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Raquel acusa a Deus Stephan Zweig Tradução de ... - Icjbs.com.br

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<strong>Tradução</strong> <strong>de</strong> Odilon Galotti<<strong>br</strong> />

<strong>Raquel</strong> <strong>acusa</strong> a <strong>Deus</strong><<strong>br</strong> />

<strong>Stephan</strong> <strong>Zweig</strong><<strong>br</strong> />

Certa vez os habitantes insolentes e inconstantes <strong>de</strong> Jerusalém haviam <strong>de</strong> novo esquecido a Santa<<strong>br</strong> />

Aliança e, novamente, haviam feito sacrifícios a ídolos <strong>de</strong> <strong>br</strong>onze. Mas nem <strong>com</strong> essa impieda<strong>de</strong> se<<strong>br</strong> />

satisfizeram; colocaram ainda no templo <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>, construído por Salomão, servo do Senhor, uma<<strong>br</strong> />

imagem <strong>de</strong> Baal, e o sangue das vítimas correu abundante.<<strong>br</strong> />

Ao ver <strong>Deus</strong> <strong>com</strong>o eles, no coração do santuário, zombavam <strong>de</strong> sua pessoa, encolerizou-se.<<strong>br</strong> />

Esten<strong>de</strong>u a mão e sua voz fez tremer os céus. Sua paciência havia se esgotado. Deliberou <strong>de</strong>struir<<strong>br</strong> />

a cida<strong>de</strong> pecadora e dispersar seus habitantes. Seus trovões, anunciando esta resolução,<<strong>br</strong> />

ressoaram <strong>de</strong> um extremo do mundo ao outro.<<strong>br</strong> />

Tendo o Todo-Po<strong>de</strong>roso manifestado sua cólera, a terra tremeu <strong>de</strong> terror. As janelas do céu<<strong>br</strong> />

a<strong>br</strong>iram-se, <strong>com</strong>o acontecera nos dias do patriarca Noé; as fontes do profundo abismo jorraram e<<strong>br</strong> />

os gran<strong>de</strong>s montes oscilaram. As aves do ar caíram ao solo e até os anjos se assustaram <strong>com</strong> a<<strong>br</strong> />

fúria do Senhor. Na terra, na cida<strong>de</strong> con<strong>de</strong>nada à ruína, os homens, apesar <strong>de</strong> ouvirem o trovejar<<strong>br</strong> />

da voz <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>, permaneceram surdos às ameaças <strong>de</strong>ste. Não sabiam que haviam sido<<strong>br</strong> />

con<strong>de</strong>nados à <strong>de</strong>struição. Entretanto perceberam que os alicerces do mundo estavam<<strong>br</strong> />

esboroando, que em pleno dia reinavam trevas <strong>com</strong>o à meia-noite, que soprava um furacão que<<strong>br</strong> />

que<strong>br</strong>ava os troncos dos po<strong>de</strong>rosos cedros <strong>com</strong>o se estes fossem colmos. Temeram que os tetos<<strong>br</strong> />

caíssem so<strong>br</strong>e suas cabeças, fugiram <strong>de</strong> suas casas para o exterior e ainda mais se espantaram em<<strong>br</strong> />

face da violência do vento e da chuva e diante do cheiro <strong>de</strong> enxofre da atmosfera escura. Em vão<<strong>br</strong> />

dilaceraram suas vestes e esparziram cinzas so<strong>br</strong>e suas cabeças, em vão se humilharam e<<strong>br</strong> />

imploraram o perdão a <strong>Deus</strong>. A fúria dos elementos não ce<strong>de</strong>u e as trevas não se dissiparam.<<strong>br</strong> />

Tão violento foi o trovejar da voz <strong>de</strong> <strong>Deus</strong> que até <strong>de</strong>spertou os mortos do sono em que jaziam a<<strong>br</strong> />

espera do toque <strong>de</strong> trombeta para o Juízo Final, conforme a <strong>de</strong>terminação divina. Acreditando que<<strong>br</strong> />

essa terrível convocação havia soado, ergueram-se e voaram em direção ao céu, e após haverem<<strong>br</strong> />

atravessado a horrível tempesta<strong>de</strong>, viram que ainda não era a hora do Juízo Final. Todavia as<<strong>br</strong> />

almas dos antepassados se reuniram em um círculo ao redor do trono divino, a fim <strong>de</strong> suplicar que<<strong>br</strong> />

a ruína fosse afastada <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes e dos pináculos da Cida<strong>de</strong> Santa.<<strong>br</strong> />

A<strong>br</strong>ão, Isaac e Jacob iniciaram as súplicas. Mas suas vozes foram sufocadas pela voz do Senhor, o<<strong>br</strong> />

qual repetia que por tempo <strong>de</strong>masiadamente longo havia aturado a obstinação das criaturas.<<strong>br</strong> />

Apesar <strong>de</strong> serem elas ingratas, o <strong>de</strong>smoronamento do Templo ensinaria aos perversos o que não<<strong>br</strong> />

haviam podido apren<strong>de</strong>r pelo amor.<<strong>br</strong> />

Des<strong>de</strong> que os antecessores do povo eleito nada conseguiram, imploraram aqueles que em vida<<strong>br</strong> />

haviam sido os intérpretes da palavra <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>, os profetas Moisés, Samuel, Elias e Eliseu – homens<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> línguas <strong>de</strong> fogo e corações ar<strong>de</strong>ntes. Mas o Senhor não quis escutar e a tempesta<strong>de</strong> <strong>de</strong> cólera<<strong>br</strong> />

repeliu as palavras <strong>de</strong>les. Mais intensos do que antes se tornaram os raios que <strong>de</strong>veriam dar cabo<<strong>br</strong> />

do Templo e arrasá-lo.


