O desenvolvimento e as mudanças de padrões intelectuais
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<strong>de</strong> preconceito iluminístico nos habituamos a ver a vida intelectual<br />
como pura razão como constante vitória d<strong>as</strong> luzes da razão sobre <strong>as</strong><br />
trev<strong>as</strong> da ignorância e dos preconceitos, o que, paradoxalmente, redunda<br />
num preconceito <strong>de</strong> natureza racionalista ou intelectualista<br />
<strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nte sabor iluminístico. A inteligência que <strong>de</strong>rrubou, no curso<br />
dos séculos, tantos mitos e fetiches, <strong>de</strong> certo modo fetichizou-se e<br />
mitificou-se a si mesma no culto iluminístico da razão governante,<br />
<strong>de</strong>pois transmutado no culto positivístico da Ciência (sempre com<br />
reverente maiúscula) , ambos responsáveis por uma sofocracia mais<br />
ou menos JIÜ-aginária ou efetiva que compensava o intelectual <strong>de</strong> su<strong>as</strong><br />
frustrações vitais, com a hipótese da vigência <strong>de</strong> uma nova República<br />
platônica, on<strong>de</strong> os filósofos-reis teriam sido transformados em algn<br />
como um sociólogo planejador, em su<strong>as</strong> vári<strong>as</strong> metamorfoses, que<br />
vão do teórico-do partido, nos mo<strong>de</strong>rnos Estados totalitários, até o<br />
tecnocrata cibernético que vai, aos poucos, aproximando o nosso <strong>de</strong>fectivo<br />
mundo liberal da dimensão profética do 1984 <strong>de</strong> Orwell.<br />
Quando a inteligência se fere com uma arma <strong>de</strong> sua própria invenção,<br />
não será raro que reaja com <strong>as</strong> arm<strong>as</strong> mais velh<strong>as</strong> <strong>de</strong> seu<br />
arsenal, tais como a ironia e o ridículo, não sendo poucos os obstáculos<br />
que terá <strong>de</strong> enfrentar -quem se disponha a fazer uma sociologia da<br />
vida intelectual. Como um dos itens <strong>de</strong> S\ta investigação há <strong>de</strong> ser,<br />
necessariamente, <strong>as</strong> form<strong>as</strong> competitiv<strong>as</strong> e até conflitantes do interrelacionamento<br />
dos grupos mutualísticos (lue caracterizam a República<br />
d<strong>as</strong> Letr<strong>as</strong>, não é difícil que sua investigação se veja caricaturada<br />
como mera futilida<strong>de</strong> ou, mesmo, mexerico. Como tem sido sempre<br />
do bom tom - em coerência com aquele preconceito iluminístico<br />
- aludir <strong>as</strong> facet<strong>as</strong> menos brilhantes e mais fragilmente human<strong>as</strong><br />
n<strong>as</strong> biografi<strong>as</strong> d<strong>as</strong> figur<strong>as</strong> exemplares <strong>de</strong> "nossos poet<strong>as</strong> amados"<br />
"nossos escritores preferidos", ou "nossos pensadores <strong>de</strong> eleição", não<br />
há que surpreen<strong>de</strong>r-se se o sociólogo da vida intelectual for acusado<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>srespeito <strong>de</strong>molidor dos vultos históricos nacionais ou universais,<br />
conforme o âmbito mais ou menos amplo <strong>de</strong> sua investigação. Os<br />
que não vêem qualquer significação em outros <strong>as</strong>pectos da convivência<br />
que não sejam os ostensivamente políticos ou econômicos, qualifica-lo-ão<br />
<strong>de</strong> escapist<strong>as</strong>, i<strong>de</strong>alist<strong>as</strong>, acomodado ou outr<strong>as</strong> quaisquer fórmul<strong>as</strong><br />
