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davidson_metáfora_trad_pedro serra - Ilicia

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O QUE SIGNIFICAM AS METÁFORAS<br />

Donald Davidson *<br />

Tradução de Pedro Serra<br />

Universidade de Salamanca<br />

A <strong>metáfora</strong> é o sonho da linguagem e, como em todo o sonho, a<br />

sua interpretação reflecte tanto o intérprete como quem a origina. A<br />

interpretação dos sonhos requer colaboração entre alguém que sonha e<br />

alguém em estado de vigília, ainda que sejam a mesma pessoa; e o acto de<br />

interpretação é, ele próprio, um acto da imaginação. Tal como fazer uma<br />

<strong>metáfora</strong>, a sua compreensão é um esforço criativo, e muito pouco<br />

orientado por regras.<br />

Estas advertências não distinguem a <strong>metáfora</strong>, a não ser em termos<br />

de grau, de outros intercâmbios linguísticos mais rotineiro: toda a<br />

comunicação discursiva supõe a interacção da construção inventiva e da<br />

interpretação inventiva. O que a <strong>metáfora</strong> acrescenta ao discurso comum<br />

é uma realização que não utiliza recursos semânticos para além dos<br />

recursos de que depende o discurso comum. Não existem instruções para<br />

inventar <strong>metáfora</strong>s; não existe manual para determinar o que uma<br />

<strong>metáfora</strong> «significa» ou «diz»; não existe teste para a <strong>metáfora</strong> que não<br />

© Donald Davidson, 1978. Reservados todos os direitos. © desta <strong>trad</strong>ução, Pedro Serra,<br />

2011.<br />

* Donald Davidson é catedrático de filosofia na Universidade de Chicago. É autor de<br />

muitos ensaios importantes, que incluem «Actions, Reasons and Causes», «Causal<br />

Relations» e «Truth and Meaning»; é co-autor de Decision-Making: An Experimental<br />

Approach, e co-editor de Words and Objections, Semantics of Natural Language e,<br />

ainda, de The Logic of Grammar.


peça o contributo do gosto. 1 Uma <strong>metáfora</strong> implica um tipo e um grau de<br />

êxito artístico; não existem <strong>metáfora</strong>s mal sucedidas, tal como não<br />

existem anedotas sem graça. Existem <strong>metáfora</strong>s sem gosto, mas são<br />

desvios que, não obstante, realizaram algo com êxito, mesmo que o êxito<br />

conseguido não valha a pena, ou mesmo que tal realização pudesse ter<br />

sido melhor sucedida.<br />

Este ensaio interessa-se pelo que as <strong>metáfora</strong>s significam, e a tese<br />

que expõe é a de que as <strong>metáfora</strong>s significam aquilo que as palavras, na<br />

sua interpretação mais literal, significam, e nada mais do que isso. Uma<br />

vez que esta tese está em total desacordo com as visões contemporâneas<br />

que me são familiares, muito do que tenho para dizer é crítico. Todavia,<br />

penso que o quadro da <strong>metáfora</strong> que emerge quando o erro e a confusão<br />

são dissipados, torna a <strong>metáfora</strong> um fenómeno mais, e não menos,<br />

interessante.<br />

O erro central contra o qual vou dirigir as minhas invectivas é a<br />

ideia de que a <strong>metáfora</strong> tem, em acréscimo ao seu sentido ou significado<br />

literal, um outro sentido ou significado. Esta ideia é comum a muitas<br />

pessoas que escreveram sobre a <strong>metáfora</strong>: encontra-se nos trabalhos de<br />

críticos literários como Richards, Empson e Winters; em filósofos de<br />

Aristóteles até Max Black; em psicólogos de Freud, e anteriores, até<br />

Skinner, e posteriores; em linguistas de Platão até Uriel Weinreich e<br />

George Lakoff. A ideia adquire muitas formas, da forma relativamente<br />

simples de Aristóteles até à forma relativamente complexa de Black. A<br />

ideia surge em escritos que argumentam que a paráfrase literal de uma<br />

<strong>metáfora</strong> pode ser efectuada, mas é também partilhada por aqueles que<br />

1 Penso que Max Black se engana quando diz que «As regras da nossa linguagem<br />

determinam que certas expressões devam valer como <strong>metáfora</strong>s». Admite,<br />

contudo, que o que uma <strong>metáfora</strong> «significa» depende de muito mais factores: a<br />

intenção do falante, o tom de voz, o contexto verbal, etc. «Metaphor», no seu<br />

Models and Metaphors (Ithaca, N.Y., 1962), p. 29.


defendem que tipicamente nenhuma paráfrase literal pode ser encon<strong>trad</strong>a.<br />

Alguns enfatizam a especial compreensão que a <strong>metáfora</strong> pode inspirar e<br />

frisam que a linguagem corrente, no seu funcionamento habitual, não<br />

produz semelhante compreensão. Todavia, também esta perspectiva vê a<br />

<strong>metáfora</strong> como uma forma de comunicação a par da comunicação<br />

comum; veicula verdades ou falsidades sobre o mundo tal como a<br />

linguagem mais simples, ainda que a mensagem possa ser considerada<br />

mais exótica, profunda ou astutamente enroupada.<br />

A concepção da <strong>metáfora</strong> como sendo originariamente um meio<br />

para veicular ideias, ainda que ideias pouco usuais, parece-me tão errado<br />

como a ideia, da mesma família, de que a <strong>metáfora</strong> tem um significado<br />

especial. Concordo com a perspectiva de que as <strong>metáfora</strong>s não podem ser<br />

parafraseadas, mas não penso que isto seja assim porque as <strong>metáfora</strong>s<br />

digam algo demasiado novo para a expressão literal, mas sim porque não<br />

há nelas nada para parafrasear. A paráfrase, possível ou não, é apropriada<br />

àquilo que é dito: tentamos, na paráfrase, dizê-lo de outro modo.<br />

Contudo, se a minha perspectiva está correcta, uma <strong>metáfora</strong> não diz nada<br />

para além do seu sentido literal (nem aquele que a faz diz mais, ao usar a<br />

<strong>metáfora</strong>, do que esse sentido literal). Isto não significa negar, claro está,<br />

que a <strong>metáfora</strong> diga algo, ou que não seja possível tornar evidente esse<br />

algo que diz usando palavras adicionais.<br />

No passado, aqueles que negaram que a <strong>metáfora</strong> tem um<br />

conteúdo cognitivo em acréscimo ao conteúdo literal, frequentemente se<br />

empenharam em mostrar que a <strong>metáfora</strong> é confusa, meramente emotiva,<br />

imprópria para o discurso sério, científico ou filosófico. A minha<br />

perspectiva não deve ser associada a esta <strong>trad</strong>ição. A <strong>metáfora</strong> é um<br />

dispositivo legítimo não apenas na literatura como também na ciência, na<br />

filosofia e no direito; é efectiva no elogio e no insulto, na oração e na<br />

promoção, na descrição e na prescrição. Em grande medida, não discordo<br />

de Max Black, Paul Henle, Nelson Goodman, Monroe Beardsley, e


outros, no que se refere às suas explicações sobre o que a <strong>metáfora</strong><br />

realiza, exceptuando o facto de que penso que realiza mais, e que aquilo<br />

que nela é acréscimo é de natureza diferente.<br />

O meu desacordo prende-se com a explicação de como a <strong>metáfora</strong><br />

opera as suas maravilhas. Antecipando o argumento: dependo da<br />

distinção entre aquilo que as palavras significam e aquilo para que são<br />

usadas. Penso que a <strong>metáfora</strong> pertence exclusivamente ao domínio do<br />

uso. É algo efectuado pelo emprego imaginativo das palavras e das frases<br />

e depende inteiramente do sentido comum dessas palavras, e por<br />

conseguinte do sentido comum das frases que as abrangem.<br />

Postular significados metafóricos ou figurados não ajuda a<br />

explicar como as palavras funcionam na <strong>metáfora</strong>, nem tão-pouco o<br />

fazem quaisquer formas especiais de verdade metafórica ou poética. Estas<br />

ideias não explicam a <strong>metáfora</strong>, é a <strong>metáfora</strong> que as explica. Uma vez que<br />

entendemos uma <strong>metáfora</strong> podemos chamar àquilo que compreendemos a<br />

