1ª Série Episódio 011 - RTP
1ª Série Episódio 011 - RTP
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CONTAME<br />
<strong>1ª</strong> <strong>Série</strong><br />
<strong>Episódio</strong> <strong>011</strong><br />
“Cantares do Andarilho”<br />
Outono 1968<br />
Adaptação e Guião:
CENA <strong>011</strong>/00. PÓS GENÉRICO / IMAGENS DE ARQUIVO<br />
VÍDEO: Imagens dos panfleto que voam e se espalham pela rua levados pelo<br />
vento. Usar as mesmas imagens que fecham o episódio 10, antes de se ver os<br />
transeuntes e a Menina Emília a varrer a rua.<br />
FIM DE CENA –<br />
2
CENA <strong>011</strong>/01. INT. – IGREJA / PARÓQUIA. – TARDE. DIA 01<br />
Padre Antunes, Carlos, Luís, Marinho e colegas da turma<br />
Está a decorrer a catequese. O PADRE ANTUNES está sentado a “discursar” e os<br />
alunos estão muito atentos. Excepto CARLOS que, de cabeça baixa, está a pensar<br />
noutras coisas e não ouve nada. Durante a sua fala, o PADRE repara na distracção de<br />
CARLOS e decide escolhêlo para a primeira pergunta.<br />
CARLOS não ouve.<br />
PADRE ANTUNES<br />
O pai é o chefe de família, é um modelo de<br />
virtude para os seus filhos e trabalha de sol<br />
a sol para garantir o sustento de todos. O pai<br />
português é o pilar da pátria: é um homem<br />
modesto, honesto e trabalhador, Ele<br />
sacrificase e enaltece o nome de Portugal<br />
com o seu exemplo. É por isso que Ele nos<br />
pede que honremos os nossos pais.<br />
Lopes…<br />
PADRE ANTUNES (levantando a voz)<br />
Lopes! Ó Lopes<br />
CARLOS<br />
Sim, senhor Padre.<br />
PADRE ANTUNES<br />
Sabes como deves tratar o teu pai?<br />
CARLOS<br />
Sei. Pai! Papá! Às vezes trato por paizinho…<br />
PADRE ANTUNES (abanando a cabeça)<br />
Eu quero que me digas que tratas o teu pai<br />
com…<br />
CARLOS (pensa)<br />
Com…<br />
PADRE ANTUNES (começando a frase para<br />
o ajudar)<br />
Com respeito…<br />
CARLOS<br />
Ah, isso, já sei: com respeito, obediência e<br />
castidade.<br />
LUÍS (para CARLOS, entre dentes)<br />
Que burro!<br />
CARLOS (para LUÍS, irritado)<br />
O que é que foi?<br />
PADRE ANTUNES<br />
Castidade, Lopes? Tens a certeza?<br />
3
CARLOS (retoma a lengalenga e pensa)<br />
Com respeito, e obediência e… e…<br />
PADRE ANTUNES<br />
Luís, dá uma ajuda ao teu amigo, explicalhe<br />
como é que deve tratar o pai.<br />
LUÍS<br />
Respeito, obediência e humildade.<br />
PADRE ANTUNES<br />
Humildade, Lopes, humildade! É um valor<br />
que vais aprender hoje para nunca mais te<br />
esqueceres. Ficas virado para a parede e<br />
rezas dez padresnossos.<br />
CARLOS<br />
Dez?<br />
PADRE ANTUNES<br />
Tens razão, dez é pouco, rezas vinte.<br />
Conformado, CARLOS vai até ao fundo da sala e virase para a parede a um<br />
canto onde começa a rezar o padrenosso.<br />
CARLOS continua a rezar mas passamos a ouvir apenas o NARRADOR<br />
FIM DE CENA –<br />
PASSAGEM DE TEMPO<br />
NARRADOR (OFF)<br />
Aquele era o último castigo que o Padre<br />
Antunes me havia de dar porque nesse fim<br />
desemana realizaria o seu sonho de voltar à<br />
aldeia para acabar os dias a rezar missa no<br />
rebanho onde nasceu.<br />
Ali fiquei até ao fim da aula, voltado para a<br />
parede a rezar vinte padresnossos, e pela<br />
primeira vez na vida estive cerca de meia<br />
hora a pensar no meu pai. Não havia dúvida<br />
de que era um homem modesto, honesto e<br />
trabalhador e que era ele quem garantia o<br />
sustento da minha família. Mas por mais que<br />
eu pensasse não conseguia ir para além do<br />
respeito e da obediência… Percebi que<br />
respeitava o meu pai mas que não o<br />
conhecia, pelo menos não tão bem como<br />
conhecia o Márinho e o Luís... e isso<br />
começou a preocuparme. Decidi então que<br />
tinha de conhecêlo melhor.<br />
4
CENA <strong>011</strong>/02. EXT. – DESCAMPADO / TERRENO – TARDE. DIA 02<br />
António, Carlos, Gregório<br />
É Domingo. ANTÓNIO vai para casa com um embrulho de bolos na mão. De<br />
mão dada com António, segue CARLOS comendo uma bola de Berlim.<br />
CARLOS<br />
Pai, quem é que inventou as bolas de<br />
Berlim?<br />
ANTÓNIO<br />
Devem ter sido os alemães.<br />
CARLOS<br />
E o chocolate?<br />
ANTÓNIO<br />
O chocolate foram os índios mas os suíços<br />
têm a mania que foram eles.<br />
CARLOS<br />
Os portugueses nunca inventaram nada?<br />
ANTÓNIO (rindo)<br />
Claro, inventámos! Inventámos os papo<br />
secos, os pastéis de nata…<br />
Durante a conversa cruzam a zona onde está o camião e onde vemos que está<br />
um homem escondido. É GREGÓRIO, o colega de ANTÓNIO na tipografia.<br />
GREGÓRIO (chamando baixo)<br />
Antóoonio!<br />
ANTÓNIO para e olha para trás. Vê GREGÓRIO e faz má cara.<br />
ANTÓNIO (dirigindose para junto dele)<br />
Até que enfim que apareces. Metesteme<br />
num sarilho…<br />
GREGÓRIO (interrompendoo)<br />
Eu sei, eu sei… liguei para tua casa e<br />
disseramme que tinhas ido comprar bolos<br />
para o lanche.<br />
ANTÓNIO (irritado)<br />
Não sei se já percebeste que hoje é<br />
domingo e não há pão. Certas pessoas de<br />
bom carácter gostam de fazer uns pequenos<br />
agrados à família no domingo. Sabes o que<br />
isso é?<br />
5
GREGÓRIO (enfiado)<br />
Como estás?<br />
ANTÓNIO<br />
Como é que eu estou? Estou furioso, como<br />
é que querias que estivesse? Aquilo que tu<br />
me fizeste não se faz a ninguém, ouviste? A<br />
ninguém.<br />
GREGÓRIO<br />
Acalmate e deixame explicar.<br />
ANTÓNIO<br />
Não quero explicações. (para CARLOS)<br />
Vai andando, filho, vai para casa que o pai já<br />
lá vai ter.<br />
CARLOS<br />
Quero ficar aqui consigo!<br />
ANTÓNIO (autoritário)<br />
Vai para casa!<br />
CARLOS (reclamando)<br />
Bolas! Nunca posso fazer nada do que<br />
quero!<br />
ANTÓNIO entrega o pacote dos bolos a CARLOS e fica a vêlo afastarse. Mas<br />
CARLOS em vez de ir para casa, escondese atrás da parede em ruínas (de<br />
uma árvore ou do que houver no local) e fica a ouvir a conversa.<br />
ANTÓNIO (para Gregório)<br />
Onde é que tu te meteste?<br />
GREGÓRIO<br />
Não pude aparecer mais cedo.<br />
ANTÓNIO (cada vez mais chateado)<br />
O que é que isso quer dizer?<br />
GREGÓRIO<br />
Se te acalmares, eu explico.<br />
ANTÓNIO (furioso)<br />
É melhor eu nem saber. Dásme o pacote e<br />
nem sequer me dizes o que está lá dentro!<br />
GREGÓRIO<br />
Eu sei… mas achei melhor não te dizer nada<br />
para não te comprometer.<br />
6
FIM DE CENA –<br />
ANTÓNIO<br />
Comprometeste, pá! Comprometeste até<br />
muito!<br />
7
CENA <strong>011</strong>/03. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. – TARDE. DIA 02<br />
Toni, Isabel, Margarida, Hermínia<br />
INSERT VIDEO:<br />
Na televisão está a dar um programa de domingo à tarde (fim de Outubro)<br />
A mesa está posta com chávenas de chá, uma cafeteira e um jarro com leite.<br />
ISABEL está a pôr o açucareiro na mesa e TONI entra, vindo do interior da<br />
casa.<br />
HERMÍNIA entra, vestida para sair.<br />
TONI<br />
Então? Lanchamos ou não? Estou cheio de<br />
fome.<br />
MARGARIDA (intrigada)<br />
Porque é que estão a demorar tanto?<br />
TONI<br />
Posso comer, mãe?<br />
MARGARIDA<br />
Só se for pão duro… vai á cozinha…o pai<br />
não traz!<br />
TONI<br />
Eu espero.<br />
HERMÍNIA<br />
Até logo, vou despedirme do Padre Antunes.<br />
MARGARIDA<br />
Vai eu vou mais tarde, depois da missa<br />
quando tiver mais tempo.<br />
HERMÍNIA<br />
Tu é que sabes.<br />
MARGARIDA<br />
Se vir o António digalhe que estamos à<br />
espera dele para lanchar.<br />
HERMÍNIA<br />
Está bem, filha.<br />
HERMÍNIA sai para a rua e MARGARIDA sai da sala.<br />
FIM DE CENA –<br />
8
CENA <strong>011</strong>/04. EXT. – DESCAMPADO / TERRENO – TARDE. DIA 02<br />
António, Carlos, Gregório e Hermínia<br />
ANTÓNIO e GREGÓRIO continuam a discutir. CARLOS assiste a tudo,<br />
escondido.<br />
ANTÓNIO<br />
Não voltes a ligar para minha casa.<br />
GREGÓRIO<br />
Eu só liguei para te dar uma satisfação.<br />
ANTÓNIO<br />
Isso é inconsciente! E se eu tivesse sido<br />
preso?<br />
GREGÓRIO<br />
Porque é que te haviam de prender a ti?<br />
ANTÓNIO (num crescendo de irritação)<br />
Porque o miúdo, que também não deve<br />
nada ao bom comportamento, encontrouo<br />
lá em casa e abriuo. Apareceume na sala<br />
com um panfleto na mão a fazer perguntas<br />
sobre a ditadura.<br />
GREGÓRIO<br />
Quem é que ia imaginar uma coisa dessas?<br />
ANTÓNIO<br />
E quem é que ia imaginar que me ias meter<br />
mais de mil panfletos lá em casa?<br />
GREGÓRIO<br />
Não exageres, eram só oitocentos.<br />
ANTÓNIO<br />
Quero lá saber se eram cem ou se eram<br />
dois mil. Não se faz! A minha mulher ficou<br />
aflitíssima e o meu filho, o Toni percebeu<br />
tudo… ainda por cima está na universidade<br />
e não se pode meter em política... Que raio<br />
de exemplo que eu lhe dei!<br />
GREGÓRIO<br />
Mas…<br />
ANTÓNIO (não o deixa falar)<br />
Mas nada! Por tua causa ia levando um tiro.<br />
Ao longe, escondido, CARLOS está com uma expressão de quem não percebe<br />
nada.<br />
9
GREGÓRIO<br />
Um tiro?<br />
ANTÓNIO explicalhe o que aconteceu mas só o vemos gesticular e não<br />
ouvimos a explicação porque passamos a ouvir só o NARRADOR.<br />
NARRADOR (OFF)<br />
Eu não estava a perceber a irritação do meu<br />
pai mas pareciame que tinha a ver com a<br />
ditadura… aquela palavra difícil que eu tinha<br />
encontrado escrita numas folhas e que nem<br />
o dicionário me tinha explicado o que era.<br />
Para mim a ditadura era o maior de todos os<br />
mistérios porque me proibiram de dizer essa<br />
palavra mas ao mesmo tempo disseram que<br />
não era um palavrão.<br />
ANTÓNIO (furioso e olhando para os lados<br />
para se certificar de que não está ninguém<br />
por perto)<br />
Tu és comunista, pá? Estive a encobrir um<br />
vermelho e não sabia de nada?!<br />
GREGÓRIO<br />
Já estás a ir por um caminho que não me<br />
agrada.<br />
ANTÓNIO<br />
Porquê? As coisas são como são: tu és<br />
vermelho e eu não quero ter problemas.<br />
Sobre os dois homens que conversam e a cara espantada de CARLOS que os<br />
observa, ouvimos o NARRADOR.<br />
NARRADOR (OFF)<br />
À medida que interpretava a conversa do<br />
meu pai ia ficando cada vez mais baralhado.<br />
Mas uma coisa percebi: o amigo do meu pai<br />
parecia uma pessoa normal, mas afinal era<br />
um pele vermelha… e como não usava<br />
pinturas na cara nem penas na cabeça, só<br />
podia ser um índio disfarçado, um índio<br />
verdadeiro disfarçado de português.<br />
10
ANTÓNIO vê CARLOS escondido.<br />
CARLOS mostrase.<br />
ANTÓNIO virase e olha para ele.<br />
GREGÓRIO<br />
Que chatice!<br />
ANTÓNIO<br />
Devias estar Alegre, não querias que o<br />
pessoal lesse aquela porcaria, não era? Pois<br />
então alegrate, um dia destes quando<br />
acordámos estava a rua toda coberta com<br />
os teus papéis… e toda a gente leu...<br />
GREGÓRIO<br />
Pelo menos não os queimaste!<br />
ANTÓNIO<br />
Era o que eu devia ter feito se não desse<br />
tanto nas vistas.<br />
ANTÓNIO<br />
Carlos! Carlos Anda cá.<br />
ANTÓNIO (para GREGÓRIO)<br />
Foi a última vez que eu te fiz um favor,<br />
Gregório, lembrate bem disto! Eu quero<br />
viver em paz, quero conservar o meu<br />
emprego e quero dar de comer aos meus<br />
filhos. Percebeste? Estoume nas tintas para<br />
a política!<br />
GREGÓRIO<br />
Mas um dia ainda me hásde agradecer…<br />
um dia vais perceber que eu e os meus<br />
camaradas arriscamos a vida por pessoas<br />
como tu… talvez os teus filhos perceberem.<br />
ANTÓNIO<br />
Basta de conversa. Passa bem (virase)<br />
GREGÓRIO<br />
António!<br />
GREGÓRIO<br />
Obrigado!<br />
ANTÓNIO acenalhe um adeus mais condescendente e juntase a CARLOS<br />
que o espera um pouco afastado.<br />
