Leia trecho do livro Paz Guerreira - Gazeta Online
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PAZ GUERREIRA<br />
O CAMINHO DAS DEZESSEIS PÉTALAS
C<br />
DEDICATÓRIA PÓSTUMA<br />
ada palavra desta obra está imbuída <strong>do</strong><br />
espírito, da marcante presença, mesmo na<br />
ausência, e <strong>do</strong>s profun<strong>do</strong>s ensinamentos de um grande<br />
homem, exemplo de cavalheiro, que soube praticar<br />
cada uma das virtudes que sempre se dedicou a<br />
ensinar a seus discípulos.<br />
Verdadeiro guerreiro da paz, que dedicou sua vida<br />
às pessoas, pautan<strong>do</strong> cada um de seus atos, <strong>do</strong> mais<br />
grandioso ao aparentemente mais insignificante, em<br />
profunda elegância e generosa altivez.<br />
Não poderia dedicar esta obra a outra pessoa que<br />
não a meu professor, pai espiritual, exemplo de vida e<br />
Mestre no mais profun<strong>do</strong> senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> termo, Michel<br />
Echenique Isasa.
A<br />
AGRADECIMENTOS<br />
conclusão desta obra marcou o final de um<br />
importante trabalho e o início de um novo<br />
ciclo, ten<strong>do</strong> conta<strong>do</strong> com a colaboração de muitas pessoas,<br />
que não posso deixar de mencionar.<br />
Agradeço especialmente a minhas mestras, Beatriz<br />
Díez Canseco e Delia Steinberg Guzmán.<br />
A Luzia Helena Echenique, por seu apoio incondicional.<br />
A minha querida esposa, Giovanna Husseini, pela<br />
dedicação, compreensão e inspiração com que me<br />
brin<strong>do</strong>u nas muitas horas de trabalho dedicadas a esta<br />
obra.<br />
A Roberto Pompeo, discípulo, que esteve presente<br />
em todas as horas deste <strong>livro</strong>, ten<strong>do</strong> cada uma de suas<br />
linhas passa<strong>do</strong> por seu crivo e lapidação.
E<br />
PREFÁCIO<br />
ste <strong>livro</strong> foi escrito com um sentimento de profunda devoção,<br />
com o entusiasmo próprio de um guerreiro que, por amor ao seu<br />
Mestre, se transformou em um artista e Mestre das artes marciais, principalmente<br />
das artes marciais filosóficas.<br />
Um <strong>do</strong>s maiores sonhos desses especiais guerreiros é “vencer sem lutar”.<br />
Um sonho comum a homens e mulheres que na verdade guarda um<br />
conceito da marcialidade profundamente penetra<strong>do</strong> de conteú<strong>do</strong> filosófico<br />
e humanista.<br />
Você sabe o que é sonho? Pois Talal Husseini fala <strong>do</strong> sonho como<br />
“uma esfera onde homens e deuses se encontram. No sonho habita algo<br />
<strong>do</strong>s deuses e algo <strong>do</strong>s homens, os deuses através <strong>do</strong>s sonhos delegam<br />
seu poder, os homens são agracia<strong>do</strong>s pela capacidade de seguir sonhan<strong>do</strong>,<br />
realizan<strong>do</strong> e conquistan<strong>do</strong>”. E este é o sonho de Talal e de seu<br />
Mestre Michel: a <strong>Paz</strong> <strong>Guerreira</strong>.<br />
O que um guerreiro faz? Luta, conquista, avança, <strong>do</strong>mina. Fundamentalmente,<br />
protege os demais, que não têm em conta esta especial forma<br />
de encarar a vida e seus inúmeros desafios. Um guerreiro enfrenta to<strong>do</strong>s<br />
eles, é um eterno inconforma<strong>do</strong> com a injustiça, a falsidade, a corrupção,<br />
a irresponsabilidade e a ilusão.<br />
Mas no mun<strong>do</strong>, tanto nas sociedades atuais, quanto no decurso da história,<br />
eles não estão sozinhos. Encontram-se com homens e mulheres<br />
que também têm uma espécie de facilidade para os enfrentamentos e as<br />
lutas, embora nem sempre disponham de valor, inteligência e superioridade<br />
humana suficientes para lhes permitir abrir um acesso a uma porta<br />
interior, para justamente desenvolver to<strong>do</strong> o seu potencial guerreiro com<br />
vistas a essa superioridade humana que leva à paz e à concórdia.
14<br />
O autor deste <strong>livro</strong> é hoje um Mestre das Artes Marciais Filosóficas.<br />
Eu o conheci há muitos anos, ainda um a<strong>do</strong>lescente, cheio de entusias-<br />
mo, vigor e amor pelas artes marciais. Foi o que o levou a conhecer o<br />
seu Mestre, Prof. Michel Echenique, que o formou desde então para<br />
uma trilha intensa de desenvolvimento marcial semeada através da filosofia<br />
à maneira clássica.<br />
Assim, por meio dessa relação profunda entre Mestre e discípulo,<br />
Talal Husseini fala de <strong>Paz</strong> <strong>Guerreira</strong> e de Vencer sem lutar não apenas<br />
tratan<strong>do</strong> de usar frases de impacto, mas sim trazen<strong>do</strong> conceitos filosóficos<br />
profun<strong>do</strong>s que lhe foram ensina<strong>do</strong>s e que ele levou como prática de<br />
vida. Agora, reuniu esses ensinamentos neste romance e nos presenteou,<br />
com total entrega, como forma de retribuição por tu<strong>do</strong> que recebeu e<br />
aprendeu com seu Mestre.<br />
A <strong>Paz</strong> <strong>Guerreira</strong> é um <strong>livro</strong> sobre a necessária disposição e uso das<br />
virtudes guerreiras para to<strong>do</strong> aquele que se propõe a seguir por este caminho.<br />
Se queres a paz, então prepara-te para lutar por ela, ensinaram os<br />
mais sábios.<br />
Muitas vezes, cremos ser necessário possuir armas para velar ou lutar,<br />
seja pela nossa segurança, pela Justiça, ou pela Verdade. Nesta obra,<br />
encontramos muitas e verdadeiras armas, como por exemplo: a virtude<br />
<strong>do</strong> Respeito. Devemos então nos armar, se realmente nos dispomos como<br />
homens e mulheres idealistas e valentes protetores <strong>do</strong>s Valores da<br />
Humanidade, das sociedades e de cada ser vivo.<br />
11ª Pétala – Respeito: “o Respeito é a virtude Cidadã. Não é possível<br />
construir uma civilização onde reine a ordem e a justiça sem dedicar<br />
muito respeito aos valores e à Convivência, sem o devi<strong>do</strong> reconhecimento<br />
e aceitação das tradições, <strong>do</strong>s valores <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s valores<br />
morais e <strong>do</strong>s conselhos <strong>do</strong>s sábios”.<br />
Quan<strong>do</strong> ocupamos muito tempo da nossa vida diária na luta pelos<br />
Ideais de Justiça e de Humanidade, às vezes, nos sentimos abater, can-
sa<strong>do</strong>s, sem esperança. Mas recordamos que nas lutas e batalhas (tanto<br />
interiores quanto exteriores) devemos observar constantemente a nossa<br />
própria capacidade de autorrenovação durante a luta, e não deixar que o<br />
fogo que ilumina e arde dentro de nós se apague. Também não devemos<br />
permitir que a esperança de um mun<strong>do</strong> novo e melhor se dilua ou se<br />
esconda <strong>do</strong>s seres humanos, pois a esperança é outra das grandes forças<br />
que necessitamos proteger como guerreiros.<br />
O autor nesta obra também nos enriquece com a alusão a mitos atemporais<br />
– velhos contos de velhos Mestres guerreiros – como aquele sobre<br />
a corda que comunica o céu com a terra. A tradição guerreira filosófica<br />
revela à nossa consciência algo fundamental que em geral tem si<strong>do</strong><br />
esqueci<strong>do</strong>, apaga<strong>do</strong> da memória humana: que tu<strong>do</strong> ao nosso re<strong>do</strong>r guarda<br />
uma Ordem, que nada vem <strong>do</strong> acaso. Quan<strong>do</strong> buscamos o melhor e o<br />
mais justo não podemos nos contentar apenas com uma busca horizontal,<br />
na medida em que ampliamos a busca teremos que recorrer a tu<strong>do</strong><br />
que apontaram e ensinaram Mestres e Sábios de to<strong>do</strong>s os tempos, e eles<br />
sempre apontaram para o alto, para o espírito que está detrás <strong>do</strong> Sol e<br />
que é a causa ultérrima de tu<strong>do</strong>.<br />
“Não há poder sobre quem não teme” – este é outro conceito maravilhoso<br />
encontra<strong>do</strong> nesta obra. Aprender a lidar com o me<strong>do</strong>, conviver<br />
com ele, assimilá-lo, <strong>do</strong>miná-lo, é um <strong>do</strong>s grandes aprendiza<strong>do</strong>s que a<br />
trilha das artes marciais filosóficas nos lega insistentemente. Também<br />
um <strong>do</strong>s grandes filósofos de to<strong>do</strong>s os tempos – Sócrates – dá-nos o seu<br />
ensinamento sobre a imortalidade da alma no diálogo Fé<strong>do</strong>n. Devemos<br />
aprender a enfrentar a morte, dizia o filósofo. E, como guerreiros e<br />
filósofos, de quantas e diversas maneiras essa luta não se apresenta diariamente<br />
nas nossas vidas?<br />
Toda a vida consiste em aprender a morrer, e aprender a fazê-lo com<br />
honra e dignidade, dizia Sócrates, que além de filósofo foi um grande<br />
guerreiro ateniense.<br />
15
16<br />
A <strong>Paz</strong> <strong>Guerreira</strong> é um <strong>livro</strong> de profun<strong>do</strong>s ensinamentos filosóficos,<br />
mas rechea<strong>do</strong> com batalhas físicas, psíquicas e mentais, em que a exi-<br />
gência é manter-se atento e concentra<strong>do</strong>. Com uma trama estimulante,<br />
reativa nossa ação de potencial inteligente: física, psicológica, mental e<br />
espiritual, tanto individual quanto coletivamente. E isso é tremendamente<br />
estratégico, pois educar os seres humanos na mentalidade de sermos<br />
Um promove uma ação unifica<strong>do</strong>ra em que to<strong>do</strong>s os movimentos serão<br />
de um só corpo. E isso é união, isso é eficiência.<br />
Considero-me sua Irmã de Armas nesta vida, armas filosóficas, morais<br />
e pedagógicas. Nós lutamos por um Ideal de Sabe<strong>do</strong>ria.<br />
E aquele velho orgulho guerreiro me preenche o coração, por conceder-me<br />
a honra de apresentar este <strong>livro</strong>, esta saga!<br />
Luzia Helena de Oliveira Matos Echenique<br />
Diretora Nacional da Associação Cultural Nova Acrópole
SUMÁRIO<br />
Eixo <strong>do</strong> Poder<br />
1ª Pétala: Humildade ............................................................................. 23<br />
2ª Pétala: Admiração ............................................................................. 79<br />
3ª Pétala: Força.................................................................................... 141<br />
4ª Pétala: Liderança ............................................................................. 185<br />
Eixo da Realeza<br />
5ª Pétala: Obediência .......................................................................... 239<br />
6ª Pétala: Nobreza ............................................................................... 277<br />
7ª Pétala: Honra ................................................................................... 321<br />
8ª Pétala: Cavalaria ............................................................................. 361<br />
Eixo <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong><br />
9ª Pétala: Retidão .............................................................................. 403<br />
10ª Pétala: Coragem ............................................................................ 437<br />
11ª Pétala: Respeito ............................................................................. 477<br />
12ª Pétala: Regulamento ..................................................................... 513<br />
Eixo <strong>do</strong> Império<br />
13ª Pétala: Paciência ........................................................................... 547<br />
14ª Pétala: Valor .................................................................................. 583<br />
15ª Pétala: Determinação .................................................................... 621<br />
16ª Pétala: Destino .............................................................................. 669
O<br />
1.<br />
s <strong>do</strong>is exércitos distavam cerca de mil metros um <strong>do</strong> outro. À<br />
frente <strong>do</strong>s seus, perfila<strong>do</strong>s, lanças em punho, imóveis, Sokárin<br />
observava o rei adversário, que também permanecia imóvel. As tropas<br />
adversárias reluziam sob o Sol em suas armaduras completamente brancas.<br />
No exército de Sokárin, ao contrário, to<strong>do</strong>s trajavam negro, da cabeça<br />
aos pés.<br />
Os exércitos se equivaliam em número e força. A batalha seria decidida<br />
nos detalhes, qualquer pequeno erro poderia ser fatal. Talvez por<br />
isso a demora na tomada de alguma iniciativa. Sokárin não enxergava<br />
em cores, somente em branco e preto.<br />
Esse momento de expectativa gerava uma tensão crescente no campo<br />
de batalha. To<strong>do</strong>s os solda<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s, só esperavam um gesto<br />
<strong>do</strong> seu líder para arremeter contra o oponente. O Rei branco levantou<br />
sua lança. Imediatamente Sokárin o imitou, como num espelho, já que<br />
usava a lança na mão esquerda. Praticamente juntos baixaram as lanças,<br />
em sinal de ataque. Sokárin, o Rei negro, reparou que nada ouvia <strong>do</strong><br />
galope e <strong>do</strong>s gritos <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s. Tu<strong>do</strong> lhe parecia num ritmo lento, um<br />
completo silêncio.<br />
Esse transe foi quebra<strong>do</strong> pelo estron<strong>do</strong> produzi<strong>do</strong> pelo encontro <strong>do</strong>s<br />
exércitos. O choque das armaduras se fez ouvir a quilômetros de distância.<br />
Agora Sokárin sentia-se no fragor da batalha, gritos, de guerra e de<br />
<strong>do</strong>r, ecoavam por to<strong>do</strong> o espaço, membros decepa<strong>do</strong>s, sangue jorran<strong>do</strong><br />
por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s. Ajudava não enxergar cores, pois não é a to<strong>do</strong>s que o<br />
vermelho <strong>do</strong> sangue faz bem.<br />
O Rei negro manejava sua espada com destreza, buscan<strong>do</strong> o Rei<br />
branco no campo de batalha. Podia distingui-lo <strong>do</strong>s demais de uniforme<br />
branco pelo estandarte que o acompanhava. O estandarte também o pro-<br />
TALAL HUSSEINI 25
curava, vinha em sua direção. Ambos pisavam os cadáveres: mais de<br />
metade de cada um <strong>do</strong>s exércitos já sucumbira.<br />
Finalmente, os <strong>do</strong>is reis se encontraram frente a frente. A luta arrefeceu,<br />
como que numa trégua tácita. Abriu-se um círculo em torno <strong>do</strong>s<br />
monarcas. A cena era pitoresca, pois parecia uma dança diante de um<br />
espelho.<br />
O duelo seguia ferrenho, nenhum lograva atingir o outro de forma definitiva,<br />
quan<strong>do</strong> algo chamou a atenção de Sokárin. Ele olhou o céu na<br />
direção de um guincho que parecia ser de falcão. Foi bem menos <strong>do</strong> que<br />
um segun<strong>do</strong> de desatenção, mas o suficiente para que a espada <strong>do</strong> Rei<br />
branco lhe trespassasse o ventre, sain<strong>do</strong> nas costas junto à coluna vertebral.<br />
Órgãos vitais foram atingi<strong>do</strong>s. O golpe era fatal. Sokárin teve certeza<br />
quan<strong>do</strong> viu seu sangue, vermelho, manchar o chão...<br />
Pela primeira vez em sua vida, via uma cor. Ainda teve tempo de<br />
olhar ao re<strong>do</strong>r e ver o exército negro recuar atônito e frágil, ante a morte<br />
de seu líder. Os solda<strong>do</strong>s de branco guardavam silêncio, provavelmente<br />
esperan<strong>do</strong> que se lhe esvaísse o último sopro de vida para soltar seu<br />
bra<strong>do</strong> de vitória.<br />
Prostra<strong>do</strong> na terra, com a espada cravada no ventre, fixava o seu algoz,<br />
que retirava o elmo. Seu rosto... A última imagem que Sokárin viu<br />
foi seu próprio rosto no lugar daquele que o vencera...<br />
Sokárin acor<strong>do</strong>u ofegante, imediatamente levan<strong>do</strong> as mãos ao ventre,<br />
onde a espada entrara. Nada. Um pesadelo. Real, mas um sonho apenas.<br />
O velho Rei sentia o cansaço da batalha e as <strong>do</strong>res da sua idade avançada.<br />
Seu coração palpitava dentro <strong>do</strong> peito. Ficou alguns minutos senta<strong>do</strong><br />
em sua cama, até a respiração se normalizar. Estava confuso, procurava<br />
um senti<strong>do</strong> para aquele sonho, tão real, tão vívi<strong>do</strong>...<br />
Saiu <strong>do</strong> seu quarto para o terraço de onde <strong>do</strong>minava toda a capital.<br />
Estava envolto naquele tipo de solidão que só os monarcas conhecem.<br />
Vivia sozinho entre os homens. E agora, com mais de oitenta anos,<br />
26 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
aproximava-se sozinho da morte. Já havia algumas noites que não conseguia<br />
<strong>do</strong>rmir pensan<strong>do</strong> na sua sucessão. A transferência <strong>do</strong> poder é<br />
sempre um momento delica<strong>do</strong> em qualquer organização. Num País, é<br />
um momento crítico. Pode ser a consagração e reafirmação das instituições<br />
ou sua degradação. O júbilo ou o padecimento <strong>do</strong> povo nos anos<br />
subsequentes.<br />
Cogitava. Quase meio século de reina<strong>do</strong>. Os anos maravilhosos <strong>do</strong><br />
início desse perío<strong>do</strong> não passavam de memórias distantes. O Rei já não<br />
se lembrava em que momento perdera o rumo, traíra sua própria natureza<br />
e se deixara manipular por interesses que não levavam em conta os<br />
anseios <strong>do</strong> povo e, pior, <strong>do</strong>s deuses. Pode alguém governar afasta<strong>do</strong><br />
dessas diretrizes? Devia ter deixa<strong>do</strong> o trono quan<strong>do</strong> não teve mais energia<br />
para fazer valer sua vontade... Mas não era tão simples assim...<br />
Entretanto, esse sonho, esse pesadelo, o impressionara de tal forma<br />
que tu<strong>do</strong> lhe parecia parte de uma estranha realidade. Era como se acordasse<br />
de um sonho dentro de outro sonho, o sonho de outra pessoa... Os<br />
sentimentos que se lhe amalgamavam na alma eram intensos... Tu<strong>do</strong><br />
mudava em seu coração. Sim, ele não podia mais comandar um exército<br />
negro. Se na sua vida levara o País em direção às trevas, não podia permitir<br />
que em sua morte elas tomassem definitivamente conta de tu<strong>do</strong> e<br />
subvertessem a ordem.<br />
A noite estava escura como o breu. Lua nova. Estranhas energias estavam<br />
à solta no reino naqueles tempos, e aquela noite em especial era<br />
ainda mais lúgubre. Um calafrio percorreu a espinha <strong>do</strong> velho Monarca.<br />
O vento estava gela<strong>do</strong>. Silêncio demais. Uma paz ameaça<strong>do</strong>ra. Da sua<br />
sucessão dependia o futuro <strong>do</strong> reino. Sim, aquele sonho o fizera entender:<br />
estava <strong>do</strong> la<strong>do</strong> erra<strong>do</strong> e por isso vinha matan<strong>do</strong> a si mesmo... Mas<br />
ainda havia tempo para mudar. A transição devia ser pacífica, e o próximo<br />
rei um homem moral. A placa de pedra com o nome <strong>do</strong> sucessor<br />
grava<strong>do</strong> pessoalmente pelo Rei devia ser postada na estela em que figuravam<br />
os nomes de to<strong>do</strong>s os soberanos que o antecederam e o seu. Essa<br />
placa ficava coberta com um lacre de metal, que só seria aberto quan<strong>do</strong><br />
TALAL HUSSEINI 27
da sua morte. A abertura se operava somente com duas chaves codificadas.<br />
Uma era o sinete <strong>do</strong> Rei. A outra ficava com o chefe <strong>do</strong> Conselho<br />
<strong>do</strong>s Anciãos. Perto de to<strong>do</strong>s, mas fora <strong>do</strong> alcance. Vigilância o dia to<strong>do</strong>,<br />
to<strong>do</strong>s os dias. O Rei sentia que estava próximo o momento em que o<br />
nome ali deposita<strong>do</strong> seria revela<strong>do</strong>.<br />
O chefe <strong>do</strong> Conselho <strong>do</strong>s Anciãos era um nobre <strong>do</strong>s mais considera<strong>do</strong>s<br />
de to<strong>do</strong> o reino, homem acima de qualquer suspeita. A placa era<br />
infalsificável, pois havia um teste alquímico, feito na peça antes de gravada<br />
e repeti<strong>do</strong> depois de aberta a sucessão, o que tornava impossível<br />
que a substituição não fosse detectada. Poucas pessoas no reino sabiam<br />
desse procedimento. O sistema de indicação <strong>do</strong> sucessor fora muda<strong>do</strong><br />
quan<strong>do</strong> problemas ocorreram – uma única vez na história <strong>do</strong> País – muitos<br />
séculos antes, levan<strong>do</strong> a uma guerra civil que durara quase dez anos.<br />
A experiência fora traumática para to<strong>do</strong>s, e desde então as sucessões,<br />
apesar da tensão natural desses momentos, sempre correram normalmente.<br />
O vento da noite esfriou ainda mais, trazen<strong>do</strong> Sokárin de volta<br />
de seus pensamentos à realidade de seu corpo alquebra<strong>do</strong>. Entrou nos<br />
seus aposentos para ali passar as horas restantes de sua insônia.<br />
Urgia que a placa com o nome <strong>do</strong> sucessor fosse trocada... Só havia<br />
um nome possível para devolver o reino aos seus tempos de ouro...<br />
Sokárin já o observava havia algum tempo. O sonho lhe dava a coragem<br />
necessária para a mudança, mas precisava agir rápi<strong>do</strong>, sua vida já não<br />
importava, o destino de to<strong>do</strong> o País estava em jogo...<br />
2.<br />
O<br />
dia amanheceu sombrio. Como sombrio era Ofis, assistente <strong>do</strong><br />
palácio, espécie de encarrega<strong>do</strong> geral, a quem se atribuíam as<br />
funções mais variadas, inclusive serviços duvi<strong>do</strong>sos, que por sinal eram<br />
28 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
os que mais lhe davam prazer. Seria difícil precisar sua idade, bem como<br />
sua origem étnica. Homem de poucas palavras, ninguém no palácio<br />
se lembrava de alguma vez tê-lo visto sorrir. Mas cumpria suas tarefas<br />
com empenho e eficiência. Ofis parecia composto apenas de pele e ossos,<br />
mas não que fosse absolutamente magro, havia um preenchimento<br />
sóli<strong>do</strong> como madeira que lhe outorgava um aspecto de indestrutibilidade.<br />
Não se sabia no palácio qual era exatamente a sua função ou cargo,<br />
mas isso jamais era questiona<strong>do</strong> ou comenta<strong>do</strong>. Melhor não se envolver<br />
com ele. Circulava o boato de que era violento, mas nunca foi visto envolvi<strong>do</strong><br />
em qualquer altercação. Inspirava temor.<br />
Não comungava desse temor Adaran, o Primeiro-Ministro, braço direito<br />
<strong>do</strong> Rei. Ao contrário, Ofis é que parecia temê-lo, talvez por reconhecer<br />
o seu poder dentro <strong>do</strong> reino. Adaran era um homem de educação<br />
refinada, sempre em absoluto controle de seus pensamentos e emoções.<br />
Transmitia a to<strong>do</strong>s respeitabilidade e segurança. Conduzia os assuntos<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> com mão de ferro, e to<strong>do</strong>s sabiam que era praticamente ele<br />
quem governava desde que a saúde <strong>do</strong> Rei se deteriorara. Mas mesmo<br />
assim evitava o assunto da sucessão, demonstran<strong>do</strong> de forma clara que<br />
refutava completamente a ideia de substituir Sokárin, apenas não se<br />
furtan<strong>do</strong> de dar sua contribuição às questões públicas se necessário.<br />
Adaran estava sempre vesti<strong>do</strong> de maneira impecável. Dominan<strong>do</strong> vários<br />
idiomas, transitava pelas mais altas cúpulas da política internacional<br />
com grande naturalidade. Exímio espadachim e luta<strong>do</strong>r, fazia questão de<br />
deixar evidente seu repúdio pela violência, preferin<strong>do</strong> sempre que possível<br />
as soluções diplomáticas para os impasses. Ao chegar ao Conselho<br />
<strong>do</strong>s Anciãos, foi aborda<strong>do</strong> por um <strong>do</strong>s sena<strong>do</strong>res:<br />
– Sr. Adaran, comenta-se que o esta<strong>do</strong> de saúde <strong>do</strong> Rei se deteriora<br />
rapidamente... Saiba que tem to<strong>do</strong> o meu apoio para a melhor condução<br />
<strong>do</strong>s assuntos <strong>do</strong> interesse <strong>do</strong> nosso reino, mesmo depois que Sokárin<br />
se for...<br />
TALAL HUSSEINI 29
– Sena<strong>do</strong>r, agradeço seu interesse pelos assuntos de Esta<strong>do</strong>, mas<br />
cumpri<strong>do</strong> meu papel neste governo preten<strong>do</strong> dedicar-me às minhas em-<br />
presas, que estão negligenciadas desde que apoio o Rei. Ademais, Vossa<br />
Excelência pode estar tranquilo, pois Sokárin governa com muito pulso<br />
e ainda vai nos enterrar a to<strong>do</strong>s. Agora, se me permite... – concluiu já se<br />
retiran<strong>do</strong> em direção à mesa da chefia.<br />
No Conselho <strong>do</strong>s Anciãos, reuniam-se os quarenta e nove sena<strong>do</strong>res,<br />
que serviam como um órgão consultivo para o Rei, aportan<strong>do</strong> com sua<br />
experiência e conhecimentos nas mais diversas áreas. O Chefe <strong>do</strong> Conselho<br />
<strong>do</strong>s Anciãos era o Sena<strong>do</strong>r Rohel, que tinha a atribuição de Custódio<br />
das Tradições. Era um homem de olhar sereno, mas firme, a quem<br />
o peso da idade avançada – era contemporâneo <strong>do</strong> Rei – não havia atingi<strong>do</strong><br />
ainda. Educa<strong>do</strong> nas antigas tradições, o Sena<strong>do</strong>r Rohel não aceitava<br />
com facilidade a decadência que o sistema educacional experimentava,<br />
assim como várias outras instituições de Esta<strong>do</strong>. Talvez fosse um<br />
sau<strong>do</strong>sismo injustifica<strong>do</strong>, afinal não estavam os mais velhos sempre a<br />
pensar que as coisas e os jovens de agora eram piores <strong>do</strong> que os de antes?<br />
Iludin<strong>do</strong>-se dessa forma em seus pensamentos para ocultar de si<br />
mesmo as evidências, o ancião viu aproximar-se Adaran:<br />
– Saudações, Senhor Primeiro-Ministro.<br />
– Saudações, Sena<strong>do</strong>r Rohel. Como vai a Sra. Inari?<br />
– Bem, obriga<strong>do</strong>, dentro <strong>do</strong> que se permite aos velhos...<br />
– Sua esposa conserva o vigor e a energia da juventude, assim como<br />
Vossa Excelência.<br />
– Poupe sua diplomacia para quem acredita nela, Adaran, não compensa<br />
gastar seus elogios com alguém que já está mais próximo <strong>do</strong> outro<br />
la<strong>do</strong> da existência <strong>do</strong> que deste... Mas vamos aos trabalhos?<br />
– É claro, Sena<strong>do</strong>r.<br />
O Sena<strong>do</strong>r Rohel brandiu um antigo martelo de madeira maciça, lançan<strong>do</strong>-o<br />
por três vezes sobre um apoio de madeira com uma energia tal,<br />
de que se custaria a crer ele fosse capaz. Anunciou:<br />
30 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
– Senhores Sena<strong>do</strong>res, está aberta a sessão! Como previamente anun-<br />
cia<strong>do</strong>, não há deliberações, destinan<strong>do</strong>-se esta jornada à manifestação<br />
<strong>do</strong> Senhor Primeiro-Ministro, a quem passo desde logo a palavra.<br />
Subin<strong>do</strong> ao púlpito, Adaran agradeceu menean<strong>do</strong> a cabeça:<br />
– Senhor Chefe <strong>do</strong> Conselho, senhores Sena<strong>do</strong>res, como to<strong>do</strong>s sabem,<br />
a causa que me traz a esta plenária, a pedi<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rei, é, como to<strong>do</strong>s<br />
sabemos, e não podemos nos utilizar de meias palavras neste foro, o<br />
esta<strong>do</strong> de saúde debilita<strong>do</strong> de Sua Majestade, cren<strong>do</strong> ele mesmo que<br />
este ano será o último <strong>do</strong> seu reina<strong>do</strong>. É importante, pois, que to<strong>do</strong>s envidemos<br />
esforços para apoiar integralmente o escolhi<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> em vista<br />
que a sua escolha foi amparada pela decisão sábia de nosso Monarca.<br />
– Adaran, não há qualquer dúvida de que você será o sucessor – gritou<br />
um <strong>do</strong>s sena<strong>do</strong>res, <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> da assistência.<br />
– To<strong>do</strong>s sabem que não tenho qualquer interesse nesse pesa<strong>do</strong> encargo,<br />
pois estou envolvi<strong>do</strong> na política em razão <strong>do</strong> acaso e <strong>do</strong> senso de<br />
dever cívico que não me permitiu declinar <strong>do</strong> pedi<strong>do</strong> de auxílio que me<br />
foi dirigi<strong>do</strong>. Prefiro, portanto, nesta etapa de minha vida, ver-me livre<br />
das funções estatais, para dedicar-me aos meus assuntos pessoais. Entretanto,<br />
não poderei me furtar, se for esse o caso, de cumprir com o meu<br />
dever de cidadão, pois não me reservo o direito de aban<strong>do</strong>nar minhas<br />
obrigações em função de minha felicidade pessoal.<br />
Apupos avolumaram-se por to<strong>do</strong> o ambiente. Pelo menos <strong>do</strong>is terços<br />
<strong>do</strong>s presentes aplaudiam fervorosamente o cativante Primeiro-Ministro.<br />
Não havia dúvida de que ele era a pessoa indicada para conduzir o reino<br />
a uma nova era de prosperidade e pujança.<br />
O Sena<strong>do</strong>r Rohel estava entre a minoria que não se manifestou diante<br />
das palavras de Adaran. O ancião não gostava <strong>do</strong> Primeiro-Ministro. Se<br />
lhe perguntassem que razões objetivas tinha para isso não saberia responder,<br />
mas ao longo <strong>do</strong>s anos aprendera a ler as pessoas por algo além<br />
de seus atos e palavras. Algo em Adaran não lhe agradava.<br />
TALAL HUSSEINI 31
O Primeiro-Ministro entrou na carruagem que o aguardava, conduzi-<br />
<strong>do</strong> por Ofis, partin<strong>do</strong> rapidamente.<br />
Adaran saiu <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> e foi à Real Sociedade, que era um local onde<br />
a elite da Capital se encontrava para a prática de esportes. O lugar ficava<br />
num antigo castelo, com muitos jardins e bosques. Oferecia também<br />
banhos a vapor e ambientes de reunião e conversa, em que questões<br />
importantes <strong>do</strong> poder e assuntos intelectuais eram trata<strong>do</strong>s. Adaran tinha<br />
direito a uma revanche contra Haggi Eitan, que o vencera <strong>do</strong>is dias antes,<br />
depois de um duelo equilibra<strong>do</strong> com espadas. Por isso gostava de<br />
lutar com Haggi: os outros membros da Sociedade não eram páreo para<br />
ele. Kadriel ainda o fazia suar um pouco, mas não o vencia. Haggi era<br />
diferente. Tinha um estilo mais clássico, de movimentos suaves, rápi<strong>do</strong>s<br />
e precisos. Boa defesa, era difícil de ser atingi<strong>do</strong>. Seria uma boa luta.<br />
Hoje estava motiva<strong>do</strong>.<br />
No entanto, mais uma vez, Haggi Eitan venceu. Perder a luta não era<br />
tão ruim, pois isso incentivava Adaran a melhorar ainda mais sua técnica.<br />
Ruim era encarar o sorriso irônico e desdenhoso de Haggi, mas era<br />
impossível zangar-se com ele, tal o seu carisma. Não havia quem não<br />
gostasse dele. Daí o seu sucesso na carreira diplomática. Ainda assim,<br />
nunca se podia saber se falava a verdade. Ocultava muito bem seus pensamentos<br />
e emoções. Era um joga<strong>do</strong>r.<br />
Depois <strong>do</strong> duelo, sentavam-se na adega para conversar sobre os rumos<br />
da política mundial e tomar um vinho. Uniu-se a eles Golan, filho<br />
mais velho <strong>do</strong> Rei Sokárin. Era frequenta<strong>do</strong>r da Real Sociedade e das<br />
rodas de conversa, mas nunca lutava contra Adaran ou Haggi por ser de<br />
nível muito inferior. Seria uma humilhação para ele e um aborrecimento<br />
para os outros. O mesmo nível mediano que tinha com as espadas se<br />
refletia em sua vida. Era médio em tu<strong>do</strong>. Competente, é verdade, em<br />
32 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
qualquer atribuição que lhe fosse designada, mas sem iniciativa para ir<br />
além. Muitos achavam que seria o sucessor natural <strong>do</strong> Rei. Ele tinha<br />
certeza.<br />
– Então, senhores – disse, já sentan<strong>do</strong>-se à mesa, com ar satisfeito –<br />
como foi o combate?<br />
– Por que tanta alegria, Golan, já está dan<strong>do</strong> seu pai como morto? Ou<br />
sabe alguma coisa que nós não sabemos? – ironizou Haggi<br />
– Golan ficou sem graça:<br />
– Não, de forma alguma… Só estou contente em ver os amigos…<br />
– Não precisa ficar sem graça, foi apenas uma brincadeira. Ademais,<br />
to<strong>do</strong>s sabem que a saúde <strong>do</strong> Rei já não é das melhores, e é muito provável<br />
que ele realmente não passe deste ano.<br />
– Não diga isso, Haggi Eitan, meu pai ainda viverá muitos anos.<br />
– Se os deuses assim desejarem – intercedeu o Primeiro-Ministro –<br />
você deverá suceder seu pai com sabe<strong>do</strong>ria, Golan. Terá de mim to<strong>do</strong> o<br />
apoio que necessitar.<br />
– Homens como você, Adaran, são sempre muito importantes para<br />
qualquer governante ter por perto.<br />
– Haggi assumiu novamente seu ar provocativo:<br />
– Mas o que o faz ter tanta certeza de que será o sucessor de Sokárin,<br />
Golan?<br />
– Não tenho certeza – disse, sem convicção – nunca se pode ter certeza,<br />
mas meu pai me preparou para isso, sempre me passou toda a sua<br />
experiência e ensinamentos necessários para reinar. Sei, sem falsa modéstia,<br />
que sou capaz de reinar.<br />
– E é mesmo, Golan. Você será um grande soberano – aquiesceu<br />
Adaran.<br />
– E você um grande Primeiro-Ministro, não é? – completou Haggi.<br />
– Eu já sou o Primeiro-Ministro, Haggi.<br />
– Sim e quer continuar a sê-lo… Ou quem sabe uma promoção...?<br />
TALAL HUSSEINI 33
– Os cargos e títulos não me interessam.<br />
– Mas o poder…<br />
– Inclusive tenho certeza de que Golan precisará de um Ministro <strong>do</strong><br />
Exterior competente como você, Haggi.<br />
O filho <strong>do</strong> Rei assentiu com a cabeça:<br />
– Vocês sabem que podem contar com a minha ajuda, mas nunca se<br />
esqueçam de uma coisa: eu não sirvo a governos, sirvo ao Esta<strong>do</strong>. Por<br />
isso preferi a carreira diplomática aos cargos de administração. Mas<br />
sempre é bom deixar as portas abertas.<br />
– Bem – disse o Primeiro-Ministro – estou na minha hora. Creio que<br />
nosso próximo duelo ficou para a semana que vem, certo Haggi? Até<br />
logo, Golan.<br />
– É claro. Até lá.<br />
– Até logo.<br />
Haggi e Golan conversaram mais um pouco sobre as questões que<br />
envolviam a sucessão e depois se foram, cada um pensan<strong>do</strong> como os<br />
outros lhe poderiam ser úteis.<br />
A<br />
3.<br />
s têmporas de Mulil latejavam. O Sol re<strong>do</strong>n<strong>do</strong> o fustigava naquele<br />
dia em que o céu estava de um azul quase branco, tal era<br />
a claridade. O suor que escorria da testa para dentro <strong>do</strong>s olhos atrapalhava<br />
sua visão, o calor atrapalhava seus pensamentos, as palmas de<br />
suas mãos estavam lanhadas pelas pedras pontiagudas. Ele era um pequeno<br />
inseto sobre a superfície gigantesca da rocha. A parede fazia um<br />
ângulo exato de noventa graus com o solo. Em alguns pontos a inclinação<br />
chegava a ser ligeiramente negativa. A temperatura ambiente, que<br />
34 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
eirava os cinquenta graus, era ainda mais alta na pedra, o que não<br />
tornava sua missão nem um pouco confortável.<br />
Aos catorze anos de idade, Mulil ainda não tinha a força de um ho-<br />
mem feito, porém não era mais um garoto frágil. Acompanhan<strong>do</strong> as<br />
mudanças por que passava seu corpo, vinham as da mente. Seus pen-<br />
samentos não paravam, a energia que pulsava em seu peito era difícil<br />
de controlar. Ele queria conquistar o mun<strong>do</strong>...<br />
Mas antes precisava conquistar a si mesmo, eram as palavras de seu<br />
Mestre, que o observava ao longe. Sua presença era o que mantinha<br />
Mulil naquele momento, pois já pensara mil vezes em desistir. Mas ao<br />
se imaginar fracassan<strong>do</strong> perante seu Mestre Montuhotep, pensava mil e<br />
uma vezes em continuar. E prosseguia sua lenta escalada em direção ao<br />
ninho. Cada movimento tinha de ser muito bem estuda<strong>do</strong>, sob pena de<br />
funesto destino, rumo às pontas escarpadas das rochas lá embaixo. Seu<br />
coração estava acelera<strong>do</strong> pelo esforço e pelo me<strong>do</strong> da altura. A coragem<br />
está dentro de você, dizia Montuhotep, e ela se exterioriza pelo<br />
valor. Seja corajoso e mostre-se valente. As palavras ecoavam em sua<br />
cabeça.<br />
Seus braços já não aguentavam, não tinham mais força alguma, eram<br />
velas queimadas. Só a vontade o sustinha. Procurava concentrar-se em<br />
não perdê-la. Já havia duas horas que a única coisa que olhava era a<br />
rocha, cada pequena fresta ou vão onde se agarrar, cada saliência,<br />
cada reentrância, rocha, rocha e mais rocha, e um objetivo: não era<br />
<strong>do</strong>minar o cume, mas <strong>do</strong>minar o falcão... Assim lhe havia dito Montuhotep,<br />
sem maiores explicações. Disse que no momento certo ele entenderia...<br />
Mulil não tinha tanta certeza de sua capacidade de entendimento,<br />
mas muito ce<strong>do</strong> aprendera uma coisa: a confiar no seu Mestre, caso<br />
contrário não estaria ali, a mais de setenta metros <strong>do</strong> chão duro, sem<br />
qualquer proteção senão o aprendiza<strong>do</strong> que tivera até então.<br />
TALAL HUSSEINI 35
O guincho às suas costas lhe fez gelar o sangue, seu coração bateu<br />
descompassa<strong>do</strong>, o turbilhão de pensamentos que povoava sua mente<br />
cessou como num passe de mágica, para dar lugar a um único pensamento:<br />
procurar um apoio na parede que lhe permitisse olhar para o<br />
seu oponente. Conseguiu.<br />
O primeiro guincho fora emiti<strong>do</strong> num voo de reconhecimento. Agora<br />
a ave arremetia contra Mulil. Ver o que antes ouvira não lhe aumentou<br />
em nada a segurança. Desejou nunca se ter vira<strong>do</strong> e apenas ter espera<strong>do</strong><br />
a morte sem ter que a encarar. Sua reação foi procurar pelo Mestre,<br />
que distava dele cerca de duzentos metros em linha reta pela hipotenusa<br />
que fecharia o triângulo com a parede e o chão. Foi como se numa<br />
fração de segun<strong>do</strong> tivesse fica<strong>do</strong> cara a cara com o Mestre. A figura<br />
esguia, de elevada estatura, vestin<strong>do</strong> uma túnica branca que parecia<br />
imune ao pó e à areia, a cabeça ornada com uma espécie de coroa com<br />
uma pedra amarela na frente, em torno <strong>do</strong> pescoço um colar de contas<br />
<strong>do</strong> qual pendia um escaravelho de lápis-lazúli, o encarou de tal forma<br />
que Mulil imediatamente preferiu o falcão.<br />
Olhou mais uma vez na direção <strong>do</strong>s guinchos que se aproximavam<br />
rapidamente junto com seu emissor. Mas o olhar de Mulil já não era o<br />
mesmo, era um olhar de guerreiro, um olhar capaz de descortinar o<br />
Universo... Esse olhar encontrou as pupilas alongadas <strong>do</strong> falcão, que<br />
de imediato mu<strong>do</strong>u sua postura. Aparentemente nada mudara, pois os<br />
guinchos continuavam a ser emiti<strong>do</strong>s, e a ave ainda vinha em sua direção,<br />
mas Mulil sabia, acreditava que algo havia muda<strong>do</strong>. Ergueu seu<br />
braço esquer<strong>do</strong>, deixan<strong>do</strong> o antebraço em posição horizontal.<br />
O falcão parou com seu bico curvo a poucos centímetros <strong>do</strong> rosto de<br />
Mulil, os olhos crava<strong>do</strong>s nos seus, as garras cravadas em seu braço,<br />
firmemente, como se daquilo dependesse sua vida. Coragem, pensou<br />
Mulil, superan<strong>do</strong> o me<strong>do</strong> que sentia e suportan<strong>do</strong> a <strong>do</strong>r aguda, que pa-<br />
36 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
ecia irradiar-se em choques elétricos ao longo de seu corpo, tal sua<br />
intensidade. O cheiro férreo <strong>do</strong> sangue chegou às suas narinas...<br />
Entretanto, a sensação que tomou conta <strong>do</strong> discípulo foi de paz, uma<br />
paz profunda, mas delicada. Uma paz que dependia da sua postura para<br />
se manter. Qualquer deslize, qualquer demonstração de debilidade,<br />
poderia ser o fim. A ave facilmente o despregaria da rocha, lançan<strong>do</strong>-o<br />
no vazio...<br />
Mas Mulil sabia que isso não aconteceria, olhou com ternura para o<br />
falcão e soube... ele seria seu alia<strong>do</strong>, para sempre... O falcão soltou seu<br />
braço e alçou voo, descreven<strong>do</strong> um oito perfeito no céu branco, para<br />
desaparecer sobre o deserto...<br />
K<br />
4.<br />
adriel acor<strong>do</strong>u sua<strong>do</strong>, pela agitação e pelo calor <strong>do</strong> deserto <strong>do</strong><br />
seu sonho. Levantou-se, lavou o rosto com água gelada, foi até<br />
a janela. A vista era privilegiada: <strong>do</strong>minava toda a cidade até as colinas<br />
<strong>do</strong> la<strong>do</strong> oposto. Os primeiros raios da aurora transpassavam a neblina<br />
que cobria as casas e parte <strong>do</strong>s edifícios, tingin<strong>do</strong>-a de amarelo-ouro.<br />
Kadriel divagou por longos minutos, aguardan<strong>do</strong> que a coroa solar<br />
apontasse no horizonte e pensan<strong>do</strong> que se aproximava o dia em que governaria<br />
a cidade, depois o Esta<strong>do</strong> e ainda o País. Ele retinha seus pensamentos<br />
quan<strong>do</strong> estes queriam por vontade própria ir além <strong>do</strong> País. A<br />
política era difícil, mas Kadriel confiava nas pessoas que o cercavam, e<br />
elas confiavam nele. Ele era um político promissor, bom caráter, às vezes<br />
até um pouco inocente. Mas era determina<strong>do</strong> e honesto, o que lhe<br />
conferia crédito para, bem assessora<strong>do</strong>, atingir seus objetivos.<br />
TALAL HUSSEINI 37
Um <strong>do</strong>s primeiros pássaros da manhã riscou o céu, trazen<strong>do</strong> à mente<br />
de Kadriel lembranças de sua infância. De mo<strong>do</strong> involuntário, levou a<br />
mão direto ao antebraço esquer<strong>do</strong>, como sempre fazia, afagan<strong>do</strong> as cicatrizes<br />
que obtivera havia muito tempo. Três pequenos riscos de aproximadamente<br />
<strong>do</strong>is centímetros cada um, paralelos, sen<strong>do</strong> <strong>do</strong>is alinha<strong>do</strong>s e<br />
o <strong>do</strong> centro mais avança<strong>do</strong>. Completan<strong>do</strong> a marca um quarto risco quase<br />
idêntico aos outros <strong>do</strong> la<strong>do</strong> exatamente oposto <strong>do</strong> antebraço.<br />
Kadriel lembrou-se de uma tarde na escola. Ele tinha dez anos de idade.<br />
Estava com seus amigos inseparáveis Bakar, Haggi e Dhara. Desobedecen<strong>do</strong><br />
as determinações <strong>do</strong>s professores, afastaram-se da atividade<br />
in<strong>do</strong> em direção às montanhas. Em certa altura pararam, em dúvida sobre<br />
a continuidade da expedição. Haggi não queria continuar, Kadriel e<br />
Bakar discutiam sobre os prós e contras de prosseguir ou retornar. Enquanto<br />
se perdiam em dúvidas, Dhara tomou a dianteira e prosseguiu<br />
dizen<strong>do</strong> sem se voltar:<br />
– Espero vocês lá em cima, caso resolvam vir, é claro.<br />
Os garotos se entreolharam e sem dizer mais nada a seguiram.<br />
Chegaram até o topo num local que dava para um penhasco. Os quatro<br />
se deitaram de barriga para baixo, apenas com a cabeça para além da<br />
beirada. Ali permaneceram olhan<strong>do</strong> os detalhes da parede escarpada,<br />
que devia contar uns oitenta metros de altura. Cada um pensava em suas<br />
coisas, quan<strong>do</strong> Dhara viu um ninho a aproximadamente dez metros<br />
abaixo de onde estavam. Propôs:<br />
– Vejam, é um ninho de falcões, aqui há um caminho na rocha…<br />
Kadriel a reteve:<br />
– Não, deixe que eu sigo à frente, pode ser perigoso.<br />
E sem deixar muita margem à argumentação, ultrapassou-a em direção<br />
ao ninho. Ela o seguiu. Bakar a secun<strong>do</strong>u. Haggi permaneceu no<br />
topo, aguardan<strong>do</strong> qualquer contratempo. Prosseguiam pela encosta lentamente,<br />
estudan<strong>do</strong> cada movimento, pois qualquer deslize poderia ser<br />
38 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
fatal. A concentração era total. Foi quan<strong>do</strong> um guincho agu<strong>do</strong> cortou o<br />
silêncio. O falcão que defendia seus filhotes arremeteu contra os improvisa<strong>do</strong>s<br />
escala<strong>do</strong>res. A inquietação tomou conta de to<strong>do</strong>s. Haggi gritou,<br />
Bakar bateu em retirada pelo mesmo caminho por onde tinha desci<strong>do</strong>.<br />
Dhara o seguiu. Somente Kadriel permaneceu estático, mas não de me<strong>do</strong>,<br />
ele estava tranquilo, não sabia bem por que mas estava tranquilo.<br />
O falcão voou em direção a Kadriel. To<strong>do</strong>s gritaram, mas ele teve o<br />
impulso de enrolar sua blusa no braço para se proteger. O pássaro continuou<br />
sua arremetida, mas quan<strong>do</strong> estava próximo <strong>do</strong> rapaz seus olhares<br />
se cruzaram. Foi um momento único, que Kadriel jamais esquecerá. O<br />
tempo pareceu parar naquele instante, e antes que ele tivesse a chance<br />
de qualquer reação a ave pousou em seu braço. E cravou seus olhos nos<br />
dele, fixamente. Da mesma forma que suas garras afiadas trespassavam<br />
o teci<strong>do</strong> da blusa para se cravarem em sua pele. Kadriel sentiu o calor<br />
<strong>do</strong> sangue que encharcava o teci<strong>do</strong> que envolvia seu braço, entretanto<br />
não entrou em pânico, ao contrário, foi toma<strong>do</strong> de intensa serenidade.<br />
Sustentou o olhar <strong>do</strong> falcão. Ambos tiveram um instante de união. To<strong>do</strong><br />
o som <strong>do</strong> universo desapareceu. O infinito os envolveu naquele pequeno<br />
espaço de tempo…<br />
O falcão soltou então suas garras e alçou voo, descreven<strong>do</strong> no céu um<br />
oito deita<strong>do</strong> e desaparecen<strong>do</strong> no horizonte. Foi só então que Kadriel<br />
pôde ouvir de novo os sons <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e dentre eles os gritos de Bakar,<br />
que escorregara pela encosta em sua fuga, fican<strong>do</strong> preso em uma delicada<br />
árvore, que se soltava na medida em que ele se debatia.<br />
Dhara procurava ajudá-lo, mas não tinha força para alçar seu corpanzil.<br />
Kadriel aproximou-se, então, para unir forças com Dhara; Haggi<br />
estava paralisa<strong>do</strong> de me<strong>do</strong>, mas ao ver que o esforço <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is amigos<br />
não era suficiente, somou-se a eles para, juntos, conseguirem resgatar o<br />
prisioneiro <strong>do</strong> abismo.<br />
TALAL HUSSEINI 39
To<strong>do</strong>s, já em segurança, seguiram em direção à escola. O silêncio que<br />
os envolvia era sepulcral. Ninguém pronunciou palavra em toda a descida,<br />
mas aqueles momentos permaneceriam indeléveis na memória de<br />
to<strong>do</strong>s eles. O silêncio os unia mais <strong>do</strong> que quaisquer palavras que pudessem<br />
pronunciar. Entretanto, era indisfarçável que to<strong>do</strong>s olhavam<br />
para Kadriel com estranheza. A mesma estranheza que pautava vários<br />
episódios de sua vida: certa vez, antes de começar a praticar artes marciais,<br />
foi cerca<strong>do</strong> por oito garotos na escola, que queriam roubar seu<br />
lanche. Kadriel atravessou essa barreira humana sem que nenhum <strong>do</strong>s<br />
garotos pudesse tocá-lo. De outra feita, foi surpreendi<strong>do</strong> por um grande<br />
cachorro que escapou de uma casa, quan<strong>do</strong> estava prestes a ser ataca<strong>do</strong><br />
fixou seu olhar no <strong>do</strong> cão, que desistiu <strong>do</strong> seu intento. Quem quebrou o<br />
silêncio foi Dhara:<br />
– Deixe-me ver como está seu braço.<br />
Ele, como que em transe, estendeu seu braço para a menina. Ela desenrolou<br />
a blusa que recobria o ferimento, empapada de sangue já meio<br />
seco. Eram três cortes de um la<strong>do</strong> <strong>do</strong> antebraço e mais um <strong>do</strong> la<strong>do</strong> oposto,<br />
não muito profun<strong>do</strong>s, mas o suficiente para algum sangramento.<br />
– Dói?<br />
Ele respondeu negativamente com um gesto de cabeça.<br />
– Mas ainda assim é melhor lavarmos o ferimento para evitar uma infecção.<br />
Kadriel assentiu, deixan<strong>do</strong>-se conduzir pela suavidade de Dhara.<br />
O Sol que aparecera em sua plenitude por sobre o horizonte retirou<br />
Kadriel de suas memórias. Ele ainda afagava o braço onde o falcão pousara<br />
naquela tarde da sua a<strong>do</strong>lescência e ainda sentia o perfume suave<br />
de Dhara, no lenço que guardara desde então e que lhe trazia <strong>do</strong>ces lembranças.<br />
Nunca chegou a lhe dizer o quanto ela era importante para ele.<br />
Naquele mesmo ano <strong>do</strong> episódio com o falcão, ela se mudara com sua<br />
família para o exterior. Lembrava-se da última vez que a viu, acenan<strong>do</strong><br />
40 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
um adeus. Seus olhares se cruzaram e tiveram a certeza de que voltariam<br />
a se encontrar. Talvez por isto até hoje não tivesse encontra<strong>do</strong> uma<br />
companheira definitiva: nutria esperanças de um dia rever Dhara... Mas<br />
esse dia demorava a chegar.<br />
Aos vinte e oito anos, Kadriel já era conhece<strong>do</strong>r de diversas técnicas<br />
de combate e uso de armas. Seu interesse pelo assunto se devia à vontade<br />
de <strong>do</strong>minar seus me<strong>do</strong>s e entender aqueles fatos estranhos que o<br />
acompanhavam desde a infância. Conseguiu com isso controlar seus<br />
impulsos, muitas vezes açoda<strong>do</strong>s e até violentos, mas não lograra <strong>do</strong>minar<br />
seus me<strong>do</strong>s e tampouco entender-se a si mesmo.<br />
Quanto a seus outros companheiros de infância, Haggi Eitan ficara<br />
afasta<strong>do</strong> por alguns anos em que estudava no exterior para a carreira<br />
diplomática, que agora seguia com bastante sucesso. Apesar da pouca<br />
idade, Haggi já fora adjunto de diversas embaixadas em países importantes,<br />
bem como já participara de missões diplomáticas de suma relevância<br />
para a economia <strong>do</strong> País. Desde que voltara, mantinham contato<br />
constante até mesmo porque, como Kadriel, Haggi estava estreitamente<br />
liga<strong>do</strong> à administração atual, sobretu<strong>do</strong> ao Primeiro-Ministro.<br />
Bateram na porta. Kadriel era chama<strong>do</strong> por seu amigo inseparável<br />
Bakar, com quem jamais perdeu o contato e que ainda era seu fiel companheiro<br />
de tantas batalhas. Eles eram aguarda<strong>do</strong>s no Ministério. Partiriam<br />
em seguida para o interior.<br />
K<br />
5.<br />
adriel estava ansioso, pois à tarde teria uma audiência com o<br />
Rei. Não fazia a menor ideia de por que fora convoca<strong>do</strong>, o que<br />
o deixava ainda mais nervoso. Teria cometi<strong>do</strong> algum erro grave no<br />
exercício de suas funções no Ministério? O Ministro Doran, sob cujo<br />
TALAL HUSSEINI 41
coman<strong>do</strong> se encontrava não gostava <strong>do</strong> trabalho. Em verdade, pouco<br />
aparecia no Ministério e quan<strong>do</strong> o fazia era para dar entrevistas ou receber<br />
os louros por algum projeto bem sucedi<strong>do</strong> no qual ele naturalmente<br />
não tivera qualquer participação. Kadriel, apesar de ser apenas o segun<strong>do</strong><br />
homem no Ministério, era quem realmente conduzia as ações. Mas<br />
ele não buscava méritos nem reconhecimento, acreditava no que fazia e<br />
na importância <strong>do</strong>s trabalhos desenvolvi<strong>do</strong>s sob a sua orientação.<br />
Quan<strong>do</strong> o encarregaram da tarefa provavelmente esperavam o seu<br />
fracasso. Seria uma pá de cal em suas pretensões de ascensão política.<br />
Um retumbante fracasso já no início de sua vida pública. O Rei insistira<br />
em sua indicação, mesmo contra a vontade <strong>do</strong> Primeiro-Ministro, que<br />
por nutrir grande simpatia por Kadriel, achava que era muito ce<strong>do</strong> para<br />
ele exercer um cargo de tal magnitude que poderia prejudicá-lo se não<br />
tivesse êxito em sua execução. Mas como o Rei fora irredutível nesse<br />
ponto, Adaran lhe prestou apoio decisivo para que Kadriel conseguisse<br />
superar os obstáculos, sem o qual, com certeza, teria realmente fracassa<strong>do</strong>.<br />
Mas agora o Ministério era um sucesso. O povo conhecia Kadriel e<br />
lhe dedicava muito apreço, mas não tanto quanto ao Ministro, que sem<br />
dúvida era a cabeça pensante que concebia e viabilizava to<strong>do</strong>s aqueles<br />
trabalhos sensacionais, que tantos benefícios traziam à população mais<br />
pobre <strong>do</strong> Reino.<br />
O edifício <strong>do</strong> Ministério era da antiga dinastia. Tinha mais de cinco<br />
séculos de idade. A entrada portentosa apoiada sobre grandes colunas de<br />
mármore. No exterior da parede frontal, estátuas de mármore <strong>do</strong>s governantes<br />
da época <strong>do</strong> Império, em tamanho natural. O último deles, que<br />
antecedera o pai de Sokárin na direção <strong>do</strong> País, era o que mais chamava<br />
a atenção de Kadriel, que to<strong>do</strong>s os dias não se furtava de parar à frente<br />
da estátua durante uns cinco minutos, permanecen<strong>do</strong> estático diante<br />
dela, como se esperasse que o Impera<strong>do</strong>r Gur Medhavin lhe falasse. E<br />
42 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
de fato o artista que concebera aquela estátua o fizera em momento de<br />
grande inspiração, parecen<strong>do</strong> faltar apenas um sopro para que a obra<br />
deixasse seu pedestal e fosse retomar seu lugar no trono, trazen<strong>do</strong> de<br />
volta os anos de ouro <strong>do</strong> Império.<br />
O rosto da estátua era impressionante: tinha feições serenas, boca reta<br />
de lábios finos, nariz adunco que não podia ser classifica<strong>do</strong> como pequeno,<br />
orelhas pequenas coladas ao crânio e os olhos... pareciam os de<br />
uma águia, com as sobrancelhas ligeiramente franzidas sobre o nariz,<br />
fitavam o infinito... Kadriel sentia ao mesmo tempo admiração e opressão<br />
diante de tamanho poder. Naqueles minutos diários, sonhava com o<br />
dia em que os homens-águia retornariam para conduzir as gentes, mais<br />
uma vez, em direção ao Sol...<br />
Bakar também permanecia estático <strong>do</strong>is passos atrás de Kadriel, to<strong>do</strong>s<br />
os dias. Não pensava as mesmas coisas, nem via os mesmos homens,<br />
pois eram muito grandes para ele. Mas sabia que iria aonde seu amigo<br />
fosse e esmagaria qualquer um que tentasse feri-lo. Não era difícil crer<br />
nisso ao ver Bakar. Era ao menos vinte centímetros mais alto que<br />
Kadriel, que não era baixo. Sua cabeça quadrada ligava-se ao corpo<br />
através de um cilindro mais largo <strong>do</strong> que ela. Isso que poderia ser chama<strong>do</strong><br />
de pescoço alargava-se ainda mais na base para soldar-se aos ombros,<br />
largos o suficiente para que quem o visse de longe não pensasse<br />
que ele tinha mais de <strong>do</strong>is metros de altura. Como sua cabeça, a visão<br />
geral de Bakar era a de um quadra<strong>do</strong>. Uma cabeça quadrada sobre um<br />
tronco quadra<strong>do</strong> <strong>do</strong> qual pendiam braços roliços. Não era musculoso,<br />
seus braços, como suas pernas, eram cilindros de grande diâmetro. Ao<br />
vislumbrar tal estrutura física não seria possível imaginar que se movesse<br />
com tamanha agilidade e rapidez, desafian<strong>do</strong> a física e a lógica.<br />
A inteligência não era a principal arma de Bakar, mas gostava de demonstrar<br />
sua força física, brandin<strong>do</strong> o punho cerra<strong>do</strong>, que era quase <strong>do</strong><br />
tamanho de uma cabeça de uma criança.<br />
TALAL HUSSEINI 43
De fato, um único golpe daquele gigante certamente privaria um desavisa<strong>do</strong><br />
da existência. E, apesar dessas dimensões colossais e <strong>do</strong> aspecto<br />
rústico, Bakar era um grande coração. Provavelmente ele mesmo não<br />
sabia que era possui<strong>do</strong>r de uma virtude encontrada em poucos seres<br />
humanos: pureza. E lealdade. Não haveria cão mais fiel ao seu <strong>do</strong>no <strong>do</strong><br />
que o gigante era aos seus amigos, sobretu<strong>do</strong> a Kadriel.<br />
Depois que Kadriel saiu de sua contemplação, dirigiu-se ao interior<br />
<strong>do</strong> edifício. Bakar o acompanhou em silêncio, que Kadriel quebrou como<br />
que pensan<strong>do</strong> em voz alta:<br />
– O que o Rei quererá comigo?<br />
– Por certo parabenizá-lo por seus feitos no Ministério, ou até lhe dar<br />
uma promoção. Quem sabe um ministério só para você... – respondeu o<br />
amigo.<br />
– Não, o Rei nem sabe o que faço por aqui. Pensa, como to<strong>do</strong>s, que o<br />
Ministro é o autor de to<strong>do</strong>s os sucessos. E isso de fato não me importa.<br />
Só interessa que o trabalho esteja sen<strong>do</strong> feito de maneira correta e trazen<strong>do</strong><br />
bem-estar para o povo.<br />
– Você está erra<strong>do</strong> Kadriel, foi o Rei quem insistiu em colocá-lo nesta<br />
posição. Ele pode estar velho, e ter cometi<strong>do</strong> erros na condução <strong>do</strong><br />
País, mas não é tolo. Ele vê mais <strong>do</strong> que nós, e por isso é o Rei.<br />
– É, você pode ter razão... Mas ainda assim não consigo imaginar que<br />
assunto terá comigo.<br />
– Aguarde e saberá.<br />
Bakar tinha sempre essas respostas curtas e diretas, de uma lógica irrefutável,<br />
pela sua simplicidade.<br />
Kadriel afun<strong>do</strong>u-se no trabalho para que o final da tarde chegasse<br />
logo.<br />
Kadriel estava havia vinte minutos senta<strong>do</strong> no corre<strong>do</strong>r <strong>do</strong> palácio real,<br />
aguardan<strong>do</strong> que o arauto o anunciasse ao Rei. Não que a audiência<br />