Os profetas e sábios também <strong>de</strong>sanimaram. Suas almas tremiam <strong>com</strong>o colmos <strong>de</strong> gramíneas na<<strong>br</strong> />

tempesta<strong>de</strong>, eles foram <strong>com</strong>o folhas mortas calcadas aos pés. Nenhum <strong>de</strong>les ousou proferir mais<<strong>br</strong> />

uma palavra.<<strong>br</strong> />

Mas a alma <strong>de</strong> uma mulher, a <strong>de</strong> <strong>Raquel</strong>, a mãe <strong>de</strong> Israel, a qual em seu túmulo, em Roma,<<strong>br</strong> />

igualmente ouvira a proclamação <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>, apresentou-se chorando pelos seus filhos e recusandose<<strong>br</strong> />

a aceitar consolo.<<strong>br</strong> />

Fortalecida pelo seu amor, ousou <strong>Raquel</strong> narrar sua parábola a Ele, cuja face não podia ver, pois<<strong>br</strong> />

ninguém a não ser os anjos, po<strong>de</strong> olhar para o semblante <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>, antes do Juízo Final.<<strong>br</strong> />

Ajoelhando-se, ergueu as mãos e disse:<<strong>br</strong> />

“Meu coração é <strong>com</strong>o água <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim. Todo-Po<strong>de</strong>roso, para assim me dirigir a ti, mas tu<<strong>br</strong> />

mesmo foste que fizeste este coração tão tímido, e me <strong>de</strong>ste lábios para <strong>com</strong> eles, embora<<strong>br</strong> />

timidamente, proferir a minha prece. A dura necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> meus filhos autoriza-me a falar. Não<<strong>br</strong> />

me <strong>de</strong>ste nem sabedoria nem astúcia, nem sei <strong>com</strong>o aplacar tua ira. Mas sabes o que quero dizer,<<strong>br</strong> />

pois cada palavra se forma no teu espírito antes <strong>de</strong> ser pronunciada por lábios humanos e cada<<strong>br</strong> />

ação humana é prevista por ti. Apesar disso, rogo que ouças meu pedido em favor <strong>de</strong>sses po<strong>br</strong>es<<strong>br</strong> />

pecadores”.<<strong>br</strong> />

Tendo assim falado, <strong>Raquel</strong> abaixou a cabeça. <strong>Deus</strong> viu sua humilda<strong>de</strong> e notou as lágrimas que lhe<<strong>br</strong> />

corriam pelas faces. Conteve sua cólera e calou-se a fim <strong>de</strong> escutar o pedido <strong>de</strong> <strong>Raquel</strong>.<<strong>br</strong> />

Enquanto <strong>Deus</strong> escutava no céu, o espaço estava vazio e o tempo parado. O vento cessara <strong>de</strong><<strong>br</strong> />

uivar, os ribombos do trovão não se ouviram mais, os animais na terra ficaram imóveis, as aves do<<strong>br</strong> />

ar encolheram as asas, ninguém ousava respirar. A marcha do tempo estacionou e os querubins<<strong>br</strong> />

permaneceram imóveis <strong>com</strong>o estátuas. Até mesmo o sol, a lua e as estrelas pararam em seu curso<<strong>br</strong> />

e o mesmo se <strong>de</strong>u <strong>com</strong> os rios.<<strong>br</strong> />

Na terra, os habitantes da cida<strong>de</strong> con<strong>de</strong>nada à <strong>de</strong>struição nada sabiam da <strong>de</strong>fesa que <strong>Raquel</strong> fazia<<strong>br</strong> />

<strong>de</strong>les, nem que o escutava suas súplicas, pois os mortais não po<strong>de</strong>m perceber o que se passa no<<strong>br</strong> />

céu. Todos sabiam que a tempesta<strong>de</strong> havia amainado. Mas quando, encorajados <strong>com</strong> a mercê,<<strong>br</strong> />

olharam para o céu, viram nuvens negras, suspensas so<strong>br</strong>e suas cabeças <strong>com</strong>o o pano mortuário<<strong>br</strong> />

que co<strong>br</strong>e um esquife. Nas trevas não dissipadas, eles estava aterrorizados, tanto mais porque o<<strong>br</strong> />

silêncio continuava a cercá-los do mesmo modo que uma mortalha envolve um cadáver.<<strong>br</strong> />

Mas <strong>Raquel</strong>, contente por <strong>Deus</strong> dar atenção a suas súplicas, criou coragem, ergueu a cabeça e<<strong>br</strong> />

continuou: — “Senhor, <strong>com</strong>o sabes habitei em Haran, o país do povo do Levante, on<strong>de</strong> guardava<<strong>br</strong> />

as ovelhas do meu pai Labão.<<strong>br</strong> />

Uma manhã, quando nós raparigas levávamos as ovelhas para beber água, faltou-nos força para<<strong>br</strong> />

rolar a pedra da boca do poço. Então apareceu um jovem, um estrangeiro, <strong>de</strong> boa aparência, que<<strong>br</strong> />

avançou para ajudar-nos e rolou a pedra <strong>com</strong> tanta facilida<strong>de</strong> que ficamos maravilhadas <strong>com</strong> sua<<strong>br</strong> />

força. O jovem chamava-se Jacob e era filho <strong>de</strong> Rebeca, irmã <strong>de</strong> meu pai Labão. Já uma hora<<strong>br</strong> />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> nosso encontro junto ao poço nossos corações ansiavam um pelo outro. De noite não<<strong>br</strong> />

pu<strong>de</strong> dormir <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong> – nem estou envergonhada <strong>de</strong> confessar isso, vendo que se uma paixão<<strong>br</strong> />

ar<strong>de</strong> em nós <strong>com</strong>o chamas da sarça ar<strong>de</strong>nte, é por tua vonta<strong>de</strong>, Senhor, que tais coisas se dão.<<strong>br</strong> />

Por tua vonta<strong>de</strong> acontece que uma mulher <strong>de</strong>seje o a<strong>br</strong>aço do homem e que o jovem e a jovem


sejam magicamente atraídos um pelo outro. Porque estas coisas são assim, não tentamos<<strong>br</strong> />

extinguir as chamas, mas no dia primeiro <strong>de</strong> nosso encontro Jacob e eu fizemos promessas <strong>de</strong><<strong>br</strong> />

casamento.<<strong>br</strong> />

“Como sabes, Senhor, meu pai Labão era um varão duro, duro <strong>com</strong>o o solo pedregoso que lavrava,<<strong>br</strong> />

duro <strong>com</strong>o os chifres dos bois que submetia à canga. Quando Jacob me pediu em casamento a<<strong>br</strong> />

meu pai, este antes <strong>de</strong> tudo quis saber se o preten<strong>de</strong>nte, seu so<strong>br</strong>inho, era um homem <strong>de</strong> sua<<strong>br</strong> />

marca, um trabalhador esforçado e dotado <strong>de</strong> paciência férrea. Labão exigiu <strong>de</strong> Jacob sete anos <strong>de</strong><<strong>br</strong> />

serviço em troca <strong>de</strong> minha mão. Minha alma tremeu e a face <strong>de</strong> Jacob empali<strong>de</strong>ceu, pois para nós,<<strong>br</strong> />

jovens e sôfregos, sete anos pareciam uma eternida<strong>de</strong>. Para ti, Senhor, sete anos constituem<<strong>br</strong> />

apenas um instante, um pestanejo, pois que o tempo nada é para o Eterno. Mas para nós mortais<<strong>br</strong> />