11
ANTÓNIO olhao de lado mas não lhe responde.<br />
ANTÓNIO<br />
O pai não te disse para ires para casa?<br />
CARLOS<br />
Aquele senhor é uma pele vermelha, não é?<br />
CARLOS<br />
De quais?<br />
ANTÓNIO<br />
De quais quê, filho?<br />
CARLOS<br />
Que tipo de índio é que ele é, há tantos!<br />
ANTÓNIO (para o calar)<br />
É moicano, filho, é o último dos moicanos.<br />
CARLOS fica satisfeito com a resposta. HERMÍNIA juntase a eles.<br />
HERMÍNIA<br />
Onde é que vocês se meteram? Estão todos<br />
em casa cheia de fome à vossa espera.<br />
CARLOS<br />
Estivemos a falar com um índio moicano!<br />
HERMÍNIA<br />
O quê?<br />
ANTÓNIO<br />
Não ligue! Para o Carlos o mundo está<br />
dividido em índios e Cowboys.<br />
HERMÍNIA (abanando a cabeça)<br />
Tomara que chegue 2ª feira para ter um dia<br />
normal. Até logo!<br />
ANTÓNIO<br />
Boa missa!<br />
HERMÍNIA vai numa direcção e ELES noutra.<br />
FIM DE CENA –<br />
PASSAGEM DE TEMPO<br />
12
CENA CORTADA<br />
CENA <strong>011</strong>/05. EXT. – RUA LOPES / RUA – MANHÃ. DIA 03<br />
Hermínia, Vitória<br />
HERMÍNIA avança na rua com a sua alcofa cheia de legumes e uma sabrina<br />
na outra mão. Encontra VITÓRIA<br />
VITÓRIA<br />
Bom dia, dona Hermínia.<br />
HERMÍNIA<br />
Bom dia, está boazinha?<br />
VITÓRIA<br />
Graças a Deus. Vou agora fazer as minhas<br />
compras, apeteciame tanto um bifinho.<br />
HERMÍNIA<br />
Tem de esperar por amanhã, dona Vitória, à<br />
segundafeira não há talho.<br />
VITÓRIA<br />
Bem sei! Já viu a minha sina? (malandra)<br />
Logo hoje é que eu havia de estar com<br />
desejos. (risinhos)<br />
HERMÍNIA (sorrindo)<br />
Vamos ali um bocadinho à menina Emília,<br />
não quer? Sempre damos dois dedos de<br />
conversa.<br />
VITÓRIA<br />
Que boa ideia. Talvez as histórias da menina<br />
Emília me façam esquecer o bife!<br />
AS DUAS sorriem e avançam em direcção à janela da Menina Emília.<br />
FIM DE CENA –<br />
13
CENA <strong>011</strong>/06. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES. – MANHÃ. DIA 03<br />
Margarida<br />
MARGARIDA acaba de fazer as camas e começa a limpar o pó da secretária.<br />
Pára com um sorriso de orgulho ao ver uma “bíblia” de direito (com um aspecto<br />
já usado), pega no livro e lê o título em voz alta e com muito orgulho.<br />
FIM DE CENA –<br />
MARGARIDA<br />
Código Civil … Meu Rico menino!<br />
14
CENA <strong>011</strong>/07. EXT – RUA LOPES / JANELA MENINA EMÍLIA – MANHÃ. DIA 03<br />
Menina Emília, Hermínia e Vitória<br />
HERMÍNIA ainda tem as compras e a sabrina na mão.<br />
MENINA EMÍLIA<br />
Isto é de loucos! De loucos!<br />
HERMÍNIA (chegando à janela)<br />
O que é que é de loucos, menina Emília?<br />
MENINA EMÍLIA<br />
Anda tudo maluco com o transplante de<br />
órgãos.<br />
HERMÍNIA<br />
Outra vez essa conversa? Não lhe bastou a<br />
confusão que tivemos aqui no bairro por<br />
causa do senhor Camões?<br />
MENINA EMÍLIA<br />
Eu não estou a fazer confusão nenhuma ó<br />
dona Hermínia, estava só a ouvir a rádio. E<br />
a Dona Hermínia fique sabendo que há<br />
países em que as pessoas estão a deixar os<br />
órgãos em testamento.<br />
HERMÍNIA<br />
Credo! Para quê?<br />
MENINA EMÍLIA<br />
Para quem precisa! Salvamse muitas vidas.<br />
VITÓRIA<br />
Acho isso bem, depois de mortos o corpo já<br />
não valem nada. Haja quem aproveite.<br />
HERMÍNIA<br />
Quando chegar a minha hora quero<br />
aparecer diante do criador tal e qual como<br />
Ele me pôs no mundo.<br />
VITÓRIA<br />
Eu não! Eu acho que quando chegar lá<br />
acima Ele ainda me conhece. Eu prefiro dar<br />
as minhas coisas.<br />
HERMÍNIA<br />
Ó dona Vitória, há coisas e coisas. Dê as<br />
suas jóias, os naperons, Eu até acho muito<br />
bem… agora dar uma perna… Deus me<br />
livre!<br />
15
MENINA EMÍLIA<br />
Isto fazme muita confusão.<br />
HERMÍNIA<br />
Também a mim.<br />
VITÓRIA (conclusiva e convicta)<br />
O que é importante na vida é viver em<br />
paz…pronto e não nos esquecermos de<br />
levar a nossa alma quando for a nossa hora.<br />
Porque o quer é importante é a alma…a<br />
alma, o resto são trocos.<br />
HERMÍNIA e MENINA EMÍLIA entreolhamse, como que achando que<br />
VITÓRIA está maluca.<br />
FIM DE CENA –<br />
16
CENA <strong>011</strong>/08. INT. – CASA LOPES/SALA COMUM. – MANHÃ. DIA 03<br />
Margarida, Hermínia<br />
INSERT AUDIO: Ouvese a porta da rua a abrir e a fechar.<br />
HERMÍNIA entra na sala e pousa alcofa cheia de legumes e sabrina em cima<br />
da mesa.<br />
HERMÍNIA<br />
Olá, filha!<br />
MARGARIDA (limpando o pó)<br />
Olá, mãe!<br />
HERMÍNIA (entusiasmada)<br />
Olha! Compreite uma sabrina.<br />
MARGARIDA<br />
Isso não presta para nada.<br />
HERMÍNIA (desiludida)<br />
Ora essa! É muito melhor do que sacudir<br />
tapetes à noite… até dizem que isto é<br />
melhor do que os aspiradores que essa<br />
gente tem…<br />
MARGARIDA<br />
E depois eu é que gasto dinheiro mal gasto.<br />
HERMÍNIA<br />
Isto é muito bom. Vais acabar por me dar<br />
razão.<br />
MARGARIDA<br />
Quanto é que custou?<br />
HERMÍNIA<br />
E o que é que isso te interessa? Não te<br />
estou a pedir o dinheiro.<br />
MARGARIDA<br />
Tenho curiosidade.<br />
HERMÍNIA (desviando o assunto)<br />
Devias era interessarte pelo preço das<br />
outras coisas. Sabias que o feijão verde hoje<br />
estava a 3 escudos o quilo? Onde é que isto<br />
vai parar?!<br />
17
MARGARIDA<br />
Quanto é que custou a sabrina, mãe?<br />
HERMÍNIA<br />
Não interessa!<br />
MARGARIDA<br />
Não interessa?<br />
HERMÍNIA<br />
Olha, filha, já estou como diz a dona Vitória:<br />
o que interessa é a alma, o resto são trocos.<br />
MARGARIDA fica sem resposta e HERMÍNIA sai da sala, levando a sabrina e<br />
a alcofa.<br />
FIM DE CENA –<br />
PASSAGEM DE TEMPO<br />
18
CENA <strong>011</strong>/09. INT. – ESCOLA / GABINETE DIRECTOR. – TARDE. DIA 03<br />
Director Pedro e Professor Rui Braga<br />
O DIRECTOR PEDRO e o PROFESSOR RUI BRAGA conversam,<br />
preocupados.<br />
PROF. BRAGA<br />
Resumindo: as criaturas vêm da Guiné…<br />
DIR. PEDRO<br />
Coitaditas!<br />
PROF. BRAGA (intrigado)<br />
Serão pretinhas?<br />
DIR. PEDRO<br />
Sei lá, homem! Só sei que a escola feminina<br />
está em obras até ao fim do mês e temos de<br />
recebêlas aqui para não estarem sem fazer<br />
nada.<br />
PROF. BRAGA<br />
O que é que o senhor director pensa disto?<br />
DIR. PEDRO<br />
Para lhe falar com franqueza, não sou<br />
adepto de misturas. Não me agrada ter<br />
raparigas e rapazes na mesma escola mas<br />
enfim é só por uns dias…<br />
PROF. BRAGA<br />
Não há maneira de recusar?<br />
DIR. PEDRO (hesitante)<br />
Não, claro que não. Não posso recusar um<br />
pedido do Ministério.<br />
PROF. BRAGA<br />
O senhor Director é que sabe…<br />
Faça como lhe parecer melhor.<br />
DIR. PEDRO<br />
A nossa escola está à disposição e é uma<br />
questão de humanidade… estas raparigas<br />
têm de ser integradas, se perdem o balanço<br />
acabam por perder o ano.<br />
PROF. BRAGA<br />
Mas há tantas escolas femininas em Lisboa.<br />
DIR. PEDRO<br />
Todas longe daqui.<br />
19
DIR. PEDRO<br />
Digame uma coisa, porque é que você tem<br />
tanta relutância em receber as raparigas na<br />
sua aula?<br />
PROF. BRAGA<br />
Por causa dos rapazes que me saíram na<br />
rifa.<br />
DIR. PEDRO<br />
Não percebo.<br />
PROF. BRAGA<br />
Só eu sei o trabalho que tive para amansar<br />
aquelas feras… Agora imagine o que será<br />
com duas raparigas na sala de aula.<br />
O PROFESSOR e o DIRECTOR ficam por momentos pensativos.<br />
FIM DE CENA –<br />
20
CENA <strong>011</strong>/10. INT. – ESCOLA / SALA DE AULA. – TARDE. DIA 03<br />
Carlos, Luís, Marinho, Colegas, Professor Braga e Inácio<br />
Os RAPAZES estão sozinhos na sala e em polvorosa. Há uma guerra de bolas<br />
de papel, e INÁCIO (um dos alunos) está a tomar conta escrevendo no quadro<br />
os nomes dos infractores e acrescentando tracinhos à frente dos nomes.<br />
INÁCIO<br />
Eu vi, Márinho. Eu vi que foste tu.<br />
INÁCIO aponta mais um traço diante do nome de MÁRINHO<br />
MARINHO<br />
Não fui eu que comecei.<br />
INÁCIO<br />
Foste tu que me acertaste.<br />
(aponta mais um traço)<br />
CARLOS lança então outra bola de papel na direcção do rapaz que acertou em<br />
MARINHO e este devolvelha com toda a força. INÁCIO não tem mãos a medir<br />
para fazer tracinhos nos nomes. Começam então a chover bolas de papel em<br />
cima de INÁCIO. De repente a turma exaltase e todos lançam coisas uns aos<br />
outros. O PROFESSOR BRAGA entra sem que o vejam e é atingido por uma<br />
bola de papel.<br />
PROF. BRAGA (com voz grave)<br />
O que é que vem a ser isto?<br />
A Turma pára de lutar e todos retomam os seus lugares.<br />
CARLOS aproximase.<br />
INÁCIO<br />
A culpa é do Carlitos.<br />
CARLOS<br />
É mentira, professor, eu não fiz nada.<br />
PROF. BRAGA<br />
Anda cá, Carlos.<br />
O PROFESSOR obrigao a ficar de costas para a aula.<br />
PROF. BRAGA (puxandoo por uma orelha<br />
até ao quadro)<br />
Ficas aqui até a aula acabar.<br />
CARLOS<br />
Isto não é justo.<br />
PROF. BRAGA<br />
Calate.<br />
21
INÁCIO e outros ALUNOS riem de CARLOS.<br />
PROF. BRAGA<br />
Todos calados. Não quero ouvir nem um pio.<br />
OS ALUNOS ficam finalmente em silêncio.<br />
PROF. BRAGA<br />
E logo agora que eu vos vinha falar do que é<br />
o cavalheirismo, da responsabilidade de<br />
serem rapazes e de se tornarem homens<br />
respeitadores, educados e responsáveis…<br />
Luís.<br />
LUÍS<br />
Sim, senhor professor.<br />
PROF. BRAGA<br />
Como é que deves tratar o teu pai?<br />
LUÍS<br />
Com respeito, obediência e humildade.<br />
PROF. BRAGA<br />
E onde é que aprendeste isso?<br />
LUÍS<br />
Na catequese, senhor professor.<br />
PROF. BRAGA<br />
Muito bem. O professor é como um pai, tem<br />
de ser tratado com respeito, obediência e<br />
humildade.<br />
CARLOS (virandose)<br />
Mas o professor não é o sustento da minha<br />
família!<br />
PROF. BRAGA<br />
Calate, Carlos. Virate para a frente.<br />
CARLOS virase novamente para a parede e encolhe os ombros.<br />
Os ALUNOS começam a agitarse.<br />
PROF. BRAGA<br />
Calados, já disse.<br />
PROF. BRAGA<br />
Vamos ao que interessa. Vamos falar de<br />
cavalheirismo. (escreve a palavra<br />
“cavalheirismo” no quadro) Pode vir a<br />
acontecer que tenhamos de receber na<br />
nossa aula duas raparigas vindas da Guiné.<br />
22
Os ALUNOS calamse.<br />
TODOS riem baixinho.<br />
PROF. BRAGA<br />
Estas duas meninas precisam de encontrar<br />
respeito e bons exemplos na nossa escola.<br />
Eu espero que vocês se saibam comportar<br />
como verdadeiros cavalheiros.<br />
MÁRINHO<br />
Eu não quero ser cavaleiro!<br />
PROF. BRAGA<br />
Mas não te importas de ser burro,<br />
cavalgadura.<br />
MÁRINHO (encolhe os ombros)<br />
O que é que eu fiz agora?<br />
PROF. BRAGA<br />
Estavamos a falar de “cavalheiros”, senhor<br />
Guimarães, ca.va.lhei.ros. (para Carlos) Vai<br />
para o teu lugar, Carlos.<br />
CARLOS volta para o seu lugar e o PROF. BRAGA começa a explicar o que é<br />
ser cavalheiro.<br />
PROF. BRAGA<br />
Um cavalheiro é um homem educado, um<br />
homem capaz de atitudes nobres. Quando<br />
um homem educado está perante uma<br />
senhora há atitudes de respeito e protecção<br />
que deve ter.<br />
CARLOS<br />
Às vezes tenho.<br />
PROF. BRAGA<br />
Tens é muito que aprender, já se viu!<br />
(continua a explicação) Um cavalheiro porta<br />
se com modos diante das senhoras, não diz<br />
palavras feias, não grita, não atira bolas de<br />
papel.<br />
MARINHO<br />
Mas afinal vamos ter aqui duas senhoras ou<br />
duas miúdas?<br />
PROF. BRAGA (irritado)<br />
É a mesma coisa, burro! São duas meninas<br />
que estão a crescer e a ser educadas para<br />
