surdina”. Além de ser um batismo comum na Noruega, dizia, o nome original de Hamsun é Knut Petersen, não bate<br />

com a tal criatura em jogo.<br />

Cap. V - Do cavaleiro e por acaso o seu cavalo<br />

O cavaleiro solitário lambia o solo <strong>do</strong>s seus próprios infortúnios como se lambesse,<br />

numa manobra de homem-borracha, a sola <strong>do</strong>s seus desconfortáveis pés racha<strong>do</strong>s e<br />

empreteci<strong>do</strong>s pelo negrume das calçadas nada serenosas.<br />

Como um felino, com sua língua áspera, lambe a mão de quem o ampara sob<br />

escombros, mesmo com toda a empáfia dessa zoologia fantástica e inegociável. Como el gato<br />

niegro dançaria, se precisasse, uma milonga <strong>do</strong> adiós para la vieja de la foice, única maneira de<br />

driblar la muerte como <strong>do</strong>n Diego Mara<strong>do</strong>na a los ingleses durante el segun<strong>do</strong> tiempo da<br />

batalha das Ilhas Malvinas... tal qual Sherezade a enfileirar um batalhão de árabes a comê-los<br />

pelos ouvi<strong>do</strong>s...<br />

Há melhor maneira de comer um homem <strong>do</strong> que pelas beiradas das suas próprias orejas?<br />

18


...Como erristir, gracias a la bida, como las desimportâncias todas de quem insiste em<br />

tecer narrativas como se a aranha pudesse um dia reverter el juego e reinvertar seu próprio<br />

herói imbatível, agora na pele <strong>do</strong> aranha-homem.<br />

(...)<br />

Lambia este caballero, <strong>do</strong>ravante conheci<strong>do</strong> como Fodasno(5), a resina <strong>do</strong>s perde<strong>do</strong>res, o<br />

sobejo <strong>do</strong>s torpes, o vômito de um junkie sem estômago, o cuspe final visguento <strong>do</strong>s ninjas de la<br />

calle, a gosma <strong>do</strong>s rastros mais trôpegos, las penas de las gallinas y sus niños olvida<strong>do</strong>s, chicos<br />

buñuelitos de méxicos e de todas las Américas alhures y desconhecidas... Diós, que madres crueles,<br />

inescrupolosas, que madres de nobellas, que película sem piedad, mi virgem de Guadalupe...<br />

Lambia com esta língua de dragão da maldade las perebas <strong>do</strong>s rejeita<strong>do</strong>s até miesmo por las moscas<br />

famintas da taberna <strong>do</strong> sr. Knut, quan<strong>do</strong> aquele bravo pangaré paraguayo derrubou o orgulhoso<br />

herói(6) na laje da praça e correu até a margem esquerda de la sarjeta-blues, amparan<strong>do</strong> este<br />

cavaleiro solitário que rastejava, réptil de tu<strong>do</strong>, yacaré del amor e de la suerte.<br />

O suposto cavaleiro recebeu o apeli<strong>do</strong> Fodasno por não conseguir, depois de fazer<br />

ranger <strong>do</strong>lorosamente a velha engenhoca de madeira da memória, lembrar-se de algo mais<br />

próximo <strong>do</strong> seu batismo verdadeiro, que seguramente passava longe deste ora posto e firma<strong>do</strong><br />

como marca de fantasia para a nuestra viagem, ora, tiene que tener um nombre, desalma<strong>do</strong>,<br />

pensas que vais sair desta para outra com a leveza <strong>do</strong>s animais anônimos?.<br />

O cavaleiro confabulava, confabulava, e não conseguia reconstituir a sua trajetória.<br />

(Faltavam-lhes os da<strong>do</strong>s elementares, por mais relapso que fosse este biógrafo).<br />

Devolvi<strong>do</strong> às quatro patas originais e inevitáveis da existência humana, Fodasno<br />

debatia-se como um vira-lata que tenta curar as <strong>do</strong>res de barriga, esfregan<strong>do</strong>-se no terreiro<br />

quente de chão poeirento de uma fazenda <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

Ao mau-jeito de existir - desampara<strong>do</strong> e só como na hora em que viu pela primeira vez<br />

o clarão da bida a ofuscar-lhe a mínima certeza de nascença - juntava-se a porrada<br />

propriamente dita, nada de metaforazinhas pequeno-burguesas bem vestidas nas boutiques<br />

metafísicas deste pueblo, porrada mesmo, de regurgitar, de pôr os bofes, as tripas para fora,<br />

socos com anelões de caveira, socos ingleses na boca <strong>do</strong> estômago, jornal de sangue, no<br />

lombo, no toitiço, nos chifres, nas costelas, nos bagos, nas ventas, chutes de coturnos da Gang<br />

<strong>do</strong>s Carecas Mestiços <strong>do</strong>s Trópicos que Lucham pela Raça Pura.<br />

No mínimo, uns sete carecas mestiços <strong>do</strong>s trópicos, justamente sete, pois se tratavam<br />

pelos nomes <strong>do</strong>s dias da semana.<br />

(5) Salvo melhor juízo, o cavaleiro Fodasno foi gera<strong>do</strong> por Maubrun, que gerou Hacquelebac, que gerou Grelepixa,<br />

que gerou Grandebocarra, que gerou Gargantua, que gerou Pantagruel, entre outras grandezas não garantidas, uma vez que<br />

o cavaleiro apreciava mesmo era el viejo Panurge.<br />

(6) Na versão espalhada à época nas tabernas daquele pueblo, tu<strong>do</strong> indica que se tratava de uma estátua de Duque<br />

de Caxias, situada na praça Princesa Isabel, centro de San Pablo, <strong>do</strong>nde o celebra<strong>do</strong> herói brasileiro vem a ser um <strong>do</strong>s<br />

responsáveis pelo genocídio da Grande Guerra <strong>do</strong> Paraguai (1864-1870), quan<strong>do</strong> foram assassina<strong>do</strong>s 606 mil paraguaios,<br />

sen<strong>do</strong> praticamente extinta a população masculina. Brasil, Argentina e Uruguai formaram a Tríplice Aliança para derrotar o<br />

país vizinho, o mais moderno e avança<strong>do</strong> da América Latina à época.<br />

19


Especulava-se toda sorte de simbolismo a respeito, mania de ociosos losers-iluministas<br />

que invadiram as pradarias babilônicas.<br />

Havia também, na linguagem rasteira <strong>do</strong>s boletins de ocorrências, quem tratasse a<br />

história como um mero disfarce para ocultar os verdadeiros nomes.<br />

“Dá-lhe nos testículos, Sexta-Feira”, urravam, para delírio da arena.<br />

“Tua especialidade, Quinta, é chegada a tua hora”, no que o demo-Barbadilha(7)...”<br />

Neste momento, o cavaleiro intuiu que pudesse ser apenas um pesadelo, <strong>do</strong>nde a<br />

esfera <strong>do</strong> seu olho esquer<strong>do</strong> saltou como uma bola de gude sangrenta, quebrou a vidraça de<br />

um hotel em frente e cegou, na sala 101, um contrabandista que contava o seu dinheiro,<br />

amarran<strong>do</strong> em vigorosas ligas negras, como aquelas borrachas de estilingues e baladeiras,<br />

montes e montes de reais, dólares, pesos e guaranys que eram devidamente acomoda<strong>do</strong>s em<br />

delicadas caixinhas de pan<strong>do</strong>ra.<br />

Dali partiria, mal chegasse a manhã, para a tríplice fronteira, Foz <strong>do</strong> Iguaçu, por<br />

supuesto, onde o aguarda até hoje, com seu interminável i-pod de boleros sua orgulhosa e<br />

fundamentalista Penélope, sob linda burca que esconde para to<strong>do</strong>s os hombres <strong>do</strong> planeta,<br />

inclusive para os terroristas a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong>s, um sorriso de pelo menos sete dentes de ouro e to<strong>do</strong>s<br />

os mistérios <strong>do</strong> Tigre e <strong>do</strong> Eufrates.<br />

Aquele hombre também era um terrorista a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong>, como são trata<strong>do</strong>s os kabrones<br />

que largam por um tempo as atividades e se transvestem de bons e prósperos comerciantes.<br />

Quarta-Feira usava um chicote de aço, que fazia fogo com os seus açoites na mal-iluminada<br />

noite deste pueblo...<br />

Terça-Feira, tetraplégico, policial afasta<strong>do</strong> pela correge<strong>do</strong>ria da polícia, estava em uma<br />

noite de suprema generosidade: só pingou chumbo quente no olho direito <strong>do</strong> cavaleiro delirante.<br />

Segunda-Feira fez o cavaleiro beber gasolina...<br />

Domingo e Sába<strong>do</strong> preparavam a chama...<br />

“Aí, Fim-de-Semana!!!”, os dias de trabalho duro deram a senha e o salve! para a dupla.<br />

(7) “Entrectanto Barbadilha, ardiloso e revoltoso, quer a to<strong>do</strong> transe desthronar Plutão, para tanto architeta<br />

uma revolução no inferno”, pensava enquanto era surra<strong>do</strong> o nobre cavaleiro, mal saben<strong>do</strong> que se tratava de um texto<br />

de <strong>do</strong>n Valêncio Xavier, no seu “O mez da grippe”.<br />

20


Como se ateassem fogo, cinzas-de-índio, fazer cinzas de caboclos ainda era costumbre<br />

deste pueblo...<br />

O pangaré paraguayo largou o herói de araque e saltou en la calle...<br />

Donde o solípede distribuiu coices de cimento e bronze de alto calibre técnico e afastou<br />

os assassinos escala<strong>do</strong>s para aquele macabro evento.<br />

Agora o cavalo beija, com o beijo da compaixão deveras sentida, o rosto refratário <strong>do</strong><br />

cavaleiro, um beijo de garoto quase puro e capaz de milagres à beira de um caminho.<br />

Com o beijo, o cavalo retoma a sua carne, a sua alma e a sua fortaleza óssea de<br />

outros pastos, despede-se <strong>do</strong> cimento e <strong>do</strong> bronze aos quais se acomodara... e parte, afável,<br />

muy amable, com o tal mal-assombro são e salvo sobre o lombo em uma interminável<br />

viagem ao fim da noite.<br />

O acontecimento se deu aos pés de uma solitária testemunha ocular, imagina-se, um<br />

gigante travesti, maior até mesmo <strong>do</strong> que o poste onde esperava los austeros barões coreanos<br />

<strong>do</strong> nuevo capitalismo têxtil <strong>do</strong>s arre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Bom Retiro. Havia mora<strong>do</strong>, o traveco e não o<br />

pobre cavaleiro monoglota, cumprin<strong>do</strong> o destino óbvio, em França, Itália e Espanha. Retornara<br />

ao Brasil atraída pelo avanço e modernidade das clínicas de cirurgias plásticas.<br />

“Yo no creo en las pregas, mas que las hay, las lay, las pliegue, <strong>do</strong>bladillo, por<br />

supuesto...”, diz la miesma giganta miran<strong>do</strong> la luna minguante de la existência selvagem e<br />

tosca. Si, el travesti, testemunha ocular <strong>do</strong>s maus boca<strong>do</strong>s del caballero, vuelveu a su pátria<br />

amada com o sotaque espanholito impregna<strong>do</strong> até nas ventosidades del cullo, si, si, si, “dali és<br />

que sai el esperanto da nueva humanidad, de los susteni<strong>do</strong>s hablares <strong>do</strong> que outrora já fora la<br />

derradera flor <strong>do</strong> Lácio”.<br />

21


Cap. VI - Do bravo cavalo que derrubou o orgulhoso herói nacional<br />

O tombo <strong>do</strong> herói nacional provocou correria e interrompeu o jogo de futbol entre os<br />

bolivianos, que relaxavam <strong>do</strong> trabalho das oficinas de costura <strong>do</strong> Bom Retiro - bairro judeu<br />

agora sob <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>s nuevos imigrantes da Coréia - e a equipe <strong>do</strong> Resto de las Américas,<br />

formada por brasileiros molambu<strong>do</strong>s, peruanos, colombianos, um chileno... e um mexicano,<br />

um mexicano mascara<strong>do</strong> mais conheci<strong>do</strong> como El Vinga<strong>do</strong>r-Surpresa, si, jogava com aquelas<br />

máscaras das lutas livres <strong>do</strong> México DF, havia si<strong>do</strong>, a levarmos em conta suas verdades<br />

absolutas encobertas pela crema del banzo de la erristência, um gran lucta<strong>do</strong>r, quase imbatível.<br />

Os bolivianos, que treinam ali to<strong>do</strong>s os dias, mesmo depois de segui<strong>do</strong>s sóis de labuta<br />

diária, venciam por 1x0, gol de Tupac Katari, segun<strong>do</strong> a súmula(8) à qual teve acesso este<br />

biógrafo de alma lu<strong>do</strong>pédica. O time tem <strong>do</strong>is craques da Venezuela, aliança bolivarista<br />

espontânea - um no ataque e outro como primeiro suplente, curinga que juega em todas las<br />

posiciones, inclusive de tromba<strong>do</strong>r -meliante de um ou outro desavisa<strong>do</strong> pedestre que resolve<br />

atravessar no meio <strong>do</strong> clássico.<br />

(8) Certamente um batismo em homenagem ao herói boliviano homônimo, responsável por um <strong>do</strong>s primeiros<br />

movimentos insurgentes <strong>do</strong>s índios <strong>do</strong> país vizinho, ainda em 1870.<br />

22


Rente ao chão, rastejante, o cavaleiro Fodasno enxerga as canelas de los niños<br />

peloteros como se fossem finas estacas sustentan<strong>do</strong> uma mal-ajambrada palafita móvel em<br />

deslocamentos bruscos pela cidade. Era deste ângulo que gostava de ver os jogos de futebol<br />

disputa<strong>do</strong>s de forma sangrenta neste pueblo.<br />

“Se os pés nesta lucha moderna são mais importantes que la cabeza, que eu veja ao rés<br />

<strong>do</strong> chão, como as lutas que travo, por que non?”, pensava Fodasno.<br />

Pensava, com dúvidas e emendas:<br />

“Se bem que alguns são tão eleva<strong>do</strong>s, nas suas jogadas e pensamentos, que durante<br />

muito tempo <strong>do</strong> jogo mal vejo seus miraculosos répteis-cambitos”.<br />

Não era incomum la muerte de um ou outro artilheiro que entrava com la pelota e tu<strong>do</strong><br />

no fun<strong>do</strong> das redes inimigas. Uma desonra que carecia de justiça imediata, “pois que nos<br />

vazem, mas que não nos humilhem”, era o código daqueles honestíssimos hombres sobre os<br />

ladrilhos da praça.<br />

Havia quem dissesse, sem fazer muito mistério, que o cavaleiro se comportava dessa<br />

forma por habitar, há tempos, o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> vai-sem-volta onde vivem as criaturas abençoadas<br />

pelos gigantes cogumelos sebastianistas cultiva<strong>do</strong>s no melhor estrume fantasmagórico <strong>do</strong>s<br />

cavalos <strong>do</strong>s belos bandi<strong>do</strong>s gnósticos.<br />

Decerto o cavaleiro havia si<strong>do</strong> visto, na sua busca pelo Santo Graal <strong>do</strong>s cogumelos<br />

recentes, em currais agripinícos nos arre<strong>do</strong>res de Embu das Artes (9), pueblo vizinho a San Pablo.<br />

Los rovens ofereciam las nuevas pastilhas químicas de las pistas de baile ao caballero, ele<br />

ingeria todas, sem culpa, mas era um ingrato no pronunciamento em relación a las nobidades:<br />

“Fraquinha, fraquinha, mucha velocidad para la pista de baile e poca viarrem para el<br />

cabeçote de um Caballero que carece despirocar-se”, balbuciava o inssurreito.<br />

(9) Teria si<strong>do</strong> visto pelos escribas Roca Tejon y Rosé Bressal<strong>do</strong> na companhia de José Agripino de Paula (1937-2007),<br />

autor de “Panamérica”. A dupla foi responsável pela última entrevista com o ilumina<strong>do</strong> vagabun<strong>do</strong>.<br />

23


Cap. VII - Do Pentecostes e <strong>do</strong>s oxímoros primários<br />

Um buraco vazio sem nome tinha-se instala<strong>do</strong> na parte posterior <strong>do</strong> cérebro deste<br />

cavaleiro(10) e um pesadelo era majoritário àquela altura: uma junta de médicos-carrascos<br />

fazia uma contagem regressiva para que batizasse urgentemente o buraco vazio sem nome na<br />

parte posterior <strong>do</strong> cérebro.<br />

<strong>Sol</strong>tava palavras em línguas estranhas, como os apóstolos no Pentecostes, além de<br />

oxímoros primários, lógico, seu vício menos perigoso neste deserto onde é solitário andar por<br />

entre as gentes.<br />

(...)<br />

Havia perdi<strong>do</strong> a mulher da sua vida, a mulher <strong>do</strong> mês, a mulher da quinzena e a mulher<br />

da semana e a mulher da noite por causa <strong>do</strong>s malditos oxímoros ditos com bafo de imoderável<br />

bagaceira envelhecida em barris de flor-<strong>do</strong>-Lácio, no seu delirium havia uma tomada definitiva<br />

<strong>do</strong> portunhol selvagem e adeus ao solitário português de latinoamérica sangue-quente.<br />

No delirium tremens piorava: baixavam-lhes os maiores palíndromos <strong>do</strong> universo, como<br />

aquele clássico atribuí<strong>do</strong> ao poeta Manuel du Bocage, que lhe chegava como uma despedida,<br />

numa gare melancólica, da língua portuguesa isolada:<br />

LUZIA ROCELINA, A NAMORADA DO MANUEL, LEU NA “MODA DA<br />

ROMANA”: “ANIL É COR AZUL”.<br />

(10) Na Praça Roosevelt e nos seus arre<strong>do</strong>res havia, entre as belas e sábias gazelas das artes dramáticas, quem<br />

atribuísse a origem <strong>do</strong> pesadelo a alguma influência enviesada e mal-compreendida de escritos avulsos <strong>do</strong> francês Antonin<br />

Artaud (1896-1948), especialmente as cartas sobre o ópio e da sua relação com as chocantes tremelicas da abstinência.<br />

Cap. VIII - Donde o que está embaixo, seja homem ou seja cavalo,<br />

é o que está em cima<br />

Agora o solípede, em fuga daquela maldita estátua eqüestre, voa pelos becos soturnos<br />

<strong>do</strong> centro de San Pablo e a sombra magra, esticada como um super-herói de borracha, projetase<br />

sobre as laterais <strong>do</strong>s prédios como a única prova verossímil de que este cavaleiro se encontra<br />

vivo, depois de décadas nas veredas <strong>do</strong> excesso.<br />

Eufórico com a nueva vida, o pangaré-caxias só tem uma breve queixa: a sina de estátua<br />

eqüestre. Mesmo em alta velocidade e vida nueva no pueblo, não há fuerza neste mun<strong>do</strong> que o<br />

livre das cagadas constantes <strong>do</strong>s pombos. Os pombos de San Pablo, cisma o panga, cagam<br />

césio e urânio.<br />

Maldita sina de estátua.<br />

24


Afeito a animações, porém, o danoso diverte o seu novo cavaleiro ao fazer cinema da<br />

sua caveira mal-assombrada em altas mungangas e manobras pelas paredes. Visto por uma<br />

criança, porém, parece que Fodasno monta um cavalo de pau, de tão duro que é Fodasno em<br />

cima <strong>do</strong> seu honesto pangaré de guerra. Fazia tempo que Fodasno não sentia o prazer e a<br />

crença em uma dança, um baila<strong>do</strong>, o fabuloso cavaleiro Fodasno nos últimos anos só havia<br />

treina<strong>do</strong> quedas, tombos, desacertos, na<strong>do</strong> livre e revesamento quatro-por-quatro em sarjetas,<br />

atos falhos e pesadelos <strong>do</strong> gênero, perseguição seguida de violência gratuita.<br />

O cavaleiro também se reflete gigante no chão <strong>do</strong> Vale <strong>do</strong> Anhangabaú, entre velhos<br />

espíritos indígenas que perambulam depois que a cidade <strong>do</strong>rme, depois que apenas a taberna<br />

<strong>do</strong> sr. Knut, a taberna <strong>do</strong>s Irmãos Benuthe - os nada-apostólicos Marcos & Pedro - e a taberna<br />

da Última Chance permanecem com alguma vida n´alma <strong>do</strong>s seus diletos freqüenta<strong>do</strong>res.<br />

Phedra de Cór<strong>do</strong>ba ainda está na janela <strong>do</strong> seu prédio nesta hora.<br />

O gato Primo, que ela acaba de ganhar na Praça Roosevelt, é to<strong>do</strong> cócegas de felicidade<br />

nos seus braços.<br />

O gato mira o vale e ri das assombrações <strong>do</strong>s índios.<br />

A atriz Phedra, honra<strong>do</strong> e glorioso travesti egresso de Cuba, disfarça o arrepio na pele e<br />

dança um tcha-tcha-tcha de Célia Cruz para la luna caliente.<br />

O vento frio <strong>do</strong> deserto de San Pablo, em silvos corta<strong>do</strong>s, recita algo que só podemos<br />

atribuir a Hermes Trimegisto, orai-vos, destemi<strong>do</strong>s:<br />

“O que está embaixo é como o que está em cima, e o que está em cima é como o que<br />

está embaixo; por estas coisas se fazem os milagres de uma só coisa...”<br />

BIENVENIDOS TODOS A LA NOCHE DE SAN PABLO, COMANCHEROS!<br />

Cap. IX - Dos papéis de um recém-chega<strong>do</strong> e das estátuas sem saída<br />

25


As estátuas de Luiz Vaz de Camões y Miguel de Cervantes Saavedra, ali nos arre<strong>do</strong>res<br />

da Biblioteca Mário de Andrade, também no centro deste pueblo, como não dependiam de<br />

seres eqüestres nas heróicas poses, apenas ajeitaram seus belos saiotes de época e continuaram<br />

a fingir que estão de olhos fecha<strong>do</strong>s para os novos tempos, gracias.<br />

A essa altura este biógrafo não havia li<strong>do</strong> os seus “Papeles de recienveni<strong>do</strong>”, <strong>do</strong>n<br />

Mace<strong>do</strong>nio Fernández, que me acabam de chegar por mãos finas de moça, babo por elas qual o<br />

cãozinho vicia<strong>do</strong> na sineta alimentar de Pavlov, <strong>do</strong>n Mace<strong>do</strong>nio, mãos finas de moça, talvez as<br />

mais lindas falanges, falanginhas e falangetas que já presenciei, empunhan<strong>do</strong> um nobre volume<br />

da grandiosa e retumbante literatura de Latino América.<br />

Bravíssima, dê-mo aqui, hermosa chica, na bandeja iluminada, por supuesto.<br />

Don Mace<strong>do</strong>nio, impressiona-me o vosso desgosto pelas estátuas. Este biógrafo está<br />

deveras orgulhoso de tamanha coincidência de pensamento. Quem dera fosse plágio ou pelo<br />

menos uma ressonância tardia e involuntária. Ah, bastava uma osmose sovacal, dava-me por<br />

eleito, desses pedaços de livros que, de tanto exibirmos debaixo <strong>do</strong>s sobacos por aí, a<br />

engambelarmos as poucas gazelas que ainda se impressionam com tais brochuras, acabam por<br />

furar-nos a pele e juntar-se ao álcool que corre nas veias em moto-perpétuo, contínuo,<br />

combustível da última diligência <strong>do</strong> espírito.<br />

Don Mace<strong>do</strong>nio, antes que partas, um breve alerta: to<strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> é pouco neste<br />

Mercosul fantasmagórico, se não estão respeitan<strong>do</strong> autores vivos... muito menos os mortos.<br />

Que mantenhas las ideas próprias em buelsillo costura<strong>do</strong> e secreto das tuas vestes, espero que<br />

la esposita tenha te costura<strong>do</strong> los buelsillos internos, porque las nuestras mujeres a<strong>do</strong>ram<br />

proteger nuestro patrimônio simbólico, porque lo patrimônio materiale é delas miesmas, non?<br />

Agora hablan<strong>do</strong> sério, seriíssimo, <strong>do</strong>n Mace<strong>do</strong>nio, la gangue <strong>do</strong>s Trombadiñas<br />

Metalingüísticos está a suelta em to<strong>do</strong> el pueblo, nas pradarias, nos aeroportos, nos<br />

manicômios, nas aduanas, nas carreteras, en las fronteras... um bater de pestana e já era aquela<br />

idea gordinha cevada há anos nos melhores pastos das fazendas metafísicas y gaúchas, aquela<br />

Idéia, aquele fiat lux pronto para o abate, aquela idéia com quatro, cinco de<strong>do</strong>s de toucinho das<br />

fazendas uruguayas de Brizola... Aquele cordeiro-mote, entonces, seja uruguaio ou <strong>do</strong>s pastos<br />

escassos <strong>do</strong>s sertões, pode ser vítima de um seqüestro-relâmpago, principalmente ali nas<br />

cercanias <strong>do</strong> Martin Fierro, bravíssima cozinha argentina de la Vila Madalena nesta supracitada<br />

San Pablo de Piratininga, si, <strong>do</strong>n Mace<strong>do</strong>nio, estão a subtrair las ideas de nuestros visitantes,<br />

los gracejos, los chistes, boutades, las frases de efecto, até miesmo las próprias mierdas estón a<br />

usar para florescimentos de burreguitos futuros e cogumelos naturales.<br />

Os nativos, então, bastam ter a mínima redação própria, motivo suficiente para serem<br />

humilha<strong>do</strong>s pelo fisco e terem as carteiras apanhadas no vuco-vuco mental de la calle, como<br />

me sopra el deflora<strong>do</strong>r-mor, el Visconde hode<strong>do</strong>r de Amparo, señor Marçal y Aquino.<br />

26


Nas cadeias, <strong>do</strong>n Mace<strong>do</strong>nio, faltam tantos que, se faltar mais um, não vai caber.<br />

Aos “Papeles de recienveni<strong>do</strong>”, pois, que hay me presentea<strong>do</strong> hermosa chica que<br />

acaba de volver de Buenos Aires, cidade invadida pelos brasileiros, portunholistas selvagens<br />

invetera<strong>do</strong>s e principalmente los habitantes de San Pablo, que vuelvem orgulhosos com las<br />

camisetas de Mara<strong>do</strong>na, para desguesto-mor de Edson Arantes, el Pelé, rei das artes<br />

lu<strong>do</strong>pédicas.<br />

Las chicas mais finas, todavia, nos trazem regalitos muy nobres, pricipalmente las<br />

chicas enamoradas de Los Tres Hombres, viejo e tradicionale conjunto roqueiro deste pueblo,<br />

que hay lhes trazi<strong>do</strong> todas las estantes contemporâneas.<br />

Aos “Papeles de recienveni<strong>do</strong>”, <strong>do</strong>n Mace<strong>do</strong>nio, é com mucha honra que llamamos ao<br />

micrófono de nuestra taberna, ao micrófono de nuestra mais prestirriada tertúlia líteroborrachesca,<br />

o nuestro sarau Quinta <strong>do</strong>s Infiernos, Jueves de los Infiernos, por supuesto,<br />

<strong>do</strong>nde <strong>do</strong>n Mace<strong>do</strong>nio recita em apura<strong>do</strong> lusitanismo sem que houvesse sequer um sopro <strong>do</strong><br />

seu renial traductor nestas plagas:<br />

“Tenho um temperamento tão pedagógico que não posso deixar de lhes informar que<br />

to<strong>do</strong>s os povos existentes - ou inexistentes <strong>do</strong>entios - devem possuir uma estátua <strong>do</strong> inventor<br />

<strong>do</strong>s la<strong>do</strong>s direito e esquer<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s de frente e verso, distinção da qual somente os buracos se<br />

eximem. Não me perguntem agora porque os comissários mais abusivos sempre se abstiveram<br />

de prender quaisquer estátuas, que vivem nas praças como os vagabun<strong>do</strong>s, ostentan<strong>do</strong> o mau<br />

exemplo da vadiagem. Abomino as estátuas: quase sempre são homens envergan<strong>do</strong> manto<br />

grego ou ampla sobrecasaca de mármore. Se o traje atual masculino costuma ser absur<strong>do</strong>, esses<br />

botões e galões de mármore, esse troço grossíssimo de mármore que simula as pontas<br />

levemente roçadas pela brisa são intoleráveis, e tu<strong>do</strong> isso para um homem que fica ali<br />

asseguran<strong>do</strong>-nos com a mão e com a boca que vai nos dizer coisas eloqüentes, mas não dá um<br />

pio o dia to<strong>do</strong>.”<br />

27


Cap. X - Do “Caderno de Alumbramentos Diários”<br />

Não é que a biografia da moça ainda sem nome caiba na lista <strong>do</strong> arquivo musical que<br />

embala os seus passos rebola<strong>do</strong>res en la calle.<br />

Agora ela escuta, por exemplo, um batuque de can<strong>do</strong>mblé, deuses que dançam, por<br />

supuesto, e aquela bunda governa mais ainda o universo.<br />

Tem aquele rabo que não dá tempo os homens pensarem direito, simplesmente não dá<br />

tempo os homens refletirem sobre o perigo da hora.<br />

Ela sabe-se <strong>do</strong>na <strong>do</strong> melhor traseiro das Américas, rainha-mor <strong>do</strong>s torcicolos deste pueblo.<br />

“É a maior vende<strong>do</strong>ra de emplastro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>”, diz <strong>do</strong>n Fracasso Morales, “deve ter<br />

uma comissão da indústria farmacêutica para flanar assim pelas ruas”.<br />

Permitam-me uma breve confissão: este biógrafo devota-se à tal fêmea desde os<br />

primeiros estu<strong>do</strong>s para o seu “Caderno de Alumbramentos Diários”(11), no qual descrevia<br />

minuciosamente as raparigas que abalavam os seus senti<strong>do</strong>s durante as andanças en San Pablo<br />

de Piratininga.<br />

Lá, no supracita<strong>do</strong> caderno, estavam os melhores pescoços, as melhores titelas, as<br />

saboneteiras mais cavadas, os ilíacos, os mais incríveis perônios deste pueblo, os joelhos com<br />

aquelas marquinhas de quedas da infância, os melhores rádios, as cicatrizes mais amadas, as<br />

melhores covinhas de fáceis sorrisos, as coxas mais possantes, aqueles <strong>do</strong>is buraquinhos nas<br />

costas antes de chegar nas belas bundas, os mais poli<strong>do</strong>s cotovelos de infindáveis esperas, as<br />

tatuagens mais incendiárias, as metonímias todas de uma costela, los mamilos, las mejores<br />

colunas, las omoplatas, as pintinhas nas costas que deixam louco um exímio apanha<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />

campo sem fim de sardas...<br />

Cap. XI - Da cabeça de Goethe e <strong>do</strong> amor que não mata<br />

A cabeçorra de Goethe, pesan<strong>do</strong> umas vinte arrobas, na mesma área del pueblo de San<br />

Pablo em que todas as estátuas se mexeram esta noche, tentou sair bolan<strong>do</strong> pela Praça Don<br />

José Gaspar, mas já era tarde demais.<br />

Gângsteres o levaram para derreter o mármore em alguma oficina de desmanche de<br />

estátuas, bustos e cabeças de literatos ilustres deste sítio.<br />

(...)<br />

“Ah, ninguém morre de amor tão fácil assim nos tristes trópicos”, relinchou o pangaré<br />

paraguayo ao tomar conhecimento de que se tratava da cabeça de onde saiu “O Jovem Werther”.<br />

Um raro relincho de Chivas desprovi<strong>do</strong>, gracias, <strong>do</strong> já insuportable portunhol selvagem.<br />

Muy amable, <strong>do</strong>n Chivas, muy amable.<br />

(11) Composto e impresso na Typographia da Donzela Guerreira, Barra Funda, São Paulo, por ocasião da virada<br />

<strong>do</strong> século XX para o XXI. Trata-se <strong>do</strong> primeiro livro de vulto de <strong>do</strong>n Augusto Sombra, el biógrafo de mal-assombros de la<br />

calle e de las tabernas.<br />

28


Supõe-se, neste pueblo, que haveria, naturalmente, outras maneiras mais divertidas de se<br />

estragar a pele, jovem Werther.<br />

“Com esse solzão dana<strong>do</strong> sobre os olhos, qualquer suicídio de ordem amorosa é,<br />

para dizer o mínimo, de uma deselegância imper<strong>do</strong>ável, perigas inclusive borrar feio a<br />

maquiagem”, Phedra de Cór<strong>do</strong>ba teria sopra<strong>do</strong> mais um chiste no redemoinho <strong>do</strong> seu jardim<br />

suspenso sobre o abismo <strong>do</strong> vale que nos interessa.<br />

Phedra conta que mantém réstias de espanholito cubano na sua fala porque tal cantiga<br />

comove los brasileños.<br />

“Ao ouvi<strong>do</strong> de um militar, durante las fuedas, és irresistible”, morre de rir a chica.<br />

“En la transición lenta e graduallll de la dictadura para la democracia, diós, foi um sucesso!”<br />

Phedra hay devora<strong>do</strong> muchos y muchos <strong>do</strong> gênero. Suerte deles, por supuesto.<br />

Cap. XII - De como os chifres épicos não têm cura<br />

Não se morre de amor nos trópicos, mas corre também neste pueblo a versão de que a<br />

mala suerte e o infortúnio <strong>do</strong> cavaleiro solitário tinha como origem uma trágica e mal-contada<br />

história de amor.<br />

O cavaleiro, porém, em vez de precipitar-se no abismo das flores finales, atirou-se à<br />

milagrosa lama das ruas e das tabernas.<br />

Só a lama cura.<br />

“Não se morre de amor nos trópicos”, uma voz parecia encorajá-lo en la noche, dessas<br />

tantas vozes que lhe chegam cortadas como vinis sob rigoroso regime de scratchs ou como se o<br />

vento desta Carençolândia <strong>do</strong> Oeste fosse gago.<br />

“Só a la-la-la-ma cu-cu-ra”.<br />

Era tu<strong>do</strong> que ele queria ouvir mesmo, uma vez perturba<strong>do</strong> pela síndrome de Korsakov<br />

que o atacara ce<strong>do</strong>. (12)<br />

Só a lama cura.<br />

Este cavaleiro tem a lama como purgante e remate <strong>do</strong>s males, pero los chifres épicos,<br />

aqueles que <strong>do</strong>em para o resto da bida, estes levam às grandes obras e às mais conhecidas<br />

aventuras humanas.<br />

(12) A síndrome de Korsakov (ou Korsakoff), segun<strong>do</strong> as enciclopédias em voga aqui livremente copiadas, é uma<br />

neuropatologia associada à carência de Vitamina B1 (tiamina), traumas cranianos, encefalite herpética, intoxicação pelo<br />

monóxi<strong>do</strong> de carbono e indiretamente, mas muito comumente ao alcoolismo agu<strong>do</strong>, pois o álcool prejudica a capacidade <strong>do</strong><br />

organismo de absorver a Vitamina B1. Essa vitamina está associada à transformação <strong>do</strong> áci<strong>do</strong> pirúlico, que por sua vez<br />

realiza transformações bioquímicas de proteínas, gorduras e especialmente hidratos de carbono, sen<strong>do</strong> que em sua ausência<br />

as células nervosas são as mais afetadas. Os sintomas da Síndrome de Korsakov são a amnésia anterógrada, amnésia<br />

retrógrada e muito comumente a confabulação e uma desorientação temporoespacial. Acompanham esses sintomas uma<br />

severa apatia e desinteresse por parte <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente, que muitas vezes não é capaz de ter consciência de sua condição. A amnésia<br />

anterógrada está relacionada com o comprometimento da memória de curto prazo, ou seja, o <strong>do</strong>ente se torna incapaz de<br />

formar novas memórias, a partir <strong>do</strong> momento em que desenvolve a <strong>do</strong>ença, e a amnésia retrógrada está relacionada à<br />

memória de longo prazo, assim o <strong>do</strong>ente perde grande parte da memória que havia se forma<strong>do</strong> antes da <strong>do</strong>ença. É basea<strong>do</strong><br />

nessa severa condição que o neurologista Oliver Sacks (em "O homem que confundiu sua mulher com um chapéu", relaciona<br />

a síndrome de Korsakov à perda da identidade, pois vítima de uma amnésia retro-anterógrada o <strong>do</strong>ente perde por inteiro<br />

29


sua linha biográfica, sua história, e permanece incapaz de construir outra, sen<strong>do</strong> obriga<strong>do</strong> a viver como uma pessoa sem<br />

história de vida. Essa linha seria fundamental para a formação <strong>do</strong> senso de identidade na consciência. Como conseqüência<br />

desse severo quadro é que ocorre a confabulação, que seria uma tentativa <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente de preencher suas lacunas mnemônicas<br />

com imaginações e ficções aparentemente verossímeis, nas quais ele próprio poderia acreditar. Outra conseqüência seria a<br />

desorientação temporoespacial, claramente causada pela incapacidade da pessoa de marcar sua existência no tempo.<br />

Nesta hora é falha a aspirina, mesmo cabralina, e talvez incertos to<strong>do</strong>s os sóis de bolso,<br />

como <strong>do</strong>n Paulo Henriques Britto, nestes mesmos tristes trópicos, denominou as pílulas<br />

antidepressivas.<br />

Muito menos com divãs virá a cura, muito menos zen-budismos, pseu<strong>do</strong>-orientalismos<br />

ou carmas-colas possíveis, por que os chifres crescem e avançam mais <strong>do</strong> que a gaia ciência e a<br />

crendice que fura nuvens, os chifra<strong>do</strong>s ruminam o milagroso capim pantagruélico com o qual a<br />

respeitável senhora Bicaberta hay alimenta<strong>do</strong> seu mitológico filho milagrosamente gera<strong>do</strong> em<br />

seu ventre gigante, amém, e que venha o próximo chifre a enfeitar-nos a fronte longeva e triste.<br />

Gracias que os chifres épicos não têm nem nunca tiveram cura. Levamos os tais ao fim<br />

da existência, ao túmulo, aos vermes vorazes que sentem o gosto <strong>do</strong>s chifres como gongonzola<br />

infiltra<strong>do</strong> nos miolos da memória e <strong>do</strong> juízo.<br />

Como um touro que governa, entre a vida e a morte, a sorte de um toureiro, os chifres<br />

são indispensáveis, porque um hombre sem chifre é um animal desprotegi<strong>do</strong>.<br />