«verdade metafórica» e (até certo ponto) dizer o que o «significado<br />

metafórico» é. Mas alojar simplesmente este significado na <strong>metáfora</strong> é<br />

como explicar a razão pela qual um comprimido nos faz dormir dizendo<br />

que tem poderes soporíferos. As condições de sentido literal e de verdade<br />

literal podem ser atribuídas a palavras e frases independentemente dos<br />

seus contextos particulares de uso. É esta a razão pela qual fazer<br />

referência a eles possui poder explicativo genuino.<br />

Vou tentar estabelecer as minhas perspectivas negativas sobre o<br />

que as <strong>metáfora</strong>s significam, e apresentar as minhas limitadas pretensões<br />

positivas, examinando algumas teorias falsas sobre a natureza da<br />

<strong>metáfora</strong>.<br />

Uma <strong>metáfora</strong> obriga-nos a prestar atenção para alguma<br />

semelhança, por vezes uma semelhança original ou surpreendente, entre<br />

duas ou mais coisas. Esta observação trivial e verdadeira conduz, ou<br />

parece conduzir, a uma conclusão a respeito do sentido das <strong>metáfora</strong>s.


Consideremos a semelhança, ou similitude, comum: duas rosas são<br />

semelhantes porque partilham a propriedade de serem rosas: duas<br />

crianças são semelhantes em virtude da infância que as conjuga. Ou, de<br />

modo mais simples, as rosas são semelhantes porque cada uma delas é<br />

uma rosa, e as crianças são semelhantes porque cada uma delas é criança.<br />

Suponhamos que alguém diz que «Tolstoy foi em tempos<br />

criança». De que modo é a criança Tolstoy como outra criança? A<br />

resposta acorre oportunamente: em virtude de exibir a propriedade da<br />

infância, isto é, deixando de lado algum enleio, em virtude de ser uma<br />

criança. Se esgotarmos a expressão «em virtude de», podemos, segundo<br />

parece, ser ainda mais explícitos dizendo que a criança Tolstoy partilha<br />

com outras crianças o facto de o predicado «é uma criança» lhe ser<br />

aplicado; dada a palavra «criança», não temos qualquer problema para<br />

dizer como, exactamente, a criança Tolstoy se parece a outras crianças.<br />

Podíamos fazê-lo sem a palavra «criança»; tudo o que precisamos é de<br />

outras palavras que signifiquem o mesmo. O resultado final é o mesmo. A<br />

semelhança comum depende de agrupamentos estabelecidos pelos<br />

sentidos comuns das palavras. Esta semelhança é natural e não nos<br />

surpreende na medida em que formas familiares de agrupar objectos estão<br />

ligadas aos significados usuais de palavras usuais.<br />

Um crítico famoso afirmou que Tolstoy era «uma grande criança<br />

moralizadora». O Tolstoy que aqui é referido não é, obviamente, a criança<br />

Tolstoy mas o escritor adulto; isto é uma <strong>metáfora</strong>. Ora, em que sentido é<br />

o Tolstoy escritor semelhante a uma criança? O que devemos fazer,<br />

talvez, é pensar na classe de objectos que inclui todas as crianças comuns<br />

e, em acréscimo, o Tolstoy adulto e, posteriormente, perguntarmo-nos<br />

que propriedade especial e surpreendente têm em comum os membros<br />

desta classe. O pensamento atractivo é o de que com paciência<br />

poderíamos aproximar-nos tanto quanto fosse necessário da especificação<br />

da pertinente propriedade. De qualquer forma, poderíamos perfeitamente


fazê-lo se encontrássemos as palavras que significam exactamente o<br />

mesmo que a palavra metafórica «criança» significa. O ponto importante,<br />

segundo a minha perspectiva, não é se podemos ou não encontrar essas<br />

outras palavras perfeitas, mas a suposição de que há algo a ser tentado, a<br />

suposição de que existe um sentido metafórico condizente. Até agora<br />

apenas tenho estado a esboçar de que modo o conceito de significado<br />

pode ter-se deslizado furtivamente para a análise da <strong>metáfora</strong>, e a resposta<br />

que sugeri é a de que, uma vez que o que pensamos como sendo um<br />

jardim de variedade de semelhanças vai a par do que pensamos ser como<br />

um jardim de variedade de significados, é natural postular significados<br />

metafóricos ou pouco usuais como ajuda para explicar as semelhanças<br />

que as <strong>metáfora</strong>s promovem.<br />

A ideia, então, é a de que na <strong>metáfora</strong> certas palavras assumem<br />

significados novos, ou significados frequentemente designados como<br />

significados «ampliados». Quando lemos, por exemplo, «o Espírito de<br />

Deus moveu-se sobre a face das águas», devemos considerar a palavra<br />

«face» como tendo um significado ampliado (não tomo em consideração<br />

outras <strong>metáfora</strong>s nesta passagem). A ampliação aplica-se, como é o caso,<br />

àquilo que os filósofos chamam a extensão da palavra, isto é, a classe de<br />

entidades a que a palavra se refere. Aqui, a palavra «face» aplica-se a<br />

faces comuns, e por acréscimo a águas.<br />

Esta descrição não pode, seja como for, estar completa uma vez<br />

que, se nestes contextos as palavras «face» e «criança» se aplicam<br />

correctamente a águas e ao Tolstoy adulto, então as águas efectivamente<br />

têm faces e Tolstoy literalmente foi uma criança, e todo o sentido de<br />

<strong>metáfora</strong> se evapora. Se nos dispomos a pensar sobre as palavras nas<br />

<strong>metáfora</strong>s como desempenhado directamente a sua função de se referir<br />

àquilo que com propriedade se referem, então não há diferença entre a<br />

<strong>metáfora</strong> e a introdução de um novo termo no nosso vocabulário: fazer<br />

uma <strong>metáfora</strong> é assassiná-la.


O que ficou de fora foi qualquer apelo ao sentido original da<br />

palavra. Se a <strong>metáfora</strong> depende, ou não, de novos ou sentidos ampliados,<br />

certamente depende, de algum modo, de sentidos originais; uma descrição<br />

adequada da <strong>metáfora</strong> deve permitir que os sentidos originais ou<br />

primários das palavras permaneçam activos no seu enquadramento<br />

metafórico.<br />

Talvez possamos, então, explicar a <strong>metáfora</strong> como um tipo de<br />

ambiguidade: no contexto de uma <strong>metáfora</strong>, certas palavras têm ou um<br />

significado novo ou um significado original, e a força da <strong>metáfora</strong><br />

depende da nossa indecisão enquanto hesitamos entre os dois<br />

significados. Assim, quando Melville escreve que «Cristo foi um<br />

cronómetro», o efeito metafórico é produzido pelo facto de tomarmos<br />

«cronómetro» primeiro no seu sentido comum e, depois, num sentido<br />

extraordinário ou metafórico.<br />

É difícil ver de que modo esta teoria possa estar correcta. Pois a<br />

ambiguidade na palavra, se existe, é devida ao facto de que em contextos<br />

comuns significa uma coisa e no contexto metafórico significa algo<br />

diferente; mas no contexto metafórico não hesitamos necessariamente a<br />

respeito do seu significado. Quando hesitamos é habitualmente para<br />

decidir qual interpretação, de um número de interpretações, devemos<br />

aceitar; raramente duvidamos de que aquilo que temos é uma <strong>metáfora</strong>.<br />

