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São Geraldo

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BAIRRO DE SÃO GERALDO<br />

UMA HISTÓRIA EM DUAS CONJUGAÇÕES:<br />

PASSADO E PRESENTE


PREFEITO MUNICIPAL DE MANAUS<br />

Amazonino Mendes<br />

VICE-PREFEITO MUNICIPAL DE MANAUS<br />

Carlos Souza<br />

DIRETORA-PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE CULTURA E ARTES<br />

Lívia Mendes<br />

VICE-DIRETOR-PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE CULTURA E ARTES<br />

Renato Seyssel<br />

DIRETOR DE LOGÍSTICA E FINANÇAS DA FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE CULTURA E ARTES<br />

Carlos Augusto Pereira da Silva<br />

PRESIDENTE DO CONSELHO MUNICIPAL DE POLÍTICA CULTURAL<br />

Thiago de Mello<br />

SECRETÁRIO-EXECUTIVO<br />

Jaime Pereira<br />

Av. André Araújo, n.º 2767<br />

Aleixo<br />

CEP: 69060-000 – Manaus-AM<br />

Tel.: 92-3631-8560<br />

E-mail: concultura@pmm.am.gov.br<br />

Avenida André Araújo, 2767 – Aleixo<br />

CEP: 69060-000 – Manaus-AM<br />

Telefone: 92-3215-3474/3470<br />

Site: www.manaus.am.gov.br<br />

E-mail: gabdiretoria.manauscult@pmm.am.gov.br


Virgínia Allan<br />

BAIRRO DE SÃO GERALDO<br />

UMA HISTÓRIA EM DUAS CONJUGAÇÕES:<br />

PASSADO E PRESENTE


Copyright © 2010 Virgínia Allan<br />

COORDENAÇÃO EDITORIAL<br />

Carlos Augusto Pereira da Silva<br />

PROJETO GRÁFICO<br />

Marcos Sena<br />

(marcos_tito_sena@ig.com.br)<br />

CAPA<br />

Marcicley Reggo<br />

(Kintaw Design)<br />

REVISÃO<br />

Márcio Pinheiro dos Santos<br />

FICHA CATALOGRÁFICA<br />

Ycaro Verçosa dos Santos – CRB-11 287<br />

A418b Allan, Virgínia.<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong> – uma história em duas<br />

conjugações: passado e presente. / Virgínia Allan. Manaus:<br />

Edições Muiraquitã, 2010.<br />

52 p.<br />

Série: Coleção Prêmios dos Bairros.<br />

ISBN 978-85-99209-27-1<br />

1. Bairros de Manaus 2. Comunidades urbanas I. Título<br />

II. Série<br />

CDD 307.38113<br />

22. ed.


Era assim um bairro imperfeito, meio sem jeito...<br />

Lembro-me bem de seus moradores e suas<br />

conversas de calçadas, em frente das casas, com<br />

flores nas janelas e portas abertas... escancaradas...“Ciranda,<br />

ó ciranda”... foram todos<br />

cirandar? “Roda, roda, roda” criança mas, “quem<br />

te ensinou a nadar?...” No igarapé de águas rasas,<br />

que passava lá embaixo, acompanhando a cantiga<br />

do peixe miúdo, que nadava muito seguro, nas<br />

mãos em forma de concha do moleque festeiro,<br />

eheeê... caboclinho maroto... perdeu-se por este<br />

mundo?<br />

Virginia Allan


SUMÁRIO<br />

Apresentação 9<br />

BAIRRO DE SÃO GERALDO – UMA HISTÓRIA<br />

EM DUAS CONJUGAÇÕES: PASSADO E<br />

PRESENTE<br />

Introdução 11<br />

Localização 12<br />

Origem do nome do bairro 14<br />

Festas religiosas e populares em geral 16<br />

O Carnaval 19<br />

Curiosidades Relativas ao bairro, episódios<br />

marcantes, folclore e tipos populares 21<br />

O acendedor de lampiões 24<br />

Ciganos 25<br />

Kamélia 26<br />

Boi-Bumbá Mina de Ouro 28<br />

Dança do Papagaio 29<br />

Marcílio e Marçal 29<br />

Um point de atração e diversão 30<br />

Rezas e muita bênção meu senhor para agüentar o<br />

tranco, curar quebranto, espinhela caída e mau de<br />

olho... 31<br />

Os canos de água da rua Pico das Águas 32<br />

Constantino Nery – uma avenida cheia de vida 34<br />

Famílias S e M 35<br />

Um Orfeu negro amazonense 36


Um prefeito imperfeito 37<br />

Bartolomeu e Bertola 40<br />

Carmem Doida 40<br />

A fazedora de anjos 43<br />

Paulo Preto 44<br />

Lendas do folclore comuns à vida cotidiana<br />

do bairro 44<br />

Quibungo, Kibungo, Chibungo ou O Homem<br />

do Saco 46<br />

A mulher que virava porca 47<br />

Conclusão 48<br />

Bibliografia 50


Apresentação<br />

MINHAS PRIMEIRAS PALAVRAS manifestam a alegria<br />

que nos invade por apoiar cada vez mais as iniciativas de<br />

produção literária, por meio dos Prêmios Mário Ypiranga<br />

Monteiro, criados com a finalidade de estimular os<br />

artesãos da pesquisa e da palavra, assim como estreitar o<br />

relacionamento dos habitantes com seus marcos referenciais<br />

- os bairros.<br />

Com efeito, estaremos movimentando a curiosidade<br />

em torno de uma coleção histórica de nossa cidade, proporcionando<br />

o aparecimento de novos autores na área<br />

literária e, em consequência, seguindo com o programa<br />

de formação de novos leitores.<br />

Acredito ser essa política a principal ferramenta de<br />

qualquer gestor público, de combate ao analfabetismo, à<br />

exclusão social e de incentivo à melhoria da qualidade da<br />

formação em todos os níveis, sem perder de vista a possibilidade<br />

de geração de emprego e renda no mercado<br />

editorial e gráfico de Manaus, assim como na rede de<br />

livrarias da cidade e na comunidade de escritores de literatura<br />

geral e de livros didáticos para todas as idades e<br />

para todas as áreas.<br />

Amazonino Mendes<br />

Prefeito de Manaus<br />

~ 9 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


Introdução<br />

SOB O MANTO PROTETOR, E REVELADOR, da memória<br />

iniciei a história do bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>, uma<br />

historia que enfim é também a minha historia.<br />

Delírios à parte; procurei ressaltar aquilo que deu<br />

vida e motivou o bairro, levando-o a crescer e projetarse<br />

como um lugar de tradições ocultas e esquecidas<br />

quando no florescer da comunidade, aqui reinavam os<br />

santos e orixás que desciam a se manifestar ao<br />

chamado dos tambores que aconteciam durante as<br />

festas do batuque.<br />

Num tempo de mata fechada, sob o assobio do<br />

vento, em que abundavam as árvores e palmeiras<br />

gigantes e nascentes de rio, o brinquedo “predileto” da<br />

curuminzada, (embora não faltassem cantigas de roda,<br />

roda-pião, peteca, bolinhas de gude, manja-esconde,<br />

pelada e outros folguedos populares) era fugir mundo<br />

afora, mundo este sabido e conhecido como a palma da<br />

mão, cruzar não só o bairro, mas quase Manaus inteira,<br />

num desbravar cotidiano que, talvez, só fosse comum<br />

aos primeiros bandeirantes.<br />

Não saí à cata de aventura, a condição feminina<br />

assim não o permitia, mas, meus amigos, vizinhos e<br />

irmãos, pularam a cerca, entraram e saíram de becos,<br />

subiram e desceram ladeiras, tomaram banho e pescaram<br />

nos rios e igarapés e roubaram frutos dos quintais<br />

alheios... Apossei-me de suas memórias e misturei-as as<br />

minhas, e numa espécie de alquimia espiritual, tentei<br />

trazer a luz este tempo de “perigo” feliz, soprando para<br />

~ 11 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


longe a inútil poeira que se deita preguiçosamente sobre<br />

as lembranças adormecidas, chamada esquecimento.<br />

Localização<br />

ENTRE AS AVENIDAS CONSTANTINO NERY (João<br />

Coelho) e a Djalma Batista (Cláudio Mesquita) Zona<br />

Centro-Sul, encontra-se o bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>, outrora<br />

conhecido como bairro dos Bilhares graças a um<br />

estabelecimento, pertencente ao barão Floresta Barros,<br />

que tinha no jogo de bilhar a sua maior atração.<br />

Principalmente aos domingos e feriados era grande a<br />

concentração dos aficionados deste jogo. Porém, nem só<br />

de jogo de bilhar vivia a casa, lá também se explorava a<br />

venda de vinhos e diversas outras bebidas alcoólicas. Isto<br />

se deu na primeira metade do século XX, idos de 1914,<br />

quando a cidade de Manaus ainda seguia morosamente<br />

no compasso do bonde e calejava os pés nas poeirentas<br />

estradas de piçarra. Mas, pelos estudos do respeitável<br />

professor Mário Ypiranga Monteiro, as famílias dos<br />

notáveis possuíam tilburis, 1 berlindas, 2 landoletes, 3 charretes, 4<br />

seges 5 de uma parelha e os automóveis Ford.<br />

1 Tilburi: s.m. carro de duas rodas e dois assentos, com capota, puxado por um só<br />

animal.<br />

2 Berlinda: s.f. carruagem pequena com vidraças laterais.<br />

3 Landoletess: s.m. (do francês lando) variante de um carro de luxo – carruagem<br />

de quatro rodas com dupla capota que se erguia e abaixava.<br />

4 Charretes: s.f. veículos de duas rodas, para duas ou três pessoas puxada por um<br />

cavalo.<br />

5 Seges: s.f. (do francês siège, ‘assento’) coche com duas rodas e um só assento,<br />

fechado com cortinas na parte dianteira. 2. Qualquer carruagem.<br />

~ 12 ~<br />

Virgínia Allan


O acesso ao bairro dos Bilhares, portanto, que<br />

distava em demasia do centro urbano, nem parecia ser<br />

tão difícil para muitos de seus freqüentadores já que não<br />

era tão incomum assim quanto pensávamos o trânsito<br />

feito através de veículos motorizados.<br />

Muito antes disso, lá pelos idos de 1893, a<br />

Companhia de Transporte Villa Brandão fazia com seus<br />

bondes o percurso do Mercado Público até a antiga<br />

fonte de abastecimento de água da cidade, a Cachoeira<br />

Grande; construída em 1888; que ficava bem no início<br />

do que é hoje o bairro de <strong>São</strong> Jorge.<br />

O longo trecho percorrido pelos bondes pela<br />

estrada da Cachoeira Grande corresponde atualmente à<br />

avenida Constantino Nery e uma boa parte da atual<br />

avenida Djalma Batista.<br />

O bairro, que teve seu nome mudado para <strong>São</strong><br />

<strong>Geraldo</strong> na segunda metade do século XX, por influência<br />

dos padres Redentoristas que por aqui estavam em<br />

missão, possui uma área de 104 hectares e faz divisa com<br />

os bairros Presidente Vargas (Matinha), Chapada, Nossa<br />

Senhora das Graças (Beco do Macedo) e Centro. É<br />

separado do bairro de <strong>São</strong> Raimundo e <strong>São</strong> Jorge pelo<br />