serem duas senhoras. Tal como vocês, que<br />
por enquanto não passam de uns rapazolas<br />
mal criados, um dia hãode ser homens e<br />
cavalheiros.<br />
23
MARINHO<br />
Eu não quero ter meninas na minha aula.<br />
CARLOS<br />
Eu também não!<br />
MARINHO<br />
Nós não sabemos brincar com meninas…<br />
CARLOS<br />
Nem com bonecas.<br />
TODOS reagem começando novamente o burburinho PROFESSOR BRAGA<br />
bate com o apagador na sua mesa, levandoos a calarse.<br />
Começam a arrumar fazendo muito barulho.<br />
PROF. BRAGA<br />
Pouco barulho!Ainda não se sabe ao certo<br />
quando chegam nem se vão realmente<br />
chegar à nossa escola. Mas até lá quero que<br />
vocês se comportem nesta aula como se<br />
tivessem duas colegas de turma, quero que<br />
tenham maneiras...<br />
Muito contrariados, começam TODOS a arrumar em silêncio, visivelmente<br />
furiosos.<br />
FIM DE CENA –<br />
PASSAGEM DE TEMPO<br />
NARRADOR (OFF)<br />
A hipótese de termos duas raparigas na<br />
nossa aula caiu como uma bomba. Na altura<br />
considerávamos as raparigas uns seres<br />
inferiores e inúteis: só pensavam em<br />
bonecas e em vestidos, choravam por tudo e<br />
por nada e riam dos rapazes quando<br />
metíamos os dedos no nariz. Era essa a<br />
nossa ideia de rapariga. E ainda por cima<br />
eram tão ignorantes que não sabiam nada<br />
sobre os feitos do Benfica nem sobre a<br />
selecção de Hóquei em Patins. Duas<br />
raparigas entre nós o dia inteiro, era uma<br />
afronta que não podíamos permitir.<br />
24
CENA <strong>011</strong>/11. EXT. – UNIVERSIDADE / RELVADO. – TARDE. DIA 03<br />
Toni, 3 estudantes universitários, Helena<br />
NOTA: esta cena pode passarse no relvado da alameda da Universidade ou nas<br />
escadas da faculdade de direito ou da reitoria<br />
Embora seja Outono está um dia de sol. OS 4 RAPAZES, vestidos com<br />
casacos grossos estão sentados no chão a conversar e a fumar.<br />
TONI fica com um ar sonhador.<br />
TONI<br />
Vamos para tua casa?<br />
ESTUDANTE 2 (para TONI)<br />
Não podemos ir para tua casa?<br />
TONI<br />
Não, não… a minha casa é muito pequena.<br />
ESTUDANTE 1<br />
Ainda melhor, levamos as miúdas e como a<br />
casa é pequena ficamos mais juntinhos.<br />
TONI (rindo)<br />
Tu estás obcecado… Não pensas noutra<br />
coisa?<br />
ESTUDANTE 1<br />
O que é que tu queres? Tenho 19 anos e<br />
ainda não me estreei… não é normal.<br />
TONI<br />
Eu ouvi dizer que em Inglaterra antes dos<br />
dezoito já toda a gente experimentou.<br />
ESTUDANTE 2<br />
E na Alemanha?! Na Alemanha já não há<br />
raparigas virgens.<br />
TONI (sorrindo)<br />
Queres ver que temos de emigrar para a<br />
Alemanha?!<br />
ESTUDANTE 3 (rindo)<br />
Não me importava nada. Eu para dormir com<br />
alguém até emigrava para o Japão. (para<br />
TONI) Arranja lá maneira de irmos para tua<br />
casa, Toni… podia ser no domingo.<br />
TONI<br />
Não dá…<br />
25
De repente, surge uma rapariga da idade deles com um ar descontraído, de<br />
calças de ganga, um sobretudo com capuz, um cachecol de lã, um grande saco<br />
à tiracolo e uma pasta de folhas A4 (é HELENA). Tem o cabelo solto e é muito<br />
bonita. Traz um cigarro apagado na mão e baixase para lhes pedir lume.<br />
TONI tira uma caixa de fósforos.<br />
Ela acende o cigarro e sorrilhe.<br />
HELENA (para TONI que está a fumar)<br />
Tens lume?<br />
ESTUDANTE 1<br />
Já conheces o Toni?<br />
HELENA<br />
Não. (para TONI) Olá.<br />
TONI (fascinado e envergonhado)<br />
Olá!<br />
HELENA<br />
Vocês vão á reunião? Começa daqui a meia<br />
hora.<br />
TODOS fazem uma expressão de quem não sabe da existência de nenhuma<br />
reunião.<br />
HELENA<br />
Sabiam que o Daniel Teixeira morreu?<br />
ESTUDANTE 1 (espantado)<br />
O quê?<br />
HELENA<br />
É verdade.<br />
TONI encolhe os ombros, envergonhado.<br />
TONI (baixinho para o ESTUDANTE 2)<br />
Quem era esse?<br />
ESTUDANTE 2<br />
Era um estudante que prenderam por ser<br />
contra o regime. Tu andas na lua pá?<br />
HELENA<br />
Morreu há uns dias na prisão de Caxias e<br />
ninguém dizia nada.<br />
ESTUDANTE 2<br />
Por isso é que isto tem andado cheio de<br />
polícias.<br />
26
Ficam TODOS pensativos, menos TONI que olha para HELENA com um ar<br />
apaixonado.<br />
TONI<br />
Eu no domingo vou dar uma festa. Queres<br />
ir?<br />
Os ESTUDANTES ficam animados mas HELENA faz má cara e TONI sentese<br />
atrapalhado.<br />
HELENA (com desdém)<br />
Estás a falar de quê?<br />
TONI<br />
De uma festa! Música, bebidas, dança.<br />
Queres ir?<br />
HELENA (reprovadora)<br />
Um colega nosso morreu na prisão e tu<br />
estás a pensar em festas? Deves estar a<br />
brincar comigo!<br />
ELES ficam embatucados. HELENA levantase e pega na sua mala.<br />
HELENA (determinada)<br />
Espero vervos na reunião. Já é tempo de<br />
fazermos qualquer coisa.<br />
HELENA afastase e os RAPAZES olham para TONI, sorrindo.<br />
ESTUDANTE 1<br />
Afinal sempre fazes a festa no domingo?!<br />
Boa!<br />
ESTUDANTE 2<br />
Eu vou levar umas miúdas de Letras que<br />
estão mortinhas para se meter comigo.<br />
ESTUDANTE 3<br />
Quantas são?<br />
ESTUDANTE 2<br />
Duas. Podes ficar com a mais feia.<br />
TONI (muito sério)<br />
Não vai haver festa!<br />
ESTUDANTE 1<br />
Então, pá?<br />
TONI<br />
Vocês não ouviram a vossa amiga?<br />
27
Mataram um colega nosso! Vamos à<br />
reunião.<br />
ESTUDANTE 1 (rindo)<br />
A reunião é agora e a festa é só no domingo!<br />
TONI (levantandose)<br />
Não vai haver festa nós vamos à reunião.<br />
OS ESTUDANTES não se mexem, TONI afastase em direcção á faculdade de<br />
Direito.<br />
ESTUDANTE 3<br />
O que é que lhe deu?<br />
O ESTUDANTE 1 levantase e os OUTROS fazem o mesmo.<br />
Os TRÊS apressam o passo para acompanhar TONI que caminha com passos<br />
largos.<br />
FIM DE CENA –<br />
28
CENA <strong>011</strong>/12. EXT. – RUA LISBOA / RUA – FIMDETARDE. DIA 03<br />
António, Homem, 2 PIDES<br />
ANTÓNIO caminha numa rua de Lisboa e, de repente, um HOMEM, vindo não<br />
se sabe de onde, surge a correr e choca com ele. Por breves momentos os<br />
seus olhares cruzamse: o HOMEM tem um olhar angustiado e assustado.<br />
Pede desculpa quase sem parar e segue o seu caminho assustado e a correr.<br />
Logo de seguida dois homens “cinzentos”, que claramente percebemos serem<br />
dois PIDES passam também a correr por ANTÓNIO, obrigandoo a um gesto<br />
que quase o leva a cair. Não lhe pedem desculpa e seguem a correr na<br />
direcção do homem. ANTÓNIO fica parado a observar a cena: vemos apenas a<br />
sua expressão de espanto e indignação.<br />
FIM DE CENA –<br />
29
CENA <strong>011</strong>/13. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. – NOITE. DIA 03<br />
Margarida, Hermínia, Isabel e Carlos.<br />
A mesa está posta. HERMÍNIA e CARLOS estão a ver televisão, sentados no<br />
sofá. ISABEL está sentada à mesa e MARGARIDA também.<br />
INSERT VÍDEO: Indicativo do Telejornal.<br />
FIM DE CENA –<br />
MARGARIDA<br />
Estou a estranhar o António e o Toninão<br />
chegarem…<br />
ISABEL (levantandose e dirigindose para a<br />
varanda)<br />
Talvez estejam no Fanan. Eu vou lá chamar.<br />
30
CENA <strong>011</strong>/14. INT. – CHROMAKEY / UNIVERSIDADE. – NOITE. DIA 03<br />
Toni, Helena, Estudantes Universitários 1, 2 e 3<br />
A PRETO E BRANCO: Se possível montar um EFEITO (imagens de Arquivo+<br />
Helena e Toni a p/b). Se não for possível terá de se reconstituir uma reunião de<br />
estudantes exaltados, na qual TONI está presente e HELENA discursa.<br />
HELENA está a discursar numa reunião de estudantes na universidade.<br />
A multidão aplaude.<br />
HELENA<br />
A morte do Daniel tem de nos servir de<br />
exemplo. Estamos revoltados e é na revolta<br />
que temos de encontrar coragem e força<br />
para continuar a sua luta. A Universidade<br />
não pode ser dominada por caciques, tem<br />
de ser livre, democrática e independente…<br />
se não for assim, a Universidade não serve<br />
para nada.<br />
Misturado entre os ESTUDANTES entusiasmados, TONI aplaude<br />
fervorosamente o discurso de HELENA. Depois HELENA continua a discursar<br />
sob o olhar apaixonado de TONI e a voz do NARRADOR.<br />
FIM DE CENA –<br />
PASSAGEM DE TEMPO<br />
NARRADOR (OFF)<br />
Para o meu irmão, aquela reunião de<br />
estudantes foi quase tão importante como<br />
perder a virgindade. A partir daquele dia,<br />
começou a transformarse e a mudar de<br />
hábitos, parecia outra pessoa. Deixou de<br />
brincar comigo e passou a usar palavras<br />
muito grandes e difíceis. Ainda me lembro<br />
de quando chegou a casa, naquela noite de<br />
Outubro: vinha emocionado e eufórico,<br />
convencido de que sozinho ia conseguir<br />
mudar o mundo… ou pelo menos mudar o<br />
país. Quando me lembro disso, compreendo<br />
a importância de 1968 na vida de todos<br />
nós… mesmo daqueles que não sabiam que<br />
se estavam a viver momentos importantes.<br />
31
CENA <strong>011</strong>/15. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. – NOITE. DIA 03<br />
Carlos, Hermínia, Margarida, Isabel, António<br />
INSERT AUDIO:<br />
Notícia da recaptura do Ilhéu de “O Século” de 19 de Outubro de 1968.<br />
CARLOS está a acabar de jantar. HERMÍNIA, ISABEL e MARGARIDA estão<br />
tão preocupadas que não se serviram. MARGARIDA está de pé ao telefone e<br />
desliga.<br />
MARGARIDA (desligando)<br />
Ninguém atende.<br />
HERMÍNIA<br />
É natural, a estas horas já não há ninguém<br />
no ministério.<br />
MARGARIDA (sentandose)<br />
Mas se ele não está na tipografia, não está<br />
no Fánan e não está no Ministério… Onde é<br />
que se terá metido?<br />
HERMÍNIA<br />
Se calhar encontrou algum amigo e está<br />
distraído à conversa.<br />
MARGARIDA<br />
Ò mãe, parece que está a falar do Toni. O<br />
António já não tem idade para ficar na rua<br />
com os amigos.<br />
HERMÍNIA<br />
Foi uma ideia, filha.<br />
MARGARIDA<br />
Não tarda ligo para os hospitais. Pode ter<br />
sido atropelado ou até assaltado…. Isto hoje<br />
em dia é um perigo andar na rua.<br />
ISABEL<br />
Credo, mãe! Que raio de ideias, que horror!<br />
HERMÍNIA<br />
Também digo. Não sejas agoirenta…<br />
(levanta a toalha e bate com a mão na<br />
madeira da mesa) lagarto, lagarto, lagarto!<br />
CARLOS<br />
Se calhar com o amigo índio.<br />
MARGARIDA<br />
Com quem?<br />
32
CARLOS<br />
Com o amigo índio, o moicano.<br />
INSERT VÍDEO: NA televisão vêemse imagens de uma greve no estrangeiro<br />
(pode ser Paris ou a greve dos estivadores na Costa Este dos E.U.A)<br />
O LOCUTOR relata os efeitos da “greve” usando a palavra.<br />
(Se não houver nada teremos de construir um pivot sobre imagens existentes –<br />
depende das disponibilidades do ARQUIVO <strong>RTP</strong>)<br />
CARLOS<br />
O que é uma greve?<br />
MARGARIDA<br />
Não olhes para mim eu hoje não tou com<br />
cabeça para esse tipo de perguntas.<br />
CARLOS<br />
Alguém tem que me explicar, se não como é<br />
que eu aprendo.<br />
HERMÍNIA<br />
Não insistas, Carlos.<br />
CARLOS (insiste)<br />
O que é uma greve?<br />
ISABEL<br />
É... quando as pessoas deixam de trabalhar<br />
como esses aí nessa notícia.<br />
CARLOS<br />
Se não trabalham são preguiçosos.<br />
ISABEL (sorrindo)<br />
Não é preguiça, Carlos, é uma maneira de<br />
fazerem uma exigência qualquer. Param de<br />
trabalhar até lhes darem aquilo que querem?<br />
HERMÍNIA<br />
Não metas mais ideias na cabeça do teu<br />
irmão que ele já tem a cabeça cheia.<br />
CARLOS<br />
E as pessoas conseguem aquilo que querem<br />
quando fazem greve?<br />
ISABEL<br />
Às vezes conseguem, outras vezes não.<br />
33
ANTÓNIO entra na sala.<br />
ANTÓNIO tira o casaco e sentase à mesa.<br />
CARLOS (interessado)<br />
