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Edição 145 - Jornal Rascunho

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28<br />

maio de 2012<br />

Broadway<br />

Boogie-Woogie<br />

leandro SARMATz ilustração: theo SzCzEPAnSkI<br />

1.<br />

Num texto sobre Mandelstam,<br />

Brodsky diz que Petersburgo<br />

é o berço da prosódia russa. Observação<br />

semelhante poderia ser emitida<br />

a respeito da Broadway, a longa<br />

avenida que atravessa — como<br />

a cicatriz na barriga de um transplantado<br />

— a ilha de Manhattan.<br />

E isso, essa levada tão americana,<br />

é tocada provavelmente desde<br />

Whitman, que zanzou por essas esquinas<br />

(“tu, multicolorida como o<br />

próprio mundo”, escreveu o poeta<br />

em Broadway), até ser cristalizada<br />

naquele ritmo ianque-ítalo-judaico-latino-negro-cantonês<br />

possível<br />

de ser captado desde o mínimo<br />

sussurro até o alarido, passando<br />

por gradações sonoras que vão da<br />

cólera ao prazer, do segredo comercial<br />

à pregação religiosa.<br />

Foi para ouvir esse ritmo — e<br />

para cruzar a Broadway de ponta<br />

a ponta – que desembarquei da<br />

Estação Bowling Green do metrô<br />

nova-iorquino numa fria manhã de<br />

novembro. Fazia seis graus, havia<br />

sol, eu estava bem alimentado pela<br />

mistura de pães, ovos e rosquinhas<br />

fornecida pelo hotel. Há meses, ainda<br />

em São Paulo, eu havia decidido<br />

percorrer a pé os 21,5 quilômetros<br />

de extensão da avenida dentro de<br />

Manhattan. Eu havia pesquisado a<br />

respeito, inclusive tendo percorri-<br />

do — graças ao Google Street View<br />

— todo o caminho, atento aos possíveis<br />

percalços. Surpresas não estavam<br />

nos meus planos. Sou pouco<br />

afeito a elas. Certamente a longa<br />

Breedeweg dos holandeses serpenteia<br />

até o Bronx, depois de uma<br />

ponte ao norte. Continuar para<br />

além-Bronx estava completamente<br />

fora dos meus planos, contudo.<br />

2.<br />

Hesito em qualificar o que<br />

fiz como uma aventura — seria no<br />

mínimo uma malversação do sentido<br />

original da palavra. Mas se é<br />

possível alargar um pouquinho o<br />

campo semântico, o que empreendi<br />

foi um fiapo daquilo que habitualmente<br />

chamamos de aventura,<br />

a única odisséia possível para alguém<br />

como eu, irremediavelmente<br />

urbano, fraco, assombrado por um<br />

sem-número de temores (doenças<br />

transmissíveis pelo ar, violência<br />

gratuita, pessoas com capuz, a<br />

verdadeira zona morta que é a luz<br />

emitida entre o final da tarde e o<br />

início da noite, etc.) e sem a menor<br />

vocação para uma vida movimentada.<br />

Se o tipo de atividade que eu<br />

realizei se tornasse um esporte profissional,<br />

só consigo me imaginar<br />

sendo patrocinado pela Aspirina.<br />

Não é preciso ser atleta, claro,<br />

para fazer todo o percurso a pé.<br />

O fato é que tenho vocação para<br />

a caminhada longa. Porém nunca<br />

me aventurei a correr. Não tenho<br />

fôlego. também não pareço contar<br />

com a paciência e a disciplina do<br />

corredor regular. De todo modo,<br />

sou capaz de caminhar em um bom<br />

ritmo — num daqueles ridículos<br />

trotes de manequim que acabou de<br />

receber um sopro de vida, um desses<br />

golens amalucados a bordo de<br />

um Asics — e não ficar exageradamente<br />

cansado depois de algumas<br />

horas em movimento.<br />

3.<br />

O Google Maps estipula em<br />

quatro horas o percurso a pé de<br />

uma ponta a outra de Manhattan.<br />

Pois a Broadway começa bem ao<br />

sul, naquele emaranhado de ruas<br />

ainda longe do grid desenhado pelo<br />

grupo de visionários que em 1807<br />

retraçou a cidade (apinhada por<br />

mais de 100 mil almas ao sul e quase<br />

despovoada nas fazendas mais ao<br />

norte), criando ruas e avenidas numeradas.<br />

À direita a antiga possessão<br />

holandesa, à esquerda a velha<br />

cidade inglesa, ruazinhas tortas e<br />

estreitas, às vezes lembrando muito<br />

a região do Triângulo, no centro velho<br />

de São Paulo, mas ainda assim<br />

infinitamente mais potáveis.<br />

São inacreditáveis as metamorfoses<br />

pelas quais uma avenida<br />

como a Broadway passa ao longo de<br />

toda a ilha. Desde seu início ainda<br />

nos arredores do centro financeiro,<br />

a Broadway parece personificar o<br />

espírito de cada vizinhança cindida<br />

por ela. Comercial, espetacular, residencial,<br />

devastada, às vezes quase<br />

invisível. Capital, produção, imaginário,<br />

refugo de todas essas encarnações<br />

do capitalismo nas cidades,<br />

a Broadway avança, retrocede no<br />

tempo e no espaço. Personagens<br />

mudam da noite para o dia. Ambientes<br />

se tornam irreconhecíveis<br />

em menos de uma geração. “Como<br />

acontece tantas vezes em Nova<br />

York, o bairro mudou. As sinagogas<br />

viraram igrejas, as yeshivas<br />

restaurantes ou estacionamentos”,<br />

escreve Isaac Bashevis Singer num<br />

de seus contos americanos, O cabalista<br />

de East Broadway. Singer<br />

encarnou um pouco essa mistura<br />

entre história pessoal e geografia<br />

que distingue a mobilidade social<br />

nas grandes cidades. Num álbum<br />

do fotógrafo Bruce Davidson sobre<br />

o lower East Side, o velho bairro<br />

judeu, é possível ver o escritor em<br />

duas imagens altamente significativas.<br />

Na primeira, ocupa uma<br />

mesa na Garden Cafeteria (na altura<br />

do número 165 da Broadway),<br />

hoje desaparecida, mas que já foi<br />

o reduto tanto de uma intelectualidade<br />

judaica do leste europeu —

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