Os mongóis, comanda<strong>do</strong>s por Gengis Khan, <strong>do</strong>minaram quase toda a Ásia graças aos<br />

poderosos arcos de chifres, embora histórias <strong>do</strong> gênero se tornem inteiramente dispensáveis a<br />

essa altura da desgraça humana.<br />

Se não fossem os chifres épicos, por erremplo, não teria habi<strong>do</strong> la braba revuelta de<br />

Canu<strong>do</strong>s, onde reinou o sebastianismo de Antônio Conselheiro (1828-1897), porque los<br />

hombres, mesmo os mais vocaciona<strong>do</strong>s para o heroísmo, carecem de uns cornos para<br />

enfrentarem o mun<strong>do</strong>.<br />

Pai de <strong>do</strong>is lin<strong>do</strong>s hijos, Conselheiro, como era conheci<strong>do</strong> Antônio Vicente Mendes<br />

Maciel, rábula <strong>do</strong>s pobres e <strong>do</strong>s lasca<strong>do</strong>s como maxixe em cruz, caixeiro viarrante, Antônio é<br />

traí<strong>do</strong>, supostamente traí<strong>do</strong>, como diriam nos dias que correm los periodistas inseguros, por um<br />

furriel, patente antiga e intermediária entre cabo e sargento.<br />

Natural de Quixeramobim, desierto de Siryará, encontrava-se, na ocasião, em Ipu, nos<br />

arre<strong>do</strong>res, quan<strong>do</strong> o destino, qual uma daquelas mãozinhas de madeira japonesa para solitários<br />

coçarem as costas, quis ungir-lhe justamente na fronte luminosa.<br />

30


Desiludi<strong>do</strong>, Conselheiro corre para o então sítio Tamboril, também nas proximidades,<br />

onde dedica-se a alfabetizar aquela gente. Sua missão ajudava-lhe a esquecer <strong>do</strong>s<br />

acontecimentos, <strong>do</strong>nde se sabe que muitos cornu<strong>do</strong>s, para voltarmos ao mun<strong>do</strong> de hoje, correm<br />

a fundarem ONGs, organizações não-governamentais, para salvar o universo da fogueira<br />

gigante que se aproxima, <strong>do</strong>nde também tem que ser dito que nem to<strong>do</strong> ongueiro és um<br />

chifru<strong>do</strong>, por supuesto, que a sentença valha apenas para quem a essa altura já enfiou a<br />

carapuça sobre os incatáveis piolhos da desconfiança.<br />

No caso <strong>do</strong> bravíssimo Conselheiro, por supuesto, havia mesmo por trás uma mulher<br />

daquelas capazes de arruinar uma vida, desgraçar com nuestra existência, hoder com tu<strong>do</strong>,<br />

daquelas que nos deixam a nadar no seco, pensan<strong>do</strong> em solamente duas coisas: dar um tiro no<br />

toitiço ou salvar o mun<strong>do</strong> na mais ingrata das luchas perdidas como são todas as lutas épicas.<br />

Esta mulher se chamava...<br />

Nunca houve um batismo mais hermoso!, preparem-se.<br />

Esta mulher, senhoras e senhores...<br />

Donde esta mulher se chamava Joana Imaginária.<br />

Si, reparem o que vem a ser o destino, uma fêmea cuja pia batismal da paróquia de<br />

Santa Quitéria havia banha<strong>do</strong>, naqueles i<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s mil e oitocentos y macaúbas, com o santo<br />

nome de... Joana Imaginária.<br />

Com Joana Imaginária, além <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is meninos antes relata<strong>do</strong>s, tivera mais um<br />

come<strong>do</strong>rzinho-de-favas sob fartos-sóis semi-ári<strong>do</strong>s, pelo que supõe o inquérito biográfico deste<br />

que vos bafeja o cangote. Sim, Joana fertilizara outra criatura no seu ventre-massapê<br />

cacimboso, molhadinho meu deus, fogosa, barro liguento, favas debulhadas na pouca chuva<br />

de março, por amor, fêmea de responsa, era a própria chuva no lugar que nem o divino, como<br />

seria <strong>do</strong>s seus afazeres, molhava o roça<strong>do</strong> de nuncas.<br />

No baú de couro de onça curtida pelos sóis <strong>do</strong>s poucos sorrisos <strong>do</strong> avô deste<br />

biógrafo de sertanejas miragens, encontra-se até os dias que correm um folheto de feira<br />

que diz, entre outras sextilhas:<br />

Do barro que sobrou de Eva<br />

Deus reproduziu uma binária,<br />

Mol<strong>do</strong>u, esculpiu, ave, benzeu...<br />

Aquela costela das arábias...<br />

E daquela fôrma nunca mais saiu<br />

Uma fêmea como Joana Imaginária!<br />

A sina de Conselheiro, porém, era correr desertos. Um homem infinitamente maior <strong>do</strong><br />

que os chifres to<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, isso é pilhéria, prosa de quinta diante da sua fortuna<br />

passarinhosa que o puxava pelas unhas para largar mun<strong>do</strong>s e aprofundar-se, castelo dentro de<br />

castelo, casca dentro de casca <strong>do</strong>s couros <strong>do</strong>s répteis da existência tatuzosa y garatuja.<br />

Um desses homens sem acostamentos, desses homens maiores <strong>do</strong> que a vereda que<br />

aparece na vista escura em noite erma e desvagaluminada de um tu<strong>do</strong> e para sempre, glosa.<br />

31


Cap. XIII - Da sina maldita ou corno em rastro de corno ad infinitum<br />

Não bastasse o infortúnio de Antônio Conselheiro, coube ao escriba Euclydes da<br />

Cunha, d´Os Sertões, autor <strong>do</strong> catatau desta nobre saga, a mesma sina.<br />

Trato de encurtar a noubella para abreviar enre<strong>do</strong> que não conta nessa história: Euclydes<br />

acabaria assassina<strong>do</strong> pelo oficial <strong>do</strong> Exército Dirlerman<strong>do</strong> de Assis, mancebo de 17 anos,<br />

amante da sua mulher Ana Ribeiro, que, em um republicanismo bucetístico involuntário, o<br />

esqueceu depois da temporada de Canu<strong>do</strong>s.<br />

Em 1906, ano em que nasceu o avô deste biógrafo, importantíssimo em páginas mais<br />

adiante, Euclydes voltará ao Rio de Janeiro, onde morava com a família.<br />

Quis o destino, esse rato existencial que rói por dentro o ossobuco de nós to<strong>do</strong>s, que o<br />

repórter de “O Esta<strong>do</strong> de S.Paulo”, envia<strong>do</strong> especialíssimo, encontrasse a mulher grávida.<br />

Não era o pai, naturalmente, estivera no front.<br />

Apenas três anos depois, descobriu tu<strong>do</strong>.<br />

Pegou um revólver...<br />

Fatídico 15 de agosto <strong>do</strong> ano da graça de 1909, no tempo em que agosto ainda caia<br />

em agosto, e saiu para "lavar a honra com sangue".<br />

Cruzou com o oficial na estrada Real de Santa Cruz, no bairro da Piedade.<br />

Apertou o gatilho.<br />

Uma, duas vezes...<br />

As balas se perderam no caminho.<br />

Errou feio os <strong>do</strong>is tiros.<br />

Uma faísca e já tomou um balaço no centro da testa.<br />

O mancebo oponente era de tiro certeiro.<br />

Euclydes tombou aos 43 de idade, depois de fazer grande obra pero não labrar a<br />

obra-mor da existência: o amor de las mujeres.<br />

De Cervantes contam lo miesmo, pero tambíen não importa aqui nesta narración<br />

vertiginosa rumo ao nada.<br />

O que são os moinhos se não chifres em cabeças de pangarés nervosos que incorporam<br />

las <strong>do</strong>res de sus distintos caballeros?<br />

Los chifres son ficciones laboriosas.<br />

Para muitos, os chifres representam a desgraça; no que tange ao rebanho <strong>do</strong>s ilumina<strong>do</strong>s<br />

em chamas, os chifres representam a glória, a glória que desce um certo dia na tempestade e<br />

gruda aos cornos como relâmpagos encomenda<strong>do</strong>s por infalíveis pára-raios. Que assim seja,<br />

amém, para siempre.<br />

32


Quanto ao biógrafo oficial <strong>do</strong>s mal-assombros deste pueblo, vos digo, confesso, os<br />

chifres são tantos que o sr. Knut, que chegou aos trópicos por causa de segui<strong>do</strong>s chapéus de<br />

deuses vikings, faz questão de consolar-me com lendas e contos populares nórdicos cheios<br />

destes semelhantes chifru<strong>do</strong>s.<br />

Não passa nada.<br />

“Non passaran”, grasna o corvo urubuzento <strong>do</strong> sr. Knut, que fica o tempo to<strong>do</strong> bican<strong>do</strong><br />

as cobras das garrafas das melhores aguardientes da taberna.<br />

“Non passarán los chifres en la puerta”, explica o famigera<strong>do</strong>.<br />

Mal sabe este miserável que, por exemplo, no Nordeste brasileño, essa história de corno<br />

é mais paródia e dionisíaca <strong>do</strong> que qualquer onda que se tire nesse mun<strong>do</strong> sobre quaisquer uma<br />

destas sagradas personagens, que Deus os tenha, por supuesto.<br />

Em algumas ocasiões pode dar em morte, óbvio, a faca alumiada em noite obscura a<br />

puxar as tripas <strong>do</strong> adúltero mais destemi<strong>do</strong>. Costuma-se beber o sangue <strong>do</strong> desalma<strong>do</strong> nestes<br />

episódios, pelo menos um daqueles copos engana-bêba<strong>do</strong>s pelas bordas. Poesia pura, crimes de<br />

honra; os gracejos, porém, reza a ciência, costumam encobrir com uma demão de sátira as<br />

tintas mais berrantes da tragédia.<br />

Como diz a filosofia de pára-choque de caminhão das carreteras daquele mun<strong>do</strong> semiári<strong>do</strong><br />

que engana a vista como no deserto das miragens infinitas: chifre é para homem, o touro<br />

usa de enxeri<strong>do</strong>.<br />

Mesmo o touro de épicas touradas, viejo Manolo madrileno de imbatíveis pelejas.<br />

Cap. XIV - Do redemoinho empoeira<strong>do</strong> e da cisterna demoníaca<br />

33


O agora fabuloso cavaleiro Fodasno desconfia que a sua viagem não se trata de uma<br />

viagem qualquer ao fim da noite, como as outras tantas, embora el caballero houvesse<br />

percorri<strong>do</strong>, em contornos semelhantes, as mesmas vielas <strong>do</strong> estrago e da sorte vezes infinitas.<br />

Se havia uma busca, era uma busca comum a to<strong>do</strong>s os poetas, assassinos, ladrões e<br />

sangue-ruins da cidade nesta mesma hora.<br />

Os malassombros, cujas molas <strong>do</strong>s colchões de hotéis baratos estão sempre a ejetálos<br />

para as tabernas mais imundas onde possa acontecer ao menos uma boa encrenca para<br />

recarregar o ódio e pôr em dia as munhecas.<br />

Os colchões são buenos para los amantes ou para los enfermos, non para los heróis<br />

e destemi<strong>do</strong>s.<br />

A la noche, comancheros!<br />

O que é um homem sem um redemoinho empoeira<strong>do</strong> na cabeça?<br />

Nesta noite, to<strong>do</strong>s os inquietos saímos a la calle dispostos a riscar a caixa de fósforo das<br />

angústias no tanque inflamável de testosterona e solidão que há no subsolo deste pueblo, a<br />

demoníaca cistema encravada debaixo <strong>do</strong>s nossos pés.<br />

34


A busca seria mais ou menos comum: preencher o buraco vazio instala<strong>do</strong> na parte<br />

posterior <strong>do</strong> cérebro.<br />

Uns com álcool, outros com mulheres, alguns com a caspa <strong>do</strong> capeta(13) na Estrada das<br />

Lágrimas e outros simplesmente estouran<strong>do</strong> os miolos <strong>do</strong>s suspeitos de sempre.<br />

Os faroestes particulares variam conforme a extensão de deserto que cada um carrega<br />

no velho oeste da caixa torácica, amigos.<br />

Neste faroeste há poeira nos sonhos, neste faroeste supostamente freudiano nem mesmo<br />

nuestras madres escapam <strong>do</strong>s nuestros próprios canos fumegantes.<br />

Tequila para to<strong>do</strong>s, señores!<br />

(13) Como <strong>do</strong>n Fracasso Morales, que se dizia amigo <strong>do</strong> cavaleiro solitário, batizou a cocaína em uma taberna<br />

da Estrada das Lágrimas, zona sul deste pueblo, segun<strong>do</strong> relato de <strong>do</strong>n Claudio Rúlio, reportero desta mesma freguesia.<br />

35


Cap. XV - Dos Gângsteres <strong>do</strong> <strong>Sol</strong> Quadra<strong>do</strong> e <strong>do</strong> perigo da hora<br />

Naquela noite única, noite <strong>do</strong> Dia das Mães, maio <strong>do</strong> ano da graça de 2006, a mais<br />

perigosa falange <strong>do</strong> crime havia feito o primeiro ataque em massa a San Pablo de Piratininga.<br />

A cidade-refém <strong>do</strong> que se contava, não obrigatoriamente <strong>do</strong> que se vivia.<br />

Donde...<br />

Cada um contava um rio a dar numa Guarapiranga de histórias, a enchente suprema<br />

com os sofás da acomodación e da desgraceira boian<strong>do</strong> sobre as águas <strong>do</strong>s tietês,<br />

tamanduateís e pirajuçaras.<br />

Quem pára no meio, quem não conta, se afoga, caso deste biógrafo, sempre a melhorar<br />

os objetos de estu<strong>do</strong> com a demão <strong>do</strong> malditismo romântico e primário.<br />

“É uma <strong>do</strong>ença”, persegue <strong>do</strong>n Fracasso Morales, esse traste que cavalga não ao meu<br />

la<strong>do</strong>, mas sempre por perto. Numa distância que seja possível fiscalizar vacilos, quedas,<br />

lapsos, citações e samples, <strong>do</strong>n Fracasso Morales não per<strong>do</strong>a o free-style, o repente, o jazz<br />

reinventa<strong>do</strong>, <strong>do</strong>n Fracasso Morales persegue a matriz única, como se isso ainda fosse possible<br />

hoy, simbora <strong>do</strong>n Fracasso, já já te pego na curva com meu pangaré nervoso.<br />

Os Gângsteres <strong>do</strong> <strong>Sol</strong> Quadra<strong>do</strong> tocavam o terror telepático <strong>do</strong>s subsolos das sibérias<br />

caipiras de erres arrasta<strong>do</strong>s como o matraquear de metralha<strong>do</strong>ras, as penitenciárias <strong>do</strong> interior<br />

hablavam metralhandês àquele instante e a velha da foice se multiplicava como se reproduzida<br />

num poderoso grava<strong>do</strong>r de CDs piratas de um caubói high-tech coreano recém-chega<strong>do</strong> a estas<br />

plagas babilônicas.<br />

“Esse aí queria achar o amor no baile, uma bala perdida encontrou ele antes”, aponta<br />

<strong>do</strong>n Fracasso Morales para mais um defunto na vala-comum deste desierto. “O amor é uma<br />

bala perdida, rapay, ponto, deixa desse teu romantismo de mierda”.<br />

36


“Tu<strong>do</strong> isso aconteceu, mais ou menos. As partes da guerra, pelo menos, são bem<br />

verdadeiras”, sopra o ladrão Dimas, ali na cruz, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> cabelu<strong>do</strong>, na beira <strong>do</strong>s chiqueiros<br />

de porcos <strong>do</strong> Jardim Damasceno, na zona norte deste pueblo.<br />

Cap. XVI - Donde o cavaleiro se distrai com a poesia <strong>do</strong>s ares<br />

e perde seu caballo<br />

Sempre alua<strong>do</strong>, com um déficit de atención incomensurável, o caballero não amarra su<br />

caballo derecho no poste.<br />

Muito menos o lesa<strong>do</strong> hermano flanelito eqüino se ligou no quadrúpede que<br />

pastoreava, carajo.<br />

São tantas las coisitas de la bida para pensar, por supuesto, pensou em portunhol<br />

selvagem -agora, como se não bastasse, também pensava na língua da tríplice fronteira.<br />

E o caballo, como se na pior das desgracias, no mais impensável de los infortúnios e de<br />

la malasuerte de uma noche semi-invernosa, se encanta justamente por um relincho de uma<br />

guapíssima égua militar da tropa que combatia os Gângsteres del <strong>Sol</strong> Quadra<strong>do</strong> na mais<br />

perigosa e hermosa de las madrugas.<br />

Lá vai o cavalo <strong>do</strong> cavaleiro solitário com a primeira égua militar que aparece, foi o que<br />

ele pensou no instante, biscaite. Não era uma biscaite qualquer, se tratava mesmo de uma bela<br />

de uma égua, ancuda, rabo descomunal e uma marcha elegante capaz de fazer desandar um<br />

faroeste inteiro nos desertos <strong>do</strong> México.<br />

O cavaleiro, paranóico, ainda pensou:<br />

“A síndrome de Caxias ainda bate fun<strong>do</strong> n´alma desse pangaré nervoso”.<br />

Estava outra vez perdi<strong>do</strong> no bosque escuro o solitário cavaleiro.<br />

Agora o cavaleiro... Como digo no portuñol maldito que contaminava aos poucos todas<br />

as criaturas de la noche? Agora o cavaleiro... encontra-se muy hodi<strong>do</strong> de nuevo.<br />

37


PARTE II - Das viagens de um salta-vida nas margens de outras aldeias<br />

e riachos dionisíacos<br />

Cap. I - Da menina e por acaso da fábula para ninar a menina<br />

Dois nomes balançavam na rede ciganosa <strong>do</strong> alpendre <strong>do</strong> cocuruto <strong>do</strong> teu pai naquele<br />

momento, hija:<br />

<strong>Sol</strong>edad ou Esperanza.<br />

Corria por fora Tristessa, que yo achava a cara de tu melancólica madre muito antes de<br />

saber que o tio Jack tinha uma aventura mexicana homônima.<br />

E não me perguntes porque diabos chama-se Viridiana, filha.<br />

Acordara certa manhã tu padre de uma monstruosa ressaca(14) e já ouvia vozes no<br />

sótão e por toda a casa a lhe chamar Viridiana, o cachorro a latir Veridiana, com E, vê<br />

que tonto, e enroscar nas suas pernas, o gato, sempre mais sábio que o cachorro, com<br />

feições de quem sabia que já se chamava Viridiana havia séculos, com to<strong>do</strong>s os pingos<br />

nos IS, por supuesto.<br />

38


Queria que visse as fotos de tu madre nas noites em que vagamos pela Espanha, hija.<br />

Olhos ilumina<strong>do</strong>s além <strong>do</strong> rrrrumm, rrrrom, e <strong>do</strong> biño que corria em nossas goelas<br />

como riachos de beiras férteis, distantes e generosas.<br />

Avistas o ribeirinho de Rioja? Mira, mira, logo ali depois das janelas d´alma <strong>do</strong>s ojos<br />

melancólicos de tu madre, si, aquela aguazita vermelha a cair sobre los piés de las árbores, los<br />

arbustos, las marejadas perdizes de la erristência mula-manca.<br />

(14) Donde tanto o cavaleiro quanto o biógrafo concluem que a ressaca depois <strong>do</strong>s quarent´anos não é apenas uma<br />

ressaca. Trata-se de, no mínimo, uma dengue existencialista, <strong>do</strong>nde a epidemia tropical que amolece os ossos, como se um<br />

trator tivesse passa<strong>do</strong> por cima, encontra a náusea sartreana numa harmonia inexplicável.<br />

Cap. II - Da possible madre de la niña e suas lendas sevilhanas<br />

Sinos a tocar flamenco para os viúvos, para os ateus e, quizas, quizas, quizas, para os<br />

tementes de Alá, quen tiene cullo tiene me<strong>do</strong>, hija querida.<br />

Paco de Lucia cumprimenta Camarón de la Isla em uma encruzilhada niegra...<br />

Mais um jerez, compay, bulerias.<br />

(...)<br />

Tu madre, jambo-girl <strong>do</strong>s tristes trópicos, a blasfemar contra o destino, como uma<br />

Carmen a roer os caroços imaginários das pitombas ancestrais, em vez de apanhar facilmente<br />

as amargas naranjas sevilhanas.<br />

Nas margens <strong>do</strong> Guadalquivir los ojos de tu madre derramavam lágrimas de<br />

Capibaribes, Beberibes, Paraybas, Jaguaribes, Tietês, Tamanduateís...<br />

De tão cética, tu madre não acreditava que houvesse, en la bida, seja em que sítio<br />

estivesse, pelo menos una naranja de graça.<br />

“Ou está birrada, Rosé, ou tiene marimbuen<strong>do</strong> nel pié”, como no samba da nuestra rente<br />

inzoneira, aqui na versão que ela entoou em plena Espanha, tiran<strong>do</strong> la buena onda, kabrones.<br />

Tu madre sequer pensava na possibilidad real de uma bomba terrorista no trem, como se<br />

temia naquele momento.<br />

A crença no noticiário e nos seus infortúnios nunca fizeram parte <strong>do</strong>s seus olhares<br />

longínquos.<br />

Se dependesse de tu madre, los abutres e los periodistas morreriam de hambre com<br />

suas manchetes garrafales.<br />

La realidade non passa de una opinón, non?, como dizia o titio-abuelito Timothy<br />

Leary, mi hija.<br />

O máximo que dizia tu madre, quan<strong>do</strong> mostrava-lhe o El País nas bancas, era algo<br />

como, per<strong>do</strong>name em caso de infidelidad na reprodución de las palabras maternas:<br />

“Pior é nos trópicos, a<strong>do</strong>nde a febre da selva mata o que sobrou das chacinas...”<br />

39


Quan<strong>do</strong> eu tentava acertar o passo trôpego a usar meus primeiros óculos multifocales,<br />

teu padre já viejo, ela, de nuevo:<br />

“Pior é nos trópicos...”<br />

E completava sempre como alguma comparación selvagem maluca.<br />

Meu anjo, não havia dialógo possível com tu madre quan<strong>do</strong> o assunto era o amor ou o perigo.<br />

“Terrorismo é o luxo da história”, blasfemava tu madre, com a sua pele índia a<br />

enfeitiçar os branquelos que transitavam borrachos na Calle de la Cruz.<br />

Ela tinha simplesmente la noción exacta de que o terrorismo já fazia parte da sua<br />

origem há séculos seculorum, desde a matança <strong>do</strong>s Tabajaras e <strong>do</strong>s Kariris, além, muito além<br />

de todas las chacinas de las missiones redundantemente assassinas & jesuíticas sobre los tupys<br />

y guaranys.<br />

Difícil era na hora em que ela, já passionária ao extremo, clamava por uma certa<br />

matemática, nunca o fuerte de tu padre:<br />

“Quantos índios foram mortos pelos europeus, aí incluin<strong>do</strong> espanhóis e portugueses, na<br />

América Latina?”.<br />

Décimo rrrummmmmm, por favor.<br />

Devia até saber uma certa conta exagerada feita pelos cuervos marxistas, evidentemente,<br />

mas, ao décimo primeiro rrrrommm, hija, só mirei tu madre, mirei com cara de um hombre<br />

que amava de verdad. Lá estão os zolhões vermelhos estoura<strong>do</strong>s na foto que não me deixam<br />

ser inverossímil a esta hora de la noche. Filha, amo fotos com los ojos vermelhos, me gusta<br />

também la falta de fueco para la erristência, entendes? Ojos de um amor entorpeci<strong>do</strong>, porque<br />

o amor é sempre borra<strong>do</strong> de riscos incompreensíveis.<br />

“Vai, diga-me, quantos índios?”<br />

Tu padre sempre cordiale, digo, cobarde no último, sussurrava:<br />

“Fala baixo, que coisa mais incômoda”.<br />

Mal sabia tu padre que los espanhóis, asi como to<strong>do</strong>s los europeus, amam purgar el<br />

passa<strong>do</strong>, não temem o assunto, bailam lindamente la dança da culpa.<br />

Asi como los brasileños metropolitaníssimos dançam folgue<strong>do</strong>s e maracatus.<br />

Filha, mas peraí, tu madre borracha a querer uma revanche àquela hora, haja paciência!<br />

Tua mãe, sangue de holandeses e índios, nunca esteve tão linda naquela viarrem.<br />

Sim, corriam riachos de Rioja sobre nuestros pezitos.<br />

O mais espirituoso, no entanto, era pedir rrrom nas tabernas.<br />

Sabe como a gente tinha que hablar, hija?<br />

Rrrrrruuuuummmmmmm, rrommm, algo asi. Quase como o suspiro metafísico <strong>do</strong> gato,<br />

rrrrrummmmmm, se não, ninguém nos trazia rrrruummm...<br />

Rrrrrrrroooooommmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm...<br />

rooommmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm<br />

Repita comigo, hija: rummmrommrummromrumrommmmm...<br />

40


Cap. III - De como la hija foi gerada numa banheira de um hotel da Gran Via<br />

Tu padre e tu madre a<strong>do</strong>ravam emborracharse, hay nota<strong>do</strong> en las corrientes mais<br />

animadas del sagra<strong>do</strong> útero, non, hermosa chica?<br />

“Oceanos tão lin<strong>do</strong>s como nos <strong>do</strong>cumentários da National Geographic, mi padrecito<br />

ama<strong>do</strong>, mares tão azuis, mergulhos incríveis, léguas e léguas submarinas na quentinha<br />

soledad de mi madre y sus drinques colori<strong>do</strong>s”.<br />

Estávamos <strong>do</strong>i<strong>do</strong>s demais, por erremplo, quan<strong>do</strong> te fizemos na banheira daquele hotel<br />

na Gran Via - agora já estamos em Madrid, por supuesto, mi hija, deixamos Sevilha para trás,<br />

na poeira de la carretera perdida.<br />

“Quantos dias a pé demoramos de Sevilha a Madrid?” Tu madre de novo com<br />

preguntas difíceis.<br />

“Chegamos”, tu padre dizia apenas.<br />

Tu padre e tu madre crente que habiam feito o Caminho de Santiago.<br />

Qualquer chão que tu padre e tu madre pisavam en España, até mesmo nos brejos-secos<br />

de Castela e arre<strong>do</strong>res de la Mancha, acreditavam, después de borrachos, que haviam feito mil<br />

vezes el Camiño de Santiago, por supuesto, se sentiam puros, almas leves e inegociáveis,<br />

pobres desalma<strong>do</strong>s.<br />

Tu padre, todavia, hija, num se achava, digamos assim, um Pablo Conejo, famoso<br />

escriba da época. Tu padre continuava acreditan<strong>do</strong> apenas nas parábolas das quedas perfeitas e<br />

da arte de nadar no seco, técnica assimilada <strong>do</strong> mestre cubano Virgílio Piñera(15).<br />

(...)<br />

Alguém bateu na puerta da habitación número cento e uno para cobrar la cuenta e<br />

indagar se não íamos mais embora, “como puede estes maltrapilhos a usufruir disso tu<strong>do</strong> e a<br />

sujar nuestros lençóis de tanto gozo sem travas”, era a cabeça de tu madre paranóica com los<br />

espanolitos desbrava<strong>do</strong>res y colonialistas.<br />

Se bem que acho que estávamos numa banheira...<br />

No rádio-relógio fanhoso, umas seis, sete de la noche, tocava Candy... Quan<strong>do</strong><br />

acordamos era a vez de Angel, <strong>do</strong> titio Iggy Pop, de certa forma tu padrinho, mira ele aqui no<br />

álbum da família. Achaste esquisito o titio recorta<strong>do</strong> del periódico? Caprichei na tesoura,<br />

embora a ressaca fosse monstra para enquadrá-lo. Hay corta<strong>do</strong> alguna costela del tio, chica?<br />

Como consegue ser tão magro, apesar de los anos, el titio Iggy Pop, carajo!<br />

(15) “Aprendi a nadar no seco. Acaba sen<strong>do</strong> mais vantajoso <strong>do</strong> que fazê-lo na água. Não há o temor de afundar, pois<br />

você já está no fun<strong>do</strong> e, pela mesma razão, está afoga<strong>do</strong> de antemão. Também se evita que tenham que nos pescar sob a luz<br />

de um farol ou da deslumbrante claridade de um lin<strong>do</strong> dia. Por último, a ausência de água evitará que fiquemos incha<strong>do</strong>s.”<br />

41


Cap. IV - Do poeta e por acaso da poesia<br />

“O que é um poeta, pai?”, Viridiana e a sua primeira pergunta difícil.<br />

42


Cap. V - Da poesia apenas como um descui<strong>do</strong> e de uma bicicleta<br />

que se pedala ao infinitum<br />

A poesia é como andar de bicicleta pela primeira vez, mi hija, escoriações nos joelhos<br />

para siempre.<br />

No que Viridiana faz <strong>do</strong>s aros <strong>do</strong>s óculos gigantes <strong>do</strong> seu pai as rodas de uma bicicleta e<br />

pedala ao infinito.<br />

Montada na sua bicicleta, transpassa as telhas e goteiras por onde pinga a vida e alcança<br />

os céus como a bicicleta <strong>do</strong> filme E.T., é isso que ela lembra de imediato, ainda a subir ao cielo.<br />

Viridiana percorre as galáxias em um segun<strong>do</strong>.<br />

Viaja, viaja... e volta cheia de histórias e confabulações.<br />

Ficou impressionada com a hora <strong>do</strong> rush <strong>do</strong>s discos voa<strong>do</strong>res.<br />

Viridiana só conseguiu voltar para casa gracias a uma busca no Google Earth!<br />

43


Eis a sua piadinha recorrente e sem graça quan<strong>do</strong> narra a sua viagem verdadeira.<br />

Mi hija, por favor, mas amor e devoção aos verdadeiros sueños.<br />

Somente sete luas depois tentei te responder a contento, Viridiana, puxan<strong>do</strong> na memória<br />

quan<strong>do</strong> eu tinha ouvi<strong>do</strong> pela primeira vez na vida a palavra poeta.<br />

Não, filha, andar de bicicleta pela primeira vez é comovente, um acontecimento <strong>do</strong><br />

outro mun<strong>do</strong>, mas ainda não é poesia.<br />

Poesia é apenas um descui<strong>do</strong>, mi hija, está mais para a queda mesmo, por supuesto.<br />

Quan<strong>do</strong> um prato de feijão e sonho, quente, caía descuidadamente da mão de alguém,<br />

plaft no cimento vermelho <strong>do</strong> chão da nossa casa, tua abuellita gritava:<br />

“Ah, o poeta, o poeta outra vez a me dar prejuizo!”<br />

Portanto, o poeta é alguém com a cabeça nas nuvens, lesadito, distante e que quebra<br />

pratos como um grego involuntário, entiendes?<br />

Quan<strong>do</strong> tu abuella chamou teu pai de poeta pela primeira vez, já sabia que estava<br />

perden<strong>do</strong> o seu pintassilgo para el corazon das chicas, perden<strong>do</strong> para las ro<strong>do</strong>viárias, os tantos<br />

pneus <strong>do</strong>s caminhões e ônibus, la calle, los desiertos, las carreteras, as partidas que furtam os<br />

pobres hijos de las madres e os põem no acostamento de la erristença, las margens de la bida.<br />

Filha, hay una maldición, assombración, na palabra poeta!<br />

Mal saía <strong>do</strong>s cueros, tu padre já provava que era um andarilho.<br />

O primeiro me<strong>do</strong> de mi madre foi com os ciganos, cujos ban<strong>do</strong>s eram muito comuns<br />

nos anos 1970 nos sertões brasileños.<br />

Quan<strong>do</strong> ela dava fé, teu futuro padre ao longe, lombo de jegue, ou pangaré toca<strong>do</strong><br />

pelos ciganitos.<br />

Mas como tu abuello, sempre estava, por mero acaso, no ponto futuro <strong>do</strong> caballero<br />

delirante...<br />

Teu padre era resgata<strong>do</strong>.<br />

Todas as vezes em que teu padre ia fugin<strong>do</strong>, morto de feliz, deu-se <strong>do</strong>s ciganos pararem<br />

justo no povoa<strong>do</strong> onde teu abuello estava beben<strong>do</strong>.<br />

Mas se meu pai emborrachou-se em to<strong>do</strong>s os cantos <strong>do</strong>s sertões ao mesmo tempo,<br />

pensava quan<strong>do</strong> mi madre fazia escândalos, claro que tu padre sempre estaria, infelizmente,<br />

salvo <strong>do</strong>s amables e manhosos ciganos.<br />

Talvez teu padre confiasse nisso naquelas fugas primárias.<br />

Meu pai borracho morria de rir quan<strong>do</strong> me via nos lombos <strong>do</strong>s pangarés <strong>do</strong>s gipsys-punks.<br />

Um poeta que não derruba pratos no chão e que nunca está nas nuvens, hija, chama-se<br />

gângster, de tão preciso e necessário nos seus versos fumegantes.<br />

44


Cap. VI - Do sol e por acaso da falta de foco<br />

O cavalo relincha lá fora na cocheira de la erristência, é sinal que o lusco-fuesco está<br />

forman<strong>do</strong> aquela camada pastosa nos ojos amarillos, a remela de diós, como diria o cavaleiro<br />

com a sua recente queda para o místico.<br />

Fará silêncio por instantes o pangaré nervoso, sonha o cavaleiro, a lua cheia o deixa com<br />

vontade de marchar sobre el pueblo, repare como enten<strong>do</strong> a alma <strong>do</strong> velho Chivas, pangaré<br />

uma ueva, és um lerritimo mangalarga marcha<strong>do</strong>r nel mezzo del camin de Santiago de nuestras<br />

bidas suadas y otras picaretagens tantas às quais nos sujeitamos, hoy e para siempre.<br />

Em cismar sozinho em uma estrebaria das re<strong>do</strong>ndezas, abaixo <strong>do</strong> jardim suspenso y<br />

babilônicos, Chivas parece divertir o seu Caballero ao longe:<br />

“Foco, digo, fueco, é coisa <strong>do</strong> século XIX”, alardeia, histeria eqüina. “Los ojos não<br />

vêem los próprios ojos nem miesmo com espelhos”.<br />

Ouviremos agora <strong>do</strong>is, três relinchos, e terá chegada a hora de mais uma viagem ao fim<br />

da noite, partiremos, Liliput à vista, repare, meu anjo, no tamanho <strong>do</strong>s hombrezitos diante de<br />

nosotros, não duermes minha menina, já é tarde e a noite assombra o mun<strong>do</strong> la fuera. Chivas<br />

ampara o seu caballero e avança sobre a estepe, safo, ri <strong>do</strong> jeito com o qual o cavaleiro rumina<br />

o portunhol selvagem.(16).<br />

(16) La grand lengua da tríplice fronteira, Brasil, Paraguay y Argentina, cuja reinvenção em escrita fina o cavaleiro<br />

e o seu pangaré nervoso devem a un astronauta del chaco, poeta de la tríplice fronteira, conheci<strong>do</strong> como <strong>do</strong>n Diegues De la<br />

Verga ou simplesmente <strong>do</strong>n Douglas Diegues. Além <strong>do</strong> português chulo de las tabernas e <strong>do</strong> castelhano de la calle, el<br />

portunhol selbage diegueano é pontua<strong>do</strong> com um hermosito guarany daquelas aldeias perdidas en comezo del mun<strong>do</strong>. Em su<br />

libro “Uma flor na solapa da miséria”(Buenos Ayres, 2005, Eloísa Cartonera), em virtuosíssimo portuñol salvaje, o majestoso<br />

escriba define o portunhol salbaje como la língua falada por la gente simples que increiblemente sobrevive de teimosia, brisa,<br />

amor al imposible, mandioca, vento y carne de vaca: “Es la lengua de las putas que de noite vendem seus sexos en la linha de<br />

la fronteira. Brota como flor de la bosta de las vakas. Es una lengua bizarra, transfronteiriza, rupestre, feia, bella, diferente.<br />

Pero tiene uma graça salvaje que impacta. Es la lengua de mi mãe y de la mãe de mis amigos de infância. Es la lengua de mis<br />

abuelos. Porque ellos sempre falaram em portunhol salbaje comigo. Us poetas de vaguarda primitibos, ancestrales de los<br />

poetas contemporâneos de vanguarda primitiba, non conociam u lenguague poético, justamente porque llos solo conocian un<br />

lenguaje, ele lenguaje poético. Con los habitantes de las fronteras du Brasil com u Paraguay acontece mais ou menos la<br />

misma coisa. Ellos solo conocen u lenguaje poético, porque ellos no conocen, non conhecem, outro lenguaje. El portunhol<br />

salbaje es una música diferente, feita de ruí<strong>do</strong>s, rimas nunca bistas, amor, água, sangre, árboles, piedras, sol, ventos,<br />

fuego, esperma.”<br />

Cap. VII - Da taberna <strong>do</strong>s perde<strong>do</strong>res e não por acaso os feiticeiros<br />

da taberna<br />

Mesmo de olhos abertos e em plena luz <strong>do</strong> dia, o fabuloso cavaleiro Fodasno<br />

fantasiava com o seu cavalo desapareci<strong>do</strong> como um menino inconforma<strong>do</strong> com a perda<br />

repentina <strong>do</strong> brinque<strong>do</strong>.<br />

Sem a solípede e dadivosa criatura, o cavaleiro solitário de las pradarias de San Pablo<br />

de Piratininga rastejaria eternamente como um réptil fossiliza<strong>do</strong> na fria pedra azul de amolar<br />

o desprezo e la suerte.<br />

45


A mesma piedra, si si si, que amola, lâmina e contralâmina, as facas da desalmada<br />

atira<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> circo que sempre acaba, seguramente, por acertar el corazón de um palhaço.<br />

E el caballero sempre foi um palhaço, um palhaço borracho sabota<strong>do</strong>r de romances e<br />

possibles nobellitas amorosas, por supuesto.<br />

Merecia mesmo lamber, com a língua que agora dá nos poucos dentes, a resina <strong>do</strong>s<br />

perde<strong>do</strong>res, o cuspe final <strong>do</strong>s hombres de la calle, a gosma <strong>do</strong>s rastros, a baba <strong>do</strong> fim da feira<br />

ou os farelos da taberna <strong>do</strong> sr. Knut, para citar o seu antro predileto e lembrar a prosódia <strong>do</strong><br />

diabo aliteratoso que aparece na cumeeira deste informe <strong>do</strong> biógrafo de mal-assombros.<br />

