a mulher, o mal? – representações do feminino em josé ... - UFF
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As sereias, um canto sedutor, arrastan<strong>do</strong> os marinheiros para o<br />
fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> oceano. Joana D’Arc a queimar no fogo da Inquisição. A Lilith<br />
Sixtina, de Dèlacroix: rosto de <strong>mulher</strong>, corpo de serpente, a tentar Eva no<br />
Paraíso. Capitu, que atormenta os pensamentos de Bentinho <strong>em</strong> Dom Casmurro.<br />
Na mitologia, na História, na pintura e na literatura é s<strong>em</strong>pre uma<br />
<strong>mulher</strong> <strong>–</strong> com poucas exceções <strong>–</strong> a responsável pelos infortúnios <strong>do</strong>s homens.<br />
Na produção literária portuguesa, objeto de nossa pesquisa, Helder<br />
Mace<strong>do</strong> (2002, pp. 201-214) aponta três <strong>representações</strong> f<strong>em</strong>ininas <strong>em</strong> sua<br />
relação com o <strong>mal</strong> ou o peca<strong>do</strong>: três “faces de Eva” nas cantigas medievais<br />
líricas e satíricas. Segun<strong>do</strong> o ensaísta, a senhor das cantigas de amor é inalcançável<br />
e egoísta, e ignora o amor <strong>do</strong> trova<strong>do</strong>r, fazen<strong>do</strong>-o sofrer: na relação<br />
de vassalag<strong>em</strong>, a <strong>mulher</strong> figura como ícone, inacessível ao hom<strong>em</strong>. Nas<br />
cantigas de amigo, é substituída pela imag<strong>em</strong> daquela que espera o retorno<br />
<strong>do</strong> amante: um <strong>f<strong>em</strong>inino</strong> erotiza<strong>do</strong> e lascivo, a lavar, significativamente, os<br />
cabelos numa fonte 1 . Por fim, especialmente nas cantigas de escárnio e <strong>mal</strong>dizer,<br />
observamos uma representação da <strong>mulher</strong> diabólica e nefasta: seja na<br />
aparência, seja nas atitudes, é ridicularizada pelo eu-lírico, o que, de acor<strong>do</strong><br />
com Mace<strong>do</strong>, torna evidente o me<strong>do</strong> masculino <strong>em</strong> relação à sexualidade<br />
f<strong>em</strong>inina (MACEDO, 2000, p. 210). E assim, neste baile de máscaras, qu<strong>em</strong><br />
as utiliza é a mesma Eva retratada na narrativa genesíaca: <strong>mulher</strong> ardilosa,<br />
inclinada à desobediência, eventualmente ligada ao feio, ao abjeto e ao caótico.<br />
Aparent<strong>em</strong>ente, para “que a <strong>mulher</strong> apareça como uma personalidade<br />
autônoma, capaz de assumir sua própria identidade sexual” (MACEDO,<br />
2000, p. 205), seria necessário conferir-lhe um poder destrutivo.<br />
Segun<strong>do</strong> Delumeau, “o primeiro acontecimento ‘monstruoso’<br />
da história foi produzi<strong>do</strong> pela diabólica serpente que seduziu Eva” (DE-<br />
LUMEAU, 2006, p. 462), o que culminou na figuração <strong>do</strong> <strong>f<strong>em</strong>inino</strong> como<br />
agente da desord<strong>em</strong> e desequilíbrio, qual seja, porta<strong>do</strong>r <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> original.<br />
Frequent<strong>em</strong>ente a <strong>mulher</strong>, quan<strong>do</strong> não é evocada como ser de caráter fraco,<br />
compactuante com o logro, a manipulação e a vingança, é apresentada<br />
de maneira submissa e angelical. É a partir deste pressuposto que Gilles<br />
Lipovetsky (2000) delineia três concepções de <strong>f<strong>em</strong>inino</strong>, as quais se ass<strong>em</strong>elham<br />
às “três faces de Eva” apontadas por Mace<strong>do</strong>: a “primeira <strong>mulher</strong>”,<br />
d<strong>em</strong>onizada e antagonista <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>; a “segunda <strong>mulher</strong>”, enaltecida, apática<br />
e objetificada; e a “terceira <strong>mulher</strong>”, sujeita de si. Tanto na primeira<br />
quanto na segunda concepções, não exerceriam participação expressiva na<br />
sociedade, vivencian<strong>do</strong> um processo de exclusão que as tornou o “exótico”,<br />
o “ex-cêntrico”, a ser t<strong>em</strong>i<strong>do</strong>, subjuga<strong>do</strong> ou eleva<strong>do</strong> à condição de eterna<br />
vítima. A “terceira <strong>mulher</strong>” concebida por Lipovetsky (2000), invenção da<br />
sociedade pós-guerra, surge quan<strong>do</strong> a “identidade f<strong>em</strong>inina deixa de ser o<br />
Outro <strong>do</strong> mesmo para se tornar uma procura e uma invenção” (RECTOR,<br />
1999, p. 46). Se, conforme Monica Rector, “inicialmente, os estu<strong>do</strong>s que<br />
proliferaram no âmbito acadêmico baseavam-se <strong>em</strong> tópicos comuns como<br />
a opressão da <strong>mulher</strong>, para mostrar que o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> era uma<br />
constante” (RECTOR, 1999, p. 45), neste trabalho investigamos o processo<br />
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ABRIL <strong>–</strong> Revista <strong>do</strong> Núcleo de Estu<strong>do</strong>s de Literatura Portuguesa e Africana da <strong>UFF</strong>, Vol. 4, n° 8, Abril de 2012