igarapé do Mindu (que ao longo do seu curso recebe<br />

muitos outros nomes, inclusive igarapé do Pico, que<br />

fazia a alegria da garotada, originando-se daí o nome da<br />

rua Pico das Águas) tendo como principais vias de<br />

acesso as avenidas Constantino Nery, Djalma Batista,<br />

parte da rua Pará assim como parte da rua João Valério,<br />

no conjunto Vieiralves (Nossa Senhora das Graças).<br />

No local onde hoje se ergue o moderno Shopping<br />

Millenium Center, no agradável recém-construído Parque<br />

dos Bilhares, havia outrora uma pedreira e um balneário<br />

~ 13 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


(que esteve ativo até meados dos anos 70) conhecido por<br />

Verônica. Aliás, tanto o balneário quanto a ponte que<br />

liga o bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong> ao bairro da Chapada, deve<br />

seu nome a um prostíbulo, o famigerado Cabaret da<br />

Verônica (atual Bom Futuro).<br />

Na memória dos moradores há o Moinho<br />

Amazonas, (a lembrança do cheiro do café torrado e<br />

moído é inesquecível) e uma velha olaria, no fim da rua<br />

Pico das Águas.<br />

Origem do nome do bairro<br />

EMBORA O BAIRRO DEVA SUA EXISTÊNCIA mais aos<br />

pecadores que aos santos, estes não se deixaram<br />

intimidar. Ainda era um tempo antigo; de mata fechada,<br />

cheio de bichos e palmeiras de açaizeiros, tucumãzeiros<br />

e árvores gigantescas como as castanheiras, com<br />

casinhas de taipa e pontes de madeiras quando os padres<br />

da Congregação do Santíssimo Redentor (Congregatio<br />

Sanctissimi Redemptoris) aqui fizeram sua aparição. A mata<br />

pelas principais cercanias era mesmo abundante e a<br />

carência do povo relevante.<br />

Ordem religiosa de origem católica, fundada em Scala,<br />

na Itália, no ano de 1732 por Santo Afonso de Ligório,<br />

tinha por função o atendimento aos mais pobres e a<br />

proliferação de missões populares ou paroquiais. Tais<br />

missões foram às respostas encontradas pela Igreja católica<br />

ao movimento da Reforma, iniciado pela Igreja protestante.<br />

A congregação, atualmente espalhada pelo mundo<br />

inteiro, não podia deixar a Amazônia, com sua imensa<br />

floresta e povos a catequizar, passar desapercebida.<br />

~ 14 ~<br />

Virgínia Allan


O nome do bairro, <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>, deve-se a um santo<br />

milagroso nascido no dia 6 de abril do ano de 1726 –<br />

segundo alguns seu nascimento deu-se realmente a 23 de<br />

abril de 1725 – em Muro Lucano; cidade localizada ao<br />

sul da Itália.<br />

Filho de Domingos Magella e Benedita Galeta, o<br />

bebê de constituição frágil, foi logo batizado por<br />

temerem seus pais que o pequeno viesse a morrer sem<br />

ter recebido a sagrada bênção do batismo, tomando por<br />

esta ocasião o nome de <strong>Geraldo</strong> Magella.<br />

Porém o magro e pálido rapaz, apesar de todas as<br />

más previsões, vingou, e, desde a infância, quando ainda<br />

freqüentava a escola, embora franzino, <strong>Geraldo</strong><br />

destacava-se pela bondade e inteligência. Menino<br />

perspicaz; gostava de ensinar, inclusive aos colegas mais<br />

velhos. Com o passar do tempo ficou conhecido por<br />

suas visões e poderes sobrenaturais e por ter grande<br />

penetração junto ao meio religioso de sua época. Mas,<br />

voltando alguns anos, nos dias de infância deste menino<br />

incomum, aos 12 anos de idade perde o pai e ele como<br />

único homem da casa vê-se na obrigação de ajudar a<br />

mãe em seu sustento. Aprende então com mestre<br />

Pannuto, o oficio de alfaiate. Há quem diga (não se sabe<br />

ao certo) que o pai de <strong>Geraldo</strong> é que exercia a profissão<br />

de alfaiate, vindo o jovem portanto, naturalmente, a<br />

herdar o oficio.<br />

Além de ajudar no sustento da casa com a profissão<br />

de alfaiate, <strong>Geraldo</strong> ajudava também aos outros<br />

deixando de cobrar dos mais necessitados. Mas, aos 21<br />

anos, levando uma vida pacata viu-se insatisfeito.<br />

Desejava algo maior. Assim começa uma busca<br />

incansável; infindável, visando para si elevação espiritual,<br />

~ 15 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


e, neste sentido religioso, foi fortemente influenciado<br />

pela mãe.<br />

Na tentativa de alcançar seus objetivos, <strong>Geraldo</strong><br />

passava boa parte de seu tempo na Catedral, entregue a<br />

orações e jejuns. Resolveu dessa forma, consagrar-se a<br />

Deus, mas sua patente fraqueza física não o ajudava na<br />

realização de seu sonho, posto que, por este fato, foi<br />

recusado pela Ordem dos Capuchinhos, obtendo como<br />

desculpa as dificuldades encontradas na carreira religiosa.<br />

Por fim, após várias tentativas, e, sob algumas<br />

condições, foi recebido pela Ordem Redentorista<br />

onde se dedicou à pastoral e ao trabalho com os mais<br />

necessitados.<br />

<strong>Geraldo</strong> Magella, após uma longa batalha travada<br />

contra a tuberculose, morreu na Itália aos 29 anos, no<br />

dia 16 de outubro de 1755, e, desde então, como não<br />

podia deixar de ser, seu túmulo é lugar de peregrinação.<br />

Seu último desejo foi que afixassem uma nota à porta de<br />

sua cela, no convento, em que se lia o seguinte: “Aqui o<br />

desejo de Deus é feito como Deus quer, quando e<br />

enquanto quiser”.<br />

Foi canonizado pelo papa Pio X em 1904. É<br />

padroeiro das mulheres grávidas, assim como da<br />

maternidade, dos injustiçados e das confissões benditas.<br />

Festas religiosas e populares em geral<br />

DIA DE SÃO COSME E DAMIÃO<br />

EM MANAUS, OUTRORA, TINHA BATUQUE, tinha festa,<br />

no dia de <strong>São</strong> Cosme e Damião! A criançada corria<br />

~ 16 ~<br />

Virgínia Allan


alvoroçada pelas ruas e calçadas atrás dos doces e das<br />

balas distribuídas pelos devotos dos santos.<br />

Os tambores ressoavam nos terreiros, a festa não<br />

tardava a começar! E a criançada; na disputa incansável<br />

por doces e balas, davam vivas e risadas, em agradecimento<br />

à dupla de santos, os moleques responsáveis<br />

pela gostosa brincadeira.<br />

Afora a presença dos padres Redentoristas, aqui<br />

vieram dar o ar de sua graça plena as Irmãs Adoradoras<br />

do Sangue de Cristo, cuja congregação, fundada<br />

pela madre italiana Maria de Mattias, ainda hoje é de<br />

relevada importância na vida de todos os moradores,<br />

não só pela educação oferecida, mas também pelas<br />

marcantes festas juninas realizadas na quadra e no<br />

vasto terreno do colégio Preciosíssimo Sangue – nos<br />

dias de antanho, em lugar do colégio, havia uma fábrica<br />

de castanha, nos dias de hoje, parte deste “vasto<br />

terreno” foi loteado, vendido ou arrendado, dando<br />

lugar a “Vila do Preciosíssimo” – em que aconteciam<br />

os inesquecíveis “arraiais” com direito a bumbás,<br />

cirandas, tipitis, cacetinhos e quadrilhas, cujas<br />

apresentações eram acompanhadas de fogueiras,<br />

música e comidas típicas para o regalo e encantamento<br />

de todos que participavam da ocasião, o mesmo<br />

sucedendo às ruas do bairro e nas casas com quintais,<br />

neste mês tão festivo, em que brincadeiras e cantigas<br />

embalavam um tempo, pelo menos aparentemente,<br />

mais pueril. Pelo que me consta, a título de<br />

curiosidade, tanto a igreja do Colégio Preciosíssimo<br />

Sangue, quanto à antiga e extinta igreja de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong><br />

foram projetos do consagrado artista plástico<br />

amazonense, Moacir Andrade.<br />

~ 17 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


Tradicional também era o arraial da paróquia de <strong>São</strong><br />

<strong>Geraldo</strong> – e que hoje não acontece mais – que durava<br />

uma semana e começava com a procissão em louvor ao<br />

santo padroeiro no dia 16 de outubro. A última<br />

manifestação desse tipo aconteceu em 2004 quando dos<br />

cem anos de canonização do santo.<br />

A religião católica; que outrora já dividia seu espaço<br />

no bairro com o candomblé (vide batuque da rua João<br />

Alfredo) e o espiritismo Kadercista (Centro Espírita<br />

Tomás de Aquino, na rua Pico das Águas) convive hoje<br />

também com a religião evangélica, cuja igreja principal, a<br />

Assembléia de Deus Tradicional, foi construída no lugar<br />

onde antes se erguia o Supermercado Royale.<br />

Ao lado do antigo Moinho Amazonas, às margens da<br />

avenida Constantino Nery, eleva-se um templo suntuoso da<br />

Igreja Universal do Reino de Deus. Não se pode esquecer<br />

de mencionar a Igreja dos Santos dos Últimos Dias, os<br />

Mórmons, situada na rua Pará, e uma Loja Maçônica,<br />

Amazônia Brasileira, na avenida Djalma Batista. Portanto,<br />

nem é preciso dizer que com tanta religiosidade, literalmente<br />

para dar e vender; as festas religiosas foram constantes na<br />

comunidade, destacando-se as comemorações da Semana<br />

Santa, iniciadas com o Domingo de Ramos, prosseguindo<br />

com a Via-Sacra, que algumas vezes era feita nas ruas, e<br />

culminando com a procissão e adoração de Nosso Senhor<br />

Morto. Era um longo tempo de festas e recolhimentos.<br />

Tanto a Igreja de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong> quanto a Igreja do<br />