El caballero sempre perseguiu o fracasso, quase como caricatura ou pose de maldito,<br />

mas esta pode ser apenas uma acusação desprovida de fundamentos, levantada por <strong>do</strong>nzelas<br />

guerreiras que o preferiam em seus leitos perfuma<strong>do</strong>s com a lavanda e a alfazema <strong>do</strong>s<br />

campos mais frescos.<br />

Pode ser apenas mais uma calúnia de amantes mais ricas que o preferiam nos seus leitos<br />

de algodão egípcio e jamais no frenesi das tabernas-finales, com suas luzinhas vermelhas a<br />

piscarem os orgulhosos mantras <strong>do</strong>s derrota<strong>do</strong>s. Os orgulhosos mantras <strong>do</strong>s supostos<br />

derrota<strong>do</strong>s deixam las burguesitas loucas <strong>do</strong> juízo.<br />

Mas a acusação é muito dura, por supuesto, coisa mesmo de quem deseja arrancar-lhe<br />

de to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong> a aura de perde<strong>do</strong>r irresistible. Tal aspecto ainda se encontra sob suspeita e<br />

apuración deste biógrafo de mal-assombros, que ora fareja as pulgas lombares <strong>do</strong>s sem-afagos.<br />

“Ninguna fêmea resiste a un chico con una infância difícil”, costumbra chistear en las<br />

esquinas, <strong>do</strong>nde se supõe que o cavaleiro solitário inventa várias histórias, não somente sobre<br />

os verdes anos, mas sobre toda a trajetória, inclusive acerca <strong>do</strong> reumatismo precoce que lhe<br />

gasta as juntas e <strong>do</strong>bradiças d´alma.<br />

Uma biografia tão complicada quanto a <strong>do</strong> feiticeiro Carlos Castañeda, que pode ter<br />

nasci<strong>do</strong>, inclusive, neste pueblo de San Pablo, como espalhava nos seus primeiros escritos e<br />

orejas. Não descartamos, porém, Argentina e Peru como sítios natalinos. Assim como Bob<br />

Dylan, Castañeda, o guerreiro tolteca, nasceu em vários lugares ao mesmo tempo, sempre a<br />

falsear la própria trarretória.<br />

Donde Carlos Cesar Araña Castañeda encontra numa tarde de relâmpagos - era preciso<br />

chover um pouco em nuestra história tão árida e sem umidade alguma - Don Juan Matus, el<br />

viejo índio yaqui, que também não faz idéia onde nasceu, nuvens baixas.<br />

Usted hablou Datura inoxia?<br />

Usted hablou Ayahuasca?<br />

O encontro chamou a atenção <strong>do</strong>s conquista<strong>do</strong>res espanhóis. O sangue de Cristo, mais<br />

uma vez, contra os feiticeiros.<br />

Eles não sabem ainda que o mun<strong>do</strong> é como uma cebola, mestre Juan, em camadas.<br />

46


Ninguna fêmea resiste a un chico esquisofrênico e com dificuldades para o sono<br />

tranqüilo, daqueles que estão sempre a retornar para o útero rock´n´roll da Cantareira, muy<br />

agradable e areja<strong>do</strong> sítio deste pueblo para a<strong>do</strong>nde hay parti<strong>do</strong> nuestro amigo <strong>do</strong>n Arnal<strong>do</strong><br />

Baptista, com quem me encontro nesta exata hora.<br />

Ninguna fêmea resiste às mais tristes biografias de assombrações nocturnas, como hay<br />

dicho este biografo oficiale de la cancha.<br />

Quase todas las chicas nasceram com la vocación para la Cruz Vermelha del amor<br />

e da suerte.<br />

Las chicas todas son madres Teresas de perdidas Calcutares.<br />

Donde se conclui que las chicas son sobretu<strong>do</strong> muy humanas, freiras, Viridianas<br />

bueñuelitas em carne e osso.<br />

Ou, como diria Chivas, caballo del caballero Fodasno, no seu relincho mais poético:<br />

“Las mujeres son las mujeres, los hombres son los hombres”.<br />

Cap. VIII - Da mal-assombrada nuvem de moscas que voa de cima daquele<br />

ser disforme<br />

“Vê esse quibe, Sr. Knut, e um conhaque”, o cavaleiro Fodasno aponta na pequena<br />

vitrine <strong>do</strong> balcão de fórmica, baten<strong>do</strong> fortemente no vidro escureci<strong>do</strong>.<br />

O sr. Knut pega primeiro a bebida, na mesma prateleira daquela garrafa de aguardente<br />

com raízes e uma pequena cobra mística da Amazônia peruana, sobre a qual falava lendas e<br />

atribuía o poder fabula<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s beberrões da sua maloca.<br />

O taberneiro das sobras gerais <strong>do</strong> Largo <strong>do</strong> Glicério, no epicentro miserável da<br />

cidade de San Pablo, vai com a sua mão branca de veias azuladas em direção ao salga<strong>do</strong>...<br />

Os vagabun<strong>do</strong>s contam suas histórias esburacadas.<br />

(...)<br />

O caballero dá um gole no conhaque e lembra daquela máxima, irlandesa, crê, de algum<br />

santo: vinho para as mulheres, uísque para os homens, conhaque para os heróis.<br />

Quan<strong>do</strong> a mão branca de veias azuladas e norueguesas <strong>do</strong> sr. Knut toca a iguaria, uma<br />

mal-assombrada nuvem de moscas voa de cima daquele ser disforme, que os presentes<br />

imaginavam ser um maltrata<strong>do</strong> quibe, e a assombrada nuvem se debate contra o vidro.<br />

47


Tratava-se de uma esverdeada coxa de frango, encoberta secularmente pelas moscas<br />

mais famintas daquela taberna que abrigava os farrapos humanos da área.<br />

Cap. IX - Da bondade <strong>do</strong> taberneiro com os corpos <strong>do</strong>s mal-assombros<br />

O sr. Knut, no entanto, era mui generoso.<br />

Ele bancava os caixões e as taxas burocráticas <strong>do</strong> enterro de todas as criaturas que<br />

freqüentavam o seu estabelecimento.<br />

“Não é justo que esses desalma<strong>do</strong>s paguem os tributos <strong>do</strong>s seus próprios vermes”, dizia,<br />

sem a vaidade <strong>do</strong>s pie<strong>do</strong>sos e muito menos o arroto <strong>do</strong>s imodestos.<br />

O sr Knut, é bom que se firme nos melhores papiros, era mesmo mui generoso. Havia<br />

enterra<strong>do</strong> milhares de pés-de-cana e jurava nunca ter ouvi<strong>do</strong> o soluço de uma viúva.<br />

Quan<strong>do</strong> muito, um parente distante ou um inimigo daquele que se fora apareciam para<br />

reclamar o cadáver.<br />

O parente, por ruindade e orgulho, desejava testemunhar aquela criatura aos farrapos; o<br />

inimigo queria a chance de poder jogar-lhe a última pá de cal sobre os olhos.<br />

“Uns desalma<strong>do</strong>s que já faziam hora extra no mun<strong>do</strong>”, dizia o sr. Knut ao velho gato<br />

branco que passeava sobre o balcão de fórmica vermelha rachada pelo sol da fresta da telha de<br />

vidro. “Ninguém mais para chorar por estes morimbun<strong>do</strong>s”.<br />

Quan<strong>do</strong> eu for desta, pensava o sr. Knut com a sua gravatinha estreita quadriculada<br />

sobre a camisa marrom de flanela, só os gatos devem chorar por mim, ninguém mais. Isso o<br />

confortava, passara a vida a fugir <strong>do</strong> choro de parentes e de mulheres.<br />

Por este motivo resolveu estrangeirar-se, mudar de conda<strong>do</strong>, distrito, país. Embora<br />

continuasse triste, sempre desejou habitar uma nação <strong>do</strong>s trópicos onde as <strong>do</strong>res profundas<br />

fossem supostamente mais leves. Era o que cismava sozinho à noite.<br />

Na vitrola portátil da taberna ouvia-se, quem tivesse as oiças mais apuradas, um<br />

único disco desde 1973, Berlin, de Lou Reed, herança das suas <strong>do</strong>res guardadas no bolso<br />

<strong>do</strong> capote mais antigo, puí<strong>do</strong> e trágico, aquele capote que guarda histórias como um cão<br />

que não vive mais sem a fidelidade das pulgas.<br />

48


“Só se ama uma vez na vida?”, <strong>do</strong>n Isaías questionava, sério, to<strong>do</strong>s os cavaleiros da taberna.<br />

“Que idéia fazem <strong>do</strong> suicídio?”, <strong>do</strong>n Isaías de novo, antes de qualquer resposta <strong>do</strong>s<br />

bebuns eutanásicos.<br />

O sr. Knut cortou a prosa bem antes que o primeiro desalma<strong>do</strong> da távola respondesse.<br />

“Quantas vezes preciso dizer que tais assuntos aqui são terminantemente proibi<strong>do</strong>s?!”<br />

Sempre que o taberneiro se dirigia de forma ríspida aos mal-assombros, o gato<br />

branco roçava a sua perna esquerda, como se tentasse amaciar as possíveis tragédias que ali<br />

fizeram seu ninho permanente.<br />

“Sossega, mi señor, desse faroeste ninguém sai vivo”, ronronava el gatito, “nem miesmo<br />

nuestras santas madrezitas de Guadalupe e outras madres santas de altares alhures”.<br />

Aconteciam pelejas horríveis entre o sr. Knut e os deserda<strong>do</strong>s que bebiam na sua<br />

taberna a bagaceira envelhecida nos barris <strong>do</strong>s desistentes.<br />

Bastava uma das duas partes puxar pela memória alheia.<br />

De um la<strong>do</strong> e outro <strong>do</strong> balcão, ninguém ali queria saber <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> imperfeito.<br />

O sr. Knut, questão de origem, mantinha a luta inglória, em um didatismo me<strong>do</strong>nho,<br />

entre civilização & barbárie.<br />

Cap. X - Donde se sabe que cavalo de bandi<strong>do</strong> não tem nome<br />

Sempre a fraudar o par ou ímpar com o destino, o cavaleiro solitário seguia com o seu<br />

cavalo que lembrava, inicialmente, as feições de Tony, o quadrúpede que justificaria a<br />

existência de Tom Mix, e também <strong>do</strong> cavalo de Roy Rogers, Trigger. Lembrava também, de<br />

alguma forma, Silver, porque to<strong>do</strong> cavalo de mocinho tem nome e to<strong>do</strong> cavalo de bandi<strong>do</strong> não<br />

passa de um animal anônimo. Não foi à toa que o cavaleiro cui<strong>do</strong>u logo de batizar de Chivas o<br />

seu garboso mamífero que ainda se encontra desapareci<strong>do</strong>, menos nos seus sonhos e delírios<br />

em San Pablo de Piratininga.<br />

49


A imagem mais triste de qualquer faroeste é a <strong>do</strong> cavalo que parte sozinho depois da<br />

morte <strong>do</strong> seu <strong>do</strong>no.<br />

Ali o solípede, mesmo pertecente a um mocinho, perde o seu nombre, ali morre a memória.<br />

O cavalo, nada metafísico, nada sabe<strong>do</strong>r da possibilidade da morte, fica condena<strong>do</strong> a<br />

vagar e obter um novo nome de um novo <strong>do</strong>no.<br />

Esse rebatismo, porém, é a sua única idéia de morte e desmemória.<br />

Nunca vi maior desamparo <strong>do</strong> que o <strong>do</strong> cavalo que parte solitário e sem nome.<br />

Muito maior <strong>do</strong> que a nossa <strong>do</strong>r de amor mal-resolvi<strong>do</strong>, aquele pé-na-bunda numa noite<br />

de inverno, com todas as tabernas de portas cerradas ao mesmo tempo, quan<strong>do</strong> só nos resta os<br />

passos trôpegos e cambaleantes, além de mal-ajambra<strong>do</strong>s decassílabos camonianos que nos<br />

chegam inexplicavelmente bêba<strong>do</strong>s ao juízo em poeirento redemoinho que tange uma cambada<br />

de paródias chinfrins, como esta que ocorreu ao cavaleiro nesta mesma noite, quan<strong>do</strong> tentava,<br />

inultimente, resistir à melancolia <strong>do</strong> seu português definitivamente toma<strong>do</strong> pelo portunhol<br />

selvagem, que lhe deixou de herança o foragi<strong>do</strong> pangaré rocambalesco y recitoso:<br />

O amor é fogo que arde... um caralho;<br />

É ferida que dói... uma buceta;<br />

É um contentamento só de esteta;<br />

É <strong>do</strong>r que faz o clitóris um chocalho.<br />

É um não querer mais que atalho;<br />

É solitário andar e não tem seita;<br />

É nunca contertar-se, é uma pêta;<br />

É uma <strong>do</strong>r que murcha até o malho.<br />

É querer estar preso a uma peste;<br />

É servir a quem narra, o narra<strong>do</strong>r;<br />

É ter com quem nos trai um deleite.<br />

Mas como “cismar” pode ser amor...<br />

Nos corações humanos só um teste,<br />

Se tão contrário a si eu já estou? (17)<br />

(17) Ao delirar com a péssima paródia ao nobre Soneto 11 de Luis de Camões, de maneira nada solene, o cavaleiro<br />

parece acreditar na cura da sua obsessão por oxímoros e pelo portunhol mais tosco.<br />

50


Chivas não tinha <strong>do</strong>no.<br />

O pangaré fora fixa<strong>do</strong> na praça por um desses azares que pesam sobre o destino das<br />

estátuas eqüestres.<br />

Pena que não se tratava de uma estátua qualquer deste pueblo.<br />

Chivas, mesmo um pangaré anônimo de bronze e cimento, havia si<strong>do</strong> o maior cavalo da<br />

maior estátua eqüestre de to<strong>do</strong>s os tempos, de to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, não é pouco.<br />

Na barriga de Chivas havia uma sala de jantar para ocasiões especiais,<br />

especialíssimas, <strong>do</strong>s militares cujos fantasmas ainda vagavam no continente, reencarnadas<br />

nos segui<strong>do</strong>res <strong>do</strong> realismo fantástico.<br />

Jantares nobres, haja gala.<br />

Na noite em que Chivas se jogou na vida, te juega, comemorava-se lá dentro <strong>do</strong> seu ventre<br />

alguma efeméride da memória <strong>do</strong> Conde D´Eu, o sanguinário comandante da Grande Guerra <strong>do</strong><br />

Paraguay.<br />

Quan<strong>do</strong> o caballo saltou, sangre <strong>do</strong> demo, de lá se jogaram não se sabe quantos velhos<br />

dita<strong>do</strong>res enferruja<strong>do</strong>s da América, como se no ventre del pangaré selvagem bolassem nuevos<br />

planos e reiventassem o realismo fantástico ao qual foram condena<strong>do</strong>s no fogo <strong>do</strong>s infernos.<br />

De lá voaram pelos ares deste pueblo, por exemplo, o mexicano Antonio López de Santa Anna,<br />

o gallero, velho amante de rinhas de galo; Juan Vicente Gómez, presidente de la Venezuela<br />

durante trinta anos; Maximiliano Hernandez Martinez, de El Salva<strong>do</strong>r; o boliviano Enrique<br />

Peñaranda... além <strong>do</strong>s anfitriones brasileños, a começar por Castello Branco e a terminar por<br />

João Baptista de Oliveira Figueire<strong>do</strong>, famoso por dizer que preferia o cheiro de cavalo ao<br />

cheiro <strong>do</strong> povo.<br />

Havia séculos que este bravo pangaré suava de vergonha daquele suposto herói brasileño<br />

51


sobre as suas patas cansadas.<br />

Não faltou quem atribuísse ao sobrenatural o acontecimento da sua fuga, embora a<br />

maioria <strong>do</strong>s que opiniram nos jornais, rádio e tevês tenha segui<strong>do</strong> o prisma frio, técnico e<br />

desalma<strong>do</strong> da engenharia e <strong>do</strong> jornalismo contemporâneos.<br />

<strong>Sol</strong>amente el diario Crónica, tablóide supostamente sensacionalista, sangrento y sexuale<br />

de Assunción, hay da<strong>do</strong> la manchete mais verossímil, em portuñol selvagem, claro, a língua<br />

oficial da tríplice fronteira <strong>do</strong> Paraguay, Brasil y Argentina:<br />

!CABALLO PARAGUAYO SE VENGA DE FALSO HERÓI DA RAPAILÂNDIA!<br />

52


Cap. XI - Dos cavalos tangi<strong>do</strong>s ao ritmo de Johnny Cash<br />

Nem mesmo a <strong>do</strong>r amorosa tem a nobreza de montar esse cavalo que parte sem destino<br />

e sem <strong>do</strong>no como os cavalos perdi<strong>do</strong>s e sem nome na poeira <strong>do</strong>s faroestes, sempre tangi<strong>do</strong>s<br />

pela melodia Cry Cry Cry, de Johnny Cash, porque to<strong>do</strong>s os cavalos e to<strong>do</strong>s os homens em<br />

desespero correm sob regime de tal trilha sonora; mesmo aqueles que nunca ouviram Johnny<br />

Cash, desandam a trotar Cry Cry Cry pelas pradarias possíveis, meus bares, meus mares, meus<br />

cavalos marinhos, nuestros faroestes de poeiras imaginárias, mesmo debaixo d´água ou sob os<br />

choques elétricos <strong>do</strong>s manicômios.<br />

53


Nem o skate que se dilacera solitário contra a parede, quan<strong>do</strong> o respeitável skatista<br />

quebra os ossos da cara como um boxeur peso-pesa<strong>do</strong> decadente, consegue ser mais dramático<br />

que o cavalo que parte triste, solitário e final, sina, acaso e sorte, contra os ventos<br />

supostamente leves <strong>do</strong> oeste. O cavalo é aquela imagem que os pintores de la calle<br />

emprestaram como símbolo de popularesca liberdade, anda-lhe anda-lhe anda-lhe, anda, peste.<br />

Não há um desfile mais triste <strong>do</strong> que o cavalo que vaga sem o peso <strong>do</strong> cavaleiro de<br />

costume, como quem se adaptou, mesmo no calor <strong>do</strong>s trópicos, a <strong>do</strong>rmir como quem <strong>do</strong>rme<br />

com o peso e a leveza de outrem sobre as costelas mais bíblicas.<br />

Precisamos ver um faroeste clássico, mi hija, aí entenderás os homens, filha, mas<br />

não agora, ainda és muy pequeñita para tal suerte, mantenha distância dessa raça, tu padre<br />

es muy ciumento.<br />

Nem o nariz sangran<strong>do</strong> de Muhammad Ali, para continuar nas diversões de machos, dói<br />

mais <strong>do</strong> que a imagem de um cavalo desnortea<strong>do</strong>, sem rumo.<br />

Nem o escriba Albert Camus, na sua vida de goleiro <strong>do</strong> Racing Universitaire d'Alger, na<br />

angústia de apanhar a indesejada das pelotas no fun<strong>do</strong> das redes, era mais triste nesta hora.<br />

Nem os gemi<strong>do</strong>s de uma terra desolada depois de perder a estação de trem, a rotina, as<br />

sombras <strong>do</strong>s habitantes, as últimas almas mortas e suas almas que duram, pelo menos, tanto<br />

quanto os vagões ferroviários e as sombras das feiras perdidas às baciadas <strong>do</strong>s fins estraga<strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong>s tomates que não servem nem mais para as xepas sentimentais <strong>do</strong>s bloodys-maries.<br />

O que não hei de te mostrar, hija, é O Grande Golpe, <strong>do</strong> viejo Kubrick, el cineasta. Ali o<br />

cavalo é que se sai de vítima e tomba no sétimo páreo milionário, tiro certeiro de um bandi<strong>do</strong><br />

contrata<strong>do</strong> para tal épico na curva <strong>do</strong> Jocquey.<br />

Pensan<strong>do</strong> bem, hija, ali está o senti<strong>do</strong> da vida, <strong>do</strong> truque, de la picaretagem, te exibirei<br />

si, desde que oportuno, que clássico, tu padre ficou passa<strong>do</strong>, non passa nada, non passarán,<br />

quan<strong>do</strong> viu pela primeira vista.<br />

Hija, sabe o que aprendi com este filme?<br />

Nada.<br />

Tu<strong>do</strong> que se aprende na vida.<br />

De que não adianta bolar planos bolaños.<br />

De que na vida temos que ser invisíveis e leves como el viejo Yañez, el lucho loco,<br />

grand jockey chileno que fez história neste pueblo.<br />

54


“O acaso é que nos governa, mi padre?”<br />

Quase isso, hija, basta un perro, de uma velhota que habla com perros como se perro<br />

gente fosse, para que la fortuna, mesmo a fortuna crítica, vá para o espaço [vide la película<br />

supracitada].<br />

“Donde se conclui, padre, la vida és una ficción científica, non?”<br />

Hija!!!, que hermoso, que lin<strong>do</strong>, vais ganhar um sorvete de...<br />

“Pode ser duas bolas com casquinha e tu<strong>do</strong>?, mi padre queri<strong>do</strong>, sabor Tapioca-Isaac<br />

Asimov?”<br />

Tu<strong>do</strong> és una ficción científica, non, hija...<br />

“Si, papá, andas se queixan<strong>do</strong> mucho de tu próprio espácio, non?”<br />

Si, hija querida... com alguna razon, non?<br />

“Por supuesto, papá, la bida és una eterna reclamación <strong>do</strong> Dr. Smith...”<br />

Ó <strong>do</strong>r, ó <strong>do</strong>r!<br />

“Quanto custa o sorvete, moço?”<br />

Cap. XII - De um pintor chama<strong>do</strong> Tom Castro e ainda sobre cavalos em fuga<br />

55


Chivas ainda não sabe que podemos acreditar no sorriso de um cavalo como apostamos<br />

na metafísica de um gato vira-lata que ronrona parábolas, na ligeireza de um rato persegui<strong>do</strong><br />

por um homem a imitá-lo, como o <strong>do</strong>n Fracasso Morales, que imitava um rato como um<br />

homem de verdade deve imitar um rato, naquele armazém de milho no meio <strong>do</strong> vale quase<br />

deserto, e o rato caía no jogo como um patinho cujo lago evapora de uma hora para outra em<br />

paisagem semi-árida.<br />

O caso de Chivas não era único, naquele pueblo, de um cavalo que pula da sua estátua<br />

ou paisagem e ampara um cavaleiro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> delirante.<br />

Um amigo pintor chama<strong>do</strong> Tom Castro contara outro episódio <strong>do</strong> gênero.<br />

Quan<strong>do</strong> ouvi, apenas tirei onda e guardei no embornal de caça<strong>do</strong>r e biógrafo para não<br />

humilhar o cavaleiro Fodasno. Guardei junto com as perdizes que bicam gramíneas nas veredas<br />

<strong>do</strong>s motoboys, no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> embornal das lendas urbanas <strong>do</strong>s vagabun<strong>do</strong>s desta praça.<br />

Era a história de um desalma<strong>do</strong> cuja vida foi salva por um cavalo azul de um quadro<br />

popular da Praça da República.<br />

O vagabun<strong>do</strong> estava a lamber a lua minguante na sarjeta, quan<strong>do</strong> o cavalo saltou, ainda<br />

na montagem da feira republicana, e lhe deu amparo ímpar.<br />

Tom Castro, quan<strong>do</strong> bebe muito, tem sempre uma tese sobre tal ocorrência, não<br />

carecem ouvi-lo ainda, não derretam as ceras <strong>do</strong>s juízos:<br />

“Todas aquelas pinturas, de tão rejeitadas desde o nascimento pela Gang <strong>do</strong> Bom-<br />

Gostismo, uma das tantas que serão exterminadas mais adiante, não percam, costumam<br />

ganhar vida de verdade en la calle”.<br />

Cap. XIII - Das gazelas bulímicas e anoréxicas que saltam como boterinhas<br />

espevitadas<br />

Outro amigo, um místico pintor colombiano, dizia viver um pesadelo diário naqueles<br />

mesmos derre<strong>do</strong>res: pintava mulheres supermagras, anoréxicas até, bulímicas, gazelas,<br />

giseles, giselíssimas, e elas ganhavam as ruas com mais de 200 quilos cada uma, boterinhas<br />

faceiras, fogosas, satisfeitíssimas que em nada contribuem, há uma certa isonomia nas<br />

ventosidades de magros e gor<strong>do</strong>s, para o aquecimento <strong>do</strong> planeta.<br />

“As criaturas <strong>do</strong>s pincéis ditos populares se vingam, à vera, com sangue, sem<br />

populismos”, insiste Tom Castro.<br />

Outro pintor, cujo nombre és recomendable não mencioná-lo, tinha como tema a<br />

guerra urbana, la biolência, como nas mais elementares películas brasileñas, e viu sair<br />

<strong>do</strong>s seus quadros o horror das terríveis falanges.<br />

“Dá azar mexer com a realidade”, dizia ele, “é pior que emparedar sete gatos<br />

niegros sete seguidas vezes”.<br />

56


Cap. XIV - Donde o biógrafo de mal-assombros tentava esquecer aquele<br />

rabo-de-peixe<br />

Nem sei se tentava à vera ou se francamente não conseguia.<br />

Nem, nada, n´algum, ninguém.<br />

O rabo daquela mestiça, mais para índia, que subia a Barão <strong>do</strong> Rio Branco, vinda <strong>do</strong><br />

Bom Retiro, agora já se encontra no Largo <strong>do</strong> Paissandu... São João, atravessa as Grandes<br />

Galerias, carajo, Praça da República, Consolación, depois de horas de trabalho com agulhas<br />

industriales <strong>do</strong>s coreanos, que linda, pelo menos duzentos homens seguem seu rabo pela calle.<br />

Os lábios daquela mujer...<br />

Gloss <strong>do</strong>s desalma<strong>do</strong>s...<br />

Aquele corte <strong>do</strong> olho...<br />

A pele lisa daquela pequeña...<br />

Aquele rabo que se mexe por toda a cidade, mais tarde no Love Story, boate-mor de San<br />

Pablo, a casa de todas as casas, como hay bisto outra madruga, diós de to<strong>do</strong>s los meus<br />

infiernos-alabamas...<br />

Cap. XV - Da arte de pintar deita<strong>do</strong><br />

Sem Chivas, el caballero Fodasno, delirante no último, voltaria a ser apenas um antigo<br />

pintor de rodapés, um homem pequeno que, de tão entregue à inércia e ao pântano das<br />

monstruosas ressacas, só pintaria deita<strong>do</strong>, caí<strong>do</strong>, como as arrastadas e preguiçosas barras das<br />

paredes de to<strong>do</strong> el pueblo.<br />

Repare, meu anjo, esse quadrúpede que foge é tu<strong>do</strong> na vida de um outrora afunda<strong>do</strong><br />

hombre, este cavalo, o último <strong>do</strong>s cavalos que riem no planeta, ri mais <strong>do</strong> que o gato de Alice<br />

depois <strong>do</strong> áci<strong>do</strong> supremo, este cavalo pôs de pé, devolveu a la bida, o cavaleiro que avistas<br />

antes de <strong>do</strong>rmir em sombras gigantes nos edifícios, como teu pai hay mostra<strong>do</strong> pelos buracos<br />

<strong>do</strong>s combongós de tua pequenita erristência.<br />

O desalma<strong>do</strong> carecia apenas de um rápi<strong>do</strong> amparo <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que não<br />

acolhe nem o mais saudável e cristão <strong>do</strong>s cavaleiros que deliram.<br />

57


Sem o pangaré paraguayo, o cavaleiro não passava de um bicho minúsculo, uma pulga<br />

<strong>do</strong> próprio caballo, dessas pulgas de cadeiras <strong>do</strong>s últimos cinemas <strong>do</strong> centro das cidades<br />

grandes, lesadas, perdidas, incapazes de atrapalhar a percepção de qualquer filme, mesmo uma<br />

película vagaba.<br />

Não passa de um carrapato, melhor dizen<strong>do</strong>, daqueles que atraem bem-te-vis para o<br />

lombo de quadrúpedes que pastam na morta natureza e sobem nos ares nos seus bicos<br />

cantantes como maçãs piratas de Cezzanes, voan<strong>do</strong> nas <strong>do</strong>mingueiras da Praça da República.<br />

Não lhe gusta de la condición de bípede e o cavalo subtrai essa pobreza humana,<br />

como dita ao grava<strong>do</strong>r deste biógrafo lo próprio caballero:<br />

“...a condição de bípede me faz lembrar das pernas tomadas pela crônica sensação de<br />

<strong>do</strong>rmência, como se to<strong>do</strong>s os formigueiros <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> habitassem os membros inferiores nas<br />

manhãs de ressacas abomináveis. Tantos caminhos para se perderem essas formigas e fazem<br />

das minhas veias suas melhores roças de nuncas e fábulas, como se tivessem segui<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s<br />

os Jecas Tatus <strong>do</strong> universo, de mo<strong>do</strong> que nem meu angiologista, o qual não procurei ainda<br />

por me<strong>do</strong> de diagnóstico apocalíptico, sabe mais o que fazer com esse formigueiro que<br />

festeja sobre meu corpo a existência <strong>do</strong> açúcar da desgraça, a diabetes <strong>do</strong> fim de feira de<br />

um alcoólatra. Sempre sinto que uma banda <strong>do</strong> corpo está muerta. Resta-me apenas o la<strong>do</strong><br />

izquier<strong>do</strong>, corazones, esse músculo cafona e sensacionalista, eternamente denuncia<strong>do</strong>r e<br />

cheio das suas palpitaciones fora de lugar e hora, sempre a ler Fernan<strong>do</strong> Pessoa em<br />

qualquer gare ou despedida, corazón entreguista, por mais que eu tente manter distância<br />

das comociones baratas.”<br />

El corazón que nomeia, de longe, as lacunas, os buracos to<strong>do</strong>s, não somente o da parte<br />

posterior <strong>do</strong> cérebro, é o que guarda os segre<strong>do</strong>s e os batismos <strong>do</strong>s seus futuros <strong>do</strong>nos.<br />

Melhor não dar ouvi<strong>do</strong>s aos nomes de gente sopra<strong>do</strong>s por nuestros corazones.<br />

Nuestros corazones não passam de cupi<strong>do</strong>s malucos que nos flecham de dentro para<br />

fuera, como aqueles pesca<strong>do</strong>res que vêem as cidades de dentro <strong>do</strong>s seus Tietês, Tejos, Paraybas,<br />

Paraguays, Jaguaribes, Guadalquavires, Capibaribes...<br />

Morte a los cupi<strong>do</strong>s.<br />

Cupi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> inteiro, fudei-vos uns aos outros com as suas infalíveis e priápicas<br />

flechas que não matam uma mosca.<br />

Não se morre de amor nos trópicos.<br />

Como diz <strong>do</strong>n Estebito, agora um caça<strong>do</strong>r de formigas gigantes d´Áfricas - segun<strong>do</strong> me<br />

contou sua própria abuellita -, “estoy aman<strong>do</strong>, estoy a man<strong>do</strong> <strong>do</strong> demo!”<br />

Cap. XVI - Donde a poesia não passa de uma maçã caramelada e derretida<br />

58


El pangaré supostamente paraguayo avança e cresce a cada dia muitos metros e fica<br />

cabeça a cabeça com o roncinante de São Jorge, meu anjo, minha menina, chance de te levar<br />

para conhecer a lua, la luna caliente, por supuesto, a morada <strong>do</strong>s poetas, mi hija, mi musita<br />

precoce, já foste a la luna, hija?<br />

Sabia, minha menina, que teu avô morreu sem acreditar que o homem foi a la luna?<br />

Com este cavalo gigante que avisto ao longe posso te levar para conhecê-la,<br />

independentemente de quaisquer sospechas!<br />

Irás tocar la luna e chegar em casa com os dedinhos mela<strong>do</strong>s de tantos adjetivos que os<br />

poetas lhe dedicam, adjetivos são <strong>do</strong>ces como pirulitos, filha, e derretem sobre la camada externa<br />

de la luna. La luna, hija, non passa de una maçã caramelada <strong>do</strong> parque de diversiones de los poetas<br />

e demais enamora<strong>do</strong>s, mi hija, não caia nessa, quer dizer, mi hija, faças o que quiseres, mil<br />

desculpas, foi mal, ciúmes...<br />

Domingo é um bom dia para irmos a la luna, quieres ou não quieres, hija amada e única?<br />

Cap. XVII - Donde o cavaleiro cai e não cai das nuvens e muito menos<br />

em cima <strong>do</strong> seu cavalo<br />

Sem o cavalo, talvez o único ofício que me restaria, digamos assim, fosse mais baixo<br />

ainda <strong>do</strong> que um pintor de rodapés... Eu não passaria de um mecânico de skates, minha<br />

menina, entraria abaixadinho na vida qual um mecânico <strong>do</strong> gênero, azeitan<strong>do</strong> o eixo <strong>do</strong> sol <strong>do</strong>s<br />

rolamentos que tiram fogo <strong>do</strong> asfalto e <strong>do</strong>res-rolimãs <strong>do</strong>s joelhos, sabe aquele barulho<br />

ilumina<strong>do</strong>, aquele relâmpago de carne contra o cimento?<br />

Cresce, mas somente à noite, o pangaré, qual o seu novo <strong>do</strong>no, que durante o dia é mais<br />

réptil que a sua própria sombra, um tatu-peba perdi<strong>do</strong> diante de vira-latas magros e fareja<strong>do</strong>res.<br />

Teu abuello, meu anjo, ainda hoje é um grande caça<strong>do</strong>r de tatus, os tatus que rastejam sobre<br />

mosaicos lisos e barrocos da guerra <strong>do</strong> tempo com os seus cascos-caos pré-históricos.<br />

Cap. XVIII - Donde os sonhos diurnos são filmes inacaba<strong>do</strong>s<br />

de cineastas mortos<br />

Durante o dia, o suposto pangaré nervoso e existencialíssimo pasta no quintal na<br />

companhia de Ressacón, um velho e nada cansa<strong>do</strong> bode, capricorniano no último, mal-cheiroso<br />

e tara<strong>do</strong> pai-de-chiqueiro com perfurme de macho das antigas, Ressacón engole pedra e cacos<br />

de vidros e rumina pará-brisas quebra<strong>do</strong>s pela força da mente urbana mordida, um místico e<br />

insensível macho, no que sobra para a pobre Quimera, a cabra que pasta lin<strong>do</strong>s sonhos de<br />

varejo e caga pílulas milagrosas, toda a responsa lírica de continuarem juntos.<br />

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Ressacón tem um mantra infalible:<br />

LA BIDA ÉS COMO LA RESSACA, LA BIDA ÉS EN SLOW MOTION, LA<br />

RESSACA ÉS UMA DENGUE SARTREANA.<br />

O cavaleiro mal se mexe durante a luz solar, <strong>do</strong>rme intermináveis siestas.<br />

Mesmo sen<strong>do</strong> um destemível e fabuloso cavaleiro, o cavaleiro é um hombre, portanto o<br />

cavaleiro rumina fábulas rasteiras, pobres, primárias, por supuesto, sempre entre el fulgor e la<br />

muerte, num passa de um Joaquín Murieta sem ver a cor <strong>do</strong> ouro da Califórnia, como o<br />

lendário chileno que também poderia ser um lendário mexicano, mas nos livremos da tal<br />

questão místico-diplomática fantasmagórica cheia de ouro e fandangos melodramáticos.<br />

A sorte <strong>do</strong> cavaleiro Fodasno é que os seus sonhos diurnos são fragmentos de rolos de<br />

filmes inacaba<strong>do</strong>s de cineastas mortos.<br />

Seus sonhos não guardam a mínima ligação com o inconsciente ou delírios <strong>do</strong><br />

tiozinho Jung e sua assombrada bodega de miniaturas.<br />

Às siestas, os sonhos não pasam de uma maneira de deus ocupar os cineastas no<br />

purgatório, fornecen<strong>do</strong>-nos alguns pesadelos exemplares que ficaram a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong>s na rede<br />

armada no cocoruto de senhores como <strong>do</strong>n Luis Buñuel - rolos e rolos não edita<strong>do</strong>s de<br />

Viridiana e de Los Olvida<strong>do</strong>s - e Pierre Paolo Pasolini, Uccellacci e Uccellini, Gaviões e<br />

Passarinhos, uma fábula sobre a crise <strong>do</strong>s perde<strong>do</strong>res de sempre, segun<strong>do</strong> o próprio corvo <strong>do</strong><br />

filme, e assim todas as horas não editadas que formam uma nova película em sonhos e<br />

pesadelos vespertinos, chance única de nosotros, principalmente os cegos, podermos também<br />

cevar los cuervos e comê-los como boníssimos tira-gostos para los ojos embriaga<strong>do</strong>s.<br />

Nunca confiem nos sonhos diurnos, nada é verossímil ou contável, e nada mais intenso<br />

<strong>do</strong> que saber narrar seus sonhos como se fossem filmes incompletos, cheios de buracos e<br />

reticências, como quem conta algo na parada de ônibus. O ônibus passa e leva o sujeito que<br />

estava contan<strong>do</strong> a história e só nos resta emendá-la com as pistas precariamente deixadas,<br />

enquanto não vem o próximo ônibus.<br />

Falar em <strong>do</strong>n Buñuel, outro dia revi, nada como um ocioso biógrafo numa tarde-noite<br />

de inverno, assim meio na esticada siesta, revi com una hermosa niña-costela, que também<br />

poderia ser mi hija Viridiana...<br />

Embora a gente tenha visto, como é próprio <strong>do</strong>s sueños das siestas, o primeiro copião<br />

da película, concluímos: que tara a de fazer da freira la nobia!<br />

Mas o que és mais amable mesmo em la película é aquele maluco, <strong>do</strong> banquete <strong>do</strong>s<br />

mendigos, que pergunta<strong>do</strong> sobre o que sabe fazer, diz apenas:<br />

“Sei fazer rir, señorita!”<br />

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“Nas rugas <strong>do</strong> palhaço involuntário, no que não carece pintar a cara, está a grande arte,<br />

senhoras e senhores”, bolinou os lençóis azuis uma voz que veio com o vento frio, persiânico<br />

e combogóstico, naquele acochegante quarto de áci<strong>do</strong> que nos dava abrigo.<br />

Cap. XIX - Da gosmenta ninja da culpa de cócoras num canto<br />

da sala sem cortina<br />

O pesadelo é, sobretu<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> alguém, não chama<strong>do</strong>, se mete a ser a memória das<br />

nossas jornadas.<br />

Nunca me contem o que se passou ontem, nem eu nem o sr. Knut e muito menos as<br />

criaturas daquela taberna carecem dessa narrativa enevoada.<br />

O monstro da ressaca nessa luta contra o monstro da memória... E a gosmenta ninja<br />

cristã de cócoras num canto da sala sem cortina a esperar-nos com suas lições inoportunas.<br />