estivesse atrasada, ele é que havia chega<strong>do</strong> bem adianta<strong>do</strong>. Aquela con-<br />
44 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
vocação repentina o surpreendera e por mais que se esforçasse não conseguia<br />
sequer vislumbrar qual seria o assunto trata<strong>do</strong>. Mas estava com<br />
sua melhor roupa de gala. Só estivera perto <strong>do</strong> Rei três vezes, sempre<br />
em cerimônias, junto com muitas outras pessoas. A sós, cara a cara,<br />
nunca. Por isso era normal que seu coração palpitasse meio descompassa<strong>do</strong>,<br />
por mais que procurasse manter sua respiração tranquila.<br />
O jovem desistiu de prestar atenção ao tempo e levantou-se para assistir<br />
ao pôr-<strong>do</strong>-Sol de uma das janelas. Alguém dera pinceladas horizontais<br />
de amarelo-<strong>do</strong>ura<strong>do</strong> sobre o azul intenso. Eram faixas irregulares,<br />
mas que continham harmonia perfeita, de uma perfeição que jamais<br />
poderia ser traduzida pela mão humana, por melhor que fosse o artista.<br />
O arreme<strong>do</strong> de natureza nunca chegaria aos pés da obra original, da<br />
obra de Deus...<br />
O arauto anunciou seu nome. O tempo tem dessas coisas, passa mais<br />
rápi<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> nos esquecemos dele. Kadriel empertigou-se, respirou<br />
fun<strong>do</strong> e dirigiu-se para a porta <strong>do</strong> salão real. O visitante aproximou-se<br />
<strong>do</strong> trono em que estava senta<strong>do</strong> o Monarca, ajoelhan<strong>do</strong>-se a dez passos<br />
de distância. Dois solda<strong>do</strong>s da Guarda Real ladeavam o trono e outros<br />
<strong>do</strong>is ficavam à porta. Mais uma pequena tropa de cinquenta homens<br />
estava estrategicamente distribuída pelo palácio. Eram to<strong>do</strong>s homens de<br />
elevada estatura, escolhi<strong>do</strong>s um a um pelo Capitão da Guarda, que era<br />
homem da mais absoluta confiança <strong>do</strong> Rei, que naquele momento e quase<br />
sempre estava à sua direita. Usavam couraças peitorais negras, como<br />
também eram negros os mantos que levavam sobre os ombros, as calças<br />
e as botas. Eram os solda<strong>do</strong>s mais bem treina<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Reino, sempre estavam<br />
no mínimo em <strong>do</strong>is. Constituíam uma força de elite temível.<br />
O Rei fez sinal para que Kadriel se aproximasse. Os guardas permaneceram<br />
impassíveis. Ao chegar próximo <strong>do</strong> trono, que estava <strong>do</strong>is degraus<br />
acima <strong>do</strong> chão, Kadriel prostrou-se novamente, beijan<strong>do</strong> o sinete<br />
real. O Rei levantou-se com alguma dificuldade e dirigiu-se lentamente<br />
TALAL HUSSEINI 45
a uma das janelas <strong>do</strong> salão, fez sinal para que Kadriel o seguisse. O Ca-<br />
pitão da Guarda fez o mesmo, mas os outros três guardas restaram imó-<br />
veis. O Rei apontou para fora da janela, instan<strong>do</strong> o rapaz a olhar. Assim<br />
permaneceram alguns minutos, até que o Monarca quebrou o silêncio:<br />
– Você vê este pôr-<strong>do</strong>-Sol?<br />
– Sim, Majestade, é claro.<br />
– Não pergunto se você o enxerga. Pergunto se o vê.<br />
Kadriel sentiu-se alivia<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> o Rei prosseguiu antes que respondesse,<br />
mesmo porque não sabia o que dizer:<br />
– Enxergamos com os olhos. Qualquer pessoa que não é cega faz isso.<br />
Mas ver é para poucos... Isso é feito com a consciência. O quadro<br />
pinta<strong>do</strong> nesta janela não é simplesmente composto por nuvens dispostas<br />
de determina<strong>do</strong> mo<strong>do</strong> pelo vento, coloridas pelos reflexos <strong>do</strong> Sol que se<br />
esconde por detrás <strong>do</strong> horizonte, sobre um fun<strong>do</strong> azul, que é o céu que<br />
vemos to<strong>do</strong>s os dias. Não. É a obra de Deus. Este pôr-<strong>do</strong>-Sol a que assistimos<br />
juntos neste momento jamais se repetirá em to<strong>do</strong> o Universo<br />
infinito, neste mun<strong>do</strong> ou em outros.<br />
O Rei fez sinal para o Capitão sair com seus homens. Sabia que ele<br />
obedeceria essa ordem a contragosto pois não gostava de deixar Sokárin<br />
sozinho com quem quer que fosse. Kadriel não chegou a notar nada no<br />
semblante <strong>do</strong> solda<strong>do</strong>. Os <strong>do</strong>is ficaram sozinhos. Mas Sokárin não se<br />
moveu, continuou olhan<strong>do</strong> o ocaso, até que no céu só restavam tons<br />
rosa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> astro maior. Kadriel ficou estático to<strong>do</strong> esse tempo, que não<br />
foi mais <strong>do</strong> que alguns minutos, mas curiosamente sua tensão e sua ansiedade<br />
desapareceram.<br />
O Soberano parou então diante de um <strong>do</strong>s muitos quadros que cobriam<br />
to<strong>do</strong> o entorno das paredes <strong>do</strong> salão real, que retratava um homem<br />
de olhar aquilino.<br />
– Você sabe quem é este, Kadriel?<br />
– Sim, Majestade, é o Impera<strong>do</strong>r Gur Medhavin.<br />
46 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
– O último governante <strong>do</strong> Império.<br />
– Eu sempre admiro sua estátua na entrada <strong>do</strong> Ministério. Parece ter<br />
si<strong>do</strong> um grande homem.<br />
– E foi. Um grande homem numa época de grandes homens. Hoje,<br />
nem entre os homens pequenos conseguimos ver muitos grandes homens.<br />
Seus antecessores foram ainda maiores, mas já escapam à dimensão<br />
que podemos conceber. Por isso você sequer consegue olhar suas<br />
estátuas. Já pensou nisso?<br />
– Na verdade não, mas de fato nunca olho para as estátuas <strong>do</strong>s outros<br />
impera<strong>do</strong>res, apenas para a dele.<br />
– Você está cogitan<strong>do</strong> o porquê desta convocação, Kadriel – cortou o<br />
Rei, mudan<strong>do</strong> repentinamente de assunto – não imagina o que eu teria<br />
para discutir com você. Eu sei, eu sei... O assunto que o traz aqui é o<br />
mais importante que poderia haver: o futuro <strong>do</strong> País, a sucessão...<br />
Kadriel estremeceu. O que poderia ele opinar numa questão capital<br />
como essa? Mas o tom <strong>do</strong> Rei não era de brincadeiras, ao contrário, era<br />
grave. Kadriel aguar<strong>do</strong>u.<br />
– Nós temos um momento muito difícil à frente, que é a transição de<br />
governo. Não importa o que você diga, meus dias estão no final. O nome<br />
que gravarei na placa extraída da “Pedra <strong>do</strong>s Mil Reis” e depositarei<br />
na estela será o <strong>do</strong> novo soberano: Kadriel Vahan.<br />
A mensagem demorou muito entre os ouvi<strong>do</strong>s e o cérebro de Kadriel.<br />
A sensação era de que se tratava de outra pessoa. Quan<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong> foi<br />
percebi<strong>do</strong>, Kadriel empalideceu, sentiu seu ser esvain<strong>do</strong>-se pela planta<br />
<strong>do</strong>s pés. As pernas amoleceram, o coração enfraqueceu sua batida quase<br />
a ponto de parar, e apesar de não ter dúvidas quanto ao que havia escuta<strong>do</strong><br />
ainda assim não acreditava. Pensou em mil frases, em respostas,<br />
em negativas, em desculpas, pensou até em lançar-se porta afora em<br />
desabalada carreira. Mas ainda que suas pernas o obedecessem, não<br />
poderia fazê-lo, pois o Rei o segurou firme pelos <strong>do</strong>is ombros e cravou<br />
os olhos reais dentro <strong>do</strong>s seus:<br />
TALAL HUSSEINI 47
– Kadriel, já o tenho observa<strong>do</strong> há muito tempo. Não se esqueça de<br />
que fui eu que o nomeei para o cargo em que está, apesar das oposições<br />
de muita gente. Portanto, sei muito bem o que estou fazen<strong>do</strong>. Você é o<br />
meu sucessor – decretou.<br />
Depois de alguns segun<strong>do</strong>s Kadriel pôde responder, com voz fraca e<br />
hesitante, ainda sem estar completamente recupera<strong>do</strong> <strong>do</strong> impacto daquelas<br />
palavras:<br />
– Majestade, obviamente jamais argumentaria contra as suas decisões,<br />
mas serei a pessoa mais indicada? Nunca tive, nem tenho pretensões<br />
dessa natureza...<br />
– E é precisamente isso que o faz adequa<strong>do</strong>. Você está fora da luta<br />
pelo poder. Realiza um excelente trabalho no Ministério. O povo pode<br />
não saber, mas eu sei que o Ministro Doran só faz aparecer em público e<br />
colher as glórias pelo trabalho que você realiza. No entanto, isso nunca<br />
o impediu de continuar trabalhan<strong>do</strong>.<br />
– Mas, Majestade, e seu filho Golan? Muitos julgam que ele seria o<br />
seu sucessor natural.<br />
– Sim, Kadriel, inclusive ele mesmo, suponho, mas a sucessão num<br />
reino não é questão hereditária e sim de um código interno. O dirigente<br />
deve reunir as virtudes necessárias para a condução <strong>do</strong> povo. Além disso,<br />
Golan já não é mais um jovem, e será preciso tempo e energia que só<br />
um jovem tem, para enfrentar o porvir de nosso País.<br />
E continuou, a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> um semblante mais sério:<br />
– Mas não pense que governar é uma benesse! Ao contrário, é um sacrifício,<br />
um sacerdócio. Você não terá mais vida pessoal, não terá mais<br />
amigos, correrá riscos, terá de compor com os interesses <strong>do</strong>s mais diversos<br />
grupos, terá de identificar o mal quan<strong>do</strong> ele se aproximar de você<br />
por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s, e, mais importante, terá de fazer o que eu em muitos<br />
momentos não consegui: resistir-lhe.<br />
48 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
– A tarefa que Vossa Majestade me anuncia está além das minhas<br />
forças.<br />
– As tarefas que se nos deparam nunca estão além das nossas forças.<br />
São <strong>do</strong> nosso exato tamanho. Kadriel, você deverá estar prepara<strong>do</strong>. Estou<br />
articulan<strong>do</strong> para que a transição se passe sem grandes transtornos,<br />
pois há forças que se irão insurgir contra a alteração que farei na estela,<br />
mas se isso ocorrer, lute. Disso depende o futuro da nação. Você deverá<br />
enfrentar quaisquer desafios que se interponham entre sua chegada ao<br />
trono e esse futuro. Não se trata de poder ou de querer fazer, trata-se de<br />
um dever. E não esqueça, você deve governar para o povo e para os<br />
deuses, deve ser a ponte entre o céu e a terra.<br />
– Sim, Majestade.<br />
– Não preciso dizer que este assunto deve ser manti<strong>do</strong> no mais absoluto<br />
sigilo até o momento adequa<strong>do</strong>. Aproveite o tempo que ainda me<br />
resta para se preparar para as duras provas que o aguardam. Agora,<br />
pode ir.<br />
Kadriel ajoelhou-se, beijou o sinete real, deu três passos atrás, virouse<br />
para a porta e caminhou com passos firmes, sem olhar para trás. Se o<br />
tivesse feito, veria um olhar de satisfação no rosto <strong>do</strong> Rei.<br />
S<br />
6.<br />
okárin dirigiu-se ao Templo Maior, cujos sacer<strong>do</strong>tes eram os<br />
encarrega<strong>do</strong>s de guardar a Pedra <strong>do</strong>s Mil Reis, da qual eram extraídas<br />
as placas em que cada governante gravava, com a escrita ensinada<br />
nas tradições, o nome <strong>do</strong> seu sucessor, para ser agregada à estela que<br />
continha os nomes de to<strong>do</strong>s, desde o início <strong>do</strong> Império. O nome ficava<br />
vela<strong>do</strong> até sessenta dias depois da morte <strong>do</strong> Rei, quan<strong>do</strong> terminava o<br />
TALAL HUSSEINI 49
perío<strong>do</strong> de luto com a cerimônia de abertura da placa e coroação <strong>do</strong><br />
novo Monarca.<br />
Todas as placas eram retiradas dessa mesma pedra, à qual somente os<br />
sacer<strong>do</strong>tes <strong>do</strong> Templo Maior tinham acesso. Depois, em uma cerimônia<br />
secreta, a placa de pedra passava por um tratamento alquímico, dentro<br />
<strong>do</strong> Templo, que lhe conferia características peculiares, impossíveis de<br />
ser copiadas. Era então entregue ao Rei, que gravava pessoalmente o<br />
nome <strong>do</strong> seu sucessor, fixan<strong>do</strong>-a na estela e cobrin<strong>do</strong>-a, em uma cerimônia<br />
que era <strong>do</strong> conhecimento de to<strong>do</strong>s, mas que o Rei realizava sozinho,<br />
de portas fechadas. A placa só seria aberta após a sua morte, ou por<br />
ele próprio caso resolvesse alterar o nome <strong>do</strong> sucessor, como faria agora.<br />
Neste caso, a placa com o nome anterior seria destruída por completo<br />
alquimicamente. Depois de revela<strong>do</strong> o sucessor, os sacer<strong>do</strong>tes faziam<br />
um teste na placa de pedra, certifican<strong>do</strong> que era a mesma gravada pelo<br />
Monarca. Apesar da grande segurança de que gozava a estela, este era<br />
um teste final que decretava com absoluta certeza a autenticidade deste<br />
objeto cerimonial, e por conseguinte da sucessão.<br />
To<strong>do</strong> o procedimento de troca <strong>do</strong> nome <strong>do</strong> sucessor se passava de<br />
forma reservada. O Conselho <strong>do</strong>s Anciãos, os Ministros e a população<br />
eram informa<strong>do</strong>s, mas não participavam de nada. Era um perío<strong>do</strong> de<br />
solidão <strong>do</strong> monarca. Quan<strong>do</strong> Sokárin anunciou a solicitação da pedra ao<br />
Templo Maior, houve um pequeno sussurro na câmara, mas to<strong>do</strong>s se<br />
resignaram. Somente um observa<strong>do</strong>r muito atento, como era o Sena<strong>do</strong>r<br />
Rohel, teria nota<strong>do</strong> a sombra que perpassou o olhar <strong>do</strong> Primeiro-<br />
Ministro. Muito rapidamente suas feições voltaram ao normal, ninguém<br />
mais percebeu sua contrariedade. Golan, o filho <strong>do</strong> Rei, não sabia se<br />
ficava feliz ou preocupa<strong>do</strong> com a notícia. Teria ele somente agora adquiri<strong>do</strong><br />
a confiança <strong>do</strong> pai, que resolvera gravar seu nome na placa? Ou<br />
estaria retiran<strong>do</strong> seu nome para inserir outro?<br />
50 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
Sokárin retirou-se escolta<strong>do</strong> pela Guarda Real, que nunca o aban<strong>do</strong>-<br />
nava. O assunto da sucessão novamente tomaria conta <strong>do</strong> reino. Apesar<br />
da idade avançada <strong>do</strong> Rei e <strong>do</strong> fato de que a qualquer momento uma<br />
sucessão seria necessária, o tema não era muito debati<strong>do</strong>, pois causava<br />
uma certa apreensão. As pessoas preferiam acreditar que o Rei viveria<br />
para sempre... Mas uma troca da placa, apenas cinco anos depois da<br />
última troca. Seria a quarta placa gravada por Sokárin em seu reina<strong>do</strong>.<br />
A primeira logo que assumiu o trono, como era de praxe. A segunda<br />
somente trinta anos depois, devi<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s presumiam, ao provável<br />
sucessor ter antecedi<strong>do</strong> a Sokárin na morte. A terceira mais dez<br />
anos depois, pelo mesmo motivo. E agora a quarta, cinco anos depois,<br />
no quadragésimo quinto ano de reina<strong>do</strong>, por motivos que só o Rei conhecia.<br />
Nenhum possível sucessor havia morri<strong>do</strong>. Os mais cota<strong>do</strong>s eram<br />
Golan e Adaran. Outros nomes também eram cogita<strong>do</strong>s nos corre<strong>do</strong>res<br />
<strong>do</strong> poder e nas ruas <strong>do</strong> País, mas os nomes mais fortes eram de fato esses<br />
<strong>do</strong>is.<br />
A<br />
7.<br />
notícia da troca de sucessor era inequívoca. Um homem de<br />
capa preta, com a cabeça coberta, de forma que seu rosto não<br />
podia ser visto, cruzou rapidamente a cidade. A situação era emergencial.<br />
O homem certificou-se de que ninguém o observava e entrou na velha<br />
casa em ruínas. Ninguém nas re<strong>do</strong>ndezas se aventurava por ali. Uns<br />
diziam que era mal-assombrada, outros que era antro de marginais e<br />
desocupa<strong>do</strong>s.<br />
TALAL HUSSEINI 51
A grossa camada de poeira sobre o chão e alguns restos de antigos<br />
móveis indicavam que nenhuma alma viva passava por ali havia muito<br />
tempo. Tu<strong>do</strong> que era feito de teci<strong>do</strong>s, como as cortinas e estofa<strong>do</strong>s, havia<br />
si<strong>do</strong> roí<strong>do</strong> pelos ratos. Os cupins tomavam conta <strong>do</strong> que foram sóli<strong>do</strong>s<br />
móveis, bem como das vigas da casa e <strong>do</strong> assoalho. Era arrisca<strong>do</strong><br />
transitar naquele fantasma de casa. Mas o vulto avançava a passos seguros,<br />
como se soubesse de cada tábua confiável e de cada armadilha.<br />
Abriu um alçapão obscuro, que jamais seria encontra<strong>do</strong> por quem não o<br />
conhecesse, dava acesso a uma escada íngreme que desaparecia na profundeza<br />
de sombra.<br />
O ser da noite prosseguiu, chegan<strong>do</strong> a uma sala ampla, de forma retangular.<br />
Diferentemente <strong>do</strong> resto da casa, não havia qualquer resquício<br />
de pó naquele recinto. O pé-direito teria uns cinco metros, seis colunas<br />
regularmente dispostas, três de cada la<strong>do</strong> sustentavam o teto, to<strong>do</strong> pinta<strong>do</strong><br />
com afrescos. Eram imagens terríveis, de pessoas em grande <strong>do</strong>r,<br />
sen<strong>do</strong> torturadas, feridas, outras já mortas e desmembradas, cabeças<br />
decepadas, seres monstruosos e toda sorte de figuras bizarras. A iluminação<br />
era provida por várias tochas que não soltavam fumaça, uma vez<br />
que o cômo<strong>do</strong> não tinha janelas ou qualquer outra abertura para o exterior.<br />
A ventilação era um mistério, já que não se via nenhum duto de ar<br />
ou abertura que pudesse servir para esse fim. E de fato o ar era pesa<strong>do</strong><br />
ali dentro. O chão era de pedra polida, forman<strong>do</strong> vários desenhos de<br />
estranhas mandalas, círculos e linhas, determinan<strong>do</strong> algum tipo de mapa.<br />
Numa das extremidades da sala, havia uma espécie de altar, sobre o<br />
qual estava um recipiente côncavo.<br />
Uma voz potente tomou conta <strong>do</strong> ambiente, fazen<strong>do</strong> até mesmo a pedra<br />
vibrar. Não era uma voz humana, era distorcida:<br />
Surgiram <strong>do</strong> nada duas figuras encapuzadas, em mantos brancos, portan<strong>do</strong><br />
um terceiro manto, de cor púrpura. Estenderam-no para o homem,<br />
que o vestiu e com um gesto de braço determinou às figuras que saís-<br />
52 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
sem. Subiu ao altar e conferiu o conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> recipiente, tocan<strong>do</strong> o de<strong>do</strong><br />
indica<strong>do</strong>r no líqui<strong>do</strong> e levan<strong>do</strong>-o aos lábios. Tu<strong>do</strong> certo. O vulto acen-<br />
deu uma chama sob o recipiente que continha o sangue, pronuncian<strong>do</strong><br />
algumas palavras numa língua ininteligível. Abriu uma caixa que estava<br />
colocada sobre o altar e começou a retirar alguns objetos e colocá-los<br />
um a um dentro <strong>do</strong> líqui<strong>do</strong> quente, que começava a exalar um o<strong>do</strong>r férreo.<br />
Eram ossos, alguns pareciam de animais, outros... Continuou a proferir<br />
fórmulas mágicas naquele idioma obscuro, cada vez em voz mais<br />
alta. Ora mexia o líqui<strong>do</strong> com um instrumento longo, espécie de colher,<br />
ora levantava os braços, em invocações negras. O ar se tornou ainda<br />
mais pesa<strong>do</strong>. O o<strong>do</strong>r insuportável parecia não incomodá-lo. Uma vibração<br />
caótica pareceu tomar conta <strong>do</strong> lugar, o homem entrou numa espécie<br />
de transe. Uma figura começou a formar-se na superfície de sangue...<br />
O rosto de um homem, de barba e cabelos compri<strong>do</strong>s e<br />
desgrenha<strong>do</strong>s. E os olhos... negros como o mais profun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s abismos.<br />
Aqueles olhos eram... o nada... A imagem se desfez.<br />
– Por que me chama?! Ainda não é hora...<br />
– Sim, Mestre – respondeu o homem, curvan<strong>do</strong>-se, respeitosamente –<br />
mas é que alguns fatos novos precipitaram os acontecimentos. Teremos<br />
de tomar algumas providências imediatas, e não quis fazer nada sem<br />
ouvir seus conselhos sábios...<br />
– Você precisa vir até aqui e me ouvir para saber que Sokárin deve<br />
morrer?!<br />
O vulto pareceu surpreso, mas antes que dissesse qualquer coisa a voz<br />
prosseguiu:<br />
– A sucessão... O nome que estará na estela que o Rei pretende gravar<br />
não é <strong>do</strong> nosso interesse. Precisamos evitar que a troca aconteça, e a<br />
única maneira de fazê-lo você sabe muito bem qual é...<br />
– Sempre poderíamos tentar <strong>do</strong>minar o sucessor e fazer dele um joguete<br />
em nossas mãos. E caso não concorde, ele pode morrer.<br />
TALAL HUSSEINI 53
– Não subestime a capacidade de Sokárin. Ele não é tolo. Nós o <strong>do</strong>-<br />
minamos por muito tempo, mas a proximidade da morte parece ter causa<strong>do</strong><br />
alguns efeitos inespera<strong>do</strong>s. Ele vai nomear um jovem, e um rei<br />
jovem que morre repentinamente gera muitas suspeitas e investigações.<br />
Já um rei i<strong>do</strong>so... não levanta tantos questionamentos. Se o nome inscrito<br />
naquela placa chegar ao trono, poderá tornar-se muito perigoso.<br />
– O Senhor já sabe qual é o nome...?<br />
– O nome não importa, se a placa nunca chegar à estela. Nós sabemos<br />
o nome que lá está, e é este que deve permanecer. Se houver a troca, o<br />
novo indica<strong>do</strong> terá apoios sóli<strong>do</strong>s, e outro ainda mais importante está<br />
chegan<strong>do</strong>.<br />
– O senhor se refere a...<br />
O lugar to<strong>do</strong> tremeu, dan<strong>do</strong> a impressão de que iria ruir. A voz assumiu<br />
um tom aterroriza<strong>do</strong>r:<br />
– Sim! Nunca ouse pronunciar seu nome na minha presença, assim<br />
como ele não pronuncia o meu... Ele virá certificar-se de que a sucessão<br />
correrá como ele quer. Você tem pouco tempo.<br />
– Sim, Mestre, todas as providências serão tomadas. O Rei nunca entregará<br />
a placa. E se matarmos os possíveis candidatos a estar na placa...?<br />
– Não seja tolo! Isso despertaria muitas suspeitas e investigações.<br />
Concentre-se nas minhas ordens e procure não pensar por você mesmo.<br />
Agora vá!<br />
A vibração caótica se acentuou até parar repentinamente. O vulto caiu<br />
sobre os joelhos, prostra<strong>do</strong>, arfan<strong>do</strong>. Aquele ritual sugara suas energias.<br />
Os contatos com seu Mestre eram sempre assim. Sentia-se um fantoche<br />
nas mãos daquele ser malévolo. Os auxiliares de branco entraram, o<br />
ajudaram a se levantar, retiraram sua túnica púrpura e desapareceram. O<br />
homem deixou a casa rapidamente.<br />
54 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
O<br />
8.<br />
Templo Maior era um <strong>do</strong>s edifícios mais antigos <strong>do</strong> País. Fora<br />
amplia<strong>do</strong> e reforma<strong>do</strong> várias vezes. A construção original datava<br />
de antes <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> Império. Já ninguém podia precisar a época.<br />
Trazia a magnitude das antigas civilizações. A nave central, que era<br />
parte da construção original, com dimensões colossais. A sua abóbada<br />
era sustentada por quatro estátuas gigantes, de formas já desgastadas<br />
pelo tempo, o que tornava impossível ver em detalhe suas feições, mas<br />
tão sólidas quanto nas priscas eras em que foram concebidas. Os quatro<br />
colossos erguiam a abóbada nos braços estendi<strong>do</strong>s acima da cabeça.<br />
Com mais de quarenta metros de altura, cada uma delas era esculpida<br />
em um único bloco de pedra. Arquitetos, arqueólogos, historia<strong>do</strong>res e<br />
outros estudiosos de to<strong>do</strong> o reino gastavam anos a estudá-las e milhares<br />
de páginas a tentar explicá-las, o que não era possível sem as chaves<br />
adequadas.<br />
Desembocava na abóbada o salão principal, que tinha aproximadamente<br />
cento e cinquenta metros de comprimento por oitenta de largura.<br />
O pé-direito contava por volta de dez metros. Em frente a cada uma das<br />
paredes mais longas havia uma fileira de colunas com um metro e meio<br />
de diâmetro cada uma e faces de leão nos capitéis. O teto era pinta<strong>do</strong><br />
com belos afrescos <strong>do</strong> tempo <strong>do</strong> Império. A entrada <strong>do</strong> salão era por<br />
uma das extremidades, enquanto na outra, sob a nave numa parte mais<br />
alta, estava a estela que continha as placas com os nomes de to<strong>do</strong>s os<br />
monarcas, desde o primeiro Impera<strong>do</strong>r, e a placa velada com o nome <strong>do</strong><br />
sucessor. Quatro solda<strong>do</strong>s montavam guarda em torno da estela, em<br />
turnos de quatro horas, durante as quais permaneciam absolutamente<br />
imóveis, sen<strong>do</strong> <strong>do</strong>is deles rendi<strong>do</strong>s a cada duas horas.<br />
TALAL HUSSEINI 55
Nos espaços entre as colunas havia estátuas, a começar pelos deuses<br />
patronos <strong>do</strong> País no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> recinto, na abóbada, prosseguin<strong>do</strong> com<br />
seus dirigentes em direção à porta, <strong>do</strong>s mais antigos para os mais recentes.<br />
O espaço reserva<strong>do</strong> a Sokárin estava de frente para a estátua de seu<br />
pai, que o antecedera no trono.<br />
Ao fun<strong>do</strong>, grandes estandartes com os símbolos <strong>do</strong> Reino pendiam <strong>do</strong><br />
teto. Um tapete vermelho ia da porta ao altar. Em dias de cerimônia,<br />
vinte arautos postavam-se ao longo <strong>do</strong> tapete logo na entrada, dez de<br />
cada la<strong>do</strong>, forman<strong>do</strong> um corre<strong>do</strong>r com as trombetas das quais pendiam<br />
os estandartes reais em versão menor. As trombetas soavam um toque<br />
marcial, as portas se abriam em duas folhas, quatro solda<strong>do</strong>s de negro<br />
entravam em formação de <strong>do</strong>is por <strong>do</strong>is, marchavam até o altar e ladeavam<br />
a estela, renden<strong>do</strong> os que ali estavam.<br />
As trombetas soavam novamente, e o arauto anunciava o Chefe <strong>do</strong><br />
Conselho <strong>do</strong>s Anciãos, e to<strong>do</strong>s os demais sena<strong>do</strong>res, segui<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s ministros<br />
de esta<strong>do</strong>, e depois pelos funcionários mais importantes de cada<br />
ministério. Conforme iam entran<strong>do</strong>, as pessoas permaneciam cada vez<br />
mais distantes <strong>do</strong> altar. Kadriel entrava junto com os funcionários <strong>do</strong>s<br />
ministérios, postan<strong>do</strong>-se já na segunda metade <strong>do</strong> salão. Por fim, entravam<br />
os convida<strong>do</strong>s, na sua maioria de famílias ilustres <strong>do</strong> Reino. To<strong>do</strong>s<br />
vestiam longas túnicas claras, ou brancas ou beges, que era o traje apropria<strong>do</strong><br />
para essas cerimônias.<br />
Um toque curto das trombetas fazia cessar os alari<strong>do</strong>s <strong>do</strong> salão. Alguns<br />
bedéis entravam no salão e, com uma agilidade que só podia ser<br />
fruto de muita prática, enrolavam e recolhiam o tapete vermelho que<br />
to<strong>do</strong>s os quinhentos presentes tinham pisa<strong>do</strong> e ato contínuo estendiam<br />
outro igual, porém novo e limpo. Novo toque, sobre o silêncio. As luzes<br />
<strong>do</strong> recinto se apagavam, restan<strong>do</strong> apenas a iluminação proveniente de<br />
tochas presas às colunas, o que dava um ar de antiguidade e tradição ao<br />
56 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
local. To<strong>do</strong>s sentiam forte comoção. Uma música suave de coral soava<br />
entoan<strong>do</strong> um refrão que se repetia em idioma antigo.<br />
O toque das trombetas anunciava então a entrada <strong>do</strong> Rei. To<strong>do</strong>s se<br />
postavam com o joelho direito em terra durante toda a lenta passagem<br />
<strong>do</strong> Rei pelo tapete vermelho, até sua chegada ao altar. O Chefe <strong>do</strong> Conselho<br />
<strong>do</strong>s Anciãos o aguardava, beijava o sinete real e recebia um sinal<br />
para se levantar, segui<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s os presentes. Então, o Monarca voltava-se<br />
para o público e abria a cerimônia, que, para muitos, era apenas<br />
forma, ou um evento social, mas para Kadriel era o que havia de mais<br />
real na vida, fora dali é que estava a ilusão. Kadriel estranhamente sentia-se<br />
mais vivo durante aqueles momentos cerimoniais <strong>do</strong> que na sua<br />
vida quotidiana. Era transporta<strong>do</strong> a um esta<strong>do</strong> de espírito que não conseguia<br />
reproduzir fora dali. Ficava revigora<strong>do</strong>, a ponto de esquecer por<br />
completo que seria o seu nome o encoberto na estela...<br />
Kadriel perdia-se em suas lembranças e pensamentos. Sempre que<br />
podia ia até o Templo Maior e lá permanecia meditan<strong>do</strong>, oran<strong>do</strong>, observan<strong>do</strong><br />
as estátuas, sozinho, salvo pelos imóveis guardas da estela. Pensava<br />
que já era hora de muitas coisas mudarem no País. Os tempos de<br />
grandeza e glória <strong>do</strong>s antepassa<strong>do</strong>s deviam ser restaura<strong>do</strong>s. Kadriel estava<br />
imbuí<strong>do</strong> de um forte espírito de humanidade, disposto a dar sua<br />
vida pela civilização que estava e pela civilização que ainda estava para<br />
ser.<br />
De repente, Kadriel sentiu-se desfalecer pela epifania daquele momento<br />
e certamente cairia se não tivesse si<strong>do</strong> sustenta<strong>do</strong> com firmeza<br />
por alguém que surgiu ao seu la<strong>do</strong>. Ao olhar para o la<strong>do</strong>, Kadriel deparou-se<br />
com a imagem <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r Gur Medhavin. Ao olhar com mais<br />
atenção, viu que não se tratava exatamente <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r:<br />
– Eu conheço o senhor…?<br />
– To<strong>do</strong>s conhecem a to<strong>do</strong>s, só não se lembram... – respondeu o homem,<br />
com um sorriso sincero.<br />
TALAL HUSSEINI 57
Kadriel assentiu, sem entender muito o que ele quis dizer. Mu<strong>do</strong>u de<br />
assunto:<br />
– Foi o senhor quem me escorou. Obriga<strong>do</strong>. Não fosse isso teria desmaia<strong>do</strong>.<br />
Há momentos em que a vida parece maior <strong>do</strong> que podemos<br />
suportar. O senhor me entende?<br />
– Sim, enten<strong>do</strong>. É sempre bom poder ajudar, e meu trabalho é de certa<br />
forma ajudar as pessoas a não caírem. E se caíram, ajudá-las a se levantar.<br />
Kadriel sentiu com aquele homem de olhar austero, mas ao mesmo<br />
tempo suave, uma conexão que excedia os limites <strong>do</strong> tempo. Não sabia<br />
explicar, mas queria continuar aquela conversa:<br />
– Bem, muito prazer, meu nome é Kadriel Vahan.<br />
– Sim, eu sei. Ravi – fez uma pausa – Medhavin.<br />
– Medhavin...? O senhor quer dizer... como o Impera<strong>do</strong>r?<br />
– Sim, meu avô, Gur Medhavin.<br />
– Foi um grande guerreiro.<br />
– E, como to<strong>do</strong> grande guerreiro, conquistou a paz...<br />
Essa frase gerou um estranho efeito em Kadriel: ao mesmo tempo em<br />
que sentia seu peito vibrar pela força <strong>do</strong> heroísmo guerreiro, sentia uma<br />
paz aquieta<strong>do</strong>ra em seu coração.<br />
U<br />
9.<br />
m vulto se esgueirava pelas vielas escuras da cidade. Aquela<br />
noite era de um silêncio absur<strong>do</strong>. Nem os gatos davam suas<br />
voltas habituais. Até mesmo os grilos e os sapos haviam aderi<strong>do</strong> ao<br />
pacto tácito de não produzir ruí<strong>do</strong>. Porque os animais sabem quan<strong>do</strong> a<br />
noite pertence a outras criaturas e permanecem então em suas alcovas.<br />
O vulto prosseguia apressa<strong>do</strong>. Parecia antever alguma coisa.<br />
58 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
Surgiu sabe-se lá de que entranhas da terra um bêba<strong>do</strong> a trançar as<br />
pernas em direção ao vulto resmungan<strong>do</strong> no seu linguajar trunca<strong>do</strong> pelo<br />
álcool o que devia ser um pedi<strong>do</strong> de dinheiro ou ajuda. Ousava quebrar<br />
o pacto de silêncio daquela noite de lua nova. Mostrava nas ruas a sua<br />
presença ultrajante, seu hálito féti<strong>do</strong>, seus andrajos imun<strong>do</strong>s, mas aproximava-se<br />
de um ser ainda mais baixo <strong>do</strong> que ele, um homem, sim, que<br />
não pedia licença aos demônios da noite para transitar no submun<strong>do</strong>.<br />
O bêba<strong>do</strong> aproximou-se demais... o suficiente para ver o rosto sob o<br />
capuz, mas somente por alguns segun<strong>do</strong>s. O vulto debruçou-se sobre o<br />
corpo inerte cuja existência já havia aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> por conta de uma estocada<br />
muito precisa de lâmina finíssima que mal deixava um ponto de<br />
sangue nos trapos sujos. Mais um ser que não faria falta alguma ao<br />
mun<strong>do</strong> e que teria, de qualquer mo<strong>do</strong>, morri<strong>do</strong> de frio, de fome, ou por<br />
alguma <strong>do</strong>ença ocasionada pela própria sujeira, sen<strong>do</strong> sepulta<strong>do</strong> como<br />
indigente. O ato bárbaro não aplacou o ódio que corroía aquele corpo,<br />
mas descarregou ainda que momentaneamente a sua tensão.<br />
O vulto chegou a uma porta discreta baten<strong>do</strong> de maneira ritmada como<br />
fosse um código pré-avença<strong>do</strong>. A porta se abriu deixan<strong>do</strong>-o passar a<br />
uma sala de pé-direito baixo e iluminação fraca:<br />
– Minha encomenda – disse o visitante inusita<strong>do</strong>, em tom seco.<br />
O outro deu-lhe as costas passan<strong>do</strong> por uma porta induzin<strong>do</strong> o vulto a<br />
segui-lo. Estendeu-lhe um frasco conten<strong>do</strong> um líqui<strong>do</strong> transparente.<br />
– Vai funcionar?<br />
– Alguma vez já falhei? – e acrescentou – E meu pagamento? Tive<br />
alguns gastos extras...<br />
O vulto buscou algo no bolso de seu casaco. Tirou um pequeno pacote<br />
de pano e colocou sobre a mesa. O outro o apanhou, ávi<strong>do</strong>. Seus<br />
olhos brilharam arregala<strong>do</strong>s sobre as moedas de ouro.<br />
O olhar metálico <strong>do</strong> visitante não transparecia qualquer traço de humor.<br />
Foi a última imagem gravada na retina <strong>do</strong> pobre homem. A fina<br />
TALAL HUSSEINI 59
lâmina o privou da sua triste existência. O vulto guar<strong>do</strong>u o frasco com o<br />
líqui<strong>do</strong> e apanhou o embrulho com as moedas, desaparecen<strong>do</strong> porta<br />
afora.<br />
K<br />
10.<br />
adriel ainda não se recuperara daquelas palavras, que o atingiam<br />
de maneira inesperada. Faziam-no pensar, cogitar. Nunca<br />
lhe havia ocorri<strong>do</strong> de entender os impera<strong>do</strong>res ou governantes em geral<br />
como guerreiros, pois sempre associara guerreiros à idéia de solda<strong>do</strong>s,<br />
batalhas, armas, jamais paz... Perguntou:<br />
– Mas um guerreiro suportaria todas as tensões que o poder impõe?<br />
– Um guerreiro flutuaria nas caldas <strong>do</strong> poder. Seria o canal puro <strong>do</strong><br />
poder universal.<br />
– Mas não seria facilmente corrompi<strong>do</strong> por ele?<br />
– Não é o poder que corrompe, o poder liberta e ilumina. Quan<strong>do</strong> o<br />
homem se corrompe é porque perde o canal <strong>do</strong> poder e da sabe<strong>do</strong>ria.<br />
Um guerreiro sabe disso e luta to<strong>do</strong>s os dias para sacar o véu da ignorância<br />
que corrompe o homem. Portanto, onde homens comuns se corrompem,<br />
o guerreiro resiste – girou o olhar em torno <strong>do</strong> salão: – você<br />
pensava neste salão cheio, num dia de cerimônia, ao observar todas essas<br />
pessoas, diga-me o que vê.<br />
– Vejo pessoas comuns queren<strong>do</strong> algo não comum.<br />
– As pessoas comuns veem tu<strong>do</strong> de forma comum e não sabem como<br />
conquistar algo diferente porque estão sempre com a mente no passa<strong>do</strong><br />
ou no futuro. O guerreiro vê tu<strong>do</strong> de forma especial porque vive o presente.<br />
Para um guerreiro, sentar-se, caminhar, tomar banho, ver o Sol e<br />
as estrelas são sempre atos especiais, porque vive cada momento como<br />
60 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
se fosse o último. A consciência posicionada no momento presente abre<br />
as portas da realidade. Só quem conhece essa realidade tem o verdadeiro<br />
poder para governar.<br />
– Digamos que eu pudesse ver o presente, e a realidade se apresentasse,<br />
qual seria o primeiro ensinamento que o poder universal me apresentaria?<br />
– A humildade.<br />
Surpreso com a resposta, Kadriel perguntou:<br />
– Mas a humildade não é expressão de caráter servil, baixa elevação,<br />
fraqueza?<br />
– Ocorre que esse senti<strong>do</strong> foi retira<strong>do</strong> de contexto com o passar <strong>do</strong><br />
tempo. O homem de poder é aquele que serve aos deuses, aos Mestres<br />
de sabe<strong>do</strong>ria, e ante eles se prostra com baixa elevação, serve com honra,<br />
ciente de sua fraqueza ante a força que está naqueles. Um guerreiro é<br />
humilde ante os Mestres, a cujos pés faz seu juramento de servir para<br />
além de suas forças com senso de dever e com alegria no coração. Perante<br />
seus iguais, é forte, determina<strong>do</strong> e destemi<strong>do</strong>. Isto é o guerreiro:<br />
humildade e entrega aos Mestres, e poder ante seus iguais. Por que o<br />
mar é tão grandioso, tão profun<strong>do</strong> e tão poderoso? Porque decidiu ficar<br />
pelo menos um pouco abaixo de to<strong>do</strong>s os rios <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
– Então posso tornar-me rapidamente poderoso e invencível por meio<br />
da humildade?<br />
– Querer as coisas com rapidez denota vaidade, pois tu<strong>do</strong> tem seu<br />
tempo e seu ritmo. Ademais, é importante saber em primeiro lugar que o<br />
poder não é <strong>do</strong> homem, e em segun<strong>do</strong> lugar que vencer não significa<br />
exatamente o que você está pensan<strong>do</strong>. Não se vence no aspecto pessoal.<br />
Toda obra deve ter em vista os valores da alma: nobreza, bondade, verdade<br />
e justiça. Para isso, a personalidade deve sacrificar-se por inteiro, o<br />
que deve primar é o dever, não o querer. A força <strong>do</strong> desejo e <strong>do</strong> personalismo<br />
nos impulsiona à vaidade. O sacrifício consiste em morrer co-<br />
TALAL HUSSEINI 61
mo pessoa, para humildemente renascer no Eu superior. A morte da<br />
personalidade faz brilhar a alma. É preciso aceitar o plano <strong>do</strong>s Mestres e<br />
<strong>do</strong>s deuses e esquecer de nós mesmos. Lutar contra tu<strong>do</strong> que seja falso e<br />
ilusório, pois a personalidade quer seu trono. Aceitar o destino e não<br />
fugir <strong>do</strong>s combates que a vida impõe, não fugir nem da vida nem da<br />
morte, nem da <strong>do</strong>r nem <strong>do</strong> me<strong>do</strong>. Um guerreiro é humilde e aceita a<br />
morte, uma pessoa comum não.<br />
Kadriel sentia-se estranho, conversava com Ravi como se conhecessem<br />
um ao outro há muito tempo. Sentia uma forte pressão no peito, em<br />
parte pelo que Ravi dizia, em parte por se lembrar <strong>do</strong> compromisso que<br />
havia ti<strong>do</strong> com o Rei. Sen<strong>do</strong> ele o sucessor, já não poderia ter vida pessoal.<br />
Compreendia que para governar teria que primeiramente se tornar<br />
um guerreiro, para que a luz triunfasse com sabe<strong>do</strong>ria. Compreendia que<br />
milhões de pessoas dependeriam de suas decisões, e a humildade era o<br />
seu primeiro código como um governante guerreiro. Se falhasse, muitos<br />
sofreriam. Sentiu uma espécie de tristeza. Baixou os olhos e teve vontade<br />
de chorar.<br />
Ravi toca no ombro de Kadriel:<br />
– Sei em que você está pensan<strong>do</strong> e compreen<strong>do</strong> seus sentimentos,<br />
mas um guerreiro, mesmo com esse sentimento de abismo, assume seu<br />
lugar. Não pense que é um sentimento negativo. Ele traz consigo humanidade,<br />
sobriedade, amabilidade, discernimento e poder profun<strong>do</strong> de<br />
reflexão, alia<strong>do</strong>s importantes nesta dura jornada. Seja humilde e sirva<br />
aos Mestres e aos deuses, Kadriel, pois neste mun<strong>do</strong> não existe garantia<br />
de vitória, a vitória está em sua alma.<br />
Kadriel já não procurava disfarçar que tu<strong>do</strong> que era dito perpassavalhe<br />
o corpo e a alma. Sentia-se despi<strong>do</strong> diante daquelas realidades novas<br />
para ele, mas na verdade tão antigas quanto o homem, que Ravi lhe desvelava.<br />
Sentiu-se fraco:<br />
– Como poderei superar os desafios que me esperam?<br />
62 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
– Vou lhe contar uma estória: o Sol, queren<strong>do</strong> conhecer a escuridão,<br />
pergunta aos sábios da montanha onde poderia encontrá-la. Estes res-<br />
pondem: "vai até o íntimo da caverna mais profunda e lá seguramente<br />
encontrarás a escuridão". O Sol partiu em sua busca e, encontran<strong>do</strong> a<br />
caverna mais profunda, procurou a escuridão com entusiasmo. Depois<br />
de algum tempo, já decepciona<strong>do</strong>, voltou ao encontro <strong>do</strong>s sábios e disse:<br />
"procurei intensamente, mas, para minha infelicidade, não pude encontrar<br />
o que desejava". Os sábios, já preocupa<strong>do</strong>s, responderam: "vai, então,<br />
até o oceano das esperanças e lá, na mais abissal das profundezas<br />
marinhas, sem dúvida encontrarás a mais poderosa escuridão". Depois<br />
da sua busca em vão, o Sol voltou aos sábios e disse: "procurei com<br />
toda a força da minha alma, procurei no mais profun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s oceanos e<br />
fui aonde ninguém jamais fora, no entanto, não pude conhecer a escuridão,<br />
pois nos mares ela não se encontrava". Os sábios, depois de algum<br />
tempo, trouxeram uma resposta para o Sol: "caro Sol, nunca conhecerás<br />
a escuridão, nem nas cavernas, nem nos oceanos, nem em lugar algum<br />
no mun<strong>do</strong>, pois como és o Sol, carregas a luz contigo para onde quer<br />
que seja e iluminas tu<strong>do</strong> ao teu passo. Portanto, jamais conhecerás a<br />
escuridão". Kadriel, assim também deve ser o guerreiro. Seu coração é<br />
um Sol que ilumina as trevas, leva solução para os problemas, leva virtudes<br />
para combater os defeitos. Um guerreiro é luminoso e não dá espaço<br />
à escuridão. Por isso, não se preocupe com os que gostam da escuridão,<br />
pois, quan<strong>do</strong> se aproximarem de você, seu coração de guerreiro<br />
os iluminará com uma luz tão intensa que eles não resistirão. A luz de<br />
cada um é <strong>do</strong> seu exato tamanho, mas é a mesma luz que banha to<strong>do</strong> o<br />
universo. Sen<strong>do</strong> guerreiro e estan<strong>do</strong> liga<strong>do</strong> à hierarquia branca, você é<br />
um elo da corrente de guerreiros e Mestres, inicia<strong>do</strong>s, e toda a hierarquia<br />
de deuses, até encontrar o Sol maior <strong>do</strong> Deus único e infinito, ao<br />
qual to<strong>do</strong>s se unirão um dia. Para isso, basta você descobrir e assumir o<br />
guerreiro que existe dentro de você. A humildade fará brilhar o mais<br />
TALAL HUSSEINI 63
puro coração, um coração que você ainda desconhece, mas que está lá,<br />
luminoso e radiante.<br />
K<br />
11.<br />
hena seria uma mulher bonita se não tivesse os traços tão endureci<strong>do</strong>s<br />
pela vida. Tinha a fisionomia rígida, os atos rígi<strong>do</strong>s, o<br />
coração rígi<strong>do</strong>. Julgava-se invulnerável, sob o argumento de que já suportara<br />
tu<strong>do</strong> que seria possível uma pessoa suportar. Assim sen<strong>do</strong>, nada<br />
poderia atingi-la. Não tinha família mais. Sabia bem que os filhos eram<br />
o ponto mais fraco de qualquer pessoa. Quem sobrevive a ver seus filhos<br />
sen<strong>do</strong> destroça<strong>do</strong>s, tortura<strong>do</strong>s e, já mortos, vilipendia<strong>do</strong>s, ultrapassa<br />
as barreiras da mortalidade. Atinge a liberdade, pois nada nem ninguém<br />
poderá mais coagi-lo. Khena passara por essa barreira e deixara<br />
que suas tendências maléficas a <strong>do</strong>minassem por completo. Fazia o mal<br />
pelo mal, sem qualquer razão aparente. Mas no fun<strong>do</strong> vingava-se <strong>do</strong>s<br />
deuses, que lhe tinham si<strong>do</strong> tão cruéis. O caos lhe agradava.<br />
Foi com esse espírito que adentrou à casa no subúrbio da Capital, onde<br />
vivia o Capitão da Guarda Real com sua esposa e filha. Na sala não<br />
havia ninguém. Khena e seu companheiro vestiam máscaras e roupas<br />
inteiramente negras. Estavam pesadamente arma<strong>do</strong>s, pois não se ia despreveni<strong>do</strong><br />
à casa de um guarda real. Foram entran<strong>do</strong> com cautela. A<br />
criança brincava no quintal, a esposa <strong>do</strong> Capitão tratava de seus afazeres<br />
na cozinha.<br />
Os <strong>do</strong>is invasores entraram furtivamente na cozinha, balestras em punho,<br />
apontan<strong>do</strong> para a <strong>do</strong>na da casa. Ao perceber a presença hostil, sua<br />
reação reflexa foi procurar com os olhos a filha. O homem se aproximou<br />
colocan<strong>do</strong> o de<strong>do</strong> indica<strong>do</strong>r sobre os lábios. Após um segun<strong>do</strong> de<br />
64 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
hesitação, a <strong>do</strong>na da casa atacou o invasor com uma faca que tinha à<br />
mão para a preparação <strong>do</strong> almoço, logran<strong>do</strong> fazer-lhe um corte no braço,<br />
ao mesmo tempo em que gritava para sua filha:<br />
– Fuja!!!<br />
Não disse mais, pois foi atingida por um golpe que lhe extraiu a luz<br />
<strong>do</strong>s olhos. Quan<strong>do</strong> olhou <strong>do</strong> quintal para o interior da casa, através da<br />
porta entreaberta, sua filha já não viu a mãe, que jazia desmaiada. Olhar<br />
foi o único gesto que teve tempo de realizar, pois em um segun<strong>do</strong><br />
Khena já estava sobre ela. Borrifou sobre seu rosto um líqui<strong>do</strong> que a fez<br />
perder os senti<strong>do</strong>s. Em seguida a levou para dentro da casa, largan<strong>do</strong>-a<br />
no chão. O homem vociferou:<br />
– Veja o que ela fez no meu braço – mostran<strong>do</strong> o corte fun<strong>do</strong> no antebraço,<br />
o qual sangrava muito.<br />
– Deixe-me ver isso – disse Khena, rasgan<strong>do</strong> uma tira <strong>do</strong> vesti<strong>do</strong> da<br />
mulher. Enrolou no membro feri<strong>do</strong> a apertou com força.<br />
– Cuida<strong>do</strong>! Isso dói.<br />
– Que homem fraco, não aguenta um arranhão. Só não vá chorar, por<br />
favor – disse em tom irônico. E completou, já com ar sério: – Trate de<br />
limpar essa bagunça, teremos que levá-las conosco.<br />
O homem obedeceu contraria<strong>do</strong>. Jogaram mãe e filha na carruagem,<br />
desmaiadas. Limparam a sujeira e se foram.<br />
O Capitão passava em revista seus homens. Era um tipo exigente.<br />
Não admitia qualquer falha nos uniformes e principalmente no equipamento.<br />
To<strong>do</strong>s tremiam nessas ocasiões. Depois de verificar um a um,<br />
partiam para o treinamento diário, carrega<strong>do</strong>s. Não era fácil suportar o<br />
ritmo que o Capitão imprimia, mas ele era um homem moral. Executava<br />
to<strong>do</strong> o treinamento junto com seus homens, e sempre terminava os exercícios<br />
antes de to<strong>do</strong>s. Não havia, portanto, o que dizer ou reclamar. Ali-<br />
TALAL HUSSEINI 65
ás, reclamação era uma palavra que não existia naquele lugar. Era a<br />
maior honra possível para um solda<strong>do</strong> servir diretamente ao Rei. Quem<br />
não tivesse capacidade física ou psíquica para suportar esse peso que<br />
pedisse baixa ou transferência para outras unidades que aceitavam pessoas<br />
mais delicadas. To<strong>do</strong>s dependiam de um, ninguém podia falhar ou<br />
fraquejar, pois a falha seria de to<strong>do</strong>s. A força de uma corrente se mede<br />
por seu elo mais fraco. A Guarda Real era uma corrente forte, composta<br />
apenas por homens duros.<br />
Depois de um dia de trabalho intenso, o Capitão retornou à sua casa,<br />
ansioso por rever sua esposa e sua filha. Estranhou encontrar a porta<br />
aberta. Chamou, ninguém respondeu. Seu instinto de solda<strong>do</strong> imediatamente<br />
o colocou em alerta. Parou de chamar, foi vasculhan<strong>do</strong> silenciosa<br />
e cautelosamente a casa toda. Ninguém. Em sua mesa de trabalho viu<br />
um envelope cor púrpura. Dentro uma carta anônima, com um cacho de<br />
cabelo de sua filha, dan<strong>do</strong> conta de que ela fora sequestrada junto com<br />
sua mãe, e <strong>do</strong> que lhes aconteceria se não seguisse algumas instruções<br />
bastante específicas. O Capitão sentiu um misto de raiva e apreensão.<br />
Sua família era o que havia de mais valioso para ele. Tinha de fazer o<br />
que fosse necessário para preservá-la. Depois, puniria os responsáveis,<br />
custasse o que custasse.<br />
P<br />
12.<br />
eckus fizera o mesmo caminho de to<strong>do</strong>s os dias de sua casa até o<br />
palácio real, a pé, antes da alvorada. Cumprimentava as pessoas<br />
que encontrava na rua, que àquela hora não eram muitas. Sempre as<br />
mesmas que, como ele, madrugavam para trabalhar. Era um homem<br />
66 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
feliz, apesar de morar sozinho – não era casa<strong>do</strong> – e ter de cuidar de si<br />
mesmo sem uma boa mulher para ajudar. Gorducho por força da profissão,<br />
não deixava de ter uma certa agilidade. Tinha de estar prepara<strong>do</strong><br />
antes de o Sol raiar, pois o Rei com o passar <strong>do</strong>s anos <strong>do</strong>rmia cada vez<br />
menos, acordan<strong>do</strong> sempre mais e mais ce<strong>do</strong>.<br />
Bem ce<strong>do</strong> o rei tomava o seu desjejum, e lá estava Peckus para certificar-se<br />
de que a comida não estava envenenada. Estava no emprego<br />
havia <strong>do</strong>is anos. Seu antecessor teve um mal súbito e não sobreviveu.<br />
Nunca se disse que tivesse si<strong>do</strong> à custa da comida <strong>do</strong> Rei e nunca veio a<br />
público qualquer atenta<strong>do</strong> contra a pessoa real, mas o atual prova<strong>do</strong>r<br />
oficial tinha lá suas dúvidas. Entretanto, tivera sorte até o momento.<br />
Ganhava razoavelmente bem, comia <strong>do</strong> bom e <strong>do</strong> melhor e ainda não<br />
morrera pela boca. Não havia <strong>do</strong> que reclamar.<br />
Aquela manhã não era diferente das outras. Provou o desjejum <strong>do</strong> Rei<br />
e continuou vivo. Ótimo. A bandeja podia ser levada. Era passada por<br />
uma portinhola para dentro <strong>do</strong>s aposentos <strong>do</strong> Monarca pois ele não gostava<br />
de ser incomoda<strong>do</strong> durante as refeições.<br />
Era uma noite de verão, mas nos aposentos <strong>do</strong> Rei não fazia tanto calor<br />
quanto no restante da cidade. A construção <strong>do</strong>s primeiros tempos <strong>do</strong><br />
império possuía um sistema de ventilação discreto e eficiente que permitia<br />
um frescor areja<strong>do</strong> em dias quentes e mantinha uma temperatura<br />
amena em dias frios. O Monarca teve um sono tranquilo como havia<br />
algum tempo não tinha. Acor<strong>do</strong>u ce<strong>do</strong>, como sempre, com o canto <strong>do</strong>s<br />
primeiros pássaros, logo antes da Aurora com de<strong>do</strong>s de rosa surgir matutina.<br />
Sentia-se bem disposto naquela manhã. Dirigiu-se ao balcão para o<br />
qual dava a sua janela, para aguardar o nascer <strong>do</strong> Sol. O frescor <strong>do</strong>s úl-<br />
TALAL HUSSEINI 67
timos instantes de madrugada o fez experimentar grande vitalidade. Fi-<br />
nalmente o Sol se fez anunciar por um manto <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> que cobriu a Capital,<br />
lançan<strong>do</strong> uma névoa amarelada sobre os telha<strong>do</strong>s. Surgiu em seguida<br />
o astro-rei imponente como só um ser que é o centro de um<br />
sistema pode ser. O Rei absorveu seus raios e voltou para dentro <strong>do</strong><br />
quarto. A bandeja com seu desjejum já havia si<strong>do</strong> deixada pela abertura<br />
na parte inferior da porta, como to<strong>do</strong>s os dias.<br />
Após seu desjejum, o Rei dirigiu-se ao escritório para os despachos<br />
de expediente e assuntos corriqueiros da administração. Três <strong>do</strong>s guardas<br />
que ali estavam o acompanhavam, enquanto um ali permaneceu.<br />
Minutos depois, o Capitão apareceu renden<strong>do</strong> o guarda que ficara em<br />
frente ao quarto real, sob o argumento de que sua presença era solicitada<br />
no pátio. Esperou que o guarda desaparecesse e fez um sinal para alguém<br />
que se ocultava atrás de uma cortina. O indivíduo entrou no quarto.<br />
O Capitão o advertiu:<br />
– Seja rápi<strong>do</strong>, temos pouco tempo.<br />
O homem assentiu com a cabeça e desapareceu no interior <strong>do</strong> aposento.<br />
Lá, foi à escrivaninha <strong>do</strong> Rei, apanhan<strong>do</strong> sua pena, cuja ponta embebeu<br />
num líqui<strong>do</strong> transparente conti<strong>do</strong> num frasco que trazia consigo.<br />
Em seguida, começou a procurar freneticamente por algo: a placa com o<br />
nome <strong>do</strong> sucessor. Mas não podia deixar vestígios de que ali estivera,<br />
então procedia com muito cuida<strong>do</strong>.<br />
Do la<strong>do</strong> de fora, o Capitão estava impaciente, pois o visitante já devia<br />
ter saí<strong>do</strong>. Abriu a porta:<br />
– Não há mais tempo, o Rei deve estar voltan<strong>do</strong> com os guardas. Você<br />
precisa ir.<br />
– Ainda não encontrei o que procuro.<br />
– Isso não é problema meu, fiz minha parte trazen<strong>do</strong>-o até aqui, mas<br />
agora você precisa ir.<br />
68 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
O homem sabia que o Capitão estava certo, mas ainda assim saiu con-<br />
traria<strong>do</strong>. As explicações que teria de dar pelo seu fracasso não seriam<br />
das mais agradáveis.<br />
Retornan<strong>do</strong> aos seus aposentos, Sokárin sentou-se à escrivaninha para<br />
algumas horas de escrita, como costumava fazer to<strong>do</strong>s os dias. Apanhou<br />
sua pena e passou a escrever num pergaminho. Foram apenas algumas<br />
linhas. Guar<strong>do</strong>u o escrito cuida<strong>do</strong>samente numa caixa sobre a mesa.<br />
Continuou a escrever, até começar a sentir-se muito cansa<strong>do</strong>, sensação<br />
inabitual naquele horário, mas que o Rei reputou à sua idade, que lhe<br />
pesava mais a cada dia. Deitou-se no terraço para aproveitar o ar puro.<br />
Sentia-se como se a espécie de divã que ali havia o abraçasse. A<strong>do</strong>rmeceu.<br />
Como a bandeja <strong>do</strong> almoço demorava a ser devolvida, após alguma<br />
deliberação, os guardas da porta decidiram comunicar o fato ao Capitão<br />
da Guarda Real. Este bateu à porta, chaman<strong>do</strong>:<br />
– Majestade!<br />
Repetiu o gesto depois de alguns segun<strong>do</strong>s. Nada.<br />
Os guardas se entreolharam. O Capitão fez um gesto de cabeça para<br />
que um deles abrisse a porta. Trancada. Mais um momento de dúvida e<br />
tensão. Não havia alternativa, tinham que entrar. O arrombamento da<br />
porta levou alguns minutos, dada a sua solidez. Foi necessário um pequeno<br />
aríete. Finalmente conseguiram. Primeiro entraram <strong>do</strong>is guardas,<br />
reconhecen<strong>do</strong> a área e verifican<strong>do</strong> se não havia nenhum intruso. Tu<strong>do</strong><br />
limpo.<br />
Foram em direção ao leito <strong>do</strong> Rei. Afastaram as cortinas... Ninguém!<br />
To<strong>do</strong>s foram toma<strong>do</strong>s de uma estranha sensação, de vazio, mas seu rigoroso<br />
treinamento não permitiu que nenhum deles perdesse o controle.<br />
TALAL HUSSEINI 69
Vasculharam o aposento. Realmente não havia ninguém. A bandeja <strong>do</strong><br />
almoço não fora tocada. O terraço...<br />
Os guardas encontraram Sokárin deita<strong>do</strong> com aparência tranquila. O<br />
Capitão, que examinava cuida<strong>do</strong>samente o local com os olhos, deu a<br />
ordem:<br />
– Vocês <strong>do</strong>is – disse ele, apontan<strong>do</strong> os voluntários – vão até a residência<br />
<strong>do</strong> Primeiro-Ministro e <strong>do</strong> Chefe <strong>do</strong> Conselho <strong>do</strong>s Anciãos e<br />
peçam que venham até aqui. É um caso de urgência!<br />
Chegan<strong>do</strong> à suntuosa mansão <strong>do</strong> Primeiro-Ministro, os guardas pediram<br />
a uma serviçal que chamasse seu patrão. A moça foi até o jardim<br />
preferi<strong>do</strong> de Adaran:<br />
– Com licença, Senhor Adaran, <strong>do</strong>is homens da Guarda Real desejam<br />
vê-lo, dizem que é um assunto de vida ou morte.<br />
Adaran não demonstrou nenhuma surpresa. Não era homem de arroubos<br />
nem de gestos muito amplos. Terminou lentamente o que estava<br />
fazen<strong>do</strong> e dirigiu-se ao saguão de entrada de sua casa, onde os solda<strong>do</strong>s<br />
esperavam em pé, apesar de lhes ter si<strong>do</strong> ofereci<strong>do</strong> assento. Um deles<br />
tomou a iniciativa:<br />
– Boa tarde, Senhor Primeiro-Ministro. O Capitão pede sua presença<br />
no Palácio Real.<br />
Adaran permaneceu impassível, em pleno controle de suas emoções:<br />
– Do que se trata, o Rei manda me chamar?<br />