(permita que eu o lem<strong>br</strong>e, Senhor), sete anos representam um décimo <strong>de</strong> nossa vida. Curto é o<<strong>br</strong> />

tempo a nós concedido, e apenas a<strong>br</strong>imos os olhos, a fim <strong>de</strong> vermos tua santa luz, já eles cerram<<strong>br</strong> />

nas trevas da morte. Como um regato na primavera, corre a vida humana, e uma onda que<<strong>br</strong> />

passou, não po<strong>de</strong> mais voltar. Sete longos anos tivemos que ficar separados, apesar <strong>de</strong> vivermos<<strong>br</strong> />

em íntima camaradagem, separados enquanto nossos lábios ansiavam por trocar beijos. Todavia,<<strong>br</strong> />

Jacob conformado <strong>com</strong> o <strong>de</strong>sejo do tio e eu obediente à or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> meu pai, resolvemos esperar,<<strong>br</strong> />

obe<strong>de</strong>cer e ter paciência durante sete anos, porque nos amávamos.<<strong>br</strong> />

“Mas, tendo tu dado paixões ar<strong>de</strong>ntes a tuas criaturas e nelas instilado uma ansieda<strong>de</strong> impetuosa,<<strong>br</strong> />

por causa da <strong>br</strong>evida<strong>de</strong> da vida, tornaste-lhes difícil a paciência. Sabemos que à nossa primavera<<strong>br</strong> />

se segue imediatamente o nosso outono, que o nosso verão é curto. É por isso que agarramos as<<strong>br</strong> />

horas <strong>de</strong> alegria que voam, e <strong>de</strong>sejamos aproveitar o máximo dos prazeres efêmeros. Como se<<strong>br</strong> />

po<strong>de</strong> querer que nós, que envelhecemos <strong>de</strong> dia para dia, esperemos <strong>com</strong> paciência?<<strong>br</strong> />

Naturalmente somos sôfregos, pois, por tua lei, o tempo perpetuamente nos consome. Po<strong>de</strong>mos<<strong>br</strong> />

nós <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ter pressa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que sabemos que a morte, sem cessar, anda em nossas pegadas?<<strong>br</strong> />

Todavia dominamos nossos impulsos, apesar <strong>de</strong> cada dia <strong>de</strong> espera ser para nós mais longo do que<<strong>br</strong> />

um milhar <strong>de</strong> dias.<<strong>br</strong> />

Afinal, <strong>de</strong>corridos os sete anos, pareceu, ao olharmos para trás, que eles não foram mais que um<<strong>br</strong> />

dia. Assim, Senhor, esperei eu por Jacob e assim esperou Jacob por mim.<<strong>br</strong> />

“Quando estava perto o fim do sétimo ano, procurei alegre meu pai Labão, meu pai olhou<<strong>br</strong> />

friamente para a minha alegria. Seu so<strong>br</strong>olho enrugou-se e por algum tempo sua boca não se<<strong>br</strong> />

moveu. Por fim interrompeu o silêncio e or<strong>de</strong>nou-me que fosse chamar minha irmã Lia.<<strong>br</strong> />

“Lia, <strong>com</strong>o sabes, Senhor, era dois anos mais velha do que eu e <strong>de</strong> feições grosseiras. Por isso<<strong>br</strong> />

nenhum homem a cobiçava, razão pela qual ela andava muito triste. Todavia eu a amava<<strong>br</strong> />

vivamente pela sua aflição e pela sua afabilida<strong>de</strong>. Quando meu pai me or<strong>de</strong>nou que chamasse Lia,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>preendi imediatamente que ele tencionava enganar a mim e a Jacob. Por isso, ocultei-me<<strong>br</strong> />

junto da tenda, para ouvir a conversa <strong>de</strong>les. Meu pai disse o seguinte:<<strong>br</strong> />

“Lia, meu so<strong>br</strong>inho Jacob serviu-me lealmente durante sete anos, a fim <strong>de</strong> obter a mão <strong>de</strong> <strong>Raquel</strong>.<<strong>br</strong> />

Entretanto, em teu favor, não lha quero conce<strong>de</strong>r, visto que não <strong>de</strong>ve acontecer em nossa terra<<strong>br</strong> />

que a mais moça seja dada em casamento antes da primogênita. No <strong>com</strong>eço do mundo o<<strong>br</strong> />

Onipotente <strong>de</strong>terminou que fôssemos fecundos e que nos multiplicássemos para que pudéssemos<<strong>br</strong> />

povoar seu mundo e gerássemos muitos seres que pu<strong>de</strong>ssem louvar seu santo nome. Ele não<<strong>br</strong> />

<strong>de</strong>sejou que o solo ficasse estéril ou que uma mulher não <strong>de</strong>sse à luz. Nem ovelha nem vitela


pastam em meus campos sem produzirem <strong>de</strong> acordo <strong>com</strong> a espécie. Po<strong>de</strong>-se esperar <strong>de</strong> mim que<<strong>br</strong> />

permita que a madre <strong>de</strong> minha filha mais velha permaneça fechada? Prepara-te, pois, Lia. Põe o<<strong>br</strong> />

véu <strong>de</strong> noiva e Jacob (sem o saber) casará contigo em vez <strong>de</strong> <strong>com</strong> <strong>Raquel</strong>”.<<strong>br</strong> />

Assim falou meu pai a Lia, que o ouvia em tímido silêncio.<<strong>br</strong> />

“Mas eu, que escutava, fiquei cheia <strong>de</strong> ódio contra meu pai Labão e contra minha irmã Lia.<<strong>br</strong> />