As acontecências enevoadas são para serem revistas apenas sob as lentes grossas da<br />

ressaca, que nos repassam as noites aos poucos, em câmera lenta, slow motion iraniano, no<br />

máximo a sensação demorada de um punheteiro de Cabul, um guerrilheiro, o gozo na guerra,<br />

demora<strong>do</strong> ou nem tanto, além, muito além <strong>do</strong>s vagarosos limpa<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s pára-brisas da culpa<br />

que nos repetem, automaticamente, as certezas da guerra, para um la<strong>do</strong> e para o outro na<br />

neblina - como uma teimosa criatura que diz não com a cabeça -, as imagens das merdas<br />

dantes cometidas e, principalmente, nos senões esquisitos de quem não sabe assumir as coisas.<br />

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Em sen<strong>do</strong> mulher, então, não nos conte nada nunca. Faz de conta que todas nasceram<br />

com Alzheimer, porque a narrativa feminina <strong>do</strong>s infernos anteriores é mais cruel ainda e já nos<br />

prescrevem os infernos futuros, o que há de lobotomizar-se no percurso entre uma <strong>do</strong>bra ou<br />

outra de tempo, como se <strong>do</strong>bra um guardanapo para entender as distâncias <strong>do</strong>s pontos ou dar<br />

uma exemplar aula de física nas mesas <strong>do</strong>s bares, como hay hecho el compay <strong>do</strong>n Niltola en la<br />

cumeeira madalenística deste pueblo.<br />

Cap. XX - Do ponteiro deslizante no verde-lo<strong>do</strong> <strong>do</strong> tiempo<br />

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O cavalo Chivas fica mais cresci<strong>do</strong> <strong>do</strong> que to<strong>do</strong>s os prédios del pueblo e sua autoestima,<br />

mesmo ele odian<strong>do</strong> essa palavra composta e feita sob encomenda para os ricos foderem<br />

mais ainda com los pobrezitos, alcança as galáxias mais infinitas. La luna caliente às vezes não<br />

passa de um néon minguante, uma vírgula de luz sob o palato que ele suga como um<br />

tamanduá-bandeira comeria pontinhos e sinais eletrônicos de uma fachada, imaginan<strong>do</strong><br />

formigas se mexen<strong>do</strong> numa chino-luminosa roça de pernas.<br />

O pangaré devora principalmente os relógios <strong>do</strong> alto <strong>do</strong>s edifícios, quer parar o ponteiro<br />

deslizante <strong>do</strong> tempo para agradar seu velho <strong>do</strong>no, que tem fome de viver, ou se iludir<br />

bravamente com esse tema, pouco importa, anda-lhe, anda-lhe, anda-lhe...<br />

O cavaleiro Fodasno não teve escolha, tem metade da vida, a vida nocturna, como se<br />

Deus parasse o cronômetro na parte ensolarada, e não falamos aqui da tradição romena ou<br />

vampiresca, o cavaleiro cisma com o aparente das coisas como um judeu que responde uma<br />

pergunta com outra.<br />

Como como?<br />

Por que por que?<br />

Simplesmente era uma vez na encruzilhada, há muitos e muitos anos, num tempo em<br />

que nem um de nós éramos nasci<strong>do</strong>s, gracias, nem mesmo a árvore que daria no cabo de<br />

vassoura, que daria nos cavalos-de-pau da infância, e o diabo perguntou, na bucha, para o<br />

cavaleiro ibérico que tempos depois iniciaria a sucessão de gametas que daria origem à estirpe<br />

deste cavaleiro solitário:<br />

- Blanco ou niegro?<br />

Metade branca ou metade preta, escolha!, um anjo e um demônio, desses que andam<br />

juntos para confundir o universo, mostravam uma coisa assim como uma bolacha de chope,<br />

como o SIM ou NÃO da carne, verde e vermelho, numa churrascaria estilo brasileña.<br />

Como a<strong>do</strong>rava lesar os sóis e celebrar las lunas, foi fácil o antepassa<strong>do</strong> deste cavaleiro<br />

dizer que ficaria com as viagens ao fim da noite, sem ao menos se importar que isso teria<br />

implicações e lendas urbanas, os homens e suas inocentes escolhas primárias, para muitas e<br />

muitas gerações futuras.<br />

Um homem não pode amar o dia e a noite igualmente, sob pena de ser despreza<strong>do</strong> por<br />

ambos, pensou ao decidir por um <strong>do</strong>s la<strong>do</strong>s da bolacha, repetia o avô deste cavaleiro a<br />

história <strong>do</strong> seu tataravô durante a cachaça com teju cozi<strong>do</strong> à beira <strong>do</strong> fogão da avó índia,<br />

uma sábia cabocla de Águas Belas, Pernambuco, que apenas ria das aventuras repetidas -<br />

brigara com onças vermelhas, onças pintadas, onças come<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>s seus bodes e filhos,<br />

sempre estava a matar uma onça por dia nas suas simples buscas por lenha verde antes das<br />

raras chuvas sertanejas, uma panela no fogo sempre representava mortes anteriores ou<br />

futuras, to<strong>do</strong>s os tempos eram cozi<strong>do</strong>s nos mesmos vapores, morreu a tanger onças na rede<br />

em que foi enterrada numa tarde chuvosa em que os homens embriaga<strong>do</strong>s e velozes a<br />

tocaram, desabalada carreira, para o cemitério cujos defuntos eram comi<strong>do</strong>s por tatus-pebas<br />

que, por sua vez, eram caça<strong>do</strong>s por nuestros perros famintos que, ao fim das refeições,<br />

ficavam apenas com os ossos.<br />

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O pior é que Deus descumpriu o seu trato com nuestro longínquo parente, meu<br />

anjo, mi hija querida.<br />

Pense na ressaca, ao saber deste acontecimento.<br />

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Cap. XXI - Da segunda interrogación complicada da hija querida<br />

desta história toda<br />

“És o caballero, mi padre?”<br />

Ouvira naquele instante a segunda pergunta difícil de Viridiana.<br />

“...como ia contan<strong>do</strong>, um poeta é uma criatura que...”<br />

Cap. XXII - Donde voltamos ao trato <strong>do</strong>s antepassa<strong>do</strong>s com Deus<br />

O correto, pelo acor<strong>do</strong> ao fio <strong>do</strong> bigode vassoural sua<strong>do</strong> e nervoso de Diós, era parar o<br />

cronômetro, como em um jogo de basquete, todas as vezes que a noite acabasse.<br />

Pela herança sanguínea, este cavaleiro continuaria usufruin<strong>do</strong> até hoje deste beneplácito.<br />

Em chegan<strong>do</strong> a manhã, Deus delisgaria o relógio para este cavaleiro, mas sem essa<br />

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frescura obrigatória de ser vampiro, repito, sem caixão, sem velas, sem nada, apenas cortinas<br />

baixas e ventila<strong>do</strong>r de teto no último volume <strong>do</strong>s trópicos, os moinhos possíveis <strong>do</strong>s campos<br />

<strong>do</strong>s sonhos.<br />

O certo é que caímos nesse conto-tamanho-família e fomos condena<strong>do</strong>s, menina, como<br />

numa maldição, a seres noctívagos, sonâmbulos quase sem nenhuma classe, falsos vampiros,<br />

M.C.S.J., Movimento <strong>do</strong>s Cavaleiros Sem-Jugulares, quan<strong>do</strong> muito uma bela ciganita e seus<br />

mares vermelhos que formam niágaras além, muito além de las tensiones mortales d´alma.<br />

Castigo, mas essa é uma explicação ainda muito barata, prefiro acreditar em algumas<br />

outras lendas particulares.<br />

Alguns <strong>do</strong>s nuestros são rotineiramente acusa<strong>do</strong>s de lobisomens nos confins <strong>do</strong>s<br />

sertões, um tio acredita incorporar uma Rasga-Mortalha, aquela agourenta ave que risca<br />

as unhas nos telha<strong>do</strong>s antes da morte de um ente queri<strong>do</strong> da casa, teu abuello sai a la<br />

noche, apenas com a sua espingarda caça<strong>do</strong>ra e a vira-lata com nome de peixe ou de<br />

grandes mamíferos marítimos, to<strong>do</strong>s os cães de pobres têm nomes de nada<strong>do</strong>res, minha<br />

menina, teu abuellito sai ao encontro de botijas, que são tesouros de monedas, potes de<br />

ouro escondi<strong>do</strong>s nas veredas e encruzilhadas que são os seus mares, mas que exigem,<br />

mesmo nas madrugas mais sossegosas, uma longa conversa com o diabo, como to<strong>do</strong>s los<br />

contratos, porque Deus só dá a inutilidade da paz e o descui<strong>do</strong> da poesia, um prato no<br />

chão vermelho <strong>do</strong> inferno idem, plaft.<br />

Em um desses encuentros, o demo narrou ao teu abuello Niildemar [um certo niilismo<br />

marítimo na origem <strong>do</strong> nome segun<strong>do</strong> o latim <strong>do</strong> vigário Cristhiano, de Santana <strong>do</strong> Cariri, à<br />

sombra da Chapada <strong>do</strong> Araripe, a terra <strong>do</strong>s maiores fósseis <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>] o motivo pelo qual o<br />

Divino havia quebra<strong>do</strong> o trato e por que estamos condena<strong>do</strong>s a vagar pela noite, seja nos<br />

sertões, seja na mais moderna das metrópoles babilônicas.<br />

66


Cap. XXIII - Do Pangaball ou Pangabol, o legítimo juego da vida-pangaré<br />

67


Até inventei, com o meu bom cavalo Chivas, uma nova modalidade para ver se Diós,<br />

que só compreende metáforas esportivas, entendia como reca<strong>do</strong> ou indireta mensagem aqui da<br />

sua pobre alma penada.<br />

O Pangaball ou simplesmente pangabol, espécie de basquete joga<strong>do</strong> nos arrabaldes<br />

del chaco deste pueblo por destemi<strong>do</strong>s cavaleiros em cima <strong>do</strong>s seus belos pangarés ou de<br />

faunos obscurantistas.<br />

No calor <strong>do</strong>s minutos finais <strong>do</strong>s embates, o pangabol guarda uma certa semelhança com<br />

as batalhas <strong>do</strong> Rei Arthur e a dramaturgia das Cruzadas, Lancelot, o feio, ora, assim imaginei o<br />

jogo, porque homem que é homem roteiriza o jogo antes mesmo de fazer o filho para<br />

brincarem juntos, mi hija, e talvez esse seja um jogo de homens fracos. Não te importes, rogue<br />

el juego, por supuesto, neste game mora a clave <strong>do</strong>s que se saberão perde<strong>do</strong>res e nada perderão<br />

com isso <strong>do</strong>ravante. Perder de um, perder de dez, tanto faz, a vida é cada vez menos, no<br />

calendário, na pele e nos cabelos.<br />

E não é que Chivas, sabe Chivas?!, mi hija, foi coroa<strong>do</strong> recentemente como o melhor<br />

cavalo de Pangaball <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>! Mas, sou sincero, não é nos esportes que ele me orgulha,<br />

embora já se enquadre no que batizamos vulgarmente como heróico, o gênero, embora por<br />

outras causas marginales.<br />

Até agora Diós não entendeu nada, não sabe que o pangabol se trata de uma forma de<br />

avisar-lhe que o cronômetro, assim como num jogo de basquete, deve ser paralisa<strong>do</strong> durante o<br />

dia, como rezava o seu trato com os meus antepassa<strong>do</strong>s ibéricos.<br />

Deve ser paralisa<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> a vida não vale a pena, quan<strong>do</strong> se torna melodramática<br />

ou sóbria.<br />

A moral <strong>do</strong> pangabol é esta, hija.<br />

Mas é difícil mesmo fazer Deus entender minimamente os que começam perden<strong>do</strong> de<br />

muito. Deus não acredita na lucha de classes, minha pequeña.<br />

Cap. XXIV - Donde o Supremo proíbe o jogo de amarelinhas<br />

Deus não aposta nas voltas por cima, mi hija.<br />

Deus não seca os favoritos.<br />

Deus sabe jogar um, <strong>do</strong>is, três jogos no máximo.<br />

Deus não faz fé no cavalo azarão que atropela na curva.<br />

Deus não joga nos próprios bichos a quem impôs o dilúvio.<br />

Mesmo saben<strong>do</strong> que foi Ele quem os embarcou na arca de Noé apenas para<br />

garantir a futura roleta <strong>do</strong> jogo.<br />

(...)<br />

Deus blefa no pôquer.<br />

68


Deus pôs a zebra de castigo: trata-se de um quadrúpede obriga<strong>do</strong> a <strong>do</strong>rmir em pé até<br />

hoje e de lá de cima ele despeja renovadas e aleatórias demãos de tinta sobre tal quadrúpede.<br />

Deus castiga, hija.<br />

Deus é um ser esquisitão, meu anjo.<br />

Deus tem caspa, como diz nosso <strong>do</strong>n Júlio Henriques, titio ultra-marinho, e pêlos gigantes<br />

no nariz, que emendam com os pêlos <strong>do</strong> saco e os pêlos de to<strong>do</strong>s os buraquinhos perfeitos de<br />

Deus, por supuesto.<br />

As filhinhas de Deus, hija, são terminantemente proibidas de pular o jogo de amarelinha.<br />

Não pelo céu e inferno <strong>do</strong> jogo, simplesmente porque as boas meninas não podem<br />

mostrar logo ce<strong>do</strong> a calcinha.<br />

Deus condena ao fogo <strong>do</strong> infierno, hija, te deixo aqui o conselho à guisa de um<br />

guisadinho com farofa de ovo e banana, ovo molinho por cima, como rima materna, derreteu...<br />

Pega junto com o arroz, minha criaturinha, eita, olha o aviãozinho...!<br />

Deus está sempre a dizer “já para dentro, menina”.<br />

Deus é o vento que levanta a saia e sopra coisas diretamente en la bucetita, lo mejor de<br />

los oubi<strong>do</strong>s de una chica.<br />

“Do jeito que brincas vais acabar viran<strong>do</strong> puta”, Deus sempre com seu verbo<br />

condenoso e impoluto de quem fala em segunda pessoa, tu tu tu tu, como um telefone<br />

ocupa<strong>do</strong> en noche de desgracia.<br />

“Deus te oiça, Deus te oiça”, no que a menina má brinca lembran<strong>do</strong> de um poema de<br />

um <strong>do</strong>s seus muitos tios-abuellitos, o folgazão e pantagruélico Ascenso Ferreira, Palmares,<br />

Pernambuco, capaz de comer uma sucuri inteira que acaba de engolir um boi, depois <strong>do</strong>rmir o<br />

sono <strong>do</strong>bra<strong>do</strong> <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is, o sono dele e o sono que seria da cobra, bufan<strong>do</strong> para o mun<strong>do</strong> em<br />

estro<strong>do</strong>sos e metrifica<strong>do</strong>s pei<strong>do</strong>s decassílabos, bocageanos, inocentemente imorais como los<br />

pei<strong>do</strong>s de las siestas em redes gigantes armadas sobre o Atlântico, entre um coqueiro <strong>do</strong> Brasil<br />

e outro coqueiro d´África.<br />

Cap. XXV - Donde um pangaré solar em uma noite de inverno ou quase<br />

Quan<strong>do</strong> algo de muito desimportante está em andamento, como se um pangaré solar<br />

numa noche de inverno, Deus congela o tempo e sua pata dianteira, como o cavalo <strong>do</strong>s heróis<br />

nacionais das estátuas eqüestres, e a pata fica suspensa no ar, como num eterno retorno para a<br />

mais falsa das guerras, a pata, joelho <strong>do</strong>bra<strong>do</strong>, suspensa, a pata no despenhadeiro, depois da<br />

base de cimento e bronze, quan<strong>do</strong> o cavalo pensa em fugir da imortalidade a to<strong>do</strong> custo.<br />

A pata erguida, nas estátuas eqüestres, significa, mi hija, que o filho de una putana <strong>do</strong><br />

herói nacional de araque não morreu na guerra.<br />

69


Cap. XXV - Donde El Doma<strong>do</strong>r de Yacarés habla sobre la cobiça,<br />

el rancor e la ignorância<br />

Por ocasión de la bisita ao país hermano, mi Paraguay queri<strong>do</strong>, El Doma<strong>do</strong>r de Yacarés<br />

hay dicho una das suas maiores sabe<strong>do</strong>rias rupestres:<br />

“És más fácil <strong>do</strong>mar un yacaré <strong>do</strong> que un hombre. Para <strong>do</strong>mar el yacaré, arrancarle del<br />

corazón selbagem de lo viejo réptil encoraça<strong>do</strong> trés cosas: la cobiça, el rancor e la ignorância...<br />

De un corazón de un hombre és quase impossible arrancarle las miesmas cositas.”<br />

E así El Doma<strong>do</strong>r hay me ensina<strong>do</strong> técnicas e recita<strong>do</strong> fábulas para los poetas<br />

durante los dias que passei em Assunción, esta ciudad renial e muy agradable, amable...<br />

Quatro poetas e un sábio <strong>do</strong>ma<strong>do</strong>r de yacarés emborrachan<strong>do</strong>-se de biño e oubin<strong>do</strong><br />

cumbias antiapostolicas y Camarón de la Isla pelas calles quilombeskas y<br />

fantamasgóricas daquele guapíssimo pueblo guarany.<br />

Así, en la miesma ocasión, hay ocorri<strong>do</strong> el gran encuentro cosmolórrico del portunhol<br />

selvagem, lengua elaborada pelo inimitable Douglas Diegues, nuestro <strong>do</strong>n Diegues de la Verga,<br />

que lavrou a ata <strong>do</strong> fabuloso simpósio e nos brin<strong>do</strong>u com um lerrítimo White Horse.<br />

Na maravilhossa viarrem alejocarpetiana a Assunción, terra de chicas calientes e los<br />

ojos mais enigmáticos de todas las tribos da globolândia, jodea<strong>do</strong> pelas más guapas<br />

paraguasitas, el astronauta de los chacos, el kurupi manhoso, el miesmo <strong>do</strong>n Diegues,<br />

apresentou-nos su más nuebo libro, lo renialíssimo “Rocio - sem trampas entres pin<strong>do</strong>vys y<br />

cataratas del Yguazú”.<br />

70


Pra finalizar a viagem, una frase de Rocio que causa ondas jigantescas na baia de<br />

Asunción: “Me gusta que me deixem halagada!”<br />

Cap. XXVI - Do Empareda<strong>do</strong> Corazón e das bistecas dinossáuricas de San Pablo<br />

-Por que matou tua própria mulher, elemento?<br />

-Dotô, ela queria fazer sexo toda hora, de manhã, de tarde, de noite, eu não podia entrar<br />

em casa que...<br />

-Como assim, seu nóia?<br />

-Dotô, eu não agüentava mais.<br />

-Né macho não, seu via<strong>do</strong>? Pra que serve o que tem entre as pernas?<br />

Primeira coronhada na cabeça <strong>do</strong> pedreiro.<br />

-Pensa que eu sou palhaço!<br />

-Dotô, o pior era de manhã, eu queren<strong>do</strong> manter o trampo... sair na hora certa de casa,<br />

três conduções, lotação, metrô, busão...<br />

Segunda coronhada.<br />

Risos na Delega.<br />

Um tira diz “baianinho via<strong>do</strong>” e passa a mão na bunda <strong>do</strong> sujeito.<br />

-Peraí, também não esculhamba - adverte o delega -, mas precisava emparedá-la, porra?<br />

-Dotô, se não cimentasse, ela saía de qualquer canto e não me deixava em paz.<br />

-Como você teve essa idéia, caralho?<br />

-Dotô, as idéias vêm de um canto esquisito, um buraco aqui atrás da cabeça que não<br />

tem e nunca terá reboco...<br />

-Fala, porra!!!<br />

(...)<br />

-Mas era tua mulher, idiota!<br />

71


-Era minha mulher... Sabe o João-de-barro, um...<br />

-Pássaro?<br />

-Carecia emparedá-la?<br />

-A idéia veio da infância, o lugar esquisito, avoan<strong>do</strong> com as asas da desgraça como um<br />

urubu maldito que avoa alto...<br />

-O que tem a ver o pássaro?<br />

-O João-de-barro quan<strong>do</strong> está <strong>do</strong>ente de ciúme empareda a sua mulher em um <strong>do</strong>s<br />

quartos daquela casa de argila que ele mesmo constrói no bico.<br />

-Agora, além de via<strong>do</strong> está se confessan<strong>do</strong> corno?<br />

-Não, <strong>do</strong>tô, fiz antes que acontecesse... Minha mulher não tinha fastio hora nenhuma,<br />

não tinha homem que desse conta.<br />

(...)<br />

Os tiras rasgavam as fartas, sangrentas e pré-históricas bistecas <strong>do</strong> restaurante Sujinho,<br />

bairrio de la Consolación, e narravam essa história que acabavam de testemunhar numa Delega<br />

da ZL, Zona Leste, em pleno ataque <strong>do</strong>s gângsteres.<br />

Cap. XXVII - Donde os mortos vagam em busca <strong>do</strong>s seus espíritos dubla<strong>do</strong>res<br />

Ela diz algo no ouvi<strong>do</strong> esquer<strong>do</strong> <strong>do</strong> cavaleiro solitário e segue antes mesmo que a<br />

última sílaba quente derreta a cera <strong>do</strong>s adiamentos amorosos, talvez seja ela, a moça sem nome<br />

da cumeeira, com muitas goteiras, dessa história toda.<br />

O desejo <strong>do</strong> cavaleiro, preso e envelheci<strong>do</strong>, acaba de ser destila<strong>do</strong> nos alambiques<br />

particulares das idéias inatas. Lá onde se escondem da luz os morcegos, de ponta-cabeça nas<br />

ripas e caibros <strong>do</strong> sótão, criaturas que geram ratos e recalques que fazem cair nossos cabelos e<br />

fichas <strong>do</strong> insconsciente como “D´ont be cruel”, música <strong>do</strong> Elvis, cai desavisada de tu<strong>do</strong> numa<br />

juke box, plaft, da Rua Augusta, cabarezito del Rapariguero Preguiçoso, también conheci<strong>do</strong><br />

como La Galeguita das Flores Fatales, neste exato momento.<br />

72


Como uma agulha suja cai lentamente sobre um vinil de Billie Holliday ou sobre o<br />

pássaro preto de Nina Simone.<br />

Suefre, desalma<strong>do</strong>, quem man<strong>do</strong>u ser gente! Se foste ator estaria a salvo.<br />

Porque sempre é melhor ser ator <strong>do</strong> que ser gente, negociações de possíveis falsidades.<br />

Deixem las ilusiones na chapelaria, senhoras e senhores, kabrones, pelo menos esta<br />

noite: não se trata da pobre superstição <strong>do</strong> amor à primeira vista.<br />

Se fosse assim, seria fácil, facílimo, mas fácil que empurrar bêba<strong>do</strong> em ladeira.<br />

Não era apenas um desejo, suponho, tratava-se de uma resina lenta que ia<br />

derreten<strong>do</strong> como o choro <strong>do</strong> tronco de uma árvore que teima, depois de morta, em<br />

assombrar a floresta escura.<br />

Esperanza disse um verso, tinha um ritmo, e sumiu como um lento e compassa<strong>do</strong><br />

inferno sobre botas.<br />

“Hell on hells”, me sugere aqui o gringo viejo da área que nos deixa tonto de<br />

trocadilhos babélicos por minuto. La globalización”, repete o puto, “la globalización...”<br />

“La globalizacíon de cu és ruela”, relincha ao longe o velho Chivas.<br />

Conheceria esse verso, o que Esperanza acaba de soprar nos ouvi<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s homens da<br />

noite, de algum tardio flash back, aquele áci<strong>do</strong> com o sorriso de Mao Tsé-Tung que<br />

imperava na cidade São Paulo <strong>do</strong>s anos 1990.<br />

73


Não, creio que seja apenas um <strong>do</strong>s meus tantos zumbi<strong>do</strong>s, os mesmos que perseguem<br />

o cavaleiro na noite de inverno, vozes <strong>do</strong>s mortos em busca de novos dubla<strong>do</strong>res.<br />

Cap. XXVIII - Da Penélope que tece o interminável manto e nada espera<br />

A primeira vez que vi Esperanza foi no Parque da Luz, belo bosque, nos meus<br />

primeiros dias de pré-cavaleiro neste pueblo também denomina<strong>do</strong>, nas internas, el desierto<br />

final de Carençolândia <strong>do</strong> Oeste & seus labirínticos arre<strong>do</strong>res de vales assombra<strong>do</strong>s,<br />

anhangabaús, tamanduateís, pirajussaras, córregos de desejos represa<strong>do</strong>s, tietês y sus piratas<br />

laertísticos de responsa, estradas de lágrimas e sorrisos sem gatos aliciosos.<br />

Ela chorava ao lusco-fusco, de amor, banzo ou ambos, depois de mais uma jornada em<br />

um subsolo <strong>do</strong> bairro <strong>do</strong> Bom Retiro, rovem entregue ao trabalho-escravo em uma oficina de<br />

costura daquele sítio.<br />

Esperanza, que se faça justiça com as suas lágrimas, não se achava sob jugo de<br />

escravidão alguma:<br />

“...”,<br />

Foi tu<strong>do</strong> que soluçou numa entrevista meio forçada pela vereança aos jornais, na<br />

ocasião fora ouvida e nada disse e nada mais foi pergunta<strong>do</strong> na Comissão Parlamentar de<br />

Inquérito que investigava o tema na cidade de San Pablo.<br />

“...”.<br />

Da sua boca não choviam bandeirosas aspas, apenas as reticências capazes de, pontinho<br />

a pontinho, levar-lhe de volta, <strong>do</strong>rmente a <strong>do</strong>rmente, para seu pueblo de origem em<br />

Cochabamba ou numa selva alhures.<br />

Em certas noites ela tinha essa vontade, espalhar suas reticências ao largo <strong>do</strong>s trilhos<br />

<strong>do</strong> trem da morte.<br />

Se também suas lágrimas represadas, voltaria fácil, Esperanza crê que hay llora<strong>do</strong> pelo<br />

menos duas bacias amazônicas.<br />

Tempos depois este cavaleiro saberia, pela bocarra indiscreta <strong>do</strong> biógrafo, que se tratava<br />

de uma dessas Penélopes que tecem o interminável manto da inadaptação e da estranheza.<br />

Nada querem ou esperam <strong>do</strong>s mares, nem mesmo o rateio final <strong>do</strong> nunca dantes.<br />

74


Não havia nada lá, por supuesto, ou lá já era o rio de outros banhos.<br />

Não havia nada lá, mas isso não significava que não houvesse espera capaz de roer<br />

até fazer pó <strong>do</strong>s cotovelos cor de cinza sobre a janela nostálgica e ventaniosa da Polaroid<br />

<strong>do</strong> nunca mais.<br />

Uma Penélope que, ao contrário de todas aquelas Penélopes charmosas ou caricatas,<br />

cagou para os seus Ulysses que se demoram sobre as buenas ondas ou a emborrachar-se nas<br />

esquinas de la calle, porque to<strong>do</strong>s los Ulysses son uns malas que se demoram como uns<br />

machões de mierda que deixam las fêmeas a esperá-los e nem as sereias comem, brochas, só<br />

fazem um suspense da puerra, mesmo os que não viajam, mesmo os que nunca saíram ali <strong>do</strong><br />

pé-sujo da esquina.<br />

“Mitologia de cullo és ruella”, relincha o pangaré ao longe, agora retoman<strong>do</strong> o lerrítimo<br />

portunhol das selvas enquanto as caieiras possíveis queimam os tijolos, los tirruelos bati<strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong>s seus sonhos ao rés da lama.<br />

O cavaleiro oferece ajuda e toca no rosto de Esperanza:<br />

”Por que choras?”<br />

Ela mira como uma desconfiada guarany boliviana da região de Chaco, de lá viera ainda<br />

de colo, apenas com a mãe, para esta Babilônia, em busca <strong>do</strong> ouro da estrangeirice mais<br />

próspera, pero quan<strong>do</strong> o trem parou em Santa Cruz de la Sierra... suas lágrimas já tinham gosto<br />

de tempestade de granizo.<br />

El Caballero monta em su pangaré e segue, despera<strong>do</strong>, como se estivesse saí<strong>do</strong> da<br />

carcaça e apenas se importasse com a sombra magra delirante nas pradarias nocturnas<br />

deste pueblo.<br />

Sua alma tinha <strong>do</strong>no e isso, de alguma forma, era o seu batismo em San Pablo.<br />

“Ainda mais nesta hora fatídica em que enfrentamos um certo buraco psíquico por causa<br />

<strong>do</strong> desmantelamento das ideologias em suposta ruína”, dizia ao cavaleiro o xamã da vizinhança,<br />

um amigo sempre a caminho <strong>do</strong>s jardins que se bifurcam, <strong>do</strong>n Alltunes de la Augusta.<br />

Cavalgava rumo ao conda<strong>do</strong> de la Consolación e o vento gela<strong>do</strong> nas orejas queria dizer<br />

coisas, fragmentos que chegavam mais corta<strong>do</strong>s ainda, como num sinal falho de aparelho<br />

eletrônico, como um DJ virtuoso no scratch sobre vinis de legítima carnaúba, palmeira-mor<br />

<strong>do</strong>s trópicos que rebola horrores ao simples vento:<br />

75


“Uma noite...”<br />

“Uma noite... sen...”<br />

“Uma noite...”<br />

“Uma noite, sentei a...”<br />

“Uma noite, sentei a Beee<br />

lezaaaaaaa...”<br />

“Uma<br />

Uma noite, sentei a Beleza nos nos nos<br />

meus...”<br />

“Uma noite... sen... sen... sentei...<br />

“Uma noite...”<br />

“Uma noite, sentei a beleza nos meus...”<br />

“Uma noite, sentei a beleza nos meus joelhos.”(18)<br />

(18) O cavaleiro acreditava ser um sample livremente inspira<strong>do</strong> na vida e obra de Arthur Rimbaud (1854-1891)<br />

Da mesma forma acabo de ouvir o verso que ela gru<strong>do</strong>u com os lábios, gloss-urucum <strong>do</strong><br />

desespero avulso da floresta perdida, na passagem da calçada, ouvi<strong>do</strong> esquer<strong>do</strong>, o que sempre<br />

deixo para o la<strong>do</strong> de la calle esperan<strong>do</strong> mesmo ouvir a voz <strong>do</strong>s possíveis mal-assombros.<br />

“A cidade tosse como um índio com febre” ou quase isso, talvez apenas um barulho de<br />

boca nervosa ou efeito de uma espinha de peixe que lhe atravessa a garganta desde a infância na<br />

selva como uma agulha desavisada e suja sobre um vinil de blues ou uma chica perdida no bar<br />

de Las Amistosas a gritar em alto e bom soni<strong>do</strong> “non hay banda, non hay banda, non hay banda...”<br />

“O blues se toca por si só, chica caliente, como nas canciones del viento”, diz el viejo<br />

Charles Bronson, el bigode que llora, el proprietário, também conheci<strong>do</strong> como <strong>do</strong>n Libanio.<br />

Teu avô, meu anjo, mi hija, contava que passou uns dez anos ouvin<strong>do</strong>, todas as noites,<br />

um mesmo estribilho misterioso, que el viejo não sabia mais se era zumbi<strong>do</strong> na mente <strong>do</strong><br />

deserto sertanejo <strong>do</strong> vale <strong>do</strong> Kariri ou essas coisitas sem importância que dizem haver entre o<br />

céu e a terra.<br />

O vento chegava às suas oiças, nos i<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 1970, todas as noites, como se<br />

antecipasse os scratchs comuns aos DJs de hoje:<br />

“Fi-fi-fi-fica-com-com-comigo-essa-noite...<br />

E-e... não-naum-te-te-arre-pen-pen-de-de-rásss...”<br />

Somente à beira da morte, já nos seus 90, teu abuello, depois de percorrer to<strong>do</strong> o deserto<br />

<strong>do</strong> semi-ári<strong>do</strong> à sua volta, percorrer mil e uma noches <strong>do</strong>s arre<strong>do</strong>res, desven<strong>do</strong>u o mistério.<br />

“Lá-la-lá... fo-fo-fora o frio é-é um-um açoi-te-te... Calor aqui tu-tu te-rás”.<br />

Tratava-se de um pedaço de um vinil de um cantante brasileiro de nome Nelson<br />

Gonçalves sob caprichoso espinho de mandacaru, um cactus nordestino por excelência, que<br />

funcionava como agulha de vitrola perdida na caatinga.<br />

76


Conforme o vento vinha, o naco de vinil girava e a agulha <strong>do</strong> cactus reproduzia el<br />

soni<strong>do</strong> possível naquela faixa.<br />

Repetidas noites de vento.<br />

Principalmente no mês de agosto, quan<strong>do</strong> os sertões <strong>do</strong> meu mun<strong>do</strong> vivem as mais<br />

assombradas das noites, um ventão me<strong>do</strong>nho <strong>do</strong>s desertos de dentro, perros a lamber nuestros<br />

fíga<strong>do</strong>s sob a lua nueva <strong>do</strong>s ditos loucos.<br />

Era sempre o mês cruel para Maria de la Encarnación, também da nuestra mesma<br />

família gigante, uma tia trancada num quarto escuro, sob a pecha de louca, acorrentada, los<br />

ninõs buenuelitos da área lhe atiravam pedras e gritavam loas malditas a to<strong>do</strong>s os pulmones. Eu<br />

chorava os agostos e roía as pitombas da angústia e da pouca carne da existenciazinha toda<br />

fiapo e sobejo.<br />

Na ocasião da mais cheia das luas, Encarnación rompeu las corrientes e pulou para to<strong>do</strong><br />

o siempre nas águas de um açude que sangrava as bagaceiras <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong>.<br />

Habia si<strong>do</strong> casada com um caixeiro viajante, um galego com origem árabe que percorria<br />

os sertões daquela época, e antes de afogar-se por completa, hay grita<strong>do</strong> algo así que ainda hoje<br />

ecoa naquele vale <strong>do</strong>s Kariris e é reprisa<strong>do</strong> até pelas pedras quan<strong>do</strong> se batem umas nas outras:<br />

“Non hay memoria a quien el tiempo no acabe, ni <strong>do</strong>lor que muerte no le consuma.”<br />

Cap. XXIX - Do amor encoberto por nuvens baixas e escuras<br />

Teria visto Esperanza outras vezes, sobretu<strong>do</strong> nas bundas que se multiplicam nos<br />

espelhos da boate Love Story.<br />

O objeto de desejo, quan<strong>do</strong> encoberto por nuvens baixas e escuras, que nos fazem<br />

lembrar o algodão <strong>do</strong>ce azula<strong>do</strong> da infância <strong>do</strong>s dias em que o mascate fraquejava no ponto <strong>do</strong><br />

azul claro, se multiplica feito praga bíblica e vaga pelas cidades e pelos campos derre<strong>do</strong>res<br />

toman<strong>do</strong> como máscara o rosto de todas as fêmeas e também as nuvens mais baixas a nos<br />

embaçar los ojos e la pobrezita de la conciênscia que sempre foi pouca.<br />

Havia visto, ao longe, na Praça Kantuta, no bairro <strong>do</strong> Canindé, San Pablo, desta<br />

vez sorrin<strong>do</strong>, saltenha e cerveza com o nobio, carajo, mierda, que inveja, na feira<br />

boliviana <strong>do</strong>s <strong>do</strong>mingos.<br />

Naquele mesmo dia enchi a cara na barraca de Berta Valdés, cerveja, aguardiente,<br />

espetinhos de coração de boi com amen<strong>do</strong>im apimenta<strong>do</strong>, de <strong>do</strong>r amorosa estoy farto,<br />

ancho, que venga o vômito.<br />

Careço devolver ao esgoto as <strong>do</strong>res que só um esgoto é capaz de escutar.<br />

San Pablo tossia como um índio com febre quan<strong>do</strong> Esperanza cruzou de novo a linha<br />

da vida da palma da mão esquerda deste cavaleiro na cartografia mais nervosa, el sub-bairro da<br />

luz vermelha.<br />

Ela agora trafega, menina perdida na selva, na palma da minha mão direita:<br />

77


“Posso tocá-la como o king-kong no alto <strong>do</strong> prédio <strong>do</strong> Banespa, el edifício mais<br />

alto da ciudad?”<br />

78


Se for tocada quem acorda primeiro:<br />

Ela ou este Caballero?<br />

...Ainda é ce<strong>do</strong>, talvez nunca.<br />

Suas botas fazem cócegas numa vicinal, uma estrada perdida de terra da minha mão<br />

izquierda, apenas um desvio para evitar o pedágio da highway da vida, mais uma vereda, ela<br />

agora pega rumo ao norte, rumo ao pulso, ai mi corazón que não entende os ralis amorosos, os<br />

Paris-Dakar da existência, os ralis <strong>do</strong>s Sertões mentais, as buscas com poeira nos olhos a<br />

grudar na remela <strong>do</strong>s olhos <strong>do</strong> cavalo, a cegueira de quem parte atrás de um outro como se o<br />

outro existisse, pelo menos enquanto pontilhão ou pinguela de um metafísico faroeste <strong>do</strong> tédio,<br />

procura-se.<br />

No que vemos a ponte implodir ao longe, dinamitada pelos cantis de sabotagem da<br />

cobardia amorosa que carregamos no coldre junto com as armas para matar ban<strong>do</strong>leiros.<br />

Cap. XXX - De como Esperanza perdeu as graças de latinoaméricas<br />

O Chile, pelo que se sabe, tomou o litoral da Bolívia, depois da Guerra <strong>do</strong><br />

Pacífico, em 1879.<br />

No que Esperanza, longe de ser nascida, já sentia o golpe e voltava para os seus desertos<br />

de vastidões interiores.<br />

O mar, no entanto, sempre esteve presente nos sonhos de Esperanza.<br />

Suas lágrimas também são salgadas.<br />

Devolvam a janela de Esperanza para el mar, señores.<br />

Cap. XXXI - Do Poeta-Hippie-Punk-Rajneesh<br />

“A cidade lateja nos pulmões a efizema <strong>do</strong> inevitável”. O Poeta-Hippie-Punk-Rajneesh<br />

dá uma baforada e solta essa, solene como um bar<strong>do</strong>.<br />

El caballero gosta <strong>do</strong> verso e pensa em roubá-lo: “Bato sempre a carteira lírica<br />

desses vagabun<strong>do</strong>s.”<br />

Seu biógrafo, porém, saca primeiro:<br />

“Quan<strong>do</strong> sei que é bom mesmo, morro com um drinque, um maço de cigarro, uma<br />

carreira montanhosa de caspa <strong>do</strong> capeta, nevada, algumas partidas de sinuca ou crédito na lanhouse<br />

da área, algo que comove um vicia<strong>do</strong> em qualquer coisa”.<br />

79


As vozes da noite não têm <strong>do</strong>no, infinito fabulário.<br />

Se acredito no destino?, me pergunta uma destas assombrações aqui da Rua Augusta,<br />

nuestro Red Light District, que bafejam na nuca de to<strong>do</strong>s interrogações ou sentenças hediondas.<br />