– Senhor, o Capitão só nos man<strong>do</strong>u dizer que é um caso de urgência…<br />
Agora sim o observa<strong>do</strong>r mais atento poderia ter nota<strong>do</strong> um ligeiro e<br />
rápi<strong>do</strong> brilho nos olhos de Adaran. Os guardas não perceberam.<br />
– Vamos até lá!<br />
70 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
– Nossas ordens são para chamar também o Chefe <strong>do</strong> Conselho <strong>do</strong>s<br />
Anciãos.<br />
nho.<br />
– Muito bem, sua casa fica no caminho para o palácio, eu os acompa-<br />
A casa <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>r Rohel não deixava muito a desejar à de Adaran. A<br />
moça uniformizada que atendeu a porta não deixou de se assustar com a<br />
presença imponente <strong>do</strong> Primeiro-Ministro, ladea<strong>do</strong> pelos solda<strong>do</strong>s da<br />
Guarda Real. O Primeiro-Ministro ordenou:<br />
– Diga ao Sena<strong>do</strong>r Rohel que estou aqui! Rápi<strong>do</strong>, a questão é urgente.<br />
A moça hesitou. Adaran reforçou a ordem, já visivelmente contraria-<br />
<strong>do</strong>, pois não gostava de ter de repetir ordens:<br />
– Algum problema? Por que você ainda não foi?<br />
A moça, assustada, quis começar a balbuciar alguma explicação<br />
quan<strong>do</strong> uma voz vinda <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> da sala, suave e ao mesmo tempo firme,<br />
interveio:<br />
– O Sena<strong>do</strong>r não está em casa, Senhor Primeiro-Ministro, mas posso<br />
ajudá-lo?<br />
O ânimo <strong>do</strong> Primeiro-Ministro arrefeceu instantaneamente:<br />
– Desculpe incomodá-la em sua residência, Sra. Inari, mas temos um<br />
assunto de Esta<strong>do</strong> urgente para tratar com o Sena<strong>do</strong>r.<br />
– Vocês aceitam um chá? – disse a esposa <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>r Rohel, fazen<strong>do</strong><br />
pouco caso da alegada urgência.<br />
Adaran esteve perto de perder a paciência, mas conseguiu controlarse.<br />
Aquela tranquilidade da Sra. Rohel o irritava, to<strong>do</strong>s estavam com<br />
pressa para saber o porquê <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> urgente <strong>do</strong> Capitão da Guarda e<br />
a mulher lhes oferecia chá. Mas ele não era homem de perder facilmente<br />
o controle e respondeu com polidez:<br />
TALAL HUSSEINI 71
– Nós agradecemos sua hospitalidade, Sra. Inari, mas os assuntos de<br />
Esta<strong>do</strong> são prioritários. A Senhora saberia nos dizer onde podemos encontrar<br />
o Sena<strong>do</strong>r Rohel?<br />
– Não sei lhe dizer onde ele está, mas creio que estará de volta antes<br />
de vocês terminarem o chá.<br />
Adaran desta vez ia mesmo perder sua paciência, quan<strong>do</strong> o Chefe <strong>do</strong><br />
Conselho <strong>do</strong>s Anciãos entrou na sala sorridente como se viesse de um<br />
passeio no bosque:<br />
– Bom dia, senhores. A que devo a honra desta visita? Aceitam um<br />
chá?<br />
– Já lhes ofereci, queri<strong>do</strong>, mas parece que estavam com muita pressa<br />
de encontrá-lo. Quem sabe agora que já o encontraram possam aceitar…<br />
– disse a Sra. Inari Rohel, com um sorriso sincero nos lábios.<br />
– É claro, minha querida, poderia servir-nos no jardim? Está um lin<strong>do</strong><br />
dia e ali podemos conversar com mais reserva – respondeu antes que o<br />
Primeiro-Ministro pudesse ter qualquer reação. Não restou senão seguir<br />
o velho sena<strong>do</strong>r ao jardim.<br />
Irritava um pouco a Adaran a cortesia com que aquele casal se tratava<br />
e com que tratavam os filhos e os emprega<strong>do</strong>s. Não deixava de ser um<br />
pouco de inveja, já que essa cortesia era verdadeira, e afinal onde se<br />
podia encontrar isso nos dias atuais.<br />
Adaran começou a falar:<br />
– O Capitão pediu nossa presença no palácio. Não disse ser um chama<strong>do</strong><br />
de Sokárin. Temo que este tenha…<br />
– …faleci<strong>do</strong> – completou o ancião.<br />
Desta vez o Primeiro-Ministro não conseguiu esconder sua surpresa<br />
<strong>do</strong> olhar arguto <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>r Rohel, que prosseguiu:<br />
– Creio que o senhor já esperava por isso, não é Senhor Primeiro-<br />
Ministro? – antes que Adaran pudesse esboçar qualquer resposta prosseguiu:<br />
– To<strong>do</strong>s nós esperávamos e, de certa forma, até o próprio<br />
Sokárin, da<strong>do</strong> o seu esta<strong>do</strong> de saúde. Terá havi<strong>do</strong> tempo para que ele<br />
devolvesse a placa com o novo sucessor? Ou ao menos para gravá-la?<br />
72 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
Seria curioso que o Rei morresse logo antes de poder indicar seu novo<br />
sucessor... Qualquer indício suspeito na sua morte apontaria imediatamente<br />
para o nome que está atualmente na estela, não é Primeiro-<br />
Ministro? – ao utilizar a mesma construção inquisitiva pela segunda<br />
vez, o Sena<strong>do</strong>r fixou os olhos em Adaran, buscan<strong>do</strong> alguma reação estranha,<br />
mas desta feita o semblante de Adaran nada transpareceu.<br />
– O Capitão não mencionou nada sobre isso.<br />
Ambos sabiam mais <strong>do</strong> que falavam e falavam mais <strong>do</strong> que diziam,<br />
num jogo de gato e rato entre <strong>do</strong>is gatos cria<strong>do</strong>s.<br />
– Mas creio que é tempo de nos dirigirmos ao palácio real, Sena<strong>do</strong>r.<br />
– Sim, já é tempo..., Primeiro-Ministro.<br />
O Primeiro-Ministro não gostava <strong>do</strong> ancião. Imaginou-se estrangulan<strong>do</strong>-o<br />
naquele mesmo instante, mas nada podia fazer. Resignou-se.<br />
Saíram para o palácio.<br />
Quan<strong>do</strong> o Rei despertou, sentiu como se tivesse <strong>do</strong>rmi<strong>do</strong> muitas horas.<br />
Estava leve, bem disposto. Resolveu ir à biblioteca. Os <strong>do</strong>is guardas<br />
<strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora permaneceram imóveis ante sua passagem, como se não<br />
o vissem. Este era o dever deles. O Rei seguiu até a biblioteca <strong>do</strong> palácio.<br />
Não cruzou com ninguém. Tu<strong>do</strong> estava como sempre.<br />
Quan<strong>do</strong> ia retirar um <strong>livro</strong> da estante, ouviu um burburinho que provinha<br />
da ala em que se situavam seus aposentos. Pessoas surgiram de<br />
to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s in<strong>do</strong> em direção ao tumulto. O Rei acorreu também ao<br />
local. As pessoas pareciam desorientadas, a ponto de não verem que o<br />
próprio Soberano estava ao seu la<strong>do</strong>, para lhe franquearem passagem ou<br />
mesmo auxiliá-lo no deslocamento. Ao chegar ao corre<strong>do</strong>r em que ficava<br />
seu quarto, o Rei se consternou ao verificar que os cortesãos se acumulavam<br />
à porta <strong>do</strong> seu quarto. Dirigiu-se para lá tão rapidamente quanto<br />
permitia sua idade. O tumulto era tanto que suas ordens de dispersão<br />
não eram atendidas. Os guardas continham os curiosos, mas já havia<br />
algumas pessoas no interior <strong>do</strong> aposento real. O Rei conseguiu entrar.<br />
TALAL HUSSEINI 73
Sentiu um calafrio atravessar-lhe cada célula <strong>do</strong> corpo quan<strong>do</strong> pôde<br />
vislumbrar a razão <strong>do</strong> tumulto. Adaran, o Primeiro-Ministro, estava em<br />
pé ao la<strong>do</strong> da cama, juntamente com o Sena<strong>do</strong>r Rohel. Sobre o leito,<br />
<strong>do</strong>is médicos <strong>do</strong> reino debruçavam-se sobre o corpo <strong>do</strong> Rei. Ao se ver,<br />
Sokárin entendeu. Os médicos acenaram negativamente com a cabeça<br />
para os <strong>do</strong>is políticos. O pensamento mais imediato <strong>do</strong> Rei foi voltar ao<br />
seu leito e deitar-se, para voltar a <strong>do</strong>rmir desta vez sem sonhar, para em<br />
seguida acordar e retomar seu quotidiano. Mas foi apenas um pensamento<br />
rápi<strong>do</strong>. Logo em seguida não queria mais se aproximar daquele<br />
corpo, daquela vida, queria o Sol e seus raios <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s. Foi em direção<br />
à janela-porta que dava para o balcão. O Sol nunca estivera tão forte.<br />
Uma luz intensa o cobriu e ofuscou sua visão. Sokárin saiu para o balcão,<br />
na direção dessa luz.<br />
Lentamente sua visão adaptou-se à intensa luminosidade, até que pôde<br />
enxergar seu Reino, de paz e harmonia, sem desavenças, sem injustiça,<br />
sem pobreza, sem <strong>do</strong>r, sem miséria. Era o reino que Sokárin vinha<br />
sonhan<strong>do</strong>, aquele que ele acreditava possível quan<strong>do</strong> gravou o nome de<br />
Kadriel Vahan na placa. Se ele passasse pelas provas que o aguardavam,<br />
a indicação se mostraria acertada. Sokárin sentiu uma alegria intensa em<br />
seu coração. Ficaria ali para sempre. Quan<strong>do</strong> olhou para trás, na direção<br />
<strong>do</strong> seu quarto, nada pôde ver pois estava escuro lá dentro. Preferiu seu<br />
reino de luz e não olhou mais para trás...<br />
13.<br />
O<br />
s arautos percorriam a Capital anuncian<strong>do</strong> a morte <strong>do</strong> Rei e o<br />
luto oficial de sessenta dias. O mesmo ocorria em todas as<br />
cidades <strong>do</strong> Reino. Mulheres choravam, muitos dispuseram panos negros<br />
74 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
nas janelas, em demonstração de luto. A comoção foi geral. Sokárin<br />
havia reina<strong>do</strong> muitos anos, as pessoas estavam acostumadas com ele.<br />
Mesmo aqueles alija<strong>do</strong>s de oportunidades durante o seu reina<strong>do</strong> lamentavam.<br />
Os prognósticos começavam. Quem seria o sucessor? Obviamente o<br />
substituto natural seria Golan, filho <strong>do</strong> Rei. Não, o Primeiro-Ministro<br />
era quem governava de fato, portanto daria continuidade ao trabalho.<br />
Rohel era o nome mais indica<strong>do</strong>, pois era um homem sério, acima de<br />
qualquer crítica. Não, de mo<strong>do</strong> algum, muito i<strong>do</strong>so, era preciso alguém<br />
mais jovem.<br />
E assim as conjecturas percorriam o reino em todas as esferas, desde<br />
os estratos mais pobres da população, que nada entendiam de governo<br />
ou de política, que mediam o desempenho de um governante pela quantidade<br />
de comida que chegava à mesa, e com que frequência, até a alta<br />
cúpula <strong>do</strong> governo, em que as conversas eram preenchidas com palavras<br />
mais bonitas, frases mais bem elaboradas, raciocínios que aparentavam<br />
uma lógica irrefutável e o conhecimento de causa de quem estava ao<br />
la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rei quan<strong>do</strong> ele gravou a placa. A verdade é que to<strong>do</strong>s temiam<br />
ainda que inconscientemente os perío<strong>do</strong>s de sucessão. Muitas coisas<br />
podiam acontecer. Mudanças nunca são muito bem vindas. Ainda que a<br />
opção possa ser melhor, o pior conheci<strong>do</strong> é preferível. Cada um buscava<br />
suas maneiras de aliviar a ansiedade, e os exercícios de adivinhação<br />
eram uma delas.<br />
Kadriel passara a maior parte <strong>do</strong> tempo, nos últimos dias, com Ravi<br />
Medhavin. Ele era uma pessoa interessante, de vasta cultura e grande<br />
magnetismo. Kadriel sentiu por ele grande empatia, como se o conhecesse<br />
há séculos. Em poucos dias, já se sentia como um velho amigo, ou<br />
para retratar melhor, como um filho. Ravi lhe transmitia a segurança de<br />
um pai.<br />
TALAL HUSSEINI 75
Ravi era o único que sabia o conteú<strong>do</strong> da conversa de Kadriel com o<br />
Rei. Kadriel o revelara no mesmo dia em que Sokárin morrera, mas não<br />
antes, a fim de manter sua palavra. Ravi não transparecera nenhuma<br />
surpresa, mas lhe deu alguns conselhos que poderiam ser valiosos no<br />
futuro.<br />
Os <strong>do</strong>is foram juntos para a cerimônia de cremação <strong>do</strong> Rei. Como o<br />
acesso era livre ao público, as ruas estavam intransitáveis. Milhares de<br />
pessoas se apinhavam para dar seu último adeus a Sokárin. Os membros<br />
de governo e convida<strong>do</strong>s especiais tinham o acesso facilita<strong>do</strong> pela polícia<br />
e pela Guarda Real. Somente assim Kadriel e Ravi puderam chegar<br />
até as proximidades da cerimônia. A população era mantida a certa distância,<br />
poden<strong>do</strong> observar daí o que se passava, mas quem tentava cruzar<br />
a linha limite era deti<strong>do</strong> com veemência. Alguns poucos mais empolga<strong>do</strong>s<br />
tentaram fazê-lo, mas foram to<strong>do</strong>s impedi<strong>do</strong>s.<br />
A cremação foi emocionante, com cânticos entoa<strong>do</strong>s pelas sacer<strong>do</strong>tisas,<br />
e palavras cerimoniais no idioma antigo sen<strong>do</strong> pronunciadas pelos<br />
sacer<strong>do</strong>tes. To<strong>do</strong>s se esqueceram, por duas horas, da sucessão, só voltan<strong>do</strong><br />
o assunto à memória coletiva quan<strong>do</strong> começaram a decair as<br />
chamas que consumiam o corpo físico de Sokárin, que havia si<strong>do</strong> cuida<strong>do</strong>samente<br />
prepara<strong>do</strong>. O sinete real, que passava de governante em governante<br />
desde tempos imemoriais, fora retira<strong>do</strong> e estava com o Capitão<br />
da Guarda Real, que o entregaria ao Custódio das Tradições, para abrir,<br />
no momento oportuno, a placa com o nome <strong>do</strong> novo rei.<br />
Fazia calor.<br />
– Não vá desmaiar – cochichou Ravi ao seu ouvi<strong>do</strong> – não ficaria bem<br />
para um rei.<br />
– Ainda custo a acreditar que Sokárin falava sério – cochichou de<br />
volta.<br />
– Há certas coisas com que não se brinca.<br />
– Mas não sei se houve tempo para ele efetuar a troca das placas.<br />
76 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
– Isso não importa. O que importa é o que você sabe e o que o Rei lhe<br />
pediu: para lutar por sua posição.<br />
O Sena<strong>do</strong>r Rohel tomou a palavra, abrin<strong>do</strong> um pequeno envelope:<br />
– Senhoras e Senhores aqui presentes, que vieram de to<strong>do</strong> o Reino<br />
prestar suas últimas homenagens ao Rei Sokárin: ele próprio confiou-<br />
me esta mensagem para ser lida nesta ocasião, de suas honras fúnebres.<br />
Diz a mensagem:<br />
“Estão aqui presentes to<strong>do</strong>s aqueles de quem dependerá o sucesso <strong>do</strong><br />
próximo dirigente, meu sucessor, cujo nome será conheci<strong>do</strong> dentro de<br />
algumas semanas. Por isso, rogo a to<strong>do</strong>s, povo, sena<strong>do</strong>, clero, militares,<br />
que apoiem a pessoa indicada e lhe prestem to<strong>do</strong> o suporte necessário ao<br />
bom desenvolvimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. A sucessão deve decorrer, como tem<br />
decorri<strong>do</strong> das últimas vezes, em total harmonia e tranquilidade, sob pena<br />
de se repetirem os dias terríveis de guerra civil que conhecemos somente<br />
pelos <strong>livro</strong>s de história. Na única vez em que isso ocorreu na história<br />
conhecida de nosso País, ainda antes <strong>do</strong> tempo <strong>do</strong> Império, uma<br />
guerra fratricida de mais de dez anos nos atrasou e fez derramar nosso<br />
sangue por sangue idêntico. Fez trazer a barbárie aonde havia civilização,<br />
fez brotar o ódio onde havia cordialidade, fez prevalecer a ignorância<br />
à razão, fez soçobrar os valores mais básicos de nossa sociedade no<br />
lo<strong>do</strong> das paixões, ten<strong>do</strong> custa<strong>do</strong> muito trabalho, muita vontade e muitas<br />
vidas para que enfim as grandes águias que guardaram em seus ninhos<br />
nas montanhas mais altas as sementes da Sabe<strong>do</strong>ria pudessem restaurar<br />
a chama da civilização. A verdade, por mais que pareça obscura, ao<br />
final prevalecerá, pois dela emana a luz. Para aqueles que veem com o<br />
coração não há escuridão. Vejam, pois, com a consciência. Vida longa e<br />
próspera ao Rei!”<br />
O Sena<strong>do</strong>r Rohel estava visivelmente emociona<strong>do</strong> ao terminar de ler<br />
aquelas palavras de seu soberano e amigo. Fez uma pausa, como que<br />
para se recompor, e retomou a palavra:<br />
TALAL HUSSEINI 77
– Outro ponto – esperou até que os rumores na assistência silen-<br />
ciassem – encontramos nos aposentos <strong>do</strong> Rei um escrito, que possivelmente<br />
são suas últimas palavras. Estavam num papiro escrito de próprio<br />
punho por Sokárin, guarda<strong>do</strong> na caixa que conteve a nova placa com o<br />
nome <strong>do</strong> sucessor, sobre a sua escrivaninha. A placa não estava lá. Portanto,<br />
não temos como saber se Sokárin já a havia coloca<strong>do</strong> na estela ou<br />
se a guar<strong>do</strong>u em outro lugar. Mas enten<strong>do</strong> que essas palavras devem ser<br />
conhecidas por to<strong>do</strong>s os aqui presentes, e, como são um tanto enigmáticas,<br />
cada um deverá entendê-las como o seu coração mandar. Sokárin<br />
escreveu:<br />
“PARA O FALCÃO PODER POUSAR<br />
É PRECISO QUE O NINHO ESTEJA PREPARADO”.<br />
78 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE
O<br />
14.<br />
s <strong>do</strong>is homens caminhavam havia algumas horas. Mulil já não<br />
fazia ideia de onde estava, pareciam andar em círculos. Mas<br />
evidentemente não andavam. Montuhotep sabia exatamente o que fazia.<br />
Quan<strong>do</strong> Mulil pensava em entregar-se ao cansaço físico e jogar-se ao<br />
chão, morren<strong>do</strong> ali mesmo, seu Mestre disse que descansariam um pouco.<br />
Foram apenas alguns minutos, uns goles d’água e nenhuma palavra.<br />
A curiosidade corroía o jovem, mas preferiu poupar suas forças<br />
para o que estava por vir, fosse o que fosse. O ancião não deixava muitos<br />
espaços para a personalidade de seus discípulos, principalmente<br />
Mulil, a quem, apesar da aparente tranquilidade, era evidente que buscava<br />
preparar o mais rápi<strong>do</strong> possível para algo...<br />
Mulil se perguntava como o velho homem aguentava a caminhada<br />
sob aquele Sol escaldante, durante horas, sem transpirar uma gota sequer,<br />
sem demonstrar qualquer traço de cansaço. Foi seu último pensamento<br />
antes de retomarem a marcha. Ao cabo de mais quatro horas,<br />
Montuhotep parou, olhou ao re<strong>do</strong>r com satisfação, respirou fun<strong>do</strong> e<br />
disse, mais para os ventos <strong>do</strong> que para Mulil:<br />
– Aqui estamos!<br />
Era um local plano e alto. Estavam sobre um penhasco. Sim, Mulil o<br />
reconhecia. Sete anos antes ali estivera, mas havia percorri<strong>do</strong> outro<br />
caminho. Haviam chega<strong>do</strong> pela parte inferior <strong>do</strong> roche<strong>do</strong>, aquele roche<strong>do</strong><br />
que tivera de escalar até o ninho <strong>do</strong> falcão que lhe deixara marcas<br />
indeléveis no braço e no espírito. Desta vez estavam no alto <strong>do</strong> penhasco.<br />
Aquele lugar ficava nos limites <strong>do</strong> deserto, não havia<br />
vegetação, salvo algumas touças rasteiras, mas o solo ainda não era de<br />
areia solta, e sim de terra seca, dura – último estágio de desidratação<br />
antes <strong>do</strong> piso propriamente desértico – e algumas pedras.<br />
TALAL HUSSEINI 81
Era final de tarde. Montuhotep proclamou que deviam se preparar<br />
para descansar, pois teriam muito trabalho à noite. Cada um trazia<br />
pouco peso: uma manta, pão e água. O ancião ainda carregava consigo<br />
uma pequena sacola que segun<strong>do</strong> ele continha alguns produtos úteis.<br />
Os últimos raios <strong>do</strong> Sol <strong>do</strong> ocaso permitiram a Mulil uma visão assusta<strong>do</strong>ra:<br />
uma parede de areia se aproximava...<br />
Seu Mestre continuava impassível. Apenas retirou da sua sacola <strong>do</strong>is<br />
lenços, entregou um a Mulil e envolveu seu rosto no outro, exortan<strong>do</strong>-o<br />
com os olhos a fazer o mesmo. Mulil estava nervoso, a areia lhe enchia<br />
os olhos, até fazê-lo entender que ficavam melhor fecha<strong>do</strong>s. O jovem<br />
agarrava-se ao braço de Montuhotep como um náufrago a uma tábua<br />
de salvação. Tentava falar mas o vento levava suas palavras como fossem<br />
folhas secas.<br />
Subitamente, o braço de seu Mestre lhe escapou. Mulil restou como<br />
um cego numa floresta, exceto que não havia árvores em que se apoiar.<br />
An<strong>do</strong>u por alguns minutos a esmo, os braços estendi<strong>do</strong>s à frente <strong>do</strong><br />
corpo fazen<strong>do</strong> movimentos laterais como para evitar o choque com as<br />
árvores inexistentes ou talvez para encontrá-las. Seu senso de direção<br />
não mais existia quan<strong>do</strong> se lembrou de que estava próximo de um penhasco<br />
e seu próximo passo poderia ser no nada. Parou. Lembrou-se<br />
<strong>do</strong> que havia aprendi<strong>do</strong> sobre o me<strong>do</strong>, essa reação natural que muitas<br />
vezes podia significar a diferença entre a vida e a morte, mas que deixava<br />
uma trilha delgada. Ausência de me<strong>do</strong>: morte. Excesso de me<strong>do</strong>:<br />
morte. A vida residia no estreito caminho <strong>do</strong> controle <strong>do</strong> me<strong>do</strong>.<br />
Mulil tranquilizou então sua respiração, baixou os braços, já que não<br />
serviriam para detectar o vazio. Finalmente, decidiu que a melhor estratégia<br />
era ficar para<strong>do</strong>. Sentou-se no chão, entocan<strong>do</strong>-se em sua manta,<br />
de mo<strong>do</strong> a ser o menos atingi<strong>do</strong> possível pela areia. Já se haviam<br />
passa<strong>do</strong> horas, ao menos em sua avaliação. A estratégia funcionou por<br />
algum tempo, mas a temperatura começou a baixar drasticamente, in-<br />
82 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
dican<strong>do</strong> que já caíra a noite no deserto. A inércia que por algum tempo<br />
significou sobrevivência agora significava morte, pelo frio. Mulil pela<br />
primeira vez entendeu o que seu Mestre sempre lhe dizia sobre a vida e<br />
a morte: que eram as duas faces da mesma moeda.<br />
Levantou-se e começou a andar com dificuldade, tatean<strong>do</strong> o chão antes<br />
de completar cada passo. Tinha de encontrar seu Mestre, era seu<br />
único pensamento, sem ele não havia esperança de sobrevivência naquele<br />
ambiente hostil. Mulil sentiu-se desfalecer em meio ao turbilhão<br />
de areia.<br />
Recuperou lentamente a consciência e, quan<strong>do</strong> conseguiu focalizar<br />
sua visão embaçada, pôde ver o rosto sulca<strong>do</strong> de Montuhotep, que repetia<br />
estranhos mantras numa língua desconhecida para Mulil. Estavam<br />
dentro de algum tipo de caverna em que mal se podia ficar em pé.<br />
O ancião ordenou que Mulil se sentasse à moda <strong>do</strong>s escribas, ao que<br />
obedeceu de imediato, embora se sentisse bastante tonto. Ele devia<br />
permanecer ereto e repetir alguns exercícios respiratórios. Continuaram<br />
esses exercícios por algumas horas, até Mulil não sentir mais suas<br />
pernas, nem seus braços e por fim nenhuma parte de seu corpo. Em<br />
certos momentos, Mulil chegou a pensar que iria desmaiar, mas conseguiu<br />
manter-se em razão da presença de seu Mestre, diante de quem<br />
não queria falhar. Aos poucos, a <strong>do</strong>r se transformou em amortecimento,<br />
mas não um amortecimento físico, e sim uma polarização que permitia<br />
ao jovem ignorar seu corpo físico. Desse mo<strong>do</strong>, o mal-estar tornou-se<br />
conforto.<br />
Por fim, o velho Mestre ordenou que fechasse os olhos e visualizasse<br />
um falcão <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>. Então, Mulil devia imaginar-se cada vez menor<br />
ante esse pássaro, até que ele se tornasse gigante à sua frente. Em seguida,<br />
Mulil devia projetar-se em direção ao falcão <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> e entrar<br />
nele, fundin<strong>do</strong>-se nele. O discípulo o fez sem dificuldade. Montuhotep<br />
continuava a entoar a sequência de mantras, em meio aos quais orientava<br />
o jovem:<br />
TALAL HUSSEINI 83
– Agora, você é o falcão! Abra suas asas, sinta-as. Busque a saída da<br />
caverna e voe em direção ao céu.<br />
Mulil obedeceu. Voou para a saída da caverna e viu-se novamente<br />
em meio à tempestade de areia. Mas desta feita ela não o assustava.<br />
Bateu mais forte suas asas e de repente ganhou o firmamento. Sobrevoou<br />
a tempestade, que se transformava numa pequena nuvem de areia na<br />
medida em que o falcão ganhava altura. A luz <strong>do</strong>urada que emanava de<br />
Mulil iluminava tu<strong>do</strong> ao seu re<strong>do</strong>r, refletin<strong>do</strong>-se na terra distante. O<br />
jovem voltava sua cabeça de falcão para os la<strong>do</strong>s e via suas asas <strong>do</strong>minan<strong>do</strong><br />
o vento. Nunca vira tantas estrelas. Sentia-se uma delas, sentiase<br />
parte <strong>do</strong> espaço absoluto. Subiu até as arestas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> terrestre se<br />
desfazerem, e as cores se esfumarem na noite profunda. Voava em direção<br />
ao ser essencial. Estava livre…<br />
Mesmo ao longe continuava a ouvir a voz de seu Mestre como se estivesse<br />
ao seu la<strong>do</strong>. Ouvia com o coração. Ela o chamava. Mulil não<br />
queria voltar, não queria mais ser um homem, queria permanecer falcão,<br />
queria permanecer livre, queria ganhar o espaço infinito e as estrelas<br />
suas irmãs. Mas devia obedecer. Sentia um misto de alegria pelo<br />
sentimento que experimentava e de tristeza por ter de aban<strong>do</strong>ná-lo.<br />
Seus olhos de falcão viram através da areia, que já se dissipava, o pequeno<br />
buraco no chão, de onde saíra. Mergulhou em direção a ele, ganhan<strong>do</strong>-o<br />
rapidamente.<br />
Sentia agora o peso de sua coluna vertebral. As palavras de seu Mestre<br />
norteavam seu retorno, tornan<strong>do</strong>-o seguro. Mulil sentia-se humano<br />
novamente. Abriu lentamente os olhos. Dava graças por seu Mestre ser<br />
o único ser humano ali presente. Não queria palavras, não queria emoções,<br />
não queria pensamentos humanos.<br />
84 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
Kadriel despertou daquele sonho com uma sensação de distanciamen-<br />
to. Sentia-se, como Mulil, uma ave, um falcão voan<strong>do</strong> distante da terra<br />
<strong>do</strong>s homens mas sem perdê-la de vista, voan<strong>do</strong> sob as estrelas mas sem<br />
poder tocá-las. Não queria contato com pessoas, preferia estar consigo<br />
mesmo. Novamente um sonho com aqueles personagens longínquos no<br />
tempo.<br />
As palavras <strong>do</strong> Rei, lidas pelo Sena<strong>do</strong>r Rohel, ainda ecoavam na mente<br />
de Kadriel: “Para o falcão poder pousar...”, misturan<strong>do</strong>-se com as<br />
imagens <strong>do</strong> seu sonho. Por que o Rei deixara aquelas palavras? Seriam<br />
fruto <strong>do</strong> delírio de um moribun<strong>do</strong>? Ou guardariam algum segre<strong>do</strong> impenetrável?<br />
Por que o falcão, figura renitente no seu sonho e na sua vida?<br />
O jovem sentou-se no chão, à moda <strong>do</strong>s antigos escribas, fechou os<br />
olhos e procurou reproduzir a concentração que o discípulo fizera no<br />
seu sonho. Nenhum resulta<strong>do</strong>.<br />
Kadriel passou o dia sem sair de casa, cogitan<strong>do</strong>, um tanto aéreo. Era<br />
curioso que a única pessoa com quem imaginava poder conversar naquele<br />
momento era Ravi, apesar de tê-lo conheci<strong>do</strong> há tão pouco tempo.<br />
Já perto das cinco horas da tarde, resolveu tomar uma atitude: dirigiu-se<br />
à casa de Ravi.<br />
N<br />
15.<br />
o dia da morte <strong>do</strong> Rei, o Capitão ficara extremamente desconfia<strong>do</strong>.<br />
Aquele ingresso indevi<strong>do</strong> nos aposentos, que ele mesmo<br />
permitira, e o subsequente óbito eram coincidência demais para uma<br />
mente treinada como a sua. Ele observara atentamente cada detalhe <strong>do</strong><br />
quarto. O Rei estivera escreven<strong>do</strong>, comera sua refeição e deitara-se no<br />
terraço para dali não mais sair vivo.<br />
TALAL HUSSEINI 85
A comida não era uma hipótese, pois havia o prova<strong>do</strong>r oficial Peckus.<br />
Ademais a refeição não estava lá quan<strong>do</strong> da invasão. As cozinheiras e<br />
Peckus haviam si<strong>do</strong> detalhadamente questiona<strong>do</strong>s. Nada indicava alguma<br />
participação na morte de Sokárin.<br />
Tu<strong>do</strong> indicava que a resposta mais direta era a correta: morte natural.<br />
Mas os instintos de guarda <strong>do</strong> Capitão dificilmente falhavam e ele ainda<br />
estranhava algo, não sabia bem o que era, mas descobriria. Se houvesse<br />
alguma irregularidade no caso, ele descobriria. Por via das dúvidas, havia<br />
recolhi<strong>do</strong> a pena e algumas das folhas que o Rei utilizava para escrever<br />
nos seus últimos momentos deste la<strong>do</strong> da existência. Mandara<br />
fazer seus próprios testes. A pessoa que os realizou era da sua confiança<br />
e além disso não sabia <strong>do</strong> que se tratava. Disse haver um traço de uma<br />
substância que poderia ser venenosa, mas não tinha como afirmar com<br />
certeza por ser altamente volátil e já estar terminan<strong>do</strong> de se dissipar<br />
quan<strong>do</strong> ele fez os testes. Quan<strong>do</strong> os repetiu para confirmação, nada mais<br />
encontrou. De qualquer maneira, o Capitão guar<strong>do</strong>u consigo esse material,<br />
poderia ser-lhe de alguma utilidade no futuro. Pedir um exame <strong>do</strong><br />
corpo <strong>do</strong> Rei, sen<strong>do</strong> que nada indicava qualquer crime, seria loucura,<br />
profanação, o solda<strong>do</strong> não ousou cogitar tal hipótese. Se havia algum<br />
indício no corpo <strong>do</strong> Rei de que sua morte não tinha si<strong>do</strong> natural seria<br />
crema<strong>do</strong> junto com o Soberano. Só lhe restava aguardar e concentrar<br />
suas preocupações em outro assunto relevante: sua família.<br />
Era o dia seguinte à cerimônia fúnebre real, e era seu dia de folga.<br />
Resolveu não sair de casa na esperança de que os sequestra<strong>do</strong>res fizessem<br />
contato. Sua expectativa foi atendida. Uma batida na porta e um<br />
envelope sob ela. Faltou pouco para as mãos firmes <strong>do</strong> Capitão tremerem<br />
ao abrir o envelope. Continha apenas um local. Entendeu que indicava<br />
aonde devia se dirigir e lá foi.<br />
86 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
– Nesse local, outro envelope idêntico ao primeiro continha outra indi-<br />
cação geográfica. Finalmente, no sétimo envelope, havia um endereço e<br />
um horário. A velha olaria desativada, três horas depois de o Sol se pôr...<br />
Esse compromisso o Capitão não iria perder.<br />
Ao chegar à casa de Ravi, Kadriel foi recebi<strong>do</strong> por uma moça que não<br />
fez nenhuma pergunta, como se ele estivesse sen<strong>do</strong> espera<strong>do</strong>. Indicoulhe<br />
o caminho <strong>do</strong> jardim, nos fun<strong>do</strong>s da residência, que se localizava no<br />
extremo da cidade com vista direta para o vulcão Anthar, que em sua<br />
última erupção, mil anos antes, havia causa<strong>do</strong> grandes estragos à cidade.<br />
Desde então, estava tranquilo. Não inativo, pois diz-se que não existem<br />
vulcões inativos e sim a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong>s, com seu grande poder latente esperan<strong>do</strong><br />
o momento certo para eclodir. Nesse senti<strong>do</strong>, os vulcões são como<br />
as pessoas...<br />
Ravi foi rápi<strong>do</strong> em deixar Kadriel bastante à vontade:<br />
– Você vê este bosque? – indagou apontan<strong>do</strong> as árvores que ficavam<br />
no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu quintal; Kadriel assentiu com a cabeça – gosto de olhar<br />
para ele todas as tardes. O Sol o cobre com essa névoa amarelada, até<br />
esconder-se atrás <strong>do</strong> grande vulcão, que <strong>do</strong>mina nossa cidade.<br />
– Realmente, aqui o senhor tem uma paisagem muito bonita.<br />
– Mais <strong>do</strong> que bonita, ela tem a intensidade da vida, que se renova<br />
to<strong>do</strong>s os dias, permitin<strong>do</strong> que nunca nos esqueçamos <strong>do</strong>s ciclos que a<br />
compõem. Meditan<strong>do</strong> neste lugar perante o Sol que vai, pode-se sentir a<br />
respiração <strong>do</strong> Universo, seu lento movimento de contração e expansão.<br />
Tu<strong>do</strong> em nossa existência é assim: expande-se até um ponto extremo,<br />
para depois novamente contrair-se até um único ponto. Quan<strong>do</strong> o Universo<br />
se contrai num ponto há apenas o Ser, e não a manifestação, não o<br />
Existir...<br />
– Não estou certo de que enten<strong>do</strong> isso muito bem...<br />
TALAL HUSSEINI 87
– É porque nem tu<strong>do</strong> se pode entender racionalmente. Certas coisas<br />
só podem ser intuídas, após muita contemplação.<br />
Kadriel não respondeu, não sabia o que dizer. Procurava uma brecha<br />
para abordar o assunto que o levara até ali. Ravi reparou na sua ansiedade:<br />
– Kadriel, você obviamente veio até aqui porque quer contar-me alguma<br />
coisa.<br />
– De fato, mas é que na verdade nem sei bem porque estou aqui. Conhecemo-nos<br />
tão pouco e o senhor já sabe certas coisas sobre mim que<br />
eu não disse a mais ninguém...<br />
– Você quer falar da sucessão?<br />
– Não. Quer dizer, sim, gostaria de falar sobre isso também, pois não<br />
tenho certeza se saberei cuidar sozinho <strong>do</strong> que me espera... Mas não foi<br />
isso que me trouxe aqui desta vez... É que esta noite tive um sonho estranho...<br />
Ravi não fez qualquer comentário, só permaneceu com a atitude de<br />
quem está aberto ao discurso <strong>do</strong> seu interlocutor. Kadriel prosseguiu:<br />
– O mais estranho é que quan<strong>do</strong> acordei sentia-me como que fora<br />
deste mun<strong>do</strong>. E a única pessoa em quem conseguia pensar, para conversar<br />
sobre isso, era o senhor...<br />
– Conte-me seu sonho, Kadriel.<br />
Relatou-o, então, como também o primeiro sonho com esses mesmos<br />
personagens, na prova <strong>do</strong> penhasco. Falou das impressões que tivera<br />
durante estes momentos oníricos, parecen<strong>do</strong>-lhe estes mais realidade <strong>do</strong><br />
que sua realidade vigílica. Começava a achar que aqueles sonhos teriam<br />
algum significa<strong>do</strong>, mas não sabia qual.<br />
– O falcão aparece nos <strong>do</strong>is sonhos. E as últimas palavras <strong>do</strong> Rei<br />
mencionavam o falcão – foi o único comentário de Ravi – prossiga.<br />
– Depois que acordei, sentia-me como se ainda estivesse sonhan<strong>do</strong>.<br />
Na verdade, tentei fazer a concentração que Mulil fez no sonho, para<br />
88 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
tentar reproduzir suas experiências, mas não obtive sucesso – confessou<br />
Kadriel, um pouco encabula<strong>do</strong>.<br />
– A meditação tem uma forma correta para ser feita. Se quiser, posso<br />
ensiná-lo.<br />
Kadriel concor<strong>do</strong>u, demonstran<strong>do</strong> entusiasmo pela ideia. Ravi conti-<br />
nuou:<br />
– Você já subiu no vulcão Anthar?<br />
– Nunca. Não é proibi<strong>do</strong>? Dizem que é perigoso, pois ele pode entrar<br />
em atividade.<br />
Ravi sorriu, como quem se dirige a uma criança a quem disseram que<br />
o fogo é perigoso porque queima, que a água é perigosa porque afoga,<br />
que os animais são perigosos porque mordem, e que tu<strong>do</strong> deve ser temi<strong>do</strong><br />
porque é perigoso de alguma maneira, ainda que não saibamos de<br />
momento qual seja. A educação pautada no me<strong>do</strong> fazia rir a Ravi, mas<br />
era um riso de condescendência e ao mesmo tempo de tristeza, diante da<br />
incapacidade humana em se fazer entender de forma construtiva, mesmo<br />
pelas crianças. A humanidade havia desaprendi<strong>do</strong> como ter obediência<br />
por respeito e por admiração. O me<strong>do</strong> era a ferramenta mais fácil, começava<br />
a ser utilizada na infância e continuava até a morte, o maior de<br />
to<strong>do</strong>s os me<strong>do</strong>s. As pessoas viviam com me<strong>do</strong> e morriam com me<strong>do</strong>,<br />
quan<strong>do</strong> não morriam, muitas vezes, <strong>do</strong> próprio me<strong>do</strong>. O instrumento<br />
natural de proteção e sobrevivência era transforma<strong>do</strong> em aparelho de<br />
letargia e inconsciência.<br />
– Se ele entrar em atividade, não fará muita diferença estarmos dentro<br />
da sua cratera ou estarmos bem aqui neste quintal olhan<strong>do</strong> para esse<br />
bosque. Teremos apenas alguns minutos a mais para olhar de frente a<br />
nossa própria morte.<br />
Aquelas palavras ao contrário de infundir temor em Kadriel o encheram<br />
com um sentimento novo, uma vontade de escalar as costas da velha<br />
montanha, para a qual – agora percebia – sequer olhava detidamen-<br />
TALAL HUSSEINI 89
te. Sentia vontade de aproximar-se <strong>do</strong> céu e <strong>do</strong>s deuses. Ravi, como que<br />
perceben<strong>do</strong> seus pensamentos, lhe fez sinal que o seguisse e adentrou no<br />
bosque, com passos rápi<strong>do</strong>s. Cruzaram to<strong>do</strong> o bosque até ganhar um<br />
descampa<strong>do</strong>. Intuin<strong>do</strong> a pergunta que ardia na garganta de Kadriel, Ravi<br />
respondeu sem responder, apenas fazen<strong>do</strong> um ligeiro movimento de<br />
sobrancelha em direção ao vulcão.<br />
Enquanto caminhavam la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>, em silêncio, o Sol se punha, tingin<strong>do</strong><br />
de escarlate o ocaso e a planície; pinceladas de azul e amarelo<br />
terminavam de tecer aquele final de tarde. Ravi não deixou transparecer<br />
sua consternação com o prenúncio que o vermelho trazia: sangue seria<br />
derrama<strong>do</strong>...<br />
Quan<strong>do</strong> começaram a parte mais íngreme da subida, Ravi explicou a<br />
Kadriel como ele devia andar sem fazer força com os músculos, apenas<br />
utilizan<strong>do</strong> as articulações. Explicou-lhe também que ele devia manter a<br />
conversa enquanto fazia esforços, para descondicionar a respiração.<br />
Entre um assunto e outro, caminharam horas, sem qualquer cansaço.<br />
Quan<strong>do</strong> Kadriel se deu conta, estava diante da cratera.<br />
– Você queria fazer a meditação, deixe-me explicar-lhe algumas<br />
questões. Para meditar é necessário se concentrar e contemplar. Primeiro,<br />
é necessário concentrar-se, pois só assim você conseguirá ver a unidade<br />
por trás das coisas. Concentran<strong>do</strong>-se com firmeza num único ponto,<br />
logrará ver o que está por trás desse ponto, e depois o que está por<br />
trás desse outro e assim sucessivamente até chegar à unidade das coisas.<br />
Então, será necessário desacelerar os pensamentos, para aumentar a<br />
velocidade da mente. A mente livre de pensamentos atingirá uma vibração<br />
que lhe permitirá chegar ao silêncio, sobre o qual foi construí<strong>do</strong><br />
to<strong>do</strong> o Universo, silêncio este que pode ser vislumbra<strong>do</strong> entre as palavras,<br />
ou entre as letras de uma palavra, ou nos intervalos entre os sons...<br />
Aí cessa a mente e começa a meditação, que vai lhe permitir contem-<br />
90 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
plar. E a contemplação vai lhe permitir descobrir que esse to<strong>do</strong> é a Unidade.<br />
Quem contempla não tem a visão <strong>do</strong> observa<strong>do</strong>r e de Deus como<br />
coisas distintas. Tu<strong>do</strong> passa a ser uma coisa só. Meditar é silenciar-se<br />
em Deus. Agora vou mostrar-lhe a prática <strong>do</strong> que lhe ensinei, que<br />
aprendi com o meu Mestre – disse, indican<strong>do</strong> que se sentasse sobre os<br />
joelhos, com a coluna reta – ouça apenas a minha voz, deixe-se guiar<br />
por ela...<br />
Na medida em que Kadriel ia realizan<strong>do</strong> os passos, ouvia ao fun<strong>do</strong> a<br />
voz de Ravi, que em tom suave parecia integrar-se à natureza:<br />
Circulação.<br />
O Centro é algo que não pode ser ensina<strong>do</strong>, tampouco aprendi<strong>do</strong>. O<br />
Centro é algo que somente pode ser recorda<strong>do</strong>.<br />
Um velho sábio disse aos seus discípulos que quan<strong>do</strong> saíssem em<br />
busca <strong>do</strong> seu Ideal e no caminho sentissem as primeiras dificuldades,<br />
quan<strong>do</strong> sentissem os músculos enfraquecer, a palidez tomar conta <strong>do</strong>s<br />
lábios, os olhos titubear e o coração sentir o hálito <strong>do</strong> fracasso, se lembrassem<br />
de que um dia estiveram la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong> com seus irmãos, em torno<br />
de uma fogueira, cantan<strong>do</strong> os hinos de glória e de vitória desse Ideal<br />
Superior. Essa lembrança lhes traria a força às veias e certeza às almas,<br />
pois o maior mal da humanidade é o esquecimento.<br />
Fluxo.<br />
É na recordação que nos encontramos. É nesse ponto de recordação<br />
que todas as coisas <strong>do</strong> universo se encontram.<br />
É no Centro que todas as coisas nascem, desenvolvem-se, e são novamente<br />
consumidas. Para o Centro todas as coisas marcham.<br />
Pulso.<br />
Onde os mares deságuam, onde a rotação da terra gira, onde as galáxias<br />
flutuam, onde os pássaros encontram seu destino. Onde o silêncio é<br />
o corpo de Deus, e o movimento deixa de existir. Lá é o Centro.<br />
TALAL HUSSEINI 91
Irradiação.<br />
Onde o coração <strong>do</strong> cisne celeste se transforma em diamante e suas<br />
asas de luz se projetam tocan<strong>do</strong> o cosmos. Onde a magia é a única realidade<br />
ponderável. Onde o mortal transmuta-se em imortal. Lá é o Centro.<br />
O Centro é o ponto onde to<strong>do</strong> o universo se une. Onde a eternidade é<br />
engolida pela duração, e o Uno <strong>do</strong> infinito é absorvi<strong>do</strong> pelo Absoluto.<br />
Iluminação.<br />
O discípulo é o único que pode conceber o Centro. É infinito o potencial<br />
latente que reside dentro <strong>do</strong> coração <strong>do</strong> discípulo.<br />
Focalização.<br />
O cérebro é o ministro. O coração é o rei. Esse rei segue os impulsos<br />
da vontade <strong>do</strong> ser. Esse ser é o infinito, o poder interno, o Centro que<br />
habita o coração de cada discípulo. Por ser infinito, não nasce, não<br />
morre.<br />
Polarização. Selo.<br />
Kadriel visualizou um círculo branco dentro de um círculo <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>.<br />
Lembrou-se da imagem que, enquanto falcão, vira formar-se na tempestade<br />
de areia. Abriu os olhos. A imagem que se formara era semelhante<br />
à <strong>do</strong> seu sonho: nuvens em torno da cratera e claridade apenas no centro.<br />
Ele enxergava toda a montanha. Voava. Sentiu algo puxá-lo. Olhou<br />
para baixo. Lá estava seu corpo, senta<strong>do</strong> sobre os joelhos. Ravi para<strong>do</strong> à<br />
sua frente lhe falava. A cada palavra que dizia, sentia uma força compeli-lo<br />
para baixo.<br />
Sentiu-se cair. Tu<strong>do</strong> tornou-se escuro. Seus pensamentos, sentimentos,<br />
seu corpo... tu<strong>do</strong> estava confuso. Nada parecia fixar-se. Abriu os<br />
olhos, agora de verdade. Em meio à confusão mental que experimentava,<br />
tinha uma certeza: sentira o Centro no coração. Seu corpo estava<br />
gela<strong>do</strong>. Aquela pequena experiência o fizera ver as coisas com um pouco<br />
mais de realidade. Não sabia como, apenas sentia. Melhor, intuía.<br />
92 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
O universo parecia-lhe para<strong>do</strong>. Sentia apenas seu coração pulsan<strong>do</strong>.<br />
Um falcão cortou o céu sobre a cratera. Seu grito ecoava pela monta-<br />
nha. Kadriel pensou que tinha si<strong>do</strong> aquele falcão, ao menos por alguns<br />
momentos. Invejou-o, no bom senti<strong>do</strong>.<br />
Ravi, como que len<strong>do</strong> seus pensamentos, disse:<br />
– Os seres da natureza têm muito a nos ensinar. Nos momentos em<br />
que tu<strong>do</strong> parece perdi<strong>do</strong>, o discípulo pode renovar-se e brilhar como<br />
nunca. Certas aves, como os falcões e as águias, têm características muito<br />
especiais, sempre foram mencionadas nas tradições como símbolo de<br />
poder e sapiência. Ao contrário de outras aves, quan<strong>do</strong> veem uma tormenta,<br />
vão diretamente de encontro a ela, não se escondem, nem ficam<br />
agitadas, abrem suas asas poderosas e velozes e enfrentam a tormenta,<br />
superam as nuvens negras, a tempestade, os choques elétricos provenientes<br />
<strong>do</strong>s raios. Sabe por quê?<br />
E prosseguiu, sem esperar a resposta:<br />
– Porque sabem que acima, para além da tormenta, está o brilho <strong>do</strong><br />
Sol!<br />
Kadriel sentiu vontade de chorar.<br />
A<br />
16.<br />
olaria era num lugar ermo. Nenhum mora<strong>do</strong>r por perto. Como<br />
estava aban<strong>do</strong>nada havia anos, não havia sequer um guardião.<br />
Era objeto de um litígio entre herdeiros, muitos <strong>do</strong>nos, nenhum <strong>do</strong>no,<br />
e o patrimônio se deteriorava. Ademais, havia o boato de que aquele<br />
lugar era mal-assombra<strong>do</strong>. O velho proprietário faleci<strong>do</strong> não conseguira<br />
deixar o local e atormentava qualquer um que se aventurasse naquelas<br />
paragens.<br />
TALAL HUSSEINI 93
Exceto algumas turmas de jovens que, anima<strong>do</strong>s pelo álcool, por vez<br />
ou outra lá iam para instigar a adrenalina, sacian<strong>do</strong> as necessidades <strong>do</strong><br />
velho fantasma, ninguém ousava passar por ali. O silêncio era perturba<strong>do</strong>r.<br />
Se caísse um simples alfinete, a reverberação da queda soaria como<br />
uma bomba.<br />
Quan<strong>do</strong> o Capitão abriu o portão, sentiu o magnetismo pesa<strong>do</strong>. Um<br />
arrepio lhe percorreu a espinha, e até os cabelos se eriçaram. Manteve o<br />
controle. Observou tu<strong>do</strong> ao seu re<strong>do</strong>r. Nenhum sinal de vida. Havia uma<br />
enorme construção, em ruínas. O Capitão gritou para ver se alguém respondia.<br />
Nada. Percorreu o lugar rapidamente, tentan<strong>do</strong> encontrar um<br />
possível cativeiro. Não, sua mulher e sua filha não estavam ali. Os sequestra<strong>do</strong>res<br />
não seriam tão imprudentes. Verificou as possíveis saídas e<br />
procurou se inteirar <strong>do</strong>s materiais deixa<strong>do</strong>s no local, canos, pedras, ferramentas,<br />
que poderiam transformar-se em armas.<br />
Prosseguiu caminhan<strong>do</strong> em campo aberto, para ver se alguém fazia<br />
contato. Finalmente parou onde podia ver a entrada e ali permaneceu, à<br />
espera. Vestia o uniforme negro da guarda real acresci<strong>do</strong> de uma espécie<br />
de capuz que não permitia ver seu rosto, salvo de muito perto.<br />
Nos basti<strong>do</strong>res desse cenário, duas sombras se moviam em silêncio.<br />
Uma delas posicionou-se dentro <strong>do</strong> prédio, atrás <strong>do</strong> Capitão. Era um<br />
arqueiro que tinha a mira fixada bem na sua nuca, bastava retesar o arco<br />
e disparar. Só aguardava o sinal. Não estava ciente da outra sombra, que<br />
flutuava em sua direção, qual um espectro. Ela não tinha peso, não emitia<br />
nenhum som. Por certo, não pertencia a este mun<strong>do</strong>.<br />
Quan<strong>do</strong> o arqueiro se deu conta, a sombra já estava sobre ele. Sentiu<br />
uma pontada nas costas que paralisou completamente seus músculos.<br />
Sem poder se mover, quase nem sentiu outra pontada, no pescoço, que o<br />
privou da existência.<br />
De repente, <strong>do</strong>is homens entraram na velha olaria, andan<strong>do</strong> rapidamente<br />
em direção ao Capitão. Este foi também na sua direção para esta-<br />
94 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
elecer contato. Mas não teve tempo de pronunciar nenhuma palavra,<br />
pois quan<strong>do</strong> já estavam bem próximos os homens sacaram espadas. A<br />
sombra que desabilitara o arqueiro havia toma<strong>do</strong> para si o arco, mas só<br />
teve tempo de disparar uma flecha, que atingiu no peito um <strong>do</strong>s homens.<br />
O outro desferiu um corte rápi<strong>do</strong> e preciso, que atingiu o Capitão no<br />
pescoço. A morte foi instantânea. Seu corpo tombou de la<strong>do</strong>, inerte.<br />
Outra seta partiu da sombra atingin<strong>do</strong> o agressor na perna, logo acima<br />
<strong>do</strong> joelho. Ele tentou fugir, mas o ferimento não permitia um deslocamento<br />
eficiente. Logo, a sombra estava sobre ele.<br />
Já desarma<strong>do</strong>, o agressor feri<strong>do</strong> fez um olhar de pavor quan<strong>do</strong> pôde<br />
ver de perto o vulto que o atingira. O Capitão…! Mas não podia ser,<br />
acabara de matá-lo..., pensava, olhan<strong>do</strong> para o corpo que jazia mais adiante.<br />
Na verdade, aquele era um amigo <strong>do</strong> Capitão que propositalmente<br />
se fizera passar por ele para evitar a emboscada. Sua morte foi lamentável.<br />
O Capitão não esperava uma ação tão rápida e direta de seus inimigos.<br />
Mas choraria a morte <strong>do</strong> companheiro de armas depois:<br />
– Onde está a minha família?<br />
– Eu não sei... – sua frase foi interrompida por um duro golpe.<br />
– Não tenho tempo a perder com mentiras inúteis! – respondeu o Capitão<br />
– você vai morrer mesmo, mas tem a possibilidade de escolher se<br />
vai ser com pouca <strong>do</strong>r ou com muita <strong>do</strong>r!<br />
– Eu recebi ordens apenas para matá-lo, não sei onde elas estão, juro!<br />
– Quem deu essas ordens? – inquiriu, amarran<strong>do</strong> os pulsos <strong>do</strong> homem<br />
em torno de uma pilastra.<br />
– Nós nunca fazemos contato direto, recebemos apenas ordens escritas,<br />
que devemos queimar em seguida...<br />
O Capitão sacou uma faca. Sem anunciar seu movimento, cortou na<br />
metade o de<strong>do</strong> indica<strong>do</strong>r da mão direita <strong>do</strong> interroga<strong>do</strong>, que soltou um<br />
grito pavoroso.<br />
TALAL HUSSEINI 95
– Estou apenas começan<strong>do</strong> com você. Se quer me fazer perder tempo,<br />
terei prazer em gastar esse tempo com você. Onde estão minha mulher e<br />
minha filha?<br />
– O senhor precisa acreditar em mim, jamais as vi.<br />
O Capitão assentiu com a cabeça, soltan<strong>do</strong> o ar <strong>do</strong>s pulmões, como<br />
quem está no limite da sua paciência. Aproximou a faca <strong>do</strong> olho <strong>do</strong> rapaz.<br />
Este assumiu uma expressão de pavor, aguardan<strong>do</strong> a próxima pergunta<br />
e já cogitan<strong>do</strong> até respondê-la. Mas a pergunta não veio. Veio a<br />
faca e arrancou seu olho da órbita. A vítima esqueceu a <strong>do</strong>r <strong>do</strong> de<strong>do</strong>.<br />
– Você pensa que eu estou brincan<strong>do</strong>, não é? Com a vida da minha<br />
família? Pois você vai gostar das brincadeiras que ainda tenho reservadas<br />
para você.<br />
– Não tenho as informações que quer! Mate-me logo!<br />
– Muito fácil. Agora você quer morrer. Quan<strong>do</strong> eu terminar, desejará<br />
nem ter nasci<strong>do</strong>.<br />
Um calafrio trespassou-lhe a espinha. Sentiu que era sério. Resolveu<br />
falar:<br />
– Senhor... Elas estão mortas!<br />
– Mentira! Mentira! Seu cão! – socou-o algumas vezes na cara.<br />
– Não tenho por que mentir. Já estou morto. A intenção nunca foi devolvê-las.<br />
O senhor foi usa<strong>do</strong> e deveria estar morto agora.<br />
– Quem?<br />
– Já disse, não sei... Não temos essa informação.<br />
O Capitão começou a bater com o fio de sua faca contra uma pedra,<br />
ao tempo em que se dirigia ao seu prisioneiro:<br />
– Você sabe por que estou fazen<strong>do</strong> isto? Porque esta é a faca que vai<br />
decapitá-lo... Não pode estar muito afiada. E vai estar cada vez menos,<br />
conforme você demore em responder o que quero. Quem?<br />
O Capitão pensava em sua filhinha enquanto começava a cumprir sua<br />
promessa. O homem resolveu falar e antes de ter sua vida e seu martírio<br />
96 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
abrevia<strong>do</strong>s pela misericórdia de seu algoz, pronunciou um quase que<br />
chia<strong>do</strong> apenas:<br />
– Ofis...<br />
Adaran e Haggi se encontraram na Real Sociedade para um duelo<br />
com espadas como sempre que possível faziam. Os últimos dias tinham<br />
si<strong>do</strong> conturba<strong>do</strong>s, com a morte <strong>do</strong> Rei e toda a tensão que precede a<br />
sucessão. Mas, finalmente, ambos haviam consegui<strong>do</strong> algum tempo em<br />
suas agendas cheias, sempre em nome de uma boa luta, e quem sabe<br />
uma conversa interessante.<br />
Começaram de forma lenta, para aquecimento, sem trocar palavra. O<br />
ritmo <strong>do</strong> combate foi aumentan<strong>do</strong> gradativamente. O som <strong>do</strong> metal com<br />
metal marcava a cadência. O combate já estava em frequência real<br />
quan<strong>do</strong> Adaran obteve um êxito, ao desferir o que seria um corte no<br />
rosto de Haggi, que apenas deu seu sorriso irônico. Adaran não resistiu:<br />
– Sinto-me bem hoje. Não lhe darei qualquer chance.<br />
Haggi fingiu ignorar a observação e concentrou-se ainda mais na luta,<br />
pois, como o seu oponente, não gostava de perder. Adaran riscou-lhe o<br />
braço com a espada. Riu de novo.<br />
– Em quem você aposta?<br />
– Você sabe que sempre aposto em mim, Adaran.<br />
– Para o reino...<br />
– Aposto no nome que está escrito na placa – respondeu Haggi, com<br />
diplomacia.<br />
O combate continuava acirra<strong>do</strong>. Adaran atingiu Haggi com outro golpe<br />
fictício, desta vez um corte horizontal no abdômen.<br />
– Aposto em mim – tripudiou Adaran.<br />
– Para o reino...?<br />
Adaran riu e não respondeu. Logrou outro golpe:<br />
TALAL HUSSEINI 97
– Para o combate é uma aposta ganha. Você me parece um pouco len-<br />
to hoje, Haggi. Algo o preocupa?<br />
– Creio que é você que está inspira<strong>do</strong>, Adaran. Algo o anima?<br />
– O futuro <strong>do</strong> reino depende <strong>do</strong> nome que está escrito na placa. Espe-<br />
ro que Sokárin tenha sabi<strong>do</strong> escolher... Mas o fato de ele ter solicita<strong>do</strong><br />
uma placa para troca no final... Não sei...<br />
– Não sabemos se ele chegou a gravar a nova placa. E ao que parece<br />
nunca saberemos. Não apareceram vestígios da placa entre os pertences<br />
<strong>do</strong> Rei. Portanto, não há como saber se foi gravada.<br />
Os <strong>do</strong>is conten<strong>do</strong>res conversavam enquanto combatiam, mas estavam<br />
mais concentra<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que nunca. Mais nenhum golpe aterrou. Adaran<br />
prosseguiu:<br />
– Soube que você vai ao interior. Alguma razão específica?<br />
– Vou a pedi<strong>do</strong> <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>r Rohel. É missão oficial solicitada na qualidade<br />
de Chefe <strong>do</strong> Conselho <strong>do</strong>s Anciãos, que é quem responde pelo<br />
Reino neste perío<strong>do</strong> de vacância.<br />
– Qual o objetivo?<br />
– Apenas estar em contato com os chefes locais e assegurar que estão<br />
tranquilos quanto à sucessão e que irão apoiá-la, seja quem for o escolhi<strong>do</strong>.<br />
Quer vir junto, Adaran? Você parece ter bastante interesse nesse<br />
assunto.<br />
– Para você não preciso fingir, Haggi, não tenho interesse em assumir<br />
o trono, pois é um desgaste muito grande. Mas sei que tenho chances e<br />
se for esse o caso, precisarei de to<strong>do</strong> apoio possível. Seria muito útil que<br />
os chefes locais estivessem fecha<strong>do</strong>s em torno <strong>do</strong> meu nome caso eu<br />
fosse o escolhi<strong>do</strong>. Uma transição segura é melhor para to<strong>do</strong>s. Os interesses<br />
deles seriam preserva<strong>do</strong>s...<br />
– Você quer dizer os privilégios...<br />
– Quem não os tem? Veja você, Haggi, você é pago pelo Esta<strong>do</strong> para<br />
viajar, comer e beber bem, estar perto das mais belas mulheres. Imagine<br />
98 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
se isso acabasse de uma hora para outra! – ao terminar a frase atingiu<br />
novamente Haggi, eram cinco contra zero, encarou-o e continuou: – um<br />
rei detém o poder, atinge sem ser atingi<strong>do</strong>. As alianças evitam conflitos.<br />
E to<strong>do</strong>s queremos evitar os conflitos, não é Haggi? – acertou-o pela<br />
sexta vez – principalmente quan<strong>do</strong> vamos perder...<br />
– De fato, vou me lembrar das suas palavras quan<strong>do</strong> estiver no interior<br />
<strong>do</strong> País. Você sabe que a diplomacia sempre traz saídas menos onerosas<br />
<strong>do</strong> que os conflitos. Qualquer rei não prescindiria <strong>do</strong>s serviços de<br />
um diplomata hábil, principalmente quan<strong>do</strong> pode perder... – ao concluir<br />
a frase, acertou o golpe fatal em Adaran, paran<strong>do</strong> a espada junto ao seu<br />
pescoço – muitos golpes fracos não são tão efetivos quanto um bem<br />
aplica<strong>do</strong>. Isso é diplomacia.<br />
Haggi baixou a espada e deu as costas para seu oponente:<br />
– Creio que basta, por hoje.<br />
Caso tivesse se volta<strong>do</strong> teria visto em Adaran um olhar ameaça<strong>do</strong>r.<br />
B<br />
17.<br />
akar passeava tranquilo na feira da praça central, que tinha lugar<br />
nos dias de saturno, como fazia todas as semanas. A feira<br />
era pitoresca: barracas amontoavam-se la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>, num caos aparente,<br />
guardan<strong>do</strong> certas regras de organização que podiam parecer muitas vezes<br />
misteriosas para um visitante, mas que faziam to<strong>do</strong> senti<strong>do</strong> para<br />