Preciosíssimo Sangue, encerravam suas atividades somente<br />

no Domingo de Páscoa. Depois, é claro, vinham outras<br />

festas, santas e profanas, que eram comemoradas do mesmo<br />

jeito, sem remorso, apenas com alegria e satisfação,<br />

incluindo o Carnaval e Corpus Christi.<br />

~ 18 ~<br />

Virgínia Allan


Temos ainda em nosso bairro a doce lembrança do<br />

Seringal Mirim e a presença marcante do Batuque, Ilê de<br />

Santa Bárbara, como um coração vivo; pulsante,<br />

localizado à rua João Alfredo, seguindo duas linhas<br />

religiosas, primeiro o Candomblé e depois a Umbanda,<br />

dando, dessa maneira, maior ênfase ao sincretismo<br />

religioso que une a todos e que perdura até aos dias de<br />

hoje. Toda a cultura afro-brasileira, com seus cultos e<br />

folguedos, lá foram representados e reverenciados.<br />

Há poucos anos atrás, os tradicionais festejos em<br />

honra aos orixás, identificados para proteção de sua<br />

religião com alguns santos do panteão Católico Apostólico<br />

Romano, como Santo Antônio, <strong>São</strong> Benedito, <strong>São</strong><br />

João, <strong>São</strong> Cosme e <strong>São</strong> Damião, <strong>São</strong> Jorge, Santa Bárbara,<br />

Santa Luzia, eram comemorados com tamanha efusão<br />

que era quase impossível, não deixar de passar no terreiro,<br />

que, antes, estava sob os cuidados de Maria Estrela,<br />

mas, que depois passou as mãos de Joana Papagaio em<br />

seguida à mãe Margarida, e, por último, a Ribamar.<br />

O Boi-Bumbá Mina de Ouro tinha o seu curral em<br />

frente à esquecida praça da Liberdade, em um terreno<br />

vizinho ao Seringal e a dança do Papagaio (muito tempo<br />

depois do bumbá) foram destaques nos festejos que<br />

aconteciam em plena rua.<br />

O Carnaval<br />

O CARNAVAL, A MAIOR DAS FESTAS populares, é um<br />

capítulo a parte. Dos salões dos clubes refinados para as<br />

ruas de Manaus... Porém, eis que durante muito tempo a<br />

chegada da Kamélia e, conseqüentemente, a da amiga e<br />

~ 19 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


ival Jardineira, para o salão de baile do Olímpico Clube<br />

era, e ainda é, de longe, o evento mais esperado (o<br />

segundo é o baile do Hawaii, que com mais de 25 anos<br />

de alegria, confete e serpentina é realizado no Olímpico<br />

e nos principais clubes da cidade) não só no bairro como<br />

também em toda a sociedade, já que a banda da Kamélia,<br />

depois de receber as chaves da cidade abre oficialmente<br />

o Carnaval amazonense.<br />

A população em peso é convocada a dar as boasvindas<br />

a foliona mais querida, que num rompante de<br />

alegria, responde ao convite dos organizadores e<br />

acompanha a carreata que sai do Porto Privatizado e vai<br />

até as dependências do salão do Olímpico clube.<br />

Sobre a Kamélia, reza a história o seguinte: O senhor<br />

Cândido Geremias Cumaru, o seu Candu, lá pelo fim da<br />

década dos anos 30, comprou uma boneca de 75 cm de<br />

altura, mas logo a boneca ganhou dimensões gigantescas<br />

e no Carnaval de 1938, a boneca negra vestida de baiana<br />

(a idéia era fazer o povo acreditar que a foliona, vinha de<br />

outras terras, por isso a tradicional caravana de chegada e<br />

despedida da boneca se sustenta até os nossos dias) presa<br />

a um galho de ingazeira, descia a avenida Eduardo Ribeiro<br />

para abrilhantar as folias de Momo.<br />

Em 1939, em decorrência da fundação do Olímpico<br />

Clube (antigo Deutsche Klub) a boneca Kamélia, em<br />

companhia da falange Olímpica, desceu outra vez a<br />

avenida, com os enormes braços abertos como que querendo<br />

abraçar a multidão.<br />

Nesse tempo mais distante vale ressaltar a participação<br />

dos cordões, entre eles o “Cordão das Lavadeiras”<br />

do velho Seringal Mirim, forma de expressão dos<br />

excluídos que fortemente influenciados pela cultura em<br />

~ 20 ~<br />

Virgínia Allan


geral, oriunda da mãe África, eram movidos ao ritmo<br />

dos instrumentos de percussão.<br />

Com a renovação do Carnaval de rua, nos anos 60 e<br />

70, segundo alguns depoimentos, ainda na avenida<br />

Eduardo Ribeiro, incrementaram-se o aparecimento dos<br />

blocos de sujos, das batucadas e dos desfiles de algumas<br />

escolas de samba. Todavia, na década de 80, tais desfiles<br />

mudaram-se para a então recente avenida Djalma Batista<br />

(Cláudio Mesquita), onde então os blocos populares, que<br />

na maior parte das vezes ficavam por entre as ruas<br />

principais do bairro, puderam enfim, se projetar, sendo os<br />

mais conhecidos pela sua batucada contagiante o Bloco<br />

das Virgens do <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>; o Bloco Encontro das Águas<br />

e o Bloco do Vinho, da travessa Santa Luzia, mais tarde<br />

Escola de Samba do 2.º Grupo Guerreiros do Vinho, que<br />

estreou no Carnaval em 1986. Infelizmente, a escola não<br />

perdurou e em 1992 encerrou de vez suas atividades.<br />

Curiosidades Relativas ao bairro,<br />

episódios marcantes, folclore e<br />

tipos populares<br />

SERINGAL MIRIM<br />

BASEANDO-ME NA PESQUISA DE Robério Braga<br />

sobre o Seringal Mirim, posto que a memória traiçoeira<br />

de alguns moradores daquele tempo, ainda vivos, não me<br />

permitiu levar tudo em consideração, fiz um resumo dos<br />

acontecimentos relevantes que culminaram, enfim, com<br />

o desaparecimento do lugar em questão.<br />

~ 21 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


De acordo com minhas próprias lembranças, o<br />

Seringal Mirim de minha infância já estava em franca<br />

decadência, sem o colorido festivo do boi-bumbá Mina<br />

de Ouro, pouco restando das seringueiras que por um<br />

longo período foi à semente mágica enriquecedora que<br />

engrandeceu e enobreceu a cidade, elevando-a a<br />

categoria de Paris dos Trópicos no auge da Belle Epoque.<br />

Assim como um segredo que não se sabe se deve<br />

ser espalhado, aberto a todos, o bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong><br />

