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Apostila n.º 01 de Histórias – Instituto História Viva

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<strong>Apostila</strong> n.<strong>º</strong> <strong>01</strong> <strong>de</strong> <strong><strong>História</strong>s</strong><br />

1


<strong><strong>História</strong>s</strong><br />

A Carta ............................................................................................. 3<br />

A Casa que João Construiu ............................................................... 5<br />

A Centopéia que Sonhava ................................................................ 7<br />

A Flor da Honestida<strong>de</strong> ................................................................... 11<br />

A Loucura ....................................................................................... 13<br />

A Menina que não era Maluquinha ............................................... 15<br />

A Moça Tecelã ............................................................................... 17<br />

A Ratoeira ...................................................................................... 20<br />

A Volta ........................................................................................... 22<br />

Amigos ........................................................................................... 24<br />

Brinca<strong>de</strong>ira..................................................................................... 28<br />

Cachorro Velho .............................................................................. 31<br />

Chapeuzinho Amarelo.................................................................... 33<br />

Classificados ................................................................................... 37<br />

Cornita ........................................................................................... 40<br />

Dois mais Dois. ............................................................................... 43<br />

Estragou a Televisão ...................................................................... 45<br />

Estrelas em Greve .......................................................................... 48<br />

Graças ao Menino!......................................................................... 50<br />

Mãe Executiva ............................................................................... 53<br />

Mineirinho dando Má Notícia ........................................................ 55<br />

Nomes ........................................................................................... 56<br />

O Cego e o Caçador ........................................................................ 59<br />

O Homem Trocado ......................................................................... 63<br />

O Homem, seu Filho e o Burro ....................................................... 65<br />

O Lixo ............................................................................................. 66<br />

O Rei dos Animais .......................................................................... 70<br />

Pai não enten<strong>de</strong> nada .................................................................... 72<br />

Pânico ............................................................................................ 73<br />

Peça Infantil ................................................................................... 76<br />

Pneu Furado .................................................................................. 79<br />

Prova Falsa ..................................................................................... 80<br />

2


A CARTA<br />

Luís Fernando Veríssimo<br />

(Para uma pessoa)<br />

Esta outra história é <strong>de</strong> dois namorados, ele chamado Haroldo e ela, por<br />

coincidência, Marta. Os dois brigaram feio, e Marta escreveu uma carta<br />

para Haroldo, rompendo <strong>de</strong>finitivamente o namoro e ainda dizendo uma<br />

verda<strong>de</strong> que ele precisava ouvir. Ou, no caso, ler. Mas Marta se<br />

arrepen<strong>de</strong>u do que tinha escrito e no dia seguinte fez plantão na calçada<br />

em frente do edifício <strong>de</strong> Haroldo, esperando o carteiro. Precisava<br />

interceptar a carta <strong>de</strong> qualquer jeito. Quando o carteiro apareceu, Marta<br />

fingiu que estava chegando ao edifício e perguntou:<br />

- Alguma coisa para o 702? Eu levo.<br />

Mas não tinha nada para o 702. No dia seguinte tinha, mas não a<br />

carta <strong>de</strong> Marta. No terceiro dia, o carteiro <strong>de</strong>sconfiou, hesitou em<br />

entregar a correspondência a Marta, que foi obrigada a fazer uma<br />

encenação dramática. Não era do 702. Era a autora <strong>de</strong> uma carta para o<br />

702. E queria a carta <strong>de</strong> volta. Precisava daquela carta. Era<br />

importantíssimo ter aquela carta. Não podia dizer por quê. Afinal, a carta<br />

era <strong>de</strong>la mesma, <strong>de</strong>via ter o direito <strong>de</strong> recuperá-la quando quisesse! O<br />

carteiro disse que o que ela estava querendo fazer era crime fe<strong>de</strong>ral,<br />

mas mesmo assim olhou os envelopes do 702 para ver se entre eles<br />

estava a carta. Não estava. No dia seguinte <strong>–</strong> quando Marta ficou<br />

sabendo que o carteiro se chamava Jessé e, apesar <strong>de</strong> tão jovem, já era<br />

viúvo, além <strong>de</strong> colorado <strong>–</strong> também não. No outro dia também não, e o<br />

carteiro convidou Marta para, quem sabe, um chope. Na manhã <strong>de</strong>pois<br />

do chope, a carta ainda não tinha chegado e Marta e Jessé combinaram<br />

ir ver Titanic juntos. No dia seguinte <strong>–</strong> nem sinal da carta <strong>–</strong> Jessé<br />

perguntou se Marta não queria conhecer sua casa. Era uma casa pobre,<br />

morava com a mãe, mas, se ela não se importasse... Marta disse que ia<br />

pensar.<br />

3


No dia seguinte, chegou a carta. Jessé <strong>de</strong>u a carta a Marta. Ela<br />

ficou olhando o envelope por um longo minuto. Depois a <strong>de</strong>volveu ao<br />

carteiro e disse:<br />

- Entrega.<br />

E, diante do espanto <strong>de</strong> Jessé, explicou que só queria ver se tinha<br />

posto o en<strong>de</strong>reço certo.<br />

4


A CASA QUE JOÃO CONSTRUIU<br />

Conto Popular francês<br />

(I<strong>de</strong>al para improviso com fantoches e bonecos)<br />

Esta é a casa que o João construiu.<br />

Este é o queijo que estava na casa que o João construiu.<br />

Este é o rato, que comeu o queijo que estava na casa que o João<br />

construiu.<br />

Este é o gato, que pegou o rato que comeu o queijo que estava na casa<br />

que o João construiu.<br />

Este é o cão, que perseguiu o gato que pegou o rato que comeu o queijo<br />

que estava na casa que o João construiu.<br />

Esta é a vaca do chifre quebrado, que bate no cão ,que persegue o gato,<br />

que pegou o rato,que comeu o queijo que estava na casa que o João<br />

construiu.<br />

Esta é a menina do cabelo trançado, que tira leite da vaca do chifre<br />

quebrado, que bateu no cão, que perseguiu o gato que pegou o rato que<br />

comeu o queijo que estava na casa que o João construiu.<br />

Este é o rapaz esfarrapado, que beijou a menina do cabelo trançado que<br />

tira leite da vaca do chifre quebrado,que bateu no cão,que perseguiu o<br />

gato que pegou o rato que comeu o queijo que estava na casa que o<br />

João construiu.<br />

5


Este é o padre da igreja ao lado, que casou o rapaz esfarrapado com a<br />

menina do cabelo trançado, que tira leite da vaca do chifre quebrado,<br />

que bate no cão, que persegue o gato que pegou o rato que comeu o<br />

queijo que estava na casa que o João construiu.<br />

Este é o galo do canto <strong>de</strong>safinado, que acordou o padre da igreja ao<br />

lado, que casou o menino esfarrapado com a menina do cabelo<br />

trançado, que tira leite da vaca do chifre quebrado, que bate no cão que<br />

perseguiu o gato que pegou o rato que comeu o queijo que estava na<br />

casa do João.<br />

Este é o fazen<strong>de</strong>iro que cuida do roçado para alimentar o galo do canto<br />

<strong>de</strong>safinado, que acordou o padre da igreja ao lado, que casou o menino<br />

esfarrapado com a menina do cabelo trançado, que tira leite da vaca do<br />

chifre quebrado, que bate no cão que perseguiu o gato que pegou o rato<br />

que comeu o queijo que estava na casa do João. Este é o João que<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tanta confusão cumprimenta a todos com muita satisfação.<br />

6


A CENTOPÉIA QUE SONHAVA<br />

Autor Desconhecido<br />

(Para uma, duas ou mais pessoas / Para crianças / Aceita fantoches e bonecos)<br />

Personagens: - A Centopéia.<br />

- Andorinha / peixinho / curió / macaco.<br />

Lá ia a centopéia pensando com seus botões.<br />

―Mas que vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> voar‖, pensou, ao ver a andorinha lá no alto.<br />

―Mas que vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> nadar‖, pensou ela, quando viu o peixinho<br />

vermelho fazer maravilhas <strong>de</strong>ntro da água.<br />

―E cantar como o curió, que dobra suas notas que é uma beleza!‖<br />

―É, mas centopéia não voa, não nada e nem canta‖, concluiu com<br />

tristeza. ―Tenho que me conformar e ficar andando com minhas cem<br />

perninhas e ainda achar bom‖.<br />

Aí ouviu uma vozinha que chegava do alto <strong>de</strong> uma árvore. Era a<br />

andorinha, que lhe disse:<br />

voar.<br />

<strong>–</strong> Dona Centopéia, estou vendo que a senhora tem vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>–</strong> É verda<strong>de</strong> — respon<strong>de</strong>u <strong>–</strong>, mas não posso, não tenho asas, só tenho<br />

perninhas, que servem para andar mas não para voar.<br />

<strong>–</strong> Mas a senhora po<strong>de</strong> voar comigo, nas minhas costas!<br />

<strong>–</strong> Será mesmo que posso realizar esse sonho, ir lá em cima, nas nuvens,<br />

ver tudo do alto?<br />

<strong>–</strong> É claro que po<strong>de</strong>, venha!<br />

Mais que <strong>de</strong>pressa a centopéia subiu nas costas da andorinha,<br />

que saiu voando. Em poucos instantes já estava lá no alto. Era uma<br />

maravilha ver tudo ficar pequeno ali embaixo. Como o mundo era gran<strong>de</strong><br />

lá <strong>de</strong> cima, e bonito, azul, e que ventinho gostoso ela sentia. Nem teve<br />

7


medo, <strong>de</strong> tão animada que estava com a experiência. ―Devo ser a<br />

primeira centopéia do mundo a voar‖, pensou ela com suas perninhas.<br />

<strong>–</strong> Vamos <strong>de</strong>scer, dona Andorinha, é emoção <strong>de</strong>mais. E <strong>de</strong>sceram.<br />

<strong>–</strong> Quando quiser voar <strong>de</strong> novo é só falar — disse a andorinha, e<br />

sumiu no céu como um raio.<br />

―Voar foi possível‖, pensou a centopéia. ―Mas nadar não tem jeito, aí só<br />

sendo peixe mesmo.‖ Ela, então, ouviu outra vozinha que vinha da água.<br />

<strong>–</strong> Ei, dona Centopéia, a senhora tem vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> nadar? Ir lá no<br />

fundo e <strong>de</strong>scobrir um outro mundo colorido?<br />

<strong>–</strong> Mas como, seu Peixinho? Será possível? Não vou morrer afogada?<br />

<strong>–</strong> Não — disse o peixinho <strong>–</strong> a senhora sobe nas minhas costas, se<br />

agarra direitinho e pren<strong>de</strong> a respiração por uns minutos. Boca<br />

fechada e olhos bem abertos. Vai dar certo. — E <strong>de</strong>u mesmo.<br />

A centopéia subiu nas costas do peixinho, pren<strong>de</strong>u a respiração e… foi<br />

outra maravilha! Como era bonita a água azul, limpa, cheia <strong>de</strong> outros<br />

peixinhos coloridos.<br />

A centopéia levou um susto enorme quando apareceu um peixão. ―E se<br />

ele pensar que sou uma minhoca?‖ Mas não pensou. Nadar era uma<br />

maravilha. A vida <strong>de</strong>baixo da água é outra coisa. Mas só para quem<br />

consegue pren<strong>de</strong>r a respiração por bastante tempo, e ela já estava aflita<br />

para subir. E subiram.<br />

<strong>–</strong> Obrigada, seu Peixinho, foi uma beleza!<br />

<strong>–</strong> Quando quiser nadar <strong>de</strong> novo é só falar — disse o peixinho <strong>–</strong> Mas<br />

tenho outra surpresa para a senhora.<br />

O peixinho pegou uma conchinha, amarrou num barbante fino e disse:<br />

<strong>–</strong> Suba, dona Centopéia, vamos correr por cima da água! — E saiu<br />

nadando, puxando a centopéia a uma velocida<strong>de</strong> incrível. Foi o máximo!<br />

É, a coisa estava ficando boa. Ela, uma simples centopéia, já havia<br />

voado e nadado, e não tinha asas nem era peixe!<br />

8


Mas cantar como o curió, isso sim que não podia nem <strong>de</strong>veria haver<br />

jeito. Não tinha voz, não sabia produzir uma melodia. Mas <strong>de</strong> novo a<br />

centopéia ouviu uma voz, que <strong>de</strong>sta vez vinha lá do alto <strong>de</strong> uma<br />

laranjeira. Era o curió, que dizia:<br />

<strong>–</strong> Olha, dona Centopéia, cantar a gente apren<strong>de</strong>. Tem gente que<br />

sabe educar a voz e canta que é uma beleza. Mas eu tenho uma<br />

coisa melhor que cantar: é tocar uma flautinha.<br />

<strong>–</strong> Como po<strong>de</strong> ser isso, seu Curió?<br />

<strong>–</strong> Eu faço uma flauta <strong>de</strong> bambu bem feitinha, ensino as notas para a<br />

senhora e aí po<strong>de</strong>mos tocar e cantar juntos.<br />

<strong>–</strong> Essa eu nem acredito.<br />

<strong>–</strong> Mas vai acreditar.<br />

E o curió fez uma flautinha com um som muito doce e bonito. A<br />

centopéia ficou tão entusiasmada com as aulas que apren<strong>de</strong>u logo. Ela<br />

tocava bonito, e todos os bichos da floresta iam ouvir a centopéia<br />

flautista.<br />

A centopéia agora tinha um último <strong>de</strong>sejo: pular <strong>de</strong> galho em galho lá no<br />

alto das árvores da floresta. Mas como, se não conseguia nem dar uns<br />

saltinhos aqui na terra? Foi quando chegou o macaco, com um riso bem<br />

esperto nos lábios.<br />

<strong>–</strong> Se a senhora quiser saltar, é só subir aqui nas minhas costas e se<br />

segurar bem.<br />

<strong>–</strong> Claro que quero! Vai ser muito divertido ir saltando por aí <strong>de</strong> galho em<br />

galho!<br />

E foi uma algazarra. O macaco pulando, gritando e rindo, com a<br />

centopéia agarradinha nas suas costas. Parecia um circo, o macaco era<br />

mestre no salto.<br />

A noite foi chegando e a centopéia estava muito feliz com todas as<br />

aventuras daquele dia. De repente se <strong>de</strong>u conta do que havia<br />

acontecido: ela não sabia que tinha tantos amigos na floresta e que tudo<br />

9


o que ela não conseguia fazer sozinha ela podia fazer com a ajuda dos<br />

outros bichos. Podia voar sem ser pássaro, nadar sem ser peixe, cantar<br />

sem ter voz e pular sem ter pernas e braços <strong>de</strong> macaco.<br />

<strong>–</strong> Quem tem esses amigos po<strong>de</strong> tudo — concluiu ela. — Juntos vamos<br />

muito longe!<br />

10


A FLOR DA HONESTIDADE<br />

Autor Desconhecido<br />

(Para uma pessoa)<br />

Há muito, muito tempo, um príncipe <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> país, em vésperas <strong>de</strong><br />

ser coroado imperador, precisava se casar para cumprir a lei.<br />

Resolveu, então, escolher uma entre todas as jovens da corte e do país.<br />

Anunciou que receberia numa celebração especial todas as preten<strong>de</strong>ntes e<br />

que lançaria um <strong>de</strong>safio.<br />

Uma mulher, serva do palácio havia muitos anos, ouviu comentários acerca<br />

dos preparativos da festa e <strong>de</strong>ixou cair uma lágrima. Conhecia bem o amor que a<br />

sua filha tinha pelo príncipe.<br />

reação.<br />

Quando, em casa, contou para a filha a novida<strong>de</strong>, surpreen<strong>de</strong>u-se com a<br />

<strong>–</strong> Minha filha querida, que vai lá fazer? Estarão presentes as mais belas e<br />

ricas jovens da corte. Não transforme o seu sofrimento em loucura.<br />

Mas a filha respon<strong>de</strong>u:<br />

<strong>–</strong> Não, mãe, não sofro nem estou louca. Sei que jamais po<strong>de</strong>rei ser a<br />

escolhida, mas assim terei oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ficar, pelo menos alguns momentos,<br />

perto do príncipe. E isso já me torna feliz.<br />

Na noite marcada, chegou ao palácio. O brilho das luzes não conseguia<br />

ofuscar os vestidos, as jóias e os penteados das preten<strong>de</strong>ntes.<br />