quem estava habitua<strong>do</strong> a elas.<br />
O pouco espaço que restava para o trânsito era plenamente ocupa<strong>do</strong><br />
por centenas de transeuntes que buscavam comprar algum utensílio ou<br />
simplesmente passeavam, como Bakar, olhan<strong>do</strong> o movimento de pessoas<br />
e de merca<strong>do</strong>rias.<br />
TALAL HUSSEINI 99
A compleição física de Bakar o fazia destacar-se <strong>do</strong> restante da mul-<br />
tidão, eis que seus ombros e cabeça ficavam acima <strong>do</strong> mar de cabeças<br />
que enchia as ruas <strong>do</strong>s arre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> centro da Capital. O gigante estava<br />
deti<strong>do</strong> numa das barracas que comercializava artigos de cavalaria, como<br />
selas, ferragens e outros materiais. Bakar analisava uma ferradura, cujo<br />
jogo pensava comprar para seu cavalo, quan<strong>do</strong> uma altercação a alguns<br />
metros de onde se achava chamou a sua atenção. Escutou alguns gritos<br />
de mulher e observou que cinco homens cercavam uma moça, tentan<strong>do</strong><br />
roubar sua bolsa de couro, à qual agarrou-se fortemente, a ponto de cair<br />
quan<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s assaltantes tentou puxá-la.<br />
Abriu-se uma roda de pessoas em torno da situação, mas ninguém<br />
movia uma palha para ajudar a vítima <strong>do</strong> ataque. Um <strong>do</strong>s homens preparava-se<br />
para chutar a moça caída, quan<strong>do</strong> seu gesto foi interrompi<strong>do</strong> por<br />
um soco no seu plexo que literalmente o arremessou por sobre uma barraca<br />
de frutas. O homem caiu sobre algumas abóboras, esmagan<strong>do</strong>-as e<br />
fican<strong>do</strong> coberto daquela gosma alaranjada.<br />
Bakar brandia seu enorme punho, ainda fecha<strong>do</strong>, em direção aos demais<br />
agressores, que se entreolharam compartilhan<strong>do</strong> o me<strong>do</strong>, depois de<br />
passar pelo companheiro desfaleci<strong>do</strong> entre as abóboras, e sobre um outro<br />
que parecia ser o líder, como que esperan<strong>do</strong> um ato de coragem.<br />
Coagi<strong>do</strong> moralmente, o suposto líder sacou uma faca e, sem muita convicção,<br />
arremeteu gritan<strong>do</strong> na direção de Bakar, que sem esboçar nenhuma<br />
reação no semblante, apenas desferiu um chute que imprimiu a<br />
sola da sua bota na cara <strong>do</strong> seu oponente, interrompen<strong>do</strong> o grito e o ataque.<br />
Faca para um la<strong>do</strong> e mais um agressor jazen<strong>do</strong> inerte <strong>do</strong> outro, este<br />
parecen<strong>do</strong> mais gravemente feri<strong>do</strong> que o primeiro.<br />
O sóli<strong>do</strong> cavalheiro voltou-se para os três restantes, que saíram em<br />
disparada por entre a população, ao ver que no calor da luta, sem perceber,<br />
Bakar simplesmente amassara a ferradura que ainda estava na sua<br />
mão esquerda. Os assaltantes desapareceram, sem que alguém os pudes-<br />
100 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
se seguir, pois já conheciam o ritmo da multidão. Cadenciavam sua corrida<br />
de mo<strong>do</strong> a, incrivelmente, não esbarrar em ninguém.<br />
O gigante voltou-se para a moça, que ainda estava caída, assistin<strong>do</strong><br />
àquele confronto inusita<strong>do</strong>, admirada com seu defensor inespera<strong>do</strong>:<br />
– Você está bem?<br />
– Sim, graças a você.<br />
Os olhos de Bakar brilharam. Nunca tinha visto uma mulher tão linda.<br />
Morena. Olhos ligeiramente puxa<strong>do</strong>s e brilhantes. Cílios longos. Nariz<br />
fino. Dentes perfeitos. Cabelos negros lisos e compri<strong>do</strong>s.<br />
– Você poderia...? – disse a moça, estenden<strong>do</strong> a mão para que o distraí<strong>do</strong><br />
Bakar a ajudasse a se levantar.<br />
– Claro – alçou-a como se fosse de papel.<br />
– O que você fez foi realmente impressionante... Fico agradecida.<br />
– Não precisa agradecer, qualquer um teria feito o mesmo.<br />
– Mas de todas as pessoas que estavam aqui, ninguém fez. Você é<br />
muito forte...<br />
Bakar enrubesceu. Não sabia muito bem como lidar com aquele tipo<br />
de situação, uma mulher, tão bonita... Talvez fosse a dama que ele esperava<br />
há tanto tempo...<br />
Já em pé, a moça limpou sua roupa baten<strong>do</strong> o pó com a mão. Era esguia,<br />
de porte elegante. Havia corta<strong>do</strong> o braço na queda. Bakar intercedeu:<br />
– Você está ferida. Precisamos ver esse corte.<br />
– Não é nada, apenas um arranhão.<br />
– Mesmo assim é melhor você vir comigo dar uma olhada nesse corte,<br />
minha casa não fica longe daqui – disse com inocência – só preciso<br />
pagar por esta ferradura antes.<br />
Na barraca de onde retirara a ferradura agora imprestável, o <strong>do</strong>no se<br />
recusou a receber o pagamento e disse:<br />
– Não, o senhor é um herói, não precisa pagar.<br />
TALAL HUSSEINI 101
Bakar deixou as moedas correspondentes ao valor da ferradura sobre<br />
o balcão e voltou-se para a sua protegida sob os protestos <strong>do</strong> vende<strong>do</strong>r<br />
que insistia em não receber.<br />
– Vamos?<br />
A moça o acompanhou. Ao chegar na sua casa, antes de entrar, Bakar<br />
caiu em si. Como convidava uma moça solteira, que acabara de conhecer,<br />
já para entrar na sua casa?! Estúpi<strong>do</strong>. Desculpou-se:<br />
– Puxa, me desculpe! Que falta de educação a minha convidar alguém<br />
que acabei de conhecer, uma moça, para entrar na minha casa...<br />
Acho melhor que você faça um curativo no seu braço em outro lugar.<br />
Desculpe mesmo... – Bakar parecia sinceramente constrangi<strong>do</strong>.<br />
– Não se preocupe, você não precisa se desculpar, eu sei que suas intenções<br />
são as melhores possíveis. Você me parece alguém confiável.<br />
Vamos entrar. Mas posso ao menos saber o nome <strong>do</strong> meu salva<strong>do</strong>r?<br />
– Bakar.<br />
– Combina com você. Eu me chamo Mirta.<br />
Ofis recebeu um envelope cor púrpura. Não continha nada. Ele sabia<br />
que devia dirigir-se a um local previamente designa<strong>do</strong> num horário já<br />
estabeleci<strong>do</strong>. Ofis não era homem de grandes alternâncias de humor,<br />
mas aquela mensagem velada o deixava irrequieto. No horário previsto,<br />
obedeceu.<br />
Cui<strong>do</strong>u que ninguém o visse entrar na velha casa. Entregou o envelope<br />
a <strong>do</strong>is guardas encapuza<strong>do</strong>s, que lhe franquearam a passagem. Depois<br />
de passar por entre móveis velhos e empoeira<strong>do</strong>s, Ofis abriu um<br />
alçapão oculto e desceu escadas íngremes. Numa antessala, vestiu uma<br />
túnica negra e prosseguiu até ganhar um grande salão retangular, de alto<br />
pé direito, e teto sustenta<strong>do</strong> por seis colunas três de cada la<strong>do</strong>. O chão<br />
de granito poli<strong>do</strong> formava desenhos de estranhas mandalas. Tomou posição<br />
e ali permaneceu, imóvel.<br />
102 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
Também receberam o envelope de cor púrpura outras três pessoas,<br />
que acorreram ao mesmo local, a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> o mesmo procedimento de<br />
Ofis. To<strong>do</strong>s só se encontraram no salão, já com suas túnicas e capuzes,<br />
o que indicava que os envelopes tinham uma significação de horário<br />
diferente para cada uma daquelas pessoas.<br />
Os quatro, que tinham posições preestabelecidas, voltaram-se para<br />
uma espécie de altar que ficava numa das extremidades da sala e se ajoelharam,<br />
tocan<strong>do</strong> a cabeça no chão à sua frente. Entrou uma pessoa numa<br />
túnica de cor púrpura e acendeu o fogo no altar. Derramou sobre o<br />
fogo um líqui<strong>do</strong> vermelho que estava num pequeno recipiente de vidro.<br />
Um cheiro férreo espalhou-se pelo ar. Sua voz reverberou naquele espaço:<br />
– Meus caros! Chamei-os aqui porque vocês são os meus colabora<strong>do</strong>res<br />
mais próximos. Uma grande batalha se aproxima. O reino passa por<br />
um perío<strong>do</strong> de transição e ao que tu<strong>do</strong> indica isso não acontecerá da<br />
forma tranquila que esperávamos. Sokárin fugiu ao controle nos seus<br />
últimos momentos de vida. Entretanto, isso não importa mais. A cerimônia<br />
da colocação da nova placa na estela não ocorreu, o que significa<br />
que o nome que lá está é o meu. Se a nova placa tivesse si<strong>do</strong> encontrada<br />
e destruída, as garantias seriam maiores. Como não foi, há possibilidade<br />
de já ter si<strong>do</strong> gravada e alguém a encontrar, e pretender com isso justificar<br />
uma luta pelo poder. Mas mesmo que isso venha a acontecer, não<br />
podemos abrir mão <strong>do</strong> que é nosso por direito. A lei <strong>do</strong> reino determina<br />
que a alteração somente se perfaz com a cerimônia de troca. Portanto,<br />
vale o nome que lá está agora. Lutaremos até o fim, e levaremos a morte<br />
aos nossos inimigos e a to<strong>do</strong>s aqueles que se interpuserem em nosso<br />
caminho rumo ao poder. Nosso Mestre nos determinou que estejamos<br />
atentos a uma pessoa em especial, e ao grupo que o cerca: Kadriel. Ele é<br />
um funcionário sem expressão, de segun<strong>do</strong> escalão, mas Ayamarusa<br />
deve ter suas razões para nos dar essas ordens, e não nos cabe questio-<br />
TALAL HUSSEINI 103
ná-las, e sim segui-las. Cada um já tem suas instruções com relação a<br />
isso. Podem levantar-se agora.<br />
Os quatro obedeceram.<br />
Ofis ouvia atentamente. Nenhum deles sabia quem eram os demais.<br />
Ofis desconfiava de algumas pessoas, mas não tinha certeza. Ainda não<br />
era o momento de se conhecerem. Talvez depois que estivessem assegura<strong>do</strong>s<br />
no poder.<br />
Sob o capuz da túnica púrpura, apenas se viam olhos brilhantes, metálicos,<br />
<strong>do</strong> condutor da reunião, a sugerir argúcia e determinação. Ele continuou<br />
seu discurso:<br />
– Nós que aqui estamos somos o centro de tu<strong>do</strong> o que vai acontecer<br />
neste país daqui por diante. Somos os pilares onde se sustentam milhares,<br />
milhões de alia<strong>do</strong>s. Tenho estabeleci<strong>do</strong> contatos com pessoas importantes<br />
que apoiarão nossa causa. Abaixo de nós há um exército pronto<br />
para a batalha. Acima de nós, estão forças que mal podemos<br />
compreender, mas que detêm poderes que nos levarão ao <strong>do</strong>mínio. Nossa<br />
missão imediata é encontrar a placa gravada por Sokárin antes de<br />
morrer. Mas temos de estar prepara<strong>do</strong>s para enfrentar qualquer batalha.<br />
Seus olhos brilhavam. Ele já sentia o poder próximo de suas mãos,<br />
bastava agarrá-lo.<br />
– Sei que to<strong>do</strong>s estão cientes de suas tarefas. Depois conversarei com<br />
cada um em particular para verificar o andamento <strong>do</strong>s planos e revisar<br />
os detalhes. Alguma dúvida? Que bom! As comunicações continuarão<br />
sen<strong>do</strong> efetuadas pelas cores <strong>do</strong>s envelopes e pelos sinais nos cumprimentos.<br />
Agora vão! A vitória se aproxima! – e dirigin<strong>do</strong>-se a Ofis, sem<br />
identificá-lo perante os demais: – Você, permaneça, pois tenho mais um<br />
assunto a tratar.<br />
Depois que os outros se retiraram, o homem de púrpura dirigiu-se a<br />
Ofis vociferan<strong>do</strong>:<br />
104 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
– Soube que você realizou uma ação contra o Capitão… – Ofis assen-<br />
tiu com a cabeça – Mas ele ainda caminha entre os vivos…<br />
– Meus homens falharam, senhor...<br />
– Não, não – respondeu com tranquilidade, aproximan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> seu<br />
interlocutor, que estava de cabeça baixa – VOCÊ falhou! – gritou a ple-<br />
nos pulmões.<br />
Caminhou em torno de Ofis e prosseguiu, novamente em tom calmo:<br />
– O primeiro passo para conseguir o que desejamos é assumir nossos<br />
erros. Quem lhe deu a ordem para matar o Capitão?<br />
– Ninguém, senhor, mas eu pensei…<br />
– Faça-me uma gentileza: não pense! Limite-se a cumprir as minhas<br />
ordens! Eu tenho planos para o Capitão. Ele serve melhor aos nossos<br />
propósitos vivo. Nunca mais desobedeça a uma ordem minha nem tome<br />
iniciativas que podem prejudicar to<strong>do</strong>s os nossos planos. Nesse senti<strong>do</strong><br />
foi bom você ter falha<strong>do</strong>, mas isso não justifica nem a desobediência e<br />
nem a incompetência. Você agiu por conta própria e ainda falhou. Se<br />
você não tinha pessoas habilitadas, deveria ter feito isso você mesmo.<br />
Mas essa foi sua penúltima falha... Erros não são mais aceitáveis a partir<br />
de agora. Sua próxima falha será a última... e tenho certeza de que você<br />
a cometerá! Mas agora os planos em relação ao Capitão... ele voltará<br />
para buscar a família, pois não acredita que sua mulher e sua filha estão<br />
mortas, e terá uma grande surpresa! Viverá, mas em desgraça...<br />
– Talvez seja um erro... Penso que devíamos eliminar logo o Capitão...<br />
– Daqui em diante guarde para si suas opiniões estúpidas. O Capitão<br />
fugiu ao nosso controle, é um elemento perigoso, mas morto não nos<br />
serve, será mais útil vivo, porém desacredita<strong>do</strong>. Ficará destruí<strong>do</strong>, acaba<strong>do</strong>,<br />
mas não terá a chance de aban<strong>do</strong>nar tão facilmente seu purgatório,<br />
vamos destruir a sua essência – olhou novamente para Ofis, que parece<br />
TALAL HUSSEINI 105
ter-se anima<strong>do</strong> ao lembrar sua missão e prosseguiu explican<strong>do</strong> com detalhes<br />
como ele deveria proceder dali em diante.<br />
K<br />
18.<br />
adriel ficara muito impressiona<strong>do</strong> com a experiência que Ravi<br />
lhe proporcionara. Kadriel sentia ter descoberto seu Mestre, o<br />
que o enchia com um sentimento muito bom, seu coração parecia muito<br />
grande para caber no peito, queria expandir-se, explodir de alegria.<br />
Escolheu o caminho mais longo para voltar para a sua casa, aquele<br />
que margeava o rio que cortava a Capital. Era um passeio muito bonito.<br />
Kadriel aproveitava para colocar em ordem seus pensamentos, para<br />
absorver as novas situações que se desencadeavam rapidamente ao seu<br />
re<strong>do</strong>r. Parou defronte à água corrente e permaneceu a olhá-la durante<br />
vários minutos. Colheu uma rosa e lançou-a ao rio, numa espécie de<br />
cerimônia, muito íntima, de contato direto com a natureza, como gesto<br />
de agradecimento por tu<strong>do</strong> que a vida lhe havia da<strong>do</strong> e fundamentalmente<br />
por ter encontra<strong>do</strong> um Mestre que pudesse guiá-lo nesta grande<br />
vida.<br />
Na beira <strong>do</strong> rio, com carinho, segurava a rosa e, antes de lançá-la,<br />
pensou:<br />
“Vai, rosa... Como símbolo daquilo que de melhor vive em mim, de<br />
alguma maneira toque o que de melhor vive nesse rio... E que possam os<br />
deuses saber que já não estou só. Tenho Mestre e sei que através dele<br />
to<strong>do</strong>s os Mestres vivem. Sonho em ser digno de tal honra e preten<strong>do</strong><br />
servir-lhes inexoravelmente.”<br />
Deixou a bela rosa vermelha cair ao rio e lentamente começar a deslizar<br />
em sua suave e delicada correnteza.<br />
106 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
Ajoelha<strong>do</strong>, observan<strong>do</strong> a rosa, algo estranho aconteceu: Kadriel sen-<br />
tiu que por alguns instantes tu<strong>do</strong> começou a ficar vermelho e sentia um<br />
frio estranho percorrer seu corpo. Quan<strong>do</strong> se deu conta, estava mergulha<strong>do</strong><br />
no rio e tu<strong>do</strong> se movia devagar... Tentou nadar, mas era impossível...<br />
Percebeu que ele era a rosa. Não ficou desespera<strong>do</strong>, apenas não<br />
compreendia o que estava acontecen<strong>do</strong>. Olhava ao seu re<strong>do</strong>r e via o<br />
mun<strong>do</strong> passar. Era reconfortante a maciez <strong>do</strong> rio, que o acolhia perfeitamente<br />
em sua fluidez. De repente, Kadriel viu uma luz se aproximan<strong>do</strong><br />
e pergunta:<br />
– Quem és?<br />
A luz respondeu:<br />
– Sou a consciência unifica<strong>do</strong>ra.<br />
– O que queres de mim?<br />
– Não posso pedir algo que ainda não possuis.<br />
– O que pretendes?<br />
– Que entendas...<br />
– O que queres que eu entenda?<br />
– O teu destino.<br />
– Diz-me aonde devo chegar, e irei.<br />
– Chegar não é tão importante quanto é caminhar. É a trilha que conta,<br />
é a jornada que modifica.<br />
– Mas não se descobre o mistério quan<strong>do</strong> se chega a ele? Não devemos<br />
chegar a algum lugar para chegar a esse mistério?<br />
– O mistério que se encontra no final é o mesmo mistério que se encontra<br />
no início e no meio... Para a rosa não interessa o mistério <strong>do</strong> seu<br />
destino, mas a jornada no rio.<br />
– Desculpe-me a impertinência, consciência unifica<strong>do</strong>ra, mas diz-me<br />
por quê.<br />
– A rosa se transforma no rio, e o rio na rosa, na medida em que segue<br />
sua jornada, pois a rosa que saiu de algum ponto não é a mesma de<br />
TALAL HUSSEINI 107
hoje, nem será a mesma amanhã. Quan<strong>do</strong> a rosa começou a fazer parte<br />
<strong>do</strong> rio, ele também deixou de ser o que era e a cada instante se torna um<br />
novo rio. A rosa segue o fluxo <strong>do</strong> rio, e o rio se adapta à forma da rosa,<br />
que a cada instante já não é a mesma. A jornada é evolução, e o mistério<br />
da evolução transfere-se para a rosa e para o rio a cada instante. O importante<br />
não é a rosa no rio, mas a rosa se transformar em rio.<br />
– Porque rosa e rio são um só...<br />
– Esse grande rio que vês nasceu de um pequeno córrego, que por sua<br />
vez nasceu da união de pequenas gotas, que por sua vez nasceram da<br />
força invisível da natureza. A rosa que és nasceu de um agrega<strong>do</strong> de<br />
energia, que por sua vez veio da terra, que por sua vez foi alimentada<br />
por uma força invisível. Essa força invisível faz crescer e viver os cabelos,<br />
a grama, as unhas, um feto, um vento, uma estrela. Essa força é a<br />
vida que unifica todas as coisas, que dá senti<strong>do</strong> a todas elas. Tanto rosa<br />
quanto rio compartilham da mesma força invisível da natureza: a vida.<br />
Evolução, vida e jornada são uma mesma coisa.<br />
– E como posso unir coisas que parecem tão distintas?<br />
– Através da consciência unifica<strong>do</strong>ra.<br />
Por um instante, Kadriel sentiu-se confuso, e em alguns segun<strong>do</strong>s depois<br />
abriu os olhos e viu que nunca havia saí<strong>do</strong> da posição em que estava<br />
e <strong>do</strong> ponto em que se encontrava, na beira <strong>do</strong> rio. Embora nunca tivesse<br />
saí<strong>do</strong> <strong>do</strong> lugar, já não era mais o mesmo. Talvez até tivesse saí<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> lugar de uma forma mágica... Mas isso não era importante. Teve a<br />
nítida impressão que de alguma forma conhecia aquela luz que vira no<br />
rio e que o transportara para dentro d'água, transforman<strong>do</strong>-o numa rosa.<br />
Sim, aquela luz, a consciência unifica<strong>do</strong>ra, sempre estivera dentro dele...<br />
O caminho de volta à cidade transcorreu tranquilamente, sem qualquer<br />
incidente. Kadriel sentia-se leve. Mais <strong>do</strong> que isso: sentia-se outra<br />
108 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
pessoa, como se tivesse morri<strong>do</strong> e nasci<strong>do</strong> de novo. De certa forma, era<br />
isto que tinha aconteci<strong>do</strong>: Kadriel tivera um nascimento espiritual.<br />
As paisagens lhe pareciam mais belas, as cores mais nítidas, o ar mais<br />
puro, sentia-o encher seus pulmões. Sentia o oxigênio espalhar-se por<br />
todas as células <strong>do</strong> seu corpo, através da corrente sanguínea. Nunca se<br />
sentira tão bem.<br />
Kadriel chegou a pensar que estranharia o ambiente urbano depois <strong>do</strong><br />
tempo que passou em meio à natureza, como no seu sonho com Mulil e<br />
o falcão, mas para sua surpresa, ao contrário, sentia-se prepara<strong>do</strong> para<br />
qualquer situação, para qualquer desafio.<br />
Agora, já via Ravi de mo<strong>do</strong> muito diferente <strong>do</strong> que quan<strong>do</strong> o conhecera.<br />
Enxergava toda a energia que ele emanava. Essa energia o fazia<br />
parecer mais alto e mais forte <strong>do</strong> que ele era fisicamente. Seus olhos<br />
percorriam constantemente to<strong>do</strong> o ambiente em que se encontrava, envian<strong>do</strong><br />
a seu cérebro com rapidez um relatório completo e detalha<strong>do</strong> de<br />
tu<strong>do</strong>: os objetos e a sua disposição, as pessoas presentes, seus problemas,<br />
preocupações, interesses. As emoções e pensamentos pairan<strong>do</strong> à<br />
volta. Não que tu<strong>do</strong> isso o afetasse, ao contrário, estar consciente <strong>do</strong> que<br />
ocorria ao seu re<strong>do</strong>r lhe permitia estar mais centra<strong>do</strong>. Suas emoções<br />
também pareciam sempre sob o mais perfeito controle, mas isso não o<br />
tornava frio, ao revés, era bastante caloroso e sempre pronto a ajudar a<br />
quem quer que fosse. Mas o que mais impressionava Kadriel era a mente<br />
de Ravi. Ele sabia tantas coisas, que parecia impossível para um ser<br />
humano aprendê-las todas em uma única vida, ainda que passasse o<br />
tempo to<strong>do</strong> a estudar.<br />
A mente de Kadriel trabalhava sem cessar. Ele tinha dificuldade em<br />
compreender a separação entre os homens, separação esta que afastava a<br />
possibilidade de a humanidade retomar a trilha divina, o caminho da<br />
hierarquia branca. Precisava ser restaurada a união mágica, liberan<strong>do</strong><br />
uma energia tal que mudasse os rumos da humanidade como era então<br />
TALAL HUSSEINI 109
conhecida, permitin<strong>do</strong> que a verdadeira sabe<strong>do</strong>ria voltasse a ser transmitida<br />
aos homens, liga<strong>do</strong>s ao raio de luz divina, que ilumina desde o menor<br />
<strong>do</strong>s seres até chegar ao Sol fulgurante e sublime <strong>do</strong> Deus único e<br />
infinito.<br />
Kadriel assustava-se com seus próprios pensamentos e com a grandeza<br />
dessas ideias, que ao mesmo tempo eram muito belas. Mas por que<br />
alguém quereria impedir essa evolução? Por que há na terra seres que<br />
não desejam a evolução da humanidade, mas sim seu afastamento cada<br />
vez maior <strong>do</strong> que é espiritual e divino, o que a levará à inafastável destruição.<br />
Não importavam os porquês, mas sim o fato de que há tais seres, que<br />
pretendem corromper a ordem <strong>do</strong> universo, rompen<strong>do</strong> o fio que une a<br />
humanidade à sua verdadeira essência divina, deixan<strong>do</strong> não mais <strong>do</strong> que<br />
cascas vazias...<br />
Sim, ele lutaria até o último fio de suas forças para que isso não acontecesse,<br />
para que essas forças obscuras não triunfassem sobre o que é<br />
bom, belo e justo...<br />
O<br />
19.<br />
fis deixou o palácio no mesmo horário de to<strong>do</strong>s os dias. Permanecia<br />
realizan<strong>do</strong> suas funções – que ninguém sabia dizer ao<br />
certo quais eram – junto ao Primeiro Ministro. Este o tratava como a um<br />
emprega<strong>do</strong> qualquer, não denotan<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> algum que pudessem ter<br />
outras ligações que não as estritamente ligadas ao ministério. Como<br />
sempre, ia a pé. Seguia um caminho que atravessava certas ruelas obscuras<br />
da cidade, nas quais poucas pessoas de bem ousariam passar,<br />
mesmo durante o dia.<br />
110 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
Quan<strong>do</strong> passava por um beco, pressentiu um ataque vin<strong>do</strong> de um can-<br />
to escuro. Teve tempo apenas de se esquivar parcialmente. A adaga veio<br />
ao seu encontro num forte golpe desferi<strong>do</strong> de cima para baixo. Seu antebraço<br />
foi feri<strong>do</strong>, mas seu peito, que era o alvo, foi poupa<strong>do</strong>. Recuou,<br />
procuran<strong>do</strong> divisar seu adversário, que seguiu atacan<strong>do</strong>. Desta vez, Ofis<br />
teve mais sucesso e conseguiu, sem ser atingi<strong>do</strong>, fazer com que seu<br />
oponente largasse a arma.<br />
Mas o embate prosseguiu. O homem de preto – pela força <strong>do</strong>s golpes,<br />
sem dúvida era um homem – arrojou-se novamente contra Ofis, que não<br />
foi rápi<strong>do</strong> o suficiente para impedir que um soco lhe atingisse a boca.<br />
Sentiu seu lábio inferior latejar. Era um golpe duro. Sentiu sua consciência<br />
desvanecer por uma fração de segun<strong>do</strong>. Qualquer outro teria caí<strong>do</strong>.<br />
Reagiu, logran<strong>do</strong> derrubar seu oponente, que rapidamente colocouse<br />
em pé mais uma vez.<br />
Quan<strong>do</strong> Ofis finalmente pôde ver seu rosto, tornou-se irônico:<br />
– Capitão?! Por que não estou surpreso?<br />
– Onde está minha família, seu canalha? Elas estão vivas?<br />
– Eu não sei <strong>do</strong> que você está falan<strong>do</strong>... – sorriu, cínico.<br />
– Eu matei os homens que você enviou para me emboscar. Um deles,<br />
antes de morrer, disse seu nome. Sei que você é responsável pelo desaparecimento<br />
de minha mulher e minha filha e imagino que está por trás<br />
também da morte <strong>do</strong> Rei. Tenho provas de que não foi uma morte natural...<br />
Um traço de sombra passou pelos olhos de Ofis ao ouvir essa frase,<br />
mas respondeu com sarcasmo:<br />
– Ninguém acreditará nessa sua absurda teoria da conspiração. Sua<br />
voz será um eco solitário. Você não tem prova alguma de nada, e ainda<br />
que tivesse facilmente seria desmentida.<br />
– É o que veremos! – ao mesmo tempo em que terminava a frase, já<br />
havia agarra<strong>do</strong> Ofis novamente – Você vai me dizer onde elas estão.<br />
TALAL HUSSEINI 111
Ofis desvencilhou-se <strong>do</strong> Capitão e o atingiu com um violento soco na<br />
ponta <strong>do</strong> queixo. O Capitão cambaleou quan<strong>do</strong> outros <strong>do</strong>is golpes bem<br />
ajusta<strong>do</strong>s o levaram ao chão. Conseguiu, mesmo grogue, aparar um chute<br />
que vinha em direção ao seu rosto. Derrubou seu oponente e lançouse<br />
sobre ele. Mesmo combali<strong>do</strong>, ainda conseguia manter um fio de<br />
consciência de seus movimentos, fruto de muitos anos de treinamento.<br />
Atingiu Ofis com alguns socos, mas este não parecia acusá-los, parecia<br />
feito de madeira. O Capitão, ao contrário, já se ressentia das pancadas.<br />
Mas o coração o mantinha no combate.<br />
A mão dura de Ofis o atingiu no fíga<strong>do</strong>. O Capitão <strong>do</strong>brou-se. O segun<strong>do</strong><br />
golpe veio agu<strong>do</strong> direto no seu baço. Parecia ter si<strong>do</strong> com a ponta<br />
<strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s. Sua visão embaçou. Uma testada em seu nariz terminou de<br />
escurecê-la. Somente o ódio e a adrenalina o mantinham acorda<strong>do</strong>. Não<br />
caiu porque uma tenaz o agarrou pelo pescoço, pressionan<strong>do</strong> sua traqueia.<br />
Ofis o segurava forte. Aproximou seus lábios <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong> <strong>do</strong> Capitão<br />
e sussurrou:<br />
– Você quer saber como elas morreram?<br />
O Capitão tentou desvencilhar-se em vão. Também não conseguia falar<br />
pois sua respiração era obstruída pelos de<strong>do</strong>s firmes de Ofis. Apenas<br />
fazia debater-se. Seu algoz continuava:<br />
– Primeiro foi sua mulher... A menina assistin<strong>do</strong>. Depois a criança...<br />
Não vou perder mais tempo com você. Sua alma me pertence. Você é<br />
um morto-vivo. Extraímos qualquer coisa que você pudesse ter de bom<br />
em seu coração. Tente viver sem esperança, vagan<strong>do</strong> pelo mun<strong>do</strong>, perdi<strong>do</strong>...<br />
Elas estão esperan<strong>do</strong> por você em casa!<br />
Ao terminar a frase desferiu outro soco no fíga<strong>do</strong> <strong>do</strong> Capitão, soltan<strong>do</strong><br />
ao mesmo tempo seu pescoço. Este caiu sobre as próprias pernas.<br />
Um último chute ainda lhe extraiu alguns dentes. Pensou ter ouvi<strong>do</strong> Ofis<br />
rir enquanto virava as costas. O Capitão estava caí<strong>do</strong> de cara na terra<br />
vermelha.<br />
112 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
O curioso era que aquelas últimas palavras de Ofis ao contrário de o<br />
devastar, reacenderam suas expectativas de encontrá-las. Sim, elas o<br />
estavam esperan<strong>do</strong> em casa... O Capitão sorriu por trás <strong>do</strong> semblante<br />
desfigura<strong>do</strong>. Precisava reunir suas últimas forças... Queria ver sua esposa<br />
e filha... Saudade... Levantou-se e arrojou-se sobre Ofis, derruban<strong>do</strong>-o.<br />
A luta recrudesceu. O Capitão, que parecia bati<strong>do</strong>, recuperou-se acertan<strong>do</strong><br />
alguns golpes sobre o outro. Ofis parecia ter finalmente se cansa<strong>do</strong><br />
e esmorecia, já não opunha tanta resistência. O Capitão sentia que a<br />
situação virava a seu favor. Quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>minava o combate, Ofis conseguiu<br />
espetá-lo com algo pontiagu<strong>do</strong>. Não era um ferimento grave, mas<br />
sua vista ficou um tanto embaçada, seu corpo mais mole, seus pensamentos<br />
confusos. Ofis tratou de fugir.<br />
O Capitão o perseguiu pelas ruas, mas somente lograva enxergar o suficiente<br />
para ver sua silhueta, e se movimentar o suficiente para segui-lo<br />
de longe. Viu, à distância, Ofis entrar numa casa. Alguns minutos depois<br />
chegou à porta e entrou atabalhoadamente. Somente então percebeu<br />
que era a sua própria casa. Sua esposa estava sentada no chão, coberta<br />
de sangue, com as costas apoiadas sobre a parede. Tinha vários cortes<br />
sobre to<strong>do</strong> o tórax, e uma grande faca enterrada no peito sobre o coração.<br />
O Capitão jogou-se de joelhos ao seu la<strong>do</strong> e num impulso reflexo<br />
retirou a faca, largan<strong>do</strong>-a ao la<strong>do</strong>. Tentava, em atitude desesperada fechar<br />
com as mãos os ferimentos que sangravam sem parar, principalmente<br />
aquele de onde retirara a faca. A pobre mulher ainda estava viva,<br />
mas apenas por alguns segun<strong>do</strong>s... eram as últimas convulsões. Nada<br />
falou, mas ainda pôde voltar seus olhos para o mari<strong>do</strong> e em seguida dirigi-los<br />
para o outro canto da sala.<br />
Lá estava a sua filha, caída no chão. O Capitão, com a mente obnubilada<br />
pela substância que a picada certamente lhe injetara, com as emoções<br />
absolutamente fora de controle pela situação que o envolvia, apa-<br />
TALAL HUSSEINI 113
nhou-a nos braços, encostan<strong>do</strong> o ouvi<strong>do</strong> em seu peito. Ela fora vítima da<br />
mesma arma que sua mãe, mas ainda vivia. Era apenas um sopro de<br />
vida. Seus olhos de criança, mareja<strong>do</strong>s, olhavam com ternura para o pai,<br />
como que mais a procurar tranquilizá-lo <strong>do</strong> que a pedir auxílio. Na sua<br />
percepção de infante, sabia que não havia mais auxílio possível. Conseguiu<br />
sorrir, fechou os olhos e expirou...<br />
O pai a abraçava, inerte, contra o peito e soluçava, choran<strong>do</strong> copiosamente.<br />
Foi quan<strong>do</strong> ouviu os chama<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora, avisan<strong>do</strong><br />
que a casa estava cercada e que iriam entrar. O Capitão ainda estava<br />
confuso. Foi até a janela e verificou que não era um blefe. Muitos solda<strong>do</strong>s<br />
de infantaria e arqueiros estavam de prontidão. O Capitão sabia<br />
que seria suspeito, caíra estupidamente numa armadilha. E sua família<br />
fora vítima desse pesadelo cruel. E elas não estavam mais com ele... As<br />
lágrimas verteram novamente, mas ele as reteve. Precisava se controlar,<br />
pensar em como contornar aquela situação. Só havia uma maneira: fugir...<br />
Se fosse preso, não teria como provar sua inocência. Por que não o<br />
haviam mata<strong>do</strong>?<br />
O oficial responsável pelo cerco o reconhecera de sua aparição na janela<br />
e gritou:<br />
– Capitão! Sabemos que o senhor está aí dentro. Houve um chama<strong>do</strong><br />
da vizinhança devi<strong>do</strong> ao grande barulho proveniente de sua casa. Está<br />
tu<strong>do</strong> bem? Foi relatada situação de violência.<br />
Sim, precisava escapar, pensariam que ele era o responsável pelas<br />
mortes.<br />
O Capitão sempre fora precavi<strong>do</strong>, como exigia a sua profissão. Sua<br />
casa possuía uma saída subterrânea que ele mesmo escavara até uma rua<br />
paralela. A entrada ficava atrás de um armário no porão. Foi até lá e<br />
evadiu-se, <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> que lhe permitiam as <strong>do</strong>res <strong>do</strong> corpo e da alma.<br />
114 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
Quan<strong>do</strong> os solda<strong>do</strong>s adentraram à casa, ele já estava fora de alcance.<br />
To<strong>do</strong>s ficaram horroriza<strong>do</strong>s com a chacina. O Capitão enlouquecera... e<br />
assassinara sua família. A notícia correu rápi<strong>do</strong>. Em poucas horas, era o<br />
homem mais procura<strong>do</strong> da Cidade. O Conselho <strong>do</strong>s Anciãos, ao qual<br />
cabiam as responsabilidades <strong>do</strong> reino até a abertura da sucessão, declarou<br />
imediatamente sua exoneração da Guarda Real. De solda<strong>do</strong> real, o<br />
Capitão passava a foragi<strong>do</strong> da justiça.<br />
K<br />
20.<br />
adriel foi almoçar com Haggi. Sabia da viagem que este faria<br />
ao interior <strong>do</strong> País e não queria deixar de lhe desejar boa sorte.<br />
Haggi ficara muito tempo fora, mas Kadriel o considerava um bom amigo<br />
e excelente cavalheiro. O encontro foi numa discreta tasca no bairro<br />
antigo da Capital. Esse local consistia num emaranha<strong>do</strong> de ruelas e<br />
becos que formavam um labirinto impossível de decifrar para quem não<br />
o conhecesse. Mas os <strong>do</strong>is jovens se haviam praticamente cria<strong>do</strong> naquele<br />
local. Guiavam-se ali melhor <strong>do</strong> que a grande maioria das pessoas.<br />
O local a que se dirigiram ficava numa dessas ruas. A entrada era<br />
abaixo <strong>do</strong> nível da rua – era necessário descer uns quatro degraus para<br />
ganhar o interior. O proprietário era um velho conheci<strong>do</strong> <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is, chama<strong>do</strong><br />
Ragatis. Era um tipo rosa<strong>do</strong>, possui<strong>do</strong>r de uma enorme barriga,<br />
cultivada à base de muito vinho e muita comida. Desde que conheciam<br />
aquele local, o que fazia muitos anos, aparentava ter a mesma idade.<br />
Sempre usava um avental surra<strong>do</strong> e camisa de mangas curtas, não importava<br />
o quão rigoroso fosse o inverno. Careca, com grandes orelhas,<br />
nariz de batata, olhos pequenos e perspicazes, sorriso franco e mãos<br />
gordas, quan<strong>do</strong> viu Kadriel chegar, deu apenas um sorriso e indicou<br />
TALAL HUSSEINI 115
com um rápi<strong>do</strong> movimento de olhos a mesa em que Haggi o esperava.<br />
Quan<strong>do</strong> Kadriel sentou-se, o taverneiro perguntou-lhes:<br />
– O de sempre?<br />
Diante <strong>do</strong> assentimento, trouxe uma jarra de vinho da casa e um prato<br />
de petiscos.<br />
– E, então, meu amigo, soube que está de viagem marcada para o in-<br />
terior?<br />
– Sim, o Chefe <strong>do</strong> Conselho <strong>do</strong>s Anciãos me envia para assegurar a<br />
colaboração das lideranças regionais para com o sucessor. O equilíbrio<br />
consegui<strong>do</strong> pelo Impera<strong>do</strong>r Gur Medhavin deve ser manti<strong>do</strong>.<br />
– Concor<strong>do</strong> que isso seria muito bom, mas tenho minhas dúvidas<br />
quanto à tranquilidade desta sucessão – lançou Kadriel.<br />
– Sim, também percebo certas tensões no ar.<br />
– O que pensa o Primeiro-Ministro?<br />
– Adaran é um homem difícil de decifrar...<br />
– Mas vocês são companheiros de espada na Real Sociedade... E para<br />
um homem observa<strong>do</strong>r como você não deve ser difícil detectar suas<br />
intenções.<br />
– Adaran sabe perseguir seus objetivos, é tenaz e determina<strong>do</strong> para<br />
conseguir o que quer.<br />
– Ele quer o reino?<br />
– Por mais que seu discurso seja desinteressa<strong>do</strong>, creio que ele não<br />
desgostaria de assumir o trono, já que gosta <strong>do</strong> poder. Diria que ele pensa<br />
nessa possibilidade, e não hesitaria em comprar os apoios necessários<br />
para isso com privilégios, mor<strong>do</strong>mias e presentes. Os chefes <strong>do</strong> interior<br />
são terreno propício para esse tipo de ação, pois querem manter seus<br />
<strong>do</strong>mínios a qualquer preço.<br />
– E se a sucessão não transcorresse de forma pacífica?<br />
– O que poderia suceder? O nome de sucessor está na placa e ponto<br />
final, não há o que discutir.<br />
116 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
– To<strong>do</strong>s sabem que Sokárin solicitou uma nova placa, o que indica<br />
que pretendia trocar o nome <strong>do</strong> sucessor.<br />
– Mas não trocou, não houve cerimônia de substituição da placa...<br />
– Em contrapartida, a nova placa não foi encontrada, o que significa<br />
que poderia já estar gravada. Isso indicaria que o nome que lá está não<br />
reflete a vontade de Sokárin. A troca, a cerimônia, é apenas uma formalidade.<br />
– Kadriel, nós nos conhecemos há muito tempo. Você está queren<strong>do</strong><br />
me dizer alguma coisa?<br />
– Sim, Haggi, na verdade estou. Mas isso não pode sair desta mesa...<br />
O outro concor<strong>do</strong>u com a cabeça.<br />
– O nome que estaria ou que está na nova placa é o meu.<br />
Haggi não conseguiu esconder sua surpresa. Os <strong>do</strong>is amigos se olharam,<br />
em silêncio, por alguns momentos. Kadriel esperou que Haggi falasse:<br />
– Como você pode saber disso?<br />
– O próprio Sokárin me falou, antes de morrer. Disse-lhe que não estava<br />
prepara<strong>do</strong> para tal encargo, mas ele me pediu que aceitasse pois<br />
sabia melhor <strong>do</strong> que eu quem estava ou não prepara<strong>do</strong>...<br />
– Mas por que ele não trocou a placa?<br />
– Ao que parece, não teve tempo. Ou a idade o traiu ou sua morte foi<br />
antecipada... Não duvi<strong>do</strong> disso.<br />
– Mas, quem...?<br />
– Muitas pessoas poderiam ter interesse em abreviar a vida <strong>do</strong> Rei,<br />
mas o maior suspeito está com seu nome grava<strong>do</strong> na placa atual... Só<br />
saberemos no dia da abertura.<br />
– Sempre intuí que você seria um grande governante um dia, só não<br />
imaginei que pudesse ser tão ce<strong>do</strong>. Você é jovem, haveria muitas resistências...<br />
Mas de qualquer mo<strong>do</strong> parece que isso não importa mais, a lei<br />
estabelece que vale o nome da estela.<br />
TALAL HUSSEINI 117
– Mas nós sabemos que esse não é o nome que Sokárin desejava. E<br />
ao menos uma pessoa neste mun<strong>do</strong> sabe que sua vontade era que eu<br />
assumisse o governo, mesmo contra a minha vontade: eu.<br />
– Confesso que agora seu tom de voz deixou-me preocupa<strong>do</strong>,<br />
Kadriel. Você não pensa em questionar o sucessor?<br />
O silêncio de Kadriel foi bastante eloquente. Haggi passou a mão es-<br />
querda sobre o olho, descen<strong>do</strong> até o queixo e soltan<strong>do</strong> a respiração, num<br />
gesto que lhe era peculiar em momentos de grande preocupação. Conhecia<br />
o amigo e sabia que ele falava sério. Fazen<strong>do</strong> um sinal positivo<br />
com a cabeça, como se tivesse entendi<strong>do</strong>, e, franzin<strong>do</strong> o cenho, prosseguiu:<br />
– E o que pretende fazer?<br />
– Primeiramente, encontrar a placa que estava em poder de Sokárin.<br />
Ele mesmo me disse que eu deveria lutar se fosse preciso. A placa com<br />
meu nome justificaria de alguma maneira essa luta. Ainda que não perante<br />
a lei, mas ao menos perante o povo. Tenho a convicção de que<br />
Sokárin a gravou, caso contrário não a teria escondi<strong>do</strong>.<br />
– Na sua linha de raciocínio, o que garante que as mesmas pessoas<br />
que assassinaram o Rei não teriam destruí<strong>do</strong> a placa?<br />
– Garantir...? Nada. Mas a justiça não tem garantias entre os homens.<br />
Não passa de um ridículo arreme<strong>do</strong> da justiça <strong>do</strong>s deuses. Mas isso não<br />
nos afasta <strong>do</strong> dever de buscá-la... – e mudan<strong>do</strong> de direção a conversa,<br />
emen<strong>do</strong>u: – preciso saber de uma coisa, Haggi.<br />
O diplomata permaneceu a fitá-lo com olhar inquisi<strong>do</strong>r. Kadriel prosseguiu:<br />
– Se você está comigo nesta jornada, até o fim, custe o que custar.<br />
Haggi não hesitou nenhum instante em responder, sustentan<strong>do</strong> com<br />
firmeza o olhar forte de Kadriel:<br />
– Sim, meu amigo, pode contar comigo. Até o fim. Custe o que custar.<br />
118 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
Os <strong>do</strong>is se cumprimentaram de mo<strong>do</strong> fraterno e deixaram o local se-<br />
paradamente.<br />
Bakar não via a hora de seu encontro com Mirta. Estava encanta<strong>do</strong><br />
desde o primeiro, e até então único, encontro. Sonhara com ela nas três<br />
noites que se haviam passa<strong>do</strong> desde então. Avistou-a no local onde haviam<br />
combina<strong>do</strong>. Estava linda! Cabelos soltos sobre os ombros, pele<br />
lisa. Bakar foi em sua direção. Apesar <strong>do</strong> tamanho, ele não era desajeita<strong>do</strong>.<br />
Mas desta vez a emoção o fazia parecer um rinoceronte solto num<br />
parque. Só não derrubou pessoas pelo caminho porque, qual fosse um<br />
rinoceronte de verdade, to<strong>do</strong>s se afastavam à medida que ele se aproximava.<br />
Finalmente chegou perto de Mirta, que sorria discretamente e o recebeu<br />
com afeto:<br />
– Como você está elegante, Bakar! Não quer se sentar um pouco?<br />
Ruboriza<strong>do</strong> com o inespera<strong>do</strong> elogio, sentou-se. Mirta continuou:<br />
– Um chá?<br />
– Sim, claro.<br />
– Onde você trabalha, Bakar?<br />
– No ministério, com meu amigo Kadriel. Você precisa conhecê-lo, é<br />
muito boa pessoa. Aliás, vou encontrá-lo daqui a pouco, se quiser vir<br />
comigo...<br />
– Claro, eu a<strong>do</strong>raria passar mais tempo com você...<br />
Após o chá, os <strong>do</strong>is caminharam pelo parque, em direção ao escritório<br />
<strong>do</strong> ministério, onde encontrariam Kadriel. Lá chegan<strong>do</strong>, foram até a sala<br />
em que Bakar trabalhava. Bakar fez festa com seu amigo – na verdade,<br />
queria mostrar sua nova amiga:<br />
– Olá Kadriel, quero lhe apresentar uma pessoa.<br />
TALAL HUSSEINI 119
Kadriel voltou-se. Ao vislumbrar a bela morena, teve de disfarçar sua<br />
surpresa ao ver tão formosa dama em companhia de Bakar. Não que ele<br />
não merecesse, mas não era comum vê-lo acompanha<strong>do</strong>, devi<strong>do</strong> à sua<br />
timidez. A moça foi discreta. Kadriel não pôde deixar de reparar nos<br />
seus olhos negros. Sua primeira impressão foi de que havia bondade<br />
naquele olhar. A moça era realmente muito bonita.<br />
Bakar se entreteve com algumas pessoas que o chamaram, deixan<strong>do</strong><br />
Mirta a sós com Kadriel, que notan<strong>do</strong> seu desconforto procurou deixá-la<br />
à vontade:<br />
– Você quer beber alguma coisa?<br />
– Não, obrigada, acabamos de tomar um chá.<br />
– Sim, claro... – e tentan<strong>do</strong> manter a conversa – faz tempo que você<br />
conhece Bakar?<br />
– Para dizer a verdade, acabamos de nos conhecer, em circunstâncias<br />
engraçadas... – ela interrompeu a frase, como se não quisesse perder o<br />
tempo de seu interlocutor com assuntos pessoais.<br />
– Sim, continue... você ia dizen<strong>do</strong> como o conheceu.<br />
– Não... deixe que ele lhe conte...<br />
– Mas vocês <strong>do</strong>is estão...? – fez uma expressão facial, como queren<strong>do</strong><br />
que ela completasse a frase, mas Mirta se manteve em silêncio. Então<br />
ele insistiu: – você sabe...<br />
– Se você quiser saber alguma coisa, basta perguntar.<br />
– Vocês estão namoran<strong>do</strong>?<br />
Ela deu uma gargalhada, mas não com desdém. Ao contrário, com extrema<br />
espontaneidade:<br />
– Não. Acabamos de nos conhecer. Tivemos uma simpatia mútua e<br />
imediata, só isso... Acho Bakar bon<strong>do</strong>so e engraça<strong>do</strong>, mas preten<strong>do</strong> ser<br />
apenas sua amiga.<br />
Kadriel teve uma sensação estranha diante daquelas palavras. Conhecia<br />
seu amigo e já notara que ele estava completamente apaixona<strong>do</strong> pela<br />
120 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
moça. Ela não parecia ter os mesmos sentimentos em relação a ele, o<br />
que podia não ser muito bom. Mas algo dentro de Kadriel gostara daquelas<br />
palavras. Ela era realmente muito bonita...<br />
H<br />
21.<br />
aggi partira ce<strong>do</strong>, junto com Tarin, seu emprega<strong>do</strong> e braço<br />
direito. Tarin cuidara de seu pai e agora cuidava de Haggi.<br />
Não lhe deixava faltar nada. Antecipava suas necessidades, trazen<strong>do</strong> as<br />
soluções antes que Haggi sequer pensasse que tinha um desejo. Era um<br />
homem de certa idade, apesar de parecer bem mais jovem <strong>do</strong> que realmente<br />
era. Pele parda, sem nenhuma ruga, cabelos grisalhos, olhar discreto,<br />
mas profun<strong>do</strong>, o que só um observa<strong>do</strong>r mais atento poderia ver. Já<br />
havia providencia<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que seria necessário para a viagem por terra.<br />
Os barcos não agradavam a Haggi, que preferia a possibilidade de durante<br />
o trajeto encontrar-se com pessoas <strong>do</strong> povo, cujas palavras traçavam<br />
o mais fiel retrato <strong>do</strong> país e <strong>do</strong>s anseios da população.<br />
Viajavam a cavalo, mas com vestimentas comuns, que não denotavam<br />
a origem nobre de Haggi. Não era vantajoso chamar muito a atenção<br />
naquelas estradas. A meio caminho da cidade que ficava sob o <strong>do</strong>mínio<br />
de Nakan, líder da Aliança <strong>do</strong>s Doze, pararam numa estalagem,<br />
pois já se fazia noite. Depois de instala<strong>do</strong>s, foram até a taverna que funcionava<br />
no mesmo local. Estava lotada. Muitas pessoas bebiam, conversavam<br />
em voz alta e gargalhavam. Discretamente, se instalaram numa<br />
mesa no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> salão, de costas para a parede e de frente para a porta<br />
de entrada.<br />
Daquela posição, Haggi observava to<strong>do</strong> o ambiente. Rapidamente havia<br />
conta<strong>do</strong> quantas pessoas havia, e sua disposição nas mesas, quais<br />
TALAL HUSSEINI 121
estavam já altera<strong>do</strong>s pelo vinho, quais poderiam ser perigosos, e todas<br />
as informações que lhe pudessem ser úteis. Tal habilidade, que era para<br />
ele um hábito, fora fruto de muito treinamento. Haggi observava o estalajadeiro,<br />
um homem de meia idade que não estava beben<strong>do</strong> álcool e<br />
que, como ele, perscrutava a tu<strong>do</strong> e a to<strong>do</strong>s. O homem estava sua<strong>do</strong> e<br />
com aspecto cansa<strong>do</strong>, por estar procuran<strong>do</strong> atender a to<strong>do</strong>s, mas feliz<br />
por ver seus lucros in<strong>do</strong> de vento em popa. Haggi tomava sossega<strong>do</strong><br />
uma sopa acompanhada de vinho e percebeu a entrada de três homens<br />
de feição sisuda. Imediatamente sabia que causariam algum tipo de problema.<br />
Reparou que o estalajadeiro também notou a presença <strong>do</strong>s homens.<br />
Ambos, entretanto, permaneceram impassíveis.<br />
Haggi, automaticamente, avaliou que objetos naquele local poderiam<br />
transformar-se em armas, para uma eventualidade. Eram, sem dúvida,<br />
caça<strong>do</strong>res, pois portavam arcos e aljavas, bem como traziam os ombros<br />
guarneci<strong>do</strong>s por peles de animais abati<strong>do</strong>s. Foram em direção a uma das<br />
mesas, onde estava senta<strong>do</strong> um jovem corpulento, que Haggi identificou<br />
como sen<strong>do</strong> um ferreiro ou algo <strong>do</strong> gênero, pelas roupas e tipo físico.<br />
Usava uma camisa sem mangas, nos pulsos largos braceletes de couro.<br />
Os braços queima<strong>do</strong>s denotavam exposição constante ao calor. Do la<strong>do</strong><br />
esquer<strong>do</strong> da cinta, levava uma adaga rústica, que os homens que chegaram<br />
não viam, eis que a mesa a ocultava.<br />
As deduções <strong>do</strong> diplomata foram confirmadas quan<strong>do</strong> aquele que parecia<br />
ser o líder <strong>do</strong>s caça<strong>do</strong>res jogou sobre a mesa uma dessas armadilhas<br />
de caça que consistem numa boca dentada, de ferro, que é forçada a<br />
ficar na posição aberta e quan<strong>do</strong> aciona<strong>do</strong> um dispositivo de molas no<br />
seu centro, geralmente pela pisada <strong>do</strong> animal – a armadilha está escondida<br />
sob folhas – se fecha fortemente sobre a presa, prenden<strong>do</strong>-a pela<br />
pata, que imediatamente se quebra com o impacto. A presa não morre e<br />
nem tem sua pele danificada, o que é bom para a venda.<br />
122 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
– Este conserto que você fez está uma porcaria! A mola não tem pres-<br />
são, os animais escapam.<br />
O ferreiro permaneceu impassível, limitan<strong>do</strong>-se a analisar o objeto<br />
com os olhos, que em seguida se voltaram novamente para a sua comida:<br />
– Eu não consertei essa armadilha – respondeu secamente.<br />
– Como não consertou? Você trocou o sistema de molas há duas semanas<br />
e já não está funcionan<strong>do</strong>.<br />
– Já disse que, se isso foi conserta<strong>do</strong> por alguém, não foi por mim.<br />
– Você está me chaman<strong>do</strong> de mentiroso?!<br />
A essa altura, to<strong>do</strong>s já haviam percebi<strong>do</strong> a altercação e voltavam suas<br />
atenções para aquela mesa. Muitos se levantaram. O ferreiro respondeu<br />
com tranquilidade:<br />
– Estou dizen<strong>do</strong> que jamais coloquei minhas mãos nessa peça. Se você<br />
é ou não mentiroso não posso afirmar pois não o conheço bem. Suas<br />
amigas aí atrás é que poderiam responder melhor... – ao proferir essa<br />
ofensa já se levantou, aproximan<strong>do</strong> a mão da faca, esperan<strong>do</strong> uma reação<br />
mais dura.<br />
Foi o que um <strong>do</strong>s acompanhantes <strong>do</strong> caça<strong>do</strong>r pretendeu fazer, mas este<br />
o conteve.<br />
– Não queremos problemas, apenas quero que seja realiza<strong>do</strong> o serviço<br />
pelo qual paguei.<br />
– De fato você me pagou pelo conserto de uma armadilha, mas não<br />
foi esta. Veja: este sistema de molas não é o que eu utilizo, inclusive<br />
nem se utiliza nesta região.<br />
– Penso que não estou sen<strong>do</strong> bem claro. Se você não quiser consertar<br />
esta armadilha vai terminar com o seu pescoço no meio dela.<br />
– Vai ser preciso bem mais <strong>do</strong> que vocês três para colocar o meu pescoço<br />
aí.<br />
TALAL HUSSEINI 123
O clima estava bem quente. Haggi percebeu a apreensão <strong>do</strong> proprietá-<br />
rio <strong>do</strong> estabelecimento. Várias opiniões começaram a surgir por entre os<br />
frequenta<strong>do</strong>res, mas dificilmente se percebia o autor de cada intervenção:<br />
– Se fez um serviço mal feito, tem de arrumar! – disse alguém.<br />
– Esses caça<strong>do</strong>res são muito arrogantes, provavelmente estão mentin<strong>do</strong>...<br />
– interveio outro.<br />
– Esse ferreiro faz tu<strong>do</strong> mal feito. Deve ter estraga<strong>do</strong> a armadilha...<br />
– Quem com ferro fere, com ferro será feri<strong>do</strong>. Um dia é da caça e outro<br />
<strong>do</strong> caça<strong>do</strong>r – proferiu um homem que já estava embriaga<strong>do</strong>.<br />
To<strong>do</strong>s o olharam, fazen<strong>do</strong> alguns segun<strong>do</strong>s de silêncio para então retomar<br />
as discussões. Entrementes, as partes envolvidas já estavam na<br />
iminência <strong>do</strong> confronto físico. Foi quan<strong>do</strong> Haggi resolveu interferir.<br />
– Senhores, não pude deixar de ouvir sua interessante discussão, a<br />
respeito de armadilhas de caça...<br />
– E posso saber quem é o senhor – interveio o caça<strong>do</strong>r.<br />
– Quem eu sou é o que menos importa neste momento. O que importa<br />
é que a discussão já se vai acaloran<strong>do</strong>, a ponto de logo se iniciarem as<br />
vias de fato, o que seria desagradável para o meu jantar e para o estabelecimento.<br />
O proprietário aprovava suas palavras com a cabeça. Mas os conten<strong>do</strong>res<br />
não compartilhavam dessa aprovação. Desta vez foi o ferreiro que<br />
intercedeu:<br />
– Creio que podemos resolver muito bem nossos problemas. É melhor<br />
o senhor voltar para a sua mesa e continuar sua refeição se não quiser<br />
arrumar problemas para si mesmo.<br />
Haggi não se abalou com a ameaça e prosseguiu em tom sereno:<br />
– É claro que vocês podem resolver seus problemas, mas não penso<br />
simplesmente em resolver problemas, penso em como podemos to<strong>do</strong>s<br />
ganhar com isso... – enquanto os <strong>do</strong>is homens pensavam em suas pala-<br />
124 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
vras, Haggi continuou, voltan<strong>do</strong>-se para o ferreiro: – o senhor é capaz<br />
de consertar este tipo de armadilha?<br />
– Evidente que sim. Não só consertar como melhorá-la... Este sistema<br />
de molas é antiqua<strong>do</strong>, perde muito rapidamente a força. Na minha opinião<br />
deveria ser substituí<strong>do</strong> por outro mais eficiente.<br />
– E o senhor faz essa substituição... – o ferreiro assentiu. Neste ponto<br />
o caça<strong>do</strong>r nada dizia. Haggi o interpelou: – o senhor utiliza muitas armadilhas<br />
como esta?<br />
O homem não hesitou em responder, com certo ar de gabação:<br />
– É claro! Nosso grupo caça muito. Temos algumas dezenas destas.<br />
– Então, é possível que o senhor tenha-se engana<strong>do</strong>, e que a armadilha<br />
deixada para conserto seja outra?<br />
O homem pareceu apanha<strong>do</strong> de surpresa por aquela pergunta. Havia<br />
caí<strong>do</strong> na armadilha de Haggi. Sustentou seu ponto de vista, já sem tanta<br />
convicção:<br />
– Conheço cada uma das minhas armadilhas... foi esta que ele consertou...<br />
O ferreiro já ia responder alguma coisa, mas Haggi se antecipou:<br />
– Também conheço de armadilhas, eis que venho de uma família de<br />
caça<strong>do</strong>res, e de fato este tipo de mola não é utiliza<strong>do</strong> nesta região. Mas<br />
enten<strong>do</strong> que quem tem tantas armadilhas semelhantes possa cometer um<br />
engano inocente em relação a isso. De todas essas armadilhas, suponho<br />
que muitas já estejam precisan<strong>do</strong> de reparos e manutenção. Por que não<br />
as traz todas para nosso amigo ferreiro consertar?<br />
– Espere um momento, amigo, eu não trabalho de graça. Cobrarei cada<br />
conserto e para esse indivíduo – olhou com desdém para o caça<strong>do</strong>r –<br />
o preço é mais alto.<br />
– Você vai cobrar o preço justo, porque ele será um excelente cliente,<br />
que tem muitas peças para consertar. E as terá sempre. Mais vale ganhar<br />
menos e sempre <strong>do</strong> que ganhar muito apenas uma vez – decretou Haggi<br />
TALAL HUSSEINI 125
com autoridade. Desta vez foi o caça<strong>do</strong>r a ponderar, já em tom mais<br />
modera<strong>do</strong>:<br />
– Mas o problema é que eu não tenho como pagar por to<strong>do</strong>s esses<br />
consertos...<br />
– Viu só? – disse o ferreiro, com ares de quem tinha razão.<br />
– Com armadilhas ruins você caça bem menos, certo? Se ele não caça<br />
e não tem dinheiro, são vários trabalhos de conserto a menos, não é? Eis<br />
o que vamos fazer.<br />
Haggi chamou os <strong>do</strong>is homens num canto e lhes pediu que viessem<br />
apenas os <strong>do</strong>is, deixan<strong>do</strong> seus respectivos amigos de la<strong>do</strong>:<br />
– Primeiramente, me prometam que escutarão minha proposta até o<br />
final, sem interrupções – os <strong>do</strong>is homens concordaram – depois, se não<br />
quiserem segui-la, tomo meu rumo e o problema será de vocês. Você<br />
consertará cinco armadilhas dele, sem cobrar nada – o ferreiro se retesou,<br />
mas manteve sua palavra de não interromper – agora. Mas depois<br />
de conseguir caça, você pagará por esse serviço, acrescen<strong>do</strong> um décimo<br />
ao seu valor em retribuição à confiança e ao crédito que o ferreiro lhe<br />
deu. As peles conseguidas você vai negociar com um amigo meu. Mostre-lhe<br />
isto – estendeu um pequeno pedaço de pergaminho com um símbolo<br />
desenha<strong>do</strong> – e a partir daí os negócios com ele ficam por sua conta.<br />
Já aviso que ele só trabalha com material de primeira, mas paga bem<br />
mais <strong>do</strong> que nestas re<strong>do</strong>ndezas. Quan<strong>do</strong> você voltar para pagar pelo<br />
primeiro conserto, deixará mais cinco armadilhas para consertar, pagan<strong>do</strong><br />
adianta<strong>do</strong> desta vez. O ferreiro lhe cobrará um décimo a menos no<br />
valor <strong>do</strong>s serviços, em face <strong>do</strong> adiantamento. Na próxima vez, você trará<br />
mais cinco armadilhas para consertar, e a partir daí o pagamento será<br />
no preço normal, sen<strong>do</strong> metade ao deixar as armadilhas e a outra metade<br />