pejorativ<strong>as</strong> <strong>de</strong> que é tão rico o arsenal d<strong>as</strong> disput<strong>as</strong> no âmbito<br />
da vida intelectual, que -não há negar! - <strong>as</strong> atuais disput<strong>as</strong> <strong>de</strong> sociólogos,<br />
economist<strong>as</strong>, tecnológos e tant<strong>as</strong> mais figur<strong>as</strong> up to date<br />
reeditam, em certos <strong>as</strong>pectos monotonamente - é verda<strong>de</strong> que sob a<br />
roupagem nova <strong>de</strong> outr<strong>as</strong> vigênci<strong>as</strong> palavra, <strong>de</strong> nov<strong>as</strong> vigênci<strong>as</strong> modismo,<br />
<strong>de</strong> renovad<strong>as</strong> vigênci<strong>as</strong> idéia e remo<strong>de</strong>lad<strong>as</strong> vigênci<strong>as</strong> instituição<br />
- <strong>as</strong> mesm<strong>as</strong> disput<strong>as</strong> <strong>de</strong> nossos poet<strong>as</strong> e prosadores do 1900 pelo<br />
domínio do pequeno público que o jornalismo literário começava a<br />
entreter naquele então, como hoje faz a televisão com o gran<strong>de</strong> público<br />
<strong>de</strong> nossa incipiente socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo.<br />
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Como, entretanto, <strong>as</strong> cois<strong>as</strong> frívol<strong>as</strong> não costumam irritar tanto<br />
senhores tão graves e tão conscienciosos da serieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu mister<br />
como os sociólogos, economist<strong>as</strong> e tecnocrat<strong>as</strong> do <strong><strong>de</strong>senvolvimento</strong> ou<br />
da burocracia, há que, pelo menos, suspeitar que a sociologia da vida<br />
intelectual não é uma frivolida<strong>de</strong> a mais n<strong>as</strong> mod<strong>as</strong> <strong>intelectuais</strong> -<br />
aliás, mais um explosivo tema <strong>de</strong> seu estudo ... - porém, ao contrário,<br />
algo que po<strong>de</strong>, até mesmo, servir a uma insubornável motivação<br />
ética, que, em nosso c<strong>as</strong>o pessoal - seja logo revelada essa premissa<br />
<strong>de</strong> valor em homenagem à neutralida<strong>de</strong> científica! ... - se propõe<br />
<strong>de</strong>svendar <strong>as</strong> engrenagens a ().Ue está presa a vida do espírito para<br />
permitir que ela seja mais pura e mais livre, naquele velho e melhor<br />
estilo do humanismo científico, que diz ser a conquista da liberda<strong>de</strong><br />
função do nosso conhecimento dos <strong>de</strong>terminismos.<br />
Tais idéi<strong>as</strong> nos vêm amadurecendo no espírito <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos juvenis,<br />
quando publicamos pela editora <strong>de</strong> uma revista literária <strong>de</strong><br />
novos escritores - Ca<strong>de</strong>rno da Bahia - o ensaio titulado Dois Aspectos<br />
da Sociologia do Conhecimento, e ainda mais se acentuou com a<br />
experiência vital da hecatombe da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Br<strong>as</strong>ília em 1965,<br />
provocada, em sua essência, por tantos equívocos e mal entendidos<br />
prÓl-'rios dg vida intelectual. .. e da outra ... Dessa experiência, resultou<br />
o livro editado pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> S. Paulo sob o título Da<br />
Vigência Intelectual, on<strong>de</strong> nos propomos uma análise teórica da aventura<br />
do pensamento visto como um ingrediente da vida coletiva. O<br />
livro conclui, al(?o pessimistic'-'.mente, com um capítulo .
