O que sobrou da Ditadura civil-militar?: Uma discussão sobre a ...
O que sobrou da Ditadura civil-militar?: Uma discussão sobre a ...
O que sobrou da Ditadura civil-militar?: Uma discussão sobre a ...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Resumo:<br />
O <strong>que</strong> <strong>sobrou</strong> <strong>da</strong> <strong>Ditadura</strong> <strong>civil</strong>-<strong>militar</strong>?:<br />
<strong>Uma</strong> <strong>discussão</strong> <strong>sobre</strong> a violência estatal ontem e hoje.<br />
Luã <strong>da</strong> Silva Marins Felipe e Suelen Si<strong>que</strong>ira Julio 1<br />
Este artigo abor<strong>da</strong> a <strong>que</strong>stão <strong>da</strong> tolerância – e mesmo apoio – para com a violência estatal,<br />
mais precisamente violência policial, durante a <strong>Ditadura</strong> <strong>civil</strong>-<strong>militar</strong> no Brasil e do <strong>que</strong> resta dessa<br />
tolerância nos dias de hoje.<br />
Pretendemos discutir a relação entre a relutância em punir os torturadores <strong>que</strong> atuaram<br />
durante a <strong>Ditadura</strong> e a continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> violência policial após a abertura política. Discutimos<br />
também a existência de diferentes memórias <strong>sobre</strong> as ações violentas do regime <strong>militar</strong>.<br />
Defendemos <strong>que</strong> o respeito aos Direitos Humanos e a superação <strong>da</strong> violência estatal na<br />
atuali<strong>da</strong>de passam pelo ajuste de contas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de com seu passado recente e pela abertura <strong>da</strong><br />
<strong>discussão</strong> acerca <strong>da</strong> violência para um círculo além do meio político e acadêmico.<br />
Palavras-chave: <strong>Ditadura</strong>, violência, memória, Direitos Humanos.<br />
Introdução<br />
“Na Polícia do Exército, (...) foi submeti<strong>da</strong> a espancamento inteiramente<br />
despi<strong>da</strong>, bem como a cho<strong>que</strong>s elétricos e outros suplícios, com o 'pau- de-<br />
arara'”.<br />
(Brasil Nunca Mais 2 , <strong>sobre</strong> a estu<strong>da</strong>nte Dulce C. Pandolfi, 24 anos. Tortura<strong>da</strong> em 1970.)<br />
“Me agrediram, me bateram, deram socos na barriga, tapa na cara.. Chegou um<br />
policial e me mandou tirar a roupa (...). O policial foi em cima do armário, pegou<br />
o alicate e foi no meu pênis. E pegou e apertou (...).”<br />
(Funcionário de um ferro-velho em entrevista ao “RJ-TV” 3. Torturado em abril de 2011.)<br />
Os fragmentos acima apontam para uma reali<strong>da</strong>de evidente, mas muitas vezes banaliza<strong>da</strong>,<br />
naturaliza<strong>da</strong> ou nega<strong>da</strong>: a convivência <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira com a violência por parte do Estado.<br />
O Brasil aprendeu a conviver com a violência, <strong>sobre</strong>tudo a violência policial para com a<strong>que</strong>les<br />
tachados como inimigos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de: os comunistas, na <strong>Ditadura</strong> e os “traficantes”, atualmente.<br />
Esses inimigos são colocados no lado “mal” e portanto devem pagar por seus crimes, até mesmo<br />
1 Graduandos em História pela Universi<strong>da</strong>de Federal Fluminense.<br />
2 ARNS, D. Paulos Evaristo (prefácio). Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 32.<br />
3 In.: “ A Polícia <strong>que</strong> não <strong>que</strong>remos: Tortura na delegacia”. O Globo. Rio de Janeiro, sexta-feira, 1 de abril de 2011.
