Introdução a uma Teoria Possibilista do Direito - Sisnet Aduaneiras
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<strong>Introdução</strong> a <strong>uma</strong> <strong>Teoria</strong> <strong>Possibilista</strong> <strong>do</strong> <strong>Direito</strong><br />
(como teoria filosófica fundamental de base fenomenológica):<br />
Proposta de Investigação.<br />
Willis Santiago Guerra Filho *<br />
Toda investigação parte de pressupostos, pressupostos estes que, dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
campo <strong>do</strong> saber, serão axiomas, postula<strong>do</strong>s, hipóteses ou mesmo <strong>do</strong>gmas, como ocorre<br />
mais freqüentemente em teologia e em <strong>Direito</strong>, mas também em filosofia, consideran<strong>do</strong><br />
como <strong>do</strong>gmata o conjunto de teses em que se sustenta <strong>uma</strong> <strong>do</strong>utrina ou sistema filosófico. 1<br />
Em se tratan<strong>do</strong> de <strong>uma</strong> investigação filosófica, tais pressupostos assumem características<br />
peculiares, decorrentes da própria natureza deste tipo de saber, a filosofia. A filosofia – e<br />
eis aí enuncia<strong>do</strong> já um de nossos pressupostos – é um saber incerto de si mesmo, se<br />
* Professor Titular <strong>do</strong> Departamento de Filosofia da Universidade Estadual <strong>do</strong> Ceará (licencia<strong>do</strong>).<br />
Professor Titular da Escola de Ciências Jurídicas da Universidade Federal <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de<br />
Janeiro (UNIRIO). Professor <strong>do</strong> Curso de Doutora<strong>do</strong> em <strong>Direito</strong> da Universidade Federal da<br />
Bahia (UFBA), bem como <strong>do</strong>s Cursos de Mestra<strong>do</strong> em <strong>Direito</strong> da Universidade Católica de<br />
Salva<strong>do</strong>r (UCSAL), em implantação, da Faculdade Autônoma de <strong>Direito</strong> de São Paulo (FADISP),<br />
da Fundação para a Instrução e Ensino de Osasco, SP (UNIFIEO), e da Universidade Candi<strong>do</strong><br />
Mendes, RJ (UCAM). Bacharela<strong>do</strong> (UFC) e Mestra<strong>do</strong> em <strong>Direito</strong> (PUC-SP), Doutora<strong>do</strong> em<br />
Ciência <strong>do</strong> <strong>Direito</strong> (Universidade de Bielefeld, Alemanha), Livre-Docência em Filosofia <strong>do</strong> <strong>Direito</strong><br />
(Faculdade de <strong>Direito</strong> da Universidade Federal <strong>do</strong> Ceará - UFC), Pós-Doutora<strong>do</strong> em Filosofia<br />
pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal <strong>do</strong> Rio de Janeiro (IFCS-<br />
UFRJ.<br />
1 Nesse senti<strong>do</strong>, Victor Goldschmidt, “Tempo histórico e tempo lógico na interpretação <strong>do</strong>s<br />
sistemas filosóficos”, in: id., A Religião de Platão, trad.: Ieda e Oswal<strong>do</strong> Porchat Pereira, São Paulo:<br />
DIFEL, 1963, p. 139. Também, com apoio em E. Husserl, pode-se considerar a postura <strong>do</strong>gmática<br />
como a única alternativa que se apresenta a quem acredita na possibilidade de um acesso à verdade<br />
pelo conhecimento, repelin<strong>do</strong> o ceticismo - cf. Philippe van den Bosch, “A Filosofia e a<br />
Felicidade”, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 14, texto e nota, e p. 256. Por fim, com apoio em<br />
Tercio Sampaio Ferraz Jr. – cf., v.g., "A filosofia como discurso aporético", in: A Filosofia e a<br />
Visão Comum <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, em colaboração com Bento Pra<strong>do</strong> Jr. e Oswal<strong>do</strong> Porchat Pereira, São<br />
Paulo: Brasiliense, 1981 -, pode-se indicar o caráter <strong>do</strong>gmático da filosofia como equivalente à<br />
natureza aporética, para<strong>do</strong>xal, das questões que ela tipicamente coloca, enquanto questões<br />
reflexivas, circulares, que remetem a si mesmas, tal como ocorre com a questão sobre o que é a<br />
filosofia, a qual já pressupõe a própria filosofia, enquanto discurso sobre o que é o ser <strong>do</strong>s entes: a<br />
filosofia só pode ser praticada com base n<strong>uma</strong> concepção <strong>do</strong> que seja fazer isso, filosofar, o que por<br />
sua vez é um fator determinante <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> e resulta<strong>do</strong> desse filosofar. Atribuir <strong>uma</strong> tal natureza à<br />
filosofia, <strong>do</strong>gmática, note-se bem, não é o mesmo que condená-la ao <strong>do</strong>gmatismo, o que só<br />
acontece quan<strong>do</strong> há a recusa em discutir os <strong>do</strong>gmas, tornan<strong>do</strong>-os imunes à crítica. Um passo<br />
importante para prevenirmo-nos <strong>do</strong> <strong>do</strong>gmatismo em filosofia seria justamente essa assunção <strong>do</strong><br />
caráter <strong>do</strong>gmático da filosofia, ao invés de tentar mascará-lo, insinuan<strong>do</strong> possuir <strong>uma</strong> resposta<br />
verdadeira e definitiva quan<strong>do</strong> apenas se erigiu um <strong>do</strong>gma, <strong>uma</strong> tese, assertiva ou axioma.<br />
1
compara<strong>do</strong> com os demais, desde aquele <strong>do</strong> senso comum até o das ciências, passan<strong>do</strong> por<br />
aqueles de natureza mágica ou mítica, religiosa e artística. Mas nesta fragilidade reside, ao<br />
mesmo tempo, a grandeza da filosofia, visto que advém de seu compromisso radical com a<br />
criticidade, com a problematização total, que leva a que ponha e reponha até a si mesma<br />
como problema a ser enfrenta<strong>do</strong>, dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s deste enfrentamento o mo<strong>do</strong><br />
como se procederá em seu âmbito <strong>uma</strong> investigação.<br />
É de <strong>uma</strong> perspectiva filosófica mais geral, situada no âmbito <strong>do</strong> que em estu<strong>do</strong>s<br />
anteriores propusemos se considerasse <strong>uma</strong> “filosofia da filosofia”, 2 que, em seguida,<br />
passamos a expender alg<strong>uma</strong>s considerações preliminares sobre a própria natureza <strong>do</strong>s<br />
pressupostos de um conhecimento filosófico, em contraste com aquele das ciências, sejam<br />
elas explicativas, empíricas ou formais, sejam compreensivas, como cost<strong>uma</strong>m ser aquelas<br />
mais voltadas para o fenômeno h<strong>uma</strong>no. Propomos que desta perspectiva os pressupostos<br />
filosóficos não sejam ti<strong>do</strong>s como axiomáticos, hipotéticos, nem muito menos <strong>do</strong>gmáticos,<br />
<strong>do</strong>nde se poder ainda diferenciar um campo específico de investigação para a filosofia.<br />
Também não seria característico <strong>do</strong> pensamento filosófico ter <strong>uma</strong> natureza conjetural, que<br />
o tornaria <strong>uma</strong> espécie de pensamento pré-científico, composto por assertivas plausíveis, a<br />
espera de comprovação. Nossa proposta é de que os pressupostos filosóficos, assim como<br />
<strong>uma</strong> investigação que a partir deles se pretende desenvolver, configuram-se dentro de <strong>uma</strong><br />
tradição que remonta aos chama<strong>do</strong>s “filósofos pré-socráticos” e se mantém perceptível até<br />
o presente, caracterizada por seu caráter originário, quer dizer - forçan<strong>do</strong> um pouco nossa<br />
língua para ser mais fiel ao mo<strong>do</strong> originário de expressão dessa idéia -, “principial”, <strong>do</strong><br />
latim princeps, enquanto tradução <strong>do</strong> grego arché, <strong>do</strong>nde se poder denominar essa<br />
característica peculiar da investigação filosófica, tal como certa feita propôs Martin<br />
Heidegger, de “arcôntica” (archontisch). 3 Também Husserl reporta-se a <strong>uma</strong> “meto<strong>do</strong>logia<br />
arqueológica” no Manuscrito C 16 IV, como nos reporta Nicoletta Ghigi, da Universidade<br />
de Perúgia (Itália), especialista em fenomenologia husserliana que vem desenvolven<strong>do</strong><br />
pesquisas sobre os manuscritos inéditos <strong>do</strong> Arquivo Husserl (Louvain, Bélgica). 4<br />
2 Cf., v.g., Willis Santiago Guerra Filho, Para <strong>uma</strong> Filosofia da Filosofia. Conceitos de Filosofia,<br />
2 a . ed., refundida, Fortaleza: Programa Editorial Alagadiço Novo da Casa de José de Alencar<br />
(Imprensa Universitária da Universidade Federal <strong>do</strong> Ceará), 1999.<br />
3 Cf. M. Heidegger, Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles. Einführung in die<br />
phänomenologische Forschung, Gesamtausgabe, vol. 61, Walter Bröcker e Käte Bröcker-Oltmanns<br />
(eds.), 2a. ed., Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 26.<br />
2
Em filosofia, portanto, em qualquer tema investiga<strong>do</strong>, seja levan<strong>do</strong> em conta o<br />
passa<strong>do</strong>, seja situan<strong>do</strong>-se em <strong>uma</strong> perspectiva sincrônica, há de se buscar as determinações<br />
fundamentais das questões que se coloca, as quais permaneceram presentes nas respostas a<br />
serem dadas. Além disso, essas respostas devem ocorrer nos moldes de um quadro<br />
explicativo que lhes dá um senti<strong>do</strong> mais abrangente, enquanto parte de <strong>uma</strong> explicação que<br />
se pretende integral, <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como se articula o conjunto dessas partes em um to<strong>do</strong><br />
significativo. É assim que, para Manfre<strong>do</strong> Araújo de Oliveira, “a filosofia se distingue das<br />
ciências particulares à medida que ela considera as coisas (os particulares) em seu<br />
relacionamento com o to<strong>do</strong>, à medida que pretende mostrar a presença <strong>do</strong> to<strong>do</strong> em to<strong>do</strong>s os<br />
particulares. Sua tarefa é reconhecer o to<strong>do</strong> no particular (para usar <strong>uma</strong> expressão de<br />
Schelling)” (grifos <strong>do</strong> A.). 5<br />
Bastante elucidativa se mostra a opção meto<strong>do</strong>lógica pela análise estrutural, assim<br />
como a propõe o professor suíço, da Universidade de Lausanne, André de Muralt. 6 A<br />
abordagem muraltiana, por ele mesmo denominada analítica e estrutural, é também - e, ao<br />
nosso ver, primeiramente - genética, ou, como propomos acima, “arcôntica”, tal como a<br />
própria filosofia. Isso porque as estruturas analisadas nas diversas <strong>do</strong>utrinas filosóficas se<br />
fariam presentes, de maneira mais clara, desde a primeira grande síntese – e, logo,<br />
literalmente, a primeira grande depuração - <strong>do</strong> pensamento filosófico, aquela aristotélica,<br />
4 Cf. http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/artigos04/ghigi01.htm, consulta<strong>do</strong> em 1 o ./10/2006.<br />
V. tb. Angela Ales Bello, Culturas e Religiões. Uma leitura fenomenológica, trad.: Antonio<br />
Angonese, Bauru (SP): EDUSC, 1998; Id., Fenomenologia e Ciências H<strong>uma</strong>nas, org, e trad.:<br />
Miguel Mahfoud e Marina Massimi, Bauru (SP): EDUSC, 2004, cap. 2, p. 187 ss.<br />
5 A Filosofia na Crise da Modernidade, São Paulo: Loyola, 1989, p. 157. Xavier Zubiri atribui a<br />
Aristóteles a primazia na identificação disto que se pode denominar a “catolicidade” da filosofia, ao<br />
se propor a estudar seu objeto em sua universalidade, e universal não apenas em seus conceitos, mas<br />
também no senti<strong>do</strong> de abarcar a totalidade das coisas, entenden<strong>do</strong> cada <strong>uma</strong> de acor<strong>do</strong> com seu<br />
lugar na totalidade dela. Cf., deste A., Cinco lecciones de filosofia, Madri: Alianza, 7 a . reimpr.,<br />
1999, p. 30; id. Sobre el Problema de la Filosofía y otros Escritos (1932 – 1944), Madri:<br />
Alianza/Fundación Xavier Zubiri, 2002, pp. 38/39; v. tb., sobre os diversos senti<strong>do</strong>s da<br />