guarda em seu seio, como um conto de amor, a bonita<br />

história do Seringal Mirim, que juntamente com a Praça<br />

14 e o Boulevard Amazonas, é considerado um dos<br />

primeiros redutos de escravos fujões, escravos estes que<br />

deram início de modo um tanto conturbado, devido ao<br />

percalço da vida de perseguidos a comunidade afrobrasileira<br />

na região, que trazia consigo, como bagagem,<br />

além da coragem, apenas seus santos, suas festas, suas<br />

brincadeiras e todas as suas mais diversas formas de<br />

manifestações. Oxossi, Senhor das matas, orixá da caça e<br />

da abundância, certamente sabia o que estava fazendo<br />

quando os encaminhara para cá com a promessa de<br />

segurança e bem-estar. No Amazonas, a compra e venda<br />

de escravos era um processo assaz esporádico. Em 24 de<br />

maio de 1884 foi feita uma declaração pública de<br />

Libertação dos Escravos em Manaus e no mesmo ano,<br />

em 10 de julho, são declarados livres os escravos no<br />

Estado do Amazonas.<br />

Sabe-se que por um longo período de tempo, a base<br />

de nossa economia foi à extração e comercialização da<br />

borracha, assim todos os esforços possíveis eram<br />

empregados no sentido de promover e fortalecer cada<br />

vez mais nossa única fonte econômica. Com este<br />

~ 22 ~<br />

Virgínia Allan


propósito, após um apurado estudo para o plantio da<br />

seringueira, promovido pela Associação Comercial do<br />

Amazonas (fundada em 1871), sob o incentivo do então<br />

comendador José Cláudio Mesquita, foi criado o Campo<br />

Experimental do Seringal Mirim, em que foram<br />

plantados mais de cem pés de seringas. Ficou estipulado<br />

o dia 24 de junho como o dia da seringueira e todo ano,<br />

nessa mesma data, se faria o plantio de uma muda. Por<br />

essa época ainda não se cogitava a quebra total do<br />

mercado e nem o esvaziamento da cidade, fatos estes<br />

que se sucederam algum tempo depois. Mas, antes disso,<br />

o seringal floresceu e permaneceu ativo por muitos anos,<br />

mesmo depois do falecimento do comendador Cláudio<br />

Mesquita (embora este fosse oriundo de terras lusitanas,<br />

foi um grande incentivador dos estudos e do plantio da<br />

hevea brasiliensis), ocorrido em 6 de novembro de 1923.<br />

Em 1937, o Seringal Mirim esbanjava beleza e<br />

exuberância e dois anos depois, em 1939, tentando obter<br />

a bênção do Ministério da Cultura, o Governo do Estado<br />

pensou em dele tomar posse. Mas, saltemos alguns anos<br />

adiante e cheguemos logo em 1943, já na jurisdição de<br />

Álvaro Maia. Neste mesmo ano, em 19 de abril, foi criada<br />

a Escola de Seringueiros José Cláudio Mesquita,<br />

passando esta, desde então, a integrar o Serviço de<br />

Fomento Agrícola do Estado, sob a direção do agrônomo<br />

Lourenço Faria de Mello, passando o seringal a<br />

funcionar como uma Escola de experiência de látex.<br />

As dificuldades, como sempre, acossavam os mais<br />

pobres e as lavadeiras e viúvas da região eram amparadas<br />

pela família do conhecido político Ruy Araújo, a saber,<br />

sua esposa, Helena Cidade de Araújo e seu irmão André<br />

Vidal de Araújo, assim não tardou que o governo<br />

~ 23 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


acabasse por criar a Vila Assistencial da Praça Liberdade<br />

que não ficava exatamente no seringal, mas sim em uma<br />

área vizinha.<br />

Em 18 de junho de 1979, via decreto 4.590, graças<br />

a motivos apresentados pelo historiador Robério Braga<br />

a Comissão do Patrimônio Histórico, a área do seringal<br />

foi transformada em reserva fundiária estadual e destinada<br />

à instalação do Museu do Seringueiro, infelizmente,<br />

tal projeto, que chegou a ser desenvolvido, sequer<br />

saiu do papel.<br />

No ano seguinte, em 1980, o asfalto chegou à<br />

região, expulsando, de vez, através da exploração<br />

imobiliária o espírito do Seringal Mirim.<br />

A avenida Djalma Batista, antiga Cláudio Mesquita,<br />

iniciada na administração do prefeito Jorge Teixeira,<br />

dividiu o seringal, intensificando-se as invasões de terra.<br />

Hoje, em lugar das árvores, há prédios, casas, praças,<br />

escolas, bancos e a Central de Energia Elétrica que<br />

ainda segundo Robério Braga, na época em que era<br />

vereador de Manaus (1989-1982) juntamente com outros<br />

parlamentares, tentou interditar a construção para<br />

que houvesse uma preservação da memória, porém,<br />

nada foi possível fazer devido à falta de documentação.<br />

O acendedor de lampiões<br />

“O ACENDEDOR DE LAMPIÕES COM sua escada<br />

varinha e mecha, à boca da noite”, 6 vai de mansinho<br />

fazer seu trabalho. Como quem faz um poema ou uma<br />

oração, ele acende o lampião que, com sua luz miúda,<br />

6 Fundação da cidade de Manaus; Mário Ypiranga Monteiro.<br />

~ 24 ~<br />

Virgínia Allan


ilumina o coração daquele homem. É um tempo antigo<br />

e a paz invade as ruas com a chegada da noite.<br />

Nas casas, tudo é silêncio. As crianças dormem,<br />

enquanto os adultos conversam sobre os mais<br />

“recentes” acontecimentos. Realmente, são tempos de<br />

outrora, quase esquecidos, em que as lembranças são<br />

guardadas dentro de pesados baús.<br />

Lá fora, a voz dolente de um cantor enche o<br />

ambiente com a triste história da perda de um amor. As<br />

vozes da noite sussurram outras histórias que jamais<br />

serão contadas, pois, somente “o acendedor de<br />

lampiões, com sua escada e sua mecha”, escuta-as,<br />

guardando-as para si. Sabe que dele também se<br />

esquecerão, mas, não se importa. Terá na lembrança as<br />

histórias contadas pela noite e a pequena luz do lampião<br />

a aquecer-lhe o coração. E é só o que restará! O silêncio<br />

cobrirá seus passos e ele desaparecerá suavemente na<br />

escuridão da noite.<br />

Todavia não foi apenas o acendedor de lampiões,<br />

com sua escada, varinha e mecha que desapareceu. O<br />

vendedor de leite, o vendedor de doces, o velho sapateiro,<br />

o padeiro, este, que bem que cedo vinha bater as<br />

nossas portas, o contador de histórias.... todos eles se<br />

foram desaparecendo suavemente na escuridão da noite<br />

de nossa memória.<br />

Ciganos<br />

HOUVE UM TEMPO EM QUE OS CIGANOS, em suas<br />

andanças, sempre que chegavam à Manaus, acampavam<br />

no decadente seringal, debaixo das árvores que ainda se<br />

~ 25 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


mantinham de pé. O povo, cheio de preconceito, tinha<br />

um enorme receio dessa gente que andava pra lá e pra cá,<br />

feito folha ao vento, e, devido à péssima fama de<br />

“ladrões de crianças”, eram, quase sempre deixados em<br />

paz, e, assim, por ali eles ficavam por muitos dias e até<br />

meses, com seus panos coloridos e um olhar de pena em<br />

relação ao futuro.<br />

Um dia se foram e não mais retornaram e tal como<br />

o Seringal Mirim, a lembrança do acampamento de<br />

ciganos apagou-se, perdida no tempo.<br />

Ó Jardineira por que estás tão triste?<br />

Mas, o que foi que te aconteceu?<br />

Foi a Kamélia que caiu do galho,<br />

deu dois suspiros e depois morreu....<br />

Kamélia<br />

(marcha carnavalesca, 1939 – B. Lacerda e Humberto<br />

Porto)<br />

O QUÊ, TALVEZ, MUITA GENTE NÃO SAIBA é que a<br />

famosa boneca Kamélia, em tempos idos, quando<br />

acabava a festa, voltava a ser guardada, muitas vezes até<br />

displicentemente, atrás da porta de entrada da casa de G.<br />

C. morador da rua Pico das Águas e, que, por mera<br />

coincidência, vinha a ser cunhado de Cândido Geremias<br />

Cumaru, o seu Candu, o feliz proprietário da boneca que<br />

muitos acreditavam ser de carne e osso, tão vívida e<br />

natural a sua presença.<br />

~ 26 ~<br />

Virgínia Allan


Quanto ao seu anfitrião, G. C. cabem aqui algumas<br />

palavras: Sujeito calado; alto, magro de cabelos curtos e<br />

grisalhos, duro de alma e coração, amante de rinhas de<br />

galo, G. C. era um contraventor a moda antiga, mas sem<br />

a aura romântica que empresta certa simpatia a esses<br />

desvios de conduta.<br />

Dono da Rua, sempre de pijama (raramente vestia<br />

outra roupa, fosse para onde fosse) e chinelos de<br />

couro, tinha por péssimo costume transitar com seus<br />

carros em alta velocidade pelas ruas da cidade; digo<br />

“seus carros” por ele ter tido vários, indo de um Fusca<br />

azul conhecido por Azulão, a um Opala dourado que<br />

acabou por completo num acidente em que quase<br />

morreu. Dizia toda gente que por motivo deste<br />

acidente teve que pôr na cabeça uma placa de titânio<br />

e que depois disso, ele, que já era “atarantado”, ficou<br />

um pouco pior. Assim que seu carro despontava no<br />

início da rua o povo saía às presas, fugindo do perigo<br />

que era ficar em seu caminho. Diziam: “Cuidado... lá<br />

vem o seu G...”. Um dia perdeu o controle do carro e<br />

passou direto, indo parar ladeira abaixo. Dentro de<br />

casa, autoritário; sua palavra, acatada mais por medo<br />

que por respeito, sempre se fazia valer.<br />

No bairro não havia quem não o conhecesse, já<br />

que depois de uns tragos à mesa de baralho ficava<br />

generoso e punha-se a distribuir dinheiro. Era<br />

contrabandista de uísque, bastante conhecido dos<br />

federais, que, vez por outra, vinham até sua casa efetuar<br />

uma batida a fim de pegá-lo com a boca na botija. Mas<br />

seu G. era esperto e sabendo com antecedência da<br />

visita dos ditos cujos (certamente tinha algum “amigo”<br />

no meio), com a ajuda do filho mais velho, guardava<br />

~ 27 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


toda a mercadoria num monte de areia de uma casa<br />

“eternamente” em construção que ficava em frente a<br />

sua e depois disto feito, aguardava tranqüilamente a<br />

visita “inesperada”.<br />

Os federais chegavam reviravam a sua casa de cima<br />

abaixo e nunca encontravam nada. Nem desconfiavam<br />

do esconderijo inusitado que havia bem debaixo de seus<br />

narizes. Um dia, esse mesmo filho, G. F. que aos olhos<br />

de todos parecia lhe ser o mais querido, devido a uma<br />

rebeldia à toa, levou uma baita surra e foi posto para fora<br />

de casa só com a roupa do corpo. Voltou alguns anos<br />

depois, porém nunca mais a relação com o velho G. foi<br />

a mesma.<br />

G. C. foi protagonista de um episódio desagradável<br />

do qual me recordo perfeitamente que<br />

relatarei mais abaixo.<br />

Boi-Bumbá Mina de Ouro<br />

O BUMBÁ DO SERINGAL MIRIM tinha por<br />

“inimigos” no tempo em que decorriam os festejos<br />

juninos, o Corre-Campo (Cachoeirinha) e o Tira Prosa<br />

(Santa Luzia).<br />

Uma peculiaridade desses bois é que cada um<br />

possuía um modo particular de se fazer notar. Por<br />

exemplo: o Caprichoso levantava o rabo; o Luz de<br />

Guerra comia capim, o Corre-Campo colocava a língua<br />

para fora... e o Coringa, do bairro de Aparecida, há... o<br />

Coringa...?! Este... pasmem! Fazia xixi. A particularidade<br />

do nosso boi, o Mina de Ouro, era levantar<br />

graciosamente as suas orelhas.<br />

~ 28 ~<br />

Virgínia Allan


Dança do Papagaio<br />

NA ÉPOCA JUNINA ERA IMPRESCINDÍVEL a presença<br />

do grupo de dança Papagaio. Os Pássaros é a<br />

denominação folclórica para tais grupos que praticam<br />

suas danças há mais de 50 anos. Os temas, que tratam da<br />

morte e ressurreição do pássaro escolhido para se fazer à<br />

apresentação, relembram velhas histórias do imaginário<br />

popular, mas de um jeito bem brasileiro, em que fadas e<br />

feiticeiros, misturam-se a pajés e índios guerreiros.<br />

O grupo de dança do <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong> costumava se<br />