por meios não previstos pelas leis.<br />
O primeiro fragmento diz respeito a uma estu<strong>da</strong>nte presa e tortura<strong>da</strong> no quartel <strong>da</strong> rua Barão<br />
de Mesquita, no Rio de Janeiro, durante a <strong>Ditadura</strong> <strong>civil</strong>-<strong>militar</strong> 4 .<br />
O segundo aponta para o fato de <strong>que</strong> a brutali<strong>da</strong>de por parte do Estado não se foi junto com<br />
a <strong>Ditadura</strong>. Lamentavelmente o caso do funcionário de um ferro-velho <strong>que</strong> foi torturado por<br />
policiais civis na 10ª DP (Botafogo), para <strong>que</strong> incriminasse seu patrão por receptação de veículos<br />
roubados ou furtados no Rio, não é uma exceção. Freqüentemente recebemos notícias <strong>sobre</strong> pessoas<br />
espanca<strong>da</strong>s e mesmo executa<strong>da</strong>s por policiais. E assustadoramente tais notícias amiúde não são<br />
veicula<strong>da</strong>s em forma de denúncia, mas de forma “neutra” ou mesmo com contornos de<br />
comemoração em jornais e telejornais sensacionalistas. As atitudes brutais, em franco desacordo<br />
com a Constituição e os Direitos Humanos, recebem apoio <strong>da</strong>s mídias e de grande parcela <strong>da</strong><br />
população.<br />
O <strong>que</strong> a socie<strong>da</strong>de brasileira utiliza como justificativa para a convivência e aceitação <strong>da</strong><br />
violência policial nos dias de hoje? Quais as implicações <strong>da</strong> “ignorância” ou <strong>da</strong> aceitação <strong>da</strong><br />
violência <strong>que</strong> houve durante a <strong>Ditadura</strong>? O fato de não termos julgado os torturadores do passado<br />
nos diz algo <strong>sobre</strong> nosso presente e futuro? Qual a memória – ou quais as memórias – <strong>que</strong> se tem <strong>da</strong><br />
violência pratica<strong>da</strong> pelo regime <strong>militar</strong>? É o <strong>que</strong> se busca discutir neste espaço.<br />
<strong>Ditadura</strong>: convivência e memória<br />
O historiador Daniel Aarão Reis Filho em diversas ocasiões escreveu <strong>sobre</strong> a memória<br />
dominante <strong>que</strong> se constituiu <strong>sobre</strong> a <strong>Ditadura</strong>. Por ocasião <strong>da</strong> Anistia, fez-se uma reconciliação<br />
nacional. Essa reconciliação implicou uma série de construções, para <strong>que</strong> se consoli<strong>da</strong>sse uma<br />
memória aceitável.<br />
A violência estatal foi reduzi<strong>da</strong> a atos feitos às escondi<strong>da</strong>s, nos “porões”. De forma <strong>que</strong> a<br />
socie<strong>da</strong>de se isentou, foi inocenta<strong>da</strong> dessa violência. Construiu-se a idéia de <strong>que</strong> a maior parte <strong>da</strong>s<br />
pessoas sempre foi contra a <strong>Ditadura</strong>. Esta foi um tempo de exceção, “anos de chumbo”, uma<br />
antítese <strong>da</strong> Nova República, <strong>que</strong> é livre, legal, composta por ci<strong>da</strong>dãos.<br />
Diante disso, o autor <strong>que</strong>stiona por <strong>que</strong> a ditadura teve a duração <strong>que</strong> teve, por <strong>que</strong> a anistia<br />
foi recíproca e por <strong>que</strong> permanecem tantos aspectos <strong>da</strong><strong>que</strong>les tempos nos dias de hoje, entre eles a<br />
4 Como outros autores, acreditamos <strong>que</strong> o termo “ditadura <strong>militar</strong>” é insuficiente para denominar o período<br />
vivenciado pelo Brasil de 1964-1985. O golpe contou com apoio de cama<strong>da</strong>s civis <strong>da</strong> população e hoje em dia entre<br />
os <strong>que</strong> tem sau<strong>da</strong>des <strong>da</strong><strong>que</strong>les “bons tempos, tempos de ordem”, encontramos não apenas <strong>militar</strong>es.
