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Textos - FALE - UFMG

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LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro<br />

<strong>Textos</strong> selecionados<br />

Com santa não se brinca<br />

Hoje fui chamada de santinha.<br />

E aí eu protestei, gritei,<br />

chutei o pau da bandeira<br />

e disse:<br />

Santinha não – Santa.<br />

Ana Cruz<br />

Esse povo tem mania de querer me quebrar,<br />

pra depois juntar os cacos,<br />

me ver paralítica,<br />

sem função,<br />

serva.<br />

Alguém já viu alguma santinha<br />

em lugares nobres?<br />

Ou num estandarte,<br />

conduzindo multidões!<br />

Depois dizem que é forço do hábito.<br />

Pois tirem o Hábito.<br />

Já fui apedrejada na escola, na igreja,<br />

trabalhei sempre mais que os outros.<br />

Sempre me quiseram na periferia.<br />

Sambista sim, eu podia ser,<br />

até sangrar meus pés<br />

no asfalto quente,<br />

para diverti-los<br />

e depois dizerem:<br />

Você samba direitinho...<br />

Ai de mim,<br />

se não fosse Santa.<br />

(E... Feito de Luz, Niterói: Ykenga Editorial LTDA, s.d. p. 15)


LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro<br />

Coração Tição<br />

Quero me lambuzar nos mares negros<br />

para não me perder,<br />

conseguir chegar no meu destino.<br />

Não quero ser parda, mulata<br />

Sou afro-brasileira-mineira.<br />

Bisneta<br />

de uma princesa de Benguela.<br />

Não serei refém de valores<br />

que não me pertencem.<br />

Quero sentir sempre meu coração<br />

como um tição.<br />

Não vou deixar que o mito<br />

do fogo entre as pernas iluda e desvie<br />

homens e mulheres<br />

daqui por diante.<br />

(E... Feito de Luz, Niterói: Ykenga Editorial LTDA, s.d. p. 31)<br />

A Nossa Senhora<br />

Segue com a pele preta aveludada,<br />

pintando seu cachimbo. Olhando as horas se desfazendo<br />

em fumaça.<br />

Passa os olhos semifechados em seu antigo testamento,<br />

nos escritos, na linha do tempo. Observa as tantas vezes<br />

em que esteve no fio da navalha, pendurada por<br />

fio obscuro de esperança. Certifica-se de nesses anos<br />

quase nada mudou. O novo testamento continua<br />

por fazer: a única coisa abolida foi a chibata.<br />

Essa não existe mais, mas o teto e a ternura também não.<br />

Segue sem medo, com a altivez de quem muito cedo<br />

se tornou ciente da solidão implacável e visceral,<br />

predestinada aqueles cuja liberdade não é um direito<br />

mas uma concessão do caridoso algoz.<br />

Fala com voz firme, com tom de quem nunca titubeou<br />

nem murchou diante de situações impactantes.


LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro<br />

Vai serena, de missão cumprida. Ensinou seu<br />

descendentes a não deixarem levar por ilusões:<br />

nesta Nação, mesmo sendo letrado, somente vence<br />

aquele que antes colocar os pés para fora do<br />

terreiro, for-lhe explicado quem ele é.<br />

“Aquele que enfrentar o mundo de cabeça feita<br />

não vai se tornar corcunda”, dizia ela.<br />

Segue com opulência renascentista na sua consistência:<br />

Mineral, Magnética, Férrea, Gusa incandescente, vai<br />

arrematando a última ponta de vida, adentrar o infinito,<br />

compartilhar da intimidade dos seus antepassados.<br />

(Mulheres q’rezam. Rio de Janeiro: Edição de Dilmo Milheiros, s.d. p. 123)<br />

Cuidado, não vai esquecer a lição...<br />

Nasci filha de seu Zé que muito pouco tinha de José<br />

carpinteiro de Nazaré, a não ser<br />

a determinação e o gosto pelo trabalho.<br />

Seu Zé, conhecido popularmente como marido de<br />

D. Margarida,<br />

uma flor que descansa plena, em outra dimensão,<br />

isso porque sempre foi justa nunca abusou da sua<br />

autoridade.<br />

Precavida, desde cedo nos ensinou a detestar a<br />

escravidão,<br />

por conta disso, nossa primeira lição de casa foi:<br />

nunca sair de canelas russas e nem esconder cabelos<br />

por debaixo dos panos<br />

e ouvidos bem apurados.<br />

Quilombola que se presa não ri à toa<br />

não aceita provocação e olha firme<br />

no fundo dos olhos daqueles que possuem<br />

nariz arrebitado e andam sempre aprumados.<br />

Já dizia meu avô!<br />

(Mulheres q’rezam. Rio de Janeiro: Edição de Dilmo Milheiros, s.d. p. 125)

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