filosofia jurídica- não po<strong>de</strong>ria ocorrer temática mais fecunda e mais<br />
suculenta.<br />
A pesquisa durou todo o ano <strong>de</strong> 68, sob a forma <strong>de</strong> seminários <strong>de</strong><br />
treinamento e suscitou, <strong>de</strong>pois, um curso <strong>de</strong> pós-graduação sobre "Metodologia<br />
<strong>de</strong> Pesquisa em Sociologia do Conhecimento", realizado no<br />
segundo semestre <strong>de</strong> 1969. Em fins <strong>de</strong> 70, já o relatório final era apresentado<br />
ao Departamento <strong>de</strong> Sociologia da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia e<br />
Ciênci<strong>as</strong> Human<strong>as</strong> da UFBa. como tese para concurso <strong>de</strong> professor<br />
titular, sob o título <strong>de</strong> Estrutura Social da República d<strong>as</strong> Letr<strong>as</strong> (Sociologia<br />
da Vida Intelectual Br<strong>as</strong>ileira: 1870-1930).<br />
Usando a mesma metodologia, m<strong>as</strong> com bem maiores possibilida<strong>de</strong>s<br />
empíric<strong>as</strong>, graç<strong>as</strong> à redução dos âmbitos temporal e espacial da<br />
1nvestigação, estamos agora empenhados - ainda uma vez como parte<br />
<strong>de</strong> nossa ativida<strong>de</strong> no Mestrado da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia e Ciênci<strong>as</strong><br />
Human<strong>as</strong> da UFBa., - numa sociologia da vida intelectual baiana<br />
entre <strong>as</strong> dat<strong>as</strong> <strong>de</strong> 1900 e 1930.<br />
Alguns <strong>as</strong>pectos <strong>de</strong>ss<strong>as</strong> investigações no que importa à temática<br />
<strong>de</strong>ste simpósio foi o que escolhemos para focalizar o <strong><strong>de</strong>senvolvimento</strong><br />
e <strong>as</strong> mudanç<strong>as</strong> <strong>de</strong> <strong>padrões</strong> <strong>intelectuais</strong>. Esses <strong>as</strong>pectos po<strong>de</strong>rão ser<br />
aqui resumidos em quatro principais: a) Profissão e Vocação; b) -<br />
Corcmnicação e Público; c) - Relacionamento estrutural dos grupos<br />
<strong>intelectuais</strong> e d) - Vigência Intelectual. Serão esses os parâmetros<br />
com b<strong>as</strong>e nos quais anotaremos <strong>as</strong> mudanç<strong>as</strong> <strong>de</strong> comportamento intelectual<br />
suscitad<strong>as</strong> pelo <strong><strong>de</strong>senvolvimento</strong> em nosso país, tomando ::orno<br />
situações comparativ<strong>as</strong> a intelectualida<strong>de</strong> br<strong>as</strong>ileira dos começos do<br />
século e a atual.<br />
* * *<br />
2. Profissão e Vocação - Uma d<strong>as</strong> maiores dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> enquadramento<br />
social do intelectual é a <strong>de</strong> encontrar uma compatibilida<strong>de</strong><br />
existencial entre profissão e vocação. É um problema <strong>de</strong> todos<br />
os di<strong>as</strong> na vida do artista, do poeta, do sábio, do pensador <strong>de</strong> tod<strong>as</strong> <strong>as</strong><br />
époc<strong>as</strong>, o encontro <strong>de</strong> um que-fazer AUe não seja, pelo seu enervante<br />
prosaismo rotineiro, algo incompatível com um espírito criador. Como<br />
o comum dos mortais em qualquer socieda<strong>de</strong> incidirá majoritariamente<br />
na categoria dos homens ocupados, ao invés <strong>de</strong> na dos preocupados<br />
- para mencionarmos a sutil tipologia <strong>de</strong> Ortega para "o intelectual"<br />
e "o outro" - não será razoável esperar que estes últimos,<br />
que não se dispõem, por formação psicológica, a serem pragmaticamente<br />
úteis, vejam convenientemente remunerad<strong>as</strong>, como numa profissão,<br />