Seja como for, a efectividade da <strong>metáfora</strong> facilmente excede em duração<br />

o fim da hesitação a propósito da interpretação da passagem metafórica.<br />

A <strong>metáfora</strong> não pode, por conseguinte, dever o seu efeito à ambiguidade<br />

deste tipo. 2<br />

2 Nelson Goodman afirma que a <strong>metáfora</strong> e a ambiguidade diferem sobretudo «em<br />

que os diferentes usos de um termo meramente ambíguo são coevos e<br />

independentes», enquanto que na <strong>metáfora</strong> «um termo com uma extensão<br />

estabelecida pelo hábito é aplicado noutro lugar sob a influência desse hábito»;<br />

sugere que à medida que o nosso sentido da história dos «dois usos» na <strong>metáfora</strong>


Outra forma de ambiguidade pode parecer oferecer melhor<br />

sugestão. Por vezes uma palavra, num único contexto, transporta dois<br />

significados, supondo-se que lembremos e usemos ambos. Ou, se<br />

pensarmos que o ser palavra implica identidade de significado, então<br />

podemos descrever a situação de tal modo que o que nos surge como uma<br />

palavra são, de facto, duas. Quando dão as boas-vindas, de modo<br />

obsceno, à personagem Cressida de Shakespeare, no momento em que<br />

chega ao campo grego, diz Nestor, «Our general doth salute you with a<br />

kiss» [«O nosso general saúda-vos com um beijo»]. Devemos aqui<br />

entender «general» de duas maneiras: uma delas aplicada a Agamemnon,<br />

que é o general; e, uma vez que está a beijar toda a gente, como não sendo<br />

aplicada a ninguém em particular, mas a todos em geral. Temos, de facto,<br />

a conjunção de duas frases: o nosso general, Agamemnon, saúda-vos com<br />

um beijo; e, todos em geral vos saúdam com um beijo.<br />

Este dispositivo, um trocadilho, é legítimo, mas não é o mesmo<br />

dispositivo que a <strong>metáfora</strong>. Pois na <strong>metáfora</strong> não existe necessidade<br />

essencial de reiteração; quaisquer que sejam os significados que<br />

atribuímos às palavras, eles mantêm-se através de qualquer leitura<br />

correcta da passagem.<br />

Uma modificação plausível da última sugestão seria a de<br />

considerar a palavra chave (ou palavras chave) de uma <strong>metáfora</strong> como<br />

tendo dois tipos diferentes de significado em simultâneo, um sentido<br />

literal e um sentido figurado. Imaginemos o sentido literal como sendo<br />

latente, algo de que somos conscientes, algo que pode ter um efeito em<br />

nós sem ter efeito no contexto, enquanto que o sentido figurado transporta<br />

se desvanece, a palavra metafórica se torna meramente ambígua (Languages of<br />

Art [Indianapolis, Ind., 1968], p. 71). De facto, em muitos casos de ambiguidade,<br />

um uso brota do outro (como afirma Goodman) e, por conseguinte, não podem ser<br />

coevos. Mas o erro básico, que Goodman partilha com outros, é a ideia de que<br />

dois «usos» se encontram envolvidos na <strong>metáfora</strong> da forma como o fazem na<br />

ambiguidade.


o peso directo. E, por último, deve haver uma regra que liga os dois<br />

significados, pois de outro modo a explicação recai numa forma da teoria<br />

da ambiguidade. A regra, pelo menos para muitos casos típicos de<br />

<strong>metáfora</strong>, diz que no seu papel metafórico a palavra se aplica a tudo<br />

aquilo a que se aplica no seu papel literal, e depois a algo. 3<br />

Esta teoria pode parecer complexa, mas é extraordinariamente<br />

semelhante ao que Frege propôs como descrição do comportamento de<br />

referir termos em frases modais e frases sobre atitudes proposicionais<br />

como a crença e o desejo. Segundo Frege, cada termo de referência tem<br />

dois (ou mais) significados, um que fixa a sua referência em contextos<br />

comuns, e outro que fixa a sua referência em contextos especiais criados<br />

por operadores modais ou verbos psicológicos. A regra que liga os dois<br />

significados pode ser colocada assim: o significado da palavra nos<br />

contextos especiais faz a referência nesses contextos ser idêntica à do<br />

significado em contextos comuns.<br />

Temos aqui o quadro completo, colocando Frege a par de uma<br />

perspectiva fregeana da <strong>metáfora</strong>: devemos pensar numa palavra como<br />

tendo, em acréscimo ao seu campo mundano de aplicação ou referência,<br />

dois campos de aplicação especiais ou supra-mundanos, um para a<br />

<strong>metáfora</strong> e outro para contextos modais e afins. Em ambos os casos, o<br />

significado original permanece actuante em virtude de uma regra que<br />

relaciona os vários significados.<br />

Tendo enfatizado a analogia possível entre significado metafórico<br />

e os significados fregeanos para contextos oblíquos, volto-me para uma<br />

dificuldade imponente de manter a analogia. Estamos a entreter um<br />

visitante de Saturno tentando ensiná-lo como usar a palavra «chão».<br />

Percorremos os subterfúgios familiares, conduzindo-do de chão a chão,<br />

apontando, calcando e repetindo a palavra. Incitamo-lo a fazer<br />

3 A teoria descrita é essencialmente a de Paul Henle, «Metaphor», in Language,<br />

Thought, and Culture, ed. Henle (Ann Arbor, Mich., 1958).


experiências, tocando levemente os objectos a título experimental com os<br />

seus tentáculos ao mesmo tempo que recompensamos as suas tentativas<br />

certas e erradas. Queremos que acabe por ficar a saber não apenas que<br />

estes objectos ou superfícies particulares são chãos, mas também como<br />

reconhecer um chão quando avistamos ou tocamos um. O tom burlesco<br />

com o que o fazes não lhe diz o que precisa de saber, mas com sorte<br />

ajuda-o a aprender.<br />

Devemos chamar a este processo aprender algo sobre o mundo, ou<br />

aprender algo sobre a linguagem? Uma questão estranha, pois o que se<br />

aprende é que um pedaço de linguagem se refere a um pedaço do mundo.<br />

Ainda assim, é fácil distinguir entre a aprendizagem do significado de<br />

uma palavra e o uso da palavra uma vez que o significado foi aprendido.<br />

Comparando estas duas actividades, é natural dizer que a primeira<br />

concerne a aprendizagem de algo sobre a linguagem, enquanto que a<br />

segunda é tipicamente a aprendizagem de algo sobre o mundo. Se o nosso<br />

habitante de Saturno aprendeu a usar a palavra «chão», podemos tentar<br />

dizer-lhe algo novo: que aqui é um chão. Se ele dominou o truque das<br />

palavras, dissemos-lhe algo sobre o mundo.<br />

O nosso amigo de Saturno transporta-nos agora através do espaço<br />

para a esfera da sua casa, e olhando remotamente para a terra deixada<br />

atrás, dizemos-lhe, acenando para a Terra, «chão». Talvez ele pense que<br />

isto se trata ainda parte da lição e suponha que a palavra «chão» se aplica<br />

correctamente à terra, pelo menos vista de Saturno. Mas, e se pensámos<br />

que ele sabia já o significado de «chão» e nos estávamos a lembrar do<br />

modo como Dante, de um lugar semelhante no orbe celeste, via a terra<br />

habitada como «o pequeno chão redondo que nos torna passionais»? O<br />

nosso propósito era a <strong>metáfora</strong>, e não treinar o uso da linguagem. Que<br />

diferença faria para o nosso amigo de que modo o entendia? Com a teoria<br />

da <strong>metáfora</strong> que estamos a considerar, muito pouca diferença, pois de<br />

acordo com essa teoria uma palavra tem um significado novo num


contexto metafórico; a ocasião da <strong>metáfora</strong> seria, por conseguinte, a<br />

ocasião para aprender o novo significado. Devemos concordar que, em<br />

certo sentido, faz relativamente pouca diferença se, num determinado<br />

contexto, pensamos que a palavra está a ser usada metaforicamente ou<br />

está a ser usada de um modo prévio desconhecido, mas literal. Empson,<br />

em Some Versions of Pastoral, cita estes versos de Donne: «As our blood<br />

labours to beget / Spirits, as like souls as it can, [...] / So must pure lover’s<br />