violência estatal 5 .<br />
A investigação desse passado e a própria experiência de vi<strong>da</strong>, levaram o autor a afirmar <strong>que</strong><br />
a socie<strong>da</strong>de não estava tão descontente com a “sua ditadura” 6 .<br />
A <strong>Ditadura</strong> exacerbou a cultura autoritária já existente no Brasil. Dessa forma, se houve<br />
<strong>que</strong>m resistiu e mesmo pegou em armas contra o regime <strong>militar</strong>, houve <strong>que</strong>m apoiasse as ações do<br />
governo, mesmo <strong>que</strong> implicassem a tortura e a morte, desde <strong>que</strong> os atingidos fossem os<br />
“subversivos”. Estes entendidos não apenas como os militantes <strong>da</strong>s es<strong>que</strong>r<strong>da</strong>s, mas também<br />
trabalhadores <strong>que</strong> fizessem greves, por exemplo.<br />
O medo <strong>da</strong> subversão estava presente não só entre os <strong>militar</strong>es, mas também entre diversos<br />
setores civis <strong>da</strong> classe dominante – empresários 7 , setores <strong>da</strong> Igreja Católica, classes médias – e <strong>da</strong>s<br />
cama<strong>da</strong>s mais baixas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Tal medo justificou a ação truculenta dos agentes estatais.<br />
A convivência com a brutali<strong>da</strong>de estatal ontem e hoje<br />
Apesar do imenso esforço para se construir uma memória segundo a qual a socie<strong>da</strong>de<br />
brasileira não teve na<strong>da</strong> a ver com a <strong>Ditadura</strong>, esta contou com um significativo apoio, em nome <strong>da</strong><br />
ordem e <strong>da</strong> luta contra a subversão.<br />
Conversamos com algumas pessoas <strong>que</strong> viveram os anos <strong>da</strong> <strong>Ditadura</strong> e percebemos uma<br />
memória bem diferente <strong>da</strong><strong>que</strong>la <strong>que</strong> aponta para o descontentamento quase unânime dos brasileiros<br />
nesse período. No discurso dessas pessoas, o binômio ordem/desordem foi usado de forma<br />
recorrente como justificativa para os mecanismos de repressão usados pelo Estado. Em nome <strong>da</strong><br />
defesa do país contra a "desordem", a repressão - <strong>que</strong> incluía torturas e mortes - foi legitima<strong>da</strong>:<br />
“Antes [referindo-se ao período de 1964-1988] você podia an<strong>da</strong>r na rua despreocupado. A<br />
ditadura só foi ruim para os arruaceiros". ( J. T, 65 anos, comerciante)<br />
“O povo respeitou o <strong>militar</strong>ismo e para mim foi uma <strong>da</strong>s melhores épocas <strong>que</strong> passamos em<br />
nossa vi<strong>da</strong>, nós tínhamos ordem. Os comunistas eram presos por<strong>que</strong> eram contra a ordem."<br />
(M.A.C., 69 anos, pedreiro)<br />
5<br />
REIS FILHO, Daniel Aarão. <strong>Ditadura</strong> <strong>militar</strong>, es<strong>que</strong>r<strong>da</strong>s e socie<strong>da</strong>de. 3.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.<br />
10.<br />
6<br />
REIS FILHO, Daniel Aarão.“Um passado imprevisível:a construção <strong>da</strong> memória <strong>da</strong> es<strong>que</strong>r<strong>da</strong> nos anos 60”. In.:<br />
REIS FILHO, Daniel Aarão (org.). Versões e ficções: o se<strong>que</strong>stro <strong>da</strong> história. São Paulo: Perseu Abramo, 1997. p.<br />
41.<br />
7<br />
Empresas como: Light, Listas Telefônicas Brasileiras, Cruzeiro do Sul, entre outras, colaboraram com o IPÊS<br />
(Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais), <strong>que</strong> fez a propagan<strong>da</strong> pró-golpe e seguiu apoiando o governo <strong>militar</strong> nos<br />
anos seguintes. Conferir ASSIS, Denise. Propagan<strong>da</strong> e Cinema a serviço do Golpe (1962-1964). Rio de Janeiro:<br />
Mauad, FAPERJ, 2001.