aquel<strong>as</strong> taref<strong>as</strong> criador<strong>as</strong> a que amam <strong>de</strong>dicar-se. Daí que um<br />
utensílio, um móvel, um barco, uma c<strong>as</strong>a tenham um <strong>de</strong>terminado<br />
preço no mercado, e outro tanto não ocorra sempre com um soneto,<br />
uma crônica, um teorema ou um sistema filosófico. O próprio Znanieckl,<br />
estudando o papel social do intelectual, chegou a consi<strong>de</strong>rar como<br />
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<strong>de</strong>les. Como se vê, por esses simples dados, muitos <strong>de</strong>les exerciam vári<strong>as</strong><br />
ativida<strong>de</strong>s remunerad<strong>as</strong>, como meio <strong>de</strong> subsistência sucedâneo <strong>de</strong><br />
um melhor enquadramento vocação-profissão.<br />
Uma nota especial em relação a esse item merece a <strong>de</strong>vida ênf<strong>as</strong>e.<br />
É o c<strong>as</strong>o da boêmia intelectual. Talvez não haja maior transformação<br />
dos hábitos <strong>intelectuais</strong> do iCJ.Ue o <strong>de</strong>saparecimento da boêmia.<br />
Humberto <strong>de</strong> Campos soube ver a raiz sociológica <strong>de</strong>sse processo,<br />
ao comentar o outro romance <strong>de</strong> Coelho Néto <strong>de</strong>dicado a retratar o<br />
<strong>as</strong>sunto - Fogo Fátuo. Nesse seu comentário, Humberto <strong>de</strong> Campos,<br />
revelando qualida<strong>de</strong>s sociológic<strong>as</strong> <strong>de</strong> compreensão que, no Br<strong>as</strong>il, somente<br />
seriam estread<strong>as</strong>, nó âmbito profissional dos sociólogos, com a<br />
publicação <strong>de</strong> C<strong>as</strong>a Gran<strong>de</strong> e Senzala, <strong>de</strong> Gilberto Freyre, evoca, com<br />
mão àe mestre, o <strong>de</strong>senquadramento da conduta boêmia após o momento<br />
da repressão florianista, n<strong>as</strong> nov<strong>as</strong> condições <strong>de</strong> vida e na média<br />
dos projetos vitais dos jovens <strong>de</strong> então, projetos agora reformulados<br />
em termos <strong>de</strong> novos valores mais utilitários, suscitados pel<strong>as</strong><br />
nov<strong>as</strong> oportunida<strong>de</strong>s polític<strong>as</strong> e sociais que a pequena <strong>de</strong>mocratização<br />
da viàa br<strong>as</strong>ileira <strong>de</strong>corrente da República já fundamentava: "Quando<br />
os fugitivos e os exilados retornam ao Rio, não encontraram mais<br />
o ambiente propício, que \haviam <strong>de</strong>ixado. As nov<strong>as</strong> condições financeir<strong>as</strong><br />
e econômic<strong>as</strong> tornavam difícil a prática do par<strong>as</strong>itismo risonho,<br />
G:Ue o Império. com <strong>as</strong> fortun<strong>as</strong> consolidad<strong>as</strong>, criara, alimentara e legara<br />
à República. Uma socieda<strong>de</strong> nova, utilitária e burguesa, levantava-se<br />
sobre os <strong>de</strong>stroços da aristocracia imperial. A mocida<strong>de</strong> que<br />
surgia, mesmo no domínio d<strong>as</strong> letr<strong>as</strong>, vinha, agora, com outr<strong>as</strong> idéi<strong>as</strong>,<br />
outra tendência, outr<strong>as</strong> <strong>as</strong>pirações. A política prometida ao povo,<br />
atraía os novos. Para ser <strong>de</strong>putado ou senador, ou ocupar altos postos<br />
da administração, não se tornava preciso, mais, como no regime <strong>de</strong>caído,<br />
a etiqueta <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> nome ou a fama <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> talento.<br />
E como para substituir a velhice ou a nobreza se fazia mister uma<br />
compostura hipócrita, a mocida<strong>de</strong> abandonou os jardins dos teatros,<br />