Caguei pro destino.<br />

“E em Shakespeare, pões alguma ficha?”, indaga outro comédia, um sebista de rua<br />

como no meu passa<strong>do</strong>, “ou cagaste pra ele também?”, me desafia o traste, <strong>do</strong>n Bakunin caga<strong>do</strong><br />

e cuspi<strong>do</strong>, que passeia aqui por perto.<br />

O cara sem um dente na boca e pagan<strong>do</strong> de habeas-corpus preventivo de Shakespeare,<br />

essa máquina de fortunas e fábulas, vê se pode?!<br />

Essas assombrações de chinelos devem ser todas reproduções <strong>do</strong> mesmo velho escriba<br />

<strong>do</strong>n Plínio Marcos, gozan<strong>do</strong> da cara de nós to<strong>do</strong>s, gozan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s idiotas que às vezes flanam<br />

neste pueblo como se estivessem em Paris <strong>do</strong> século XIX ou, pior ainda, pagan<strong>do</strong> pau de<br />

maldito de araque.<br />

Cap. XXXII - De la incoveniência de haber nasci<strong>do</strong> ou os sóis sobre<br />

os bifões das putas<br />

“Agora paguem, seus feridentos, seus farrapos, seus <strong>do</strong>rme-sujos, seus baianos, suas<br />

latas de sardinhas ao sol <strong>do</strong>s trópicos, seus paraybas, seus bolivianos, seus paraguayos, seus<br />

peruanos, seus tronchos, seus ponchos, seus malditos, seus caça<strong>do</strong>res de pseu<strong>do</strong>-biografias<br />

para vender filmes inacaba<strong>do</strong>s, vender projetos e livros, morte a to<strong>do</strong>s, a to<strong>do</strong>s os perde<strong>do</strong>res,<br />

de todas as tabernas, porque os perde<strong>do</strong>res de verdade não se vendem, morte a to<strong>do</strong>s que<br />

cismam à noite com as suas desgraças que se multiplicam como pulgas em sujos lençóis de<br />

pensões e aqueles colchões finos quais lâminas de giletes. Fim aos que usam ponchos, seus<br />

80


gauches, cucarachos, seus índios, embolora<strong>do</strong>s, mendigos de olhos baixos e nada altivos,<br />

vende<strong>do</strong>ra de flores letales, putinha <strong>do</strong> lin<strong>do</strong> cabaré da Galega... Bem sabes que depois <strong>do</strong>s 12,<br />

13 já és mulher se estiveres en la calle e sob o olhar bestial <strong>do</strong>s imbecis <strong>do</strong>s homens de sempre,<br />

nunca tiveres pai? Bem sabes que depois que botas o dedinho e assombra a mãe, bem sei que<br />

dás no mínimo para o pastor <strong>do</strong> bairro, para o traficante de la calle, não me enganas, pensas<br />

que vou cair na tua e no truque politicamente correto combina<strong>do</strong> com a polícia, com a ONG,<br />

com o jornalista que finge proteger-te e só enche de sorriso a gerente e a conta bancária dele<br />

miesmo?... Porque a fêmea já nasce com 30 anos para cima, não existe criança-mulher, a<br />

mulher já nasce balzaquiana, minha mãe me teve aos 14, debaixo de um sol para lá de árabe,<br />

dane-se cigana vagaba de Itapevi, essa Andaluzia deslocada aqui na perifa de San Pablo, que<br />

sempre me diz a mesma coisa, “tem uma chica morena que te ama, mas cuida<strong>do</strong> com a loira,<br />

fica esperto também com alguém que te odeia na firma”, por que não adivinhas as mierdas de<br />

tu própria erristência sua Carmen fuleira? Como se eu ainda tivesse trabalho depois <strong>do</strong>s 44,<br />

caguei pro fim <strong>do</strong> trabalho e <strong>do</strong>s dias, fodam-se Marx, o corvo de Pasollini e Hesío<strong>do</strong> juntos na<br />

mesma tumba, morra velhinha escrota e chantagista de esmolas, você também filho da puta<br />

que me mostra essa costura de uma cirurgia na barriga, marketing da miséria, porra, e diz que<br />

precisa de dinheiro para comprar remédio e comida, pois só te encho a mão suja de moedas<br />

porque sei que é para a cachaça, para o conhaque mais ordinário, para a anestesia possível,<br />

aquele conhaque de gengibre que, na companhia da caspa <strong>do</strong> capeta, te esquenta o la<strong>do</strong> ruim<br />

das idéias, ou para a catuaba selvagem <strong>do</strong> pau duro que vai te obrigar a <strong>do</strong>rmir de valete nas<br />

ruas com outros machos, o cachimbo final de crack, tomara, vagabun<strong>do</strong>s, quem manda terem<br />

vidas passadas de nababos, miseráveis, projenetas, conheço vossa raça, seus refugos, tartarugas<br />

ninjas <strong>do</strong> esgoto das saúnas, Mister Subsolo, pensas que reina?, faxineiras de porras dessa rua<br />

gosmenta, criaturas imundas, respeitem e chorem pelo menos as mortes <strong>do</strong>s inocentes policiais<br />

tomba<strong>do</strong>s pelos Gângsteres <strong>do</strong> <strong>Sol</strong> Quadra<strong>do</strong>.<br />

(...)<br />

Vontade de atirar esses ladrilhos soltos nesses cafetões e em toda essa raça imunda,<br />

essas putas escravas que ficam acorrentadas nos porões tão logo os néons de la calle apagam,<br />

ai ficam todas sonsas e santinhas, sonsas, até para ver o sol elas pagam uma taxa a Cristo.<br />

Gosto de vê-las no almoço, às cinco, seis, o crepúsculo incidin<strong>do</strong> sobre a gema <strong>do</strong>s ovões<br />

estrela<strong>do</strong>s sobre os bifões <strong>do</strong>s pratos-feitos, os pê-efes <strong>do</strong>s botecos aqui da área, mesas repletas<br />

<strong>do</strong>s seus possíveis sóis internos, duvi<strong>do</strong> que sóis elas tenham à vera.<br />

Dores baratas que não me comovem mais, de vós me despeço, amém.”<br />

(...)<br />

81


Cap. XXXIII - De uma bala perdida que deseja um refugo humano<br />

na madruga de San Pablo como um demo deseja uma alma<br />

Yo soy una bala perdida envenenada pela pólvora <strong>do</strong> ressentimento e o chumbo <strong>do</strong><br />

fatalismo barato. Yo me multiplico a cada ratatatá, en Colômbia e en Brasil, tanto faz, eu<br />

sou a febre <strong>do</strong> rato, a epidemia, eu vim para acabar com as assombrações que já estão no<br />

lucro sobre a terra.<br />

Existem refugos que chamam, farejam, pedem, rezam involuntariamente por uma<br />

bala perdida.<br />

Acabar com a vida de um refugo é mais que fazer-lhe um favor, é ser um bálsamo,<br />

riscar o fósforo final e forçar a vela já entre as suas mãos postas e duras de quem acabou de<br />

esticar as botas sete-léguas <strong>do</strong>s eternos inadapta<strong>do</strong>s, amém, já vai tarde, antes ele <strong>do</strong> que eu,<br />

que ainda tenho um ego zerinho com trações nas quatro rodas da picape.<br />

Cap. XXXIV - Das Passagens ou Reformar calçadas é enterrar a memória<br />

<strong>do</strong>s nossos passos<br />

Emputeço, digo, o cavaleiro, quan<strong>do</strong> um alcaide muda os ladrilhos das calçadas, como<br />

acontece neste exato momento <strong>do</strong> fim da noite em que os operários fazem cara de coitadinhos,<br />

cara de desabrigo, mortos de inveja das meninas da Rua Augusta, que ganham em uma foda<br />

mal-dada de meia hora os copeques que eles só amealham em uma quinzena.<br />

“Pelo menos trabalhan<strong>do</strong> aqui tenho um estoque de punhetas para o ano inteiro”, diz um<br />

crápula, macacão chamativo azul e amarelo com sigla de uma dessas empreiteiras que<br />

superfaturam até poema concreto de Augusto de Campos em São Paulo, “e, quem sabe, uma<br />

loira dessas não me faz uma caridade?!”<br />

Ri, macaco, na evolução da espécie nunca serás um King Kong, no máximo chegarás a<br />

uma Monga no mais fajuto jogo <strong>do</strong>s espelhos.<br />

“Caridade de cu é rola, te emenda, baiano”, vejo o balãozinho entre a cabeça da<br />

puta e a lua que míngua to<strong>do</strong>s os sonhos proletários e torna inviável até mesmo o capital<br />

de enre<strong>do</strong>s para as punhetas.<br />

“Reformar calçadas é enterrar a memória <strong>do</strong>s nossos passos errantes, nossas passagens”,<br />

completa na minha oiça esquerda um zumbi<strong>do</strong>, o zumbi<strong>do</strong> número 1, a primeira<br />

antisonata que gru<strong>do</strong>u no tímpano esquer<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> ouvi o primeiro Frank Zappa. Esse<br />

zumbi<strong>do</strong>, entre os muitos que reverberam na pista <strong>do</strong> meu cérebro desde os anos 1970, é o que<br />

comenta ou sopra acerca <strong>do</strong>s acontecimentos <strong>do</strong>s arre<strong>do</strong>res, um narra<strong>do</strong>r que me desfoca das<br />

teorias obsessivas e <strong>do</strong>s desejos apodreci<strong>do</strong>s e pretensiosamente épicos, gracias. É o zumbi<strong>do</strong><br />

mais reles, o zumbi<strong>do</strong> baixo, que pode seguir qualquer um cavaleiro que flana, como se numa<br />

noite de inverno um <strong>do</strong>ce pangaré paraguayo com um i-pod de rock´n´roll autêntico no ouvi<strong>do</strong><br />

invocasse o demo ou Iggy Pop.<br />

82


Até achei que fosse Don Isaías, que é outra das vozes guardadas na minha cabeça como<br />

abelhas operárias num cortiço aperta<strong>do</strong> de madeira da mais antiga memória de mi abuellito <strong>do</strong><br />

sitío das Cobras. Isaías sempre passa por aqui, mendigo altivo que presenteia as moças com<br />

raridades <strong>do</strong> lixo, que cata os restos <strong>do</strong>s potinhos de cremes de beleza e dá às mulheres que<br />

vivem ou moram en la calle como ele, que classe esse fodi<strong>do</strong>. Acha restos de Lancômes de<br />

madames e outros remédios modernos para o rosto das mulheres e nesse escambo consegue<br />

dengos quase Ovídios.<br />

Cap. XXXV - De uns misteriosos sulcos de fabulosos pés no cimento novo<br />

da calçada<br />

O Santo Graal <strong>do</strong>s pés, os pés, solas e de<strong>do</strong>s, nervuras, os pés cimenta<strong>do</strong>s de todas as<br />

buscas da floresta, os pés inteiros naqueles sulcos para um ensaio de obra-prima, litogravura <strong>do</strong><br />

acaso e da sorte.<br />

Parecem uns pés em fuga, rapidamente inclina<strong>do</strong>s, unhas perfeitas de manicures baratas,<br />

vincos de muitas histórias pendentes, classe.<br />

Um monumento aos eternos flana<strong>do</strong>res de ofício, um poema cimenta<strong>do</strong> para to<strong>do</strong>s os<br />

<strong>do</strong>ns juans e seus amores de passagens.<br />

Os céus derramam granizo.<br />

Os sulcos viram duas fôrmas de gelo.<br />

O cavaleiro solitário bebe o mais senti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s uiscões na vida de um drugstore caubói.<br />

Play again, Johnny Cash:<br />

“Cry, cry, cry...”<br />

Um copo gigante com um pezinho de gelo boian<strong>do</strong> dentro.<br />

O uiscão acaba e o pezinho esquer<strong>do</strong> não derrete.<br />

Mais um, duplo, por supuesto.<br />

Os de<strong>do</strong>s estão intactos sob aquela luz fluorescente levemente esverdeada.<br />

O terceiro uísque e apenas o esmalte vermelho parece fazer um lento “s” até o<br />

fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> copo.<br />

Várias putas tiram as suas sandálias transparentes e testam o pé esquer<strong>do</strong> no buraco.<br />

Noites sem fim, pé de lótus, uma mestiça vinda <strong>do</strong> rumo <strong>do</strong> bairro da Liberdade, cria-se a<br />

lenda, pisou naquele cimento fresco da calçada e hoje aqueles sulcos obram milagres a pampa.<br />

Donde tal mestiça, que havia migra<strong>do</strong> para o reino <strong>do</strong> vai-sem-volta na última casa<br />

de ópio <strong>do</strong> nuestro bairro oriental de San Pablo, mereceu a canonização das ruas como<br />

protetora <strong>do</strong>s zumbis e vagabun<strong>do</strong>s deste pueblo, como atesta o parecer <strong>do</strong>s desalma<strong>do</strong>s da<br />

taberna <strong>do</strong> sr. Knut.<br />

83


Miss <strong>Sol</strong>edad era o batismo da mestiça, rainha de karaokês e sinucas perdidas, musa <strong>do</strong>s<br />

subsolos possíveis neste mun<strong>do</strong> tão-somente de rasos e ranhuras, tocava de ouvi<strong>do</strong> la canción<br />

desperada de to<strong>do</strong>s os que vagam em busca de um senti<strong>do</strong> para este faroeste sem <strong>do</strong>n Sergio<br />

Leone como guia-mor <strong>do</strong>s amores acha<strong>do</strong>s, balas perdidas e da poeira <strong>do</strong> deserto que cospem<br />

las chicas nervosas.<br />

Miss <strong>Sol</strong>edad sempre deu um nó cego no cabeçote deste biógrafo oficial de las<br />

assombraciones de la noche.<br />

Miss <strong>Sol</strong>edad era uma típica bipolar apaixonante, mucho mais que isso, capaz de dar<br />

um nó em Nieztsche e ainda bailar um drum´m´bass - a trilha sonora daquele tempo, os 1990,<br />

o tempo em que nos conhecemos - como nenhuma outra fêmea daquela espécie.<br />

Vezes beijo,<br />

Vezes coice...<br />

Cap. XXXVI - Donde a litogravura <strong>do</strong>s pés na calçada vira templo<br />

de romaria da cidade<br />

Não demorou sequer duas luas cheias para que o local daqueles sulcos se transformasse<br />

em um sítio de romaria e milagres.<br />

A mulher que conseguisse encaixar os seus pezinhos à imagem e semelhança estava<br />

feita para o resto da vida. Seria capaz de ver to<strong>do</strong>s os homens e também todas as mulheres, se<br />

assim desejasse, aos seus pés.<br />

Os mais empederni<strong>do</strong>s cavaleiros <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s pela cartilha de <strong>do</strong>n Juan não passariam de<br />

mansos cornos periquitosos ao inteiro dispor. Os mais sonha<strong>do</strong>res se transformariam nos mais<br />

práticos troca<strong>do</strong>res de lâmpadas e chuveiros <strong>do</strong> oeste. Os mais entedia<strong>do</strong>s acordariam solícitos<br />

e bobos a dizerem diminutivos idiotas com queijos saudáveis e derreti<strong>do</strong>s nos próximos cafés<br />

da manhã.<br />

Periquitosos corazones chilrea<strong>do</strong>res...<br />

Cap. XXXVII - Do redemoinho de mantras, Esperanza<br />

Buenas noche, Esperanza, ela seguiu, um redemoinho de mantras nos ouvi<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s<br />

vagabun<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>s cavaleiros delirantes, como se tirasse a sorte de to<strong>do</strong>s nós enquanto soprava<br />

um verso para cada homem sob o sereno de la calle. Ela sabia, onde estivesse a essa altura, que<br />

o grande segre<strong>do</strong> da humanidade continua e continuava sen<strong>do</strong> solamente este:<br />

O abafa<strong>do</strong> chá de sumiço.<br />

84


“A cidade tosse como um índio com febre”, ela disse, língua trôpega a obnubilar-me,<br />

mal um beijo, partiu-se, um cheiro de cocaína vagabunda nas narinas, raspa de parede, longe<br />

de ser o pó mais bíblico que sai da sua Bolívia querida, os cabelos cheiran<strong>do</strong> a maconha das<br />

beiradas <strong>do</strong> Rio São Francisco, alma comovente por flores e erros, pele riscada à faca e agulhas<br />

de costura das fabriquetas coreanas <strong>do</strong> bairro <strong>do</strong> Bom Retiro.<br />

“Eu preciso cortar os cabelos da minha alma”, disse mais adiante para um rapaz<br />

xamânico de mesma calle.<br />

Feras enfeitavam-lhe as sobrancelhas.<br />

Os olhos obedeciam ao corte clássico que nos faz pensar que os orientais deram mesmo<br />

origem às tribos sul-americanas. Nada me faz cair nas modernas teorias, fico com a tese <strong>do</strong><br />

estreito de Beiring, embora sempre tenha coisa nova sobre tal assunto, ah..., mas os olhos não<br />

negam, o corte, o desenho, que classe, parecem assim uma pincelada de um surrealista ou<br />

propriamente o corte da navalha <strong>do</strong> cão andaluz. No olho, lâmina que corta o rio das<br />

lágrimas como quem inventa o caminho sobre o Mar Vermelho.<br />

Quan<strong>do</strong> montei no cavalo, Parque da Luz, avistei Esperanza, já ao longe, era uma onça<br />

que saltava sobre os veículos até chegar à toca, capôs amassa<strong>do</strong>s pelos joelhos da beleza.<br />

85


Cap. XXXVIII - Donde o cavalo <strong>do</strong> supuesto cavaleiro anda emparelha<strong>do</strong><br />

ao fusca de Mr. Abelha<br />

Só os cavaleiros que perdem diariamente desconhecem o fracasso, meu anjo, vamos a la<br />

luna <strong>do</strong>mingo? Só os cavaleiros que cospem os dentes fora como boxeurs derrota<strong>do</strong>s e seguem,<br />

seguem nos seus faroestes particulares, os saloons obscuros que cada hombre esconde <strong>do</strong> outro<br />

hombre, os sótãos onde as ratazanas, os inimigos e as mulheres fazem a festa sobre os farelos<br />

das nossas fraquezas.<br />

Foi o que pensei, assombra<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> deslizei o copo sobre o balcão de fórmica<br />

vermelho imitan<strong>do</strong> o Johnny Guittar, um western no qual as mulheres mandam, aquela fêmea<br />

num poder sobre to<strong>do</strong>s os machos recebe os inimigos tocan<strong>do</strong> piano, que classe, que belo<br />

vesti<strong>do</strong>, senhores.<br />

Desço a Avenida Rebouças, não, acho que a Cardeal Arcoverde, pueblo de San Pablo,<br />

deserto de uma noite fatídica, emparelho meu cavalo ao fusca azul de Mr. Abelha, ouvin<strong>do</strong> Abba<br />

Zabba, música 8 de uma fita cassete <strong>do</strong> Captain Beefheart, os mortos ali das cercanias, os mortos<br />

setentões, digo, riram das nossas caras nervosas, como tem cemitérios nas nuestras vistas.<br />

Uma faixa amarela anunciava promoções de túmulos num <strong>do</strong>s campos <strong>do</strong>s mortos, não<br />

no cemitério de luxo, o <strong>do</strong> Senhor Redenctor, decente, por supuesto, limpo, suaves prestações,<br />

morte a crédito, varejões que nos esperam além, muito além da marmota física.<br />

Vamos nessa, <strong>do</strong>n Zangóvsky?<br />

Com seu sotaque Mooca-roots Mr. Abelha disse: “tô fora”, benzeu-se.<br />

“Vamos a um baile de bacanas, champa, canapés e belas buças”, disse ele, “não para o<br />

nosso bico”, completou o chapa. “Ah, danem-se, que guardem para os vermes burgueses de<br />

outros cemitérios e catacumbas.”<br />

86


Cap. XXXIX - No que Chivas relincha seus bati<strong>do</strong>s mantras noite alta:<br />

Quan<strong>do</strong> a vida dói,<br />

drinque caubói.<br />

Cap. XL - Da ilusão <strong>do</strong> pangaré que se diverte com guapíssima égua<br />

Não fosse uma cena que o deixou entre a pasmaceira e o alumbramento, o cavaleiro<br />

continuaria iludi<strong>do</strong> que havia recupera<strong>do</strong> o seu Chivas-panga.<br />

Donde o verdadeiro e legítimo Chivas com o seu potentoso membro, a sombra <strong>do</strong><br />

membro fazia cinema em preto e branco no prédio vizinho e este era o ângulo pelo qual este<br />

biógrafo de almas sebosas o avistara, penetrava de forma selvagem, na égua militar por<br />

quem arriaria as quatro patas civis.<br />

O membro priápico atravessava uns <strong>do</strong>is, três edifícios com a sua sombra.<br />

As cortinas se balançavam todas nos arre<strong>do</strong>res.<br />

Mal-assombroooooooo.<br />

Aquela pica gigante era capaz de preencher o buraco <strong>do</strong> metrô da Sé, o jardim <strong>do</strong>s<br />

caminhos que se bifurcam neste pueblo de Careçolândia <strong>do</strong> Oeste Perdi<strong>do</strong> y outros Serafins<br />

y Tamanduateís.<br />

A égua remexia as ancas como quem dançava um imponente e dramático flamenco<br />

saí<strong>do</strong> das miraculosas cordas vocales de Camarón de la Isla.<br />

Agora a mais safada e fuleira das cúmbias.<br />

Agora de novo mais lento, uma guarânia com a pica ritmada qual a noite morna <strong>do</strong><br />

lago azul de Yparacai, a derramar o caudaloso gozo de todas las galáxias.<br />

Agora Chivas sussurrava ao ouvi<strong>do</strong> da égua:<br />

87


“Tenta desenhar um oito com o rabo na vara”.<br />

Cap. XLI - Donde um dublê de Moisés surfava sobre as ondas gigantes da<br />

Barra Funda<br />

Quan<strong>do</strong> o cavaleiro solitário dizia “não está baten<strong>do</strong>”, confesso, eu saía de perto,<br />

distanciamento de um razoável biógrafo.<br />

Daí vinha merda, a mesma boa merda que dá os férteis estrumes de onde emergem os<br />

mais nobres cogumelos <strong>do</strong>s currais da bida.<br />

Era a senha.<br />

“Não está baten<strong>do</strong>”.<br />

Como a da maioria <strong>do</strong>s desalma<strong>do</strong>s deste pueblo.<br />

“Não está baten<strong>do</strong>...”<br />

Donde vemos a criatura surfan<strong>do</strong> sobre uma chuvinha de nada na Barra Funda, bairro<br />

deste pueblo, a dizer, melhor, a berrar:<br />

“Eu sou o Moiséssss”.<br />

“Eu sou o Moisés da Barra Funda!!!”<br />

Tu<strong>do</strong> bem que tinha ouvi<strong>do</strong> uma banda uruguaya tocan<strong>do</strong> um punk-rock tenro como uma<br />

perna dianteira de carneiro sem molhinhos aviada<strong>do</strong>s, ali numa moderna taberna das cercanias,<br />

Casa Belfiori, ouvira uma banda de los niños de infâncias difíceis, los olvida<strong>do</strong>s, por supuesto.<br />

Para um hombre com fome de viver, aquele concierto saiu como uma frase de <strong>do</strong>n Juan<br />

Carlos Onetti no baço.<br />

“Eu sou o Moisés...”<br />

Crente que caminhava sobre as águas que mal encobriam os paralelepípe<strong>do</strong>s.<br />

Jogou las alpercatas de Lampião no infierno e berrou mais outra vez:<br />

“Yo soy Moisés da Barra Fundaaaaaaaa”.<br />

Ninguém ampara o cavaleiro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> delirante.<br />

Este biógrafo, de forma muy irresponsable, tomara um áci<strong>do</strong> ou uma dessas pastilhas<br />

modernas - não havia encontra<strong>do</strong> mesmo, por impossibilidades espirituais, com o cavaleiro<br />

delirante <strong>do</strong>s agripínicos quintales e meias-águas telhas depois.<br />

El biógrafo não puede ter intimidades <strong>do</strong> gênero, vivemos o tempo <strong>do</strong> nãoenvolvimento,<br />

por supuesto, los tempos friacos.<br />

Tempos de imparcialidades supremas.<br />

Tempos de isopor, meninos.<br />

El biógrafo és un ser neutro, não está mais aqui quem estava coxixan<strong>do</strong> opiniones,<br />

hablan<strong>do</strong>, ainda bem que las testemunhas tambíem estabam a cantar “você está pensan<strong>do</strong> que<br />

soy loki, bicho?” aquela <strong>do</strong> Arnal<strong>do</strong> Baptista - vide los Mutantes.<br />

Don Melqui de la Vila Roaniza tirava abelhas da moita black power... Sua distinta dama<br />

88


londrinense, Miss P., queria pescar pessoas nos afunda<strong>do</strong>s mares, “na segunda pessoa <strong>do</strong><br />

plural”, ela dizia, “anzóis a laser, please.”<br />

Miss Cara de Formiga, guapíssima, Diós, ria disso tu<strong>do</strong> e navegava sobre los chinelos<br />

<strong>do</strong> vagabun<strong>do</strong> em manobras mais terríveis ainda, la sofista prateada, por supuesto.<br />

Acontece que o biógrafo és um ser neutro, um narra<strong>do</strong>r tão gela<strong>do</strong> quanto o coração de<br />

um urso de pelúcia das nuestras inventadas Sibérias particularíssimas, aqueles ursos ama<strong>do</strong>s<br />

pelas putanas de la calle <strong>do</strong> infierno <strong>do</strong> centro desta e de otras Careçolândias perdidas de lo<br />

miesmo oeste.<br />

Um homem que conta jamais pode sequer embriagar-se com o seu material de estu<strong>do</strong>,<br />

refletia o biógrafo-borracho.<br />

Tiene que ser austero, neutro, idiota e metafísico como um gato, frio, jornalístico,<br />

por supuesto, choramingava o demo, com las manos e la lengua amarrada para los<br />

pensamientos aliteratosos.<br />

Sabe aquela dupla caipiro-sartreana O Ser e o Nada? Assim tiene que ser, asi era el<br />

Caballero e el diablo.<br />

E apagamos to<strong>do</strong>s, para suerte del biógrafo-detetive, to<strong>do</strong>s caíram desmemoria<strong>do</strong>s,<br />

por supuesto.<br />

Non hay banda...<br />

No habia nada!!!<br />

“Vocês pensam que estão nos anos 1970, amigos fuleiros?” Chivas relincha ao longe<br />

vesti<strong>do</strong> com os seus mantos colori<strong>do</strong>s.<br />

Chivas é pangaré mas tambiém siente saudade nas quatro patas infernales multiplicadas<br />

como emboás gigantes.<br />

Há quanto tempo não ficamos juntos reuni<strong>do</strong>s numa pessoa só?, alguém levanta o braço<br />

e diz, sobacos já desprovi<strong>do</strong>s de outros pêlos, acorda, menina, ri Arnal<strong>do</strong> Baptista, denuevo,“eu<br />

vou voltar pra Cantareiraaaaaa...”.<br />

Onda.<br />

Moisés da Barra Funda, sim, ele ainda surfava sobre as águas sujas del pueblo, las águas<br />

que desaguariam, dali a pouco, sobre os ratos <strong>do</strong>s tietês y tamanduateís...<br />

“Não está baten<strong>do</strong> nada”, dizia o cavaleiro.<br />

Como escrever a biografia da criatura, pensava o biógrafo, que, sabe-se lá, fora<br />

engana<strong>do</strong> pelo entrevista<strong>do</strong> e engolira mais pastilhas coloridas ainda para a fuga inventada.<br />

89


Cap. XLII - De un muambeiro corazón em branco e preto ou<br />

Jim Jarmusch na direção de nuestras bidas de sueños não-tributáveis<br />

“Pai, ou o que quer que sejas, não sei mais se estás por perto ou sobre as águas, mas o<br />

que tu achas de saxofone no rock´n´roll?”, perguntou la niña Viridiana, agora de volta no meu<br />

sueño em um hotelzinho barato da Tríplice Fronteira, para onde levei apenas o sonha<strong>do</strong> e<br />

jamais o vivi<strong>do</strong>, Foz <strong>do</strong> Iguazu, por supuesto compromisso de cambiar sonhos por vícios ou o<br />

contrário, dane-me por supuesto.<br />

“Pai, não morra tão ce<strong>do</strong> como o titio Mark Sandman!”<br />

Donde tiraste esta idéia, creeeeeeeeeeeeeeeeeeannnnnça?, acabei de comprar um nuevo<br />

corazón en Ciudad del Este/Taiwan, un corazón a válvulas, como os das antigas tevês em preto<br />

& branco, minha filha, pode obscurecer, obnubilar-se, enfim, fuder-se a qualquer hora.<br />

“Me<strong>do</strong>, pai..., essas coisas”.<br />

Me<strong>do</strong> é coisa de velho, mi hija, vamos a bailar que hoje mais uma vez tu padre<br />

renasceu, antes <strong>do</strong>s gametas cósmicos se dissiparem no lilás vea<strong>do</strong>so <strong>do</strong> lusco-fusco.<br />

Hija, el passa<strong>do</strong> das vávulas, <strong>do</strong> tempo em que dr. Smith procurava o seu espacio, ô <strong>do</strong>r,<br />

ô <strong>do</strong>r, larairará...<br />

90


PARTE III - Donde a vida era como se um grande pintor tivesse mergulha<strong>do</strong><br />

seu pincel na escuridão <strong>do</strong> terremoto e <strong>do</strong> eclipse<br />

91


Cap. I - Do observatório <strong>do</strong>s roe<strong>do</strong>res<br />

Cansa<strong>do</strong> de tantas abstrações noturnas, este biógrafo voltou para a sua diversão zen<br />

predileta: observar tranqüilamente os ratos gigantes da beira <strong>do</strong> Tietê, o rio desta aldeia que<br />

ali escoa suas horas perdidas.<br />

Ele cataloga os ratos, os gabirus, as ratazanas que põem as oiças a escutar o<br />

gemi<strong>do</strong> <strong>do</strong> progresso que range nas margens sobre caminhões e caminhoneiros que<br />

também são rios-correntes de histórias podres sobre muitas rodas levadas adiante até<br />

<strong>do</strong>nde ninguém sabe mais da vista.<br />

Chegou o desalma<strong>do</strong> biógrafo a liderar um grupo, prefiro chamá-lo de seita, <strong>do</strong>nde<br />

chicas y kabrones ficavam horas a mirar os ratos, a fotografá-los, a espiá-los num<br />

voyeurismo venenoso, os gestos, os dramas, a vertigem...<br />

Cap. II - Do punheteiro com Alzheimer e/ou Ninguém morre de amor<br />

nos trópicos, de nuevo<br />

Derramei uma para o santo, o cavaleiro disse outro <strong>do</strong>s seus mantras: NINGUÉM<br />

MORRE DE AMOR NOS TRÓPICOS. Sim, agora o cavaleiro, em voz alta, diante <strong>do</strong> sorriso<br />

enferruja<strong>do</strong> de compaixão de algumas vacas que já não vêem el caballero solitário sob poeira<br />

nocturna das mesmas pradarias onde reinou quan<strong>do</strong> tinha las platas, graças aos golpes de<br />

contrabandista de cigarros de Ciudad del Este, crimes primários enquanto a<strong>do</strong>rmecia sob o<br />

espírito de terrorista a<strong>do</strong>rmerci<strong>do</strong>.<br />

O cavaleiro Fodasno já tentou de tu<strong>do</strong>, inclusive mu<strong>do</strong>u o seu nome sete vezes, como<br />

os dias da semana: lunes, martes, miércoles...<br />

Pena que não se recorda <strong>do</strong> último batismo.<br />

Donde tem que carregar a pantagruélica sina fodástica y fodesnosa.<br />

Foi também, este mais ou menos ilustre cavaleiro, um velhaco sebista que aplicava golpes<br />

em lindas viúvas que não tinham menor noção <strong>do</strong> valor de suas caras bibliotecas enlutadas.<br />

Um minuto de silêncio para uma negra viúva capaz de fazer das coroas de flores os<br />

bosques mais anima<strong>do</strong>s <strong>do</strong> planeta selvagem.<br />

92


Nunca pergunte “o que fazes, cavaleiro?”<br />

Mas por que essa confusão justo no velório?<br />

Tem gente que é capaz de indagar sobre isso até mesmo diante <strong>do</strong>s olhos de um defunto<br />

ataca<strong>do</strong> pelas traças <strong>do</strong>s seus preciosos livros e gorgonzolas verminosos no juízo.<br />

Fodasno pouco sabe de queijos e vermes. Coita<strong>do</strong> de Fodasno, que nem nome tem e<br />

muito menos procura batistérios perdi<strong>do</strong>s na selva.<br />

Fodasno já fez e faz de tu<strong>do</strong>, costura para fora, homem de encomendas, mortes a<br />

crédito, señor de patrones muchos, valas comuns para onde iremos to<strong>do</strong>s, mesmo as peles<br />

tratadas com os mejores cremes que também serão carcomidas verminosamente, com ou sem<br />

terra sobre os olhos, muito além <strong>do</strong> vidro <strong>do</strong> paletó de madeira.<br />

Si, podemos também ser lindamente moí<strong>do</strong>s como as pimentas-<strong>do</strong>-reino que despertaram<br />

os navegantes para o Caminho das Índias perdidas que deram nas latinoaméricas de sangue<br />

quentíssimo, moí<strong>do</strong>s, crema<strong>do</strong>s, joga<strong>do</strong>s aos mares ou cheira<strong>do</strong>s como a caspa <strong>do</strong> capeta pelos<br />

nuestros próprios parentes vicia<strong>do</strong>s nas indigestas das gentes capazes das artes peixeirais.<br />

Fodasno inclusive já cravou a sua espada na maioria <strong>do</strong>s desavisa<strong>do</strong>s que lhe fazem essa<br />

pergunta incoveniente nos tempos de refugos:<br />

“De preferência uma rápida estocada no sovaco”, confessa o cavaleiro.<br />

“Para morrer sorrin<strong>do</strong>, por supuesto, é justo, justíssimo”.<br />

Mas eis que numa noite fria de fogueira e cachaça, numa madruga em que tocaram<br />

fogo em mendigos também sem nome, Fodasno, nome de fantasia outorga<strong>do</strong> por este <strong>do</strong>n<br />

Augusto Sombra que lhes conta a mierda finale, missão de to<strong>do</strong> biógrafo, recuerda mais<br />

ou menos seu batismo e vaga história.<br />

Porras...<br />

Assim foi voltan<strong>do</strong> a memória perdida.<br />

Seu nome era Raúl Porras Barrenechea.<br />

Será mesmo?<br />

O cavaleiro blefa.<br />

93


O velhaco sebista <strong>do</strong> qual tratamos anteriormente não era assim tão expert, mas tinha a<br />

manha da pesquisa, igual um pesca<strong>do</strong>r que descobre, pelo cheiro, o valor <strong>do</strong> peixe grande, mas<br />

juro que o cavaleiro trocaria aquelas obras pelas bucetas enlutadas todinhas. A perversão <strong>do</strong><br />

cavaleiro era vê-las, ainda em vestes negras, fodam-se todas as capas duras e os manuscritos<br />

raros <strong>do</strong> Mar Morto, adiós Alexandrias perdidas. Se os tesouros estão no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s oceanos,<br />

eu estou ao rés <strong>do</strong> chão babilônico de las buças de la calle.<br />

94


Pena que a síndrome de Korsakov desligara o cavaleiro <strong>do</strong> seu centro nervoso <strong>do</strong> desejo,<br />

o cavaleiro, podemos dizer assim, tinha um certo Alzheimer punhetístico.<br />

Uma vez, quase cometera o suicídio por não se recordar de umas coxas magníficas que<br />

acabara de ver na esquina, <strong>do</strong>nde suas masturbaciones eram verdadeiras torturas, papéis<br />

avulsos, fragmentos, partes pelo to<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> lembrava <strong>do</strong> rosto não lembrava <strong>do</strong> pescoço para<br />

baixo e vice-versa, um castigo.<br />

Esqueci<strong>do</strong> por que coxas?<br />

Coxas por que esqueci<strong>do</strong>?<br />

Cap. III - Das mulheres que roubam a memória de outras mujeres<br />

Algumas mujeres aparecem nas nuestras bidas não para comer nuestros ojos, como los<br />

cuervos, pero fazem algo pior ainda: nos levam a memória de todas las outras mulheres,<br />

inclusive das que acabam de passear na nossa frente, num ritual para lá de to<strong>do</strong>s os catimbós e<br />

antologias de ressacas.<br />

“A cidade tosse como um índio com febre.”<br />

Não faço a menor idéia porque e como Esperanza sussurrou justamente aquele verso e<br />

seguiu faceira como quem negocia almas na balança comercial mais favorable de las<br />

maldiciones.<br />

Talvez nunca tenha li<strong>do</strong> nada na vida, melhor para ela, só há beleza e susto numa certa<br />

cota de treva e ignorância.<br />

95


Lá estão, deixa eu limpar meus óculos, lá estão, como é linda, Esperanza, ela, colada ao<br />

poeta Roberto Piva e seu amigo Píer Paolo, esquina <strong>do</strong> bairro de Santa Cecília, caras de<br />

formigas de tanto <strong>do</strong>ce comerem, <strong>do</strong>ces que precedem quaisquer sobremesas.<br />

Escutas o que diz o poeta, meu anjo:<br />

“Não acredito na dialética, o que existe são oposições irreconciliáveis”.<br />

É o que te digo, menina, só há beleza nos ofícios que não arrotam o ovo podre da bufa<br />

<strong>do</strong> ego, como na lida de um açougueiro, por exemplo, facão em punho, o corte nada<br />

epistemológico, pernil traseiro ou dianteiro de um cabrito, coxão mole, maminha, picanha,<br />

coração se for possível, chorizo, como nos recomenda o açougueiro <strong>do</strong>n Marcelito Coppola,<br />

tradicionalíssimo homem de carnes da Baixa Calábria <strong>do</strong>ravante instalada em San Pablo.<br />