“catolicidade” em Aristóteles, Oswal<strong>do</strong> Porchat Pereira, Ciência e Dialética em Aristóteles”, São<br />
Paulo: Ed. UNESP, 2001, pp. 152 ss.<br />
6 As fontes principais para se conhecer o méto<strong>do</strong> desenvolvi<strong>do</strong> por este autor, bem como os<br />
resulta<strong>do</strong>s a que chegou, aplican<strong>do</strong>-o à filosofia teorética, com ênfase no perío<strong>do</strong> medieval, são as<br />
seguintes: L´enjeu de la philosophie médiévale. Études thomistes, scotistes occaniennes et<br />
grégoriennes, 2 a . ed., Leiden et al.: 1993; Néoplatonisme et aristotélisme dans la métaphysique<br />
médievale, Paris: Vrin, 1995; A metafísica <strong>do</strong> fenômeno: as origens medievais e a elaboração <strong>do</strong><br />
pensamento fenomenológico, trad.: Paula Martins, São Paulo: 34, 1998. Já para a filosofia prática e<br />
política, a referência é a obra publicada originalmente em 2002, La estructura de la filosofia<br />
política moderna. Sus Orígenes medievales em Escoto, Ockham y Suárez, trad.: Valentín Fernández<br />
Polanco, Madri: Istmo, 2002.<br />
3
poden<strong>do</strong> se encontrar formas embrionárias dessas <strong>do</strong>utrinas nos pensa<strong>do</strong>res que o<br />
antecederam, bem como nos seus contemporâneos e pósteros. Após a sua explicitação, em<br />
Aristóteles, as diversas <strong>do</strong>utrinas filosóficas que se sucederam, assim como outras formas<br />
de pensamento que entraram em contato e se mesclaram com a filosofia, de natureza<br />
religiosa ou científica, vão se constituir por sobre essas estruturas, que são<br />
fundamentalmente duas, apoian<strong>do</strong>-se ora de maneira quase exclusiva sobre <strong>uma</strong> delas, ora<br />
sobre ambas, em maior ou menor medida. Como elementos básicos dessas estruturas tem-se<br />
a distinção aristotélica, proposta para a compreensão racional ou intelecção da realidade<br />
substancial em si mesma indiferenciada, entre o que nela é forma e o que é matéria. Os<br />
entes singulares, to<strong>do</strong>s e quaisquer, seriam transcendentalmente compostos de matéria e<br />
forma, consideran<strong>do</strong>-se como transcendental, pelo senti<strong>do</strong> etimológico mesmo, a relação<br />
que as atravessa (de transcendere) e vincula, embrican<strong>do</strong>-as, 7 mas também afirman<strong>do</strong>-as<br />
como, rigorosamente, diversas. Ocorre que a época que denominamos moderna, aquela que<br />
para muitos ainda é a da atualidade, vai se caracterizar pelo pre<strong>do</strong>mínio da cisão entre esses<br />
elementos, com <strong>uma</strong> afirmação <strong>do</strong> caráter independente da forma e conseqüente<br />
pre<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> formalismo, cuja crítica foi encetada com grave preocupação, nas primeiras<br />
décadas <strong>do</strong> século XX, por Edmund Husserl, tal como em seguida será examina<strong>do</strong>, de <strong>uma</strong><br />
maneira em que o discurso normalmente asséptico da academia aparecerá com freqüência<br />
ilustra<strong>do</strong> por alusões ao contexto histórico e, mesmo, vital ou existencial, de aparecimento<br />
das idéias aqui discutidas: desta forma, a argumentação já pretende se apresentar da<br />
maneira renovada que se entende deva ser mais cultivada entre os que nos dedicamos a<br />
produzir o conhecimento, de molde a que ele atenda a necessidades espirituais prementes<br />
da atualIdade.<br />
Daí a convicção de haver <strong>uma</strong> filosofia imanifesta, de que se precisa com urgência,<br />
com a urgência <strong>do</strong> desespero, para pensar temas impensa<strong>do</strong>s, nessa nossa época de muitos<br />
conhecimentos e pouco saber. Postulamos a possibilidade de semelhante filosofia em razão<br />
dessa nossa necessidade premente, <strong>uma</strong> necessidade <strong>do</strong> que em da<strong>do</strong>s momentos se<br />
praticou, sob o nome de “filosofia”, em nome da filo-sofia. Este anelo de saber é pouco<br />
perceptível em nossos dias e já de há algum tempo. Não por acaso, como se pretende<br />
evidenciar ao longo da presente exposição, a ausência de filosofia, <strong>uma</strong> “filosofia de<br />
primeira mão”, se verifica na própria produção filosófica acadêmica, nas teses,<br />
7 Cf. A. de Muralt, Néoplatonisme et aristotélisme, cit., p. 55.<br />
4
dissertações, ensaios, monografias e livros, em geral subordinadas a normas e convenções,<br />
além de arranjos institucionais ou, mesmo, vaidades e interesses políticos, tanto<br />
universitários como até de outra ordem, maior. É o que, em certo senti<strong>do</strong>, se pode<br />
denominar “paradigma”.<br />
Paradigmas nos constrangem a evitar o tratamento em profundidade – ou mesmo<br />
superficialmente – das questões que motivaram o surgimento da filosofia e é a fonte perene<br />
– enquanto houverem seres h<strong>uma</strong>nos, pelo menos – de sua permanência, apesar de toda a<br />
escassez que hoje enfrentamos. O paradigma nos proíbe e impede de buscar esta fonte<br />
perdida, de nos abeberarmos nela e, com isso, ao escavarmos para encontrá-la, fazê-la<br />
aflorar, jorrar.<br />
A forma de expressão que aqui se está buscan<strong>do</strong> já denota a intenção fundamental<br />
que nos move na realização <strong>do</strong> presente texto, de promover <strong>uma</strong> (re)aproximação da<br />
filosofia a um mo<strong>do</strong> poético, mais que científico (ou religioso), de desenvolver a reflexão e<br />
sua exposição. Com isso não se pretende invalidar os esforços que em geral fazem os<br />
estudiosos de filosofia, quan<strong>do</strong> se dedicam à exegese <strong>do</strong> que escreveram os filósofos,<br />
normalmente aqueles <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> e, em raros casos, alguns poucos contemporâneos – e,<br />
mais raramente ainda, em nosso País, conterrâneos -, que ousaram (ousam) elaborar um<br />
pensamento (mais) próprio. “Próprio”, aqui, entenda-se no duplo senti<strong>do</strong> da palavra, em<br />
que este pensamento tanto aparece como original, originário <strong>do</strong> próprio sujeito, como<br />
apropria<strong>do</strong> ao que se pode considerar assunto da filosofia. Ocorre que, no mo<strong>do</strong> de ver aqui<br />
proposto, realizar um trabalho em filosofia que mais se aproxima de parâmetros científicos,<br />
sejam das ciências h<strong>uma</strong>nas, sejam de ciências naturais ou formais, como se dá,<br />
comumente, no âmbito da filosofia de corte analítico, significa desviar-se <strong>do</strong> que mais<br />
direta e imediatamente interessa tratar em filosofia. Assim, por exemplo, se é da filosofia<br />
que resultou a postura científica de tratar as questões, sua epistéme, aquilo que se pretende<br />
conhecer/saber pela filosofia é justamente o que não interessa às ciências, <strong>do</strong> que elas não<br />
se ocupam, até porque as põem questão: elas próprias, seus objetivos, para além <strong>do</strong><br />
conhecimento que fornecem e das possibilidades de ação/interação/alteração <strong>do</strong> que<br />
estudam. Mesmo <strong>uma</strong> “ciência da ciência” não é filosofia, não se voltaria para pensar o que<br />
aqui se propõe deva acolher a filosofia, em face da urgência desse acolhimento e ten<strong>do</strong> em<br />
vista que ela já esteve voltada para esse pensar, antes de se perder e exaurir nas ciências. A<br />
urgência desse pensamento em nosso tempo se explica justamente em razão <strong>do</strong> que nele<br />
5
vem-se produzin<strong>do</strong>, sob a influência <strong>do</strong> pre<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> pensamento técnico-científico – e o<br />
pensamento técnico, vale destacar, desde sempre e cada vez mais remete ao pensamento<br />
que a filosofia tornou científico, e vice-versa. Antes da ciência se tornar o que hoje – e<br />
desde já há algum tempo – ela se tornou, ela existiu embrionariamente enquanto técnica,<br />
faltan<strong>do</strong> apenas o encontro histórico com a filosofia, primeiro, e, depois, com a religião<br />
monoteísta e personalista, de Deus onipotente feito homem, o cristianismo, para que se<br />
verificassem os pressupostos mais importantes, no plano ideológico, de seu completo<br />
desenvolvimento.<br />
A filosofia que se busca, então, precisa estar fora <strong>do</strong> círculo em que seus cultores a<br />
aprisionaram e ali a mantém, quan<strong>do</strong> trabalham “tecnicamente”, pon<strong>do</strong>-se a serviço <strong>do</strong><br />
desenvolvimento de um saber cada vez maior, no menor espaço de tempo, sem parar e se<br />
perguntar <strong>do</strong> por quê, para quê. E é essa escalada desenfreada para o saber que é um saber-<br />
fazer (know how), característica da (tecno)ciência, que tantos problemas vem<br />
solucionan<strong>do</strong>, ao mesmo tempo em que muitos outros vai crian<strong>do</strong> – e, principalmente,<br />
deixan<strong>do</strong> de enfrentar o chama<strong>do</strong> “absolutismo da realidade” (Hans Blumenberg), por<br />
promover mais e mais o afastamento dela, evitan<strong>do</strong> que nos confrontemos com ela, o que<br />
exige um tipo de saber mais próximo da religião e, portanto, mais distancia<strong>do</strong> da ciência:<br />
surgem, assim, questões que colocam em questão essa mesma ciência e o mo<strong>do</strong> de<br />
organização social (também política, jurídica e, sobretu<strong>do</strong>, econômica) que a criou, sustenta<br />
e nela se sustenta. Não é de estranhar, portanto, que tais questões não sejam tratadas e<br />
sejam mesmo, de certa forma, descartadas. Delas, tradicionalmente, se ocupam as religiões,<br />
e não há lugar para elas, tanto as religiões como tais questões, na sociedade mundial<br />
tecnocientífica contemporânea, que tem na secularização um <strong>do</strong>s pressupostos de seu<br />
aparecimento e manutenção.<br />
O tipo de discurso filosófico que se pretende ver desenvolvi<strong>do</strong> proponho que o<br />
consideremos, em um senti<strong>do</strong> amplo, um discurso ficcional, em prosa, mas que seja<br />
poético, ou melhor, poiético (<strong>do</strong> grego poiesis, “fazer”, “produzir”) – e, logo, também,<br />
pragmático. 8 É um discurso que põe <strong>uma</strong> verdade onde se fez <strong>uma</strong> questão. Esta verdade<br />
8 Vale lembrar, nesse ponto, a importância da crítica (neo)pragmatista aos conceitos tradicionais de<br />
verdade e também à distinção entre ciência e não-ciência, de importância decisiva para um<br />
“enfraquecimento” <strong>do</strong> pre<strong>do</strong>mínio científico no campo <strong>do</strong> saber, favorecen<strong>do</strong>, assim, a libertação da<br />
filosofia para desenvolver-se autonomamente. A propósito, cf., v.g., Ghiraldelli Jr., Filosofia da<br />
Educação e Ensino: Perspectivas Neopragmáticas, Ijuí: Unijuí, 2000, p. 43 ss. e Rorty,<br />
Pragmatismo: A filosofia da criação e da mudança, trad. e org. Cristina Magro e Antonio Marcos<br />
6
ocorrerá para os que compartilharem deste discurso, visto que ela só existe nele, é <strong>uma</strong><br />
“verdade de discurso”, e o discurso depende de quem discorra para existir. A aceitação de<br />
<strong>uma</strong> tal verdade vai depender da sua boa construção no discurso, de sua verossimilhança –<br />
dela não se pode dizer, como se diz em um contexto propriamente científico, ou mesmo<br />
filosófico, que é falsa, mas que não convence ou não agrada, pois seu registro antes de ser<br />
epistemológico, é estético e lúdico. 9 Nosso objetivo terá si<strong>do</strong> alcança<strong>do</strong> se ao final, mesmo<br />
os mais céticos, possam dizer a respeito algo como o famoso dito italiano: se non è vero, è<br />
bene trovato. 10<br />
O que aqui se propõe, então, é a realização de trabalho em que não se pretende nada<br />