ao retirá-las. To<strong>do</strong>s ganham. Você caçará mais com armadilhas boas.<br />
Estas sempre precisarão de reparos, pois quan<strong>do</strong> as últimas estiverem<br />
consertadas, já as primeiras precisarão de novos reparos. É um ciclo que<br />
não termina.<br />
126 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
Os <strong>do</strong>is homens se olharam, olharam para Haggi. Por mais que ten-<br />
tassem pensar em alguma falha naquele plano, não conseguiam. Foi o<br />
ferreiro que tentou, já esperan<strong>do</strong> por uma resposta:<br />
– Mas e se ele não aparecer mais para me pagar o primeiro conserto?<br />
– Então você terá o prejuízo desse serviço, mas eu ficarei saben<strong>do</strong> e<br />
ele não mais conseguirá vender sua caça para o meu contato. Então,<br />
to<strong>do</strong> o ciclo que descrevi ficaria corrompi<strong>do</strong> e ninguém sairia ganhan<strong>do</strong>.<br />
Só idiotas fariam isso. Como sei que vocês não são idiotas, creio que o<br />
plano funcionará – os <strong>do</strong>is concordaram – então vamos selar este acor<strong>do</strong><br />
com um brinde?<br />
Os três se cumprimentaram, brindaram e continuaram conversan<strong>do</strong>.<br />
Os caça<strong>do</strong>res e os amigos <strong>do</strong> ferreiro, que olhavam à distância, não entendiam<br />
o que se passava. Estavam desejosos de uma boa briga, mas<br />
suas expectativas foram frustradas pelo estranho. Não restava senão<br />
continuar a se divertir.<br />
Os três homens ainda permaneceram algumas horas conversan<strong>do</strong>,<br />
como velhos amigos. Haggi tinha este <strong>do</strong>m: fazer com que pessoas que<br />
acabara de conhecer se sentissem à vontade com ele, a ponto de lhe confiar<br />
seus mais recônditos segre<strong>do</strong>s. Aproveitava essas oportunidades<br />
para perquirir sobre o que o povo pensava <strong>do</strong>s governantes, da política,<br />
das necessidades. Para um governante é importante ouvir a população,<br />
não esperan<strong>do</strong> dela soluções, mas para ter uma correta leitura <strong>do</strong>s problemas.<br />
Haggi conquistara, naquela noite, <strong>do</strong>is amigos, <strong>do</strong>is alia<strong>do</strong>s.<br />
Não eram nobres, não tinham exércitos, mas tinham lealdade. Homens<br />
leais são sempre importantes nos momentos difíceis.<br />
Na verdade, conquistara três alia<strong>do</strong>s, pois ainda que ninguém mais reconhecesse<br />
o valor daquela intervenção, ao menos um homem reconhecia:<br />
o <strong>do</strong>no <strong>do</strong> estabelecimento, que já contabilizava os prejuízos que a<br />
briga poderia causar. To<strong>do</strong>s que conheciam sua fama de sovina estranharam<br />
quan<strong>do</strong> ele ofereceu uma rodada por conta da casa. To<strong>do</strong>s, exceto<br />
Haggi.<br />
TALAL HUSSEINI 127
K<br />
22.<br />
adriel tinha uma curiosidade histórica sobre Ravi, e como ganhavam<br />
intimidade a cada dia, resolveu perguntar por que seu<br />
pai não sucedera Gur Medhavin e depois o próprio Ravi, que seria então<br />
Rei a esta altura. Ravi respondeu com a mesma naturalidade de sempre.<br />
Os meandros <strong>do</strong> poder não exerciam sobre ele nenhum apelo. Tratava o<br />
assunto sem qualquer exaltação, apesar de ser descendente direto de um<br />
<strong>do</strong>s maiores dirigentes da história recente. Foi nesse tom que Ravi respondeu:<br />
– Kadriel, não falemos num governo de sábios, pois já nos esquecemos<br />
o que é isso. Mas mesmo em um governo de filósofos, como já<br />
experimentamos em nosso País, a sucessão não se dá por linhagem sanguínea<br />
e sim por retidão, capacidade e solidez moral. Normalmente, um<br />
soberano procura preparar para sucedê-lo seus filhos de sangue, aos<br />
quais poderá dar exemplos próximos e práticos de como governar. Mas<br />
muitas vezes o Destino intervém para subverter isso que em nossa visão<br />
limitada parece ser ordem, em prol de uma ordem superior, que resta de<br />
difícil entendimento para os homens. Às vezes, a despeito de esmerada<br />
educação, aquele que deveria suceder se deixa <strong>do</strong>minar por sua personalidade<br />
e fica suscetível a vícios inaceitáveis num governante. Não poderá,<br />
então, suceder. Se força essa situação, lança o caos. A personalidade<br />
é como um cavalo que deve ser <strong>do</strong>ma<strong>do</strong>, ora com carícias, ora com chibatadas.<br />
Mas pobre <strong>do</strong> cavaleiro que se deixa conduzir pelo cavalo ao<br />
invés de conduzi-lo. Perder-se-á <strong>do</strong> caminho ou será joga<strong>do</strong> ao chão<br />
onde perecerá.<br />
Ravi parou diante de uma flor, observou-a durante longos minutos.<br />
Kadriel não ousou interromper aquele momento de contemplação. Ao<br />
contrário, conseguiu compartilhar a admiração que Ravi demonstrava<br />
128 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
por uma simples flor. Quase pôde vislumbrar a perfeição que pode conter<br />
uma pétala. Como uma flor transcende os senti<strong>do</strong>s para despertar<br />
percepções naquele que, ao olhar, sabe ver... Ravi retomou suas palavras<br />
como se não as tivesse larga<strong>do</strong>:<br />
– Meu avô foi um homem precoce na vida e na morte. Foi um solda<strong>do</strong><br />
no perío<strong>do</strong> das guerras incessantes que assolaram nosso País. Por<br />
coincidência, por destino ou por arranjos <strong>do</strong> Universo – escolha o que<br />
preferir –, numa batalha decisiva, to<strong>do</strong>s os oficiais superiores de sua<br />
unidade sucumbiram. De forma natural, Gur assumiu a liderança <strong>do</strong>s<br />
solda<strong>do</strong>s. Foi um daqueles instantes que só acontecem em combate.<br />
Ninguém precisou dizer nenhuma palavra, ele sabia que devia liderar e<br />
to<strong>do</strong>s sabiam que ele devia ser o líder. De uma situação de inferioridade,<br />
ele obteve uma vitória estron<strong>do</strong>sa. Era um militar nato. Quan<strong>do</strong> isso<br />
ocorreu, tinha apenas dezoito anos de idade. O Impera<strong>do</strong>r o nomeou<br />
General de Campo. Num perío<strong>do</strong> de um ano, tornou favorável nossa<br />
situação na guerra, o que àquela altura parecia impossível. Esta é uma<br />
característica <strong>do</strong>s grandes homens: conquistar o impossível. Mesmo<br />
aqueles que por convicção ou por inveja haviam se manifesta<strong>do</strong> contrariamente<br />
à sua nomeação tiveram de reconhecer sua capacidade.<br />
Kadriel ouvia atentamente, como se não quisesse perder nem um detalhe.<br />
Ravi relatava como se tivesse presencia<strong>do</strong> os fatos. E Kadriel<br />
também os vivenciava naquele relato:<br />
– Foi então que o Impera<strong>do</strong>r surpreendeu ainda mais a to<strong>do</strong>s, inclusive<br />
ao próprio Gur: nomeou-o seu sucessor e afastou-se <strong>do</strong> trono ainda<br />
em vida. Inicialmente Gur Medhavin relutou, se dizia um solda<strong>do</strong> e não<br />
um governante, mas o Impera<strong>do</strong>r, com a visão que só os grandes dirigentes<br />
têm, lhe mostrou que esse era o caminho e o demoveu das suas<br />
resistências. Não fosse a firmeza de caráter e o prestígio com que contava<br />
o Impera<strong>do</strong>r, aquele menino de apenas dezenove anos não teria resisti<strong>do</strong><br />
às pressões. Mas até a sua morte o Impera<strong>do</strong>r se manteve ao la<strong>do</strong><br />
TALAL HUSSEINI 129
<strong>do</strong> jovem, como seu Mestre e conselheiro. Gur Medhavin ainda enfren-<br />
taria mais sete anos de guerra em seu governo e depois mais sete anos<br />
de paz. No perío<strong>do</strong> de guerra, Gur Medhavin não perdeu uma única ba-<br />
talha, por menor que fosse. E a paz foi conquistada da maneira mais<br />
inusitada possível, da maneira guerreira. Gur pacificou os inimigos já<br />
sem, no final, precisar sequer lutar. Consoli<strong>do</strong>u o apoio das lideranças<br />
regionais, crian<strong>do</strong> a Aliança <strong>do</strong>s Doze, que eram os dirigentes das <strong>do</strong>ze<br />
maiores cidades <strong>do</strong> Império. Durante esse perío<strong>do</strong> de paz, deu acesso a<br />
alimentos a to<strong>do</strong>s com uma agricultura eficiente, promoveu a educação,<br />
calcada no senso de justiça, na vivência moral, na importância de falar a<br />
verdade, no <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> me<strong>do</strong>. Deu suporte à cultura e à ciência, crian<strong>do</strong><br />
bibliotecas e universidades, fun<strong>do</strong>u templos, permitin<strong>do</strong> a liberdade de<br />
religiões, exceto a feitiçaria. Fun<strong>do</strong>u uma escola de dirigentes, onde se<br />
poderiam preparar aqueles que fossem exercer cargos públicos. Teve<br />
muitas realizações.<br />
Os olhos de Kadriel brilhavam ao pensar que tu<strong>do</strong> aquilo era possível.<br />
Sim, se já havia existi<strong>do</strong>, poderia voltar a existir. Ravi continuou, ciente<br />
de que a maior curiosidade de Kadriel não havia si<strong>do</strong> respondida, ainda<br />
que ele não se lembrasse:<br />
– Tu<strong>do</strong> isso foi elabora<strong>do</strong> num perío<strong>do</strong> curto, pois, como disse, Gur<br />
Medhavin não foi prematuro somente na vida, mas também na morte.<br />
Morreu aos trinta e três anos, quan<strong>do</strong> meu pai tinha apenas oito e não<br />
poderia sucedê-lo. Deixar o trono para um menino, que dependeria de<br />
um tutor, seria inconcebível e jogaria por terra todas as conquistas. Gur<br />
era consciente. Nomeou como seu sucessor um homem de sua extrema<br />
confiança: o pai de Sokárin. Mas Gur decretou que a partir de então não<br />
haveria mais Império e sim um Reino. No futuro, quan<strong>do</strong> as condições<br />
se apresentassem novamente, o Império ressurgiria.<br />
Kadriel conseguia ver a admiração com que Ravi se referia ao Impera<strong>do</strong>r<br />
Gur Medhavin e partilhava dessa admiração. Mais <strong>do</strong> que isso,<br />
130 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
partilhava <strong>do</strong> sonho de reconquistar aquelas épocas gloriosas. Absorvi-<br />
<strong>do</strong> por aquelas palavras, assumia definitivamente o seu destino. Entendia<br />
por que Sokárin o havia escolhi<strong>do</strong> e por que lhe ordenara lutar pelo<br />
poder. Kadriel, como Gur, não queria o poder, e era exatamente isso que<br />
o legitimava. Somente quem não deseja o poder para si saberá usá-lo em<br />
benefício da justiça.<br />
Estava pronto para a batalha.<br />
Ao chegar no palácio de Nakan, Haggi foi recebi<strong>do</strong> com todas as honras<br />
de um grande líder. Enquanto alguns emprega<strong>do</strong>s, juntamente com<br />
Tarin, tomavam conta de seus pertences, o próprio Nakan veio ao seu<br />
encontro para dar as boas vindas. Nakan era um homem de seus cinquenta<br />
e tantos anos, cabelos grisalhos nas têmporas, olhos negros despertos,<br />
mãos largas, o que denunciava um bom soco. Estava em boa<br />
forma física, aspecto militar. Haggi pôde sentir sua força quan<strong>do</strong> o<br />
cumprimentou com um aperto de mãos, reforça<strong>do</strong> pela outra mão agarran<strong>do</strong><br />
com vigor o pulso de Haggi.<br />
– Haggi Eitan! Há quanto tempo não nos vemos. Fiquei feliz quan<strong>do</strong><br />
chegou o mensageiro anuncian<strong>do</strong> sua visita. Sempre passamos momentos<br />
agradáveis quan<strong>do</strong> nos encontramos. Você sabe, fora da Capital, é<br />
difícil encontrar conversas refinadas. A mensagem, entretanto, não incluía<br />
o motivo da visita, mas deixemos para tratar disso após o jantar.<br />
Há um bom banho quente prepara<strong>do</strong> para você nos seus aposentos. Ivis<br />
irá acompanhá-lo – concluiu, indican<strong>do</strong> uma bela moça que aguardava<br />
em silêncio o fim da conversa.<br />
– Nakan – respondeu Haggi, com o mesmo entusiasmo de seu anfitrião<br />
– eu é que fico honra<strong>do</strong> em ser recebi<strong>do</strong> na sua corte. Como estão as<br />
coisas na principal cidade da aliança? Vejo que seu bom gosto para as<br />
coisas belas da vida não se perdeu – acrescentou, fazen<strong>do</strong> referência a<br />
TALAL HUSSEINI 131
Ivis – vejo também que você mantém sua boa forma. Espero termos<br />
tempo para um combate com sabres.<br />
– É sempre uma honra combater com alguém hábil. Por aqui já não<br />
tenho adversários. Mas teremos tempo para isso nos próximos dias. Por<br />
hora, descanse da viagem. Mandarei chamá-lo para o jantar. Então poderemos<br />
conversar melhor.<br />
– Agradeço-lhe desde logo a hospitalidade. Vou aceitar de bom gra<strong>do</strong><br />
a oferta <strong>do</strong> banho, pois a viagem para cá não é das mais confortáveis.<br />
– Até mais tarde, então.<br />
Ivis, com um sorriso, pediu a Haggi que a acompanhasse. Disparou,<br />
lépida, pelos corre<strong>do</strong>res, deixan<strong>do</strong> atrás de si um rastro inebriante de<br />
perfume de flores. Aquele aroma, por si só, já dissipava o cansaço <strong>do</strong><br />
diplomata, que era um emérito aprecia<strong>do</strong>r <strong>do</strong> sexo oposto, saben<strong>do</strong> ler<br />
com precisão o corpo e a psiquê femininos. Deixou-se conduzir pela<br />
moça, que lhe indicou seu quarto, junto ao qual havia uma casa de banho<br />
com uma banheira esfumaçante, preparada com ervas aromáticas.<br />
Ivis fechou a porta atrás de si. Olhou para Haggi com seus lin<strong>do</strong>s olhos<br />
cor de mel, cabelos ruivos cachea<strong>do</strong>s, tez branca, e declarou com naturalidade:<br />
– Nakan me ordenou que cuidasse muito bem <strong>do</strong> senhor – disse aproximan<strong>do</strong>-se<br />
de Haggi.<br />
Ela sorria com os olhos. Esta é uma característica admirável nas pessoas,<br />
principalmente nas mulheres: sorrir com os olhos. Ivis não possuía<br />
qualquer traço de vulgaridade ou lascívia, era linda e discreta, mesmo<br />
oferecen<strong>do</strong> entregar-se ao visitante. Haggi, apesar <strong>do</strong> encantamento que<br />
o tomou, respondeu como um cavalheiro:<br />
– Ivis, você é belíssima! Muito me agradaria sua companhia, desde<br />
que fosse por sua própria vontade e não por ordens de Nakan. Sei que<br />
ele quer agradar-me e sou grato por isso. Vejo também que ele não poderia<br />
ter escolhi<strong>do</strong> melhor, pois você é, além de bela, discreta, o que é<br />
132 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
uma qualidade a<strong>do</strong>rável. Tem os mais lin<strong>do</strong>s olhos em que um homem<br />
poderia querer mergulhar, silhueta digna das princesas, perfume de rosas.<br />
Apenas lhe peço uma coisa: me chame de Haggi, não de senhor...<br />
– Sim, senhor, quer dizer, sim... Haggi. Quer que o deixe, então? Se<br />
não o agra<strong>do</strong>, Nakan pode providenciar outra companhia...<br />
– Não, por favor – interrompeu Haggi – espero que você me dê a<br />
honra de sentar-se ao meu la<strong>do</strong> no jantar. Agora estou de fato muito<br />
cansa<strong>do</strong> e vou aproveitar estes momentos para me recompor. Quan<strong>do</strong><br />
você estiver ao meu la<strong>do</strong> sem falar em Nakan e sem pensar nas ordens<br />
que ele lhe deu, tenho a certeza de que nos entenderemos muito bem.<br />
– Com licença.<br />
Haggi consentiu com a cabeça. Ivis retirou-se, fechan<strong>do</strong> atrás de si a<br />
porta. Haggi soltou a respiração de uma só vez, sentan<strong>do</strong>-se na cama.<br />
Mais alguns segun<strong>do</strong>s e não teria resisti<strong>do</strong>. Ivis era simplesmente maravilhosa.<br />
Normalmente teria aceita<strong>do</strong> de imediato a proposta de uma mulher<br />
como ela, mas aquela moça era especial, ele reconhecera isso desde<br />
quan<strong>do</strong> a vira no saguão. Ela deveria ser uma conquista plena. E ao não<br />
usurpar seu corpo, ganhara pontos no seu coração. O diplomata afun<strong>do</strong>u-se<br />
na banheira para apaziguar seu ânimo.<br />
Os serviçais haviam deixa<strong>do</strong> sobre a cama uma túnica para ser usada<br />
durante o jantar. Haggi a vestiu. Sentia-se confortável no palácio de<br />
Nakan, apesar de estar acostuma<strong>do</strong> a muitas cortes, de vários países.<br />
Desceu para o salão em que seria servi<strong>do</strong> o jantar. Ao deparar-se com o<br />
número de cortesãos, percebeu que não seria fácil ter os momentos de<br />
privacidade com Nakan de que precisaria para tratar <strong>do</strong>s assuntos de<br />
esta<strong>do</strong>. Aproximou-se sorridente <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> qual havia<br />
um lugar que lhe estava reserva<strong>do</strong>.<br />
TALAL HUSSEINI 133
– Ivis não lhe agra<strong>do</strong>u, meu caro Haggi? Posso providenciar outra<br />
moça para cuidar de você em sua estada. Quem sabe mais de uma...?<br />
– Ivis me agrada muito, Nakan. Mas você me conhece. Sabe que gos-<br />
to de realizar sozinho minhas conquistas amorosas.<br />
– Quem falou em amor? Estou falan<strong>do</strong> de companhia e diversão. Ve-<br />
ja – disse, olhan<strong>do</strong> em direção a um grupo de moças, dentre as quais se<br />
encontrava Ivis. Ela olhou na direção <strong>do</strong>s observa<strong>do</strong>res e sorriu. Nakan<br />
alçou sua taça em direção a ela. Haggi devolveu o sorriso, pensan<strong>do</strong><br />
consigo mesmo o quão encanta<strong>do</strong>ra ela era.<br />
– Nakan, você sabe que não estou aqui somente para me divertir e<br />
passear. A visita é oficial, determinada pelo Sena<strong>do</strong>r Rohel. Ele me pediu<br />
que verificasse como as <strong>do</strong>ze cidades estão viven<strong>do</strong> a expectativa da<br />
sucessão e que assegurasse seu apoio e união em torno <strong>do</strong> novo rei.<br />
– Haggi, sei que você está ansioso para resolver as questões políticas<br />
que o trouxeram até aqui, mas agora há muitos ouvi<strong>do</strong>s atentos por perto.<br />
Deixemos essas conversas para outro momento, quem sabe durante<br />
uma luta de sabres amanhã...?<br />
Como bom diplomata, Haggi entendeu de imediato que o governa<strong>do</strong>r<br />
não queria tratar de assuntos de esta<strong>do</strong> naquele momento. Dançou conforme<br />
a música:<br />
– Isso é um desafio? Alguma vez você já me venceu com o sabre,<br />
Nakan?<br />
– Não me lembro é de você alguma vez ter me venci<strong>do</strong>.<br />
– Se sua luta estiver tão ruim quanto sua memória não terei muita dificuldade.<br />
Haggi aproveitou o assunto de lutas, queren<strong>do</strong> sondar as possibilidades<br />
bélicas da Aliança:<br />
– Meu nobre Nakan, você sabe que lhe guar<strong>do</strong> muito respeito, mas<br />
você é um general de um exército de brinque<strong>do</strong>. Muito bem treina<strong>do</strong>, é<br />
134 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
verdade... Mas como saber se no fragor da luta real se irão portar como<br />
verdadeiros guerreiros?<br />
Nakan, compreenden<strong>do</strong> de imediato aonde Haggi queria chegar, não<br />
se ofendeu, pelo contrário, respondeu na linguagem <strong>do</strong> jovem – com<br />
diplomacia –, puxan<strong>do</strong> para perto de si um pequeno gato que estava ao<br />
seu la<strong>do</strong>, ata<strong>do</strong> por uma coleira:<br />
– Haggi, meu caro, você vê este filhote de leão? Foi retira<strong>do</strong> da selva<br />
recém-nasci<strong>do</strong>, por caça<strong>do</strong>res que abateram sua mãe e mo deram de<br />
presente. Sem ela, não teria qualquer chance de sobrevivência lá fora.<br />
Aqui no palácio, é adula<strong>do</strong> pelas cortesãs e cria<strong>do</strong> junto aos gatos <strong>do</strong>mésticos<br />
e animais de companhia, brincan<strong>do</strong> com as ovelhas – parou de<br />
falar, acarician<strong>do</strong> a cabeça <strong>do</strong> gatinho, que, nervoso, procurava livrar-se<br />
da contenção, morden<strong>do</strong> e arranhan<strong>do</strong>, sem a força necessária, as mãos<br />
que o retinham.<br />
Haggi aguar<strong>do</strong>u a conclusão, que não demorou:<br />
– Você acha que por ter si<strong>do</strong> cria<strong>do</strong> entre ovelhas, perderá sua natureza<br />
de leão? – nesse momento o pequeno felídeo conseguiu finalmente<br />
encaixar uma boa mordida na mão de Nakan, que o soltou, mostran<strong>do</strong> a<br />
Haggi o pequeno corte, com um levantar de sobrancelhas.<br />
– Você tem razão: um leão será sempre um leão. Resta saber de quem<br />
será a mão que ele irá morder...<br />
Os <strong>do</strong>is riram, para quebrar o rumo sério que a conversa tomara, e<br />
passaram a conversar amenidades. Falaram <strong>do</strong>s lugares em comum que<br />
tinham visita<strong>do</strong>. Falaram de história e de filosofia. De mulheres e de<br />
lutas, enfim, de to<strong>do</strong>s os assuntos possíveis para desviar da sucessão.<br />
Mas Haggi entendera a mensagem: um guerreiro seria sempre um<br />
guerreiro, pronto para a batalha, bastan<strong>do</strong> que ela se apresentasse. Pensava<br />
consigo mesmo que ter aquele leão <strong>do</strong> seu la<strong>do</strong> seria muito melhor<br />
<strong>do</strong> que tê-lo contra si.<br />
TALAL HUSSEINI 135
Pediu licença ao governa<strong>do</strong>r e foi em direção a Ivis, que lhe sorriu,<br />
com os olhos...<br />
T<br />
23.<br />
o<strong>do</strong> o Reino vivia a agitação <strong>do</strong> dia da abertura da placa, que<br />
finalmente era chega<strong>do</strong>. Seria exposto, na Pedra <strong>do</strong>s Mil Reis, o<br />
nome <strong>do</strong> sucessor de Sokárin. O País passara por um perío<strong>do</strong> de luto e<br />
reflexão para alguns, e de planejamento e conluio para outros. A ansiedade<br />
incontida teria fim. Aqueles cujas possibilidades eram reais experimentavam<br />
verdadeira tensão.<br />
Golan, filho de Sokárin, era o mais nervoso. Acompanha<strong>do</strong> por seus<br />
acólitos, não conseguia disfarçar a impaciência. Só adentravam ao salão<br />
real os sena<strong>do</strong>res, os ministros de esta<strong>do</strong> e funcionários de alto escalão,<br />
os nobres e algumas pessoas convidadas. A população permanecia <strong>do</strong><br />
la<strong>do</strong> de fora, na grande praça em frente ao palácio. A multidão tomava<br />
todas as ruas <strong>do</strong>s arre<strong>do</strong>res. O burburinho era grande. Em alguns momentos,<br />
pequenos grupos ensaiavam um coro com nome de sua preferência.<br />
Mas logo era retoma<strong>do</strong> o silêncio da expectativa. Era um momento<br />
ímpar.<br />
Dentro <strong>do</strong> salão real, a cerimônia era presidida pelo Sena<strong>do</strong>r Rohel,<br />
na qualidade de Chefe <strong>do</strong> Conselho <strong>do</strong>s Anciãos. Próximos a ele, na<br />
parte mais elevada <strong>do</strong> salão, onde ficava a Pedra, o Primeiro-Ministro<br />
Adaran, Golan, os demais sena<strong>do</strong>res e alguns guardas reais estrategicamente<br />
espalha<strong>do</strong>s, imóveis em seus trajes negros que impunham sóbrio<br />
respeito. O Sena<strong>do</strong>r Rohel tomou a palavra, acenan<strong>do</strong> para o público ali<br />
presente, a fim de que se fizesse silêncio:<br />
136 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
– Autoridades aqui presentes, cidadãos das mais respeitadas famílias<br />
<strong>do</strong> reino, servi<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, população que preenche as ruas fora<br />
deste palácio a aguardar o nome de seu novo soberano, damas e cavalheiros,<br />
é chega<strong>do</strong> o momento por que to<strong>do</strong>s tanto esperamos: a revelação<br />
da placa de pedra que guarda o nome daquele que irá dirigir este<br />
Reino daqui por diante. Qual é o nome que ali está é o que menos importa<br />
agora! Porque a partir <strong>do</strong> instante em que for revela<strong>do</strong> assumirá<br />
não apenas um título, mas um encargo, o pesa<strong>do</strong> encargo de governar.<br />
Fez uma pausa e prosseguiu:<br />
– Governar com sabe<strong>do</strong>ria é tarefa das mais difíceis. Exige deno<strong>do</strong>,<br />
abnegação, renúncia à vida pessoal. Dedicar-se ao Esta<strong>do</strong> e ao povo<br />
demanda afastar-se de si mesmo, e aproximar-se de si mesmo. Afastarse<br />
da personalidade traiçoeira e aproximar-se <strong>do</strong> espírito clarividente.<br />
Exige intuição, que é a visão direta das coisas, despida da intermediação<br />
<strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s. Confiamos em nosso monarca Sokárin para ter sabi<strong>do</strong> escolher<br />
aquele que reunirá essas condições. Como disse, o nome não<br />
importa tanto quanto a confiança em que o escolhi<strong>do</strong> assumirá as vestes<br />
de um verdadeiro estadista, de um verdadeiro rei. O apoio incondicional<br />
de to<strong>do</strong>s será imprescindível para o futuro deste país. Como é de praxe,<br />
antes da abertura, fica aberta a palavra aos ministros de esta<strong>do</strong> e aos<br />
sena<strong>do</strong>res que dela queiram fazer uso. Depois da abertura, somente o<br />
silêncio respeitoso.<br />
Passaram-se alguns segun<strong>do</strong>s, até que um velho sena<strong>do</strong>r deu um passo<br />
adiante e educadamente aguar<strong>do</strong>u que o presidente da cerimônia lhe<br />
outorgasse a palavra:<br />
– Ainda não foi encontrada a placa solicitada por Sokárin, nem gravada<br />
e nem destruída. Mas o simples fato de ter ele solicita<strong>do</strong> outra placa<br />
significa de forma muito clara uma coisa: o nome que aí está não era<br />
o <strong>do</strong> seu desejo – dan<strong>do</strong> um passo atrás o ancião voltou à sua posição<br />
original.<br />
TALAL HUSSEINI 137
Um burburinho se fez sentir no salão. Outro sena<strong>do</strong>r pediu a palavra,<br />
e iniciou sua intervenção mal esperan<strong>do</strong> a licença <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>r Rohel:<br />
– O nobre colega deverá desculpar-me, mas não comungo da sua opi-<br />
nião. Enten<strong>do</strong> que sua manifestação foi intempestiva, ten<strong>do</strong> por único<br />
fim lançar a dúvida e a discórdia em torno <strong>do</strong> nosso novo soberano, seja<br />
ele quem for. Nenhum outro nome foi cogita<strong>do</strong>, nem placa alguma foi<br />
encontrada. Assim sen<strong>do</strong>, devemos esquecer que ela um dia existiu,<br />
devemos esquecer que Sokárin a solicitou, devemos prestar nosso integral<br />
apoio ao novo Rei.<br />
– Discor<strong>do</strong> – intercedeu outro, já sem praticamente pedir licença ao<br />
presidente da cerimônia, que já dava mostras de impaciência – no nosso<br />
sistema sucessório, o Rei é quem escolhe quem deverá substituí-lo, sua<br />
vontade é determinante. Sokárin requereu outra placa, como esta não foi<br />
encontrada, não sabemos qual seria o nome da sua vontade, mas sabemos<br />
que por certo não é o nome que aí está!<br />
Estava cria<strong>do</strong> o debate. Não havia como voltar atrás, pensava Rohel.<br />
Tinha de pensar numa forma de apaziguar os ânimos, pois era certo o<br />
que to<strong>do</strong>s haviam dito até aquele momento. De fato, possivelmente o<br />
nome que ali estava não era o <strong>do</strong>s desejos de Sokárin, mas era o único<br />
de que dispunham.<br />
Já se fazia difícil conter a audiência. O vozerio tomava conta <strong>do</strong> ambiente.<br />
Do la<strong>do</strong> de fora, o povo não entendia o porquê de ainda não ser<br />
conheci<strong>do</strong> o nome <strong>do</strong> novo Rei, mas já circulavam rumores sobre o debate<br />
que se travava no interior <strong>do</strong> palácio, o qual se reproduzia nas ruas,<br />
com as devidas proporções retóricas.<br />
Dentro, a discussão se acirrara. As opiniões formavam duas facções<br />
de mesmo peso numérico. Kadriel, que assistia à cerimônia ao la<strong>do</strong> de<br />
Ravi, mantinha-se sereno. De algum mo<strong>do</strong>, a situação que se apresentara<br />
lhe dava forças, pois não ficava completamente desprovi<strong>do</strong> de argumentos<br />
na luta que pretendia entabular. O futuro próximo não seria pa-<br />
138 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
cífico, mas justificaria o porvir. Na mente e no coração de Kadriel não<br />
havia lugar para o cinza, ele conseguia distinguir perfeitamente, naquele<br />
momento, o branco <strong>do</strong> negro...<br />
Quem tomou novamente a palavra, com o intuito de pôr fim à pendenga,<br />
foi o Sena<strong>do</strong>r Rohel. Respeitabilíssimo, conseguiu recompor o<br />
silêncio e pôde se manifestar com tranquilidade:<br />
– Senhores, senhores, por favor, to<strong>do</strong>s que aqui se manifestaram o fizeram<br />
com muita propriedade, tanto na forma de se expressar, demonstran<strong>do</strong><br />
cultura, discernimento e conhecimentos profun<strong>do</strong>s de oratória,<br />
quanto no mérito dessas expressões. É fato que ter o Rei Sokárin solicita<strong>do</strong><br />
outra placa poderia indicar a vontade de alterar o nome que aí está.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, essa vontade só se consolidaria com a efetiva substituição<br />
da placa, uma vez que antes disso muita coisa poderia acontecer:<br />
poderia voltar atrás em sua opinião, por exemplo. Sei que alguém poderia<br />
argumentar que nesse caso o Rei deveria devolver a placa aos sacer<strong>do</strong>tes<br />
para que fosse destruída. Mas não o fez. Talvez lhe tenha falta<strong>do</strong><br />
tempo para isso, assim como esse mesmo tempo pode lhe ter falta<strong>do</strong><br />
para fazer a substituição da placa. Nem uma coisa, nem outra. E mais,<br />
não há sequer sinal dessa nova placa, não se sabe se chegou mesmo a<br />
ser gravada. Mas nada disso importa mais. Nossas leis são muito claras<br />
ao dizer que eventual alteração somente será convalidada com a cerimônia<br />
de substituição da placa conduzida pessoal e privativamente pelo<br />
Rei. Tal cerimônia não teve lugar. O único nome que temos para a condução<br />
<strong>do</strong> nosso reino é o que está vela<strong>do</strong> por essa chapa de metal. O<br />
mais sábio que podemos fazer neste momento é prosseguir com esta<br />
cerimônia, prestan<strong>do</strong> nosso suporte ao novo monarca. Assim sen<strong>do</strong>, se<br />
ninguém mais tiver nenhum pronunciamento relevante, prosseguimos<br />
com a abertura.<br />
Como ninguém se manifestasse, Rohel aproximou-se da estela, sacou<br />
um anel da sua mão esquerda e outro da direita, este último era o anel de<br />
TALAL HUSSEINI 139
Sokárin que ficara sob sua custódia até aquele dia e que logo passaria às<br />
mãos <strong>do</strong> Rei. Os anéis eram as chaves que reunidas serviriam para re-<br />
mover a placa de metal que recobria a placa de pedra com o nome grava<strong>do</strong>.<br />
Rohel inseriu os <strong>do</strong>is anéis nas posições corretas, mas eles não giraram<br />
como deveriam. De fato, havia uma resistência. Talvez o tempo que<br />
a placa ali estivera tivesse gera<strong>do</strong> uma oxidação <strong>do</strong> metal que agora o<br />
prendia. Dois guardas reais se aproximaram a um sinal <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>r. Os<br />
anéis finalmente giraram, mas a chapa continuava presa. Era uma situação<br />
inusitada e um tanto desconfortável. Os mais supersticiosos se<br />
apressavam em imaginar que o fantasma de Sokárin segurava a placa<br />
por não desejar aquele nome. Foi trazi<strong>do</strong> um pé-de-cabra, com o qual se<br />
forçou a retirada da chapa de metal.<br />
A chapa finalmente cedeu, mas com o esforço algo desagradável<br />
ocorreu: a placa de pedra com o nome rachou ao meio.<br />
Para desfazer a tensão criada, Rohel prosseguiu como se nada tivesse<br />
aconteci<strong>do</strong> – o que era difícil, pois o estalo da pedra quebran<strong>do</strong> foi ouvi<strong>do</strong><br />
em to<strong>do</strong> o salão, que guardava silêncio mortal – revelou a to<strong>do</strong>s em<br />
voz alta: Adaran.<br />
Foi nesse instante que to<strong>do</strong>s tiveram um sobressalto. O chão tremeu<br />
por alguns segun<strong>do</strong>s, parou, e voltou a tremer por mais alguns segun<strong>do</strong>s,<br />
fazen<strong>do</strong>-se ouvir um forte estron<strong>do</strong>. A agitação entre os presentes e nas<br />
ruas foi grande. To<strong>do</strong>s acorreram às janelas <strong>do</strong> salão. Nas ruas, viam-se<br />
muitos braços apontan<strong>do</strong> na direção de Anthar.<br />
Uma coluna de fumaça cinza escura, quase negra, se elevava aos<br />
céus. O vulcão, inerte havia muito tempo, dera um sinal de vida. Não<br />
era uma erupção, mas o velho Anthar vivia... e usurpava o momento de<br />
glória de Adaran.<br />
140 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO
M<br />
24.<br />
ulil tinha-se desenvolvi<strong>do</strong> muito como discípulo desde a prova<br />
no deserto, na qual enfrentara a tempestade de areia como<br />
um falcão. Seu laço de confiança com Montuhotep era absoluto. Por<br />
isso, não questionou, nem sequer em pensamento, quan<strong>do</strong> o velho Mestre<br />
lhe deu uma missão que parecia impossível:<br />
– Mulil, preciso que você realize uma tarefa de extrema importância.<br />
Não tenho mais ninguém a quem possa confiá-la, exceto você; – fez<br />
uma pausa e prosseguiu – quero que você saia da cidade pelo la<strong>do</strong> oeste,<br />
em direção ao deserto. E não pare, senão para descansar, durante<br />
sete dias, sempre perseguin<strong>do</strong> o Sol poente.<br />
To<strong>do</strong>s sabiam que o deserto era imenso e voraz naquela direção.<br />
Ninguém se aventurava naquele sítio inóspito, nem mesmo os ban<strong>do</strong>s de<br />
saquea<strong>do</strong>res nômades, até mesmo porque não havia quem saquear.<br />
Uma missão de um homem só, com os víveres que ele pudesse carregar,<br />
só conseguiria caminhar três dias, consideran<strong>do</strong> outros três para voltar.<br />
Quatro dias viajan<strong>do</strong> não deixariam margem para o retorno. Mas<br />
Mulil não pôs isso em questão. Simplesmente assentiu com a cabeça e<br />
perguntou:<br />
– Quan<strong>do</strong> parto?<br />
– Amanhã, ao raiar <strong>do</strong> dia.<br />
– Mais alguma coisa que devo saber?<br />
– Se você estiver à altura <strong>do</strong> desafio, o deserto lhe dirá. Apenas lembre-se<br />
de tu<strong>do</strong> que já aprendeu. E mais uma coisa: o deserto é caprichoso,<br />
um passo fora da trilha e você poderá nunca mais reencontrá-la.<br />
E, para um discípulo, perder a trilha é o pior <strong>do</strong>s castigos. Agora, sugiro<br />
que você comece os preparativos para a viagem.<br />
Mulil obedeceu sem pestanejar.<br />
TALAL HUSSEINI 143
Outra pessoa talvez tivesse feito mais perguntas. Mulil nada pergun-<br />
tou. Outro discípulo talvez tivesse dúvidas. Mulil não teve nenhuma<br />
dúvida. Outro talvez tivesse me<strong>do</strong>. Mulil não teve me<strong>do</strong>. Era uma jornada<br />
ao desconheci<strong>do</strong>, ao deserto profun<strong>do</strong>, ao nada... O que<br />
Montuhotep pedia levaria certamente à morte. Mas era o seu Mestre<br />
quem pedia. Do que já aprendera, Mulil repetia para si mesmo sempre<br />
uma máxima: confiar nos Mestres até a morte. Agora lhe era dada a<br />
oportunidade de praticar esse ensinamento. Lançou-se sem hesitação<br />
ao desafio. Lançou-se ao deserto.<br />
Mulil partiu só e a pé, pois não considerava justo arrastar consigo<br />
mais nenhuma pessoa ou animal. A tarefa era sua. Caminhou sem maiores<br />
problemas durante os três primeiros dias. Na terceira noite, foi<br />
toma<strong>do</strong> por uma certa agitação. Sua mente de desejos começou a questioná-lo.<br />
Se quisesse sobreviver, na manhã seguinte devia começar o<br />
percurso de volta. Em contrapartida, seguir adiante significava ultrapassar<br />
o ponto sem volta. Dali em diante seria impossível completar o<br />
caminho de retorno.<br />
O castigo que duas noites e três dias no deserto já lhe haviam imposto<br />
até então era uma simples amostra <strong>do</strong> que estaria por vir. A dúvida<br />
assolou Mulil, qual a vaga atinge o roche<strong>do</strong>. Aparentemente não lhe faz<br />
estrago, mas cria frinchas na pedra, enfraquece paulatinamente a estrutura<br />
<strong>do</strong> sóli<strong>do</strong> para em algum momento derrubá-lo. Mulil estava<br />
ciente desse processo, mas as incertezas eram muitas. Dúvida, a fraqueza<br />
da mente. A única forma de impedir a queda <strong>do</strong> roche<strong>do</strong> é evitar<br />
que a água o atinja. Mulil lutava para isto: evitar que a dúvida o atingisse.<br />
Resolveu deixar a decisão para o dia seguinte ao acordar. De<br />
qualquer mo<strong>do</strong>, precisava descansar. Tinha então a dura tarefa de silenciar<br />
seus pensamentos e <strong>do</strong>rmir. Sentia-se mais desgasta<strong>do</strong> pelas<br />
144 PAZ GUERREIRA - FORÇA
últimas horas de pensamentos <strong>do</strong> que por toda a sua caminhada. À noite,<br />
a temperatura caía quase ao ponto de congelamento da água, enquanto<br />
com o Sol a pino, o calor era muito maior <strong>do</strong> que o <strong>do</strong> sangue<br />
humano enquanto circula nas veias. O extremo calor e o extremo frio<br />
não eram o pior, mas sim a mudança brusca, que se dava em poucos<br />
minutos.<br />
Foi uma noite de muitos sonhos, na sua maioria pesadelos, situações<br />
confusas que não permitiam saída. Mulil já havia aprendi<strong>do</strong> algumas<br />
técnicas básicas <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> onírico, como voluntariamente trocar de<br />
sonho ou fazer o sonho parar, mas naquela noite não conseguia aplicálas.<br />
Ficava encurrala<strong>do</strong> num pesadelo, conseguia trocar de sonho e<br />
momentos depois se encontrava novamente na mesma situação. Acor<strong>do</strong>u<br />
exausto antes <strong>do</strong> Sol. Saiu debaixo das suas mantas para o frio da<br />
noite desértica. O ar géli<strong>do</strong> o despertou, precisava decidir: prosseguir<br />
para a morte certa ou retornar e encarar a decepção de seu Mestre.<br />
Sem perceber, Mulil estava à mercê de sua mente inferior.<br />
Foi então que retoman<strong>do</strong> os ensinamentos de seu Mestre parou de<br />
pensar, deixou a decisão para o coração. E seu grande coração lhe<br />
respondeu com uma única palavra que ficou ecoan<strong>do</strong> em sua cabeça:<br />
abismo. Quantas vezes crescera quan<strong>do</strong> se lançara ao abismo? Este era<br />
o maior <strong>do</strong>s abismos com que já se deparara...<br />
Sem mais cogitar, apanhou seus ape<strong>trecho</strong>s e marchou sobre o deserto,<br />
deixan<strong>do</strong> às suas costas o Sol que nascia. Não se voltou para ver o<br />
céu de azul claro sobre o horizonte <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>. Partiu em direção à noite,<br />
como se andan<strong>do</strong> para oeste rápi<strong>do</strong> o bastante pudesse fazer o tempo<br />
parar.<br />
Tornou ainda mais rígi<strong>do</strong> o racionamento <strong>do</strong>s seus víveres e principalmente<br />
da água, que acabou por completo no quinto dia de jornada.<br />
Ainda tinha pão, mas parou de comê-lo para evitar que a sede o castigasse<br />
mais ainda. Mais se arrastava <strong>do</strong> que caminhava em direção ao<br />
TALAL HUSSEINI 145
Sol que se punha, como lhe tinha indica<strong>do</strong> seu Mestre. Sua pele estava<br />
toda rachada pelo Sol. Seus lábios pareciam ter escamas, que sangra-<br />
vam ao menor movimento, devi<strong>do</strong> à agrura da ausência de líqui<strong>do</strong>. Seu<br />
corpo chegava ao limite. Suas últimas forças eram consumidas rapidamente.<br />
Ele já tentava apenas manter-se sob controle, para morrer com<br />
dignidade e não choran<strong>do</strong> em desespero como aqueles sem trilha, nem<br />
guia. De repente, mais para a sua direita, a salvação...<br />
Mulil vislumbrara algumas palmeiras. Vegetação significava água.<br />
Juntou o ânimo que lhe restava e correu como pôde em direção àquele<br />
oásis, que estava mais longe <strong>do</strong> que lhe parecera inicialmente, pois não<br />
chegava nunca. Subitamente, o oásis evaporou diante <strong>do</strong>s seus olhos.<br />
Foi quan<strong>do</strong> se deu conta de que estava mais perto <strong>do</strong> que calculara,<br />
estava na sua mente. Miragem. O deserto pregava peças e pregou-lhe a<br />
maior de todas, pois a noite caíra, e Mulil saíra da trilha. No deserto,<br />
basta afastar-se alguns passos da trilha para perdê-la para sempre.<br />
Mulil se afastara bastante.<br />
Deixou-se cair de joelhos sobre a areia macia e ali permaneceu,<br />
prostra<strong>do</strong>, durante longos minutos. Ou seriam horas? Já não sabia. Era<br />
o fim, ele falhara. Lembrou-se então de algo que um beduíno certa vez<br />
lhe ensinara para sobreviver – ao menos um pouco mais – no deserto.<br />
O homem lhe relatara uma situação parecida com esta em que ora se<br />
encontrava. Sobrevivera extrain<strong>do</strong> água <strong>do</strong> estômago <strong>do</strong> camelo, beben<strong>do</strong><br />
seu sangue e utilizan<strong>do</strong> a gordura de suas corcovas. Mulil não<br />
tinha camelo. Tirou sua faca, fez um corte no antebraço e bebeu seu<br />
próprio sangue. Adiava um pouco a desidratação completa. Colocou-se<br />
senta<strong>do</strong> sobre os joelhos, para meditar.<br />
Depois da prova <strong>do</strong> falcão na tempestade de areia, Montuhotep o levara<br />
a um templo em que passaria por uma primeira grande sala com<br />
várias esfinges enfileiradas <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s, umas de frente para as outras.<br />
Ali passara por provas que lhe permitiriam um eleva<strong>do</strong> grau de<br />
146 PAZ GUERREIRA - FORÇA
<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> seu corpo físico. Resgatou então aquele conhecimento para<br />
relevar as <strong>do</strong>res que seu corpo ora lhe impunha. Sentiu-se melhor polarizan<strong>do</strong><br />
e ven<strong>do</strong> as reais condições que aquele corpo ainda tinha para<br />
levá-lo mais adiante naquela missão. Sim, era possível prosseguir. Após<br />
a sala com as esfinges, passava por um gigantesco portal, forma<strong>do</strong> por<br />
<strong>do</strong>is obeliscos encima<strong>do</strong>s por bandeiras flamejantes, que lhe permitiam<br />
administrar com eficiência a energia que o animava. Conseguiu então<br />
infundir uma nova carga de vitalidade no seu corpo alquebra<strong>do</strong>. Passava,<br />
então, à terceira sala, que era na verdade um pátio aberto, onde os<br />
sacer<strong>do</strong>tes faziam as curas, inclusive pelo sonho, e ensinavam a controlar<br />
as emoções – o que lhes permitia também <strong>do</strong>minar os animais –,<br />
evitan<strong>do</strong> que elas o fizessem se sentir destruí<strong>do</strong> antes de a destruição de<br />
fato chegar.<br />
Essa meditação recompôs Mulil. O repouso da noite completaria a<br />
recuperação. Mas ainda restava um problema grave: saíra da trilha e<br />
não sabia como reencontrá-la. Ademais, nem mesmo sabia para onde<br />
essa trilha o levaria, apenas acreditava que o levaria a algum lugar<br />
com base na confiança que depositava em Montuhotep. Foi com essa<br />
confiança que Mulil caiu no sono, ainda em posição de meditação.<br />
Ele era novamente um falcão. Alçou voo para a noite infinita. Mesmo<br />
na escuridão, o céu ainda tinha a luz das estrelas. O chão parecia um<br />
imenso oceano negro. Era curioso como sempre que ficava entre o céu<br />
e a terra preferia o céu. Passou-lhe a ideia de não mais voltar, mas sua<br />
missão naquele momento era na terra. Em meio ao negrume da areia<br />
<strong>do</strong> deserto, viu um caminho <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>, muito níti<strong>do</strong>. Viu também seu corpo<br />
ajoelha<strong>do</strong> na areia ao longe e soube então como retomar a trilha.<br />
Era uma oportunidade a poucos dada no deserto. Bastava seguir os<br />
ensinamentos da tradição: sempre que estiver em dúvida sobre que caminho<br />
seguir, escolha o mais difícil.<br />
TALAL HUSSEINI 147
Quan<strong>do</strong> amanheceu o dia, Mulil analisou o local em que estava.<br />
Areia de to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s, exceto de um. To<strong>do</strong>s sabiam que o deserto fora<br />
mar em outras épocas. Havia então algumas áreas em que esse mar<br />
salga<strong>do</strong> ficava petrifica<strong>do</strong>, forman<strong>do</strong> uma crosta de sal que tornava<br />
ainda mais forte o calor, pois refletia de forma intensa a luz <strong>do</strong> Sol.<br />
Tais locais eram muito perigosos, pois, além <strong>do</strong> calor insuportável e <strong>do</strong><br />
perigo de rompimento da superfície salgada – o que poderia tragar<br />
uma pessoa ou animal de forma muito mais rápida e fatal <strong>do</strong> que areia<br />
movediça –, ali era um habitat profícuo para milhares de escorpiões.<br />
Sem nenhuma dúvida, aquele era o caminho mais difícil. Sem mais digressões,<br />
Mulil prosseguiu por ali. E conseguiu encontrar a trilha.<br />
Era o sétimo dia. Montuhotep lhe dissera para prosseguir durante sete<br />
dias, mas ele não via absolutamente nada nem ninguém. Pensou que<br />
seu ritmo de viagem não fora intenso o bastante. Talvez por se ter perdi<strong>do</strong><br />
teve seu itinerário atrasa<strong>do</strong>.<br />
Continuou caminhan<strong>do</strong> o quanto pôde, mas num da<strong>do</strong> momento suas<br />
forças o aban<strong>do</strong>naram por completo. O expediente de beber o sangue<br />
era um paliativo que só o enfraqueceria naquela altura. As meditações<br />
para concentrar as energias também não podiam mais ajudá-lo, pois<br />
seus recursos de simples discípulo haviam chega<strong>do</strong> ao fim.<br />
Enfrentara com bravura os limites humanos e a força da natureza, ali<br />
representada pelo fogo <strong>do</strong> deserto, mas agora não restava mais nada.<br />
Curvou-se, humilde, e reconheceu a soberania <strong>do</strong>s deuses. Usou suas<br />
últimas forças para agradecer pela feliz encarnação que tivera, com a<br />
oportunidade de ter ti<strong>do</strong> um Mestre. E pela primeira vez em suas orações<br />
pediu. Pediu que alguém pudesse ter êxito nesta empreitada em<br />
que falhara. E pediu para novamente nascer discípulo na sua próxima<br />
encarnação. Caiu com o rosto sobre a areia escaldante.<br />
148 PAZ GUERREIRA - FORÇA
K<br />
25.<br />
adriel acor<strong>do</strong>u com o coração dispara<strong>do</strong>. Aqueles sonhos tinham<br />
de ter algum significa<strong>do</strong>, alguma relação com sua vida.<br />
O que Mulil estava buscan<strong>do</strong>? Por que seu Mestre o mandara para a<br />
morte? Que presságio lúgubre era aquele?<br />
Sim, só podia significar o fim de seu reina<strong>do</strong> que não foi. Não havia<br />
placa. Sokárin não fizera a troca. Adaran era o novo rei, aclama<strong>do</strong> em<br />
cerimônia pública após a abertura da placa. É certo que a atividade de<br />
Anthar diluíra a atenção de to<strong>do</strong>s, povo ou nobreza. Não foi possível<br />
reunir novamente a assistência para o encerramento oficial da coroação,<br />
pois a consternação foi geral. Até um certo pânico se iniciou com pessoas<br />
deixan<strong>do</strong> suas casas com o que podiam, para aban<strong>do</strong>nar a cidade e<br />
escapar à cólera <strong>do</strong> vulcão.<br />
O Chefe <strong>do</strong> Conselho <strong>do</strong>s Anciãos passou então o cetro real a Adaran<br />
e pronto, nada mais. O País tem novo rei. Hoje era o dia seguinte. To<strong>do</strong>s<br />
aguardavam os primeiros decretos <strong>do</strong> novo monarca. Kadriel começou<br />
desanima<strong>do</strong> esse dia. Precisava falar com Ravi. Aprontou-se rapidamente<br />
e saiu. Nem conversou direito com Mirta, que chegava à sua casa<br />
naquele momento, encontran<strong>do</strong>-o já de saída <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora. Ela trajava<br />
uma roupa provocante, como de hábito, que salientava as formas de seu<br />
corpo. Kadriel mal reparou, perguntan<strong>do</strong> de maneira seca, o que não lhe<br />
era peculiar:<br />
– O que faz aqui, Mirta?<br />
– Bakar convi<strong>do</strong>u-me para a reunião de logo mais. Como aqui é meu<br />
caminho, resolvi passar um pouco antes, para podermos conversar em<br />
particular...<br />
– Infelizmente, não poderemos conversar agora, pois estou de saída.<br />
Mas foi bom que você veio – Mirta abriu um sorriso, que se desfez logo<br />
TALAL HUSSEINI 149
que Kadriel completou sua frase: – preciso que você avise Bakar de que<br />
a reunião deverá ser adiada para o perío<strong>do</strong> da tarde. Peça a ele que avise<br />
aos demais, por favor.<br />
– Sim, é claro... – respondeu Mirta, mal conseguin<strong>do</strong> esconder seu ar<br />
de desapontamento, no qual Kadriel nem sequer reparou, sain<strong>do</strong> e deixan<strong>do</strong><br />
a moça plantada no meio da rua.<br />
Quan<strong>do</strong> se dirigia à casa de Ravi, Kadriel ouviu gritos que eram de<br />
um homem cujo cavalo havia dispara<strong>do</strong>. As pessoas que estavam à volta<br />
nada faziam. Quan<strong>do</strong> Kadriel tomou um cavalo para perseguir o conjunto<br />
descontrola<strong>do</strong> e tentar pará-lo, uma mulher já havia toma<strong>do</strong> a dianteira<br />
com o mesmo intuito. Kadriel apertou o passo de sua cavalgadura,<br />
mas a amazona era bastante hábil e a distância não encurtava. Quan<strong>do</strong><br />
ela já estava bem próxima <strong>do</strong> cavalo dispara<strong>do</strong>, o ginete deste despencou.<br />
Ao tocar o solo, ouviu-se o estali<strong>do</strong> seco de algo se deslocan<strong>do</strong> ou<br />
quebran<strong>do</strong>. Imediatamente, a moça desmontou e aproximou-se para<br />
verificar o esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> caí<strong>do</strong> e ajudá-lo se possível.<br />
O cavalo responsável pela queda, alivia<strong>do</strong> <strong>do</strong> peso que o atormentava,<br />
diminuiu o ritmo e parou mais adiante.<br />
O homem caí<strong>do</strong> estava páli<strong>do</strong>, condição típica da baixa de pressão<br />
sanguínea causada pelo rompimento de tendões. O ombro estava desloca<strong>do</strong>,<br />
o que projetava to<strong>do</strong> o braço para frente. O homem gritava de <strong>do</strong>r.<br />
Nesse momento, Kadriel já havia chega<strong>do</strong> ao local mas só fez observar,<br />
uma vez que a situação estava totalmente controlada pela mulher. Ela<br />
falava mansamente com o feri<strong>do</strong>, tranquilizan<strong>do</strong>-o e dizen<strong>do</strong> que não<br />
era nada de grave, explicava que era médica e que iria verificar as condições<br />
da lesão. Sua voz era suave e, de fato, tranquilizou não só a vítima<br />
da queda como também Kadriel, que tinha os olhos fixos nos longos<br />
cachos da médica.<br />
150 PAZ GUERREIRA - FORÇA
Ao mesmo tempo em que conversava com o paciente, que já estava<br />
bem mais tranquilo, a moça tocou de leve o ombro desloca<strong>do</strong> com a<br />
ponta <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s de uma mão, enquanto com a outra segurava o pulso <strong>do</strong><br />
homem. Num movimento rápi<strong>do</strong>, preciso e suave, recolocou o braço no<br />
lugar. Kadriel estava deveras impressiona<strong>do</strong>, e o homem agradeci<strong>do</strong>.<br />
Movia o braço para um la<strong>do</strong> e outro, como que para se convencer de<br />
que estava realmente conserta<strong>do</strong>. A médica entregou ao homem algumas<br />
ervas e lhe recomen<strong>do</strong>u:<br />
– Faça com isto uma infusão e aplique no local durante três dias.<br />
Nesse perío<strong>do</strong> deve evitar grandes esforços com esse braço. Depois disso,<br />
estará novo.<br />
Kadriel observara tu<strong>do</strong> atentamente, embasbaca<strong>do</strong> com a desenvoltura<br />
daquela moça. Sem ver seu rosto, já a achava linda. Ao menos seus<br />
cabelos o eram, e sua voz... Após certificar-se de que seu paciente inespera<strong>do</strong><br />
estava mesmo bem, levantou-se, voltan<strong>do</strong>-se para Kadriel, que<br />
ficou mu<strong>do</strong> ao cruzarem olhares. Aqueles olhos verdes... pensava reconhecê-los.<br />
Finalmente, quebrou a hipnose em que o haviam induzi<strong>do</strong> e<br />
pôde ver to<strong>do</strong> o seu rosto, de pele clara, entorna<strong>do</strong> por cabelos negros,<br />
sorriso luminoso de dentes perfeitos. Kadriel pensou estar diante da<br />
mulher de sua vida. Logo, seus arranjos mentais começaram a fornecerlhe<br />
uma identidade. Balbuciou:<br />
– Mas você é...<br />
– Dhara – ela completou – e você é Kadriel!<br />
Kadriel estava obten<strong>do</strong> relativo êxito em não fazer cara de parvo, mas<br />
estava obviamente desajeita<strong>do</strong>. Lembrou-se <strong>do</strong> dia em que se despediram,<br />
ainda crianças, e de como tivera a certeza de que a reencontraria.<br />
Esse dia demorou a chegar, mas finalmente ali estava Dhara, diante dele,<br />
a menina se tornara uma bela mulher. Não sabia como reagir, o que<br />
dizer, se a abraçava, se estendia a mão. O impasse não deve ter dura<strong>do</strong><br />
TALAL HUSSEINI 151
mais <strong>do</strong> que alguns segun<strong>do</strong>s, que lhe pareceram séculos. Foi Dhara<br />
quem, perceben<strong>do</strong> a situação, quebrou o gelo:<br />
– Será que uma velha amiga não merece ao menos um abraço?<br />
Não foi necessário repetir a pergunta, Kadriel estreitou-a nos braços,<br />
numa união terna. Quanto durou aquele abraço? Provavelmente nenhum<br />
<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is saberia dizer. Kadriel tampouco sabia o que Dhara pensava<br />
naquele momento, mas ele... vivera toda uma vida ao la<strong>do</strong> dela naquele<br />
instante. Sua mente e seu corpo reagiam... Tinha agora certeza <strong>do</strong> que<br />
antes apenas ousara supor: estava diante da mulher da sua vida.<br />
C<br />
26.<br />
ustara-lhe muito chegar até lá, mas agora o Capitão se recuperava<br />
das suas mazelas físicas. Aquela área montanhosa não<br />
recebia visitantes, da<strong>do</strong> o seu acesso difícil e as suas condições hostis.<br />
Ele mantinha por lá uma cabana de caça com suprimentos e materiais<br />
necessários para passar ali um bom tempo. Havia o inconveniente de<br />
não poder se aquecer com o fogo, para não chamar a atenção de ninguém<br />
com a fumaça. Ainda que realmente não houvesse trânsito de pessoas,<br />
o Capitão não queria correr nenhum risco de ser encontra<strong>do</strong> antes<br />
de estar completamente recupera<strong>do</strong>.<br />
Nas proximidades havia um grande lago de água gelada, onde se banhava.<br />
Gostava da energia da água. A baixa temperatura lhe fazia <strong>do</strong>er<br />
até os ossos. Mas o Capitão de certa maneira queria impor a si mesmo<br />
aquele sofrimento. Suas feridas psíquicas eram graves. Sentia culpa por<br />
ter envolvi<strong>do</strong> sua família em questões de esta<strong>do</strong>, o que resultara na sua<br />
morte. Sentia ódio <strong>do</strong>s assassinos. Sentia raiva de si mesmo por ter cedi<strong>do</strong><br />
à coação. Alimentava sua sanidade com a vingança. Mas estava no<br />
152 PAZ GUERREIRA - FORÇA
limiar da loucura. Às vezes, ele mesmo não tinha absoluta certeza se<br />
não enlouquecera, se não estava viven<strong>do</strong> um pesadelo tenebroso, <strong>do</strong><br />
qual acordaria a qualquer momento. Mas seu sono era tão agita<strong>do</strong> quanto<br />
seus dias. Sempre que acordava, percebia que ainda estava naquele<br />
purgatório psicológico. Talvez alguma outra pessoa, no seu lugar, tivesse<br />
opta<strong>do</strong> por interromper sua vida. Mas o Capitão, não. Apenas a certeza<br />
de que acabaria com to<strong>do</strong>s que tiveram alguma relação com a morte<br />
de sua esposa e filha o mantinha lúci<strong>do</strong>.<br />
Contava os dias para esse momento de glória, que provavelmente seria<br />
o seu último... Planejava, traçava roteiros, depois os mudava, criava<br />
outros, voltava aos anteriores. Sua mente era um turbilhão. Ele mesmo<br />
sabia que só poderia partir para a ação quan<strong>do</strong> conseguisse aquietar seus<br />
pensamentos. E isso ocorreria quan<strong>do</strong> também seu corpo estivesse forte<br />
o bastante para a batalha que esperava por ele, um lobo que caça solitário<br />
sob a luz errante da noite.<br />
G<br />
27.<br />
entilmente, Haggi voltou-se para o líder da Aliança das Doze<br />
Cidades, agradecen<strong>do</strong> sua hospitalidade e os ensinamentos<br />
sobre o espírito guerreiro <strong>do</strong>s leões, mas dizen<strong>do</strong> que tinha agora outros<br />
assuntos para tratar. Foi então em direção a Ivis, sob os olhares marotos<br />
das suas companheiras, acompanha<strong>do</strong>s de risinhos e cochichos. Ivis<br />
enrubesceu, o que a tornou ainda mais atraente para o diplomata, que<br />
lhe estendeu a mão dizen<strong>do</strong>:<br />
– Você prometeu sentar-se comigo durante o jantar...<br />
Antes que ela respondesse, uma das mulheres <strong>do</strong> grupo se antecipou:<br />
TALAL HUSSEINI 153
– Sente-se você aqui conosco. Não é sempre que temos a honra da<br />
companhia de homens refina<strong>do</strong>s.<br />
– É claro que muito me agradaria estar entre tão formosas damas, mas<br />
minha estada na cidade será de apenas algumas semanas, com uma agenda<br />
oficial muito cheia, o que me deixará pouco tempo para conversas<br />
agradáveis como a que preciso ter com Ivis. Portanto, sei que entenderão<br />
– concluiu alçan<strong>do</strong> para fora <strong>do</strong> grupo Ivis, que já lhe pegara a<br />
mão estendida.<br />
– Obrigada por me salvar – sussurrou-lhe a moça quan<strong>do</strong> já se afastavam<br />
– não aguentava mais as conversas banais, das quais por sinal você<br />
foi objeto.<br />
– Devo ficar preocupa<strong>do</strong>?<br />
– Creio que eu deveria, pois elas queriam devorá-lo vivo – disse sorrin<strong>do</strong>.<br />
O jovem casal sentou-se a uma mesa mais no canto da sala, sob o<br />
olhar atento de Nakan, que discretamente observava seus movimentos.<br />
Beberam algumas taças de vinho, não o suficiente para inebriar-se, mas<br />