Se eu quiser muito uma coisa posso fazer<br />
uma greve e consigo o que quero?<br />
MARGARIDA (repreendendo ISABEL)<br />
Estás a ver? Porque é que lhe foste explicar<br />
agora faz greve por tudo e por nada.<br />
MARGARIDA (levantandose)<br />
António! Já tinha telefonado para todo o<br />
lado.<br />
ANTÓNIO<br />
Não é assim tão tarde.<br />
MARGARIDA<br />
Pois não mas agora como anoitece mais<br />
cedo e fiquei preocupada. E o Toni, não veio<br />
contigo?<br />
HERMÍNIA (levantandose)<br />
Vou aquecer a sopa. Isabel, anda comigo.<br />
HERMÍNIA sai da sala com ISABEL e levam o jantar consigo.<br />
ANTÓNIO<br />
Não vais acreditar no que é que me<br />
aconteceu... Foi horrível até tive que entrar<br />
numa pastelaria para tomar um café e uma<br />
água.<br />
MARGARIDA<br />
O que foi?<br />
ANTÓNIO serve um copo de vinho e dá um gole antes de começar a contar.<br />
ANTÓNIO (visivelmente perturbado)<br />
O engenheiro… o engenheiro mandoume<br />
entregar uma coisa a um cliente e quando<br />
vinha de regresso…um tipo passou a correr<br />
e chocou comigo.<br />
MARGARIDA<br />
E então, aleijoute?<br />
ANTÓNIO<br />
Não, Guida… mas o olhar do tipo ficoume<br />
cravado cá dentro. Estava aterrorizado,<br />
parecia que o mundo ia acabar amanhã…<br />
coitado, a fugir mas ainda teve tempo para<br />
34
me pedir desculpa!<br />
MARGARIDA<br />
Então não havia de pedir, se chocou<br />
contigo?!<br />
ANTÓNIO<br />
Logo a seguir aparecem dois labregos com<br />
ar de polícia à paisana e quase me atiraram<br />
ao chão. Julgas que me disseram alguma<br />
coisa? Nada! Nem pediram desculpa… nem<br />
água vai nem água vem… Fiqueilhes com<br />
uma raiva!<br />
CARLOS (entusiasmado)<br />
O pai bateu nos polícias? Já estou a ver a<br />
cara do Luís e do Marinho quando eu lhes<br />
contar.<br />
MARGARIDA (decidida)<br />
Tu não vais contar a ninguém, Carlos!<br />
Ouviste?!(para ANTÓNIO) Tu não abres a<br />
boca. Será algum ladrão?<br />
ANTÓNIO<br />
Não Guida, qual ladrão? O homem tinha<br />
mesmo cara de quem não faz mal a uma<br />
mosca. Devia ser a Pide a perseguir um<br />
desgraçado qualquer.<br />
MARGARIDA<br />
Prenderamno?<br />
CARLOS<br />
Apanharamno?<br />
ANTÓNIO (para CARLOS, decidido)<br />
Está calado que eu estou a falar com a tua<br />
mãe. (baixo para MARGARIDA) Tive a<br />
sensação que aquilo podia acontecer a<br />
qualquer pessoa… podia ser eu a fugir<br />
daquelas bestas.<br />
MARGARIDA<br />
Não podias nada, tu não te metes onde não<br />
deves.<br />
ANTÓNIO<br />
De qualquer maneira.<br />
MARGARIDA<br />
Se alguma vez eles iam perseguir um<br />
funcionário público, do ministério das<br />
35
finanças ainda por cima.<br />
ANTÓNIO<br />
Achas que se ralam? Aquilo é gente que<br />
Bate primeiro e só depois é que se rala. Eu<br />
nunca tinha visto uma perseguição daquelas<br />
na rua.<br />
CARLOS (entusiasmado)<br />
Paizinho, quer que eu lhe explique o que é<br />
uma greve?<br />
ANTÓNIO olha de lado para CARLOS. HERMÍNIA e ISABEL entram com o<br />
jantar que pousam na mesa.<br />
ANTÓNIO<br />
O Toni ainda não veio?<br />
INSERT AUDIO: O telefone toca<br />
MARGARIDA<br />
Não!<br />
MARGARIDA levantase e corre para o telefone.<br />
MARGARIDA desliga e volta para a mesa.<br />
FIM DE CENA –<br />
ANTÓNIO<br />
Só espero que não se tenha metido em<br />
nenhum sarilho.<br />
MARGARIDA<br />
Estou?! (...) Onde estás Toni?<br />
ANTÓNIO<br />
Dizlhe que venha imediatamente para casa.<br />
MARGARIDA<br />
O teu pai está a dizer para vires<br />
imediatamente para casa. (...) Diz que não<br />
pode, António, está com os colegas. (...) Não<br />
venhas muito tarde, filho(...) Está bem, até<br />
logo. Tem cuidado! Adeus beijinhos<br />
ANTÓNIO (irritado)<br />
Não sei o que se passa nesta família, não<br />
podemos andar na rua que tropeçamos<br />
sempre nos problemas dos outros.<br />
Caramba!<br />
CENA <strong>011</strong>/16. INT. – CAFÉ MODESTO / MESAS – NOITE. DIA 03<br />
36
Toni, Helena e Clientes<br />
TONI e HELENA estão num café modesto, quase tasca. Nas outras mesas<br />
vemos que há operários e estudantes.<br />
TONI<br />
Não tens medo?<br />
HELENA<br />
De quê?<br />
TONI<br />
De seres do contra, de falar nas reuniões, …<br />
podemos ser presos…<br />
HELENA<br />
Que exagero!<br />
TONI (sorrindo)<br />
Qualquer dia não me mata a polícia, mata<br />
me a minha mãe por eu andar metido em<br />
política.<br />
HELENA (trocista)<br />
Não sabias que eras um menino da mamã.<br />
TONI<br />
E não sou... mas com a porcaria da guerra<br />
sabes como é, os meus pais têm medo que<br />
me meta em sarilhos e me mandem para<br />
Angola.<br />
HELENA<br />
Esquece isso! O que importa é não<br />
desistirmos...<br />
TONI olhaa com admiração e HELENA continua a falar com convicção.<br />
HELENA<br />
Temos de sensibilizar os trabalhadores, a<br />
classe operária... Temos o dever histórico de<br />
dar o exemplo...<br />
TONI olhaa “babado”. HELENA repara no ar aparvalhado dele e interrompe o<br />
seu discurso.<br />
HELENA acende um cigarro e continua a conversar.<br />
HELENA<br />
Este ano as coisas estão mais quentes do<br />
que o ano passado… Parece que está tudo<br />
tenso, há qualquer coisa no ar, não sei o<br />
37
HELENA observao com um ar trocista.<br />
quê… Não achas?<br />
TONI<br />
Não sei...entrei este ano...<br />
HELENA<br />
Como é que é a tua família?<br />
TONI<br />
É normal: pai, mãe, um irmão, uma irmã,<br />
uma avó…<br />
HELENA<br />
O que é que os teus pais fazem?<br />
TONI<br />
A minha mãe trabalha em casa, faz calças e<br />
o meu pai é funcionário público. (apercebe<br />
se de que está a falar demais) Não sei<br />
porque é que te estou a contar estas coisas.<br />
HELENA<br />
Podes contar mais, se quiseres.<br />
TONI<br />
Não. Contame tu as tuas coisas. Onde é<br />
que tu vives?<br />
HELENA<br />
Aqui perto, com os meus pais. Mas este ano<br />
aluguei uma casa com duas amigas.<br />
TONI (espantado)<br />
Tens uma casa? Como é que tu consegues<br />
pagar uma casa?<br />
HELENA<br />
Não é só minha... somos três. E como dou<br />
explicações...<br />
TONI<br />
Quem me dera ter uma casa…só para mim.<br />
38
HELENA<br />
É óptimo para estudar sem ninguém a<br />
interromper, para as nossas músicas. Podes<br />
fazer uma série de coisas, sabes como é?<br />
TONI não “sabe como é” mas não se desmancha, tudo lhe parece interessante<br />
e perturbador.<br />
FIM DE CENA –<br />
PASSAGEM DE TEMPO<br />
39
CENA <strong>011</strong>/17. INT– TIPOGRAFIA RAMIRES / ESCRITÓRIO– TARDE. DIA 04<br />
António, Engenheiro Ramires, Operários<br />
O ENGENHEIRO RAMIRES fala com ANTÓNIO.<br />
ANTÓNIO tem uma pequena capa de cartão debaixo do braço.<br />
ENG. RAMIRES<br />
O Gregório já apareceu?<br />
ANTÓNIO<br />
Não. Ainda deve estar doente.<br />
ENG. RAMIRES<br />
Esse está sempre doente! Eu também<br />
apanho gripes, já tenho estado aqui com 38<br />
de febre, não falho... e depois ainda dizem<br />
que nós exploramos os trabalhadores... com<br />
franqueza, António!<br />
ANTÓNIO<br />
O senhor Engenheiro nunca me ouviu dizer<br />
uma coisa dessas.<br />
ENG. RAMIRES (comparando ANTÓNIO<br />
com o resto dos TRABALHADORS)<br />
Não, não, tu és diferente dessa cambada...<br />
eu sei. Bom! Vamos esquecer isto e toca a<br />
trabalhar. Essas folhas têm de estar prontas<br />
amanhã de amanhã.<br />
ANTÓNIO abre a capa de cartão que tem debaixo do braço e mostra a prova<br />
de uma folha. O ENGENHEIRO RAMIRES observaa atentamente.<br />
CORTA PARA –<br />
40
CENA <strong>011</strong>/18. INT – TIPOGRAFIA RAMIRES / SALA MÁQUINAS – TARDE. DIA 04<br />
Operários, António, Engenheiro Ramires, Pide 1 e Pide 2<br />
Enquanto por trás do vidro se vê o ENGENHEIRO a observar as folhas na<br />
presença de ANTÓNIO, os OPERÁRIOS continuam a trabalhar. De repente,<br />
DOIS PIDES entram na tipografia (um tem cerca de 40 anos e outro é mais<br />
velho e hierarquicamente superior). Devem estar de fato e ter um ar “cinzento”<br />
sem serem caricaturas.<br />
PIDE 1 (antipático)<br />
Quem é o dono disto?<br />
OPERÁRIO 1<br />
É o engenheiro Ramires.<br />
PIDE 1<br />
E está?<br />
OPERÁRIO 1<br />
Está. Quem pergunta por ele?<br />
PIDE 1 (seco)<br />
Digalhe que tem visitas.<br />
OPERÁRIO 1<br />
É só um momento, por favor.<br />
O OPERÁRIO 1 bate à porta do escritório, entra e fecha a porta. Fala sem que<br />
oiçamos o que diz e o ENGENHEIRO levanta o olhar na direcção dos PIDES.<br />
Faz uma expressão de espanto que leva ANTÓNIO a virarse também para ver<br />
quem está do lado de fora. O ENGENHEIRO fala e a porta do escritório abre<br />
se. O OPERÁRIO 1 e ANTÓNIO saem do escritório.<br />
OPERÁRIO 1 (deixando a porta aberta)<br />
Podem entrar.<br />
Os PIDES entram e deixam a porta aberta, de maneira que se ouve o que<br />
dizem.<br />
ENG. RAMIRES<br />
José Ramires. Façam o favor de dizer.<br />
PIDE 2<br />
Polícia Internacional de Defesa do Estado. O<br />
senhor tem algum funcionário chamado<br />
Gregório?<br />
Ao ouvir isto, ANTÓNIO despe discretamente a sua bata de trabalho e faz um<br />
sinal ao ENGENHEIRO que vê mas disfarça.<br />
41
ENG. RAMIRES<br />
Tenho... Mas tem estado doente.. O que é<br />
que se passa?<br />
PIDE 1<br />
O senhor vai ter de nos desculpar mas<br />
temos de revistar a tipografia.<br />
ENG. RAMIRES<br />
Deixemme dar uma instrução aos homens,<br />
tenho um trabalho importante em mãos.<br />
PIDE 2<br />
Faça favor.<br />
O ENGENHEIRO fecha a porta do escritório.<br />
CORTA PARA –<br />
ENG. RAMIRES (inventando e apenas<br />
aproximandose da porta do gabinete)<br />
Podes ir, António, escolhe o melhor papel<br />
que lá tiverem. Despachate, antes que<br />
fechem.<br />
ANTÓNIO (vestindo a gabardina)<br />
Com certeza, senhor Engenheiro.<br />
(sai, curioso mas assustado).<br />
42
CENA <strong>011</strong>/19. INT – TIPOGRAFIA RAMIRES / ESCRITÓRIO – TARDE. DIA 04<br />
Operários, Engenheiro, Pide 1 e Pide 2<br />
Ao voltar para dentro o ENGENHEIRO encontra os Pides já a abrir gavetas.<br />
OS OPERÁRIOS estão perplexos a ver o que se passa.<br />
ENG. RAMIRES (encostando a porta do<br />
gabinete)<br />
Fazem o favor de me explicar o que se<br />
passa?<br />
PIDE 2 (com um ar firme, sem deixar de<br />
revistar as gavetas)<br />
Não nos dificulte a tarefa.<br />
ENG. RAMIRES<br />
Não, eu não estou a dificultar nada… eu só<br />
estava a perguntar do que é que os srs<br />
estão á procura não é? Se quiserem eu até<br />
ajudo…até tenho a morada do homem ali,<br />
PIDE 1 (remexendo nas gavetas)<br />
Nós sabemos onde ele vive! Há quanto<br />
tempo não o vê?<br />
ENG. RAMIRES (espantado com a<br />
determinação do Pide)<br />
Um momento! O senhor parece que não<br />
sabe com quem está a falar, mas eu vou<br />
explicarlhe.<br />
O ENGENHEIRO pega no telefone e parece ameaçar fazer uma chamada<br />
importante.<br />
ENG. RAMIRES<br />
Eu sou uma pessoa bem relacionada. Tenho<br />
amigos nos mais altos cargos... (começa a<br />
marcar números no telefone)<br />
PIDE 2<br />
Pode fazer os telefonemas que entender ,<br />
porque nós estamos a cumprir ordens. Há<br />
quanto tempo é que não vê o senhor<br />
Gregório?<br />
ENG. RAMIRES (desligando o telefone)<br />
Ligou para cá na sextafeira a dizer que tem<br />
estado doente. O que é que querem que eu<br />
faça? Quando me dizem que estão doentes<br />
eu tenho de acreditar.<br />
43
OS PIDES continuam a abrir as gavetas e a vasculhar tudo. O ENGENHEIRO<br />
começa a ficar em brasa e faz um grande esforço para se conter. Olha para os<br />
OPERÁRIOS, indignado com o que se passa. Eles parecem solidários.<br />
O PIDE 1 despeja mais uma gaveta em cima da secretária.<br />
OS PIDES olhamno, encolhem os ombros como que dizendolhe que não<br />