além de fazer <strong>uma</strong> boa prosa filosófica. Um discurso dessa natureza há de ser,<br />
necessariamente, bem mais livre e criativo que os discursos filosóficos e científicos, em<br />
geral – para não falar de outros, como aqueles da religião, mitologia, psicanálise e, mesmo,<br />
aqueles estritamente literários. Aqui não temos compromissos com nenh<strong>uma</strong> tradição, com<br />
<strong>do</strong>gmas, teoremas, axiomas, <strong>do</strong>utrinas, figuras ou personagens, pois queremos fazer a<br />
experiência <strong>do</strong> pensamento da origem, da raiz, o pensamento original, radical. Isso não quer<br />
de mo<strong>do</strong> algum significar que iremos apelar para <strong>uma</strong> espécie de fabulação, para a<br />
invencionice. O discurso, para ser verossímil e persuasivo, para nos agradar, deve ser<br />
construí<strong>do</strong> toman<strong>do</strong> elementos da realidade, <strong>do</strong> que compartilhamos de mais elementar,<br />
completan<strong>do</strong>-os e, por assim dizer, cimentan<strong>do</strong>-os com a argamassa de nossos sonhos, os<br />
que temos <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> ou acorda<strong>do</strong>s, pois são a expressão de nossos maiores desejos, os<br />
desejos de saber. 11 Daí podermos postular a produção de um discurso puramente<br />
imaginativo, e bastante revela<strong>do</strong>r. 12 Do que se trata, então, é verdadeiramente de realizar<br />
Pereira, Belo Horizonte: UFMG, 2000, p. 40 ss.<br />
9 Do que se trata, então, é de “jogar” com o ant-agonismo da filosofia e da ciência, buscan<strong>do</strong> defini-las<br />
no contexto <strong>do</strong> que Wittgenstein, na segunda fase de seu pensamento, denominou “jogo de<br />
linguagem” (Sprachspiele).<br />
10 Para <strong>uma</strong> exposição <strong>do</strong> intenso debate contemporâneo sobre o valor heurístico da ficção,<br />
inclusive no âmbito da filosofia analítica, cf. Gottfried Gabriel, “Sobre o Significa<strong>do</strong> na Literatura<br />
e o Valor Cognitivo da Ficção”, in: O que nos faz pensar: Cadernos <strong>do</strong> Departamento de Filosofia<br />
da PUC-Rio, n. 7, 1993, p. 63 ss.<br />
11 “Tampouco isto foi descoberto pela razão”, podemos dizer com Kierkegaard, Migajas Filosóficas<br />
o un poco de filosofía, trad. Rafael Larrañeta, Trotta, Madri, 1997, p. 64, “posto que esta fala pela<br />
boca <strong>do</strong> para<strong>do</strong>xo se diz a si mesma: as comédias, as novelas e as mentiras têm de ser<br />
verossímeis....” – caso se queira que elas atinjam seus objetivos.<br />
12 Neste senti<strong>do</strong>, me parece que um <strong>do</strong>s objetivos seria o de realizar, no campo <strong>do</strong> pensamento, o<br />
que no campo puramente ficcional certos autores realizam quan<strong>do</strong> fazem o que Deleuze/Guattari,<br />
Kafka. Por <strong>uma</strong> literatura menor, Rio de Janeiro: Imago, 1977 chamam de “literatura menor”, que é<br />
7
um trabalho imaginativo, ficcional, que se avalia – e avaliza - por seus efeitos. É assim<br />
que, dessa perspectiva, mitologia, filosofia, direito ou religião e mesmo as ciências são<br />
literatura, 13 ficções, pois o que se pretende fazer é contar <strong>uma</strong> história o melhor possível,<br />
para torná-la verossímil, dan<strong>do</strong> um senti<strong>do</strong> às nossas vidas, mesmo quan<strong>do</strong> se diz, como o<br />
jurista romano <strong>do</strong> século II, depois teólogo cristão, o primeiro, além de filósofo, Tertuliano:<br />
creio, ainda que pareça - ou mesmo porque parece - absur<strong>do</strong>.<br />
a literatura necessariamente revolucionária daqueles que estão à margem, “desterritorializa<strong>do</strong>s”, a<br />
ponto de empregarem para fazer literatura a linguagem <strong>do</strong> “coloniza<strong>do</strong>r”, daqueles que exercem o<br />
<strong>do</strong>mínio político e lingüístico no território em que habita o povo <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> – lembremos, aqui, que<br />
em sua origem romano, o territorium é o local onde se demarca o <strong>do</strong>minium pelo exercício <strong>do</strong><br />
terror. Entende-se, assim, porque aquilo de mais destaque que se tem produzi<strong>do</strong> em nosso País, em<br />
termos culturais, é de se considerar, em senti<strong>do</strong> amplo, como literatura – e aqui não estou pensan<strong>do</strong><br />
apenas na literatura em um senti<strong>do</strong> mais tradicional, mas também em gêneros como a música<br />
popular e as telenovelas. Para <strong>uma</strong> extensão <strong>do</strong> conceito de “literatura menor” de Deleuze/Guattari<br />
para com ele abranger – e explicar – a teologia, cf. Winquist, Desiring Theology, Chicago/Londres:<br />
University of Chicago Press, 1995. Uma “hermenêutica imaginativa” é preconizada por Márcia Sá<br />
Cavalcante Schuback (“Para ler os medievais. Ensaio de hermenêutica imaginativa”, Petrópolis:<br />
Vozes, 2000), a fim de termos melhor acesso a autores marca<strong>do</strong>s pela <strong>uma</strong> visão teologia, com são<br />
os medievais, <strong>do</strong>s quais também nos ocuparemos, ao longo <strong>do</strong> presente estu<strong>do</strong>, em que se busca<br />
recuperar <strong>uma</strong> unidade perdida na tradição <strong>do</strong> pensamento desde suas origens filosóficas até o<br />
presente – “tradição” aqui entendida como propõe Husserl no manuscrito sobre a origem da<br />
geometria escrito em 1936, edita<strong>do</strong> e publica<strong>do</strong> (começan<strong>do</strong> com o terceiro parágrafo) por Eugen<br />
Fink na Revue Internationale de Philosophie, vol. 1, n º 2 (1939), sob o título “Der Ursprung der<br />
Geometrie als intentional-historisches Problem”, que aparece em Die Krisis der europäischen<br />
Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie, edita<strong>do</strong> por W. Biemel, La Haya:<br />
Martinus Nijhoff, col Husserliana, Vol. 6, 1962, como “Beilage III”, pp. 365-86, nos seguintes<br />
termos: “A geometria que está pronta, por assim dizer, a partir da qual o inquérito regressivo<br />
começa, é <strong>uma</strong> tradição. Nossa existência h<strong>uma</strong>na se move dentro de inumeráveis tradições. O<br />
mun<strong>do</strong> cultural to<strong>do</strong>, em todas as suas formas, existe por meio da tradição. Estas formas surgiram<br />
como tal não apenas casualmente; também já sabemos que tradição é precisamente tradição, ten<strong>do</strong><br />
surgi<strong>do</strong> dentro <strong>do</strong> nosso espaço h<strong>uma</strong>no através da atividade h<strong>uma</strong>na, isto é, espiritualmente,<br />
mesmo embora geralmente nada saibamos, ou quase nada, da proveniência particular e da origem<br />
espiritual que as trouxeram. E ainda lá jaz nesta falta de conhecimento, em qualquer lugar e<br />
essencialmente, um conhecimento implícito que pode, assim também, ser torna<strong>do</strong> explícito, um<br />
conhecimento da evidência inacessível. Começa com lugares comuns superficiais, tais como: que<br />
tu<strong>do</strong> tradicional surgiu da atividade h<strong>uma</strong>na, que de acor<strong>do</strong> com isto homens passa<strong>do</strong>s e<br />
civilizações h<strong>uma</strong>nas existiram, e entre elas seus primeiros inventores, que modelaram o novo a<br />
partir de materiais à mão, quer fossem brutos ou já modela<strong>do</strong>s espiritualmente. Da superfície,<br />
contu<strong>do</strong>, é–se leva<strong>do</strong> às profundezas. A tradição é aberta deste mo<strong>do</strong> geral a inquérito contínuo; e se<br />
se mantiver consistentemente a direção <strong>do</strong> inquérito, <strong>uma</strong> infinidade de questões que ainda está<br />
presente para nós, e ainda está sen<strong>do</strong> elaborada num desenvolvimento vivo, se descortinam questões<br />
que levam a respostas definidas de acor<strong>do</strong> com o seu senti<strong>do</strong>”. Trad. <strong>do</strong> inglês para o português por<br />
Maria Aparecida Viggiani Bicu<strong>do</strong>. Departamento de Matemática e Estatística, Instituto de<br />
Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro, UNESP, 1980, disponível na página da SE&PQ –<br />
Sociedade de Estu<strong>do</strong>s e Pesquisa Qualitativos em http://www.sepq.org.br/ maria.htm.<br />
8
Nesse contexto, é de um saber prático que se trata, o qual pode ser caracteriza<strong>do</strong><br />
como aquele que indica como algo pode ser feito, <strong>uma</strong> vez que se decidiu fazê-lo,<br />
estabelecen<strong>do</strong> <strong>uma</strong> verdade onde se faz <strong>uma</strong> questão. A teologia foi considerada um saber<br />
prático já por John Duns Scot (1266 – 1308). Também como ele, 14 pode-se defender que <strong>do</strong><br />
Ser de Deus, o cria<strong>do</strong>r, ser-em-si, deve-se falar como <strong>do</strong> ser <strong>do</strong>s entes, as criaturas, em um<br />
senti<strong>do</strong> unívoco e não, por exemplo, como em Tomás de Aquino, em senti<strong>do</strong> análogo.<br />
Imaginan<strong>do</strong>, então, que to<strong>do</strong> o Universo é um ente, um indivíduo, Deus poderia ser nele o<br />
que a mente é em nós, seus “senti<strong>do</strong>s internos”. Eis <strong>uma</strong> resposta possível, viável, <strong>do</strong> ponto<br />
de vista prático, para <strong>uma</strong> questão de impossível solução, sob o aspecto teórico. Dessa<br />
resposta pode-se fazer um apoio inconteste para a construção de um saber que, além de<br />
prático, seria também, <strong>do</strong>gmático.<br />
Dogmático, aqui, não é de se confundir com <strong>do</strong>gmatismo. Como já registramos em<br />
outro trabalho, 15 toda afirmação de um conhecimento que desconsidere o ceticismo pode ser<br />
tida como <strong>do</strong>gmática. Dogmático é afirmar como certo um ponto de partida para <strong>uma</strong><br />
argumentação, que pode perfeitamente, no final, ser revisto. Não ser cético é diferente de<br />
não ser crítico, de se imunizar contra a crítica. O ceticismo pode ser visto como um<br />
<strong>do</strong>gmatismo.<br />
Nesse senti<strong>do</strong>, mesmo o pensamento matemático pode ser <strong>do</strong>gmático, como se<br />
percebe estudan<strong>do</strong> a “lógica das formas”, de Spencer Brown, pois parte de <strong>uma</strong> distinção<br />
inicial, estabelecida para efeito de cálculo. 16 E afinal, a palavra “axioma”, em sua origem<br />
13 Nesse contexto, vale recordar palavras de Gilles Deleuze, em sua última publicação, Crítica e<br />
Clínica, São Paulo: 34, 1997, p. 13 ss.: “Não se escreve com as próprias neuroses. A neurose, a<br />
psicose não são passagens da vida, mas esta<strong>do</strong>s em que se cai quan<strong>do</strong> o processo é interrompi<strong>do</strong>,<br />
impedi<strong>do</strong>, colmata<strong>do</strong> .(...) por isso o escritor, enquanto tal, não é <strong>do</strong>ente, mas antes médico, médico<br />
de si próprio e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. O mun<strong>do</strong> é o conjunto de sintomas cuja <strong>do</strong>ença se confunde com o<br />
homem. A literatura aparece, então, como um empreendimento de saúde: (...) A saúde como<br />
literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta. Compete à função fabula<strong>do</strong>ra<br />
inventar um povo. (...) Embora remeta sempre a agentes singulares, a literatura é agenciamento<br />
coletivo de enunciação. (...) Fim último da literatura: pôr em evidência no delírio essa criação de<br />
<strong>uma</strong> saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, <strong>uma</strong> possibilidade de vida. Escrever por este povo<br />
que falta...(...) ‘Cada escritor é obriga<strong>do</strong> a fabricar para si sua língua...’ (...) O escritor como vidente<br />