o bastante para perder um pouco a inibição. Quem os visse poderia pensar<br />
se tratar de um casal uni<strong>do</strong> há muito tempo, pois riam e pareciam ter<br />
uma intimidade de fazer inveja a muitos casais.<br />
Os <strong>do</strong>is saíram para um balcão, onde podiam respirar o ar fresco da<br />
noite e ficar mais distantes <strong>do</strong>s olhares e da música. A companhia de<br />
Ivis realmente agradava a Haggi e a recíproca era verdadeira. Havia<br />
uma empatia entre eles. De repente, veio aquele momento de silêncio,<br />
em que toda a animada conversa cessa, restam os olhares e sorrisos inibi<strong>do</strong>s.<br />
É o momento <strong>do</strong> beijo. Agora, Haggi sentia que Ivis, de fato, estava<br />
com ele, por ela mesma e não por determinação de Nakan ou de<br />
quem quer que fosse. Ele aproximou seus lábios <strong>do</strong>s dela, parou quan<strong>do</strong><br />
faltavam aproximadamente dez por cento <strong>do</strong> percurso. Esse último tre-<br />
154 PAZ GUERREIRA - FORÇA
cho cabia à mulher, se ela quisesse de verdade o beijo ela o percorreria,<br />
caso contrário, se afastaria.<br />
Haggi, como bom cavalheiro, esperou, os olhos crava<strong>do</strong>s nos de Ivis.<br />
Tinha de esperar o tempo que fosse necessário até sua definição. Ela<br />
sorriu com os olhos, e se aproximou. As mulheres costumam depositar<br />
muita confiança no primeiro beijo, pensam que por ele podem descobrir<br />
muitas coisas sobre um homem, inclusive se será um companheiro ideal.<br />
Ivis sorriu e disse:<br />
– Acho que já está tarde. Vou me retirar – beijou Haggi na face e partiu,<br />
completan<strong>do</strong>: – amanhã nos vemos. Boa noite.<br />
– Boa noite...<br />
Finalmente Haggi fora surpreendi<strong>do</strong>. No jogo da sedução, fora coloca<strong>do</strong><br />
em cheque. Resolveu ir para os seus aposentos, mas o sono não se<br />
apresentava. Pensou que a paciência necessária no amor era ainda maior<br />
<strong>do</strong> que a necessária na diplomacia. Era fato que com esse movimento<br />
Ivis se tornara ainda mais atraente para ele.<br />
No dia seguinte pela manhã, Haggi encontrou-se com Nakan para um<br />
combate com sabres, como haviam combina<strong>do</strong>. Era a oportunidade ideal<br />
para tratar de assuntos importantes sem ouvintes indesejáveis por perto.<br />
Os <strong>do</strong>is homens eram bastante hábeis com a espada. Haggi tinha um<br />
estilo mais sutil, de movimentos leves e rápi<strong>do</strong>s, boas esquivas e contraataques.<br />
Nakan se destacava pela força e intensidade <strong>do</strong>s golpes, bem<br />
como por sua cadência constante, que obrigava o oponente a movimentar-se<br />
to<strong>do</strong> o tempo. Haggi sentia mais dificuldade em lutar com Nakan<br />
<strong>do</strong> que com Adaran, seu adversário principal na Capital, talvez porque<br />
já conhecesse melhor seu jogo. Mas o fato é que confiava em vencer<br />
qualquer um a qualquer momento. Fazia o jogo <strong>do</strong> adversário, esperan<strong>do</strong><br />
o momento ideal para o ataque fulminante. O duelo seguia acirra<strong>do</strong>.<br />
TALAL HUSSEINI 155
Não havia espaço para conversa. Quan<strong>do</strong> finalmente os <strong>do</strong>is concordaram<br />
em fazer um intervalo, sem que se pudesse apontar um vence<strong>do</strong>r,<br />
Haggi tomou a iniciativa:<br />
– E então, Nakan, como estão os chefes das cidades que compõem a<br />
aliança em relação ao processo sucessório?<br />
– A Aliança <strong>do</strong>s Doze está unida. Ninguém manifestou nenhuma insurgência<br />
contra a sucessão.<br />
– Mas, para fazermos um exercício de raciocínio, se houvesse tal discordância,<br />
todas as cidades estariam unidas nessa dissidência?<br />
– Você me faz uma pergunta difícil de responder, Haggi. Eu diria que<br />
sim, mas em questões políticas é difícil ter absoluta certeza.<br />
– Você tem dúvidas quanto à sua liderança?<br />
– É claro que não, até porque sob a bandeira <strong>do</strong>s gêmeos, símbolo<br />
que representa a minha cidade, luta o exército mais poderoso da Aliança.<br />
Isoladamente, talvez só o exército da Capital nos supere em número<br />
e força. Então, é uma liderança com lastro – sorriu Nakan.<br />
– Como está Egas, o velho Leão? To<strong>do</strong>s sabem que ele esperava ter<br />
si<strong>do</strong> nomea<strong>do</strong> no seu lugar para essa liderança. Se ele resolvesse unir<br />
forças com outras cidades, poderia contestá-lo...<br />
– Se ele tivesse essa pretensão, já o teria feito. É evidente que ele não<br />
ficaria triste se eu quebrasse o pescoço numa caçada. Mantemos boas<br />
relações diplomáticas, mas não confiamos um no outro. Haggi, meu<br />
amigo, sei que fazer esta observação é a sua atribuição, porém não devemos<br />
colocar problemas onde eles ainda não existem.<br />
– Esta região é muito rica. Você sabe o quanto foi difícil unificá-la e<br />
mantê-la fiel ao País. Depois de muitos séculos, somente Gur Medhavin<br />
foi capaz de consegui-lo. Qualquer inconsistência poderia reacender o<br />
espírito separatista <strong>do</strong> povo.<br />
156 PAZ GUERREIRA - FORÇA
– Não creio nisso, mas vou ficar atento. Amanhã bem ce<strong>do</strong> sigo via-<br />
gem para a Capital, para a cerimônia de abertura da placa. Você virá<br />
comigo?<br />
– Não, minha missão ainda não terminou por aqui...<br />
– Enten<strong>do</strong>. Ivis...<br />
– Nakan, você me toma por um cafajeste – respondeu Haggi, sorrin<strong>do</strong><br />
– são assuntos de Esta<strong>do</strong>.<br />
– É claro, Haggi, é claro. Bem, você terá alguns dias para tratar des-<br />
ses assuntos sem a minha presença. Ainda estará aqui quan<strong>do</strong> eu voltar?<br />
– Sem nenhuma dúvida. Creio que ainda teremos muito que conver-<br />
sar depois da posse <strong>do</strong> novo rei.<br />
Haggi provavelmente já conheceria o nome <strong>do</strong> sucessor antes <strong>do</strong> re-<br />
torno de Nakan, pois mantinha uma eficiente rede de inteligência por<br />
to<strong>do</strong> o País e inclusive fora dele.<br />
– Aguenta mais um combate?<br />
Haggi, sem responder, levantou-se, pegou seu sabre e tomou posição<br />
de guarda. Lutaram por mais duas horas, para ao final não se definir um<br />
vence<strong>do</strong>r. Sim, um empate. Nakan parecia mais feliz <strong>do</strong> que Haggi, pois<br />
normalmente perdia. O diplomata, entretanto, não parecia abala<strong>do</strong>. Não<br />
que a técnica de Nakan tivesse melhora<strong>do</strong> muito, mas ele lutava com<br />
uma garra impressionante.<br />
– Foi um bom combate – concluiu Haggi.<br />
– Concor<strong>do</strong>. Você foi cortês com seu anfitrião não o derrotan<strong>do</strong> em<br />
sua própria casa. Mas da próxima vez, espero mais <strong>do</strong> que isso.<br />
– Nakan, você sabe que eu jamais amoleço num combate. Você é que<br />
lutou bem mesmo – respondeu Haggi, com semblante impassível, mas<br />
pensan<strong>do</strong> consigo mesmo o quão astuto era o líder da Aliança. Jamais<br />
pôde ter certeza se ele realmente sabia, ou se só estava tentan<strong>do</strong> fazer<br />
com que Haggi se traísse.<br />
TALAL HUSSEINI 157
O jogo de cena também terminou empata<strong>do</strong>, pois os <strong>do</strong>is se mantive-<br />
ram indiferentes. Nakan se despediu:<br />
– Ainda nos veremos esta noite, pois darei um jantar para anunciar o<br />
noiva<strong>do</strong> de minha filha.<br />
– Ah, sim, você tem uma filha que estudava fora <strong>do</strong> País, não é mes-<br />
mo? Não me lembro dela.<br />
– Tenho certeza de que se lembrará quan<strong>do</strong> a vir. Ela tem me auxilia-<br />
<strong>do</strong> muito no governo desde que retornou. É muito capaz. O mesmo não<br />
se pode dizer <strong>do</strong> homem que ela escolheu...<br />
– Você não o aprova?<br />
– Não devia comentar estes assuntos particulares, mas sei que posso<br />
confiar em você, e não tenho mais ninguém com quem possa me abrir<br />
com relação a isso. Eu o considero um fraco, apesar de ser de uma das<br />
famílias mais ricas da região. Foi um amor de infância que ela reencontrou<br />
na sua volta, mas ela ainda o vê com os olhos de a<strong>do</strong>lescente. Apesar<br />
de ser muito lúcida para certas coisas, não está agin<strong>do</strong> de forma madura<br />
neste caso.<br />
– Por que você simplesmente não impede o casamento?<br />
– Em primeiro lugar, porque em minha casa sempre tratamos com liberdade<br />
as questões eminentemente pessoais. Na vida pública, já não<br />
temos muito espaço para nós mesmos. Se o tolhermos mais ainda, nada<br />
restará. E depois porque a minha oposição seria o suficiente para a decisão<br />
final dela a favor desse casamento. Fosse um assunto de Esta<strong>do</strong>, ela<br />
me obedeceria de mo<strong>do</strong> absoluto. Mas na sua vida pessoal não gosta de<br />
imposições e é muito determinada.<br />
– Neste caso, não sei o que dizer. Creio que só lhe resta esperar pelo<br />
inespera<strong>do</strong>.<br />
– Só me resta contar com que ela veja a realidade por si mesma. Vemo-nos<br />
à noite.<br />
– Até lá.<br />
158 PAZ GUERREIRA - FORÇA
Após descansar em seus aposentos, Haggi se propôs uma missão para<br />
aquela tarde: encontrar Ivis. Mas ela havia desapareci<strong>do</strong>. Vasculhou<br />
to<strong>do</strong> o palácio sem sucesso. Perguntava aos serviçais, mas to<strong>do</strong>s o olha-<br />
vam com estranheza e não respondiam. A última esperança era o jantar.<br />
A música já tocava e o vinho já era servi<strong>do</strong>. To<strong>do</strong>s os convivas come-<br />
çavam a soltar-se e desinibir-se, Haggi vasculhava com os olhos to<strong>do</strong> o<br />
salão, e nada de avistar Ivis. Nakan fez sinal para que se aproximasse:<br />
– Noto que você está inquieto, meu amigo.<br />
– Estou bem – respondeu, sem deixar de procurar com os olhos.<br />
– Não está encontran<strong>do</strong> o que procura?<br />
– Aquela moça que estava presente no dia da minha chegada, Ivis,<br />
não a vejo por aqui.<br />
– Não se aflija, tenho certeza de que logo ela aparecerá – respondeu<br />
Nakan.<br />
Haggi pensou ter senti<strong>do</strong> um tom de ironia na voz <strong>do</strong> líder, mas relevou.<br />
Os arautos anunciaram a presença <strong>do</strong> futuro noivo, que já dava sinais<br />
claros de embriaguez. Isso poderia se explicar pela ocasião mas, soma<strong>do</strong><br />
às preocupações que o pai da futura noiva lhe manifestara, tal impressão<br />
fez com que Haggi sentisse imediata antipatia pelo sujeito. A filha de<br />
Nakan surgiu. Quan<strong>do</strong> a viu, Haggi ficou lívi<strong>do</strong>.<br />
Os arautos anunciaram:<br />
– Damas e cavalheiros, a filha <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r Nakan: Ivis!<br />
Apenas Nakan percebeu, porque o observava, a reação de surpresa de<br />
Haggi, mas o diplomata prontamente se restabeleceu. Ivis estava linda!<br />
O ébrio noivo foi em sua direção, com um sorriso aboba<strong>do</strong> estampa<strong>do</strong><br />
na face, e a tomou pelo braço, dirigin<strong>do</strong>-se à mesa que lhes estava reservada,<br />
ao la<strong>do</strong> da de Nakan, onde estava Haggi.<br />
O governa<strong>do</strong>r se levantou para fazer o anúncio. Ficou em pé, em silêncio<br />
por alguns segun<strong>do</strong>s, até que to<strong>do</strong>s se aquietassem. Aguar<strong>do</strong>u<br />
TALAL HUSSEINI 159
mais alguns segun<strong>do</strong>s para se certificar de que to<strong>do</strong>s lhe davam a devida<br />
atenção e então proclamou:<br />
– Senhoras e senhores aqui presentes, a noite de hoje é muito especial<br />
para to<strong>do</strong>s, especialmente para minha filha, Ivis. Não posso dizer que eu<br />
esteja feliz, pois qual é o pai que gosta de entregar sua filha? Mas, en-<br />
fim, se ela está feliz, tenho que aceitar os fatos. Oficializo perante to<strong>do</strong>s<br />
o noiva<strong>do</strong> de Ivis e Garat – completou secamente.<br />
To<strong>do</strong>s aplaudiram. Os noivos sinalizaram um brinde para Nakan com<br />
suas taças. Quan<strong>do</strong> a audiência silenciou, Garat ficou com a palavra:<br />
– Agradeço as palavras, senhor Governa<strong>do</strong>r, e lhe digo que farei sua<br />
filha muito feliz. Pode estar tranquilo. Também eu gostaria de fazer um<br />
anúncio – Ivis pegou no seu braço para tentar contê-lo, mas foi em vão<br />
– quero dizer que a data <strong>do</strong> casamento...<br />
Nakan o interrompeu abruptamente, mas com um sorriso:<br />
– Meu caro Garat, creio que é muito ce<strong>do</strong> para falarmos em datas.<br />
Não criemos expectativas ce<strong>do</strong> demais. Aproveitem esse momento de<br />
noiva<strong>do</strong> e mais tarde, então, sim, poderão marcar a data.<br />
Garat ainda fez menção de continuar falan<strong>do</strong>, mas Nakan finalizou<br />
qualquer possibilidade disso:<br />
– Insisto! Não falaremos de datas esta noite. Senhores músicos, toquem!<br />
Senhores convida<strong>do</strong>s, aproveitem a noite!<br />
Não restou ao alegre noivo senão voltar-se para sua taça de vinho,<br />
que estava longe de ser a primeira da noite e mais longe ainda de ser a<br />
última.<br />
Os convida<strong>do</strong>s afluíam para cumprimentar os noivos.<br />
Haggi voltou-se para o governa<strong>do</strong>r, em tom cínico:<br />
– Que demonstração de alegria, Nakan!<br />
– Não sou homem de dissimular minhas opiniões. Ivis sabe que não<br />
aprovo este noiva<strong>do</strong> e quero que isso fique muito claro também para<br />
Garat.<br />
160 PAZ GUERREIRA - FORÇA
– Não creio que ele tenha compreendi<strong>do</strong>, consideran<strong>do</strong> seu esta<strong>do</strong>...<br />
Nakan, posso lhe fazer uma pergunta?<br />
– Faça!<br />
– Por que, no dia em que aqui cheguei, você man<strong>do</strong>u Ivis acompa-<br />
nhar-me, se sabia que ela ficaria noiva?<br />
– Era um teste.<br />
– Para mim ou para ela?<br />
– Para ambos.<br />
Haggi entendeu que não conseguiria extrair mais <strong>do</strong> que isso de<br />
Nakan. Mu<strong>do</strong>u de assunto:<br />
– Bem, acho que está na hora de cumprimentar os noivos – deixou a<br />
mesa, toman<strong>do</strong> nas mãos uma maçã.<br />
Aproximou-se da mesa <strong>do</strong>s noivos, estendeu a mão para Garat, mas<br />
não desviava os olhos de Ivis:<br />
– Meus parabéns, Garat! Você é um homem de muita sorte. Sua noi-<br />
va, se me permite dizer, é a mais bela dama deste lugar. Vejo que to<strong>do</strong>s<br />
vieram prepara<strong>do</strong>s com belos presentes, mas infelizmente eu não sabia<br />
da razão deste jantar. O que me trouxe a Rubatis foram outros propósitos.<br />
Mesmo assim, com a sua licença, não gostaria de me furtar a presentear<br />
a noiva.<br />
Dizen<strong>do</strong> isso, cumprimentou-a com uma mão e estendeu-lhe a maçã<br />
com a outra.<br />
Ivis sorriu francamente:<br />
– É uma bela maçã, mas confesso que é o presente mais inusita<strong>do</strong> que<br />
recebi...<br />
– Ela é muito mais <strong>do</strong> que parece. A uma mulher complexa e misteriosa<br />
forçosamente devem agradar os mistérios, que podem estar presentes<br />
mesmo nas pequenas coisas.<br />
– Mas que mistério pode residir numa maçã?<br />
TALAL HUSSEINI 161
Ao responder, Haggi olhou rapidamente para Garat, de forma que só<br />
Ivis o percebesse, e emen<strong>do</strong>u:<br />
– O primeiro deles é que uma maçã, quan<strong>do</strong> está podre, cai sozinha...<br />
Tarin, que um pouco afasta<strong>do</strong> de seu Mestre ainda assim ouvia toda a<br />
conversa, pensou consigo: “cai sozinha, mas um vento sempre pode<br />
ajudar...”. Conhecia seu patrão. Sabia que ele já articulava em sua mente<br />
toda uma estratégia para conquistá-la. Nunca o vira falhar nesse intento.<br />
Ivis perguntou:<br />
– Mas quan<strong>do</strong> uma maçã podre cai, surge outra em seu lugar?<br />
– Sempre.<br />
– E como saber se essa nova maçã também já não está podre?<br />
Haggi ainda segurava a mão da noiva durante to<strong>do</strong> esse diálogo.<br />
Garat se sentia incomoda<strong>do</strong> com aquela conversa da qual nada entendia.<br />
Também as pessoas que vinham depois de Haggi para cumprimentar a<br />
noiva se impacientavam, mas isso não incomodava em nada o visitante,<br />
e tampouco à noiva. Ele respondeu, olhan<strong>do</strong> no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s olhos de Ivis:<br />
– Só há uma maneira de saber quantas sementes há numa maçã: provan<strong>do</strong>-a.<br />
Mas mesmo assim, não se pode saber quantas maçãs há numa<br />
semente...<br />
Dizen<strong>do</strong> isso, Haggi se retirou, perceben<strong>do</strong> que extraíra ainda um último<br />
sorriso de Ivis. Não desviou seus olhos dela até deixar a sala. Ela<br />
fez o mesmo. Ele notou que Garat falava com Ivis um pouco exalta<strong>do</strong>,<br />
mas ela não lhe fazia atenção. Quan<strong>do</strong> ganhou o exterior, Haggi respirou.<br />
Tarin surgiu ao seu la<strong>do</strong>:<br />
– Senhor, se me permite dizer, creio que após tão demorada e tão intensa<br />
conversa com a noiva, como to<strong>do</strong>s lá dentro puderam notar, não<br />
seria conveniente deixar a festa.<br />
– Sim, Tarin, você tem razão. Vou apenas tomar um pouco de ar e retornarei<br />
em seguida, para ficar mais alguns momentos.<br />
162 PAZ GUERREIRA - FORÇA
Quan<strong>do</strong> entrava novamente no salão, Haggi sentiu uma aproximação<br />
pelas costas. Com um leve movimento deslocou-se para o la<strong>do</strong>, deixan<strong>do</strong><br />
passar e cair atabalhoadamente Garat.<br />
To<strong>do</strong>s perceberam a alteração. Alguns amigos de Garat, tão fúteis<br />
quanto ele, haviam enchi<strong>do</strong> sua cabeça com ideias de que Haggi o desrespeitara,<br />
manten<strong>do</strong> uma conversa muito longa com sua noiva, para ser<br />
um simples cumprimento. E que, pior, ela parecia ter gosta<strong>do</strong> dessa<br />
conversa. Já embriaga<strong>do</strong>, Garat se inflamou e atacou Haggi, mas sua<br />
investida foi fracassada. Estatelou-se de forma humilhante. Ao se levantar,<br />
desafiou:<br />
– Você não pertence a esta cidade, e vem aqui me desrespeitar. Eu o<br />
desafio para lutar!<br />
– Não tenho porque lutar com você, Garat, e não o desrespeitei. Apesar<br />
de que no esta<strong>do</strong> em que se encontra não merece mesmo respeito e<br />
muito menos merece que eu lute com você – ao dizer isso, Haggi virou<br />
as costas para deixar o local.<br />
Garat, não se conforman<strong>do</strong>, apanhou uma faca sobre uma das mesas e<br />
se lançou sobre Haggi, que num movimento muito rápi<strong>do</strong> derrubou o<br />
oponente, toman<strong>do</strong>-lhe a faca e colocan<strong>do</strong>-a sobre o seu pescoço, ao<br />
mesmo tempo em que com a outra mão segurava seu pulso numa torção.<br />
O salão to<strong>do</strong> fez silêncio.<br />
Alguém murmurou:<br />
– Você foi ataca<strong>do</strong>. A lei permite que o mate.<br />
– Sim – completaram outras vozes – você deve matá-lo!<br />
O coro cresceu. Garat chorava, diante da possibilidade real e da proximidade<br />
da morte. No lugar de Haggi, ele nem teria espera<strong>do</strong> tanto<br />
tempo, já teria usa<strong>do</strong> aquela faca. Haggi terminou de lançar Garat ao<br />
chão, que ali permaneceu em prantos, jogou a faca longe, e saiu, sem<br />
dizer palavra.<br />
TALAL HUSSEINI 163
Pôde ouvir os vários comentários <strong>do</strong>s presentes que estavam sedentos<br />
de sangue, inclusive alguns amigos de Garat: “fraco”, “não o matou,<br />
demonstrou que não tem valor”, “sem honra”, e por aí afora. Mas ao<br />
menos uma pessoa naquele salão não vira fraqueza naquele ato: Nakan.<br />
Este vira compaixão, e gostara disso. Ivis talvez também tivesse entendi<strong>do</strong><br />
alguma coisa naquela situação, não sobre Haggi, mas sobre Garat e<br />
maçãs...<br />
Haggi estava convicto de que agiu de acor<strong>do</strong> com a sua regra de cavalheiro:<br />
jamais poderia atacar ou matar alguém caí<strong>do</strong>, de costas ou inferior<br />
na luta. Garat se enquadrava em pelo menos duas dessas situações.<br />
Quan<strong>do</strong> passou pela mesa de Nakan, este o recebeu com um leve tapa<br />
nas costas e um sorriso, sem tocar no assunto <strong>do</strong> que acabara de ocorrer:<br />
– Haggi, amanhã parto ce<strong>do</strong> para a Capital, para a posse <strong>do</strong> novo rei.<br />
Creio que não nos veremos antes de minha partida, mas espero ainda<br />
encontrá-lo na minha volta, dentro de alguns dias.<br />
– Sim, é claro Nakan, estarei aqui. Ainda teremos muito a conversar,<br />
depois da posse <strong>do</strong> novo rei. Agora vou me retirar, creio que já tive ação<br />
o bastante por hoje.<br />
A<br />
28.<br />
daran acor<strong>do</strong>u não caben<strong>do</strong> em si no primeiro dia <strong>do</strong> seu reina<strong>do</strong>.<br />
To<strong>do</strong>s esperavam o anúncio das primeiras medidas <strong>do</strong> novo<br />
soberano, como era de praxe. Ele pretendia fazer história. Pretendia<br />
dirigir-se ao povo à tarde, pois tinha várias reuniões pela manhã. Com<br />
os militares, com os Ministros e com o Sena<strong>do</strong>.<br />
A primeira reunião foi com o Conselho de Guerra, forma<strong>do</strong> por nove<br />
generais de estrela <strong>do</strong>urada. O mais novo de to<strong>do</strong>s era Nakan, com seus<br />
164 PAZ GUERREIRA - FORÇA
cinquenta e tantos anos. Os demais contavam to<strong>do</strong>s mais de sessenta<br />
mas em boa forma, apesar <strong>do</strong> longo perío<strong>do</strong> de paz por que passava<br />
o Reino. Via-se em seus rostos que eram homens duros, capazes no seu<br />
mister, prontos a defender o País com suas vidas contra qualquer<br />
ameaça.<br />
Estavam em torno de uma mesa longa. Quan<strong>do</strong> Adaran entrou, fizeram<br />
reverência, até receber a ordem para descansar. Era a primeira reverência<br />
que Adaran recebia afora a da cerimônia de posse, que acabou<br />
prejudicada pelo maldito vulcão. E vinha de uma elite nacional. Adaran<br />
saboreou seu momento, esperou um pouco mais <strong>do</strong> que o necessário<br />
para dar o coman<strong>do</strong> de descansar. Finalmente, sentou-se à ponta da mesa,<br />
fazen<strong>do</strong> um gesto altivo para que os generais o imitassem. Tomou a<br />
palavra:<br />
– Senhores Generais, vocês são a elite <strong>do</strong> nosso exército! O sau<strong>do</strong>so<br />
rei Sokárin ficou muitos anos no poder, teve vida longa. Foi um perío<strong>do</strong><br />
de paz, o que pode ter amoleci<strong>do</strong> nossas tropas – o ataque fora direto,<br />
mas to<strong>do</strong>s permaneceram impassíveis, exceto um <strong>do</strong>s mais velhos, que<br />
ficou visivelmente contraria<strong>do</strong> com a observação ofensiva. Entretanto,<br />
se conteve e nada disse.<br />
Adaran prosseguiu:<br />
– Começamos agora uma nova fase. Preten<strong>do</strong> passar em revista nossas<br />
tropas, a começar dentro de três dias. Estejam prepara<strong>do</strong>s. Não será<br />
tolera<strong>do</strong> qualquer desvio de disciplina! Temos de estar muito bem prepara<strong>do</strong>s<br />
para os novos tempos.<br />
Pedin<strong>do</strong> licença para falar, um <strong>do</strong>s generais perguntou:<br />
– Vossa Majestade pretende ir à guerra?!<br />
Adaran riu:<br />
– Para que serve um exército senão para estar prepara<strong>do</strong> para a guerra?<br />
Mas isso não significa que precisemos ir à guerra. Apenas não quero<br />
TALAL HUSSEINI 165
surpresas. Vou dirigir mais investimentos <strong>do</strong> Reino para as tropas. No-<br />
vas armas, de melhor qualidade, mais cavalos, mais treinamento.<br />
To<strong>do</strong>s assentiram com a cabeça, alguns até sorriram. Com aquelas<br />
promessas Adaran parecia ter conquista<strong>do</strong> o apoio de alguns. De outros<br />
ainda não conseguira fazer a leitura, mas logo saberia a posição de to-<br />
<strong>do</strong>s. Continuou:<br />
– Preten<strong>do</strong> implementar muitas mudanças, obviamente para melhor,<br />
mas que podem encontrar resistência. Quero que estejamos prepara<strong>do</strong>s<br />
para suplantar rapidamente qualquer indício de revolta. É imprescindí-<br />
vel evitar qualquer estremecimento nas relações internas, para que não<br />
enfraqueçamos perante nossos vizinhos em virtude de conflitos e desavenças<br />
intestinas. Estamos to<strong>do</strong>s de acor<strong>do</strong>? Os senhores são os defensores<br />
da lei e da ordem. Apoiarão incondicionalmente o novo Rei?<br />
Aguardavam em silêncio para ouvir as medidas que Adaran anunciaria:<br />
– Não teremos mais um Ministro da Guerra. Este Conselho se reportará<br />
diretamente a mim! Em contrapartida, terá suas atribuições aumentadas,<br />
e também suas vantagens... O fato de estar realizan<strong>do</strong> a primeira<br />
reunião oficial de meu reina<strong>do</strong> com este Conselho demonstra o prestígio<br />
que lhe quero outorgar. Tenho certeza de que os senhores compreenderão<br />
a medida que estou prestes a anunciar, mas também estou certo de<br />
que outros não o farão. Para fazer entender a to<strong>do</strong>s, até mesmo pela força<br />
se for necessário, pois o povo nem sempre entende as medidas <strong>do</strong><br />
governante, qual o <strong>do</strong>ente que se nega a tomar o remédio por amargo,<br />
conto com a pronta ação <strong>do</strong>s senhores e de seus comanda<strong>do</strong>s. Pois<br />
bem...<br />
Fez uma longa pausa, deixan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s ansiosos para ouvir o restante,<br />
apesar de nenhum deles demonstrá-lo:<br />
– Este Conselho de Guerra passa a exercer as atribuições até agora<br />
exercidas pelo Conselho <strong>do</strong>s Anciãos!<br />
166 PAZ GUERREIRA - FORÇA
Novamente Adaran esperou, perscrutan<strong>do</strong> no olhar de cada um as re-<br />
ações que pudessem denotar apoio ou contrariedade. Os mesmos três<br />
que antes sorriram ao ouvir as notícias sobre suas novas vantagens exultaram.<br />
Claramente aprovavam as medidas <strong>do</strong> Rei e lhe expressaram<br />
total e incondicional apoio. Os seis demais permaneceram impassíveis,<br />
à exceção <strong>do</strong> velho General, que antes já demonstrara impaciência. Desta<br />
feita, não se conteve, pediu a palavra e quase sem esperar a autorização<br />
<strong>do</strong> Rei vociferou:<br />
– Isto é um ultraje! Senhores Generais, meus companheiros de armas,<br />
vocês não percebem o que está acontecen<strong>do</strong> aqui?! Isto é um golpe de<br />
Esta<strong>do</strong>! Com to<strong>do</strong> respeito, Vossa Majestade está conspurcan<strong>do</strong> as instituições<br />
de nosso país. Este Conselho tem atribuições bem distintas das<br />
<strong>do</strong> Conselho <strong>do</strong>s Anciãos. Não temos a pretensão nem a capacidade de<br />
usurpar suas atribuições! Pretende Vossa Majestade corromper-nos com<br />
vantagens e poder? Jamais aceitaremos! Vamos a público desmascará-lo<br />
perante o Conselho <strong>do</strong>s Anciãos e perante o povo. O exército jamais<br />
aceitará este disparate! Se assim for, prefiro resignar-me de minhas funções<br />
– ao dizer isso, levou a mão à espada para retirá-la da cintura e<br />
entregá-la, num gesto de renúncia ao cargo.<br />
Mais <strong>do</strong> que rápi<strong>do</strong>, a um sinal imperceptível de Adaran, um <strong>do</strong>s vários<br />
guardas reais que faziam a segurança da reunião atingiu o velho<br />
general com uma seta disparada da sua balestra. O tiro certeiro calou o<br />
general, antes que ele pudesse terminar de retirar sua espada. Ele tombou<br />
sobre a mesa, para espanto <strong>do</strong>s demais. Antes que alguém pudesse<br />
dizer qualquer coisa, o Rei emen<strong>do</strong>u:<br />
– To<strong>do</strong>s os senhores viram, são testemunhas, de que o general estava<br />
desequilibra<strong>do</strong> e num gesto impensa<strong>do</strong> ia sacar da sua espada para atentar<br />
contra a pessoa real. O guarda cumpriu sua obrigação de defender o<br />
Rei. É tão tênue a linha que separa os alia<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s inimigos... – comentou<br />
em tom mais baixo, como se falasse consigo mesmo, e depois em<br />
TALAL HUSSEINI 167
tom normal, encaran<strong>do</strong> seus interlocutores com firmeza: – nestes tempos<br />
em que vivemos, não há espaço para a dúvida. Aqueles que questionam<br />
o progresso são inimigos <strong>do</strong> Reino e, como tal, devem ser elimina<strong>do</strong>s.<br />
Conto com o apoio <strong>do</strong>s senhores? – perguntou ignoran<strong>do</strong> o cadáver<br />
sobre a mesa.<br />
Os generais estavam choca<strong>do</strong>s, apesar de acostuma<strong>do</strong>s ao rigor nas<br />
atitudes. Procuravam dissimular sua consternação, mas pela primeira<br />
vez sentiram o peso da autoridade <strong>do</strong> novo Rei. Um <strong>do</strong>s que havia sorri<strong>do</strong><br />
antes, pediu a palavra e se levantou:<br />
– Vossa Majestade conta com o apoio <strong>do</strong>s generais! E acho que falo<br />
por to<strong>do</strong>s nós – olhou ao re<strong>do</strong>r indagan<strong>do</strong> os outros com o olhar. Ninguém<br />
se manifestou – se Vossa Majestade me permite perguntar, o que<br />
será feito <strong>do</strong> Conselho <strong>do</strong>s Anciãos, será dissolvi<strong>do</strong>, seus membros devem<br />
ser presos?<br />
– É claro que não, meu caro general! O Conselho <strong>do</strong>s Anciãos ganhará<br />
novas atribuições. Não podemos extirpar instituições com as quais o<br />
povo está acostuma<strong>do</strong>. Os membros <strong>do</strong> Conselho <strong>do</strong>s Anciãos são muito<br />
i<strong>do</strong>sos para carregar o peso que hoje carregam. Não se trata de um golpe<br />
de esta<strong>do</strong>, como disse nosso amigo faleci<strong>do</strong>, mas sim de uma medida<br />
humanitária, que visa a proteger a integridade de nossos sena<strong>do</strong>res. Eles<br />
manterão seus proventos e ficarão responsáveis por to<strong>do</strong>s os eventos<br />
cívicos e festividades nacionais. Aparecerão interna e externamente<br />
como um órgão de honra, mas não terão sobre seus ombros o peso <strong>do</strong><br />
trabalho duro de Esta<strong>do</strong>. Aqueles que não compreenderem essa situação<br />
e essa intenção deverão ser deti<strong>do</strong>s, para evitar que contaminem os demais<br />
e o povo.<br />
Alguns assentiram com um gesto de cabeça, outros concordaram com<br />
o seu silêncio. Adaran continuou:<br />
– Por fim, precisamos recompor o número de nove neste Conselho.<br />
Então, nomeio agora mais um general de estrela <strong>do</strong>urada, a quem espero<br />
que to<strong>do</strong>s recebam como a um irmão: General Ofis!<br />
168 PAZ GUERREIRA - FORÇA
Ao ouvir sua deixa, Ofis, que aguardava <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora da sala, aden-<br />
trou, já em trajes de general de estrela <strong>do</strong>urada, como se não esperasse<br />
outra coisa daquele encontro. Ao ver a cena, até mesmo o General<br />
Tybur, que era o mais prestativo para com o novo soberano, não conse-<br />
guiu disfarçar seu constrangimento. Um sujeito que nem era militar,<br />
nomea<strong>do</strong> general de estrela <strong>do</strong>urada, era algo inusita<strong>do</strong>. Era certo que a<br />
comenda era privativa <strong>do</strong> Rei, e não havia lei que dissesse que só poderia<br />
ser dada a militares, mas a tradição... Adaran estava bem a par da lei<br />
e amenizou a situação, ao menos com seu mais novo alia<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong><br />
mais um anúncio:<br />
– O Conselho de Guerra precisará de um líder, que será a ponte direta<br />
entre o que se passa aqui dentro e os ouvi<strong>do</strong>s reais. Assim sen<strong>do</strong>, eu<br />
nomeio Presidente <strong>do</strong> Conselho de Guerra o General Tybur!<br />
O General agradeceu e dissipou qualquer constrangimento que ainda<br />
tivesse em seu semblante em relação a Ofis. O mesmo não se podia dizer<br />
<strong>do</strong>s demais, que disfarçavam o melhor que conseguiam seus pensamentos<br />
e emoções, pensan<strong>do</strong> na reação e no fim que teve o velho general,<br />
cujo corpo finalmente era retira<strong>do</strong> pela Guarda Real.<br />
O Rei Adaran deixou a reunião e foi a público fazer seus anúncios oficiais.<br />
Quebran<strong>do</strong> a tradição, resolveu dirigir-se primeiro à população e<br />
somente depois ao Conselho <strong>do</strong>s Anciãos. Anunciou como em seu reina<strong>do</strong><br />
promoveria a igualdade entre todas as pessoas, pois somente sen<strong>do</strong><br />
iguais poderiam ser livres. O pobre seria igual ao rico, o covarde igual<br />
ao valente, o estudioso igual ao ignorante. Tais distinções incabíveis não<br />
mais teriam lugar neste Reino. Igualdade e liberdade seriam então realidades<br />
para to<strong>do</strong>s, indistintamente. A educação seria promovida com<br />
vistas ao futuro e não mais ao passa<strong>do</strong>, pois era importante vislumbrar a<br />
evolução e o desenvolvimento, em lugar de ficar atrela<strong>do</strong>s às tradições e<br />
à história, que só faziam perder tempo precioso de estu<strong>do</strong> e frear a ciên-<br />
TALAL HUSSEINI 169
cia, que esta sim traçava os rumos de um conhecimento sóli<strong>do</strong> e palpável,<br />
ao contrário da filosofia e das religiões, que cuidavam <strong>do</strong> irreal, <strong>do</strong><br />
metafísico, portanto, de coisas ilusórias que só serviam para atrapalhar o<br />
verdadeiro desenvolvimento individual e social <strong>do</strong> povo.<br />
To<strong>do</strong>s aplaudiam com vigor. A praça pública estava lotada. O povo<br />
finalmente tinha a sensação de que um verdadeiro líder chegara para<br />
lançar o país numa nova era, desatrelada <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. O apoio da população<br />
fora facilmente conquista<strong>do</strong>. Agora, restava dirigir-se ao Conselho<br />
<strong>do</strong>s Anciãos. Com as vantagens de ganhos que, antes de mais nada, pretendia<br />
anunciar, Adaran tinha por objetivo neutralizar boa parte das eventuais<br />
reações adversas no Sena<strong>do</strong>.<br />
A realidade saiu um pouco diferente <strong>do</strong> que esperava. Anunciou com<br />
sucesso os benefícios que dava aos sena<strong>do</strong>res, mas quan<strong>do</strong> relatou as<br />
modificações nas atribuições <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> que implementava, a reação foi<br />
forte. Aqueles cujo apoio já tinha o mantiveram, os que não lhe eram<br />
simpáticos reagiram com violência, como também aqueles que se posicionavam<br />
de maneira neutra, dificultan<strong>do</strong>, assim, os planos de Adaran<br />
que almejava trazê-los para o seu la<strong>do</strong>. O tumulto chegou à exaltação e,<br />
não fossem os sena<strong>do</strong>res to<strong>do</strong>s de certa idade, teriam i<strong>do</strong> às vias de fato.<br />
O Rei concluiu agradecen<strong>do</strong> os serviços presta<strong>do</strong>s até então pelo Sena<strong>do</strong><br />
e principalmente por tu<strong>do</strong> que ainda teriam de fazer nas suas novas<br />
funções e se retirou rapidamente, deixan<strong>do</strong> as discussões e divergências<br />
para os que subiam ao púlpito. Vários solda<strong>do</strong>s da Guarda Real permaneceram<br />
no Sena<strong>do</strong> após o Rei se ter retira<strong>do</strong>, mas não interferiram nas<br />
disputas, apenas fazen<strong>do</strong> observar quais eram as posições de cada um.<br />
Aqueles que não apoiavam as iniciativas <strong>do</strong> Rei, já nomea<strong>do</strong>s pelos outros<br />
como oposicionistas, conclamavam o Sena<strong>do</strong>r Rohel, que era uma<br />
espécie de baluarte dessa corrente, a subir à tribuna e dirigir-se à plenária.<br />
Este aceitou, mas estava visivelmente abati<strong>do</strong>. Não era naquele dia o<br />
ora<strong>do</strong>r inflama<strong>do</strong> de outros tempos. Apenas deixou claro seu repúdio às<br />
170 PAZ GUERREIRA - FORÇA
medidas anunciadas por Adaran em relação ao Sena<strong>do</strong>, o que, segun<strong>do</strong><br />
ele, caracterizava um isolamento daquela Casa, de forma a extirpá-la da<br />
vida pública <strong>do</strong> País. Falou pouco. Desceu da tribuna entre aplausos e<br />
apupos <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is grupos que dividiam o Sena<strong>do</strong>. Rohel já vislumbrava o<br />
porvir. Sabia que os dias de paz e tranquilidade se aproximavam <strong>do</strong> fim.<br />
Saiu da tribuna direto para a sua casa.<br />
Inari, que conhecia seu mari<strong>do</strong>, ao vê-lo chegar, apenas franziu o so-<br />
brolho. Entenden<strong>do</strong> a pergunta que ela não lhe fizera, respondeu:<br />
– Vamos nos preparar para o pior, Inari, minha querida!<br />
A<br />
29.<br />
o chegar à casa de Ravi, Kadriel estava ansioso para lhe relatar<br />
seu sonho e para conversar sobre o reino, a sucessão e tu<strong>do</strong><br />
mais, porém sua ansiedade tinha si<strong>do</strong> dissipada pelo encontro com<br />
Dhara. Ele estava aéreo. Ravi, que examinava tranquilamente alguns<br />
escritos, convi<strong>do</strong>u-o a sentar-se:<br />
– Olá, Kadriel. Esperava você um pouco mais ansioso neste primeiro<br />
dia de reina<strong>do</strong> de Adaran, mas vejo que está bem tranquilo. O que o traz<br />
aqui?<br />
– É que esta noite tive um sonho...<br />
– Novamente com Mulil.<br />
– Sim... E acho que ele morreu...<br />
– Você acha?<br />
– É, não tenho certeza.<br />
– De qualquer mo<strong>do</strong>, não se esqueça de que é apenas um sonho.<br />
– Cada vez mais eu acho que esses sonhos têm relação com a minha<br />
vida. Cada vez mais me identifico com Mulil. Tu<strong>do</strong> parece tão real...<br />
TALAL HUSSEINI 171
– Os sonhos são reais, na sua esfera. O que nos parece etéreo e fanta-<br />
sioso pode ser a realidade em uma outra perspectiva. E o que vivemos<br />
como realidade pode não passar de ilusão. Já pensou nisso? Mas conte-<br />
me seu sonho, vamos ver qual é a sua realidade onírica.<br />
Kadriel contou em detalhes o que sonhara e disse que estava curioso<br />
para saber o que aconteceria em seguida com Mulil, pois já reparava<br />
que os sonhos pareciam seguir uma sequência.<br />
Ravi respondeu-lhe que poderia aprender muito com esses sonhos, a<br />
partir das experiências vividas por Mulil, que poderia fazê-las suas. Disse-lhe<br />
que quan<strong>do</strong> sonhasse devia se lembrar de guardar as memórias <strong>do</strong><br />
sonho dentro <strong>do</strong> coração, pois por mais real e vívi<strong>do</strong> que fosse, poderia<br />
ser esqueci<strong>do</strong> algum tempo depois de acordar. Também era uma prática<br />
interessante tomar notas logo ao acordar. Kadriel assim faria. Os <strong>do</strong>is<br />
conversavam acerca <strong>do</strong> sonho, quan<strong>do</strong> chegou à casa um militar, fazen<strong>do</strong>-se<br />
anunciar e chaman<strong>do</strong> por Ravi.<br />
O <strong>do</strong>no da casa man<strong>do</strong>u que o fizessem entrar. O homem tinha um ar<br />
circunspecto e aparentava estar preocupa<strong>do</strong>:<br />
– Bom dia, General Aldhar. Como estão as coisas?<br />
O General não respondeu, dirigin<strong>do</strong> o olhar para Kadriel. Entenden<strong>do</strong><br />
suas dúvidas, Ravi o tranquilizou:<br />
– Este é Kadriel, Aldhar – os <strong>do</strong>is se cumprimentaram com um gesto<br />
de cabeça – ele é da minha mais absoluta confiança. Podemos conversar.<br />
Quase inconscientemente, Kadriel sentiu-se orgulhoso das palavras de<br />
Ravi. Esse sentimento o fez perceber o quão importante a opinião de<br />
Ravi se tornara para ele. Sentiu um calor aconchegante no coração. O<br />
General Aldhar continuou:<br />
– Estou preocupa<strong>do</strong>, Ravi! Você já soube das primeiras declarações<br />
<strong>do</strong> novo Rei?<br />
– Não, ainda não tive notícias...<br />
172 PAZ GUERREIRA - FORÇA
– Seu primeiro ato foi uma reunião com o Conselho de Guerra, da<br />
qual participei, juntamente com os outros oito generais de estrela de<br />
ouro. Ele ampliou as vantagens e as atribuições <strong>do</strong> Conselho de Guerra<br />
– fez uma pausa, como aguardan<strong>do</strong> alguma intervenção de Ravi, que<br />
permaneceu cala<strong>do</strong>. Então prosseguiu: – o Rei vai destinar muitos investimentos<br />
ao exército. Ele disse que não quer fazer a guerra, mas se<br />
trata de uma preparação para isso. Pediu nosso apoio para tornar o Conselho<br />
<strong>do</strong>s Anciãos um ente inoperante, meramente decorativo, que não<br />
terá mais qualquer atribuição prática.<br />
– E os generais apoiaram tal medida? E o velho General Margut, ranzinza<br />
por natureza?<br />
– Margut... está morto!<br />
Ravi não conseguiu esconder sua surpresa, assumin<strong>do</strong> uma feição séria.<br />
Aldhar continuou sua narrativa:<br />
– O General não se conformou com as medidas, se manifestou de<br />
forma exaltada. Levou a mão à sua espada, como tinha o hábito de fazer<br />
sempre que discursava de maneira mais inflamada. Um <strong>do</strong>s guardas<br />
reais o abateu com uma seta. Adaran afirmou que o general iria atacá-lo,<br />
mas Margut tinha muito senso de dever e respeito à coroa, independente<br />
de quem a usasse. A mim me pareceu mais que ele ia entregar sua espada.<br />
Em to<strong>do</strong> caso, nunca saberemos ao certo. Adaran continuou sua prolação<br />
com o cadáver ali estendi<strong>do</strong> sobre a mesa, em um tom de certa<br />
forma de ameaça contra quem não o apoiasse integralmente.<br />
– E como você acha que os outros vão se posicionar?<br />
– Difícil dizer. Ao menos Tybur, que foi nomea<strong>do</strong> presidente <strong>do</strong> Conselho,<br />
e mais um parecem apoiá-lo incondicionalmente. O terceiro é<br />
Ofis, que foi nomea<strong>do</strong> general para compor o Conselho no lugar de<br />
Margut.<br />
– Ofis...?<br />
– É um lacaio de Adaran desde os tempos em que era ministro. Nem<br />
sequer é militar, mas a regra diz que a nomeação <strong>do</strong> Conselho de Guerra<br />
TALAL HUSSEINI 173
é privativa <strong>do</strong> Rei, dentre aqueles que ele entender capacita<strong>do</strong>s... Os<br />
outros, e também eu mesmo, saíram em silêncio, não pude fazer uma<br />
leitura de ninguém. To<strong>do</strong>s pareciam estudar a nova situação, para depois<br />
se posicionar. Mas o Rei é Adaran, então não parece haver muita opção.<br />
Ravi parecia pensativo:<br />
– Sim, Aldhar, é verdade, mantenha-se discreto, ficaremos em contato.<br />
O General despediu-se de Ravi com um abraço e saiu marchan<strong>do</strong>, visivelmente<br />
consterna<strong>do</strong>. Ravi dirigiu-se então a Kadriel:<br />
– Você vê, meu jovem? Adaran agiu rápi<strong>do</strong>, está consolidan<strong>do</strong> sua<br />
posição, apesar de não senti-la realmente ameaçada.<br />
– Sim, e ao investir no exército está aumentan<strong>do</strong> e confirman<strong>do</strong> sua<br />
força...<br />
– Força? Não. O que Adaran tem não é força. Ele é vai<strong>do</strong>so, e o vai<strong>do</strong>so<br />
não tem força porque está sempre sozinho, ainda que compre apoios<br />
e companhia.<br />
– Mas se isso não é força, então o que é a força?<br />
– A força é a virtude que compartilham to<strong>do</strong>s os guerreiros de um clã,<br />
não é uma questão pessoal, mas sim um poder coletivo. Os antigos diziam<br />
que um homem sem cidade não é nada, pois carece de força para<br />
lutar como um guerreiro. A força e o espírito que emanam da companhia<br />
vêm da união <strong>do</strong>s cavalheiros diante de um ideal superior.<br />
Dizen<strong>do</strong> isso, Ravi apanhou no chão um graveto e o entregou a<br />
Kadriel, mandan<strong>do</strong>-o quebrá-lo. Kadriel o fez com facilidade. Então,<br />
Ravi juntou vários gravetos num feixe e man<strong>do</strong>u que Kadriel os quebrasse.<br />
Ele não conseguia, por mais força que empregasse.<br />
– Por trás de cada graveto existe uma linha de força que os une e justifica,<br />
é como uma linha luminosa que se manifesta quan<strong>do</strong> as partes<br />
descobrem que na realidade são unas em essência. Tu<strong>do</strong> no universo<br />
está interliga<strong>do</strong> e interconecta<strong>do</strong>, o ser humano, quan<strong>do</strong> desliza pelo<br />
aroma <strong>do</strong> mistério da união, encontra a força que vem <strong>do</strong> ideal, e através<br />
174 PAZ GUERREIRA - FORÇA
da técnica o guerreiro é capaz de explorar com eficácia tu<strong>do</strong> o que a<br />
força <strong>do</strong> ideal lhe oferece. Espírito, força e técnica compõem as três<br />
armas <strong>do</strong> verdadeiro guerreiro.<br />
Kadriel queria entender melhor tu<strong>do</strong> aquilo. Era um ensinamento que<br />
não podia ser digeri<strong>do</strong> de uma só vez, exigia reflexão. Kadriel despediuse<br />
de Ravi, com a intenção de voltar para a sua casa e pensar no assunto.<br />
Quan<strong>do</strong> já estava <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora da porta, in<strong>do</strong> em direção à rua, Ravi<br />
lhe perguntou:<br />
– E como é ela?<br />
Kadriel voltou-se, sem entender direito a que seu Mestre queria referir-se.<br />
Perguntou, com ar confuso:<br />
– Ela quem...?<br />
– Ora, a mulher que colocou esse brilho nos seus olhos. Desde que<br />
você chegou aqui hoje, notei que está diferente, mais tranquilo, um pouco<br />
disperso. Dessas observações, ficou claro que só pode ser uma moça.<br />
Kadriel surpreendeu-se com a percepção demonstrada por Ravi, pois<br />
não imaginava que cada célula de seu corpo transparecia seus sentimentos.<br />
Voltou até a porta e contou a Ravi então o que se passara quan<strong>do</strong><br />
vinha de sua casa. Seus olhos brilhavam novamente ao falar de Dhara:<br />
– Você nunca poderá dizer que o primeiro dia de reina<strong>do</strong> de Adaran<br />
foi ruim para você, – ironizou Ravi – você encontrou uma dama muito<br />
especial, que ao que parece tem alma nobre. O coração tem sabe<strong>do</strong>ria<br />
para encontrar seus próprios caminhos.<br />
30.<br />
M<br />
ulil acor<strong>do</strong>u sem saber onde estava. Alguém o havia limpa<strong>do</strong>,<br />
coloca<strong>do</strong> roupas novas. Estava dentro de um edifício.<br />
Tinha <strong>do</strong>rmi<strong>do</strong> sobre uma esteira. O aposento era confortável, apesar<br />
TALAL HUSSEINI 175
de simples. Sua última lembrança era de estar sucumbin<strong>do</strong> ao deserto,<br />
à sede e à fome. Caminhara o que pudera, para além <strong>do</strong> ponto sem vol-<br />
ta. Perdera-se da trilha por perseguir uma miragem, mas a conseguira<br />
reencontrar graças ao ensinamento de seu Mestre. Quan<strong>do</strong> caiu ao<br />
solo, lembrou-se de uma prática que havia aprendi<strong>do</strong>, que consistia em<br />
reduzir a respiração, pacificar as emoções e esvaziar a mente, de mo<strong>do</strong><br />
que o corpo passava a ter um gasto mínimo de energia, possibilitan<strong>do</strong> a<br />
sobrevivência. Era como um esta<strong>do</strong> de hibernação. O corpo ficava inerte,<br />
quase como uma pedra. Mulil teve tempo somente de induzir esse<br />
esta<strong>do</strong>. Assim foi encontra<strong>do</strong>.<br />
– Você passou o umbral – disse uma voz suave às suas costas, retiran<strong>do</strong>-o<br />
de seus pensamentos.<br />
Era um homem esguio, cuja aproximação Mulil não percebera. Usava<br />
uma túnica típica <strong>do</strong>s antigos sacer<strong>do</strong>tes. O homem prosseguiu, sorrin<strong>do</strong>:<br />
– Nós o encontramos deita<strong>do</strong> na areia <strong>do</strong> deserto, com os sinais vitais<br />
muito fracos. Já o esperávamos, mas não tínhamos certeza de que<br />
conseguiria.<br />
– Que lugar é este?<br />
– É o templo de Zohar. É o lugar a que você tinha de chegar para<br />
cumprir a missão que seu Mestre lhe designou.<br />
– Mas eu nunca ouvi falar de nenhum templo nesta parte <strong>do</strong> deserto.<br />
– Somente os sacer<strong>do</strong>tes e alguns sábios o conhecem. O deserto, que<br />
costuma expulsar ou engolir aqueles que nele se aventuram, nos acolheu<br />
e nos protege contra visitantes indeseja<strong>do</strong>s. Você é um bom discípulo,<br />
cumpriu à risca a missão que seu Mestre lhe outorgou, mesmo que<br />
ela o fosse levar à morte.<br />
– E o que o deserto tem a me dizer?<br />
176 PAZ GUERREIRA - FORÇA
– Se houver resposta para essa pergunta, ela lhe será dada numa pe-<br />
quena cerimônia logo mais. Você agora precisa se alimentar, pois passou<br />
por privações na sua viagem e precisa se recuperar.<br />
No início da noite, após um repasto frugal, Mulil foi conduzi<strong>do</strong> a um<br />
salão cerimonial. Era ilumina<strong>do</strong> com várias tochas de fogo azul, o que<br />
dava um ar etéreo ao ambiente. Havia apenas quatro sacer<strong>do</strong>tes no<br />
local, que aguardavam Mulil em torno de um altar, sobre o qual ficava<br />
uma pia cheia d’água. Também havia um recipiente em que se queimavam<br />
incenso e mirra. Os sacer<strong>do</strong>tes explicaram a Mulil que ele devia<br />
guardar aquele altar durante toda a noite, senta<strong>do</strong> sobre os joelhos.<br />
Após algumas horas, já não sentia mais as pernas. Depois polarizou,<br />
procuran<strong>do</strong> esquecer até mesmo que tinha um corpo. O cheiro da mirra<br />
e <strong>do</strong> incenso, e a luz diáfana azul causavam-lhe tontura. Mulil procurava<br />
resistir, mas sentia que iria desmaiar a qualquer momento. Fechou<br />
os olhos, perden<strong>do</strong> por um instante a consciência da realidade que o<br />
cercava. Foi quan<strong>do</strong> alguém tocou-lhe suavemente o ombro. Ele despertou,<br />
deparan<strong>do</strong>-se com uma mulher esguia, de pele muito clara, que<br />
usava uma espécie de turbante, não permitin<strong>do</strong> que se lhe vissem os<br />
cabelos. Seu rosto era excessivamente alonga<strong>do</strong>, grandes e profun<strong>do</strong>s<br />
olhos negros. Estendeu a mão sobre Mulil.<br />
– O que você veio fazer aqui? – perguntou a mulher.<br />
– Vim por ordens de meu Mestre... Estou velan<strong>do</strong> o fogo...<br />
– O que você veio fazer aqui? – insistiu.<br />
– Vim saber o que o deserto tem para me dizer...<br />
– Sobre o deserto marcha o vento, capaz de gerar tempestades, subverter<br />
cidades, destruir civilizações, tu<strong>do</strong> por uma força silenciosa, de<br />
fonte invisível mas extremamente poderosa. Quan<strong>do</strong> você conseguir<br />
TALAL HUSSEINI 177
ouvir essa força silenciosa, sentir esse vento marchar sobre sua alma,<br />
vai aprender a <strong>do</strong>minar a si mesmo e a vencer sem lutar.<br />
Ela fez uma pausa e prosseguiu, responden<strong>do</strong> a pergunta que Mulil<br />
não fez:<br />
– A chave está nas dezesseis partes <strong>do</strong> Deus, nas dezesseis pétalas,<br />
nas dezesseis virtudes.<br />
Mulil queria perguntar mais, mas um forte o<strong>do</strong>r penetrou suas narinas,<br />
sua vista ficou enevoada. Quan<strong>do</strong> o ar<strong>do</strong>r se dissipou, a mulher<br />
não estava mais na sua frente. Ele prosseguiu sua velatura, até que os<br />
sacer<strong>do</strong>tes vieram rendê-lo. Demorou vários minutos até conseguir<br />
mover suas pernas. Disse aos sacer<strong>do</strong>tes:<br />
– Gostaria de falar novamente com a sacer<strong>do</strong>tisa que veio ter comigo<br />
durante a meditação.<br />
– Não temos nenhuma sacer<strong>do</strong>tisa em nosso templo... apenas sacer<strong>do</strong>tes.<br />
Mulil não escondeu sua perplexidade. Tu<strong>do</strong> fora tão real. Sentia-se<br />
muito diferente <strong>do</strong> que quan<strong>do</strong> chegara ao templo, e mais ainda <strong>do</strong> que<br />
antes de partir naquela jornada inusitada no deserto. O sacer<strong>do</strong>te levou-o<br />
até uma área externa, onde alguns homens trabalhavam em tarefas<br />
manuais, como pintura, escultura, marcenaria. Aproximaram-se de<br />
um <strong>do</strong>s artesãos, que não desviou o olhar nem a atenção <strong>do</strong> seu trabalho.<br />
O sacer<strong>do</strong>te indicou-o a Mulil, dizen<strong>do</strong>:<br />
– Este é Sigés. Ele é a razão concreta de sua vinda ao nosso templo.<br />
Você deve levá-lo até Montuhotep, que tem um trabalho específico para<br />
ele realizar, o qual não pode ser executa<strong>do</strong> por outro – o artesão fez<br />
uma ligeira mesura com a cabeça, sem perder o foco da sua obra.<br />
Mulil dirigiu-se a ele:<br />
– Chamo-me Mulil. Espero que possamos fazer uma viagem rápida e<br />
tranquila até a cidade.<br />
178 PAZ GUERREIRA - FORÇA
Sigés nada respondeu. O sacer<strong>do</strong>te explicou:<br />
– Ele não pode lhe responder. Fez um voto de silêncio, que não lhe<br />
permite pronunciar palavra. Já há cinco anos nada fala. Seu mun<strong>do</strong> são<br />
as suas obras. Ele conhece as proporções mágicas, pois aprendeu com<br />
seus Mestres a <strong>do</strong>minar os números mágicos. Consegue com isso dar<br />
movimento à pedra, infundir-lhe a energia que lhe dá vida. Diz-se que<br />
suas estátuas podem locomover-se sozinhas...<br />
Na viagem de volta de Mulil e Sigés, tu<strong>do</strong> correu tranquilamente.<br />
Cruzaram o deserto sem maiores problemas, mas não sabiam o que os<br />
aguardava na chegada…<br />
K<br />
31.<br />
adriel sentia-se feliz por Mulil não ter morri<strong>do</strong> no seu sonho.<br />
Também sentia-se disposto a iniciar sua missão. Tinha de<br />
cumprir o que prometera a Sokárin: lutar pelo poder. Primeiro, precisava<br />
encontrar a placa. Tinha a certeza no seu íntimo de que ela existia e<br />
de que o Rei faleci<strong>do</strong> a escondera, para ser encontrada no momento<br />
oportuno. Esse momento era agora. O início da sua luta dependia de um<br />
fator que o justificasse. É certo que perante a lei pouco importava, pois<br />
a cerimônia de troca das placas e a inserção da nova placa na estela é<br />
que determinavam o nome <strong>do</strong> sucessor. Isso não ocorrera. O trono era<br />
de Adaran. Mas perante a Justiça, o trono era seu. Essa era a vontade de<br />
Sokárin. Confiava em que muitas pessoas entenderiam a verdade e o<br />
apoiariam.<br />
Ia reunir-se com Bakar para traçarem uma estratégia de busca. Havia<br />
pergunta<strong>do</strong> a Ravi o que ele achava, mas este lhe respondera que esta<br />
era uma batalha que Kadriel precisava lutar sozinho. Era importante que<br />
TALAL HUSSEINI 179
assim fosse, pois essa prova fazia parte de algo maior, e se não pudesse<br />
ser vencida, significava que Kadriel não merecia nem cogitar a coroa.<br />
Kadriel já tentara detectar algum indício <strong>do</strong> possível esconderijo da<br />
placa através da frase que Sokárin deixara, mas não lhe ocorria nada. O<br />
enigma falava de falcão, também seus sonhos tinham a presença renitente<br />
dessa ave... Bakar chegou. Kadriel esperava sua ajuda mais para as<br />
questões operacionais, pois não tinha muita esperança de que ele pudesse<br />
ajudar com o enigma, uma vez que seu forte não era o intelecto.<br />
O gigante deu-lhe um forte abraço. Como já o conhecia, Kadriel preparou-se<br />
para o aperto. Um desavisa<strong>do</strong>, ao receber o abraço amistoso de<br />
Bakar, podia ficar com <strong>do</strong>r nas costelas por alguns dias.<br />
– Então, Kadriel, para que me chamou aqui? Aonde vamos?<br />
Kadriel relatou para o amigo toda a história, desde a sua conversa<br />
com Sokárin. O outro ouvia estupefato. Via-se em seu olhar um misto<br />
de admiração e incredulidade. Quan<strong>do</strong> Kadriel terminou seu relato, ele<br />
disse, com firmeza:<br />
– Ora, e o que estamos esperan<strong>do</strong>? Vamos logo buscar essa placa.<br />
– O problema é que não sabemos onde ela está.<br />
– Como não sabemos? Você mesmo não acabou de dizer na sua estória<br />
que ela está no ninho <strong>do</strong> falcão? É só ir buscá-la! – concluiu Bakar,<br />
achan<strong>do</strong> incompreensível por que ainda não estavam a caminho.<br />
– O enigma não é literal, Bakar, é apenas uma metáfora, é simbólico.<br />
– Quem foi que disse isso?! Se o Rei falou sobre ninhos e falcões é<br />
por que queria dizer isso mesmo. Além <strong>do</strong> mais, você tem alguma ideia<br />
melhor para começar a procurar? Em vez de ficarmos aqui perden<strong>do</strong><br />
tempo com pensamentos inúteis, vamos agir. O único lugar que conheço<br />
com falcões aqui por perto é aquela montanha em que nos perdemos<br />
quan<strong>do</strong> éramos crianças. Vamos logo! Se não estiver lá, aí pensamos em<br />
mais alguma coisa.<br />
180 PAZ GUERREIRA - FORÇA
Kadriel pensou consigo que de fato seu amigo de grandes proporções<br />
tinha toda a razão. A energia e a disposição que Bakar demonstrava<br />
infundiram-lhes ânimo para partirem logo. Sem demora, já estavam<br />
subin<strong>do</strong> a montanha. Ela parecia menor <strong>do</strong> que da última vez em que ali<br />
estiveram. Na oportunidade, Kadriel ganhara as cicatrizes no seu ante-<br />
braço.<br />
Os <strong>do</strong>is amigos chegaram à beira <strong>do</strong> abismo em que anos antes havi-<br />
am esta<strong>do</strong>, junto com Dhara e Haggi. Deitaram-se na borda e olharam<br />
para baixo. Não viram alguns vultos que se locomoviam às suas costas.<br />
Lá estava o ninho. Não devia ser o mesmo ninho da sua infância, mas<br />
estava no mesmo lugar. Kadriel começou a descer pela encosta para se<br />
aproximar. Desta vez, tomaram o cuida<strong>do</strong> de amarrar uma corda na sua<br />
cintura, cuja outra ponta foi atada a uma árvore.<br />
Kadriel chegou rapidamente ao ninho. Nenhuma ave por perto. Remexeu<br />
a palha <strong>do</strong> ninho, até que suas mãos se depararam com algo sóli<strong>do</strong>.<br />
O objeto estava envolto em um pedaço de teci<strong>do</strong>. Kadriel reconheceu<br />
o brasão de Sokárin. Seu coração palpitou. Apanhou o embrulho e<br />
iniciou o caminho de subida. Chegan<strong>do</strong> ao plano, sentou-se no chão<br />
para abrir o invólucro. Não pôde conter a emoção quan<strong>do</strong> viu que era o<br />