reunir em frente ao batuque de Joana Papagaio (que, tal<br />

como lhe diz a alcunha e se não falha a memória de<br />

alguns moradores, está bastante ligada a sua origem e<br />

tradição, sendo mesmo, provavelmente, a maior<br />

responsável pelos anos em que a dança durou) e, dali saía<br />

para exibir-se direto no Festival Folclórico.<br />

Marcílio e Marçal<br />

DO BUMBÁ MINA DE OURO ao Grupo de Dança do<br />

Papagaio, restou a lembrança e a arte de saber confeccionar<br />

uma roupa com perfeição, bordada e enfeitada<br />

com tantos detalhes, que quase pode ser considerada<br />

uma obra de arte.<br />

Hoje, um pouco dessa arte, tão necessária ao ser<br />

humano, alimento do espírito, encontra-se escondida em<br />

uma casinha de madeira, que de tão velha, está rota, mas<br />

que guarda dentro de si um mundo de mistério, magia e<br />

beleza. Marcílio e Marçal dois desses artistas remanescentes<br />

daquele tempo, excelentes costureiros, continuam<br />

~ 29 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


dedicados aos festejos populares, deles participando<br />

sempre, seja como meros brincantes, ou seja, costurando<br />

as fantasias.<br />

Marcílio foi viver em Manacapuru justamente por<br />

motivo dos festejos em que é insistentemente solicitado.<br />

Marçal ficou para confeccionar roupas de sonhos para<br />

os festivais de vários pontos da cidade, incluindo o<br />

principal Festival Folclórico que acontece no Centro<br />

Cultural dos Povos da Amazônia (CCPA) na bola da<br />

Suframa e cuja tradição já dura há 51 anos, seja para nos<br />

deleitar com o visual do guarda-roupa sofisticado<br />

apresentado no Festival de Ópera que acontece no<br />

Teatro Amazonas.<br />

Um point de atração e diversão<br />

AS FESTAS SE FORAM, NÃO DE TODO, mas o bairro<br />

de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong> ainda é bastante procurado devido a<br />

grande quantidade de pequenos bares e praças de<br />

alimentação que se acotovelam em cima das calçadas ou<br />

nas áreas cobertas de um shopping; chamariz de jovens<br />

e adultos e de toda espécie de artistas, principalmente<br />

cantores, tanto conhecidos como emergentes. Bem, em<br />

tempos mais recuados, fazia-se notar a presença de<br />

padre Nonato Pinheiro em rodas de conversa na velha<br />

serraria do seu Raimundo, na travessa Santa Luzia.<br />

Hoje, o cantor parintinense Chico da Silva vem a ser um<br />

ótimo exemplo dessa facilidade de atrair e manter cativo<br />

um público de gostos variados. Autor de vários<br />

sucessos musicais, entre eles, Pandeiro é meu nome, em<br />

parceria com Venâncio, gravada pela cantora<br />

~ 30 ~<br />

Virgínia Allan


maranhense Alcione e a toada em louvor ao boi<br />

Garantido, Vermelho; gravada por Zezinho Corrêa; da<br />

banda Carrapicho e pela cantora Fafá de Belém.<br />

Rezas e muita bênção meu senhor<br />

para agüentar o tranco, curar<br />

quebranto, espinhela caída e mau<br />

de olho...<br />

O QUE NUNCA FALTOU NO BAIRRO foram as benditas<br />

benzedeiras. Reza braba, reza forte para curar desde<br />

quebranto, mau-olhado espinhela caída e diversos outros<br />

males. Para nossa sorte em cada rua havia um desses<br />

“anjos curadores” com a fórmula certa a quem sempre<br />

podíamos recorrer. Seu João, D. Raimunda e D.<br />

Pocidônia eram apenas alguns dos mais conhecidos.<br />

Seu João, da rua Pico das Águas – devoto de <strong>São</strong><br />

Cosme e Damião no dia 27 de Setembro, data dos<br />

festejos dos santos, nunca deixava de distribuir bombons<br />

para as crianças, promessa antiga, sempre cumprida, e de<br />

Santa Luzia, virgem mártir protetora dos olhos, a quem<br />

dedicava em casa sob um enorme quadro um altar cheio<br />

de garrafas com raízes, cristais e águas de cheiro,<br />

terminantemente proibido a qualquer aproximação de<br />

estranhos – usava a caneta, escrevendo na pele e dissolvendo<br />

a tinta na água para levar o mal embora.<br />

Dona Raimunda – também da rua Pico das Águas –<br />

por sua vez, utilizava o papel e dona Pocidônia (Cláudio<br />

Mesquita) resolvia qualquer problema de luxação,<br />

articulação fora do lugar, e nisso, no bairro não havia<br />

~ 31 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


ninguém melhor que ela. Gente de vários pontos da<br />

cidade, com dores de toda ordem; vinha ter ao bairro<br />

apenas com o intuito de obter uma consulta.<br />

É interessante ressaltar que todos os rezadores, sem<br />

exceção tinham e tem, ainda hoje, desde os mais<br />

remotos tempos, uma plena consciência de sua missão.<br />

Não podem se omitir de atender, nem rezar sobre<br />

ninguém, ao agirem assim estão apenas devolvendo, em<br />

parte, aquilo que receberam como dom.<br />

Hoje, nosso maior curandeiro é o médico pediatra<br />

Afrânio Soares, com consultório montado à rua<br />

João Alfredo.<br />

Os canos de água da rua Pico das<br />

Águas<br />

EM UMA BOA PARTE DA RUA PICO das Águas,<br />

cortada, de um lado, pela avenida Constantino Nery e de<br />

outro pela avenida Djalma Batista, é a única rua do<br />

bairro em que o progresso não chegou definitivamente,<br />

posto que, embora a rua ligue as duas avenidas<br />

principais, tal ligação é feita por uma longa escadaria;<br />

produto da política dos anos 80 do então candidato a<br />

vereador Renato Queiroz.<br />

Os grossos canos que em pleno século XXI ainda<br />

resistem na citada rua fazem parte de um passado<br />

onde a necessidade de abastecer a cidade com o<br />

líquido precioso foi uma verdadeira fonte de dificuldades<br />

e preocupações, já que tudo, desde os banhos,<br />

lavagens de roupa e limpeza de animais, aconteciam<br />

em volta do igarapé de Manaus. O igarapé da Cachoei-<br />

~ 32 ~<br />

Virgínia Allan


a Grande foi o primeiro a servir a este propósito por<br />

se encontrar em melhores condições, pois a água era<br />

limpa e saborosa.<br />

No dia de 8 de outubro de 1883, porém, o<br />

Reservatório da Castelhana, o Tanque dos Remédios, as<br />

casas de máquinas e de guarda mais a rede de distribuição,<br />

além de bicas e fontes, junto com a firma Antony<br />

Moreton & Cia. assinaram um contrato no Palacete<br />

Provincial da Praça 28 de Setembro.<br />

Atualmente os tubos que serviram no passado<br />

para abastecer com água uma grande área da cidade<br />

tornam agora, inviável (pelo menos é o que se diz) as<br />

benfeitorias à rua que todos os anos lhe são<br />

prometidas. Fato é que entra ano e sai ano, e a rua,<br />

constantemente medida e avaliada de alto a baixo,<br />

continua “quase” a mesma.<br />

Num passado não tão distante assim – antes da<br />

construção da escadaria, devido a enorme dificuldade<br />

em por ela se transitar, posto que rua de ladeira<br />

“barrenta e escorregadia”; com um igarapé poluído<br />

que corria lá embaixo e um lixão inimaginável,<br />

incluindo o lixo hospitalar do então Hospital <strong>São</strong> José,<br />

hoje Unimed – os canos serviram como “ponte” para<br />

seus moradores em que se tinha que passar com muito<br />

cuidado tal a altura, a grossura e a lisura dos tubos. Em<br />

dias de chuva era quase impossível se chegar ao<br />

Mercado Municipal Dorval Porto, na Djalma Batista,<br />

pois o perigo existia tanto por cima quanto por baixo,<br />

já que uma queda eventual de cima dos canos e um<br />

mergulho inesperado no igarapé, nunca era planejado,<br />

mas mesmo assim, apesar de todo cuidado, quase<br />

sempre acontecia.<br />

~ 33 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


Constantino Nery – uma avenida<br />

cheia de vida<br />

DE UM LADO DA AVENIDA Constantino Nery, há o<br />

Olímpico Clube e um pouco mais abaixo, duas ou três<br />

casas depois, há uma casa simples de alvenaria que<br />

abrigou por um bom período de tempo a família do<br />

advogado Carlos Genésio Braga, filho do escritor<br />

paraense, membro da AAL – Academia Amazonense de<br />

Letras, Genesino Braga.<br />

Do outro lado da mesma avenida, em uma casa de<br />

esquina, vivia o jurista Mithridates Corrêa. Infelizmente,<br />

sua casa, hoje, não existe mais.<br />

Indo um pouco mais além, o pintor Roland Stevenson<br />

ainda pinta suas telas, em seu ateliê, em uma<br />

casa de dois pisos onde também sua esposa, mantêm<br />

um salão de beleza. Ambos, como podemos ver amantes<br />

da estética.<br />

No Colégio Preciosíssimo Sangue, uma freira da<br />

Congregação das Adoradoras do Sangue de Cristo,<br />

irmã Helena Augusta Wyllcott lutou com toda a garra<br />

pelos mais necessitados. Não temia a nada, nem a<br />

ninguém, chegando inclusive a comandar pessoalmente<br />

invasões de terra. Sua presença foi marcante no bairro<br />

Novo Israel.<br />

Deixar de citar padre Henrique, antigo pároco da<br />

igreja de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>, é quase um pecado. Simpático,<br />