e ouvi<strong>do</strong>r, finalidade da literatura: é a passagem da vida na linguagem que constitui as Idéias”.<br />
14 E antes dele, influencian<strong>do</strong>-o, Avicena ou Ibn Sînâ – cf. Miguel Attiê Filho, Os Senti<strong>do</strong>s internos<br />
em Ibn Sînâ (Avicena), Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 31.<br />
15 Cf. Willis Santiago Guerra Filho, ob. ult. cit., p. 158, texto e nota 13. A colocação, na verdade, se<br />
deve a Edmund Husserl. Já Kant, porém, quan<strong>do</strong> propõe o seu “juízo sintético a priori”, como meio<br />
de superar a oposição entre <strong>do</strong>gmáticos e céticos, se lhe atribui a natureza de um <strong>do</strong>gma - cf. Kritik<br />
der reinen Vernunft, A 736, D 764.<br />
16 Cf. Willis Santiago Guerra Filho, id. ib., p. 48 ss.<br />
9
grega, denota seu parentesco com o <strong>do</strong>gma, pois significava <strong>uma</strong> opinião tida como<br />
verdadeira por gozar de prestígio, sen<strong>do</strong>, por isso, auto-demonstrada. Daí ter Pierre<br />
Legendre relaciona<strong>do</strong> estreitamente o axioma com o <strong>do</strong>gma, referin<strong>do</strong> ainda a dimensão<br />
“decorativa”, “nobiliárquica” de ambas as palavras, expressa em equivalentes latinos como<br />
dignitas e decus. 17 O pensamento <strong>do</strong>gmático, portanto, pode perfeitamente ser científico<br />
– e ainda mais.<br />
Dogmático, etimologicamente, vem <strong>do</strong> grego <strong>do</strong>xa, “parecer”, “opinião”, 18 <strong>do</strong>nde<br />
resulta o verbo <strong>do</strong>kein, que é o <strong>do</strong>cere latino e, logo, também, o ensino. 19 Um saber<br />
<strong>do</strong>gmático, nesse senti<strong>do</strong>, é um saber volta<strong>do</strong> para o ensino, e que, em sen<strong>do</strong> assim, se<br />
ampara em <strong>uma</strong> estrutura de poder, em <strong>uma</strong> autoridade. 20 Não por acaso um <strong>do</strong>s raros<br />
saberes atuais que ainda se assumem como <strong>do</strong>gmáticos é aquele da chamada “ciência<br />
jurídica em senti<strong>do</strong> estrito”, a herdeira da jurisprudentia romana. O <strong>do</strong>gma, em teologia,<br />
como em direito e em filosofia, é um critério de decisão, <strong>uma</strong> norma posta acima <strong>do</strong><br />
questionamento de sua verdade, para afirmar-se sua validade, ao invés de sua verdade,<br />
valor que a filosofia compartilha antes com a ciência.<br />
Em que se diferenciam, então, ciência e filosofia? Bem, para marcar essa diferença,<br />
podemos começar dizen<strong>do</strong> que a ciência nós a aprendemos, decorre de um aprendiza<strong>do</strong>, de<br />
um treinamento, que nos é ensina<strong>do</strong> e que depois podemos ensinar. Com a filosofia, no que<br />
ela é propriamente filosófica, e não “científica” ou “técnica” – pois há <strong>uma</strong> “ciência da<br />
filosofia”, um treinamento e transmissão de um saber filosófico acumula<strong>do</strong>, por vezes<br />
bastante técnico, a ponto de impossibilitar sua compreensão pelos não-inicia<strong>do</strong>s -, ocorre o<br />
contrário: temos de re-aprendê-la.<br />
17 Cf. P. Legendre, Leçons II: L’Empire de la Veritè. Introductions aux espaces <strong>do</strong>gmatiques<br />
industriels, Paris: Fayard, 1983, p. 19 e 30.<br />
18 A que Platão opunha a epistéme própria da filosofia, sem deixar de reconhecer o <strong>do</strong>mínio restrito<br />
desta última aos assuntos especulativos, excluin<strong>do</strong>, portanto, aqueles práticos, da téchne, onde se<br />
situa a moral, o direito e a religião (v. República, 538; Leis, 644). Já os céticos opunham se<br />
generalizadamente a to<strong>do</strong> conhecimento, como <strong>do</strong>gmático, preconizan<strong>do</strong> a epoché, a suspensão <strong>do</strong><br />
juízo e <strong>do</strong> assentimento. Husserl, como é sabi<strong>do</strong>, fará uso desse expediente para ir ao encontro de<br />
um saber superior, essencial, “eidético”.<br />
19 Para M. Herberger, Dogmatik: Zur Geschichte von Begriff und Methode in Medizin und<br />
Jurisprudenz, Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1981, os saberes <strong>do</strong>gmáticos por<br />
excelência, na história ocidental, são os <strong>do</strong> <strong>Direito</strong> e da Medicina.<br />
20 Cf., v.g., Novo Testamento, Lucas, 2:1; Cícero, apud Sílvio de Mace<strong>do</strong>, <strong>Introdução</strong> à Filosofia<br />
<strong>do</strong> <strong>Direito</strong>, 3 ª ed. São Paulo: RT, 1993, p. 34.<br />
10
Sim, porque originalmente somos to<strong>do</strong>s filósofos, a criança filosofa quan<strong>do</strong> ascende<br />
à consciência, e o a<strong>do</strong>lescente ainda mais. É apenas em um senti<strong>do</strong> técnico, restrito ou<br />
literal que a filosofia surge apenas na Grécia antiga – e, para alguns filósofos (?!), teria<br />
desapareci<strong>do</strong> em nossos dias, ou já com Hegel, no século passa<strong>do</strong>, que teria si<strong>do</strong> o último<br />
filósofo, 21 tal como o foi Platão. É esse mesmo Platão que vai se referir, na esteira de seu<br />
mestre Sócrates – que penso só não pode ser considera<strong>do</strong> um filósofo como o foi seu<br />
discípulo por não ter pratica<strong>do</strong> a escrita de sua filosofia, mas vivi<strong>do</strong>-a até o seu último<br />
instante – ao processo privilegia<strong>do</strong> de conhecer, que será o da filosofia - antes de ser o da<br />
ciência -, como um processo de rememoramento, <strong>uma</strong> anamnésis, isto é, literalmente, um<br />
“desesquecimento”. Sabemos não ser no senti<strong>do</strong> aqui referi<strong>do</strong> que o termo é emprega<strong>do</strong> por<br />
Platão, ou, pelo menos, na leitura estabelecida de Platão, visto que o filósofo, na “Sétima<br />
Carta”, lembra <strong>do</strong> exílio político a seus amigos que a parte escrita de sua obra contem<br />
apenas <strong>uma</strong> meia-verdade, pois a verdade toda não se deixa - nem se deve – transmitir por<br />
este meio frio, mas apenas pelo contato pessoal e direto <strong>do</strong> mestre com seus discípulos.<br />
Então, é de se considerar possível haver algo em comum entre a anamnésis socrático-<br />
platônica e aquela ora referida, embora o que pretendemos recuperar por este processo não<br />
seja conteú<strong>do</strong>s perdi<strong>do</strong>s de conhecimentos apresenta<strong>do</strong>s em respostas certas, mas <strong>uma</strong> certa<br />
postura de questionar, <strong>uma</strong> epistéme. A etimologia da palavra, como de costume, é<br />
esclarece<strong>do</strong>ra: gr. - epístasthai, epi-histamai: “sich in der erforderten Haltung etwas<br />
gegenüberstellen”. 22<br />
Esta postura é própria de nós h<strong>uma</strong>nos, é <strong>uma</strong> aptidão que temos, tal como andar<br />
apoia<strong>do</strong>s apenas sobre os pés, eretos, e falarmos, haven<strong>do</strong> sem dúvida <strong>uma</strong> correlação entre<br />
essas três aptidões. Isso não quer dizer que não haja h<strong>uma</strong>nos que não exerçam alg<strong>uma</strong><br />
dessas aptidões, sem que por isso deixem de ser h<strong>uma</strong>nos, mas são porta<strong>do</strong>res de <strong>uma</strong><br />
deficiência, de um handicap.<br />
21 Tal idéia se deve a Heidegger, aparecen<strong>do</strong> aludida em textos tais como “Que é isto - a<br />
Filosofia?”, “O Fim da Filosofia e a Tarefa <strong>do</strong> Pensamento” e, explicitamente, em “Hegel e o<br />
Gregos”. Cf. o volume dedica<strong>do</strong> a ele na Coleção Os Pensa<strong>do</strong>res (trad.: Ernil<strong>do</strong> Stein, São Paulo:<br />
Abril Cultural, 1979, pp. 14, 72 e 205) - “Ao dizermos ‘os gregos’ pensamos no começo da<br />
filosofia, e ao nome ‘Hegel’ associamos sua cons<strong>uma</strong>ção”. V. tb. Kostas Axelos, <strong>Introdução</strong> ao<br />
Pensamento Futuro, trad. Emmanuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969, p. 19.<br />
22 Hofmann, Etymologisches Worterbuch der Griechischen Sprache. Em vernáculo: "colocar-se na<br />
posição exigida em relação a algo".<br />
11
Pois bem. Se aqueles que são porta<strong>do</strong>res de deficiências como a paralisia e a mudez<br />
são minoria, e inclusive chegam a ter dificuldade para levar <strong>uma</strong> vida normal em<br />
sociedades feitas por e para os que não têm tais dificuldades, com relação ao hábito de<br />
pensar sobre as questões fundamentais deu-se exatamente o contrário, na medida em que<br />
são minoria os que a elas se dedicam, sen<strong>do</strong> por isso marginaliza<strong>do</strong>s em sociedades, como a<br />
nossa, <strong>do</strong>minadas por <strong>uma</strong> razão técnica e científica, ou melhor, técnico-científica, com o<br />
apoio <strong>do</strong> pensamento “didático-filosófico”, professa<strong>do</strong> das mais diversas formas, desde<br />
aquela mais propriamente acadêmica, até aquelas religiosas, passan<strong>do</strong> por outras, mais<br />
recentes, como a midiática, e aquelas, mais antigas, como a político-ideológica.<br />
Se a filosofia, o conhecimento filosófico, visa a rememoração, ele se volta para o<br />
passa<strong>do</strong>, ao contrário <strong>do</strong> conhecimento científico, que quer prever o futuro, <strong>do</strong>nde ele se<br />
apresentar como essencialmente matemático, como cálculo. É pelo cálculo que na ciência<br />
se preserva o conhecimento adquiri<strong>do</strong> e se adquire conhecimento novo. É pelo cálculo que<br />
se transmite esse conhecimento e, mesmo, se gera tal conhecimento, não sen<strong>do</strong> de se<br />
estranhar, portanto, que o aperfeiçoamento de nossa matemática implique, também, em um<br />
aperfeiçoamento de nossas ciências.<br />
Já para a filosofia, no que ela tem de mais próprio, o progresso da razão matemática<br />
significa muito menos <strong>do</strong> que para a ciência. Mesmo porque em filosofia, ao contrário <strong>do</strong><br />
que ocorre em relação à ciência, não se pode falar da mesma forma em um progresso <strong>do</strong><br />
conhecimento, já que as mesmas questões constantemente são retomadas, a elas sempre<br />
estamos retornan<strong>do</strong>, e as soluções que foram dadas no passa<strong>do</strong>, sem dúvida, nos servem<br />
para elaborar as nossas, mas isso porque não são - ou não foram – soluções iguais àquelas<br />
dadas aos problemas científicos.<br />
A filosofia, então, não resolve problemas tal como faz a ciência, <strong>do</strong>nde ela não ter a<br />
utilidade que tem esta última, sempre conversível em tecnologia e técnicas, que a<br />
retroalimentam. Assim, não faz sequer senti<strong>do</strong> perguntarmos para quê a filosofia, tal como<br />
podemos perfeitamente perguntar: para quem é a filosofia?<br />
A interrogação filosófica é intrínseca ao ser h<strong>uma</strong>no, como bem perceberam<br />
filósofos tão diversos como Schopenhauer, no “Aden<strong>do</strong>” da 2 ª ed. de seu “O Mun<strong>do</strong> como<br />
Vontade e Representação”, Gramsci e Ortega y Gasset. 23 As respostas dadas pela filosofia a<br />
23 Cf. Gramsci, <strong>Introdução</strong> à Filosofia da Praxis, Lisboa: Antí<strong>do</strong>to, 1978, p. 9; Ortega y Gasset,<br />
José - “Qué es Filosofía?”, in: Id., Obras Completas, vol. VII, Madrid: Alianza Editorial, 1983, p.<br />
12
essa interrogação, contu<strong>do</strong>, estão cada vez menos satisfatórias, ao contrário <strong>do</strong> que ocorre<br />
com as respostas aos problemas científicos, mesmo porque, em contraste com a ciência, a<br />
filosofia é bem menos praticada e bem mais desacreditada, <strong>do</strong>nde não haver grandes<br />
expectativas em relação ao que ela pode nos oferecer - e ela não tem ofereci<strong>do</strong> muito<br />
mesmo.<br />
Aqui se evidencia com toda nitidez a importância de distinguirmos os problemas<br />