O príncipe não <strong>de</strong>morou a lançar o <strong>de</strong>safio:<br />

<strong>–</strong> Darei a cada uma <strong>de</strong> vocês uma semente. Aquela que, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seis<br />

meses, me trouxer a mais bela flor será minha esposa.<br />

O tempo passou. A jovem não tinha muita habilida<strong>de</strong> na arte da<br />

jardinagem, mas cuidava da sua semente com paciência e ternura. Sabia que, se<br />

a beleza da flor surgisse na mesma medida do seu amor, não precisaria se<br />

preocupar com o resultado.<br />

Mas passaram três meses e nada surgiu; seis meses, e a semente não se<br />

transformou em flor…<br />

11


Mesmo assim ela voltou ao palácio no dia combinado. Estava feliz com a<br />

perspectiva <strong>de</strong> passar mais alguns instantes na companhia do príncipe. Nada<br />

mais esperava. Chegou ao palácio com o vaso vazio…<br />

Todas as outras apareceram com flores belíssimas, das mais variadas<br />

formas, cores e perfumes. O palácio transformara-se num imenso jardim.<br />

Chegou finalmente o momento esperado. O príncipe passou junto das<br />

preten<strong>de</strong>ntes, observando com muito cuidado todas as flores.<br />

flor.<br />

Por fim, anunciou que a sua futura esposa seria… a menina que não trazia<br />

Isto provocou as mais variadas reações <strong>de</strong> espanto. Por isso, o príncipe<br />

quis explicar a sua escolha:<br />

<strong>–</strong> Esta jovem foi a única que cultivou a flor que torna uma pessoa digna <strong>de</strong><br />

se tornar minha esposa: a flor da honestida<strong>de</strong>. Porque todas as sementes que<br />

entreguei eram estéreis.<br />

12


A LOUCURA<br />

Autor <strong>de</strong>sconhecido<br />

(Para uma pessoa)<br />

A Loucura resolveu convidar os amigos para tomarem um café em sua<br />

casa. Todos os convidados foram.<br />

- O que é isso? Perguntou a Curiosida<strong>de</strong>.<br />

- Escon<strong>de</strong>-escon<strong>de</strong> é uma brinca<strong>de</strong>ira em que eu conto até cem e<br />

vou procurar. O primeiro a ser encontrado será o próximo a contar.<br />

Todos aceitaram, menos o Medo e a Preguiça.<br />

- 1,2,3... A Loucura começou a contar.<br />

A Pressa se escon<strong>de</strong>u primeiro, em qualquer lugar.<br />

A Timi<strong>de</strong>z, tímida como sempre, escon<strong>de</strong>u-se na copa da árvore. A<br />

Alegria correu para o meio do jardim; já a Tristeza começou a chorar,<br />

pois não achava um local apropriado para se escon<strong>de</strong>r. A Inveja<br />

acompanhou o Triunfo e se escon<strong>de</strong>u perto <strong>de</strong>le, <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> uma pedra.<br />

A Loucura continuava a contar e os seus amigos iam se<br />

escon<strong>de</strong>ndo.<br />

O Desespero ficou <strong>de</strong>sesperado ao ver a Loucura que já estava no<br />

noventa e nove, cem... Gritou a Loucura: - Vou começar a procurar.<br />

A primeira a aparecer foi a Curiosida<strong>de</strong> já que não agüentava<br />

mais, querendo saber quem seria o próximo a contar.<br />

Ao olhar para o lado, a Loucura viu a Dúvida em cima do muro,<br />

sem saber em qual dos lados se escon<strong>de</strong>ria melhor. E assim foram<br />

aparecendo, a Alegria, a Tristeza, a Timi<strong>de</strong>z...<br />

Quando estavam todos reunidos, a Curiosida<strong>de</strong> perguntou: - On<strong>de</strong><br />

está o Amor?<br />

Ninguém o tinha visto. A Loucura começou a procurar. Procurou<br />

em cima da montanha, nos rios, <strong>de</strong>baixo das pedras e nada do Amor<br />

aparecer. Procurando por todos os lados, a Loucura viu uma roseira,<br />

13


pegou um pauzinho, começou a procurar entre os galhos, e <strong>de</strong> repente<br />

ouviu um grito. Era o Amor, gritando por ter furado o olho com o espinho.<br />

A Loucura não sabia o que fazer. Pediu <strong>de</strong>sculpas, implorou pelo<br />

perdão do Amor e até prometeu servi-lo para sempre.<br />

O Amor aceitou as <strong>de</strong>sculpas. Des<strong>de</strong> então e até hoje...<br />

"O amor é cego,<br />

e a loucura sempre<br />

o acompanha".<br />

14


A MENINA QUE NÃO ERA MALUQUINHA<br />

Ruth Rocha<br />

(Para uma pessoa / Crianças)<br />

Maluquinha, eu? Eu não! Não sou nenhuma maluquinha! Quem me pôs<br />

esse apelido foi aquele menino <strong>de</strong> casacão e panela na cabeça.<br />

Ele me botou esse apelido quando eu fui brincar na casa do<br />

Mauricinho. Eu nem queria ir. Mas a mãe <strong>de</strong>le telefonou pra minha mãe,<br />

ela disse que o Mauricinho era muito tímido e que ela queria que ele<br />

brincasse com umas crianças mais... Não sei o que ela disse, acho que<br />

ela queria que ele brincasse com umas crianças mais <strong>de</strong>scoladas... aí<br />

minha mãe me encheu um pouco e eu acabei indo.<br />

A gente chegou na casa do Mauricinho e foi logo almoçar. E<br />

<strong>de</strong>pois do almoço a mãe <strong>de</strong>le botou a gente pra fazer a lição. Eu não me<br />

incomodo <strong>de</strong> fazer lição logo <strong>de</strong>pois do almoço, porque eu fico logo livre.<br />

Mas a mãe do Mauricinho começou a fazer uns discursos sobre<br />

responsabilida<strong>de</strong> e coisa e tal, que a gente já era grandinha e tinha que<br />

cumprir com os compromissos... Um saco! Eu tô careca <strong>de</strong> saber disso!<br />

E então eu fiz minha lição correndo e o Mauricinho ficou lá toda a vida,<br />

ele não acabava mais <strong>de</strong> fazer a lição <strong>de</strong>le. Aí eu comecei a rodar pela<br />

casa até que encontrei um gato. Gato não, gata. Chamava Pom-pom. Ou<br />

era Fru-fru... Ou era Bom-Bom, sei lá. E eu peguei a gata e ela estava<br />

meio fedida.<br />

Então eu resolvi dar um banho nela. Gato não gosta <strong>de</strong> banho,<br />

vocês sabem. Mas meu avô tinha me contado que quando ele queria dar<br />

banho no gato ele botava o bicho <strong>de</strong>ntro da banheira e ele não<br />

conseguia sair e meu avô dava banho à vonta<strong>de</strong>!<br />

15


Mauricinho tinha um banheiro <strong>de</strong>ntro do quarto <strong>de</strong>le. Quando eu fui<br />

chegando perto da banheira a gata arrepiou toda e eu joguei ela bem<br />

<strong>de</strong>pressa lá <strong>de</strong>ntro e tapei o ralo e enchi <strong>de</strong> água.<br />

E esfreguei a gata todinha com um shampoo todo perfumado que tinha<br />

lá e eu estava achando que todo mundo ia gostar <strong>de</strong> ver a gata toda<br />

limpinha. A gata estava muito infeliz e ela miava miaaauuu... e tentava<br />

sair do banho, mas meu avô tinha razão: ela arranhava a pare<strong>de</strong> da<br />

banheira, mas não conseguia sair.<br />

Mas acho que aí caiu shampoo no olho da gata, porque ela <strong>de</strong>u<br />

um pulo e agarrou na minha roupa e conseguiu pular fora e saiu<br />

correndo, espalhando espuma <strong>de</strong> shampoo por todo lado e nisso a mãe<br />

do Mauricinho vinha chegando e levou o maior susto e caiu sentada e a<br />

gata continuou correndo e assustando todo mundo e respingando tudo<br />

<strong>de</strong> espuma. Eu não sei quem estava mais assustado: se era o<br />

Mauricinho, a mãe <strong>de</strong>le, a gata, ou se era eu.<br />

Eu corri atrás da gata, mas ela pulou pela janela, atravessou o<br />

jardim, saiu pela rua e eu atrás. Só que no meio da rua estava a turma<br />

daquele menino, aquele da panela na cabeça, e a gata passou pelo meio<br />

<strong>de</strong>les todos e eu atrás! E eles levaram o maior susto, cada um correu<br />

para um lado, e atrás <strong>de</strong> mim vinha a mãe do Mauricinho e o Mauricinho<br />

e a cozinheira e o jardineiro todos correndo e gritando e eu resolvi correr<br />

para a minha casa e me escon<strong>de</strong>r lá.<br />

Mas no dia seguinte... a escola toda já sabia da história e aquele<br />

menino, aquele da panela na cabeça começou a me chamar <strong>de</strong><br />

maluquinha... Mas eu não sou maluquinha, não! Só se for a vó <strong>de</strong>le!<br />

16


A MOÇA TECELÃ<br />

Marina Colasanti<br />

(Para uma pessoa)<br />

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das<br />

beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.<br />

Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela<br />

ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a clarida<strong>de</strong> da<br />

manhã <strong>de</strong>senhava o horizonte.<br />

Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em<br />

longo tapete que nunca acabava.<br />

Se era forte <strong>de</strong>mais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça<br />

colocava na lança<strong>de</strong>ira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo.<br />

Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio <strong>de</strong> prata,<br />

que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha<br />

cumprimentá-la à janela.<br />

Mas, se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as<br />

folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos<br />

fios dourados para que o sol voltasse a acalmar a natureza.<br />

Assim, jogando a lança<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> um lado para outro e batendo os<br />

gran<strong>de</strong>s pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus<br />

dias.<br />

Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com<br />

cuidado <strong>de</strong> escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser<br />

comido. Se se<strong>de</strong> vinha, suave era a lã cor <strong>de</strong> leite que entremeava o<br />

tapete. E à noite, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> lançar seu fio <strong>de</strong> escuridão, dormia tranqüila.<br />

Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.<br />

Mas, tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se<br />

sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou como seria bom ter um<br />

marido ao lado.<br />

17


Não esperou o dia seguinte. Com capricho <strong>de</strong> quem tenta uma<br />

coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as<br />

cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu <strong>de</strong>sejo foi<br />

aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado,<br />

sapato engraxado. Estava justamente acabando <strong>de</strong> entremear o último<br />

fio da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.<br />

Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o<br />

chapéu <strong>de</strong> pluma, e foi entrando na sua vida.<br />

Aquela noite, <strong>de</strong>itada contra o ombro <strong>de</strong>le, a moça pensou nos<br />

lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicida<strong>de</strong>.<br />

E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado<br />

em filhos, logo os esqueceu. Porque, <strong>de</strong>scoberto o po<strong>de</strong>r do tear, em<br />

nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele po<strong>de</strong>ria lhe dar.<br />

- Uma casa melhor é necessária <strong>–</strong> disse para a mulher. E parecia<br />

justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor<br />

<strong>de</strong> tijolo, fios ver<strong>de</strong>s para os batentes, e pressa para a casa acontecer.<br />

Mas, pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.<br />

- Para que ter casa, se po<strong>de</strong>mos ter palácio? <strong>–</strong> perguntou. Sem<br />

querer resposta, imediatamente or<strong>de</strong>nou que fosse <strong>de</strong> pedra com<br />

arremates em prata.<br />

Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e<br />

portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela<br />

não tinha tempo para chamar o som. A noite chegava, e ela não tinha<br />

tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar<br />

batiam os pentes acompanhando o ritmo da lança<strong>de</strong>ira.<br />

Afinal, o palácio ficou pronto. E, entre tantos cômodos, o marido<br />

escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.<br />

- É para que ninguém saiba do tapete <strong>–</strong> disse. E, antes <strong>de</strong> trancar<br />

a porta a chave, advertiu:<br />

- Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!<br />

18


Sem <strong>de</strong>scanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o<br />

palácio <strong>de</strong> luxos, os cofres <strong>de</strong> moedas, as salas <strong>de</strong> criados. Tecer era<br />

tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.<br />

E, tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe<br />

pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela<br />

primeira vez pensou como seria bom estar sozinha <strong>de</strong> novo.<br />

Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia<br />

sonhando com novas exigências. E <strong>de</strong>scalça, para não fazer barulho,<br />

subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.<br />

Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a<br />

lança<strong>de</strong>ira ao contrário e, jogando-a veloz <strong>de</strong> um lado para o outro,<br />

começou a <strong>de</strong>sfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as<br />

estrebarias, os jardins. Depois <strong>de</strong>steceu os criados e o palácio e todas<br />

as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e<br />

sorriu para o jardim além da janela.<br />

A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura,<br />

acordou e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo <strong>de</strong> se levantar.<br />

Ela já <strong>de</strong>sfazia o <strong>de</strong>senho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés<br />

<strong>de</strong>saparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo<br />

corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.<br />

Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma<br />

linha clara. E foi passando-a <strong>de</strong>vagar entre os fios, <strong>de</strong>licado traço <strong>de</strong> luz,<br />

que a manhã repetia na linha do horizonte.<br />

19


A RATOEIRA<br />

Autor <strong>de</strong>sconhecido<br />

(Para uma pessoa)<br />

Um rato, olhando pelo buraco na pare<strong>de</strong>, vê o fazen<strong>de</strong>iro e sua esposa abrindo<br />

um pacote. Pensou logo no tipo <strong>de</strong> comida que po<strong>de</strong>ria haver ali.<br />

Ao <strong>de</strong>scobrir que era uma ratoeira ficou aterrorizado. Correu ao pátio da<br />

fazenda advertindo a todos:<br />

- Há uma ratoeira na casa, uma ratoeira na casa !!!<br />

A galinha, disse:<br />

- Desculpe-me Sr. Rato, eu entendo que isso seja um gran<strong>de</strong> problema<br />

para o senhor, mas não me prejudica em nada, não me incomoda.<br />

O rato foi até o porco e lhe disse:<br />

- Há uma ratoeira na casa, uma ratoeira !!!<br />

- Desculpe-me Sr. Rato, disse o porco, mas não há nada que eu possa<br />

fazer, a não ser rezar. Fique tranqüilo que o senhor será lembrado nas minhas<br />

preces.<br />

não!<br />

O rato dirigiu-se então à vaca.<br />

Ela lhe disse:<br />

- O que Sr. Rato? Uma ratoeira? Por acaso estou em perigo? Acho que<br />

Então o rato voltou para a casa, cabisbaixo e abatido, para encarar a<br />

ratoeira do fazen<strong>de</strong>iro. Naquela noite ouviu-se um barulho, como o <strong>de</strong> uma<br />

ratoeira pegando sua vítima. A mulher do fazen<strong>de</strong>iro correu para ver o que havia<br />

pego.<br />

No escuro, ela não viu que a ratoeira havia pego a cauda <strong>de</strong> uma cobra<br />

venenosa. E a cobra picou a mulher... O fazen<strong>de</strong>iro a levou imediatamente ao<br />

hospital. Ela voltou com febre.<br />

Todo mundo sabe que para alimentar alguém com febre, nada melhor que<br />

uma canja <strong>de</strong> galinha.<br />

O fazen<strong>de</strong>iro pegou seu cutelo e foi provi<strong>de</strong>nciar o ingrediente principal.<br />

Como a doença da mulher continuava, os amigos e vizinhos vieram visitá-<br />

la. Para alimentá-los o fazen<strong>de</strong>iro matou o porco.<br />

20


funeral.<br />

A mulher não melhorou e acabou morrendo. Muita gente veio para o<br />

O fazen<strong>de</strong>iro então sacrificou a vaca, para alimentar todo aquele povo.<br />

21


A VOLTA<br />

Luís Fernando Veríssimo<br />

(Para uma pessoa)<br />

Da janela do trem o homem avista a velha cida<strong>de</strong>zinha que o viu nascer. Seus<br />

olhos se enchem <strong>de</strong> lágrimas. Trinta anos. Desce na estação <strong>–</strong> a mesma do seu<br />

tempo, não mudou nada <strong>–</strong> e respira fundo. Até o cheiro é o mesmo! Cheiro <strong>de</strong><br />

mato e poeira. Só não tem mais cheiro <strong>de</strong> carvão porque o trem agora é elétrico.<br />