podem interromper a busca e continuam a vasculhar tudo.<br />
FIM DE CENA –<br />
44
CENA <strong>011</strong>/20. INT– CASA LOPES / SALA COMUM– FIMDETARDE. DIA 04<br />
Margarida, Carlos, Hermínia<br />
INSERT VÍDEO: Emissão TV Educativa<br />
MARGARIDA está a coser calças e ao mesmo tempo vê um programa de<br />
televisão.<br />
INSERT AUDIO: Tocam insistentemente à porta.<br />
MARGARIDA pousa o que está a fazer. Levantase e vai abrir a porta.<br />
CARLOS entra a correr em direcção à sala, despindo o casaco. Pousa a sua<br />
pasta da escola e o casaco numa cadeira e sai a correr da sala.<br />
CARLOS<br />
Olá.<br />
MARGARIDA<br />
Onde vais, Carlos?<br />
CARLOS (OFF)<br />
À casade.banho.<br />
MARGARIDA<br />
Levanta a tampa da sanita que estou farta<br />
de a limpar.<br />
CARLOS não lhe responde e ouvimos a porta da casadebanho a fechar.<br />
INSERT AUDIO: Porta da casadebanho fecha com força.<br />
Nesse momento HERMÍNIA entra na sala, tem a gabardina vestida e a mala na<br />
mão.<br />
HERMÍNIA sai.<br />
CARLOS entra na sala a correr.<br />
HERMÍNIA<br />
Vou dar uma volta.<br />
MARGARIDA<br />
A esta hora mãe, são seis da tarde.<br />
HERMÍNIA (irritada)<br />
E por causa disso já não me posso distrair<br />
um bocadinho?<br />
MARGARIDA (pacificadora)<br />
Já cá não está quem falou.<br />
HERMÍNIA<br />
Eu não demoro.<br />
45
CARLOS<br />
Posso comer?<br />
MARGARIDA<br />
Lavaste as mãos?<br />
CARLOS<br />
Lavei.<br />
MARGARIDA<br />
Tens uma sandes de marmelada na cozinha.<br />
CARLOS (saindo da sala a correr)<br />
Que bom! (OFF) Amanhã não vou à escola.<br />
MARGARIDA (alto)<br />
O que é que tu disseste?<br />
CARLOS (OFF)<br />
Amanhã não vou à escola! Não me apetece.<br />
CARLOS entra na sala a comer uma carcaça com marmelada.<br />
CARLOS dirigese para a porta<br />
MARGARIDA<br />
Que conversa é essa de não querer ir à<br />
escola?<br />
CARLOS<br />
O professor diz que vão chegar duas<br />
raparigas da Guiné e que vão ficar na minha<br />
aula.<br />
MARGARIDA<br />
Olha que sorte! Tu és tão malandreco,<br />
devias estar contente.<br />
CARLOS<br />
As raparigas têm brincadeiras muito parvas<br />
e são estúpidas.<br />
MARGARIDA<br />
Isso não se diz Carlos. Olha que eu também<br />
sou rapariga…<br />
CARLOS<br />
A mãe não é uma rapariga, é uma mãe… é<br />
muito diferente.<br />
CARLOS (já perto da porta)<br />
Até logo.<br />
MARGARIDA<br />
E os trabalhos de casa?<br />
46
CARLOS<br />
Faço depois de jantar.<br />
MARGARIDA<br />
Leva o casaco.<br />
CARLOS volta para trás, pega no casaco e sai a correr.<br />
MARGARIDA continua a trabalhar e a ver televisão.<br />
FIM DE CENA –<br />
MARGARIDA (para si, abanando a cabeça)<br />
Que mal fiz eu a Deus?<br />
47
CENA <strong>011</strong>/21. INT–TIPOGRAFIA RAMIRES/SALA MÁQ.–FIMDETARDE. DIA 04<br />
Operários, Engenheiro Ramires, Pide 1, Pide 2, António<br />
Os OPERÁRIOS e o ENG. RAMIRES estão embasbacados a olhar para os<br />
PIDES que continuam a remexer nos papéis.<br />
ENG. RAMIRES<br />
Eu percebo, os senhores têm de fazer o<br />
vosso trabalho e os cidadãos têm de<br />
colaborar…<br />
PIDE 2<br />
É isso mesmo, senhor engenheiro.<br />
ENG. RAMIRES<br />
Não se preocupem com a desarrumação, eu<br />
depois peço aos homens que ponham tudo<br />
no sítio.<br />
PIDE 2<br />
Bom… aqui não há nada suspeito. Se o seu<br />
funcionário voltar, é seu dever avisarnos.<br />
ENG. RAMIRES<br />
Quem diria?! Quem diria que eu tinha na<br />
minha empresa um elemento subversivo?!<br />
Não se preocupe: é preciso ser firme com<br />
esta gente… firme!<br />
OS PIDES encaminhamse para a saída e o ENGENHEIRO estendelhes a<br />
mão eles apertamna sem expressão e saem.<br />
OS OPERÁRIOS não respondem.<br />
PIDES (saindo)<br />
Boas tardes!<br />
ENG. RAMIRES (depois de saírem, muito<br />
irritado)<br />
Merda! (ameaçador)Nenhum de vocês sabia<br />
que o Gregório era … um desses<br />
revolucionários… um subversivo? Se calhar<br />
até é comunista! Sabiam ou não sabiam?<br />
ENG. RAMIRES<br />
Não se armem em parvos comigo! Se<br />
sabiam é melhor dizer já, porque se não eu<br />
descubro!<br />
OS OPERÁRIOS entreolhamse com cara de quem não sabia de nada.<br />
ANTÓNIO aparece à porta a espreitar e entra a medo.<br />
48
ENG. RAMIRES<br />
Ah! Estás aí!<br />
ANTÓNIO<br />
Fiquei lá fora à espera que se fossem<br />
embora.<br />
ENG. RAMIRES<br />
Bolas! Se não me lembrasse de te mandar à<br />
rua, tinha de lhes explicar porque é que dou<br />
trabalho a um funcionário público.<br />
ANTÓNIO (submisso)<br />
Agradeçolhe muito, senhor engenheiro.<br />
ENG. RAMIRES (ainda irritado)<br />
Deixate de salamaleques. Tu sabias que o<br />
Gregório era…? Sei lá! Eu nem sei o que é<br />
que ele é!Não sabes?<br />
ANTÓNIO<br />
Não fazia a minima ideia.<br />
ENG. RAMIRES<br />
E porque será que eu não acredito em<br />
vocês? Tenho a certeza de que sabiam e<br />
que me meteram nesta alhada. Já viste<br />
como me deixaram o escritório?... E a<br />
arrogância?! Havias de os ter visto armados<br />
em coronéis, a mandar, a revistar como se<br />
isto fosse tudo deles… logo comigo que<br />
cheguei a ser tenente… É o cúmulo!<br />
OPERÁRIO 1<br />
O senhor engenheiro desculpe, mas nós não<br />
sabíamos de nada. O Gregório só fala de<br />
bola, nunca falou de política.<br />
ENG. RAMIRES<br />
Nem vai falar… porque está despedido.<br />
Nunca mais o quero ver a entrar por aquela<br />
porta.<br />
ANTÓNIO (intercedendo)<br />
Ó senhor engenheiro, não faça isso, ele tem<br />
família.<br />
49
ENG. RAMIRES (de cabeça perdida)<br />
Também eu! E digovos mais, ele já está<br />
despedido e vocês não se ponham com<br />
conversas esquisitas… nesta casa trabalha<br />
se e mais nada, ouviram? O primeiro que<br />
vier com ideias e exigências vai pr’ó olho da<br />
rua. (entra no seu escritório e bate com a<br />
porta)<br />
Com um ar preocupado, e em silêncio, os OPERÁRIOS começam a arrumar os<br />
papéis que os Pides desarrumaram.<br />
FIM DE CENA –<br />
PASSAGEM DE TEMPO<br />
50
CENA <strong>011</strong>/22. EXT – RUA LOPES / BANCOS – FIM DE TARDE. DIA 04<br />
Carlos, Luís, Marinho, Camões, Cliente<br />
OS TRÊS amigos estão sentados num banco de jardim e têm um ar de enfado.<br />
CAMÕES aproximase deles e sentase ao lado deles.<br />
CAMÕES<br />
Vocês estão mesmo tramados!<br />
LUÍS<br />
Pois estamos. Se elas chegarem amanhã<br />
estamos fritos…<br />
MARINHO<br />
Nunca mais podemos dizer palavrões…<br />
CARLOS<br />
Nem um?<br />
CAMÕES<br />
Claro que não! Achas bonito dizer palavrões<br />
à frente das raparigas?<br />
LUÍS<br />
Nem podemos dizer “tramados”?<br />
CAMÕES<br />
Não, Luís. Isso é uma palavra para usar só<br />
entre homens.<br />
MARINHO<br />
E… “cara de cú”? Podemos dizer?<br />
CAMÕES<br />
Também não. Vocês são mesmo<br />
impossíveis!<br />
LUÍS<br />
E “ora bolas”, podemos?<br />
CARLOS<br />
Acho que sim. Isso não é um palavrão.<br />
MARINHO<br />
Podemos dizer “gajo”?<br />
CAMÕES<br />
Não!<br />
MARINHO<br />
E “porreiro”?<br />
51
CAMÕES tem vontade de rir.<br />
CAMÕES<br />
Também não.<br />
LUÍS<br />
E “maminhas”?<br />
MARINHO (escandalizado)<br />
Isso não podemos! Nem pensar. Pois não,<br />
senhor Camões?<br />
CAMÕES<br />
Não digam coisas que não dissessem à<br />
frente dos vossos pais… se fizerem isso<br />
estão garantidos.<br />
CARLOS (desolado)<br />
Então nem sequer lhes podemos chamar<br />
“estúpidas”…<br />
CAMÕES<br />
Pois não. Isso não só é um palavrão como é<br />
um insulto. (virandose) Olha! Tenho de ir<br />
trabalhar, vem aí um cliente.<br />
CAMÕES levantase e vai para o quiosque atender UM CLIENTE que se<br />
aproxima.<br />
OS TRÊS rapazes deixamse ficar por momentos a olhar o chão, desiludidos<br />
com o seu futuro.<br />
MARINHO<br />
Que chatice! Nem sequer podemos fazer<br />
chichi<br />
LUÍS<br />
Porquê?<br />
OS TRÊS cruzam os braços e “bufam”, desesperados.<br />
MARINHO<br />
Porque elas devem ir à nossa casa de<br />
banho e se elas vão nós não podemos ir.<br />
CARLOS (tem uma ideia)<br />
Já sei! Já sei o que vamos fazer.<br />
LUÍS e MÁRINHO animamse e aproximamse mais de CARLOS para que<br />
lhes explique o plano. CARLOS começa a explicar com muitos gestos e<br />
convicção mas não o ouvimos porque passamos a ouvir o narrador.<br />
52
FIM DE CENA –<br />
NARRADOR (OFF)<br />
De todas as desgraças que antevíamos com<br />
a chegada daquelas raparigas, a pior<br />
perspectiva era não poder ir à casa de<br />
banho: nenhum de nós estava disposto a ir<br />
fazer chichi, sabendo que a qualquer<br />
momento podia entrar uma rapariga. Foi por<br />
isso que me lembrei do meu plano, estava<br />
disposto a tudo para fazer frente Às nossas<br />
inimigas.<br />
53
CENA <strong>011</strong>/23. INT. – CAFÉ MODESTO / MESAS – FIM DE TARDE. DIA 04<br />
Helena e Toni<br />
HELENA e TONI estão novamente no café que costumam frequentar.<br />
INSERT ÁUDIO: Como música de fundo (não transmitida da rádio mas sim<br />
como “banda sonora”) ouvese muito baixo “Chamaramme cigano” do álbum<br />
Canções do Andarilho de Zeca Afonso.<br />
HELENA (divertida)<br />
José Cid?.... E não me digas que também<br />
gostas do António Calvário e do Artur<br />
Garcia?!... (ri)<br />
TONI<br />
Não isso não, quem gosta disso são os<br />
meus pais…eu prefiro o Carlos mendes.<br />
HELENA<br />
O Carlos Mendes… não está mal mas…<br />
TONI<br />
Mas …<br />
HELENA<br />
Já ouviste alguma coisa do José Afonso, ou<br />
do Adriano Correia de Oliveira?<br />
TONI<br />
Não sei…<br />
HELENA (abrindo o seu grande saco à<br />
tiracolo)<br />
Trouxete um presente… Toma! (dálhe um<br />
LP)<br />
TONI (feliz)<br />
O que é?<br />
HELENA<br />
“Cantares do Andarilho”, é o último disco do<br />
José Afonso.<br />
TONI<br />
Isso não é muito… como é que eu heide<br />
dizer? Muito…<br />
HELENA<br />
Muito profundo?<br />
TONI<br />
Isso! É profundo, não é?<br />
54
HELENA<br />
Um bocadinho… mas também é muito<br />
bonito. Lê um bocadinho… lê uma que se<br />
chama “vejam bem”<br />
TONI<br />
Olha, está aqui um poema do Luís de<br />
Camões.<br />
HELENA (insiste)<br />
Lê aquele que te pedi… vá lá.<br />
TONI<br />
Mas não vale rir…<br />
(declama, sério)<br />
Vejam bem<br />
Que não há só gaivotas em terra<br />
Quando um homem se põe a pensar<br />
Quem lá vem<br />
Dorme à noite ao relento na areia<br />
Dorme á noite ao relento no mar<br />
(sorrindo) Já chega, eu não sei declamar.<br />
HELENA<br />
É bonito ou não é?<br />
TONI<br />
Muito.<br />
HELENA<br />
Podes ouvilo em casa e até podes aprender<br />
essa música. Se sabes tocar viola, não deve<br />
ser difícil.<br />
TONI (sorrindo)<br />
Boa ideia. Se eu conseguir tirar de ouvido,<br />
tocoa para ti.<br />
HELENA<br />
Tenho a certeza que vais gostar.<br />
HELENA lembrase de uma coisa e olha para o relógio.<br />
HELENA<br />
Ai, as horas!... Tenho uma coisa combinada<br />
antes do jantar.<br />
(levantase e deixa uma moeda de 2<br />
escudos em cima da mesa) Toma, pagame<br />
o meu café!<br />
TONI<br />
55
Vejote amanhã?<br />
HELENA<br />
Acho que sim. (sorri e dálhe um beijo na<br />
cara)<br />
TONI leva a mão à cara e deixase ficar a olhála enquanto se afasta. HELENA<br />
sai do café.<br />
FIM DE CENA –<br />
PASSAGEM DE TEMPO<br />
56
CENA <strong>011</strong>/24. INT. – CASA LOPES/SALA COMUM – NOITE. DIA 04<br />
Carlos, Isabel, Toni, Margarida, António e Hermínia<br />
Já todos jantaram e estão a ver televisão. Uns no sofá e outros ainda à mesa.<br />
INSERT AUDIO: som do “vamos dormir” vindo da televisão<br />
ISABEL ri<br />
MARGARIDA (para CARLOS)<br />
Vai para o teu quarto. Fazes os trabalhos e<br />
depois deitaste.<br />
CARLOS<br />
Eu também quero ver televisão.<br />
MARGARIDA<br />
