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Capítulo I - Romances Nova Cultural

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<strong>Capítulo</strong> I<br />

Egito, 1870<br />

major Michael Fallon franziu os olhos ao contemplar o<br />

O ofuscante brilho noturno do deserto. Recolheu da areia o<br />

esvoaçante lenço de seda que avistara quando desceu a última<br />

duna. O perfume de rosas misturado a uma fragrância<br />

tipicamente feminina tocaram-lhe os sentidos. Guardou o lenço<br />

no bolso do casaco e olhou para o deserto, observando a trilha<br />

do animal que perseguira durante todo o dia. Vinha seguindo<br />

dois viajantes. Onde estaria o segundo?<br />

Pegou os binóculos e seguiu o rastro que chegava a uma<br />

torre cercada por muros de pedra. Sabia que à distância em<br />

que se encontrava era alvo fácil para um rifle. Decidiu, então,<br />

seguir a pé para a torre, deixando o camelo branco para trás.<br />

A noite caía rapidamente, trazendo consigo o frio cortante<br />

do deserto. Michael sentia cada músculo do corpo. Três noites<br />

sem dormir o haviam deixado exausto, mas ele nunca baixava<br />

a guarda. Por precaução, além do habitual rifle, trazia uma<br />

pistola dentro da camisa e uma faca na outra mão.<br />

Ao atingir os perímetros da torre, agachou-se para verificar<br />

o rastro de algum animal pequeno, quando ouviu um clique<br />

atrás da cabeça.<br />

Seu coração quase parou.<br />

— A única razão por que ainda está vivo é que meu rifle<br />

está sem balas — afirmou uma voz feminina, firme e decidida.<br />

Michael levantou-se devagar. A capa que usava lhe ocultava<br />

as armas. Não sabia quantas pessoas mais haveria na<br />

torre. Virou-se com cuidado e encarou a inimiga, surpreso.<br />

O que quer que esperasse encontrar, não era uma mulher de


Melody Thomas<br />

olhos azuis apontando-lhe uma arma no meio do Saara.<br />

Ela usava uma túnica escura, que revelava as curvas de seu<br />

corpo ao luar. Tinha o rosto pálido, e uma mecha dos escuros<br />

cabelos soltara-se da trança, caindo-lhe sobre a testa.<br />

Michael sentiu respeito pela coragem da mulher, assim<br />

como respeitava também o cano de sete polegadas apontado<br />

para seu peito.<br />

— Então estou com sorte — respondeu, bem-humorado,<br />

erguendo os braços num gesto de submissão.<br />

Os olhares de ambos se encontraram. Fascinado pelos<br />

lindos olhos azuis e também impressionado com o inglês<br />

perfeito da mulher, conteve o impulso de matá-la.<br />

Não notou qualquer movimento atrás de si; sentiu apenas<br />

a forte e inesperada pancada na nuca e desmaiou na areia.<br />

Brianna Donally sentiu o estômago revirar enquanto estudava<br />

o deserto pelos binóculos. O camelo branco que a seguira<br />

durante todo o dia estava parado a uma curta distância.<br />

Teria de ir até lá, mas receava que houvesse mais alguém<br />

no deserto escuro. Apesar de todos os esforços, elas haviam<br />

sido seguidas.<br />

Conseguira se desvencilhar do primeiro homem que a<br />

seguira pela manhã, e que agora jazia na areia. O outro, do<br />

camelo branco, estava inconsciente no chão, a seu lado.<br />

— Acha que o matei, Brea? — perguntou, assustada, sua<br />

cunhada Alexandra. Tirou o chapéu de aba larga, e a ferida<br />

no queixo ficou mais visível. — Não podemos abandoná-lo<br />

aos urubus, como fizemos com o outro.<br />

— Ora, se ele desejasse um enterro apropriado, não nos<br />

teria atacado.<br />

Brianna respirou fundo e piscou, tentando afastar os<br />

pontículos brilhantes que dançavam diante de seus olhos.<br />

Quanto tempo ainda teriam até que os homens que atacaram a<br />

caravana mandassem mais alguém no encalço das duas<br />

únicas sobreviventes?<br />

Não gastaria suas energias para enterrar um assassino.


