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o mito do herói redentor: a representação de eneias na pintura do ...

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01_QUINTANA 22/02/2006 13:08 Pági<strong>na</strong> 78<br />

78 O <strong>mito</strong> <strong>do</strong> <strong>herói</strong> <strong>re<strong>de</strong>ntor</strong>: a <strong>representação</strong> <strong>de</strong> Eneias <strong>na</strong> <strong>pintura</strong> <strong>do</strong> Portugal restaura<strong>do</strong><br />

Vitor Serrão<br />

gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> quadros com tal <strong>representação</strong>.<br />

Os pressupostos i<strong>de</strong>ológicos da <strong>representação</strong><br />

É certo que se trata, antes <strong>de</strong> mais, <strong>de</strong> um<br />

tema integra<strong>do</strong> no repertório tolerável pelo<br />

<strong>de</strong>corum tri<strong>de</strong>ntino. A Tróia abrasada assume<br />

uma óbvia função exortativa e moralizante,<br />

ligada ao exemplo e ao testemunho<br />

<strong>do</strong> amor pie<strong>do</strong>so, através da figura <strong>do</strong> <strong>herói</strong><br />

Eneias, quase um precursor <strong>de</strong> Jesus Cristo.<br />

À luz das interpretações cristológicas da<br />

4ª écloga <strong>do</strong> poema <strong>de</strong> Virgílio, a lenda da<br />

pré-fundação <strong>de</strong> Roma por Eneias e seus<br />

companheiros merece o <strong>na</strong>tural reconhecimento<br />

da Igreja contra-reformista: o <strong>herói</strong><br />

troiano, salva<strong>do</strong>r <strong>de</strong> seu pai Anquises, constitui<br />

um símbolo da carida<strong>de</strong> e fraternida<strong>de</strong><br />

cristãs, sen<strong>do</strong> mesmo uma figura que profetiza<br />

a própria vinda <strong>de</strong> Jesus – ou seja, a<br />

imagem pagã <strong>de</strong>stituída <strong>do</strong> seu valor histórico-literário<br />

e que se coloca integralmente ao<br />

serviço da retórica católico-tri<strong>de</strong>nti<strong>na</strong>. Tratase,<br />

pois, <strong>de</strong> um assunto que, superan<strong>do</strong> a<br />

sua dimensão profa<strong>na</strong>, podia propôr leituras<br />

simbólicas inequívocas: por um la<strong>do</strong>, alegorizava<br />

sobre as consequências nefastas <strong>do</strong><br />

peca<strong>do</strong> e da paixão car<strong>na</strong>l (encar<strong>na</strong>das em<br />

Paris / Hele<strong>na</strong>), que causam a <strong>de</strong>struição <strong>de</strong><br />

uma cida<strong>de</strong> e a morte <strong>do</strong>s seus habitantes;<br />

por outro, em termos parango<strong>na</strong>is, à mentira<br />

e traição, razões <strong>de</strong> paixão pecaminosa,<br />

opõe-se a imagem <strong>re<strong>de</strong>ntor</strong>a <strong>de</strong> Eneias, o<br />

pie<strong>do</strong>so que salva o velho pai e o filho, to<strong>do</strong>s<br />

três representações das ida<strong>de</strong>s da Vida e da<br />

paixão virtuosa.<br />

De mo<strong>do</strong> mais metafórico, o tema significava<br />

a resistência <strong>do</strong>s povos à i<strong>de</strong>ia da tirania,<br />

e esse contexto patriótico po<strong>de</strong>rá ter funcio<strong>na</strong><strong>do</strong><br />

em contornos <strong>de</strong> franca legibilida<strong>de</strong><br />

nos anos difíceis da Restauração anti-castelha<strong>na</strong>.<br />

Estar-lhe-ia subjacente, ainda, a<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> legitimação <strong>de</strong> uma origem lendária<br />

<strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s portuguesas como Lisboa e Santarém,<br />

que seria filiável (segun<strong>do</strong> Frei Ber<strong>na</strong>r<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> Brito e outros autores da historiografia<br />

alcobacense <strong>do</strong> século XVII) <strong>na</strong><br />

chegada <strong>de</strong> <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> Ulisses e outros<br />

emigra<strong>do</strong>s por ocasião da guerra <strong>de</strong><br />

Tróia que teriam aporta<strong>do</strong> à costa portugue-<br />

QUINTANA Nº1 2002<br />

sa. O Incêndio <strong>de</strong> Tróia, incluin<strong>do</strong> o cavalo<br />

da traição a emergir por entre os muros em<br />

chamas e o trecho da fuga <strong>de</strong> Eneias a<br />

transportar Anquises constituíu também uma<br />

das empresas morais em que se mo<strong>de</strong>la a<br />

figura <strong>do</strong> Príncipe cristão, segun<strong>do</strong> a I<strong>de</strong>a <strong>de</strong><br />

un príncipe político cristiano representada en<br />

cien empresas <strong>de</strong> Diego Saavedra Fajar<strong>do</strong>,<br />

editada em Madrid em 1640 (reed. Amsterdão,<br />

1664): referimo-nos ao emblema XX-<br />

VII, intitula<strong>do</strong> Specie Religiones 28 , on<strong>de</strong> o<br />

cavalo penetran<strong>do</strong> <strong>na</strong> cida<strong>de</strong> sitiada é tema<br />

<strong>de</strong> alerta para a falta <strong>de</strong> unida<strong>de</strong> religiosa <strong>de</strong><br />

um Esta<strong>do</strong>, o que para Fajar<strong>do</strong> constitui o<br />

maior perigo, impon<strong>do</strong>-se ao príncipe uma<br />

atenção re<strong>do</strong>brada para a sua conservação<br />

e harmonia, valores que encar<strong>na</strong>m <strong>na</strong> bonda<strong>de</strong><br />

<strong>do</strong> <strong>herói</strong> Eneias, símbolo <strong>do</strong> príncipe<br />

virtuoso. Aquan<strong>do</strong> das festas <strong>do</strong> casamento<br />

<strong>de</strong> D. Afonso VI, filho e sucessor <strong>de</strong> D. João<br />

IV, com D. Maria Francisca <strong>de</strong> Sabóia, em<br />

1666, foram construídas aparatosas máqui<strong>na</strong>s<br />

<strong>de</strong> pirotecnia com diversas figurações,<br />

que <strong>de</strong>sfilaram no Terreiro <strong>do</strong> Paço antes <strong>de</strong><br />

serem incendiadas, sen<strong>do</strong> a primeira a <strong>de</strong><br />

“Troya que sobre hum cavallo por ser tão linda,<br />

& tão bella vinha incendios motivan<strong>do</strong>” 29 ,<br />

que <strong>de</strong>u início ao espectáculo com a simulação<br />

<strong>de</strong> um ataque à cida<strong>de</strong>, segun<strong>do</strong> <strong>na</strong>rra<br />

a Metaphorica Relaçãm das Festas <strong>de</strong> António<br />

Craesbeeck <strong>de</strong> Melo, autor para quem a<br />

virtu<strong>de</strong> divi<strong>na</strong> <strong>de</strong> Portugal é comparável às<br />

gran<strong>de</strong>zas <strong>de</strong> Tróia, <strong>de</strong> Atlas e <strong>de</strong> Babel. Seria<br />

interessante cotejar o efeito <strong>de</strong>stas festas<br />

com a cenografia da <strong>representação</strong> da ópera<br />

Di<strong>do</strong>ne, cujo libreto foi impresso em Nápoles<br />

em 1641, e cujos cenários se <strong>de</strong>veram<br />

ao “pellegrino architetto” Curzio Ma<strong>na</strong>ra. Tal<br />

como <strong>na</strong> Lisboa da Restauração, existem relatos<br />

<strong>de</strong> festivida<strong>de</strong>s públicas realizadas em<br />

Nápoles ao tempo <strong>do</strong> vice-rei<strong>na</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong> Duque<br />

<strong>de</strong> O<strong>na</strong>te, nos anos seguintes à revolta popular<br />

<strong>de</strong> Masaniello, como suce<strong>de</strong>u em 1650<br />

com a <strong>representação</strong> melodramática da Destruição<br />

da Tróia, por “u<strong>na</strong> Compagnia di musici<br />

di diverse parti d’Italia, che (...) ne prepararono<br />

un’altra parimente in musica Intitolata<br />

Troia Distrutta”, que incluía o recurso a cenografias<br />

com efeitos pirotécnicos 30 .<br />

A escolha <strong>do</strong> programa <strong>de</strong> festas <strong>do</strong> casamento<br />

<strong>de</strong> D. Afonso VI, com ence<strong>na</strong>ções <strong>de</strong>

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