E o chefe da estação, será possível? Ainda é o mesmo. Fora a careca, os bigo<strong>de</strong>s<br />

brancos, as rugas e o corpo encurvado pela ida<strong>de</strong>, não mudou nada.<br />

O homem não precisa perguntar como se chega ao centro da cida<strong>de</strong>. Vai a<br />

pé, guiando-se por suas lembranças. O centro continua como era. A praça. A<br />

igreja. A prefeitura. Até o ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> bilhetes na frente do Clube Comercial<br />

parece o mesmo.<br />

— Você não tinha um cachorro?<br />

— O Cusca? Morreu, ih, faz vinte anos.<br />

O homem sabe que subindo a Rua Quinze vai dar num cinema. O Elite.<br />

Sobe a Rua Quinze. O cinema ainda existe. Mas mudou <strong>de</strong> nome. Agora é o Rex.<br />

Do lado tem uma confeitaria. Ah, os doces da infância... Ele entra na confeitaria.<br />

Tudo igual. Fora o balcão <strong>de</strong> fórmica, tudo igual. Ou muito se engana ou o dono<br />

ainda é o mesmo.<br />

— Seu Adolfo, certo?<br />

— Lupércio.<br />

— Errei por pouco. Estou procurando a casa on<strong>de</strong> nasci. Sei que ficava ao<br />

lado <strong>de</strong> uma farmácia.<br />

— Qual <strong>de</strong>las, a Progresso, a Tem Tudo ou a Mo<strong>de</strong>rna?<br />

— Qual é a mais antiga?<br />

— A Mo<strong>de</strong>rna.<br />

— Então é essa.<br />

— Fica na Rua Voluntários da Pátria.<br />

Claro. A velha Voluntários. Sua casa está lá intacta. Ele sente vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

chorar. A cor era outra. Tinham mudado a porta e provavelmente emparedado<br />

uma das janelas. Mas não havia dúvida, era a casa da sua infância. Bateu na<br />

porta. A mulher que abriu lhe parecia vagamente familiar. Seria...<br />

22


— Titia?<br />

— Puluca!<br />

— Bem, meu nome é...<br />

— Todos chamavam você <strong>de</strong> Puluca. Entre.<br />

Ela lhe serviu licor. Perguntou por parentes que ele não conhecia. Ele<br />

perguntou por parentes <strong>de</strong> que ela não se lembrava. Conversaram até escurecer.<br />

Então ele se levantou e disse que precisava ir embora. Não podia, infelizmente,<br />

<strong>de</strong>morar-se em Riachinho. Só viera matar a sauda<strong>de</strong>. A tia parecia intrigada.<br />

Assis.<br />

— Riachinho, Puluca?<br />

— É, por quê?<br />

— Você vai para Riachinho?<br />

Ele não enten<strong>de</strong>u.<br />

— Eu estou em Riachinho.<br />

— Não, não. Riachinho é a próxima parada do trem. Você está em Coronel<br />

— Então eu <strong>de</strong>sci na estação errada!<br />

Durante alguns minutos os dois ficaram se olhando em silêncio. Finalmente<br />

a velha pergunta:<br />

— Como é mesmo o seu nome?<br />

Mas ele estava na rua, atordoado. E agora? Não sabia como voltar para a<br />

estação, naquela cida<strong>de</strong> estranha.<br />

23


AMIGOS<br />

Luís Fernando Veríssimo<br />

(Para dois homens)<br />

Personagens: - Careca, <strong>de</strong> óculos.<br />

- Barrigudo tirador <strong>de</strong> sarro.<br />

Os dois eram gran<strong>de</strong>s amigos. Amigos <strong>de</strong> infância. Amigos <strong>de</strong><br />

adolescência. Amigos <strong>de</strong> primeiras aventuras. Amigos <strong>de</strong> se verem<br />

todos os dias. Até mais ou menos 25 anos. Aí, por uma <strong>de</strong>stas coisas da<br />

vida - e como a vida tem coisas! <strong>–</strong> passaram muitos anos sem se ver.<br />

Até que um dia...<br />

Um dia se cruzaram na rua. Um ia numa direção, o outro na outra.<br />

Os dois se olharam, caminharam mais alguns passos e se viraram<br />

ao mesmo tempo, como se fosse coreografado. Tinham-se<br />

reconhecido.<br />

- Eu não acredito!<br />

- Não po<strong>de</strong> ser!<br />

Caíram um nos braços do outro. Foi um abraço <strong>de</strong>morado e<br />

emocionado. Deram-se tantos tapas nas costas quantos tinham sido os<br />

anos da separação.<br />

- Deixa eu te ver!<br />

- Estamos aí.<br />

- Mas você está careca!<br />

- Pois é.<br />

- E aquele bom cabelo?<br />

- Se foi...<br />

- Aquela Cabeleira.<br />

- Muito Gumex...<br />

- Fazia sucesso.<br />

- Pois é.<br />

24


- Era cabeleira pra <strong>de</strong>rrubar suburbana.<br />

- Muitas sucumbiram...<br />

- Puxa. Deixa eu ver atrás.<br />

*Vira-se* Ele se virou para mostrar a careca atrás. O outro exclamou:<br />

- Completamente careca!<br />

- E você?<br />

- Espera aí. O cabelo está todo aqui. Um pouco grisalho, mas firme.<br />

- E essa barriga?<br />

- O que é que a gente vai fazer?<br />

- Boa vida...<br />

- Mais ou menos...<br />

- Uma senhora barriga.<br />

- Nem tanto.<br />

- Aposto que futebol, com essa barriga...<br />

- Nunca mais.<br />

- E você era bom, hein? Um bolão.<br />

- O que é isso.<br />

- Agora tá com bola na barriga.<br />

- Você também.<br />

- Barriga, eu?<br />

- Quase do tamanho da minha.<br />

- O que é isso?<br />

- Respeitável.<br />

- Quem te <strong>de</strong>ra um corpo como o meu.<br />

- Mas eu estou com todo o cabelo.<br />

- Estou vendo umas entradas aí.<br />

- O seu só teve saída. *Ri da própria piada*<br />

Ele se dobra <strong>de</strong> rir com a própria piada. O outro muda <strong>de</strong> assunto.<br />

- Faz o quê? Vinte anos?<br />

- Vinte cinco. No mínimo.<br />

25


- Você mudou um bocado.<br />

- Você também.<br />

- Você acha?<br />

- Careca...<br />

- De novo a careca? Mais é fixação.<br />

- Desculpe, eu...<br />

- Esquece a minha careca.<br />

- Não sabia que você tinha complexo.<br />

- Não tenho complexo. Mas não precisa ficar falando só na careca. Estou<br />

falando nessa barriga in<strong>de</strong>cente? Nessas rugas?<br />

- Que rugas?<br />

- Ora, que rugas? Meu Deus, sua cara está que é um cotovelo.<br />

- Espera um pouquinho...<br />

- E essa barriga? Você não se cuida não?<br />

- Me cuido mais que você.<br />

- Eu faço ginástica, meu caro. Corro todos os dias. Tenho uma saú<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

cavalo.<br />

- É. Só falta a crina.<br />

- Pelo menos não tenho barriga <strong>de</strong> baiana.<br />

- E isso, o que é? *Cutuca o outro*<br />

- Não me cutuca.<br />

- Me diz. O que é? Enchimento? *Cutuca novamente*<br />

- Não me cutuca!<br />

- E esses óculos são para quê? Vista cansada? Eu não uso óculos.<br />

- É por isso que está vendo barriga aon<strong>de</strong> não tem.<br />

- Claro, claro. Vai ver você tem cabelo e eu é que não estou<br />

enxergando.<br />

- Cabelo outra vez! Mas isso já é obsessão. Eu se fosse você procurava<br />

um médico.<br />

- Vá você, que está precisando. Se bem que velhice não tem cura.<br />

26


- Quem é que é velho?<br />

- Ora, faça-me o favor...<br />

- Velho é você.<br />

- Você.<br />

- Você.<br />

- Você!<br />

- Ruína humana.<br />

- Ruína não.<br />

- Ruína!<br />

- Múmia!<br />

- Ah, é? Ah, é?<br />

- Cacareco! Ou será cacareca?<br />

- Saia da minha frente!<br />

Separaram-se, furiosos. Inimigos para o resto da vida.<br />

27


BRINCADEIRA<br />

Luís Fernando Veríssimo<br />

(Para uma pessoa)<br />

Começou como uma brinca<strong>de</strong>ira. Telefonou para um conhecido e disse:<br />

- Eu sei <strong>de</strong> tudo.<br />

Depois <strong>de</strong> um silêncio, o outro disse:<br />

- Como é que você soube?<br />

- Não interessa. Sei <strong>de</strong> tudo.<br />

- Me faz um favor. Não espalha.<br />

- Vou pensar.<br />

- Por amor <strong>de</strong> Deus.<br />

- Está bem. Mas olhe lá, hein?<br />

Descobriu que tinha po<strong>de</strong>r sobre as pessoas.<br />

- Sei <strong>de</strong> tudo.<br />

- Co-como?<br />

- Sei <strong>de</strong> tudo.<br />

- Tudo o que?<br />

- Você sabe.<br />

- Mas é impossível. Como é que você <strong>de</strong>scobriu?<br />

A reação das pessoas variava. Algumas perguntavam em seguida:<br />

- Alguém mais sabe?<br />

Outras se tornavam agressivas:<br />

- Está bem, você sabe. E daí?<br />

- Daí, nada. Só queria que você soubesse que eu sei.<br />

- Se você contar para alguém, eu...<br />

- Depen<strong>de</strong> <strong>de</strong> você.<br />

- De mim, como?<br />

- Se você andar na linha, eu não conto.<br />

- Certo.<br />

Uma vez, parecia ter encontrado um inocente.<br />

- Sei <strong>de</strong> tudo.<br />

- Tudo o que?<br />

28


o que é?<br />

- Você sabe.<br />

- Não sei. O que é que você sabe?<br />

- Não se faça <strong>de</strong> inocente.<br />

- Mas eu realmente não sei.<br />

- Vem com essa.<br />

- Você não sabe <strong>de</strong> nada.<br />

- Ah, quer dizer que existe alguma coisa para saber, mas eu é que não sei<br />

- Não existe nada.<br />

- Olha que eu vou espalhar...<br />

- Po<strong>de</strong> espalhar, que é mentira.<br />

- Como é que você sabe o que eu vou espalhar?<br />

- Qualquer coisa que você espalhar será mentira.<br />

- Está bem. Vou espalhar.<br />

Mas dali a pouco veio um telefonema.<br />

- Escute. Estive pensando melhor. Não espalha nada sobre aquilo.<br />

- Aquilo o que?<br />

- Você sabe.<br />

Passou a ser temido e respeitado. Volta e meia alguém se aproximaca <strong>de</strong>le<br />

e sussurrava:<br />

- Você contou para alguém?<br />

- Ainda não.<br />

- Puxa, obrigado.<br />

Com o tempo, ganhou uma reputação. Era <strong>de</strong> confiança. Um dia, foi<br />

procurado por um amigo com uma oferta <strong>de</strong> emprego. O salário era enorme.<br />

você.<br />

- Por que eu? <strong>–</strong> quis saber.<br />

- A posição é <strong>de</strong> muita responsabilida<strong>de</strong> <strong>–</strong> disse o amigo. <strong>–</strong> Recomen<strong>de</strong>i<br />

- Por quê?<br />

- Pela sua discrição.<br />

Subiu na vida. Dele se dizia que sabia tudo sobre todos, mas nunca abria a<br />

boca para falar <strong>de</strong> ninguém. Além <strong>de</strong> bem informado, um gentleman. Até que<br />

recebeu um telefonema. Uma voz misteriosa que disse:<br />

- Sei <strong>de</strong> tudo.<br />

29


- Co-como?<br />

- Sei <strong>de</strong> tudo.<br />

- Tudo o que?<br />

- Você sabe.<br />

Resolveu <strong>de</strong>saparecer. Mudou-se <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>. Os amigos estranharam o seu<br />

<strong>de</strong>saparecimento repentino. Investigaram. O que ele estaria tramando?<br />

Finalmente foi <strong>de</strong>scoberto numa praia remota. Os vizinhos contam que uma noite<br />

vieram muitos carros e cercaram a casa. Várias pessoas entraram na casa.<br />

Ouviram-se gritos. Os vizinhos contam que a voz que mais se ouvia era a <strong>de</strong>le,<br />

gritando:<br />

- Era brinca<strong>de</strong>ira! Era brinca<strong>de</strong>ira!<br />

Foi <strong>de</strong>scoberto <strong>de</strong> manhã, assassinado. O crime nunca foi <strong>de</strong>svendado.<br />

Mas as pessoas que o conheciam não têm dúvidas sobre o motivo.<br />

Sabia <strong>de</strong>mais.<br />

30


CACHORRO VELHO<br />

Autor Desconhecido<br />

(Para uma pessoa)<br />

Uma velha senhora foi para um safari na África e levou seu velho vira-lata com ela. Um<br />

dia, caçando borboletas, o velho cão, <strong>de</strong> repente, <strong>de</strong>u-se conta <strong>de</strong> que estava perdido.<br />

Vagando a esmo, procurando o caminho <strong>de</strong> volta, o velho cão percebe que<br />

um jovem leopardo o viu e caminha em sua direção, com intenção <strong>de</strong> conseguir um bom<br />

almoço.<br />

O cachorro velho pensa:<br />

-Oh, oh! Estou mesmo enrascado! - Olhou à volta e viu ossos espalhados<br />

no chão por perto. Em vez <strong>de</strong> apavorar-se mais ainda, o velho cão ajeita-se junto ao<br />

osso mais próximo, e começa a roê-lo, dando as costas ao predador.<br />

bem alto:<br />

Quando o leopardo estava a ponto <strong>de</strong> dar o bote, o velho cachorro exclama<br />

-Cara, este leopardo estava <strong>de</strong>licioso ! Será que há outros por aí?<br />

Ouvindo isso, o jovem leopardo, com um arrepio <strong>de</strong> terror, suspen<strong>de</strong> seu ataque,<br />

já quase começado, e se esgueira na direção das árvores.<br />

pega!<br />

- Caramba! pensa o leopardo, essa foi por pouco ! O velho vira-lata quase me<br />

Um macaco, numa árvore ali perto, viu toda a cena e logo imaginou como fazer<br />

bom uso do que vira: em troca <strong>de</strong> proteção para si, informaria ao predador que o vira-<br />

lata não havia comido leopardo algum...<br />

E assim foi, rápido, em direção ao leopardo. Mas o velho cachorro o vê correndo<br />

na direção do predador em gran<strong>de</strong> velocida<strong>de</strong>, e pensa:<br />

-Aí tem coisa!<br />

O macaco logo alcança o felino, cochicha-lhe o que interessa e faz um acordo<br />

com o leopardo.<br />

O jovem leopardo fica furioso por ter sido feito <strong>de</strong> bobo, e diz: -'Aí, macaco! Suba<br />

nas minhas costas para você ver o que acontece com aquele cachorro abusado!'<br />

Agora, o velho cachorro vê um leopardo furioso, vindo em sua direção, com um<br />

macaco nas costas, e pensa:<br />

-E agora, o que é que eu posso fazer ?<br />

31


Mas, em vez <strong>de</strong> correr ( sabe que suas pernas doídas não o levariam longe...) o<br />

cachorro senta, mais uma vez dando costas aos agressores, e fazendo <strong>de</strong> conta que<br />

ainda não os viu, e quando estavam perto o bastante para ouvi-lo, o velho cão diz:<br />

-Cadê o <strong>de</strong>sgraçado daquele macaco? tô morrendo <strong>de</strong> fome! disse que ia trazer<br />

outro leopardo para mim e não chega nunca!<br />

32


CHAPEUZINHO AMARELO<br />

Chico Buarque<br />

(Para uma pessoa)<br />

Era a Chapeuzinho Amarelo.<br />

Amarelada <strong>de</strong> medo.<br />

Tinha medo <strong>de</strong> tudo, aquela Chapeuzinho.<br />

Já não ria.<br />

Em festa, não aparecia.<br />

Não subia escada, nem <strong>de</strong>scia.<br />

Não estava resfriada, mas tossia.<br />

Ouvia conto <strong>de</strong> fada, e estremecia.<br />

Não brincava mais <strong>de</strong> nada, nem <strong>de</strong> amarelinha.<br />