Cap. IV - No que <strong>do</strong>n Rasteira...<br />

“A cidade tosse como um índio com febre”.<br />

Foi o que disse, pelo menos foi o que ficou dependura<strong>do</strong> no último fio da baba da<br />

memória naquela madruga, a baba <strong>do</strong>s que vão sem volta... korsakovinianos no último.<br />

Meu pícaro predileto e fraudulento, meu velho <strong>do</strong>n Rasteira, sempre por perto, soprou:<br />

“não caia nessa, usted tira poesia de onde não deve, uma queda é uma queda, pronto, por que<br />

vês tanto romantismo nestes ninjas, nestes seres sujos, nestes ratos e travecos, ó santo<br />

biógrafo, pelamor de Santo Agostinho!”<br />

“São apenas perde<strong>do</strong>res babilônicos, refugos, pronto, seu pícaro de mierda, refugos,<br />

vidas desperdiçadas, acampamentos de refugia<strong>do</strong>s urbanos. Levanta-te e anda, meu bom<br />

Lázaro, a vida é como andar pela primeira vez de carrinho de rolimã, de skate ou de<br />

bicicleta”, tirou onda com a minha cara, e ainda fez um discurso contra as escoriações<br />

primárias <strong>do</strong> amor, como as tais quedas iniciais e cimentosas, sabia que, na buena, residia ai o<br />

meu câncer de estômago, porque to<strong>do</strong> câncer é de estômago, ali a<strong>do</strong>nde o boxeur <strong>do</strong> destino<br />

solta seus uppers mortais para nuestras <strong>do</strong>lores na corda, mas ainda não abra contagem, amor,<br />

estarei de vuelta, nem que seja para o beijo final na lona.<br />

96


“NINGUÉM MORRE DE AMOR NOS TRÓPICOS”, grasnou como um corvo<br />

miserável, de nuevo, Lazarilho, como se cagasse de risa a imitar a minha voz no bosque, antes<br />

<strong>do</strong>s pássaros famintos deceparem a espiga da boca.<br />

Quantas aguardentes por esta frase, <strong>do</strong>n Rasta?, o cavaleiro berrou, nervoso, intimou o<br />

vagaba de quem costumava saquear a diligência sempre lotada de sábios aforismos e boutades<br />

e saía a dizer por aí como se fossem as melhores patentes e lembranças empoeiradas <strong>do</strong> vento<br />

maldito, a dizer até para hombres, não solamente para hoder mujeres, que és o grande motivo<br />

de la vivência.<br />

“A frase é tua, maconheiro desmemoria<strong>do</strong>”, ele quis agradar o seu viejo biógrafo de<br />

tantas noches, mesmo assim me levou de lambuja <strong>do</strong>is comprimi<strong>do</strong>s de anfetamina, um patuá<br />

de haxixe, matou um litro de catuaba selbaje, meu giz de sinuca importa<strong>do</strong> de la máfia -<br />

presente <strong>do</strong> amigo Don Campos Viejo - e algunas platas no más.<br />

Don Rasteira é uma dessas assombrações permanentes da viagem ao fim da noite<br />

<strong>do</strong> deserto.<br />

Um desses fodi<strong>do</strong>s de vidas passadas que voltam aos romances vivos das esquinas<br />

cheios de pulgas moralistas no capote, tocam no teu ombro, ditam, não querem nem saber<br />

se os losers, os tronchos, os desajusta<strong>do</strong>s de hoje também são dignos ou, no mínimo,<br />

idiotas nostálgicos.<br />

A merda é que são esses perde<strong>do</strong>res de nascença que viram nosso coro grego.<br />

Quan<strong>do</strong> conheci Don Rasteira, num concierto de um trova<strong>do</strong>r punk-brega <strong>do</strong>s<br />

charcos gaúchos, <strong>do</strong>ravante conheci<strong>do</strong> como Pablo, o cara costumava ser menos xarope e<br />

mais infra-realista:<br />

“De que um homem precisa nesse mun<strong>do</strong>? Talvez uma capa, uma espada e um lenço<br />

vermelho para enxugar as lágrimas, mesmo aquelas lágrimas mais vagabundas, o gol contra <strong>do</strong><br />

zagueiro com Alzheimer que cabeceia, de propósito, contra as próprias redes aos 49 <strong>do</strong><br />

segun<strong>do</strong> tempo, a <strong>do</strong>r-de-corno que não passa com cachaça, bagaceira ou aspirina, uma topada<br />

numa pedra de uma freguesia aparentemente sem obstáculos, aquela pedra que já nasce dentro<br />

<strong>do</strong> branco <strong>do</strong> olho, de gesso, gesso, ou aquela pedra fundamental que se adquire no primeiro<br />

porre, a da sabe<strong>do</strong>ria, que vai te ensinar a razão da queda para to<strong>do</strong> o sempre.”<br />

97


Cap. V - Donde conhecemos <strong>do</strong>n Leseira de las Bagas<br />

Testemunha da prosa alheia e fila<strong>do</strong>r-mor das drogas legais e ilegais da cidade, <strong>do</strong>n Leseira<br />

de las Bagas disputava com ele, <strong>do</strong>n Rasteira, a atenção das damas da noite e <strong>do</strong>s demais refugos e<br />

assombrações:<br />

“Si, si, una capa, una espada, justo, pero carecemos de algo más, alguna cosita de nada<br />

para alterar la consciência, desde que não a llamem de droga, non, mais apropria<strong>do</strong> batizá-la,<br />

mira que vierbo apropria<strong>do</strong>, batizá-la tão-somente EXCREMENTO DOS DEUSES INCAS,<br />

cogumelo da merda <strong>do</strong>s bois santos e onomatopéicos <strong>do</strong>s currais <strong>do</strong>s Grandes Sertões de<br />

Manuelzão, Dia<strong>do</strong>rins e arre<strong>do</strong>res, chá-de-zabumba <strong>do</strong>s índios Kariris, cabrobrós-rootscigarrets,<br />

jurubebas-da-flora-intestinale, salineiras aguardentes e bagaceiras d´além-mares,<br />

cocaine-blues, Johnny Cash y Lirinhas de cordéis Y fuegos tantos, barbitúricos-corazones, Miss<br />

Lexotans, tarjas pretas, florais del diablo, sangre <strong>do</strong> divino, peyotes-castañedas, viagens sempre<br />

são buenas, pupilas dilatadas, a morfina de Tristessa minha índia mexicana”.<br />

Rimos e morremos com o que tínhamos nos alforjes: uma farinha da quinta <strong>do</strong>s<br />

infernos, um haxixe incapaz de alterar a consciência de um camun<strong>do</strong>ngo vicia<strong>do</strong> e treina<strong>do</strong><br />

para cobaia-modelo, umas bagas, uns tarjas pretas de contraban<strong>do</strong>, um skank de Ciudad del<br />

Este, mi pátria fundamentalista...<br />

Cap. VI - Do áci<strong>do</strong> chama<strong>do</strong> Gogol<br />

Agora que minha filha Viridiana descobriu to<strong>do</strong> mistério, pelas trepidações e falhas<br />

no que eu lhe contava, reforço, confesso:<br />

Um buraco vazio sem nome tinha-se instala<strong>do</strong> mesmo na parte posterior <strong>do</strong> cérebro,<br />

como prevenira toda a humanidade o sr. Antonin Artaud ao rabiscar as suas duas cartas<br />

exemplares sobre o vício <strong>do</strong> ópio, em 15 de setembro <strong>do</strong> ano da graça de 1947.<br />

Não sabia como contar tu<strong>do</strong> à minha filha, ente único que sobrou na minha vida de<br />

sobejos improváveis.<br />

Um hombre com síndrome de Korsacov...<br />

Donde só nos resta confabular com os desvãos da memória...<br />

Confabulário...<br />

Tentativas medíocres de tornar verossímeis os buracos da autobiografia...<br />

Memórias para além de alcoólicas, que ainda hoje azulam no horizonte como<br />

Iracema alencarina.<br />

98


(...)<br />

Agora me falta, de nuevo, vinho, aguardente, o seu riso triste, o seu riso triste<br />

desconfian<strong>do</strong> das minhas desventuras, minha menina, como não crês?, se és apenas um anjo e<br />

se te conto histórias de la noche por um simples motivo:<br />

Não me lembro de nada fantasioso que tu padre tenha visto antes <strong>do</strong> lusco-fusco <strong>do</strong> fim<br />

<strong>do</strong> dia deste onzembro, nuestro mês por excelência, onzembro é o mês <strong>do</strong>s que devem e não<br />

pagam, o mês <strong>do</strong>s que têm milhagem de sobra no cartão das ilusões perdidas.<br />

Que tédio <strong>do</strong>minical, hija, sei, você cresceu e tenta, aonde estiver a essa hora, se<br />

confortar ou pular da janela com o breviário de Cioran entre os dentes, calma, quanto tempo,<br />

faz isso não, pequeña, vai ao cinema, já és uma moça, uma mujer que não puedes mais ir a la<br />

luna, já que crescente, já tivemos la luna ao alcance de nuestros falsos sueños pangarés,<br />

lembras, o solzão, caldinhos, brejas, canciones, morrer assim é coisa de francês entedia<strong>do</strong>, hija.<br />

Teu pai bebe em todas as fontes de la madre naturaleza, mais uma vez, toma um áci<strong>do</strong><br />

chama<strong>do</strong> Gogol e tenta contar uma história para que durmas onde quer que estejas, dane-se, é<br />

só esperar e o cavaleiro gigante passará sobre os prédios como no cinema ou nos sonhos de<br />

uma menina.<br />

Sorte que tengo meu belo pangaré azul de nome Chivas que salva alucina<strong>do</strong>s na sarjeta.<br />

Queria te contar algo mais nobre, hija, para ouvires, <strong>do</strong>nde estiveres, como sonata ao<br />

longe, pero, daqui ninguém sai vivo, minha criatura, o máximo que podemos hacer és cambiar<br />

tu nombre, Viridiana, Veridiana, cambiar para Angel ou Candy, titio Iggy Pop ficaria comovi<strong>do</strong><br />

na sua próxima visita aos trópicos, faríamos lin<strong>do</strong>s retratos, titio Knut lembra tu nombre na<br />

taberna <strong>do</strong>s perde<strong>do</strong>res, <strong>do</strong>nde bato três vezes na madeira para que nem passes por perto. Ali é<br />

sítio pra quem, de tanto perder, agüenta as <strong>do</strong>res <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

Cap. VII - Da ressaca monstruosa que faz rir os mortos <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

muro <strong>do</strong> cemitério<br />

Seguramente, depois daquelas noites brancas, o cavaleiro Fodasno estava mais morto <strong>do</strong><br />

que todas aquelas criaturas d´outro mun<strong>do</strong>.<br />

Arrastava a carcaça, suava frio e <strong>do</strong>ía justamente naquele lugar <strong>do</strong> coração que nunca<br />

vai ser preenchi<strong>do</strong>, como diz um poema <strong>do</strong> velho Charles, quase com estas mesmas palabras:<br />

“There is a place in the heart that/ will never be filled.”<br />

Esse aí estragou a vida, mas ela, la bida, teima em segui-lo, dizia a voz dum morto<br />

franzino <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> muro da Cardeal Arcoverde, neste pueblo de San Pablo.<br />

A vida gosta das suas piadas e ri <strong>do</strong>s seus passos. E eles se divertem juntos lamben<strong>do</strong> o<br />

rés <strong>do</strong> chão e os pés de lindas almas perras.<br />

99


Coita<strong>do</strong>, demente!<br />

Esse aí <strong>do</strong>rmiu ao la<strong>do</strong> de uma bela bunda, mas as pernas não encaixaram à<br />

perfeição, como dantes.<br />

Ele notou que ela já não tinha mais aquele sorriso capaz de incendiar de manhã o calendário.<br />

Ela, a bunda ou qualquer parte pelo to<strong>do</strong> de la mujer, estava chateada, mas sempre é<br />

muito fácil uma mulher ficar chateada, e sempre começa por uma parte dela, por supuesto,<br />

uma omoplata, um cotovelo assassino, um joelho serial-killer...<br />

Uma vez quase fui morto por um ilíaco serial-lover, um ilíaco afia<strong>do</strong>, pura lâmina,<br />

um ilíaco que saltou da bacia da moça e tentou decepar minhas pernas, no que pulei o<br />

ilíaco como quem pula... cordas... como quem pula... como quem não passa de uma<br />

mortadela que escapa <strong>do</strong> corte.<br />

A falange, falanginha e a falangeta também são um perigo mortal. O registro de óbitos<br />

deste sítio é farto de casos <strong>do</strong> gênero.<br />

Cap. VIII - Da resistência a Fernan<strong>do</strong> Pessoa e <strong>do</strong>s alpistes de la emoción<br />

engaiolada<br />

Um homem não precisa de nada porque la emoción, principalmente a emoção<br />

barata, o persegue desde Caim e Abel, me disse el Caballero <strong>Sol</strong>itário muito antes de<br />

denominar-se Fodasno.<br />

Desde Adão e Eva, quan<strong>do</strong> fomos condena<strong>do</strong>s à la mierda <strong>do</strong> trabarro e <strong>do</strong> drama,<br />

insiste lo miesmo, toda emoção é barata.<br />

Resista a Fernan<strong>do</strong> Pessoa e serás um forte, auto-indulgência estoy fuera, agora o<br />

pangaré, el fala<strong>do</strong>r, mesmo sem o seu portunhol selvagem afia<strong>do</strong>, mas decididamente avesso<br />

aos fumos metafísicos <strong>do</strong>s poetas portugueses, o pangaré desconfia bravamente de Fernan<strong>do</strong><br />

Pessoa, que diabos, mesmo que o Caballero o ame, carajo, guerra!<br />

Ningum hombre carece de nada além de uns farelos, os mesmos que alimentam um<br />

pombo ou um <strong>do</strong>n Leseira, e de um cantil de tequila ou cachaça.<br />

Resista também aos heterônimos e encha o eu profun<strong>do</strong> e os outros eus de bagaceira ou<br />

de qualquer droga barata, pica, de<strong>do</strong>, vibra<strong>do</strong>r ou chumbo, desde que sejam drogas acima de<br />

45º alcoólicos ou <strong>do</strong>s 220 volts.<br />

Chega de dar chance ao azar e às sobreposições metafísicas e à auto-indulgência de segunda.<br />

100


NINGUÉM MORRE DE AMOR NOS TRISTES TRÓPICOS.<br />

No mais, sempre aparecerá um intruso ou uma intrusa para dar emoção à nossa viagem<br />

até então apaziguada e livre de flechas venenosas.<br />

Play again, Elvis!, exalta o cavaleiro agora nada metafísico.<br />

Guadalajara, Guadalajara, Guadalaraja!<br />

Play again, Elvis, fase México!<br />

Que grand disco, viejo Elvis!<br />

Voltemos a Guadalajara, por supuesto, onde hay começa<strong>do</strong> toda la aventura contra los<br />

erristencialistas franceses e os darks portugas.<br />

Adiós, Sartre, Guadalajara nos espera, adeus Pessoa e seus trezentos heterônimos.<br />

Adiós, Bergman, adiós Antonioni, faz muito sol nos trópicos a essa altura e vocês já se<br />

foram, gracias, vocês já eram.<br />

Vocês, ufa, não acabaram com nuestros corazones incendia<strong>do</strong>s.<br />

Faz sol até dentro <strong>do</strong> bolso de forma a dissolver o antidepressivo.<br />

Somos solares, por supuesto, relincha o pangaré paraguayo, religare.<br />

Arriba, comancheros!<br />

101


Cap. IX - De la dinâmica de la bida<br />

...como se fosse uma quarta-feira cheia de futebol na qual somos os gandulas da<br />

existência, sempre a devolver a bola para que Diós não pare lo juego nunca.<br />

Cap. X - Do desce e sobe com Tex Willer no deserto de Carençolândia<br />

Um gesto em falso e tomamos chumbo, como me ensinou o velho Tex, Tex Willer, de<br />

quem li to<strong>do</strong>s os gibis quan<strong>do</strong> era ascensorista, mamífero inútil <strong>do</strong>s 25 andares <strong>do</strong> Edifício<br />

Martinelli, aqui neste mesmo sítio febril de San Pablo de Piratininga, emprego de temporada,<br />

como to<strong>do</strong>s nesta bida.<br />

Cap. XI - Das mulheres e das ruínas possíveis<br />

Miesmo se usted estiver nas cinzas finales, lúmpem <strong>do</strong> lúmpem, debarro del último de<br />

los minhocones, miesmo asi llogo aparecerá no teu esperro de afeitar, como un retrovissor de la<br />

erristência, assombración, susto!, una murrer das más hermosas, magrinha, só cuero e el<br />

osso como recomenda a etiqueta moderna de las gazelas anoréjicas, com a qual se<br />

amancebarás loucamente debarro de teus derraderos molambos e cobertores Paraybas.<br />

Hable com ella, si?<br />

Que suerte, irás cismar sozinho en la noche.<br />

Ella contará uma história triste e comovente, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tiene una narrazión deste<br />

calibre em buelsillo del capote fura<strong>do</strong> e sem copeques, si, si, si, usted cairá feito um pateño na<br />

lagoa, afinale de cuentas estás hodi<strong>do</strong> también e nada que una murrer que venga a cambiar los<br />

102


aceites, trocar el nuestro óleo, se é que me entiendes, num puessa conquistar, estas puedem,<br />

puedem tu<strong>do</strong>, rapay, compreendes?<br />

Donde se conclui:<br />

Las mujeres non son interesseras, meu anjo.<br />

Son capazes de levar à ruína non somente los patrones, los milionários, los<br />

herderos, mas también los últimos <strong>do</strong>s miserables de la calle, o lumpem <strong>do</strong> lumpem <strong>do</strong><br />

lumpem <strong>do</strong> molambo final <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>.<br />

Epidermicamente democráticas, abismo para to<strong>do</strong>s, passa-me el basea<strong>do</strong> e la<br />

aguardiente envelhecida em barris de cromossomos...<br />

Cabrón, te ligas: Non hay lucha de classes en corazón de las fêmeas.<br />

QUIEN NO JODE BIEN QUE NO MOLESTE!<br />

E dejemos de marear la perdiz.<br />

Até naquela feira das sobras finais <strong>do</strong>s homens de la calle, ali debaixo <strong>do</strong> viaduto <strong>do</strong><br />

Largo <strong>do</strong> Glicério, cola<strong>do</strong> na taberna <strong>do</strong> sr. Knut, onde os zumbis molambentos fazem escambo<br />

das derradeiras pulgas que restaram <strong>do</strong>s seus corpos sem sangue, passeiam mulheres capazes<br />

de amá-los.<br />

Mujeres y perros magros e pulguentos.<br />

Menos na taberna <strong>do</strong> sr. Knut, que não permite que elas adentrem o recinto, por supuesto.<br />

Lá, entre as palavras malditas, pelo que me recuer<strong>do</strong>... estão, pela ordem de importância:<br />

SAUDADE<br />

FAMÍLIA<br />

PERROS<br />

“Elas são capazes de nos arrancar memórias das nossas piores ruínas e traumas!”,<br />

diz o sr. Knut, mas apenas nas confissões para o seu gato branco.<br />

Cap. XII - De como la mano de Diós és la mano de Mara<strong>do</strong>na<br />

103


Viajar é perder lugares, mujeres, coisas, assim como perdemos, mesmo que fiquemos la<br />

bida inteira ao derre<strong>do</strong>r somente <strong>do</strong>s nuestros quartos e umbigos, a noción de Latino América,<br />

como hay me dicho el pintor de quadros populares da Praça da República, aquele, lembra, meu<br />

anjo, como era mesmo su nombre, colombiano, queri<strong>do</strong>?<br />

Para nosotros, principalmente os mais meti<strong>do</strong>s deste pueblo de San Pablo, os quintais<br />

afetivos son Londres e Nova York, un poco Paris, por supuesto, mesmo que estejamos muito<br />

mais para Cidade <strong>do</strong> México, linda Assumpción, Bogotá, Pedro Juan Caballero, a Colombia <strong>do</strong><br />

compay Efrain Medina Reys.<br />

Por isso me juego, seguro na mano de Diós, que es tan sagrada quanto la mano de<br />

Mara<strong>do</strong>na, aquela del golaço na Copa, o segun<strong>do</strong> tempo de la Guerra das Malvinas, a<br />

Copa eterna, e bamus. Sim, quem tem culo tiene me<strong>do</strong>, mas después que la se bão algunas<br />

pregas, las pregas jesuísticas por excelência, vale o latim de missa imposto na tragédia<br />

católica perpetrada nesta selva escura de toda sulamérica:<br />

104


ANUS BEBORIUS NULUS PROPIETARIUNS.<br />

Cap. XIII - Das previsões <strong>do</strong> astrólogo peronista<br />

105


Antes de seguirmos viagem, porém, um rápi<strong>do</strong> e alvissareiro informe <strong>do</strong> meu célebre<br />

Astrólogo Peronista, aqui entre nós brasileños desde o plano econômico Cavallo II, quan<strong>do</strong><br />

perdeu a clientela <strong>do</strong> elegante bairro de Flores, Buenos Aires, e foi obriga<strong>do</strong> a ganhar seus<br />

cobres em outro idioma selvagem.<br />

Donde Cavallo II, la missión, plano cujo batismo advém <strong>do</strong> ministro homônimo del<br />

solípede portenho, por supuesto, o condenou ao rude portunhol tosqueira, sublíngua que nem<br />

mesmo seus perdigotos entendem, vamos ao supracita<strong>do</strong> informe alvissareiro <strong>do</strong> Astrólogo<br />

Peronista, antes de tu<strong>do</strong> los astros, que estão acima de to<strong>do</strong>s, por supuesto:<br />

“Plutón fue para el espacio, non?, hay perdi<strong>do</strong> su condición de astro, non passa de uno<br />

perro vira-lata que miesmo assi brilha além, mucho além de todas las constelaciones e da sierra<br />

azulada de Iracema. Enquanto isso Vênus adentra tu cassssa <strong>do</strong> dezerro, anda-lhe, anda-lhe,<br />

anda-lhe, grand fase, cassa de tu carajo, compreendes?”.<br />

Gracias, amigo, tentarei aproveitar neste galope, gracias, gracias, amigo, por existir a<br />

sábia ciência planetária da qual fazes o melhor <strong>do</strong>s usos e me orienta nas encruzilhadas de mi<br />

pobre bida, quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s los camiños se bifurcam como uma estación <strong>do</strong> metrô Sé de San Pablo<br />

às seis de la noche, se bifurcam e me dêrram mais confuso ainda, embaraça<strong>do</strong>, como hablo?,<br />

embaraza<strong>do</strong> de incertezas, por supuesto, barrigu<strong>do</strong> de dudas, sospechas, incertidumbres,<br />

indecisiones, vacilaciones de siete mieses...<br />

Cap. XIV - Dos arrepios místicos <strong>do</strong> cavaleiro da aventura verdadeira<br />

O delírio de ruína perseguia este inominável cavaleiro qual a gigante sombra magra que<br />

o refletia monta<strong>do</strong> no seu orgulhoso caballo panga.<br />

Sob aquela luna minguante <strong>do</strong> imenso deserto da província de San Pablo de Piratininga,<br />

Fodasno farejava uma mudança de ares, pelo menos para esta noche. Tu<strong>do</strong>, menos <strong>do</strong>rmir,<br />

chicas e kabrones, deixem as ilusões na chapelaria, apostem suas fichas, o sol cor de gema de<br />

pê-efe de puta mal se pôs nos nuestros horizontes.<br />

Eu sinto coisas, meu anjo, mi hija.<br />

Constatei, igualmente, além <strong>do</strong> que me segredaram os astros, indícios sobrenaturais, eu<br />

sinto coisas como uma mística miss Mun<strong>do</strong> venezuelana - como miss e modelo sentem coisas!<br />

-, e entorto meus garfos qual o Padre Brown ou Uri Gueller, meus amigos <strong>do</strong> outro mun<strong>do</strong>, nas<br />

suas refeições baratas, a quilo, e com talheres de plástico.<br />

Eu sinto coisas.<br />

O mais são acasos que me fazem gastar à toa os cotovelos de Jó sobre parapeitos de<br />

janelas quase à altura das cumeeiras da própria espera, além <strong>do</strong>s desejos que viram<br />

destila<strong>do</strong>s mais fortes <strong>do</strong> que qualquer vodka fuleira.<br />

106


Eu sinto coisas, vede como meus pêlos se arrepiam nessa hora, senhores!<br />

Quem sabe uma hermosa barbarella, daquelas que blafesmam contra os homens<br />

maus e outras lendas?<br />

“Os anjos, Barbarella, não têm memória”, diz o safa<strong>do</strong> <strong>do</strong> ícaro humaníssimo que<br />

avoa com a galega e a morena pelo céu cinesmacope.<br />

Ela se aproxima.<br />

Eu sinto coisas.<br />

Quem sabe?<br />

Que entre uma mestiça como Vênus, que entre uma negra gigante pantagruélica,<br />

chutan<strong>do</strong> a porta <strong>do</strong> saloon de mi corazón, com suas lindas botas de couro de lagartos<br />

vulcânicos fossiliza<strong>do</strong>s na pedra fria da pós-cornitude absoluta.<br />

Cap. XV - De una milonga para um hombre de poucos dentes<br />

Quan<strong>do</strong> entreguei meu hermoso pangaré paraguayo para o flanelinha perneta pastorear,<br />

to<strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> é pouco, kabrones, este caballo es mi bida sobre quatro patas, el trova<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s<br />

pampas entoava sua “Milonga para um hombre de poucos dentes”. Dei uma olhadinha para<br />

trás, Chivas sorria com aquele seu ímpar focinho de cavalo da<strong>do</strong>, pero orgulhoso como nunca<br />

dantes, dublan<strong>do</strong> la canción que tocava àquela hora:<br />

“Mor<strong>do</strong> com vontade a carne que me sobra com os poucos dentes que me restam”.<br />

El trova<strong>do</strong>r punk, el rey <strong>do</strong> punk-brega, evolui na milonga.<br />

Cisos, molares e caninos que caem e não contamos.<br />

Só os cavaleiros que sabem perder diariamente desconhecem o fracasso.<br />

Por to<strong>do</strong>s los diablos.<br />

IAAH-AAHH! EIAA!<br />

SOBE.<br />

DESCE.<br />

Vinte e duas tequilas e volto como um fantasma claustrofóbico <strong>do</strong> eleva<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Edifício<br />

Martinelli, arma<strong>do</strong> de Tex Willer até as esporas, tiros e mais tiros no centro nervoso de San Pablo.<br />

Impossível fingir-se de cool quan<strong>do</strong> a vida à vera atinge a veia bufante e amorosa<br />

<strong>do</strong>s nuestros infernos.<br />

Tu<strong>do</strong>, cavaleiro, menos metáforas nessa hora!<br />

107


Cool de cu é rola, diz o eco que vem <strong>do</strong> Vale <strong>do</strong> Anhangabaú, como aqueles ventos<br />

antigos <strong>do</strong>s índios mal-assombra<strong>do</strong>s.<br />

Ali correra o rio <strong>do</strong> mau espírito, segun<strong>do</strong> os caboclos, há 500 e tantos anos, antes de<br />

caírem na conversa abaitolada <strong>do</strong>s jesuítas.<br />

O cavalo, viejo Chivas, relincha e o seu decassílabo entra como um sample numa versão<br />

<strong>do</strong>s Ramones ora cantada pelo amigo Pablo, vezes conheci<strong>do</strong> como Wander Wildner, el<br />

cantante <strong>do</strong>s charcos gaúchos desta taberna camaleônica.<br />

Cap. XVI - Donde finalmente chegamos ao Vale das Serpentes, desculpem<br />

pelo atraso, amigos cavaleiros solitários<br />

O sol se punha, fim de jornada, eu não sabia nunca, no meu tempo automático de<br />

ascensorista <strong>do</strong> Edifício Martinelli, se estava na cumeeira ou se estava no solo.<br />

Passara mais um dia com Tex Willer em perigosas missões nos desertos e na fronteira<br />

EUA/México.<br />

No Vale das Serpentes, los hombres tiram a poeira da garganta com canecas de tequila,<br />

quebram a tensão com vinho Sangre de Toro e falam sobre alquimia, enquanto entornam<br />

baldes e mais baldes de qualquer coisa líquida.<br />

Em cada caneca, Hermes Trimegistus a escorrer pelos beiços.<br />

SOBE.<br />

DESCE.<br />

Em um livro proibi<strong>do</strong>, colhi<strong>do</strong> pelos vigilantes de la inquisición, está a chave da<br />

história de “A Marca da Serpente”, com o velho Tex Willer, uma das minhas preferidas durante<br />

aquele ofício de apertar botões e fazer falsos amigos.<br />

Um ajudante da biblioteca de um mosteiro foge com o misterioso volume.<br />

Debaixo <strong>do</strong> braço, o fugitivo carrega nada mais nada menos <strong>do</strong> que os segre<strong>do</strong>s da<br />

pedra filosofal.<br />

Alquimista ama<strong>do</strong>r, o canalha se associa a um grupo de ban<strong>do</strong>leiros.<br />

Agora passa a viver o sonho de fabricar ouro, seguin<strong>do</strong> a receita <strong>do</strong> livro rouba<strong>do</strong>.<br />

Quan<strong>do</strong> o eleva<strong>do</strong>r lotava sempre coincidia com a leitura de uma página de assalto de trem.<br />

Ali eu aprendi a velocidade entre um cumprimento aparentemente honesto e uma<br />

bala nas costas.<br />

108


Odiava a impossibilidade de solidão, o entra-e-sai, as piadas repetidas, as mulheres<br />

falan<strong>do</strong> que estavam gordas, falan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s carnês de prestações carcomi<strong>do</strong>s pelas traças da<br />

inadimplência, “perdi <strong>do</strong>is quilos”, da ginástica prometida para a próxima segunda, e o velho<br />

eleva<strong>do</strong>r a gemer “perdeu <strong>do</strong>is quilos porra nenhuma”, falan<strong>do</strong> da yoga das menos pobres, bom<br />

dia, boa tarde, boa noite... O deserto de Tex Willer era a única saída rumo ao solitário sol<br />

poente ou o melancólico lusco-fusco.<br />

Mas como, pensava o cavaleiro nas suas cismarias nocturnas, como a solidão seria<br />

possível se nem em Shane, a fita, o clássico, essa solidão foi viável.<br />

"Um homem tem que ser o que é. Não pode <strong>do</strong>brar o destino. Eu tentei. Não funcionou<br />

para mim", diz Shane.<br />

Não adianta mesmo fugir <strong>do</strong>s desertos internos, em outras secas graciliánicas<br />

desaguaremos.<br />

Cap. XVII - Do forasteiro errante sempre desaponta<strong>do</strong><br />

109


“I´m a Lonely boy<br />

I'm a Lonely boy”, canta ao longe Pablo, o trova<strong>do</strong>r punk-brega.<br />

O filme é sempre o mesmo.<br />

O forasteiro errante é desaponta<strong>do</strong>.<br />

Querem arrancar-lhe o luxo, a estrela e a empáfia da condição de cavaleiro solitário.<br />

Tequila, saloon, bienveni<strong>do</strong> aos desiertos interiores.<br />

“Oh baby can't you see. Oh baby please like me”.<br />

Cap. XVIII - De como Esperanza sopra novo mantra no ouvi<strong>do</strong> de la calle<br />

“Na escadaria <strong>do</strong> manicômio ilumina<strong>do</strong> eu ouço o sino com farpas sacudin<strong>do</strong> a<br />

padraria”. Esperanza sopra de novo no ouvi<strong>do</strong> <strong>do</strong> cavaleiro delirante, agora um verso de<br />

Gregory Corso, imagina-se, belo vagabun<strong>do</strong> ilumina<strong>do</strong>, ou apenas mais um sample <strong>do</strong>s tantos<br />

zumbi<strong>do</strong>s que perseguem um homem livre en la calle.<br />

Querem arrancar-lhe o luxo, a estrela e a empáfia da condição de cavaleiro solitário<br />

como quem arranca a moral de um xerife.<br />

Quan<strong>do</strong> usted menos espera jogam-lhe um uísque coubói sobre o peito, ainda não sobre<br />

os olhos, mas aguarde viejo cavaleiro, a vida é Shane, por supuesto, sempre cowboy, quase<br />

nunca on the rocks.<br />

A vida qual poste demarca<strong>do</strong> pelos vira-latas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong>, siempre, panga-bida.<br />

A solidão é impossível, o mal até mesmo nas cadeias é a impossibilidade de gozar<br />

sozinho, de mijar sozinho, de cagar só e demoradamente, de cismar sozinho à noite, o mais é<br />

humanamente suportável, menos a falta total de solidão, da punheta mais livre, <strong>do</strong> pesadelo<br />

abraça<strong>do</strong> a nuestros próprios infiernos.<br />

Cap. IX - De como nadar no seco e/ou técnica avançada de <strong>do</strong>n Virgílio Piñera<br />

110


“Eu digo baby baby baby, você já era<br />

superei, isso eu já sei<br />

baby baby baby você passou...”<br />

El trova<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s charcos pampas entoa uma versão <strong>do</strong>s Rolling Stones, (by Lady<br />

Aversuck), una canción desperada, para seres desespera<strong>do</strong>s, por supuesto.<br />

Estoy com alguns amigos caballeros, igualmente solitários ou com os seus chips<br />

emocionales falsifica<strong>do</strong>s, paraguayos por excelência, rumo ao sol poente.<br />

No que hay muda<strong>do</strong> las estaciones e lo clima deste sítio e principalmente del riacho del<br />

Anhangabaú, cuja lenda guarda a memória de índios mortos em cheias que ainda hoje<br />

atormentam os alcaides e sua corte meteorológica que prevê ouro e sempre cai mierda e<br />

granizo en sus cabezas.<br />

<strong><strong>Sol</strong>itários</strong> juntos, mesmo hombres, eliminam a naturaleza da solidão individual del<br />

facto e del derecho?, Chivas pergunta e ele mesmo responde, enfático, “siiii”, diante de um<br />

faroeste de bolso que eu deixara cair <strong>do</strong> alforje cujo título me soava meio estranho e<br />

contraditório:<br />

“CABALLEROS SOLITÁRIOS RUMO AO SOL POENTE”, de autoria de una chica,<br />

única no gênero, llamada Evita Uvie<strong>do</strong>, pelo que recuer<strong>do</strong>.<br />

“Se são muitos... como podem ser tão solitários?”, repito para Chivas.<br />

“Cada um carrega o seu deserto cosmológico en cabecita!”, ele relincha, como se tirasse<br />

onda de sábio. “Hoy, por erremplo, escorpión manda en la luna caliente!”<br />

Cap. X - De una chica hablan<strong>do</strong> um virtuoso espanholito da selva<br />

Em homenagem à suada discussão na távola, pedimos uma garrafa de uísque que tivesse<br />

a mesma ín<strong>do</strong>le <strong>do</strong> bravo solípede, sim, Chivas, Chivas Las Vegas, como uma vieja banda de<br />

rock´n´roll da cidade de San Pablo, faz favor, que a água da vida seja falsa como a gente, aqua<br />

vitae, a de sempre, e una chica hablan<strong>do</strong> um virtuoso espanhol da selva nos apareceu<br />

milagrosamente, com sotaque que mais pareceia o de um poeta visceralista, el inventor del<br />

portuñol selvagem, hermosso e inigualable idioma de fronteira, sen<strong>do</strong> a guapa mais guapa e<br />

interessante nos inigualáveis ditongos e airbags edipianos, a<strong>do</strong>nde qualquer um de nós<br />

<strong>do</strong>rmiríamos para sempre.<br />

A chica nos mirou com los orros mais andaluzes das pradarias nocturnas deste deserto<br />

reserva<strong>do</strong>, pelo menos nesta noche, aos fuertes e destemi<strong>do</strong>s.<br />

“Vai una flor na solapa da miséria?”, hay pregunta<strong>do</strong>.<br />

Paralisei, meu anjo, mi hija.<br />

Cap. X - Dos nuevos tiempos de moinhos acanha<strong>do</strong>s<br />

111


“Te juega!”, só ouvi o silvo rápi<strong>do</strong>, “te juega”, quase um mantra, sopra<strong>do</strong> lá <strong>do</strong>s caninos<br />

tingi<strong>do</strong>s de melopéia e nicotina <strong>do</strong> amigo Don Pedro A. Caballero, espanhol de Calzada de<br />

Calatrava, cuja boca também rebelava desiertos, Calzada de Calatrava de La Mancha e aqui<br />

chega<strong>do</strong> para trabalhar numa companhia telefônica <strong>do</strong> seu país de origem, las privatizaciones,<br />

los merca<strong>do</strong>s globales, nuevo amigo com ganas de vivir la vida, isso é o que importa, nuevos<br />

tempos de moinhos acanha<strong>do</strong>s, o que também reduz nossas miragens a, no máximo,<br />

ventila<strong>do</strong>res de teto de las tabernas românticas de nuestras últimas chances.<br />

“Te juega, rapay”, mais precisamente foi o que o cavaleiro disse ao chico, no que<br />

atirei-me ao solo pátrio, a velha arte de répteis pré-históricos, mais conhecida pela minha livre<br />

tradución como Técnica Avançada <strong>do</strong> Mestre Virgílio Piñera de Nadar no Seco, no que agarrome<br />

aos pés daquela criatura como um romeiro cego que acaba de presenciar o quarto milagre<br />

de Fátima, a cura.<br />

Ela, a dita, cai, de susto e drama, la mujer, sobre o palco improvisa<strong>do</strong> naquele decente<br />

porão-templo <strong>do</strong> punk-brega.<br />

Luzinhas coloridas, daquelas de enfeite natalino - Jesus Cristo vai voltar? -, piscam no<br />

pedestal <strong>do</strong> microfone del trova<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s guachos pampas.<br />

Os almas sebosas que me acompanham cospem fuligem e se preparam para o pior,<br />

anteviram la mierda.<br />

Até o <strong>do</strong>n Luxúria de la Champanhota estava nervoso nesta hora.<br />

A inveja testosterônica exala de to<strong>do</strong>s os subacos del mun<strong>do</strong>.<br />

A<strong>do</strong>nde tem hombre, o gênero, tem confusione.<br />

Cap. XI - Do sensacional y incrible embate contra O Gigante Tatua<strong>do</strong><br />