Perdoa-me, Senhor, <strong>de</strong> ter sido eu tão pouco filial e fraternal; mas lem<strong>br</strong>a-te <strong>de</strong> que eu e Jacob<<strong>br</strong> />

esperamos um pelo outro sete anos e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> todo seu trabalho, minha irmã <strong>de</strong>veria ser<<strong>br</strong> />

o<strong>br</strong>igada a casar <strong>com</strong> aquele cuja vida era para mim mais cara do que a minha própria. Rebelei-me<<strong>br</strong> />

contra meu pai, do mesmo modo que teus filhos <strong>de</strong> Jerusalém se rebelaram contra Ti, pois,<<strong>br</strong> />

Senhor, nos fizeste <strong>de</strong> modo que nos tornamos teimosos quando julgamos ser injustamente<<strong>br</strong> />

tratados. Às ocultas falei <strong>com</strong> Jacob e lhe revelei o plano <strong>de</strong> meu pai. Para que o projeto pu<strong>de</strong>sse<<strong>br</strong> />

ser frustrado, <strong>de</strong>i-lhe um sinal pelo qual lhe fosse possível reconhecer-me. “Quando estiveres<<strong>br</strong> />

casado, disse-lhe eu, tua noiva te beijará três vezes na fronte antes <strong>de</strong> entrar na tenda”. Jacob<<strong>br</strong> />

mostrou-se <strong>de</strong> acordo <strong>com</strong> o plano.<<strong>br</strong> />

Nessa tar<strong>de</strong>, Labão pôs o véu <strong>de</strong> noiva em Lia. Com medo <strong>de</strong> que Jacob a reconhecesse antes que<<strong>br</strong> />

se unisse a ela, também arrebicou habilmente o semblante da filha. Temendo que algum dos<<strong>br</strong> />

servos me prevenisse o que estava passando, pren<strong>de</strong>u-me no celeiro. Como uma coruja, meu<<strong>br</strong> />

coração foi <strong>de</strong>vorado pela raiva e pela inquietação.<<strong>br</strong> />

Não, <strong>com</strong>o sabes, Senhor, porque eu invejasse minha irmã pelo fato <strong>de</strong> <strong>de</strong>ver ser ela possuída por<<strong>br</strong> />

Jacob, mas sim porque estava indignada <strong>com</strong> o fato <strong>de</strong> meu amado ser enganado naquilo que para<<strong>br</strong> />

conseguir havia servido sete anos.<<strong>br</strong> />

“Cerrei os punhos, quando os címbalos soaram alegremente, e minhas paixões me corroeram a<<strong>br</strong> />

alma <strong>com</strong>o leões dilaceram suas vítimas”.<<strong>br</strong> />

“Assim cativa e esquecida passei horas enfadonhas, amargurada, até que, quando as trevas<<strong>br</strong> />

exteriores eram mais intensas do que as <strong>de</strong> minha alma, alguém correu os ferrolhos, a<strong>br</strong>iu <strong>de</strong> leve<<strong>br</strong> />

a porta e Lia entrou. Sim, Lia, minha irmã, saíra furtivamente para visitar-me antes das bodas.<<strong>br</strong> />

Reconheci seus passos, mas me <strong>de</strong>sviei hostilmente, pois meu coração estava revoltado contra<<strong>br</strong> />

ela. Lia passou a mão em meus cabelos e, quando ergui os olhos, pu<strong>de</strong> perceber, graças à luz da<<strong>br</strong> />

lanterna que ela trazia, que seu semblante estava som<strong>br</strong>io. Isso, confesso francamente, Senhor,<<strong>br</strong> />

causou em mim um prazer perverso. Agradou-me ver que ela estava inquieta, que também Lia<<strong>br</strong> />

sofria no dia <strong>de</strong> seu casamento, porém ela, po<strong>br</strong>e inocente, não suspeitava <strong>de</strong> meus sentimentos.<<strong>br</strong> />

Não havíamos mamado no mesmo seio e sempre não nos amamos mutuamente? Com confiança<<strong>br</strong> />

ela me a<strong>br</strong>açou e disse <strong>com</strong> lábios pálidos:<<strong>br</strong> />

Qual será o fim disso, <strong>Raquel</strong>, minha irmã? Esse plano <strong>de</strong> nosso pai aflige-me o coração. Ele te tira<<strong>br</strong> />

o teu amado e o dá a mim: o propósito <strong>de</strong> assim enganar é aflitivo. Como posso atrever-me a<<strong>br</strong> />

substituir-te? Minhas pernas recursar-se-ão a suportar o corpo e meu coração está cheio <strong>de</strong> medo,<<strong>br</strong> />

pois, sem dúvida, <strong>Raquel</strong>, Jacob <strong>de</strong>sco<strong>br</strong>irá a frau<strong>de</strong>. Como ficarei envergonhada, se por isso ele<<strong>br</strong> />

me expulsar <strong>de</strong> sua tenda! Até a segunda e terceira geração, os filhos mofarão <strong>de</strong> mim, dizendo:<<strong>br</strong> />

“Aquela é Lia, a vil Lia! Conheceis sua história? Ela foi impingida a um esposo que não a quis<<strong>br</strong> />

possuir quando <strong>de</strong>sco<strong>br</strong>iu a frau<strong>de</strong> e a enxotou <strong>com</strong>o a um cão tinhoso”. Que <strong>de</strong>vo fazer, querida


<strong>Raquel</strong>? Devo arriscar-me nessa aventura ou contrariar nosso pai (cuja mão é rigorosa)? Como<<strong>br</strong> />

posso evitar que Jacob <strong>de</strong>scu<strong>br</strong>a cedo <strong>de</strong>mais a frau<strong>de</strong> <strong>de</strong> modo que a vergonha não caia so<strong>br</strong>e a<<strong>br</strong> />

minha cabeça inocente? Auxilia-me, irmã, imploro-te, em nome do .<<strong>br</strong> />