Tinha medo <strong>de</strong> trovão.<br />

Minhoca, pra ela, era cobra.<br />

E nunca apanhava sol, porque tinha medo da sombra.<br />

Não ia pra fora pra não se sujar.<br />

Não tomava sopa pra não ensopar.<br />

Não tomava banho pra não <strong>de</strong>scolar.<br />

Não falava nada pra não engasgar.<br />

Não ficava em pé com medo <strong>de</strong> cair.<br />

Então vivia parada, <strong>de</strong>itada, mas sem dormir, com medo <strong>de</strong> pesa<strong>de</strong>lo.<br />

Era a Chapeuzinho Amarelo…<br />

E <strong>de</strong> todos os medos que tinha<br />

O medo mais que medonho era o medo do tal do LOBO.<br />

Um LOBO que nunca se via,<br />

que morava lá pra longe,<br />

do outro lado da montanha,<br />

num buraco da Alemanha,<br />

cheio <strong>de</strong> teia <strong>de</strong> aranha,<br />

numa terra tão estranha,<br />

33


que vai ver que o tal do LOBO<br />

nem existia.<br />

Mesmo assim a Chapeuzinho<br />

tinha cada vez mais medo do medo do medo<br />

do medo <strong>de</strong> um dia encontrar um LOBO.<br />

Um LOBO que não existia.<br />

E Chapeuzinho amarelo,<br />

<strong>de</strong> tanto pensar no LOBO,<br />

<strong>de</strong> tanto sonhar com o LOBO,<br />

<strong>de</strong> tanto esperar o LOBO,<br />

um dia topou com ele<br />

que era assim:<br />

carão <strong>de</strong> LOBO,<br />

olhão <strong>de</strong> LOBO,<br />

jeitão <strong>de</strong> LOBO,<br />

e principalmente um bocão<br />

tão gran<strong>de</strong> que era capaz <strong>de</strong> comer duas avós,<br />

um caçador, rei, princesa, sete panelas <strong>de</strong> arroz…<br />

e um chapéu <strong>de</strong> sobremesa.<br />

Finalizando…<br />

Mas o engraçado é que,<br />

assim que encontrou o LOBO,<br />

a Chapeuzinho Amarelo<br />

foi per<strong>de</strong>ndo aquele medo:<br />

o medo do medo do medo do medo que tinha do LOBO.<br />

Foi ficando só com um pouco <strong>de</strong> medo daquele lobo.<br />

Depois acabou o medo e ela ficou só com o lobo.<br />

O lobo ficou chateado <strong>de</strong> ver aquela menina<br />

olhando pra cara <strong>de</strong>le,<br />

só que sem o medo <strong>de</strong>le.<br />

34


Ficou mesmo envergonhado, triste, murcho e branco-azedo,<br />

porque um lobo, tirado o medo, é um arremedo <strong>de</strong> lobo.<br />

É feito um lobo sem pelo.<br />

Um lobo pelado.<br />

O lobo ficou chateado.<br />

Ele gritou: sou um LOBO!<br />

Mas a Chapeuzinho, nada.<br />

E ele gritou: EU SOU UM LOBO!!!<br />

E a Chapeuzinho <strong>de</strong>u risada.<br />

E ele berrou: EU SOU UM LOBO!!!!!!!!!!<br />

Chapeuzinho, já meio enjoada,<br />

com vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> brincar <strong>de</strong> outra coisa.<br />

Ele então gritou bem forte aquele seu nome <strong>de</strong> LOBO<br />

umas vinte e cinco vezes,<br />

que era pro medo ir voltando e a menininha saber<br />

com quem não estava falando:<br />

LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO<br />

Aí, Chapeuzinho encheu e disse:<br />

"Pára assim! Agora! Já! Do jeito que você tá!"<br />

E o lobo parado assim, do jeito que o lobo estava, já não era mais um LO-BO.<br />

Era um BO-LO.<br />

Um bolo <strong>de</strong> lobo fofo, tremendo que nem pudim, com medo <strong>de</strong> Chapeuzim.<br />

Com medo <strong>de</strong> ser comido, com vela e tudo, inteirim.<br />

Chapeuzinho não comeu aquele bolo <strong>de</strong> lobo,<br />

porque sempre preferiu <strong>de</strong> chocolate.<br />

Aliás, ela agora come <strong>de</strong> tudo, menos sola <strong>de</strong> sapato.<br />

Não tem mais medo <strong>de</strong> chuva, nem foge <strong>de</strong> carrapato.<br />

Cai, levanta, se machuca, vai à praia, entra no mato,<br />

Trepa em árvore, rouba fruta, <strong>de</strong>pois joga amarelinha,<br />

com o primo da vizinha, com a filha do jornaleiro,<br />

35


com a sobrinha da madrinha<br />

e o neto do sapateiro.<br />

Mesmo quando está sozinha, inventa uma brinca<strong>de</strong>ira.<br />

E transforma em companheiro cada medo que ela tinha:<br />

O raio virou orrái;<br />

barata é tabará;<br />

a bruxa virou xabru;<br />

e o diabo é bodiá.<br />

FIM<br />

(Ah, outros companheiros da Chapeuzinho Amarelo:<br />

o Gãodra, a Jacoru,<br />

o Barãotu, o Pão Bichôpa…<br />

e todos os tronsmons).<br />

36


CLASSIFICADOS<br />

Luís Fernando Veríssimo<br />

(Para um homem e uma mulher)<br />

- Alô?<br />

Personagens: - Mulher.<br />

- Homem.<br />

- Alô, é daí que anunciaram um trombone nos classificados?<br />

- É daqui, sim.<br />

- Laura, é isso?<br />

- É. Sou eu.<br />

- E o trombone é seu?<br />

- É<br />

- Você toca trombone?<br />

- É<br />

- E como é?<br />

- Bom, é <strong>de</strong> vara e...<br />

- Não, não. Você.<br />

- Eu?<br />

- É. Como é que você é?<br />

- O que que isso tem a ver com...<br />

- Desculpe, mas é muito importante pra mim.<br />

- Você quer comprar um trombone ou não quer?<br />

- Olhe, não leve a mal. Mas eu preciso saber como você é.<br />

- Bom, tenho trinta e dois anos. Sou clara, cabelos castanhos...<br />

- E os olhos?<br />

- Castanhos também. Um pouco cinzentos.<br />

- São puxados, assim, pra cima?<br />

- É. Um pouco.<br />

37


- Escute. Eu vou dizer uma frase e você vai me dizer se ela significa<br />

alguma coisa para você. “Para que bichos <strong>de</strong> estimação, se tenho<br />

os teus pés?”<br />

- ―Para que...‖<br />

- “Bichos <strong>de</strong> estimação, se tenho os teus pés.” Pense bem.<br />

- Não estou me lembrando...<br />

- Pense bem. É muito importante.<br />

- Não. Sinto muito. Não me lembro.<br />

- Você tem um sinal na coxa esquerda?<br />

- Como é que você sabe?<br />

- Tem ou não tem?<br />

- Tenho.<br />

- Altura, um e cinqüenta, por aí.<br />

- Por aí.<br />

- É <strong>de</strong> Quarai?<br />

- Sou!<br />

- Come <strong>de</strong> tudo, menos miúdos.<br />

- Exato.<br />

- Gosta <strong>de</strong> azul, <strong>de</strong> caminhar na chuva e <strong>de</strong> J. Simmel¹.<br />

- Vem cá, quem é que está falando?<br />

- Ainda não posso dizer. Agora ouça. É muito importante. Você<br />

esteve em Foz do Iguaçu no verão <strong>de</strong> 70?<br />

- Estive!<br />

- Tem certeza?<br />

- Claro. Fui com a minha tia.<br />

- Uma que fraturou o braço?<br />

- Isso mesmo! Quem é você?<br />

- Tente se lembrar. “Para que bichos <strong>de</strong> estimação, se tenho os teus<br />

pés?”<br />

38


- Não me lembro. Já tentei me lembrar, mas nunca ouvi essa frase<br />

antes.<br />

- É pena...<br />

- Por quê?<br />

- Você não é a pessoa que estou procurando.<br />

- Mas...<br />

- Tchau.<br />

1. Johannes Mario Simmel, escritor austríaco nascido em 1924.<br />

39


CORNITA<br />

Luís Fernando Veríssimo<br />

(Para uma pessoa)<br />

Personagens: - O Pai.<br />

- O Filho / A Professora (alternadamente).<br />

- Pai, o que é cornita?<br />

- Como é que se escreve?<br />

- Ce, o, erre, ene, i, te, a.<br />

O pai pensou um pouco. Não podia dizer que não sabia. O garoto há<br />

muito tempo <strong>de</strong>scobrira que o pai não era o homem mais forte do<br />

mundo. Precisava mostrar que, pelo menos, não era dos mais burros.<br />

Perguntou como é que a palavra estava usada.<br />

- Aqui diz, “a cornita da igreja...” <strong>–</strong> respon<strong>de</strong>u o garoto.<br />

- Ah, esse tipo <strong>de</strong> cornita. É um ornamento, na forma <strong>de</strong> corno, que fica<br />

do lado do altar.<br />

- Pra que que serve?<br />

- Pra, ahn, nada. É um símbolo.<br />

- Ah.<br />

- Pai, usei “cornita” numa redação e a professora disse que a<br />

palavra não existe.<br />

- O que? Mas que professora é essa?<br />

- Ela diz que nunca ouviu falar.<br />

- Pois diga a ela que ―cornita‖, embora não faça mais parte da arquitetura<br />

canônica, era muito usada nas igrejas medievais.<br />

- Tá.<br />

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- Pai, a professora continua dizendo que “cornita” não existe. E diz<br />

que também não se diz “arquitetura canônica”.<br />

- Preciso ter uma conversa com essa professora. Essa educação <strong>de</strong><br />

hoje...<br />

- Não quero discutir com a senhora. Mas também não quero ver meu<br />

filho duvidando do próprio pai. Para começar, minha senhora, aqui está o<br />

livro que meu filho estava lendo. E aqui está a palavra. ―Cornita‖.<br />

- Deixa eu ver. Obviamente, era pra ser “cornija”. É um erro <strong>de</strong><br />

imprensa.<br />

- O quê?<br />

- Um erro <strong>de</strong> revisão. “Cornija”. Ornamentação muito usada na<br />

arquitetura antiga. “Cornita” não existe.<br />

- Pai, vamos pra casa...<br />

- Um momentinho. Um momentinho! Claro que eu sei o que é ―cornija‖.<br />

Mas existem as duas palavras. ―Cornija‖ e ―cornita‖. Duas coisas<br />

completamente diferentes.<br />

- Então me mostre “cornita” no dicionário.<br />

- Ora, no dicionário. E a senhora ainda confia nos nossos dicionários?<br />

- Pai, vamos embora...<br />

- O que é isso, pai?<br />

- Um pequeno tratado que fiz para a sua professora, aquela mula, ler.<br />

Dezessete páginas. Pouca coisa. Nele, traço <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a origem etimológica<br />

da palavra ―cornita‖, no sânscrito, até a sua simbologia no ritual da igreja<br />

antes do concílio <strong>de</strong> Trento, incluindo o número <strong>de</strong> vezes em que o<br />

termo aparece na obra <strong>de</strong> Vouchard <strong>de</strong> Mesquieu sobre a arquitetura<br />

canônica, para a mula apren<strong>de</strong>r a jamais <strong>de</strong>smentir um pai.<br />

- Certo, pai.<br />

41


- Pai...<br />

- O que é?<br />

- A professora leu o seu tratado.<br />

- E então?<br />

- Mandou pedir <strong>de</strong>sculpas. Diz que o senhor é um homem muito<br />

etudito.<br />

- Erudito.<br />

- Erudito. Mandou pedir <strong>de</strong>sculpas. A burra era ela.<br />

- Está bem, meu filho. Pelo menos agora ela sabe com quem está<br />

tratando.<br />

Valera a pena. Valera até as noites perdidas inventando os dados<br />

do tratado. Sabia que acabaria convencendo a mulher com um ataque<br />

maciço <strong>de</strong> erudição, mesmo falsa. Vouchard <strong>de</strong> Mesquieu. Aquele fora o<br />

golpe <strong>de</strong> mestre. Vouchard <strong>de</strong> Mesquieu. Per<strong>de</strong>ra uma hora só para<br />

encontrar o nome certo. Mas estava redimido.<br />

42


DOIS MAIS DOIS.<br />

Luís Fernando Veríssimo<br />

(Para uma pessoa)<br />

O Rodrigo não entendia por que precisava apren<strong>de</strong>r matemática, já que a sua<br />

minicalculadora faria todas as contas por ele, pelo resto da vida, e então a<br />

professora resolveu contar uma história. Contou a história do Super Computador.<br />

Um dia, disse a professora, todos os computadores do mundo serão<br />

unificados num único sistema, e o centro do sistema será em alguma cida<strong>de</strong> do<br />

Japão. Todas as casas do mundo, todos os lugares do mundo, terão terminais do<br />

Super Computador. Toda a informação do mundo estará nos circuitos do Super<br />

Computador. As pessoas usarão o Super Computador para compras, para<br />

recados, para reservas <strong>de</strong> avião, para consultas sentimentais. Para tudo.<br />

Ninguém mais precisará <strong>de</strong> relógios individuais, <strong>de</strong> livros ou <strong>de</strong><br />

calculadoras portáteis. Não precisará mais nem estudar. Tudo que alguém quiser<br />

saber sobre qualquer coisa estará na memória do Super Computador, ao alcance<br />

<strong>de</strong> qualquer um. Em milésimos <strong>de</strong> segundo a resposta à consulta estará na tela<br />

mais próxima. E haverá bilhões <strong>de</strong> telas espalhadas por on<strong>de</strong> o homem estiver,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> lavatórios públicos até estações espaciais. Bastará ao homem apertar um<br />

botão para ter a informação que quiser.<br />

Um dia, um garoto perguntará ao pai:<br />

- Pai, quanto é dois mais dois?<br />

- Não pergunte a mim <strong>–</strong> dirá o pai -, pergunte a Ele.<br />

E o garoto digitará os botões apropriados e num milésimo <strong>de</strong> segundo a<br />

resposta aparecerá na tela. E então o garoto dirá:<br />

- Como é que sei que essa resposta é certa?<br />

- Porque Ele disse que é certa <strong>–</strong> respon<strong>de</strong>rá o pai.<br />

- E se Ele estiver errado?<br />

- Ele nunca erra,<br />

- Mas se estiver?<br />

- Sempre po<strong>de</strong>mos contar nos <strong>de</strong>dos.<br />

- O quê?<br />

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- Contar nos <strong>de</strong>dos, como faziam os antigos. Levante dois <strong>de</strong>dos. Agora<br />

mais dois. Viu? Um, dois, três, quatro. O computador está certo.<br />

- Mas, pai, e 362 vezes 17? Não dá pra contar nos <strong>de</strong>dos. A não ser<br />

reunindo muita gente e usando os <strong>de</strong>dos das mãos e dos pés. Como saber se a<br />

resposta d’Ele está certa?<br />

Aí o pai suspirou e disse:<br />

- Jamais saberemos...<br />

O Rodrigo gostou da história, mas disse que, quando ninguém mais<br />

soubesse matemática e não pu<strong>de</strong>sse pôr o Computador à prova, então não faria<br />

diferença se o Computador estava certo ou não, já que a sua resposta seria a<br />