filosóficos daqueles científicos e, logo, diferenciarmos a filosofia da ciência. A situação é<br />
esclarecida de forma lapidar pela proposição 6.52 <strong>do</strong> “Tractatus logico-philosophicus”, de<br />
Wittgenstein: “Sentimos, que mesmo caso todas as questões científicas fossem resolvidas,<br />
nossos problemas da vida (Lebensprobleme) sequer seriam toca<strong>do</strong>s”. Os problemas da<br />
filosofia, em um senti<strong>do</strong> bem diverso daqueles da ciência, são problemas vitais, problemas<br />
especiais destes seres especialíssimos que somos nós os h<strong>uma</strong>nos.<br />
A filosofia, como indica a própria etimologia da palavra, surge como um anelo, <strong>uma</strong><br />
nostalgia da sabe<strong>do</strong>ria “sobreh<strong>uma</strong>na” (sophia), para nós perdida, e perdida já naquela<br />
época em que surgiu pelo aparecimento das <strong>do</strong>utrinas <strong>do</strong>s que estudavam a physis, a<br />
natureza (de todas as coisas), os “físicos”. Uma das acusações contra Sócrates, no processo<br />
que os atenienses moveram contra ele – e, também, contra a filosofia, que com ele<br />
propriamente se iniciava -, foi a de ele praticar a física, sen<strong>do</strong> esta acusação a que ele<br />
repudiou com mais veemência. Já aquela de que apregoava a substituição <strong>do</strong>s deuses<br />
oficiais por se referir sempre ao seu daimon pessoal foi descartada com a costumeira (e<br />
sábia) ironia...<br />
Do que se trata, então, é de libertar a filosofia <strong>do</strong> jugo e dependência das ciências,<br />
para que ela (e nós) deixe(mos) de ser sua serva, como antes fora da teologia. Essa filosofia<br />
livre, como a arte, poderá ser a expressão cultural legítima de um povo como o nosso, que<br />
se antecipou, em sua formação, ao processo de miscigenação em que agora o mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong><br />
se encontra envolvi<strong>do</strong>, <strong>do</strong>nde ela poder se alçar a um patamar de universalidade, por sua<br />
originalidade, seu enraizamento em um solo próprio – é o que nos propõe Roberto Gomes,<br />
em sua “Crítica da Razão Tupiniquim”, na esteira de grandes pensa<strong>do</strong>res brasileiros,<br />
comprometi<strong>do</strong>s com seu tempo e sua gente, como foi Oswald de Andrade: pautemo-nos por<br />
eles.<br />
273 ss., esp. 330.<br />
13
Para Platão, por exemplo, a filosofia é seria "epistéme epistemés", "ciência da<br />
ciência", enquanto Aristóteles, na "Metafísica" (Livro VII ou zetha, 1), a define como<br />
"epistéme ton próton arkhôn kaì aítion theoretiké", conhecimento <strong>do</strong>s primeiros princípios<br />
e causas explicativos de tu<strong>do</strong>. Comentan<strong>do</strong> essa passagem, Heidegger, no texto "Que é isto,<br />
a filosofia?", recorda que epistéme deriva de epistámenos, que seria aquela pessoa<br />
vocacionada e competente para <strong>uma</strong> determinada atividade - no caso da filosofia, a<br />
atividade de teorizar, sen<strong>do</strong> a theoria o que os gregos considerariam propriamente a<br />
ciência, saber contemplativo das verdades universais, eternas e transcendentes, que, no<br />
princípio <strong>do</strong> livro apenas cita<strong>do</strong> de Aristóteles, é considera<strong>do</strong> um conhecimento através <strong>do</strong><br />
qual os homens se ombreariam com os deuses, deven<strong>do</strong>, por isso, temer a inveja deles.<br />
Uma outra forma de conhecimento, mais próprio das contingências da vida, é aquele que os<br />
gregos denominavam techné, a técnica, um conhecimento operativo, instrumental e<br />
produtivo, limita<strong>do</strong> e finito, por volta<strong>do</strong> ao atendimento de finalidades específicas, mas<br />
sempre revela<strong>do</strong>r de potencialidades, <strong>do</strong>nde sua tradução para o latim como ars. Então, a<br />
epistéme seria algo intermediário entre essas duas formas de conhecimento, por referir-se à<br />
atividade de conhecer a partir das necessidades de um certo tipo de explicação, isto é, não<br />
as explicações que se fazem necessárias e úteis à manutenção da vida, inclusive no<br />
convívio social e político, mas sim aquelas que, a rigor, são desnecessárias, inúteis, embora<br />
sejam elas o que desejamos, anelamos, quan<strong>do</strong> nos maravilhamos e, no duplo senti<strong>do</strong><br />
dessas palavras, negativo e positivo, nos espantamos e assombramos diante <strong>do</strong> universo ao<br />
nosso re<strong>do</strong>r e em nós mesmos, o cosmos, sen<strong>do</strong> desse sentimento (pathos) que, segun<strong>do</strong> os<br />
<strong>do</strong>is filósofos gregos cita<strong>do</strong>s - mestre e discípulo, de certa forma os primeiros e até hoje<br />
maiores entre to<strong>do</strong>s - nasceria a filosofia: Platão, no seu diálogo "Teeteto" (155 d), e<br />
Aristóteles, na já citada "Metafísica” (Livro I ou alfa, 2).<br />
A filosofia vai, então, aparecer como um saber extra-ordinário, que busca <strong>uma</strong><br />
explicação para tu<strong>do</strong> o que acontece para além da experiência concreta, em um princípio<br />
explicativo, a arkhé, de onde tu<strong>do</strong> brota e que se manifesta em tu<strong>do</strong> que existe, a physis,<br />
sem se confundir com isso tu<strong>do</strong> que nela se origina, assim como os filhos descendem <strong>do</strong>s<br />
pais sem a eles se reduzirem. Tales de Mileto, aponta<strong>do</strong> como o primeiro filósofo - ou<br />
"fisiólogo", estudioso da physis - disse que esse princípio seria a "água"; seu discípulo,<br />
Anaximandro, preferiu caracterizá-lo como o "indefini<strong>do</strong>" (apéiron); o discípulo deste,<br />
Anaxímenes, retomou um <strong>do</strong>s quatro elementos: no caso, o "ar", enquanto seu discípulo,<br />
14
Anaxágoras, refere ao Espírito ou à Inteligência (nous) para denominar o princípio<br />
organiza<strong>do</strong>r da matéria, operan<strong>do</strong> pioneiramente <strong>uma</strong> distinção de grande significa<strong>do</strong>, entre<br />
“corpo” e “alma”; Empé<strong>do</strong>cles, de <strong>uma</strong> outra Escola, a eleática, situada onde hoje está o sul<br />
da Sicília, defendeu ser formada pelos quatro elementos (terra, água, fogo e ar) a realidade<br />
última; para seu contemporâneo um pouco mais velho, Parmênides, seria o que chamou de<br />
"uno", imóvel e limita<strong>do</strong>; já para Heráclito, seria o "devir de tu<strong>do</strong> Um" (em grego: “Hen<br />
Pánta”), corporifica<strong>do</strong> no fogo; para Leucipo e Demócrito, os átomos; antes deles,<br />
entendeu Pitágoras serem os números, e, dentre esses, o dez... To<strong>do</strong>s esses pensamentos se<br />
distinguem conscientemente daqueles que se expressaram com <strong>uma</strong> linguagem mítica -<br />
embora se possa anotar <strong>uma</strong> série de correspondências entre esse pensamento filosófico<br />
nascente e as cosmogonias "filosóficas" produzidas no perío<strong>do</strong> imediatamente anterior,<br />
enquanto mito-lógicas, i. e., tocadas já pelo logos, e não mais transmitidas oralmente, mas<br />
elaboradas, igualmente, por escrito, característica fundamental de um saber como a filosofia<br />
que, com Derrida e outros filósofos contemporâneos, de proveniência hermenêutica, se<br />
procura entender como um gênero literário, assim como a ciência seria também um<br />
discurso (logos) ficcional, construin<strong>do</strong> <strong>uma</strong> coerência narrativa com os elementos<br />
forneci<strong>do</strong>s pela realidade, sem pretender um acesso privilegia<strong>do</strong> à realidade última, ao<br />
princípio explicativo transcendente.<br />
É certo que antes <strong>do</strong> saber científico afirmar sua superioridade, em termos<br />
pragmáticos, frente aos demais, inclusive a filosofia – o saber justamente de onde as<br />
ciências em geral foram colher seu mais forte impulso inicial, a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> postula<strong>do</strong>s como<br />
este apenas menciona<strong>do</strong>, da contingência e falibilidade <strong>do</strong> conhecimento -, foi necessário<br />
superar o pre<strong>do</strong>mínio de um tipo de conhecimento que mesmo ten<strong>do</strong> se aproveita<strong>do</strong><br />
bastante da filosofia, até o ponto de tê-la como sua “serva”, veio a aban<strong>do</strong>ná-la nos<br />
momentos cruciais, in<strong>do</strong> buscar apoio além da razão, na fé. Este saber é o da teologia, ou o<br />
conhecimento de natureza religiosa ampara<strong>do</strong> teo-logicamente, que irá por muito tempo<br />
cercear o desenvolvimento da perspectiva relativista e imanentista, própria da ciência.<br />
Contu<strong>do</strong>, a ruptura que a modernidade trará com a supremacia <strong>do</strong> pensamento teológico, no<br />
Ocidente, foi preparada no contexto desse mesmo pensamento, por teólogos mal-<br />
compreendi<strong>do</strong>s em seu tempo, como Roger Bacon (séc. XIII), com sua insistência no valor<br />
da experimentação para desenvolver o conhecimento, e um outro, franciscano e britânico<br />
como ele, de quem já tivemos oportunidade de vai destacar alguns aspectos mais salientes<br />
15
de seu pensamento, que foi Guilherme de Ockham (séc. XIV), 24 sen<strong>do</strong> que entre ambos<br />
avulta a figura de John Duns Scot, a quem se pode conceder os maiores créditos pela<br />
introdução de <strong>uma</strong> perspectiva, mais que transcendente, verdadeiramente transcendental –<br />
e, logo, moderna –, 25 a ser desenvolvida posteriormente, sem os vínculos <strong>do</strong>gmáticos com a<br />
teologia, por Descartes, Kant e, já na contemporaneidade, Husserl, para citar apenas três<br />
<strong>do</strong>s maiores responsáveis pelo aprofundamento <strong>do</strong> que se pode denominar <strong>uma</strong> “metafísica<br />
<strong>do</strong> possível”, oriunda já de pensa<strong>do</strong>res árabes, com destaque para Avicena (Ibn-Sina). 26<br />
No horizonte de toda essa elaboração estaria a ausência de <strong>uma</strong> distinção clara entre<br />
metafísica e teologia, até por estarem ambas voltadas para o estu<strong>do</strong> da realidade como <strong>uma</strong><br />
totalidade (de senti<strong>do</strong>), o que teria contribuí<strong>do</strong> para obscurecer, na modernidade, os<br />
pressupostos teológicos nela estruturalmente operantes, retoma<strong>do</strong>s de maneira também<br />
indevidamente explicitada no que se pode considerar tentativas contemporâneas de<br />
refundação da ontologia enquanto “ciência primeira” (protê epistéme) na fenomenologia,<br />
com Husserl e, principalmente, em Heidegger, com o sua virada para a “hermenêutica da<br />
facticidade”, conforme se pretende oportunamente demonstrar, como também no mo<strong>do</strong> de<br />
desenvolvimento das “ciências derivadas”, ou ciências propriamente ditas.<br />
Para tanto, faz-se necessário proceder, como o próprio Heidegger, um retorno às<br />
origens gregas da metafísica, tal como nos foi ela transmitida através da obra de Aristóteles,<br />
o qual concebeu a continuidade entre a razão e a natureza como reunidas em <strong>uma</strong> unidade<br />
dinâmica, finita e ordenada, expressa pela linguagem. Neste senti<strong>do</strong>, pode-se dizer que aí<br />
culmina a visão grega <strong>do</strong>s problemas filosóficos, na medida em que inventa um saber<br />
racional, capaz de dar <strong>uma</strong> resposta unitária aos problemas suscita<strong>do</strong>s pela tradição<br />
anterior, problemas concernentes tanto ao dinamismo da natureza como ao da própria razão<br />
h<strong>uma</strong>na. O irredutível de tais problemas, afirmará Aristóteles, é a realidade <strong>do</strong> ser, tão<br />
24 Cf. Willis Santiago Guerra Filho, “Lei, direito e poder em Guilherme de Ockham”, in: <strong>Direito</strong> e<br />