“Senhor, eu ainda me achava cheia <strong>de</strong> cólera e, apesar <strong>de</strong> gostar muito <strong>de</strong> minha irmã, minha<<strong>br</strong> />

perversida<strong>de</strong> tornou a ansieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>la um prazer para mim. Mas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ela apelou para teu<<strong>br</strong> />

santo nome, o mais santo dos teu nomes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que me implorou em nome do , o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> tua<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>paixão, a força <strong>de</strong> tua bonda<strong>de</strong> correram em minhas veias <strong>com</strong>o vinho e penetraram <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

raio <strong>de</strong> luz nas trevas <strong>de</strong> minha alma. Assim se verificou um dos teus eternos milagres. Ó, Senhor,<<strong>br</strong> />

as barreiras que separam cada um <strong>de</strong> nós dos outros, caem no instante em que olhamos <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

simpatia os sofrimentos do nosso próximo. A ansieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> minha irmã transmitiu-se a mim <strong>de</strong><<strong>br</strong> />

modo que em vez <strong>de</strong> pensar no meu próprio sofrimento senti sua gran<strong>de</strong> aflição. Participando <strong>de</strong><<strong>br</strong> />

sua tristeza, eu, tua serva ignorante, (presta atenção a isto, meu Senhor, suplico-te), me<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>pa<strong>de</strong>ci <strong>de</strong>la no momento em que ela chorou diante <strong>de</strong> mim, tal qual agora, neste instante, eu<<strong>br</strong> />

choro perante a Tua Pessoa. Tive <strong>com</strong>paixão <strong>de</strong>la, porque ela apelou para minha pieda<strong>de</strong>, tal qual<<strong>br</strong> />

eu agora apelo para Ti. Contra meu interesse, ensinei a Lia o modo <strong>de</strong> enganar a Jacob, revelando<<strong>br</strong> />

a ela o sinal que havia <strong>com</strong>binado <strong>com</strong> ele. “Beija-o três vezes na fronte”, disse eu, “antes <strong>de</strong><<strong>br</strong> />

entrar na tenda”. Destarte, por amor a Ti, Todo-Misericordioso, consegui triunfar so<strong>br</strong>e meu<<strong>br</strong> />

ciúme e traí o homem que eu amava.<<strong>br</strong> />

Depois que transmiti esse segredo a Lia, ela não po<strong>de</strong> conter-se por mais tempo, ajoelhou-se<<strong>br</strong> />

diante <strong>de</strong> mim, acariciou-me as mãos e beijou a orla <strong>de</strong> minha túnica; pois fizeste <strong>com</strong> que Tuas<<strong>br</strong> />

criaturas sempre se encham <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> gratidão quando percebem nas outras um traço<<strong>br</strong> />

<strong>de</strong> Tua Bonda<strong>de</strong>. A<strong>br</strong>açamo-nos e nossas lágrimas misturaram-se em nossas faces, Lia estava<<strong>br</strong> />

consolada e já ia retirar-se. Mas quando se ergueu, mais uma vez seu semblante se co<strong>br</strong>iu <strong>de</strong><<strong>br</strong> />

tristeza e seus lábios <strong>de</strong> novo empali<strong>de</strong>ceram.<<strong>br</strong> />

“Agra<strong>de</strong>ço-te, irmã, por tua bonda<strong>de</strong>”, disse ela, “e farei o que or<strong>de</strong>nas. Mas, que acontecerá se o<<strong>br</strong> />

sinal não conseguir convencê-lo? Todavia ainda necessito <strong>de</strong> mais conselhos, <strong>Raquel</strong>. Que <strong>de</strong>verei<<strong>br</strong> />

fazer, se ele me chamar pelo teu nome? Po<strong>de</strong>rei eu, uma noiva a quem o noivo dirige a palavra,<<strong>br</strong> />

permanecer obstinadamente muda? Mas, logo que eu a<strong>br</strong>ir a boca, ele saberá que está tomando<<strong>br</strong> />

por esposa Lia e não <strong>Raquel</strong>. Não posso respon<strong>de</strong>r-lhe <strong>com</strong> voz igual a tua. Sagaz, <strong>com</strong>o és,<<strong>br</strong> />

continua a ajudar-me, minha irmã, ajuda-me por amor do !”.<<strong>br</strong> />

“Outra vez, Senhor, quando ela <strong>de</strong>ste modo apelou para mim no mais santo dos teus nomes, <strong>de</strong><<strong>br</strong> />

novo aquele fogo ar<strong>de</strong>nte percorreu meu ser, <strong>de</strong> modo que mais uma vez o coração se me<<strong>br</strong> />

enterneceu e sem pieda<strong>de</strong> calquei aos meus pés os meus próprios <strong>de</strong>sejos. Estava pronta para o<<strong>br</strong> />

sacrifício supremo e respondi: “Tranquiliza-te, Lia, também para isso posso encontrar um meio.<<strong>br</strong> />

Por amor do , farei <strong>com</strong> que se iluda até que te haja possuído e creia seres <strong>Raquel</strong>.<<strong>br</strong> />

Meu plano é o seguinte: Irei dormir na tenda <strong>de</strong> Jacob e nas trevas escon<strong>de</strong>r-me-ei junto<<strong>br</strong> />

ao leito nupcial. Se ele te dirigir a palavra, eu lhe respon<strong>de</strong>rei. Ele então não <strong>de</strong>sconfiará,<<strong>br</strong> />

a<strong>br</strong>açar-te-á e fecundará teu corpo <strong>com</strong> seu sêmen. Farei isso por ti, Lia, por causa do<<strong>br</strong> />

amor que temos nutrido uma pela outra <strong>de</strong>s<strong>de</strong> criança e por amor do Todo-Misericordioso,<<strong>br</strong> />

para que o mesmo tenha <strong>com</strong>paixão <strong>de</strong> meus filhos e <strong>de</strong> meus netos, todas as vezes que<<strong>br</strong> />

eles invocarem o mais santo dos Teus Nomes.