A lógica <strong>da</strong> eliminação do inimigo<br />
Se durante a <strong>Ditadura</strong> <strong>civil</strong>-<strong>militar</strong>, o inimigo <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira era o indivíduo<br />
detectado como comunista, hoje o inimigo a ser eliminado é, principalmente, a<strong>que</strong>le rotulado como<br />
traficante, como é o caso de muitos jovens <strong>da</strong> periferia, <strong>que</strong> atraem "para si to<strong>da</strong> sorte de<br />
procedimentos policialescos <strong>que</strong> desconhecem olimpicamente qual<strong>que</strong>r garantia de proteção à<br />
pessoa humana”. Tais procedimentos são apoiados por setores expressivos <strong>da</strong> população, sequiosos<br />
“em responder o problema <strong>da</strong> segurança com mais violência (...)" 8 .<br />
Sendo assim, a tolerância para com a brutali<strong>da</strong>de do Estado é um dos elementos <strong>que</strong><br />
apontam para a existência de uma continui<strong>da</strong>de entre a <strong>Ditadura</strong> e a atual República, <strong>que</strong> se<br />
pretende totalmente nova. Ain<strong>da</strong> hoje, muitos não se importam se alguém é espancado até a morte<br />
nas periferias, se a polícia utiliza métodos brutais para arrancar a “ver<strong>da</strong>de” de um “bandido”, se um<br />
“micróbio social” é morto a sangue-frio. Afinal, o <strong>que</strong> se espera <strong>que</strong> aconteça a um “micróbio”, a<br />
um “monstro”, senão a eliminação do mesmo?<br />
O jornal Meia Hora, conhecido por suas matérias de capa, costuma trazer notícias nas quais<br />
as ações <strong>da</strong> polícia <strong>que</strong> terminam com a morte dos bandidos são exalta<strong>da</strong>s. <strong>Uma</strong> <strong>da</strong>s matérias tem as<br />
chama<strong>da</strong>s "PM deita bonde <strong>que</strong> ia pro Alemão", "Seis do Jacaré viram bolsa de Ma<strong>da</strong>me" e<br />
"Inferno tá cheio". Percebemos aí a banalização dessas mortes. O jornal vai além <strong>da</strong> justificativa <strong>da</strong><br />
morte dos seis homens por serem criminosos ou por enfrentarem a polícia: os trata como "jacarés"<br />
(em alusão ao seu lugar de origem, favela do Jacarezinho) <strong>que</strong> viraram "bolsa de ma<strong>da</strong>me" 9 .<br />
Em um blog com 2379 seguidores, encontramos comentários <strong>sobre</strong> a matéria acima. Um dos<br />
seguidores, Edison Correa <strong>da</strong> Rocha, dizia: "parabéns a esses bravos policiais, pelo menos são<br />
menos alguns para atazanar nossas vi<strong>da</strong>s e para nos <strong>da</strong>r prejuízo, tendo <strong>que</strong> sustentá-los na<br />
cadeia". 10 Discursos como esse apontam para a existência de uma cultura <strong>da</strong> violência no Brasil,<br />
<strong>que</strong> despreza o fato de <strong>que</strong> as leis prevêem a prisão e não a morte dos criminosos.<br />
A violência como método investigativo<br />
A cultura autoritária embasa o recurso à violência por parte <strong>da</strong> polícia para conseguir<br />
informações e está presente em certos meios de comunicação. Tal cultura se materializou na figura<br />
do Capitão Nascimento, personagem principal do filme "Tropa de Elite". Segundo a revista Veja, o<br />
capitão do BOPE - <strong>que</strong> usa recursos violentos e abusivos para tirar informações dos traficantes - é o<br />
8 SILVA FILHO, José Carlos Moreira <strong>da</strong>. "O anjo <strong>da</strong> História e a memória <strong>da</strong>s vítimas: O caso <strong>da</strong> <strong>Ditadura</strong> <strong>militar</strong> no<br />
Brasil". In.: Veritas. Porto Alegre. v. 53, n.2, abr/jun. 2008, pp. 150-178.<br />
9 “Seis do Jacaré viram bolsa de ma<strong>da</strong>me”. Meia Hora, terça-feira, 14 de setembro de 2010, ano 5, n 1803.<br />
