Elogio das mesticagens.pdf - cchla - UFRN
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<strong>Elogio</strong> <strong>das</strong> mestiçagens<br />
Alípio de Sousa Filho<br />
- professor do Departamento de Ciências Sociais da <strong>UFRN</strong><br />
A idéia de cotas nas universidades tem origem no trabalho político de<br />
importantes ativistas negros com funções de governo hoje. Pretendendo<br />
chamar atenção para o problema do racismo, acreditaram que poderiam fazê-lo<br />
começando com propostas de políticas de Estado de inclusão social dos<br />
negros, incluindo a educação, no bojo do que surge também o Estatuto da<br />
Igualdade Racial. Não é por outra razão que, inicialmente, apenas se falou de<br />
“cotas raciais” e, posteriormente, cotas para egressos da escola pública. No afã<br />
da idéia, questões decisivas são ignora<strong>das</strong>. A adoção de cotas nas<br />
universidades, seja para alunos egressos da escola pública, seja para negros,<br />
não pode ser implementada sem a discussão de um problema que não<br />
podemos continuar ignorando: é a má qualidade dos ensinos fundamental e<br />
médio públicos que estes freqüentam que se torna um obstáculo para que<br />
possam competir, de igual para igual com os demais, nos exames para<br />
ingresso no ensino superior público, de melhor qualidade e mais concorrido.<br />
Considerando-se as desigualdades sociais, a democratização do acesso à<br />
universidade somente será resolvida se Estado e sociedade decidirem<br />
melhorar a qualidade da escola básica pública. À universidade não cabe<br />
modificar seus modelos de seleção para dar abrigo à má escola básica pública.<br />
Outra questão ignorada é o equívoco da idéia de raça e o prejuízo que<br />
encerra ao ser aplicada a um país cujo maior patrimônio são suas mestiçagens:<br />
a miscigenação de diversas etnias e tipos humanos e nossas práticas culturais<br />
de fusões, misturas. A idéia de raça é uma invenção do racismo. Pensar que<br />
existem “raças humanas” é fruto de uma longa história de colonização do<br />
pensamento humano por categorias que se impõem como verdades e que não<br />
questionamos. E não importa que diversas ciências tenham se envolvido com a<br />
idéia. Entre humanos, somente se torna possível falar de etnias, povos,<br />
culturas. No Ocidente moderno, a idéia de raça é uma invenção do<br />
colonialismo, a partir do s. XVI, com a Europa dominando diferentes porções do<br />
planeta e suas populações. A miscigenação ocorrida entre europeus e outros<br />
povos foi vista como "cruzamentos" entre "raças". A miscigenação já existente
entre europeus, todavia, não era vista como “mistura de raças”. Apenas a partir<br />
da era colonial, produziu-se uma consciência sobre as "misturas de raças" e<br />
passou-se a considerar as "raças" na organização interna <strong>das</strong> sociedades.<br />
Deve-se saber, brancos, negros, amarelos são tipos antropológicos e não<br />
raças. E não há tipos humanos puros. Pelos genes, somos todos mestiços, e<br />
descendemos todos de uma única população “mãe” de sobreviventes do<br />
paleolítico.<br />
No Brasil, as misturas étnicas nos tornaram um povo de mestiços, e<br />
como dizia Gilberto Freire: “no corpo e na alma”. Somos mestiços biológica e<br />
culturalmente. Sem pudor, misturamos tudo. Longe de sermos animados por<br />
uma lógica da separação, somos praticantes de amplas misturas, somos um<br />
caldeirão de mestiçagens. Estas são um elemento estruturante da nossa<br />
cultura. A institucionalização da separação racial (por meio de “cotas raciais” ou<br />
como propõe o estúpido Estatuto da Igualdade Racial) representa uma ameaça<br />
a nossa lógica cultural. Curiosamente, ativistas negros vêem as nossas<br />
mestiçagens (e sua aceitação como um bem a ser preservado) como uma<br />
construção que visaria negar a discriminação imposta aos negros. Engano.<br />
Reconhecer as mestiçagens como uma lógica cultural é dar um passo na<br />
direção contrária às separações racistas. Cotas “raciais” trazem embutida a<br />
recusa de nossas mestiçagens, que podem nos salvar de todo racismo,<br />
incluindo o praticado contra os negros, e preservado na idéia segundo a qual<br />
eles constituem uma “raça” à parte. Abaixo o racismo!<br />
Publicado no Diário de Natal, edição do dia 30 de julho de 2006, Caderno<br />
Cidades, p. 3