Poder. Nas Instituições e nos valores <strong>do</strong> público e <strong>do</strong> priva<strong>do</strong> contemporâneos. Estu<strong>do</strong>s em<br />
homenagem a Nelson Saldanha. Heleno Taveira Tôrres (coord.), Barueri, SP: Manole.<br />
25 Cf. Willis Santiago Guerra Filho, “Sobre a estrutura medieval <strong>do</strong> pensamento filosófico e<br />
jurídico”, in: Revista Opinião Jurídica, vol. 3, núm. 1, Fortaleza (CE), 2004; André De Muralt,<br />
“Kant, le dernier occamien. Une nouvelle définition de la philosophie moderne”, in: La<br />
métaphysique du phénomène, Paris: Vrin, 1985. Tb. in: Id., A metafísica <strong>do</strong> fenômeno: as origens<br />
medievais e a elaboração <strong>do</strong> pensamento fenomenológico, trad.: Paula Martins, São Paulo: 34,<br />
1998.<br />
26 Cf. Valentín Fernández Polanco, “Los precedentes medievales del criticismo kantiano”, in:<br />
Revista de Filosofía, vol. 28, núm. 2, Madrid, 2003.<br />
16
imediata de captar como difícil de definir, algo que parece sempre querer escapar a to<strong>do</strong><br />
intento de delimitação e que, precisamente por isso, só podemos designar como o comum a<br />
tu<strong>do</strong>, e, particularmente, como o comum à realidade <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> frente ao homem e à<br />
realidade <strong>do</strong> pensamento no homem, isto é, como o comum à natureza e à razão. Por causa<br />
da impossibilidade de sua delimitação, a realidade <strong>do</strong> ser não pode ser objeto de nenh<strong>uma</strong><br />
ciência particular, mas sim de <strong>uma</strong> ciência primeira, enquanto se ocupa <strong>do</strong> que é prévio e<br />
pressuposto em todas as demais, que são os fundamentos mesmo de sua realidade como<br />
ciências e da realidade de seus objetos, enquanto as diversas determinações <strong>do</strong> ser no que é<br />
da<strong>do</strong>: a realidade irredutível <strong>do</strong> ser.<br />
Essa ciência primeira é, então, também “única”, por ser ciência em um senti<strong>do</strong><br />
totalmente diverso de qualquer outra, sen<strong>do</strong> a ela que Aristóteles e os gregos de sua época<br />
chamavam “teologia” - e por serem os livros que tratavam a respeito reuni<strong>do</strong>s por<br />
Teofrasto, na organização <strong>do</strong> corpus essencial da obra aristotélica, o organon, “após (os<br />
livros d)a física” (meta ta physika), fez com que se denominasse metafísica sua matéria -,<br />
definida como a ciência que trata <strong>do</strong> ser enquanto ser, i. e., que trata de sua realidade<br />
mesma. 27 Daí que, ao tematizar a continuidade grega entre a razão e a natureza, unidade<br />
bifronte de um único dinamismo da<strong>do</strong> em sua finitude, Aristóteles funde a ciência da<br />
realidade <strong>do</strong> ser, inauguran<strong>do</strong> o que se pode denominar <strong>uma</strong> metafísica <strong>do</strong> real.<br />
O pensamento medieval cristão, ao partir da noção de um Deus infinito, iria ter<br />
sérios problemas na hora de confrontar o racionalismo natural da metafísica aristotélica<br />
com a perspectiva teológica da infinitude, pois um Deus infinito é tu<strong>do</strong> menos algo da<strong>do</strong>, e<br />
se esse Deus infinito é ti<strong>do</strong> como o maximamente real ou o real por antonomásia, o real em<br />
si, é evidente que a realidade <strong>do</strong> binômio natureza/razão será seriamente ameaçada. As<br />
grandes sínteses teológicas medievais, especialmente aquela mais característica e acatada, a<br />
de Tomás de Aquino, resolveriam esta dificuldade recorren<strong>do</strong> ao escalonamento <strong>do</strong>s graus<br />
metafísicos da realidade, onde Deus possuiria um grau máximo, infinito, absoluto,<br />
enquanto a realidade das coisas criadas seria finita, relativa e Dele dependente. Isto<br />
supunha, em contrapartida, a abertura de um certo, ainda que bastante limita<strong>do</strong>, acesso <strong>do</strong><br />
homem ao conhecimento da realidade de Deus, pelo qual, em princípio, seria possível ter<br />
<strong>uma</strong> noção aproximada dela mediante o procedimento de elevar ao infinito as perfeições da<br />
natureza (idéias) e os valores da razão (fins), obten<strong>do</strong> assim um vislumbre de quais<br />
27 Cf. Aristóteles, Metafísica, 1003 a 20-25.<br />
17
poderiam ser os atributos da divindade. Esta solução, que implicava em atribuir a Deus<br />
caracteres próprios <strong>do</strong> binômio natureza-razão, particularmente os arquétipos naturais<br />
(idéias divinas) e os valores racionais (fins divinos), permitiu a Tomás de Aquino salvar o<br />
essencial da metafísica aristotélica e, ao mesmo tempo, conceber um Deus cujos atributos<br />
fossem parcialmente acessíveis para aquela ciência primeira que era a metafísica <strong>do</strong> ser<br />
real.<br />
Os teólogos críticos da escolástica tardia, principalmente Duns Scot e, de <strong>uma</strong><br />
maneira ainda mais radical, Guilherme de Ockham, rechaçaram abertamente este<br />
procedimento por considerarem que, tratan<strong>do</strong> de evitar o desprezo que a realidade de Deus<br />
supunha para com o binômio natureza/razão, incorria no defeito oposto, quer dizer,<br />
desprezava a infinitude própria da divindade, atribuin<strong>do</strong>-lhe idéias (naturais) e fins<br />
(racionais) que só podiam limitar Sua liberdade infinita, isto é, sua onipotência absoluta.<br />
Assim, Duns Scot iria desvirtuar a <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong>s graus metafísicos ao interpretá-la em um<br />
senti<strong>do</strong> formalista, que excluía expressamente sua aplicação à existência, com o que cortava<br />
to<strong>do</strong> aceso racional à divindade, já que, por esta consideração, deixava de haver qualquer<br />
coisa em comum entre Deus e criaturas caracterizadas agora por sua condição de objetos<br />
mentais <strong>do</strong> pensamento divino, i. e., por sua completa indiferença tanto para com o ser<br />
como o não-ser. Posteriormente, Guilherme de Ockham iria ainda mais longe, ao pretender<br />
para Deus <strong>uma</strong> transcendência tão absoluta que O situava mais além de qualquer exigência<br />
racional e O definia como pura onipotência infinita, para além de toda razão e toda<br />
natureza, consolidan<strong>do</strong> desse mo<strong>do</strong> a fratura escotista entre Deus e o binômio<br />
razão/natureza, que abriria estruturalmente o campo inteiro da filosofia moderna. Com<br />
efeito, o pensamento moderno se ergue sobre o pressuposto ockhamista, segun<strong>do</strong> o qual<br />
nada há de impossível para a vontade divina, situada para além de to<strong>do</strong> rasgo de<br />
racionalidade e de toda sabe<strong>do</strong>ria mundana. Isto porque, sen<strong>do</strong> a vontade divina<br />
absolutamente livre, não há nada na ordem atual da criação que possa indicar de um mo<strong>do</strong><br />
ou outro a essência de seu Cria<strong>do</strong>r. Ao contrário, a ordem criada, isto é, a ordem da<br />
natureza racional, não é mais que <strong>uma</strong> ordem qualquer entre as infinitas ordens possíveis,<br />
nem têm nada em comum com a essência divina <strong>do</strong> que pudera ter qualquer outra,<br />
imaginável ou não por nós. Por isso, se no presente mun<strong>do</strong> o homem foi cria<strong>do</strong> à imagem<br />
de Deus, não será na razão h<strong>uma</strong>na onde se pode achar o fundamento dessa semelhança,<br />
mas sim no mais recôndito da alma interior, ali onde habita a vontade livre <strong>do</strong> homem, tão<br />
18
livre como a vontade divina frente a qualquer constrição racional que pudesse empanar ou<br />
limitar sua opção fundamental entre o bem e o mal, entre a aceitação e a renúncia a Deus. O<br />
ato da vontade h<strong>uma</strong>na pelo qual escolhe salvar-se ou condenar-se - o mais transcendente,<br />
portanto, na vida <strong>do</strong> homem -, se exerce, pois, à margem de qualquer instância racional ou<br />
natural, e já não tem lugar no processo comum <strong>do</strong> diálogo entre os homens (Igreja), mas<br />
sim no isolamento interior da privacidade de cada um (consciência). Em outros termos, esta<br />
escolha não pode encontrar apoio na razão, pois Deus é inacessível para a racionalidade, e<br />
só poderá de agora em diante ser questão de fé, onde a fé – como a graça – já não implicará<br />
um reforço salvífico da natureza criada, mas sim a abdicação expressa por parte <strong>do</strong> homem<br />
de sua própria razão e de sua essência h<strong>uma</strong>na. Deste mo<strong>do</strong>, tanto Duns Scot como,<br />
sobretu<strong>do</strong>, Guilherme de Ockham, instauram <strong>uma</strong> concepção de um Deus infinitamente<br />
transcendente que se situa radicalmente para além de um mun<strong>do</strong> cria<strong>do</strong>, com o qual deixa<br />
de ter qualquer coisa em comum, abrin<strong>do</strong> assim um abismo insalvável entre ambos, como<br />
se fossem conjuntos infinitamente disjuntos. Impossível, por tanto, qualquer conhecimento<br />
racional desse Deus infinitamente não racional por parte da razão h<strong>uma</strong>na. O único laço<br />
entre o mun<strong>do</strong> e Deus se encontra – fora da natureza e da razão – na recôndita consciência<br />
espiritual <strong>do</strong> ser h<strong>uma</strong>no, sob a forma de <strong>uma</strong> vontade absolutamente não constrangível por<br />
qualquer valor racional em seu ato de aceitação ou renúncia à salvação ofertada, e que se<br />
denomina fé. A relação <strong>do</strong> homem com Deus, daí em diante, deverá se desenvolver nesse<br />
âmbito irracional – e, logo, priva<strong>do</strong> –, enquanto a razão comum h<strong>uma</strong>na deverá renunciar<br />
a to<strong>do</strong> intento de aproximação da essência ou <strong>do</strong> desígnio divinos e aplicar-se a seu objeto<br />
imediato, isto é, o mun<strong>do</strong> cria<strong>do</strong> que se acha frente a si e que carece de toda relação com<br />
seu Cria<strong>do</strong>r.<br />
A teologia da onipotência divina implica, como parece evidente, <strong>uma</strong> revisão<br />
drástica <strong>do</strong>s pressupostos filosóficos precedentes, ou seja, da metafísica <strong>do</strong> real de caráter<br />
aristotélico, que se baseava, como vimos, na continuidade <strong>do</strong> binômio razão/natureza (no<br />
caso de Aristóteles), ou <strong>do</strong> trinômio razão/natureza/Deus (no caso de Tomás de Aquino). A<br />
partir de Ockham, Deus, o ser realíssimo, deixa de fazer parte desse trinômio e escapa por<br />
inteiro <strong>do</strong> binômio restante, cujo estatuto ontológico se reduz, então, ao de mero caso fático<br />
entre <strong>uma</strong> infinitude de mun<strong>do</strong>s possíveis, e cuja realidade se vê condenada à precariedade<br />
irremissível de não ter outro fundamento para sua existência que não a pura arbitrariedade<br />
divina, a qual escolheu criá-lo sem motivos evidentes que O impeçam de criar outros<br />
19
quaisquer dentre os infinitamente imagináveis. Assim, ao postular um Deus que é pura<br />
onipotência para além da razão e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, o maximamente real passa a ser a soberana<br />
potência divina, superior a toda razão e a toda criação. Em outras palavras, se Deus é o<br />
maximamente real será porque Sua vontade contém em si toda a realidade possível. Deste<br />
mo<strong>do</strong>, a hipótese ockhamista, enquanto implica em identificar a onipotência divina com a<br />
realidade de Deus, acaba por identificar o maximamente real com o maximamente possível.<br />
Dito em outros termos, a mencionada hipótese leva a identificar o real com o possível por<br />
via da absorção <strong>do</strong> primeiro pelo segun<strong>do</strong>, e a esvaziar de senti<strong>do</strong> a noção de realidade em<br />