soules descend [...]» O leitor moderno, realça Empson, quase de certeza<br />

entenderá metaforicamente a palavra «espíritos» nesta passagem,<br />

considerando-a aplicar-se apenas por extensão a algo espiritual. Mas para<br />

Donne não havia <strong>metáfora</strong>. Escreve nos seus Sermons: «The spirits [...]<br />

are the thin and active part of the blood, and are a kind of middle nature,<br />

between soul and body». Saber isto não faz muita diferença; Empson tem<br />

razão quando afirma que «É curioso como a mudança da palavra [isto é,<br />

daquilo que pensamos que significa] não afecta a poesia». 4<br />

A mudança pode ser, pelo menos em certos casos, difícil de<br />

apreciar, mas a não ser que haja mudança, perde-se a maior parte do que<br />

pensamos ser interessante sobre a <strong>metáfora</strong>. Tenho estado a provar a<br />

minha posição contrastando a aprendizagem de um novo significado de<br />

uma velha palavra com o uso de uma palavra já compreendida; num caso,<br />

argumentei, a nossa atenção dirige-se para a linguagem, no outro, para<br />

aquilo sobre que trata a linguagem. A <strong>metáfora</strong>, sugeri, pertence à<br />

segunda categoria. Isto pode também ser visto se considerarmos<br />

<strong>metáfora</strong>s mortas. Em tempos, segundo suponho, rios e garrafas não<br />

tinham literalmente, como acontece hoje, bocas. Pensando no uso<br />

presente, não interessa se consideramos a palavra «boca» de modo<br />

ambíguo porque se aplica a en<strong>trad</strong>as de rios e aberturas de garrafas bem<br />

como a aberturas animais; nem interessa se pensamos que existe um<br />

único campo de aplicação que os abrange a ambos. O que importa é que<br />

4 William Empson, Some Versions of Pastoral (London, 1935), p. 133.


quando «boca» se aplicava apenas metaforicamente a garrafas, a<br />

aplicação fazia o ouvinte aperceber-se de uma semelhança entre aberturas<br />

de animais e de garrafas. (Considere-se a referência de Homero a feridas<br />

como bocas). Uma vez que temos o uso presente da palavra, com<br />

aplicação literal a garrafas, não existe mais nada de que apercebermo-nos.<br />

Não há semelhança que procurar porque consiste simplesmente em ser<br />

referida pela mesma palavra.<br />

A novidade não é a questão. No seu contexto uma palavra uma<br />

vez tomada como <strong>metáfora</strong> permanece <strong>metáfora</strong> na centésima vez que a<br />

ouvimos, enquanto uma palavra pode facilmente se apreciada num novo<br />

papel literal logo num primeiro encontro. Aquilo a que chamamos<br />

elemento de novidade ou surpresa numa <strong>metáfora</strong> é uma parte integrante<br />

estética que podemos experimentar uma e outra vez, como a surpresa na<br />

Sinfonia nº 94 de Haydn, ou uma cadência familiar deceptiva.<br />

Se a <strong>metáfora</strong> implicasse um segundo significado, como acontece<br />

com a ambiguidade, poderíamos contar ser capazes de especificar o<br />

significado especial de uma palavra num quadro metafórico esperando<br />

que a <strong>metáfora</strong> morresse. O sentido figurado da <strong>metáfora</strong> viva seria<br />

imortalizado no sentido literal da <strong>metáfora</strong> morta. Mas embora alguns<br />

filósofos tenham sugerido esta ideia, parece ser manifestamente errada.<br />

«He was burned up» é um enunciado genuinamente ambíguo (uma vez<br />

que pode ser verdade num sentido e falso noutro), mas ainda que a<br />

expressão idiomática seja sem dúdiva o cadáver de uma <strong>metáfora</strong>, «He<br />

was burned up» hoje apenas sugere que estava muito zangado. Quando a<br />

<strong>metáfora</strong> estava activa, teríamos imaginado fogo nos olhos e fumo saindo<br />

das orelhas.<br />

Podemos aprender muito sobre o que significam as <strong>metáfora</strong>s<br />

comparando-as com os símiles, pois um símile diz-nos, em parte, aquilo<br />

que uma <strong>metáfora</strong> mera e levemente nos anima a notarmos. Suponhamos<br />

que Goneril tivesse dito, pensando em Lear, «Old fools are like babes


again»; então ela teria utilizado as palavras para afirmar a semelhança<br />

entre velhos loucos e bébés. O que disse de facto, claro, foi «Old fools are<br />

babes again», usando deste modo as palavras para dar a entender o que o<br />

símile declarava. Pensando em função destes exemplos pode inspirar<br />

outra teoria do sentido figurativo ou especial das <strong>metáfora</strong>s: o sentido<br />

figurativo de uma <strong>metáfora</strong> é o sentido literal do símile correspondente.<br />

Assim, «Cristo era um cronómetro» no seu sentido figurado é sinónimo<br />

de «Cristo era como um cronómetro», e o significado metafórico um dia<br />

encerrado em «Ele estava queimado» é libertado em «Ele estava como<br />

alguém queimado» (ou talvez, «Ele estava como queimado»).<br />

Existe, é inegável, a dificuldade em identificar o símile que<br />

corresponde a uma determinada <strong>metáfora</strong>. Virginia Wolf disse que um<br />

intelectual é «a man or woman of thoroughbred intelligence who rides his<br />

mind at a gallop across country in pursuit of an idea». Que símile<br />

corresponde? Algo assim, talvez: «A highbrow is a man or woman whose<br />

thoroughbred intelligence is like a thoroughbred horse who persists in<br />

thinking about an idea like a rider at galloping across country in pursuit<br />

of... well something».<br />

A perspectiva de que o significado especial de uma <strong>metáfora</strong> é<br />

idêntico ao significado literal de um símile correspondente (como quer<br />

que «correspondente» seja sole<strong>trad</strong>o) não deve ser confundida com a<br />

teoria comum de que uma <strong>metáfora</strong> é um símile elíptico. 5 Esta teoria não<br />

estabelece distinção de sentido entre uma <strong>metáfora</strong> e um símile<br />

relacionado e não fornece nenhuma base para falar de significados<br />

figurativos, metafóricos ou especiais. É uma teoria que ganha a partida no<br />

que concerne a simplicidade, mas também parece demasiado simples para<br />

5 J. Middleton Murray diz que uma <strong>metáfora</strong> é um «símile comprimido», Countries<br />

of the Mind, 2ª. série (Oxford, 1931), p. 3. Max Black atribui uma perspectiva<br />

semelhante a Alexander Bain, English Composition and Rethoric, ed. aum.<br />

(London, 1887).


funcionar. Pois se tornamos o sentido literal da <strong>metáfora</strong> o sentido literal<br />

de um símile correspondente, negamos acesso ao que originalmente<br />

tomámos como sendo o sentido literal da <strong>metáfora</strong>, e concordámos quase<br />

desde o início que este significado era essencial para o funcionamento da<br />

<strong>metáfora</strong>, fosse o que fosse necessário acrescentar ainda de um<br />

significado não literal.<br />

Tanto a teoria do símile elíptico da <strong>metáfora</strong> como a sua variante<br />

mais sofisticada, que equaciona o sentido figurativo da <strong>metáfora</strong> com<br />

sentido literal de um símile, partilham um erro fatal. Tornam o sentido<br />

oculto da <strong>metáfora</strong> demasiado óbvio e acessível. Em cada caso, o sentido<br />

oculto é encon<strong>trad</strong>o simplesmente olhando para o sentido literal daquilo<br />

que é habitualmente um símile dolorosamente trivial. Isto é como aquilo –<br />

Tolstoy é como uma criança, a terra é como um chão. É trivial porque<br />

tudo é como tudo, e de formas intermináveis. As <strong>metáfora</strong>s são<br />