mesmo tipo de rocha da pedra <strong>do</strong>s mil reis. As lágrimas rolaram sobre a<br />
sua face ao se deparar com o nome escrito na pedra real: KADRIEL<br />
VAHAN.<br />
Bakar colocou-se imediatamente sobre o joelho direito, inclinan<strong>do</strong>-se<br />
em reverência, cabeça abaixada. Kadriel fez sinal para que não fizesse<br />
aquilo, mas ao mesmo tempo sentiu uma estranha satisfação, era o primeiro<br />
cumprimento que recebia como rei.<br />
Era a deixa que esperavam os vultos.<br />
Surgiram rápi<strong>do</strong>s de seu esconderijo e lançaram sobre os <strong>do</strong>is amigos<br />
uma rede. Bakar ficou reti<strong>do</strong>, mas Kadriel conseguiu escapar. Não por<br />
muito tempo, pois os quatro homens se lançaram sobre ele. Tu<strong>do</strong> isso se<br />
TALAL HUSSEINI 181
passou no mais absoluto silêncio. A única agitação se dava dentro da<br />
cabeça de Kadriel, que estava um turbilhão.<br />
Os pensamentos de Kadriel retomaram o rumo de uma possível reação.<br />
Como lesse seus pensamentos, um <strong>do</strong>s homens aproximou uma<br />
balestra da cabeça de Kadriel e disse:<br />
– Não tente nada.<br />
Mal acabara a frase, Kadriel surpreendeu-o com um golpe rápi<strong>do</strong> que<br />
lançou a arma nas trevas. Quan<strong>do</strong> se preparava para atacar seu oponente,<br />
outro <strong>do</strong>s homens pulou sobre suas costas, apertan<strong>do</strong>-lhe o pescoço<br />
com o antebraço. Enquanto tentava se soltar, outros <strong>do</strong>is o apanharam.<br />
Kadriel lutava com vontade, mas logo estava com um <strong>do</strong>s homens torcen<strong>do</strong><br />
cada um de seus braços para trás, um terceiro seguran<strong>do</strong>-o pela<br />
cintura e o primeiro seguran<strong>do</strong>-lhe o pescoço.<br />
Não conseguia mais se movimentar, faltava-lhe o ar, seus braços pareciam<br />
prestes a quebrar. Quan<strong>do</strong> estava a ponto de desistir, Kadriel<br />
transportou-se. Tinha a sensação de estar flutuan<strong>do</strong> no ar. No ar não,<br />
numa substância mais densa que o ar e menos densa que a água. Fez-se<br />
silêncio, que lhe dizia para relaxar, esquecer a <strong>do</strong>r. Aos poucos, Kadriel<br />
relaxava. Sua respiração foi baixan<strong>do</strong> e se tornan<strong>do</strong> consciente. Ele inflou<br />
o ventre e abriu as costelas para os la<strong>do</strong>s e para cima. Abriu o peito,<br />
pressionan<strong>do</strong> os ombros para baixo, facilitan<strong>do</strong> a respiração. Abriu as<br />
fossas nasais, respiran<strong>do</strong> como um touro furioso. Seu olhar tornou-se<br />
duro como o da águia que fixa sua presa.<br />
Com movimentos suaves, mas rápi<strong>do</strong>s e irresistíveis, Kadriel <strong>livro</strong>use<br />
<strong>do</strong>s seus oponentes, arremessan<strong>do</strong>-os com facilidade nas quatro direções.<br />
Surpresos com a reação inesperada, voltaram à carga desordena<strong>do</strong>s.<br />
O primeiro e o segun<strong>do</strong> foram projeta<strong>do</strong>s com facilidade. Kadriel<br />
movimentava-se como o fogo. Seus gritos foram diminuin<strong>do</strong> até desaparecer,<br />
o que o fez lembrar de onde estava: na beira de um precipício.<br />
Não se ouviu nenhum baque, o que indicava a profundidade.<br />
182 PAZ GUERREIRA - FORÇA
O terceiro homem foi barra<strong>do</strong> com um chute na garganta. O estali<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> pescoço soou claro no silêncio da montanha. Quan<strong>do</strong> o corpo rolou<br />
pelo precipício, já estava sem vida. A morte fora instantânea. A monta-<br />
nha seria o seu sepulcro, junto com seus <strong>do</strong>is companheiros. Kadriel<br />
voltou sua atenção para o quarto elemento, que fugia corren<strong>do</strong> em dire-<br />
ção à floresta. Quan<strong>do</strong> Kadriel pensou em começar a persegui-lo, Bakar,<br />
que havia finalmente consegui<strong>do</strong> rasgar a rede, lançou um pedregulho<br />
certeiro em direção ao fugitivo, que o atingiu na nuca, levan<strong>do</strong>-o à morte<br />
instantânea.<br />
Bakar virou-se para Kadriel, com ar de total indignação:<br />
– Ao menos um você deixou para mim!<br />
O comentário, que não podia partir de outro senão de Bakar, fez dissipar<br />
a tensão que envolvia Kadriel, e este sorriu para o amigo, olhou<br />
para a placa e respondeu:<br />
– Não se preocupe, Bakar, nossa luta está apenas começan<strong>do</strong>! Hoje é<br />
o primeiro dia de um futuro que acaba de chegar.<br />
TALAL HUSSEINI 183
N<br />
32.<br />
akan entrou casmurro no seu palácio, com passos marciais,<br />
quase marchan<strong>do</strong>, sem falar com ninguém. Os serviçais que o<br />
conheciam há mais tempo sabiam que nessas ocasiões não se devia dirigir<br />
a palavra ao governa<strong>do</strong>r nem para desejar um bom dia, sob o risco<br />
de deixá-lo ainda mais irrita<strong>do</strong>. Aparentemente, algo na viagem à Capital<br />
o havia desagrada<strong>do</strong>. Mas de qualquer mo<strong>do</strong> não podia se furtar a<br />
encontrar seu hóspede Haggi, que havia permaneci<strong>do</strong> na cidade até a<br />
sua volta atenden<strong>do</strong> a um pedi<strong>do</strong> seu. O governa<strong>do</strong>r man<strong>do</strong>u chamar<br />
Haggi para encontrá-lo a sós na biblioteca <strong>do</strong> palácio. Quan<strong>do</strong> o governa<strong>do</strong>r<br />
chegou ao local designa<strong>do</strong>, Haggi já o aguardava, pois, como bom<br />
diplomata, jamais deixava uma autoridade esperan<strong>do</strong>. O governa<strong>do</strong>r<br />
vociferou:<br />
– Adaran...!!<br />
– Perdão, Nakan, não compreendi...<br />
– As primeiras ações de Adaran como novo Rei não me agradaram<br />
nem um pouco! – completou Nakan.<br />
Haggi fingiu surpresa. O General completou:<br />
– Não vou esconder meu descontentamento. Não acho que ele seja a<br />
pessoa mais indicada para conduzir o reino. O velho Sokárin devia estar<br />
certo em alterar o sucessor. É lamentável que não tenha ti<strong>do</strong> tempo para<br />
trocar a placa...<br />
– Mas Adaran é um homem inteligente e capaz. Será que não pode<br />
fazer um bom reina<strong>do</strong>?<br />
– Não duvi<strong>do</strong> da capacidade nem da inteligência de Adaran. Só não<br />
tenho certeza sobre o seu caráter.<br />
– Posso entender, então, que o Rei não terá o apoio <strong>do</strong> interior. Será<br />
que uma revolta se aproxima?<br />
TALAL HUSSEINI 187
– Não, de forma alguma vou me rebelar ou conspirar contra o Rei,<br />
mas também não terei grande prazer em apoiá-lo em suas empreitadas.<br />
Pressinto tempos difíceis.<br />
A conversa decorria num tom bastante franco, o que não era tão comum<br />
entre aqueles <strong>do</strong>is homens treina<strong>do</strong>s nas artes diplomáticas. Nakan<br />
relatou então o episódio ocorri<strong>do</strong> na reunião com os generais, que culminou<br />
com a morte de um velho general. Desse fato Haggi não sabia,<br />
pois sua rede de informações não contava com ninguém dentro <strong>do</strong> Conselho<br />
de Guerra.<br />
– Nakan, você sabe que minha missão aqui é verificar as condições<br />
em que a Aliança das Doze Cidades vai encarar a sucessão, e agora o<br />
novo Rei. Posso dizer em meu relatório que o apoio da Aliança ao novo<br />
Rei é absoluto?<br />
– Meu caro amigo – retrucou Nakan, tornan<strong>do</strong> conti<strong>do</strong> o ritmo da<br />
conversa – penso que relatórios não devem conter juízos de valor muito<br />
específicos. Relatórios são tanto mais precisos quanto menos informações<br />
trouxerem.<br />
– Enten<strong>do</strong>... Entre nós, podemos pensar em algo mais conclusivo?<br />
– Haggi, minha conclusão é que vou procurar cuidar da melhor forma<br />
possível <strong>do</strong>s interesses da minha cidade e das demais cidades da Aliança,<br />
sem entrar em atrito com o poder central. Mas por certo não aceitaremos<br />
nenhuma imposição que venha a restringir de qualquer forma<br />
nossas posições. A Aliança das Doze Cidades procurará manter sua autonomia.<br />
– E se o governo central não permitir?<br />
– Prefiro não pensar nessa hipótese, por enquanto, mas não iremos<br />
nos submeter.<br />
Assim dito, Nakan despediu-se de Haggi. Esse era mais um teste que<br />
impunha ao rapaz, pois sabia que ele representava o Esta<strong>do</strong>, e que ao<br />
deixar sua posição de insurgência tão exposta corria sérios riscos. Se<br />
188 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
elatasse a Adaran o que ouvira, certamente ele tomaria medidas contra<br />
a Aliança, ou contra Nakan, mas este estava prepara<strong>do</strong>. Já a Aliança...<br />
seria mesmo uma aliança? Nakan estava absolutamente certo com relação<br />
à fidelidade de duas cidades, acreditava em outras duas, mas não<br />
colocaria sua mão no fogo. Quatro eram duvi<strong>do</strong>sas e as outras três por<br />
certo estariam com o Rei. O choque não seria fácil...<br />
Haggi despediu-se <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r e foi em direção aos seus aposentos.<br />
Quan<strong>do</strong> já estava perto, um vulto surgi<strong>do</strong> <strong>do</strong> nada o surpreendeu.<br />
Era Ivis. Não se tinham visto desde o episódio no jantar. Depois daquilo,<br />
Haggi estivera ocupa<strong>do</strong> com seus afazeres oficiais e algumas viagens<br />
curtas até outras cidades da Aliança. Haggi não era homem de ser surpreendi<strong>do</strong><br />
e muito menos de se assustar. Ivis havia si<strong>do</strong> discreta. O susto<br />
mesclou-se à satisfação em vê-la.<br />
– Ivis...! Que surpresa!<br />
– Precisava vê-lo... Não tive a oportunidade de me desculpar por<br />
Garat.<br />
– Você não tem <strong>do</strong> que se desculpar, pois nada fez. Se alguma culpa<br />
lhe assiste é a de estar noiva daquele imbecil.<br />
– Creio que essa culpa já expiei, pois não sou mais noiva... nem dele,<br />
nem de ninguém.<br />
Haggi teve trabalho para ocultar a alegria que sentiu com tal notícia.<br />
Uma demonstração dessa natureza arruinaria sua estratégia de conquista.<br />
O próprio fato de sentir aquela alegria foi estranho para Haggi, pois<br />
não era a satisfação de um movimento bem sucedi<strong>do</strong> no tabuleiro da<br />
conquista, e sim um sentimento verdadeiro, cuja origem ele não conseguia<br />
identificar. Ao se recompor internamente, Haggi indagou:<br />
– Não é mais noiva? Mas e Garat? E as famílias? E tu<strong>do</strong> que envolve<br />
esse tipo de situação?<br />
– Não posso me importar com tu<strong>do</strong> isso se minha felicidade estiver<br />
em jogo. Garat é um covarde, falta-lhe o valor de um cavalheiro.<br />
TALAL HUSSEINI 189
– E o que a traz aqui? Posso ajudar de alguma maneira? – dizen<strong>do</strong> is-<br />
so, Haggi aproximou seu rosto <strong>do</strong> de Ivis e por um instante estiveram<br />
verdadeiramente perto de se beijar, não fosse um serviçal <strong>do</strong> palácio têlos<br />
aborda<strong>do</strong> corren<strong>do</strong>, desespera<strong>do</strong> e resfolega<strong>do</strong>:<br />
– Senhor, uma convocação <strong>do</strong> Rei, o senhor precisa ir imediatamente<br />
à Capital!<br />
– Pois bem, não há necessidade para tamanho desespero, amanhã<br />
preparar-me-ei para a viagem.<br />
– O senhor não entendeu, a convocação é para agora! Há uma carruagem<br />
real a aguardá-lo no pátio, para partir imediatamente. Suas malas já<br />
foram arrumadas e estarão na carruagem.<br />
O rapaz fez uma pausa e prosseguiu:<br />
– Creio que não exista a opção de não ir agora, pois há guardas reais<br />
para a sua escolta, com firmes ordens para seguir imediatamente para a<br />
Capital, com o senhor...<br />
– Enten<strong>do</strong>.<br />
Haggi afastou-se de Ivis, com um olhar resigna<strong>do</strong>:<br />
– O dever me chama, mas por certo nos encontraremos novamente.<br />
Vou esperá-la na Capital. Não fique noiva de novo sem me consultar.<br />
Ivis sorriu e acenou um adeus tími<strong>do</strong>, de quem não conseguiu obter o<br />
que queria.<br />
33.<br />
A<br />
figura que comandava a reunião era tenebrosa. Pele acinzentada,<br />
longos cabelos desgrenha<strong>do</strong>s, olhos fun<strong>do</strong>s, negros como<br />
breu. Sua voz não parecia humana, soava algum tanto metálica e ao<br />
190 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
mesmo tempo grave, fazia vibrar as entranhas de quem o ouvia, mais<br />
precisamente o estômago, causan<strong>do</strong> uma sensação incômoda. Vestia<br />
apenas uns trapos em torno da cintura, lembran<strong>do</strong> o estilo utiliza<strong>do</strong><br />
pelos povos de além <strong>do</strong> In<strong>do</strong>, mas mais folga<strong>do</strong>s.<br />
Ayamarusa admoestava seus interlocutores, que eram os seus discípulos,<br />
ou, antes, seus servos. Ele começou imprecan<strong>do</strong>-os de palavrões,<br />
pois haviam permiti<strong>do</strong> que Mulil completasse sua missão no deserto. A<br />
notícia era que Mulil estava percorren<strong>do</strong> o caminho de volta, trazen<strong>do</strong><br />
com ele um artesão sagra<strong>do</strong>, encarrega<strong>do</strong> de cumprir não se sabe qual<br />
missão de Montuhotep. Nenhum <strong>do</strong>s presentes ousava sequer olhá-lo<br />
diretamente, pois era realmente uma visão desagradável. Se apenas sua<br />
voz já causava náuseas, esta acompanhada da sua figura faria qualquer<br />
um desmaiar. Quem ousou responder à pergunta de Ayamarusa de por<br />
que havia si<strong>do</strong> permiti<strong>do</strong> a Mulil chegar ao seu destino foi um homem<br />
com idade entre os trinta e cinco e os quarenta e cinco anos, de estatura<br />
bastante elevada, cabelos curtos, rosto largo e quadra<strong>do</strong>. Pelos trajes,<br />
via-se que era militar de alta patente <strong>do</strong> exército egípcio. Os ombros<br />
largos e braços secos termina<strong>do</strong>s por grandes mãos denotavam<br />
grande força física.<br />
Knef era um assassino profissional. Conhecia todas as formas de matar,<br />
desde as mais violentas até as mais sutis. Conhecia muito bem todas<br />
as técnicas de combate manual e arma<strong>do</strong>. Todas essas habilidades<br />
somadas a uma mente extremamente metódica o tornavam um homem<br />
muito perigoso. Ele redarguiu ao seu Mestre que lhes pareceu mais<br />
conveniente deixar que o deserto destruísse Mulil.<br />
– Mas não destruiu! – esbravejou Ayamarusa – Vocês o subestimaram,<br />
e agora corremos sério risco. O artesão não pode chegar à presença<br />
de Montuhotep. Devemos capturá-lo com vida, para extrair dele<br />
as informações sobre a missão que lhe foi confiada. Reúnam todas as<br />
forças para realizar essa tarefa. O momento ideal é agora, pois devem<br />
TALAL HUSSEINI 191
estar chegan<strong>do</strong> à cidade. Depois que estiverem entre os seus, será mui-<br />
to mais difícil nos aproximarmos. Vão! E desta vez não falhem!<br />
To<strong>do</strong>s obedeceram imediatamente, seguin<strong>do</strong> em direção à entrada<br />
oeste da cidade, por onde sabiam que Mulil chegaria. Era um grupo<br />
bizarro, forma<strong>do</strong> por assassinos e vilões de to<strong>do</strong>s os tipos. Além de<br />
Knef, havia um sujeito magro e alto, de idade indefinida e de raça também<br />
indefinida, páli<strong>do</strong>, chama<strong>do</strong> Agap. Ele era um mago, perito nas<br />
artes da sabotagem e da intriga. Dentro <strong>do</strong> meio da magia e da feitiçaria<br />
não tinha grande poder, mas o que possuía era o suficiente para<br />
provocar grandes estragos em pessoas desprotegidas. Nos círculos que<br />
frequentava, to<strong>do</strong>s sabiam que ele era mau-caráter, mas ninguém conseguia<br />
prová-lo.<br />
Também na linha da feitiçaria, fazia parte <strong>do</strong> grupo uma mulher, com<br />
ares sensuais, de boa aparência física, salvo pelo olho esquer<strong>do</strong> esbranquiça<strong>do</strong>.<br />
Aparentava pouco mais de trinta anos de idade, devi<strong>do</strong> a<br />
certos rituais de magia negra que costumava realizar, pois em verdade<br />
tinha idade bem mais avançada. Sethini <strong>do</strong>minava o sonho. Interferin<strong>do</strong><br />
nesse ambiente, conseguia induzir as pessoas a fazer o que ela quisesse<br />
e, se fosse o caso, poderia causar-lhes danos psíquicos levan<strong>do</strong>-as até<br />
mesmo à loucura ou à morte.<br />
O último componente <strong>do</strong> estranho grupo se chamava Ripu. Era um<br />
homem de instintos violentos, utiliza<strong>do</strong> para fazer to<strong>do</strong>s os trabalhos<br />
mais sujos que eram necessários. Foi coopta<strong>do</strong> por meio <strong>do</strong> sequestro<br />
de sua família, perpetra<strong>do</strong> pelo restante <strong>do</strong> grupo para chantageá-lo.<br />
Certo dia, quan<strong>do</strong> procuravam forçá-lo a um trabalho ameaçan<strong>do</strong> de<br />
morte seus familiares cativos, ele mesmo se adiantou e os matou, esposa<br />
e três filhos. Seu semblante nem sequer se alterou. Em seguida, realizou<br />
o trabalho que lhe ordenavam, assim como realizou to<strong>do</strong>s os que<br />
lhe solicitaram depois disso. Gostava, não era questão de coação. Ja-<br />
192 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
mais mencionou palavra sobre sua família, seguiu trabalhan<strong>do</strong> para<br />
Ayamarusa como se nada tivesse aconteci<strong>do</strong>. Com isso ganhou sua<br />
confiança.<br />
Os quatro começaram a fazer os preparativos para cumprir sua missão.<br />
Desta vez, não podiam falhar. O erro de cálculo sobre o deserto<br />
fora grave. Jamais imaginariam que Mulil pudesse conseguir. Poucas<br />
pessoas haviam sobrevivi<strong>do</strong> àquelas areias, ainda mais sem conhecêlas<br />
previamente. Mas agora não falhariam. O plano era perfeito. O<br />
artesão captura<strong>do</strong> e Mulil morto, isso lhes bastava...<br />
Mulil e Sigés haviam feito uma tranquila viagem de volta. É mais fácil<br />
traçar planos de viagem quan<strong>do</strong> se conhece o itinerário e as distâncias<br />
a percorrer. Entretanto, por mais que no início Mulil tivesse tenta<strong>do</strong><br />
encetar alguma conversa, não obteve qualquer resulta<strong>do</strong> além de<br />
alguns sinais. Além de silencioso, Sigés era bastante compenetra<strong>do</strong>.<br />
Parecia fazer cálculos e planos mentais durante toda a viagem, apesar<br />
de ainda não conhecer sua próxima tarefa.<br />
Já se aproximavam da cidade, o denotavam algumas palmeiras que<br />
surgiam ao longo <strong>do</strong> caminho e aquela névoa que, ao longe, formava<br />
uma espécie de re<strong>do</strong>ma em torno <strong>do</strong> povoa<strong>do</strong>, que distorcia as imagens<br />
naquela área. Sigés carregava seus instrumentos com cuida<strong>do</strong>. Traziaos<br />
num grande saco de lona que parecia bastante pesa<strong>do</strong>, mas em momento<br />
algum permitiu que Mulil o ajudasse a levá-lo. Ambos estavam<br />
exaustos.<br />
Surgiram no horizonte, vin<strong>do</strong> em sua direção, duas silhuetas. Mulil<br />
ficou desconfia<strong>do</strong>, mas daquela distância ainda não se divisava seus<br />
rostos. De qualquer mo<strong>do</strong>, alertou Sigés, que já estava com uma marreta,<br />
que era uma das suas ferramentas, nas mãos. Mulil tinha um longo<br />
bastão que, aprendera com seu Mestre, era um importante instrumento<br />
para longas caminhadas.<br />
TALAL HUSSEINI 193
Talvez fossem seus amigos que viessem recebê-los. Sentia saudades<br />
de sua amada Sekhmetis. Uma das silhuetas podia ser de seu amigo<br />
Zimbro, pelas grandes proporções. Zimbro era um grande guerreiro,<br />
<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de extrema força física e <strong>do</strong>mínio sobre os animais. Parecia<br />
comunicar-se com eles, nunca estava desacompanha<strong>do</strong> de Onix, sua<br />
pantera negra. Não, não podia ser ele, pois não havia nenhum animal<br />
ao seu la<strong>do</strong>. A preocupação de Mulil cresceu.<br />
Os <strong>do</strong>is vultos que, agora se via, eram de homens, começaram a correr<br />
em sua direção. Não havia onde se esconder, pois estavam em campo<br />
aberto. Fugir também era inútil, pois com o cansaço da viagem fatalmente<br />
seriam alcança<strong>do</strong>s. Restava lutar.<br />
Esperaram para<strong>do</strong>s. Knef lançou-se sobre Mulil, que conseguiu se<br />
esquivar <strong>do</strong> primeiro assalto. O combate tornou-se feroz entre os <strong>do</strong>is<br />
homens. Evidentemente, Knef o superava em força física e técnicas de<br />
combate, mas Mulil aprendera com seu Mestre muito sobre tática e<br />
estratégia, o que lhe permitia equilibrar as ações.<br />
Enquanto isso, Sigés surpreendeu contra o violento Ripu, logran<strong>do</strong><br />
desviar <strong>do</strong> seu ataque e contra-atacá-lo com uma forte marretada nas<br />
costelas, que o retirou de combate com duas ou três quebradas. Sigés<br />
passou a ajudar Mulil contra Knef, que intensificava seus ataques. Mas<br />
não viu chegar Agap, que lhe soprou um pó no rosto, paralisan<strong>do</strong> os<br />
seus músculos e deixan<strong>do</strong>-o consciente, mas sem qualquer possibilidade<br />
de reação. Juntou-se a ele Sethini, colocan<strong>do</strong> um capuz negro sobre a<br />
cabeça de Sigés e ajudan<strong>do</strong> Agap a colocá-lo sobre um cavalo.<br />
Mulil viu que levavam o artesão, mas nada podia fazer, pois já estava<br />
em grande dificuldade na sua luta contra Knef. Os rigores <strong>do</strong> deserto<br />
minavam sua resistência. Knef conseguiu derrubá-lo, sacou uma espada<br />
curta e foi em sua direção, pronto para liquidá-lo. Foi quan<strong>do</strong> uma<br />
flecha passou zunin<strong>do</strong> por ele, riscan<strong>do</strong>-lhe o ombro. A espada caiu.<br />
Mulil lançou-se sobre ela, mas Knef a chutou para longe. Voltou-se<br />
194 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
para o vulto que disparara contra ele. Estava muito longe para que<br />
pudesse identificar. Fora um excelente tiro para aquela distância. Era<br />
uma pessoa pequena, mas estava acompanhada de outra, bem maior,<br />
com um animal ao la<strong>do</strong>. Vinham rápi<strong>do</strong> na sua direção. Knef pensou<br />
por um momento em qual seria a melhor atitude. Terminar de acabar<br />
com Mulil..., mas ficaria exposto a outro disparo. Enfrentar os inimigos<br />
desconheci<strong>do</strong>s... seriam três contra um, pois seus companheiros já haviam<br />
fugi<strong>do</strong> com o prisioneiro, acompanhara-os Ripu, feri<strong>do</strong>. Resolveu<br />
fazer uma retirada estratégica, mas ainda teve tempo de se dirigir a<br />
Mulil:<br />
– Ainda vamos nos encontrar de novo! E você não terá tanta sorte!<br />
Chamo-me Knef, guarde bem este nome, pois será o último que ouvirá<br />
antes da sua morte – ao dizer isso, saltou sobre um cavalo que seus<br />
companheiros lhe haviam deixa<strong>do</strong>, e partiu em disparada.<br />
O primeiro vulto a chegar perto de Mulil foi Onix, a pantera negra de<br />
Zimbro. Ela poderia ter alcança<strong>do</strong> o fugitivo, mas permaneceu com<br />
Mulil, atenden<strong>do</strong> a um assobio de seu companheiro. Os outros <strong>do</strong>is<br />
chegaram em seguida. O gigante Zimbro sorria, como sempre, feliz em<br />
rever o amigo. A pessoa menor era Sekhmetis, que ajoelhou-se ao la<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> prostra<strong>do</strong> Mulil, abraçan<strong>do</strong>-o carinhosamente. Ver aqueles olhos<br />
verdes fazia com que se esquecesse de todas as agruras <strong>do</strong> deserto. Enquanto<br />
o casal se perdia num abraço sem fim, quem disse as primeiras<br />
palavras foi Zimbro:<br />
– Mulil, você está horrível, o deserto acabou mesmo com você...<br />
De fato, o discípulo de Montuhotep estava mais magro, com a pele<br />
queimada pelo Sol e ressecada pelo sal, barba de semanas, sujeira de<br />
dias. Mas ainda teve energia para responder com humor:<br />
– Quase acabou, meu amigo, quase... não fosse o tiro preciso, como<br />
sempre, de Sekhmetis.<br />
A jovem sorriu. Mas Mulil prosseguiu em tom mais grave:<br />
– Ocorre que conseguiram levar Sigés!<br />
TALAL HUSSEINI 195
– Quem é Sigés? – perguntaram quase em uníssono.<br />
– É um artesão. Foi o motivo de minha viagem pelo deserto. Devia<br />
trazê-lo à presença de Montuhotep, que tinha para ele uma tarefa. Mas<br />
eu pus tu<strong>do</strong> a perder... Graças à minha falha, intuo que ele está nas<br />
mãos de Ayamarusa.<br />
– Montuhotep saberá o que fazer, precisamos ir até ele sem perda de<br />
tempo – respondeu Sekhmetis.<br />
Os <strong>do</strong>is homens concordaram. O grupo partiu apressa<strong>do</strong> para ter<br />
com o Mestre.<br />
K<br />
34.<br />
adriel parecia ter <strong>do</strong>rmi<strong>do</strong> vários dias. A busca da placa fora<br />
desgastante. Sua vontade era ir direto a Ravi para lhe relatar as<br />
novas, mas o cansaço e a hora tardia em que retornaram o fizeram ir<br />
diretamente para a sua casa. Bakar, que o acompanhara, roncava sonoramente<br />
sobre uma manta no chão da sala. Como nenhum <strong>do</strong>s homens<br />
que os haviam ataca<strong>do</strong> na montanha sobrevivera, acharam seguro ir para<br />
casa, uma vez que a notícia da placa ainda não teria chega<strong>do</strong> aos ouvi<strong>do</strong>s<br />
de ninguém, principalmente de Adaran, que não permitiria que seu<br />
trono fosse ameaça<strong>do</strong> por nada.<br />
Kadriel não via a hora de falar com Ravi, ele saberia como esconder a<br />
placa e como utilizá-la da maneira mais adequada e no momento oportuno.<br />
Resolveu, entretanto, fazer a prática de concentração que aprendera<br />
com Ravi, enquanto esperava que Bakar acordasse.<br />
Sentou-se sobre os joelhos, na posição que lhe havia si<strong>do</strong> indicada<br />
como a mais adequada para concentrar-se, e iniciou os passos. Ao chegar<br />
perante o senhor das portas, algo inusita<strong>do</strong> aconteceu: surgiu um<br />
196 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
uí<strong>do</strong> agu<strong>do</strong> que quase estourava seus ouvi<strong>do</strong>s. De repente, Kadriel co-<br />
mo que se transportou, em velocidade espantosa, passan<strong>do</strong> sobre mares<br />
e cidades, até as altas montanhas <strong>do</strong> topo <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, paran<strong>do</strong> brusca-<br />
mente, frente a frente com um indivíduo magro, a ponto de deixar apa-<br />
recer as costelas sob a pele, vesti<strong>do</strong> apenas com um tipo de calção indi-<br />
ano curto, de teci<strong>do</strong>, folga<strong>do</strong>, justo apenas na cintura e em torno das<br />
coxas, senta<strong>do</strong> com as pernas cruzadas, como os escribas, em frente à<br />
entrada de uma caverna. Kadriel flutuava em frente a esse indivíduo.<br />
Sua pele era de uma cor estranha: um misto de escura acinzentada com<br />
um tom avermelha<strong>do</strong>, como se tivesse apanha<strong>do</strong> muito Sol. Os cabelos<br />
e a barba longos estavam desalinha<strong>do</strong>s. A vibração ensurdece<strong>do</strong>ra continuava.<br />
Kadriel sentia que aquela vibração fazia com que tu<strong>do</strong> à sua<br />
volta tendesse ao caos, como se o mun<strong>do</strong> fosse desintegrar-se a qualquer<br />
momento. Quan<strong>do</strong> olhou para trás, Kadriel viu uma multidão vibran<strong>do</strong><br />
daquela forma, como que hipnotizada. Voltou-se novamente para aquela<br />
figura bizarra e deparou-se com uma imagem que nunca mais esqueceria:<br />
os olhos. Seus olhos eram negros como o abismo, praticamente não<br />
tinham esclerótica. Duas esferas negras, de uma profundidade insuportável.<br />
Kadriel viu seu nome, que jamais ousaria pronunciar: Ayamarusa.<br />
No exato momento em que soube seu nome, foi arrebata<strong>do</strong> de volta<br />
pelo mesmo caminho até a sua casa. O impacto <strong>do</strong> retorno foi tanto, que<br />
Kadriel não conseguira recuperar de imediato a consciência. Quan<strong>do</strong><br />
abriu os olhos, deparou-se com Bakar, que o retinha em seus braços<br />
com uma expressão de pavor na face. Kadriel sangrava pelas narinas,<br />
sentia náuseas e tonturas. Bakar gaguejou:<br />
– Você está bem...?<br />
Kadriel pensou na resposta, mas ela não saiu de seus lábios. Fez um<br />
gesto afirmativo lento com a cabeça, o que pareceu não convencer ao<br />
seu amigo, que insistiu:<br />
TALAL HUSSEINI 197
– Pois você não me parece nada bem, acho melhor irmos a um médi-<br />
co. Você está tremen<strong>do</strong>, e sangran<strong>do</strong>... – concluiu tocan<strong>do</strong> seu próprio<br />
nariz, para indicar onde era o sangramento.<br />
Kadriel levou as costas da mão ao nariz, depois a olhou, para consta-<br />
tar o que já sabia ser verdade. Procurou respirar com calma, buscan<strong>do</strong><br />
forças para pronunciar algumas palavras que pudessem tranquilizar<br />
Bakar:<br />
– Estou melhor... Um médico não será necessário. Precisamos ir até a<br />
casa de Ravi.<br />
Bakar o aju<strong>do</strong>u a se levantar. Kadriel ainda estava visivelmente trê-<br />
mulo, mas o sangramento estancara. Os <strong>do</strong>is partiram rapidamente rumo<br />
à casa de Ravi. Havia muito que conversar.<br />
Chegan<strong>do</strong> à casa de Ravi, este os recebeu pessoalmente, fazen<strong>do</strong>-os<br />
entrar no jardim que ficava na parte posterior da casa, aquele que possuía<br />
vista para Anthar. Perceben<strong>do</strong> que Kadriel não estava muito bem,<br />
Ravi fez sinal a uma serviçal para que lhe trouxesse algo de beber. Apenas<br />
pelo sinal, ela sabia que devia trazer vinho. Serviu as taças a partir<br />
de uma ânfora decorada com estranhos símbolos, desconheci<strong>do</strong>s tanto<br />
para Kadriel quanto para Bakar, pois não pareciam humanos. Kadriel<br />
ficou curioso, mas deixou as perguntas para uma outra oportunidade, já<br />
que havia muitos assuntos importantes para tratar.<br />
Sem pronunciar palavra, com um ar solene, Kadriel fez sinal a Bakar<br />
para que mostrasse a Ravi o fruto de seus esforços. Bakar, fazen<strong>do</strong> ares<br />
ainda mais cerimoniais, colocou sobre a mesa um embrulho e o foi desvelan<strong>do</strong><br />
vagarosamente. Ravi não demonstrou qualquer surpresa ao se<br />
deparar com a placa, apenas pousou a mão sobre ela, saborean<strong>do</strong> com o<br />
tato cada uma das letras que formavam o nome de Kadriel. Ravi indagou:<br />
198 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
– Vocês tiveram algum problema para consegui-la? Você não me pa-<br />
rece nada bem, Kadriel. Tome um pouco deste vinho envelheci<strong>do</strong>, lhe<br />
fará bem.<br />
– Não foi um problema com a placa... Quer dizer, na verdade tivemos<br />
sim alguns problemas... Mas, quero dizer... Não foram eles que me dei-<br />
xaram assim – Kadriel ainda estava visivelmente perturba<strong>do</strong>. Ravi fez<br />
uma expressão interrogativa, e foi Bakar quem tomou a palavra para<br />
tentar explicar.<br />
– Senhor, nós encontramos a placa num ninho de falcão nas monta-<br />
nhas, no mesmo local em que certa vez, na nossa infância, havíamos<br />
si<strong>do</strong> ataca<strong>do</strong>s por um falcão. Nós a pegamos sem maiores problemas,<br />
mas quan<strong>do</strong> estávamos de saída, apareceram alguns homens... – fez uma<br />
pausa, esperan<strong>do</strong> alguma pergunta de Ravi, mas este permaneceu em<br />
silêncio, como tinha por hábito fazer, aguardan<strong>do</strong> a continuação. Então<br />
Bakar prosseguiu: – eram quatro, nos pegaram de surpresa, me acertaram<br />
na cabeça, colocan<strong>do</strong>-me fora de combate, e então os quatro partiram<br />
para cima de Kadriel. Quan<strong>do</strong> me recuperei, ele não havia deixa<strong>do</strong><br />
quase nada para mim, três deles estavam mortos e o último fugia em<br />
disparada em direção à floresta. Tive de abatê-lo com uma pedrada.<br />
Como era muito tarde e estávamos cansa<strong>do</strong>s, voltamos para casa.<br />
– Então por que Kadriel está atônito? Chegou a ser golpea<strong>do</strong>?<br />
– Não, senhor, ontem quan<strong>do</strong> retornamos ele estava bem. Hoje pela<br />
manhã, quan<strong>do</strong> acordei, o encontrei ajoelha<strong>do</strong> no chão, trêmulo, com o<br />
nariz sangran<strong>do</strong> muito... – neste momento da narrativa, Ravi o interrompeu:<br />
– Trêmulo e sangran<strong>do</strong>?! Rápi<strong>do</strong>, ajude-me a colocá-lo neste catre.<br />
Colocou uma mão sobre o coração de Kadriel e a outra sobre a cabeça<br />
e, fechan<strong>do</strong> os olhos, pronunciou algumas palavras impossíveis de se<br />
entender. Depois preparou um chá e fez Kadriel bebê-lo. Este logo pe-<br />
TALAL HUSSEINI 199
gou no sono, <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> por aproximadamente meia hora. Quan<strong>do</strong> despertou,<br />
Ravi o velava:<br />
– O que aconteceu, Kadriel?<br />
– Nós recuperamos a placa...<br />
– Sim, isso eu já sei, Bakar me contou tu<strong>do</strong>. Você fez uma prática de<br />
concentração?<br />
– Sim, aquela que o senhor me ensinou, mas algo muito estranho<br />
aconteceu... – Kadriel relatou então sua experiência.<br />
Bakar, que também ouvia, parecia impressiona<strong>do</strong>. Ravi limitou-se a<br />
dizer:<br />
– Ayamarusa quis vê-lo de perto. Agora já o conhece. Mas não se<br />
preocupe, não acontecerá de novo, já criei algumas barreiras que o impedirão<br />
de chegar novamente até você.<br />
– Mas quem é esse? É uma figura real, ou uma fantasia tenebrosa <strong>do</strong>s<br />
meus pesadelos? Pois o vi também no meu sonho. Ele era o líder de um<br />
grupo que atacou Mulil.<br />
– Ele é ambos. O mal que ele pode fazer é bem real. Só esperava um<br />
novo momento histórico para buscar realizar seus intentos malignos.<br />
– O senhor o conhece, então?<br />
– Sim, o conheço há muito tempo. Mas você não deve se preocupar<br />
com ele agora. Suas atenções devem estar focadas em como cumprir o<br />
seu destino, como lutar pelo trono e fazer deste País um lugar belo e<br />
justo. Quanto mais tempo Adaran ficar no poder, pior ficará a situação<br />
da população.<br />
– Vamos levar a placa a público, tenho certeza de que muitos nos<br />
apoiarão!<br />
– Sim – concor<strong>do</strong>u Bakar – vamos lutar pelo direito de Kadriel à sucessão.<br />
– Enten<strong>do</strong> o seu açodamento, rapazes, ele é fruto da juventude, mas o<br />
momento agora é para uma estratégia mais elaborada. Temos que traçar<br />
alianças fortes em torno de um núcleo forma<strong>do</strong> pelos guerreiros mais<br />
fiéis. Assim que Adaran souber da placa, não poupará esforços para<br />
200 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
destruí-la e também àqueles que a viram. Para isso, precisaremos partir,<br />
para retornar quan<strong>do</strong> estivermos prepara<strong>do</strong>s.<br />
– O senhor sugere fugir? – perguntou Kadriel, com certa indignação.<br />
– Não se trata de fugir, mas de se retirar para uma posição estrategicamente<br />
melhor. Como estamos agora, seremos facilmente destruí<strong>do</strong>s.<br />
Devemos aproveitar para partir enquanto não somos procura<strong>do</strong>s. Depois<br />
disso, nossa vida ficará bem mais difícil. Preparem o básico para uma<br />
longa viagem, mas evitan<strong>do</strong> peso demais. Encontrem-me aqui amanhã,<br />
no início da noite.<br />
Já na saída, Kadriel lembrou-se da placa:<br />
– Pode deixá-la comigo, eu a esconderei onde jamais poderão encontrá-la.<br />
Agora vão!<br />
Os <strong>do</strong>is obedeceram. Kadriel ainda tinha muitos questionamentos: o<br />
que Ayamarusa representava em relação a Mulil, nos seus sonhos, e em<br />
relação a ele mesmo, nas suas meditações? E na montanha, o que se<br />
passara, como conseguira força para arremessar os quatro oponentes<br />
como fossem bonecos de palha? No momento oportuno, Kadriel perguntaria<br />
sobre isso a Ravi. Por agora, era melhor obedecer.<br />
D<br />
35.<br />
hara se surpreendeu quan<strong>do</strong> chegou ao seu local de trabalho.<br />
Desde que voltara <strong>do</strong> exterior, pouco antes da morte <strong>do</strong> Rei<br />
Sokárin, trabalhava num consultório de atendimento médico ao público<br />
manti<strong>do</strong> pelo governo. As portas estavam fechadas. Na porta, apenas<br />
uma nota dan<strong>do</strong> conta <strong>do</strong> fechamento por determinação <strong>do</strong> Rei Adaran.<br />
Formava-se uma fila de pessoas <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora, para serem atendidas,<br />
algumas em esta<strong>do</strong> grave. A maioria <strong>do</strong>s médicos colegas de Dhara<br />
havia i<strong>do</strong> embora ao se deparar com a notícia <strong>do</strong> fechamento. Dhara ia<br />
TALAL HUSSEINI 201
fazer o mesmo, mas uma mulher de certa idade lhe implorou por ajuda,<br />
e a médica não pôde deixar de lhe prestar atendimento, observan<strong>do</strong> o<br />
juramento que fizera para poder exercer a medicina. Esse juramento não<br />
era muito pratica<strong>do</strong> na época, mas Dhara o levava a sério.<br />
Sua vontade era ir até o palácio real tirar satisfações sobre aquele absur<strong>do</strong>:<br />
deixar a população sem atendimento de saúde. No entanto, logo<br />
que terminava de atender a um paciente, outro lhe pedia ajuda. Mais<br />
<strong>do</strong>is médicos que estavam por ali começaram a ajudá-la, talvez por<br />
consciência, talvez por se sentirem mal com o exemplo. Havia também<br />
alguns auxiliares, que passaram a ajudar, sob o coman<strong>do</strong> de Dhara.<br />
Terminan<strong>do</strong> de atender ao último paciente realmente grave, Dhara dirigiu-se<br />
às outras pessoas que ali estavam:<br />
– To<strong>do</strong>s os casos mais graves já receberam tratamento inicial. Não<br />
poderemos atender a mais ninguém, pois <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora não temos as<br />
condições para isso. Peço que retornem amanhã, quan<strong>do</strong> este malentendi<strong>do</strong><br />
já deverá ter si<strong>do</strong> soluciona<strong>do</strong>, ou que se dirijam a outro centro<br />
de atendimento.<br />
– Este é o terceiro centro a que venho – gritou um homem <strong>do</strong> meio da<br />
multidão – to<strong>do</strong>s estavam fecha<strong>do</strong>s!<br />
– Não temos mais informações <strong>do</strong> que vocês. Agora só o que peço é<br />
que voltem às suas casas. Por ora, não temos solução. Desculpem!<br />
A população começava a se tornar hostil. O vozerio se elevava, alguns<br />
objetos começavam a ser atira<strong>do</strong>s nos médicos. Dhara tentava conter,<br />
em vão, a multidão. Mas a massa humana não tem um comportamento<br />
racional, antes comporta-se como um grande e perigoso animal,<br />
pronto para devastar tu<strong>do</strong> à sua frente quan<strong>do</strong> seus desejos não são<br />
atendi<strong>do</strong>s. Dhara divisava as expressões de ódio e desespero, revolta e<br />
indignação:<br />
– Por favor, tenham calma! Tu<strong>do</strong> será resolvi<strong>do</strong>!<br />
Ninguém a ouvia, e a situação já estava fican<strong>do</strong> crítica. Os médicos<br />
conseguiram sair <strong>do</strong> local, graças a uma ou outra voz de bom senso que<br />
202 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
econheceu que os que ali estavam ao menos atenderam algumas pessoas,<br />
e que não eram os culpa<strong>do</strong>s pelo ocorri<strong>do</strong>. Mas mesmo essas vozes<br />
logo foram caladas pela multidão em fúria. Houve tempo apenas para<br />
que Dhara e os outros saíssem dali.<br />
Dhara decidiu ir imediatamente até o palácio real, para ser recebida<br />
por alguém que lhe desse uma explicação plausível para aquela situação<br />
absurda. Entretanto, ela ainda não tinha sequer a informação <strong>do</strong> nome<br />
<strong>do</strong> novo ministro da saúde.<br />
No caminho para o Palácio Real, Kadriel a avistou. Ela andava rápi<strong>do</strong>,<br />
falan<strong>do</strong> consigo mesma, a ensaiar o que diria ao Rei, ao Ministro, ao<br />
Secretário, enfim a quem a recebesse. Ele a chamou. Como não ouvisse,<br />
correu até ela, interceptan<strong>do</strong> o seu passo:<br />
– Dhara! Tu<strong>do</strong> bem? Vejo que está com pressa como eu...<br />
– Sim, muita, o rei man<strong>do</strong>u fechar os centros de saúde. A população<br />
está perecen<strong>do</strong> nas ruas.<br />
– E o que você pretende fazer?<br />
– Preten<strong>do</strong> não, já estou fazen<strong>do</strong>, estou in<strong>do</strong> até o Palácio Real, para<br />
obter mais informações.<br />
– Não quero desiludi-la, mas isso me parece inútil... e perigoso, pois<br />
Adaran está se mostran<strong>do</strong> um tanto autoritário.<br />
– Creio que você tem razão, mas quero ouvi-lo da boca de alguma autoridade<br />
governamental.<br />
– Dhara, escute com atenção – disse Kadriel em tom sério, seguran<strong>do</strong>-a<br />
nos <strong>do</strong>is ombros – preciso que você confie em mim, apesar de eu<br />
não poder lhe explicar muito agora. Se você quer ir ao palácio, não vou<br />
tentar dissuadi-la, mas depois me encontre em minha casa, até o cair da<br />
noite, sem falta.<br />
– Mas por quê?<br />
– Simplesmente esteja lá, aí lhe explico melhor a situação. Mas confie<br />
em mim, ela é muito mais grave <strong>do</strong> que parece... Esteja lá, certo?<br />
Você promete?<br />
TALAL HUSSEINI 203
– Sim, tu<strong>do</strong> bem... – concor<strong>do</strong>u Dhara, mais por ter fica<strong>do</strong> impressio-<br />
nada com a forma como Kadriel colocou a situação <strong>do</strong> que propriamente<br />
com as circunstâncias.<br />
– Outra coisa: não se exponha, nem confronte as autoridades, o momento<br />
é realmente muito delica<strong>do</strong>, você poderá se colocar em risco.<br />
Ela assentiu e continuou seu caminho. Subiu com passo firme as escadarias<br />
<strong>do</strong> palácio. Observou que a segurança havia si<strong>do</strong> re<strong>do</strong>brada. Os<br />
guardas que estavam à porta barraram sua entrada.<br />
– Alto! Identifique-se!<br />
– Sou médica <strong>do</strong> reino!<br />
Os guardas se entreolharam e resolveram deixá-la passar, afinal ali<br />
era apenas o primeiro ponto de checagem, e que mal poderia oferecer<br />
uma moça?<br />
Ten<strong>do</strong> entra<strong>do</strong> mais vinte metros, nova parada. Desta vez ela não esperou<br />
ser inquirida e foi logo se adiantan<strong>do</strong>:<br />
– Sou médica <strong>do</strong> reino. Gostaria de ver imediatamente o responsável<br />
pela saúde!<br />
Os guardas cochicharam. Um deles saiu, o outro permaneceu em silêncio<br />
perante Dhara. O primeiro guarda voltou acompanha<strong>do</strong> de um<br />
indivíduo de baixa estatura, franzino, nariz longo, olhos pequenos, tronco<br />
ligeiramente curva<strong>do</strong> para a frente, mãos finas e longas em relação à<br />
sua estatura, juntas <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s salientes. O pequeno homem se aproximou<br />
de Dhara com um sorriso pouco convincente:<br />
– Em que posso ajudá-la, senhora?<br />
– Pode levar-me imediatamente para ver o Ministro da Saúde! – retrucou<br />
Dhara, com autoridade.<br />
O homem não demonstrou qualquer perturbação, deu um sorriso igual<br />
ao primeiro e respondeu:<br />
– Temo que isso não seja possível.<br />
204 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
Dhara o fuzilou com os olhos, mas antes que ela pudesse dizer qual-<br />
quer coisa, ele completou:<br />
– Sua Majestade, o Rei Adaran, ainda não nomeou seu ministério.<br />
Portanto, a pessoa que a senhora deseja ver – fez uma pausa estalan<strong>do</strong><br />
os de<strong>do</strong>s das mãos – não existe.<br />
Desta vez, foi Dhara quem não se abalou e emen<strong>do</strong>u com firmeza:<br />
– Bem, neste caso, o Rei ainda é responsável por cada um <strong>do</strong>s ministérios!<br />
Exijo uma audiência imediatamente!<br />
– Não quero ser pessimista, mas diria que isso é um tanto... como direi?<br />
Impossível. O Rei não concede audiências a qualquer pessoa que<br />
bate às portas <strong>do</strong> palácio. Sugiro que a senhora tente marcar um apontamento<br />
com a assessoria <strong>do</strong> Rei e quem sabe em <strong>do</strong>is ou três anos será<br />
atendida... – deu novamente o seu sorriso sarcástico e voltou-se para<br />
deixar a sala. Via-se que era um desses funcionários medíocres a quem<br />
fazia gosto abusar <strong>do</strong> pequeno poder que lhe fora da<strong>do</strong>.<br />
O que ele não viu, quan<strong>do</strong> voltou as costas para Dhara, foi seu olho<br />
esquer<strong>do</strong> escurecer, sua fisionomia assumir traços que pouco lembravam<br />
a beleza que despertou o amor de Kadriel. Ela avançou sobre o<br />
homenzinho e agarrou-o pela gola <strong>do</strong> casaco antes que qualquer <strong>do</strong>s<br />
guardas tivesse tempo para esboçar uma reação. Talvez eles não tivessem<br />
a vontade para isso, pois aquele homem era <strong>do</strong> tipo irritante para<br />
to<strong>do</strong>s e não apenas para o povo que acorria ao Rei. Ela o puxou com<br />
vigor, fazen<strong>do</strong>-o voltar-se para ela. Agora que estava à sua mercê, sua<br />
arrogância tinha desapareci<strong>do</strong>, se transforman<strong>do</strong> em me<strong>do</strong>:<br />
– Escute aqui, meu senhor, acabo de vir <strong>do</strong> centro de saúde no qual<br />
trabalho como médica, acabo de atender a várias pessoas em esta<strong>do</strong> grave<br />
que, como eu, deram com a cara na porta. Posso entender que o Rei<br />
não queira me atender, mas não suportarei o cinismo de um subalterno<br />
qualquer. O senhor vai terminar de me atender e vai me explicar exata-<br />
TALAL HUSSEINI 205
mente o que eu preciso fazer para agendar uma audiência com o Rei,<br />
ainda que leve dez anos...!<br />
O homem estava visivelmente intimida<strong>do</strong>, mas ainda não tivera tem-<br />
po de responder quan<strong>do</strong> um oficial da Guarda Real, acompanha<strong>do</strong> de<br />
<strong>do</strong>is solda<strong>do</strong>s, intercedeu:<br />
– Já basta, senhora! – o sorriso voltou aos lábios <strong>do</strong> homenzinho, que<br />
pensou ter retoma<strong>do</strong> o controle da situação, mas o oficial completou: –<br />
o Rei vai vê-la imediatamente, senhora. Por favor nos acompanhe.<br />
O sorriso se desvaneceu da face <strong>do</strong> homenzinho. Dhara retomou a fisionomia<br />
tranquila e acompanhou os guardas. Não lhe ocorreu que poderia<br />
ser um subterfúgio para prendê-la, até mesmo por que se quisessem<br />
fazê-lo não precisariam de subterfúgios. Fizeram-na entrar numa<br />
grande sala, que era o ofício de despachos <strong>do</strong> Monarca. Se Dhara tivesse<br />
conheci<strong>do</strong> aquela sala nos tempos de Sokárin, teria percebi<strong>do</strong> que o novo<br />
Rei fora bastante ágil em redecorá-la, com grandes cortinas de velu<strong>do</strong>,<br />
mobília clássica, tapetes teci<strong>do</strong>s a mão. O Rei estava próximo a uma<br />
grande lareira acesa. Dhara ajoelhou-se em sinal de respeito. Depois de<br />
alguns segun<strong>do</strong>s, Adaran fez sinal para que ela se levantasse:<br />
– Eu a estava observan<strong>do</strong> em sua conversa com o meu funcionário...<br />
Gosto de pessoas determinadas, por isso lhe conce<strong>do</strong> esta audiência.<br />
Você é médica, pois não?<br />
Dhara assentiu.<br />
– Você é muito bonita, para uma médica.<br />
Dhara não entendeu se aquilo era um elogio, preferiu fingir que não<br />
ouviu. Adaran parecia estudá-la, andava em torno dela, medin<strong>do</strong>-a <strong>do</strong>s<br />
pés à cabeça. Outra pessoa teria começa<strong>do</strong> a se sentir desconfortável.<br />
Dhara ousou tomar a palavra:<br />
– Majestade, o que me traz à sua presença é o fechamento <strong>do</strong>s centros<br />
de saúde... – antes que ela pudesse concluir o raciocínio, Adaran prosseguiu:<br />
206 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
– O que você acha de ficar para o jantar? Poderíamos discutir isso<br />
com mais... privacidade.<br />
– Majestade, seu convite realmente é uma honra, mas não vejo o as-<br />
sunto como de ordem privada e sim de ordem pública. Gostaria de saber<br />
apenas se o fechamento é temporário ou definitivo. E se os médicos <strong>do</strong>s<br />
centros podem considerar-se à disposição ou se ainda estão vincula<strong>do</strong>s<br />
ao governo.<br />
– O fechamento é por tempo indetermina<strong>do</strong>, pois estamos redirecionan<strong>do</strong><br />
as prioridades. Os médicos continuam vincula<strong>do</strong>s ao governo,<br />
pois serão muito úteis nos próximos tempos. Algo mais?<br />
– Nada mais Majestade – disse Dhara, ajoelhan<strong>do</strong>-se novamente como<br />
para se despedir da entrevista.<br />
– Por que tanta pressa? Afinal você ainda não me respondeu sobre o<br />
jantar...<br />
– Infelizmente ainda tenho muitos <strong>do</strong>entes para atender hoje... – mentiu<br />
Dhara.<br />
– Eles podem esperar. Os que têm chance de sobreviver vão aguentar<br />
até amanhã. Os outros, bem..., morrerão de qualquer jeito...<br />
– Sim, Majestade, pode ser, mas minha obrigação é ao menos tentar<br />
evitá-lo. Agora, peço permissão para me retirar.<br />
O Rei demorou a responder, deixan<strong>do</strong> Dhara mais alguns segun<strong>do</strong>s<br />
ajoelhada. Então a dispensou. Quan<strong>do</strong> ela já saía pela porta <strong>do</strong> aposento,<br />
o Rei lançou:<br />
– Também sou como você, – Dhara voltou-se – determina<strong>do</strong>. Sempre<br />
consigo o que quero… refiro-me ao jantar. Você ainda não me disse seu<br />
nome...<br />
– Dhara, Majestade – e deixou o salão.<br />
Ela manteve a compostura até deixar o Palácio Real. Já nas ruas, respirou<br />
fun<strong>do</strong>. O novo Rei era uma figura no mínimo bizarra. Dhara não<br />
TALAL HUSSEINI 207
estava se sentin<strong>do</strong> muito bem. Havia algo no ar <strong>do</strong> Palácio que não lhe<br />
fez bem. Seguiu para a sua casa o mais rápi<strong>do</strong> que pôde.<br />
O<br />
36.<br />
arauto <strong>do</strong> rei anunciou a presença de Haggi no Palácio Real,<br />
atenden<strong>do</strong> à convocação que lhe fora feita. O diplomata teve<br />
de aguardar alguns minutos antes de ser recebi<strong>do</strong>, o que preferiu fazer<br />
de pé. Ficou imóvel, pernas separadas, mãos para trás, em posição de<br />
descanso, diante <strong>do</strong> funcionário franzino, de sorriso sarcástico, o mesmo<br />
que havia atendi<strong>do</strong> Dhara. Depois de cinco minutos com Haggi a encará-lo,<br />
seu sorriso já havia desapareci<strong>do</strong> da face, após dez minutos já se<br />
sentia desconfortável. Vinte minutos de espera e o homenzinho já rezava<br />
para que o Rei atendesse logo aquele visitante. Suas preces foram<br />
atendidas: Haggi foi chama<strong>do</strong>.<br />
Entran<strong>do</strong> na suntuosa sala de despachos <strong>do</strong> novo rei, Haggi logo percebeu<br />
as profundas alterações na decoração. Na verdade, estava bem<br />
mais aconchegante <strong>do</strong> que a sala austera que Sokárin utilizava, salvo<br />
pela presença de Adaran, que não era nem de perto tão agradável quanto<br />
a <strong>do</strong> antigo monarca.<br />
Haggi ajoelhou-se diante de seu parceiro de combates com sabre,<br />
cumprin<strong>do</strong> o protocolo real. Adaran demorou-se um pouco até lhe dar a<br />
ordem para se levantar, saborean<strong>do</strong> o momento. Finalmente, dirigiu-se<br />
ao diplomata:<br />
– Meu caro Haggi, há quanto tempo! Levante-se. Soube que você estava<br />
quase gostan<strong>do</strong> da vida <strong>do</strong> interior – ironizou Adaran.<br />
– Majestade...! – terminou Haggi a mesura – sim a vida no interior<br />
não é das mais desagradáveis. Sabem receber bem seus hóspedes.<br />
208 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
– Diga-me: como se posiciona Nakan em relação à sucessão? – fuzi-<br />
lou o Rei, de forma bem mais direta <strong>do</strong> que as conversas que costumavam<br />
ter.<br />
– Pareceu-me tranquilo, em princípio, disse que fosse quem fosse o<br />
sucessor, apoiaria a decisão de Sokárin.<br />
– E depois que soube quem de fato era o sucessor...?<br />
– O tom <strong>do</strong> seu discurso não mu<strong>do</strong>u, mas não sei...<br />
– O que você não sabe?<br />
– Não sei se ele ficou feliz. Procurou não demonstrar nada abertamente,<br />
mas o percebi um pouco reticente. Não sei se foi alguma coisa<br />
que ele ouviu na reunião <strong>do</strong> Conselho de Guerra... Bem, poderia ser só<br />
uma impressão minha.<br />
– Ele mencionou algo <strong>do</strong> que foi conversa<strong>do</strong> no Conselho de Guerra?<br />
– Não, Majestade, mas sou treina<strong>do</strong> para perceber a intenção das pessoas,<br />
e por mais que Nakan saiba dissimular muito bem seus pensamentos,<br />
pude notar algo diferente.<br />
– Haggi, como rei, não tenho tempo para conversas muito prolongadas.<br />
O que preciso saber é se posso ou não confiar em Nakan e qual sua<br />
posição em relação à Aliança.<br />
Haggi mirou fixamente nos olhos o Rei, antes de responder:<br />
– Majestade, na sua posição, eu não confiaria em Nakan. Quanto à<br />
segunda pergunta, creio que se ele tivesse de tomar uma posição aberta,<br />
haveria divisão dentro da aliança. E como sabemos, tu<strong>do</strong> que está dividi<strong>do</strong><br />
fica mais fraco.<br />
– Está certo. Era só o que eu precisava saber. Permaneça na cidade,<br />
Haggi, pois em breve terei outra designação para você. Como sempre<br />
dizíamos, um diplomata hábil é útil para qualquer governo.<br />
Haggi fez um sinal com a cabeça e preparou-se para sair. Quan<strong>do</strong> já<br />
deixava o aposento, o Rei lhe falou:<br />
– Ah, e tão logo meus compromissos me permitam não vamos abrir<br />
mão de um bom combate com sabres.<br />
TALAL HUSSEINI 209
Sain<strong>do</strong>, Haggi respondeu:<br />
– Sim, Majestade, quan<strong>do</strong> quiser. A diferença é que agora não creio<br />
que possa vencê-lo...<br />
Depois que Haggi se havia afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong> recinto, uma figura que estava<br />
oculta numa sala contígua apareceu diante <strong>do</strong> Rei.<br />
– Então, General Ofis, nosso diplomata passou no teste. Confirmou o<br />
que nossos informantes já haviam dito: Nakan não é confiável. Creio<br />
que agora poderemos designar-lhe a próxima missão.<br />
– Creio que sim, Majestade... – respondeu o sombrio Ofis, roçan<strong>do</strong> a<br />
mão no cavanhaque, com ares de quem não estava plenamente convenci<strong>do</strong><br />
da confiabilidade de Haggi.<br />
O Rei não se importou muito com isso, pois afinal de contas, Ofis não<br />
confiava em ninguém mesmo.<br />
Q<br />
37.<br />
uan<strong>do</strong> Bakar chegava perto de sua casa para fazer seus preparativos,<br />
conforme Ravi determinara, alguém o chamou:<br />
– Bakar, tu<strong>do</strong> bem? O que você faz por aqui?<br />
Bakar voltou-se surpreso e deparou-se com Mirta.<br />
– Mirta...!<br />
– Então, o que faz por estes la<strong>do</strong>s?<br />
– É que... bem... eu moro aqui perto.<br />
– E por que tanta pressa?<br />
– É que tenho umas coisas para arrumar em casa.<br />
– É uma pena... Pois tinha pensa<strong>do</strong> em darmos um passeio.<br />
– Infelizmente, hoje não vai ser possível.<br />
210 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
– Bem, estou in<strong>do</strong> para a mesma direção, posso ao menos acompa-<br />
nhá-lo até a sua casa. Se não se importar.<br />
– É claro que não.<br />
– Como estão os seus amigos?<br />
– Bem, estão bem, preparan<strong>do</strong> a viagem – Bakar interrompeu a frase,<br />
sentin<strong>do</strong> que falou demais.<br />
– Vocês vão fazer uma viagem entre amigos. Que ótimo! Gostaria de<br />
fazer algo assim, mas não tenho tantos amigos... Para onde vão?<br />
– Ainda não sei, mas acho que você poderia vir conosco.<br />
– Uma viagem surpresa! A<strong>do</strong>ro surpresas! Será que seus amigos não<br />
se importariam?<br />
– Creio que não. Arrume suas coisas, poucas coisas. Partiremos ama-<br />
nhã, e me encontre aqui na minha casa no final da tarde, certo?<br />
– Certo, até depois – respondeu Mirta, sain<strong>do</strong> em disparada.<br />
Jamais passaria por uma mente ingênua como a de Bakar achar algo<br />
de estranho em alguém que ele conhecia há tão pouco tempo, aceitar<br />
acompanhá-lo numa viagem de destino desconheci<strong>do</strong>. Agregue-se a isso<br />
o fato de Bakar estar apaixona<strong>do</strong> por Mirta. E, ademais, haviam-se encontra<strong>do</strong><br />
por coincidência, e quem mencionou a viagem e a convi<strong>do</strong>u<br />
foi ele, Bakar.<br />
O gigante arrumou rapidamente suas coisas e ficou o resto <strong>do</strong> tempo<br />
pensan<strong>do</strong> em Mirta.<br />
38.<br />
N<br />
akan passava em revista suas tropas. A fama era de que seus<br />
homens eram os mais bem treina<strong>do</strong>s <strong>do</strong> reino. O governa<strong>do</strong>r<br />
acreditava nessa fama e fazia questão de incentivá-la. Após ter presen-<br />
TALAL HUSSEINI 211
cia<strong>do</strong> o ocorri<strong>do</strong> na reunião <strong>do</strong> Conselho de Guerra com o Rei, o General<br />
Nakan havia acirra<strong>do</strong> ainda mais os exercícios. Sua cidade era uma<br />
das poucas fortificadas no Reino. Nakan determinara a restauração e o<br />
reforço de to<strong>do</strong>s os pontos falhos na muralha. Dessa forma, o acesso à<br />
cidade ficava muito difícil, só sen<strong>do</strong> possível por <strong>do</strong>is grandes portões,<br />
ao Norte e a Leste, este na direção da Capital. Os homens já se perguntavam<br />
se o País se preparava para alguma guerra. Nenhum oficial sabia<br />
de nada nesse senti<strong>do</strong>. O General negava a hipótese, limitan<strong>do</strong>-se a dizer<br />
que estar bem prepara<strong>do</strong> para a guerra pode ser, muitas vezes, uma<br />
garantia da paz.<br />
A verdade é que Nakan estava inquieto. Também havia muita gente<br />
que dizia que ele se preparava para um golpe de esta<strong>do</strong>, para marchar<br />
com suas forças rumo à Capital. Tal hipótese, no entanto, era absurda,<br />