Tu não quiseste ir brincar para a rua esta<br />
tarde? Disseste que fazias os trabalhos<br />
depois do jantar, vais fazêlos tem que ser!<br />
CARLOS (levantandose)<br />
Nunca posso ver nada!<br />
MARGARIDA<br />
Afinal onde é que a mãe foi hoje?<br />
HERMÍNIA<br />
Não são contas do teu rosário.<br />
MARGARIDA (para ANTÓNIO)<br />
Tas a ver isto António? Agora não temos<br />
preocupações só com os filhos…a minha<br />
mãe saiu às seis tarde e só me chega à hora<br />
de jantar e não sabemos onde foi.<br />
TONI (trocista)<br />
Daqui a pouco estão a acusar a avó de estar<br />
metida em “sarilhos” ou a dizer que a vão<br />
mandar para a tropa.<br />
HERMÍNIA<br />
Isso nem a brincar, Toni.<br />
ANTÓNIO<br />
Estás muito engraçadinho mas ainda não<br />
nos disseste porque é que ontem chegaste<br />
tão tarde a casa.<br />
TONI<br />
Estive com os meus colegas. Eu telefonei.<br />
57
ANTÓNIO<br />
Estou na mesma. Com certeza que não<br />
estavam a estudar, ainda agora começaram<br />
as aulas.<br />
TONI<br />
Depois da reunião de estudantes, fui a um<br />
café conversar …<br />
ANTÓNIO (interrompe com ar calmo)<br />
Alto lá! Depois de quê? Eu ouvi bem?<br />
TONI<br />
Fui a uma reunião de estudantes.<br />
ANTÓNIO (para MARGARIDA)<br />
Eu não te disse que ele se ia meter em<br />
sarilhos? (para TONI) O que é que tu<br />
estiveste a fazer numa reunião dessas?<br />
TONI (convicto)<br />
Estive a ouvir, pai. E fiquei a saber uma<br />
série de coisas que não sabia e que não<br />
podem passar em branco. O pai sabia que<br />
os Pides mataram um colega meu em<br />
Caxias?<br />
MARGARIDA<br />
Ai!<br />
HERMÍNIA<br />
Deus nos ajude.<br />
ANTÓNIO<br />
E tu sabias que um dia destes te podem dar<br />
um tiro a ti? Tens consciência disso?<br />
TONI<br />
Eu não me meti em nada.<br />
ANTÓNIO<br />
Mas estiveste numa reunião a ouvir<br />
baboseiras. E daí a estares com ficha na<br />
Pide é um instante!<br />
TONI<br />
Se prendem os estudantes por tudo e por<br />
nada e se ainda por cima os matam na<br />
prisão, o que é que o pai quer que eu faça?<br />
58
FIM DE CENA –<br />
ANTÓNIO (mais irritado)<br />
Tu tens alguma ideia dos sacrifícios que<br />
fazemos para tu estudares? Tens? É que<br />
estamos todos a trabalhar para ti, até a tua<br />
irmã.<br />
TONI (envergonhado)<br />
Eu sei!<br />
ANTÓNIO<br />
Então se sabes não voltes a pôr os pés<br />
nessas reuniões.<br />
TONI<br />
Um pouco de democracia não nos fazia<br />
nada mal.<br />
ANTÓNIO<br />
Democracia… democracia… Tu sabes lá o<br />
que isso é.<br />
HERMÍNIA<br />
Daqui a pouco vem dizer que somos todos<br />
iguais.<br />
TONI<br />
E somos, vó! Porque é que não somos?<br />
ANTÓNIO<br />
Tens razão, Toni: os pobres são todos iguais<br />
e os ricos também são todos iguais… e os<br />
tipos da Pide estãose nas tintas para isso,<br />
basta que pises o risco com certas ideias e<br />
já te consideram diferente.<br />
TONI<br />
E o pai acha bem que uma pessoa não<br />
possa ter ideias?<br />
ANTÓNIO<br />
Quero lá saber, filho. O que eu quero é que<br />
tenhas boas notas e estudes.<br />
TONI<br />
Eu estudo e tenho boas notas… e depois já<br />
não me podem impedir de ter ideias… e de<br />
pensar! (sai irritado para o seu quarto)<br />
MARGARIDA<br />
Que mal fiz eu a Deus?<br />
59
CENA <strong>011</strong>/25. INT. – CASA LOPES/CASADE_BANHO – NOITE. DIA 04<br />
Margarida, António e Toni<br />
MARGARIDA está a lavar os dentes. António já está de pijama, sentado na<br />
banheira, vai falando com um ar preocupado.<br />
ANTÓNIO<br />
Se ele tivesse visto os Pides como eu vi,<br />
ontem e hoje… Se ele tivesse visto já não<br />
pensavam em reuniões. Estiveram mais de<br />
uma hora a revistar a tipografia mexeram em<br />
tudo e saíram como se nada fosse.<br />
MARGARIDA<br />
E não te fizeram perguntas? Não te podem<br />
despedir?<br />
ANTÓNIO<br />
Não. O Engenheiro lembrouse e mandou<br />
me à rua fazer um recado falso.<br />
MARGARIDA<br />
Vá lá! Safoute.<br />
ANTÓNIO<br />
Safouse. Ele também tinha problemas por<br />
dar trabalho a um funcionário público.<br />
MARGARIDA<br />
Achas que eles sabem que tiveram aqui os<br />
panfletos?<br />
ANTÓNIO<br />
Não.<br />
MARGARIDA<br />
Tu és muito prestável, António. Tens a<br />
mania de ajudar as pessoas e depois ….<br />
ANTÓNIO<br />
Está descansada que nunca mais faço<br />
favores a ninguém.<br />
MARGARIDA<br />
Mesmo assim… podem despedirte só por<br />
seres amigo de um (baixa o tom de voz)<br />
comunista.<br />
ANTÓNIO<br />
Eu não me dou com ele, Guida, somos só<br />
colegas.<br />
60
MARGARIDA<br />
Se soubesses como eu ando enervada com<br />
estas coisas. És tu com a porcaria dos<br />
panfletos, o Tóni com as reuniões, a minha<br />
mãe com as saídas misteriosas, a Isabel<br />
sempre descontente, o Carlos que não quer<br />
ir à escola… Querem que eu fico maluca!<br />
INSERT AUDIO: batem à porta da casadebanho.<br />
TONI entra, também de pijama<br />
ANTÓNIO<br />
Sim!<br />
TONI (OFF)<br />
Sou eu. Posso entrar?<br />
ANTÓNIO<br />
Entra, filho!<br />
TONI (doce)<br />
Era para vos dizer que não se preocupem<br />
comigo. Para mim o mais importante é<br />
estudar, ser bom aluno e tornarme<br />
advogado… Só que eu não fazia ideia do<br />
que se estava a passar em Portugal.<br />
ANTÓNIO (sério e zangado)<br />
O que é que se está a passar em Portugal,<br />
Toni? Temos saúde e trabalho, o que é que<br />
tu queres mais?<br />
TONI (esclarece)<br />
Nós temos uma televisão, uma máquina de<br />
lavar, não temos fome, e vivemos mais ou<br />
menos bem…<br />
MARGARIDA (interrompendo)<br />
Mas com muito sacrifício.<br />
TONI (convicto)<br />
Até agora eu não sabia nada… mas agora já<br />
sei que as pessoas não são presas só por<br />
matar e por roubar… são presas também<br />
por pensar de maneira diferente, são presas<br />
só por pensar, pai!<br />
ANTÓNIO<br />
Não penses tanto e ninguém te prende.<br />
TONI (sério e direito)<br />
É difícil. Mas estejam descansados que eu<br />
sei o sacrifício que fazem por mim e não vou<br />
desperdiçálo.<br />
61
MARGARIDA e ANTÓNIO (espantados)<br />
Até amanhã, filho.<br />
TONI (virandose para trás)<br />
Ah! Mais um dado importante: conheci uma<br />
rapariga na universidade. Foi ela que me<br />
falou sobre estas coisas… talvez assim<br />
percebam melhor e não se assustem tanto!<br />
Boa noite.<br />
MARGARIDA e ANTÓNIO não lhe respondem, estão boquiabertos. Assim que<br />
TONI sai, MARGARIDA sentase na banheira a choramingar, emocionada.<br />
ANTÓNIO<br />
Porque é que estás a chorar?<br />
MARGARIDA (emocionada)<br />
Porque ele fala tão bem! Já parece um<br />
advogado.<br />
ANTÓNIO põelhe um braço por cima do ombro e os dois ficam sentados.<br />
MARGARIDA choraminga e ANTÓNIO tenta consolála.<br />
FIM DE CENA –<br />
PASSAGEM DE TEMPO<br />
62
CENA <strong>011</strong>/26. INT. – ESCOLA / SALA DE AULA – TARDE. DIA 05<br />
Carlos, Luís, Márinho, Alunos e Professor Rui Braga<br />
O PROFESSOR BRAGA está à secretária a escrever enquanto os ALUNOS<br />
estão a escrever os seus nomes numa folha de papel de linhas.<br />
OS ALUNOS começam a falar baixinho uns com os outros.<br />
Os Alunos escrevem.<br />
CARLOS (baixinho, para LUIS)<br />
Fizeste cábulas?<br />
LUÍS<br />
Não. Pergunta ao Márinho.<br />
PROF. BRAGA<br />
Calados. Quero ouvir as moscas a voar.<br />
CARLOS (para LUÍS)<br />
Achas que as raparigas vêm hoje?<br />
LUÍS<br />
Não sei. Se calhar foram comidas pelos<br />
canibais.<br />
CARLOS<br />
Isso era bom! Mas nós não temos assim<br />
tanta sorte.<br />
PROF. BRAGA<br />
Atenção. Vou ditar as perguntas do<br />
exercício.<br />
CARLOS (para Márinho)<br />
Fizeste cábulas?<br />
MARINHO<br />
Está calado.<br />
PROF. BRAGA<br />
Primeira pergunta. Como se chamava o<br />
chefe dos Lusitanos e onde vivia?<br />
PROF. BRAGA<br />
Enumera as linhas dos caminhos de ferro de<br />
Angola!<br />
CARLOS<br />
Isto hoje está difícil.<br />
63
FIM DE CENA –<br />
PROF. BRAGA<br />
Calate Carlos. (para todos, levantandose)<br />
Quem te avisa teu amigo é. Se apanho<br />
alguém a copiar doulhe mau. Perceberam?<br />
E agora toca a trabalhar. Depois digovos<br />
quais são as perguntas de aritmética.<br />
64
CENA <strong>011</strong>/27. EXT.– CASA LOPES / VARANDA COZINHA – TARDE. DIA 05<br />
Margarida, Hermínia<br />
MARGARIDA está a pendurar roupa na corda. HERMÍNIA aparecelhe de<br />
casaco vestido e com a mala mão.<br />
FIM DE CENA –<br />
HERMÍNIA<br />
Vou sair. Até já.<br />
MARGARIDA<br />
Onde vai, mãe?<br />
HERMÍNIA (misteriosa)<br />
Vou tratar de assuntos.<br />
MARGARIDA<br />
Assuntos? Que assuntos?<br />
HERMÍNIA<br />
Coisas minhas.<br />
MARGARIDA<br />
Mãe…tanta calça que temos para<br />
coser…estamos tão atrasadas.<br />
HERMÍNIA<br />
Eu não demoro, são duas ou três horas no<br />
máximo.<br />
MARGARIDA<br />
E acha pouco?<br />
HERMÍNIA<br />
Não te ponhas com perguntas. Olha que eu<br />
já não sou uma gaiata. (saindo) Até já.<br />
MARGARIDA<br />
Até já.<br />
CENA <strong>011</strong>/28. INT. – ESCOLA / SALA DE AULA – TARDE. DIA 05<br />
65
Carlos, Luís, Marinho, Alunos e Professor Rui Braga<br />
MARINHO tira uma pequena cábula enrolada que tem no sapato. O<br />
PROFESSOR BRAGA está a ler o jornal. CARLOS vê a cábula. Falam<br />
baixinho.<br />
CARLOS<br />
Deixame ver a cábula.<br />
MARINHO<br />
Calate.<br />
LUÍS (para CARLOS)<br />
Como se chamava o chefe dos Lusitanos?<br />
CARLOS<br />
Dom Afonso Henriques.<br />
LUÍS<br />
Esse não foi o primeiro rei de Portugal?<br />
CARLOS<br />
E os portugueses não se chamam Lusitanos,<br />
não? Tu não sabes nada!<br />
PROF. BRAGA (sem tirar os olhos do jornal)<br />
Silêncio!<br />
MARINHO<br />
Podemos começar a fazer aquilo que tu<br />
disseste?<br />
CARLOS<br />
Não! Só quando eles chegarem.<br />
LUÍS<br />
E se o professor nos der umas reguadas?<br />
CARLOS<br />
Aguentamos.<br />
MARINHO<br />
Eu não quero apanhar reguadas.<br />
LUÍS (chamando)<br />
Carlos!... Pergunta ao professor quando é<br />
que elas chegam.<br />
CARLOS (levantandose)<br />
Senhor Professor. Quando é que as<br />
raparigas chegam?<br />
PROF. BRAGA<br />
A qualquer momento.<br />
66
LUÍS (levantandose)<br />
Elas vão usar a nossa casadebanho?<br />
PROF. BRAGA<br />
Calate, rapaz.<br />
MÁRINHO sentase e comenta com CARLOS<br />
CARLOS<br />
Porque é que não as mandam para outra<br />
escola?<br />
MARINHO (levantandose, ansioso)<br />
A qualquer momento quer dizer que pode<br />
ser hoje?<br />
PROF. BRAGA<br />
A qualquer momento quer dizer a qualquer<br />
momento… amanhã, hoje mesmo… dentro<br />
de momentos… pode ser daqui a dois<br />
minutos.<br />
MARINHO<br />
Vamos fazer o que tu disseste! É melhor<br />
começarmos antes de elas entrarem.<br />
CARLOS<br />
Pois é! Assim talvez não cheguem a entrar.<br />
CARLOS põese de pé e faz um assobio previamente combinado. Os<br />
ALUNOS levantamse todos e viramse de costas para o professor.<br />
Ninguém lhe responde.<br />
PROF. BRAGA (levantandose)<br />
O que é isto? O que é que se passa aqui.<br />
PROF. BRAGA<br />
Sentemse, trabalhem…<br />
Nenhum dos alunos se mexe. O PROFESSOR cruza os braços sem saber o<br />
que fazer. CARLOS olha para MÁRINHO e LUÍS que sorriem, vitoriosos.<br />
Durante estas imagens ouvimos o narrador.<br />
NARRADOR (OFF)<br />
Ninguém falhou. Virámonos todos contra a<br />
parede, de costas para o professor e<br />
começámos a nossa greve. Nenhum de nós<br />
pensou nas consequências ou nos castigos,<br />
só pensávamos que talvez assim<br />
percebessem que não estávamos para<br />
brincadeiras e que queríamos ser donos da<br />
67
FIM DE CENA –<br />
nossa sala de aula, da nossa casadebanho<br />
e da nossa escola… sem raparigas nem<br />