única disponível e, portanto, a certa, mesmo que estivesse errada, e...<br />

Aí foi a vez da professora suspirar.<br />

44


ESTRAGOU A TELEVISÃO<br />

Luís Fernando Veríssimo<br />

(Para um homem e uma mulher)<br />

- liiih...<br />

- E agora?<br />

Personagens: - Geraldo/Eduardo.<br />

- Valdusa/Maria Ester.<br />

- Vamos ter que conversar.<br />

- Vamos ter que o quê?<br />

- Conversar. É quando um fala com o outro.<br />

- Fala o quê?<br />

- Qualquer coisa. Bobagem.<br />

- Per<strong>de</strong>r tempo com bobagem?<br />

- E a televisão, o que é?<br />

- Sim, mas aí é a bobagem dos outros. A gente só assiste. Um falar<br />

com o outro, assim, ao vivo... Sei não...<br />

- Vamos ter que improvisar nossa própria bobagem.<br />

- Então começa você.<br />

- Gostei do seu cabelo assim.<br />

- Ele está assim há meses, Eduardo. Você é que não tinha...<br />

- Geraldo.<br />

- Hein?<br />

- Geraldo. Meu nome não é Eduardo, é Geraldo.<br />

- Des<strong>de</strong> quando?<br />

- Des<strong>de</strong> o batismo.<br />

- Espera um pouquinho. O homem com quem eu casei se chamava<br />

Eduardo.<br />

- Eu me chamo Geraldo, Maria Ester.<br />

45


- Geraldo Maria Ester?!<br />

- Não, só Geraldo. Maria Ester é o seu nome.<br />

- Não é não.<br />

- Como, não é não?<br />

- Meu nome é Valdusa.<br />

- Você enlouqueceu, Maria Ester?<br />

- Pelo amor <strong>de</strong> Deus, Eduardo...<br />

- Geraldo.<br />

- Pelo amor <strong>de</strong> Deus, meu nome sempre foi Valdusa. Dusinha, você<br />

não se lembra?<br />

- Eu nunca conheci nenhuma Valdusa. Como é que eu posso estar<br />

casado com uma mulher que eu nunca... Espera. Valdusa. Não era a<br />

mulher do, do... Um <strong>de</strong> bigo<strong>de</strong>...<br />

- Eduardo.<br />

- Eduardo!<br />

- Exatamente. Eduardo. Você.<br />

- Meu nome é Geraldo, Maria Ester.<br />

- Valdusa. E, pensando bem, que fim levou o seu bigo<strong>de</strong>?<br />

- Eu nunca usei bigo<strong>de</strong>!<br />

- Você é que está querendo me enlouquecer, Eduardo.<br />

- Calma. Vamos com calma.<br />

- Se isso for alguma brinca<strong>de</strong>ira sua...<br />

- Um <strong>de</strong> nós está maluco. Isso é certo.<br />

- Vamos recapitular. Quando foi que casamos?<br />

- Foi no dia, no dia...<br />

- Arrá! Tá aí. Você sempre esqueceu o dia do nosso casamento...<br />

Prova <strong>de</strong> que você é o Eduardo e a maluca não sou eu.<br />

- E o bigo<strong>de</strong>? Como é que você explica o bigo<strong>de</strong>?<br />

- Fácil. Você raspou.<br />

- Eu nunca tive bigo<strong>de</strong>, Maria Ester!<br />

46


- Valdusa!<br />

- Tá bom. Calma. Vamos tentar ser racionais. Digamos que o seu nome<br />

seja mesmo Valdusa. Você conhece alguma Maria Ester?<br />

- Deixa eu pensar. Maria Ester... Nós não tivemos uma vizinha<br />

chamada Maria Ester?<br />

- A única vizinha <strong>de</strong> que eu me lembro é a tal <strong>de</strong> Valdusa.<br />

- Maria Ester. Claro. Agora me lembrei. E o nome do marido <strong>de</strong>la<br />

era... Jesus!<br />

- O marido se chamava Jesus?<br />

- Não. O marido se chamava Geraldo.<br />

- Geraldo...<br />

- É.<br />

- Era eu. Ainda sou eu.<br />

- Parece...<br />

- Como foi que isso aconteceu?<br />

- As casas geminadas, lembra?<br />

- A rotina <strong>de</strong> todos os dias...<br />

- Marido chega em casa cansado, marido e mulher mal se olham...<br />

- Um dia marido cansado erra <strong>de</strong> porta, mulher nem nota...<br />

- Há quanto tempo vocês se mudaram daqui?<br />

- Nós nunca nos mudamos. Você e o Eduardo é que se mudaram.<br />

- Eu e o Eduardo, não. A Maria Ester e o Eduardo.<br />

- É mesmo...<br />

- Será que eles já se <strong>de</strong>ram conta?<br />

- Só se a televisão <strong>de</strong>les também quebrou.<br />

47


ESTRELAS EM GREVE<br />

João A. Carrascoza<br />

(Para uma pessoa)<br />

Quase todas as noites o universo nos oferece um belo espetáculo. As estrelas<br />

cintilam no céu e a lua aparece em suas diferentes fases. Só que os homens<br />

cochilam no sofá ou assistem futebol. As mulheres assistem à novela. As crianças<br />

ficam brincando com os computadores.<br />

Sem platéia para assistir este lindo espetáculo, as estrelas <strong>de</strong>cidiram entrar<br />

em greve por tempo in<strong>de</strong>terminado. A lua, solidária com as amigas, a<strong>de</strong>riu ao<br />

protesto e também se escon<strong>de</strong>u.<br />

Foi um fuzuê no mundo inteiro.<br />

As galinhas que dormiam com a estrela-dalva, per<strong>de</strong>ram o sono e <strong>de</strong>ixaram<br />

<strong>de</strong> botar ovos.<br />

As corujas pararam <strong>de</strong> piar.<br />

Os grilos silenciaram.<br />

Os anjos da guarda que <strong>de</strong>sciam à noitinha para ninar as crianças,<br />

perdiam-se no caminho.<br />

cessou.<br />

Os poetas caíram em <strong>de</strong>sânimo e a produção <strong>de</strong> poesia imediatamente<br />

Os agricultores ignoravam se era ou não época certa para semear.<br />

As marés, <strong>de</strong>sorientadas, subiam e <strong>de</strong>sciam à <strong>de</strong>riva.<br />

Então os homens <strong>de</strong>scobriram que aquilo tinha a ver com o sumiço das<br />

estrelas. Chamaram os melhores astrônomos, mas eles não souberam explicar o<br />

ocorrido. Convocaram as bruxas para resolver o assunto, elas fizeram lá suas<br />

mandingas, mas não adiantou nada. A coisa estava realmente preta.<br />

Até que, numa noite, um homem saiu <strong>de</strong> casa e se pôs a contemplar o céu<br />

na escuridão. Recordou das histórias <strong>de</strong> lua cheia, quando aparecia o lobisomem.<br />

Outro homem lembrou que uma nascera uma verruga no <strong>de</strong>do porque, quando<br />

garoto, apontara para as Três-Marias. Apareceu uma mulher e comentou que só<br />

cortava o cabelo na Lua minguante.<br />

48


Outra mulher falou que, havia alguns anos, vira uma estrela ca<strong>de</strong>nte e<br />

fizera um pedido, que <strong>de</strong>pois se realizou.<br />

Aos poucos as pessoas foram saindo <strong>de</strong> casa e cada um tinha sua história<br />

para contar sobre a Lua e as estrelas.<br />

Quando todos estavam na rua olhando o céu vazio, as estrelas, que<br />

observavam do fundo da noite, apareceram <strong>de</strong> surpresa, acen<strong>de</strong>ndo-se ao<br />

mesmo tempo.<br />

Foi lindo: parecia uma chuva <strong>de</strong> gotas prateadas. Em seguida <strong>de</strong>spontou a<br />

Lua, com seu brilho magnífico <strong>de</strong> Lua Cheia.<br />

Aí todos enten<strong>de</strong>ram o motivo daquela greve. E, imediatamente, <strong>de</strong>cidiram<br />

em consenso: Podiam ver televisão, dormir no sofá e brincar nos computadores<br />

todas as noites.<br />

das estrelas.<br />

Mas, <strong>de</strong> vez em quando, iriam dar uma espiadinha no céu pra ver o show<br />

49


GRAÇAS AO MENINO!<br />

Rosana Pamplona e Dino Bernardi Jr<br />

(Para uma pessoa)<br />

Era época <strong>de</strong> Natal. Pelos gelados caminhos do norte da Europa, seguia<br />

uma caravana <strong>de</strong> ciganos. Assustados com aquele inverno precoce e<br />

mais ru<strong>de</strong> do que o habitual, os ciganos resolveram mudar seu curso e<br />

tentar terras mais quentes.<br />

Um dia, acampados à beira da estrada, perceberam a ameaça <strong>de</strong><br />

uma iminente tempesta<strong>de</strong> <strong>de</strong> neve. Às pressas, recolheram suas coisas<br />

e seguiram com suas carroças, sem perceber que haviam <strong>de</strong>ixado para<br />

trás um <strong>de</strong>les, um menininho que se havia abrigado numa espécie <strong>de</strong><br />

gruta que encontrara. O pequeno cigano ali ficou, dormindo<br />

inocentemente por algumas horas, até a borrasca passar. Quando<br />

acordou, <strong>de</strong>u-se conta <strong>de</strong> que estava sozinho. Chamou, chamou, mas só<br />

sua voz ressoava no silêncio daquele mundo amortecido pela grossa<br />

coberta <strong>de</strong> neve.<br />

Resolveu esperar com paciência que o fossem buscar, mas logo<br />

sentiu fome e tentou achar algo para iludir seu estômago. Em vão.<br />

Nenhuma fruta teria forças para crescer naquele frio, nenhum bichinho<br />

ousaria enfrentar a neve inclemente. As horas foram passando e o<br />

menino, enregelado e faminto, <strong>de</strong>cidiu sair dali e procurar ajuda na<br />

cida<strong>de</strong> mais próxima.<br />

Andou, andou e por fim chegou a um pequeno povoado. Cheio <strong>de</strong><br />

esperanças, bateu à porta da primeira casa que encontrou.<br />

Ali morava uma velha senhora, que havia passado o dia todo<br />

limpando e arrumando sua casa, pois era a véspera <strong>de</strong> Natal e ela<br />

queria que tudo estivesse impecável para festejar o sagrado nascimento<br />

do Menino. Assim, quando foi abrir a porta e viu aquela criança suja, mal<br />

vestida, ficou aborrecida e o enxotou, dizendo:<br />

50


- Cuidado com esses pés imundos! Você não vê que po<strong>de</strong> sujar<br />

meu tapete, estragar todo meu trabalho? Saia daqui, seu pequeno vadio!<br />

O garoto nem ousou respon<strong>de</strong>r; achou melhor tentar a porta da<br />

segunda casa.<br />

Ali morava um marceneiro, que havia passado o dia todo<br />

reformando seus móveis, pois, afinal, era véspera <strong>de</strong> Natal, e tudo<br />

<strong>de</strong>veria estar perfeito para festejar o nascimento do Menino. E ele estava<br />

justamente lixando a última <strong>de</strong> suas ca<strong>de</strong>iras quando ouviu baterem.<br />

Contrariado com aquela interrupção, foi abrir e, vendo o cigano, gritou:<br />

- Como ousa atrapalhar meu serviço? Fora daqui, não vê que<br />

estou ocupado?!?<br />

O menino, assustado, saiu correndo o quanto lhe permitiram as<br />

perninhas cansadas e assim chegou à terceira casa.<br />

Ali morava uma jovem viúva e seu filho pequeno. Quando ela viu o<br />

cigano, amedrontou-se: um garoto como aquele não podia ser boa<br />

companhia para seu filho. Era melhor evitar problemas, principalmente<br />

na noite em que se festeja o sagrado nascimento do Menino. E assim<br />

pensando, gritou, batendo a porta:<br />

- Vá embora, você vai assustar meu filho!<br />

O menino cigano, transido <strong>de</strong> fome e frio, arrastou-se pela neve,<br />

tentando afastar-se daquele povoado, que nenhum conforto lhe <strong>de</strong>ra. Já<br />

ia longe, quando avistou uma última casinha. Sentindo que, se não fosse<br />

socorrido, morreria ali mesmo, para lá se dirigiu, até cair, sem forças, na<br />

soleira da casa.<br />

Ouvindo o barulho, o velho mestre da al<strong>de</strong>ia, que ali morava, abriu<br />

a porta e recolheu o menino. Aqueceu-o ao pé da lareira, <strong>de</strong>u-lhe <strong>de</strong><br />

comer e beber e reconfortou-o com amor.<br />

Enquanto isso, com a noite chegando...<br />

A velha senhora, sentada no seu sofá impecavelmente escovado,<br />

admirava o brilho <strong>de</strong> suas louças, a limpeza <strong>de</strong> sua sala, porém... Não se<br />

51


sentia feliz. Doía-lhe a solidão. ―De que adianta‖, refletia ela, ―ter a casa<br />

tão arrumada se ninguém a compartilha comigo na noite <strong>de</strong> Natal? Bem<br />

que eu podia ter <strong>de</strong>ixado aquele garoto entrar. Pensando bem, um pouco<br />

<strong>de</strong> neve no tapete não faria mal algum e agora eu teria alguém com<br />

quem conversar.‖ E assim, arrependida, abriu o armário da cozinha,<br />

escolheu o maior pão que encontrou e saiu à procura do menino.<br />

O marceneiro, por sua vez, acabara o trabalho. Sentado na sua<br />

ca<strong>de</strong>ira nova, entediava-se, mergulhado em remorsos. ―Para que tantas<br />

ca<strong>de</strong>iras, se todas ficam vazias na noite <strong>de</strong> Natal? Bem que eu podia ter<br />

<strong>de</strong>ixado aquele garotinho entrar. Talvez ele até me ajudasse e agora<br />

estaríamos festejando juntos.‖ E assim pensando, foi até sua a<strong>de</strong>ga,<br />

escolheu o melhor vinho e saiu à procura do menino.<br />

Enquanto isso, a jovem viúva observava o filho brincando sozinho<br />

e, arrependida, lamentava-se. ―Que pena ter mandado aquele cigano<br />

embora! Fui tola e medrosa. Uma criança tão pequena nada nos faria <strong>de</strong><br />

mal; ao contrário, só nos traria alegria.‖ E, assim pensando, encheu uma<br />

cestinha com as melhores castanhas que encontrou na <strong>de</strong>spensa e,<br />

carregando seu filho no colo, saiu à procura do menino.<br />

Assim, seguindo as pegadas que o menino <strong>de</strong>ixava na neve, todos<br />

eles se encontraram diante da casa do velho mestre. Ele abriu a porta e<br />

convidou-os a entrar. Lá <strong>de</strong>ntro, ao pé do fogo, estava o menino, que,<br />

contente, sorriu-lhes. O velho mestre então lhes perguntou, já que<br />

estavam todos lá e haviam trazido tantas coisas boas, por que não se<br />

sentavam ao redor do fogo e festejavam juntos o Natal.<br />

E assim foi que, naquele ano, todos eles tiveram um Natal mais<br />

farto, mais alegre e caloroso, graças ao menino.<br />

Assim po<strong>de</strong> ser também o Natal <strong>de</strong> todos nós que abrimos a porta<br />

<strong>de</strong> nosso coração para quem sofra <strong>de</strong> frio ou <strong>de</strong> fome. Qualquer espécie<br />

<strong>de</strong> frio ou <strong>de</strong> fome.<br />

Assim será, graças ao Menino!<br />

52


MÃE EXECUTIVA<br />

Luís Fernando Veríssimo<br />

(Para um homem e uma mulher)<br />

Personagens: - Thiago, o filho.<br />

- A mãe executiva.<br />

- Acampar? De jeito nenhum! Você só tem 7 anos.<br />

- Tenho 15, mãe!<br />

- Mas já?! Não é possível! Tem certeza?<br />

- Absoluta. É que nos meus últimos aniversários você estava trabalhando e<br />

esqueceu <strong>de</strong> ir.<br />

- Esqueci, não. É que caíram em dia <strong>de</strong> semana. Se tivessem feito<br />

como eu sugeri...<br />

- Você sugeriu que mudassem o dia do meu aniversário para o primeiro<br />

domingo <strong>de</strong> maio.<br />

- Exato. Domingo eu nunca trabalho.<br />

- Papai contou que vocês se casaram num domingo e você trabalhou<br />

durante a cerimônia.<br />

- Eu só assinei uns documentos enquanto o padre falava. Ele nem<br />

percebeu.<br />

- E em vez do vovô... Você entrou na igreja <strong>de</strong> braço dado com o contador!<br />

- Claro! O balanço da firma era para o dia seguinte!<br />

- E a lua-<strong>de</strong>-mel...<br />

- Tá. Eu não fui. Mas man<strong>de</strong>i o boy do escritório me representando.<br />