carismático, atencioso, um belo homem, com profundos<br />

olhos azuis, ele foi um dos maiores amigos que teve a<br />

comunidade. Embora linha dura no que se tratava dos<br />

dogmas seguidos pela Santa Madre Igreja, padre<br />

~ 34 ~<br />

Virgínia Allan


Henrique sempre procurou ajudar e iluminar o espírito<br />

daquele que o procurasse, fosse este quem fosse.<br />

Era americano, padre da congregação dos Redentoristas,<br />

mas aqui viveu, trabalhou e morreu. Perdeu a<br />

vida, em certa manhã, num acidente de carro. O Fusca<br />

azul, que costumava dirigir com o maior cuidado; ficou<br />

completamente destruído. A casa onde viveu e a velha<br />

igreja onde pregara o seu sermão, não existem mais.<br />

Com o desaparecimento de padre Henrique foi-se<br />

também os meus tempos de meninice.<br />

Em 1980 a avenida Constantino Nery serviu de<br />

passarela a visita do “papa peregrino” João Paulo<br />

II, Karol Wojtyla, quando de sua primeira visita ao<br />

Brasil.<br />

O povo do bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong> não podia deixar<br />

passar este momento histórico, festivo sem participar e<br />

deste modo compareceu a avenida, com lenços brancos,<br />

estendendo ao Santo Padre, santinhos e rosários para<br />

que os abençoassem. O hino “A Bênção, João de Deus”<br />

foi cantado com força e fé, a pleno pulmões.<br />

Famílias S e M<br />

COMO JÁ FOI DITO ANTES, E, chega a ser uma<br />

redundância, nada diferente dos dias de hoje, “naquele<br />

tempo, as dificuldades acossavam os mais necessitados”<br />

e a comunidade negra que cresceu no Seringal Mirim<br />

viu-se envolvida em questões, que devido à necessidade,<br />

envolviam sua honra e caráter. Antes, as famílias que<br />

haviam se sobressaído através da religião e da cultura, de<br />

repente viram seu bom nome lançado na lama, uma vez<br />

~ 35 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


que seus descendentes fizeram por onde fazer fama,<br />

porém, má fama.<br />

O bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>, principalmente o lugar<br />