“Senhor, em seguida Lia a<strong>br</strong>açou-me e beijou meus lábios. Quando se ergueu era outra mulher,<<strong>br</strong> />

uma mulher cheia <strong>de</strong> coragem. Livre <strong>de</strong> preocupações. Retirou-se, a fim <strong>de</strong> <strong>com</strong> a face oculta sob o<<strong>br</strong> />

véu enganador, se entregar a Jacob. Quanto a mim, sorvi o meu cálice até as fezes, escon<strong>de</strong>ndome<<strong>br</strong> />

junto do leito <strong>com</strong> que meu amado <strong>de</strong>veria apossar-se <strong>de</strong> minha irmã. Sem <strong>de</strong>mora, os<<strong>br</strong> />

címbalos soaram mais uma vez quando os músicos esperavam os novos esposos, que num<<strong>br</strong> />

instante chegavam à entrada da tenda. Mas Jacob, antes que levantasse o véu a fim <strong>de</strong> abençoar a<<strong>br</strong> />

noiva, esperou o sinal que eu prometera dar. Então, Lia o beijou três vezes na fronte. Jacob,<<strong>br</strong> />

satisfeito <strong>com</strong> a senha, enlaçou amorosamente a noiva, ergueu-a em seus <strong>br</strong>aços e levou-a para o<<strong>br</strong> />

leito, atrás do qual, eu estava acocorada.<<strong>br</strong> />

Nesse instante, contudo, <strong>com</strong>o Lia previra, antes da união, perguntou ele: “È verda<strong>de</strong>iramente<<strong>br</strong> />

<strong>Raquel</strong> que tenho em meus <strong>br</strong>aços?”<<strong>br</strong> />

Então, Senhor, (Tu, ó, Onipotente, sabes o quão difícil foi para mim pronunciar estas palavras),<<strong>br</strong> />

disse eu baixinho: “Sim, sou eu, Jacob, meu esposo!” Ele reconheceu minha voz, ele que esperara<<strong>br</strong> />

sete anos para possuir-me; em seguida, <strong>com</strong> todo o vigor <strong>de</strong> um jovem em sua virilida<strong>de</strong>,<<strong>br</strong> />

apossou-se <strong>de</strong> minha irmã Lia. Senhor, Tu, cuja visão penetra as trevas <strong>com</strong>o uma foice corta o<<strong>br</strong> />

capim, viste meu estado quando eu estava lá agachada bem perto dos dois, enquanto ele<<strong>br</strong> />

passionalmente possuía Lia, julgando que estava possuindo a mim, que tão ar<strong>de</strong>ntemente<<strong>br</strong> />

<strong>de</strong>sejava seu a<strong>br</strong>aço. Ó Senhor, Onipotente, relem<strong>br</strong>a, rogo-Te, aquela memorável noite em que<<strong>br</strong> />

passei sete horas em agonia, ouvindo os transportes que <strong>de</strong>veriam ser meus e <strong>de</strong> que me<<strong>br</strong> />

privaram. Sete horas, sete eternida<strong>de</strong>s, passei junto aquele leito, contendo minha respiração,<<strong>br</strong> />

lutando contra meu <strong>de</strong>sejo veemente <strong>de</strong> chorar alto, <strong>com</strong>o Jacob, mais tar<strong>de</strong>, lutou <strong>com</strong> teu anjo<<strong>br</strong> />

até o romper do dia. Longas, mais longas pareceram a mim essas sete horas noturnas do que os<<strong>br</strong> />

sete anos <strong>de</strong> espera <strong>de</strong> Jacob. De modo algum po<strong>de</strong>ria ter suportado essa noite <strong>de</strong> contenção, se<<strong>br</strong> />

(no silêncio <strong>de</strong> minha alma) não houvesse invocado reiteradamente Teu Santo Nome e fortalecido<<strong>br</strong> />

minha resolução <strong>com</strong> a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Tua paciência infinita.<<strong>br</strong> />

“Esse, Senhor, foi o meu procedimento, o único do qual me jacto entre todos os que pratiquei<<strong>br</strong> />

durante minha peregrinação pela terra, pois nessa ocasião rivalizei <strong>com</strong> meu criador em paciência<<strong>br</strong> />

e <strong>com</strong>paixão. Não sei se algum dia puseste um fardo tão pesado so<strong>br</strong>e os om<strong>br</strong>os <strong>de</strong> uma mulher<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o so<strong>br</strong>e os meus na angústia daquela noite. Todavia suportei até o extremo e por fim, quando<<strong>br</strong> />

os galos cantaram, levantei-me fatigada, enquanto os dois no leito se achavam em profundo sono.<<strong>br</strong> />

Apressadamente fugi para casa <strong>de</strong> meu pai, pois em <strong>br</strong>eve a frau<strong>de</strong> seria <strong>de</strong>scoberta e eu <strong>de</strong> medo<<strong>br</strong> />

batia os <strong>de</strong>ntes quando pensava na fúria <strong>de</strong> Jacob. Oh! Meus pressentimentos realizaram-se.<<strong>br</strong> />

Apenas me recolhi à casa paterna, os gritos do marido, que havíamos iludido, interromperam o<<strong>br</strong> />

silêncio matutino <strong>com</strong>o berros <strong>de</strong> um touro furioso. Armado <strong>de</strong> um machado, ele se lançou à<<strong>br</strong> />

procura <strong>de</strong> meu pai Labão, que ficou paralisado <strong>de</strong> terror à vista <strong>de</strong> seu genro enfurecido e caiu ao<<strong>br</strong> />

solo, clamando pelo Teu Santo Nome. Mais uma vez, Senhor, esse apelo a Tua pessoa avivou a<<strong>br</strong> />

minha coragem fraca e me <strong>de</strong>u energia, <strong>de</strong> modo que me arremessei entre Jacob e Labão, a fim <strong>de</strong><<strong>br</strong> />

voltar a cólera <strong>de</strong> meu amado contra mim e salvar meu infeliz pai. Jacob estava furioso e seu olhar<<strong>br</strong> />

irado dirigia-se contra mim, que havia auxiliado a o enganarem. Deu-me um murro na face e eu<<strong>br</strong> />

caí. Sabes, Senhor, que sofri esse castigo sem queixar-me, pois sabia que a gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> sua cólera<<strong>br</strong> />

correspondia à gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> seu amor. Se ele me houvesse morto, — e, <strong>com</strong> efeito, levantou o<<strong>br</strong> />

machado para matar-me — eu me teria apresentado sem queixa diante <strong>de</strong> Teu trono.<<strong>br</strong> />

Mas logo que me viu estendida à seus pés, contundida e sangrando, foi tomado <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong>. O<<strong>br</strong> />

machado caiu-lhe das mãos. De<strong>br</strong>uçou-se so<strong>br</strong>e mim e ternamente beijou-me os lábios


ensanguentados. Por amor <strong>de</strong> mim, perdoou a meu pai Labão e não expulsou Lia <strong>de</strong> sua tenda.<<strong>br</strong> />

Sete anos mais tar<strong>de</strong>, meu pai <strong>de</strong>u-me <strong>com</strong>o segunda esposa a ele. Jacob fecundou-me e eu lhe<<strong>br</strong> />