<strong>as</strong> corist<strong>as</strong>, <strong>as</strong> confeitari<strong>as</strong> e os versos, tornando-se publicamente grave,<br />
circunspecta, como quem toma a cada instante o peso d<strong>as</strong> própri<strong>as</strong><br />
responsabilida<strong>de</strong>s. E a boêmia literária, que <strong>de</strong>u ao país tão belos espíritos,<br />
e <strong>de</strong>ra à cida<strong>de</strong> tanta alegria, agonizou e morreu" (3)<br />
Outro ponto ligado ao enquadramento profissional é o da formação<br />
escolar. Na pesquisa que empreen<strong>de</strong>mos com duzent<strong>as</strong> biografi<strong>as</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>intelectuais</strong> do período, está plenamente justificado o estereótipo<br />
<strong>de</strong> "país dos bacharéis". De fato, daqueles duzentos, cento e cinco haviam<br />
p<strong>as</strong>sado por uma faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> direito, noventa e sete tendo concluído<br />
o curso, eUQ.uanto apen<strong>as</strong> vinte e nove p<strong>as</strong>saram pel<strong>as</strong> <strong>de</strong> medicina<br />
e <strong>de</strong>zessete pel<strong>as</strong> <strong>de</strong> engenharia, seis pel<strong>as</strong> aca<strong>de</strong>mi<strong>as</strong> militares,<br />
cinco pelos seminários e outro tanto pelos cursos <strong>de</strong> farmácia. Eis<br />
aqui um ponto em que o <strong><strong>de</strong>senvolvimento</strong>, como diferenciação da estrutura<br />
econômica e social, alterou profundamente a pauta d<strong>as</strong> ocupações<br />
e especializações <strong>intelectuais</strong>, com consi<strong>de</strong>ráveis repercussões<br />
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gran<strong>de</strong> significação à polêmica, que coloria <strong>de</strong> uma certa feição bélica<br />
toda a paisagem da vida intelectual, toda ela marcada pela presença<br />
.:onstante d<strong>as</strong> metáfor<strong>as</strong> bélic<strong>as</strong>, dos epigram<strong>as</strong>, dos epitáfios e dos<br />
trocadilhos insultuosos. Com isso, a vida do espírito per<strong>de</strong>u um pouco<br />
aquele seu ar oficial <strong>de</strong> "vida pública", qu<strong>as</strong>e política, e sempre exercida<br />
por homens que não estariam completos em sua figura intelectual<br />
se não adorn<strong>as</strong>sem sua. biografia com um mandato legislativo ou<br />
executivo, ganhando, <strong>as</strong>sim, involuntariamente, a vida intelectual dos<br />
nossos di<strong>as</strong>, uma certa dimensão <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong> e recolhimento, que<br />
tem parecido sempre imprescindível a toda obra espiritual.<br />
No plano material da vida do escritor a repercussão mais visível<br />
é o aparecimento da profissão literária, vivendo-se já da literatura<br />
entre nós, situação <strong>de</strong> que Jorge Amado e Érico Veríssimo foram precursores<br />
em nosso meio.<br />
Recentemente, o movimento editorial br<strong>as</strong>ileiro cresceu extraordinariamente,<br />
expandindo-se para o terreno d<strong>as</strong> obr<strong>as</strong> exta-literári<strong>as</strong>,<br />
sobretudo no âmbito d<strong>as</strong> ciênci<strong>as</strong> human<strong>as</strong>, on<strong>de</strong> a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
traduções <strong>de</strong> obr<strong>as</strong> estrangeir<strong>as</strong> revela o impacto da ampliação d<strong>as</strong><br />
universida<strong>de</strong>s br<strong>as</strong>ileir<strong>as</strong> sobre o mercado editorial e a indústria<br />
do livro. O antigo folhetim jornalístico foi substituído pela produção<br />
<strong>de</strong> f<strong>as</strong>cículos culturais já agora envolvendo também o disco clássico<br />