Seu pai no começo resistiu, mas acabou aceitando.<br />

- E quando eu nasci? Qual é a <strong>de</strong>sculpa?<br />

- Desculpa por quê? Você nasceu como qualquer criança.<br />

- Nasci numa mesa <strong>de</strong> reuniões!<br />

- Era numa reunião <strong>de</strong> diretoria! Não podia sair assim, só porque a<br />

bolsa estourou. E você <strong>de</strong>via se orgulhar! Foi o presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma<br />

gran<strong>de</strong> multinacional que fez teu parto.<br />

53


- Já sei. E a secretária cortou meu cordão umbilical com o clipe. Não<br />

brinca. Fiquei traumatizado.<br />

- Eu fiquei. Você nasceu em cima <strong>de</strong> uma papelada importante.<br />

Quase perdi o emprego...<br />

- E quando você foi me pegar na escola pela primeira vez? A vergonha que<br />

eu passei...<br />

- Eu só estava com medo <strong>de</strong> não te reconhecer... Não te via fazia<br />

um tempinho...<br />

- Tive que segurar um cartaz, que nem parente <strong>de</strong>sconhecido em<br />

aeroporto, escrito "Eu sou o Thiago".<br />

- Thiago? Foi esse o nome que eu te <strong>de</strong>i?<br />

- Que a moça do cartório me <strong>de</strong>u! Quando completei 8 anos e consegui ir<br />

sozinho a um tabelião. Fiquei sem nome durante oito anos! Oito anos sendo<br />

chamado <strong>de</strong> pssit!!<br />

- Pssit? Até que não é feio!<br />

- Tudo por causa <strong>de</strong>ssa porcaria do teu trabalho! Faz uma coisa. Pra provar<br />

que você quer mudar, vem acampar comigo.<br />

- Por que nós não acampamos lá no meu escritório? Do lado do fax<br />

tem um espação. E umas samambaias artificiais. Posso contratar<br />

algum estagiário para ficar coaxando pra gente.<br />

- Pára <strong>de</strong> brincar. Larga tudo e vem comigo.<br />

- Bom, se você tá insistindo tanto, eu... Então tá.<br />

Eu... Tudo bem, eu vou.<br />

- Jura? Ótimo! Você vai adorar!<br />

- Ah, difícil pensar em programa melhor. Aquelas árvores, aqueles<br />

macacos guinchando, aquelas aranhas bacanas.<br />

- Então está tudo certo.<br />

- Só preciso saber assim, <strong>de</strong> um <strong>de</strong>talhe. A respeito do mato. Uma<br />

besteira.<br />

- O quê? Se no mato tem mosquito? Se tem cobra?<br />

- Não. Se no mato tem tomada.<br />

54


MINEIRINHO DANDO MÁ NOTÍCIA<br />

Autor Desconhecido<br />

(Para dois homens, ou um homem e uma mulher)<br />

Personagens: - Mineirinho caseiro do sítio.<br />

- Patrão.<br />

- Alô, Sô Carlos? Aqui é o Uóshito, casêro do sítio.<br />

- Pois não, Seu Washington. Que posso fazer pelo senhor? Houve algum<br />

problema?<br />

- Ah, eu só tô ligando para visa pro sinhô qui o seu papagai morreu.<br />

- Meu papagaio? Morreu? Aquele que ganhou o concurso?<br />

- Ele mermo.<br />

- Puxa! Que <strong>de</strong>sgraça! Gastei uma pequena fortuna com aquele bicho! Mas...<br />

Ele morreu <strong>de</strong> que?<br />

- Dicumê carne istragada.<br />

- Carne estragada? Quem fez essa malda<strong>de</strong>? Quem <strong>de</strong>u carne para ele?<br />

- Ninguém. EIe cumeu a carne dum dos cavalo morto.<br />

- Cavalo morto? Que cavalo morto, seu Washington?<br />

- Aqueles puro-sangue qui o sinha tinha! Eles morrero <strong>de</strong> tanto puxa carroça<br />

d’água!<br />

- Tá louco? Que carroça d'água?<br />

- Pra apaga ô incêndio!<br />

- Mas que incêndio, meu Deus?<br />

- Na sua casa... Uma vela caiu, ai pegô fogo nas curtina!<br />

- Caramba, mas ai tem luz elétrica! Que vela era essa?<br />

- Do velório!<br />

- De quem?<br />

- Da sua mãe! Ela apareceu aqui sem avisa e eu <strong>de</strong>i um tiro nela pensando que<br />

fosse ladrão!<br />

- Meu Deus, que tragédia *começa a chorar*<br />

- Perai sô Carlos, o sinhô num vai chora par causa dum papagai, vai???<br />

55


NOMES<br />

Luís Fernando Veríssimo<br />

(Para uma pessoa)<br />

Um dia, todos os bonecos e bonecas da Helena começaram a falar. O<br />

primeiro foi o Urso Pompeu. Helena estava dormindo e acordou <strong>de</strong><br />

manhã com a voz do Pompeu, que dizia:<br />

- Olha a hora, preguiçosa.<br />

Helena abriu os olhos em volta. Quem a chamara?<br />

- Fui eu <strong>–</strong> disse Pompeu.<br />

- Urso não fala <strong>–</strong> disse Helena.<br />

- Mas eu não sou um urso <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> <strong>–</strong> respon<strong>de</strong>u Pompeu, como<br />

se isso explicasse tudo.<br />

Helena levantou da cama e levou um susto. Todos os seus<br />

bonecos e bonecas a cumprimentaram.<br />

- Bom dia <strong>–</strong> disse a Suzi.<br />

- Oi <strong>–</strong> disse o Molengão.<br />

- Hello <strong>–</strong> disse o cachorro, que era americano.<br />

Helena ficou <strong>de</strong> boca aberta.<br />

- Eu não sabia que vocês falavam! <strong>–</strong> disse.<br />

- Nem nós <strong>–</strong> disse a Suzi.<br />

- É o maior barato! <strong>–</strong> disse a boneca <strong>de</strong> pano, que a Helena<br />

chamava <strong>de</strong> Matil<strong>de</strong> e era muito espevitada.<br />

- Eu até sei cantar <strong>–</strong> disse o Pompeu. E começou a cantar, até que<br />

os outros fizeram ―sssh‖ e o mandaram parar.<br />

- Mas isto é ótimo! <strong>–</strong> disse Helena. <strong>–</strong> Agora eu vou po<strong>de</strong>r conversar<br />

com vocês <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Antes só eu falava e ninguém respondia.<br />

- Tem uma coisa... <strong>–</strong> disse o Molengão.<br />

- O que é?<br />

- Você nos chama pelos nomes errados.<br />

56


- Mas fui eu que botei os nomes em vocês. A não ser pela Suzi,<br />

que já veio da loja com esse nome.<br />

é Eunice.<br />

<strong>de</strong> Felipão.<br />

cachorro.<br />

- Pois eu nem me chamo Suzi <strong>–</strong> disse a Suzi. <strong>–</strong> Meu nome mesmo<br />

- O meu é Geraldo <strong>–</strong> disse Pompeu.<br />

- O meu é Felipe <strong>–</strong> disse o Molengão. <strong>–</strong> Mas você po<strong>de</strong> me chamar<br />

- E o seu, como é? <strong>–</strong> perguntou Helena, apontando para o<br />

- What? <strong>–</strong> disse o cachorro, em inglês.<br />

- Como é o s-eu no-me? <strong>–</strong> repetiu Helena. Quando a gente fala<br />

com estrangeiro é só falar bem <strong>de</strong>vagar que eles enten<strong>de</strong>m.<br />

- Meu nome é Sam <strong>–</strong> disse o cachorro. <strong>–</strong> Sam Smith.<br />

- E o meu nome vocês nem <strong>de</strong>sconfiam qual é <strong>–</strong> disse a boneca <strong>de</strong><br />

pano. <strong>–</strong> É Saralara!<br />

- Que nome esquisito! <strong>–</strong> disse o Molengão. Quer dizer, o Felipão.<br />

- Esquisita é a sua cara! <strong>–</strong> disse a boneca.<br />

- Não briguem <strong>–</strong> pediu Helena.<br />

- E o seu verda<strong>de</strong>iro nome, como é, Helena? <strong>–</strong> quis saber Geraldo,<br />

o ex-Pompeu.<br />

chama?<br />

- É Helena, né.<br />

- Helena é o nome que <strong>de</strong>ram para você. Como é que você se<br />

Helena ficou pensativa. Gostava do nome Helena. Mas, no fundo,<br />

no fundo, sempre se achava com cara <strong>de</strong> Rejane Devia ser o seu nome<br />

<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>.<br />

- É Rejane <strong>–</strong> disse.<br />

A mãe <strong>de</strong> Helena entrou no quarto e disse que era para ela<br />

interromper aquele papo com os bonecos porque estava na hora <strong>de</strong><br />

escovar os <strong>de</strong>ntes, tomar café e ir para a escola. Antes <strong>de</strong> sair do quarto,<br />

57


Helena, ou Rejane, ainda fez uma pergunta para os bonecos. Era uma<br />

coisa que a estava intrigando.<br />

- Eu botei os nomes em vocês porque vocês não falavam e não<br />

podiam dizer seus nomes <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, certo?<br />

- Certo.<br />

- Quer dizer que todas as outras coisas neste quarto também têm<br />

nomes que a gente não sabe. Se pu<strong>de</strong>ssem falar, elas nos diriam qual é.<br />

―cama‖.<br />

- Exatamente.<br />

- Eu, por exemplo <strong>–</strong> disse Saralara - , sei que cama não se chama<br />

- E como é que ela se chama? <strong>–</strong> quis saber Helena.<br />

- É ―Frunfra.‖ <strong>–</strong> disse Saralara.<br />

- E armário é ―Bozório‖ <strong>–</strong> revelou Geraldo.<br />

- Tapete se chama ―Abajur‖ <strong>–</strong> disse Eunice.<br />

- E abajur, como se chama? <strong>–</strong> perguntou Helena.<br />

- Carlos Henrique.<br />

Helena contou tudo isso para os seus pais, que acharam<br />

engraçado mas não acreditaram muito. Os adultos não têm nenhuma<br />

imaginação.<br />

- Senta direito na ca<strong>de</strong>ira <strong>–</strong> disse a mãe <strong>de</strong> Helena.<br />

- Ca<strong>de</strong>ira, não <strong>–</strong> corrigiu Helena. <strong>–</strong> Sploct.<br />

58


O CEGO E O CAÇADOR<br />

Conto da África Oci<strong>de</strong>ntal <strong>–</strong> Adaptado por Hugh Lupton<br />

(Para uma pessoa)<br />

Era uma vez um homem cego que morava numa palhoça, com sua irmã, numa<br />

al<strong>de</strong>ia na orla da Floresta. Esse homem era muito inteligente. Apesar <strong>de</strong> seus<br />

olhos não enxergarem nada, ele parecia saber mais sobre o mundo do que as<br />

pessoas cujos olhos viam tudo.<br />

Costumava sentar-se à porta <strong>de</strong> sua palhoça e conversar com quem<br />

passava. Quando alguém tinha problemas, perguntava-lhe o que fazer e ele<br />

sempre dava um bom conselho.<br />

Quando alguém queria saber alguma coisa, ele dizia, e suas respostas<br />

eram sempre corretas. As pessoas balançavam a cabeça, admiradas:<br />

- Como é que você consegue saber tanta coisa, sem enxergar?<br />

E o cego sorria, dizendo:<br />

- É que eu enxergo com os ouvidos.<br />

Bem, um dia a irmã do cego se apaixonou. Ela se apaixonou por um<br />

caçador <strong>de</strong> outra al<strong>de</strong>ia. E logo o caçador se casou com a irmã do cego. Depois<br />

da festa <strong>de</strong> casamento, o caçador foi morar na palhoça, com a esposa. Mas o<br />

caçador não tinha paciência com o irmão da mulher, não tinha nenhuma paciência<br />

com o cego.<br />

- Para que serve um homem cego? - ele dizia. E a mulher respondia:<br />

- Ora, marido, ele sabe mais coisas do mundo do que as pessoas que<br />

enxergam. O caçador ria:<br />

ha...<br />

- Ha, ha, ha, o que po<strong>de</strong> saber um cego, que vive na escuridão? Ha, ha,<br />

Todos os dias, o caçador ia para a floresta com seus alçapões, lanças e<br />

flechas. E todas as tar<strong>de</strong>s, quando o caçador voltava à al<strong>de</strong>ia, o cego dizia:<br />

- Por favor, amanhã <strong>de</strong>ixe-me ir com você caçar na floresta.<br />

Mas o caçador balançava a cabeça:<br />

- Para que serve um homem cego?<br />

59


Dias, semanas e meses se passavam, e todas as tar<strong>de</strong>s o homem cego pedia:<br />

- Por favor, amanhã <strong>de</strong>ixe-me caçar também.<br />

E todas as tar<strong>de</strong>s o caçador dizia que não.<br />

Uma tar<strong>de</strong>, porém, o caçador chegou <strong>de</strong> bom humor. Tinha trazido para<br />

casa uma bela caça, uma gazela bem gorda. Sua mulher temperou e assou a<br />

carne e, quando eles acabaram <strong>de</strong> comer, o caçador disse ao homem cego:<br />

- Pois bem, amanhã você vai caçar comigo.<br />

Assim, na manhã seguinte os dois foram juntos para a floresta, o<br />

caçador carregando seus alçapões, lanças e flechas, e conduzindo o cego pela<br />

mão, por entre as árvores. Andaram horas e horas.<br />

Então, <strong>de</strong> repente, o cego parou e puxou a mão do caçador:<br />

- Psss, um leão!<br />

O caçador olhou ao redor e não viu nada.<br />

- É um leão, sim, mas está tudo bem. Ele não está faminto e está dormindo<br />

profundamente. Não vai nos fazer mal.<br />

Continuaram seu caminho e, <strong>de</strong> fato, encontraram um leão dormindo a<br />

sono solto, <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> uma árvore.<br />

caçador:<br />

Depois que passaram pelo animal, o caçador perguntou:<br />

- Como você sabia do leão?<br />

- É que eu enxergo com os ouvidos.<br />

Andaram por mais quatro horas, e então o cego puxou <strong>de</strong> novo a mão do<br />

- Psss, um elefante!<br />

O caçador olhou ao redor e não viu nada.<br />

- É um elefante, sim, mas tudo bem. Ele está <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma poça<br />

d'água e não vai nos fazer mal.<br />

Continuaram seu caminho e, <strong>de</strong> fato, encontraram um elefante imenso,<br />

chapinhando numa poça d'água, esguichando lama nas próprias costas.<br />

Depois que passaram pelo animal, o caçador perguntou:<br />

- Como você sabia do elefante?<br />

- É que eu enxergo com os ouvidos.<br />

60


Continuaram seu caminho, se aprofundando cada vez mais na floresta, até<br />

chegarem a uma clareira. O caçador disse:<br />

- Vamos <strong>de</strong>ixar nossos alçapões aqui.<br />

O caçador armou um alçapão e ensinou o cego a armar o outro. Quando<br />

os dois alçapões estavam armados, o caçador disse:<br />

- Amanhã vamos voltar para ver o que pegamos. E os dois voltaram juntos<br />

para a al<strong>de</strong>ia.<br />

Na manhã seguinte, acordaram cedo. Mais uma vez, foram andando pela<br />

floresta. O caçador se ofereceu para segurar a mão do cego, mas o cego disse:<br />

- Não, agora já conheço o caminho.<br />

Dessa vez, o homem cego foi andando na frente. Não tropeçou em<br />

nenhuma raiz nem toco <strong>de</strong> árvore. Não errou o caminho nem uma vez. Andaram,<br />

andaram, até chegarem à clareira em que tinham armado os alçapões.<br />

De longe, o caçador viu que havia um pássaro preso em cada alçapão.<br />

De longe, viu que o pássaro preso em seu alçapão era pequeno e cinzento<br />

e que o pássaro preso no alçapão do cego era lindo, com penas ver<strong>de</strong>s,<br />

vermelhas e douradas.<br />

- Sente-se ali - ele disse.<br />

- Cada um <strong>de</strong> nós apanhou um pássaro. Vou tirá-los dos alçapões.<br />