bonecas.<br />
68
CENA <strong>011</strong>/29. INT. – TIPOGRAFIA RAMIRES / SALA MÁQUINAS– TARDE. DIA 05<br />
António e Operários<br />
Os OPERÁRIOS estão em actividade quando ANTÓNIO entra. O escritório do<br />
Engenheiro tem a porta fechada e está vazio.<br />
OPERÁRIO 1<br />
Boa Tarde, António.<br />
ANTÓNIO (despindo o casaco)<br />
Boa tarde! Que novidades há hoje?<br />
OPERÁRIO 1<br />
O Gregório foi preso.<br />
ANTÓNIO (vestindo a bata)<br />
Não me digas! Como é que soubeste?<br />
OPERÁRIO 1<br />
Vivo dois prédios acima do dele. Esta noite<br />
foram a casa buscálo e hoje de manhã não<br />
se falava noutra coisa na minha rua.<br />
ANTÓNIO<br />
Que chatice! Coitado!<br />
OPERÁRIO 1<br />
Tu sabias que ele era comunista?<br />
ANTÓNIO<br />
Eu? Como é que eu havia de saber?<br />
OPERÁRIO 1<br />
Se calhar confundiramno com outra pessoa.<br />
Tu podias… (hesita)<br />
ANTÓNIO<br />
O que é que tu estás a magicar?<br />
OPERÁRIO 1<br />
O engenheiro só te ouve a ti, estáse nas<br />
tintas para nós e para a nossa opinião, mas<br />
tem consideração por ti.<br />
ANTÓNIO<br />
E então?<br />
OPERÁRIO 1<br />
Podias interceder pelo Gregório. Podias<br />
convencêlo a guardar o posto do Gregório<br />
para quando o libertarem.<br />
69
Dispersam e trabalham. ANTÓNIO está pensativo.<br />
FIM DE CENA –<br />
PASSAGEM DE TEMPO<br />
ANTÓNIO<br />
Já pedi ontem…Tu não viste como ele ficou<br />
uma fera? Ia tendo um ataque! Nem penses<br />
nisso.<br />
OPERÁRIO 1<br />
Ele a nós não nos ouve… e o Gregório tem<br />
família, tem filhos! Depois disto não arranja<br />
emprego em lado nenhum.<br />
ANTÓNIO (pensativo)<br />
Lá isso é verdade! (fica pensativo por uns<br />
momentos e os colegas a observálo à<br />
espera de resposta. De repente acorda) Vá!<br />
Toca a trabalhar que estamos atrasados.<br />
70
CENA <strong>011</strong>/30. INT. – CASA LOPES / QUARTO ISABEL – NOITE. DIA 05<br />
Isabel<br />
ISABEL está sentada em cima da cama e à sua frente pôs o pickup. Está a<br />
ouvir um disco do curso Linguaphone de Inglês. Tem também o livro de<br />
exercícios aberto e um caderno e vai repetindo o que ouve.<br />
FIM DE CENA –<br />
DISCO (OFF)<br />
Please repeat the following sentences: My<br />
mother is blonde.<br />
ISABEL<br />
My mother is blonde.<br />
DISCO (OFF)<br />
The pencil is yellow.<br />
ISABEL<br />
The pencil is yellow.<br />
DISCO (OFF)<br />
My tailor is rich.<br />
ISABEL<br />
My tailor is rich.<br />
71
CENA <strong>011</strong>/31. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES – NOITE. DIA 05<br />
Carlos, Toni<br />
INSERT AUDIO: ouvese o disco que ISABEL está a ouvir no quarto “The rose<br />
is pink” e a voz de Isabel “The rose is pink”<br />
CARLOS está em cima da cama a ler um livro de banda desenhada. TONI está<br />
À secretária a estudar e “bufa”, farto do som que vem do quarto de ISABEL.<br />
Abre a porta do quarto e grita.<br />
TONI volta para a secretária.<br />
TONI<br />
Isabel, baixa essa porcaria que eu tenho de<br />
estudar.<br />
ISABEL (OFF)<br />
Tu não és o único que estuda nesta casa.<br />
Vou pôr mais baixo.<br />
CARLOS<br />
Alguma vez fizeste uma greve?<br />
TONI<br />
Também tu, anãozinho?!<br />
CARLOS<br />
A sério. Alguma vez fizeste uma greve para<br />
conseguires o que querias?<br />
TONI<br />
Não! Nunca fiz greve. Porquê?<br />
CARLOS<br />
Eu e os meus colegas da aula estamos a<br />
fazer greve. Não estudamos nem<br />
respondemos às perguntas... passamos o<br />
dia de costas para o professor e não<br />
fazemos nada.<br />
TONI (achando graça)<br />
Porquê? O que é que vos deu?<br />
CARLOS<br />
Ele diz que vão pôr duas raparigas na nossa<br />
aula e como nós não queremos começámos<br />
a fazer greve.<br />
TONI<br />
O pai sabe disso?<br />
CARLOS<br />
Não. Eu não lhe contei.<br />
72
TONI sorri e retoma o estudo.<br />
FIM DE CENA –<br />
TONI com vontade de rir mas preocupado)<br />
Tem cuidado, Carlos. Vocês vão apanhar<br />
um castigo! Até vos podem suspender ou<br />
expulsar da escola.<br />
CARLOS (preocupado)<br />
O quê?<br />
TONI<br />
É o mais provável.<br />
CARLOS<br />
Não faz mal. Prefiro não ir à escola do que<br />
ter duas parvas na minha aula.<br />
TONI<br />
Tem cuidado, Carlos. Em Portugal as greves<br />
têm consequências graves. O que vos vale é<br />
que vocês são crianças e o professor deve<br />
pensar que isso é uma brincadeira.<br />
CARLOS<br />
Eu quando for grande quero ser greveiro.<br />
TONI (sorrindo, corrigeo)<br />
Grevista.<br />
CARLOS<br />
Grevista! É isso que eu quero ser. Fico<br />
quieto e não faço nada.<br />
73
CENA <strong>011</strong>/32. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM – NOITE. DIA 05<br />
Margarida, António, Hermínia<br />
MARGARIDA e ANTÓNIO estão sentados no sofá. António lê o jornal e<br />
MARGARIDA remenda meias de homem.<br />
INSERT VÍDEO: Começa o fecho da emissão (hino e bandeira)<br />
MARGARIDA toca na perna de ANTÓNIO para lhe chamar a atenção.<br />
ANTÓNIO levantase para desligar a televisão.<br />
MARGARIDA<br />
António. Olha, já acabou.<br />
ANTÓNIO<br />
Não percebo nada do que se passa, Guida.<br />
MARGARIDA<br />
Nem eu.<br />
ANTÓNIO<br />
Eu pensava que começávamos agora a viver<br />
melhor. Comprámos a televisão, uma<br />
máquina de costura, a máquina de lavar… e<br />
afinal… Isto está tudo negro, Guida, cada<br />
vez mais negro.<br />
MARGARIDA<br />
Achas que este Marcelo Caetano é pior que<br />
o Salazar?<br />
ANTÓNIO<br />
Não sei. Falase muito em mudança, em<br />
dias melhores… mas para te dizer a verdade<br />
não acredito muito nisso.<br />
MARGARIDA<br />
Logo agora que o Toni vai para a<br />
universidade é que começaram os<br />
problemas com os estudantes.<br />
ANTÓNIO<br />
Sempre foi assim… a gente é que não se<br />
dava conta... Agora toda a gente se<br />
manifesta, toda a gente contesta… até nos<br />
jogos Olímpicos!<br />
MARGARIDA<br />
Eu sei.<br />
74
HERMÍNIA (entrando de robe e com um<br />
copo de leite na mão)<br />
Estou com insónias e tenho de beber um<br />
copo de leite.<br />
ANTÓNIO<br />
É o melhor que há para as insónias, então<br />
com uma gotinha de aguardente.<br />
HERMÍNIA (para MARGARIDA)<br />
Queres que te diga onde tenho andado?<br />
MARGARIDA (sorrindo)<br />
Nas suas saídas misteriosas? Se quiser<br />
contar, eu quero ouvir. (sorri para ANTÓNIO<br />
que também lhe sorri)<br />
HERMÍNIA<br />
Ontem fui levantar metade das minhas<br />
economias e hoje comprei uma coisa.<br />
MARGARIDA (entusiasmada)<br />
Já sei, um Ferro de Alfaiate?<br />
HERMÍNIA<br />
Também nos dava jeito. (tira um papel do<br />
bolso e entregao a ANTÓNIO) Toma, foi<br />
isto que eu comprei.<br />
ANTÓNIO (espantado)<br />
Um talhão?<br />
HERMÍNIA (irónica e satisfeita)<br />
É a minha quinta. Comprei um terreno no<br />
cemitério da nossa terra para não vos dar<br />
despesas quando me for deste mundo.<br />
Tratei de tudo com o senhor Vilar que tem cá<br />
estado em Lisboa…<br />
ANTÓNIO (desolado)<br />
Um talhão!...<br />
HERMÍNIA<br />
Assim um dia podemos ficar todos juntos.<br />
MARGARIDA<br />
Ai mãe! Que coisa tão triste!<br />
HERMÍNIA<br />
Alguém tem de pensar no futuro…<br />
MARGARIDA (irritada)<br />
Que disparate! Gastar dinheiro numa coisa<br />
75
que não nos serve para nada.<br />
HERMÍNIA<br />
Tu lá sabes para onde queres ir um dia…<br />
mas talvez dê jeito, é menos um problema<br />
que tu ficas quando chegar a minha hora.<br />
ANTÓNIO<br />
Chegou a minha hora. Boa noite. (sai da<br />
sala com ar chateado)<br />
MARGARIDA deixase cair no sofá e respira fundo para não se enervar.<br />
FIM DE CENA –<br />
PASSAGEM DE TEMPO<br />
76
CENA <strong>011</strong>/33. INT. – ESCOLA / SALA DE AULA – TARDE. DIA 06<br />
Carlos, Luís, Marinho, Alunos, Professor Rui Braga, Director Pedro<br />
e Padre Victor<br />
Os ALUNOS estão todos virados de costas para o quadro. O Professor está de<br />
pé, encostado à secretária e “discursa”.<br />
PROF. BRAGA (escrevendo no quadro)<br />
Já percebi que vocês estão armados em<br />
parvos… e deve ser por causa das<br />
raparigas. Eu até percebo que vocês<br />
estejam aborrecidos mas assim não<br />
conseguem nada… Ou melhor, já<br />
conseguiram ter “mau menos” no exercício<br />
de ontem e por este andar vão conseguir<br />
reprovar.<br />
LUÍS olha para CARLOS e faz uma cara de desagrado. CARLOS encolhe os<br />
ombros.<br />
OS ALUNOS não reagem.<br />
MÁRINHO faz uma expressão de desagrado.<br />
INSERT AUDIO: batem à porta.<br />
PROF. BRAGA<br />
O senhor director já sabe que vocês estão<br />
virados contra a parede desde ontem à tarde<br />
e não me admira nada que ele chame os<br />
vossos pais e que vos expulse da escola… a<br />
todos.<br />
PROF. BRAGA<br />
Eu estou a tentar levar isto a bem… mas<br />
não sei por quanto tempo… não tarda nada<br />
perco a cabeça e começo à reguada, vai<br />
tudo a eito.<br />
PROF. BRAGA<br />
Entre.<br />
DIRECTOR PEDRO e PADRE VICTOR entram.<br />
PADRE VICTOR / DIRECTOR PEDRO<br />
Boa Tarde.<br />
PROF. BRAGA<br />
Boa tarde.<br />
DIR. PEDRO<br />
Quero Apresentarvos o senhor Padre<br />
Victor, o novo Padre da Paróquia.<br />
77
PADRE VICTOR sorri sem dizer nada.<br />
PROF. BRAGA (estendendolhe a mão)<br />
Muito prazer, senhor padre. Então, já soube<br />
do que se passa aqui?<br />
DIR. PEDRO<br />
Foi por isso que interrompi a sua aula. O<br />
senhor Padre ajudoume a resolver o<br />
problema…<br />
PROF. BRAGA<br />
Se conseguir pôr juízo nestas cabeças eu<br />
até lhe agradeço.<br />
PADRE VICTOR<br />
As meninas já não vêm para esta escola.<br />
OS ALUNOS fazem expressões satisfeitas mas não se viram.<br />
PROF. BRAGA<br />
Ah, sim?<br />
PADRE VICTOR<br />
Fui visitar a escola feminina e a directora<br />
garantiume que já têm condições para<br />
recebêlas.<br />
PROF. BRAGA<br />
É melhor assim… esta turma não tem o<br />
cavalheirismo necessário para receber duas<br />
raparigas.<br />
CARLOS assobia e TODOS se voltam para a frente, retomando os seus<br />
lugares. O PROFESSOR BRAGA começa então a darlhes um raspanete mas<br />
não ouvimos nada do que diz o professor porque passamos a ouvir o narrador.<br />
NARRADOR (OFF)<br />
Esta foi a primeira batalha que ganhei. Foi a<br />
primeira vez que compreendi o poder da<br />
contestação organizada. Claro que mais<br />
tarde nos envergonhámos por ter lutado a<br />
favor da discriminação sexual mas naquele<br />
dia descobrimos o que era a greve e<br />
convencemonos de que era a melhor forma<br />
de luta. Que vitória!<br />
A cena acaba com a exclamação do narrador sobre a expressão vitoriosa de<br />
CARLOS e dos seus COLEGAS.<br />
78
FIM DE CENA –<br />
PASSAGEM DE TEMPO<br />
79
CENA <strong>011</strong>/34. INT – TIPOGRAFIA RAMIRES / ESCRITÓRIO – NOITE. DIA 06<br />
Engenheiro Ramires e António<br />
É noite e a tipografia está às escuras. Há apenas uma ténue luz ligada na zona<br />
da máquina e um candeeiro na secretária do ENGENHEIRO RAMIRES que<br />
está à secretária a escrever. ANTÓNIO entreabre a porta.<br />
ANTÓNIO<br />
Vou andando. Até amanhã.<br />
ENG. RAMIRES<br />
Espera, António. Queria falar contigo.<br />
ANTÓNIO (entrado)<br />
Diga.<br />
ENG. RAMIRES (oferecendolhe um cigarro)<br />
Sentate, fuma um cigarro comigo.<br />
ANTÓNIO (aceitando)<br />
Obrigado.<br />
ENG. RAMIRES<br />
O que é que tu achas deste assunto do<br />
Gregório?<br />
ANTÓNIO<br />
Não sei, quem é que podia imaginar que o<br />
Gregório estava metido em políticas?... Mas<br />
se calhar não esteja, pode ter sido confusão<br />
e soltamno.<br />
ENG. RAMIRES<br />
Não contes com isso…Olha que estes tipos<br />
nunca se enganam, se eles o prenderam é<br />
porque sabem perfeitamente o que ele é.<br />
ANTÓNIO<br />