pitoresco do Seringal Mirim, virou sinônimo de perdição,<br />

antro de marginais, e conhecidas “bocas de fumo”<br />

liderados pelas famílias M e S. Houve um tempo em que<br />

só de se ouvir o nome de C. S. um calafrio percorria a<br />

espinha; bandido famoso e procurado na cidade de<br />

Manaus. Seus filhos, assim como o próprio M mais<br />

conhecido e família, ainda vivem no bairro, agora mais<br />

tranqüilo desde que resolveram deixar de lado as<br />

atribulações de uma “vida bandida”.<br />

Um Orfeu negro amazonense<br />

UMA HISTÓRIA REAL E CURIOSA: No final dos anos 80<br />

um dos jovens M, negro bonito e infeliz de 18 anos, morreu<br />

de uma forma trágica e até hoje, considerada por muitos,<br />

misteriosa, dizem que num incêndio causado por ele<br />

mesmo enquanto dormia por conta de um cigarro aceso. O<br />

fogo que queimou a casa inteira, uma casa de madeira de<br />

dois andares, na rua Pico das Águas, alastrou-se com uma<br />

rapidez descabida; incomum, fazendo como única vítima o<br />

pobre P. que não era músico como o Orfeu do mito grego<br />

e sim filho de santo, freqüentador do batuque e dançarino<br />

do bumba-meu-boi, mas que nem por isso deixou de ser<br />

dotado pelas musas com menor beleza e poesia.<br />

Vejamos... foi depois dos festejos do Carnaval, no<br />

final da década de 80, logo após a sua chegada do baile<br />

do Hawaii do Olímpico Clube... A tragédia aconteceu de<br />

forma inexplicável e abalável. Há quem diga que P. foi<br />

~ 36 ~<br />

Virgínia Allan


morto por traficantes, seus desafetos conhecidos, já que<br />

vinha conquistando terreno e angariando simpatias,<br />

além da beleza física, o que provocou ciúmes e invejas<br />

nos mais velhos. Outros dizem que foi crime passional,<br />

assassinado pela mulher com quem vivia e tinha um<br />

filho, ela, do clã dos S muito mais velha e, portanto, bem<br />

mais experiente que ele.<br />

Dizia-se que P. queria afastar-se da vida desregrada<br />

e sair pelo mundo e o baile de Carnaval, seria a sua despedida.<br />

Outra coisa que falam é que estava apaixonado<br />

por uma garota branca, de sua idade, por quem era<br />

plenamente correspondido (paixão esta, desde o princípio<br />

execrada, debochada, ironizada, mal-falada, proibida,<br />

mas acima de tudo, invejada) burburinho corrido<br />

“a boca pequena” pelo bairro, e que para uma mulher<br />

ciumenta e despeitada, não é nada agradável de se ouvir.<br />

Entretanto, tudo, qualquer dúvida, não passou de<br />

especulação e nunca, nada foi provado, ficando no ar<br />

apenas a suspeita que quase provocou uma rixa entre as<br />

duas famílias.<br />

Por ironia, o dinheiro que P. possuía guardado no<br />

banco e que seria seu passe a busca de liberdade e<br />

mudança de vida, serviu, apenas para lhe pagar o caixão<br />

e as despesas do funeral. O assunto afinal acabou morto<br />

e enterrado junto com P. junto com os seus sonhos que<br />

ele ousou um dia, querer viver.<br />

Um prefeito imperfeito<br />

PARECE QUE TEIMO EM POR EM destaque a rua Pico<br />

das Águas, que vai de um lado e outro das avenidas<br />

~ 37 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


Constantino Nery e Djalma Batista, mas fato é que ela<br />

foi palco dos mais conhecidos dramas do bairro.<br />

No fim da década de 60 (entre 68-69), a família<br />

Pereira de Mello chegou por estas bandas. Ele, filho de<br />

um casal de posses, quase “donos” do município de<br />

Santa Izabel, no Alto Rio Negro. Ela; Lucila seu nome<br />

por pouco não foi Lucíola título de romance de José de<br />

Alencar, mulher bonita e submissa, das terras do Pará,<br />

precisamente de Forlândia, isso mesmo, o pedaço de<br />

terra de um projeto experimental adquirido pela empresa<br />

Motor Ford Company para a cultura da borracha que<br />

devido a sérias dificuldades, tais como terreno acidentado,<br />

mão-de-obra insuficiente, transporte precário e<br />

principalmente graças a um fungo Microcyclos ulei que<br />

veio a se transformar no maior problema da heveicultura<br />

na região, fracassou.<br />

A casa simples, pequena, de madeira, comprada pela<br />

intervenção do advogado e deputado estadual João<br />

Valério, nome hoje de uma das ruas do bairro, em que<br />

foram morar, ficava situada num terreno acidentado e,<br />

de qualquer jeito, depois de tantos lugares ruins por<br />

onde já haviam passado, tinham agora, em definitivo o<br />

seu próprio lar.<br />

Por volta dos anos 70, Ayton Pereira de Mello, então<br />

prefeito do município de Santa Izabel do Rio Negro,<br />

antiga Tapuruquara, (palavra em nheengatu, o tupi<br />

amazônico, que quer dizer casa de tapuru) foi acusado<br />

levianamente de corrupção e essa leviandade foi manchete<br />

de jornais, principalmente por parte do jornal A Notícia,<br />

que sem provas, gratuitamente e de forma desrespeitosa,<br />

repita-se, o achincalhava de tudo quanto era modo e, quem<br />

muito se ocupava disso era o jornalista Fábio Lucena.<br />

~ 38 ~<br />

Virgínia Allan


Bem, um dia o prefeito encheu-se daquela situação<br />

e resolveu ir até a redação do jornal A Notícia, falar com<br />

o redator-chefe Bianor Garcia, porém, conta-se que ao<br />

chegar lá o prefeito foi muito mal recebido, e, juntandose<br />

todos eles, funcionários do jornal em geral, se<br />

prepararam para dar uma surra no atrevido.<br />

Acontece que Ayton Mello era atrevido mesmo<br />

e naquele tempo era comum o porte de arma como<br />

proteção, uso corrente principalmente entre os<br />

políticos. Sendo assim, Ayton Mello, vendo-se<br />

ameaçado, não contou conversa e puxando a arma<br />

da cintura atirou para cima. Pronto... foi o bastante.<br />

No outro dia as manchetes falavam apenas do<br />

acesso de loucura do prefeito alcoolizado, que teve<br />

a ousadia de invadir a redação do jornal a fim de<br />

matar Bianor Garcia. Agora além de corrupto veio<br />

lhe juntar mais dois adjetivos: o de louco e<br />

homicida.<br />

Ayton Pereira de Mello, homem sério, correto e<br />

bom pai de família, foi preso e condenado a cumprir<br />

pena de sete meses na Cadeia Pública Desembargador<br />

Raimundo Vidal Pessoa, não pelos crimes de<br />

corrupção do qual foi acusado injustamente, mas, sim<br />

pela invasão inesperada e pelo tiro “não intencional”<br />

efetuado nas dependências de um dos mais<br />

importantes jornais da cidade.<br />

Teve como advogado de acusação o já mencionado<br />

João Valério, que de amigo passou a acusador,<br />

e como advogados de defesa, João Mendonça,<br />

Vivaldo Frota (que depois veio a ser governador do<br />

Estado), e por fim, professor Félix Valois Coelho<br />

Júnior.<br />

~ 39 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


Bartolomeu e Bertola<br />

NA TRAVESSA SANTA LUZIA NÃO havia quem não<br />

conhecesse o casal Bartolomeu e Bertola. Ele, um<br />

barbadiano muito alto, sempre com um tabuleiro à<br />

cabeça. Ela, uma mulher gordinha e bem baixinha,<br />

doceira de mão cheia, ranzinza como só ela soube um<br />

dia ser. Era uma espécie de guardiã dos quintais<br />

abandonados. Ai dos garotos quando invadiam estes<br />

matos atrás de frutas, principalmente quando se tratava<br />

de um lindo pé de abricó que dava com os galhos para o<br />

quintal de sua casa. Bertola virava uma fúria quando<br />

ouvia a gurizada se divertindo as suas custas.<br />

Hoje dona Bertola vive sozinha, posto que seu<br />

Bartolomeu partiu cedo desta vida e ela nunca mais<br />

casou. Tem agora apenas por companhia uma dúzia<br />

de gatos, já que toda a sua família mora em Belém.<br />

Quase não enxerga mais, cabelo carapinha; curto, está<br />

todo branco, porém, mesmo assim anda pelas ruas do<br />

bairro pra cima e pra baixo, numa total comunhão<br />

com suas ruas, pedras e calçadas, com seu vestido<br />

barato e pés descalços, guiada mais pelo instinto que<br />

pela visão.<br />

Carmem-doida! Gritava<br />

a criançada da antiga<br />

praça da prefeitura,<br />

a Carmem-doida endoidava<br />

mandava banana pra todos,<br />

~ 40 ~<br />

Virgínia Allan<br />

Carmem Doida


cuspia a dentadura<br />

xingava a mãe e a família<br />

da garotada e berrava<br />

os piores palavrões...<br />

Carmem-doida! E a tua mãe,<br />

está no hospício também?<br />

“No céu! Seus mizerentos<br />

rebentos do Satanás,<br />

na paz do Senhô, ela está!”<br />

E ia ao “Juizado<br />

de Menores” se queixar!<br />

“Seu juiz, não é prussive,<br />

tanta, tanta bandalheira,<br />

eu sou muié de respeito<br />

e não ardimito brincadeira!<br />

A gente tem de acaba<br />

com esses moleque de rua,<br />

já é a quinta dentadura<br />

que eles me faz quebrá,<br />

entonces esta, foi cara,<br />

ganhei ela de natar<br />

e tinha um dente de ouro<br />

bem na frente, seu doto<br />

eles tem de me pagá!”<br />

E lá se iam dois guardas<br />

a garotada autuar...<br />

Um dia, foi no Natal<br />

uma “vaquinha” correu<br />

na praça da prefeitura<br />

e Carmem-doida ganhou<br />

um presente dos meninos<br />

com cinco dentes de ouro<br />

~ 41 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


uma nova dentadura!<br />

E desde então Carmem-doida,<br />

muito mais doida, ficou...<br />

(Mady Benzecry 7 In: Sarandalhas, 1967)<br />

O que foi feito de Carmem Doida...?! A famosa<br />

louca que andava solta, nua ou enfeitada, pelas ruas da<br />

cidade, a vagar solitária por tão incompreensíveis e<br />

estreitos caminhos de sua mente em torvelinho?<br />

Guardo comigo uma única lembrança de Carmem<br />

Doida, uma lembrança dolorosamente nítida, que<br />

encheu-me de terror nos meus tempos de criança.<br />

Descobri como alguns seres humanos podem ser apenas<br />

carcaças sem compaixão; desprovidos da centelha de luz<br />

divina que ilumina e aquece o espírito, um poço de pura<br />

e total escuridão.<br />

Carmem Doida costumava vir muito ao nosso<br />

bairro; especialmente a nossa rua, pois, muitas vezes ia<br />

à casa de G. C. onde sua esposa, sempre a sua revelia,<br />

lhe preparava um prato de comida. Carmem Doida,<br />

após saborear a comida e beber um copo de água, lá se<br />

ia, contente da vida, ladeira cima. Nós, crianças, ficávamos<br />

quietinhas, olhando aquela pobre moça, ainda<br />

jovem, tão perdida.<br />

7 Mady Benoliel Benzecry, poetisa, nasceu em Manaus em 19 de fevereiro de<br />

1933, no seio de uma família tradicional do Estado do Amazonas. Viveu por<br />

muitos anos no Rio de Janeiro; onde se dedicava, junto com seu marido, o<br />

entalhador pernambucano Eugênio Carlos Batista, as artes plásticas. Deixou<br />

duas obras publicadas: De Todos os Crepúsculos (1964) e Sarandalhas (1967),<br />

sendo, ambos os livros ilustrados pelo pintor Moacir Andrade. Mady Benoliel<br />

Benzecry veio a falecer no dia 11 de julho de 2003.<br />

~ 42 ~<br />

Virgínia Allan


Um dia, para desprazer de todos o velho G. feito o<br />

“ogro” dos contos infantis, chegou quando ninguém o<br />

esperava, surpreendendo a esposa no generoso ato de<br />

“repartir o pão”, como reza o ensinamento cristão.<br />

O homem sem dó nem piedade, bateu em Carmem<br />

Doida com as próprias mãos, aplicando-lhe socos e<br />

pontapés. Era tamanha a sua fúria, que ninguém ousou<br />

defender a pobre louca e impressionou-me tanto, que eu<br />

nunca mais a esqueci. Até hoje me recordo da cena de<br />

violência explícita e gratuita. Carmem Doida, já tão<br />

surrada pela vida, não suportou mais este desacato e<br />

desapareceu, sumiu para sempre do bairro assim como<br />

também de nossas vidas e eu, nunca mais soube o que<br />

lhe aconteceu.<br />

A fazedora de anjos<br />

À RUA SANTO AFONSO, CERTA CASA, do outro lado<br />

da avenida Constantino Nery, durante um longo período<br />

foi bastante procurada por mulheres desesperadas.<br />

Uma senhora, diz-se que ex-enfermeira, cujo nome<br />

não me foi possível descobrir, já que os moradores<br />

preferem mantê-la, assim como toda a sua escusa<br />

atividade, no esquecimento, era conhecida como “a<br />

fazedora de anjos” e foi justamente ali, no bairro de <strong>São</strong><br />

<strong>Geraldo</strong>, santo protetor da maternidade e das mulheres<br />

grávidas, por ironia, viera se estabelecer e prosperar, a<br />

custa do desconsolo, das aflições e das mortes dos anjos.<br />

Não me cabe aqui fazer qualquer julgamento... o<br />

bom e o ruim? Maldade, crime ou um favor que ninguém<br />

mais estaria disposto a fazer na hora do desassossego?<br />

~ 43 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


Diz o povo que ela, a tal mulher “fazedora de anjos”,<br />

enriqueceu através da prática ilegal do aborto. Mais tarde<br />

seu “negócio” foi desmantelado pela polícia e não se<br />

soube mais nada dela, nem se continuou a exercer o seu<br />

“trabalho” que lhe rendeu má fama e muito dinheiro.<br />

Paulo Preto<br />

E O ÚLTIMO PERSONAGEM POPULAR que transitou<br />

a vida inteira pelo bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>, primeiramente<br />