O cego sentou-se e o caçador foi até os alçapões, pensando:<br />

- Um homem que não enxerga nunca vai perceber a diferença.<br />

E o que foi que ele fez? Deu ao cego o pequeno pássaro cinzento e ficou<br />

com o lindo pássaro <strong>de</strong> penas ver<strong>de</strong>s, vermelhas e douradas. O cego pegou o<br />

pássaro cinzento nas mãos, levantou-se e os dois rumaram <strong>de</strong> volta para casa.<br />

Andaram, andaram, e a certa altura o caçador disse:<br />

- Já que você é tão inteligente e enxerga com os ouvidos, responda uma<br />

coisa: por que há tanta <strong>de</strong>savença, ódio e guerra neste mundo?<br />

não é seu.<br />

O cego respon<strong>de</strong>u:<br />

- Porque este mundo está cheio <strong>de</strong> gente como você, que pega o que<br />

O caçador se encheu <strong>de</strong> vergonha. Pegou o pássaro cinzento da mão do<br />

cego e <strong>de</strong>u-lhe o pássaro lindo, <strong>de</strong> penas ver<strong>de</strong>s, vermelhas e douradas.<br />

61


- Desculpe - ele disse.<br />

Os dois continuaram andando, e a certa altura o caçador disse:<br />

- Já que você é tão inteligente e enxerga com os ouvidos, responda uma<br />

coisa: por que há tanto amor, bonda<strong>de</strong> e conciliação neste mundo?<br />

O cego respon<strong>de</strong>u:<br />

- Porque este mundo está cheio <strong>de</strong> gente como você, que apren<strong>de</strong> com<br />

seus próprios erros.<br />

Os dois continuaram andando, até chegarem à al<strong>de</strong>ia.<br />

E, a partir daquele dia, quando alguém perguntava ao cego:<br />

- Como é que você consegue saber tanta coisa, sem enxergar?, Era o<br />

caçador que respondia:<br />

- É que ele enxerga com os ouvidos... E ouve com o coração.<br />

62


O HOMEM TROCADO<br />

Luís Fernando Veríssimo<br />

(Para uma pessoa)<br />

O homem acorda da anestesia e olha em volta. Ainda está na sala <strong>de</strong><br />

recuperação. Há uma enfermeira do seu lado. Ele pergunta se foi tudo bem.<br />

- Tudo perfeito <strong>–</strong> diz a enfermeira, sorrindo.<br />

- Eu estava com medo <strong>de</strong>sta operação...<br />

- Por quê? Não havia risco nenhum.<br />

- Comigo, sempre há risco. Minha vida tem sido uma série <strong>de</strong> enganos...<br />

E conta que os enganos começaram com seu nascimento. Houve uma<br />

troca <strong>de</strong> bebês no berçário e ele foi criado até os <strong>de</strong>z anos por um casal <strong>de</strong><br />

orientais, que nunca enten<strong>de</strong>ram o fato <strong>de</strong> terem um filho claro com olhos<br />

redondos. Descoberto o erro, ele fora viver com seus verda<strong>de</strong>iros pais. Ou com<br />

sua verda<strong>de</strong>ira mãe, pois o pai abandonara a mulher <strong>de</strong>pois que esta não<br />

soubera explicar o nascimento <strong>de</strong> um bebê chinês.<br />

- E o meu nome? Outro engano.<br />

- Seu nome não é Lírio?<br />

- Era pra ser Lauro. Se enganaram no cartório e...<br />

Os enganos se sucediam. Na escola, vivia recebendo castigo pelo que não<br />

fazia. Fizera o vestibular com sucesso, mas não conseguira entrar na<br />

universida<strong>de</strong>. O computador se enganara, seu nome não apareceu na lista.<br />

- Há anos que a minha conta do telefone vem com cifras incríveis. No mês<br />

passado tive que pagar mais <strong>de</strong> Cr$ 300 mil.<br />

felizes.<br />

- O senhor não faz chamadas interurbanas?<br />

- Eu não tenho telefone!<br />

Conhecera sua mulher por engano. Ela o confundira com outro. Não foram<br />

- Por quê?<br />

- Ela me enganava.<br />

Fora preso por engano. Várias vezes. Recebia intimações para pagar<br />

dívidas que não fazia. Até tivera uma breve, louca alegria, quando ouvira o<br />

médico dizer:<br />

63


- O senhor está <strong>de</strong>senganado.<br />

Mas também fora um engano do médico. Não era tão grave assim. Uma<br />

simples apendicite.<br />

- E se você diz que a operação foi bem...<br />

A enfermeira parou <strong>de</strong> sorrir.<br />

- Apendicite? <strong>–</strong> perguntou, hesitante.<br />

- É. A operação era para tirar o apêndice.<br />

- Não era para trocar <strong>de</strong> sexo?<br />

64


O HOMEM, SEU FILHO E O BURRO<br />

Esopo<br />

(Para uma pessoa)<br />

Um homem ia com o filho levar um burro para ven<strong>de</strong>r no mercado.<br />

<strong>–</strong> O que você tem na cabeça para levar um burro estrada afora sem nada<br />

no lombo enquanto você se cansa? <strong>–</strong> disse um homem que passou por eles.<br />

Ouvindo aquilo, o homem montou o filho no burro, e os três continuaram<br />

seu caminho.<br />

<strong>–</strong> Ô rapazinho preguiçoso, que vergonha <strong>de</strong>ixar o seu pobre pai, um velho<br />

andar a pé enquanto vai montado! <strong>–</strong> disse outro homem com quem cruzaram.<br />

O homem tirou o filho <strong>de</strong> cima do burro e montou ele mesmo. Passaram<br />

duas mulheres e uma disse para a outra:<br />

<strong>–</strong> Olhe só que sujeito egoísta! Vai no burro e o filhinho a pé, coitado...<br />

Ouvindo aquilo, o homem fez o menino montar no burro na frente <strong>de</strong>le. O<br />

primeiro viajante que apareceu na estrada perguntou ao homem:<br />

<strong>–</strong> Esse burro é seu?<br />

O homem disse que sim. O outro continuou:<br />

<strong>–</strong> Pois não parece, pelo jeito como o senhor trata o bicho. Ora, o senhor é<br />

que <strong>de</strong>via carregar o burro em lugar <strong>de</strong> fazer com que ele carregasse duas<br />

pessoas.<br />

Na mesma hora o homem amarrou as pernas do burro num pau, e lá se<br />

foram pai e filho aos tropeções carregando o animal para o mercado. Quando<br />

chegaram, todo mundo riu tanto que o homem, enfurecido, jogou o burro no rio,<br />

pegou o filho pelo braço e voltou para casa.<br />

65


O LIXO<br />

Luís Fernando Veríssimo<br />

(Para um homem e uma mulher)<br />

Personagens: - Mulher.<br />

- Homem.<br />

Encontram-se na área <strong>de</strong> serviço. Cada um com seu pacote <strong>de</strong> lixo. É a<br />

primeira vez que se falam.<br />

- Bom dia...<br />

- Bom dia.<br />

- A senhora é do 610.<br />

- E o senhor do 612<br />

- É.<br />

- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...<br />

- Pois é...<br />

- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...<br />

- O meu quê?<br />

- O seu lixo.<br />

- Ah...<br />

- Reparei que nunca é muito. Sua família <strong>de</strong>ve ser pequena...<br />

- Na verda<strong>de</strong> sou só eu.<br />

- Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.<br />

- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei<br />

cozinhar...<br />

- Entendo.<br />

- A senhora também...<br />

- Me chame <strong>de</strong> você.<br />

- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns<br />

restos <strong>de</strong> comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...<br />

66


- É que eu gosto muito <strong>de</strong> cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como<br />

moro sozinha, às vezes sobra...<br />

- A senhora... Você não tem família?<br />

- Tenho, mas não aqui.<br />

- No Espírito Santo.<br />

- Como é que você sabe?<br />

- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.<br />

- É. Mamãe escreve todas as semanas.<br />

- Ela é professora?<br />

- Isso é incrível! Como foi que você adivínhou?<br />

- Pela letra no envelope. Achei que era letra <strong>de</strong> professora.<br />

- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.<br />

- Pois é...<br />

- No outro dia tinha um envelope <strong>de</strong> telegrama amassado.<br />

- É.<br />

- Más notícias?<br />

- Meu pai. Morreu.<br />

- Sinto muito.<br />

- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.<br />

- Foi por isso que você recomeçou a fumar?<br />

- Como é que você sabe?<br />

- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras <strong>de</strong> cigarro<br />

amassadas no seu lixo.<br />

- É verda<strong>de</strong>. Mas consegui parar outra vez.<br />

- Eu, graças a Deus, nunca fumei.<br />

- Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos <strong>de</strong> comprimido no seu lixo...<br />

- Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.<br />

- Você brigou com o namorado, certo?<br />

- Isso você também <strong>de</strong>scobriu no lixo?<br />

67


- Primeiro o buquê <strong>de</strong> flores, com o cartãozinho, jogado fora.<br />

Depois, muito lenço <strong>de</strong> papel.<br />

- É, chorei bastante, mas já passou.<br />

- Mas hoje ainda tem uns lencinhos...<br />

- É que eu estou com um pouco <strong>de</strong> coriza.<br />

- Ah.<br />

- Vejo muita revista <strong>de</strong> palavras cruzadas no seu lixo.<br />

- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.<br />

- Namorada?<br />

- Não.<br />

- Mas há uns dias tinha uma fotografia <strong>de</strong> mulher no seu lixo. Até<br />

bonitinha.<br />

- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.<br />

- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer<br />

que ela volte.<br />

- Você já está analisando o meu lixo!<br />

- Não posso negar que o seu lixo me interessou.<br />

- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, <strong>de</strong>cidi que gostaria <strong>de</strong><br />

conhecê-Ia. Acho que foi a poesia.<br />

- Não! Você viu meus poemas?<br />

- Vi e gostei muito.<br />

- Mas são muito ruins!<br />

- Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam<br />

dobrados.<br />

- Se eu soubesse que você ia ler...<br />

- Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem<br />

que, não sei: o lixo da pessoa ainda é proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>la?<br />

- Acho que não. Lixo é domínio público.<br />

68


- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O<br />

que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros.<br />

O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?<br />

- Bom, aí você já está indo fundo <strong>de</strong>mais no lixo. Acho que...<br />

- Ontem, no seu lixo...<br />

- O quê?<br />

- Me enganei, ou eram cascas <strong>de</strong> camarão?<br />

- Acertou. Comprei uns camarões graúdos e <strong>de</strong>scasquei.<br />

- Eu adoro camarão.<br />

- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente po<strong>de</strong> ...<br />

- Jantar juntos?<br />

- É.<br />

- Não quero dar trabalho.<br />

- Trabalho nenhum.<br />

- Vai sujar a sua cozinha?<br />

- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.<br />

- No seu lixo ou no meu?<br />

69


O REI DOS ANIMAIS<br />

Millôr Fernan<strong>de</strong>s<br />

(Para uma pessoa)<br />

Saiu o leão a fazer sua pesquisa estatística, para verificar se ainda era o Rei das<br />

Selvas. Os tempos tinham mudado muito, as condições do progresso alterado a<br />

psicologia e os métodos <strong>de</strong> combate das feras, as relações <strong>de</strong> respeito entre os<br />

animais já não eram as mesmas, <strong>de</strong> modo que seria bom indagar. Não que<br />

restasse ao Leão qualquer dúvida quanto à sua realeza. Mas assegurar-se é uma<br />

das constantes do espírito humano, e, por extensão, do espírito animal. Ouvir da<br />

boca dos outros a consagração do nosso valor, saber o sabido, quando ele nos é<br />

favorável, eis um prazer dos <strong>de</strong>uses.<br />

Assim o Leão encontrou o Macaco e perguntou: "Hei, você aí, macaco -<br />

quem é o rei dos animais?" O Macaco, surpreendido pelo rugir indagatório, <strong>de</strong>u<br />

um salto <strong>de</strong> pavor e, quando respon<strong>de</strong>u, já estava no mais alto galho da mais alta<br />

árvore da floresta: "Claro que é você, Leão, claro que é você!".<br />

Satisfeito, o Leão continuou pela floresta e perguntou ao papagaio:<br />

"Currupaco, papagaio. Quem é, segundo seu conceito, o Senhor da Floresta, não<br />

é o Leão?" E como aos papagaios não é dado o dom <strong>de</strong> improvisar, mas apenas<br />

o <strong>de</strong> repetir, lá repetiu o papagaio: "Currupaco... não é o Leão? Não é o Leão?<br />

Currupaco, não é o Leão?".<br />

Cheio <strong>de</strong> si, prosseguiu o Leão pela floresta em busca <strong>de</strong> novas afirmações<br />

<strong>de</strong> sua personalida<strong>de</strong>. Encontrou a coruja e perguntou: "Coruja, não sou eu o<br />

maioral da mata?" "Sim, és tu", disse a coruja. Mas disse <strong>de</strong> sábia, não <strong>de</strong> crente.<br />

E lá se foi o Leão, mais firme no passo, mais alto <strong>de</strong> cabeça. Encontrou o tigre.<br />

"Tigre, - disse em voz <strong>de</strong> estentor -eu sou o rei da floresta. Certo?" O tigre rugiu,<br />

hesitou, tentou não respon<strong>de</strong>r, mas sentiu o barulho do olhar do Leão fixo em si, e<br />

disse, rugindo contrafeito: "Sim". E rugiu ainda mais mal humorado e já<br />

arrependido, quando o leão se afastou.<br />

Três quilômetros adiante, numa gran<strong>de</strong> clareira, o Leão encontrou o<br />

elefante. Perguntou: "Elefante, quem manda na floresta, quem é Rei, Imperador,<br />

Presi<strong>de</strong>nte da República, dono e senhor <strong>de</strong> árvores e <strong>de</strong> seres, <strong>de</strong>ntro da mata?"<br />

O elefante pegou-o pela tromba, <strong>de</strong>u três voltas com ele pelo ar, atirou-o contra o<br />

tronco <strong>de</strong> uma árvore e <strong>de</strong>sapareceu floresta a<strong>de</strong>ntro. O Leão caiu no chão, tonto<br />

70


e ensangüentado, levantou-se lambendo uma das patas, e murmurou: "Que<br />

diabo, só porque não sabia a resposta não era preciso ficar tão zangado".<br />

71


PAI NÃO ENTENDE NADA<br />

Luís Fernando Veríssimo<br />

(Para um homem e uma mulher)<br />

Personagens: - Pai.<br />

- Filha.<br />

- Um biquíni novo?<br />

- É, pai.<br />

- Você comprou um no ano passado!<br />

- Não serve mais, pai. Eu cresci.<br />

- Como não serve? No ano passado você tinha 14 anos, este ano<br />

tem 15. Não cresceu tanto assim.<br />

- Não serve, pai.<br />

- Está bem, está bem. Toma o dinheiro. Compra um biquíni maior.<br />

- Maior não, pai. Menor.<br />

Aquele pai, também, não entendia nada.<br />

72


PÂNICO<br />

Luís Fernando Veríssimo<br />

(Para uma pessoa)<br />

O pai do aniversariante foi abrir a porta. Era outro pai.<br />

- Vim buscar o Edmundo.<br />

- Ah, o Edmundo.<br />

- Acho que a turma chama ele <strong>de</strong> Bocó.<br />

- O Bocó. Certo. Não quer entrar?<br />

- Obrigado. Espero aqui.<br />

O pai do aniversariante entrou na sala e anunciou:<br />

- Vieram buscar o Bocó!<br />

Só conseguiu ser ouvido na terceira vez, porque a algazarra era gran<strong>de</strong>.<br />

- Bocó! Seu pai está aí.<br />

Ninguém se apresentou.<br />

- Edmundo? Tem algum Edmundo?<br />

Ninguém. O aniversariante não sabia do Bocó. Nem se lembrava <strong>de</strong> tê-lo<br />

visto na festa. Pensando bem, não conhecia nenhum Bocó.<br />

- Como não conhece? Ele está aqui. O pai <strong>de</strong>le veio buscar.<br />