beneficio da noção de possibilidade, de tal mo<strong>do</strong> que esta última se faz co-extensível à de<br />
ser. A existência fica, então relegada à condição ou estatuto de um mero caso fático, isto é,<br />
a não ser mais que <strong>uma</strong> determinação acidental <strong>do</strong> ser, quem, por sua parte, se identifica<br />
pura e simplesmente com o ser-possível e se caracteriza por possuir <strong>uma</strong> realidade<br />
puramente hipotética. E, assim como no caso grego o ser teria que se dizer de muitas<br />
maneiras, para contemplar seus diferentes mo<strong>do</strong>s de exercício, assim também, no regime<br />
defini<strong>do</strong> pela redução teológica <strong>do</strong> real ao possível só será concebível um único e exclusivo<br />
mo<strong>do</strong> de ser, aquele que emana da possibilidade, quer dizer, aquele cuja realidade está já<br />
contida de antemão em sua possibilidade. No caso grego nos achamos, portanto, frente à<br />
lógica da analogia: diversos mo<strong>do</strong>s de ser, linguagem essencialmente polissêmica, sempre<br />
inexata, em certo senti<strong>do</strong> submetida e também superior ao princípio de não-contradição.<br />
Na hipótese teológica da vontade onipotente, ao contrário, frente à lógica da<br />
univocidade: um único mo<strong>do</strong> de ser, linguagem exata e precisa, drasticamente submetida<br />
ao princípio de não-contradição. A univocidade lógica se converte, deste mo<strong>do</strong>, no reverso<br />
da onipotência absoluta de Deus e expressa a natureza hipotética de to<strong>do</strong> ser, enquanto seu<br />
principio constitutivo, o de não-contradição, alcança, coerentemente, o estatuto de<br />
paradigma de toda verdade possível.<br />
A identificação <strong>do</strong> ser de Deus com seu poder absoluto conduz, então, à<br />
identificação da realidade com a possibilidade no seio de <strong>uma</strong> racionalidade unívoca. Daí<br />
que aquela “ciência primeira”, que se ocuparia <strong>do</strong> ser enquanto ser, aquela ciência, de<br />
estatuto epistemológico tão contesta<strong>do</strong>, da que dizíamos que não pode estar no mesmo nível<br />
que as demais, mas sim que deve induzir seus conteú<strong>do</strong>s a partir das outras ciências, tenha<br />
de a<strong>do</strong>tar necessariamente a forma – se pretende corresponder ao panorama <strong>do</strong>utrinal<br />
inaugura<strong>do</strong> e presidi<strong>do</strong> pela hipótese da onipotência absoluta de Deus – de <strong>uma</strong> metafísica<br />
20
<strong>do</strong> possível, que é também <strong>uma</strong> teologia, mas sem a referência <strong>do</strong>gmática a um cre<strong>do</strong><br />
religioso qualquer, o que a torna possível em um outro senti<strong>do</strong>, agora epistemológico,<br />
aquele a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> modernamente pelas ciências: essa possibilidade mostra-se atualmente <strong>uma</strong><br />
verdadeira necessidade, pela urgência que temos em estabelecer bases para um<br />
entendimento mútuo entre os h<strong>uma</strong>nos, assenta<strong>do</strong> n<strong>uma</strong> compreensão que seja aceitável<br />
como são os resulta<strong>do</strong>s científicos, a respeito de nosso significa<strong>do</strong> cósmico – que se<br />
produza, então, <strong>uma</strong> teologia esvaziada de qualquer conteú<strong>do</strong> religioso específico, para ser<br />
a teologia adequada a nossos tempos de pre<strong>do</strong>mínio tecnocientífico, que seja capaz de<br />
superar esse pre<strong>do</strong>mínio, salvan<strong>do</strong> a h<strong>uma</strong>nidade de si mesma, enquanto o saber salvífico,<br />
soteriológico, que sempre desde a origem se propôs a ser a filosofia, como as religiões, 28 e<br />
não só teórico mas, sobretu<strong>do</strong>, prático - logo, eficaz também. 29<br />
E é a partir daqui que se abre <strong>uma</strong> perspectiva para o desenvolvimento de <strong>uma</strong><br />
teoria <strong>do</strong> direito possível, que é também <strong>uma</strong> teoria, no senti<strong>do</strong> próprio e atual da palavra,<br />
falibilista, porque h<strong>uma</strong>na e, logo, possibilista. 30 Era neste senti<strong>do</strong> que apontávamos,<br />
28 Neste senti<strong>do</strong>, Luc Ferry, O que é <strong>uma</strong> vida bem sucedida?, trad.: Karina Jannini, Rio de Janeiro:<br />
DIFEL, 2004.<br />
29 Cf. Willis Santiago Guerra Filho, “(Im)possibilidade e Necessidade da Teologia”, in: Nós e o<br />
Absoluto. Festschrift em homenagem a Manfre<strong>do</strong> Araújo de Oliveira, Carlos Cirne-Lima e Custódio<br />
Almeida (orgs.), São Paulo/ Fortaleza: Loyola/UFC, 2001. Também disponível em<br />
http://serbal.pntic.mec.es/AParteRei/ núm 12: http://serbal.pntic.mec.es/~cmunoz11/willis.pdf.<br />
Aqui se apresenta <strong>uma</strong> perspectiva da teologia que se pode qualificar como “narrativa”, à<br />
semelhança daquela derivada da filosofia hermenêutico-fenomenológica de Paul Ricouer. Esta é<br />
<strong>uma</strong> perspectiva que se mostra estruturalmente compatível com as ciências, ou com o direito,<br />
concebi<strong>do</strong> – e concebidas - como ficções de mun<strong>do</strong>s possíveis, a partir <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s forneci<strong>do</strong>s pelos<br />
objetos estuda<strong>do</strong>s e, no mesmo processo, construí<strong>do</strong>s. Interessa diferenciar tal perspectiva de <strong>uma</strong><br />
outra, que consideramos foi tentada por autores como Alfred North Whitehead, Hedwig Conrad-<br />
Martius e, mais recentemente, Richard Swinburne, em que a teologia se aproxima <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s<br />
mesmos das ciências, se fazen<strong>do</strong> com tais elementos e, eventualmente, mostran<strong>do</strong>-se compatível<br />
com religiões – sintomaticamente, aquelas professadas por tais autores, de derivação judaico-cristã,<br />
o que nos parece algo a ser evita<strong>do</strong> ou, pelo menos, desnecessário, pois traz o inconveniente de<br />
dificultar o diálogo intercultural.<br />
30 A idéia possibilista já se encontra instalada no <strong>Direito</strong>, especialmente no plano constitucional, em<br />
que se discute temas como a “reserva <strong>do</strong> possível”, em conexão com os direitos sociais, bem como<br />
a “dimensão de peso” (dimension of weight) a que se refere Dworkin, correlata ao mandamento de<br />
otimização (Optimierungsgebot), de Robert Alexy, ínsito a to<strong>do</strong>s os direitos fundamentais, de que<br />
se cumpram na medida <strong>do</strong> que for fática e juridicamente possível, <strong>do</strong>nde entendemos decorrer<br />
necessariamente um princípio de proporcionalidade – cf., v.g., Willis Santiago Guerra Filho,<br />
"Princípio da Proporcionalidade e <strong>Teoria</strong> <strong>do</strong> <strong>Direito</strong>”, in: <strong>Direito</strong> Constitucional. Estu<strong>do</strong>s em<br />
Homenagem a Paulo Bonavides, Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho (eds.), São<br />
Paulo: Malheiros, 2001, p. 268 ss. -, como também, neste nível mais teórico, graças a formulações<br />
como aquelas de Peter Häberle, <strong>do</strong> “Pensamento <strong>do</strong> possível” (Möglichkeitsdenken), que repercute<br />
21
quan<strong>do</strong> referimos em trabalhos passa<strong>do</strong>s a <strong>uma</strong> teoria fundamental <strong>do</strong> direito. 31 Antes de<br />
concluir esta introdução à proposta de investigação dessas bases possibilistas <strong>do</strong> <strong>Direito</strong>,<br />
que já se mostra desmedida para um tal propósito meramente exordial, vale expender ainda<br />
alg<strong>uma</strong>s palavras sobre o tema específico da hermenêutica ou teoria da interpretação.<br />
A teologia e metafísica <strong>do</strong> possível vai repercutir no pensamento daquele filósofo<br />
que, no século XX, irá patrocinar o enxerto, da hermenêutica no solo da fenomenologia<br />
husserliana, que foi Martin Heidegger, enxerto tão fértil, tal como resta <strong>uma</strong> vez mais<br />
demonstra<strong>do</strong> no trabalho que aqui se apresenta. Como é sabi<strong>do</strong>, os estu<strong>do</strong>s de filosofia de<br />
Heidegger foram antecedi<strong>do</strong>s pelo estu<strong>do</strong> da teologia, e sua tese de livre-<strong>do</strong>cência versou<br />
sobre Duns Scot – ou melhor, sobre obra que depois se revelou da autoria de Thomas de<br />
Erfurt, mas que deu margem a que se pensasse ser de Scot justamente pela estrita<br />
observância scotiana nela apresentada. Uma outra influência, talvez ainda mais decisiva, foi<br />
a <strong>do</strong> pensa<strong>do</strong>r religioso, cristão, Sǿren Kierkegaard, para que em Heidegger se encontre<br />
esse pensamento da abertura para as possibilidades <strong>do</strong> ser (Sein) que ante si mesmo, aí<br />
(Da), pro-jeta<strong>do</strong>, no mun<strong>do</strong>, tanto se mostra, <strong>do</strong> ponto de vista ôntico, enqunto ente,<br />
temporal e materialmente finito, como também, <strong>do</strong> ponto de vista ontológico, essencial e<br />
espiritualmente infinito, por encarnar a liberdade, <strong>do</strong>nde um intérprete recente <strong>do</strong><br />
pensamento heideggeriano tê-lo qualifica<strong>do</strong> com <strong>uma</strong> “fenomenologia da liberdade”. 32 E<br />
como diria o pensa<strong>do</strong>r dinamarquês, em sua obra clássica sobre o conceito de angústia<br />
(Angst), a realidade, antes de tu<strong>do</strong>, é por nós experimentada - aperceptivamente, diria<br />
Husserl – como um possível ser, que se toma com real porque nele se crê. A crença no<br />
no “Diritto mite”, o direito frágil, flexível, plástico, de Zagrebelski - o qual nos faz recordar da<br />
formulação filosófica de inspiração nietzscheano-heideggeriana, de seu conterrâneo Vattimo, da<br />
“ragione debole” -, recepcionadas entre nós por Gilmar Ferreira Mendes – cf., deste A., “A<br />
Constituição e o ‘pensamento <strong>do</strong> possível’: um estu<strong>do</strong> de caso (Embargos Infringentes na ADIn no.<br />
1.289-4)”, in: Revista <strong>do</strong> Advoga<strong>do</strong>, n. 73, São Paulo: AASP, 2003, p. 74 ss. – agradeço ao<br />
mestran<strong>do</strong> em direito da Faculdade Autônoma de <strong>Direito</strong> de São Paulo (FADISP), Márcio<br />
Maidame, por esta referência.<br />
31 Cf. Willis Santiago guerra Filho, “<strong>Teoria</strong> Constitucional <strong>do</strong>s Princípios Jurídicos e Garantismo<br />
Penal: Por <strong>uma</strong> Atualização Teórica de Conceitos Fundamentais”, in: Constituição e Democracia.<br />
Estu<strong>do</strong>s em Homenagem ao Professor J. J. Gomes Canotilho, Paulo Bonavides, Francisco Gérson<br />
Marques de Lima e Fayga Silveira Bedê (coords.), São Paulo: Malheiros, 2006, p. 514 ss.; Id., “Por<br />
<strong>uma</strong> <strong>Teoria</strong> Fundamental da Constituição: Enfoque Fenomenológico", in: Revista Lex Eletrônica,<br />
disponível desde 13-10-06 em http://www.lex.com.br/noticias/<strong>do</strong>utrinas (<strong>Direito</strong><br />
Constitucional).<br />
32 Cf. Günter Figal, Fenomenogia da Liberdade, trad. Marco Antônio Casanova, Rio de Janeiro:<br />
Forense Universitária, 2005, esp, p. 36 e s.<br />
22
mun<strong>do</strong>, em um mun<strong>do</strong>, portanto, é um a priori para o conhecermos, e também para<br />
transformá-lo, o que não se pode obter sem antes - ainda que aperceptivamente -, interpretá-<br />
lo.<br />
A etimologia da palavra “interpretação”, de origem latina, referida por autores com<br />
Eric Wolf e, na sua esteira, entre nós, Luis Fernan<strong>do</strong> Coelho, 33 remeteria a <strong>uma</strong> prática<br />
adivinhatória romana, muita antiga, baseada na “leitura” <strong>do</strong> que se via ao abrir ritualmente<br />