Perfume de rosas<br />

Precisava poupar as forças que ainda lhe restavam para pensar<br />

em uma maneira de saírem a salvo dali. Ficariam vulneráveis<br />

se saíssem deserto afora, mas sem dúvida seriam<br />

encontradas se permanecessem onde estavam.<br />

— Deus do céu, acho que vou passar mal outra vez —<br />

declarou Alexandra, pondo-se de joelhos e inclinando a cabeça<br />

para baixo.<br />

Brianna abraçou a cunhada.<br />

— Eu também estou exausta, mas precisamos ser fortes.<br />

Nunca cuidara de ninguém antes, e o fato de a intrépida<br />

Alexandra necessitar dela a assustava. Sentia-se responsável<br />

por ambas, e temia falhar, se é que já não tinha falhado.<br />

Haviam recolhido do beduíno duas pistolas e uma faca,<br />

mas esta era inútil para elas, pois era pesada demais para que<br />

conseguissem manejá-la. Um dos rifles que trouxeram estava<br />

sem balas, e o outro se quebrara quando Alexandra golpeara<br />

o estranho.<br />

Poderiam buscar o camelo, mas Brianna estava com medo<br />

de ir até lá. Na verdade, estava apavorada. Brianna Donally,<br />

ativista e legionária, partidária da política anarquista, estava<br />

com medo do escuro.<br />

Como eram insignificantes seus problemas na Inglaterra,<br />

em comparação com o que enfrentava agora! Como eram triviais,<br />

quando acabara de assassinar outro ser humano por<br />

instinto de sobrevivência!<br />

A ideia de morrer de fome não podia ser descartada. Não<br />

sabiam caçar no deserto, e a pouca água que ainda tinham<br />

estava no fim.<br />

Brianna tocou a testa de Alexandra.<br />

— Ao menos não está com febre — afirmou, ajudando-a<br />

a beber um pouco de água.<br />

— É possível que eu tenha matado este homem — sussurrou,<br />

com os cabelos caindo em cima do rosto. — Imagino<br />

como será encontrá-lo no inferno...<br />

— Então o encontraremos juntas, assim como todos os<br />

outros assassinos que atacaram a caravana. Você fez o que<br />

era necessário fazer.


Melody Thomas<br />

Brianna deixou a cunhada recostada no muro, pegou uma<br />

das pistolas e dirigiu-se para detrás da torre, a fim de conferir<br />

a montaria de que dispunham, disposta a deixar aquele lugar.<br />

Era diferente atirar num homem em legítima defesa a cem<br />

metros de distância e atirar num homem a três metros de<br />

distância. Alguma coisa no olhar daquele homem a fizera<br />

hesitar, algo além do rosto bonito e atraente, um ar de quase<br />

incredulidade nos olhos prateados e o sotaque culto de sua<br />

voz. Não fosse por Alex, ela provavelmente estaria morta<br />

agora.<br />

Sentiu vontade de chorar. Fazia dias que vinha reprimindo<br />

as lágrimas, mas não iria sucumbir.<br />

Aproximou-se do cavalo e o acariciou. Teriam outra montaria<br />

assim que alcançassem o camelo. Tinham de conseguir,<br />

mas sabia que quando saíssem, poderiam morrer a qualquer<br />

momento. Talvez pudessem passar a noite ali e procurar por<br />

comida. Brianna não tinha a menor ideia de como encontrar<br />

o acampamento do irmão.<br />

Àquela altura, Christopher já devia saber do ocorrido.<br />

Veio-lhe à mente a lembrança daqueles que as acompanhavam<br />

na caravana, todos mortos. Fechou os olhos para dissipar<br />

a imagem. Olhou para a câmera fotográfica presa à sela do<br />

animal. Viera ao Egito repleta de sonhos, disposta a fazer algo<br />

mais de sua vida. E agora, nem mesmo sabia se sairia viva<br />

dali.<br />

Olhou para o céu e rezou, pedindo a Deus que lhe enviasse<br />

um sinal. Não sabia mais o que fazer.<br />

Enquanto reforçava a alça da sela, avistou um grande<br />

lagarto andando sobre as pedras, em direção a um pequeno<br />

lago. Aquilo era a resposta imediata à sua prece!<br />

Cuidadosamente caminhou sobre as pedras para alcançá-<br />

lo. Outros três lagartos surgiram. Ela pulou para agarrar o rabo<br />

do maior e segurou com força, largando a pistola para poder<br />

usar as duas mãos. Após algum tempo de luta, o bicho parou<br />

de se retorcer. Maravilhada com a aquisição, sentou-se no<br />

lago, com a água pela cintura, os cabelos caindo sobre o rosto,<br />

e soltou um grito de triunfo.


Perfume de rosas<br />

Foi quando avistou um homem em pé na beira do lago,<br />

com uma corda nas mãos. Seu coração deu um salto, e ela<br />

ergueu os olhos até encontrar os dele.<br />

— Levante-se, amîri — ordenou o homem, com seu inglês<br />

impecável —, antes que eu a tire daí.<br />

Com imenso pesar, Brianna soltou o lagarto e mergulhou<br />

de costas na água, tentando alcançar a pistola, mas foi impedida<br />

por um braço forte que a agarrou pela cintura. Tentou gritar,<br />

mas Michael a afundou na água. Então tapou-lhe a boca<br />

e a arrastou para fora do lago, enquanto Brianna se debatia e<br />

o chutava com todas as forças. Já fora da água, ele escorregou<br />

na lama e ambos foram ao chão.<br />

Com um movimento furioso, o major a virou e a imobilizou<br />

com o peso do próprio corpo, segurando braços dela acima<br />

da cabeça.<br />

— Solte a arma — ordenou calmamente, balançando as<br />

mãos dela —, ou quebrarei seu pulso.<br />

Brianna o encarou, desafiadora. A coragem daquela mulher<br />

o impressionava, mas não podia se esquecer de que ela<br />

havia tentado matá-lo.<br />

Na posição em que se encontravam, Michael podia sentir<br />

a maciez dos seios contra si. A feminilidade daquele corpo<br />

que se contorcia como um esquilo aprisionado e o calor que<br />

emanava tocaram-lhe os sentidos, o que ele não fez questão<br />

de ocultar. O coração de Brianna disparou de medo, ao dar-<br />

se conta de que estava à mercê dele.<br />

— Deixe-nos e finja que nunca nos encontrou! — pediu.<br />

— Ninguém precisará saber. Não comemos há dias. De uma<br />

forma ou de outra, acabaremos por morrer de fome.<br />

Michael arremessou para longe a pistola.<br />

— Desista das lamúrias. Você é uma arma letal. — Ainda<br />

segurando os braços dela acima da cabeça, revistou-a por<br />

completo, e depois fez com que se levantasse. — Quase<br />

quebraram minha cabeça. Qualquer outro homem já a teria<br />

matado. Quantos mais de vocês estão aqui?<br />

— Cinco.<br />

— Mentira. Há apenas um cavalo. Devem estar em apenas


10<br />

Melody Thomas<br />

dois. — Empurrou-a, forçando-a a andar.<br />

— Não... por favor! Pode ter tudo o que desejar. Meu irmão<br />

é rico. Não precisa fazer isto.<br />

Michael deixou que ela continuasse falando desordenadamente<br />

sobre resgate e recompensa, num inglês com um leve<br />

sotaque irlandês.<br />

À distância, o camelo soltou um longo mugido. O som<br />

ecoou nas pedras e tomou uma proporção muito maior devido<br />

ao silêncio da imensidão do deserto.<br />

Brianna se aproveitou da ocasião para se desvencilhar<br />

e sair correndo, porém foi alcançada em poucos passos.<br />

Debatia-se como uma gata selvagem, quando notou a sombra<br />

de alguém caindo a poucos metros. Parou imediatamente e<br />

olhou para ele, assustada.<br />

— Oh, meu Deus! Aconteceu alguma coisa com ela! —<br />

Havia súplica em sua voz.<br />

Michael permitiu que ela fosse examinar a outra mulher,<br />

enquanto lançava um rápido olhar pelos arredores. Não havia<br />

nenhum sinal de bagagem; nenhuma comida, nenhum utensílio,<br />

nem mesmo um saco onde pudessem ter alguma provisão.<br />

Tudo o que carregavam era um cantil.<br />

A outra mulher jazia inconsciente sobre as pedras, o rosto<br />

pálido como cera, os cabelos loiros caídos sobre os olhos.<br />

Era também europeia, e as roupas estavam rasgadas e manchadas<br />

de sangue, claras evidências de que haviam passado por<br />

maus bocados nos últimos dias.<br />

Michael se aproximou lentamente e parou, estarrecido.<br />

Nenhum inglês no Egito deixaria de reconhecer a esposa de<br />

sir Christopher Donally, ministro das Relações Públicas. Nos<br />

três anos que residia no país, Michael estivera algumas vezes<br />

em função junto ao oficial, porém nunca tivera a oportunidade<br />

de ser apresentado pessoalmente à esposa dele, uma conhecida<br />

arqueóloga nascida na aristocracia europeia. Ouvira dizer<br />

que a irmã de sir Donally também chegara recentemente.<br />

Aquelas duas mulheres deviam fazer parte da caravana<br />

que seguia rumo ao acampamento de Donally, e que fora atacada.<br />

A caravana à qual ele tinha pretendido se juntar.<br />

Michael notou um movimento ao lado da cabeça e ergueu


Perfume de rosas 11<br />

o olhar, encontrando o cano de uma arma apontada para seu<br />

rosto. Sua própria arma.<br />

— Juro que atiro sem pestanejar! — A mão dela tremia,<br />

mal tendo forças para empunhar o rifle. A cabeça de lady<br />

Alexandra Donally estava apoiada em suas pernas. — Vá<br />

embora e nos deixe em paz.<br />

— Não posso fazer isso, amîri.<br />

Michael não fez qualquer esforço para desarmá-la. Sabia<br />

que não seria prudente. Permaneceu onde estava, o mais calmo<br />

possível.<br />

— Há um outro homem seguindo vocês. Não sou ele. Não<br />

sou seu inimigo, srta. Donally.<br />

Ela prendeu a respiração ao ouvir o próprio nome.<br />

— Não se aproxime! Como sabe quem somos se não é um<br />

deles?<br />

A irmã de Donally não estava no Egito tempo suficiente<br />

para conhecê-lo. Certamente não acreditaria nele. Além<br />

disso, sua aparência não ajudava muito.<br />

— Da mesma forma que seu irmão, trabalho para o khedive<br />

— ele contou.<br />

Ela parecia confusa.<br />

— Qualquer um poderia apresentar-se assim. — Tremia<br />

de frio devido às roupas molhadas.<br />

Michael decidiu que esperaria pacientemente até que a<br />

exaustão tomasse conta dela.<br />

— Pergunte-me de que parte da Inglaterra eu sou.<br />

— Fala inglês perfeitamente — respondeu, quase sussurrando.<br />

— P-pode ter morado fora por muitos a-anos.<br />

Brianna mantinha a cabeça erguida, os cabelos emaranhados<br />

colados ao rosto. Michael sentiu algo estranho. Ela atravessara<br />

o inferno, mas ainda lutava como uma tigresa. Estava<br />

impressionado com sua força. Afinal, os irlandeses eram<br />

sempre mais fortes do que aparentavam.<br />

Mas era uma batalha que ela certamente perderia. Era<br />

apenas uma questão de tempo.<br />

Ela ainda persistiu meia hora a mais do que ele havia<br />

imaginado.


12<br />

Melody Thomas<br />

***<br />

Brianna abriu os olhos e continuou deitada por algum tempo.<br />

Estava em uma tenda. A brisa balançava suavemente o<br />

algodão listrado. O fogo crepitava em uma fogueira ao lado.<br />

O aroma de café invadia o ar.<br />

Levantou-se e deixou escorregar o cobertor até a cintura.<br />

Seu cabelo parecia uma massa disforme. Estava vestida<br />

apenas com a fina camisa de algodão que usava como roupa<br />

de baixo, ainda úmida. Sentia-se confusa.<br />

Alex estava deitada a seu lado, totalmente vestida. Murmurava<br />

palavras inteligíveis. Brianna cobriu-a e saiu da barraca.<br />

Estavam acampadas na torre, perto de algumas árvores<br />

que circundavam o pequeno lago. Não havia sinal do homem<br />

com quem lutara. Revistou as mochilas e olhou ao redor, em<br />

busca de alguma arma, mas não encontrou nenhuma.<br />

Havia pratos e talheres junto à fogueira. Pegou um garfo<br />

e se serviu da carne que cozinhava com arroz. A comida<br />

parecia um manjar dos deuses. Sabia que os lagartos eram os<br />

responsáveis por aquela maravilha.<br />

Inclinada sobre o prato, Brianna comia com apetite e não<br />

percebeu quando o estranho se aproximou. O cobertor havia<br />

escorregado até os quadris, e ela tratou de enrolar-se nele até<br />

o pescoço. Michael trazia uma pá em uma mão e uma mochila<br />

na outra. Tirou a faca da cintura e a cravou numa árvore,<br />

fora do alcance dela.<br />

— Vejo que já andou mexendo em minhas coisas.<br />

Brianna engoliu a comida e se levantou, estudando-o. Se ele<br />

a quisesse morta, já a teria matado.<br />

Era mais alto que a maioria dos homens e tinha ombros<br />

largos. Notava-se a força de seus braços. O rosto era viril,<br />

escondido por trás da barba crescida. Não que isso importasse.<br />

— Onde estão minhas roupas? — perguntou, com a cabeça<br />

erguida.<br />

— Estendidas sobre as pedras para secar. — Aproximouse<br />

dela, tirou um cantil que trazia no ombro e lhe ofereceu:<br />

— Beba isto. Ajudará a saciar a fome.


Perfume de rosas 13<br />

Relutante, Brianna levou o bocal aos lábios e sorveu um<br />

gole do leite morno. Quase engasgou.<br />

— Precisa se acostumar — aconselhou Michael, com<br />

um brilho divertido no olhar. — Trará suas forças de volta.<br />

Ela continuou a beber. Já ouvira algo a respeito do leite de<br />

camelo ter salvado vidas. Devolveu-lhe o cantil e apertou o<br />

cobertor contra o corpo. Lembrou-se de que fora ele quem<br />

a despira e sentiu-se constrangida. Ao menos não tirara as<br />

peças íntimas.<br />

— O que pretende fazer conosco?<br />

— Levá-las até seu irmão, é claro — respondeu ele, enquanto<br />

se servia de café.<br />

— Christopher? Sabe onde ele está?<br />

A luz do fogo iluminou o rosto de Michael. Brianna tinha<br />

a impressão de que havia um permanente brilho de diversão<br />

em seu olhar, como se ele soubesse que a desconcertava.<br />

— Se tivessem se dirigido para o sul e não para o norte,<br />

já o teriam encontrado. — Olhou-a diretamente nos olhos: —<br />

Foi você quem atirou naquele homem que jazia na areia?<br />

— Tenho uma pontaria excelente — disse ela, apertando<br />

mais ainda o cobertor. — Muito contra a vontade de minha<br />

família, eu costumava frequentar as quermesses perto de casa.<br />

— Sentiu um aperto no peito ao ver a pá. — Você o enterrou?<br />

— Não será acusada de assassinato — afirmou Michael,<br />

como que lendo seu pensamento. — Enterrei-o para não<br />

deixar vestígios que possam guiar alguém até nós.<br />

Brianna não era ingênua. Não confiava nele. Poderia ser<br />

vendida como escrava ou mesmo ser morta. Não fora até ali<br />

para sucumbir nas mãos de um estranho com aparência perigosa.<br />

Como poderia ter certeza de que ele não era o segundo<br />

homem que as seguira?<br />

— É inglês, mesmo?<br />

— Nascido e criado na Inglaterra. E aqui estou, no meio do<br />

Saara, conversando com uma compatriota. Quem imaginaria?<br />

— Que colégio frequentou?<br />

Antes que ele pudesse responder, ouviram Alexandra resmungar<br />

alguma coisa, como se estivesse tendo um pesadelo.


14<br />

Melody Thomas<br />

— Há quanto tempo ela está assim? — indagou Michael,<br />

pegando o cantil que continha o leite de camelo.<br />

— Ela precisa se alimentar.<br />

Brianna na verdade suspeitava que a cunhada estivesse<br />

grávida.<br />

Alexandra estava sentada quando Michael entrou na barraca.<br />

Assustou-se ao vê-lo, mas se acalmou quando avistou<br />

Brianna. Começou a conversar com ele em árabe, ao que ele<br />

respondia com gentileza, enquanto examinava a ferida no<br />

braço dela. Ofereceu-lhe o cantil com o leite.<br />

— Isto ajudará, milady.<br />

— Major Fallon? — Alexandra levantou uma ponta do<br />

turbante que lhe cobria o rosto, para vê-lo melhor.<br />

Brianna olhou-o, admirada. Não parecia surpreso por ter<br />

sido reconhecido.<br />

— É uma pena não termos nos conhecido em melhores<br />

circunstâncias, milady.<br />

De imediato, a lembrança dos terríveis acontecimentos<br />

veio à mente de Alexandra. Olhou para as roupas manchadas<br />

de sangue e esfregou-as com as mãos, como se quisesse<br />

limpá-las.<br />

— Creio que me lembrarei toda vez que fechar os olhos.<br />

Brianna sentiu um aperto no peito, como se uma espada<br />

trespassasse seus pulmões. Também não se esqueceria nunca.<br />

— É tão perigoso quanto dizem? — perguntou Alexandra.<br />

Michael levantou o braço dela contra a luz para poder<br />

examinar melhor a ferida.<br />

— Creio que seja eu quem deva fazer essa pergunta.<br />

Sempre sentirei dor de cabeça ao recordar nosso encontro.<br />

Brianna se lembrou de ter ouvido comentários abafados<br />

a respeito dele nas reuniões do consulado, geralmente feitos<br />

pelas mulheres. Era conhecido como “o Barracuda”.<br />

Conhecido por seu combate ao comércio de escravas e de<br />

haxixe no Egito, o major era uma lenda em alguns círculos<br />

do consulado britânico, ao mesmo tempo que era desprezado<br />

pelos mais moralistas, que criticavam seu público envolvimento<br />

com uma senhora nativa, casada.


Perfume de rosas 15<br />

Alexandra não desviava o olhar do rosto de Michael.<br />

Ele lançava todo o seu charme, como se fosse um príncipe<br />

encantado. Pareciam não notar a presença de Brianna, e ela<br />

decidiu sair da barraca.<br />

Parou por um instante para sentir a brisa no rosto. No<br />

azul aveludado do firmamento, as estrelas cintilavam. Pensou<br />

no contraste entre toda aquela beleza e o horror que sua alma<br />

e seu coração vivenciavam.<br />

Sentou-se à beira da fogueira, com medo de se afastar.<br />

Apesar da presença do major, ainda não se sentia segura.<br />

Afinal, haviam sido perseguidas por assassinos, era compreensível<br />

que estivesse com medo.<br />

Notou que Michael se aproximava e ergueu o olhar, intimidada<br />

com a presença dele.<br />

— Ela está com febre. — Encheu uma caneca com café e<br />

ofereceu-lhe. — Dormirá melhor agora que tem algo no estômago.<br />

Ela foi baleada.<br />

— Sim, eu sei. — Por um longo tempo não disse mais nada,<br />

até que as palavras começaram a sair como que em enxurrada:<br />

— Alexandra queria fotos para o livro. Não estávamos<br />

no acampamento quando este foi atacado. Tínhamos ido ao<br />

templo Copta para fotografá-lo, pois nunca havia sido documentado.<br />

Era uma grande oportunidade para ela. Fomos com<br />

um guia e um soldado para nos escoltar. Demoramos mais<br />

do que o planejado. Devíamos estar a menos de uma milha<br />

quando o ataque aconteceu.<br />

Tomou um gole de café, enquanto o major olhava fixamente<br />

para ela, e continuou.<br />

— Quando estávamos voltando, paramos paralisados pelo<br />

horror, vendo os assassinos fugir rumo ao oeste. Não sei dizer<br />

por quanto tempo ficamos ali. Então nosso guia sacou uma<br />

arma e atirou na nuca do soldado, e depois apontou para<br />

Alexandra, mas ela puxou o camelo, e o tiro acertou a cabeça<br />

do animal. Deve ter passado de raspão no braço dela. Quando<br />

ela caiu, achei que estivesse morta. Então o homem apontou<br />

para mim, mas atirei primeiro. — As mãos dela apertavam<br />

a caneca com força, e a voz tremia. — Depois disso, peguei


1<br />

Melody Thomas<br />

o rifle que o soldado carregava, e ajudei Alexandra a subir em<br />

meu cavalo. Saímos em disparada para fugir dali. Paramos<br />

de quando em quando para apagar nosso rastro. — A voz<br />

dela não passava de um sopro. — As famílias dos mercadores<br />

viajavam conosco. Crianças, mulheres...<br />

— Quem era o oficial encarregado da comitiva?<br />

Veio-lhe à mente a lembrança do alegre oficial.<br />

— Capitão Pritchards. Você o conhecia?<br />

Michael tinha o olhar vago, como se olhasse através dela.<br />

— Deveria dormir um pouco. Partiremos em poucas horas<br />

— foi tudo o que respondeu.<br />

— E quanto ao outro homem que estava nos seguindo?<br />

Michael olhou para o chão antes de encará-la. Brianna<br />

sentiu o pulso acelerar ao ver a expressão dele.<br />

— O homem não representa mais ameaça, srta. Donally.<br />

Ela não ouvira nenhum tiro durante o dia. Lembrou-se<br />

então da horrível faca que ele carregava.<br />

Mais tarde, quando tentava dormir, sentiu o cheiro de tabaco.<br />

Virou-se e avistou o vulto do major, sentado em cima de<br />

uma pedra, de rifle em punho, fumando um cigarro enquanto<br />

vigiava o acampamento. Como se sentisse o olhar dela, virou<br />

o rosto e os olhares de ambos se encontraram. Brianna sentiu<br />

um estranho impacto diante daqueles olhos prateados.<br />

Demorou muito tempo até que conseguisse adormecer.<br />

— Sei que o capitão era seu amigo, major. Entendo o que<br />

está sentindo.<br />

Halid al-Nahar falava em árabe.<br />

— Não é só isso, Halid. A srta. Donally contou que havia<br />

crianças e mulheres, familiares dos mercadores.<br />

— Apenas os corpos dos homens foram encontrados<br />

enterrados.<br />

— Por que perderam tanto tempo enterrando os corpos?<br />

Deve ter levado horas...<br />

A questão intrigava Michael cada vez mais. Como uma<br />

escolta armada pudera ter sido vítima de uma emboscada, e


Perfume de rosas 1<br />

apenas duas mulheres inglesas terem conseguido escapar?<br />

Olhou para o deserto, pensativo. Um súbito pensamento<br />

lhe ocorreu.<br />

— Quem é o responsável pela contratação dos guias,<br />

Halid?<br />

— Provavelmente os homens do general. O paxá Donally<br />

deve saber. Poderia perguntar a ele, se não tivesse partido<br />

ontem.<br />

— Donally partiu? Para onde? — indagou Michael,<br />

espantado.<br />

— Tudo o que sei é que quando a caravana não chegou,<br />

ele enviou uma patrulha para verificar o motivo do atraso.<br />

Quando os homens retornaram com a trágica notícia, ele<br />

enlouqueceu. Pegou duas pistolas, um rifle, alguns suprimentos<br />

e partiu para El-Musa.<br />

— Não foi para o Cairo? O que faria um homem como<br />

Donally dirigir-se a uma terra governada por um sheik<br />

notório pelo contrabando de haxixe?<br />

— Estou certo de que o paxá não é um contrabandista.<br />

Creio que tenha suas razões.<br />

Michael andava de um lado para o outro, exasperado.<br />

— Ordenarei uma busca pelas mulheres e crianças.<br />

Deverão seguir a antiga rota dos escravos.<br />

Halid tentava acompanhar as passadas largas de Michael.<br />

— Mesmo que as mulheres tenham sobrevivido, todos<br />

sabemos o que acontece àqueles que são levados ao mercado.<br />

Michael desprezava a ideia da exploração feminina,<br />

comum no Egito.<br />

— Quero justiça, Halid.<br />

— O senhor está zangado... Não é sua culpa.<br />

— O capitão Pritchards trazia o dinheiro destinado ao<br />

pagamento dos trabalhadores. Informações desse tipo são confidenciais.<br />

Quantas pessoas sabiam? Pense sobre o que isto<br />

significa. Quantas outras caravanas foram atacadas quando<br />

transportavam provisões do governo ou relíquias?<br />

— Major... — Halid segurou o braço de Michael, forçandoo<br />

a parar. — Está fazendo insinuações a respeito de oficiais


1<br />

Melody Thomas<br />

do governo. Sem provas, poderão levá-lo à Corte Marcial.<br />

— Poupe-me de seu decoro, Halid. Você fala o dialeto<br />

beduíno. Sua família vive no deserto. Encontre alguém que<br />

tenha alguma informação. Esses cavaleiros devem se esconder<br />

em algum lugar.<br />

Michael começou a enrolar um cigarro, sem se preocupar<br />

com a reação de Halid.<br />

— Vista-se de azul, como os beduínos. Não quero que seja<br />

morto por ser confundido com um inglês. — Dizendo isto,<br />

afastou-se.<br />

Não que Michael fosse indiferente às palavras de Halid.<br />

Entendia de burocracia militar, e esta não era diferente de<br />

qualquer outra na Inglaterra, mas aquele caso havia se tornado<br />

pessoal, de uma forma que ele mesmo não esperava.<br />

O capitão assassinado não só tinha sido seu amigo, mas também<br />

seu irmão-de-armas. Serviram juntos na China antes de<br />

irem para o Egito. Brindara a ele em seu casamento no ano<br />

anterior.<br />

Apagou o cigarro na areia e foi ter com o capataz. Entrevistou<br />

cinco dos homens que haviam encontrado as covas.<br />

Pediu então ao capataz que o levasse à tenda de Donally.<br />

Havia ali uma mesa e algumas cadeiras, com vista para um<br />

pequeno lago e a primeira vegetação que Michael avistava em<br />

meses. Nas prateleiras havia fotos, livros e mapas. Um tapete<br />

vermelho cobria a areia. Era incrível como se precisava de<br />

tão pouco para fazer um lugar se parecer com um lar.<br />

— Trarei seus objetos pessoais, senhor — ofereceu um<br />

serviçal.<br />

— Não será necessário. Onde estão as senhoras?<br />

O homem fez um gesto em direção ao pesado tecido que<br />

dividia a tenda.<br />

— Estão dormindo, senhor. Não saíram daí o dia todo.<br />

O homem, que trabalhava como camareiro pessoal de<br />

Donally, acendeu as lamparinas de parafina.<br />

Esperando o criado se retirar, Michael olhou os mapas<br />

sobre a escrivaninha. A poeira já tomava conta de tudo. Uma<br />

das fotografias na prateleira despertou seu interesse. Retratava<br />

um casal sobre um camelo com as pirâmides de Gizé ao


Perfume de rosas 1<br />

fundo. Admirado com o trabalho do fotógrafo, estudou-a mais<br />

perto da luz. A imagem atraía a atenção, poética em seu contraste<br />

de passado e presente, luz e sombra. Olhou então outra<br />

fotografia, na qual lady Alexandra estava vestida como uma<br />

dançarina árabe. Filha de um conde, a esposa de Donally<br />

era, sem dúvida, uma mulher adorável.<br />

— A irmã de paxá Donally sabe mesmo tirar lindos<br />

retratos, não é?<br />

— Todas estas fotografias foi ela que tirou? — No mesmo<br />

instante lhe veio à mente a imagem da mulher guerreira<br />

apontando-lhe a arma.<br />

— Sim, e a senhora da foto é lady Alexandra. Está viajando<br />

pelo Egito para escrever um livro para o Museu<br />

Britânico. Conhece-a?<br />

Por opção, Michael não frequentava os círculos sociais do<br />

Egito. Fugia deles desde que saíra da Inglaterra.<br />

— Por que motivo Donally foi a El-Musa?<br />

— Estava fora de si, senhor. Quando voltou do local do<br />

ataque, era um homem possuído. Apanhou alguns pertences,<br />

umas armas e partiu.<br />

— Sozinho? Através do deserto sem nenhuma escolta?<br />

— O senhor também não viaja sozinho? Que diferença faz,<br />

se todos aqueles guardas não conseguiram salvar a caravana?<br />

Ele fala o dialeto, e é um homem viajado.<br />

Não encontrando nenhum argumento lógico, Michael voltou<br />

a observar a fotografia. Donally não era um tímido aristocrata.<br />

Se tivesse metade da coragem da irmã, já seria o<br />

suficiente para sobreviver ao inferno.<br />

— Trarei carneiro ensopado para o jantar. Meu nome é<br />

Abdul. — Inclinou a cabeça em cumprimento e se retirou.<br />

Voltou a olhar para a fotografia tirada em Gizé. O retrato<br />

lhe despertava algo que ele não sentia havia muito tempo,<br />

desde que deixara a Inglaterra.<br />

Lady Alexandra crescera na mais alta sociedade, a mesma<br />

que o circundara por toda a vida. Como ela conseguira se<br />

libertar das estreitas amarras que a controlavam era algo que<br />

o intrigava. O fato de ter se casado com um plebeu irlandês o<br />

impressionava ainda mais.

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