O pai e a mãe do aniversariante saíram pelo apartamento atrás do Bocó.<br />

Bateram na porta do banheiro, ocupado por oito meninas ao mesmo tempo. O<br />

Bocó não estava entre elas. Procuraram pelos quartos. No quarto do<br />

aniversariante tinha se instalado uma dissidência literária. Um grupo espalhado<br />

pelo chão lia as revistinhas do aniversariante. Nenhum <strong>de</strong>les era o Bocó. Mas um<br />

se chamava Edmundo.<br />

- Tem certeza que seu apelido não é Bocó?<br />

- Não. É palito.<br />

O pai e a mãe do aniversariante se entreolharam. E agora? Não podiam<br />

simplesmente dizer ao pai do Bocó que seu filho <strong>de</strong>saparecera. Decidiram reunir<br />

todos os convidados na sala. As meninas foram corridas do banheiro, os quartos<br />

foram esvaziados, todos para a sala.<br />

- Quem é que se chama Edmundo? Você não, Palito.<br />

73


Ninguém, além do Palito, se chamava Edmundo. E Bocó? Tinha algum<br />

Bocó no grupo? Nenhum. Alguém sabia que fim levara o Bocó?<br />

Loreta, uma gordinha <strong>de</strong> cor-<strong>de</strong>-rosa, levantou a mão.<br />

- Acho que o pai <strong>de</strong>le já veio buscar.<br />

- Ai, meu Deus <strong>–</strong> disse a mãe do aniversariante, baixinho.<br />

- Você viu o Bocó sair com alguém?<br />

- Acho que vi. Com um homem.<br />

- Como era o homem?<br />

- Tinha uma barba preta.<br />

- Ai, meu Deus <strong>–</strong> repetiu a mãe do aniversariante.<br />

Precisavam dizer alguma coisa para o pai do Bocó. Mas o que? Oferecer<br />

outra criança em lugar do Bocó? O Palito? ―Ele é um pouquinho magro, mas olhe:<br />

damos esta gordinha <strong>de</strong> brin<strong>de</strong>.‖ A responsabilida<strong>de</strong> Ra <strong>de</strong>les. Precisavam evitar<br />

o escândalo. Precisavam, antes <strong>de</strong> mais nada, ganhar tempo.<br />

do Bocó‖.<br />

Foram até a porta.<br />

- O senhor tem certeza <strong>de</strong> que não quer entrar?<br />

- Obrigado.<br />

- Não nos leve a mal, mas o senhor po<strong>de</strong> provar que é pai do Bocó?<br />

- Provar? Como, provar?<br />

- Hoje em dia, todo cuidado é pouco.<br />

- Mas é só trazer o Bocó aqui. Ele vai me reconhecer.<br />

- Sei não. Criança é muito sugestionável.<br />

- Mas isto é um absurdo! Eu não tenho nenhum documento que diga ―Pai<br />

- Uma foto...<br />

- Tenho!<br />

O pai do Bocó produziu uma foto. Ele, a mulher, o Bocó e outra criança, <strong>de</strong><br />

colo. O pai do aniversariante pegou a foto, disse ―Um momentinho‖ e levou a foto<br />

para a sala. A Loreta examinou a foto. Confirmou que fora aquele Bocó que vira<br />

sendo levado pelo homem <strong>de</strong> barba preta. ―Ai, meu Deus!‖, disse a mãe do<br />

aniversariante. O pai do aniversariante levou a foto <strong>de</strong> volta ao pai do Bocó.<br />

- Ele não o reconheceu.<br />

- O quê?!<br />

74


O pai do Bocó tentou entrar no apartamento, mas foi contido pelo pai do<br />

aniversariante.<br />

- Epa! Epa! Aqui o senhor não entra. Aliás, nem sei como entrou no prédio.<br />

- Eu disse ao porteiro que vinha buscar uma criança na festa do 410.<br />

- Eu vou falar com esse porteiro. Que segurança é essa? Deixam entrar<br />

qualquer um. Homem <strong>de</strong> barba preta...<br />

reconheceu!<br />

- Homem <strong>de</strong> barba preta? <strong>–</strong> perguntou o pai do Bocó.<br />

- 410? <strong>–</strong> perguntou o pai do aniversariante, dando-se conta.<br />

- Que homem <strong>de</strong> barba preta?<br />

- Este não é o 410. É o 510.<br />

- Que homem <strong>de</strong> barba pré... Este é o 510?<br />

- Você bateu no apartamento errado.<br />

- Aqui não é a festa <strong>de</strong> aniversário do Piolho?<br />

- Não. É a festa <strong>de</strong> aniversário do Felipe. Foi por isso que seu filho não o<br />

- Está explicado!<br />

Os dois apertaram-se as mãos e o pai do Bocó foi buscar o filho no<br />

apartamento <strong>de</strong> baixo, aliviado. A história só não acabou bem para a Loreta, que<br />

levou tanto safanão que chegou em casa sem o tope do vestido.<br />

75


PEÇA INFANTIL<br />

Luís Fernando Veríssimo<br />

(Para uma pessoa)<br />

A professora começa a se arrepen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> ter concordado (―Você é a única que tem<br />

temperamento pra isso‖) em dirigir a peça quando uma das fadinhas anuncia que<br />

precisa fazer xixi. É como um sinal. Todas as fadinhas <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m que precisam,<br />

urgentemente, fazer xixi.<br />

- Está bem, mas só as fadinhas <strong>–</strong> diz a professora. <strong>–</strong> E uma <strong>de</strong> cada vez!<br />

Mas as fadinhas vão em bando para o banheiro.<br />

- Uma <strong>de</strong> cada vez! Uma <strong>de</strong> cada vez! E você, on<strong>de</strong> é que pensa que vai?<br />

- Ao banheiro.<br />

- Não vai não.<br />

- Mas tia...<br />

- Em primeiro lugar, o banheiro já está cheio. Em segundo lugar, você não<br />

é fadinha, é caçador. Volte para o seu lugar.<br />

Um pirata chega atrasado e com a notícia <strong>de</strong> que sua mãe não conseguiu<br />

terminar a capa. Serve uma toalha?<br />

- Não. Você vai ser o único <strong>de</strong> capa branca. É melhor tirar o tapa-olho e<br />

ficar <strong>de</strong> anão. Vai ser um pouco engraçado, oito anões, mas tudo bem. Por que<br />

você está chorando?<br />

- Eu não quero ser anão.<br />

- Então fica <strong>de</strong> lavrador.<br />

- Posso ficar com o tapa-olho?<br />

- Po<strong>de</strong>. Um lavrador <strong>de</strong> tapa-olho. Tudo bem.<br />

- Tia, on<strong>de</strong> é que eu fico?<br />

É uma margarida.<br />

- Você fica ali.<br />

A professora se dá conta <strong>de</strong> que as margaridas estão <strong>de</strong>sorganizadas.<br />

- Atenção, margaridas! Todas ali. Você não. Você é coelhinho.<br />

- Mas o meu nome é margarida.<br />

- Não interessa! Desculpe, a tia não quis gritar com você. Atenção,<br />

coelhinhos. Todos comigo. Margaridas ali, coelhinhos aqui. Lavradores daquele<br />

76


lado, árvores atrás. Árvore, tira o <strong>de</strong>do do nariz. On<strong>de</strong> é que estão as fadinhas?<br />

Que xixi mais <strong>de</strong>morado.<br />

- Eu vou chamar.<br />

- Fique on<strong>de</strong> está, lavrador. Uma das margaridas vai chamá-las.<br />

- Já vou.<br />

- Você não, Margarida! Você é coelhinho. Uma das margaridas. Você. Vá<br />

chamar as fadinhas. Piratas, fiquem quietos.<br />

- Tia, o que eu sou? Eu esqueci o que eu sou.<br />

- Você é o sol. Fica ali que <strong>de</strong>pois a tia... Piratas, por favor!<br />

As fadinhas começam a voltar. Com problemas. Muitas se enredaram nos<br />

véus e não conseguem arrumá-los. Ajudam-se mutuamente, mas no seu<br />

nervosismo só pioram a confusão.<br />

- Borboletas, aju<strong>de</strong>m aqui <strong>–</strong> pe<strong>de</strong> a professora.<br />

Mas as borboletas não ouvem. As borboletas estão etéreas. As borboletas<br />

fazem poses, fazem esvoaçar seus próprios véus e não ligam para o mundo. A<br />

professora, com a ajuda <strong>de</strong> um coelhinho amigo, <strong>de</strong> uma árvore e <strong>de</strong> um<br />

camponês, <strong>de</strong>sembaraça os véus das fadinhas.<br />

- Piratas, parem. O próximo que <strong>de</strong>r um pontapé vai ser anão.<br />

Desastre: quebrou a ponta da lua.<br />

- Como é que você conseguiu isso? <strong>–</strong> pergunta a professora sorrindo,<br />

sentindo que o seu sorriso <strong>de</strong>ve parecer <strong>de</strong>mente.<br />

- Foi ela!<br />

A acusada era uma camponesa gorda que gosta <strong>de</strong> distribuir tapas entre<br />

os seus inferiores.<br />

- Não tem remédio. Tira isso da cabeça e fica com os anões.<br />

- E a minha frase?<br />

A professora tinha esquecido. A lua tem uma fala.<br />

- Quem diz a frase da lua é, <strong>de</strong>ixa ver... O relógio.<br />

- Quem?<br />

- O relógio. Cadê o relógio?<br />

- Ele não veio.<br />

- O quê?<br />

- Está com caxumba.<br />

- Ai, meu Deus. Sol, você vai ter que falar pela lua. Sol, está me ouvindo?<br />

77


- Eu?<br />

discussão!<br />

- Você, sim senhor. Você é o sol. Você sabe a fala da lua?<br />

- Me <strong>de</strong>u uma dor <strong>de</strong> barriga.<br />

- Essa não é a frase da lua.<br />

- Me <strong>de</strong>u mesmo, tia. Tenho que ir embora.<br />

- Está bem, está bem. Quem diz a frase da lua é você.<br />

- Mas eu sou caçador.<br />

- Eu sei que você é caçador! Mas diz a frase da lua! E não quero<br />

- Mas eu não sei a frase da lua.<br />

- Piratas, parem!<br />

- Piratas, parem. Certo.<br />

- Eu não estava falando com você. Piratas, <strong>de</strong> uma vez por todas...<br />

A camponesa gorda resolve tomar justiça nas mãos e dá um croque num<br />

pirata. A classe é unida e avança contra a camponesa, que recua, <strong>de</strong>rrubando<br />

uma árvore. As borboletas esvoaçam. Os coelhinhos estão em polvorosa. A<br />

professora grita:<br />

- Parem! Parem! A cortina vai abrir. Todos a seus lugares. Vai começar!<br />

- Mas tia, e a frase da lua?<br />

- ―Boa noite, sol.‖<br />

- Boa noite.<br />

- Eu não estou falando com você!<br />

- Eu não sou mais o sol?<br />

- É. Mas eu estava dizendo a frase da lua. ―Boa noite, sol.‖<br />

- Boa noite, sol. Boa noite, sol. Não vou esquecer. Boa noite, sol...<br />

- Atenção, todo mundo! Piratas e anões nos bastidores. Quem fizer um<br />

barulho antes <strong>de</strong> entrar em cena, eu esgoelo. Coelhinhos nos seus lugares.<br />

Árvores, para trás. Fadinhas, aqui. Borboletas, esperem a <strong>de</strong>ixa. Margaridas no<br />

chão.<br />

Todos se preparam.<br />

- Você não, Margarida! Você é coelhinho!<br />

Abre o pano.<br />

78


PNEU FURADO<br />

Luís Fernando Veríssimo<br />

(Para uma pessoa)<br />

O carro estava encostado no meio-fio, com um pneu furado. De pé ao lado do<br />

carro, olhando <strong>de</strong>sconsoladamente para o pneu, uma moça muito bonitinha. Tão<br />

bonitinha que atrás parou outro carro e <strong>de</strong>le <strong>de</strong>sceu um homem dizendo ―Po<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ixar‖. Ele trocaria o pneu.<br />

- Você tem macaco? <strong>–</strong> perguntou o homem.<br />

- Não <strong>–</strong> respon<strong>de</strong>u a moça.<br />

- Tudo bem, eu tenho <strong>–</strong> disse o homem. <strong>–</strong> Você tem estepe?<br />

- Não <strong>–</strong> disse a moça.<br />

- Vamos usar o meu <strong>–</strong> disse o homem.<br />

E pôs-se a trabalhar, trocando o pneu, sob o olhar da moça. Terminou no<br />

momento em que chegava o ônibus que a moça estava esperando. Ele ficou ali,<br />

suando, <strong>de</strong> boca aberta, vendo o ônibus se afastar. Dali a pouco chegou o dono<br />

do carro.<br />

- Puxa, você trocou o pneu pra mim. Muito obrigado.<br />

- É. Eu... Eu não posso ver pneu furado. Tenho que trocar.<br />

- Coisa estranha.<br />

- É uma compulsão. Sei lá.<br />

79


PROVA FALSA<br />

Stanislaw Ponte Preta<br />

(Para uma pessoa)<br />

Quem teve a idéia foi o padrinho da caçula <strong>–</strong> ele me conta.Trouxe o<br />

cachorro <strong>de</strong> presente e logo a família inteira se apaixonou pelo bicho.<br />

Ele até que não é contra isso <strong>de</strong> se ter um animalzinho em casa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

que seja obediente e com um mínimo <strong>de</strong> educação.<br />

- Mas o cachorro era um chato <strong>–</strong> <strong>de</strong>sabafou.<br />

Desses cachorrinhos <strong>de</strong> raça, cheios <strong>de</strong> nhém-nhém-nhém, que<br />

comem comidinha especial, precisam <strong>de</strong> muitos cuidados, enfim, um<br />

chato <strong>de</strong> galocha. E, como se isto não bastasse, implicava com o dono<br />

da casa.<br />

- Vivia <strong>de</strong> rabo abanando para todo mundo, mas, quando eu<br />

entrava em casa, vinha logo com aquele latido fininho e antipático <strong>de</strong><br />

cachorro <strong>de</strong> francesa.<br />

Ainda por cima era puxa-saco. Lembrava certos políticos da<br />

oposição, que espinafram o ministro, mas quando estão com o ministro<br />

ficam mais por baixo que tapete <strong>de</strong> porão. Quando cruzavam num<br />

corredor ou qualquer outra <strong>de</strong>pendência da casa, o <strong>de</strong>sgraçado rosnava<br />

ameaçador, mas quando a patroa estava por perto abanava o rabinho,<br />

fingindo-se seu amigo.<br />

- Quando eu reclamava, dizendo que o cachorro era um cínico,<br />

minha mulher brigava comigo, dizendo que nunca houve cachorro cínico<br />

e eu é que implicava com o ―pobrezinho‖.<br />

Num rápido balanço po<strong>de</strong>ria assinalar: O cachorro comeu oito<br />

meias suas, roeu a manga <strong>de</strong> um paletó <strong>de</strong> casemira inglesa, rasgara<br />

diversos livros, não podia ver um pé <strong>de</strong> sapato que arrastava para locais<br />

incríveis. A vida lá em casa estava se tornando insuportável. Estava<br />

vendo a hora em que se <strong>de</strong>squitava por causa daquele bicho cretino.<br />

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Tentou mandá-lo embora umas vinte vezes e era uma chora<strong>de</strong>ira das<br />

crianças e uma espinafração da mulher.<br />

- Você é um <strong>de</strong>salmado <strong>–</strong> disse ela, uma vez.<br />

Venceu a guerra fria com o cachorro graças à má educação do<br />

adversário. O cãozinho começou a fazer pipi on<strong>de</strong> não <strong>de</strong>via. Várias<br />

vezes exemplado, prosseguiu no feio vício. Fez diversas vezes no tapete<br />

da sala. Fez duas vezes na boneca da filha maior. Quatro ou cinco vezes<br />

fez nos brinquedos da caçula. E tudo culminou com o pipi que fez em<br />

cima do vestido novo <strong>de</strong> sua mulher.<br />

- Aí mandaram o cachorro embora? <strong>–</strong> perguntei.<br />

- Mandaram. Mas eu fiz questão <strong>de</strong> dá-lo <strong>de</strong> presente a um amigo<br />

que adora cachorros. Ele está levando um vidão em sua nova<br />

residência.<br />

- Ué... mas você não o <strong>de</strong>testava? Como é que ainda arranjou<br />

essa sopa pra ele?<br />

- Problema <strong>de</strong> consciência <strong>–</strong> explicou: - O pipi não era <strong>de</strong>le.<br />

E suspirou cheio <strong>de</strong> remorso.<br />

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