10 Disponível em: http://ricardo-gama.blogspot.com/2010/09/tiroteio-entre-policiais-<strong>militar</strong>es-e.html.
primeiro super- herói brasileiro 11 .<br />
Jornais <strong>que</strong> apoiavam o regime <strong>militar</strong>, como Folha <strong>da</strong> Tarde, editado pelo grupo Folha,<br />
apostavam no medo para justificar as ações violentas do Estado contra os “terroristas”. “As<br />
chama<strong>da</strong>s nas capas dos jornais do grupo tratavam os opositores <strong>da</strong> <strong>Ditadura</strong> como bandidos,<br />
assassinos, facínoras" 12 .<br />
Em outubro de 1970, a Folha <strong>da</strong> Tarde noticiou a morte do militante Eduardo Collen Leite,<br />
conhecido como Bacuri 13 , sob o título "Terror: metralhado e morto outro facínora". A notícia dizia<br />
<strong>que</strong> Bacuri foi morto em um tiroteio, mas a abertura dos documentos do Dops revelou <strong>que</strong> ele ficou<br />
dois meses sob tortura, sendo morto em dezembro - e não outubro - de 1970.<br />
A veiculação <strong>da</strong> imagem dos comunistas como assassinos e terroristas pelos meios de<br />
comunicação contribuía para <strong>que</strong> as ações de extermínio e de tortura (para obter informações <strong>que</strong><br />
levassem à captura de outros subversivos) fossem apoia<strong>da</strong>s por grande parte dos brasileiros.<br />
“Por <strong>que</strong> o Brasil não <strong>que</strong>r punir torturadores?”<br />
A relutância em punir os torturadores é um forte indicador do apoio <strong>que</strong> a violência estatal<br />
recebeu <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Ain<strong>da</strong> <strong>que</strong> não falemos em revogar a Lei de Anistia ou em reinterpretá-la, é<br />
sintomático <strong>que</strong> muitos brasileiros tenham a opinião pessoal de <strong>que</strong> isso é um assunto do passado<br />
ou <strong>que</strong> nem se<strong>que</strong>r tenham opinião <strong>sobre</strong> isso.<br />
Essa relutância em julgar os torturadores foi comenta<strong>da</strong> por Leonardo Sakamoto. Este<br />
publicou na Carta Capital um artigo intitulado “Por <strong>que</strong> o Brasil não <strong>que</strong>r punir torturadores?”.<br />
Sakamoto tomou por base uma pesquisa do Datafolha divulga<strong>da</strong> no jornal Folha de São Paulo no<br />
dia sete de junho de 2010, <strong>que</strong> mostrou “<strong>que</strong> 45% <strong>da</strong> população é contrária à punição de agentes<br />
<strong>que</strong> torturaram presos políticos durante a ditadura <strong>militar</strong> contra 40% a favor. Outros 4% são<br />
indiferentes e 11% não souberam opinar”.<br />
O autor prossegue afirmando:<br />
11 “Enfim, um herói do lado certo”. Veja, ano 43, n. 45, ed. 2190, novembro de 2010, pp. 120-127. Disponível<br />
em: http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx?edicao=2190&pg=10.<br />
12 “Folha de São Paulo completa 90 anos. Para recor<strong>da</strong>r nestes dias de comemoração”. Blog do Miltton Alves. Alves<br />
acrescenta: “É a mesma Folha <strong>que</strong> caracterizou o regime <strong>militar</strong> como ditabran<strong>da</strong>”. Disponível em:<br />
http://miltoncompolitica.wordpress.com/2011/02/23/folha-de-sao-paulo-completa-90-anos-para-recor<strong>da</strong>r-nestesdias-de-comemoracao/.<br />
13 Bacuri militou na Vanguar<strong>da</strong> Popular Revolucionária (VPR) e chegou a liderar uma outra organização, a<br />
Resistência Democrática (Rede), <strong>que</strong> em 1970 se incorporou à Ação Libertadora Nacional (ALN). Disponível em<br />
http://www.redebrasilatual.com.br/temas/politica/2010/12/bacuri-recebe-homenagem-40-anos-apossua-morte.