como um jovem alto ao estilo anos 70, funksoul,<br />

cabelo a la black-power, sapatos plataformas e<br />

roupas extravagantes e coloridas, muito parecido com<br />

o ator e cantor negro Tony Tornado; depois como um<br />

“exemplo” do sujeito que estudou até enlouquecer,<br />

mas na verdade, ninguém sabe o quê, afinal, lhe aconteceu<br />

para se perder assim. Fala aos gritos, pronunciando<br />

discursos ininteligíveis, subindo e descendo as<br />

ruas, num ritmo alucinante.<br />

Lendas do folclore comuns à vida<br />

cotidiana do bairro<br />

QUANDO CRIANÇA OUVE-SE E INVENTA-SE todo tipo<br />

de histórias. O imaginário da região amazônica é<br />

extremamente rico graças ao casamento entre as raças<br />

que se efetuou ao longo do tempo. Histórias e superstições<br />

vindas da Europa e África, aqui se misturaram aos<br />

mitos indígenas, dando corpo e vida às esperanças e<br />

receios que iam dentro de cada um; uma forma de<br />

~ 44 ~<br />

Virgínia Allan


uscar e encontrar alívio, sossego e explicação para a<br />

árdua tarefa de viver ou sobreviver a cada dia.<br />

Contamos histórias por diversos motivos: seja para<br />

aquietar os filhos que estão começando a se descontrolar<br />

em sua danação ou então para acalmar-lhes os medos,<br />

preparando-os para lidar no futuro, com qualquer situação<br />

de risco ou insegurança. Contamos histórias para<br />

nós mesmos; contamos para nós mesmos a nossa própria<br />

história, voltando atrás sobre nossos passos a fim de<br />

lembrarmos o que está nos faltando ou ver, com clareza,<br />

aonde erramos.<br />

As histórias, desde muito tempo, contêm ensinamentos<br />

que agem de forma sutil na mente humana e<br />

devem ser escritas ou contadas por alguém que saiba<br />

atuar dentro desse contexto. Esta é a função das histórias,<br />

serem usadas na ampliação do pensamento humano.<br />

Hoje, elas são usadas e analisadas por psicólogos e<br />

psiquiatras, objetos de estudos de várias áreas da educação,<br />

entretanto, sabemos também que a ignorância nunca<br />

será totalmente extirpada do seio, e por tal motivo,<br />

nem sempre acolhedor de nossa sociedade, posto que<br />

ignorância não quer dizer apenas que a pessoa não<br />

estudou, quer dizer realmente que ela não compreendeu;<br />

compreender algo em sua essência requer um trabalho<br />

sincero e ativo sobre si mesmo, sob a direção de quem já<br />

foi e voltou pelo mesmo caminho. Compreender requer<br />

consciência e ter consciência é ter luz. Pode-se estudar a<br />

vida inteira e continuar ignorante.<br />

No Oriente os contos sempre foram de vital<br />

importância, tanto é assim que a tradição dos contadores<br />

de histórias era seguida com orgulho, cercada de respeito<br />

e admirada até mesmo pelos reis e sultões. Nas cortes<br />

~ 45 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


era comum encontrar estes honoráveis senhores que nos<br />

momentos mais difíceis sempre tinham um conselho ou<br />

uma solução que vinham através da recitação dos<br />

contos. Mas, no Ocidente em geral, embora não fosse<br />

regra, aonde os estudos da mente começavam a abordar<br />

novas questões a busca de iluminação graças a influência<br />

dos filósofos, ainda soia usar-se de terrores ocultos para<br />

dominar-se uma situação.<br />

No coração da floresta amazônica, cercada de<br />

mistérios, em que homens e bichos se transformam por<br />

conta de maldições e encantamentos, os pais ou babás<br />

costumavam aquietar os pequenos com histórias que<br />

mexiam em seus medos mais recônditos. Era só ouvir<br />

qualquer briga ou tolice infantil, que lá se vinham eles<br />

com a história do homem do saco, uma variante do<br />

quibungo africano: “Olha, se continuarem a brigar, ou se<br />

não pararem de chorar, já, já, homem do saco há de<br />

aparecer e levar todo mundo embora”.<br />

É.... as crianças até que se acalmavam, mas o trauma<br />

causado era enorme.<br />

Quibungo, Kibungo, Chibungo ou O<br />

Homem do Saco<br />

MITO DE ORIGEM AFRICANA, PRECISAMENTE da tribo<br />

bantu, 8 quase restrito ao Estado da Bahia, pouco<br />

conhecido em Estados ou regiões do Brasil. Kibungo,<br />

em Congo e Angola, quer dizer “lobo”. Os velhos<br />

escravos costumavam descrevê-lo como um ser voraz,<br />

8 Bantu ou Banto: Uma das raças negras que adentraram o Brasil quando do<br />

tempo da escravidão. Originários do centro e sul da África.<br />

~ 46 ~<br />

Virgínia Allan


medroso, covarde, não muito inteligente, de feio aspecto,<br />

meio-bicho, meio-homem com a cabeça grande com um<br />

enorme buraco no centro das costas que se abria e<br />

fechava quando ele abaixava ou levantava a cabeça.<br />

Sendo covarde, suas vítimas prediletas eram mulheres e<br />

crianças. Suas histórias, contos romanceados, com trechos<br />

cantados é típico da literatura oral africana, assim<br />

como a nossa literatura de cordel.<br />

Câmara Cascudo acreditava que este personagem<br />

tão comum dos contos africanos, aqui sofreu algumas<br />

alterações, o que é natural de acontecer quando uma<br />

cultura migra para outra. Portanto, o nosso “homem<br />

do saco” não deixa de ser uma de suas inúmeras interpretações<br />

contando como ressalva que o Kibungo, ao<br />

contrário do “homem do saco” que punha lá dentro<br />

“os seus escolhidos” levando-as embora, o quibungo os<br />

jogava dentro do buraco que possuía nas costas.<br />

Apesar de tudo, o quibungo morre facilmente, qualquer<br />

coisa que mate um ser humano é capaz também<br />

de matá-lo e na hora da morte faz tal estardalhaço que<br />

chega a dar pena.<br />

A mulher que virava porca<br />

A LENDA MAIS COMUM QUE CORRIA pelas vizinhanças,<br />

dizia respeito a uma senhora conhecida por S de cuja<br />

casa ninguém ousava se aproximar. Diziam eles que a<br />

velha senhora virava bicho, uma porca, grande e feia, que<br />

se punha a fuçar e a rolar na areia, a perseguir a quem<br />

pusesse os pés em seu quintal, aparecendo e desaparecendo<br />

com extrema rapidez.<br />

~ 47 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


A criançada é que inventava essa história para fazer<br />

medo às outras menores a fim de evitar que elas os<br />

acompanhassem em suas fugas rotineiras de casa.<br />

Dona S, creio, digo isso, mas pelo óbvio da situação,<br />

já que, das pessoas com quem falei nenhuma quis entrar<br />

em maiores detalhes, era uma mulher solitária, sem<br />

muitos atrativos e nenhum amigo.<br />

A mulher que vira porca é mito de origem portuguesa<br />

e nas palavras de Câmara Cascudo, em seu Dicionário<br />

do Folclore Brasileiro: “A porca, símbolo clássico dos<br />

baixos apetites carnais, sexualidade, gula, imundície,<br />

surge inopinadamente diante dos freqüentadores dos<br />

bailes noturnos e locais de prazer”.<br />

Conclusão<br />

PENSEI QUE CONTAR A HISTÓRIA de meu bairro, o<br />

<strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>, seria um processo assaz demorado e quase<br />

desanimei ao constatar a curta memória de seus moradores,<br />

assim como a falta de registros (fotos, documentos),<br />

a fatos relevantes à vida da comunidade, e, sendo assim,<br />

claro é, que nem todas as histórias puderam, aqui, ser<br />

documentadas.<br />

Felizmente, fui testemunha, e, algumas vezes, de<br />

forma direta e indireta, participante de vários acontecimentos<br />

e que aliados a uma minuciosa pesquisa, ajudaram-me<br />

a construir, pelo menos, em parte, um retrato<br />

fiel do lugar que me abriga e protege e onde convivo em<br />

família por mais de trinta anos.<br />

Infância, juventude e o começo de minha vida adulta<br />

encontram-se espalhadas pelas ruas que vão desde o<br />

~ 48 ~<br />

Virgínia Allan


Seringal Mirim ao começo do bairro da Chapada,<br />

misturadas ao cheiro do café torrado que subia do<br />

Moinho Amazonas, ao calor do sol pelas manhãs nas idas<br />

e vindas da escola, ao perigo de se atravessar às avenidas<br />

Constantino Nery e Djalma Batista, a curiosidade que<br />

nos despertava o batuque e ao medo que nos inspirava a<br />

boneca Kamélia, tudo isso aliado ao lento despertar da fé<br />

provocado pela doce presença feminina das Irmãs<br />

Adoradoras do Sangue de Cristo e pelo inesquecível<br />

pároco da igreja de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>, padre Henrique, ambos,<br />

pai e mãe de uma via espiritual que continua a guiar a<br />

tantos nesta vida afora. Mas, entretanto, apesar de muito<br />

agradável, não me alonguei em recordações pessoais já<br />

que a proposta deste trabalho visava o bairro por inteiro,<br />

como um corpo único, com lembranças que fossem<br />

comuns a todos, cujo passado, embora adormecido, está<br />

presente no coração de cada um.<br />

Nos dias de hoje, o bairro tornou-se um grande<br />

centro de atrações onde jovens e adultos buscam por<br />

distrações já que parques, sorveterias, restaurantes,<br />

lanchonetes e etc. proliferam pelo bairro, em constante<br />

mutação, oferecendo, além da diversão, todos os tipos de<br />

serviço que se possa vir a precisar.<br />

A proximidade com os shoppings e o centro da<br />

cidade tem contribuído para o grande afluxo de gente<br />

que todo dia se desloca para ali, num constante vai-evem,<br />

seja por motivo de trabalho, estudos ou diversão.<br />

O bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong> é um local aprazível, de<br />

fácil acesso, embora a precariedade da rua Pico das<br />

Águas ainda salte aos olhos e acelere os batimentos do<br />

coração, pois, subir e descer a bendita escadaria, é como<br />

pagar promessa, uma obrigação.<br />

~ 49 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


O crescimento da cidade trouxe consigo toda sorte<br />

de preocupações ao bairro, sendo a maior delas a questão<br />

da violência, presente em todos os seus aspectos.<br />

Mas é preciso ter fé e trabalhar para que um futuro<br />

promissor possa se desenhar para a nova geração, que<br />

ela possa viver sem tantos medos e com uma melhor<br />

visão do ser humano, e que venha a usufruir desse mar<br />

de floresta que circunda nossa cidade, verde mar repleto<br />

de vida, esperança de renovação para o mundo.<br />

Finalizo com as palavras de dona Rosa Barbosa de<br />

Moura, a Rosa Sorriso, moradora da rua Pará, segundo o<br />

seu depoimento feito ao Jornal do Comércio na edição<br />

comemorativa em homenagem 337.º aniversario da<br />

cidade em que diz: “Conheço este bairro como ninguém.<br />

Gosto muito daqui, do presente. As pessoas têm que<br />

saber viver cada momento da vida”.<br />

Bibliografia<br />

ALLAN, Virgínia. Moronetá – crônicas manauaras. Manaus:<br />

Editora Valer, 2002.<br />

BENCHIMOL, Samuel. Amazônia – Formação Social e<br />

Cultural. Manaus: Editora Valer, 1999.<br />

LOUREIRO, Antonio José Souto. O Amazonas na época<br />

imperial Manaus, edição comemorativa 45.º aniversario<br />

de T. Loureiro Ltda., 1989.<br />

JORNAL DO COMÉRCIO: Edição comemorativa em<br />

homenagem ao 337.º aniversário da idade de Manaus.<br />

(23/ 24 de outubro de 2006).<br />

HOUAISS, Antonio; Mauro de Salles Villar, Francisco<br />

Manoel de Mello Franco. Mini Houaiss: Dicionário da<br />

~ 50 ~<br />

Virgínia Allan


Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, 2004, 2.ª edição –<br />

revista e ampliada, editora Objetiva.<br />

NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO da Língua Portuguesa;<br />

da Academia Brasileira de Letras e da Academia<br />

Brasileira de Filologia; 2.ª edição, revista e aumentada;<br />

editora Nova Fronteira, 1986.<br />

Webgrafia<br />

http://www.bv.am.gov.br/portal/conteudo/serie_memoria<br />

Biblioteca Virtual do Amazonas<br />

Seringal Mirim Robério Braga<br />

http://www.taquiprati.com.br<br />

http://www.jcam.com.br<br />

Evolução do Carnaval desde meados do século XIX até<br />

hoje é destaque na edição Anderson de Vasconcelos<br />

http://www.sumauma.net<br />

Poesias e poetas do Amazonas, 2006, editora Valer.<br />

Jornal Amazonas em Tempo (03/06/04).<br />

http://www.amazonia.bo/bibli/historia1.doc<br />

História, economia Y politica del caucho em Amazonia<br />

Ricard Scoles. Julio, 2003.<br />

http://www.jangadabrasil.com.br<br />

http://www.cademeusanto.com.br/sao_geraldo<br />

http://www.geocities.com/saogeraldomajella<br />

http://www.thelisbongirafe,typepad.com.<br />

~ 51 ~<br />

Bairro de <strong>São</strong> <strong>Geraldo</strong>


Esta obra integra as Edições Muiraquitã do Conselho Municipal<br />

de Cultura e foi vencedora do Prêmio Literário Mário Ypiranga<br />

Monteiro, em Garamond 11/16 e impressa em agosto de 2010,<br />

pela Grafisa.

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