Aqueles olhos ciganosos, rapidamente aflitos e corretos nos flagrantes capta<strong>do</strong>s, como<br />

se editassem na velocidade da luz tu<strong>do</strong> que alcançam num segun<strong>do</strong>, como se fossem um<br />

circuito integra<strong>do</strong> de câmeras de segurança <strong>do</strong> mais labiríntico <strong>do</strong>s edifícios, de um arranhacéu<br />

inteligente, sabe, aqueles ojos mata<strong>do</strong>res sacaram primeiro e me aniquilaram naquele<br />

desafio, naquela espécie de duelo ao qual se submetem destemi<strong>do</strong>s homens e mulheres cujas<br />

passagens sobre esse deserto só se justificam na passionalidade à queima-roupa, pistoleiros<br />

corazones de tiroteios e baladas sangrentas.<br />

El toureiro estava muerto e sangrava diante <strong>do</strong>s ojos daquela possible Carmen.<br />

Ainda aos pés daquela mujer da minha pobre, pero tumultuosa erristência, a mujer de la<br />

bida, ou pelo menos a mujer da quinzena, miro para riba, para ver seus olhos, repetir o milagre,<br />

seria Esperanza?<br />

112


E eis quem aparece no retrovisor contra-plongé <strong>do</strong> cavaleiro solitário, senhoras e<br />

senhores, é o Gigante Tatua<strong>do</strong>, ainda mais gigante se visto lá de baixo, como na visão das<br />

britadeiras arranca<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>s dentes da cidade, esse pesadelo que toma conta deste sítio sempre<br />

em obras, reformas e crateras, miro para riba lá <strong>do</strong> solo, de onde costumamos enxergar os<br />

adversários. O Gigante Tatua<strong>do</strong> está verde de raiva, clorofila<strong>do</strong> pelas carregadas tintas <strong>do</strong><br />

ciúme, este brinque<strong>do</strong> assassino com o qual bolimos assim que nos entendemos por gente, o<br />

Incrível Hulk das nossas fraquezas, que ainda há pouco era apenas uma estrela, uma imensa<br />

tocha antes <strong>do</strong> mergulho, brinque<strong>do</strong> nada pedagógico que quebramos logo que ganhamos o<br />

boneco Édipo ou a boneca Electra, o brinque<strong>do</strong> que nos faz de criança até o silêncio-mor das<br />

catacumbas.<br />

“Nada está tão mal assim que una chica não possa piorar más un pouco su pobre bida”.<br />

113


Lembrei, tango ao longe, <strong>do</strong> que havia me dito, em repetidas secciones, a psicanalista<br />

judia-argentina, los hermanos latifundiários de inconscientes son los merrores de la ciudad de<br />

San Pablo, aquellos que vieram tangi<strong>do</strong>s pelo vaquero del exílio. Ela é daquelas sábias, que já<br />

me deixa hablan<strong>do</strong>, aqui no meu futuro <strong>do</strong> pretérito, um casto espanholito salbaje, não de to<strong>do</strong><br />

selvagem, um portunhol, digamos assim... terrible, como numa cierta viaje que parte del puerto<br />

de Antofagasta. Tenho sonha<strong>do</strong> com a minha psicanalista argentina como um Sandman<br />

vagabun<strong>do</strong> que sonha porque vive disso como um morcego vive de virar rato ou recalque nos<br />

sótãos <strong>do</strong> futuro.<br />

Depois que hay conheci<strong>do</strong> minha psicanalista argentina, empezei a sonhar<br />

profissionalmente, sueños para agradar-lhe, era una vez o Aleph...<br />

Esse não vale, hombre, seja original pelo menos esta noche!<br />

Nada pode andar tão ruim assim na tua miserável vida que uma mulher não possa<br />

piorá-la, se é que me compreendes.<br />

(...)<br />

Ela me adiantou na primeira consulta, que nem fiz ainda, algo que bate com o informe<br />

<strong>do</strong> meu astrólogo peronista. A única coincidência <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is em toda la bida.<br />

Saí mascan<strong>do</strong> o novo adágio como um chiclete de jambu que anestesia lábios, gengivas,<br />

caninos e molares de uma alma indígena.<br />

Nada que uma mulher não possa estragar mais ainda.<br />

Gardênia, mi psicanalista, e o seu cachimbo decifra<strong>do</strong>r de existências aliviam minhas<br />

<strong>do</strong>res supostamente mais extremas, mesmo com este hombre a teimar que seu inconsciente<br />

habia nasci<strong>do</strong> sur<strong>do</strong> e mu<strong>do</strong> e jamais falaria nada a não ser para o seu vira-lata, verdadeira<br />

terapia de pobre.<br />

Já viram como os miseráveis de viadutos e becos imun<strong>do</strong>s conversam com seus<br />

perros???<br />

Psicanálise de pobre é falar com seus cachorros pulguentos, que também nada dizem<br />

mas são muy carinhosos.<br />

114


Cap. XII - Donde atiramos em aves-petiscos<br />

Com o tempo passamos a perceber o grau de parentesco entre as noitadas pelo rastro de<br />

merdas que deixamos sob luas minguantes e a falta de memória sobre elas nos dias seguintes.<br />

E é fazen<strong>do</strong> merda, como me avisou, noutro adágio particularíssimo, uma galega de<br />

codinome Miss Norma Culta, é fazen<strong>do</strong> merda, disse-me, que adubamos a vida. Me gusta<br />

adubar la existência com a merda <strong>do</strong> perigo, merda esta cujo cheiro abafo com o perfume da<br />

coragem, esse luxo de pequeno frasco que nem sempre trazemos nos nossos alforjes de<br />

mata<strong>do</strong>res borrachos.<br />

Por mais que os cavaleiros alia<strong>do</strong>s tentassem me proteger das garras <strong>do</strong> inimigo, o<br />

Gigante Tatua<strong>do</strong>, àquela altura o maior homem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, cara quadrada, olhos amarelos de<br />

assassino viking e hiperbólico, <strong>do</strong>is metros e tanto, olhos de pistoleiros <strong>do</strong> Rio Jaguaribe, o rio<br />

mais seco da Terra, não conseguiam os cavaleiros, de tão borratchos que os caballeros já<br />

estabam àquela altura, jornada que habia começa<strong>do</strong>, com brindes de tequila, tilintares aos<br />

montes, tertúlia ao lusco-fusco, quan<strong>do</strong> os ponteiros dividiram o relógio de parede ao meio, em<br />

<strong>do</strong>is dês, duas luas, duas bundas, quan<strong>do</strong> aquela bruma melancólica prevalece sobre a<br />

existência sem luz, assim pastosa.<br />

115


A jornada havia começa<strong>do</strong>, com tragos rebate<strong>do</strong>res, ali nos arre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Parque da<br />

Aclimación, primeiro num restaurante coreano, <strong>do</strong>nde comemos língua de vaca no fogãozinho<br />

aceso na própria mesa; depois, bebemos aguardientes e escrevemos nuestros nombres com o<br />

giz <strong>do</strong> pó bíblico, pelo menos as iniciais, dele viemos a ele voltaremos, já na taberna <strong>do</strong>s<br />

caça<strong>do</strong>res, a<strong>do</strong>nde cada freguês recebe, das mãos de uma hostess e ex-vegetariana, uma<br />

espingarda para matar os seus petiscos e tira-gostos, pero só conseguimos acertar uma gigante<br />

avestruz modificada pelos poluentes, que se comporta como se tivesse espírito de uma velha<br />

pomba-ratazana gigante que não <strong>do</strong>rme nunca. Quan<strong>do</strong> tenta <strong>do</strong>rmir, espinhos enferruja<strong>do</strong>s<br />

debaixo das asas lhe espetam o corpo, como os tetéus, Belonopterus cayennesis, aves que<br />

nunca <strong>do</strong>rmiram o sono <strong>do</strong>s justos, seres da zoologia fantástica de San Pablo.<br />

Comemos a tal anomalia à passarinho, me gustan las anomalias urbanas com cervejas<br />

pretas e uísques caubóis, nossa celebración preferida aqui neste deserto, como sempre fazemos<br />

para pastorear nuestras perdas diárias, nuestro rebanho de fracassos clona<strong>do</strong>s, fiapos de lãs de<br />

pacatas ovelhinhas losers a tomarem siempre nuestros cérebros, os ponteiros ultrapassam as<br />

seis horas de la noche em San Pablo, tão logo as rádios AMs tocam a “Ave Maria” de Schubert,<br />

nem contan<strong>do</strong> carneirinhos e ovelhinhas <strong>do</strong>llys <strong>do</strong>rmiremos, nem adianta desejar-nos buenas<br />

noches kabrones.<br />

Cap. XIII - Do cãozinho gospel, vira-lata abençoa<strong>do</strong><br />

Só escapei <strong>do</strong> Gigante Tatua<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> meu cãozinho gospel, regallo <strong>do</strong> amigo<br />

Schiavon, latin<strong>do</strong> línguas pentencostales as mais intensas, aplicou o mais baixo <strong>do</strong>s golpes,<br />

baixo até mesmo para o mais amoral <strong>do</strong>s perros, mesmo para um vira-lata, e o tal engenho e<br />

arte quase deixa o gigante tatua<strong>do</strong>, tatua<strong>do</strong> com signos de prisões russas de um raro livro de<br />

sebos de San Petersburgo, e quase deixa o gigante tatua<strong>do</strong> sem los uevos, compadre, los uevos<br />

de oro. Los testículos, compreendes, como não me deixa mentir, cá está, o compay Pedro A.<br />

Cabballero.<br />

Meu cãozinho gospel se trata de um velho fareja<strong>do</strong>r aposenta<strong>do</strong> da Delegacia de<br />

Narcóticos, agora com nariz evangélico incapaz de sentir o cheiro de uma montanha <strong>do</strong> legítimo<br />

pó colombiano.<br />

Cap. XIV - Donde o vira-lata de Jesus cospe nacos da cueca inimiga<br />

“Buenas noches, kabrones!”, sau<strong>do</strong>u el cantante da “milonga para um hombre de<br />

pocos dentes”, nuestro Pablo, por supuesto, gaúcho de origem alemã, de origem, como<br />

eles orgulhosamente dizem, egresso das curvas <strong>do</strong> Rio Guaíba, no sul da República<br />

Federativa del Brasillll.<br />

116


“Me gustam los caballeros solitários que buscam el suelo puente, mas bamos com calma<br />

que la noche vai longe, comancheros”, disse o rei <strong>do</strong> punk-brega, numa tentativa de apaziguar<br />

os espíritos sob aquela lua cheia e caliente. Sabia das coisas, tomava um composto diário de<br />

pelo menos sete ervas guaranys e andava sobre águas revoltosas das barragens e <strong>do</strong>s rios que<br />

banham a aldeia Piratininga, como o Tietê, o Pinheiros e o Tamanduateí, rios que haviam se<br />

rebela<strong>do</strong> e espumavam ondas gigantes das quais voavam sapos como se saíssem da prancheta<br />

de Don Laerte, renoma<strong>do</strong> cartunista e chefe de uma gang de piratas bíblicos.<br />

El concierto no porão del Camhaléon, na subida da Consolación, taberna de los<br />

estudiantes, me gustan los estudiantes, torna-se um clássico <strong>do</strong> nuestro Elvis, <strong>do</strong> nuestro<br />

Johnny Guittar que andava sobre as águas, por supuesto.<br />

Meu vira-lata gospel, que latia “Jesus, Jesus, Jesus”, conforme assimila<strong>do</strong> <strong>do</strong> compadre<br />

Schiavon, mestre em histórias em quadrinhos de subsolo deste mesmo sítio, cuspiu, senhoras<br />

e senhores, um pedaço da cueca <strong>do</strong> gigante inimigo no palco. Justo aquele pedaço da cueca<br />

envelheci<strong>do</strong> com os bagos e a quentura das fodas-não-dadas, das fodas que qualham e<br />

sobem em forma de queijo gorgonzola para o juízo.<br />

A platéia suspirou, riu, muxoxos gerais, e el cantante emen<strong>do</strong>u uma versão <strong>do</strong>s<br />

Ramones <strong>do</strong>ravante denominada “Eu não acredito em promessas”.<br />

“ENTONCES ME DÊ UM MOTIVO PARA NÃO CHORAR/ ME DÊ UM MOTIVO<br />

PRA NÃO CHEIRAR COLA ESSA NOCHE”.<br />

La noche está apenas começan<strong>do</strong>, bravos comancheros!<br />

Cap. XV - Dos Ramones e <strong>do</strong>s milagres<br />

Milagrosamente levei aqueles ojos andaluzes, uma mulher com olhos de quem havia<br />

suga<strong>do</strong> a fria cuia <strong>do</strong> mate da saudade de um cabloco de selva amazônica distante, una chica<br />

com ojos de quem habia deixa<strong>do</strong> um hombre em farrapos, mas que ainda sofria horrores.<br />

Milagrosamente levei aqueles ojos andaluzes na garupa <strong>do</strong> meu pangaré da tríplice<br />

fronteira ladeira arriba.<br />

El perro evangélico nos seguia feliz pelo asfalto, latin<strong>do</strong> “Jesus, Jesus, Jesus...”<br />

De lá de cima <strong>do</strong> meu rocintosco quadrúpede avistávamos os mortos <strong>do</strong> Cemitério da<br />

Consolación, que zombeteavam das nossas pobres erristências.<br />

Os mortos e os seus basfond darks, como se tu<strong>do</strong> fosse uma enorme cidade cheia de<br />

Pedros Paramos y fantasmas guaranys.<br />

Os mortos <strong>do</strong> Cemitério da Consolación, tentan<strong>do</strong> reaver com os vermes os seus<br />

velhos paus e buças para a última sessão masturbatória <strong>do</strong> além-túmulo. Talvez em intención<br />

àquela gostosa que colava às minhas costas, que eles conheciam há muito da mesma área, seria<br />

uma Párama Gigante, uma lenda, viejo Pedro?, mas que agora tinham o prazer de vê-la, musa,<br />

alada, sobre um cavalo monstruoso quase a tocar no pangaré de São Jorge num Shazan<br />

imaginário, sejam o que forem las cosas a essa altura das suas conscienciazinhas que<br />

dependem de pilhas para movimentar-se. Coitadas de las cosas que vão se perden<strong>do</strong> no vapor<br />

<strong>do</strong> crack azula<strong>do</strong> da memória.<br />

117


Assim como os mais vivos, los muertos también portam los subacos da testosterona<br />

universale. Com seus corpos enterram os brinque<strong>do</strong>s assassinos <strong>do</strong> ciúme, calungas de louça<br />

inquebrável, los muertos são periculosos porque vagam com a máxima imunidade, não puedem<br />

morrir duas vezes nem tampoco serem multa<strong>do</strong>s pela companhia municipal del tráfego.<br />

Prefiro meu cavalo a qualquer carroça, de que adianta um BMW que anda, neste<br />

pueblo, abaixo da velocidade de um pangaré que puxava uma diligência <strong>do</strong> século XIX?<br />

Si, 12 km por hora nas avenidas principales, carajo.<br />

Donde se vê um motorista zen ouvin<strong>do</strong> Mozart...<br />

Donde se vê um motorista sacan<strong>do</strong> seu revólver...<br />

Donde se vê um motorista lesa<strong>do</strong> ouvin<strong>do</strong> o boletim <strong>do</strong> trânsito...<br />

Donde se vê um miserável marketeiro tiran<strong>do</strong> a camisa na Avenida Brasil e mostran<strong>do</strong><br />

que não vai assaltar o motorista, quer apenas mostrar que é uma criatura honesta e fodida,<br />

marketing da miséria...<br />

Donde se vê um pai-de-rua exploran<strong>do</strong> los chicos bueñuelitos...<br />

Donde se vê basta abrir o vidro nada glasnot ou transparente a essa altura da viagem.<br />

Como dali estávamos mais pertos de una luna caliente incrible, nem ligamos para aquela<br />

indecência póstuma <strong>do</strong> cemitério à vista. O cãozinho tão feliz, mi hermoso perro, brincan<strong>do</strong><br />

com o rabo <strong>do</strong> cavalo, coisa linda, que nem ligamos para o tufão de fumaça e o cheiro de laranja<br />

podre que lhe jogava na cara o caminhão <strong>do</strong> lixo <strong>do</strong> bairro de Higienópolis. Agora falamos <strong>do</strong>s<br />

vivos, esses seres mofa<strong>do</strong>s pelos micróbios das obrigaciones, mas sem mínimas morales, que<br />

nuestras garupas não pesam.<br />

Late o cãozinho e tira uma onda com os garis bêba<strong>do</strong>s, que bebem para suportar o<br />

cheiro da merda humana que lhes sujam as luvas amarelas.<br />

118


Quan<strong>do</strong> estão borratchos mesmo sacodem as luvas fuera e amassam a mierda de la<br />

erristência que já se mistura às suas bidas como el barro nas mãos daquela mujer de la<br />

película Ghost.<br />

Cap. XVI - De una lucha de gigantes, ainda<br />

A cigana de ojos andaluzes, que eu arrancara em lucha de gigantes, tenta, ela mesma,<br />

tenta me dizer algo que se torna incompreensíble por causa das lufadas de vento friaca, por<br />

causa <strong>do</strong> portunhol de mierda, essa praga que hay toma<strong>do</strong> nuestro mun<strong>do</strong>, por causa <strong>do</strong>s lati<strong>do</strong>s<br />

pentencostales, também em portunhol selbaje, si, el pobre perro habia también contamina<strong>do</strong><br />

sua língua farejante com el soni<strong>do</strong> del concierto, el cantante, nos intervalos, hablava apenas<br />

español selbaje, tosqueira, mas também por causa <strong>do</strong>s uivos <strong>do</strong>s tara<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s mortos, por causa<br />

<strong>do</strong> caminhão trituran<strong>do</strong> os detritos e os desejos guarda<strong>do</strong>s da classe média <strong>do</strong> bairro, aqui nas<br />

pradarias babilônicas.<br />

Digo “si, si, si, si, si” a tu<strong>do</strong> que vem daqueles lábios mestiços e daqueles ojos<br />

andaluzes, assino embaixo no escuro das nossas línguas, mas não era uma índia?, e rumamos<br />

sobre as pradarias nocturnas, não, não era Esperanza.<br />

O cãozinho entende o que ela fala e tenta a to<strong>do</strong> custo traduzir em mordidas nas canelas<br />

<strong>do</strong> nuestro pangaré paraguayo, como num braile absur<strong>do</strong>. O total de mordidas por vez<br />

corresponde a uma letra no alfabeto, como se passassem torpe<strong>do</strong>s ao telefono, daí cabe ao<br />

sábio pangaré retransmiti-los com um código Morse de su própria cabeza de caballo da<strong>do</strong>.<br />

Pego o cantil e entorno, agora la aguardiente de fino alambique <strong>do</strong> Pedro Grammático,<br />

<strong>do</strong> sítio São Judas Tadeu, São Carlos, interior deste pueblo. Jogo um pouco sobre o asfalto,<br />

para o anjo da guarda desta noche, e descambo a pensar nas letras de algunas canciones del<br />

concierto <strong>do</strong> ano da graça de 2006, como estes versos, por exemplo:<br />

“Juliana, me fale a teoria <strong>do</strong> seu Sigmund Freud,<br />

aquele velho louco e cheira<strong>do</strong>r.<br />

Juliana, me fale sobre júpiter em oposição ao sol<br />

e de saturno em quadratura com a lua.<br />

119


Juliana, me fale um pouco sobre as sociedades primitivas e o homem no princípio<br />

<strong>do</strong> universo<br />

Suas palavras me levam sempre ao paraíso<br />

onde o sol que me ilumina é o seu sorriso!!!”<br />

Cap. XVII - Do ataque <strong>do</strong>s Gângsteres <strong>do</strong> <strong>Sol</strong> Quadra<strong>do</strong><br />

Avançamos sobre as pradarias até sermos obriga<strong>do</strong>s a nos esconder debaixo de um<br />

túnel, enquanto la policia e una falange de batismo Gângsteres <strong>do</strong> <strong>Sol</strong> Quadra<strong>do</strong>, pelo que<br />

recuer<strong>do</strong>, trocavam tiros de indecifrável calibre, a real da guerra sem virgens ou sicários.<br />

Foi aí que perdi o meu pobre cãozinho gospel.<br />

A última vez que o avistei, ele brincava de circo com um pneu em chamas que<br />

atravessava uma ponte sobre o Rio Tamanduateí. Depois, em sonhos de uma siesta<br />

emaconhada, ele reapareceu to<strong>do</strong> prosa sob a guarda de um mascate de churrasco grego,<br />

a<strong>do</strong>rava também churrasquinho de gato e sentava praça à sombra de todas as barracas e<br />

carroças <strong>do</strong> gênero.<br />

Cap. XVIII - De como la chica com o seu lin<strong>do</strong> cachecol colori<strong>do</strong> limpou<br />

minhas lágrimas em preto e branco<br />

Essa coisa de ter sonhos de uma siesta dirigi<strong>do</strong>s livremente acabam dan<strong>do</strong> em mierda,<br />

meu anjo, mas confesso, me impressionam, quiçá me paralisam. Pior é que quan<strong>do</strong> tiro noites<br />

para o sexo, não para los sueños, também sonho dentro de quem amo ou dentro de quem<br />

invento que amo tanto.<br />

Onde está usted, amigo cão de alma perra?<br />

Ela, mi ojos andaluzes, com mãos fuertes, abraçou-me sobre o caballo. E me deu um<br />

beijo ao vento, daqueles de road-movie. Com seu lin<strong>do</strong> cachecol colori<strong>do</strong> limpou minhas<br />

lágrimas alvinegras, como se fossem lágrimas dirigidas por Jim Jarmusch. Seguimos, segue a<br />

vida enfim, rapay.<br />

Arriba comancherossssss! A noite está apenas começan<strong>do</strong>, sempre.<br />

Cap. XIX- Donde o nóia aperta o “S” de subsolo e desce aos infernos<br />

Nem deu tempo de eu berrar calabocafeladaputa, tive que apertar o gatilho e fazer aquele<br />

verme, negro como aquela noite de segunda, negro como a noite que não tem luar da música,<br />

música que eu odiava, quan<strong>do</strong> minha mãe preta cantava, já meio louca, alcoolizada como a mãe<br />

120


de Elvis Presley, “Índia teus cabelos...”, entregue, dan<strong>do</strong> para Deus e para o mun<strong>do</strong>, ou talvez<br />

nem dan<strong>do</strong>, mas perdida, e mulher nem precisa dar... os merdas <strong>do</strong>s machos já acham que se foi,<br />

já é, deu, não para poucos, fodam-se.<br />

Nem deu tempo, não sou de nove-horas. Calibrei o indica<strong>do</strong>r da mão esquerda, atiro e<br />

jogo sinuca com esse la<strong>do</strong> <strong>do</strong> cérebro, foi fácil fazer aquele nóia apertar o “S” de subsolo e<br />

descer direto aos infernos.<br />

Porque os corpos vão para o Instituto Médico Legal, IML, justo, as almas não. As almas<br />

tomam banho de enxofre quente nas profundezas e depois penam, vagam, até encontrarem<br />

outros restos humanos para fazer morada ou encosto.<br />

Besta é quem espera o que vem <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> escuro.<br />

Não temo nenhum vivente. Meu único me<strong>do</strong>, desde menino, é <strong>do</strong> mistério <strong>do</strong> la<strong>do</strong><br />

negro da noite.<br />

Meti-lhe bala no toitiço. Caiu estrebuchan<strong>do</strong> como um bode ao levar a primeira paulada<br />

no açougue. Já viram como cai um bode ou um carneiro nessas horas fatais, os caprinos?<br />

Menos uma alma sebosa sobre a terra, foi-se.<br />

O desalma<strong>do</strong> implorava “eu sou inocente, trabalha<strong>do</strong>r, pai-de-família, pelamordedeus”,<br />

de joelhos. Ah, nessas horas to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> é <strong>do</strong> la<strong>do</strong> certo da vida, se brincar, cita um versículo<br />

de João, Apocalipse, se brincar, usa a própria Bíblia como escu<strong>do</strong>, açoite, igual no faroeste que<br />

a moeda, o dólar, salva a vida <strong>do</strong> homem, o dólar fura<strong>do</strong>, Giulliano Gemma, lembram?, nessa<br />

hora ninguém é criatura das sombras.<br />

Trabalha<strong>do</strong>r? Como se ainda tivesse trabalho para esta mundiça, escória, refugos!!! Paide-família?<br />

Pensa que “crescei e multiplicai-vos” é povoar o mun<strong>do</strong> de ladrão e aumentar a<br />

escória da Terra?<br />

Pelo amor de Deus?<br />

Mais uma bala no juízo por usar o seu santo nome em vão nessa boca de onde só sai o<br />

mal e o sobejo da besta fera <strong>do</strong> universo.<br />

Estraçalhei o coco <strong>do</strong> desgraça<strong>do</strong>, dava para ver os miolos moles, balofos, uma rodilha<br />

de gosma, como se fossem lombrigas, parecia aqueles desenhos, cérebro, cerebelo, como<br />

desenhos da escola, como vejo ensinan<strong>do</strong> a tarefa da minha filha Verônica.<br />

“Tal como a nuvem se desfaz e some, aquele que desce à sepultura nunca tornará a<br />

subir. Nunca mais tornará à sua casa, nem o seu lugar o conhecerá mais." (Jó 7:9-10)<br />

SOBE.<br />

DESCE.<br />

Disse alto o meu versículo, como sempre faço quan<strong>do</strong> livro a Terra de um malassombro,<br />

e segui com a consciência limpa de quem tem ajuda<strong>do</strong> a assear o mun<strong>do</strong>, pelo menos o meu, o<br />

que interessa.<br />

Carandiru foi pouco, desgraça<strong>do</strong>s, pestes bubônicas, istampô-calango, febre <strong>do</strong> rato,<br />

vômito <strong>do</strong> demo, 666 escrito a ferro em brasa, tatuagem da besta. Dimas, o ladrão <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de<br />

121


Jesus, que me per<strong>do</strong>e, mas hei de acabar com os alopra<strong>do</strong>s aqui da Terra, os que não prestam nem<br />

para esterco, estrume, deles não nascem nem mamona, que é capaz de nascer até sobre pedra.<br />

Nem estava de serviço naquela noite. O que não podia era me acovardar no momento.<br />

Olhei os meus meninos <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>, Yarley, de dez anos, Daiana, de nove, e Carlitos, de onze<br />

meses, batismo que dei em homenagem ao Carlitos Tevez, até então herói argentino <strong>do</strong> meu<br />

time, o Sport Club Corinthians Paulista. Eu sei que passa, o cara vai embora, mas como foi<br />

importante aquele título, rapaz de fibra, raça, a cara <strong>do</strong> meu Timão, fodam-se bambis<br />

tricolores, palmeirenses de merda, viúvas de Pelé, só existe o Corinthians entre o céu e a terra<br />

na terra, vocês sabem seus bostas.<br />

Beijei a testinha de cada um deles, meus meninos, peguei minha toca ninja, minha arma<br />

e fui ajudar os irmãos <strong>do</strong> la<strong>do</strong> certo da vida a limpar a bandidagem que tomava conta de São<br />

Paulo, cidade a quem devo a vida, naquela justa hora.<br />

Sim, sou polícia, alma gambé, com muito orgulho.<br />

Sou polícia porque gosto de defender o la<strong>do</strong> certo da vida.<br />

Se fosse por dinheiro...<br />

Nas folgas, faço bico de segurança para o comércio <strong>do</strong> bairro.<br />

Não tenho pena de alma troncha.<br />

Esses trastes só merecem formiga na boca e três palmos e meio de terra da mais comum<br />

das valas, indigências.<br />

Sete palmos de terra é pra gente, não para verme como essa laia escrota.<br />

Por mim, nem enterrar enterrava.<br />

Os urubus que arrancassem as tripas em praça pública. Já viram um urubu arrancan<strong>do</strong><br />

tripas de um boi e subin<strong>do</strong> no azulzão <strong>do</strong> céu pra comer, voan<strong>do</strong> lá em cima feito um poeta<br />

con<strong>do</strong>reiro, Castro Alves, como aprendi no ginásio ainda lá em Vitória da Conquista?<br />

Cap. XX - De Romeu & Julieta e de outros romantismos apropria<strong>do</strong>s<br />

Por causa <strong>do</strong> pânico nas pradarias nocturnas de San Pablo de Piratininga, nos<br />

escondemos, com muito gosto, nos infiernos da Rua Augusta, beben<strong>do</strong> drinques vermelhos, eu<br />

campari, ela um certo bloodymary falso que eu mesmo improvisava com molho de tomate<br />

vagaba, quase Q-Suco, “hacen bien a la fluera intestinale.”<br />

“Diga-me uma coisa sagrada para ti”, provoquei a rapariga, copian<strong>do</strong> o que acabara<br />

de ler num faroeste.<br />

“Ah, Romeu e Julieta, por exemplo”, ela disse.<br />

Onde estará meu pobre cão que falava a língua <strong>do</strong>s homens de boa vontade?<br />

122


Lá fora, sob a garoa, meu pangaré paraguayo relinchava e era um sinal de que segue a<br />

vida enfim, segue a vida e eu adapto o meu velocímetro.<br />

Chivas ainda soletra uma tese. Segun<strong>do</strong> o quadrúpede, está na boemia, e não na política,<br />

a resistência, a guarda <strong>do</strong> espaço público possível nos dias de hoje.<br />

O seu generoso elogio à resistência e à flânerie, às mesas nas calçadas, aos bêba<strong>do</strong>s que<br />

vagam, elogio ao seu próprio <strong>do</strong>no. Sim, amanhã a cocheira receberá ração inglesa, a mesma<br />

<strong>do</strong>s cavalos <strong>do</strong> Príncipe Charles, valeu, grande Chivas, andava mesmo carente de teses que<br />

justiçassem as minhas perdições en la noche, grande prêmio.<br />

Cap. XXI - Donde Ezequiel faz o que pode e o que não pode para encaixar<br />

os cadáveres<br />

Nas margens <strong>do</strong> Rio Pinheiros, os urubus apuram o faro, como durante to<strong>do</strong>s os dias <strong>do</strong><br />

ano. Sobrevoam na companhia da segunda maior frota de helicópteros <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, só perdemos<br />

para NY, um shopping-bunker de luxo, revenda das mais importantes grifes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, e<br />

decidem o próximo destino: IML, Instituto Médico Legal, nas proximidades.<br />

Mais de cem corpos, cadáveres de policiais e de suspeitos e supostos suspeitos mortos<br />

em possíveis confrontos da Polícia com os Gângsteres <strong>do</strong> <strong>Sol</strong> Quadra<strong>do</strong>, a supracitada<br />

falange, noticiário à toda, coisas da bida, viejo amigo Kurt.<br />

O tiozinho Ezequiel faz o que pode e o que não pode para encaixar mais uns cadáveres<br />

nas câmaras frigoríficas e foge para tomar umas pingas.<br />

“Diabequeaguenta”, diz no seu cearensês da porra, cabra nasci<strong>do</strong> em Quixeramobim,<br />

terra <strong>do</strong>nde partiu Antônio Conselheiro, no prumo <strong>do</strong> que daria na sua Canu<strong>do</strong>s.<br />

Alguns corpos apodrecem.<br />

Desde o massacre <strong>do</strong>s 111 presos <strong>do</strong> Carandiru, em 2 de outubro <strong>do</strong> ano da graça de 1992,<br />

o tiozinho Ezequiel não via tanta gente morta numa mesma noite neste deserto de San Pablo.<br />

“É morto demais pra pouca geladeira”, conclui friamente no boteco Sampaio Correia,<br />

ali na Rua Teo<strong>do</strong>ro Sampaio, enquanto pega mais uma breja que neva sobre a pobre realidade<br />

fumegante que queima os de<strong>do</strong>s.<br />

Três rabos-de-galo depois, para anestesiar as narinas, volta ao serviço.<br />

123


Agora os urubus, na fissura da carniça, já sobrevoam o prédio <strong>do</strong> instituto, mesmo ainda<br />

na fronteira entre noite e dia, madruga, luz confusa, carniça é cocaína de abutre que faz de<br />

hoje um ano de noites brancas.<br />

Ezequiel conta: quan<strong>do</strong> vê urubu assim, a imagem que lhe vem à cabeça é a de sempre.<br />

Uma magote de abutres esgarçan<strong>do</strong>, em segun<strong>do</strong>s, os intestinos de uma vaca só o couro<br />

e osso que havia tomba<strong>do</strong> na seca.<br />

Um tio-avô de Ezequiel, Jó, narra, morreu assim, com os urubus a puxar-lhe os<br />

intestinos. Foi em um <strong>do</strong>s campos de concentração da Seca de 1932, no município <strong>do</strong> Crato,<br />

Cariri, sul <strong>do</strong> Ceará, um <strong>do</strong>s seis “currais da fome” onde o governo isolava os flagela<strong>do</strong>s, os<br />

molambos, os fiapos de gente para que não levassem <strong>do</strong>enças para os centros urbanos.<br />

Ezequiel pede mais uma.<br />

Um outro bebum, que conhece a lenda, completa ali <strong>do</strong>s arre<strong>do</strong>res, puxa conversa sobre<br />

uma certa máfia capilar, coisa antiga. O roubo de cabelo <strong>do</strong>s mortos <strong>do</strong> IML, principalmente<br />

das mortas, se virgens se<strong>do</strong>sas melhor ainda, para vender às fábricas de perucas, lindas, asas<br />

de graúnas, galegas também em alta, pêlos de bonecas.<br />

Outro só resmunga, como num soluço: “COISAS DA VIDA”.<br />

Os urubus voam cada vez mais baixo.<br />

Ezequiel volta na tentativa de congelar os mortos. Ri, no caminho, pensan<strong>do</strong> no tempo<br />

em que também vendia cabelos.<br />

Ezequiel sempre preferiu as chacinas. O rabecão vai lá, recolhe rápi<strong>do</strong>, traz, bota na<br />

geladeira, num tem frescura. Mas chacina de cinco ou seis, como de costume. De mais de cem<br />

dá trabalho ao mais anestesia<strong>do</strong> <strong>do</strong>s narizes.<br />

Ele pensa na próxima breja, no próximo rabo-de-galo COISAS DA VIDA, nuestro<br />

amigo Kurt o acompanha ladeira acima.<br />

Cap. XXII - De uns uivos de lobos ao longe e nada mais<br />

Ela, a minha linda e ciganosa criatura, acha que durante o tempo em que nos<br />

esfregamos carinhosamente sobre o cavalo não notei nada.<br />

Acha que isso é motivo de desmanche da nossa comovente história que começou com<br />

requintes bíblicos, Davis & Golias, cartazes clássicos, quase Plaza de Toros, a luta contra o<br />

Gigante Tatua<strong>do</strong>.<br />

“Pobre perro”, ela diz. “Fofinho”, ela alisa o próprio braço como se fosse o cãozinho gospel.<br />

Comove.<br />

Uivos de lobos ao longe, me sinto na floresta negra, naquelas memórias alcoólicas, o<br />

cara descen<strong>do</strong> a montanha para votar pelas mulheres, num plebiscito sobre bebedeiras e outros<br />

bafos conserva<strong>do</strong>s em barris de crenças, como se fosse possível mudar o DNA <strong>do</strong>s<br />

alcoólatras de berço ao simples “aleluia” de uma igreja, meu caro primo Jack.<br />

124


Cap. XXIII - De Chivas e das suas remelas melancólicas<br />

Chivas guarda remelas melancólicas nos seus zolhões amarelos.<br />

Enquanto ela, a cigana possível, me comove outra vez, de nuevo.<br />

Ayuda-me, justiceiro!!!<br />

Seus ojos andaluzes agora mareja<strong>do</strong>s, lembran<strong>do</strong> <strong>do</strong> nome e tu<strong>do</strong> <strong>do</strong> meu cachorro que<br />

ficou na bruma da guerra urbana.<br />

Chamava-se Cisco, uma homenagem a Cisco Kid, mocinho defensor <strong>do</strong>s fracos que<br />

começou a vida ainda no cinema mu<strong>do</strong>, sempre na companhia <strong>do</strong> simpático gordinho Pancho,<br />

um mexicano.<br />

“Não llora, amor”, ela implora, “não llora bebezito de mi pobre bida”, Marguerita implora.<br />

Donde vem esse portunhol selvagem, maluca?, pergunto de volta.<br />

Ela me fazia <strong>do</strong>rmir las siestas embaladas com incribles lendas guaranys, cunha-taís,<br />

histórias da tríplice fronteira, formigas gigantes viciadas no magnésio de fitas cassetes - com<br />

guarânias e boleros para um amor sincero - e <strong>do</strong>s carregamentos de VHS.<br />

Marguerita estivera com os Jivaros, uns índios da Alta Amazônia, uns índios abusa<strong>do</strong>s<br />

em suas existências, radicalíssimos os Jivaros, anarquistas ao extremo, que fazem de to<strong>do</strong>s os<br />

dias uma viagem sem fim, tribo <strong>do</strong> Piemonte andino, pelo que me recor<strong>do</strong>...<br />

“POLÍGAMOS RADICALES”, ela diz.<br />

“MATERIALISTAS!!!,<br />

SENSUALISTAS!!!,<br />

POSITIVISTAS EXTREMOS!!!”, disse sobre eles o padre Vacas Galin<strong>do</strong>, ela me conta,<br />

belo riso o riso somente dela.<br />

Esse conto <strong>do</strong> vigário é de 1895, de novo ela, sopra, recita, para a minha cara de leso<br />

maconheiro sem memória, mil oitocentos e quanto mesmo?<br />

Século 18 ou 19?<br />

Como se isso tivesse importância.<br />

Quatro anos después, o abade François-Pierre, ela me ilumina, ah, me gusta da memória<br />

de los viajantes, havia dito:<br />

125


"A família Jivaro é um lupanar no qual a devassidão mais desavergonhada é exposta<br />

sem restrições nem pu<strong>do</strong>r!".<br />

Paudurescência na hora, me sentia um jivaro àquela altura diante da minha linda<br />

antropóloga ou, sabe-se lá, me gusta las cientistas picaretas, o que seria essa mulher, será que<br />

ela existe? Será que ela existe uma vez que la própria mujer non erriste, conforme Lacan,<br />

frango!!!, un dia hay surta<strong>do</strong>?<br />

Continuarei a inventá-la daqui por delante, porque homem que é homem prefere<br />

inventá-las, jamais à sua imagem e semelhança, mas prefere inventá-las a acreditar que a<br />

mulher, mesmo a mulher <strong>do</strong> padre, seja mesmo uma ficção de nuestras costelas bíblicas.<br />