Tenho no fundo a esperança de <strong>que</strong> o assunto deu margem a múltiplas interpretações por<br />
parte dos entrevistados. Em outras palavras, espero <strong>que</strong> o pessoal tenha respondido sem<br />
saber exatamente o <strong>que</strong> foram as torturas durante a ditadura e para <strong>que</strong> serviram. Caso<br />
contrário, mais do <strong>que</strong> um Brasil sem memória e sem Justiça, temos diante de nós um país<br />
conivente com o pau-de-arara como ferramenta de obtenção de informações 14 .<br />
O jornal O Globo está com uma pesquisa online, <strong>que</strong> pergunta: “você é a favor <strong>da</strong> apuração<br />
dos crimes na <strong>Ditadura</strong>?”. No dia 25 de junho de 2011, os números eram estes: dos 1291 votos, 37,<br />
41% eram a favor, 61, 50% contra e 1, 08% não sabiam o <strong>que</strong> responder.<br />
Acreditamos <strong>que</strong> o desinteresse em acertar contas com o passado violento aponta tanto para<br />
a convivência com a brutali<strong>da</strong>de estatal nos dias atuais, quanto para uma conivência com esse<br />
passado <strong>que</strong> é recente, mas <strong>que</strong> é tratado de forma mítica, como um período de exceção, <strong>que</strong> já<br />
ficou para trás.<br />
A Anistia: interpretações em disputa<br />
A luta para manter viva a memória referente à tortura durante a <strong>Ditadura</strong> <strong>civil</strong>-<strong>militar</strong> tem a<br />
ver com o combate à violação dos direitos humanos nos dias de hoje. Como resolver os problemas<br />
atuais se ain<strong>da</strong> não ajustamos as contas com os crimes cometidos por agentes do Estado em nosso<br />
passado recente?<br />
Na tentativa de resolver os diversos crimes cometidos por agentes estatais desde o golpe de<br />
1964, houve um movimento iniciado por parentes de presos, mortos e desaparecidos políticos <strong>que</strong><br />
desembocou na aprovação <strong>da</strong> lei <strong>da</strong> Anistia, em 28 de agosto de 1979.<br />
É preciso salientar <strong>que</strong> a anistia aprova<strong>da</strong>, <strong>que</strong> “perdoou” os dois lados – torturadores e<br />
torturados – não foi a anistia pedi<strong>da</strong> pelo movimento.<br />
Fre<strong>que</strong>ntemente, quando as mesmas palavras são usa<strong>da</strong>s por grupos políticos distintos ou<br />
rivais, nos enganamos ao pensar <strong>que</strong> elas significam as mesmas coisas para todos.<br />
Enquanto para os <strong>militar</strong>es – e a<strong>que</strong>les <strong>que</strong> os apoiaram e ain<strong>da</strong> apóiam – a Lei <strong>da</strong> Anistia<br />
significou es<strong>que</strong>cimento, para os familiares de mortos e desaparecidos e para as vítimas <strong>da</strong> tortura, é<br />
impossível e inaceitável es<strong>que</strong>cer o <strong>que</strong> se passou.<br />
A Anistia pela qual o movimento lutou não foi uma anistia <strong>que</strong> promovesse uma amnésia<br />
coletiva. O <strong>que</strong> se pretendeu foi<br />
14 “Por <strong>que</strong> o Brasil não <strong>que</strong>r punir torturadores?”, 7 de junho de 2010. Disponível em:<br />
htttp://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=8&i=6963.
Conclusão<br />
“a denúncia dos crimes <strong>da</strong> ditadura, exigindo o esclarecimento <strong>da</strong>s mortes e dos<br />
'desaparecimentos', com a devi<strong>da</strong> responsabilização dos culpados; a total<br />
reintegração na vi<strong>da</strong> nacional dos <strong>que</strong> foram dela alijados por medi<strong>da</strong>s arbitrárias, a<br />
reconquista dos valores democráticos - a liber<strong>da</strong>de, a justiça social e o respeito aos direitos<br />
humanos (...).” 15<br />
Como temos afirmado, hoje grande parte <strong>da</strong> população apóia a violência policial, desde <strong>que</strong><br />
esteja bem direciona<strong>da</strong> e <strong>que</strong> só atinja os “criminosos”. Estes criminosos atingidos freqüentemente<br />
são pobres, de cor, com baixa escolari<strong>da</strong>de, moradores de periferia.<br />
A superação <strong>da</strong> violência policial e a garantia do respeito aos Direitos Humanos hoje,<br />
passam pela <strong>discussão</strong> <strong>sobre</strong> essa violência no seio <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Passam também pela revisão do<br />