animais sacrifica<strong>do</strong>s, em suas entranhas (inter pres), para prognosticar o futuro, ten<strong>do</strong> por<br />
base a alimentação desses animais – o que não deixa de ser um indício sobre o mun<strong>do</strong>, ou<br />
<strong>do</strong> que sugerimos denominar a “vida <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>”, sob a influência das leituras de autores<br />
como os antes referi<strong>do</strong>s Alfred North Whitehead, 34 Hedwig Conrad-Martius, 35 ou também o<br />
brasileiro Mário Schenberg, 36 noção mais abrangente e compreensiva daquela que será<br />
introduzida por Husserl, como solo último <strong>do</strong>nde brota toda significação e senti<strong>do</strong> na vida<br />
h<strong>uma</strong>na, o “mun<strong>do</strong> da vida” (Lebenswelt). 37 No mesmo ambiente cultural, outras formas<br />
divinatórias, menos cruentas, eram utilizadas, como a leitura <strong>do</strong> vôo sincopa<strong>do</strong> de pássaros,<br />
como as an<strong>do</strong>rinhas, e se pode mesmo afirmar que em toda sociedade se produzem tais<br />
práticas, mágicas, de atribuição (ou “desentranhamento”) de um senti<strong>do</strong> ao que ocorreu,<br />
ocorre e ocorrerá, a partir de algum dispositivo considera<strong>do</strong> apto a estabelecer vínculos<br />
entre esta realidade, mundana, com aquela outra, superior, invisível, em que habitam as<br />
forças ou deidades que geram e detêm o controle dessa realidade em que vivemos (e<br />
morremos). Daí que <strong>uma</strong> outra palavra, mais erudita, que guarda sinonímia com aquela que<br />
ora nos ocupa, a saber, “hermenêutica”, em sua origem grega, seja associada ao deus<br />
Hermes, filho de Zeus com a Ninfa Maya, que se tornou o mensageiro de pés ala<strong>do</strong>s,<br />
media<strong>do</strong>r e responsável pela comunicação entre seu pai e os mortais, sen<strong>do</strong> por isso<br />
atribuída a ele, na narrativa mitológica helênica, a invenção da linguagem e da escrita.<br />
33 <strong>Introdução</strong> histórica à filosofia <strong>do</strong> direito, Rio de Janeiro: Forense, 1979.<br />
34 Cf., v.g., A ciência e o mun<strong>do</strong> moderno, trad. Hermann Herbert Watzlawick, São Paulo: Paulus,<br />
2006.<br />
35 Cf., sobre esta autora, Angela Ales Bello, A fenomenologia <strong>do</strong> ser h<strong>uma</strong>no, trad.: Antonio<br />
Angonese, EDUSC: Bauru (SP), 2000.<br />
36 Pensan<strong>do</strong> a Física, 5 a . ed., São Paulo: Landy, 2001.<br />
37 Cf. E. Husserl, A Crise da H<strong>uma</strong>nidade Européia e a Filosofia, 2 a . ed., trad. Urbano Zilles, São<br />
Paulo: Loyola, 2002.<br />
23
Apesar de questionada e duvi<strong>do</strong>sa, 38 como geralmente ocorre com a<br />
etimologia <strong>do</strong>s vocábulos, especialmente aqueles mais significativos, esta aproximação<br />
com a mitologia, além de esclarece<strong>do</strong>ra, enquanto alegoria, nos coloca, justamente, diante<br />
de situação que requer o emprego da interpretação, seja como interpretatio, seja como<br />
hermèneutiké. Isso para transitarmos de um senti<strong>do</strong> que esteja “escondi<strong>do</strong>”, na interioridade<br />
de animais sacrifica<strong>do</strong>s ou <strong>do</strong> pensamento de quem se dedica a entender o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>, poden<strong>do</strong> ainda este senti<strong>do</strong> se perder por estar muito à vista, na literalidade de <strong>uma</strong><br />
narrativa mítica – sen<strong>do</strong> ho mythos, em grego, justamente este relato de <strong>uma</strong> vivência,<br />
como nos recorda Emmanuel Carneiro Leão 39 -, <strong>do</strong>nde a necessidade de se trazê-lo à<br />
compreensão, expressan<strong>do</strong>-o por meio de <strong>uma</strong> espécie de tradução ou deciframento <strong>do</strong> que<br />
se interpreta, em linguagem corrente. É dessa expressão e compreensão, decorrente <strong>do</strong><br />
ajuste entre o que está em dada sentença e a intenção a ela subjacente, para assim aferir de<br />
sua veracidade, que se vai tratar, quan<strong>do</strong> Aristóteles - tal como em geral ocorreu, precedi<strong>do</strong><br />
por seu mestre Platão -, faz <strong>uma</strong> elaboração filosófica <strong>do</strong> problema, no âmbito de sua obra<br />
Peri hermèneias, traduzida em latim por De interpretatione. Assim, apesar dessa<br />
aproximação semântica, entre o que teria si<strong>do</strong>, originalmente, a designação de <strong>uma</strong> prática<br />
divinatória, no caso da interpretação, enquanto forma de saber, e a hermenêutica, ao ponto<br />
de se ter <strong>uma</strong> sinonímia entre ambas, na Grécia antiga se diferenciava perfeitamente a<br />
ambas, ao mesmo tempo em que se considerava guardarem entre si <strong>uma</strong> espécie de<br />
parentesco , tal com se nota no pequeno diálogo de Platão denomina<strong>do</strong> Epínomis, ou seja,<br />
“apêndice”, a outro mais extenso, que é “As Leis”, 40 sen<strong>do</strong> aquele denomina<strong>do</strong> também “O<br />
Filósofo”, quan<strong>do</strong> já em sua segunda manifestação o personagem designa<strong>do</strong> com “O<br />
ateniense” considera como duas espécies de um mesmo gênero de saber a quiromancia<br />
(mantiké) e a hermenêutica, ambas incapazes de conduzir ao saber verdadeiro, a Sophia.<br />
Isto porque a hermenêutica, enquanto arte ou “capacidade” (na trad. bras.) geral de<br />
interpretar oráculos, conduziria à compreensão <strong>do</strong> que é dito por estes que, em seu esta<strong>do</strong><br />
de êxtase, de mania, sequer sabem o que dizem, mas ainda não permite estabelecer se é<br />
verdadeiro (alethes) o que foi dito.<br />
38 Nesse senti<strong>do</strong>, Jean Grondin, <strong>Introdução</strong> à hermenêutica filosófica, São Leopol<strong>do</strong> (RS): Ed.<br />
UNISINOS, 1999.<br />
39 a Cf. “A Hermenêutica <strong>do</strong> Mito”, in: Id., Aprenden<strong>do</strong> a Pensar, vol. I, 5 . ed., Petrópolis: Vozes,<br />
2002.<br />
40<br />
As Leis incluin<strong>do</strong> Epinomis, trad. Edson Bibi, Bauru (SP): EDIPRO, 1999.<br />
24
Em texto clássico e de grande importância histórica, denomina<strong>do</strong> “A Origem da<br />
Hermenêutica”, de 1900, Wilhelm Dilthey, logo no princípio, assevera o A. que a “arte de<br />
interpretar (hermeneía) nasceu na Grécia, fruto da necessidade de ensinar”. 41<br />
Concretamente, este ensino baseava-se em textos poéticos como os de Homero e Hesío<strong>do</strong>,<br />
para citar apenas <strong>do</strong>is <strong>do</strong>s mais conheci<strong>do</strong>s dentre os “pais-funda<strong>do</strong>res” da Civilização que<br />
é um <strong>do</strong>s pilares daquela dita Ocidental. Daí porque um outro filósofo contemporâneo,<br />
ainda vivo, identifica<strong>do</strong> com a elaboração filosófica da hermenêutica, Paul Ricouer, na<br />
abertura mesmo de sua obra, igualmente clássica, “O Conflito das Interpretações. Ensaios<br />
de Hermenêutica”, 42 vai afirmar que o problema da interpretação é coloca<strong>do</strong>,<br />
primeiramente, enquanto um problema de exegese, ao aparecer “no contexto de <strong>uma</strong><br />
disciplina que se propõe a compreender um texto, a compreendê-lo a partir de sua intenção,<br />
basean<strong>do</strong>-se no fundamento daquilo que ele pretende dizer”. Eis que terminamos por<br />
introduzir <strong>uma</strong> terceira palavra, “exegese”, também considerada um sinônimo de<br />
interpretação, mas que se restringiria a <strong>uma</strong> dimensão mais filológica, por vincular a<br />
interpretação a objeto de um certo tipo, que são os textos. Ao mesmo tempo, percebe-se aí a<br />
grande amplitude em que, já nesse nível exegético, o problema da interpretação se situa,<br />
com implicações para além – ou aquém -, inclusive, da própria filosofia, especialmente no<br />
campo de religiões como aquelas baseadas em textos, a exemplo <strong>do</strong>s Vedas, da Bíblia e <strong>do</strong><br />
Corão, assim como da literatura em geral, 43 e também, de maneira igualmente<br />
paradigmática, desde épocas bastante recuadas, no campo <strong>do</strong> <strong>Direito</strong>, na forma da<br />
interpretação jurídica. 44 Contemporaneamente, pode-se destacar a interpretação<br />
psicanalítica como um exemplo que se situa neste paradigma, sen<strong>do</strong> a obra já centenária<br />
intitulada, justamente, “Interpretação <strong>do</strong>s Sonhos” (Traumdeutung), de Freud, o exemplo<br />
paradigmático.<br />
41 “Origens da hermenêutica”, trad. Alberto Reis e José Andrade, in: Textos de Hermenêutica, Rui<br />
Magalhães, (Org.). Porto: Rés, 1984.<br />
42 O Conflito das Interpretações. Ensaios de Hermenêutica, trad. Hilton Japiassu, Rio de Janeiro:<br />
Imago, 1978.<br />
43 Cf., v.g., Nelson Cerqueira, Hermenêutica & Literatura, trad. Yvenio Azeve<strong>do</strong>, Salva<strong>do</strong>r (BA):<br />
Cara, 2003.<br />
44 Para um panorama, cf. Hermenêutica Plural, Carlos E. de Abreu Boucault e José Rodrigo<br />
Rodriguez (orgs.), São Paulo: Martins Fontes, 2002 (2 a . ed., 2005).<br />
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No que pertine ao alenta<strong>do</strong> desenvolvimento da perspectiva hermenêutica, em<br />
conexão política com o Esta<strong>do</strong> democrático contemporâneo, 45 mostra-se de fundamental<br />
importância a crítica que a perspectiva fenomenológica de Husserl permite que se<br />
empreenda ao formalismo instala<strong>do</strong> no pensamento moderno, pelo exarcebamento <strong>do</strong> mo<strong>do</strong><br />
conceitualista e objetificante de lidar com o conhecimento, em geral e, especialmente, no<br />
campo <strong>do</strong> <strong>Direito</strong>. 46 E por fim, fica o desafio, enfrenta<strong>do</strong> aqui de maneira decidida, de saber<br />
em que medida algo como um retorno à situação concreta, fática, proposta por Heidegger -<br />
no que se pode denominar, antes que <strong>uma</strong> “fenomenologia da liberdade” (Günter Figal),<br />
com mais precisão, <strong>uma</strong> “fenomenologia da(s) possibilidade(s existenciais)” -, pode dar<br />
ensejo a <strong>uma</strong> recuperação de um saber apto a fornecer <strong>uma</strong> orientação, ou re-orientação, na<br />
busca de senti<strong>do</strong> para as ações h<strong>uma</strong>nas a serem, então, devidamente reguladas pelo<br />
<strong>Direito</strong>, com <strong>uma</strong> pretensão justificada de obediência generalizada, nas condições adversas<br />
da atualidade. Cabe a to<strong>do</strong>s assumir <strong>uma</strong> parte de tal tarefa, de proporções gigantesca,<br />
perceben<strong>do</strong> o quanto é urgente e necessária e, se é assim, há de ser também possível dela<br />
nos desincumbirmos. O que se propôs foi <strong>uma</strong> mera indicação neste senti<strong>do</strong>, na esperança<br />
de pelo menos estimular outros a fazerem sua própria colaboração.<br />
45 Conexão esta já destacada, entre nós, antes mesmo <strong>do</strong> advento da atual Constituição, que assume<br />
explicitamente este pressuposto político, por Daniel Coelho de Souza, em Interpretação e<br />
Democracia, 2 a . ed., São Paulo: RT, 1979, e também Sérgio Alves Gomes, Hermenêutica Jurídica<br />
e Constituição no Esta<strong>do</strong> de <strong>Direito</strong> Democrático, 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.<br />
46 Neste senti<strong>do</strong>, v. Aquiles Côrtes Guimarães, Fenomenologia e <strong>Direito</strong>, Rio de Janeiro: Lumen<br />
Juris, 2005, bem como nosso verbete “Fenomenologia Jurídica”, in: Dicionário de Filosofia <strong>do</strong><br />
<strong>Direito</strong>, Vicente de Paulo Barretto (coord.), Rio de Janeiro/São Leopol<strong>do</strong> (RS):<br />
Renovar/UNISINOS, 2006, pp. 316/322.<br />
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