<strong>de</strong>i filhos, que amamentei <strong>com</strong> o leite <strong>de</strong> meu peito e <strong>com</strong> as palavras <strong>de</strong> Tua Santa Aliança, filhos<<strong>br</strong> />

que man<strong>de</strong>i invocar-Te em suas necessida<strong>de</strong>s <strong>com</strong> o mistério <strong>de</strong> Teu Nome Inefável. Hoje, Senhor,<<strong>br</strong> />

, Todo-Misericordioso, em minha extrema necessida<strong>de</strong>, invoco-Te para fazeres o que fez Jacob,<<strong>br</strong> />

<strong>de</strong>ixar cair o machado <strong>de</strong> Tua cólera e dissipar as nuvens <strong>de</strong> Tua ira. Do mesmo modo que <strong>Raquel</strong><<strong>br</strong> />

teve pieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lia sua irmã, não queres ter pieda<strong>de</strong> dos filhos e netos <strong>de</strong> <strong>Raquel</strong>, não queres ter<<strong>br</strong> />

paciência, <strong>com</strong>o eu tive paciência, e poupar a Cida<strong>de</strong> Santa? Tem misericórdia <strong>de</strong>les, Senhor, tem<<strong>br</strong> />

misericórdia <strong>de</strong> Jerusalém.<<strong>br</strong> />

A voz <strong>de</strong> <strong>Raquel</strong> ecoou pelas abóbodas do céu. Suas palavras estavam esgotadas e ela <strong>de</strong> joelhos<<strong>br</strong> />

caiu para trás exausta, enquanto seus copiosos cabelos negros caíram so<strong>br</strong>e seu tronco<<strong>br</strong> />

tremulante. Nessa atitu<strong>de</strong> esperou <strong>Raquel</strong> a resposta <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>.<<strong>br</strong> />

Mas <strong>Deus</strong> não respon<strong>de</strong>u. Permaneceu calado. E no céu, na terra, nas esferas que giram entre<<strong>br</strong> />

ambos nada há mais terrível do que o silêncio <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>. Quando <strong>Deus</strong> está silencioso o curso do<<strong>br</strong> />

tempo cessa, a luz se acha submersa nas trevas e o dia na noite e <strong>de</strong> um extremo ao outro <strong>de</strong><<strong>br</strong> />

todas as partes do universo habitado reina somente o caos dos tempos que prece<strong>de</strong>m a criação.<<strong>br</strong> />

Os seres dotados <strong>de</strong> movimento cessam <strong>de</strong> se mover, o curso dos rios estaciona, as flores não<<strong>br</strong> />

<strong>de</strong>sa<strong>br</strong>ocham; nem mesmo as marés po<strong>de</strong>m crescer e <strong>de</strong>crescer sem o po<strong>de</strong>r da palavra <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>,<<strong>br</strong> />

nenhum ouvido mortal po<strong>de</strong> suportar o silêncio <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>, nenhum coração mortal po<strong>de</strong> continuar<<strong>br</strong> />

a bater neste vácuo, no qual nada existe a não ser <strong>Deus</strong>, e, mesmo ele, a vida das vidas, não vive<<strong>br</strong> />

quando está silencioso.<<strong>br</strong> />

<strong>Raquel</strong>, <strong>com</strong> toda a paciência, não po<strong>de</strong> aturar o silêncio interminável <strong>com</strong> que <strong>Deus</strong> respon<strong>de</strong>u à<<strong>br</strong> />

sua proclamação <strong>de</strong> infinita necessida<strong>de</strong>. Mais uma vez elevou os olhos para o Invisível, mais uma<<strong>br</strong> />

vez ergueu suas mãos maternais e a cólera lhe arrancou palavras <strong>de</strong> fogo nos lábios.<<strong>br</strong> />

“Não me ouviste, Onipresente? Não me <strong>com</strong>preen<strong>de</strong>stes, Onisciente? Deverá tua serva falar ainda<<strong>br</strong> />

mais claramente para expor suas i<strong>de</strong>ias? Sabe então (embora custe a dar ouvidos) que eu me<<strong>br</strong> />

achava enciumada porque Jacob <strong>de</strong>u à minha irmã o que estava <strong>de</strong>stinado para mim, justamente<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o tu estás enciumado porque meus filhos fizeram sacrifícios a outros <strong>de</strong>uses. Mas eu, uma<<strong>br</strong> />

po<strong>br</strong>e mulher, dominei meu ciúme, tornei-me <strong>com</strong>passiva por amor a Ti, a quem chamei <strong>de</strong> Todo-<<strong>br</strong> />

Misericordioso. Tive <strong>com</strong>paixão <strong>de</strong> Lia e Jacob teve <strong>com</strong>paixão <strong>de</strong> mim. Toma nota disto, ! Todos<<strong>br</strong> />

nós, embora po<strong>br</strong>es mortais, dominamos a vil paixão da inveja. Mas tu, , Criador do universo, alfa<<strong>br</strong> />

e ômega, princípio e fim, Tu que possuis um oceano em que somos apenas gotas d’água, não<<strong>br</strong> />

po<strong>de</strong>s mostrar <strong>com</strong>paixão! Bem sei que meus filhos constituem uma raça <strong>de</strong> teimosos, que<<strong>br</strong> />

frequentes vezes se revoltam contra o jugo. Mas, uma vez que és <strong>Deus</strong> e Senhor <strong>de</strong> abundância,<<strong>br</strong> />

Tua paciência <strong>de</strong>veria ser maior que a teimosia <strong>de</strong>les e Tua indulgência crescer <strong>com</strong> as suas<<strong>br</strong> />

transgressões?<<strong>br</strong> />

“Não <strong>de</strong>ve acontecer, <strong>Deus</strong>, não <strong>de</strong>ve acontecer que, diante <strong>de</strong> Teus próprios anjos, Te<<strong>br</strong> />

envergonhes <strong>de</strong> que eles digam: ‘Outrora existiu na terra uma mulher, uma frágil mortal, chamada<<strong>br</strong> />