e popular, com o que a produção intelectual erudita p<strong>as</strong>sou a beneficiar-se<br />
dos novos <strong>padrões</strong> <strong>de</strong> comunicação e consumo, que o <strong><strong>de</strong>senvolvimento</strong><br />
instaurou no país, aí incluindo-se o rádio e a TV educativos<br />
e culturais.<br />
* * *<br />
4 - Relacionamento Estrutural dos Grupos Intelectuais - Tudo<br />
isso haveria <strong>de</strong> repercutir no interrelacionamento humano dos <strong>intelectuais</strong>.<br />
Se é óbvio que <strong>as</strong> igrejinh<strong>as</strong> tinham outrora uma função mutualística<br />
muito mais evi<strong>de</strong>nte, servindo ao apoio tanto intelectual como,<br />
mesmo, material, através dos pistolões e d<strong>as</strong> perseguições cuidadosamente<br />
orientados pelo critério "nosso grupo" x "grupo alheio", a ampliação<br />
do público e do mercado cultural tornaria o escritor tanto mais<br />
liberto <strong>de</strong>ss<strong>as</strong> lealda<strong>de</strong>s primári<strong>as</strong>, como, no outro plano, o trabalhador<br />
ficou mais livre d<strong>as</strong> lealda<strong>de</strong>s clientelístic<strong>as</strong> <strong>de</strong> que, por exemplo,<br />
o coronelismo era uma expressão predominantemente rural da paisagem<br />
br<strong>as</strong>ileira sub<strong>de</strong>senvolvida. Aqui também, industrialização, urbanização,<br />
enfim, <strong><strong>de</strong>senvolvimento</strong> econômico haveria que significar<br />
substituição <strong>de</strong> relações primári<strong>as</strong> por secundári<strong>as</strong>. Para ficarmos<br />
num só exemplo, pensemos na substituição dos antigos "salões" pelos<br />
congressos e simpósios científicos e literários.<br />
Se a vocação gremial dos escritores não se extinguiu, nem muito<br />
menos, <strong>as</strong> igrejinh<strong>as</strong> tomam agora nova forma e cor, até o extremo<br />
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<strong>de</strong> sofisticação <strong>de</strong> <strong>as</strong>sumirem uma forma auto-irônica e em íntima<br />
<strong>as</strong>sociação com a propaganda comercial do empreendimento cultural,<br />
<strong>de</strong> que a auto-rotulada "patota <strong>de</strong> O Parquim'' é um exemplo altamente<br />
digno dos mais nobres c<strong>as</strong>os do p<strong>as</strong>sado. Com uma diferença<br />
tipicamente resultante da situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimnto: quando igrejinh<strong>as</strong><br />
divers<strong>as</strong> se empenham para a institucionalização, mediante o<br />
reconhecimento mútuo da respectiva vigência intelectual, objetivando<br />
fundar a Aca<strong>de</strong>mia Br<strong>as</strong>ileira, na verda<strong>de</strong> objetivavam apen<strong>as</strong> . .. "a<br />
glória que fica, eleva, honra e consola", no dizer do famoso dístico <strong>de</strong><br />
Machado <strong>de</strong> Assis, que se tornou - et pour cause - da Aca<strong>de</strong>mia. A<br />
"patota" da Rua Clarisse índio do Br<strong>as</strong>il, expressando outros valores<br />
característicos da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, encontrou a fórmula feliz <strong>de</strong> <strong>as</strong>sociar<br />
a transitória glória <strong>de</strong> um mundo em que a segunda viagem do<br />
homem à lua já não era mais . . . "novida<strong>de</strong>", à vigência mais palpável<br />
e efetiva do êxito financeiro <strong>de</strong> uma próspera empresa especializada<br />
em rir e em fazer rir da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo que. . . a enriquece<br />
. ..<br />
A polêmica- subproduto especial da luta <strong>de</strong> igrejinh<strong>as</strong> - <strong>de</strong>caiu<br />
e está qu<strong>as</strong>e a extinguir-se como gênero jornalístico (não é sem significado<br />