Não sei!<br />
ENG. RAMIRES<br />
Digote eu!<br />
ANTÓNIO dá uma profunda passa no cigarro.<br />
ENG. RAMIRES<br />
Achas que há cá mais alguém dessa estirpe<br />
nesta firma?<br />
ANTÓNIO (decidido)<br />
Não! Aqui ninguém se mete em problemas.<br />
80
ANTÓNIO está sem palavras.<br />
O ENGENHEIRO nem o deixa falar.<br />
ENG. RAMIRES<br />
Aposto que era isso que pensavas do<br />
Gregório e afinal olha o que aconteceu.<br />
ANTÓNIO (mente)<br />
Eu tenho para mim que o Gregório não fez<br />
nada.<br />
ENG. RAMIRES<br />
Estás enganado… mas pronto, és boa<br />
pessoa e acreditas que são todos<br />
inocentes… ingenuidade tua!<br />
ANTÓNIO<br />
Eu não percebo nada de política, senhor<br />
engenheiro.<br />
ENG. RAMIRES<br />
Isso eu já percebi. Bom, quero fazerte uma<br />
proposta. Estou muito preocupado com o<br />
Gregório e não queria voltar a ser apanhado<br />
de surpresa com gente dessa entre nós.<br />
ANTÓNIO<br />
Isso é impossível, os homens só querem<br />
trabalhar para ganhar o seu dinheiro e<br />
sustentar as famílias.<br />
ENG. RAMIRES<br />
Nunca se sabe!… Mas tu que estás sempre<br />
com eles podias começar a tentar perceber<br />
o que pensam destas coisas.<br />
ANTÓNIO (contendo um sentimento de<br />
revolta)<br />
Onde é que o senhor engenheiro quer<br />
chegar?<br />
ENG. RAMIRES<br />
Vou ser muito franco contigo: gostava que<br />
ficasses atento, que percebesses se há<br />
algum comentário suspeito.<br />
ENG. RAMIRES (aliciando)<br />
Eu pagote para isso, claro… doute cem<br />
escudos por mês para me fazeres este<br />
favor. Este mês já te ponho mais cem paus<br />
no cheque.<br />
81
ANTÓNIO (atrapalhado)<br />
Não sei que diga.<br />
ENG. RAMIRES (sorrindo)<br />
Não digas nada,<br />
ANTÓNIO (atrapalhado)<br />
Obrigado, senhor Engenheiro.<br />
ENG. RAMIRES (simpático)<br />
Agora vai para casa que já devem estar à<br />
tua espera.<br />
ANTÓNIO levantase devagar, muito pensativo e cabisbaixo. Sai e fecha a<br />
porta. O ENGENHEIRO fica a pensar mas pouco depois, ANTÓNIO volta a<br />
bater à porta.<br />
ENG. RAMIRES<br />
Esquecestete de alguma coisa?<br />
ANTÓNIO<br />
Não. Quero dizer o que penso do que me<br />
pediu à bocado.<br />
O ENGENHEIRO levantase, espantado e fica de frente para ANTÓNIO. Os<br />
dois homens falam cara a cara, enfrentandose.<br />
ANTÓNIO<br />
Eu não me meto em política nem percebo<br />
nada disso mas há coisas que não estão<br />
bem.<br />
ENG. RAMIRES (seco)<br />
O quê, por exemplo?<br />
ANTÓNIO (humilde)<br />
O que está a acontecer! Não me parece<br />
certo que as pessoas sejam presas só por<br />
pensarem nem me parece certo que se<br />
chegue ao ponto de pedir a um homem<br />
honesto que se ponha a espiar e a<br />
denunciar os colegas de trabalho.<br />
ENG. RAMIRES (provocador)<br />
Também és comunista, António?<br />
ANTÓNIO<br />
Já lhe disse que nem sei bem o que isso é.<br />
O que eu sei é que denunciar um colega a<br />
troco de um aumento está certo, nem é<br />
honesto.<br />
82
ENG. RAMIRES (arrogante)<br />
Estou de boca aberta com tantos<br />
escrúpulos.<br />
ANTÓNIO (calmo e convicto)<br />
Não pense que não estou preocupado por<br />
lhe estar a dizer isto: se me despedir, não<br />
sei como vou fazer para alimentar os meus<br />
filhos. Mas isto não é política, senhor<br />
engenheiro, são princípios… (conclusivo e<br />
franco) Eu não quero pensar mal de mim<br />
próprio amanhã de manhã quando estiver a<br />
fazer a barba.<br />
ENG. RAMIRES (sem arrogância)<br />
É tudo o que tens para me dizer?<br />
ANTÓNIO<br />
É! E se ainda não estou despedido, amanhã<br />
cá estarei como de costume.<br />
ENG. RAMIRES (embatucado)<br />
Adeus, António.<br />
ANTÓNIO sai. O ENGENHEIRO fica pensativo e, para si próprio, faz uma<br />
expressão que parece ser de apreço.<br />
FIM DE CENA –<br />
83
CENA <strong>011</strong>/35. EXT. – CHROMAKEY / RUA – NOITE. DIA 06<br />
Toni e Helena<br />
HELENA conduz uma “acelera” com TONI à pendura pelas ruas de Lisboa.<br />
NOTA: seria interessante fazer aqui um EFEITO com IMAGENS DE ARQUIVO<br />
onde os carros da época convivem com a imagem deles.<br />
FIM DE CENA –<br />
84
CENA <strong>011</strong>/36. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM – NOITE. DIA 06<br />
António, Margarida, Isabel, Carlos, Hermínia e Toni<br />
Estão todos a jantar menos Toni que ainda não chegou. A televisão está ligada<br />
e TODOS olham entre uma garfada e outra.<br />
INSERT VIDEO: Programa Televisão<br />
TODOS riem.<br />
CARLOS<br />
Avó! O nosso cemitério é bonito?<br />
MARGARIDA<br />
Carlitos, nós não temos nenhum cemitério.<br />
CARLOS<br />
A avó não comprou um?<br />
HERMÍNIA (sorrindo)<br />
Comprei um terreno, filho! Para que é que<br />
eu queria um cemitério inteiro?<br />
CARLOS<br />
E o terreno é bonito?<br />
HERMÍNIA<br />
É! E quando tiver umas flores ainda fica<br />
mais bonito. Podemos lá ir quando for a<br />
matança.<br />
CARLOS (entusiasmado)<br />
Eu quero!<br />
MARGARIDA<br />
Parem com esta conversa que me faz<br />
impressão.<br />
HERMÍNIA<br />
Parece que só o Carlitos é que me<br />
compreende. Vamos os dois, querido.<br />
ANTÓNIO<br />
Onde é que está o Toni? Não me digas que<br />
está metido em reuniões.<br />
MARGARIDA<br />
Não digas isso.<br />
INSERT AUDIO: som da porta da rua a abrir e a fechar.<br />
TONI entra.<br />
85
MARGARIDA<br />
Olha, aí está ele.<br />
CARLOS e ISABEL fazem um ar malandro.<br />
TONI não nega e sorri.<br />
INSERT AUDIO: Toque do telefone.<br />
CARLOS levantase e atende.<br />
TONI (sentandose com um ar feliz)<br />
Boa noite ! Olá!<br />
ANTÓNIO (raspanete)<br />
Toni, cá em casa jantamos às oito.<br />
TONI (sempre com um sorriso de felicidade)<br />
Eu sei. Desculpem, estive com uma amiga<br />
minha e não pude chegar mais cedo.<br />
MARGARIDA (sorrindo com malícia)<br />
Ouviste, António… esteve com uma amiga.<br />
ANTÓNIO<br />
E o que é que estiveram a fazer até tão<br />
tarde?<br />
TONI (ligeiramente envergonhado)<br />
A ouvir música, a ler poesia.<br />
HERMÍNIA (trocista e insinuando namorico)<br />
Quando os jovens começam a falar em<br />
poesia está o caldo entornado.<br />
CARLOS<br />
Estou. (…) Sim! (…) Vou chamar. (…) Pai! É<br />
o senhor engenheiro Ramires, quer falar<br />
contigo (...) Só um segundo (…) Vou<br />
passar(…)<br />
ANTÓNIO faz um ar sério e lentamente levantase. Pega no telefone e<br />
CARLOS volta a sentarse.<br />
CORTA PARA –<br />
ANTÓNIO<br />
Estou. (…) Boa noite senhor Engenheiro,<br />
diga lá.<br />
86
CENA <strong>011</strong>/37. INT – TIPOGRAFIA RAMIRES / ESCRITÓRIO – NOITE. DIA 06<br />
Eng. Ramires<br />
CORTA PARA –<br />
ENG. RAMIRES (no telefone)<br />
Muito bem, António… Devo estar a ficar<br />
velho mas tirote o chapéu.<br />
87
CENA <strong>011</strong>/36 A. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM – NOITE. DIA 06<br />
António, Margarida, Isabel, Carlos, Hermínia e Toni<br />
CORTA PARA –<br />
ANTÓNIO<br />
Não estou a perceber.<br />
88
CENA <strong>011</strong>/37A INT–TIPOGRAFIA RAMIRES / ESCRITÓRIO – NOITE. DIA 06<br />
Eng. Ramires<br />
CORTA PARA –<br />
ENG. RAMIRES<br />
Não quero que penses que passei a ser<br />
brando com os meus funcionários mas<br />
também não sou nenhuma besta.<br />
89
CENA <strong>011</strong>/36 B. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM – NOITE. DIA 06<br />
António, Margarida, Isabel, Carlos, Hermínia e Toni<br />
CORTA PARA –<br />
ANTÓNIO<br />
Eu sei, senhor engenheiro.<br />
90
CENA <strong>011</strong>/37B INT–TIPOGRAFIA RAMIRES / ESCRITÓRIO – NOITE. DIA 06<br />
Eng. Ramires<br />
CORTA PARA –<br />
ENG. RAMIRES<br />
Gosto de pessoas com princípios… não<br />
estás despedido… e não vou insistir para<br />
que faças aquele serviço… tu sabes do que<br />
estou a falar.<br />
91
CENA <strong>011</strong>/36 C. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM – NOITE. DIA 06<br />
António, Margarida, Isabel, Carlos, Hermínia e Toni<br />
CORTA PARA –<br />
ANTÓNIO<br />
Obrigado, senhor engenheiro.<br />
92
CENA <strong>011</strong>/37C INT–TIPOGRAFIA RAMIRES / ESCRITÓRIO – NOITE. DIA 06<br />
Eng. Ramires<br />
CORTA PARA –<br />
ENG. RAMIRES<br />
Mas se me arranjarem algum problema ou<br />
se eu perceber que há mais revolucionários<br />
na tipografia, vai tudo para a rua.<br />
93
CENA <strong>011</strong>/36 D. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM – NOITE. DIA 06<br />
António, Margarida, Isabel, Carlos, Hermínia e Toni<br />
CORTA PARA –<br />
ANTÓNIO<br />
Fique descansado que não vai haver<br />
complicações.<br />
94
CENA <strong>011</strong>/37D INT–TIPOGRAFIA RAMIRES / ESCRITÓRIO – NOITE. DIA 06<br />
Eng. Ramires<br />
CORTA PARA –<br />
ENG. RAMIRES<br />
É tudo! Conto contigo… Para trabalhar,<br />
claro, como sempre. Boa noite.<br />
95
CENA <strong>011</strong>/36 E. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM – NOITE. DIA 06<br />
António, Margarida, Isabel, Carlos, Hermínia e Toni<br />
ANTÓNIO<br />
Boa noite. (desliga e sentase)<br />
MARGARIDA<br />
O que é que queria o engenheiro?<br />
ANTÓNIO (pensativo e satisfeito)<br />
Nada! Diz que está a ficar velho. (respira<br />
fundo e fala para TONI) Tens razão, filho.<br />
TONI<br />
Em quê?<br />
ANTÓNIO<br />
Não sei bem, Mas… Há coisas que estão a<br />
mudar, eu sinto que há coisas que estão a<br />
mudar.<br />
Ao dizer isto vemos um grande plano da cara de ANTÓNIO que passa a preto<br />
e branco e COLA COM AS IMAGENS DA CENA SEGUINTE<br />
FUNDE C/<br />
96
CENA <strong>011</strong> / 38. RUA LISBOA / RUA – FIMDETARDE – DIA 00<br />
António, (+Homem e Pides da cena 12)<br />
INSERT AUDIO: começa a ouvirse baixo a canção “Vejam bem”, Do Álbum<br />
Cantares do Andarilho de Zeca Afonso.<br />
NOTA: Montar com efeitos a Preto e Branco e câmara lenta as imagens da<br />
cena 12, às quais pode acrescentarse algum dramatismo na expressão de<br />
António ou na própria situação<br />
ANTÓNIO está a reviver a perseguição a que assistiu (cena 12): em câmara<br />
lenta e a preto e branco vemos claramente o olhar angustiado do homem que<br />
pede desculpa e que retoma a corrida e a brutalidade dos PIDES que quase<br />
derrubam ANTÓNIO. ANTÓNIO observa com os olhos muito abertos e um ar<br />
muito espantado e assustado. Durante estas imagens ouvese o narrador.<br />
NARRADOR (OFF)<br />
Em 1968, o meu pai teve pela primeira vez<br />
contacto com uma realidade que<br />
desconhecia. Como muitos portugueses<br />
estava habituado a virar a cara para o outro<br />
lado... mas nesse Outono a verdade tocou<br />
lhe de perto e verificou que alguma coisa se<br />
estava a passar no nosso país e que a<br />
mudança vinha a caminho… No fundo ele<br />
percebeu que se travava uma batalha entre<br />
“ignorar” e “agir” e que o que estava em<br />
causa eram os direitos e os princípios do<br />
cidadão comum. Em 1968 o meu pai abriu<br />
os olhos e nunca mais os fechou.<br />
A cena deve acabar com a expressão espantada de ANTÓNIO.<br />
FUNDE C/<br />
97
CENA <strong>011</strong>/99. IMAGENS DE ARQUIVO / FICHA TÉCNICA<br />
VÍDEO: com a ficha técnica, montagem muito rápida de IMAGENS DE<br />
ARQUIVO A PRETO E BRANCO numa homenagem a resistentes e<br />
opositores ao regime: Tumultos em Portugal nos anos 60, Humberto<br />
Delgado, grevistas, Uma fotografia de Zeca Afonso, manifestações, fotografia<br />
de Adriano Correia de Oliveira, Escultor Dias Coelho Estudantes na rua ou nos<br />
cafés, Francisco Fanhais, estudantes desafiando a polícia, Palma Inácio,<br />
Carlos Paredes,<br />
AUDIO: Sobre todas estas imagens e a ficha técnica deve ouvirse apenas, e<br />
agora mais alto, a canção Vejam bem, Do Álbum Cantares do Andarilho de<br />
Zeca Afonso<br />
FIM DO EPISÓDIO<br />
98