<strong>Raquel</strong>, que conteve a sua cólera. Mas ele, o <strong>Deus</strong> , o Senhor do Universo, era escravo da Sua<<strong>br</strong> />

própria cólera’”. Não, <strong>Deus</strong>, isso não se <strong>de</strong>ve dar, pois se Tua misericórdia não é infinita, Tu<<strong>br</strong> />

mesmo não és infinito – o que quer dizer que não és <strong>Deus</strong>! Não és o <strong>Deus</strong> que eu imaginei em<<strong>br</strong> />

meu pranto e cuja voz chamei para mim através das lágrimas <strong>de</strong> minha irmã. Tu mesmo és um<<strong>br</strong> />

“<strong>de</strong>us estranho”, um <strong>de</strong>us <strong>de</strong> ira, <strong>de</strong> punição e <strong>de</strong> vingança, e eu, <strong>Raquel</strong>, eu, que amava somente


ao <strong>Deus</strong> do amor e servia somente ao Todo-Misericordioso – Te rejeito perante Teus anjos. Eles e<<strong>br</strong> />

Teus profetas po<strong>de</strong>m rebaixar-se, mas eu, <strong>Raquel</strong>, Te <strong>de</strong>safio, <strong>Deus</strong>, Te acuso, antes que realizes<<strong>br</strong> />

Tua vonta<strong>de</strong> contra meus filhos. Tua palavra, <strong>Deus</strong>, luta <strong>com</strong> Tua própria natureza e Tua boca<<strong>br</strong> />

encolerizada fornece a mentira para os impulsos <strong>de</strong> Teu coração. Escolhe, <strong>Deus</strong>, entre Ti e Tua<<strong>br</strong> />

palavra. Se verda<strong>de</strong>iramente és o <strong>Deus</strong> colérico e ciumento que dizes ser, então me lançarei nas<<strong>br</strong> />

trevas para reunir-me a meus filhos e partilhar <strong>de</strong> sua ruína. Não <strong>de</strong>sejo contemplar o semblante<<strong>br</strong> />

<strong>de</strong> um <strong>Deus</strong> irado e <strong>de</strong>testo a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um <strong>Deus</strong> ciumento. Mas, se és um <strong>Deus</strong> misericordioso, o<<strong>br</strong> />

<strong>Deus</strong> que eu amava e cujos ensinamentos procurei seguir, mostra-Te a mim nessa luz, sê<<strong>br</strong> />

clemente, poupa meus filhos, tem misericórdia <strong>de</strong> Jerusalém.<<strong>br</strong> />

Quando <strong>Raquel</strong> acabou <strong>de</strong> proferir essa mensagem <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio, suas forças acharam-se outra vez<<strong>br</strong> />

esgotadas. Esperou a resposta do Altíssimo e suas pálpe<strong>br</strong>as cerraram-se.<<strong>br</strong> />

Os antepassados e os profetas retiraram-se, <strong>com</strong> terror dos raios que <strong>de</strong>veriam, estavam certos,<<strong>br</strong> />

<strong>de</strong>struir o espírito da ímpia que fizera <strong>acusa</strong>ções a <strong>Deus</strong>. Timidamente ergueram os olhos para o<<strong>br</strong> />

Trono Divino. Mas não apareceu sinal algum <strong>de</strong> castigo.<<strong>br</strong> />

Os anjos apavorados <strong>com</strong> o aspecto colérico do Semblante Divino, ocultaram as cabeças sob as<<strong>br</strong> />

asas. Espiando, aterrados para a mulher que havia negado a Onipotência do Senhor, perceberam<<strong>br</strong> />

que <strong>br</strong>ilhava uma luz na fronte <strong>de</strong> <strong>Raquel</strong>. Era <strong>com</strong>o se esse <strong>br</strong>ilho emanasse do interior <strong>de</strong>sta e as<<strong>br</strong> />

lágrimas em suas faces maternais lançavam cintilações vermelhas <strong>com</strong>o gotas <strong>de</strong> orvalho no<<strong>br</strong> />

arrebol. Que estava suce<strong>de</strong>ndo? Os anjos <strong>com</strong>preen<strong>de</strong>ram-no. <strong>Deus</strong> estava mostrando a glória <strong>de</strong><<strong>br</strong> />

Seu Semblante terno a <strong>Raquel</strong>. Ficaram sabendo que o gostava <strong>de</strong>sta negadora <strong>de</strong> Sua Palavra.<<strong>br</strong> />

Dominando seu terror, os anjos confiantemente ergueram os olhos e notaram que uma<<strong>br</strong> />

esplêndida e luminosa tranquilida<strong>de</strong> mais uma vez envolvia a Majesta<strong>de</strong> Divina e que o azul <strong>de</strong> seu<<strong>br</strong> />

sorriso enchia os espaços infinitos do firmamento. Por isso, os querubins <strong>de</strong> novo iniciaram seu<<strong>br</strong> />

alegre vôo e do ruído <strong>de</strong> suas asas se originou uma música nos céus. O esplendor na Face Divina<<strong>br</strong> />

tornou-se tão vivo, que o firmamento <strong>br</strong>ilhava <strong>com</strong> uma intensida<strong>de</strong> tal, que os olhos mortais não<<strong>br</strong> />

podiam suportar.<<strong>br</strong> />

Os que já não habitavam no globo, os mortos que haviam saído <strong>de</strong> seus túmulos, uniram-se a esse<<strong>br</strong> />

coro <strong>de</strong> louvor e <strong>com</strong> essas vozes misturaram-se as inúmeras vozes dos que o ainda não havia<<strong>br</strong> />

chamado a viver na terra.<<strong>br</strong> />

Mas os que então habitavam esta, os mortais, na terra, ignorando (<strong>com</strong>o sempre) os<<strong>br</strong> />

acontecimentos do céu, nada sabiam do que se estava passando no alto. Cobertos <strong>com</strong> suas<<strong>br</strong> />

míseras vestes, baixaram os semblantes para a terra, que estava às escuras. Então a todos chegou<<strong>br</strong> />

o ruído <strong>de</strong> um movimento <strong>com</strong>o o do vento <strong>de</strong> março. Olhando para cima, ficaram surpresos. As<<strong>br</strong> />

nuvens <strong>de</strong>nsas fen<strong>de</strong>ram-se em duas partes e através da abertura esten<strong>de</strong>u-se um arco-íris,<<strong>br</strong> />

formado pela luz emanada do Divino, a qual se refletia nas lágrimas da mãe <strong>Raquel</strong>.<<strong>br</strong> />

FIM

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