o fato <strong>de</strong> O P<strong>as</strong>quim a estar transformando em gênero humorístico<br />
.. . ), porque o público, hoje multitudinário, tem, porém, outr<strong>as</strong><br />
"atrações" mais efetiv<strong>as</strong>. Interessa muito mais agora o escândalo<br />
que envolve a cantora famosa e o jogador da seleção ou a "nova imagem"<br />
do apresentador <strong>de</strong> TV que implanta uma nova cabeleira. E<br />
isso já nos diz b<strong>as</strong>tante da <strong>de</strong>cadência do intelectual como pessoa vigente<br />
e dos <strong>de</strong>mais <strong>as</strong>pectos da vigência intelectual <strong>de</strong> que trataremos<br />
no item que se segue.<br />
* * *<br />
5 - Vigência Intelectual - A palavra vigência é originária do<br />
vocábulo jurídico, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>signa o prazo em que uma norma está em<br />
vigor. Ortega y G<strong>as</strong>set ampliou-lhe a extensão conceitual ao falar em<br />
vigênci<strong>as</strong> sociais para <strong>de</strong>signar não mais apen<strong>as</strong> a norma ou a instituição<br />
jurídica em vigor, m<strong>as</strong> todo outro uso ou costume social extrajurídico.<br />
Tr<strong>as</strong>ladando-a do âmbito sociológico geral on<strong>de</strong> tinha implantado<br />
Ortega, para o mais específico da sociologia do conhecimento,<br />
cunhamos o conceito <strong>de</strong> vigência intelectual, tema e título<br />
do ensaio publicado pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo em 1968. Ele<br />
serve para <strong>de</strong>signar todos os usos, costumes, modismos, valores, palavr<strong>as</strong><br />
<strong>de</strong> êxito etc.. . . que durante certo tempo dominam a vida intelectual<br />
<strong>de</strong> uma dada socieda<strong>de</strong>. Tais vigênci<strong>as</strong> po<strong>de</strong>m ser uma pessoa,<br />
como ocorre com um intelectual que dá a nota durante certo tempo;<br />
uma instituição da República d<strong>as</strong> Letr<strong>as</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> <strong>as</strong> aca<strong>de</strong>mi<strong>as</strong> até os<br />
salões, os cafés e <strong>as</strong> port<strong>as</strong> <strong>de</strong> livrari<strong>as</strong>; uma idéia, que esteja em<br />
REv. c. SociAis, VoL. III N. 0 1 43
grafia a um amigo dileto ou <strong>as</strong> impressões <strong>de</strong>ixad<strong>as</strong> no livro <strong>de</strong> recordações<br />
da dona da c<strong>as</strong>a que se visitava num domingo. A "curtição"<br />
hoje é outra e, ao menos nesse peculiar sentido da palavra, a literatice<br />
"já era" ...<br />
Como "já eram" outros tantos modismos que a vida intelectual <strong>de</strong><br />
hoje, atuada pelo <strong><strong>de</strong>senvolvimento</strong>, po<strong>de</strong>-se dizer que arquivou, sem<br />
que se possa imaginar que não criou outros tantos, apen<strong>as</strong> mais pragmáticos<br />
e instrumentais, porque funcionais a uma socieda<strong>de</strong> individualista,<br />
racionalizada, secular, urbana e industrial, que se ainda não<br />
é, por inteiro, a situação br<strong>as</strong>ileira é, sem dúvida, a <strong>de</strong> seus principais<br />
núcleos urbanos, habitat preferido, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, da vida intelectual.<br />
NOTAS<br />
1) Znaniecki, Florlan - Papel Social <strong>de</strong>i Intelectual - Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica<br />
- México - 1944 - p. 33.<br />
2) Otávio, Rodrigo - Minh<strong>as</strong> Memóri<strong>as</strong> dos Outros - Nova Série J. Olympio Editora<br />
- Rio - 1935 - p. 121.<br />
3) Campos, Humberto <strong>de</strong> - Crítica - 2.a série - ed. Mariza - Rio - 1933 - p.<br />
161-62.<br />
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