frequentemente muito difíceis de interpretar e, como se costuma dizer,<br />

impossíveis de parafrasear. Mas com esta teoria, interpretação e paráfrase<br />

caracteristicamente estão prontas para ser usadas pelo mais inexperiente.<br />

Estas teorias do símile têm sido consideradas aceitáveis, penso,<br />

apenas porque têm sido confundidas com uma teoria bastante diferente.<br />

Considere-se esta advertência de Max Black:<br />

Quando Schopenhauer chamou à prova geométrica uma ratoeira,<br />

estava, segundo esta perspectiva, a dizer (ainda que não<br />

explicitamente): «Uma prova geométrica é como uma ratoeira,<br />

uma vez que ambas proporcionam uma recompensa falaciosa,<br />

atraem as suas vítimas progressivamente, conduzem a supresas<br />

desagradáveis, etc.» Esta é uma perspectiva da <strong>metáfora</strong> como um<br />

símile elíptico ou condensado. 6<br />

6 Black, p. 35.


Posso discernir aqui duas confusões. Primeiro, se as <strong>metáfora</strong>s são símiles<br />

elípticas, dizem explicitamente o que os símiles dizem, pois a elipse é<br />

uma forma de abreviatura, e não de paráfrase ou de informação indirecta.<br />

Mas, e esta é a questão mais importante, a afirmação de Black sobre<br />

aquilo que a <strong>metáfora</strong> diz vai mais além daquilo que é proporcionado pelo<br />

símile correspondente. O símile diz apenas que uma prova geométrica é<br />

como uma ratoeira. Não nos diz mais do que a <strong>metáfora</strong> sobre que<br />

semelhanças devemos observar. Black menciona três semelhanças, e claro<br />

podíamos acrescentar a lista indefinidamente. Mas supõe-se que esta lista,<br />

quando revista e suplementada de modo correcto, proporciona o sentido<br />

literal do símile? Sem dúvida que não, uma vez que o símile apenas<br />

declara a semelhança. Se a lista se supõe que proporciona o sentido<br />

figurado do símile, então não aprendemos nada sobre a <strong>metáfora</strong> da<br />

comparação com o símile – apenas que ambos possuem o mesmo<br />

significado figurativo. Nelson Goodman efectivamente defende que «a<br />

diferença entre símile e <strong>metáfora</strong> é negligenciável», e prossegue, «quer a<br />

locução se trate de ‘é como’ ou se trate de ‘é’, a figura assemelha quadro<br />

a pessoa separando certas características comuns [...]» 7 Goodman está a<br />

considerar a diferença entre dizer que um quadro é triste e dizer que ele é<br />

como uma pessoa triste. É claramente verdade que ambos enunciados<br />

assemelham quadro e pessoa, mas parece-me ser um erro pretender que os<br />

dois modos de dizer «separam» uma característica comum. O símile diz<br />

que existe uma semelhança e deixa-nos a tarefa de separar alguma ou<br />

algumas características comuns; a <strong>metáfora</strong> não declara explicitamente<br />

uma semelhança, mas se aceitamos que é uma <strong>metáfora</strong>, somos levados<br />

uma vez mais a procurar características comuns (não necessariamente as<br />

mesmas características que o símile associado sugere; mas esta é outra<br />

questão).<br />

7 Goodman, pp. 77-78.


Justamente porque um símile tem uma declaração de similitude na<br />

manga, é menos plausível, penso, do que no caso da <strong>metáfora</strong>, sustentar<br />

que existe um segundo sentido escondido. No caso do símile, verificamos<br />

o que literalmente diz: que duas coisas se parecem; examinamos, então,<br />

os objectos e consideramos que similitude seria, em contexto, apropriada.<br />

Tendo decidido, poderíamos então dizer que o autor do símile pretendia<br />

que nós – isto é, queria que nós – prestássemos atenção nessa semelhança.<br />

Mas tendo estimado a diferença entre o que as palavras pretendiam e o<br />

que o autor conseguiu realizar usando essas palavras, seríamos pouco<br />

tentados a explicar o que aconteceu dotando as próprias palavras com um<br />

segundo sentido figurado. O objectivo do conceito de significado<br />

linguístico é o de explicar o que pode ser feito com palavras. Mas o<br />

suposto sentido figurado de um símile não explica nada; não é uma<br />

característica da palavra que a palavra possua a priori e<br />

independetemente do contexto de uso, e não repousa sobre nenhuns<br />

hábitos linguísticos que não sejam aqueles que governam o sentido<br />

comum.<br />

O que as palavras fazem com o seu significado literal no símile<br />

deve ser possível que o façam na <strong>metáfora</strong>. Uma <strong>metáfora</strong> chama a<br />

atenção para o mesmo tipo de semelhança, ou até para as mesmas<br />

semelhanças, que o correspondente símile. Mas então os subtis e<br />

inesperados paralelos e analogias que a <strong>metáfora</strong> promove não precisam<br />

de depender, para a sua promoção, de nada mais do que o sentido literal<br />

das palavras.<br />

A <strong>metáfora</strong> e o símile são apenas dois entre intermináveis<br />

dispositivos que servem para alertar-nos sobre aspectos do mundo<br />

convidando-nos a fazer comparações. Cito algumas estrofes de «The<br />

Hippopotamus» de T. S. Eliot:<br />

The broad-backed hippopotamus


Rests on his belly in the mud;<br />

Although he seems so firm to us<br />

He is merely flesh and blood.<br />

Flesh and blood is weak and frail,<br />

Susceptible to nervous shock;<br />

While the True Church can never fail<br />

For it is based upon a rock.<br />

The hippo’s feeble steps may err<br />

In compassing material ends,<br />

While the True Church need never stir<br />

To gather in it its dividends.<br />

The ‘potamus can never reach<br />

The mango or the mango-tree;<br />

But fruits of pomegranate and peach<br />

Refresh th Church from over sea.<br />

Aqui não se nos diz nem que a Igreja se parece a um hipopótamo (como<br />

num símile), nem somos pressionados a fazer a comparação (como numa<br />

<strong>metáfora</strong>), mas não há dúvida que as palavras estão a ser usadas para<br />

dirigir a nossa atenção para semelhanças entre ambos. Nem pode haver,<br />

neste caso, muita tendência para supor sentidos figurados, pois em que<br />

palavras os alojaríamos? O hipopótamo efectivamente descansa sobre a<br />

pança no barro; a Igreja Verdadeira, diz-nos o poema literalmente, não<br />

pode falhar. O poema implica, é claro, muita coisa que vai mais além do<br />

sentido literal das palavras. Mas implicar não é significar.<br />

O argumento, até ao momento, conduziu à conclusão de que<br />

aquilo que na <strong>metáfora</strong> pode ser explicado em termos de significado pode,


e na verdade, deve se explicado apelando para o sentido literal das<br />

palavras. Uma consequência é a de que as frases em que ocorrem as<br />

<strong>metáfora</strong>s são verdadeiras ou falsas de um modo normal ou literal, pois se<br />

as palavras nelas não têm significados especiais, as frases não têm uma<br />

verdade especial. Isto não significa negar que existe algo como a verdade<br />

metafórica, apenas significa negá-lo nas frases. A <strong>metáfora</strong> conduz-nos a<br />

prestar atenção ao que, de outro modo, poderia não ser advertido, e não<br />

nenhuma razão, suponho, para não dizer que estas perspectivas,<br />

pensamentos e sentimentos inspirados pela <strong>metáfora</strong>, sejam verdadeiros<br />

ou falsos.<br />

Se uma frase usada metaforicamente é verdadeira ou falsa no<br />

sentido frequente, então está claro que é habitualmente falsa. A diferença<br />

semântica mais óbvia entre símile e <strong>metáfora</strong> é a de que todos os símiles<br />

são verdadeiros e a maioria das <strong>metáfora</strong>s são falsas. A terra é como um<br />

chão, o Assírio lançou-se como um lobo sobre o rebanho, porque tudo é<br />

como tudo. Mas transformar estas frases em <strong>metáfora</strong>s é torná-las falsas;<br />

a terra é como um chão mas não é um chão; Tolstoy, adulto, era como<br />

uma criança, mas não era uma criança. Usamos um símile frequentemente<br />

apenas quando sabemos que a <strong>metáfora</strong> correspondente é falsa. Dizemos<br />

que o Sr. S é como um porco porque sabemos que não é um porco. Se<br />

tivessemo utilizado uma <strong>metáfora</strong> e disséssemos que era um porco, não<br />

seria porque tivéssemos mudado de ideia sobre os factos mas porque<br />

escolhemos apresentar a ideia de modo diferente.<br />

O que importa não é a efectiva falsidade mas que a frase seja<br />

considerada falsa. Note-se o que acontece quando uma frase que usamos<br />

como <strong>metáfora</strong>, acreditando que é falsa, chega a ser verdade por causa de<br />

uma mudança naquilo que pensamos sobre o mundo. Quando foi dada a<br />

notícia de que o avião de Hemingway tinha sido visto, destruído, em<br />

África, o novaiorquino Mirror lançou um cabeçalho que dizia<br />

«Hemingway Perdido em África», a palavra «perdido» tendo sido


utilizada para sugerir que estava morto. Quando se soube que afinal<br />

estava vivo, o Mirror deixou que o cabeçalho fosse lido literalmente.<br />

Considere-se, ainda, o seguinte caso: uma mulher vê-se com um belo<br />

vestido e diz, «Que sonho de vestido!» - e depois acorda. A questão está<br />

em que o vestido é como um vestido com que sonharíamos e por<br />

conseguinte não é um vestido de sonho. Henle fornece um bom exemplo<br />

extraído de Anthony and Cleopatra (2. 2):<br />

The barge she sat in, like a burnish’d throne<br />

Burn’d on the water<br />

Aqui símile e <strong>metáfora</strong> interagem de modo estranho, mas a <strong>metáfora</strong><br />

desapareceria se um incêndio fosse imaginado. De modo muito<br />

semelhante, o efeito habitual de um símile pode ser sabotado levando<br />

demasiado longe a comparação. Woody Allen escreve: «O julgamento,<br />

que teve lugar durante as semanas seguintes, foi como um circo, ainda<br />

que tivesse sido algo difícil meter os elefantes na sala do tribunal». 8<br />

Geralmente, apenas quando consideramos que uma frase é falsa a<br />

aceitamos como <strong>metáfora</strong> e começamos à caça das implicações ocultas. É<br />

provavelmente por esta razão que a maioria das frases metafóricas são<br />

manifestamente falsas, assim como as todos os símiles são trivialmente<br />

verdade. O absurdo e a con<strong>trad</strong>ição numa frase metafórica garante que<br />

não acreditemos nela e convida-nos, em condições apropriadas, a tomar a<br />

frase metaforicamente.<br />

Falsidade patente é o caso habitual da <strong>metáfora</strong>, mas por vezes a<br />

verdade patente serve também. «Negócio é negócio» é demasiado óbvio<br />

no seu sentido literal de forma a ter sido pronunciado para veicular<br />

informação, por conseguinte procuramos outro uso; Ted Cohen lembra-<br />

8 Woody Allen, New Yorker, 21 de Novembro de 1977, p. 59.


nos, na mesma linha, que nenhum homem é uma ilha. 9 A questão é a<br />

mesma. O sentido comum no contexto de uso é bastante estranho para nos<br />

induzir a descurar a questão da verdade literal.<br />

Seja-me permitido, agora, colocar uma questão um tanto<br />

platónica, comparando a elaboração de uma <strong>metáfora</strong> com o dizer uma<br />

mentira. A comparação é adequada porque mentir, como fazer uma<br />

<strong>metáfora</strong>, concerne não o sentido das palavras mas o seu uso. Diz-se por<br />

vezes que dizer uma mentira acarreta dizer o que é falso; mas isto está<br />

errado. Dizer uma mentira não requer que o que dizemos seja falso mas<br />

que pensemos que é falso. Uma vez que habitualmente acreditamos nas<br />

frases verdadeiras e não acreditamos nas falsas, a maioria das mentiras<br />

são falsidades; mas em cada caso individualmente considerado isto é um<br />

acidente. O paralelo entre elaborar uma <strong>metáfora</strong> e dizer uma mentira é<br />

enfatizado pelo facto de que a mesma frase pode ser usada, sem mudar o<br />

significado, para ambos os propósitos. Assim, uma mulher que acreditou<br />

em bruxas mas que não pensou que a sua vizinha é uma bruxa, podia<br />

dizer «Ela é uma bruxa», querendo dizê-lo metaforicamente; a mesma<br />

mulher, ainda acreditando em bruxas e pensando o mesmo da vizinha,<br />

poderia usar essas mesmas palavras para um efeito muito diferente. Uma<br />

vez que frase e significado são os mesmos em ambos os casos, é por<br />

vezes difícil provar qual a intenção que subjaz ao dizê-lo; deste modo, um<br />

homem que diz «Lattimore é um Comunista» e quer mentir sempre pode<br />

declinar tê-lo feito alegando ser uma <strong>metáfora</strong>.<br />

O que faz a diferença entre uma mentira e uma <strong>metáfora</strong> não é<br />

uma diferença das palavras usadas ou do que significam (em qualquer<br />

sentido estrito do significado) mas como as palavras são usadas. Usar<br />

9 Ted Cohen, «Figurative Speech and Figurative Acts», Journal of Philosophy 72<br />

(1975): 671. Uma vez que a negação de uma <strong>metáfora</strong> parece ser sempre uma<br />

<strong>metáfora</strong> potencial, pode haver tantas trivialidades entre as <strong>metáfora</strong>s potenciais<br />

como há absurdos entre as <strong>metáfora</strong>s efectivas.


uma frase para dizer uma mentira e usá-la para fazer uma <strong>metáfora</strong> são, é<br />

claro, usos totalmente diferentes, tão diferentes que não interferem um<br />

com o outro, tal como acontece, digamos, com o actuar e o mentir. Ao<br />

mentir devemos fazer uma asserção de modo a representar-nos como<br />

acreditando naquilo que não acreditamos; ao actuar, essa asserção é<br />

excluída. A <strong>metáfora</strong> é indiferente à distinção. Pode ser um insulto, e<br />

deste modo ser uma asserção, dizer a um homem, «És um porco». Mas<br />

nenhuma <strong>metáfora</strong> estava em causa quando (suponhamos) Ulisses dirigiu<br />

as mesmas palavras aos seus companheiros no palácio de Circe; uma<br />

história, é inegável, e portanto não havendo asserção – mas a palavra,<br />

pelo menos neste caso, foi usada literalmente aplicada a homens.<br />

Nenhuma teoria do significado metafórico ou da verdade<br />

metafórica pode ajudar a explicar como a <strong>metáfora</strong> funciona. A <strong>metáfora</strong><br />

segue pelo mesmo caminho linguístico familiar que as frases mais<br />

simples; vimo-lo ao considerar o símile. O que distingue a <strong>metáfora</strong> não é<br />

o sentido mas o uso – neste aspecto é como asseverar, insinuar, mentir,<br />

prometer ou criticar. E o uso especial que fazemos da linguagem na<br />

<strong>metáfora</strong> não é – não pode ser – «dizer algo especial», por mais<br />

indirectamente que o façamos. Pois uma <strong>metáfora</strong> diz apenas o que<br />

mostra facialmente – habitualmente uma falsidade evidente ou uma<br />

verdade absurda. E esta verdade ou falsidade manifestas não precisa de<br />

paráfrase – é dada no sentido literal das palavras.<br />

O que dizer, pois, da energia interminável que foi gasta, e continua<br />

a ser gasta, em elaborar métodos e dispositivos para esclarecer com<br />

propriedade o conteúdo de uma <strong>metáfora</strong>? Os psicólogos Robert<br />

Verbrugge e Nancy McCarrell dizem-nos que:<br />

Muitas <strong>metáfora</strong>s chamam a atenção para sistemas de relações<br />

comuns ou transformações comuns, em que a identidade dos<br />

participantes é secundária. Por exemplo, considerem-se as frases:


Um carro é como um animal, Os troncos das árvores são palhas<br />

para ramos e folhas sedentas. A primeira frase chama a atenção<br />

para sistemas de relações entre consumo energético, respiração,<br />

auto-locomoção, sistemas sensoriais e, possivelmente, um<br />

homúnculo. Na segunda frase, a semelhança é um tipo de<br />

transformação mais constrangido: sucção de fluído através de um<br />

espaço cilíndrico orientado verticalemente, de uma fonte de fluído<br />

até um destino. 10<br />

Verbrugge e McCarrell não acreditam que exista uma linha divisória entre<br />

o uso literal e o uso metafórico das palavras; pensam que muitas palavras<br />

têm um significado «nebuloso» que é fixado, se for fixado, por um<br />

contexto. Mas certamente esta nebulosidade, como quer que seja ilus<strong>trad</strong>a<br />

e explicada, não pode apagar a linha entre o que uma frase significa<br />

literalmente (dado o seu contexto) e aquilo «para que chama a nossa<br />

atenção» (dado o seu sentido literal fixado pelo contexto). A passagem<br />

que acabo de citar não emprega esta distinção: aquilo que diz que os<br />

exemplos de frases chamam a nossa atenção para, são factos expressos<br />

por paráfrases de frases. Verbrugge e McCarrell apenas pretendem insistir<br />

que uma correcta paráfrase pode enfatizar «sistemas de relações» em vez<br />

de semelhanças entre objectos.<br />

Segundo a teoria da interacção de Black, uma <strong>metáfora</strong> obriga-nos<br />

a aplicar um «sistema de lugares comuns», associado à palavra<br />

metafórica, ao tema da <strong>metáfora</strong>: em «O homem é um lobo» aplicamos<br />

atributos tópicos (estereótipos) do lobo ao homem. Assim, a <strong>metáfora</strong>,<br />

afirma Black, «selecciona, enfatiza, suprime e organiza características do<br />

termo principal implicando enunciado sobre ele que normalmente se<br />

10 Robert R. Verbrugge e Nancy S. McCarrell, «Metaphoric Comprehension: Studies in<br />

Reminding and Resembling», Cognitive Psychology 9 (1977): 499.


aplicam ao termo subsidiário». 11 Se a paráfrase falha, segundo Black, não<br />

é porque a <strong>metáfora</strong> não tenha um conteúdo cognitivo especial, mas<br />

porque a paráfrase «não terá o mesmo poder de informar e iluminar que o<br />

original [...] Uma das questões que desejo sublinhar é a de que a perda<br />

nestes casos é uma perda de conteúdo cognitivo; a fraqueza relevante da<br />

paráfrase literal não é a de que pode ser cansativamente prolixa ou<br />

tediosamente explícita; falha em ser uma <strong>trad</strong>ução porque falha em dar a<br />

compreensão que a <strong>metáfora</strong> proporcionava». 12<br />

Como pode isto estar certo? Se uma <strong>metáfora</strong> tem um conteúdo<br />

cognitivo especial por que razão seria tão difícil ou impossível mostrá-lo?<br />

Se, como Owen Barfield reivindica, uma <strong>metáfora</strong> «diz uma coisa e quer<br />

dizer outra», porque razão quando tentamos tornar explícito o que<br />

significa, o efeito é muito mais fraco - «coloque-se desse modo», diz<br />

Barfield, «e quase todo o lustro, e com ele metade da poesia, se perde»? 13<br />

Porque pensa Black que uma paráfrase literal «diz inevitavelmente<br />

demasiado – e com a ênfase errada»? Porquê inevitavelmente? Não<br />

podemos, se somos suficientemente espertos, aproximar-nos tanto quanto<br />

nos apetecer?<br />

A este respeito, como explicar que um símile viva<br />

harmoniosamente sem um significado intermédio? Em geral, os críticos<br />

não sugerem que um símile diga uma coisa e signifique outra – não<br />

supõem que signifique nada mais do que repousa na superfície das<br />

palavras. Pode fazer-nos pensar pensamentos profundos, tal como a<br />

<strong>metáfora</strong>; então, por que razão ninguém apela para o «sentido cognitivo<br />

especial» do símile? Lembremo-nos do hipopótamo de Eliot; aí não há<br />

nem símile nem <strong>metáfora</strong>, para o que parecia ser feito é exactamente o<br />

11<br />

Black, pp. 44-45.<br />

12<br />

Ibid., p. 46.<br />

13<br />

Owen Barfield, «Poetic Diction and Legal Fiction», in The Importance of<br />

Language, ed. Max Black (Englewood Cliffs, N.J., 1962), p. 55.


que é feito por símiles e <strong>metáfora</strong>s. Alguém sugere que as palavras no<br />

poema de Eliot tenham significados especiais?<br />

Por último, se as palavras na <strong>metáfora</strong> transportam um significado<br />

codificado, como pode esse significado diferir do significado que essas<br />

mesmas palavras transportam no caso de a <strong>metáfora</strong> morrer – isto é,<br />

quando se torna parte da linguagem? Porque não significa «Ele estava<br />

queimado», como hoje é usada e significa esta frase, exactamente o<br />

mesmo que a <strong>metáfora</strong> viva significou em tempos? Todavia, tudo o que a<br />

<strong>metáfora</strong> morta significa é que ele estava muito zangado – uma noção não<br />

muito difícil de tornar explícita.<br />

Existe, pois, uma tensão na perspectiva habitual da <strong>metáfora</strong>. Isto<br />

porque, por um lado, a perspectiva habitual pretende defender que a<br />

<strong>metáfora</strong> faz algo que a simples prosa não consegue fazer, e, por outro<br />

lado, quer explicar o que a <strong>metáfora</strong> faz apelando para um conteúdo<br />

cognitivo – justamente o tipo de coisa que a simples prosa tem a intenção<br />

de expressar. Enquanto estivermos inseridos neste quadro mental,<br />

devemos albergar a suspeita de pode ser feito, pelo menos até certo ponto.<br />

Existe uma forma simples para sair deste impasse. Devemos<br />

abandonar a ideia de que a <strong>metáfora</strong> transporta uma mensagem, de que<br />

tem um conteúdo ou significado (excepto, é claro, o seu sentido literal).<br />

As diferentes teorias que temos estado a considerar enganam-se no seu<br />

objectivo. Onde pensam que proporcionam um método para decifrar um<br />

conteúdo codificado, na verdade dizem-nos (ou tentam dizer-nos) algo<br />

sobre o efeito que as <strong>metáfora</strong>s têm em nós. O erro comum é o de aferrarse<br />

a estes conteúdos do pensamentos que uma <strong>metáfora</strong> provoca e ler<br />

esses conteúdos na própria <strong>metáfora</strong>. Não há dúvida que as <strong>metáfora</strong>s<br />

frequentemente nos fazem notar aspectos das coisas de não nos tínhamos<br />

apercebido; não há dúvida que chamam a atenção para surpreendentes<br />

analogias e semelhanças; proporcinam de facto uma espécie de lente ou<br />

janela, como diz Black, através dos quais vemos os fenómenos relevantes.


A questão não reside aqui, mas sim na questão de como a <strong>metáfora</strong> se<br />

relaciona com o que nos faz ver.<br />

Pode ser observado com justiça que a pretender que uma <strong>metáfora</strong><br />

provoca ou convoca uma certa perspectiva sobre o seu tema, mais do que<br />

o enunciá-lo directamente, é um lugar-comum; assim é. Assim,<br />

Aristóteles afirma que a <strong>metáfora</strong> conduz a uma «percepção de<br />

semelhanças». Black, seguindo Richards, diz que uma <strong>metáfora</strong> «evoca»<br />

uma certa reacção: «um ouvinte adquado será conduzido por uma<br />

<strong>metáfora</strong> a construir [...] um sistema». 14 Esta perspectiva é<br />

primorosamente sumariada por aquilo que Heráclito disse do Oráculo de<br />

Delfos: «Não diz nem esconde, insinua». 15<br />

Não discuto estas descrições dos efeitos da <strong>metáfora</strong>, apenas<br />

contesto as perspectivas associadas sobre o modo como se supõe que a<br />

<strong>metáfora</strong> os provoca. O que nego é que a <strong>metáfora</strong> funcione por ter um<br />

sentido especial, um conteúdo cognitivo específico. Não penso, como<br />

Richards, que a <strong>metáfora</strong> produza o seu resultado por ter um significado<br />

que resulta da interacção de duas ideias; está errado, do meu ponto de<br />

vista, dizer, como Owen Barfield, que a <strong>metáfora</strong> «diz uma coisa e<br />

significa outra»; ou, como Black, que a <strong>metáfora</strong> afirma ou implica certas<br />

coisas complexas por força de um significado especial e, assim, realiza o<br />

objectivo de veicular uma «compreensão». Uma <strong>metáfora</strong> cumpre-se<br />

através de outros intermediários – supor que pode apenas ser efectiva por<br />

veicular uma mensagem codificada é como pensar que uma anedota ou<br />

um sonho fazem uma qualquer afirmação que um intérprete inteligente<br />

pode reafirmar em prosa simples. Anedota, sonho ou <strong>metáfora</strong> podem,<br />

como um quadro ou um galo na cabeça, fazer-nos tomar atenção para um<br />

facto – mas não por substituir, ou expressar, o facto.<br />

14 Black, p. 41.<br />

15 Utilizo a atractiva <strong>trad</strong>ução de Hannah Arendt de «σηµαινει»; manifestamente<br />

não deve, neste contexto, ser <strong>trad</strong>uzido por «significa».


Se isto for correecto, o que tentamos fazer quando<br />

«parafraseamos» uma <strong>metáfora</strong> não pode ser proporcionar o seu sentido,<br />

pois ele permanece na superfície; antes, tentamos evocar aquilo para que<br />

a <strong>metáfora</strong> nos chama a atenção. Posso imaginar uma pessoa concedendo<br />

isto, e depois encolher o ombros e dizer que não se trata mais do que uma<br />

insistência em restringir o uso da palavra «significado». Isto seria um<br />

erro. O erro central a propósito da <strong>metáfora</strong> é mais fácil de abordar<br />

quando toma a forma de uma teoria do significado metafórico, mas por<br />

detrás dessa teoria, independente e estável, encontra-se a tese que associa<br />

a <strong>metáfora</strong> a um conteúdo cognitivo que o seu autor deseja veicular e que<br />

o intérprete deve captar se quer perceber a mensagem. Esta teoria é falsa,<br />

chamemos ou não ao conteúdo cognitivo implicado um significado.<br />

Deveria fazer-nos suspeitar a teoria de que é muito difícil de<br />

decidir, mesmo no caso das <strong>metáfora</strong>s mais simples, exactamente que<br />

conteúdo se supõe ser. A razão pela qual é tantas vezes difícil de decidir é<br />

porque, segundo penso, imaginamos que há um conteúdo a ser capturado<br />

quando, na verdade, estamos a todo o momento focando aquilo para que a<br />

<strong>metáfora</strong> nos chama a atenção. Se aquilo para que a <strong>metáfora</strong> nos chama a<br />

atenção fosse finito no seu alcance e de natureza proposicional, não<br />

constituiria um problema; apenas teríamos de projectar o conteúdo da<br />

<strong>metáfora</strong>, trazido ao pensamento, sobre a <strong>metáfora</strong>. Mas, na verdade, não<br />

há limite para o que a <strong>metáfora</strong> nos chama a atenção, e muito daquilo para<br />

que atentamos não é de carácter proposicional. Quando tentamos dizer o<br />

que uma <strong>metáfora</strong> «significa», depressa nos damos conta de que não há<br />

limite para aquilo que queremos mencionar. 16 Se alguém percorre com o<br />

16 Stanley Cavell menciona o facto de que a maioria das tentativas de fazer uma<br />

paráfrase acabam com um «e assim sucessivamente», e refere-se à advertência de<br />

Empson de que as <strong>metáfora</strong>s estão «grávidas» (Must We Mean What We Say?<br />

[New York, 1969], p. 79). Mas Cavell não explica o carácter interminável da<br />

paráfrase como eu faço, como se pode ver no facto de ele pensar que isso


dedo uma linha costeira de um mapa, ou menciona a beleza e a destreza<br />

de um traço de Picasso, quantas coisas nos chamam a atenção?<br />

Poderíamos fazer uma lista com muitas dessas coisas, mas não<br />

poderíamos acabar, uma vez que a ideia de acabar não teria uma<br />

aplicação clara. Quantos factos e proposições são veiculados por uma<br />

fotografia? Nenhum, um número infinito, ou um grande e instável facto?<br />

Uma má pergunta. Uma imagem não vale mil palavras, ou um outro<br />

qualquer número delas. As palavras são uma moeda errada para trocar por<br />

uma imagem.<br />

Não se trata apenas de não conseguirmos proporcionar um<br />

catálogo exaustivo daquilo para que atentamos quando somos levados a<br />

ver algo sob uma luz nova; a dificuldade é mais fundamental. Aquilo de<br />

que nos apercebemos ou vemos não é, regra geral, de carácter<br />

proposicional. Claro que pode sê-lo, e quando o é pode ser habitualmente<br />

enunciado com palavras bastante simples. Mas se vos mostro o patocoelho<br />

de Wittgenstein, e vos digo, «É um pato», então com um pouco de<br />

sorte vêem-no como um pato; se digo, «É um coelho», vêem-no como um<br />

coelho. Contudo, nenhuma proposição exprime o que vos levei a ver.<br />

Talvez acabem por dar conta de que o desenho pode ser visto ou como<br />

um pato ou como um coelho. ‘Ver como’ não é ‘ver que’. A <strong>metáfora</strong> faznos<br />

ver uma coisa como outra através de um enunciado literal que inspira<br />

ou sugere a percepção. Dado que a maior parte das vezes aquilo que a<br />

<strong>metáfora</strong> sugere ou inspira não é inteiramente, ou mesmo sequer, o<br />

reconhecimento de uma verdade ou facto, a tentativa de dar expressão<br />

literal ao conteúdo da <strong>metáfora</strong> é simplesmente extraviado.<br />

distingue a <strong>metáfora</strong> de algum («mas se calhar não todo») discurso literal. Eu<br />

mantenho que o carácter interminável daquilo a que chamamos paráfrase de uma<br />

<strong>metáfora</strong> nasce do facto de que tenta revelar aquilo para que a <strong>metáfora</strong> nos<br />

chama a atenção, e para isto não há um fim claro. Diria o mesmo para qualquer<br />

uso da linguagem.


O teórico que tenta explicar uma <strong>metáfora</strong> apelando para uma<br />

mensagem oculta, como o crítico que tenta expressar a mensagem, está<br />

então fundamentalmente confundido. Nenhuma explicação ou enunciado<br />

deste teor podem chegar a comparecer porque semelhante mensagem não<br />

existe.<br />

Não se trata, claro está, de que a interpretação e explicação de uma<br />

<strong>metáfora</strong> não se justifiquem. Muitos de nós precisamos de ajuda para<br />

podermos ver o que o autor de uma <strong>metáfora</strong> quis que víssemos, e que um<br />

leitor mais sensível ou educado capta. A função legítima da chamada<br />

paráfrase é a de fazer com que o leitor preguiçoso ou ignorante tenha uma<br />

visão como aquela que tem o crítico hábil. O crítico, por assim dizer, está<br />

a competir de forma benigna com a pessoa que fez a <strong>metáfora</strong>. O crítico<br />

tenta fazer a sua própria arte mais fácil e transparente, nalguns aspectos,<br />

em relação ao original, mas ao mesmo tempo tenta reproduzir noutras<br />

pessoas alguns dos efeitos que o original lhe produziu. Ao fazê-lo, o<br />

crítico chama a atenção, talvez através do melhor método que tem à sua<br />

disposição, para a beleza ou adequação, o poder oculto, da própria<br />

<strong>metáfora</strong>.

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