Mais beijos na boca para compensar la lucha de gigantes.<br />

Como são bons esses beijos que, mesmo se por uma noite, sabe-se lá, já ficam como os<br />

melhores tira-gostos, asinhas de anjos barrocos à passarinho, com vodca pura, como os<br />

operários russos.<br />

“NÃO LLORA AMOR!”.<br />

Fazia tempo que não ouvia, nesse grande deserto <strong>do</strong>ravante denomina<strong>do</strong> Carençolândia<br />

de La Existência Perdida e Sem Vuelta, um “não chora, amor” mais terno, comovi<strong>do</strong>, luna<br />

caliente em taças de requinta<strong>do</strong> conhaque, carajo, fudeu, agora é que entendi la oscuridad,<br />

negrura, escuridón, tinieblas que viene lá <strong>do</strong> sótão d´alma que pode ser uma noite, apenas uma<br />

noite, nada más, que importa?<br />

Meu portunhol estaba cada vez mais al puento, conforme avançávamos na viarrem al<br />

fim de la calle.<br />

O resto <strong>do</strong> áci<strong>do</strong> baten<strong>do</strong> no juízo, la coca e flores letales nos narizes, e lloramos<br />

como na canción de Roy Orbinson:<br />

LLORANDOOOOOOOOOOOOOOOOOO.<br />

As lágrimas mais legítimas são as lágrimas después de um velho áci<strong>do</strong>, ou mesmo de<br />

um flash-back, además nem os garçons choram uma gotícula de água escocesa paraguaya por<br />

estas plagas latino-americanas.<br />

Ayuda-me justicero, socuerram-me índios que governam a América, cerram comunistas<br />

miraculosos de verdad, façam com que la água de la bida jorre sobre nuestros copos longos e<br />

cheios <strong>do</strong> granizo de todas las tempestades.<br />

Cap. XXIV - De uma medusa ofegante nada más<br />

No que encho a mão com gosto no que seria la concha de minha linda criatura ciganosa,<br />

Chivas não agüenta e relincha, entre o riso e o “bem que te avisei, maluco”, la buena onda.<br />

126


Ela me beija com mais força ainda.<br />

“Tentei te dizer de to<strong>do</strong> jeito”, ela sussurra, a partir de agora, não diz nem fala, só<br />

sussurra, medusa ofegante.<br />

Cap. XXV - Do Jornal da Morte, Extra, Extra, Extra!!!<br />

“Carandiru foi pouco, já estamos chegan<strong>do</strong> aos cem”, berra o sr. Oluas, superxerife<br />

da Segurança Pública de la Província de San Pablo.<br />

A reação.<br />

“Mexeram com os nossos brios”, late, como um cão de Pavlov que carece de<br />

sangue, sangue, sangue.<br />

“Fogo neles, é prender e matar OS SUSPEITOS DE SEMPRE, e foda-se a vaca da<br />

Hanna Arendt”.<br />

Trata-se de um señor muy li<strong>do</strong> e informa<strong>do</strong>.<br />

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110...<br />

“Pára, pára, pára”, grunhe o sr. Oluas.<br />

(...)<br />

“Eu falei PAREM A CONTAGEM, não as mortes!!!”, ele de novo. Está muy<br />

bravo:“Passar <strong>do</strong>s 111 seria um Carandiru a céu aberto”.<br />

127


“É, na outra chacina os caras pelo menos estavam presos”, sussurra um lambe-botas.<br />

“Calabocafeladaputa, num tá ven<strong>do</strong> que ali está a imprensa?”<br />

“GRANDE MERDA”, diz um velho repórter copia<strong>do</strong>r de B Os e depoimentos à<br />

Justiça, desde o império das velhas Burroughs & Remingtons, copia<strong>do</strong>r ao ponto de já ter<br />

publica<strong>do</strong>, em algumas ocasiões, até aquele famoso final “nada mais foi dito nem pergunta<strong>do</strong>”,<br />

como me segredara o bravo criminalista <strong>do</strong>n Francisco Carvalho Filho.<br />

Parem as máquinas, riem as próprias rotativas de la prensa, velho Kurt Vonnegut, riem<br />

de si mesmas, riso denta<strong>do</strong> e mecânico, enquanto motosserras roem as árvores que viram<br />

manchetes garrafais sobre crimes amazônicos, fitzcarráldicas corporações. Nem mesmo las<br />

árvores que viram manchetes acreditam ou choram suas resinas mais encorpadas...<br />

Não compre jornal, minta você mesmo, dizem as árvores como naqueles trabalhos<br />

escolares em que as árvores, no Dia da Árvore, falavam e tinham direito a balõezinhos falantes<br />

desenha<strong>do</strong>s nas cartolinas cor-de-rosa sobre as suas copas.<br />

128


Cap. XXVI - Donde Martin Fierro interfere na sinuca<br />

Voltamos a nos beijar, eu e a mulher <strong>do</strong> Gigante Tatua<strong>do</strong>, beijar, como se diz, beijar<br />

ardentemente, depois que perdi, mais uma vez, para <strong>do</strong>n Campos Viejo, na Sinuca <strong>do</strong> Pesca<strong>do</strong>r,<br />

no districto <strong>do</strong> Baixo Augusta, Conda<strong>do</strong> de la Consolación, nuestra geografia afetiva.<br />

Havíamos esqueci<strong>do</strong> quaisquer símbolos e Medusas e também o sorriso sacana de Chivas,<br />

sim, meu pangaré a quem devo a vida y mucho más.<br />

Puerra, <strong>do</strong>n Campos Viejo fica recitan<strong>do</strong> Martin Fierro, fode, esqueço a caçapa, dane-se,<br />

ilusionista, bolas em diagonal, foda-se, perco quase todas, mas com um heroísmo <strong>do</strong>s gigantes<br />

<strong>do</strong> ringue, essa noite levamos um baile de <strong>do</strong>n Bortolotto, el grand dramaturgo del cemitério de<br />

los autos, em dupla com su amigo <strong>do</strong>n Amalfi, que tocava Duck Ellington com o taco.<br />

(...)<br />

Voltamos a nos beijar, <strong>do</strong> jeito mais denso possível, sabe, dentes baten<strong>do</strong> e língua<br />

muy loca e, ora direis, ouvir céus e estrelas. Ai como é gostoso aqueles peitinhos a bater nas<br />

minhas costas, roçar as omoplatas...<br />

O cavaleiro fazia de conta que não via a sombra <strong>do</strong> pau dela na parede, sol<br />

adentran<strong>do</strong> a persiana.<br />

Cantou uma canción del concierto a<strong>do</strong>nde tu<strong>do</strong> habia começa<strong>do</strong> para ella, cantou <strong>do</strong><br />

jeito que veio naquela madruga sem fim ainda incendiada por binte años de álcool en lo<br />

caveirón heróico del Mercosul de la existência:<br />

“Yo tengo un paraquedas para te salbar/ yo tengo un paraquedas em mi corazón”.<br />

Ela me abraçou fuerte.<br />

Nossos narizes havia tempo não estavam mais esquimós, mesmo naquela noche polar<br />

de ano da graça de 2006, noche de ataque de los Gângsteres <strong>do</strong> <strong>Sol</strong> Quadra<strong>do</strong>.<br />

Quan<strong>do</strong> montamos nuestro cavalo mandei outra canción das antigas:<br />

“Tenho 25 anos de sonho e de sangue<br />

E de América <strong>do</strong> Sul<br />

Mas por força <strong>do</strong> meu destino<br />

Um tango argentino<br />

Me cai bem melhor que um blues”.<br />

Cap. XXVII - Da bundinha de Brigitte deitada na laje de Saint-Tropez<br />

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Naquela taberna mais esquizofrênica, compramos, <strong>do</strong>s mascates noctívagos, guerra<br />

<strong>do</strong>s justos, uns discos e um DVD hermosíssimo:<br />

“...E Deus criou a mulher”.<br />

Sangre de Cristo!<br />

“Um filme envolvente, cheio de sensualidade, que lançou para o mun<strong>do</strong> a diva Brigitte<br />

Bar<strong>do</strong>t!”, ela lê na capa, imitan<strong>do</strong> o biquinho de BB.<br />

Quase sem escorregar no portunhol, salve!, milagre.<br />

“El enorme successo del filllme ´...Y Diós creoou la murré´, de Joger Vadam,<br />

revolucionou o merca<strong>do</strong> de filllmes estranrreros e hay transforma<strong>do</strong> Brirrite Bar<strong>do</strong>t em uma<br />

estrella internacionale”, prossegue os meus ojos andaluzes. “Nesta película, ella bibi Juliette,<br />

uma chica huerfana, desamparada, de 18 años, sedienta de satisfacción”.<br />

Seu mari<strong>do</strong> fará de tu<strong>do</strong> para conquistá-la, mas esta não será uma tarefa fácil. Filme<br />

obrigatório para os amantes da Sétima Arte, contan<strong>do</strong> com um enre<strong>do</strong> instigante, elenco<br />

competente, grande diretor e, é claro, toda a beleza e sensualidade de uma das maiores<br />

divas <strong>do</strong> cinema: Brigitte Bar<strong>do</strong>t.”<br />

Quan<strong>do</strong> BB surge, por detrás daquele varal de roupas, com a bunda mais deliciosa <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> deitadinha numa laje, meu Deus, antecipo o filme para Margarita ainda a caminho de<br />

casa, a<strong>do</strong>nde nunca chegamos, e Margarita lembra da cena e vira a sua própria bundinha toda<br />

para mim, e diz algo como... “pega, seu vira-lata sem <strong>do</strong>no”, em ótimo português, “me come<br />

tu<strong>do</strong> que for possível ser comi<strong>do</strong> por um homem de verdad!”<br />

Subimos ali numa escada abaixo <strong>do</strong> Saravejo, clube de la mesma calle, quintal de<br />

ruínas da Rua Augusta. Ela fica de quatro em cima duns escombros forra<strong>do</strong>s por jornais de<br />

ontem, que noticiavam a última invasão de Israel ao Líbano, e vem com sua linda bunda em<br />

slow-motion, fica aí, não mexe, fica aí, ela diz, deixa que chego, e vem, aquela linda bunda<br />

que parece a lua cheia que nos cobre de fortunas passageiras, àquela altura sob o céu que, num<br />

relâmpago, já nos nega, embaça<strong>do</strong>s corazones, a visão de tal luna caliente, mete tu<strong>do</strong>, mete,<br />

agora me beija, a nuvem passa.<br />

Cap XXVIII - Da arte da guerra e <strong>do</strong> <strong>Sol</strong> Quadra<strong>do</strong><br />

131


Na sela solitária 151 da penitenciária de Presidente Bernardes, o Subcomandante <strong>do</strong><br />

Crime da falange anteriormente citada, a <strong>do</strong>s Gângsteres <strong>do</strong> <strong>Sol</strong> Quadra<strong>do</strong>, medita com lições<br />

de “A arte da guerra”, de Sun Tzu:<br />

“Se tiveres próximo de alguma montanha, procura ocupar o la<strong>do</strong> que dá para o sol. Esta<br />

localização tem grandes vantagens. Estende-te com segurança das encostas até a proximidade<br />

<strong>do</strong>s vales. Ali encontrarás água e forragem em abundância. Rejubilarás com a vista <strong>do</strong> sol, te<br />

aquecerás com seus raios e o ar que respirarás será muito mais saudável <strong>do</strong> que <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong>.<br />

Se os inimigos irromperem por trás da montanha, informa<strong>do</strong> por sentinelas, fugirás a tempo, se<br />

julgares que estás desprepara<strong>do</strong>. Julgan<strong>do</strong> que podes vencer sem muito risco, espera-os<br />

resolutamente para combatê-los. Entretanto, não combatas em terras elevadas, a menos que<br />

sejas obriga<strong>do</strong>. Sobretu<strong>do</strong>, nunca persigas o inimigo em terras altas ou sob sol poente.”<br />

O suposto bibliotecário local <strong>do</strong> maldito presídio de segurança máxima, o fabuloso<br />

Tom Castro, velho ladrão-de-casaca de bailes grã-finos da outrora romântica São Paulo, um<br />

velho leitor de contos vagabun<strong>do</strong>s e de infâmia, resmunga em direção ao Subcomandante <strong>do</strong><br />

Crime, enquanto pinta um quadro, pura terapia ocupacional, é o que diz?, sabe-se lá o que nos<br />

reserva essa arte.<br />

“Que diabos adianta, quase auto-ajuda, assim você vai acabar viran<strong>do</strong> um bandi<strong>do</strong> de<br />

mierrrrdaa, já já estarás len<strong>do</strong> Pablo Conejo. Que adianta enfrentar o perigo da vida e acabar<br />

numa esquina sem perigo algum da existência e da linguagem?!”, provoca o malaco.<br />

Puto com o esta<strong>do</strong> das coisas ali dentro, o velho Tom Castro arranja algo mais<br />

espirituoso para leitura <strong>do</strong> Subcomandante.<br />

“Você morre sozinho, mas vigia<strong>do</strong>”. Assim começa o livro que ele repassa.<br />

“Videizas?”, indaga o bibliotecário, que às vezes, esnobe, meti<strong>do</strong>, passava a falar<br />

com aquelas palavras que roubava de “Laranja Mecânica”, mó cara dura, para lá de óbvias,<br />

belo picareta.<br />

Soava falso, mas nem sempre, leu de tu<strong>do</strong> mesmo quan<strong>do</strong> trabalhava como ilustra<strong>do</strong>r<br />

das capas <strong>do</strong> Clube <strong>do</strong> Livro, aquelas capas bem..., capas que já matavam o mistério <strong>do</strong>s contos<br />

e romances to<strong>do</strong>s. A <strong>do</strong> best-seller “Só o Vento Sabe a Resposta”, por exemplo, era uma<br />

interrogação feita de vento.<br />

O verde violentou o muro”, de Inácio de Loyola Brandão, era um nesga clorofilada<br />

rompen<strong>do</strong> tijolos e resistências.<br />

As capas eróticas, então, haja <strong>do</strong>rso explícito, que rico!<br />

132


O volume que Tom Castro entregara ao Subcomandante <strong>do</strong> Crime era a “A LEI QUER<br />

QUE EU MORRA”, de Caryl Chessman, <strong>do</strong> mesmo autor de “2455 CELA DA MORTE”,<br />

famoso bandi<strong>do</strong> da América.<br />

No mesmo pacote presenteou com “Homero, o junkie”, gravação <strong>do</strong> grupo de rock<br />

mun<strong>do</strong> livre s/a cuja letra é inspirada no mesmo Chessman:<br />

“Às vezes uma voz interior insiste no futuro<br />

aí é quan<strong>do</strong> se cai na gargalhada...<br />

Vejam como os homens culpam os deuses<br />

de nós, dizem eles, vem o mal<br />

mas através de sua própria perversidade,<br />

e mais <strong>do</strong> que merecem,<br />

encontram...<br />

A tristeza.<br />

Assim falou Zeus,<br />

pai <strong>do</strong>s homens e <strong>do</strong>s Deuses,<br />

pela boca de Homero,<br />

o Junkie.<br />

Às vezes uma voz interior insiste no futuro<br />

Aí é quan<strong>do</strong> se cai na gargalhada<br />

Porque é o seu futuro<br />

O futuro é uma câmara de gás!<br />

O futuro é uma câmara de gás!<br />

O futuro é uma câmara de gás!<br />

(Seu ódio)<br />

Porque é o seu futuro<br />

(Seu ódio)<br />

Que coisa perfeita é o seu ódio!<br />

Aí ficaremos e o nosso triunfo é saber<br />

É saber<br />

que ninguém entenderá<br />

Nossa vitória não será entendida<br />

(Teremos venci<strong>do</strong>)<br />

No entanto, teremos venci<strong>do</strong>!<br />

(Teremos venci<strong>do</strong>)<br />

No entanto, teremos venci<strong>do</strong>!<br />

(Teremos venci<strong>do</strong>)<br />

133


No entanto, teremos venci<strong>do</strong>!<br />

(Teremos venci<strong>do</strong>)<br />

Poderia ser mais<br />

(Teremos venci<strong>do</strong>)<br />

poderia ser muito melhor<br />

(Teremos venci<strong>do</strong>)<br />

Com a destruição flamejante <strong>do</strong> inferno<br />

(Teremos venci<strong>do</strong>)<br />

que a sociedade alimenta<br />

alimenta<br />

(Teremos venci<strong>do</strong>)<br />

e nega indignada que o faz!<br />

(Teremos venci<strong>do</strong>)<br />

Que o faz!<br />

(Teremos venci<strong>do</strong>)<br />

Que final, que final,<br />

que final mais adequa<strong>do</strong><br />

para essa farsa<br />

farsa<br />

que foi planejada por nós,<br />

por nós,<br />

amigo,<br />

amigo ódio”.<br />

134


“Sempre fui louco para ver o sol nascer quadra<strong>do</strong> para poder, finalmente, pôr a minha<br />

leitura em dia”, desfiava as suas pabulagens o velho Tom Castro. Tom Castro que mantinha,<br />

clandestinamente, uma pequeno alambique, pinga destilada de arroz e de bagaço de laranja,<br />

num mocó <strong>do</strong> presídio.<br />

Segun<strong>do</strong> o velho Tom Castro, a cadeia, não a escola, CUIDADO ESCOLA, vide placa<br />

de trânsito, a cadeia era o melhor lugar <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para formar grandes homens e leitores como<br />

ele. Condena<strong>do</strong> a pena máxima, por justos roubos a milionários perversos, havia cumpri<strong>do</strong> o<br />

seu tempo além da conta, além <strong>do</strong> 1/6.<br />

Aproveitou que o Esta<strong>do</strong> esquecera de liberá-lo, conforme previsto nas tábuas, e foi<br />

mofan<strong>do</strong> por ali mesmo, lesma é lesma, encalacrava-se na ilusão de achar-se um leitor de verdade,<br />

o último deles, quan<strong>do</strong>, à vera, não passava de um velho fornece<strong>do</strong>r, à guisa de terapia prisional,<br />

de quadros para feiras populares, como a da Praça da República, na cidade de São Paulo.<br />

Tom Castro odiava a possibilidade de estar solto outra vez, não havia nada que o<br />

despertasse aqui fora.<br />

Amores?<br />

Ele ria de <strong>do</strong>er o estômago.<br />

Família?<br />

Ficou no ralo das punhetas e nas clínicas de aborto.<br />

Posses?<br />

Toda propriedade é um roubo, dizia o ladrão, numa entrevista imaginária que respondia,<br />

cada vez com mais perguntas, todas as noites em que os inocentes carneirinhos contabiliza<strong>do</strong>s<br />

não davam jeito no seu sono <strong>do</strong>s justos.<br />

O que vai fazer quan<strong>do</strong> se livrar das grades?<br />

Enquanto tiver livros no mun<strong>do</strong>, só saio daqui morto. A rua tem mão dupla, terreiro <strong>do</strong><br />

demo da ansiedade, gabava-se. Ora, ora, só li Guerra & Paz 42 vezes, que merda, o diabo que<br />

me livre de ser mais um analfabeto lá fora!.<br />

Tom Castro, nasci<strong>do</strong> na Vila Tolstoi, zona leste deste pueblo, defendia umas teses<br />

estranhas, todas para esconder a sua suposta pequenez de pintor de quadros kitsch. Era o<br />

melhor exemplo, há tempos, de um programa de artes plásticas nos presídios da América<br />

Latina. Um programa que combinava pintura naif e redução de penas.<br />

Master <strong>do</strong>s masters no gênero.<br />

Uma das teses estranhas, não sabemos se era desculpa ou álibi picareta, era a de<br />

que to<strong>do</strong> homem devia passar pelo menos dez por cento da sua vida na tranca, na cadeia,<br />

assim seria menos idiota.<br />

A única coisa de boa que o Esta<strong>do</strong> poderia fazer por nós, de acor<strong>do</strong> com a mente<br />

daquele velho ladrão, era essa leitura por força das circunstâncias.<br />

Vigiar e Punir, ele a<strong>do</strong>rava esse título.<br />

“Por baixo, por baixo, o filho-da-puta aqui se vicia em ler a Bíblia,” rosnava, enquanto<br />

não lia, enquanto só pintava telas com cavalos gigantes azula<strong>do</strong>s.<br />

135


“É lucro, porque para os bandi<strong>do</strong>s Jesus vale tanto quanto Dimas, o ladrão da cruz ao<br />

la<strong>do</strong>. Os <strong>do</strong>is se confundem na mesma persona”, discursava.<br />

Além da invenção da leitura, o grande luxo da existência, como dizia, dizia para<br />

ninguém, ninguém o escutava nessas horas, to<strong>do</strong>s achavam lindas eram suas pinturas, pinturas<br />

também vendidas nas visitas das esposas e filhos aos <strong>do</strong>mingos na penitenciária. Pintava<br />

também uns eróticos de motel barato. Além da leitura, dizia Tom Castro, seria a coragem,<br />

repetia o velho, a coragem, repetia para ninguém na cela, além da leitura seria a coragem o<br />

grande luxo da existência, a coragem como aqueles malucos marinheiros de navios perdi<strong>do</strong>s<br />

de Conrad, <strong>do</strong>s malucos <strong>do</strong>s navios de livros de aventuras, seu hobby, espremi<strong>do</strong>s e sob<br />

tufões, como o banditismo por necessidade, como a coragem <strong>do</strong>s cangaceiros <strong>do</strong> Rio Pajeú,<br />

homens que atravessam as linhas de sombras, cabras de olhos amarelos como Chivas, o cavalo<br />

de Fodasno, seu amigo, essas criaturas que já nascem com o cheiro de sangue nas ventas, uma<br />

vida-cabidela, como descobrira ao ler “Guerreiros <strong>do</strong> <strong>Sol</strong>”, samurais incandescentes.<br />

Muitos bandi<strong>do</strong>s compravam quadros de Tom Castro, na penitenciária, como a<strong>do</strong>rno<br />

provisório das fodas <strong>do</strong>s encontros íntimos de <strong>do</strong>mingo.<br />

Alguns até confessavam que sem os quadros não teriam aquela paudurescência toda.<br />

Tom Castro se orgulhava e não se orgulhava disso.<br />

Caryl Chessman no corre<strong>do</strong>r da morte...<br />

Tom Castro escrevia também um livro, escrevia não, dizia que, segun<strong>do</strong> ele o romance<br />

tinha como personagem-chave <strong>do</strong>s nossos tempos: O HOMEM COM O CU NA MÃO.<br />

Um romance com desenhozinhos, supostamente infantis. E lá estava o homem com o cu<br />

na mão, era assim que ele via os homens da cidade grande:<br />

Cap. XXIX – Da Zumbilândia e das pedras zaratretas da fumaça nada<br />

azulada <strong>do</strong>s becos pulmonares<br />

136


Nóias pedradas no cachimbismo que azula a napa, horizonte possible de nuvens<br />

gosmentas, catota-mor como raspa de parede ou caspa <strong>do</strong> capeta da Estrada das Lágrimas.<br />

O blimbão ermo da mundana glória arruaceira que se esvai diante de um Pico <strong>do</strong><br />

Jaraguá público sierramadrastoso que agora se transmuta em ouro matarazzento sem sequer um<br />

samba de tiro certeiro no miolo priva<strong>do</strong> <strong>do</strong> juízo.<br />

Ditirambo zaratruta!<br />

Só nos resta ouvir Wagner na Sala San Pablo de Conciertos para celebrar o<br />

massacre na Zumbilândia.<br />

Não há tempo sequer para um tango argentino, espirra de longe o populista e gigante<br />

nariz de miss Evita, tomba<strong>do</strong> na tríplice fronteira.<br />

[“Tal como a nuvem se desfaz e some, aquele que desce à sepultura nunca tornará a<br />

subir. Nunca mais tornará à sua casa, nem o seu lugar o conhecerá mais." (Jó 7:9-10)]<br />

Do pó ao pó, ainda aparece um austero e zeloso pastor <strong>do</strong> óbvio para a derradeira récita,<br />

aquele mesmo que ainda há pouco trocava lições de moral por um boquete no cinema pornô<br />

<strong>do</strong>s travecos da Rua Vitória. Ele encostava na nuca das travas com o fogo <strong>do</strong>s sermões <strong>do</strong><br />

inferno - “La Sida vai te destruir com a força <strong>do</strong> Satanás”- em troca de um eucarístico perdón<br />

chupetoso. Só fazia silêncio quan<strong>do</strong> a gala esporrava nos lábios iracemosos das meninas e ele<br />

imediatamente rogava uma licença poética a Deus.<br />

(...)<br />

Las madres sem plazas de maio e sus chicos bueñuelitos sem vuelta alguma.<br />

A salvación de los nóias, cantou a pedra, é virarem peças vivas <strong>do</strong> Museu da Língua<br />

Portuguesa, ali miesmo em Cracolândia City Lights... Senhores e senhoras lingüistas deste<br />

pueblo, eles emitem sinais muito mais guimarães-rososos, nonadas um carajo, esses nóias, se<br />

escrevessem, seriam os novos Joyces, Cucurtos y escambais cumbiosos da niegra latinoamérica<br />

bahiana, o nó de catingueira arcaico na última flor na solapa da miséria.<br />

(...)<br />

Liguei o grava<strong>do</strong>r paraguayo de biógrafo-reportero e mal consegui copiá-los depois...<br />

vômitos de dublinescas cracolândias, melhores que o glossário Nadsat de Laranja Mecânica, o<br />

relógio da Luz, o trem, os vende<strong>do</strong>res também grunhem, por Bog, pelos meus druguis, pelas<br />

nijnis, amém, o cachimbo aceso, volteio com eles, finitum est.<br />

“Tio, novrungg, tio, noiadex, vrute, tio, tiozim, ~~~~~”, é mais ou menos isso o que<br />

consegue me dizer, como um guimarães-rosé chapa<strong>do</strong> e de roupa branca suja de bosta de<br />

mula-manca, o que me late o pivete por detrás da nuvem azulada e de outros tantos grogotós<br />

cachimbosos possíveis. “Tio, arahãn…” Ainda ouvi alguns sons que pareciam saí<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s<br />

livros de Evandro Affonso Ferreira, novrugg, noiadex, vrute...<br />

...novrugg, noiadex, vrute... zrung, broki, dumdunz, noiabis, bisoqs, soletys, bizungs,<br />

crackzumba, crakbolic, quimec, ghotyk, molerex, cucutz, cerebaq, ventica, pantovis, rolexxx,<br />

vultap, moolamb, gabixag, sengrazante, imprizini<strong>do</strong>, garoabina, chumbowa, kohu, concriviz,<br />

tretovsky, islambeck, lexiria, sharab,zarba tãnâlain, akhmano, cachimoviz, vigix, pow, zimbre,<br />

choborvz, novisblef, mortajis, tinajeks, ninjavsk, penumbrosys, akijazz, zamux, tanats, <strong>do</strong>raveliz,<br />

ginsback, delantistic, clickatoa, niilville, ninjobanzu, virialis, junkevoix, muambases...<br />

137


ÉPILOGO CAUBÓI PARA O LEITOR AINDA COM POEIRA NO NARIZ<br />

O cavaleiro folgazão, vulgo Fodasno, folgou ao saber <strong>do</strong> fim da história via Fukwiama,<br />

o que o pilhou, raiowakizou, para buscar las fuerzas <strong>do</strong>s fundamentalistas da tríplice fronteira.<br />

Donde facilmente, numa aliança naturalíssima entre os violentos justiceiros Alalaôs e os<br />

refugos alcaliniza<strong>do</strong>s de todas las bidas desperdiçadas deste pueblo crackolandês, marcharam<br />

para la revancha possible <strong>do</strong>s akhmanos de San Pablo.<br />

La revolución estaba en las garras invisibles <strong>do</strong>s ninjas-mores, hombres-molambos sem<br />

cabeças, apenas os vultos de viejos cobertores andarilhos que se multiplicavam como gabirusninjas<br />

de esgoto e sufocavam os inimigos em la calle, em suas torres, corporaciones e nos seus<br />

confortáveis leitos.<br />

Daí por delante, nunca mais uma criatura <strong>do</strong>rmiu neste conda<strong>do</strong> babilônico, <strong>do</strong>nde o<br />

biógrafo Augusto Sombra catalogou <strong>do</strong>is tipos de insones: os que não <strong>do</strong>rmem porque estão<br />

no inferno e os que não <strong>do</strong>rmem com me<strong>do</strong> destes mesmos cre<strong>do</strong>res, que cobram a sua<br />

parte em sonhos, pesadelos e cevadas onças das cédulas de cinqüenta.<br />

[O FIM]<br />

138


139


Muito prazer, EDITORA DO BISPO<br />

Bispo, mas que bispo? Dos bispos surrealistas, aqueles? Ou uma justa homenagem ao<br />

reveren<strong>do</strong> Richard de Bury, bispo de Durhan, o homem que amava os livros, que ainda no<br />

século XIV foi um <strong>do</strong>s maiores bibliófilos de que se tem notícia? Por que não o bispo<br />

Sardinha, jesuíta devora<strong>do</strong> gulosamente pelos bravos caetés? Decifrem-nos ou reclamem<br />

ao bispo! Fundada no ano da graça de 2005, em São Paulo, a editora defende a política<br />

<strong>do</strong> copyfree ou copyleft, ou seja, é favorável que os seus próprios livros sejam reproduzi<strong>do</strong>s<br />

ou copia<strong>do</strong>s livremente. Na linha de atuação editorial, o bispo a<strong>do</strong>tou as quatro<br />

divisões mitológicas que mais interessam aos destinos da humanidade: sexo, drogas,<br />

rock´n´roll & religião, amém.<br />

CONHEÇA NOSSOS LIVROS<br />

Catecismo de Devoções, Intimidades & Pornografias<br />

por Xico Sá<br />

Com uma linguagem que usa como modelos os manuais eróticos da antiguidade árabe, a<br />

Bíblia e as sacanagens da escola Carlos Zéfiro, este volume é um trata<strong>do</strong> de devoção às<br />

mulheres e uma defesa radical <strong>do</strong> he<strong>do</strong>nismo e <strong>do</strong> prazer. As breves e pecaminosas<br />

orações <strong>do</strong> autor abordam, <strong>do</strong>s temas mais antigos, como o uso <strong>do</strong>s espartilhos e a<br />

so<strong>do</strong>mia, até o sexo virtual <strong>do</strong>s tempos <strong>do</strong> Messenger e <strong>do</strong> Orkut.<br />

400 págs.<br />

TTSSS... A grande arte da pixação em São Paulo/Brasil<br />

org. Boleta<br />

Quem ergue a vista para os céus de SP encontra um verdadeiro jardim suspenso de Babel.<br />

Naquelas pichações – ou pixações, com “x” mesmo, como usa<strong>do</strong> na linguagem das ruas –<br />

há um decifra-me ou te devoro permanente. As gangues e grifes têm as suas tipologias<br />

próprias, como se fossem os novos Gutenbergs <strong>do</strong> caos urbano. Enquanto o Esta<strong>do</strong> e a<br />

polícia lêem estes rabiscos como vandalismo, a Editora <strong>do</strong> Bispo apresenta, em fotos,<br />

“agendas” <strong>do</strong>s pixa<strong>do</strong>res e mostruário de tipos de letras, um grande livro de arte de rua.<br />

edição bilíngüe – português/inglês.<br />

152 págs<br />

140


Aurélia, a dicionária da língua afiada<br />

por Fred Libbi e Ângelo Vip<br />

Escândala! A Editora <strong>do</strong> Bispo orgulhosamente apresenta o primeiro dicionário, ou melhor,<br />

a primeira dicionária publicada no Brasil que contempla palavras, gírias e expressões <strong>do</strong><br />

universo gay em língua portuguesa. De A de “ababé” a Z “zuzo bem”. Sem a menor preocupação<br />

com a chatice <strong>do</strong> politicamente correto, com Aurélia você vai ficar por dentro da<br />

riqueza <strong>do</strong>s vocábulos GLS de todas as regiões <strong>do</strong> país, <strong>do</strong> tosco “cafuçu” ao “axoxique”<br />

das boates modernas. De bônus track, o leitor ainda tem uma série de verbetes de to<strong>do</strong>s<br />

os países que falam o português mais afia<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong>.<br />

143 págs.<br />

Por que se mete, porra?<br />

Delicadezas de Paulo César Peréio<br />

Gaúcho de Alegrete, 66 anos de vida e 50 anos de carreira, Peréio é um <strong>do</strong>s mais importantes<br />

atores <strong>do</strong> país. Atuou em 100 filmes, entre longas e curtas, como “Os Fuzis” (Ruy<br />

Guerra), “Terra em Transe” (Glauber Rocha), “Eu te amo” (Arnal<strong>do</strong> Jabor), “Iracema, uma<br />

Transa Amazônica” (Orlan<strong>do</strong> Senna e Jorge Bodanzky), entre outros. Integrante <strong>do</strong> Teatro<br />

de Arena, em São Paulo, participou de montagens históricas, como “Roda Viva”, nos anos<br />

1960, e dirigiu e protagonizou a peça “O Analista de Bagé”, nos anos 80. O livro é um apanha<strong>do</strong><br />

afetivo da vida <strong>do</strong> artista, um carregamento de acha<strong>do</strong>s e perdi<strong>do</strong>s, cartas, cartões, contêineres<br />

de amores e <strong>do</strong>lores, cantos malditos de guardanapos, delírios e o fabulário em<br />

geral de Peréio.<br />

162 págs.<br />

Manual para fazer das crianças pobres churrasco ou Modesta proposta para<br />

evitar que as crianças da Irlanda sejam um far<strong>do</strong> para seus pais ou seu país.<br />

por Jonathan Swift<br />

tradução Clarah Averbuck<br />

ilustrações Fabia Bercseck<br />

O renoma<strong>do</strong> e clássico Jonathan Swift, o homem d´As Viagens de Gulliver, nos apresenta<br />

o atualíssimo “Manual para fazer das crianças pobres churrasco”, um texto político e satírico<br />

<strong>do</strong> século XVIII, mas perfeitamente váli<strong>do</strong> para os nossos dias no Terceiro Mun<strong>do</strong>.<br />

A tradução e apresentação ficaram por conta da escritora Clarah Averbuck, com ilustrações<br />

da artista Fábia Bercseck, o que emprestam ao livro mais luxo ainda. Embala<strong>do</strong> a vácuo,<br />

como em um frigorífico ou supermerca<strong>do</strong>, o manual é mais um projeto gráfico de Pinky<br />

Wainer que preza, sobretu<strong>do</strong>, pelo assassinato da caretice editorial.<br />

92 págs.<br />

141


Mídias, Máfias & Rock’n’Roll<br />

por Claudio J. Tognolli<br />

Neste livro, Tognolli, que é professor <strong>do</strong> curso de Jornalismo da Escola de Comunicação e<br />

Artes (ECA), da USP, revela segre<strong>do</strong>s da mídia – o que sai e o que não é publica<strong>do</strong> por<br />

razões nem sempre ocultas – e os basti<strong>do</strong>res de grandes escândalos: PC Farias, Daniel<br />

Dantas, PCC, a morte <strong>do</strong> embaixa<strong>do</strong>r e as escutas <strong>do</strong> governo Lula, etc.<br />

Da política ao jornalismo cultural, o livro é uma bíblia para estudantes de Comunicação e<br />

um legítimo escu<strong>do</strong> para leitores, ouvintes e telespecta<strong>do</strong>res, que a partir de agora ficarão<br />

mais atentos e saberão desvendar os enigmas nada inocentes de jornais, rádios e tevês.<br />

“Máfia, Mídia & Rock´n´Roll” pode ser li<strong>do</strong> também como um grande livro de aventuras de<br />

um repórter que atuou em 30 países e, amigo <strong>do</strong> bruxo Timothy Leary, o guru <strong>do</strong> LSD, abriu<br />

as portas da percepção para as grandes viagens.<br />

160 págs.<br />

JOSÉ SIMÃO no país da piada pronta<br />

dicionário tucanês, lulês e antitucanês<br />

José Simão<br />

Os dicionários <strong>do</strong> Simão - tucanês, antitucanês e lulês - publica<strong>do</strong>s neste livro são mais<br />

relevantes para a leitura da história contemporânea brasileira <strong>do</strong> que muitos compêndios<br />

de sociologia tupiniquim. Com a maior de todas as vantagens humanas: não estão<br />

impregna<strong>do</strong>s pela tinta da chatice e da rabugem.<br />

Porque Simão é um artista pop brasileiro, no senti<strong>do</strong> de vida e no senti<strong>do</strong> de popular<br />

mesmo, como queria Andy Warhol, uma das suas tantas influências.<br />

No país da piada pronta, não é nada fácil ser um grande humorista. A concorrência desleal<br />

com a realidade é um terror. Neste livro, lança<strong>do</strong> orgulhosamente pela Editora <strong>do</strong> Bispo,<br />

além <strong>do</strong>s dicionários, Simão desvenda ao leitor os segre<strong>do</strong>s da arte da sua escrita e <strong>do</strong>s<br />

seus comentários de Rádio e TV. Saiba, entre outros mistérios, porque um banho e um<br />

bom figurino podem ser importantíssimos para fazer um programa radiofônico.<br />

216 págs.<br />

142


sitee:: www.editora<strong>do</strong>bispo.com.br<br />

TVV <strong>do</strong> BBiispo:: www.videolog.com.br/edittora<strong>do</strong>bispo<br />

Bloog d<strong>do</strong> Bispo: www.<strong>do</strong>bispo.zip.net<br />

143


144


Um cavalo que foge de uma famosa estátua eqüestre beija<br />

e ampara na sarjeta o cavaleiro delirante. Don Augusto<br />

Sombra, o biógrafo de vidas desperdiçadas, colhe relatos<br />

nas tabernas, onde encontra <strong>do</strong>n Mace<strong>do</strong>nio Fernández<br />

e o incrível sr. Knut. Esperanza, marcada por agulhas<br />

de fabriquetas coreanas e a febre da selva, pisoteia los<br />

hombres em la calle. A insone Viridiana, chica buñuelistica,<br />

desconfi a que tu<strong>do</strong> não passa de uma fábula envenenada<br />

com boa-noite-cinderela. A essa altura, o portunhol selvagem<br />

é a nova língua da Babilônia. Preparem seus corazones,<br />

senhoras e senhores, as aventuras nos chacos existenciales<br />

de San Pablo estão apenas começan<strong>do</strong>. Tu<strong>do</strong> acontece na<br />

mais longa noche deste pueblo, quan<strong>do</strong> os Gângsteres <strong>do</strong><br />

<strong>Sol</strong> Quadra<strong>do</strong> impõem o toque de recolher na metrópole-mor<br />

de latinoamérica.<br />

“Tal como a nuvem se desfaz e some, aquele<br />

que desce à sepultura nunca tornará a subir.<br />

Nunca mais tornará à sua casa, nem o seu<br />

lugar o conhecerá mais.” (Jó 7:9-10)

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