passado recente, marcado pela <strong>Ditadura</strong> <strong>civil</strong>-<strong>militar</strong>.<br />
A memória <strong>que</strong> sustenta o passado violento como tempo de exceção, no qual alguns<br />
<strong>militar</strong>es cometeram abusos em porões, sem o conhecimento e muito menos apoio <strong>da</strong> maior parte<br />
dos brasileiros, conseguiu se tornar dominante. Mas, essa memória hegemônica não é a única <strong>que</strong><br />
existe. Muitos estudos mais atuais e discursos de pessoas comuns <strong>que</strong> viveram a<strong>que</strong>les tempos<br />
trazem à tona uma outra memória, segundo a qual a<strong>que</strong>les tempos eram de ordem e <strong>que</strong> a violência<br />
estatal era um mal necessário para manter a segurança.<br />
Além disso, se considerarmos a continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> violência policial, o termo “exceção” não<br />
nos parece o mais apropriado para o período <strong>da</strong> <strong>Ditadura</strong>.<br />
Quando se pede o ajuste de contas com o passado, busca-se entender o <strong>que</strong> <strong>sobrou</strong> dele hoje<br />
em dia. Há um grande perigo em se conformar com a violação dos direitos humanos no passado<br />
recente, pois também acaba-se aceitando tais crimes no presente e <strong>que</strong>m sabe garantir esses abusos<br />
no futuro.<br />
15 Fun<strong>da</strong>ção Perseu Abramo: 20 anos: Anistia não é es<strong>que</strong>cimento. Disponível em:<br />
http://www.fpabramo.org.br/especiais/anistia/apresentacao.htm
Bibliografia<br />
ARNS, D. Paulo Evaristo (prefácio). Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985.<br />
ASSIS, Denise. Propagan<strong>da</strong> e Cinema a serviço do Golpe (1962-1964). Rio de Janeiro: Mauad, FAPERJ,<br />
2001.<br />
FICO, Carlos. “Versões e controvérsias <strong>sobre</strong> 1964 e a ditadura <strong>militar</strong>”. In.: Revista Brasileira de História.<br />
São Paulo: ANPUH, vol. 24, nº 47, jan-jun, 2004. pp. 29-60.<br />
MARTINS FILHO, João Roberto. A guerra <strong>da</strong> memória: a ditadura <strong>militar</strong> nos depoimentos de militantes e<br />
<strong>militar</strong>es. Congresso <strong>da</strong> Associação de Estudos Latino-americanos, Dallas, Texas, 27-29 de março de 2003.<br />
MEIA HORA. Rio de Janeiro: EJESA, 14 de setembro de 2010.<br />
O GLOBO. Rio de Janeiro: Globo, 1 de abril de 2011.<br />
REIS FILHO, Daniel Aarão. <strong>Ditadura</strong> <strong>militar</strong>, es<strong>que</strong>r<strong>da</strong>s e socie<strong>da</strong>de. 3.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,<br />
2005.<br />
REIS FILHO, Daniel Aarão. “Um passado imprevisível:a construção <strong>da</strong> memória <strong>da</strong> es<strong>que</strong>r<strong>da</strong> nos anos 60”.<br />
In.: REIS FILHO, Daniel Aarão (org.). Versões e ficções: o se<strong>que</strong>stro <strong>da</strong> história. São Paulo: Perseu<br />
Abramo, 1997. pp. 11-45.<br />
SILVA FILHO, José Carlos Moreira <strong>da</strong>. "O anjo <strong>da</strong> História e a memória <strong>da</strong>s vítimas: O caso <strong>da</strong> <strong>Ditadura</strong><br />
<strong>militar</strong> no Brasil". In.: Veritas. Porto Alegre. v. 53, n.2, abr/jun. 2008, pp. 150-178.<br />
TOLEDO, Caio Navarro de. “O golpe contra as reformas e a democracia”. In.: Revista Brasileira de<br />
História. São Paulo: ANPUH, vol. 24, nº 47, jan-jun, 2004. pp. 13-28.<br />
htttp://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=8&i=6963<br />
http://www.cartacapital.com.br/socie<strong>da</strong>de-o-<strong>que</strong>-resta-<strong>da</strong>-ditadura-brasileira<br />
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16310.<br />
http://www.fpabramo.org.br/especiais/anistia/apresentacao.htm<br />
http://www.jusbrasil.com.br/noticias/121203/juiz-condena-coronel-ustra-por-se<strong>que</strong>stro-e-tortura<br />
http://miltoncompolitica.wordpress.com/2011/02/23/folha-de-sao-paulo-completa-90-anos-para-recor<strong>da</strong>r-nestes-dias-<br />
de-comemoracao/<br />
http://oglobo.globo.com/participe/vote/resultado.asp?pergunta=6120&editoria=3&resultado=1. Acesso em<br />
25 de junho de 2011, às 17:15.<br />
http://ricardo-gama.blogspot.com/2010/09/tiroteio-entre-policiais-<strong>militar</strong>es-e.html.<br />
http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx?edicao=2190&pg=10