pois mesmo a força das <strong>do</strong>ze cidades reunida não era bastante para superar<br />
o exército real e principalmente a unidade de elite da Guarda Real.<br />
Mas Nakan de fato estava pensativo naqueles dias. Já se havia reuni<strong>do</strong><br />
com alguns <strong>do</strong>s governa<strong>do</strong>res das outras cidades da Aliança. A unidade<br />
desta já não era a mesma de tempos passa<strong>do</strong>s. A ganância, a sede<br />
de poder, o orgulho <strong>do</strong>s líderes locais, cada vez mais, levava cada um a<br />
buscar seus próprios interesses, sem pensar na coalizão. Nakan sabia<br />
que isso os enfraquecia, mas nada podia fazer, ao menos por enquanto.<br />
O arauto anunciou o visitante: o Rei Escorpião. Ele governava a menor<br />
cidade da Aliança. Seu exército era menos numeroso <strong>do</strong> que os demais,<br />
mas essa limitação era compensada com um treinamento rigoroso<br />
e solda<strong>do</strong>s muito fortes e valorosos. Seu pequeno número não permitia<br />
que sustentassem sozinhos uma longa campanha, mas ao engrossar outras<br />
fileiras podiam fazer a diferença. Em suma, to<strong>do</strong>s os queriam como<br />
alia<strong>do</strong>s. O Rei sempre acompanhava seus solda<strong>do</strong>s nas campanhas, deixan<strong>do</strong><br />
um substituto para gerir a cidade na sua ausência e na hipótese de<br />
212 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
não retornar com vida. Nakan gostou da conversa. Podia contar com<br />
aquele apoio incondicional.<br />
Outras duas cidades lhe prestaram apoio integral, qualquer que fosse<br />
a posição por ele a<strong>do</strong>tada. Quatro governa<strong>do</strong>res de outras cidades nem<br />
sequer atenderam ao seu convite, o que deixava claras suas intenções de<br />
romper a Aliança. Nakan não havia em momento algum dissimula<strong>do</strong><br />
seus sentimentos em relação ao governo central de Adaran. Suas atitudes<br />
no Conselho de Guerra e em relação ao Conselho <strong>do</strong>s Anciãos o<br />
haviam deixa<strong>do</strong> extremamente preocupa<strong>do</strong>, a ponto de manifestar publicamente<br />
sua repulsa, não pelo Rei mas por suas condutas, o que dava<br />
no mesmo. Os que não atenderam ao seu chama<strong>do</strong> queriam deixar clara<br />
sua postura de total alinhamento com o governo da Capital.<br />
As quatro outras cidades anunciaram que viriam conversar em bloco,<br />
o que demonstrava que haviam teci<strong>do</strong> sua união antes de qualquer outra<br />
coisa. Sua manifestação de apoio ou de repúdio, ou ainda de neutralidade,<br />
seria realizada também em bloco. Uma coisa preocupava Nakan: seu<br />
líder.<br />
Os governa<strong>do</strong>res foram anuncia<strong>do</strong>s. Entraram la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong> na sala, pretenden<strong>do</strong><br />
demonstrar igualdade. Mas na conversa Nakan rapidamente<br />
confirmou suas suspeitas: o Velho Leão os tinha em suas mãos, ou seriam<br />
garras. A certa altura da conversa, Nakan passou a se dirigir somente<br />
ao líder, deixan<strong>do</strong> os outros governa<strong>do</strong>res em segun<strong>do</strong> plano:<br />
– Egas, vamos ser francos e diretos nesta conversa. Por ora, a única<br />
coisa que fica clara para mim é que vocês quatro se posicionarão em<br />
conjunto – disparou Nakan.<br />
– Creio que em um ponto concordamos, para mim também parece a<br />
única coisa clara nesta sala – esbravejou o Leão, com sua voz tonitroante<br />
– você ainda não disse por que conversa com os governa<strong>do</strong>res da Aliança,<br />
por que testa seus apoios. Quer realizar um levante contra o governo<br />
central?<br />
TALAL HUSSEINI 213
– Egas, meu caro, a situação ainda não está definida. Não sei se po-<br />
demos confiar no novo Rei. Não quero levantar-me contra ele, nem le-<br />
var o País a uma guerra civil. Apenas quero resguardar os interesses das<br />
cidades da Aliança. Apenas quero manter a autonomia que sempre tivemos,<br />
desde os tempos <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r Medhavin. Nossa região é rica,<br />
pode fazer crescer os olhos de um Rei ganancioso – Nakan relatou-lhes<br />
o que presenciara no Conselho de Guerra, depois continuou seu discurso:<br />
– evidentemente não quero guerra contra o Rei, mas gostaria de me<br />
mostrar forte o suficiente para que ele também não queira guerra comigo.<br />
E isso só é possível com a Aliança sólida.<br />
O Velho Leão coçou a barba, como sempre fazia quan<strong>do</strong> estava pensan<strong>do</strong><br />
seriamente sobre alguma coisa. Disse pausadamente:<br />
– Dois leões não reinam juntos...<br />
– Enten<strong>do</strong>, Egas, mas podem lutar juntos para ter sobre o que reinar...<br />
– Nós lhe deixaremos saber nossa posição no momento oportuno,<br />
Nakan – declarou Egas já se levantan<strong>do</strong>, no que o acompanharam os<br />
demais governa<strong>do</strong>res.<br />
Nakan também se levantou, em sinal de educação e quan<strong>do</strong> já estavam<br />
na porta de saída, lançou:<br />
– Só espero que esse momento não seja no campo de batalha, Egas.<br />
O Leão sorriu e deixou a sala.<br />
To<strong>do</strong>s os solda<strong>do</strong>s de Nakan estavam em alerta, bem como to<strong>do</strong>s os<br />
portões da cidade eram manti<strong>do</strong>s fecha<strong>do</strong>s. E exatamente nestas condições<br />
ela se apresentava quan<strong>do</strong> surgiu diante da cidade um emissário <strong>do</strong><br />
Rei, acompanha<strong>do</strong> de uma força considerável, de aproximadamente mil<br />
solda<strong>do</strong>s. Um sentinela foi de imediato avisar ao governa<strong>do</strong>r, que dirigiu-se<br />
pessoalmente ao portão.<br />
214 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
O emissário dava claros sinais de irritação quan<strong>do</strong> o governa<strong>do</strong>r or-<br />
denou que se abrisse o portão. Permitiu que entrasse o emissário, acompanha<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> capitão que comandava aquela divisão, mas lhes solicitou<br />
que os solda<strong>do</strong>s permanecessem <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora, pois causariam tumulto<br />
na cidade.<br />
O emissário portava um escrito com o selo real, que deveria entregar<br />
a Nakan dependen<strong>do</strong> da resposta que este desse a uma pergunta que<br />
devia fazer:<br />
– Senhor Governa<strong>do</strong>r Nakan, jura fidelidade e obediência ao novo<br />
Rei? O senhor deve responder e beijar o selo real que aqui trago.<br />
Nakan sabia que se respondesse a verdade, isto é, que não juraria absolutamente<br />
nada por Adaran, seria destituí<strong>do</strong> <strong>do</strong> governo e provavelmente<br />
preso. Mas um guerreiro não pode deixar de dizer a verdade. Essa<br />
era a sua formação. To<strong>do</strong>s à sua volta guardavam um silêncio ansioso,<br />
esperan<strong>do</strong> pela jura. Nakan por fim respondeu:<br />
– Eu juro – o emissário respirou alivia<strong>do</strong>, mas seu alívio durou pouco<br />
– fidelidade ao povo da minha cidade, juro obediência aos meus Mestres,<br />
e beijo o selo da Divindade. Juro defender a justiça, a beleza e a<br />
bondade. O Rei Adaran não representa para mim nenhum desses valores.<br />
Portanto, não posso segui-lo.<br />
O emissário, que sabia <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> da carta, suava frio. Tinha que<br />
entregá-la. Se o General Nakan resolvesse resistir, eles seriam rechaça<strong>do</strong>s<br />
com facilidade. Provavelmente sua cabeça seria enviada à Capital<br />
cravada numa lança. Nakan abriu lentamente o envelope: ele estava<br />
destituí<strong>do</strong> <strong>do</strong> posto de general <strong>do</strong> reino e também de governa<strong>do</strong>r da cidade.<br />
Seus bens estavam confisca<strong>do</strong>s, e ele estava exila<strong>do</strong>. Tinha um dia<br />
para juntar seus pertences pessoais e deixar a cidade. E uma semana<br />
para deixar o País.<br />
Nakan limitou-se a responder:<br />
TALAL HUSSEINI 215
– Os senhores são meus convida<strong>do</strong>s no palácio para esta noite. Mas<br />
os solda<strong>do</strong>s continuam <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora das muralhas.<br />
O emissário aceitou de pronto o convite, o capitão disse que preferia<br />
ficar acampa<strong>do</strong> <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora com seus homens.<br />
A notícia se espalhou rapidamente pela cidade. O burburinho era ine-<br />
vitável. A maior parte da população se revoltava contra o Rei e apostava<br />
que Nakan não entregaria a cidade sem luta.<br />
O governa<strong>do</strong>r parecia o menos preocupa<strong>do</strong>. Passou a noite pensan<strong>do</strong><br />
na medida mais certa a tomar. O Rei o surpreendera, fora rápi<strong>do</strong> em<br />
suas ações. É certo que ele não escondera uma certa animosidade contra<br />
o Rei, mas quem lhe teria dito? Haggi? Outros informantes? Impossível<br />
saber. O importante era resolver o momento. A Aurora ainda não anunciara<br />
seus róseos cabelos sobre a curva <strong>do</strong> horizonte quan<strong>do</strong> um grupo<br />
forma<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s os capitães <strong>do</strong> exército de Nakan lhe pediu audiência:<br />
– Senhor, viemos prestar-lhe nossa solidariedade e dizer que estamos<br />
ao seu la<strong>do</strong>, seja em que circunstâncias for.<br />
Nakan sorriu:<br />
– Agradeço-lhes, meus fiéis camaradas, mas o mais acerta<strong>do</strong> a se fazer<br />
é aceitar as ordens <strong>do</strong> Rei. Eu me retiro e nossa cidade será poupada.<br />
– Mas nós podemos exterminar os solda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Rei.<br />
– Esses sim. Mas e os outros que virão? O exército <strong>do</strong> Rei é mais forte<br />
<strong>do</strong> que to<strong>do</strong> o exército da Aliança. E já nem podemos dizer que há<br />
uma Aliança. Se resistirmos seremos nós os extermina<strong>do</strong>s.<br />
– Então, vamos morrer combaten<strong>do</strong>, senhor.<br />
– Nós, que temos o espírito guerreiro, nos sentiríamos felizes com tal<br />
morte, mas a população sofreria, nossa cidade seria maltratada. Já decidi:<br />
podem comunicar aos homens que me retirarei da cidade amanhã ao<br />
meio-dia.<br />
216 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
Próximo <strong>do</strong> meio-dia, to<strong>do</strong>s os solda<strong>do</strong>s de Nakan se perfilaram no<br />
pátio em frente ao portão, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de dentro, sob as ordens <strong>do</strong>s seus capitães,<br />
para saudar o general que se despedia. Levava consigo uma carroça<br />
carregada com mantimentos para a viagem e alguns gêneros úteis.<br />
Ivis o acompanhava. Ele não conseguira demovê-la desse propósito.<br />
Ninguém de toda a corte se propusera a acompanhá-lo, pois sabiam que<br />
sua vida dali em diante seria difícil.<br />
Do la<strong>do</strong> de fora, os solda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Rei, que não sabiam da decisão <strong>do</strong><br />
governa<strong>do</strong>r, estavam tensos. Estavam prepara<strong>do</strong>s para entrar em combate,<br />
mas sabiam que seriam massacra<strong>do</strong>s. Sua preocupação aumentou<br />
quan<strong>do</strong> começaram a escutar as formações de solda<strong>do</strong>s e os gritos de<br />
guerra <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de dentro <strong>do</strong>s muros.<br />
Nakan passou em revista seus solda<strong>do</strong>s. Primeiro, percorreu toda a linha<br />
de frente a cavalo. Depois desmontou e foi conversan<strong>do</strong> com os<br />
homens como se cada um deles fosse seu filho. Ao escutar no meio da<br />
tropa gritos sugerin<strong>do</strong> a batalha, imediatamente os dissuadiu, ordenan<strong>do</strong><br />
que não reagissem contra os solda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Rei e que acatassem as ordens<br />
<strong>do</strong>s seus novos superiores que viriam.<br />
Ele terminou sua peroração, montou em seu cavalo e já se preparava<br />
para partir, quan<strong>do</strong> escutou a frase dirigida a um <strong>do</strong>s capitães:<br />
– Permissão para sair de forma, senhor, e acompanhar o meu general<br />
– disse um solda<strong>do</strong> dan<strong>do</strong> um passo à frente.<br />
– Permissão concedida!<br />
– Permissão para sair de forma, senhor – disse outro.<br />
– Permissão concedida! – repetiu o capitão.<br />
E assim vários solda<strong>do</strong>s, quase metade <strong>do</strong> total o fizeram, forman<strong>do</strong>se<br />
atrás de Nakan, prepara<strong>do</strong>s para segui-lo. Esses solda<strong>do</strong>s já tinham<br />
deixa<strong>do</strong> prepara<strong>do</strong>s seus sacos de viagem. Além da infantaria, vários<br />
cavaleiros fizeram o mesmo.<br />
TALAL HUSSEINI 217
O emissário corria desespera<strong>do</strong> de um la<strong>do</strong> para o outro, tentan<strong>do</strong><br />
conter a deserção:<br />
– Parem! To<strong>do</strong>s vocês! Apenas Nakan foi exila<strong>do</strong>! Quem o acompa-<br />
nhar será considera<strong>do</strong> um fora da lei!<br />
Ninguém lhe dava ouvi<strong>do</strong>s.<br />
Os portões se abriram. Os solda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Rei fizeram menção de tentar<br />
conter a saída <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s de Nakan, mas este se dirigiu ao comandante:<br />
– Eu poderia ter resisti<strong>do</strong> a essa ordem de usurpação <strong>do</strong> meu governo<br />
e da minha cidade, mas não o fiz para evitar derramamento de sangue.<br />
Não conclamei ninguém a me acompanhar, pelo contrário, tentei demovê-los<br />
dessa ideia. Mas eles me acompanham mesmo assim. Pretendemos<br />
sair em paz, mas se vocês tentarem nos impedir, não hesitaremos<br />
em entrar em combate.<br />
– Senhor, mas esses são solda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Reino, e as armas e equipamentos<br />
que portam pertencem ao governo. Não posso permitir que os levem.<br />
– Em primeiro lugar, esses não são solda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> reino, são homens livres!<br />
E, em segun<strong>do</strong> lugar, você precisaria muito mais <strong>do</strong> que esses mil<br />
homens para pedir que deixemos as armas. Se você realmente as quer,<br />
terá de vir pegá-las.<br />
O capitão entendeu a mensagem, impressiona<strong>do</strong> com a imponência de<br />
Nakan, e ordenou a seus homens que não interferissem na saída. Depois<br />
que Nakan estava longe, entraram na cidade para mantê-la sob controle<br />
e noticiar à população algumas medidas <strong>do</strong> novo Rei.<br />
Questiona<strong>do</strong> por um <strong>do</strong>s oficiais sobre para onde pretendia rumar ao<br />
deixar o País, Nakan respondeu com seu velho sorriso, de quem já sabia<br />
perfeitamente para onde ir, com a segurança de quem não olhou para<br />
trás, para ver diminuir as muralhas de sua amada cidade, nem uma vez<br />
sequer. Dirigiu seus homens em direção à região das montanhas.<br />
218 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
O<br />
39.<br />
Capitão só pensava em sua vingança contra Ofis, agora General<br />
Ofis, e contra Adaran, agora Sua Majestade Adaran. Seus<br />
inimigos haviam cresci<strong>do</strong>, mas isso não importava, o Capitão ainda tinha<br />
bem claras em sua memória as imagens finais de sua família, e isso<br />
o alimentava em seu sonho revanchista.<br />
Também não podia esquecer que, além de procurar Justiça, era um<br />
homem procura<strong>do</strong> pela Justiça, sob a acusação de assassinato de sua<br />
família. Mesmo assim, depois que se recuperara no lago, o Capitão conseguira<br />
fazer contato com alguns de seus homens, os de maior confiança,<br />
que acreditariam na sua estória. Alguns desses de fato acreditaram e<br />
reuniram-se a ele, forman<strong>do</strong> uma milícia que se ocultava nas montanhas.<br />
Não era um grupo grande, mas era bem prepara<strong>do</strong>, na sua maioria<br />
forma<strong>do</strong> por ex-componentes da Guarda Real. O Capitão se tornara uma<br />
espécie de guia daqueles jovens – praticamente to<strong>do</strong>s os que o seguiram<br />
eram aqueles que não tinham família e procuravam uma bandeira por<br />
que lutar –, apesar de sempre fazer questão de deixar claras suas intenções<br />
de vingança.<br />
No reino, não se propagavam entre o povo quaisquer notícias a respeito<br />
desse grupo, mas na corte sabia-se da sua existência e, apesar de<br />
até aquele momento não terem realiza<strong>do</strong> nenhuma ação contra o poder<br />
constituí<strong>do</strong>, essa existência devia terminar, antes de se tornar relevante.<br />
Além <strong>do</strong> Capitão, os nomes de to<strong>do</strong>s os que haviam deixa<strong>do</strong> a Guarda<br />
Real após a ascensão de Adaran ao trono faziam parte da lista de procura<strong>do</strong>s.<br />
Nos povoa<strong>do</strong>s das montanhas, conhecia-se o grupo e nutria-se<br />
por ele certa simpatia, já que essas populações se consideravam esquecidas<br />
pelo governo e tinham em seu sangue uma certa rebeldia contra<br />
TALAL HUSSEINI 219
qualquer um que estivesse no poder. Agradava-lhes a ideia de alguém<br />
que confrontasse as autoridades.<br />
O grupo <strong>do</strong> Capitão preparava uma ação ousada: assassinar o Rei.<br />
Misturar-se-iam à população, em disfarces, alguns membros <strong>do</strong> grupo<br />
provocariam um tumulto ante a passagem <strong>do</strong> Rei, para desviar a atenção,<br />
enquanto pelo outro la<strong>do</strong> os arqueiros entrariam em ação. Ninguém<br />
poderia ser captura<strong>do</strong>, to<strong>do</strong>s carregavam uma pequena adaga que serviria<br />
para o suicídio em caso de captura.<br />
A população aclamava a passagem <strong>do</strong> Rei, que vinha cerca<strong>do</strong> por vários<br />
homens da Guarda Real. Quan<strong>do</strong> o tumulto premedita<strong>do</strong> começou,<br />
instintivamente a maioria <strong>do</strong>s Guardas colocou-se à frente <strong>do</strong> Rei voltada<br />
para o la<strong>do</strong> da algazarra. O la<strong>do</strong> oposto ficou menos protegi<strong>do</strong>.<br />
Nesse instante, o Capitão e mais quatro de seus homens, os melhores<br />
arqueiros, atiraram simultaneamente. Uma das setas passou raspan<strong>do</strong><br />
pelo ombro <strong>do</strong> Rei, mas as outras foram barradas pelo escu<strong>do</strong> de Ofis,<br />
que, ao contrário <strong>do</strong>s demais, não havia se desloca<strong>do</strong> para o la<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
tumulto, como que pressentin<strong>do</strong> algum perigo. Alguns Guardas Reais<br />
misturaram-se ao povo na tentativa de perseguição <strong>do</strong>s agressores. Não<br />
obtiveram sucesso com os arqueiros, mas os <strong>do</strong>is causa<strong>do</strong>res da distração<br />
foram presos. Foram incontinenti liga<strong>do</strong>s ao ataque contra a pessoa<br />
real. Um deles conseguiu sacar sua faca e auto-infligir-se um golpe fatal.<br />
O segun<strong>do</strong> tentou fazer o mesmo, mas foi impedi<strong>do</strong>. Foi bastante<br />
golpea<strong>do</strong> pelos Guardas e imediatamente arrasta<strong>do</strong> à presença <strong>do</strong> General<br />
Ofis. A essa altura, Adaran já estava em segurança dentro <strong>do</strong> Palácio.<br />
Não se percebeu o discreto sorriso de escárnio no rosto de alguns<br />
Guardas Reais ante a reação desesperada e quase histérica <strong>do</strong> Rei diante<br />
<strong>do</strong> perigo.<br />
O homem foi amarra<strong>do</strong> num palanque, sob os apupos da população<br />
sedenta de sangue. Levou várias chibatadas, intercaladas com perguntas<br />
220 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
sobre quem era o autor daquele atenta<strong>do</strong>, as quais não respondia. Ofis<br />
aproximou-se <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong> <strong>do</strong> prisioneiro e sussurrou:<br />
– Você já está morto... Resta saber se será de forma rápida ou lenta,<br />
com muita <strong>do</strong>r ou com pouca <strong>do</strong>r. Diga quem o man<strong>do</strong>u e morrerá rapidamente.<br />
Particularmente, espero que você não fale logo...<br />
Iniciou-se então uma tortura, que consistia em arrancar lentamente as<br />
vísceras <strong>do</strong> prisioneiro, ainda vivo, com pequenos anzóis. Quan<strong>do</strong> começava<br />
essa sessão, uma flecha precisa, disparada não se sabia de onde,<br />
atingiu o cativo no olho esquer<strong>do</strong>, privan<strong>do</strong>-o instantaneamente da existência.<br />
Ofis não escondia seu desapontamento. Alguns Guardas tentaram<br />
em vão encontrar o atira<strong>do</strong>r.<br />
O General percebeu então na seta cravada no prisioneiro uma gravação:<br />
“assassinos”. Havia gravações idênticas nas flechas que atingiram o<br />
escu<strong>do</strong> de Ofis. Não se sabia se aquele termo visava a denominar o grupo<br />
de atira<strong>do</strong>res ou suas pretensas vítimas, o que era mais provável. Em<br />
to<strong>do</strong> caso, a partir daquele momento, o grupo <strong>do</strong> Capitão ficou conheci<strong>do</strong><br />
em to<strong>do</strong> o reino como os “assassinos”.<br />
O incidente, ainda que frustra<strong>do</strong>, tornou impossível para as autoridades<br />
esconder a existência de uma oposição hostil e agressiva contra o<br />
reina<strong>do</strong> de Adaran. Ao passar de boca em boca, a história <strong>do</strong> atenta<strong>do</strong><br />
era aumentada, a ponto de os “assassinos” se tornarem figuras quase<br />
míticas, que inspiravam em muitos o temor e em muitos outros curiosidade<br />
e simpatia.<br />
Escondi<strong>do</strong>s novamente nas montanhas, os “assassinos” lamentavam o<br />
fracasso de sua ação e a perda de <strong>do</strong>is homens, mas sentiam-se orgulhosos<br />
e excita<strong>do</strong>s com a tentativa e com a repercussão que esta teria. Deveriam<br />
re<strong>do</strong>brar os cuida<strong>do</strong>s com segurança, pois agora os esforços para<br />
prendê-los seriam maiores. O Capitão falou aos homens sobre o ocorri<strong>do</strong><br />
e pôde perceber nos seus olhos a confiança que lhe dedicavam. Fez<br />
TALAL HUSSEINI 221
questão de ressaltar mais uma vez que sua missão terminaria com a<br />
morte <strong>do</strong> General Ofis e <strong>do</strong> Rei.<br />
D<br />
40.<br />
hara chegou à casa de Kadriel ainda irritada com o descaso<br />
demonstra<strong>do</strong> pelo Rei pela situação da saúde. E também pelo<br />
assédio <strong>do</strong> Monarca que parecia exceder à questão pública. Depois que<br />
ela terminou de falar e desabafar sua inquietação, calmamente Kadriel<br />
começou a lhe relatar tu<strong>do</strong> o que se vinha passan<strong>do</strong> no reino desde a sua<br />
conversa com Sokárin.<br />
De alguma maneira, sabia que podia confiar em Dhara. Esta ficou em<br />
silêncio durante vários segun<strong>do</strong>s, assimilan<strong>do</strong> todas aquelas informações.<br />
Quan<strong>do</strong> ia dizer alguma coisa, Kadriel se antecipou:<br />
– Dhara, em razão disso tu<strong>do</strong>, deixaremos a cidade amanhã. Se Adaran<br />
desconfiar das intenções <strong>do</strong> nosso grupo estaremos perdi<strong>do</strong>s. Por<br />
isso, a partida abrupta. Fora da Capital e <strong>do</strong> alcance <strong>do</strong> Rei, será possível<br />
traçar uma estratégia mais eficaz. Você já teve uma amostra <strong>do</strong> caráter<br />
<strong>do</strong> Rei, nós sabemos de outras situações que corroboram seu autoritarismo.<br />
Quanto mais tempo ele permanecer no poder, pior se tornará a<br />
situação <strong>do</strong> povo – fez uma pausa e emen<strong>do</strong>u: – você vem conosco?<br />
– É difícil saber que posição tomar, assim, repentinamente. Até ontem<br />
minha vida estava tranquila, hoje não tenho mais trabalho, descubro<br />
que o Rei é um tirano, e me encontro em meio a uma rebelião... Sinceramente,<br />
não sei o que fazer...<br />
– Enten<strong>do</strong> sua hesitação. É difícil assimilar as voltas que a vida<br />
nos dá. Mas você não está no meio de uma rebelião, e sim de um grupo<br />
que legitimamente quer reclamar o trono, pois essa era a vontade de<br />
222 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
Sokárin. Não se trata de buscar o poder a qualquer preço, pois eu nunca<br />
quis estar nesta posição, mas sim de ter de assumir o destino que me foi<br />
reserva<strong>do</strong>. Por mais que o preço seja alto, e o caminho adiante seja duro,<br />
não posso dar as costas a esse destino. E você também, Dhara, tem de<br />
tomar uma posição, e infelizmente tem de ser agora. Se não lutarmos,<br />
estaremos condenan<strong>do</strong> o povo, já miserável, à definitiva miséria da desesperança.<br />
Agora é o momento. Se quiser vir conosco, esteja aqui antes<br />
<strong>do</strong> final da tarde, para irmos até a casa de Ravi, de onde partiremos.<br />
Vou esperar por você.<br />
Dhara saiu, ainda atônita com as palavras de Kadriel. A noite seria<br />
longa para ela. Teria muito em que pensar.<br />
Perto <strong>do</strong> final da tarde <strong>do</strong> dia seguinte, Kadriel, já pronto para sair,<br />
aguardava apenas a chegada de Dhara, quan<strong>do</strong> alguém bateu na porta.<br />
Kadriel não pôde conter sua felicidade, que foi tão grande quanto sua<br />
decepção ao abrir a porta e se deparar com <strong>do</strong>is solda<strong>do</strong>s da Guarda<br />
Real:<br />
– Senhor Kadriel?<br />
– Sim – confirmou Kadriel, desconfia<strong>do</strong> – em que posso ajudá-los?<br />
– O senhor deve nos acompanhar até o ministério. O senhor trabalha<br />
lá, não é?<br />
Kadriel até havia esqueci<strong>do</strong> que trabalhava no ministério, ademais,<br />
com a mudança de rei, não ficaram vacantes to<strong>do</strong>s os cargos?<br />
– Sim, trabalho... Mas neste momento não posso acompanhá-los, tenho<br />
um compromisso...<br />
– Nossas ordens são para escoltá-lo até lá.<br />
Nesse momento, Kadriel viu que Dhara chegava, já olhan<strong>do</strong> com estranheza<br />
para os solda<strong>do</strong>s. Ele lhe fez um sinal muito discreto para que<br />
seguisse caminho e não parasse ali. Felizmente ela o entendeu e passou<br />
direto por sua casa. Kadriel dirigiu-se então aos guardas:<br />
TALAL HUSSEINI 223
– Bem, eu estava aguardan<strong>do</strong> uma pessoa, que vai ficar preocupada<br />
se não me encontrar aqui. Permitam ao menos que eu deixe uma mensagem.<br />
Como os guardas concordaram com o seu pedi<strong>do</strong>, dirigiu-se para dentro<br />
de sua casa para apanhar o material de escrita. Entrou no seu quarto,<br />
agita<strong>do</strong>, olhan<strong>do</strong> para to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s e pensan<strong>do</strong> na melhor opção. Enfrentar<br />
os <strong>do</strong>is guardas sozinho seria suicídio. Só restava fugir. Mas e se<br />
fosse um assunto banal? Não, nesse caso, não teriam envia<strong>do</strong> a Guarda<br />
Real, bastaria uma convocação. Assim, apanhou parte de suas coisas e<br />
saiu por uma janela nos fun<strong>do</strong>s da casa. Quan<strong>do</strong> os guardas estranharam<br />
a demora e resolveram entrar para verificar o que tinha aconteci<strong>do</strong>, ele<br />
já estava próximo à casa de Ravi. Dhara já estava lá relatan<strong>do</strong> o ocorri<strong>do</strong><br />
a Ravi. Ficaram alivia<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> viram Kadriel chegan<strong>do</strong> esbafori<strong>do</strong>.<br />
Dhara se antecipou:<br />
– Kadriel, você está bem? O que os guardas queriam com você?<br />
– Não sei, porque não fiquei lá para ver. Mas a minha fuga deve têlos<br />
coloca<strong>do</strong> em alerta. Precisamos partir imediatamente!<br />
Ravi concor<strong>do</strong>u. To<strong>do</strong>s já estavam reuni<strong>do</strong>s, podiam seguir viagem:<br />
Ravi, Kadriel, Dhara, Bakar e Mirta. Também estavam presentes o Sena<strong>do</strong>r<br />
Rohel e sua esposa Inari, mas apenas para se despedir. Eles não<br />
tinham mais idade para enfrentar uma viagem daquelas. O Sena<strong>do</strong>r continuaria<br />
lutan<strong>do</strong> à sua maneira, enquanto o Sena<strong>do</strong> existisse, já que suas<br />
atribuições haviam si<strong>do</strong> drasticamente reduzidas.<br />
A caravana partiu com duas carruagens puxadas por quatro cavalos<br />
cada uma. Levavam mais <strong>do</strong>is cavalos, para revezar e outros <strong>do</strong>is em<br />
que Bakar e Kadriel iam monta<strong>do</strong>s. Por decisão de Ravi, foram em direção<br />
à região das montanhas.<br />
Retornan<strong>do</strong> ao Palácio, os guardas que haviam i<strong>do</strong> à casa de Kadriel<br />
reportaram-se diretamente ao General Ofis, e não ao ministro Doran,<br />
224 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
como deram a entender no que disseram a Kadriel. Ao vê-los de mãos<br />
vazias, o semblante de Ofis se transtornou:<br />
– Onde está ele?!<br />
– Bem, senhor... ele... nos enganou...<br />
– Como os enganou? Ele nem sabia que se tratava de uma prisão.<br />
Vocês não disseram que era um chama<strong>do</strong> <strong>do</strong> ministro?<br />
– Sim, senhor, mas acho que ele desconfiou...<br />
– Idiotas! Uma semana na limpeza das latrinas, que é só para isso que<br />
vocês servem. Agora desapareçam da minha frente.<br />
Ofis pensou consigo que teria de aguardar um comunica<strong>do</strong> de seu informante,<br />
e no momento oportuno os interceptaria. O Rei não estava<br />
muito preocupa<strong>do</strong> com Kadriel e seu ban<strong>do</strong>, mas ele sabia que o rapaz<br />
ainda lhes causaria problemas. Queria evitá-los enquanto isso ainda era<br />
fácil. Mas talvez o Rei tivesse razão, e não houvesse com que se preocupar.<br />
Em outro momento pensaria nisso. A prioridade <strong>do</strong> momento era<br />
o grupo <strong>do</strong>s assassinos.<br />
Ao retornar à sua casa, o Sena<strong>do</strong>r Rohel se deparou com Guardas Reais,<br />
que o esperavam junto ao portão principal. O Sena<strong>do</strong>r foi em sua<br />
direção e os interpelou sobre o que queriam.<br />
– Precisamos que o senhor nos acompanhe, Sena<strong>do</strong>r.<br />
– Posso saber aonde?<br />
– Ao quartel da Guarda Real. O General Ofis deseja vê-lo.<br />
– “General” Ofis! Hum. Como se aquele lacaio de Adaran tivesse feito<br />
alguma coisa que lhe pudesse valer essa patente... – os guardas fingiram<br />
não ouvir, muitos não discordariam dessa frase. Rohel dirigiu-se a<br />
sua esposa: – Inari, fique em casa e não se preocupe, logo estarei de<br />
volta.<br />
– Mas, queri<strong>do</strong>, para onde vão levá-lo?<br />
TALAL HUSSEINI 225
– Ao quartel da Guarda Real. Caso eu não volte hoje contate... – e<br />
cochichou um nome junto ao seu ouvi<strong>do</strong>. Ela assentiu e entrou, enquan-<br />
to o Sena<strong>do</strong>r acompanhou os solda<strong>do</strong>s.<br />
Chegan<strong>do</strong> ao quartel, foi leva<strong>do</strong> imediatamente à presença de Ofis:<br />
– Vou ser bem direto, Sena<strong>do</strong>r. O senhor esteve com Kadriel?<br />
– Posso saber a que título estou aqui? Estou preso?<br />
– É claro que não, Sena<strong>do</strong>r. O senhor é nosso convida<strong>do</strong>, apenas para<br />
esclarecer se esteve com um fugitivo da lei recentemente.<br />
– Não estive com nenhum fugitivo da lei!<br />
– De onde o senhor veio quan<strong>do</strong> chegou à sua casa?<br />
– Da casa de meu amigo Ravi.<br />
– Que também é amigo de Kadriel...<br />
– Sim, e de muitas outras pessoas... não há crime algum nisso. E<br />
Kadriel, cometeu que crime para ser procura<strong>do</strong> pela justiça?<br />
– Nós pensaremos em algum, Sena<strong>do</strong>r, nós pensaremos em algum... –<br />
respondeu o General, ironicamente.<br />
– Sim, é claro... bem ao seu feitio e <strong>do</strong> seu patrão.<br />
– Se o senhor estiver se referin<strong>do</strong> a Sua Majestade posso mandar<br />
prendê-lo por desacato à coroa.<br />
– Rapaz, olhe bem para mim, você acha que eu tenho idade para temer<br />
esse tipo de ameaça? Ainda mais vinda de um lacaio desqualifica<strong>do</strong><br />
como você? Pois me prenda! Como se precisasse de motivo para isso.<br />
Ofis não se alterou com as ofensas, limitou-se a provocar:<br />
– O senhor pode não se importar com nossas prisões, mas sua esposa<br />
Inari...<br />
O ancião arremeteu contra Ofis, mas foi deti<strong>do</strong> pelos guardas:<br />
– Não ouse ameaçar minha esposa, seu verme! Você não vale absolutamente<br />
nada! Vou estar na primeira fila no dia que terminar essa pantomima<br />
a que vocês chamam de reina<strong>do</strong>!<br />
– Já basta! Saia daqui, velho! Antes que eu mande mesmo prendê-lo!<br />
226 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
O Sena<strong>do</strong>r não esperou que ele repetisse a ordem e saiu rapidamente.<br />
Os guardas nem piscavam. Ofis lhes disse:<br />
– E vocês, idiotas, uma palavra sobre o que aconteceu aqui, e vão<br />
passar o resto das suas vidas miseráveis limpan<strong>do</strong> as cocheiras! Dis-<br />
pensa<strong>do</strong>s!<br />
No caminho para as montanhas, Ravi aproveitou um momento de parada<br />
para descanso e, magistralmente, como num passe de mágica, desapareceu<br />
ante os olhos de Kadriel. Estupefato, este começou a se embrenhar<br />
na floresta com a esperança de encontrar o Mestre. Depois de<br />
alguns minutos, avistou ao longe, senta<strong>do</strong> numa pedra frente ao rio, a<br />
figura de Ravi contemplan<strong>do</strong> a natureza com a pureza própria de uma<br />
criança. Aproximou-se e, de um silêncio pleno, irrompeu a voz quase<br />
metalizada de Ravi:<br />
– Sente, cale a sua mente e observe.<br />
Kadriel começou a admirar toda a paisagem, sem saber ao certo o que<br />
deveria ver, se é que deveria ver alguma coisa. Tratou de pacificar as<br />
emoções e pouco a pouco sentiu sua mente se aquietar.<br />
Ravi ordenou que Kadriel levasse to<strong>do</strong>s os sons para o seu coração,<br />
como se escoassem por um funil e se envolvessem em uníssono no seu<br />
centro solar.<br />
Sentiu que por trás de to<strong>do</strong>s os sons havia uma espécie de segun<strong>do</strong><br />
som, muito sutil, que após alguns eternos segun<strong>do</strong>s, se traduziram num<br />
silêncio indescritível.<br />
– Da solidão <strong>do</strong> guerreiro nasce o silêncio, e <strong>do</strong> silêncio, qual véus<br />
que se abrem aos mistérios, surge o poder. O poder é a ponte entre o Ser<br />
e a existência. É o que abre as portas para a magia e para a vida. Por ser<br />
uno com o Ser, é puro. Por isso, o poder nunca pode corromper. Os homens,<br />
por perderem o canal <strong>do</strong> poder, é que se corrompem. Para um<br />
TALAL HUSSEINI 227
homem de poder, não existe o impossível, pois tem consciência de sua<br />
unidade interior e de sua própria imortalidade.<br />
Enquanto ouvia atentamente o Mestre, Kadriel sentia um misto de<br />
muitas coisas. Sentia algo frio subir a coluna, ao mesmo tempo em que<br />
algo quente descia. Sua mente por momentos vislumbrava o que significava<br />
o poder para aquele que reina e ao mesmo tempo via que o poder<br />
era interior. Lutava para se concentrar e manter viva aquela experiência.<br />
O guerreiro que canaliza o poder se torna representante desse atributo<br />
divino na terra. A isso chamamos liderança. Um líder é um canal <strong>do</strong><br />
poder. Como numa espécie de “aura mágica”, faz com que to<strong>do</strong>s que<br />
estão ao seu re<strong>do</strong>r voltem a sonhar e a ter esperanças. Faz que as pessoas<br />
se sintam seguras e protegidas, motivadas e valorizadas, sintam que<br />
suas vidas podem tocar o incomum, se vejam capazes de romper as limitações<br />
e de rasgar a mediocridade. Um líder encontra as respostas<br />
para todas as perguntas em sua própria alma, nada está para além dele,<br />
sabe que a realidade <strong>do</strong> poder está dentro de seu círculo interno.<br />
Um líder sempre toma a iniciativa e sabe que rumo seguir. Sempre utiliza<br />
o elemento surpresa e com carisma garante o êxito. O líder é como<br />
o Sol: quan<strong>do</strong> surge, o caos e as sombras abrem espaço para a sua passagem.<br />
– Chegou o momento de você realmente aceitar seu destino Kadriel,<br />
não tema o poder, pois quan<strong>do</strong> nos encontramos com ele descobrimos<br />
que sempre fomos o poder. Não tema liderar, pois não só as pessoas que<br />
estão com você o necessitam, como você também necessita delas. Cada<br />
um nasce para algo neste mun<strong>do</strong>. Só encontramos nossa identidade<br />
quan<strong>do</strong> efetivamente agimos em conformidade com o nosso destino. O<br />
eixo <strong>do</strong> poder é o canal pelo qual Deus se manifesta. Quatro são as virtudes<br />
que o guerreiro deve desenvolver para abrir passo a esse poder: a<br />
humildade entra como forma de energia espiritual e sai como admiração;<br />
entra a força, que se exterioriza como liderança. Esse quadrante de<br />
228 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
virtudes conforma as quatro primeiras pétalas necessárias para o guerreiro<br />
trilhar a conquista da sua guerra interior. Só quem tem o poder de<br />
vencer dentro poderá vencer fora.<br />
Kadriel compreendia cada ensinamento como se fosse único. Sentia<br />
um aperto forte na garganta, de alguma forma intuía que a decisão se<br />
localizava fisicamente na garganta. Também intuía que o ser humano se<br />
compromete com o universo no momento em que as palavras lhe saem<br />
da garganta e se liberam pela boca.<br />
– Serei digno de honrar o poder. Liderarei com todas as minhas forças<br />
e trarei paz e justiça para o nosso reino.<br />
Ravi forjava o rapaz com muito amor. Sabia que na realidade não lhe<br />
ensinava nada novo, só fazia-lhe lembrar aquilo que de alguma forma<br />
sua alma já conhecia. O que precisava era formar seu caráter.<br />
Voltaram em silêncio. A cada pulso <strong>do</strong> coração, Kadriel sentia o pulso<br />
da natureza em sua manifestação.<br />
Quan<strong>do</strong> chegaram ao vilarejo, Ravi aproveitou o momento de parada<br />
para retomar com Kadriel o assunto daquilo que ocorrera no penhasco,<br />
quan<strong>do</strong> foram apanhar a placa. De como ele enfrentara quatro oponentes,<br />
livran<strong>do</strong>-se de to<strong>do</strong>s eles, quase sem fazer esforço. Intuitivamente,<br />
Kadriel havia utiliza<strong>do</strong> uma técnica de Nei Kung – A Arte <strong>Guerreira</strong> da<br />
Ação Inteligente –: a técnica <strong>do</strong>s quatro dragões. Ravi a explicou detalhadamente<br />
a Kadriel, que conseguia vislumbrar em tu<strong>do</strong> aquilo que<br />
havia senti<strong>do</strong> no penhasco os aspectos que lhe eram objetivamente<br />
transmiti<strong>do</strong>s agora. Na ocasião ele não tinha essa consciência, mas agora<br />
conseguia fazer as relações. Ravi frisava:<br />
– Lembre-se que o objetivo da técnica <strong>do</strong>s quatro dragões é buscar o<br />
centro, esse lugar mágico onde se encontra o poder e se pode controlar e<br />
<strong>do</strong>minar os quatro elementos... Cada dragão representa um obstáculo a<br />
essa busca dura e complicada: o dragão mental é o desejo, o dragão<br />
TALAL HUSSEINI 229
emocional é a ansiedade, o dragão vital é a agitação e o dragão éterofísico<br />
é a rigidez corporal...<br />
Kadriel passou o resto <strong>do</strong> tempo no vilarejo ao pé da montanha pensan<strong>do</strong><br />
sobre tu<strong>do</strong> aquilo. Sobre os quatro dragões, sobre o poder e a liderança.<br />
Por um segun<strong>do</strong>, pensou em ser alguém comum, ter sossego,<br />
uma vida simples, sem grandes preocupações. Mas seu destino era o de<br />
um dirigente, de um guerreiro, que teria de fazer de tu<strong>do</strong> para que as<br />
pessoas pudessem ter uma vida tranquila, boa e justa. Também viu que<br />
não poderia ser feliz ten<strong>do</strong> uma vida comum. Para alguns neste mun<strong>do</strong>,<br />
a felicidade está na proporção <strong>do</strong> sacrifício. Kadriel era um desses.<br />
P<br />
41.<br />
or ser um grupo reduzi<strong>do</strong>, conseguiram instalar-se no pequeno<br />
vilarejo sem maiores problemas, pois Ravi conhecia seu líder,<br />
Durkan. Este era um homem austero, como a vida rígida das montanhas<br />
determinava. Era, como to<strong>do</strong>s os homens da aldeia, um camponês, não<br />
sen<strong>do</strong> afeito às questões da política, de governos ou de guerra. Ravi<br />
conversou com ele em particular, receben<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o apoio de que necessitassem.<br />
Entretanto, ao saber das intenções de Ravi de não permanecer muito<br />
tempo ali, e sim rumar com seu grupo para regiões mais altas nas montanhas,<br />
alertou-os de que aquela era uma região de <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>s “assassinos”<br />
e que seria perigoso ir mais adiante. Conforme se subia nas montanhas,<br />
os povoa<strong>do</strong>s que se encontravam eram menos hospitaleiros, pois<br />
os víveres eram mais escassos. Não se confiava muito nas pessoas <strong>do</strong>s<br />
vales, principalmente da Capital. Ravi pareceu reflexivo por um momento.<br />
Logo agradeceu a acolhida e foi ter com os seus. Chamou de<br />
230 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
la<strong>do</strong> Kadriel e Bakar, falan<strong>do</strong>-lhes durante alguns minutos. Parecia darlhes<br />
instruções minuciosas sobre alguma coisa.<br />
Os <strong>do</strong>is saíram em seguida em direção ao alto da montanha. Tinham<br />
que encontrar o chefe <strong>do</strong>s “assassinos”. Ou melhor, segun<strong>do</strong> Ravi, bastava<br />
que se embrenhassem por aquelas paragens, que eles seriam encontra<strong>do</strong>s.<br />
Não levavam consigo nenhuma arma, fato com o qual Bakar não<br />
se conformava, como sua expressão deixava saber, apesar de nada ter<br />
dito.<br />
Caminharam cerca de duas horas. Até aquela altitude, a vegetação<br />
ainda era cerrada. Os caminhantes tinham a sensação de que estavam<br />
sen<strong>do</strong> observa<strong>do</strong>s o tempo to<strong>do</strong>. De repente, uma flecha veio cravar-se<br />
no chão bem à frente de Kadriel, que imediatamente deteve o passo. Era<br />
evidente que a intenção não fora atingi-lo, caso contrário estaria morto.<br />
Ele gritou para as árvores:<br />
– Quem está aí?<br />
Nenhuma resposta. Uma rede foi lançada da copa das árvores, mas<br />
apanhou apenas Kadriel, Bakar conseguiu esquivar-se, com uma agilidade<br />
inesperada para o seu corpanzil. Vários homens lançaram-se sobre<br />
ele. Dois, que o agarram cada um <strong>do</strong>s braços, foram logo arremessa<strong>do</strong>s.<br />
Outro agressor que, incauto, ficou para<strong>do</strong> na sua frente, contan<strong>do</strong> que<br />
seus braços estivessem imobiliza<strong>do</strong>s, levou um soco aponta<strong>do</strong> ao nariz,<br />
mas que atingia o rosto inteiro, dadas as dimensões da mão de Bakar.<br />
Seu nariz desapareceu dentro <strong>do</strong> rosto, e a consciência o aban<strong>do</strong>nou de<br />
imediato. Restava um agarra<strong>do</strong> às suas costas. Bakar lançou-se de costas<br />
contra um tronco, amassan<strong>do</strong> o passageiro indeseja<strong>do</strong>. Mas nesse momento<br />
outros homens surgiram, juntamente com os <strong>do</strong>is que haviam<br />
si<strong>do</strong> arremessa<strong>do</strong>s no início. Um deles acertou uma paulada em Bakar,<br />
que lhe atingiu as costas, não causan<strong>do</strong> aparentemente nenhum efeito,<br />
mas veio outra paulada na testa, que escureceu um pouco a visão <strong>do</strong><br />
gigante, apesar de não derrubá-lo. Quan<strong>do</strong> a luz voltou-lhe aos olhos,<br />
TALAL HUSSEINI 231
mais de meia dúzia de flechas estavam apontadas para ele, os arcos ten-<br />
siona<strong>do</strong>s, prontos para disparar. De dentro da rede, Kadriel, len<strong>do</strong> as<br />
intenções de Bakar nos seus olhos gritou:<br />
– Bakar! Não faça isso! Não reaja!<br />
Ao ouvir a voz <strong>do</strong> amigo, Bakar cedeu, relaxou os braços ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
corpo. Aquele que parecia ser o líder falou:<br />
– Esse é um bom conselho – e dirigin<strong>do</strong>-se aos outros: – amarrem-no!<br />
Os <strong>do</strong>is foram amarra<strong>do</strong>s e encapuza<strong>do</strong>s, para que não soubessem a-<br />
onde estavam in<strong>do</strong>. Kadriel permaneceu em silêncio. Bakar tentou fazer<br />
algumas perguntas no início – quem são vocês? Para onde estão nos<br />
levan<strong>do</strong>? –, mas não obteve qualquer resposta.<br />
Depois de cerca de uma hora de caminhada, pararam e tiveram os capuzes<br />
retira<strong>do</strong>s. Estavam numa espécie de acampamento, que ficava<br />
numa clareira aberta propositalmente para esse fim. A vegetação ainda<br />
era espessa no entorno, o que denotava que não deviam estar a grande<br />
altitude. Kadriel pensou conhecer o líder <strong>do</strong> ban<strong>do</strong>. Ele estava bastante<br />
muda<strong>do</strong>, principalmente o olhar, que estava vazio, mas sim, era ele, o<br />
Capitão da Guarda Real!<br />
– O que vocês querem aqui?! Não sabem que estes são <strong>do</strong>mínios <strong>do</strong>s<br />
“assassinos”? Têm sorte de estar vivos!<br />
– Se estamos vivos, é por que você quis assim. Por que não nos matou?<br />
– Tive vontade quan<strong>do</strong> meus homens me relataram o estrago que seu<br />
amigo masto<strong>do</strong>nte fez, mas por outro la<strong>do</strong> fiquei pensan<strong>do</strong> que quem<br />
fosse louco o bastante para entrar nestas matas, desarma<strong>do</strong>, devia ter<br />
alguma coisa interessante para dizer... E, ademais, se eu estiver engana<strong>do</strong>,<br />
ainda posso matá-los a qualquer momento. Portanto, eu ganho de<br />
todas as maneiras – fez um pequeno trejeito com o canto da boca, que<br />
devia representar o máximo de um sorriso para aquele homem, que<br />
completou: – então, me enganei?<br />
232 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
– Não – respondeu Kadriel – creio que nós temos interesses em co-<br />
mum. Meu nome é Kadriel Vahan, e preten<strong>do</strong> lutar contra Adaran.<br />
– Sei quem você é. Por que pretende lutar contra o Rei?<br />
– Porque a coroa é minha!<br />
To<strong>do</strong>s os homens riram da frase, menos o Capitão. Kadriel não se in-<br />
timi<strong>do</strong>u e prosseguiu, seguin<strong>do</strong> à risca o que Ravi lhe dissera para fazer:<br />
– Você sabe que Sokárin havia grava<strong>do</strong> outra placa de sucessão antes<br />
de morrer, mas não teve tempo de colocá-la na estela, certo?<br />
– Muitos dizem que essa placa não existe...<br />
– Mas ela existe. Sokárin a escondeu. E nós a encontramos – ao dizer<br />
isso, levou a mão dentro das roupas para pegar alguma coisa. Imediatamente<br />
várias lanças foram encostadas contra seu peito. Ele olhou para o<br />
Capitão, que fez sinal a seus homens para se afastar. Kadriel retirou<br />
então um embrulho e o entregou ao Capitão.<br />
Ao abri-lo, este sentiu um calafrio. Procurou não demonstrá-lo e desdenhar<br />
<strong>do</strong> que estava diante <strong>do</strong>s seus olhos.<br />
– Sim. Isto é uma pedra com seu nome grava<strong>do</strong>... O que isso prova?<br />
– Essa é uma pedra <strong>do</strong>s mil reis. Você sabe disso. Quantas vezes<br />
montou guarda diante da estela? Além disso, ela poderá, no momento<br />
oportuno, passar pelo teste alquímico.<br />
– Certo. Suponhamos que eu acredite que esta pedra é verdadeira, o<br />
que você espera? Que eu me ajoelhe aos seus pés e lhe jure obediência?<br />
Você é um rei sem coroa, sem trono, sem cidade e, pior, sem exército.<br />
– Não espero que você me reconheça como seu rei, mas está claro<br />
que temos um inimigo em comum e, como diz o dita<strong>do</strong> guerreiro, “o<br />
inimigo <strong>do</strong> meu inimigo é meu amigo”. To<strong>do</strong>s os itens que você mencionou,<br />
os terei, cada um a seu tempo...<br />
O Capitão ficou pensativo, depois respondeu:<br />
– Minha única motivação é a vingança! Não me interesso por reis,<br />
príncipes, impera<strong>do</strong>res ou o que quer que seja.<br />
TALAL HUSSEINI 233
– Enten<strong>do</strong> isso. Mas podemos reunir esforços?<br />
Ainda numa última hesitação, o Capitão perguntou:<br />
– Eu tenho homens, que não são muitos, mas são na sua maioria exsolda<strong>do</strong>s<br />
da Guarda Real, combatentes de elite. E você, o que tem?<br />
– Além da legitimidade à coroa, tenho um Mestre! Ravi Medhavin<br />
encabeça o nosso grupo. Sua sabe<strong>do</strong>ria nos será muito valiosa.<br />
O Capitão admirava muito o impera<strong>do</strong>r Medhavin. A menção a alguém<br />
daquela linhagem o agra<strong>do</strong>u. Ele estendeu a mão para Kadriel:<br />
– Temos um pacto!<br />
Kadriel e Bakar sorriram. O Capitão man<strong>do</strong>u <strong>do</strong>is homens à cidade<br />
para escoltar o resto <strong>do</strong> grupo de Kadriel até o acampamento, pois seria<br />
perigoso ficar na cidade. As forças <strong>do</strong> Rei poderiam aparecer.<br />
Quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s chegaram já era noite. Uma comemoração foi feita,<br />
ainda que com a sobriedade e a austeridade de quem está em guerra e<br />
não pode se dar ao luxo <strong>do</strong> desperdício. Mas to<strong>do</strong>s se reuniram em torno<br />
de uma fogueira e contaram estórias. Ravi encantou a to<strong>do</strong>s com relatos<br />
de suas viagens pelo mun<strong>do</strong>, alguns que nem mesmo Kadriel tinha ouvi<strong>do</strong>.<br />
A alegria foi interrompida por um <strong>do</strong>s sentinelas, que viera da<br />
parte mais baixa da montanha:<br />
– O exército marcha para cá!<br />
Depois de indaga<strong>do</strong> com mais calma, após ter descansa<strong>do</strong> um pouco<br />
da carreira, disse que uma enorme formação de solda<strong>do</strong>s se aproximava.<br />
Era uma superioridade numérica muito grande. Seriam dizima<strong>do</strong>s. A<br />
agitação tomou conta <strong>do</strong> acampamento. Como descobriram aquele lugar.<br />
A culpa era de Kadriel, alguém os havia segui<strong>do</strong>... Quem interrompeu<br />
a confusão foi Ravi, com seu tom de voz tranquilo:<br />
– Fui eu quem disse a eles que estaríamos aqui! – e continuou antes<br />
que alguém tivesse tempo de fazer qualquer colocação – eu disse isso há<br />
muitos anos.<br />
234 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
Ravi se divertia com os olhares de confusão de to<strong>do</strong>s, inclusive de<br />
Kadriel, que nada sabia a respeito <strong>do</strong> que acabara de proferir. Ravi diri-<br />
giu-se ao mensageiro:<br />
– Como eram os estandartes que portavam? Tinham as cores <strong>do</strong> rei<br />
Adaran?<br />
– Havia três estandartes na linha de frente, ao que me pareceu, repre-<br />
sentan<strong>do</strong> constelações. Havia a de gêmeos, a <strong>do</strong> caranguejo e a de pei-<br />
xes.<br />
– Senhores, esses não são exércitos <strong>do</strong> Rei, são os nossos exércitos! –<br />
anunciou – são exércitos da Aliança das Doze Cidades. A constelação<br />
de gêmeos representa a cidade de meu amigo Nakan. As outras devem<br />
ser seus alia<strong>do</strong>s. Provavelmente, o Rei não os considerou confiáveis e<br />
eles agora aqui estão.<br />
– Mas são apenas três estandartes e a Aliança tem <strong>do</strong>ze cidades. Onde<br />
estão as outras? – perguntou alguém.<br />
– As outras, meu amigo, quan<strong>do</strong> for o momento você as encontrará<br />
no campo de batalha...<br />
Quan<strong>do</strong> se encontraram, Ravi e Nakan se estreitaram num abraço fraterno,<br />
de velhos amigos. As apresentações foram feitas, Kadriel, Bakar,<br />
o Capitão, e to<strong>do</strong>s os outros. Nakan, apesar <strong>do</strong> seu bom humor, estava<br />
preocupa<strong>do</strong> com quais seriam os próximos passos daquele grupo. Ele<br />
tinha metade <strong>do</strong>s seus homens, na cidade <strong>do</strong> escorpião to<strong>do</strong>s haviam<br />
acompanha<strong>do</strong> seu general, mas eram poucos no total, as outras duas<br />
cidades também tinham vin<strong>do</strong> com menos de metade <strong>do</strong> seu contingente.<br />
Isso não seria suficiente nem para fazer cócegas nas forças <strong>do</strong> Rei,<br />
ainda mais com o reforço das outras cidades da Aliança.<br />
Ravi continuava tranquilo e disse que tu<strong>do</strong> teria seu tempo certo. O<br />
momento não era agora, muitos preparativos ainda teriam de ser feitos<br />
TALAL HUSSEINI 235
antes de poderem confrontar Adaran, que por sinal não era seu pior ini-<br />
migo. Ninguém entendeu muito bem o senti<strong>do</strong> daquelas últimas palavras<br />
que Ravi parecia ter dito mais para si mesmo, mas ninguém perguntou.<br />
Ravi relatou aos governa<strong>do</strong>res das cidades a história da sucessão, da<br />
mesma forma que Kadriel a havia exposto ao Capitão, que agora a escutava<br />
novamente. Kadriel estava imóvel ao seu la<strong>do</strong>. Sua postura estava<br />
diferente, parecia ter assumi<strong>do</strong> seu destino. Os líderes no entanto ainda<br />
não pareciam conforma<strong>do</strong>s em segui-lo como Rei.<br />
Os dias se passaram e o clima não cooperava com a situação precária<br />
de um acampamento. A chuva já durava mais de trinta dias. Se isso continuasse,<br />
as plantações das cidades montesinas estariam completamente<br />
perdidas. Os prognósticos <strong>do</strong>s anciãos das cidades encarrega<strong>do</strong>s de fazer<br />
a leitura <strong>do</strong> tempo não eram boas: em meio à tempestade, viria o vendaval,<br />
na forma de ciclones. De fato, no dia seguinte, logo que o dia raiou,<br />
se é que se podia chamar assim, uma vez que ainda parecia noite, no<br />
horizonte, unin<strong>do</strong> o céu cinza à terra escura, um paredão. Aproximavase<br />
rápi<strong>do</strong>, trazen<strong>do</strong> seu cinza ainda mais escuro na direção das aldeias.<br />
À sua frente, qual cavaleiros de escolta, quatro formações de vento, sain<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> céu, no meio das nuvens, em redemoinho que ia fincar sua ponta<br />
no chão. Eles se contorciam num balé assusta<strong>do</strong>r, pareciam debochar<br />
<strong>do</strong>s pobres humanos que os aguardavam atônitos.<br />
Se alguém um dia tivesse uma visão <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, certamente seria<br />
aquela. Perto <strong>do</strong> meio-dia, tu<strong>do</strong> escureceu, haviam chega<strong>do</strong> as legiões<br />
<strong>do</strong>s ventos, a artilharia <strong>do</strong>s raios que retumbavam seus tambores ao<br />
fulminar árvores gigantes apenas para demonstrar seu poder, a água que<br />
insistente amolecia as consciências... Era uma luta que os homens não<br />
podiam vencer. Restava-lhes esperar.<br />
To<strong>do</strong>s pensaram que Kadriel enlouquecera quan<strong>do</strong> ele foi na direção<br />
de que vinha o temporal, levantou os braços, com as palmas das mãos<br />
236 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA
abertas, e começou a recitar palavras incompreensíveis. Alguns até sentiriam<br />
vontade de rir, não fosse a situação desespera<strong>do</strong>ra.<br />
Mas a estupefação foi geral quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> pareceu parar: a chuva, os<br />
raios, e o vento, o próprio tempo... Fez-se o mais absoluto silêncio, nenhum<br />
pássaro cantava, nenhum animal da floresta emitia qualquer som,<br />
ninguém falava, ninguém sequer respirava. Em meio ao céu cinzento,<br />
abriu-se um círculo de claridade exatamente sobre a montanha, sobre o<br />
lugar onde estavam, deixan<strong>do</strong> entrar toda a luz e to<strong>do</strong> o calor <strong>do</strong> Sol <strong>do</strong><br />
meio-dia. Ouviu-se então um guincho, era um falcão que descia através<br />
daquela espécie de portal que se abrira entre as nuvens. Ele vinha de<br />
onde não havia tempestade, de onde o céu era claro e o Sol brilhava<br />
pleno. Demorou mais de <strong>do</strong>is minutos na sua descida, pois voava em<br />
forma circular, descreven<strong>do</strong> uma espiral para baixo, até pousar sobre o<br />
ombro de Kadriel.<br />
Era um falcão diferente <strong>do</strong>s demais. Normalmente tinham a plumagem<br />
de cor marrom, aquele era amarelo. O efeito brilhante que as aves<br />
têm nas suas penas o fazia parecer <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> ao Sol. O destino pousara<br />
nos ombros de Kadriel. Sim, este seria seu nome: Destino.<br />
O céu se abriu por completo, terminan<strong>do</strong> de dissipar a tempestade.<br />
To<strong>do</strong>s ficaram olhan<strong>do</strong> fixamente para o homem e a ave. Bastou que<br />
um o fizesse, para que to<strong>do</strong>s em sequência o imitassem: um a um to<strong>do</strong>s<br />
ajoelhavam-se sobre o joelho direito, baixan<strong>do</strong> a cabeça, em sinal de<br />
reverência, em direção a Kadriel.<br />
O poder que ele demonstrara não era <strong>do</strong>s homens comuns, era digno<br />
<strong>do</strong>s reis. O presságio <strong>do</strong> falcão afastava qualquer dúvida que porventura<br />
ainda persistisse.<br />
Até mesmo o Capitão sentiu vontade de fazer reverência, mas resistiu<br />
ao enorme peso que lhe pressionava os ombros, não, ele jamais seguiria<br />
alguém novamente, sua vida poderia acabar quan<strong>do</strong> cumprisse sua vingança.<br />
TALAL HUSSEINI 237
Kadriel fez sinal a to<strong>do</strong>s para que se levantassem. Um bra<strong>do</strong> espontâ-<br />
neo elevou-se da soldadesca para exultá-lo. Os generais se aproxima-<br />
ram, os demais também, to<strong>do</strong>s queriam estar perto <strong>do</strong> Príncipe. Podia-se<br />
sentir o seu magnetismo.<br />
Agora tinham uma bandeira por que lutar.<br />
Estava reunida a companhia de heróis.<br />
238 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA