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o porto negro - Área de História - UFF

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ERIKA BASTOS ARANTES<br />

O PORTO NEGRO: CULTURA E TRABALHO NO RIO DE<br />

JANEIRO DOS PRIMEIROS ANOS DO SÉC. XX<br />

Dissertação <strong>de</strong> Mestrado apresentada ao<br />

Departamento <strong>de</strong> <strong>História</strong> do Instituto <strong>de</strong> Filosofia e<br />

Ciências Humanas da Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong><br />

Campinas sob a orientação do Prof. Dra. Maria<br />

Clementina Pereira Cunha<br />

FEVEREIRO/2005


ERIKA BASTOS ARANTES<br />

O PORTO NEGRO: CULTURA E TRABALHO NO RIO DE<br />

JANEIRO DOS PRIMEIROS ANOS DO SÉC. XX<br />

Este exemplar correspon<strong>de</strong> à redação final da<br />

dissertação <strong>de</strong> mestrado <strong>de</strong>fendida e aprovada<br />

pela Comissão julgadora em 24/ 02 / 2005<br />

BANCA<br />

Prof. Dra Maria Clementina Pereira Cunha. (orientador)<br />

Profa. Dr. Fernando Teixeira da Silva (membro)<br />

Profa. Dra. Martha <strong>de</strong> Campos Abreu (membro)<br />

Profa. Dr. Sidney Chalhoub (suplente)<br />

Dissertação <strong>de</strong> Mestrado apresentada ao Departamento <strong>de</strong><br />

<strong>História</strong> do Instituto <strong>de</strong> Filosofia e Ciências Humanas da<br />

Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas sob a orientação do<br />

Prof. Dra Maria Clementina Pereira Cunha.<br />

FEVEREIRO/2005


FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA<br />

BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP<br />

Arantes, Erika Bastos.<br />

Ar14p O <strong>porto</strong> <strong>negro</strong> : cultura e trabalho no Rio <strong>de</strong> Janeiro dos<br />

primeiros anos do século XX / Erika Bastos Arantes. --<br />

Campinas, SP : [s.n.], 2005.<br />

Orientadora: Maria Clementina Pereira Cunha.<br />

Dissertação (mestrado) - Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong><br />

Campinas, Instituto <strong>de</strong> Filosofia e Ciências Humanas.<br />

1. Negros – Rio <strong>de</strong> Janeiro (RJ). 2. Rio <strong>de</strong> Janeiro (RJ) –<br />

Porto. 3. Cultura. 4. Trabalho. I. Cunha, Maria Clementina<br />

Pereira. II. Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas. Instituto<br />

<strong>de</strong> Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.<br />

Palavras -chave em inglês (Keywords): Blacks – Rio <strong>de</strong> Janeiro (RJ).<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro (RJ) – Port.<br />

Culture.<br />

Labor.<br />

<strong>Área</strong> <strong>de</strong> concentração: <strong>História</strong> social da cultura.<br />

Titulação: Mestre em história social.<br />

Banca examinadora: Maria Clementina Pereira Cunha, Fernando Teixeira da<br />

Silva, Martha <strong>de</strong> Campos Abreu.<br />

Data da <strong>de</strong>fesa: 23/02/2005.


v<br />

Aos meus pais e ao meu irmão,<br />

pela confiança e pelo apoio incondicional


vi<br />

O Cais do Porto, arquivo do saber<br />

Lugar on<strong>de</strong> se apren<strong>de</strong> o que quer,<br />

Uns pugnam pela virtu<strong>de</strong><br />

Outros se ilu<strong>de</strong>m<br />

Dado a facilida<strong>de</strong><br />

Enveredam por maus caminhos<br />

Depois <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>salinho<br />

A<strong>de</strong>us Socieda<strong>de</strong><br />

O Cais do Porto, Arquivo do Saber<br />

Eu pelo menos<br />

Tudo aquilo que colhi<br />

Riquezas <strong>de</strong> calos nas mãos<br />

Da moral impoluta<br />

Jamais esqueci<br />

Aí as religiões<br />

Todas fazem presença<br />

Fazem refeição e sobremesa<br />

Má querência<br />

O Cais do Porto, arquivo do saber<br />

Eu com quatro anos <strong>de</strong> associado<br />

Juntei-me a um veterano<br />

Reivindicando um direito<br />

No Ministério do Ensino<br />

Como soberano.<br />

(Partido <strong>de</strong> Aniceto <strong>de</strong> Menezes e Silva Jr., o Aniceto da Serrinha, trabalhador do <strong>porto</strong> na<br />

década <strong>de</strong> 40 e um dos fundadores do G. R. E.S. Império Serrano)


RESUMO<br />

Os <strong>negro</strong>s, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos da escravidão, encontraram no <strong>porto</strong> um ambiente propício ao<br />

trabalho. O serviço, por ser dinamizado principalmente através da mão <strong>de</strong> obra avulsa, fazia<br />

do <strong>porto</strong> um local privilegiado on<strong>de</strong> escravos <strong>de</strong> ganho po<strong>de</strong>riam conseguir o jornal do<br />

senhor. Mesmo <strong>de</strong>pois da abolição os <strong>negro</strong>s continuaram dominando o cenário do cais,<br />

apesar das constantes levas <strong>de</strong> imigrantes que chegavam na cida<strong>de</strong>. Essa dissertação tem o<br />

objetivo <strong>de</strong> analisar o cotidiano dos trabalhadores <strong>negro</strong>s do <strong>porto</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro nas<br />

primeiras décadas da República, articulando os trabalhadores do <strong>porto</strong> com a região em que<br />

estavam inseridos – a Zona Portuária, local que ficou conhecida posteriormente pela<br />

bibliografia por Pequena África. O trabalho busca abordar, para além do ambiente <strong>de</strong><br />

trabalho, outros espaços <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>, como as habitações, as associações <strong>de</strong> lazer, as<br />

praças e as ruas.<br />

vii


ABSTRACT<br />

The port of Rio <strong>de</strong> Janeiro have been a good place for black people to work since slavery<br />

days. These were privileged places for them because wage slaves could make enough<br />

money for the daily pay owed to their lords. A freelance labour system is the key to<br />

un<strong>de</strong>rstand black workers' accomplishments there. Even after slave abolition, black people<br />

continued hegemonic in the wharf, <strong>de</strong>spite a constant flow of newly arrived immigrants in<br />

Rio. This paper's goal is to explore Rio <strong>de</strong> Janeiro ports black workers' daily living by<br />

connecting them to the region where they worked - a spot named in many books as the<br />

Little Africa. Also, this work approaches more than their labour environment. Leisure<br />

associations, houses, squares, streets and other public spaces are approached as well.<br />

viii


AGRADECIMENTOS<br />

Está em quase todos os agra<strong>de</strong>cimentos <strong>de</strong> dissertações e teses: essa é uma das<br />

partes mais difíceis <strong>de</strong> todo o trabalho. Mas também, não se po<strong>de</strong> negar, é uma das mais<br />

prazerosas. Além <strong>de</strong> simbolizar o fim <strong>de</strong> um trabalho (por vezes árduo!), também é o<br />

momento <strong>de</strong> relembrar as pessoas que fizeram parte <strong>de</strong>le <strong>de</strong> alguma forma. Então vamos lá:<br />

Primeiro, ao meu irmão e aos meus pais, que sempre acreditaram mais em mim do<br />

que eu mesmo. Mas principalmente pelo amor.<br />

Durante dois anos, esse trabalho contou com o financiamento da FAPESP, sem o<br />

qual não seria possível realizá-lo. Por isso agra<strong>de</strong>ço à essa instituição.<br />

Agra<strong>de</strong>ço muito mesmo à minha gran<strong>de</strong> amiga Alinnie Silvestre Moreira, que<br />

esteve comigo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a seleção. Lembro bem como ficamos emocionadas <strong>de</strong> ver nossos<br />

nomes na lista <strong>de</strong> aprovados, on<strong>de</strong> tudo começou. Daí em diante passamos por momentos<br />

felizes e outros nem tanto, mas mesmo nos piores dias, pu<strong>de</strong> contar com sua amiza<strong>de</strong>. E ao<br />

seu marido Fausto.<br />

Não posso esquecer dos muitos amigos que fiz na Unicamp. Pessoas <strong>de</strong> toda parte<br />

do Brasil que eu encontrei naquele pedacinho <strong>de</strong> Campinas, agora fazem parte da minha<br />

vida. Mesmo que os encontros tenham ficado cada vez mais difíceis, sempre vou me<br />

lembrar <strong>de</strong> todos, a quem agra<strong>de</strong>ço a amiza<strong>de</strong>. Agra<strong>de</strong>ço especialmente à minha amiga<br />

paulista (mas com espírito <strong>de</strong> carioca... rs, rs, rs) Beatriz Brusantin, companheira para toda<br />

hora; à querida Vanessa Sial (e ao Bubu!), pois além <strong>de</strong> amiga, ela ainda tinha tempo <strong>de</strong> ser<br />

minha “assessora para assuntos aleatórios” e <strong>de</strong> me abrigar em sua casa em Campinas. Sem<br />

ela, acho que tudo teria sido mais difícil; à Socorro Rangel, uma das pessoas mais<br />

generosas que conheci em toda minha vida e para quem precisaria <strong>de</strong> um capítulo inteiro<br />

para agra<strong>de</strong>cer pelas inúmeras conversas (e também pelo abrigo). Com ela, aprendi muito<br />

sobre a nossa profissão e sobre a vida.<br />

Mas são muitos os amigos “Unicampenses” a quem <strong>de</strong>vo agra<strong>de</strong>cer os momentos<br />

passados juntos: Rodrigo e Viviane Ceballos, Ricardo Pirolla, Lívia Bottim, Vítor, Marcelo<br />

Chaves, Luisa, Luis Carlos, Ana Flávia, etc.<br />

Ainda na Unicamp, agra<strong>de</strong>ço aos professores, pesquisadores e toda equipe do<br />

Cecult, que certamente contribuíram muito para o resultado <strong>de</strong>ssa dissertação,<br />

ix


principalmente Sidney Chalhoub e Elciene Azevedo, pelos importantes comentários na<br />

qualificação; ao Fernando Teixeira da Silva, pelas dicas preciosas. E, claro, à minha<br />

orientadora Maria Clementina Pereira Cunha... o que dizer <strong>de</strong>la? Nem sei! Não é somente a<br />

inteligência e a competência que fizeram <strong>de</strong>la uma orientadora inesquecível. Mas também o<br />

bom humor, a paciência e, principalmente, a generosida<strong>de</strong>. Diante dos meus ataques <strong>de</strong><br />

insegurança, uma palavra <strong>de</strong> incentivo; diante dos problemas pessoais que surgiram e<br />

atrapalhavam um pouco o andamento do trabalho, a compreensão. Enfim, à ela um<br />

obrigada mais do que especial, especialíssimo!!!<br />

Aos professores da <strong>UFF</strong> que fizeram parte da minha trajetória, especialmente<br />

Martha Abreu, por ter acreditado em mim e me apoiar à explorar “terras campineiras” e<br />

Marcelo Badaró, mais do que um professor, um amigo.<br />

Aos funcionários do Arquivo Nacional, especialmente a Rosane, e do Arquivo<br />

Público do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

À minha “família” da Car<strong>de</strong>al Leme (Alê, Paulo Inácio, Hugo e Isabela) por ter me<br />

suportado nos piores momentos da minha vida, mas também por ter divido comigo<br />

momentos <strong>de</strong> muita diversão; às eternas amigas Carol, Andréia, Moniquinha, Leila, Kelly e<br />

ao Trog, por fazerem parte da minha vida há nem sei quanto tempo.<br />

À minha irmãzinha Júlia Benjamim, que <strong>de</strong>u uma força na reta final do trabalho, e<br />

ao seu pai Leo.<br />

À Juliana Barreto Farias pela indicação <strong>de</strong> fontes e pelos papos infindáveis sobre<br />

nossos trabalhos. Os mesmos papos que algumas vezes nos tornou anti-sociais em festas e<br />

bares foram essenciais para esse trabalho. Boas conversas sobre o tema, tive também com<br />

Rômulo Mattos, a quem agra<strong>de</strong>ço.<br />

À Rachelzinha, por ela ser a melhor amiga que uma pessoa po<strong>de</strong> ter na vida e por<br />

aturar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua própria casa uma mala que só sabia falar <strong>de</strong> dissertação.<br />

E ao Chico, a quem agra<strong>de</strong>ço por fazer dos últimos meses, tempos mais felizes. À<br />

ele eu <strong>de</strong>dico este trabalho e o meu amor.<br />

Enfim, é isso! Acabo <strong>de</strong> perceber que sou uma pessoa <strong>de</strong> sorte por ter tanta gente<br />

para agra<strong>de</strong>cer. Espero não ter esquecido ninguém...<br />

x


SUMÁRIO<br />

Introdução ............................................................................................................. 13<br />

Capítulo I<br />

O Porto Negro: trabalho e cotidiano no <strong>porto</strong> .................................................. 21<br />

Uma Cena Comum....................................................................................................21<br />

Trabalhadores Avulsos.............................................................................................29<br />

A Zona Portuária e os vadios do <strong>porto</strong> ...................................................................36<br />

Os “perseguidos” pelos agentes policiais...............................................................47<br />

Capítulo II<br />

União e Resistência: conflitos e solidarieda<strong>de</strong>s no cais......................................67<br />

Nos Bares da Vida ................................................................................................ 67<br />

Papa-Rancho e Cardosinho: Valentes do Porto .................................................. 75<br />

Conflitos Étnicos e Sindicatos: diálogos com a bibliografia................................ 79<br />

Do conflito, nascem a União e a Resistência......................................................... 86<br />

Capítulo III<br />

Entre Terreiros e Salões: Sociabilida<strong>de</strong>s e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Portuárias................ 107<br />

Nos Bares da Vida..................................................................................................107<br />

Antônio Mina, um feiticeiro conhecido..................................................................112<br />

Folias Portuárias ...................................................................................................127<br />

Consi<strong>de</strong>rações Finais ...........................................................................................143<br />

Índice dos Mapas e Figuras ................................................................................147<br />

Fontes ...................................................................................................................149<br />

Bibliografia ......................................................................................................... 153<br />

xi


INTRODUÇÃO<br />

Era dia 7 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1905 quando, à duas horas da tar<strong>de</strong>, um inspetor da força policial que fazia<br />

a costumeira ronda pela freguesia <strong>de</strong> Santana da cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, pren<strong>de</strong>u um indivíduo na<br />

rua Senador Pompeu. Na <strong>de</strong>legacia da 2 a Circunscrição Urbana, o mesmo inspetor <strong>de</strong>clarou que<br />

“(...) pren<strong>de</strong>u na Rua Senador Pompeu por estar em completo estado <strong>de</strong> embriagues o acusado presente Antônio<br />

Mina. Que o acusado vive todos os dias embriagando-se e que não é a primeira vez que tem sido preso por ser<br />

ébrio habitual.”<br />

Ao ser interrogado pelo <strong>de</strong>legado o acusado disse chamar-se Antônio Mina, ter 54 anos <strong>de</strong><br />

ida<strong>de</strong>, ser trabalhador e casado. Disse que ignorava o nome <strong>de</strong> seus pais e que era natural da Costa da<br />

África. Ouvida a primeira testemunha, o empregado público Augusto Rodrigues Ramos confirmou a<br />

acusação do inspetor, dizendo que<br />

“(...) viu quando o Inspetor Mota pren<strong>de</strong>u o acusado presente que agora sabe chamar-se Antônio Mina em<br />

completo estado <strong>de</strong> embriagues. Que o acusado <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> trabalhar para viver embriagado, isto é, todos os dias.<br />

Que o acusado vive somente metido nos botequins e vendas <strong>de</strong> baixa esfera (...)”<br />

Antônio Mina, chamado à palavra logo <strong>de</strong>pois, se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u das acusações dizendo:<br />

“(...) que nunca foi encontrado caído por se achar em estado <strong>de</strong> embriagues. Que ele é trabalhador como po<strong>de</strong><br />

provar. Que ontem foi preso por achar-se embriagado foi <strong>de</strong>vido a ele ter ido em uma casa <strong>de</strong> seus patrícios e estes<br />

forçaram a ele beber, e que ele tendo cabeça fraca ficou um bocado embriagado como foi encontrado(...)”<br />

Antônio Mina foi processado por embriagues (art. 396 do Código Penal <strong>de</strong> 1890). Durante o<br />

processo foram ouvidas também duas testemunhas <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa. A primeira <strong>de</strong>las foi Francisco<br />

Gonçalves Dias, um português morador da Rua Barão <strong>de</strong> São Félix, que disse que conhecia o acusado<br />

Antônio Mina “como um homem sério e morigerado trabalhador, tendo residência certa e casado”.<br />

Depoimento parecido foi dado pela outra testemunha <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa, o também português Bento da Silva<br />

Neves, morador da Rua Camerino, que disse que conhecia o acusado “e nunca soube <strong>de</strong> causa alguma<br />

13


que <strong>de</strong>sabone sua conduta, sabendo que o mesmo é casado e tem residência fixa”. Por sua vez, o<br />

advogado Dr. Silvestre Santos, alegou na <strong>de</strong>fesa que o acusado era “um pobre africano, trabalhador<br />

braçal em <strong>de</strong>scargas <strong>de</strong> café, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> tira honrosamente os meios <strong>de</strong> subsistência”. O Juiz da 8 a<br />

Pretoria levou em conta os testemunhos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa e absolveu Antônio Mina em 23 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1905. 1<br />

Se, como afirmou o policial que efetuou a prisão, aquela não era a primeira vez que Antônio<br />

visitava as <strong>de</strong>pendências das <strong>de</strong>legacias cariocas, tampouco foi a última. Esse foi apenas o primeiro <strong>de</strong><br />

muitos processos encontrados envolvendo Antônio Mina. Menos <strong>de</strong> dois meses <strong>de</strong>pois lá estava ele<br />

sendo preso novamente por embriagues, em 2 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1905, <strong>de</strong>sta vez na Rua Barão <strong>de</strong> São Felix.<br />

As testemunhas que <strong>de</strong>puseram na <strong>de</strong>legacia – um português e um brasileiro – afirmaram que o<br />

africano tinha o hábito <strong>de</strong> aparecer embriagado em público, sendo preso por isso várias vezes. No<br />

entanto, no dia seguinte, na mesma <strong>de</strong>legacia foram ouvidas outras duas testemunhas que contaram<br />

outra história. O brasileiro empregado no comércio Conrado Manoel <strong>de</strong> Lima disse “que conhece<br />

Antônio Mina há muitos anos e sabe que é este homem morigerado, não se dá ao vício da embriagues;<br />

trabalha como furador <strong>de</strong> café e resi<strong>de</strong> na Travessa das Pastilhas”, o que foi confirmado pelo também<br />

brasileiro e empregado no comércio Horácio Antônio Pestana. 2<br />

Entre 1905 e 1915, foi preso por pelo menos nove vezes, ora por estar se embriagando nos<br />

botequins das freguesias <strong>de</strong> Santana e Santa Rita 3 , ora por estar metido em confusões nos mesmos<br />

bares em que costumava tomar umas doses ou mesmo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um bon<strong>de</strong>. Mas também foi preso por<br />

agredir seu companheiro <strong>de</strong> moradia e por estar “vadiando” pelas ruas da cida<strong>de</strong>.<br />

Antônio Mina era também conhecido pelos nomes Antônio Africano e Antônio Adici. Ora foi<br />

i<strong>de</strong>ntificado como carregador <strong>de</strong> café, ora como trabalhador da estiva ou como ven<strong>de</strong>dor ambulante,<br />

profissão que exercia sua mulher, a também africana Maria Emine. Se durante um <strong>de</strong>poimento dizia<br />

<strong>de</strong>sconhecer o nome <strong>de</strong> seus pais, em outro lhe vinha um rompante <strong>de</strong> memória e <strong>de</strong>clarava se<br />

chamarem Maria Adici e Ojhô Adici, para em outra ocasião informar que se chamavam Bacohy e<br />

Fathuman Maria. Em alguns momentos diz ser natural <strong>de</strong> Lagos, em outro <strong>de</strong> Eco, mas também<br />

afirmou na <strong>de</strong>legacia ter nascido na “África Inglesa”. Algumas das informações contidas no conjunto<br />

1 AN – 8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR.4056. 1905.<br />

2 AN – 8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR 4077. 1905.<br />

3 Essas oito prisões resultaram em processos-crime, todos instaurados na 8 a Pretoria Criminal, correspon<strong>de</strong>nte à freguesia<br />

<strong>de</strong> Santana. Mas é possível que Antônio tenha sido preso outras vezes, sem, no entanto, terem resultado em processos.<br />

14


<strong>de</strong> processos resultantes das prisões <strong>de</strong> Antônio Africano às vezes são um pouco confusas, mas po<strong>de</strong>m<br />

ser perfeitamente justificadas por naturais falhas <strong>de</strong> memória <strong>de</strong> um velho africano ou pela sua<br />

esperteza em tentar dificultar um pouco mais o trabalho da polícia.<br />

É impossível, com base apenas na documentação disponível, saber em que circunstâncias o<br />

africano chegou no Brasil. Nascido provavelmente em 1854, não sabemos que ida<strong>de</strong> tinha quando aqui<br />

chegou, nem se chegou livre ou veio como escravo através do tráfico ilegal. Mas provavelmente ele<br />

estava entre os últimos dos muitos africanos que trabalharam no <strong>porto</strong> ainda em tempos <strong>de</strong> escravidão.<br />

Ao longo <strong>de</strong> todo o processo <strong>de</strong> trabalho que <strong>de</strong>u origem a essa dissertação, fui me tornando<br />

“íntima” daquele Africano, a ponto <strong>de</strong> me dar ao luxo <strong>de</strong> escolher o nome <strong>de</strong> minha preferência para<br />

me referir a ele: Antônio Mina. A meu ver, o mais misterioso e instigante dos seus três nomes por<br />

indicar que ele fazia parte <strong>de</strong> um grupo muito especial <strong>de</strong> africanos: os Minas, que apesar <strong>de</strong> serem<br />

poucos no Rio <strong>de</strong> Janeiro – sendo maioria na Bahia – foram <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância na manutenção e<br />

recriação dos valores culturais dos <strong>negro</strong>s naquela cida<strong>de</strong> e, talvez por isso mesmo, as preocupações e<br />

atenções das autorida<strong>de</strong>s eram ainda maiores com esse grupo na primeira meta<strong>de</strong> do século XIX.<br />

Nascido em meados do século XIX, Antonio Mina viveu um período <strong>de</strong> mudanças na história<br />

da cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, experimentando-as no dia-a-dia. Quase po<strong>de</strong> simbolizá-las em suas<br />

peripécias pela região portuária e seu permanente conflito com as autorida<strong>de</strong>s responsáveis pela<br />

manutenção da or<strong>de</strong>m naquela parte da capital do país. Nos malfadados encontros com a polícia<br />

republicana Antônio Mina foi acusado por uns <strong>de</strong> “<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iro”, <strong>de</strong> “vadio incorrigível”, “ébrio<br />

habitual” e “feiticeiro conhecido”. Mas houve também quem o <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>sse o africano e, perante as<br />

autorida<strong>de</strong>s, se referisse a ele como “chefe <strong>de</strong> família”, “morigerado trabalhador”, “pobre africano” e<br />

“perseguido das autorida<strong>de</strong>s policiais”. Foi interessante conhecer as pessoas que foram em sua <strong>de</strong>fesa:<br />

brasileiros e portugueses, operários e negociantes, mostrando que a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações que Antônio<br />

forjou era bastante ampla e envolvia mais gente do que os “patrícios” com quem bebeu naquela tar<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1905.<br />

Justiça seja feita: Antônio Mina mudou os rumos <strong>de</strong>sta dissertação. Não somente pelas suas<br />

próprias histórias, mas principalmente porque ao conhecê-lo, logo fui “apresentada” a outros<br />

personagens. Assim, conheci também os estivadores Bexiga, Manoel Eugênio Batista, Sabino Carlos<br />

15


Montezuma, Olympio Batista Ribeiro, Cardosinho e muitos outros. Cada um com sua história<br />

contribuiu um pouco para esse trabalho.<br />

A cada processo que eu achava e lia nas gélidas salas do Arquivo Nacional era uma <strong>de</strong>scoberta.<br />

Aos poucos, o mundo do cais do <strong>porto</strong> foi se revelando na minha frente e o que era para ser um<br />

trabalho sobre um sindicato <strong>de</strong> uma categoria específica <strong>de</strong> portuários, passou a ser um estudo sobre os<br />

trabalhadores <strong>de</strong> uma maneira geral. Foi me <strong>de</strong>parando com homens como Antônio Mina que eu pu<strong>de</strong><br />

perceber que aquele mundo era muito maior e mais complexo e que me <strong>de</strong>ter em um único sindicato<br />

limitaria o trabalho e não daria conta da diversida<strong>de</strong> das experiências daqueles operários.<br />

No <strong>porto</strong> e fora <strong>de</strong>le, pretos e brancos, nacionais e imigrantes, estivadores, arrumadores,<br />

foguistas e carvoeiros estavam sempre se esbarrando no dia-a-dia das ruas próximas ao cais do <strong>porto</strong>,<br />

nos botequins, nos cortiços e nas horas <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso ou lazer. Esses momentos <strong>de</strong> folga e diversão<br />

<strong>de</strong>vem ser entendidos como um espaço <strong>de</strong> comunicação, <strong>de</strong> troca e <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> laços, para além<br />

daqueles construídos durante a execução do trabalho ou da organização institucional. Como notou<br />

Fernando Teixeira, nos <strong>porto</strong>s, bem como entre a maior parte da classe trabalhadora, “as relações mais<br />

estreitas entre os trabalhadores davam-se sobretudo a partir <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> parentesco, vizinhança,<br />

compadrio, <strong>de</strong> trabalho e em espaços <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> mais ou menos particularizados”. 4 Para a<br />

maioria dos portuários, a jornada <strong>de</strong> trabalho não tinha a rigi<strong>de</strong>z disciplinar presente no trabalho da<br />

fábrica, por exemplo. Assim, era comum que os limites entre a hora <strong>de</strong> trabalho e a <strong>de</strong> “não-trabalho”<br />

fossem bastante fluidos. Essa falta <strong>de</strong> rigi<strong>de</strong>z, típica dos trabalhos ocasionais moldava a vida daqueles<br />

homens em vários níveis: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o acesso à moradia ao confronto diário com a polícia republicana.<br />

Nesse sentido, a compreensão da zona portuária e arredores como um espaço <strong>de</strong> circulação e<br />

convivência daqueles homens será <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância. Ali conviviam categorias diversas <strong>de</strong><br />

trabalhadores portuários – como estivadores, foguistas, guindasteiros, trabalhadores do carvão, etc. –<br />

mas também outros tipos <strong>de</strong> trabalhadores autônomos, como ven<strong>de</strong>dores ambulantes, apontadores <strong>de</strong><br />

jogo <strong>de</strong> bicho, empalhadores, caçadores <strong>de</strong> rato, além dos muitos que tinham trabalho regular.<br />

Falar das relações construídas no trabalho e da organização sindical <strong>de</strong> categorias específicas é<br />

pouco para enten<strong>de</strong>r o universo daqueles trabalhadores, já que o mundo do cais era muito maior e mais<br />

complexo, envolvendo uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações que vai além daquelas construídas no processo produtivo.<br />

Em estudo sobre os trabalhadores ingleses, E. P. Thompson afirmou que “a classe operária não surgiu<br />

16


tal como um sol numa hora <strong>de</strong>terminada. Ela estava presente ao seu próprio fazer-se” 5 . Enten<strong>de</strong>ndo a<br />

classe trabalhadora como uma formação social e cultural, a perspectiva teórica do autor teve ecos na<br />

historiografia brasileira e os estudiosos passaram a se interessar também pela cultura dos<br />

trabalhadores, enten<strong>de</strong>ndo a história do trabalho não apenas como a história do “movimento operário”,<br />

mas também atentando para a experiência dos trabalhadores em diversos níveis. 6 Para Thompson, “a<br />

classe se <strong>de</strong>lineia segundo o modo como os homens e mulheres vivem suas relações <strong>de</strong> produção e<br />

segundo a experiência <strong>de</strong> suas situações <strong>de</strong>terminadas, no interior do “conjunto <strong>de</strong> suas relações<br />

sociais”, com a cultura e as expectativas a eles transmitidas e com base no modo pelo qual se valeram<br />

<strong>de</strong>ssas experiências em nível cultural.” 7<br />

Assumindo a influência <strong>de</strong>sse autor, busquei perceber as experiências dos <strong>negro</strong>s do <strong>porto</strong> em<br />

suas mais diversas faces, analisadas no “conjunto <strong>de</strong> suas relações sociais”, estabelecidas <strong>de</strong>ntro e fora<br />

do cais. Dessa forma, mais do que tratar dos operários em torno <strong>de</strong> seus embates na política<br />

institucional ou na arena das lutas sindicais, queremos observá-los para além das horas <strong>de</strong> trabalho,<br />

buscando as diversas experiências cotidianas compartilhadas entre si e com outros segmentos da<br />

socieda<strong>de</strong>, além <strong>de</strong> outras formas <strong>de</strong> organização e sociabilida<strong>de</strong> que faziam parte daquele universo<br />

cultural.<br />

Nessa empreitada, as histórias <strong>de</strong> Antônio Mina e seus companheiros <strong>de</strong> <strong>de</strong>legacia foram<br />

importantíssimos, pois através <strong>de</strong>las foi possível captar parte <strong>de</strong>ssas experiências, vivenciadas<br />

principalmente na zona portuária da cida<strong>de</strong>. A região, formada pelos bairros vizinhos ao cais –<br />

especialmente Saú<strong>de</strong>, Gamboa e Santo Cristo – foi o principal local <strong>de</strong> moradia, <strong>de</strong> trabalho e <strong>de</strong> lazer<br />

<strong>de</strong> Antônio e dos outros personagens <strong>de</strong>ssa história. Por isso mesmo, foi nesse pedacinho da cida<strong>de</strong>,<br />

tido pelas autorida<strong>de</strong>s como “perigoso”, que concentramos nossos esforços <strong>de</strong> pesquisa. Assim, foi<br />

pelas ruas dos bairros portuários que perseguimos os trabalhadores do <strong>porto</strong> para espiá-los mais <strong>de</strong><br />

perto.<br />

4<br />

Silva, Fernando Teixeira da. Operários sem os trabalhadores da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Santos no entreguerras. Campinas, SP:<br />

Editora da Unicamp, 2003. p. 136.<br />

5<br />

Thonpson, Edward. A Formação da Classe Operária Inglesa. A Arvore da Liberda<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, 1987<br />

pg. 9.<br />

6<br />

Cf. Chalhoub, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio <strong>de</strong> Janeiro da Belle Époque. São<br />

Paulo, Brasiliense, 1986; Pereira, Leonardo Affonso <strong>de</strong> Miranda. Footballmania: Uma história social do futebol. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, 1902-1938. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira. 2000; Decca, Maria Auxiliadora Guzzo <strong>de</strong>. A Vida fora das Fábricas.<br />

Cotidiano operário em São Paulo (1920-1934), São Paulo: Paz e Terra. 1987; Hardman, Francisco Foot, Nem pátria nem<br />

patrão. Vida operária e cultura anarquista no Brasil. São Paulo: Brasiliense. 1983. Entre outros...<br />

17


* * *<br />

No primeiro capítulo busquei o dia a dia <strong>de</strong>sses homens do cais procurando enten<strong>de</strong>r como a<br />

forma peculiar <strong>de</strong> contratação da mão-<strong>de</strong>-obra portuária não só influenciava, mas praticamente<br />

<strong>de</strong>finia o cotidiano dos trabalhadores. Quem eram eles, como viviam, on<strong>de</strong> (e como) moravam? Essas<br />

foram as principais perguntas que busquei respon<strong>de</strong>r nesse capítulo. Nele busquei ainda perceber,<br />

através <strong>de</strong> elementos disponíveis nas fontes, estratégias <strong>de</strong> sobrevivência cotidianas. Aqui, foi dada<br />

uma atenção especial à relação dos <strong>negro</strong>s do <strong>porto</strong> com a polícia republicana do início do XX, tendo<br />

como foco principal os crimes <strong>de</strong> contravenção, especialmente a vadiagem, mas também a<br />

embriagues e a capoeiragem. O capítulo tenta mostrar como a criminalização <strong>de</strong>ssas práticas no início<br />

do século fazia parte <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong> controle que teve como alvo principal os <strong>negro</strong>s libertos,<br />

esten<strong>de</strong>ndo-se a todos aqueles que não se encaixavam nos i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> civilização e do bom trabalhador<br />

e como as atenções da polícia se voltavam <strong>de</strong> maneira privilegiada para a região da zona portuária e<br />

arredores. Para tanto, as fontes policiais foram amplamente utilizadas, especialmente processos<br />

criminais e inquéritos policiais.<br />

O segundo capítulo, como informa o próprio título, busca perceber <strong>de</strong> um lado as relações<br />

conflituosas que se estabelecem entre os portuários, mas também as solidarieda<strong>de</strong>s que emergiam<br />

entre eles. Aqui, foi possível perceber que, apesar das brigas e <strong>de</strong>savenças constantes – característica<br />

não só das disputas pelo mercado <strong>de</strong> trabalho, mas também <strong>de</strong> um “mundo masculino”, on<strong>de</strong> impera a<br />

lei do mais forte – os portuários conseguiram se unir em torno <strong>de</strong> um interesse comum, se<br />

organizando em sindicatos. Aqui pu<strong>de</strong>mos perceber como os “<strong>negro</strong>s do <strong>porto</strong>” tiveram participação<br />

<strong>de</strong>cisiva na organização <strong>de</strong> algumas <strong>de</strong>ssas associações.<br />

Apoiado em fontes policiais, principalmente aquelas que fazem parte do Banco <strong>de</strong> Dados sobre<br />

Clubes e Socieda<strong>de</strong>s do Centro <strong>de</strong> Pesquisas em <strong>História</strong> Social da Cultura da Unicamp (Cecult), mas<br />

também em memorialistas e <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> contemporâneos, o terceiro capítulo procura explorar<br />

outras formas <strong>de</strong> organização e sociabilida<strong>de</strong> dos trabalhadores do <strong>porto</strong>, privilegiando os espaços <strong>de</strong><br />

convivência que faziam parte do seu universo cultural, especialmente aqueles <strong>de</strong>dicados aos cultos<br />

religiosos e às associações <strong>de</strong> lazer. A proposta é mostrar a importância <strong>de</strong>sses espaços no cotidiano<br />

7 Thompson, Edward. As Peculiarida<strong>de</strong>s dos Ingleses e Outros Artigos; organizadores: Antônio Luigi Negro e Sérgio<br />

Silva. Campinas: Editora da Unicamp. 2001. pg. 277<br />

18


dos portuários e na articulação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, além <strong>de</strong> buscar a diferença entre a percepção que os<br />

trabalhadores tinham <strong>de</strong> suas próprias práticas e a visão das autorida<strong>de</strong>s.<br />

O cais do <strong>porto</strong> sempre foi consi<strong>de</strong>rado uma zona perigosa da cida<strong>de</strong>, cheio <strong>de</strong> riscos para quem<br />

se aventurasse pelas suas ruas e becos, la<strong>de</strong>iras e morros. Poucos vestígios restaram daquela antiga<br />

parte da cida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>u origem a muitas lendas em torno <strong>de</strong> sua própria história: ela foi apontada<br />

como o berço do samba, do carnaval popular e <strong>de</strong> outras práticas culturais associadas com i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

negras ou africanas. Por tudo isso, ainda que tenha se tornado na mítica e alegre “Pequena África” no<br />

imaginário contemporâneo, a região portuária nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser olhada com temor e <strong>de</strong>sconfiança.<br />

Mas ainda hoje há quem queira se aventurar pela região, buscando seus caminhos e suas histórias em<br />

documentos amarelados e jornais envelhecidos. Gente que, como eu, acredita que nestas histórias e<br />

seus personagens possamos encontrar boas chaves para repensar a história da cida<strong>de</strong> e do país...<br />

19


Uma Cena Comum<br />

CAPÍTULO I<br />

O PORTO NEGRO: trabalho e cotidiano no <strong>porto</strong><br />

Era noite <strong>de</strong> 4 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1909 quando a costumeira ronda policial, ao passar pelo Cais dos<br />

Mineiros, recolheu à Delegacia do 2 o Distrito Policial 9 homens que lá se encontravam. A carta do<br />

Delegado Rodrigo <strong>de</strong> Araújo ao Chefe <strong>de</strong> Polícia, pedia providências:<br />

Faço apresentar a V. Excia. Afim <strong>de</strong> terem o conveniente <strong>de</strong>stino internados em estabelecimentos <strong>de</strong> correção e<br />

assistência, os indivíduos encontrados em estado <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> miséria n’uma indigência e vagabundagem mórbida<br />

no Cais dos Mineiros, on<strong>de</strong> estão habituados a permanecer com gran<strong>de</strong> escândalo e ofensas ao <strong>de</strong>coro público.<br />

Não dispensando esta Delegacia <strong>de</strong> espaço para conter estes maltrapilhos, fétidos e imundos em número <strong>de</strong> nove,<br />

rogo a V. Excia. Or<strong>de</strong>nar que lhes seja dado o <strong>de</strong>stino compatível com as circunstâncias excepcionais em que se<br />

acham.<br />

Saudações, O Delegado Rodrigo <strong>de</strong> Araújo. 1 (grifo meu)<br />

O documento apresentava, ainda, em anexo, uma pequena ficha dos nove "maltrapilhos, fétidos e<br />

imundos" presos na ocasião, tendo 8 <strong>de</strong>les alegado trabalhar em alguma tarefa ligada ao <strong>porto</strong>. Entre<br />

eles, dois tinham a pele bem clara : Manoel Costa Paula, português, tinha 53 anos e disse trabalhar nas<br />

embarcações do Cais dos Mineiros. Segundo ele, <strong>de</strong>scansava na ocasião em que foi preso e trabalhava<br />

com José Monteiro Ferreira, dono <strong>de</strong> uma catraia, on<strong>de</strong> costumava dormir. Disse que José não era seu<br />

patrão efetivo, mas este lhe dava trabalho continuadamente; José Engenheiro, português, <strong>de</strong> 55 anos,<br />

também alegou trabalhar nas diversas embarcações daquele cais e disse <strong>de</strong>scansar quando foi preso,<br />

pois “não tinha modo <strong>de</strong> pagar uma hospedaria on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse pernoitar”;<br />

Todos os <strong>de</strong>mais eram homens <strong>negro</strong>s ou pardos – como Minervino Joaquim dos Santos, preto,<br />

brasileiro, 26 anos, disse ser carregador e que por apresentar um <strong>de</strong>feito em uma perna, não consegue<br />

emprego efetivo e por isso não tinha domicílio certo; João Valentin, pardo, brasileiro, disse ser<br />

marítimo e ter por hábito fazer carretos para o mar. Alegou morar na Rua do Livramento, nº 4; O pardo<br />

1 Arquivo Nacional (AN) - GIFI, 6C. 316, ofício 558. 1909<br />

21


asileiro Manoel Eugênio Rodrigues Batista, <strong>de</strong> 26 anos, apresentou-se como trabalhador <strong>de</strong> uma das<br />

companhias marítimas do <strong>porto</strong> carioca. Segundo seu <strong>de</strong>poimento, era morador da Rua dos Arcos, 26 e<br />

saía do trabalho quando foi preso; Mariano Bochita, pardo brasileiro, disse ser trabalhador da estiva e<br />

que na ocasião em que foi preso tomava conta <strong>de</strong> um bote; João Cesário da Silva, pardo, também<br />

trabalhava, segundo seu <strong>de</strong>poimento, em uma das embarcações do cais. Alegou trabalhar com José<br />

Roza, dono da embarcação e que como “naquela ocasião tinha-se feito ao mar”, foi obrigado a dormir<br />

ali, em um dos botes. Em sua <strong>de</strong>fesa, <strong>de</strong>clarou que o tal José Roza po<strong>de</strong>ria comprovar que era um<br />

homem trabalhador; e o último <strong>de</strong> nossos personagens é o preto Prudêncio Pimenta, <strong>de</strong> 50 anos.<br />

Declarou ser morador no Curato <strong>de</strong> Santa Cruz e que estava <strong>de</strong>itado em um dos botes do Cais dos<br />

Mineiros, <strong>de</strong>scansando, tendo vindo <strong>de</strong> seu trabalho. 2<br />

A cena, ocorrida na Zona Portuária carioca po<strong>de</strong> revelar vários aspectos da vida dos<br />

trabalhadores do <strong>porto</strong>, tanto na rotina <strong>de</strong> trabalho, como na vida cotidiana. É partindo <strong>de</strong>la que<br />

pretendo começar essa viagem pelo misterioso mundo do cais do <strong>porto</strong>. Para começar, constatamos<br />

que, dos 8 presos, apenas 2 eram brancos – e, não por acaso, imigrantes. Os outros 6 eram brasileiros,<br />

sendo 4 pardos e 2 pretos. O exemplo mostra que nenhum dos brasileiros era branco e os poucos<br />

brancos eram portugueses. Apesar <strong>de</strong> ser uma amostragem muito pequena <strong>de</strong> pessoas envolvidas em<br />

uma situação muito específica, o cruzamento com outras fontes leva a crer que esse número se<br />

aproxima da realida<strong>de</strong> no que diz respeito à composição do universo <strong>de</strong>stes trabalhadores, quanto aos<br />

elementos da “cor” e da nacionalida<strong>de</strong>.<br />

Para tentar visualizar a cor dos trabalhadores das categorias portuárias no início do século,<br />

busquei os arquivos da Casa <strong>de</strong> Detenção da cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, que nos revelou um primeiro<br />

perfil <strong>de</strong> quem eram os homens do cais. Afinal, esta era uma categoria consi<strong>de</strong>rada “perigosa” e seus<br />

membros po<strong>de</strong>riam ter tido conflitos freqüentes com os agentes da or<strong>de</strong>m e, neste caso, freqüentado<br />

com intensida<strong>de</strong> as celas da ca<strong>de</strong>ia 3 . Dos registros <strong>de</strong> entrada <strong>de</strong> presos na Detenção, que nos<br />

forneceram uma amostragem significativa da categoria, constam a profissão e a cor do preso, além do<br />

nome, filiação, data e local <strong>de</strong> nascimento e o crime cometido. Assim, analisando o conjunto <strong>de</strong><br />

2 Todas as informações retiradas do AN - GIFI, 6C. 316, ofício 558, exceto o quesito “cor”, presente somente nos livros <strong>de</strong><br />

matrícula dos presos na Casa <strong>de</strong> Detenção, encontrados Arquivo Público do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro (APERJ)<br />

3 Essa fonte é significativa para representar o conjunto <strong>de</strong> trabalhadores da estiva, pois era uma instituição “<strong>de</strong> passagem”,<br />

on<strong>de</strong> eram levados os presos que aguardavam julgamento pelos mais diversos crimes, mas principalmente aqueles que eram<br />

presos por vadiagem, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns e outras contravenções. Acontece que os trabalhadores do <strong>porto</strong>, como veremos adiante,<br />

eram constantemente presos por esse motivo, o que faz da <strong>de</strong>tenção uma boa janela para espiar aqueles trabalhadores.<br />

22


portuários presos na Detenção entre os anos <strong>de</strong> 1901 e 1910 4 , chegamos à conclusão que os brancos<br />

eram efetivamente minoria no <strong>porto</strong> na primeira década do século XX, como atesta a Tabela A. Eles<br />

representam 42,8% do total <strong>de</strong> portuários, enquanto os pretos e pardos correspon<strong>de</strong>m a 60,2%,<br />

contando ainda com 5,7% <strong>de</strong> “morenos”, presumivelmente mestiços. Apesar da diferença numérica<br />

entre os dois grupos não ser tão gran<strong>de</strong> assim, é preciso levar em conta que a população branca no Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro já representava a maior parte da população nesse período e aumentava ainda mais com as<br />

constantes levas <strong>de</strong> imigrantes que chegavam à cida<strong>de</strong>, especialmente os portugueses.<br />

TABELA A<br />

Portuários Presos na Casa <strong>de</strong> Detenção, por cor (1901-1910)<br />

Cor Números Percentagens<br />

Brancos 373 42,8%<br />

Pretos 190 21,8%<br />

Pardos 245 28,2%<br />

Morenos 50 5,7%<br />

Fonte : Livro <strong>de</strong> Registro <strong>de</strong> Entrada <strong>de</strong> Presos na Casa <strong>de</strong> Detenção do Rio <strong>de</strong> Janeiro - APERJ<br />

Por outro lado, do total <strong>de</strong> brancos presos, 70,6% eram estrangeiros e entre estes, os<br />

portugueses se <strong>de</strong>stacam. Os brasileiros brancos somavam apenas 29,4% do total, ou seja, a gran<strong>de</strong><br />

maioria dos brasileiros presos eram pretos ou pardos. (ver Tabelas B e C).<br />

4 Os Livros com os registros <strong>de</strong> entrada <strong>de</strong> presos na Casa <strong>de</strong> Detenção estão no Arquivo Público do Estado do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro (APERJ). Não foi possível consultar todos os livros <strong>de</strong> cada ano, pois parte <strong>de</strong>les estão bastante <strong>de</strong>teriorados. Dessa<br />

23


TABELA B<br />

Portuários Presos na Casa <strong>de</strong> Detenção, por nacionalida<strong>de</strong> (1901-1910)<br />

Brancos Pretos Pardos Outros Total<br />

Brasileiros 112 174 221 53 560<br />

Portugueses 170 --- 12 182<br />

Italianos 22 --- --- 22<br />

Espanhóis 52 --- --- 52<br />

Africanos --- 5 6 13<br />

Outros∗ 26 9 4 --- 40<br />

Total 382 188 243 53 869<br />

Fonte : Livro <strong>de</strong> Registro <strong>de</strong> Entrada <strong>de</strong> Presos na Casa <strong>de</strong> Detenção do Rio <strong>de</strong> Janeiro - APERJ<br />

* Nacionais dos seguintes países : França, Chile, Argentina, Turquia, Síria, Suíça, China, EUA, Cuba,<br />

Alemanha e Irlanda.<br />

TABELA C<br />

Portuários Presos na Casa <strong>de</strong> Detenção, por cor e nacionalida<strong>de</strong> (1901-1910)<br />

Brasileiros Estrangeiros<br />

Brancos 29,4% 70,6%<br />

Pretos 92,5% 7,5%<br />

Pardos 91% 9%<br />

Outros 100% ----<br />

Fonte : Livro <strong>de</strong> Matrículas da Casa <strong>de</strong> Detenção do Rio <strong>de</strong> Janeiro - APERJ<br />

forma, trabalhamos com uma amostragem <strong>de</strong> 871 presos.<br />

24


As conclusões que po<strong>de</strong>m ser tiradas <strong>de</strong>stes primeiros dados é que no trabalho portuário<br />

convivia uma massa bastante heterogênea <strong>de</strong> trabalhadores, <strong>de</strong> diversas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s raciais e<br />

nacionalida<strong>de</strong>s. No entanto, parece que os <strong>negro</strong>s continuam sendo uma forte presença naquele espaço,<br />

mesmo em uma cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> maioria branca. 5<br />

Figura 1<br />

Trabalhadores <strong>de</strong>scarregando mercadorias no <strong>porto</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

5 É preciso ressaltar que esses dados po<strong>de</strong>m apenas indicar a cor daqueles homens, significando antes que a atuação da<br />

25


Vários autores que analisaram períodos anteriores da história da cida<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ram a presença<br />

dos escravos como uma característica do trabalho portuário no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Os escravos <strong>de</strong> ganho,<br />

muito comuns na cida<strong>de</strong> no século XIX, encontraram aí um lugar bastante propício para conseguirem o<br />

jornal <strong>de</strong> seus senhores. 6 Mary Karash, por exemplo, diz que<br />

“a Alfân<strong>de</strong>ga, a Rua Direita e a Região do <strong>porto</strong> fervilhavam <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>, com carregadores e estivadores<br />

escravos ajudando os navios estrangeiros a <strong>de</strong>sembarcar passageiros e cargas. Eram os escravos que remavam até a<br />

praia, carregavam cargas sobre as suas cabeças e ombros ou punham-nas em carroças”. 7<br />

Na verda<strong>de</strong>, todo serviço <strong>de</strong> transporte <strong>de</strong> cargas, e também <strong>de</strong> pessoas, por terra ou por água,<br />

estava nas mãos dos escravos. Mary Karash conta que os senhores se aproveitavam da tradição do<br />

ofício <strong>de</strong> carregador na África e os “extraordinários po<strong>de</strong>res <strong>de</strong> resistência” dos escravos africanos que,<br />

no Brasil, “carregavam <strong>de</strong> tudo, <strong>de</strong> sacas <strong>de</strong> café e sal a pianos”. Segundo Manuela Carneiro da Cunha,<br />

os ganhadores “carregavam <strong>de</strong> tudo nesse Brasil, on<strong>de</strong> um homem <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> recusava-se a levar o<br />

mais ínfimo pacote. Mas em particular carregavam ca<strong>de</strong>irinhas, barricas suspensas em vasos e<br />

carregavam sacas <strong>de</strong> café ”. 8<br />

O importante papel dos escravos <strong>de</strong> ganho no carregamento <strong>de</strong> café da cida<strong>de</strong> foi notado por<br />

muitos dos viajantes que estiveram no <strong>porto</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro ao longo do século XIX. Ernest Ebel,<br />

por exemplo, que aqui esteve em 1824, <strong>de</strong>screve <strong>de</strong> forma bastante preconceituosa uma cena que<br />

presenciou em seu <strong>de</strong>sembarque:<br />

“(...) O barulho é incessante. Uma chusma <strong>de</strong> <strong>negro</strong>s seminus cada qual levando à cabeça seu saco <strong>de</strong> café, e<br />

conduzidos à frente por um que dança e canta ao ritmo <strong>de</strong> um chocalho, na cadência <strong>de</strong> monótonas estrofes a que<br />

todos fazem eco. Dois mais carregavam ao ombro pesado tonel <strong>de</strong> vinho, suspenso <strong>de</strong> longo varal, entoando a cada<br />

polícia foi mais dura quando se tratava <strong>de</strong> pretos e pardos.<br />

6<br />

Sobre escravos <strong>de</strong> ganho, ver: Karash, Mary. A Vida dos Escravos no Rio <strong>de</strong> Janeiro: 1808-1850. São Paulo: Companhia<br />

das Letras, 2000; Chalhoub, Sidney. Visões da Liberda<strong>de</strong>: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São<br />

Paulo: Companhia das Letras, 1990. Soares, Luis Carlos. Urban Slavery in Nineteenth Century. Rio <strong>de</strong> Janeiro. London,<br />

University College, Tese <strong>de</strong> Phd., 1988; Algranti, Leila Mezan. O Feitor Ausente: estudos sobre escravidão urbana no Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, 1808-1822. Petrópolis: Ed. Vozes, 1988.<br />

7<br />

Karash, Mary. Op. Cit. p. 102<br />

8<br />

Cunha, Manuela Carneiro da. Negros, Estrangeiros: os escravos libertos e sua volta para a África.” São Paulo: Ed.<br />

Brasiliense, 1985. p. 25.<br />

26


passo melancólica cantilena; além um segundo grupo transporta fardos <strong>de</strong> sal, sem mais roupas que uma tanga, e<br />

indiferentes ao peso como ao calor, apostam corrida gritando a pleno pulmão”. 9<br />

Deve-se assinalar que, na primeira meta<strong>de</strong> do século XIX, a população <strong>de</strong> <strong>negro</strong>s chegou<br />

mesmo a igualar numericamente aos brancos. A partir <strong>de</strong> 1850, com o fim do tráfico negreiro, muita<br />

coisa mudou na “cor” da cida<strong>de</strong>. A <strong>de</strong>manda por braços para trabalhar nas fazendas <strong>de</strong> café sugou boa<br />

parte da mão-<strong>de</strong>-obra escrava da cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro para as regiões agrícolas, alterando a<br />

relação numérica entre grupos raciais. Em 1872, os pretos e pardos (escravos ou não) ainda<br />

representavam 44, 79% da população total da cida<strong>de</strong>. Em 1890, esse percentual cai para 37,2%. 10 Para<br />

os próximos períodos, no entanto, fica difícil informar o percentual étnico da população “não branca”,<br />

pois a categoria “cor” foi suprimida do censo posterior, realizado em 1906. 11 Mas não é difícil<br />

concluir que o número relativo <strong>de</strong> <strong>negro</strong>s tenha diminuído cada vez mais, principalmente com a<br />

enxurrada <strong>de</strong> imigrantes, especialmente portugueses, que <strong>de</strong>sembarcavam na cida<strong>de</strong> todos os dias. A<br />

conclusão óbvia seria que os brancos tivessem substituído os <strong>negro</strong>s nos diversos ramos do mercado<br />

<strong>de</strong> trabalho carioca. Se por um lado isto é verda<strong>de</strong> – afinal a composição social dos trabalhadores foi<br />

efetivamente modificada com a crescente presença dos imigrantes, no <strong>porto</strong> isso não ocorreu <strong>de</strong> forma<br />

tão intensa.<br />

A idéia <strong>de</strong> estudar os trabalhadores do <strong>porto</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, dando ênfase aos <strong>negro</strong>s que<br />

dali tiravam seu sustento, surgiu justamente <strong>de</strong> inquietações relacionadas aos estudos sobre a<br />

escravidão e à própria história do trabalho no Brasil. Muito se produziu sobre os <strong>negro</strong>s antes <strong>de</strong> 1888<br />

e pouco, ou quase nada, para um período posterior. Isso significa que sempre que a historiografia<br />

tratou dos <strong>negro</strong>s, referiu-se a escravos. 12 Com a abolição, os trabalhadores <strong>negro</strong>s teriam sido<br />

“substituídos” nas análises históricas pelos brancos, principalmente imigrantes, como se os <strong>negro</strong>s<br />

9<br />

Ebel, Ernest. O Rio <strong>de</strong> Janeiro e seus arredores em 1824. Tradução e edição <strong>de</strong> Joaquim <strong>de</strong> Sousa Leão Filho, São Paulo,<br />

1972. pp. 45-46.<br />

10<br />

Recenseamento Geral da República dos Estados Unidos do Brasil, ano <strong>de</strong> 1890. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Typ. Leuzinger, 1895.<br />

11<br />

Não é <strong>de</strong>mais lembrar que nesta época estavam emergindo a i<strong>de</strong>ologia do branqueamento. Sobre i<strong>de</strong>ologia racial e “teoria<br />

do branqueamento”, ver: Skidmore, Thomas. O Preto no Branco: raça e nacionalida<strong>de</strong> no pensamento brasileiro. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Paz e Terra, 1976; Schwartz, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no<br />

Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.<br />

12<br />

Reid Andrews foi um dos poucos que estudou os <strong>negro</strong>s <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1888. Andrews, George Reid. Negros e Brancos em<br />

São Paulo (1888-1988). Bauru: Edusc, 1998; Ver também: Mattos, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: os significados da<br />

liberda<strong>de</strong> no Su<strong>de</strong>ste escravista - Brasil, séc. XIX. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira, 1998.<br />

27


tivessem <strong>de</strong>saparecido da face da terra como que por encanto. 13 Mas certamente não foi isso que<br />

aconteceu, eles continuaram muito vivos, enfrentando os inconvenientes que lhes eram impostos, por<br />

ter na cor da pele as lembranças da escravidão.<br />

Nos anos que cercam a abolição, os libertos passam a ser vistos com <strong>de</strong>sconfiança pela<br />

socieda<strong>de</strong> branca: a condição <strong>de</strong> ex-escravo faria <strong>de</strong>sses homens e mulheres pessoas <strong>de</strong>generadas e<br />

incapazes para a vida fora do cativeiro e do controle pessoal do senhor. Essa visão coeva teve ecos na<br />

historiografia durante muito tempo, marcando os trabalhos <strong>de</strong> estudiosos do tema por mais <strong>de</strong> 20 anos.<br />

Tal perspectiva, que proliferou principalmente <strong>de</strong>ntro da chamada “escola paulista” li<strong>de</strong>rada pelo<br />

sociólogo Florestan Fernan<strong>de</strong>s, adotou sem os <strong>de</strong>vidos filtros interpretativos as idéias vigentes na<br />

época. Com base em seus pressupostos, a historiografia referente ao trabalho fincou em 1888 uma<br />

espécie <strong>de</strong> marco on<strong>de</strong> <strong>de</strong> um lado estariam os escravos, sempre apáticos e dados ao vício, e <strong>de</strong> outro<br />

os trabalhadores livres, que eram brancos e na maioria das vezes estrangeiros, estes sim consi<strong>de</strong>rados<br />

sujeitos históricos autônomos e capazes <strong>de</strong> ação política.<br />

Os novos estudos sobre a escravidão, no entanto, ofereceram uma outra visão. Inspirados<br />

especialmente nos pressupostos teóricos e políticos das obras <strong>de</strong> E. P. Thompson, alguns historiadores<br />

passaram a incluir em seus trabalhos a experiência dos cativos, partindo para uma nova abordagem da<br />

relação senhor-escravo. Como apontou Silvia Lara, alguns historiadores, baseando-se em Thompson,<br />

perceberam que “as relações entre senhores e escravos eram frutos das ações dos senhores, mas<br />

também dos escravos enquanto sujeitos históricos.” 14<br />

Assim, criticando aquilo que Sidney Chalhoub chamou <strong>de</strong> “teoria do escravo-coisa.” 15 , vários<br />

estudiosos se propuseram a pensar os escravos, seja do campo ou da cida<strong>de</strong>, como seres capazes <strong>de</strong><br />

ação autônoma, po<strong>de</strong>ndo ser agentes <strong>de</strong> sua própria história, além <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> significados próprios<br />

<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, contribuindo <strong>de</strong> maneira <strong>de</strong>cisiva para os estudos referentes ao tema. 16 Muitos <strong>de</strong>sses<br />

trabalhos enfocaram as batalhas cotidianas <strong>de</strong>sses homens e mulheres na busca da liberda<strong>de</strong>,<br />

mostrando que a luta dos escravos não se fazia só nas revoltas e fugas, mas também estava presente no<br />

dia a dia, em pequenos atos que ganhavam novas dimensões quando politizados em seus<br />

13<br />

Lara, Silvia Hunold. "Escravidão, Cidadania e <strong>História</strong> do Trabalho no Brasil". In: Projeto <strong>História</strong>, São Paulo, (16), fev.<br />

1998.<br />

14<br />

Lara, Silvia Hunold. “Blowind in the Wind: E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil” In: Projeto <strong>História</strong>. São<br />

Paulo, (12), out. 1995. p.46.<br />

15<br />

Chalhoub, Sidney. Op. Cit. 1990.<br />

16<br />

Cf. Slenes, Robert. Na Senzala, uma Flor: esperança e recordações na formação da família escrava. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Nova Fronteira, 1999; Lara, Silvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na capitania do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

28


significados. 17 Redimensionando a compreensão da experiência escrava, as novas propostas<br />

historiográficas acabaram por quebrar o relativo consenso existente acerca dos libertos, até então<br />

associados ao <strong>de</strong>spreparo para o novo mundo do trabalho livre.<br />

Desta forma, a escolha do <strong>porto</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro como objeto <strong>de</strong> pesquisa não foi feita por<br />

acaso. A opção se <strong>de</strong>u por ser este um setor dos trabalhadores urbanos em que a presença do <strong>negro</strong> foi<br />

muito forte <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos da escravidão, e assim continuou após a abolição.<br />

Trabalhadores Avulsos<br />

Voltando aos nossos personagens, vimos que, dos oito trabalhadores presos, um afirma ser<br />

estivador e os outros <strong>de</strong>claram algum tipo <strong>de</strong> serviço ligado ao <strong>porto</strong> sem especificar a função. Mas<br />

certamente todos trabalhavam no cais em serviços ocasionais. O caráter ocasional do trabalho era uma<br />

das principais características da mão <strong>de</strong> obra portuária. Essa forma <strong>de</strong> contratação moldava a<br />

experiência dos trabalhadores do <strong>porto</strong> em diversos níveis: na organização do trabalho, nas lutas<br />

sindicais, mas também nas horas <strong>de</strong> folga e lazer.<br />

Hobsbawm caracterizou o <strong>porto</strong> como “uma indústria <strong>de</strong> fronteiras fluidas”, on<strong>de</strong> se reuniam<br />

diversas ocupações, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o serviço <strong>de</strong> carga e <strong>de</strong>scarga <strong>de</strong> carregamentos, passando pelo sistema <strong>de</strong><br />

transportes <strong>de</strong> mercadorias (por água e por terra), manutenção das instalações e das máquinas, até as<br />

ativida<strong>de</strong>s burocráticas <strong>de</strong> conferência e <strong>de</strong>spacho <strong>de</strong> mercadorias. 18 No <strong>porto</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro da<br />

Primeira República não era diferente. Em toda sua extensão – que ia do Arsenal da Marinha até São<br />

Cristóvão, englobando os bairros da Saú<strong>de</strong>, Gamboa, Santo Cristo e Caju – conviviam várias<br />

categorias, que po<strong>de</strong>riam ser assalariados mensalistas ou diaristas. Desse enorme contingente <strong>de</strong><br />

homens, embora existissem núcleos <strong>de</strong> trabalhadores fixos em algumas das unida<strong>de</strong>s portuárias, po<strong>de</strong>se<br />

afirmar que a maior parte era constituída <strong>de</strong> trabalhadores autônomos, sem vínculo empregatício.<br />

1750-1808. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, 1988; Matos, Hebe Maria. Op. Cit.; Chalhoub, Sidney. Op. Cit. 1990; Algranti,<br />

Leila Mezan. Op. Cit.<br />

17 Além dos já mencionados acima, ver também: Souza, Jorge Prata <strong>de</strong> (org.) Escravidão: ofícios e liberda<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: APERJ, 1998; Reis, João José (org.). Escravidão e Invenção da Liberda<strong>de</strong>: estudos sobre o <strong>negro</strong> no Brasil São<br />

Paulo: Brasiliense, 1988; Silva, Eduardo & Reis, João José (orgs.) Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil<br />

escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.<br />

18 Hobsbawm, Eric. Os Trabalhadores: estudos sobre a história do operariado. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Paz e Terra, 1981, p. 210.<br />

29


A contratação da mão-<strong>de</strong>-obra avulsa estava sujeita às flutuações do mercado, ou seja, o número<br />

<strong>de</strong> pessoas chamadas para <strong>de</strong>terminado serviço <strong>de</strong>pendia da quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> carga que <strong>de</strong>veria ser<br />

embarcada ou <strong>de</strong>sembarcada naquele dia. Todas os dias, em diversos horários, vários homens se<br />

reuniam “na pare<strong>de</strong>” – local on<strong>de</strong> os interessados se apresentavam para disputar uma vaga nas turmas<br />

que fariam o serviço 19 – em busca <strong>de</strong> trabalho. O número <strong>de</strong> braços contratados para o serviço variava<br />

<strong>de</strong> acordo com a carga, e a escolha dos homens era feita através da “chamada livre”, sem obe<strong>de</strong>cer<br />

nenhum critério pré-<strong>de</strong>finido. 20 Quem queria trabalhar levantava a mão e “rezava” para ser apontado<br />

pelos capatazes ou encarregados das firmas agenciadoras da mão-<strong>de</strong>-obra, responsáveis pela<br />

contratação. 21 Esse sistema levou à criação e manutenção <strong>de</strong> um exército permanente <strong>de</strong> reserva na<br />

área do <strong>porto</strong>, ao qual os empregadores recorriam nos momentos <strong>de</strong> pico do movimento portuário, o<br />

que levava à <strong>de</strong>preciação dos salários.<br />

Os escolhidos na "pare<strong>de</strong>" ganhavam por período trabalhado (que podia ser por hora, dia ou<br />

noite <strong>de</strong> trabalho) ou por volume <strong>de</strong> mercadoria. Se o sujeito fosse escolhido – ótimo! – haveria<br />

pagamento. Caso contrário, os rejeitados tinham a opção <strong>de</strong> voltar para seus lares resignados ou ficar<br />

perambulando pelos bairros próximos ao cais na esperança <strong>de</strong> uma nova chamada, que po<strong>de</strong>ria<br />

acontecer a qualquer hora do dia, ou não. Era bastante comum que aguardassem por uma nova<br />

chamada reunidos em alguma praça, jogando vermelhinha ou contribuindo para o próspero comércio<br />

<strong>de</strong> aguar<strong>de</strong>nte nos inúmeros botequins da zona portuária, ponto <strong>de</strong> encontro por excelência daqueles e<br />

<strong>de</strong> outros trabalhadores. 22 Mas po<strong>de</strong>riam também fazer como fizeram alguns daqueles homens do Cais<br />

dos Mineiros e aproveitarem o tempo livre para <strong>de</strong>scansar em algum bote.<br />

Nas disputas diárias na pare<strong>de</strong>, o <strong>de</strong>safortunado que não conseguisse trabalho em <strong>de</strong>terminado<br />

dia po<strong>de</strong>ria ficar <strong>de</strong> bolso vazio à noite. Muitas vezes ter ou não on<strong>de</strong> dormir <strong>de</strong>pendia do sujeito ter<br />

sido escolhido pelo contratador. Se tinha trabalho, po<strong>de</strong>ria pagar uma hospedaria no fim do dia, caso<br />

contrário enfrentava-se a noite num banco <strong>de</strong> praça ou em alguma embarcação do cais. Essa última<br />

19 Segundo Maria Cecília Velasco Cruz, todo o trabalho <strong>de</strong> movimentação e arrumação <strong>de</strong> mercadorias no <strong>porto</strong> é realizado<br />

por grupos <strong>de</strong> trabalhadores cujo tamanho e processo <strong>de</strong> trabalho variam pouco <strong>de</strong> um <strong>porto</strong> para outro. No caso do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, os estivadores <strong>de</strong>nominam esses grupos <strong>de</strong> “ternos”, e os carregadores e arrumadores <strong>de</strong> “tropa” ou “turmas”.<br />

Cruz, Maria Cecília Velasco e. Virando o Jogo: estivadores e carregadores no Rio <strong>de</strong> Janeiro da Primeira República. Tese<br />

<strong>de</strong> Doutorado, USP, 1998. p. 45, nota 24.<br />

20 Esse sistema floresceu entre a segunda meta<strong>de</strong> do XIX e início do XX na maioria dos <strong>porto</strong>s do mundo (free-call, na<br />

Inglaterra e Shape-up, nos Estados Unidos) e aparece, historicamente, como resposta dos empregadores às constante<br />

flutuações da carga e <strong>de</strong>scarga <strong>de</strong> mercadorias nos <strong>porto</strong>s. Cf. Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit.; Gitahy, Maria Lúcia.<br />

Caira. Ventos do Mar: trabalhadores do <strong>porto</strong>, movimento operário e cultura urbana em Santos, 1889-1914. São Paulo:<br />

Ed. da Unep; Santos: Prefeitura Municipal <strong>de</strong> Santos, 1992.<br />

21 São firmas intermediárias, contratadas pelos donos do navio ou pelas firmas <strong>de</strong> importação/exportação.<br />

22 Sobre o botequim como ponto <strong>de</strong> encontro dos trabalhadores no início do século, ver Chalhoub, Sidney. Op. Cit. 1986.<br />

30


opção podia até ser mais vantajosa, pois assim o operário já acordaria no local <strong>de</strong> trabalho e bem cedo<br />

se lançaria <strong>de</strong> novo a uma nova batalha na “pare<strong>de</strong>”. Algo semelhante po<strong>de</strong> ter acontecido ao<br />

português José Engenheiro, que ao ser preso disse que “não tinha modo <strong>de</strong> pagar uma hospedaria<br />

on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse pernoitar”.<br />

A documentação policial é cheia <strong>de</strong> exemplos <strong>de</strong> portuários que não tinham en<strong>de</strong>reço certo.<br />

Em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1909, por exemplo, o português Manoel Gomes foi preso por agressão e em seu<br />

<strong>de</strong>poimento disse morar em uma hospedaria da Rua da Saú<strong>de</strong>, que ficava junto ao Trapiche Silvino.<br />

Durante o julgamento, o Chefe <strong>de</strong> Polícia informa ao Juiz da 2 a Pretoria que o português, conhecido<br />

como Cabo Ver<strong>de</strong> “costuma pernoitar nas hospedarias da Rua da Saú<strong>de</strong> ns. 53 e 131 e trabalha<br />

como foguista, não tendo emprego fixo.” 23 Ou seja, o fato <strong>de</strong>le não ter emprego fixo foi, talvez, o<br />

principal motivo <strong>de</strong> Cabo Ver<strong>de</strong> também não ter tido um teto fixo, sendo preciso apelar para as<br />

hospedarias para não dormir ao relento. Apesar <strong>de</strong>ssa realida<strong>de</strong> não ser a <strong>de</strong> todos os trabalhadores do<br />

<strong>porto</strong>, ela não era estranha àqueles homens. De fato, as hospedarias da zona portuária eram uma<br />

opção razoavelmente barata para os pobres em geral, especialmente os solteiros, que “se arranjavam”<br />

em qualquer canto com mais facilida<strong>de</strong> 24 .<br />

Os portuários que tinham residência fixa, geralmente longe das redon<strong>de</strong>zas do cais, também<br />

po<strong>de</strong>riam, em certas ocasiões, optar pelas inúmeras hospedarias ou estalagens da zona portuária, entre<br />

outras coisas porque a forma <strong>de</strong> contratação estimulava os homens a se apresentar e bem cedo na<br />

“pare<strong>de</strong>” ou a permanecer nos arredores do <strong>porto</strong>, on<strong>de</strong> a qualquer momento, mesmo durante à noite,<br />

po<strong>de</strong>riam <strong>de</strong>sembarcar navios para <strong>de</strong>scarga. Além disso, em alguns casos, o próprio serviço pedia a<br />

permanência no local <strong>de</strong> trabalho, como po<strong>de</strong> ter acontecido naquele dia com o pardo João Cezário da<br />

Silva, que se disse obrigado a dormir no bote por motivo <strong>de</strong>, naquele dia, “ter-se feito ao mar”. No<br />

mais, alguns moradores <strong>de</strong> bairros mais afastados podiam escolher os bancos <strong>de</strong> praça ou os botes do<br />

cais por motivos <strong>de</strong> economia: poupar o dinheiro da hospedagem e da condução até o local.<br />

Outra vantagem <strong>de</strong> permanecer próximo ao cais era a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer “um ganho extra”<br />

com outras tarefas eventuais, como fez o pardo Mariano Bochita, que, sendo estivador, aproveitou<br />

que não havia trabalho naquele dia para ganhar uns trocados tomando conta <strong>de</strong> um dos botes daquele<br />

23 AN – 2 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro; m.890, Cx. 5156. 1909.<br />

24 Dos trabalhadores portuários contabilizados na Casa <strong>de</strong> Detenção, 77% se <strong>de</strong>clararam solteiros e apenas 14,3% se<br />

<strong>de</strong>clararam casados. Os outros 8,7% eram viúvos (o que, teoricamente é o mesmo que solteiro) ou não <strong>de</strong>claram estado<br />

civil. Vale lembrar que, entre os que se disseram solteiros, po<strong>de</strong>riam existir muitos que, apesar <strong>de</strong> não oficialmente casados,<br />

eram “amasiados”. Em contrapartida, muitos “amasiados” po<strong>de</strong>riam se <strong>de</strong>clarar casados. De qualquer forma, na análise, o<br />

número esmagador <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarados “solteiros” supera essa possível diferença numérica.<br />

31


cais. O <strong>porto</strong> era um bom lugar para os trabalhadores pobres conseguirem serviços provisórios que<br />

pu<strong>de</strong>ssem aumentar as <strong>de</strong>spesas, não sendo difícil ver homens que realizavam ali diversas tarefas. 25<br />

Mas a “estadia” nos bancos e botes por aqueles que moravam longe também po<strong>de</strong>ria ser fruto da<br />

impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> voltar pra casa, por falta <strong>de</strong> dinheiro para o bon<strong>de</strong> ou por falta <strong>de</strong> sobrieda<strong>de</strong>,<br />

afinal, ia <strong>de</strong> vento em popa a venda <strong>de</strong> Parati nos inúmeros botequins e quiosques da região.<br />

Assim como um dos presos – o preto Prudêncio Pimenta, que <strong>de</strong>clarou ser morador no distante<br />

Curato <strong>de</strong> Santa Cruz – não eram poucos os portuários que moravam em bairros afastados. Entretanto<br />

os bairros centrais, mais próximos ao <strong>porto</strong>, ainda concentravam a maior parte <strong>de</strong>sta mão-<strong>de</strong>-obra no<br />

início do século. O preço dos aluguéis em habitações individuais <strong>de</strong>ssas regiões não correspondia à<br />

realida<strong>de</strong> dos trabalhadores pobres da cida<strong>de</strong>, obrigando-os a buscar formas alternativas <strong>de</strong> moradia<br />

que fossem compatíveis com os baixos salários. As habitações coletivas – cortiços, estalagens, casas<br />

<strong>de</strong> cômodo – que, a <strong>de</strong>speito das tentativas governamentais <strong>de</strong> eliminá-las, continuavam proliferando<br />

pela cida<strong>de</strong>, eram uma saída possível. Em 1903, por exemplo, um estivador ganhava cerca <strong>de</strong> 8$000<br />

pelo serviço realizado durante o dia e 12$000 quando realizado no turno da noite. 26 Um quartinho em<br />

uma casa <strong>de</strong> cômodos custava em média 20$000 mensais. Um cubículo <strong>de</strong> dois pavimentos na mesma<br />

casa saía por 35$000 por mês, em média. Enquanto isso, era bem difícil encontrar uma casa “normal”<br />

por menos <strong>de</strong> 80$000. 27 Não precisa ser matemático para notar que as habitações coletivas eram a<br />

melhor opção (muitas vezes a única viável) para a maior parte dos trabalhadores pobres, entre eles os<br />

do <strong>porto</strong>, principalmente porque não era todo dia que estes trabalhavam.<br />

Naqueles tempos, a cida<strong>de</strong> sofria uma grave crise habitacional, que teve seu auge durante a<br />

administração <strong>de</strong> Pereira Passos. Em contrapartida ao enorme aumento da população 28 , assistiu-se a<br />

diminuição <strong>de</strong> casas habitáveis, resultado da política <strong>de</strong> reformas que arrasou muitas das estreitas ruas<br />

do centro, <strong>de</strong>molindo inúmeras casas coletivas que ficavam no caminho das obras. Em seu lugar,<br />

ergueram-se ruas mais largas e amplas avenidas <strong>de</strong> prédios elegantes e suntuosos. Os populares que<br />

foram sumariamente <strong>de</strong>spejados durante as reformas urbanas, tiveram que lutar para conseguir espaço<br />

nas casas coletivas que ainda existiam, mas custavam cada vez mais caro <strong>de</strong>vido à valorização do<br />

25<br />

Outro exemplo é Manoel Bastos Castilhos, que era catraieiro, mas exercia a profissão <strong>de</strong> estivador nas horas vagas.<br />

Gazeta <strong>de</strong> Notícias, 06/02/1906, Coluna “Na Polícia e Nas Ruas”: Notícia sobre agressão que sofreu no Cais dos Mineiros.<br />

26<br />

Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit. p. 241.<br />

27<br />

Carvalho, Lia <strong>de</strong> Aquino. Habitações Populares. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Secretaria Municipal <strong>de</strong> Cultura, Coleção Biblioteca<br />

Carioca, 1995. p. 136.<br />

28<br />

Entre 1872 e 1890, a população do Rio <strong>de</strong> Janeiro praticamente dobrou, passando <strong>de</strong> 266 mil habitantes para 522 mil. Na<br />

última década do século XIX, a cida<strong>de</strong> teve ainda que absorver mais 200 mil novos moradores, por conta da crescente<br />

32


solo urbano, o que estimulou a especulação imobiliária e o crescimento <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira re<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

exploração das habitações na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Muitos acabaram ocupando os morros da<br />

cida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> construíram casinhas na maior parte das vezes sem nenhuma infra-estrutura e on<strong>de</strong> os<br />

serviços públicos não chegavam, como o Morro da Favela e o Morro do Pinto. 29<br />

Uma outra opção era fazer como Prudêncio Pimenta e morar nos bairros mais afastados, nas<br />

áreas suburbanas da cida<strong>de</strong>. Mas essa alternativa po<strong>de</strong>ria gerar gran<strong>de</strong>s inconvenientes, como gastos<br />

extras com as passagens <strong>de</strong> bon<strong>de</strong> e ter que acordar bem mais cedo para trabalhar, <strong>de</strong>sperdiçando<br />

preciosas horas <strong>de</strong> sono (talvez por isso Pimenta tenha feito uma pequena pausa em um dos botes do<br />

Cais dos Mineiros para <strong>de</strong>scansar). Além do mais, muitas pessoas já estavam sociabilizadas nas áreas<br />

centrais e não queriam simplesmente abrir mão <strong>de</strong> relações há muito estabelecidas entre vizinhos,<br />

comércio local, enfim, toda uma re<strong>de</strong> informal <strong>de</strong> vínculos que marcavam a sua própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />

Em 1904, João do Rio acompanhou agentes <strong>de</strong> polícia numa visita a uma das inúmeras<br />

hospedarias <strong>de</strong> trabalhadores da cida<strong>de</strong> e assim <strong>de</strong>screveu suas impressões:<br />

“(...) Os quartos estreitos, asfixiantes, com camas largas antigas e lençóis por on<strong>de</strong> corriam percevejos. A<br />

respiração tornava-se difícil.<br />

(... )Havia com efeito mais um andar, mas quase não se podia lá chegar, estando a escada cheia <strong>de</strong> corpos, gente<br />

enfiada em trapos, que se estirava nos <strong>de</strong>graus, gente que se agarrava aos balaústres do corrimão – mulheres<br />

receosas da promiscuida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> saias enrodilhadas. Os agentes abriam caminho, acordando a canalha com a ponta<br />

dos cacetes. Eu tapava o nariz. A atmosfera sufocava. Mais um pavimento e arrebentaríamos. (...) e o cheiro, um<br />

fedor fulminante, impregnava-se nas nossas próprias mãos, <strong>de</strong>sprendia-se das pare<strong>de</strong>s, do assoalho carcomido, do<br />

teto, dos corpos sem limpeza. Em cima, então, era a vertigem. A sala estava cheia. Já não havia divisões,<br />

tabiques, não se podia andar sem esmagar um corpo vivo. A meta<strong>de</strong> daquele gado humano trabalhava; rebentava<br />

nas <strong>de</strong>scargas dos vapores, enchendo paióis <strong>de</strong> carvão, carregando fardos. Mais uma hora e acordaria para<br />

esperar no cais os batelões que a levassem ao cepo do labor, em que empedra o cérebro e rebenta o músculo” 30<br />

Na passagem, João do Rio aponta que boa parte do “gado humano” que se amontoava na<br />

hospedaria trabalhava nas diversas profissões do cais, rebentando nas <strong>de</strong>scargas dos vapores,<br />

enchendo paióis <strong>de</strong> carvão ou carregando fardos. Se essa constatação se <strong>de</strong>u porque ele teve o<br />

cuidado <strong>de</strong> perguntar a profissão do “boi” ou simplesmente porque usou sua intuição jornalística para<br />

entrada <strong>de</strong> estrangeiros. Em 1906 já havia na cida<strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 800 mil habitantes. Carvalho, José Murilo <strong>de</strong>. Os<br />

Bestializados: o Rio <strong>de</strong> Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.<br />

29 Cf. Carvalho, Lia <strong>de</strong> Aquino. Habitações Populares; Chalhoub, Sidney. Op. Cit. 1986.<br />

33


<strong>de</strong>duzir o fato (baseando-se apenas na imagem que fazia do trabalhador do <strong>porto</strong> e aquilo que viu na<br />

hospedaria), nunca saberemos. De qualquer modo, suas impressões fazem sentido, pois as habitações<br />

coletivas <strong>de</strong> maneira geral – cortiços, hospedarias, zungas, casas <strong>de</strong> cômodo, estalagens, etc. –<br />

faziam parte da cultura dos trabalhadores pobres, sendo a moradia <strong>de</strong> boa parte dos homens do<br />

<strong>porto</strong>. 31 Já na segunda meta<strong>de</strong> do século XIX, Santana era a freguesia com o maior número <strong>de</strong><br />

habitantes e com a maior concentração <strong>de</strong> casas coletivas. Se em 1868 a freguesia contava 154<br />

cortiços, em 1888 já en<strong>de</strong>reçava 329 cortiços. Neste mesmo ano, o segundo lugar ficou com a<br />

freguesia do Espírito Santo, com menos da meta<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse total, somando 158 cortiços 32 .<br />

30 Rio, João do. “Sono Calmo”. In: A Alma encantadora das Ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Originalmente<br />

publicado na Gazeta <strong>de</strong> Notícias, 10/06/1904, sob o título “O sono da miséria”.<br />

31 Nas fichas <strong>de</strong> entrada na <strong>de</strong>tenção, constantemente um mesmo en<strong>de</strong>reço era <strong>de</strong>clarado por diferentes presos em curtos<br />

períodos <strong>de</strong> tempo, indicando moradores dos cortiços. O número 19 da Rua da Saú<strong>de</strong>, por exemplo, foi residência <strong>de</strong> pelo<br />

menos 9 presos. Na mesma rua, se repetem ainda os números 8, 23, 25, 43, 73 e 75, o que sugere a existência <strong>de</strong> vários<br />

cortiços naquela mesma rua. A Senador Pompeu também foi bastante citada, especialmente o número 122, on<strong>de</strong> morou 7<br />

daqueles homens, mas também os números 22, 31, 157 e 206. Os moradores da Rua da Imperatriz n. 105 também foram<br />

frequentadores assíduos da <strong>de</strong>tenção, bem como os da rua da Misericórdia, especialmente os que moravam nos números 19,<br />

21, 44 e 55. Excetuando a última, todas essas as ruas faziam parte das freguesias <strong>de</strong> Santa Rita ou Santana. Além <strong>de</strong> outros<br />

números das ruas citadas acima, outros en<strong>de</strong>reços se repetem: La<strong>de</strong>ira do Livramento, 15; Largo do Depósito 19; Barão <strong>de</strong><br />

São Félix, 1; Rua da Prainha ns. 3, 32 e 40; Rua General Câmara, 175; General Pedra, 35; Beco dos Ferreiros ns. 9 e 11;<br />

Beco do Guindaste, 1; Beco do Bragança, ns. 13 e 3; Rua da Alfân<strong>de</strong>ga 212; Rua da Conceição 25; Rua da Constituição, 8;<br />

Conselheiro Zacharias, 12; Rua do Carmo, 14; Viscon<strong>de</strong> do Rio Branco, 59; Rua da quitanda 138, etc. , quase todas em<br />

Santana e Santa Rita.<br />

32 Carvalho, Lia <strong>de</strong> Aquino. Op. Cit. pp.140-141.<br />

34


Figura 2<br />

Estalagem na Rua Senador Pompeu<br />

Esses espaços <strong>de</strong> moradia coletiva são importantes para enten<strong>de</strong>r a experiência dos<br />

trabalhadores do <strong>porto</strong> pois, se era nesses lugares que morava gran<strong>de</strong> parte daqueles homens, também<br />

era aí que se estabeleciam laços <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> e eixos <strong>de</strong> conflito entre pessoas <strong>de</strong> origens diversas.<br />

Assim, ao dividirem o mesmo teto, <strong>negro</strong>s e brancos, portugueses e brasileiros, enfim, pessoas <strong>de</strong><br />

diferentes cores e nacionalida<strong>de</strong>s compartilhavam experiências e estabeleciam trocas culturais. 33<br />

Se no olhar <strong>de</strong> pessoas como João do Rio e das autorida<strong>de</strong>s, lugares como aquele só<br />

inspiravam receio e repulsa, para as pessoas que ali dormiam ele significava uma alternativa possível<br />

– talvez a única – às ruas. O problema é que nas ruas, a qualquer momento o sujeito po<strong>de</strong>ria ver seu<br />

sono interrompido pela voz <strong>de</strong> prisão. Afinal, não ter on<strong>de</strong> morar naqueles tempos dava ca<strong>de</strong>ia e<br />

dormir ao relento, ou simplesmente estar na via pública sem fazer nada, era contravenção prevista no<br />

código penal. Foi exatamente isso que aconteceu com nossos oito companheiros que <strong>de</strong>scansavam no<br />

Cais dos Mineiros naquela noite <strong>de</strong> 1909. Mas também aconteceu com Antônio Mina e muitos outros<br />

35


portuários que quando não estavam trabalhando, estavam vagando pelos arredores do <strong>porto</strong>, região<br />

que conheciam muito bem e on<strong>de</strong> viveram gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> suas histórias <strong>de</strong> vida.<br />

A Zona Portuária e os Vadios do Porto<br />

João do Rio referiu-se à Saú<strong>de</strong>, principal bairro da região portuária, como o bairro rubro,<br />

on<strong>de</strong> eram criadas a re<strong>de</strong> tenebrosa, o enca<strong>de</strong>amento lúgubre da miséria e do crime. Ao narrar um<br />

crime ocorrido no local, o nosso elegante cronista flaneur diz não estranhar o ocorrido, pois o crime<br />

seria um exemplo comum da influência do bairro cuja história sombria passa através dos anos<br />

encharcada <strong>de</strong> sangue. 34 Passeando pela região ele <strong>de</strong>screve suas ruas e a sensação que causava nas<br />

pessoas que, como ele, não faziam parte daquele mundo:<br />

“O bairro on<strong>de</strong> o assassinato é natural abraça a Rua da Saú<strong>de</strong>, com todos os becos, vielas e pequenos cais que<br />

<strong>de</strong>la partem; a Rua da Harmonia, a do Propósito, a da Conselheiro Zacarias, que são paralelas à da Gamboa; a do<br />

Santo Cristo, a do Livramento e a atual Rua do Acre. Naturalmente as ruas que as limitam ou que nelas terminam<br />

– São Jorge, Conceição, Costa, Senador Pompeu, América, Vidal <strong>de</strong> Negreiros e Praia do Saco – participam do<br />

estado <strong>de</strong> alma dominante.<br />

Toda essa parte da cida<strong>de</strong>, uma das mais antigas, ainda cheia <strong>de</strong> recordações coloniais, tem, a cada passo, um<br />

traço <strong>de</strong> história lúgubre. A Rua da Gamboa é escura, cheia <strong>de</strong> pó, com um cemitério entre a casaria; a da<br />

Harmonia já se chamou do Cemitério, por ter aí existido a necrópole dos escravos vindo da Costa d’África; a da<br />

Saú<strong>de</strong>, cheia <strong>de</strong> trapiches, irradiando ruelas e becos, trepando morro acima os seus tentáculos, é o caminho do<br />

<strong>de</strong>sespero; a Prainha causa, à noite, uma impressão <strong>de</strong> susto.” 35<br />

Também em suas andanças pela Casa <strong>de</strong> Detenção da cida<strong>de</strong>, João do Rio referiu-se ao<br />

“punhado <strong>de</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iros da Saú<strong>de</strong>” ou aos “malandros da Saú<strong>de</strong>” como assíduos freqüentadores da<br />

prisão. As colunas policiais dos jornais também faziam constantes referências à Saú<strong>de</strong> como antro <strong>de</strong><br />

criminosos:<br />

33 Já em 1856, os portugueses representavam 51,9% da população dos cortiços, enquanto os nacionais representavam 35%.<br />

Cf. Soares, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição: os capoeiras no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Secretaria<br />

Municipal <strong>de</strong> Cultura, Depto. Geral <strong>de</strong> Doc. e Inf. Cultural, Divisão <strong>de</strong> Editoração, 1994. p. 159.<br />

34 Rio, João do. “As crianças que matam”. In: <strong>História</strong>s da Gente Alegre: contos, crônicas e reportagens da Belle-Èpoque<br />

carioca. Org. João Carlos Rodrigues. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José Olympio, 1891. p. 40.<br />

35 I<strong>de</strong>m. pp. 39-40<br />

36


“Ainda é o bairro da Saú<strong>de</strong> que fornece à avi<strong>de</strong>z do leitor um <strong>de</strong>stes fatos que numa simples notícia não po<strong>de</strong><br />

justificar, mas <strong>de</strong> que muito lucraria o estudo paciente <strong>de</strong> gabinete <strong>de</strong> um criminalista” 36<br />

Principal reduto <strong>de</strong> uma das mais célebres e temidas maltas <strong>de</strong> capoeiras do século XIX, os<br />

Guaiamus, a má fama da região e o medo que ela <strong>de</strong>spertava vinham <strong>de</strong> muito tempo e estavam<br />

associados, especialmente, à forte presença dos <strong>negro</strong>s. Des<strong>de</strong> o século XVIII era ali que estava, entre<br />

os morros da Conceição e Livramento, o mercado <strong>de</strong> escravos do Valongo; também era no pé daquele<br />

morro, na esquina com a Prainha, que ficava a Ca<strong>de</strong>ia do Aljube, para on<strong>de</strong> iam presos os escravos<br />

que cometiam algum crime e os quilombolas.<br />

No século XX a imagem negativa da região associada à figura do <strong>negro</strong> ainda era muito forte.<br />

Por ocasião da famosa Festa da Penha, que ocorria no mês <strong>de</strong> outubro, um jornal narrou um conflito<br />

ocorrido em uma das inúmeras barracas que concorriam o público da festa e que terminou em tiros.<br />

Ao constatar a barraca em que se <strong>de</strong>u o conflito, o jornalista pareceu não se espantar:<br />

“(...) Era a barraca número um, em cuja entrada se lia em grossas letras <strong>de</strong> vermelhão: FLOR DA SAÚDE. Era,<br />

pois, certo, que a Flor da Saú<strong>de</strong> não podia <strong>de</strong>smentir a sua negra tradição.” 37<br />

Ponto <strong>de</strong> encontro preferencial dos homens do cais do <strong>porto</strong>, a zona portuária foi palco <strong>de</strong><br />

muitas histórias <strong>de</strong> vida daqueles trabalhadores. Mesmo os que não moravam nas redon<strong>de</strong>zas tinham<br />

ali um espaço <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> privilegiado, seja no trabalho ou nos tantos botequins e quiosques do<br />

lugar, on<strong>de</strong> se vendia café e parati; no sindicato ou em alguma associação <strong>de</strong> lazer como a Socieda<strong>de</strong><br />

União das Flores, agremiação Carnavalesca formada pelos portuários; nas rodas <strong>de</strong> samba e partido<br />

alto costumeiras ou nos circos e nas festas <strong>de</strong> santo que tinham como palco o Campo <strong>de</strong> Santana. 38<br />

36 Correio da Manhã, 30/01/1904. Coluna: “Na Polícia e nas Ruas”. p.2.<br />

37 Jornal do Comercio. 22/10/1906. p. 2<br />

37


Mapa 1<br />

Praça Onze Morro da Favela (Morro da Providência)<br />

Largo do Depósito Morro da Saú<strong>de</strong><br />

Praça da República<br />

Praça Tira<strong>de</strong>ntes<br />

Alfân<strong>de</strong>ga Cais dos Mineiros<br />

Docas Nacionais<br />

38<br />

Morro da Conceição<br />

Além <strong>de</strong> pessoas tidas como suspeitas (os <strong>negro</strong>s e pobres <strong>de</strong> uma maneira geral), a região<br />

abrigou lugares tidos como perigosos, como o Morro da Favela e o célebre cortiço Cabeça <strong>de</strong> Porco,<br />

<strong>de</strong>struído a golpe <strong>de</strong> picaretas por Barata Ribeiro, logo nos primeiros anos do novo regime. 39 Não<br />

muito longe dali, nas ruas vizinhas à Praça da República, estava a zona do “baixo meretrício” e dos<br />

38 Sobre festas e carnavais na região, ver: Cunha, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma história social do<br />

carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; Abreu, Martha. O Império do Divino: festas<br />

religiosas e cultura popular no Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1830-1900. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira, 1999.


teatros cariocas, por on<strong>de</strong> também circulavam os homens do cais, num ir e vir constante. Por isso, os<br />

olhares da repressão se voltaram para lá e a presença da polícia marcou profundamente a experiência<br />

cotidiana dos portuários, especialmente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1890, quando entra em vigor o código penal<br />

republicano que iria levar à ca<strong>de</strong>ia inúmeros trabalhadores e pessoas que não se enquadravam nas<br />

duras regras que o novo regime pretendia implantar.<br />

Antônio Mina, o africano que conhecemos logo na introdução <strong>de</strong>sse trabalho, era freqüentador<br />

assíduo da região, tendo morado em vários en<strong>de</strong>reços <strong>de</strong> Santa Rita e <strong>de</strong> Santana, on<strong>de</strong> foi preso<br />

inúmeras vezes. Em 20 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1908 foi <strong>de</strong>tido às 7 horas da noite na Praça República e<br />

levado à Delegacia do 14 o Distrito. Segundo o policial que o pren<strong>de</strong>u em flagrante, o acusado “seguia<br />

sem <strong>de</strong>stino”, por isso o pren<strong>de</strong>u por vadiagem. Diante do Delegado, Antônio, que <strong>de</strong>ssa vez se<br />

apresentou como Antônio Africano, disse que era “natural D’África, <strong>de</strong> 54 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, casado,<br />

trabalhador, analfabeto, filho <strong>de</strong> pais incógnitos e resi<strong>de</strong>nte na Rua João Caetano n. 50”.<br />

As duas testemunhas que <strong>de</strong>puseram no inquérito, ambos comissários <strong>de</strong> polícia, disseram<br />

exatamente a mesma coisa:<br />

“que hoje às 7 horas da noite viu ser preso em flagrante na Praça da República o acusado presente que seguia sem<br />

<strong>de</strong>stino, que ele <strong>de</strong>poente conhece e sabe <strong>de</strong> ciência própria que o acusado presente não tem profissão, ofício ou<br />

meio <strong>de</strong> subsistência qualquer nem ter em que ganhe a vida ou domicílio”<br />

Dada a palavra ao acusado, este <strong>de</strong>clarou que não era verda<strong>de</strong> o que diziam as testemunhas,<br />

pois ele tinha domicílio e era trabalhador, não vagabundo. Em Juízo, o advogado, Dr. Henrique Pereira<br />

<strong>de</strong> Mello, pedia a anulação do julgamento por conta das irregularida<strong>de</strong>s, a começar pelo fato das duas<br />

testemunhas serem comissários <strong>de</strong> polícia. O advogado ainda disse que o acusado po<strong>de</strong>ria provar<br />

facilmente que era empregado na estiva, “on<strong>de</strong> era trabalhador assíduo, tendo meios honestos <strong>de</strong><br />

subsistência e domicílio”. 40 Esta era uma hipótese perfeitamente factível, dadas as rotinas <strong>de</strong> trabalho<br />

no <strong>porto</strong> que permitiam a indivíduos como ele a garantia <strong>de</strong> sua sobrevivência e o tempo livre que<br />

<strong>de</strong>sejasse. O Juiz parece ter achado o mesmo: Antônio foi absolvido das acusações, mas não sem antes<br />

passar outra vez algum tempo na Casa <strong>de</strong> Detenção aguardando o julgamento.<br />

A documentação policial está repleta <strong>de</strong> um imenso volume <strong>de</strong> casos semelhantes ao <strong>de</strong><br />

Antônio Mina. No auto <strong>de</strong> prisão em flagrante <strong>de</strong> Manoel Eugênio Batista, um dos presos no Cais dos<br />

39 Uma boa <strong>de</strong>scrição da <strong>de</strong>molição do Cabeça <strong>de</strong> Porco está em: Chalhoub, Sidney. Cida<strong>de</strong> Febril: cortiços e epi<strong>de</strong>mias na<br />

Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.<br />

39


Mineiros, o policial que o pren<strong>de</strong>u narrou os fatos segundo a fórmula habitual a estes registros – cuja<br />

linguagem padronizada e monótona, como veremos, revela muito sobre a forma <strong>de</strong> construção dos<br />

processos <strong>de</strong> vadiagem:<br />

“que hoje cerca <strong>de</strong> 1hora da tar<strong>de</strong>, no Cais dos Mineiros, pren<strong>de</strong>u e conduziu a esta <strong>de</strong>legacia o acusado presente<br />

Manoel Eugênio Rodrigues Batista, o qual, com outros que também foram presos, vagava por aquele cais em<br />

completa ociosida<strong>de</strong>; que conhece há muito tempo o acusado e po<strong>de</strong> afirmar <strong>de</strong> ciência própria que ele não tem<br />

meios <strong>de</strong> subsistência por fortuna própria ou profissão, arte e ofício ou ocupação legal honesta em que ganhe a<br />

vida, vagando sempre pelas ruas e praças públicas da cida<strong>de</strong> embriagando-se habitualmente” 41<br />

Estar nas ruas vagando e em completa ociosida<strong>de</strong> e ainda por cima embriagando-se<br />

habitualmente constitui uma evi<strong>de</strong>nte presunção do agente da lei. O fato <strong>de</strong> que seja invariavelmente<br />

mobilizada na justificativa <strong>de</strong>stas prisões é extremamente significativo. “Flagrantes” como este<br />

justificaram a prisão <strong>de</strong> Manoel e seus amigos, como ocorria com muita gente da vizinhança nas<br />

primeiras décadas republicanas.<br />

Em 16 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1904, o baiano Pedro José <strong>de</strong> Oliveira, pardo, carregador, morador do Morro<br />

da Favela, foi preso às 10 horas da noite no Largo da Providência. Junto <strong>de</strong>le estavam o carpinteiro<br />

português José Fernan<strong>de</strong>s Ruivo e a doméstica brasileira Maria da Conceição, todos acusados <strong>de</strong><br />

“ébrios habituais e vagabundos”. As testemunhas, um condutor <strong>de</strong> bon<strong>de</strong>s e um cigarreiro, ambos<br />

brasileiros, afirmaram na <strong>de</strong>legacia que os presos eram vagabundos, ébrios e que não tinham domicílio.<br />

A acusação foi contestada pelos três, que se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ram afirmando que tinham, sim, domicílio certo,<br />

todos no Morro da Favela. Ruivo chega a dizer que “às vezes bebe alguma coisa, mas não é ébrio<br />

habitual”. 42<br />

Em 17 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1909, foi preso na Rua da Saú<strong>de</strong>, às 10 horas da manhã Cândido Manoel<br />

Rodrigues que, segundo o policial que o pren<strong>de</strong>u<br />

“vagava por aquela rua sem <strong>de</strong>stino e em completa ociosida<strong>de</strong>, que conhece o acusado e que podia afirmar <strong>de</strong><br />

ciência própria que ele não tem meios <strong>de</strong> subsistência por fortuna própria, arte ofício ou ocupação legal e honesta<br />

em que ganhe a vida e vaga sempre em ociosida<strong>de</strong> pelas ruas e praças públicas <strong>de</strong>sta cida<strong>de</strong>”.<br />

40 AN – 8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 6917. 1908.<br />

41 AN – 10 a Vara Criminal. Proc. 744, Cx. 329; Gl. B. 1909<br />

42 AN – 8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 3444. 1904.<br />

40


O mesmo disseram as duas testemunhas arroladas, um português e um brasileiro resi<strong>de</strong>ntes em<br />

ruas próximas ao local on<strong>de</strong> a prisão foi efetuada, na Zona Portuária. Ao ser interrogado na <strong>de</strong>legacia,<br />

Cândido disse que tinha 21 anos, era pernambucano, trabalhava como estivador e morava na Rua da<br />

Saú<strong>de</strong>, n. 553. 43<br />

Casos como o <strong>de</strong> Cândido, Antônio Mina e outros citados acima são totalmente rotineiros nas<br />

ruas da região. Os Livros <strong>de</strong> Registros <strong>de</strong> Ocorrência, on<strong>de</strong> eram anotadas as prisões efetuadas<br />

diariamente pelas <strong>de</strong>legacias estão recheados <strong>de</strong> casos <strong>de</strong> prisões <strong>de</strong> portuários por vadiagem e<br />

embriagues 44 . Para uma idéia quantitativa, novamente lanço mão dos dados da Casa <strong>de</strong> Detenção.<br />

Analisando os portuários presos entre 1901 e 1910, chegamos a conclusão que 60% das prisões eram<br />

motivadas por contravenções (vadiagem, embriagues, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns, jogo e capoeiragem). Destes, a<br />

vadiagem é o que apresenta o maior percentual das prisões (42,2% do total, sendo que em 14,2 % dos<br />

casos, combinado com outros artigos, especialmente <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns e embriagues, sempre associados a<br />

comportamentos <strong>de</strong> vadios).<br />

12,20%<br />

18,00%<br />

Tabela D<br />

Percentual por Motivo da Prisão<br />

11,00%<br />

41<br />

58,80%<br />

Contravenção<br />

Gatunagem<br />

Ofensas Físcas<br />

Outros<br />

Fonte : Livro <strong>de</strong> Registro <strong>de</strong> Entrada <strong>de</strong> Presos na Casa <strong>de</strong> Detenção do Rio <strong>de</strong> Janeiro - APERJ<br />

43 AN – 10 a Vara Criminal. Cx. 331, Prc. 818. 1909<br />

44 Alguns jornais também costumavam noticiar diariamente as prisões efetuadas pelas <strong>de</strong>legacias, on<strong>de</strong> nota-se que gran<strong>de</strong><br />

parte <strong>de</strong>las era por vadiagem e embriagues Coluna “Na Polícia e nas Ruas” do Correio da Manhã; Coluna “Ocorrências”<br />

da Gazeta <strong>de</strong> Notícias.


Mas os registros da <strong>de</strong>tenção também mostram outro fator importante: 56,3% das prisões por<br />

contravenção recaíram sobre pretos e pardos, enquanto 42,5% sobre os brancos, conforme indicado na<br />

Tabela E.<br />

Tabela E<br />

Presos por Contravenção, por cor<br />

42,50%<br />

4,20%<br />

42<br />

24,50%<br />

28,80%<br />

Preto<br />

Pardo<br />

Branco<br />

Outros<br />

Fonte : Livro <strong>de</strong> Registro <strong>de</strong> Entrada <strong>de</strong> Presos na Casa <strong>de</strong> Detenção do Rio <strong>de</strong> Janeiro - APERJ<br />

Vale lembrar que nessa época os brancos já superavam numericamente os <strong>negro</strong>s na cida<strong>de</strong> do<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, especialmente por conta dos imigrantes, que, aliás, eram a maioria dos presos por<br />

contravenção, especialmente os portugueses, conforme as tabelas F e G .<br />

TABELA F<br />

Brancos Presos por Contravenção<br />

37%<br />

63%<br />

Estrangeiros<br />

Brasileiros<br />

Fonte : Livro <strong>de</strong> Registro <strong>de</strong> Entrada <strong>de</strong> Presos na Casa <strong>de</strong> Detenção do Rio <strong>de</strong> Janeiro - APERJ


TABELA G<br />

Estrangeiros Presos por Contravenção<br />

22%<br />

10%<br />

6%<br />

43<br />

62%<br />

Portugueses<br />

Italianos<br />

Espanhóis<br />

Outros<br />

Fonte : Livro <strong>de</strong> Registro <strong>de</strong> Entrada <strong>de</strong> Presos na Casa <strong>de</strong> Detenção do Rio <strong>de</strong> Janeiro - APERJ<br />

Na capital da recém-fundada república, as multidões anônimas que ocupam as ruas são vistas<br />

como sinônimo <strong>de</strong> barbárie e atraso, uma verda<strong>de</strong>ira ameaça à or<strong>de</strong>m, pois sua cultura, seus ritmos e<br />

seus hábitos estavam muito distantes dos padrões parisienses que a estética oficial sonhava<br />

implementar. 45 Assim, o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> civilização adotado <strong>de</strong> cima para baixo representou também,<br />

através do aparato repressivo legitimado por teorias científicas, a imposição da vigilância, do controle<br />

e da disciplina para toda a população. Neste conjunto, alguns pareceram merecer atenção redobrada: os<br />

<strong>negro</strong>s.<br />

Já no século XIX, o medo das revoltas escravas, ou <strong>de</strong> outras manifestações <strong>de</strong> luta pela<br />

liberda<strong>de</strong>, estava presente já no Código <strong>de</strong> Posturas Municipais <strong>de</strong> 1830, que atestava a preocupação<br />

no controle do trabalho, circulação e comportamento dos escravos urbanos. 46 Nos anos que cercam a<br />

abolição, o problema passa a ser os libertos e na década <strong>de</strong> 1890 eles são claramente i<strong>de</strong>ntificados<br />

como o principal perigo para o futuro da nação. Em 1888 foi elaborado um projeto <strong>de</strong> repressão à<br />

ociosida<strong>de</strong>, consi<strong>de</strong>rado pelos <strong>de</strong>putados <strong>de</strong> suma importância, já que pairava sobre o Brasil o temor <strong>de</strong><br />

que a abolição traria junto consigo o fantasma da <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m. Para garantir a or<strong>de</strong>m era necessário que,<br />

além <strong>de</strong> reprimidos, os libertos fossem educados, através <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira ofensiva pedagógica, para<br />

viver em uma socieda<strong>de</strong> livre como trabalhadores disciplinados. O problema era que, na visão dos ex-<br />

45<br />

Neves, Margarida <strong>de</strong> Souza. “O Povo na Rua: Um conto <strong>de</strong> duas cida<strong>de</strong>s”. In: Pechman, Robert Moses. Olhares sobre a<br />

Cida<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed. UFRJ. 1994.


senhores, todo e qualquer liberto era ocioso e, portanto, marginal em potencial. Por isso, a repressão<br />

foi a outra face da pedagogia. Essas idéias estão claramente presentes na fala <strong>de</strong> um dos <strong>de</strong>putados,<br />

sobre o projeto do ministro Ferreira Viana:<br />

“Votei pela utilida<strong>de</strong> do projeto, convencido, como todos estamos, <strong>de</strong> que hoje, mais do que nunca, é preciso<br />

reprimir a vadiação, a mendicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>snecessária, etc... Há o <strong>de</strong>ver imperioso por parte do Estado <strong>de</strong> reprimir e<br />

opor um dique a todos os vícios que o liberto trouxe <strong>de</strong> seu antigo estado, e que não podia o efeito miraculoso <strong>de</strong><br />

uma lei fazer <strong>de</strong>saparecer, porque a lei não po<strong>de</strong> <strong>de</strong> um momento para outro transformar o que está na natureza” 47<br />

De acordo com o projeto, os ociosos <strong>de</strong>veriam ser recolhidos a Colônias Agrícolas para cumprir<br />

pena <strong>de</strong> trabalhos forçados, numa união <strong>de</strong> castigo e “regeneração” através do aprendizado moral<br />

imposto pelo hábito do trabalho. O conceito <strong>de</strong> vadiagem, incorporado ao novo código penal na<br />

categoria das “contravenções”, estava sendo construído em contraposição à positivação do trabalho.<br />

Assim, “enquanto o trabalho é a lei suprema da socieda<strong>de</strong>, a ociosida<strong>de</strong> é uma ameaça à or<strong>de</strong>m”. 48<br />

O i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> civilização pressupunha integração a uma nova or<strong>de</strong>m produtiva on<strong>de</strong> os escravos<br />

não faziam mais parte da cena. O mundo do trabalho com sua nova lógica <strong>de</strong> controle <strong>de</strong>veria absorver<br />

a gran<strong>de</strong> massa <strong>de</strong> libertos, transformando-os em trabalhadores livres. Era então preciso dar<br />

positivida<strong>de</strong> ao conceito <strong>de</strong> trabalho – que até então era entendido como coisa <strong>de</strong> escravo e, por isso,<br />

aviltante – conferindo-lhe um sentido enobrecedor, vinculá-lo à honra, à virtu<strong>de</strong> e à liberda<strong>de</strong>. Neste<br />

novo mundo, o bom cidadão era o bom trabalhador. 49 Agora, os escravos <strong>de</strong>veriam ser trabalhadores<br />

livres e o controle da mão-<strong>de</strong>-obra não estaria mais subordinado ao controle senhorial, e sim ao Estado,<br />

alterando as dimensões <strong>de</strong> uma preocupação da classe dominante em relação aos perigos atribuídos aos<br />

<strong>negro</strong>s e mestiços que permeou todo o século XIX. Afinal, a teoria <strong>de</strong> que a experiência do cativeiro<br />

produzia seres <strong>de</strong>generados, propícios ao vício e à marginalida<strong>de</strong>, era ainda muito presente no<br />

imaginário das elites.<br />

Além disso, ganharam força nas últimas décadas do XIX as premissas do racismo científico,<br />

que atribuíam uma inferiorida<strong>de</strong> do elemento <strong>negro</strong> em termos biológicos. Para alguns, o potencial<br />

perigo dos <strong>negro</strong>s, com seus vícios e <strong>de</strong>feitos, não era somente fruto da experiência como escravos,<br />

mas um fator “natural”. Assim, os <strong>negro</strong>s foram as principais vítimas da "suspeição generalizada", que<br />

46 Cf. Chalhoub, Sidney. Op. Cit. 1996; Algranti, Leila Mezan, Op. Cit.<br />

47 Anais da Câmara dos Deputados, 1888, vol.3, p.240. Apud. Chalhoub, Sidney. Op. Cit. 1986. p. 42.<br />

48 Anais da Câmara dos Deputados, 1888, vol.3, p.240. Apud. Chalhoub, Sidney. Op. Cit. 1986. p. 46.<br />

49 Chalhoub, Sidney. Op. Cit. 1996.<br />

44


os colocava, por sua própria condição, como suspeitos a priori. 50 Se o liberto era consi<strong>de</strong>rado<br />

"naturalmente" <strong>de</strong>generado, e o discurso científico veio dar legitimida<strong>de</strong> a essas teorias, era agora<br />

"<strong>de</strong>ver" do po<strong>de</strong>r público agir no sentido <strong>de</strong> garantir o controle social e a manutenção da or<strong>de</strong>m.<br />

Mas ser um bom trabalhador pressupunha também obediência ao patrão. Segundo Sidney<br />

Chalhoub, “a autorida<strong>de</strong> do patrão é enfatizada e consi<strong>de</strong>rada essencial para que o trabalhador se veja<br />

obrigado a <strong>de</strong>sempenhar suas tarefas com a eficiência exigida”, e cita um discurso proferido pelo<br />

<strong>de</strong>putado Rodrigues Peixoto durante as discussões do projeto contra ociosida<strong>de</strong> que vale reproduzir:<br />

“O patrão, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> celebrado o contrato, se constitui uma espécie <strong>de</strong> Juiz doméstico e tem ação incontestável<br />

sobre o trabalhador, para guiá-lo e aconselhá-lo. Se alguma vez o indivíduo sai das órbitas legais e pratica alguma<br />

falta ou <strong>de</strong>lito ligeiro, que não precisa ser punido pela lei, o próprio patrão, em virtu<strong>de</strong> do regulamento que ali<br />

existe, e que estabelece direitos e <strong>de</strong>veres entre locatário e locador, lhe inflige castigos mo<strong>de</strong>rados como aqueles<br />

que infligem os pais aos filhos.” 51<br />

O discurso do <strong>de</strong>putado <strong>de</strong>ixa claro que na falta do senhor, a dominação pessoal, julgada<br />

necessária para a manutenção da or<strong>de</strong>m, estaria agora representada na figura do patrão, que seria o<br />

responsável pela “educação” do seu empregado, mas também com direito <strong>de</strong> aplicar-lhe punição a<br />

necessária. Para Rodrigues Peixoto, o castigo que o patrão aplica no seu empregado <strong>de</strong>ve ser entendido<br />

como “aqueles que infligem os pais aos filhos”, numa pequena amostra <strong>de</strong> como a forma paternalista<br />

<strong>de</strong> pensar as relações sociais, tinha força no pensamento das elites.<br />

Mas, se a figura do patrão era tão importante na construção do i<strong>de</strong>al do bom trabalhador, o que<br />

dizer dos “operários sem patrões”? 52 Os trabalhadores avulsos do <strong>porto</strong>, bem como todos aqueles que<br />

se entregavam ao trabalho ocasional, por opção ou por falta <strong>de</strong>la, não se encaixavam nesse i<strong>de</strong>al e<br />

constantemente eram confundidos com vadios e facilmente associados aos mais diversos tipos <strong>de</strong><br />

crime, pois já <strong>de</strong> saída se distanciavam do mo<strong>de</strong>lo binário que opunha vadios e trabalhadores,<br />

disciplinados e <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iros e assim por diante. Foram por isso um dos grupos sobre o qual a suspeição<br />

caiu com mais força.<br />

O conceito cunhado na lei para a vadiagem dava margem para a inclusão <strong>de</strong> várias outras<br />

contravenções, permitindo que <strong>de</strong> uma tacada só fossem englobados ébrios, mendigos, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iros,<br />

50 Chalhoub, Sidney. Op. Cit. 1996. p. 25. Sobre racismo científico, ver: Schwarcz, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças:<br />

cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. Companhia das Letras, 1993.<br />

51 Chalhoub, Sidney. Op. Cit. 1986. p.45.<br />

45


capoeiras, jogadores, cáftens, enfim. Essa abrangência se torna extremamente funcional para os<br />

propósitos da polícia, já que a prisão por vadiagem po<strong>de</strong>ria ser realizada a qualquer momento,<br />

bastando a autorida<strong>de</strong> policial suspeitar do sujeito. Poucos anos após a promulgação do Código Penal,<br />

o Chefe <strong>de</strong> Polícia do Distrito Fe<strong>de</strong>ral fez consi<strong>de</strong>rações sobre o <strong>de</strong>lito da vadiagem:<br />

“A repressão da vagabundagem tem antes <strong>de</strong> tudo, caráter preventivo; presume-se, com razão, que o indivíduo<br />

vivendo assim será levado por suas necessida<strong>de</strong>s e sua ociosida<strong>de</strong> a cometer crimes e <strong>de</strong>litos, ou, pelo menos, a<br />

viver como parasita, à custa da socieda<strong>de</strong>, repelindo a lei do trabalho que se impõe a todos” 53<br />

Hoje em dia po<strong>de</strong> soar estranho que alguém possa ser preso por não estar fazendo nada e que<br />

vadiagem leve alguém a ter <strong>de</strong> se explicar com o <strong>de</strong>legado, como aconteceu com Antônio Mina e os<br />

portuários do Cais dos Mineiros. Mas na virada do século XIX para o século XX, cenas como aquelas<br />

eram bastante comuns, especialmente nos bairros mais pobres e suspeitos da cida<strong>de</strong>, como a zona<br />

portuária e arredores.<br />

O artigo 399, que tratava da vadiagem, <strong>de</strong>finia o vadio e prescrevia formas <strong>de</strong> reincorporá-lo<br />

aos padrões <strong>de</strong> comportamento social tidos como regulares através do trabalho. Segundo o código<br />

penal, a vadiagem era cometida por aquele que<br />

“Deixar <strong>de</strong> exercitar profissão, ofício ou qualquer mister que ganhe a vida, não possuindo meios <strong>de</strong> subsistência e<br />

domicílio certo em que habite; prover a subsistência por meio <strong>de</strong> ocupação proibida por lei, ou manifestamente<br />

ofensiva da moral e dos bons costumes” 54<br />

Daí a fórmula adotada pelos agentes da polícia na elaboração dos seus autos <strong>de</strong> prisão e outras<br />

peças dos processos, quase sempre sustentados por testemunhos dos próprios membros da corporação<br />

e seus aliados. Nota-se que foi exatamente esse o discurso que o <strong>de</strong>legado usou quando apresentou ao<br />

Chefe <strong>de</strong> Polícia, os nove presos do Cais dos Mineiros. Para as elites o comportamento <strong>de</strong> homens<br />

como Antônio Mina e companheiros, representavam uma ofensa à moral e aos bons costumes. Ao vêlos<br />

naquele cais, o <strong>de</strong>legado só enxergou “maltrapilhos, fétidos e imundos”, representando “gran<strong>de</strong><br />

52<br />

Expressão que dá nome ao já mencionado livro <strong>de</strong> Fernando Teixeira da Silva sobre o <strong>porto</strong> <strong>de</strong> Santos. Silva, Fernando<br />

Teixeira da. Op. Cit.<br />

53<br />

Relatório do Chefe <strong>de</strong> Polícia do Distrito Fe<strong>de</strong>ral. Brasil. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Relatório<br />

apresentado pelo Ministro Alexandre Cassiano do Nascimento em 1893. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imprensa Nacional, 1894.<br />

54<br />

Código Penal dos Estados Unidos do Brasil. Cap. XIII, art. 399. Colleção <strong>de</strong> Atos do Governo Provisório. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Imprensa Nacional, 1891.<br />

46


escândalo e ofensa ao <strong>de</strong>coro público” – razão pela qual, segundo ele, mereciam “um <strong>de</strong>stino<br />

compatível” a ser dado pela autorida<strong>de</strong>. No caso, uma temporada na Casa <strong>de</strong> Detenção e outra na<br />

Colônia Correcional Dois Rios 55 , criada fora do espaço urbano, para on<strong>de</strong> seriam enviados os<br />

“perigosíssimos” reinci<strong>de</strong>ntes, que representavam o maior dos problemas para a socieda<strong>de</strong> e para quem<br />

a legislação previa penas mais rígidas. A criação em todo território nacional <strong>de</strong>stas instituições<br />

correcionais justificava-se pela tese da “recuperação pelo trabalho”, unindo em uma só medida as<br />

ações curativa e preventiva. Arrancando os “parasitas” do convívio social e forçando-o à um cotidiano<br />

forçado <strong>de</strong> trabalho, buscava-se ao mesmo tempo castigá-lo e regenerá-lo. Eram as teorias científicas<br />

atuando pela “causa” da nova socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna e civilizada.<br />

No entanto, por mais que as novas técnicas 56 pu<strong>de</strong>ssem comprovar a reincidência do preso,<br />

ainda era difusa a própria diferenciação entre os vadios “profissionais” e os “ocasionais”, até porque<br />

raramente levava-se em conta um problema bastante grave naquele momento: o enorme <strong>de</strong>semprego<br />

que assolava a cida<strong>de</strong>. Se por um lado o aumento no número <strong>de</strong> reinci<strong>de</strong>ntes po<strong>de</strong>ria atestar uma<br />

constante recusa <strong>de</strong> algumas pessoas se a<strong>de</strong>quarem aos novos padrões <strong>de</strong> comportamento impostos, por<br />

outro podia significar também uma impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quação. No caso dos trabalhadores do <strong>porto</strong>,<br />

era muito difícil separar o vadio do trabalhador e acertar o foco das políticas repressivas. Vítimas <strong>de</strong><br />

uma suspeita ainda mais carregada, os <strong>negro</strong>s do <strong>porto</strong> – pelas particularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seu trabalho e pela<br />

cor da pele que os tornavam suspeitos referenciais – foram, mais que outros grupos, remetidos para o<br />

tal “<strong>de</strong>stino compatível” e povoaram as ca<strong>de</strong>ias da capital fe<strong>de</strong>ral. Se voltarmos para as ruas da cida<strong>de</strong><br />

atrás <strong>de</strong> personagens <strong>de</strong>sta história, po<strong>de</strong>mos ver mais <strong>de</strong> perto como as coisas funcionavam naquele<br />

início <strong>de</strong> século.<br />

Os “perseguidos” pelos agentes policiais<br />

Em 26 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1907, encontramos novamente o velho africano Antônio sendo preso,<br />

às 4 horas da tar<strong>de</strong> na Rua Barão <strong>de</strong> São Felix “por estar em completo estado <strong>de</strong> embriagues”.<br />

Perguntado na <strong>de</strong>legacia, respon<strong>de</strong>u se chamar Antônio Africano, ser trabalhador, morador da rua<br />

Barão <strong>de</strong> São Felix, 54. As duas testemunhas presentes se <strong>de</strong>clararam empregados do comércio – o<br />

55 APERJ - Livro <strong>de</strong> Registro <strong>de</strong> Entrada na Casa <strong>de</strong> Detenção - 1909.<br />

56 Nessa época, no Brasil e outras partes do mundo, substituiu-se o método antropométrico <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação, baseado na<br />

<strong>de</strong>scrição e medidas do indivíduo, e começa-se a adotar o datiloscópico, que usa as impressões digitais.<br />

47


espanhol Eloy (sobrenome ilegível) e paraibano Antônio Firmino <strong>de</strong> Brito – e prestaram o mesmo<br />

<strong>de</strong>poimento na <strong>de</strong>legacia: que viram ser preso o acusado na Barão <strong>de</strong> São Félix “em manifesto estado<br />

<strong>de</strong> embriagues; que o acusado presente é ébrio habitual pelo que tem sido preso inúmeras vezes”.<br />

Dada a palavra a Antonio, este respon<strong>de</strong> que só falaria alguma coisa em seu favor na Pretoria.<br />

Meses <strong>de</strong>pois, em 20 <strong>de</strong> fevereiro do ano seguinte, o Juiz da 8 a Pretoria iria proferir a sentença.<br />

Mas antes, vejamos os argumentos do Dr. Henrique Pereira <strong>de</strong> Mello, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u o africano:<br />

“O presente processo representa uma negação completa do Direito e Justiça que <strong>de</strong>via presidir em todo o<br />

seu feito e não <strong>de</strong> maneira criminosa (...) como foi organizado pela autorida<strong>de</strong> processante (...)<br />

(...) no processo não existe o exame feito pelos médicos legistas como <strong>de</strong> direito para provar ser o acusado<br />

ébrio habitual (ou por outra que se entregue ao vício da embriagues); sim, porque o indivíduo que, aci<strong>de</strong>ntalmente<br />

em certo dia se exceda bebendo, se embriagando numa festa ou em companhia <strong>de</strong> amigos, não é um contraventor,<br />

não é passível <strong>de</strong> pena(...)<br />

Para completar a edificância <strong>de</strong>ste processo, vê-se <strong>de</strong>pondo como condutor do acusado um comissário e<br />

logo em seguida outro como testemunha e como se não bastasse tanta irregularida<strong>de</strong> para conferir essa série <strong>de</strong><br />

nulida<strong>de</strong>s, aparece <strong>de</strong>pondo como segunda testemunha Antonio Firmino <strong>de</strong> Brito, empregado no comércio!!! (é<br />

falso, afirmo e repito se necessário for) Sr. Meritíssimo.<br />

Veja-se e avalie-se do critério e exemplo <strong>de</strong> quem se diz investido <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>: qualificando para <strong>de</strong>por e<br />

fazer prova contra um infeliz chefe <strong>de</strong> família a sua própria or<strong>de</strong>nança Cabo Antônio Firmino <strong>de</strong> Brito como<br />

empregado no comércio!!!!<br />

(...) assim ficando cabalmente provada a falsida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todo este processo on<strong>de</strong> se acumulam tantas<br />

irregularida<strong>de</strong>s. O acusado, Sr. Juiz, é trabalhador da na estiva e chefe <strong>de</strong> família e; não é ébrio, porque o homem<br />

que mantém família e trabalha em tão afanoso serviço já merecendo cargo <strong>de</strong> chefe não po<strong>de</strong>m ser ébrio (...)” 57<br />

Os argumentos da <strong>de</strong>fesa são claros: positiva a figura do réu dando-lhe uma imagem <strong>de</strong><br />

trabalhador morigerado (tanto que conseguiu cargos <strong>de</strong> chefia!). Colocando-o como bom trabalhador e<br />

chefe <strong>de</strong> família, ele não po<strong>de</strong>ria ser enquadrado por contraventor, afinal, ser “ébrio habitual” era coisa<br />

<strong>de</strong> vadio na concepção <strong>de</strong> quem fazia e <strong>de</strong> quem aplicava a lei. Além disso, o advogado usa um outro<br />

argumento recorrente nas <strong>de</strong>fesas, a <strong>de</strong> que as testemunhas eram falsas. Essa situação era comum nos<br />

processos por contravenção e só foi possível em virtu<strong>de</strong> da maneira como os processos eram<br />

produzidos e conduzidos no início do século XX.<br />

57 AN – 8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR.6923. 1908.<br />

48


Em outubro <strong>de</strong> 1899 foi aprovada uma lei, conhecida como Lei Alfredo Pinto, que versava<br />

sobre os procedimentos utilizados na prisão, no processo e no julgamento das contravenções. O<br />

objetivo <strong>de</strong>sta lei era dar mais agilida<strong>de</strong> ao julgamento e punição <strong>de</strong>sses crimes, revelando a fúria<br />

republicana na caça aos contraventores. Para isso, os <strong>de</strong>legados <strong>de</strong> polícia passaram a ter o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

produzir, <strong>de</strong>ntro das próprias <strong>de</strong>legacias, os processos por contravenção. Do auto do flagrante à<br />

conclusão, todos os passos do processo po<strong>de</strong>riam ser feitos <strong>de</strong>ntro da esfera policial. O judiciário<br />

apenas proferiria as sentenças ou po<strong>de</strong>ria requisitar novas investigações e <strong>de</strong>poimentos se julgasse<br />

necessário. 58 Os processos iam prontos para as pretorias <strong>de</strong> modo que o Juiz quase sempre ficava<br />

alheio ao que ocorria na fase <strong>de</strong> instrução e raramente ouvia os acusados se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo.<br />

Nos poucos processos em que foram anexadas aos autos as <strong>de</strong>fesas dos réus, é possível<br />

conhecermos algumas das muitas irregularida<strong>de</strong>s ocorridas, como aconteceu no processo <strong>de</strong> Antonio<br />

Africano. Aliás, apesar <strong>de</strong> “perseguido”, o africano podia se consi<strong>de</strong>rar um privilegiado se comparado<br />

a seus companheiros <strong>de</strong> prisão. Entre os portuários presos por vadiagem, embriagues ou outra<br />

contravenção, ele foi o único que mereceu testemunhas <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa, que <strong>de</strong>clararam em seus<br />

<strong>de</strong>poimentos que ele era um bom trabalhador e com domicílio certo 59 . Na maior parte dos casos, os<br />

processos não apresentavam nem ao menos a <strong>de</strong>fesa do próprio réu, provavelmente porque a origem<br />

social dos acusados não lhes permitia acionar advogados, que custavam caro. No mais, a polícia<br />

produzia processos que obe<strong>de</strong>ciam a certos padrões que praticamente não davam margem para os<br />

acusados se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rem das acusações que lhes eram impostas.<br />

Em 09 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1909, por exemplo, a polícia pren<strong>de</strong>u por vadiagem, às 8 da manhã, na<br />

Rua da Gamboa, próximo à Estação Marítima, três indivíduos: Manoel Antônio Drumond, vulgo<br />

Bexiga Naval, empalhador pernambucano <strong>de</strong> 23 anos, morador na Rua da Paz, 23; Antonio Alves,<br />

português <strong>de</strong> 22 anos, trabalhador do carvão, morador da Rua da Gamboa, 115 e Emygdio <strong>de</strong> Souza,<br />

paraibano, 22 anos, marítimo, morador na Travessa do Sereno, 15.<br />

Segundo o policial que os pren<strong>de</strong>u, esses indivíduos estavam “vagando na referida rua, sendo<br />

certo que os mesmos não têm ocupação e nem tampouco domicílio certo e por isso <strong>de</strong>u-lhes voz <strong>de</strong><br />

prisão”. As duas testemunhas, Francisco Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira e Francisco Guerra, ambos “agentes <strong>de</strong><br />

58<br />

Matos, Marcelo Badaró <strong>de</strong>. Contravenções e Contraventores no Rio <strong>de</strong> Janeiro da Virada do Século. Tese <strong>de</strong> Mestrado,<br />

<strong>UFF</strong>. (versão modificada, 1998) p.50<br />

59<br />

Como em 1905, quando Antônio foi preso por embriagues na Rua Barão <strong>de</strong> São Félix. Processo já comentado na<br />

Introdução (8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro – OR. 4077)<br />

49


segurança pública”, disseram que estavam com o condutor quando este pren<strong>de</strong>u os três indivíduos e<br />

que sabiam “<strong>de</strong> ciência própria serem gatunos, vagabundos, sem domicílio certo e nem ocupação”<br />

Dada a palavra aos acusados, estes disseram que não contestariam as testemunhas, pois fariam<br />

isso em Juízo competente e provariam que não eram vagabundos. O marítimo Emygdio chega mesmo<br />

a dizer “que nada adiantava contestar o <strong>de</strong>poimento da testemunha”, que já não era a primeira vez que<br />

consigo assim procediam e que ao ser chamado na Pretoria saberia se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r. E todos alegaram<br />

serem “perseguidos pelos agentes policiais” 60 – como em casos que vimos anteriormente. À<br />

padronização das autuações e outras peças acusatórias correspon<strong>de</strong> uma pasteurização das <strong>de</strong>fesas,<br />

quase sempre centradas em vícios processuais (aliás, evi<strong>de</strong>ntes) quando os acusados tinham acesso a<br />

um advogado, procurador ou simplesmente a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer a própria <strong>de</strong>fesa por escrito. Não à<br />

toa, os juízes costumavam acatar tais argumentos, quando eles chegavam a ser formulados nos<br />

sumaríssimos processos relativos a vadiagem e outras contravenções.<br />

Mais do que acirrar a repressão, a produção dos processos nas <strong>de</strong>legacias acabou por facilitar as<br />

prisões justificadas apenas na suspeita ou que, no fundo, se baseavam em questões pessoais entre a<br />

autorida<strong>de</strong> policial e o acusado. Os meganhas – ao menos os <strong>de</strong> baixa patente, como os praças que<br />

faziam a ronda pelas ruas – também eram trabalhadores pobres, muitos <strong>de</strong>les <strong>negro</strong>s e moradores dos<br />

mesmos bairros populares e até dos mesmos cortiços que aqueles que prendiam. Muitos po<strong>de</strong>riam<br />

freqüentar os mesmos botequins e bailes que as suas potenciais vítimas. O próprio Regulamento para o<br />

Serviço Policial do Distrito Fe<strong>de</strong>ral, <strong>de</strong> 1903, estimulava que os inspetores secionais, responsáveis por<br />

dar parte ao <strong>de</strong>legado das ocorrências na seção <strong>de</strong> sua responsabilida<strong>de</strong>, tivessem familiarida<strong>de</strong> com a<br />

região compreendida por sua seção, <strong>de</strong> forma a “mostrar-se conhecedor das pessoas resi<strong>de</strong>ntes em sua<br />

seção”. 61 Essa proximida<strong>de</strong> e convivência podiam gerar conflitos pessoais que eram resolvidos na<br />

<strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r do policial sobre as vítimas. Muitos indivíduos po<strong>de</strong>riam ser enquadrados<br />

simplesmente por estar andando nas ruas em horários consi<strong>de</strong>rados impróprios ou por alguma<br />

“picuinha” do meganha. A suspeição estava cada vez mais generalizada e se o policial cismasse com<br />

alguém, era prisão na certa.<br />

O preto estivador Sabino Carlos Montezuma foi preso por vadiagem junto com a cozinheira<br />

Maria Rosária das Dores em 29 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1904, às 9 horas da noite, na Rua da América.<br />

60 AN – 8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 3650. 1909. No entanto, só Emygdio apresentou sua <strong>de</strong>fesa ao Juiz, on<strong>de</strong> alegou<br />

ter sofrido inúmeras arbitrarieda<strong>de</strong>s por parte da polícia. Mas <strong>de</strong> nada adiantou, pois foram os três con<strong>de</strong>nados a 22 dias e<br />

meio <strong>de</strong> prisão.<br />

61 Matos, Marcelo Badaró <strong>de</strong>. Op. Cit. p. 53<br />

50


Montezuma, assim como Maria, foi acusado <strong>de</strong> não ter profissão nem domicílio certo. As testemunhas<br />

foram dois negociantes portugueses, moradores em ruas vizinhas <strong>de</strong> Santana – Antônio Rocha, da Rua<br />

General Pedra; e Albino Machado, da Comandante Maurity – que disseram que os réus eram “vadios<br />

conhecidos”. Montezuma contestou o <strong>de</strong>poimento das testemunhas por serem falsos. Ao que parece,<br />

não era a primeira vez e nem a última que o preto era levado por vadiagem. Alguns dias <strong>de</strong>pois,<br />

encaminhou a <strong>de</strong>fesa que ele mesmo escreveu ao Juiz, on<strong>de</strong> alegou ser trabalhador 62 e ter, sim,<br />

domicílio certo. Disse que na ocasião em que foi preso fazia sua mudança do Morro da Providência<br />

para a Rua Senador Pompeu, 144. Disse também que acreditava “ser vítima <strong>de</strong> uma perseguição por<br />

parte das autorida<strong>de</strong>s da 9 a Circunscrição Urbana” e que já havia sido preso duas vezes no mesmo<br />

dia pelas autorida<strong>de</strong>s da mesma Circunscrição, por puro acinte. Mesmo tendo alegado ser trabalhador e<br />

ter residência fixa no Morro da Favela há mais <strong>de</strong> dois anos, Sabino Montezuma não escapou dos 22<br />

dias e meio <strong>de</strong> prisão dados pelo Juiz. 63<br />

O famoso advogado Evaristo <strong>de</strong> Moraes se pronunciou sobre os procedimentos arbitrários na<br />

condução dos processos <strong>de</strong>ntro das <strong>de</strong>legacias. Em artigo oportunamente intitulado “Justiça aos<br />

Pobres”, ele comparou as práticas judiciais na França e no Brasil e diz que, aqui, as leis do código<br />

penal se cumpriam<br />

“(...) ao bel prazer <strong>de</strong> uns funcionários sem responsabilida<strong>de</strong>, praças, agentes e “encostados”, que se arrebanham<br />

em certas ocasiões, montes <strong>de</strong> criaturas humanas e atiram nas prisões sem maior exame.<br />

O processo dos vagabundos é, em geral, uma coisa tristíssima e lamentável.<br />

Basta dizer que, executados, num só dia ou numa só noite, trinta ou quarenta prisões <strong>de</strong>põem A RESPEITO DE<br />

TODOS OS ACUSADOS uns dois ou três agentes policiais, que, muitas vezes NÃO SÃO OS MESMOS QUE<br />

REALIZARAM A DILIGÊNCIA! A <strong>de</strong>fesa ainda é mais ilusória do que as dos tribunais franceses: lá o<br />

julgamento faz-se em audiência, aqui é o Juiz singular quem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>, sem ter visto, na maioria dos casos, a pessoa<br />

do acusado. A situação verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> uma pobre criatura presa por vagabundagem é <strong>de</strong>plorabilíssima, embora a lei<br />

fale em <strong>de</strong>fesa, em testemunhas, em prazos, etc.<br />

Quem escreve estas linhas já viu (e po<strong>de</strong> provar o fato) autos inteiros escritos e prontos, faltando apenas nomes <strong>de</strong><br />

acusados e datas. À proporção que se iam realizando prisões, iam sendo cheios os “claros” e remetidos da polícia<br />

os processos para as pretorias.<br />

Quando se anunciou a idéia da “polícia processante”, dissemos as nossas dúvidas a respeito da “qualida<strong>de</strong>” do seu<br />

trabalho. Parece que apenas se cuidava da “quantida<strong>de</strong>” do serviço. Sob esse ponto <strong>de</strong> vista, os resultados também<br />

62<br />

Nesse processo Sabino alega apenas ser “trabalhador”, sem especificação. Mas em outras referências <strong>de</strong> prisões, tiradas<br />

dos Livros da Casa <strong>de</strong> Detenção, consta “estivador” (várias entradas entre 1902 e 1903)<br />

63 a<br />

AN - 8 Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 3313. 1904. Sabino Carlos Montezuma também havia sido preso em 27/07/1904<br />

por capoeiragem.<br />

51


não têm sido satisfatórios. Alguns juízes pretores, cheios <strong>de</strong> nobre escrúpulo, tem nulificado <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> processos<br />

e absolvido muitos e muitos supostos vagabundos, por insuficiência <strong>de</strong> provas oferecidas (...)” 64 (grifos do autor)<br />

Evaristo <strong>de</strong> Moraes estava certo: o número <strong>de</strong> absolvições era muito maior do que o <strong>de</strong><br />

con<strong>de</strong>nados nos processos por vadiagem. No entanto, mais do que con<strong>de</strong>nar ou absolver os acusados,<br />

os juizes julgavam os processos e a condução <strong>de</strong>stes pelos policiais. Por isso, muito mais do que<br />

“absolvições” no mérito, ocorriam “anulações” dos processos. Na verda<strong>de</strong>, era comum a discordância<br />

entre polícia e judiciário na condução dos processos. Quando das discussões da Lei Alfredo Pinto,<br />

juristas e magistrados se mostraram contra a <strong>de</strong>legação <strong>de</strong> funções antes exclusivas do judiciário às<br />

autorida<strong>de</strong>s policiais. Tendo sido aprovada a lei, os magistrados <strong>de</strong>monstravam a ineficiência policial<br />

na condução dos processos no próprio julgamento <strong>de</strong>sses. 65 No mais, os próprios “contraventores” não<br />

estavam completamente alheios a esta tensão e muitas vezes sabiam usá-la em seu proveito,<br />

especialmente os mais instruídos.<br />

Apesar disto, como afirma Matos, do ponto <strong>de</strong> vista policial a lei era bastante eficaz. Pren<strong>de</strong>ndo<br />

sumariamente os suspeitos, as autorida<strong>de</strong>s policiais cumpriam o seu papel <strong>de</strong> reprimir e controlar os<br />

ditos contraventores pois, mesmo que estes fossem absolvidos no final, já teriam passado por uma<br />

série <strong>de</strong> incômodos, constrangimentos ou violência e “aprendido a lição”. No que diz respeito ao tempo<br />

<strong>de</strong> prisão, ser absolvido ou não muitas vezes não fazia tanta diferença, pois a pena média era <strong>de</strong> 22 dias<br />

e meio <strong>de</strong> reclusão, em um processo que durava cerca <strong>de</strong> 15 dias para ser concluído. Mas havia casos<br />

extremos em que o acusado passava bem mais tempo do que isso aguardando o processo.<br />

Foi o que aconteceu com o preto Olympio Batista Ribeiro, <strong>de</strong> 22 anos. Preso por vadiagem na<br />

Rua General Caldwel, à uma hora da manhã do dia 12 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1903, Olympio alegou morava no<br />

número 117 da mesma rua e que dirigia-se para sua residência quando recebeu voz <strong>de</strong> prisão. Diante<br />

da autorida<strong>de</strong> policial sustentou que era trabalhador braçal e não vagabundo, dado confirmado por sua<br />

ficha na Casa <strong>de</strong> Detenção on<strong>de</strong> está anotado “estivador” no campo referente à profissão do <strong>de</strong>tento –<br />

mas o processo seguiu em frente. De acordo com o processo criminal, Olympio só recebeu a sentença<br />

do Juiz quase três meses <strong>de</strong>pois, em 28 <strong>de</strong> julho do mesmo ano. Como era normal acontecer, o Juiz da<br />

64 Correio da Manhã. 29/02/1904.<br />

65 Para uma análise da organização da polícia no período republicano, ver: Bretas, Marcos Luiz. A guerra nas ruas: povo e<br />

polícia na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.<br />

52


8 a Pretoria anulou o processo por irregularida<strong>de</strong>s – as testemunhas eram policiais –, mas <strong>de</strong> que<br />

adiantou? Olympio ficou mais tempo preso do que <strong>de</strong>veria ter ficado caso fosse con<strong>de</strong>nado 66 .<br />

Olympio foi um dos portuários que, como tantos outros, fora preso inúmeras vezes pelos crimes<br />

<strong>de</strong> contravenção, <strong>de</strong> acordo com os registros da Casa <strong>de</strong> Detenção. Em 15 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1907, por<br />

exemplo, novamente estava ele na <strong>de</strong>legacia respon<strong>de</strong>ndo por “vadiagem”. Desta vez, fora preso na rua<br />

Senador Eusébio e acusado <strong>de</strong> “vagabundo incorrigível” pelo policial que o pren<strong>de</strong>u. Diante do<br />

<strong>de</strong>legado, disse que morava na rua Barão <strong>de</strong> São Félix, não muito longe do en<strong>de</strong>reço anterior e que era<br />

carroceiro 67 . As testemunhas do processo eram negociantes moradores da rua Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Sapucaí,<br />

vizinha ao local on<strong>de</strong> Olympio foi preso: o português Manoel Gomes e o brasileiro Francisco Oliveira.<br />

Ambos afirmaram que Olympio não tinha residência fixa nem profissão, mas foram contestados pelo<br />

réu, que disse que eram falsos os testemunhos 68 .<br />

Em gran<strong>de</strong> parte dos processos, as testemunhas eram registradas como negociantes ou<br />

empregados do comércio, e quase sempre moradores <strong>de</strong> ruas próximas ao local da prisão, o que reforça<br />

a idéia <strong>de</strong> que, não só por parte dos policiais, mas também das testemunhas, muitas acusações eram<br />

baseadas em questões pessoais. Talvez Olympio, bem como Montezuma e muitos outros, tivessem<br />

alguma “questão” com os tais negociantes. Quem sabe não tinham pago a conta na padaria ou no<br />

botequim, <strong>de</strong>spertando a raiva do comerciante. Ou talvez aqueles negociantes simplesmente<br />

concordassem que homens como Olympio, Montezuma, Antônio Mina e outros eram mesmo<br />

vagabundos e mereciam ser punidos por isso. Mas há, ainda, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que as testemunhas<br />

fossem, na verda<strong>de</strong>, policiais buscando agilizar os processos às custas <strong>de</strong> falcatruas. Nunca saberemos<br />

as verda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada processo, mas essas são hipóteses possíveis <strong>de</strong>ntro da realida<strong>de</strong> da cida<strong>de</strong> naquele<br />

início <strong>de</strong> século XX.<br />

66 AN – 8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 5816. 1902.<br />

67 No século XIX, os carroceiros eram os principais responsáveis pelo transporte das mercadorias que chegavam ou saíam<br />

do <strong>porto</strong>. No início do XX, com a constante utilização <strong>de</strong> sistemas mais mo<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> transporte, essa categoria diminui <strong>de</strong><br />

importância no sistemas portuário, mas não some completamente. De qualquer forma, o “carroceiro” po<strong>de</strong> também<br />

trabalhar em serviços que não seja necessariamente ligado ao <strong>porto</strong>. No caso <strong>de</strong> Olympio, como ele se <strong>de</strong>clarou “estivador”<br />

em outra ocasião, o mais provável é que seu serviço <strong>de</strong> carroceiro seja ligado sim ao <strong>porto</strong>, e que ele atuasse nos dois<br />

trabalhos.<br />

68 AN – 8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 5816. 1907.<br />

53


Vadios, trabalhadores e <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iros.<br />

Vicente Rodrigues Pereira era um pardo carregador conhecido na zona portuária pelo apelido<br />

<strong>de</strong> Bexiga. A julgar pela sua ficha <strong>de</strong> antece<strong>de</strong>ntes, tal como Antônio Mina, Bexiga foi um dos “alvos<br />

certeiros” da mira policial. Entre 1901 e 1908 foi preso pelo menos 17 vezes, quase sempre por<br />

contravenção 69 . Vale a pena nos <strong>de</strong>termos um pouco mais nos processos que envolvem Bexiga, que<br />

evi<strong>de</strong>nciam uma verda<strong>de</strong>ira coleção <strong>de</strong> arbitrarieda<strong>de</strong>s policiais. Em 12 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1902 foi preso, às<br />

10 horas da noite, por vadiagem na rua General Pedra. Na <strong>de</strong>legacia, foi acusado pelo praça <strong>de</strong> polícia<br />

que o pren<strong>de</strong>u <strong>de</strong> “vagabundo e <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iro conhecido”, o que foi confirmado pelas duas testemunhas:<br />

o Inspetor Secional João Rogério Carvalho e o cocheiro Miguel Napolitano. Dada a palavra ao<br />

acusado, este se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u dizendo que eram falsas as acusações, que ele era morador da Rua Santo<br />

Cristo, n.50 e estava indo para casa quando recebeu voz <strong>de</strong> prisão sem ter feito mal algum. No seu<br />

interrogatório, Vicente alegou que era trabalhador e que o Inspetor Carvalho o odiava. Não tendo<br />

apresentado provas <strong>de</strong> sua inocência – nestes processos sumários cabia ao acusado o ônus da prova –<br />

foi con<strong>de</strong>nado pelo Juiz da 8 a Pretoria à 22 dias e meio <strong>de</strong> prisão. 70<br />

Em 1905 ele foi preso novamente na Rua Santo Cristo, às 7 horas da manhã do dia 18 <strong>de</strong> julho,<br />

por “ébrio habitual e <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iro conhecido”. Apesar <strong>de</strong>, no processo, nada indicar que estivesse “em<br />

exercício <strong>de</strong> <strong>de</strong>streza e agilida<strong>de</strong> corporal”, que caracteriza a “capoeiragem”, ele respon<strong>de</strong>u por este<br />

artigo (art.402) e também por embriagues (art. 396). As duas testemunhas arroladas no inquérito, um<br />

negociante e um empregado no comércio, confirmaram a acusação e acrescentaram que Bexiga, além<br />

<strong>de</strong> ébrio habitual, era “um dos <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iros mais perigosos <strong>de</strong> Santo Cristo e Praia Formosa”. Bexiga<br />

contestou os <strong>de</strong>poimentos e, durante o interrogatório tomado no dia seguinte na mesma <strong>de</strong>legacia,<br />

alegou que foi preso <strong>de</strong>vido “a intrigas dos feitores do <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> carvão em que trabalha”.<br />

Perguntado se tinha algo a dizer que justificasse sua inocência, respon<strong>de</strong>u que<br />

“sim, pois há dois anos mora na Pieda<strong>de</strong> e nunca foi preso lá, tendo somente tido nesta <strong>de</strong>legacia como homem<br />

turbulento, vagabundo e ébrio, porém em juízo há <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar que é falsa a acusação que lhe fazem”<br />

Apresentando pessoalmente sua <strong>de</strong>fesa, que escreve <strong>de</strong> próprio punho numa letra sofrível, ele<br />

alega que os seus “feitores” e o inspetor que o pren<strong>de</strong>u eram seus inimigos e que este último havia lhe<br />

69 Sua ficha <strong>de</strong> Antece<strong>de</strong>ntes anexada ao processo OR. 5585 consta 16 prisões. Mas foi encontrado um processo <strong>de</strong> 1908.<br />

70 AN – 8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR.2283. 1902<br />

54


pedido certa quantia <strong>de</strong> dinheiro. Tendo se recusado a dar-lhe a quantia, recebeu a voz <strong>de</strong> prisão do<br />

mesmo inspetor. Disse também que, na <strong>de</strong>legacia, lhe obrigaram a assinar um papel reconhecendo sua<br />

culpa, pois lhe disseram que só assim po<strong>de</strong>ria ser solto. 71 Mesmo diante <strong>de</strong> todas as <strong>de</strong>clarações<br />

apresentadas por Bexiga, o Juiz con<strong>de</strong>nou-o a 22 dias e meio <strong>de</strong> prisão, mas consi<strong>de</strong>rou a acusação <strong>de</strong><br />

embriagues.<br />

Que Bexiga não era exatamente aquilo que a polícia compreendia por “bom trabalhador” parece<br />

certo. Assim como é certo também que o fato <strong>de</strong> não se encaixar nos padrões estabelecidos <strong>de</strong> cima<br />

para baixo, foi o suficiente para a mesma polícia tentar transformar a vida <strong>de</strong>le num verda<strong>de</strong>iro inferno.<br />

Argumentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa como os <strong>de</strong> Bexiga, revelam que ele sabia que, mesmo que não funcionasse,<br />

aquela era uma estratégia possível, dado o volume <strong>de</strong> arbitrarieda<strong>de</strong>s cometidas todos os dias pela<br />

polícia. Também po<strong>de</strong>m revelar, por outro lado, que eles realmente se viam como vítimas da ação<br />

policial.<br />

Exatamente um mês após a última prisão, em 18 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1905, o Bexiga volta a ser preso<br />

na Rua da Praia Formosa, “por se achar armado <strong>de</strong> uma faca e promovendo <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m naquela rua,<br />

assustando os transeuntes e moradores com gestos e ameaças”, tendo caído novamente no artigo 402<br />

(capoeiragem). As duas testemunhas, ambos negociantes estabelecidos na zona portuária, confirmaram<br />

a acusação. No entanto, no interrogatório do dia seguinte, Bexiga <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-se alegando que “a faca que<br />

tinha na mão era para cortar fios dos sacos <strong>de</strong> carvão” e novamente afirma ser constantemente<br />

perseguido pelos policiais da 9 a Circunscrição Urbana, não sabendo o motivo <strong>de</strong> tal perseguição. Uma<br />

semana <strong>de</strong>pois, escreve com muitos erros a sua <strong>de</strong>fesa ao Juiz da 8 a Pretoria, na qual <strong>de</strong>sabafa:<br />

“(...) fui posto em liberda<strong>de</strong> no dia 13 <strong>de</strong> agosto do corrente ano e fui preso no dia 17 do mesmo mês, do qual que<br />

V. S. me <strong>de</strong>u 15 dias para eu procurar trabalho, mas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 3 dias que eu me achava em liberda<strong>de</strong>, fui preso<br />

pela 9 a Delegacia e removido para a Casa <strong>de</strong> Detenção.<br />

Exmo. Sr. tem a participar-vos [sic], que eu sou trabalhador e homem honesto, pois há 5 anos que trabalho no<br />

carvão da Cia do Gás da Rua Santo Cristo n.68 (...)” 72<br />

Todas as súplicas e alegações da <strong>de</strong>fesa não comoveram nem convenceram o Juiz, que o<br />

con<strong>de</strong>nou a passar mais quatro meses na prisão. Nunca saberemos o grau <strong>de</strong> veracida<strong>de</strong> das histórias<br />

<strong>de</strong> Bexiga, mas isso não é o mais importante. O que importa é notar como usava das armas possíveis<br />

71 AN – 8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR.4152. 1905<br />

72 AN – 8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro – OR.4024. 1905.<br />

55


para se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r. Ao dizer que era “trabalhador e homem honesto”, ele podia estar se apropriando do<br />

discurso oficial ao seu favor. Essa apropriação era recorrente entre os réus mesmo que, na verda<strong>de</strong>,<br />

estes não compartilhassem daqueles valores. Por outro lado, podia bem ser verda<strong>de</strong>, ainda, que Bexiga<br />

fosse capoeira, valentão e bebedor contumaz: nenhuma <strong>de</strong>stas características era incompatível com o<br />

perfil <strong>de</strong>stes trabalhadores.<br />

Bexiga foi bastante insistente em sua <strong>de</strong>fesa. Não tendo ficado satisfeito com o resultado do<br />

julgamento, apelou da sentença e, em 11 <strong>de</strong> setembro, novamente apresentou seus argumentos. Desta<br />

vez, quem escreve é um representante <strong>de</strong> nome Agenor Duque Estrada. O texto, é mais articulado e,<br />

embora um pouco longo vale a pena transcrevê-lo:<br />

“(...) Como resi<strong>de</strong>nte na Estação Pieda<strong>de</strong>, nada tem que <strong>de</strong>sabone sua conduta, e bem assim diariamente é<br />

forçado a vir para a cida<strong>de</strong> a fim <strong>de</strong> trabalhar na Cia. do Gás. No dia 18 <strong>de</strong> agosto, cerca <strong>de</strong> 9 horas da manhã,<br />

não tendo trabalho na <strong>de</strong>scarga <strong>de</strong> carvão, na citada Cia. referida acima, o paciente resolveu ir visitar uma família<br />

amiga resi<strong>de</strong>nte na rua Santo Cristo. Ao passar na esquina da Rua Sara, foi inopinadamente agredido pelo<br />

inspetor Martins, o qual convidou-me [sic] a ir a se<strong>de</strong> da 9 a Delegacia, aí chegando foi apresentado ao Sr.<br />

Delegado como <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iro e capoeira. O paciente alega que, tendo sido anteriormente morador, na 9 a<br />

Circunscrição é <strong>de</strong>safeto dos senhores inspetores Martins, Bayrão e Cydrônio por motivos particulares, <strong>de</strong><br />

família, em vista <strong>de</strong>stes predicados o paciente <strong>de</strong>liberou-se ir residir com a sua família no subúrbio, na Pieda<strong>de</strong>.<br />

O paciente alega ainda ser trabalhador, e bem assim a sua complexão [sic] muscular não permitem [sic] que faça<br />

exercícios <strong>de</strong> capoeiragem para exibir-se em público, só apenas [sic] atribui um espírito <strong>de</strong> vingança dos dignos<br />

auxiliares do Dr. Virgulino <strong>de</strong> Alencar que procuram atirar infelizes nas jaulas dos xadrezes da citada <strong>de</strong>legacia,<br />

afim <strong>de</strong> serem tidos como verda<strong>de</strong>iros cumpridores da lei, sacrificando por meio da vingança os infelizes que<br />

têm família para manter (...)” 73<br />

Talvez Bexiga achasse que teria mais sorte se um advogado falasse por ele. Um advogado que<br />

falava <strong>de</strong> “complexão” muscular e escrevia “só apenas” não <strong>de</strong>via pertencer à nata da profissão –<br />

provavelmente o tipo <strong>de</strong> profissional a que gente como ele podia ter acesso – mas ainda assim capaz<br />

<strong>de</strong> impor certo respeito. Mas não foi o que aconteceu: ele ficou preso até <strong>de</strong>zembro, amargando a vida<br />

dura da ca<strong>de</strong>ia por quase meio ano.<br />

Dois outros elementos interessantes estão presentes nas tentativas inúteis <strong>de</strong> Bexiga se livrar<br />

da prisão. Primeiro, ele havia sido preso porque, ao chegar no Cia do Gás não havia trabalho na<br />

<strong>de</strong>scarga <strong>de</strong> carvão e por isso, como provavelmente muitos outros trabalhadores que não tiveram sorte<br />

73 Apelação <strong>de</strong> Vicente Rodrigues Pereira ao Juiz da 3 a Vara Criminal.<br />

56


na “pare<strong>de</strong>” naquele dia, resolveu fazer outras coisas da vida – motivo pelo qual, segundo alegava,<br />

teria ido visitar uns conhecidos moradores da Rua Santo Cristo. Outro aspecto que vale mencionar é a<br />

alegação <strong>de</strong> que na Pieda<strong>de</strong>, bairro em que diz morar, ele nunca tinha sido preso e que só na 9 a<br />

Delegacia ele tinha problemas. Nesse ano, a 9 a <strong>de</strong>legacia era responsável pelo policiamento <strong>de</strong> parte<br />

da região <strong>de</strong> Santana, on<strong>de</strong> a perseguição aos contraventores parece ter sido mais acirrada do que em<br />

outras freguesias.<br />

Assim, não seria estranho que Bexiga estivesse realmente dizendo a verda<strong>de</strong> e que ele<br />

tornava-se mais suspeito ainda quando estava por aquelas ruas on<strong>de</strong> os meganhas não <strong>de</strong>ram trégua a<br />

moradores e freqüentadores.<br />

Muitos “vadios” que “infestavam” o Rio <strong>de</strong> Janeiro e enchiam as ca<strong>de</strong>ias eram, na realida<strong>de</strong>,<br />

trabalhadores <strong>de</strong>sempregados ou subempregados em uma cida<strong>de</strong> que se mostrava incapaz <strong>de</strong> absorver<br />

toda a mão-<strong>de</strong>-obra disponível. Alguns jornais menos comprometidos com o governo <strong>de</strong>nunciavam a<br />

diferença:<br />

“Trata-se <strong>de</strong> um dos mais sérios problemas do nosso proletariado. Vão <strong>de</strong> manhã cedo aos logradouros públicos,<br />

corram o Passeio, a Praça 15 <strong>de</strong> Novembro, os diversos cais, o mercado velho e novo, a praia <strong>de</strong> Santa Luzia, e<br />

<strong>de</strong>pois digam que dolorosa impressão trouxeram <strong>de</strong> lá. Nós vimos e contamos 180 operários que dormiam ao<br />

relento. Conversamos com muitos <strong>de</strong>les. Todos contam a mesma história: a fábrica, o trabalho, esperança <strong>de</strong><br />

arranjar serviço para o futuro. Não se trata, absolutamente, <strong>de</strong> vagabundagem, trata-se <strong>de</strong> operários! “ 74<br />

O jornalista reconhece a confusão que costumeiramente se fazia na época, entre operários<br />

<strong>de</strong>sempregados e vagabundos. Evaristo <strong>de</strong> Moraes, em seu Ensaios <strong>de</strong> Patologia Social, manifestou<br />

suas opiniões sobre a vadiagem e o <strong>de</strong>semprego na cida<strong>de</strong> 75 , classificando os operários<br />

<strong>de</strong>sempregados como “vadios aci<strong>de</strong>ntais”, sendo<br />

“Indivíduos válidos que não trabalham por motivos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da sua vonta<strong>de</strong>, impossibilitados <strong>de</strong> trabalhar,<br />

vagabundos por força <strong>de</strong> circunstâncias aci<strong>de</strong>ntais" 76<br />

74<br />

A Noite. 02/05/1914.<br />

75<br />

Sobre as idéias <strong>de</strong> Evaristo <strong>de</strong> Moraes sobre a vadiagem, ver: Karvat, Erivam Cassiano. A Socieda<strong>de</strong> do Trabalho:<br />

discursos e práticas <strong>de</strong> controle sobre a mendicida<strong>de</strong> e a vadiagem em Curitiba. (1890-1933). Curitiba: Aos Quatro<br />

Ventos, 1998 e Menezes, Lená Me<strong>de</strong>iros <strong>de</strong>. Os In<strong>de</strong>sejáveis. Desclassificados da Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>: protesto, crime e expulsão<br />

na Capital Fe<strong>de</strong>ral (1890-1930). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed. Uerj, 1996.<br />

76<br />

Moraes, Evaristo <strong>de</strong>. Ensaios <strong>de</strong> Patologia Social: vagabundagem, alcoolismo, prostituição, lenocínio. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Leite Ribeiro & Maurillo, 1921, p. 17.<br />

57


Segundo o jurista, a vagabundagem involuntária, causada pela falta <strong>de</strong> ocupação ou<br />

<strong>de</strong>semprego, atingia “os serviços inferiores, com ocupação incerta, vacilante e mal remunerada”. 77 E<br />

criticou duramente os métodos arbitrários e a violência da repressão policial aos contraventores, bem<br />

como o sistema presidiário, on<strong>de</strong> conviviam “simples vadios aci<strong>de</strong>ntais” e criminosos reinci<strong>de</strong>ntes.<br />

No já mencionado artigo “Justiça aos Pobres”, Evaristo <strong>de</strong> Moraes também con<strong>de</strong>na os métodos<br />

policiais na “caça” aos mendigos e vadios, que não levavam em conta o contexto econômico-social da<br />

cida<strong>de</strong> naqueles tempos:<br />

“(...) realmente, é ridícula a perseguição aos mendigos numa cida<strong>de</strong> que só dispões <strong>de</strong> cem lugares no único asilo<br />

a eles <strong>de</strong>stinados.<br />

Quanto à perseguição a vagabundagem, torna-se, em certos casos, verda<strong>de</strong>iramente iníqua, diante da pavorosa<br />

crise econômica que nos vitima, quando o Estado <strong>de</strong>spe<strong>de</strong> seus operários às centenas, e se anuncia que, em<br />

gran<strong>de</strong>s obras públicas, serão aproveitados trabalhadores vindos da Europa especialmente para este fim...” 78<br />

O advogado qualifica como iníqua,a perseguição, mas só em certos casos, pois não negou a<br />

existência <strong>de</strong> vagabundos ditos profissionais e, aproximando-se do discurso policial, consi<strong>de</strong>rou que o<br />

grupo representava um “perigo social”. No entanto, ao contrário da polícia, ele não achava que esses<br />

eram a maioria dos vadios da cida<strong>de</strong>. Além do mais, a “causa” da vagabundagem, para ele, não<br />

estaria no “caráter preguiçoso” do trabalhador nacional e sim nos problemas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m econômicosocial<br />

que atingiam a maior parte da população. Assim, <strong>de</strong>sloca a solução do “problema” da<br />

mendicância e da vadiagem para outra direção, afirmando que não bastava a ação conjugada da<br />

assistência e da repressão. Era necessário, antes, prevenir, através <strong>de</strong> medidas concretas, tais como as<br />

propostas por ele: “a proteção da infância, os seguros operários, as mutualida<strong>de</strong>s, as uniões operárias,<br />

as leis contra o alcoolismo” 79<br />

Indo ainda mais fundo nas críticas à polícia, Evaristo apontava a própria repressão como um<br />

dos principais fatores da vagabundagem, especialmente no caso dos “involuntários”, por invali<strong>de</strong>z ou<br />

<strong>de</strong>semprego:<br />

77 Moraes, Evaristo <strong>de</strong>. Op. Cit. p. 17.<br />

78 Correio da Manhã. 29/02/1904. p. 3<br />

79 Moraes, Evaristo <strong>de</strong>. Op. Cit., p. 43.<br />

58


“Desclassificando o indivíduo con<strong>de</strong>nado, ou antes classificando-o como criminoso, contribui a prisão,<br />

igualmente, para <strong>de</strong>senvolver a vagabundagem, tornando difícil, senão impossível, a obtenção do trabalho.<br />

Ao sair, fica sob as vistas da Polícia. Embora a lei assegure a tal egresso da prisão o prazo irrisório <strong>de</strong> 15 dias<br />

para, sem o menor auxílio, encontrar emprego(...)<br />

Pren<strong>de</strong>m <strong>de</strong> novo, o já <strong>de</strong>sclassificado social que fica sendo (...) prisioneiro da polícia (...) um forçado<br />

vagabundo...” 80<br />

Por mais que se <strong>de</strong>batesse a questão dos “tipos” <strong>de</strong> contraventores, na prática a polícia tinha<br />

seus próprios métodos para i<strong>de</strong>ntificá-los e nem sempre esses métodos obe<strong>de</strong>ciam à diferenciação<br />

legal entre os vadios “profissionais”, que <strong>de</strong>veriam ser reprimidos, e aqueles que necessitavam <strong>de</strong><br />

assistência. Se repressão e assistência eram os dois “remédios” possíveis segundo a própria instituição<br />

repressiva, naquele contexto <strong>de</strong> início do século XX, a repressão superou em muito as políticas<br />

assistenciais, valendo-se na justificativa das autorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> que os vadios “profissionais”, ou seja<br />

“homens válidos que não procuram trabalho e preferem viver nesta constante alternativa <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ia e<br />

liberda<strong>de</strong>” 81 , tinham na cida<strong>de</strong> um verda<strong>de</strong>iro paraíso.<br />

Mas a pergunta persiste: como distinguir quem era “profissional” e quem não era se os limites<br />

entre o mundo do trabalho e do ócio ainda não estavam muito claros? Segundo Marcos Bretas, a<br />

República viveu uma constante in<strong>de</strong>finição entre ação policial e arbitrarieda<strong>de</strong>, “criando uma zona<br />

cinzenta mal regulada, on<strong>de</strong> se movem policiais e marginais em confrontos que se <strong>de</strong>finem em si, <strong>de</strong><br />

forma extra-legal” 82 . Ou seja, era no cotidiano, no embate diário entre suspeitos e autorida<strong>de</strong>s, que se<br />

“<strong>de</strong>cidia” quem era vadio. Esse “po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão” da polícia, freqüentemente exercido <strong>de</strong> forma<br />

pouco criteriosa, incidiu sobre a vida <strong>de</strong> inúmeros habitantes da cida<strong>de</strong>, sobretudo os trabalhadores.<br />

O início do século XX foi caracterizado pelo recru<strong>de</strong>scimento do esforço <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação e<br />

quantificação dos indivíduos enquadrados nas práticas tidas como contravencionais, em um processo<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> “o que” e “a quem” controlar. Era necessário classificar os habitantes da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

forma a estabelecer as diferenças entre o trabalhador e o contraventor e ainda i<strong>de</strong>ntificar os motivos<br />

que levaram o contraventor a transgredir as normas legais, para então lhe aplicar o tratamento<br />

a<strong>de</strong>quado. Já em 1898, a Diretoria Geral <strong>de</strong> Interior e Estatística da Prefeitura do Distrito Fe<strong>de</strong>ral<br />

elaborou o “Esboço <strong>de</strong> Classificação das Profissões”, confirmando a idéia <strong>de</strong> que as pessoas <strong>de</strong>veriam<br />

ser enquadradas <strong>de</strong> acordo com a sua inserção no mercado <strong>de</strong> trabalho.<br />

80 Moraes, Evaristo <strong>de</strong>. Op. Cit. p. 22-23.<br />

81 Relatório do Chefe <strong>de</strong> Polícia do Distrito Fe<strong>de</strong>ral. 1906, p.189<br />

82 Bretas, Marcos Luiz. Op. Cit. p. 36<br />

59


O que chama atenção nesse esforço classificatório é a disposição das profissões. Em um item<br />

chamado “Quadro Complementar” estão agrupadas diversas situações que não se enquadravam em<br />

especificações anteriores:<br />

• serviço doméstico;<br />

• classes provisoriamente improdutivas (estudantes, <strong>de</strong>sempregados e<br />

enfermos);<br />

• classes permanentemente improdutivas (indivíduos sem profissão,<br />

<strong>de</strong>feituosos e mendigos);<br />

• outras profissões e profissões não <strong>de</strong>claradas.<br />

Diante da diversida<strong>de</strong> e do imenso contingente populacional abrangido pelo quadro<br />

complementar do tal esboço, percebe-se mais claramente que os limites entre o mundo do trabalho e<br />

do não-trabalho não eram tão nítidas, indicando a complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta tarefa classificatória em uma<br />

cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> os limites entre as profissões consi<strong>de</strong>radas “produtivas” e “improdutivas” eram tênues e<br />

on<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte da população transitava constantemente <strong>de</strong> um lado a outro <strong>de</strong>sta fronteira. 83<br />

Poucos anos <strong>de</strong>pois, o recenseamento <strong>de</strong> 1906 seguiu a mesma linha do “esboço” no que tange<br />

à classificação das profissões. No item “Diversas” foram agrupadas as seguintes profissões 84 :<br />

• serviço doméstico;<br />

• jornaleiros, trabalhadores braçais, etc.;<br />

• profissões mal especificadas<br />

• classes improdutivas;<br />

• profissões <strong>de</strong>sconhecidas;<br />

• sem profissão <strong>de</strong>clarada.<br />

Nota-se que “serviços domésticos” e “jornaleiros, trabalhadores braçais”, on<strong>de</strong> está incluída<br />

boa parte da mão-<strong>de</strong>-obra portuária, inclui também as “classes improdutivas” e “sem profissão<br />

<strong>de</strong>clarada”. Esses dados novamente evi<strong>de</strong>nciam que os limites entre o trabalho e o não-trabalho não<br />

eram nítidos e que trabalho irregular po<strong>de</strong>ria ser confundido com ócio no olhar dos classificadores, no<br />

caso, o po<strong>de</strong>r público. Não precisamos ir muito além para <strong>de</strong>duzir que os trabalhadores avulsos, cujo<br />

83 Matos, Marcelo Badaró <strong>de</strong>. Op. Cit. p. 64.<br />

84 Prefeitura do Distrito Fe<strong>de</strong>ral. Recenseamento do Rio <strong>de</strong> Janeiro (Distrito Fe<strong>de</strong>ral) realizado em 20/11/1906. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, Oficina <strong>de</strong> Estatística, 1906, p.4. Apud. Matos, Marcelo Badaró <strong>de</strong>. Op. Cit. p. 65.<br />

60


cotidiano <strong>de</strong> trabalho não tinha uma rigi<strong>de</strong>z disciplinar – em que horas <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong>scanso e lazer<br />

se misturavam – po<strong>de</strong>riam ser facilmente confundidos com “ociosos”.<br />

Marcelo Pinto <strong>de</strong> Souza, preto <strong>de</strong> 25 anos, era um portuário trabalhador do carvão e foi preso<br />

em 30 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1904, às 11 horas da noite, dormindo ao relento na Ilha das Moças (entre a Gamboa<br />

e a Praia Formosa). Na ocasião estava acompanhado <strong>de</strong> mais dois indivíduos: Antônio Silveira Rosa e<br />

Manoel Antônio Drumond, ambos alegando profissões “suspeitas”, sendo o primeiro “ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong><br />

cama” e o segundo “empalhador”. Os três foram acusados <strong>de</strong> “vagabundos e gatunos conhecidos” e <strong>de</strong><br />

não terem “emprego ou profissão nem domicílio certo”. Para se livrar da con<strong>de</strong>nação, o acusado tinha<br />

que provar ser trabalhador e ter domicílio certo. Mas no caso dos trabalhos ocasionais, como vimos,<br />

nem sempre o sujeito tinha residência fixa e nem sempre era fácil provar que trabalhavam.<br />

Marcelo escapou da con<strong>de</strong>nação apresentando ao Juiz uma <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> Jacinto Carvalho<br />

dizendo ser seu companheiro <strong>de</strong> casa no Morro da Favela e uma outra do administrador da Cia do Gaz,<br />

afirmando que Marcelo trabalhava no trapiche da Cia. Mas seus companheiros <strong>de</strong> prisão não tiveram a<br />

mesma sorte e foram con<strong>de</strong>nados a 22 dias e meio <strong>de</strong> prisão. Um <strong>de</strong>les, o “ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> cama” Antônio<br />

Silveira Rosa, se mostrou inconformado. Não tentou provar que era trabalhador (talvez não tivesse<br />

como), mas em Juízo apresentou sua <strong>de</strong>fesa on<strong>de</strong> dizia estar<br />

“aborrecido <strong>de</strong> não haver cometido <strong>de</strong>lito algum para ser preso; que o fato <strong>de</strong> haver sido encontrado dormindo às 23<br />

horas na Ilha das Moças não representava uma intenção criminosa e ali estava por não ter dinheiro que pagasse um<br />

cômodo ou hospedaria como costuma fazer” 85<br />

Assim como muitos outros, Antônio Silveira Rosa estava excluído dos projetos <strong>de</strong> civilização e<br />

<strong>de</strong> construção da socieda<strong>de</strong> do trabalho acalentados pelas elites. Ao contrário da polícia, na sua visão<br />

ele não estava cometendo crime algum ao dormir na rua. Fazia isto por estar sem dinheiro para se<br />

ajeitar em algum canto, como faziam muitos trabalhadores ocasionais, dos quais po<strong>de</strong>mos lembrar o<br />

português José Engenheiro, que foi preso no Cais dos Mineiros por “não ter como pagar uma<br />

hospedaria”.<br />

Não temos como saber ao certo os reais motivos pelos quais aqueles indivíduos não tinham<br />

emprego fixo e estavam “sem dinheiro para pagar uma hospedaria ou casa <strong>de</strong> cômodo”. Como vimos,<br />

o problema do <strong>de</strong>semprego na cida<strong>de</strong> era bastante grave e, por outro lado, muitos trabalhadores, às<br />

61


vezes com profissão <strong>de</strong>finida, eram obrigados “por motivos <strong>de</strong> força maior” a utilizar expedientes, <strong>de</strong><br />

maneira criativa, para garantir a sobrevivência, fazendo pequenos bicos, se lançando no mercado<br />

informal, em trabalhos ocasionais, o que também os <strong>de</strong>ixava vulneráveis à sanha policial. Mas, por<br />

outro lado, muitos eram os que simplesmente escolhiam viver <strong>de</strong>ssa maneira, preferindo trabalhar “por<br />

conta própria”: os bairros da zona portuária e arredores estavam cheios <strong>de</strong>ssa gente que não se<br />

a<strong>de</strong>quava aos padrões comuns. Gente que preferia viver sem horários pré-estabelecidos, sem patrão<br />

fixo a quem tivesse que prestar contas. Gente “improdutiva” que preferia viver “<strong>de</strong> samba” (como<br />

veremos no terceiro capítulo) e se prestava a trabalhar apenas quando a “corda apertasse no pescoço”.<br />

E também gente que preferia viver das contravenções, do jogo, da prostituição e <strong>de</strong> pequenos <strong>de</strong>litos,<br />

aproveitando toda chance que a vida na cida<strong>de</strong> oferecia.<br />

A cida<strong>de</strong> era uma babel <strong>de</strong> “profissões exóticas”, em uma expressão utilizada por João do Rio.<br />

Eram pessoas ignoradas pelas estatísticas, tais como trapeiros, que catavam trapos para as fábricas <strong>de</strong><br />

papéis e móveis; catadores <strong>de</strong> anéis <strong>de</strong> charuto, que os vendiam para falsificadores do cigarro;<br />

caçadores <strong>de</strong> ratos para a higiene pública e <strong>de</strong> gatos que eram vendidos como coelhos nos restaurantes,<br />

etc. Em um tom <strong>de</strong> crítica, o jornalista assim se referiu a essas profissões e à própria socieda<strong>de</strong> que as<br />

ignorava:<br />

“O Rio po<strong>de</strong> conhecer muito bem a vida do burguês <strong>de</strong> Londres, as peças <strong>de</strong> Paris, a geografia da Manchúria e o<br />

patriotismo japonês. A apostar, porém, que não conhece nem a sua própria planta, nem a vida <strong>de</strong> toda essa<br />

socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> todos esses meios estranhos e exóticos, <strong>de</strong> todas profissões que constituem o progresso a dor, a<br />

miséria da vasta babel que se transforma” 86<br />

A liberda<strong>de</strong> das ruas, em face <strong>de</strong> uma vida regrada e acorrentada aos horários regulares <strong>de</strong><br />

trabalho, era uma alternativa que muitos moradores da zona portuária escolheram por conta própria.<br />

Mas também era para muitos a única alternativa possível, dadas as condições <strong>de</strong> trabalho na Capital da<br />

República naqueles tempos. Condições ainda piores para pretos e pardos, que foram marginalizados do<br />

mercado <strong>de</strong> trabalho no pós-abolição, sobrando-lhes as profissões menos especializadas e <strong>de</strong> pior<br />

remuneração 87 , em gran<strong>de</strong> parte das vezes sem vínculo empregatício, muitas daquelas ligadas ao<br />

sistema portuário.<br />

85 AN – 8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR.3445. 1904<br />

86 Rio, João do. “Pequenas Profissões”. In: A Alma Encantadora das Ruas. Op. Cit. p. 97<br />

87 Para dados mais <strong>de</strong>talhados sobre a estrutura ocupacional na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro no pós-abolição, ver Hasenbalg,<br />

Carlos A. Discriminação e Desigualda<strong>de</strong> Raciais no Brasil, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Graal, 1979.<br />

62


Desafiando as novas rotinas <strong>de</strong> repartição do tempo e seu aproveitamento “útil”, os<br />

trabalhadores avulsos – entre os trabalhos na <strong>de</strong>scarga dos navios ou nos trapiches, ou durante a<br />

espera por uma vaga nas turmas – passavam parte <strong>de</strong> seu tempo perambulando pelas ruas da má vista<br />

zona portuária, <strong>de</strong>sfrutando aquele mundo da maneira que achassem melhor nos intervalos entre suas<br />

tarefas. A característica ocasional do trabalho portuário permitia àqueles homens movimentarem-se<br />

freqüentemente entre o <strong>porto</strong>, moradia e espaços públicos, alimentando aquilo que um autor<br />

<strong>de</strong>screveu como “seu característico sentimento <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e in<strong>de</strong>pendência”. 88 Podiam <strong>de</strong>scansar<br />

(como faziam alguns dos presos no Cais dos Mineiros), beber parati em algum dos muitos bares e<br />

quiosques da região, jogar vermelhinha como era <strong>de</strong> costume naquela época, conversar com os<br />

companheiros sobre as dificulda<strong>de</strong>s da vida ou discutir os rumos do sindicato. Esses momentos se<br />

confundiam com a hora “sagrada” do trabalho, o que os <strong>de</strong>ixavam bastante vulneráveis à ação<br />

repressiva baseada na suspeição generalizada e serviam para cristalizar, aos olhos das elites, a<br />

imagem da região portuária como um sítio perigoso e mal freqüentado.<br />

As freguesias próximas ao <strong>porto</strong> pareciam ser um verda<strong>de</strong>iro reduto <strong>de</strong> “gente suspeita”.<br />

Contabilizando as entradas na Detenção nos anos 1901 e 1902 89 , conclui-se que a maioria esmagadora<br />

dos presos que informaram en<strong>de</strong>reço, eram moradores das ruas que cercavam o cais, conforme<br />

indicado na tabela abaixo<br />

88 Silva, Fernando Teixeira da. Op. Cit. p.138.<br />

89 Escolhemos esses anos por serem os que os Livros da Casa <strong>de</strong> Detenção estavam mais completos, já que os mesmos<br />

apresentam algumas falhas (por já estarem bastante <strong>de</strong>teriorados) .<br />

63


TABELA H<br />

PORTUÁRIOS PRESOS NA CASA DE DETENÇÃO (1901-1902)<br />

FREGUESIA NÚMEROS %<br />

Can<strong>de</strong>lária, São José, Espírito Santo e Santo Antônio 100 24,4<br />

Santana, Santa Rita e Sacramento 255 62,2<br />

Glória, Lagoa e Gávea 16 4<br />

Engenho Velho, Engenho Novo e São Cristóvão 18 4,4<br />

Fregs. Rurais: Inhaúma, Irajá, Jacarepaguá, Guaratiba<br />

Campo Gran<strong>de</strong>, Santa Cruz.<br />

64<br />

21 5<br />

TOTAL 410 100<br />

Fonte : Livro <strong>de</strong> Registro <strong>de</strong> Entrada <strong>de</strong> Presos na Casa <strong>de</strong> Detenção do Rio <strong>de</strong> Janeiro - APERJ<br />

Vale lembrar que, como vimos no início do capitulo, a região, além <strong>de</strong> misturar trabalhadores<br />

regulares com outros <strong>de</strong> profissões “duvidosas”, sem horários nem patrões fixos, também concentrava<br />

uma gran<strong>de</strong> massa <strong>de</strong> homens “<strong>de</strong> cor”, suspeitos prediletos <strong>de</strong> todo aparato repressivo. Em 1890, o<br />

lugar concentrava o maior contingente <strong>de</strong> africanos da cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro (27% do total) e nesse<br />

mesmo ano, o percentual <strong>de</strong> <strong>negro</strong>s (brasileiros ou africanos) na região era o maior do que a da cida<strong>de</strong><br />

como um todo (34% dos homens em Santa Rita, enquanto o total da cida<strong>de</strong> era <strong>de</strong> 28,9%).<br />

Em gran<strong>de</strong> parte, esta foi uma das razões do pânico <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ado pela revolta da Vacina, que<br />

teve na Saú<strong>de</strong> o principal reduto rebel<strong>de</strong>. O Chefe <strong>de</strong> Polícia da época afirmou que “era preciso limpar<br />

a cida<strong>de</strong>”. Na concepção do Dr. Cardoso <strong>de</strong> Castro, a Revolta da Vacina teria sido provocada pela ação<br />

dos “vadios profissionais”, o que legitimaria a prisão e a <strong>de</strong>portação sumária <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> pessoas<br />

para o Acre. Segundo ele, o “povo” era or<strong>de</strong>iro e não se envolvera nos distúrbios, que teriam sido


“obra <strong>de</strong> uns dois mil vagabundos recalcitrantes, presos e con<strong>de</strong>nados várias vezes, que fingiam <strong>de</strong> povo (...) do<br />

facínora, do ladrão, do <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> profissão, do ébrio habitual, da meretriz, do cáften, do jogador, do vagabundo<br />

e do vadio” 90<br />

Mas houve quem pensasse diferente. Escrevendo sobre os mesmos “acontecimentos <strong>de</strong><br />

novembro”, o escritor Lima Barreto observou com mais sensibilida<strong>de</strong>:<br />

“Durante as mazorcas <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1904, eu vi a seguinte e curiosa cousa: um grupo <strong>de</strong> agentes fazia parar os<br />

cidadãos e os revistava.<br />

O governo diz, com armas na mão, que os oposicionistas à vacina são vagabundos, gatunos e assassinos,<br />

entretanto ele se esquece <strong>de</strong> que o fundo dos seus batalhões, dos seus secretas e inspetores, que mantêm a opinião<br />

<strong>de</strong>le, é da mesma gente ”. 91<br />

O jornal O Paiz, a respeito da revolta, fez comentários sobre a exploração da população<br />

ignorante e referiu-se ao “povo”, “populares”, “operários” e “gente pobre e explorada”, retirando <strong>de</strong>ssa<br />

lista “o pessoal da Saú<strong>de</strong>”, que, segundo o jornal, “seria composto <strong>de</strong> facínoras disfarçados <strong>de</strong><br />

marítmos”. O Jornal do Comércio também faz referência ao “pessoal da Saú<strong>de</strong>”, on<strong>de</strong> haveria uma<br />

“mistura <strong>de</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iros com marítimos, formando a multidão sinistra.” 92<br />

Assim como diversas categorias <strong>de</strong> trabalhadores, muitos portuários certamente tomaram parte<br />

dos conflitos <strong>de</strong> 1904, bastando lembrar que a Saú<strong>de</strong>, bairro contíguo ao Porto e largamente<br />

freqüentado pelos portuários, foi o gran<strong>de</strong> reduto dos revoltosos. Provavelmente, muitos <strong>de</strong>stes<br />

trabalhadores estavam nos navios que seguiram para o <strong>de</strong>sterro no Acre. Maria Cecília Velasco e Cruz<br />

conta que, em assembléia <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1905 na União dos Operários Estivadores, um clima<br />

emocional tomou conta dos operários que relataram “os sofrimentos que foram vítimas durante a<br />

Revolta da Vacina”. 93 O estivador Luiz Gustavo Nascimento <strong>de</strong> Almeida conta que, na época, <strong>de</strong> todo<br />

90 Citado por Carvalho, José Murilo <strong>de</strong> Os Bestializados. Op. Cit. p. 115. Sobre a Revolta da Vacina, ver: Pereira, Leonardo<br />

Affonso <strong>de</strong> Miranda. As Barricadas da Saú<strong>de</strong>: vacina e protesto popular no Rio <strong>de</strong> Janeiro da Primeira República. São<br />

Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002; Chalhoub, Sidney. 1996. Op. Cit.; Sevcenko, Nicolau. A Revolta da Vacina:<br />

mentes insanas em corpos rebel<strong>de</strong>s. São Paulo: Brasiliense, 1983.<br />

91 Barreto, Lima. Diário Íntimo. São Paulo: Ed. Mérito, 1953.<br />

92 Carvalho, José Murilo <strong>de</strong>. Op. Cit. p. 114-115.<br />

93 Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit. p.270.<br />

65


modo tentou-se culpar a União dos Estivadores como um dos responsáveis pela organização do<br />

movimento <strong>de</strong> revolta, resultante das constantes <strong>de</strong>sconfianças policiais contra aqueles trabalhadores. 94<br />

Desconfiança: essa era palavra que impulsionava a ênfase repressiva do aparato policial aos<br />

trabalhadores do <strong>porto</strong>. Evaristo <strong>de</strong> Moraes, que era o advogado da Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência dos<br />

Trabalhadores em Trapiche e Café e <strong>de</strong> outras associações portuárias 95 , disse certa vez sobre a ação<br />

policial à ação política dos trabalhadores:<br />

“(...) inspetores havia e há que não distinguem entre um operário (ou seja um carregador, ou seja um estivador, ou<br />

seja um foguista) e um ladrão do mar ou vagabundo turbulento. Para eles, tudo era e é canalha e negrada (...)” 96<br />

Como apontou Cruz, muito pouco tempo antes <strong>de</strong> Evaristo formular essa idéia, “negrada” ou<br />

“<strong>negro</strong>” era o mesmo que escravo (ou ex-escravo) e, por extensão, uma forma <strong>de</strong> estigmatizar pessoas<br />

consi<strong>de</strong>radas perigosas, criminosas e <strong>de</strong>spreparadas para a liberda<strong>de</strong>. Finda a escravidão, a confusão<br />

das imagens continuava a existir para muitos. 97 Não é <strong>de</strong> se estranhar, então, que essa “confusão <strong>de</strong><br />

imagens” atingisse <strong>de</strong> maneira especialmente intensa os portuários, que tinham uma história<br />

estreitamente associada ao trabalho escravo e, portanto, a um passado indigno que parte da socieda<strong>de</strong><br />

queria esquecer.<br />

No entanto, muitos foram os que lutaram para contar uma outra história. No próximo capítulo,<br />

veremos que os <strong>negro</strong>s, mesmo com as lembranças da escravidão ainda frescas na memória, souberam<br />

se organizar e lutar pelos seus direitos <strong>de</strong> trabalhadores livres.<br />

94 Almeida, Luiz Gustavo Nascimento. Estivadores do Rio <strong>de</strong> Janeiro: um século <strong>de</strong> presença na história do movimento<br />

operário brasileiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Topbooks, 2004.<br />

95 Para uma excelente análise da trajetória <strong>de</strong> Evaristo <strong>de</strong> Moraes, especialmente como advogado <strong>de</strong> associações operárias<br />

como a Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, Ver : Mendonça, Joseli Maria Nunes. Evaristo <strong>de</strong><br />

Moraes: Justiça e Política nas Arenas Republicanas (1887-1939). Tese <strong>de</strong> Doutorado, Unicamp, 2004. Especialmente o<br />

Cap. II: “Um advogado no sindicato”.<br />

96 Correio da Manhã. 18/02/1907. p.2<br />

97 Cruz, Maria Cecília Velasco e. “Tradições Negras na Formação <strong>de</strong> um Sindicato”. In Afro-Ásia, 24 (2000). p.288.<br />

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Nos Bares da Vida<br />

CAPÍTULO II<br />

UNIÃO E RESISTÊNCIA: conflitos e solidarieda<strong>de</strong>s no cais<br />

Em 25 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1909, na Delegacia <strong>de</strong> Polícia do 14 o Distrito, o <strong>de</strong>legado tomou o<br />

<strong>de</strong>poimento do português Virgílio Moura, morador da Rua João Caetano n. 5, trabalhador <strong>de</strong> um<br />

armazém <strong>de</strong> secos e molhados que funcionava no n. 175 da mesma rua. Virgílio estava lá como<br />

vítima e prestou o seguinte <strong>de</strong>poimento:<br />

“que hoje cerca <strong>de</strong> 7 horas da noite, o <strong>de</strong>clarante estava servindo a freguesia (...) quando entrou ali o preto<br />

Antônio <strong>de</strong> tal, conhecido por Antônio Mina, morador à rua João Caetano n. 169, um tanto alcoolizado (...)<br />

pedindo parati; que como o dito Antônio estivesse embriagado, não quis o <strong>de</strong>clarante ven<strong>de</strong>r-lhe parati, o que foi<br />

quanto bastou para o mesmo Antônio avançar para o <strong>de</strong>clarante e dar-lhe uma forte <strong>de</strong>ntada no braço direito e<br />

socos pelo rosto.” 1<br />

Como testemunhas, confirmaram a versão do <strong>de</strong>poente, outros quatro portugueses, todos<br />

empregados do comércio e moradores na vizinhança do tal armazém 2 , que funcionava também como<br />

“casa <strong>de</strong> pasto”, servindo comida, café e parati para os trabalhadores da região. Na mesma <strong>de</strong>legacia,<br />

o acusado disse ser casado, analfabeto, “furador <strong>de</strong> sacos <strong>de</strong> café” e morador da João Caetano 169,<br />

bem próximo ao tal armazém. Desta vez afirmava ser natural <strong>de</strong> Lagos e filho <strong>de</strong> Hoyô e <strong>de</strong> Maria.<br />

Naturalmente, a versão do africano sobre o acontecido foi outra. Em seu <strong>de</strong>poimento, disse tinha ido<br />

àquele estabelecimento para “comprar gêneros” e que ao dirigir-se ao caixeiro Virgílio, este começou<br />

a discutir com ele, assim como os outros empregados da venda, “indo todos para cima do acusado,<br />

que foi agredido pelo tal Virgílio e pelos <strong>de</strong>mais empregados”.<br />

Em sua <strong>de</strong>fesa, se pronunciou José Rocha, um brasileiro natural do Rio <strong>de</strong> Janeiro, morador<br />

da Rua do Senado e também empregado do comércio. José Martins da Silva, um Guarda Civil que<br />

1 AN – 8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 7044. 1909.<br />

2 Dois <strong>de</strong>les moravam na própria João Caetano, um na General Pedra e um na Senador Eusébio, todas em Santana.<br />

67


conversou com a freguesia após o acontecido, <strong>de</strong>clarou ao <strong>de</strong>legado que ouviu <strong>de</strong> algumas pessoas<br />

que o dono da casa e seu irmão foram <strong>de</strong> fato os agressores.<br />

Esse po<strong>de</strong> ser apenas um exemplo dos muitos conflitos ocorridos na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

que tinha um fundo <strong>de</strong> rivalida<strong>de</strong> étnica. Não sabemos o que realmente aconteceu naquele dia e nunca<br />

saberemos, mas o fato é que os portugueses se uniram contra o africano, que teve ao seu lado um<br />

brasileiro, que talvez fosse preto como Antônio.<br />

Aquela também não foi a primeira nem a última vez que Antônio se metia em confusões nos<br />

estabelecimentos comerciais <strong>de</strong> Santana. No dia 05 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1912, às oito da noite, um policial que<br />

estava em sua casa na rua General Pedra ouviu gritos <strong>de</strong> “palavras obscenas” vindos da rua. Ao<br />

chegar na janela viu que um preto que morava naquela mesma rua promovia <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns, “armado <strong>de</strong><br />

uma bengala” com a qual atacava os transeuntes. Ao notar a presença do policial, o tal preto<br />

refugiou-se em uma venda da rua João Caetano, n. 18, on<strong>de</strong> foi preso e levado novamente ao 14 o<br />

Distrito Policial.<br />

Dessa vez Antônio foi parar atrás das gra<strong>de</strong>s por agredir com a tal bengala três indivíduos: o<br />

brasileiro Salvador Seda e o português Antônio Viena da Silva, ambos moradores da rua João<br />

Caetano, e o português Antônio Moura da Silva, morador <strong>de</strong> uma rua próxima, a Pinto Azevedo.<br />

Perguntado pelo <strong>de</strong>legado, Antônio Moura <strong>de</strong>u o seguinte <strong>de</strong>poimento:<br />

“(...) que cerca <strong>de</strong> oito e meia da noite estando na porta da sua casa viu um indivíduo <strong>de</strong> nome Antônio,<br />

conhecido por Antônio Mina e Antônio Africano, agredir um rapaz, dando-lhe uma bengalada; que correu em<br />

auxílio do rapaz agredido com outro e ambos, por sua vez, foram agredidos por Africano; que lhe <strong>de</strong>u <strong>de</strong>ntadas<br />

nas mãos, e pontapés, ferindo-o; que esse indivíduo é turbulento e <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iro, costumando se embriagar, e nesse<br />

estado, promove <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns, espanca as pessoas que caem no seu <strong>de</strong>sagrado, e insulta a todos com palavras<br />

obscenas; que esse indivíduo é conhecido como feiticeiro, sendo já preso muitas vezes nessa <strong>de</strong>legacia” 3<br />

Dada a palavra ao africano, este disse que era natural da Inglaterra, filho <strong>de</strong> pais ignorados,<br />

que morava na rua São Diogo (antigo nome da General Pedra), n. 373 e que era ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> sabão 4 .<br />

Ele se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u dizendo que, na verda<strong>de</strong>, era a vítima e não o agressor na ocorrência:<br />

3 Depoimento <strong>de</strong> Antônio Moura da Silva. AN – 3 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro, 6Z.0411. 1912<br />

4 Aqui, Antônio não se apresenta como trabalhador do <strong>porto</strong> e sim como “ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> sabão”. Já vimos que era comum<br />

que trabalhadores avulsos se lançassem em tarefas diversas, visando ganhar um dinheirinho extra. Antônio Mina mesmo<br />

parece ter sido um dos que tinham mais <strong>de</strong> uma profissão, sempre autônoma. Em 1907, por exemplo, quando foi preso por<br />

estar embriagado na rua Barão <strong>de</strong> São Félix, ele se <strong>de</strong>clarou apenas “trabalhador”, mas em sua <strong>de</strong>fesa ele aparece como<br />

“estivador”. No entanto, no meio dos autos, em sua ficha datiloscópica, anexada à folha <strong>de</strong> antece<strong>de</strong>ntes, consta que era<br />

68


“(...) que hoje foi preso em uma venda da rua General Pedra e juntaram-se na ocasião muitas pessoas que o<br />

espancaram ferindo-o na cabeça; (...) que naquela rua, porque o <strong>de</strong>clarante não se dê com diversas pessoas, tem<br />

muitos inimigos que o perseguem e lhe querem mal (...)”. 5<br />

Não sabemos até que ponto é real o <strong>de</strong>poimento do acusado; mas se, por um lado, na rua on<strong>de</strong><br />

o africano morava muitas pessoas não lhe queriam bem, havia também umas outras tantas que o<br />

estimavam ou ao menos nada tinha contra ele. O caso é que, para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-se da acusação <strong>de</strong><br />

agressão, Antônio Africano contou com a ajuda <strong>de</strong> dois advogados, os Drs. Alfredo <strong>de</strong> Oliveira<br />

Flores e Manoel Rodrigues da Fonseca. Chamados para <strong>de</strong>por em juízo três testemunhas<br />

confirmaram a versão do africano <strong>de</strong> que ele era a vítima da agressão. O brasileiro Miguel Cardoso,<br />

morador da João Caetano n. 8, disse que os rapazes eram “provocadores habituais” e teriam se<br />

aproveitado do estado <strong>de</strong> embriagues em que se encontrava o velho africano para lhe atirarem pedras<br />

e outros objetos. Francisco Guimarães, também brasileiro, se <strong>de</strong>clarou “negociante a Rua do<br />

Ouvidor”, e disse que o africano “fora provocado pelos indivíduos que figuram como ofendidos e em<br />

seguida por estes esbordoado a cacetadas a ponto <strong>de</strong> ficar com a cabeça partida”. Quem também<br />

afirmou que o acusado era na verda<strong>de</strong> o ofendido da história foi o negociante Antônio Martins, um<br />

português morador da rua General Pedra n. 380. A <strong>de</strong>fesa constatou inúmeras irregularida<strong>de</strong>s no<br />

processo e, em outubro <strong>de</strong> 1912, o Juiz julgou a acusação improce<strong>de</strong>nte e mais uma vez Antônio foi<br />

absolvido das acusações.<br />

Diferentemente do outro processo, aqui, foram em <strong>de</strong>fesa do africano pessoas <strong>de</strong> diferentes<br />

nacionalida<strong>de</strong>s: dois brasileiros e um português, sendo o último morador da mesma rua <strong>de</strong> Antônio e,<br />

a julgar pela numeração, talvez na casa em frente à <strong>de</strong>le. Essa não foi a primeira vez que um<br />

português ia em <strong>de</strong>fesa do africano. Para refrescar a memória do leitor, lembremos que em nosso<br />

primeiro encontro com Antônio, na tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1905, dois portugueses testemunharam a<br />

“ven<strong>de</strong>dor ambulante”. 4 Assim, ele po<strong>de</strong>ria ven<strong>de</strong>r sabão, mas ainda assim trabalhar no <strong>porto</strong>. Mas ainda há uma segunda<br />

hipótese: em 1912 o nosso amigo africano já contava pelo menos 58 anos, ida<strong>de</strong> bastante avançada para um trabalho que<br />

exigia tanto esforço físico quanto o portuário. Portanto, é possível que, nesse ano, Antônio já não mais agüentasse o tranco<br />

<strong>de</strong> carregar sacas <strong>de</strong> café e tivesse buscado outro trabalho, o <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> sabão, na qual, provavelmente também atuava<br />

autonomamente. Assim, o mais provável é que ele não estivesse mais atuando no duro trabalho das docas. No entanto, isso<br />

não impe<strong>de</strong> que continuemos na sua espreita, seguindo seus passos para sabermos um pouco mais sobre como viviam os<br />

homens do cais, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> o africano tirou seu sustento durante anos.<br />

5 AN – 3 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro, 6Z.0411. 1912. Depoimento <strong>de</strong> Antônio Africano.<br />

69


seu favor na acusação <strong>de</strong> vadiagem, enaltecendo suas qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> homem trabalhador e honesto. 6<br />

Esses são indícios <strong>de</strong> que as relações construídas naquela região eram múltiplas e contraditórias. No<br />

dia a dia <strong>de</strong> Santana e Santa Rita, freguesias marcadas pela diversida<strong>de</strong> étnica, se esbarravam<br />

trabalhadores <strong>de</strong> diferente cores e nacionalida<strong>de</strong>s, que dividiam o espaço das ruas, dos cortiços e dos<br />

bares e vendas.<br />

Exemplo <strong>de</strong>ssa diversida<strong>de</strong> é o malfadado encontro que Antônio teve em um bar da Praça<br />

Onze em 03 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1914, último ano em que cruzamos com o africano. Antônio foi novamente<br />

preso por promover <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns e agredir os fregueses do no “Botequim do Vidal” com seu guardachuva.<br />

Três indivíduos que ali tomavam “café” (ou será que tomavam parati?), testemunharam na<br />

<strong>de</strong>legacia contra o preto: os russos Arthur Gurgenhel e Sinai Faingold e o norte-americano Luiz<br />

Fermon. Todos se <strong>de</strong>claram “negociantes” e eram moradores <strong>de</strong> ruas próximas ao boteco on<strong>de</strong><br />

ocorreu o conflito, respectivamente a Praça da República, Rua <strong>de</strong> Santana e Benedito Hipólito. Para<br />

respon<strong>de</strong>r ao processo por agressão, Antônio teve que <strong>de</strong>sembolsar a enorme quantia <strong>de</strong> 300 mil réis<br />

para a fiança e mais 6 mil réis do prêmio do <strong>de</strong>pósito. O Dr. Alfredo <strong>de</strong> Oliveira Flores novamente o<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u e, um ano <strong>de</strong>pois, o Juíz da 3 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro julgou improce<strong>de</strong>nte a acusação e<br />

absolveu o africano 7 .<br />

Note-se que os três casos citados tiveram como palco as vendas e botequins. Assim como<br />

Antônio Mina, outros portuários se envolveram em conflitos diversos nos estabelecimentos<br />

comerciais da região portuária e da Cida<strong>de</strong> Nova, especialmente os que vendiam aguar<strong>de</strong>nte. As<br />

vendas, botequins, quiosques e as chamadas casas <strong>de</strong> pasto – on<strong>de</strong> era servida comida barata – eram<br />

os principais locais <strong>de</strong> lazer e <strong>de</strong> encontro dos trabalhadores pobres da cida<strong>de</strong> e misturavam homens<br />

(e também mulheres) <strong>de</strong> diversas origens e profissões, como indicam os processos consultados.<br />

Os portuários, bem como outros profissionais autônomos, circulavam por eles com a<br />

freqüência que a liberda<strong>de</strong> habitual dos horários menos rígidos lhes permitiam. Esses espaços, ao<br />

mesmo tempo em que promoviam o encontro, a conversa e a sociabilização, eram palco <strong>de</strong> freqüentes<br />

episódios <strong>de</strong> brigas, <strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> força e conflitos em geral. Era ali que os homens resolviam<br />

suas “questões”, quase sempre incentivados pelo consumo <strong>de</strong> parati além da conta. Dessa forma,<br />

esses pontos <strong>de</strong> encontro também eram alvos constantes da mira policial no início do século. A<br />

6 AN – 8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 4056. Comentado na 1 a página da Introdução.<br />

7 AN – 8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. 6Z. 2312. 1915.<br />

70


excelência do botequim, on<strong>de</strong> se reúnem <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iros, vadios e prostitutas, como um lugar <strong>de</strong><br />

conflitos, justificava e legitimava a ação repressiva das autorida<strong>de</strong>s naqueles lugares. 8<br />

Em 1907, donos <strong>de</strong> botequins localizados na Praça das Marinhas penaram para conseguir uma<br />

licença, junto à polícia, para que seus estabelecimentos ficassem abertos durante a noite. O <strong>de</strong>legado<br />

escreve ao Chefe <strong>de</strong> Polícia aconselhando que a licença só seja liberada caso o requerente, Antônio<br />

Gouveia da Fonseca, dono do “hotel e botequim” na dita praça, assinasse um termo na Polícia Central<br />

responsabilizando-se pela or<strong>de</strong>m no lugar “com o fim <strong>de</strong> evitar, como já se <strong>de</strong>u, o agrupamento em<br />

seu estabelecimento, <strong>de</strong> prostitutas, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iros, bêbados habituais e toda sorte <strong>de</strong> indivíduos <strong>de</strong> má<br />

nota” 9 . A mesma recomendação ocorre para outros pedidos <strong>de</strong> licença <strong>de</strong> funcionamento <strong>de</strong> botequins<br />

durante a noite. Segundo o <strong>de</strong>legado, em todos os estabelecimentos daquela área “tem se dado<br />

conflitos que constam do livro <strong>de</strong> ocorrências diárias.” 10<br />

Assim, a polícia <strong>de</strong> vez em quando cassava a licença <strong>de</strong> funcionamento noturno <strong>de</strong> alguns<br />

<strong>de</strong>sses estabelecimentos, justificando serem locais <strong>de</strong> “reunião <strong>de</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iros, suspeitos e rameiras”,<br />

como aconteceu, por exemplo, com um botequim na rua Viscon<strong>de</strong> do Rio Branco em 1901 11 e com<br />

vários botequins das ruas São Jorge, Senhor dos Passos, Alfân<strong>de</strong>ga e Hospício (atual Buenos Aires)<br />

em 1906. 12<br />

Mas não era só o “<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iro conhecido” Antônio Mina que tinha suas <strong>de</strong>savenças enquanto<br />

tomava uma branquinha nos botecos da cida<strong>de</strong>, aparecendo constantemente nas tais “ocorrências<br />

diárias” das <strong>de</strong>legacias. A documentação policial está repleta <strong>de</strong> casos semelhantes envolvendo<br />

trabalhadores do <strong>porto</strong>: para citar outro já conhecido por nós, em novembro <strong>de</strong> 1901 Vicente<br />

Rodrigues Pereira, o Bexiga, teve “uma questão” com um indivíduo <strong>de</strong>sconhecido <strong>de</strong> cor parda em<br />

um botequim na Praia Formosa 287, aparentemente porque este não queria lhe pagar uma dose <strong>de</strong><br />

Paraty. Intervindo na discussão, um português que morava na estalagem contígua ao botequim, disse<br />

a Bexiga para “tomar juízo” e que não se metesse mais em brigas. Ao virar as costas, o português<br />

recebeu uma navalhada profunda <strong>de</strong> Bexiga, que fugiu e só foi encontrado para <strong>de</strong>por um mês <strong>de</strong>pois.<br />

Prestaram <strong>de</strong>poimento na <strong>de</strong>legacia, além do ofendido, cinco testemunhas, que confirmaram a<br />

8 Para uma análise mais apurada sobre os conflitos em botequins e quiosques (inclusive as diferenças entre os dois<br />

estabelecimentos), ver Chalhoub, Sidney. 1986. Op. Cit.<br />

9 AN – GIFI. 6C. 210. Ofício n. 23. 1907.<br />

10 Botequins ns. 291 e 292 da mesma Praça das Marinhas. AN – GIFI. 6c. 210. Ofício n. 24. 1907<br />

11 AN – GIFI. 6C – 69; ofício n. 5. 1901<br />

71


história: três portugueses – o dono do estabelecimento on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>u o conflito, o “caixeiro do<br />

botequim” e um ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> doces; e três brasileiros – dois trabalhadores braçais, provavelmente<br />

portuários como Bexiga, e um “operário”. Excetuando o ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> doces e um “trabalhador<br />

braçal”, os outros eram moradores da tal estalagem contígua ao boteco.<br />

Ao ser finalmente encontrado, o réu negou tudo, dizendo que há tempos não ia naquele<br />

botequim e que ignorava os fatos. O processo se arrastou durante anos por conta das testemunhas não<br />

comparecerem em Juízo para <strong>de</strong>por. Diante da impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> provar a culpa, o Bexiga foi<br />

absolvido. 13<br />

Alguns elementos <strong>de</strong>sse processo revelam aspectos da rotina <strong>de</strong> muitos daqueles<br />

trabalhadores. Todas as testemunhas afirmam que o botequim da Praia da Formosa era freqüentado<br />

diariamente por Bexiga, que sempre ia ali beber paraty. Ao lado do mesmo botequim ficava uma<br />

estalagem, on<strong>de</strong> moravam o agredido e a maior parte das testemunhas, marcando a diversida<strong>de</strong> dos<br />

espaços coletivos da região freqüentada pelos trabalhadores do <strong>porto</strong>. Nos inúmeros bares e cortiços<br />

da zona portuária os homens do cais se encontravam mesmo que morassem em lugares mais<br />

distantes. Nesse processo, Bexiga disse morar na Rua Barão <strong>de</strong> Ubá, que ficava em uma região mais<br />

afastada do centro e da Zona Portuária (lá para os lados da Tijuca). No entanto, segundo testemunhas,<br />

freqüentava quase todos os dias o tal boteco da Praia Formosa, nos arredores do cais. Por mais que<br />

seja necessário relativizar (ou <strong>de</strong>sconfiar) dos <strong>de</strong>poimentos – afinal, Bexiga po<strong>de</strong>ria ter dado falso<br />

en<strong>de</strong>reço para <strong>de</strong>spistar as autorida<strong>de</strong>s – já vimos que essa situação era perfeitamente factível, e que<br />

mesmos os portuários que moravam em bairros distantes costumavam perambular pelos arredores do<br />

cais do <strong>porto</strong>.<br />

Esse processo apresenta ainda uma situação recorrente no conjunto <strong>de</strong> casos analisados: o não<br />

comparecimento das testemunhas para <strong>de</strong>por em Juízo. Vejamos outros casos: em 16 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong><br />

1901, o preto Joaquim Januário Nunes foi preso por promover <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m e agredir em um quiosque<br />

da rua Camerino, Augusto Eusébio, um brasileiro que se <strong>de</strong>clara “trabalhador” e morador na Rua<br />

Barão <strong>de</strong> São Félix, 118. O ofendido, em <strong>de</strong>poimento na <strong>de</strong>legacia, afirma que o acusado, conhecido<br />

por “Pernambuco” (apesar <strong>de</strong> ter nascido no Rio Gran<strong>de</strong> do Norte) era um “<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iro conhecido” e<br />

lhe esbordoara a troco <strong>de</strong> nada, tendo se evadido em seguida. O <strong>de</strong>poimento foi confirmado pelas<br />

quatro testemunhas que estavam reunidos com o ofendido no dito quiosque, todos brasileiros e<br />

12<br />

AN – GIFI. 6C – 210; ofício n. 25. 1906. Essas ruas faziam parte da freguesia <strong>de</strong> Sacramento, fronteiriça a Santana e<br />

próxima à Praça da República.<br />

13 a<br />

AN – 8 Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 1783. 1901.<br />

72


moradores das redon<strong>de</strong>zas do <strong>porto</strong> – Praia Formosa, Largo do Depósito, Barão <strong>de</strong> São Félix e Morro<br />

da Providência: três <strong>de</strong>les se <strong>de</strong>claram apenas “trabalhador” como profissão e um <strong>de</strong>clara “marítimo”,<br />

sendo que o mais provável é que todos eles tenham profissão ligada ao <strong>porto</strong> 14 . Dez dias <strong>de</strong>pois,<br />

levado à <strong>de</strong>legacia, Joaquim Januário Nunes <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u-se alegando que não conhecia o ofendido nem<br />

as testemunhas, que não era conhecido por Pernambuco e que nem ao menos estava no tal quiosque<br />

naquele dia. O processo se arrastou por quase um ano e, apesar das intimações para <strong>de</strong>poimento em<br />

Juízo, a maior parte das testemunhas não foram encontradas nos en<strong>de</strong>reços dados na <strong>de</strong>legacia, não<br />

comparecendo para <strong>de</strong>por, incluindo o acusado. 15<br />

Em 08 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1905 “Pernambuco” se metia novamente em confusões. Ele foi preso às 12<br />

horas da noite, junto com outro estivador, o pardo Marcolino Ferreira <strong>de</strong> Souza, acusados <strong>de</strong><br />

ofen<strong>de</strong>rem fisicamente o português José Fernan<strong>de</strong>s dos Santos, dono <strong>de</strong> um botequim na Rua da<br />

Alfân<strong>de</strong>ga n. 237. Os acusados, moradores da Rua General Câmara e Rua da Saú<strong>de</strong>, respectivamente,<br />

se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m dizendo que estavam no bar em que se <strong>de</strong>u o conflito, mas que não tomaram parte <strong>de</strong>le e<br />

não sabiam quem havia ferido o dono do botequim. Além das partes, também prestaram <strong>de</strong>poimento<br />

na <strong>de</strong>legacia duas testemunhas que estavam no botequim: o italiano Paulino Rosa, sapateiro, resi<strong>de</strong>nte<br />

na Rua do Hospício n. 336 (atual Buenos Aires) e o brasileiro Felipe Pimentel, empregado do<br />

comércio, morador na Praça do Russel n.2. Ambos afirmaram terem visto os acusados serem presos,<br />

mas não a cena do crime em si. Nessa época, Joaquim Januário Nunes já figurava como um dos<br />

fundadores da União Operária dos Estivadores e, talvez por isso, contou com a ajuda <strong>de</strong> um<br />

advogado, o Dr. Gregório Garcia, para <strong>de</strong>fendê-lo e a seu companheiro. Também aqui, as<br />

testemunhas arroladas <strong>de</strong>ram falsos en<strong>de</strong>reços e não compareceram em juízo. Devido aos<br />

<strong>de</strong>poimentos inconsistentes, <strong>de</strong> policiais e pessoas que não presenciaram o crime, o Juiz julgou<br />

improce<strong>de</strong>nte a <strong>de</strong>núncia e absolveu os réus da acusação. 16<br />

A <strong>de</strong>bandada das testemunhas é freqüente nos processos que envolvem portuários e que o<br />

mais comum era que as testemunhas <strong>de</strong>clarassem falsos en<strong>de</strong>reços nas <strong>de</strong>legacias, impossibilitando a<br />

intimação. Esse procedimento indica uma estratégia daqueles homens para evitar ou burlar a ação das<br />

autorida<strong>de</strong>s e, segundo Sidney Chalhoub, era especialmente freqüente entre os estivadores, que<br />

14 Era comum os portuários <strong>de</strong>clararem apenas “trabalhador” quando perguntados a profissão, como prova o cruzamento <strong>de</strong><br />

dados entre os processos e o Livro <strong>de</strong> Matrículas da Casa <strong>de</strong> Detenção. Algumas vezes no próprio processo consta<br />

“trabalhador” no <strong>de</strong>poimento da <strong>de</strong>legacia e “estivador”, etc. na qualificação ou ficha datiloscópica.<br />

15 AN – 8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 1831. 1901.<br />

16 AN – 3 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Proc. 14424; Maço 775. 1905.<br />

73


tinham o costume <strong>de</strong> resolver seus problemas entre si, quase sempre recusando autorida<strong>de</strong>s policiais e<br />

judiciárias como mediadores. 17<br />

Foi o que aconteceu em 13 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1902, quando o inspetor secional da 2 a Circunscrição<br />

Urbana pren<strong>de</strong>u às 8 horas da noite dois estivadores que se agrediam mutuamente em um quiosque<br />

no Largo do Depósito. O preto Matheus Teixeira, morador da Rua Camerino, 46, disse que a briga<br />

acontecera porque “tendo uma questão a bordo com o outro acusado presente por causa do trabalho, o<br />

mesmo prometeu vingar-se”. O outro acusado, o pardo Benedicto José da Silva, morador da Rua do<br />

Costa, 8, também disse na <strong>de</strong>legacia que a briga ocorreu por “questões <strong>de</strong> trabalho”. 18 Já em 9 <strong>de</strong><br />

março <strong>de</strong> 1910, às 6 horas da tar<strong>de</strong>, um policial que se dirigia para o Largo da Prainha ouviu um<br />

estampido <strong>de</strong> um tiro vindo da La<strong>de</strong>ira Felipe Nery. Lá chegando, viu gran<strong>de</strong> aglomeração em frente<br />

a uma casa <strong>de</strong> pasto da dita la<strong>de</strong>ira, on<strong>de</strong> o estivador Oscar Antônio da Costa teria atirado em Eurico<br />

Inácio da Silva. Algumas testemunhas afirmaram que o conflito se <strong>de</strong>u “por motivo <strong>de</strong> trabalho.” 19<br />

Sidney Chalhoub cita outros conflitos envolvendo trabalhadores que, no início do século, resolviam<br />

suas “questões <strong>de</strong> trabalho” nos bares e botequins da cida<strong>de</strong>, como o caso <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong><br />

empregados do carvão que vai a um botequim num dos intervalos da jornada <strong>de</strong> trabalho, ocasião em<br />

que dois <strong>de</strong>les se estranham e brigam em razão da “divergência (...) do modo <strong>de</strong> pensar acerca do<br />

serviço <strong>de</strong>les”. 20<br />

Também foi em um botequim da Rua da Gamboa que se <strong>de</strong>u um conflito entre os sócios da<br />

União dos Operários Estivadores e do sindicato inimigo, a Socieda<strong>de</strong> Regeneradora dos<br />

Estivadores 21 , que contou com a participação dos já conhecidos Joaquim Januário Nunes, o<br />

“Pernambuco” e José Gomes Cardoso, o famoso “Cardosinho”, além vários outros estivadores que ali<br />

estavam reunidos na noite <strong>de</strong> 17 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1905. Segundo o jornal, eram 7 horas da noite quando<br />

um dos sócios da União dos Estivadores, o pardo Mathias dos Santos Meireles, vulgo “Vermelho”<br />

dirigiu-se para o balcão e pediu um cálice <strong>de</strong> parati. Nessa ocasião o Cardosinho entrou no tal bar e<br />

começou logo a esbravejar, gerando violenta discussão entre os inimigos <strong>de</strong> sindicato. A discussão<br />

teria tomado gran<strong>de</strong>s proporções e foram dados tiros e navalhadas a torto e à direita. O resultado da<br />

contenda, <strong>de</strong> acordo com o Correio da Manhã, foi terem saído gravemente feridos o próprio<br />

Cardosinho além <strong>de</strong> seu inimigo Vicente Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Araújo, o “Cara Cortada”, e preso Clarimundo<br />

17 Chalhoub, Sidney. Op. Cit. 1986. p. 106.<br />

18 AN – 8a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 2411. 1902.<br />

19 AN – 3 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Proc. 1043, maço 893, gal. A. 1910.<br />

20 Chalhoub, Sidney. Op. Cit. p. 213.<br />

21 Sobre os conflitos envolvendo os dois sindicatos, ver: Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit. 1998.<br />

74


Francisco <strong>de</strong> Siqueira, vulgo “Veado”. O conflito resultou ainda na morte <strong>de</strong> “Vermelho”, que teve<br />

seu enterro pago pela União dos Estivadores, <strong>de</strong> que era sócio. 22<br />

Espaços <strong>de</strong> lazer como os botequins, vendas, quiosques e casas <strong>de</strong> pasto se misturavam na<br />

rotina daqueles trabalhadores com o cotidiano do trabalho, tornando-se quase uma extensão do cais<br />

para gran<strong>de</strong> parte dos portuários. Assim, esses espaços não eram palcos apenas para conflitos, mas<br />

também lugares <strong>de</strong> encontro, socialização e construção <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>s múltiplas entre aqueles<br />

trabalhadores. Nesses locais po<strong>de</strong>riam “comemorar” o pagamento, como costumavam fazer os<br />

escravos carregadores <strong>de</strong> café 23 ; ali po<strong>de</strong>riam se reunir os que não eram escolhidos na “pare<strong>de</strong>” para<br />

esperar uma próxima chamada; conversavam tomando café antes do trabalho e uma branquinha<br />

<strong>de</strong>pois, ou vice-versa; e também era um espaço para se discutir os rumos do sindicato e da greve. Em<br />

agosto <strong>de</strong> 1906, no auge <strong>de</strong> uma importante greve das categorias portuárias, o Correio da Manhã<br />

publicou que no dia 28 daquele mês uma patrulha <strong>de</strong> cavalaria cercou e retirou à força das diversas<br />

casas <strong>de</strong> pasto e botequins da região portuária, os trabalhadores que nesses lugares se reuniam, na<br />

tentativa <strong>de</strong> obrigá-los a trabalhar no Trapiche Damião. 24<br />

Os bares próximos ao <strong>porto</strong>, sempre temidos como focos <strong>de</strong> alcoolismo e divergências,<br />

também <strong>de</strong>spertavam suspeitas por serem o espaço <strong>de</strong> permanente reunião dos trabalhadores do cais.<br />

Em qualquer dos muitos estabelecimentos que lhes servissem café, comida, ou simplesmente cachaça,<br />

os trabalhadores do <strong>porto</strong> <strong>de</strong> cores e nacionalida<strong>de</strong>s diversas se encontravam, e construíam suas<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, ao mesmo tempo em que resolviam suas contendas pessoais, seus conflitos <strong>de</strong> trabalho,<br />

suas rivalida<strong>de</strong>s amorosas e outras tensões do cotidiano.<br />

Papa-Rancho e Cardosinho: Valentes do Porto<br />

As brigas entre os trabalhadores do <strong>porto</strong> não estavam circunscritas ao mundo dos bares,<br />

estimuladas por umas doses a mais <strong>de</strong> parati. Os conflitos eram freqüentes também no próprio cais,<br />

como ocorreu em 9 <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 1902 na Estação Marítima. O português Justino Joaquim da Silva,<br />

<strong>de</strong> 40 anos, morador do Engenho <strong>de</strong> Dentro acusou João Morgado <strong>de</strong> o ter agredido na Estação<br />

Marítima “por causa <strong>de</strong> serviço”. Todas as testemunhas ouvidas na <strong>de</strong>legacia da 2 a Circunscrição<br />

22 Correio da Manhã, 18/08/1905. p.2<br />

23 Cruz, Maria Cecília Velasco. Op. Cit. Afro-Ásia (2000). p. 260.<br />

24 Correio da Manhã. 29/08/1906. p. 2.<br />

75


Urbana, afirmaram que João Morgado atingira Justino com uma martelada na cabeça e que fora<br />

necessária a intervenção dos outros companheiros <strong>de</strong> trabalho para evitar que o agressor o espancasse<br />

mais. Após o acontecido, Morgado fugiu e não foi mais encontrado e o caso foi arquivado por falta <strong>de</strong><br />

testemunhas que, mais uma vez, não apareceram para o julgamento por não terem sido encontradas<br />

nos en<strong>de</strong>reços <strong>de</strong>clarados na <strong>de</strong>legacia. 25<br />

Mais um caso, entre tantos outros, ocorreu em 9 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1909 às 8 horas da manhã, no<br />

Cais das Docas Nacionais, em frente ao Trapiche Silvino. Um estivador pernambucano chamado<br />

Caetano Damásio, <strong>de</strong> 19 anos, morador do Morro da Favela, foi parar na <strong>de</strong>legacia do 3 o Distrito<br />

Policial, acusado <strong>de</strong> ter disparado um tiro no português Manoel Gomes, vulgo “Cabo Ver<strong>de</strong>”, <strong>de</strong> 25<br />

anos (o mesmo que pernoitava nas diversas hospedarias da Rua da Saú<strong>de</strong>, mencionado no capítulo<br />

anterior). Todas as testemunhas afirmaram mais ou menos a mesma coisa: que em uma embarcação<br />

encostada à ponte do Trapiche Silvino, um grupo <strong>de</strong> homens trabalhava na <strong>de</strong>scarga <strong>de</strong> farinha e<br />

feijão. Segundo o escrivão que registrou a ocorrência, <strong>de</strong>ntro da tal embarcação travou-se luta<br />

corporal entre Caetano Damásio e Manoel Gomes, tendo aquele disparado um tiro contra este, que<br />

caiu por terra e foi levado por uma ambulância. Após o ocorrido, o acusado fugiu entrando em um<br />

beco na Rua Pedra do Sal, sendo perseguido pelos populares que gritavam “pega! Pega! Assassino!”.<br />

Damásio foi encontrado quando tentava ocultar-se em uma casa no Beco das Escadinhas, nas<br />

imediações do <strong>porto</strong>.<br />

Na enfermaria da Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia, o ofendido prestou seu <strong>de</strong>poimento:<br />

“que às 8 horas mais ou menos <strong>de</strong>sembarcou do navio <strong>de</strong> guerra “Deodoro”, on<strong>de</strong> trabalhava como foguista,<br />

passando a trabalhar no serviço <strong>de</strong> <strong>de</strong>scarga <strong>de</strong> mercadorias na Saú<strong>de</strong>; que lá pelas 7 para as 8 horas da manhã<br />

(sic) trabalhava na <strong>de</strong>scarga <strong>de</strong> uma embarcação encostada em frente do Trapiche Silvino quando foi provocado<br />

por um indivíduo que ali chegou armado <strong>de</strong> revólver; esse indivíduo empurrou uma (...) sobre o <strong>de</strong>clarante que o<br />

advertiu que (parasse com essa) liberda<strong>de</strong> e brinca<strong>de</strong>ira, visto não conhecê-lo. Não se conformando com a<br />

advertência, o tal indivíduo atirou contra o <strong>de</strong>poente vários pontapés, tendo ele <strong>de</strong>clarante dado-lhe um soco. Para<br />

evitar nova agressão, o indivíduo retirou-se do trapiche on<strong>de</strong> o mesmo indivíduo em sua perseguição feriu-lhe<br />

pelas costas (...)” 26<br />

Essas ações violentas, como apontou Fernando T. da Silva, eram a expressão <strong>de</strong> um “universo<br />

masculino” baseado em um sistema <strong>de</strong> valores que tendia a legitimar o papel do homem valente,<br />

25 AN – 10 a Vara Criminal. Cx. 320, Proc. 679. 1902.<br />

26 AN – 2 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro; m.890, Cx. 5156. 1909.<br />

76


corajoso e agressivo. Um mundo governado por regras informais, on<strong>de</strong> imperava a lei do mais forte, e<br />

as <strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> valentia eram respeitadas <strong>de</strong>ntro e fora do <strong>porto</strong>. O autor sugere que essa<br />

constante ostentação <strong>de</strong> força e coragem se expressava também em uma cultura <strong>de</strong> insubordinação ao<br />

po<strong>de</strong>r dos chefes <strong>de</strong> serviço. Para ele, a autorida<strong>de</strong> que os contramestres <strong>de</strong> estiva chamavam para si<br />

mesmos estava na origem <strong>de</strong> muitos dos conflitos ocorridos no <strong>porto</strong>, em Santos, no Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

ou em qualquer outro. Homens com fama <strong>de</strong> valentões e passagens pela polícia tinham prestígio no<br />

cais e eram consi<strong>de</strong>rados “indivíduos qualificados” para exercer cargos <strong>de</strong> chefia ou li<strong>de</strong>rança, como<br />

contramestres ou feitores. Esses homens seriam os mais “preparados” para lidar com outros<br />

trabalhadores que também tinham reputação violenta. 27<br />

Os trabalhadores do <strong>porto</strong> carregavam, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito cedo, estigmas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iros e valentões.<br />

Segundo um antigo estivador do <strong>porto</strong> <strong>de</strong> Santos, a categoria “era mal vista, tinha má fama”. 28 Vários<br />

<strong>de</strong>les eram conhecidos das autorida<strong>de</strong>s como criminosos famosos e que aterrorizavam a região da zona<br />

portuária. São inúmeros os casos em que portuários eram i<strong>de</strong>ntificados pela polícia como “<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iro<br />

perigoso”, “vadio e ébrio conhecido”, “famoso vagabundo e <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iro da Saú<strong>de</strong> e Gamboa”, etc.<br />

Alguns <strong>de</strong>sses homens, conhecidos no cais, nas docas e suas vizinhanças, tinham presença constante<br />

não só nas páginas dos registros policiais mas também na imprensa. Um <strong>de</strong>sses afamados criminosos<br />

era o estivador Martinho <strong>de</strong> Souza Oliveira, conhecido na zona portuária por “Papa-Rancho”. O<br />

Correio da Manhã, em 27 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1904, noticiou uma briga que Papa-Rancho teve com um<br />

<strong>de</strong>sconhecido na rua Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Inhaúma e que resultou em sua morte:<br />

“Resi<strong>de</strong> na La<strong>de</strong>ira João Homem, n.57, é conhecido como <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iro e chama-se Martinho <strong>de</strong> Souza Oliveira, o já<br />

célebre “Papa-Rancho”.<br />

A sua fama <strong>de</strong> valente corre longe e disto tem ele gran<strong>de</strong> orgulho, tanto que não admite provocações (...)” 29<br />

Mas, a julgar pelo número <strong>de</strong> prisões e <strong>de</strong> vezes que seu nome apareceu nas colunas policiais<br />

dos jornais cariocas 30 , José Gomes Cardoso, o Cardosinho parece ter sido o mais famoso <strong>de</strong> todos os<br />

valentões do <strong>porto</strong>. Para João do Rio, “homens da espécie <strong>de</strong> Cardosinho fazem o sinal da cruz ao<br />

levantar da cama para matar um homem horas <strong>de</strong>pois” 31 . A Gazeta <strong>de</strong> Notícias tentou traçar um perfil<br />

27 Silva, Fernando Teixeira da. Op. Cit. p.150.<br />

28 Depoimento <strong>de</strong> Francisco Rodrigues Garcez à Fernando Teixeira da Silva. Cf. Silva, Fernando Teixeira. Op. Cit. p. 151.<br />

29 Correio da Manhã. 27/01/1904. Coluna “Na Polícia e nas Ruas”.<br />

30 Correio da Manhã, coluna “Na Polícia e nas Ruas” dos dias 16/03/1904 e 17/03/1904: “O Célebre Cardosinho”.<br />

31 do Rio, João. “As quatro idéias capitais dos presos” In: A Alma encantadora das ruas.” p.359<br />

77


do “célebre Cardosinho” e <strong>de</strong> seus feitos, assim se referindo às origens criminosas do temível<br />

estivador:<br />

“O CARDOSINHO<br />

Este é um personagem importante na sua roda. Não admira que tenha uma biografia extensa.<br />

O nome do tão conhecido Cardosinho é José Gomes Cardoso. Nasceu em Pernambuco, e a sua primeira profissão<br />

foi <strong>de</strong> cal<strong>de</strong>ireiro. Depois, matriculou-se como marinheiro e tomou parte na revolta <strong>de</strong> 1893, tendo estado no<br />

combate da Armação.<br />

Finda a revolta, teve baixa e foi residir no Retiro Saudoso. Ali, como um cidadão pacato, entregou-se à pesca.<br />

Mas, um belo dia, cansado <strong>de</strong> apanhar peixes, mudou <strong>de</strong> vida, fez-se estivador e entrou para Detenção várias<br />

vezes” 32<br />

Figura 3<br />

Gazeta <strong>de</strong> Notícias – 06/03/1904<br />

78


Nesse caso, o jornalista faz uma associação direta entre a entrada <strong>de</strong> Cardosinho para estiva e<br />

sua entrada no mundo do crime. 33 Cardosinho trabalhou como contramestre da estiva, cargo que exigia<br />

força no trato com os outros estivadores, tanto aqui como em outras partes do mundo. Silva<br />

transcreveu a opinião <strong>de</strong> um contratante <strong>de</strong> estivadores <strong>de</strong> Nova York, afirmando que<br />

“se me <strong>de</strong>rem a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolher entre um ex-presidiário ru<strong>de</strong>, e alguém que não tenha antece<strong>de</strong>ntes<br />

criminais estarei mais inclinado a dar preferência ao primeiro. Sabe por quê? Porque como boss, um ex-presidiário<br />

vai inspirar medo aos trabalhadores, que se manterão disciplinados, e trabalharão o máximo” 34<br />

A fama <strong>de</strong> valentão e as passagens pela prisão conferiam autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro daquele universo<br />

marcado por ritos <strong>de</strong> masculinida<strong>de</strong> e valorização da valentia e da força física, numa oscilação entre a<br />

i<strong>de</strong>ntificação do herói pelos próprios portuários e do marginal, como eram vistos pelas autorida<strong>de</strong>s.<br />

Mas apesar <strong>de</strong> todos os conflitos que realmente aconteceram nos <strong>porto</strong>s, a experiência daqueles homens não po<strong>de</strong><br />

ser resumida às brigas. Segundo Fernando T. da Silva, esses são aspectos inerentes à cultura portuária, não significando,<br />

no entanto, que sejam responsáveis pela <strong>de</strong>spolitização e ausência <strong>de</strong> uma cultura classista entre aqueles trabalhadores. Se,<br />

como outros aspectos da vida dos portuários, a valentia andava <strong>de</strong> mãos dadas com a natureza ocasional do trabalho avulso<br />

no cais, junto a esse fenômeno estava também a luta dos operários para “eliminar os patrões” e controlarem eles mesmos a<br />

mão-<strong>de</strong>-obra. Dessa forma, se por um lado, a contratação funcionava como elemento <strong>de</strong>sagregador, gerador <strong>de</strong> conflitos<br />

internos, por outro, foi justamente em torno <strong>de</strong>ssa questão que os portuários <strong>de</strong> diversas cida<strong>de</strong>s do mundo se uniram,<br />

fazendo frente ao po<strong>de</strong>r dos contratadores e reivindicando o controle do mercado <strong>de</strong> trabalho, como veremos adiante.<br />

Conflitos Étnicos e Sindicatos: diálogos com a bibliografia<br />

As colunas dos jornais no início do século XX costumavam trazer relatos das brigas entre<br />

trabalhadores no <strong>porto</strong>. Em janeiro <strong>de</strong> 1906, o Correio da Manhã narrou um conflito ocorrido na<br />

Estação Marítima da Gamboa:<br />

“ (...) Logo pela manhã, apresentaram-se na porta daquela Estação, cerca <strong>de</strong> 300 trabalhadores.<br />

Como <strong>de</strong> praxe, o feitor José Duarte disse precisar <strong>de</strong> 70 homens, que escolheu entre os presentes.<br />

32 Gazeta <strong>de</strong> Notícias. 06/03/1906. “Galeria do Crime: os criminosos”<br />

33 Assim como Antoninho Navalhada, o “valentão” mais conhecido do <strong>porto</strong> <strong>de</strong> Santos. Sobre Antoninho Navalhada, ver<br />

Silva, Fernando Teixeira. Op. Cit. p. 151.<br />

34 I<strong>de</strong>m. p. 152<br />

79


Isso provocou entre os não escolhidos para o serviço, murmúrios que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> poucos minutos se transformaram<br />

em protestos.<br />

De repente, do grupo dos que não tinham sido escolhidos partiu um tiro, cujo projétil foi se alojar nas costas do<br />

feitor José Duarte (...)” 35<br />

Já no final do século XIX, o Jornal do Brasil <strong>de</strong>nunciava o modo<br />

“<strong>de</strong>sorganizado, criminoso e reprovado pelas instituições do país, <strong>de</strong>sprezado até do cumprimento do <strong>de</strong>ver que<br />

têm as autorida<strong>de</strong>s no policiamento sobre os ajuntamentos <strong>de</strong> trezentos ou quatrocentos trabalhadores que ali vão<br />

mendigar e implorar das entida<strong>de</strong>s absolutas, os contramestres 36 , na escolha <strong>de</strong> trabalhadores que <strong>de</strong>vem<br />

embarcar para o trabalho da estiva”. 37<br />

As freqüentes cenas <strong>de</strong> brigas entre os portuários eram provocadas principalmente pela<br />

competição cotidiana por trabalho. A falta <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong> era responsável pela insegurança que o<br />

processo arbitrário <strong>de</strong> contratação causava nos trabalhadores, fazendo com que a competição<br />

<strong>de</strong>senfreada pelo serviço fosse uma das principais características dos <strong>porto</strong>s <strong>de</strong> uma maneira geral.<br />

Entre os cariocas, ela estava presente no próprio jargão dos operários, que costumavam chamar o ato<br />

<strong>de</strong> levantar a mão na “pare<strong>de</strong>” <strong>de</strong> “fazer fé”, numa referência clara às apostas no jogo do bicho ou<br />

outros jogos <strong>de</strong> azar, muito comuns já naquela época. O linguajar refletia a incerteza vivida<br />

diariamente pelos trabalhadores avulsos, que muitas vezes causava raiva, frustração e brigas entre os<br />

que disputavam uma vaga no serviço ou entre esses e o responsável pela escolha. 38<br />

Brigas causadas pelas incertezas acerca do mercado <strong>de</strong> trabalho eram uma característica dos<br />

<strong>porto</strong>s <strong>de</strong> uma maneira geral e muitas vezes somavam-se à disputa pelo trabalho também as<br />

divergências no interior da classe. No <strong>porto</strong> <strong>de</strong> Nova Iorque, por exemplo, as rivalida<strong>de</strong>s entre<br />

irlan<strong>de</strong>ses, <strong>negro</strong>s e italianos fez com que os grupos constituíssem comunida<strong>de</strong>s separadas, cada um<br />

em seu quarteirão, além <strong>de</strong> dos trabalhadores terem se organizado em diferentes sindicatos. No <strong>porto</strong><br />

<strong>de</strong> Londres, o elevado grau <strong>de</strong> compartimentação habitacional também era fruto das fissuras<br />

profissionais e étnicas. Em algumas cida<strong>de</strong>s, os armadores buscaram tirar proveito da situação <strong>de</strong><br />

conflito, como aconteceu na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Saint John, no Canadá, on<strong>de</strong> as hostilida<strong>de</strong>s entre protestantes e<br />

35 Correio da Manhã, 17/01/1906.<br />

36 Segundo Cruz, os “contramestres” ou “contra-mestres <strong>de</strong> porão” eram trabalhadores mais experientes que coor<strong>de</strong>navam o<br />

trabalho da estiva. Estes, por sua vez, seguiam a orientação dos encarregados das firmas empreiteiras. Mas, no início do<br />

século, os contramestres exerciam funções que eram claramente a dos encarregados. Cf. Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op.<br />

Cit. 1998. p.55.<br />

37 Jornal do Brasil, 20/07/1895.<br />

80


católicos eram exploradas pelos empregadores. O mesmo aconteceu com as rivalida<strong>de</strong>s entre brancos<br />

e <strong>negro</strong>s em New Orleans, cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> formaram-se sindicatos distintos e em situações <strong>de</strong> crise, as<br />

disputas por emprego tornavam-se extremamente violentas. 39<br />

No Rio <strong>de</strong> Janeiro, apesar <strong>de</strong> não ter existido compartimentação da população portuária em<br />

bairros diferentes ou em sindicatos diferenciados por nacionalida<strong>de</strong> ou etnia, a enorme disputa pelo<br />

mercado <strong>de</strong> trabalho entre nacionais (a maioria <strong>negro</strong>s) e imigrantes (principalmente portugueses) foi<br />

quase sempre referida como elemento <strong>de</strong>sagregador da classe. Boris Fausto foi um dos autores que<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u a tese <strong>de</strong> que as diferenças étnicas e <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong> não apenas limitaram a ação operária<br />

no Rio <strong>de</strong> Janeiro, como também teriam praticamente <strong>de</strong>finido a predominância do sindicalismo<br />

reformista, <strong>de</strong> caráter não-revolucionário, que ele chama <strong>de</strong> “trabalhismo carioca”. Para o autor, o setor<br />

<strong>de</strong> serviços, que abrange os ferroviários, marítimos e doqueiros, formaram um grupo <strong>de</strong> trabalhadores<br />

intocados pela i<strong>de</strong>ologia anarquista em fins do século XIX, principalmente <strong>de</strong>vido à superiorida<strong>de</strong><br />

numérica <strong>de</strong> trabalhadores nacionais, especialmente <strong>negro</strong>s. O mesmo não teria acontecido em São<br />

Paulo, sempre consi<strong>de</strong>rada como palco dos movimentos revolucionários justamente pela<br />

predominância dos imigrantes com tendências libertárias 40 .<br />

Sheldom Maram segue a mesma linha <strong>de</strong> Fausto ao afirmar que os conflitos internos, por<br />

vezes abortaram tentativas <strong>de</strong> organização entre os portuários, acarretando o <strong>de</strong>clínio <strong>de</strong> vários<br />

sindicatos, como a “Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café”, que ele cita<br />

como exemplo. Segundo ele, após a disputa entre nacionais e portugueses, o sindicato <strong>de</strong>clinou<br />

vertiginosamente, vendo o número <strong>de</strong> associados cair <strong>de</strong> 4.000 para apenas 200 em um só ano. E<br />

ainda aponta que alguns anos <strong>de</strong>pois o “Resistência” se reergueu sob nova li<strong>de</strong>rança. 41<br />

Em uma posição diferente <strong>de</strong>ste autor, Marli Albuquerque, que tratou especialmente dos<br />

trabalhadores do <strong>porto</strong>, rejeita a tese <strong>de</strong> que conflitos étnicos teriam limitado a organização daqueles<br />

trabalhadores, afirmando que a ação política das categorias portuárias era intensa e marcada pela<br />

38<br />

Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit., 1998. p.228-229.<br />

39<br />

I<strong>de</strong>m. p. 207.<br />

40<br />

Fausto, Boris. Trabalho Urbano e Conflito Social. Rio <strong>de</strong> Janeiro. DIFEL: 1979.<br />

41<br />

Maram, Sheldom. Anarquistas, Imigrantes e Movimento Operário no Brasil, 1890-1920. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra,<br />

1979. p. 31. Segundo Cruz, as verda<strong>de</strong>iras causas da crise institucional do sindicato foram a perda dos fundos sindicais<br />

causada pela falência do Banco União do Comércio, e o lock-out feito pelo Centro <strong>de</strong> Comércio <strong>de</strong> Café contra o<br />

“Resistência”, na mesma época. Diz ainda que os mesmos lí<strong>de</strong>res foram elementos estratégicos – e até essenciais! – à<br />

reorganização da socieda<strong>de</strong> após a crise, contrariando a afirmação <strong>de</strong> que ela teria ser reerguido sob novas li<strong>de</strong>ranças. Cf.<br />

Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit. Afro-Ásia (2000). p.280-281<br />

81


solidarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> classe, não tendo qualquer conteúdo racial. 42 No entanto, o trabalho <strong>de</strong> Marli<br />

Albuquerque ten<strong>de</strong> a exagerar na ênfase à harmonia e solidarieda<strong>de</strong> entre os portuários, <strong>de</strong>scartando<br />

os conflitos que certamente ocorriam, principalmente na “pare<strong>de</strong>”, durante a escolha dos braços.<br />

No entanto, é Sidney Chalhoub, em seu livro sobre os trabalhadores no Rio <strong>de</strong> Janeiro dos<br />

primeiros anos do século XX, que parece ter melhor <strong>de</strong>finido a situação dos portuários naqueles<br />

tempos. O autor afirma que as diferenças internas à classe limitaram em algum grau a organização<br />

daqueles operários 43 , mas reconhece que o grupo era forte e bastante consciente <strong>de</strong> sua situação <strong>de</strong><br />

classe. Segundo ele, a enorme competição pelo trabalho traduzia-se em ações contraditórias,<br />

revestindo-se não só <strong>de</strong> um conteúdo <strong>de</strong> luta e <strong>de</strong>sagregação, mas também <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong><br />

espírito comunitário.<br />

Ao analisar essa questão, esbarramos em uma outra que diz respeito às opções políticas dos<br />

sindicatos. Boris Fausto foi um dos autores que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u a tese <strong>de</strong> que as diferenças étnicas e <strong>de</strong><br />

nacionalida<strong>de</strong> não apenas limitaram a ação operária no Rio <strong>de</strong> Janeiro, como também teriam<br />

praticamente <strong>de</strong>finido a predominância do sindicalismo reformista, <strong>de</strong> caráter não-revolucionário, que<br />

ele chama <strong>de</strong> “trabalhismo carioca”. Para o autor, o setor <strong>de</strong> serviços, que abrange os ferroviários,<br />

marítimos e doqueiros, formaram um grupo <strong>de</strong> trabalhadores intocados pela i<strong>de</strong>ologia anarquista em<br />

fins do século XX, o que não teria acontecido em São Paulo, sempre consi<strong>de</strong>rada como palco dos<br />

movimentos revolucionários justamente pela superiorida<strong>de</strong> numérica dos imigrantes:<br />

“Do ângulo da classe operária, a existência no Rio <strong>de</strong> Janeiro dos germes <strong>de</strong> uma corrente limitada à <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong><br />

reivindicações mínimas, pela via da colaboração <strong>de</strong> classes e da proteção do Estado, explica-se em gran<strong>de</strong> medida<br />

(...) pela maior presença <strong>de</strong> nacionais na composição da classe, mais receptivos a um tipo <strong>de</strong> política que se<br />

coadunava com as velhas relações tradicionais e paternalistas (...)” 44<br />

Fausto afirma que mesmo quando o anarquismo começa a encontrar campo entre os<br />

trabalhadores cariocas, principalmente a partir da década <strong>de</strong> 1920, isso não acontece entre os<br />

portuários, que, segundo ele, teriam mantido uma tradição <strong>de</strong> sindicalismo limitado a reivindicações<br />

corporativas. Comparando as ações operárias no Rio <strong>de</strong> Janeiro e na cida<strong>de</strong> portuária <strong>de</strong> Santos, o<br />

autor afirma que os perfis sindicais das cida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m ser claramente distinguidos:<br />

42<br />

Albuquerque, Marli B. M. Trabalho e Conflito no Porto do Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1904-1920. Tese <strong>de</strong> Mestrado, Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, UFRJ, 1983.<br />

43<br />

O autor também menciona o conflito no Resistência. Chalhoub, Sidney. Op. Cit. 1986. p. 109.<br />

44 Fausto, Boris. Op. Cit. p.52.<br />

82


“As razões da diferença <strong>de</strong>vem ser buscadas no contexto geral das duas cida<strong>de</strong>s e na composição étnica da classe<br />

trabalhadora. Santos se <strong>de</strong>fine como centro <strong>de</strong> lutas frontais, sob inspiração libertária, abrangendo tanto portuários<br />

como outros ramos (...). Uma classe operária relativamente homogênea, composta em gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong><br />

estrangeiros (espanhóis e portugueses), constitui o núcleo básico dos trabalhadores quando a cida<strong>de</strong> começa a se<br />

<strong>de</strong>senvolver. No Rio <strong>de</strong> Janeiro, estrangeiros – em menor número – vem concorrer no <strong>porto</strong> com elementos<br />

nacionais aí já instalados. A rivalida<strong>de</strong> étnica potencia a disputa e favorece a divisão interna da classe. Por sua<br />

vez, as posições ten<strong>de</strong>ntes ao paternalismo ou à conciliação encontram campo na maior incidência do Estado e<br />

nas expectativas dos trabalhadores nacionais. Entre estes, há muitos antigos escravos ou integrantes <strong>de</strong> uma<br />

geração para a qual a escravidão tem ainda culturalmente um peso consi<strong>de</strong>rável.” 45<br />

Assim, para Boris Fausto a diferença básica entre a ação operária dos portuários das duas<br />

cida<strong>de</strong>s se dá pela diferença na composição da classe trabalhadora, que em Santos era formada por<br />

uma maioria <strong>de</strong> imigrantes com tendências libertárias e no Rio por nacionais, especialmente <strong>negro</strong>s.<br />

Para alguns autores era isso que diferenciava Santos – a “Barcelona Brasileira” 46 – dos “amarelos”,<br />

como eram chamado pejorativamente os sindicatos reformistas do <strong>porto</strong> carioca. 47 Ao contrário da<br />

afirmação <strong>de</strong> que entre os estrangeiros “a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> classe (...) ten<strong>de</strong>u a superar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

nacional” 48 , o autor não consi<strong>de</strong>ra essa possibilida<strong>de</strong> para os trabalhadores nacionais. Essas idéias se<br />

relacionam muito ao fato da historiografia não pensar o escravo como “ser político”, daí uma menor<br />

“consciência <strong>de</strong> classe” quando estes se fizeram trabalhadores livres, e uma forte tendência a aceitar o<br />

paternalismo estatal mais facilmente.<br />

No entanto, apesar das evidências <strong>de</strong> que houve competição e conflitos entre trabalhadores <strong>de</strong><br />

diferentes etnias e nacionalida<strong>de</strong>s no Rio <strong>de</strong> Janeiro, afirmar que essas diferenças estão diretamente<br />

relacionadas ao predomínio dos sindicatos reformistas no <strong>porto</strong> é simplificar a análise. Cláudio<br />

Batalha critica essa visão clássica e diz que tanto no caso do Rio como no <strong>de</strong> outras cida<strong>de</strong>s em que as<br />

correntes reformistas po<strong>de</strong>m ser constatadas, as evidências <strong>de</strong>smentem esses pressupostos :<br />

45 Fausto, Boris. Op. Cit. pp.126-127.<br />

46 Segundo Fernando Teixeira da Silva, a <strong>de</strong>signação se refere ao predomínio anarquista em Santos nas primeiras décadas<br />

do XX; A cida<strong>de</strong> também é chamada <strong>de</strong> “Moscou Brasileira”, em referência ao peso dos comunistas nos sindicatos do pós<br />

Segunda Guerra Mundial. Ambas fazem parte da memória construída da cida<strong>de</strong> e visam apresentá-la como politicamente<br />

radical. Silva, Fernando Teixeira da. Op. Cit. (Introdução)<br />

47 É importante lembrar não apenas os sindicatos portuários foram chamados <strong>de</strong> “amarelos”. O apelido foi atribuído ao<br />

movimento operário <strong>de</strong> caráter reformista da cida<strong>de</strong> como um todo. Cf. Maram, Sheldom. Op. Cit.; Gitahy, Maria Lúcia.<br />

Caira. Op. Cit.<br />

48 Fausto, Boris. Op. Cit. pp. 32-33<br />

83


“não há qualquer relação que possa ser estabelecida entre origem étnica e opções sindicais na Primeira República<br />

(...) Tampouco po<strong>de</strong>m ser estabelecidas correlações automáticas entre a orientação i<strong>de</strong>ológica dos operários e o<br />

setor da produção on<strong>de</strong> estão empregados. No caso do Rio <strong>de</strong> Janeiro, on<strong>de</strong> há um predomínio do reformismo nos<br />

sindicatos do <strong>porto</strong> e dos transportes, isso só evi<strong>de</strong>ncia as dificulda<strong>de</strong>s do sindicalismo-revolucionário em<br />

penetrar nestes setores.” 49<br />

Segundo Cláudio Batalha, os estudos sobre o movimento operário no Brasil apresentam<br />

gran<strong>de</strong>s dificulda<strong>de</strong>s em analisar fenômenos como o reformismo operário na Primeira República. Isso<br />

se explica em gran<strong>de</strong> parte pelo fato <strong>de</strong> a maior parte da historiografia trabalhar com antigos<br />

pressupostos <strong>de</strong> que só há uma única forma verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> consciência <strong>de</strong> classe: a revolucionária.<br />

Dessa forma, rejeita-se qualquer outra forma <strong>de</strong> luta como legítima e <strong>de</strong>squalifica-se a ação dos<br />

operários quando estas não são motivadas pela i<strong>de</strong>ologia revolucionária. 50 Talvez por isso existam<br />

muitos trabalhos específicos sobre os trabalhadores do <strong>porto</strong> <strong>de</strong> Santos 51 e pouquíssimos sobre os<br />

portuários do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

A imagem <strong>de</strong> uma classe operária homogênea, revolucionária e estrangeira que a literatura<br />

clássica quis passar como a “verda<strong>de</strong>ira” classe operária, generalizando mo<strong>de</strong>los e criando paradigmas,<br />

simplifica e i<strong>de</strong>aliza um movimento operário e sindical que não condiz com a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> muitas<br />

organizações <strong>de</strong> luta operária. A maioria dos trabalhos ten<strong>de</strong>u a <strong>de</strong>squalificar e diminuir a importância<br />

dos sindicatos reformistas, encarados como frutos <strong>de</strong> mera manipulação patronal ou estatal e<br />

<strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> qualquer projeto próprio. Assim, preocupada em <strong>de</strong>squalificar o reformismo como<br />

expressão operária, a historiografia recusou-se também a estudá-lo e compreendê-lo historicamente<br />

como uma manifestação legítima <strong>de</strong> consciência <strong>de</strong> classe.<br />

Entre os poucos estudiosos dos sindicatos do <strong>porto</strong> carioca, Maria Cecília Velasco Cruz merece<br />

<strong>de</strong>staque. Sua análise sobre os estivadores e carregadores no Rio <strong>de</strong> Janeiro da primeira República, é<br />

talvez o único trabalho <strong>de</strong> peso sobre o <strong>porto</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro. A pesquisa <strong>de</strong> Cruz se mostra bastante<br />

bem-sucedida, na medida em que investiga à fundo a composição étnica da categoria, buscando<br />

perceber a influência das “tradições” oriundas da experiência dos escravos <strong>de</strong> ganho na organização do<br />

trabalho e na formação dos sindicatos portuários no período pós-abolição.<br />

49<br />

Batalha, Cláudio Henrique <strong>de</strong> Moraes. “Uma outra consciência <strong>de</strong> classe? O sindicalismo Reformista na Primeira<br />

República.” In: Ciências Sociais Hoje, ANPOCS, 1990.<br />

50<br />

I<strong>de</strong>m.<br />

51<br />

Cf. Silva, Fernando Teixeira da. Op. Cit.; Guitahy, Maria Lúcia. Op. Cit.; Sarti, Ingrid. O Porto Vermelho. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Paz e Terra, 1981.<br />

84


A autora faz uma crítica à afirmação <strong>de</strong> Boris Fausto <strong>de</strong> que entre os estrangeiros, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> classe ten<strong>de</strong>u a superar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional, questionando se esse processo não po<strong>de</strong>ria ter<br />

ocorrido entre os nacionais, mesmo se ex-escravos. 52 Ela também rejeita o velho paradigma e, sem<br />

per<strong>de</strong>r a dimensão do conflito como fez Albuquerque, aponta para a solidarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> classe entre os<br />

portuários. Ainda segundo ela, a atuação dos portuários em diversos momentos cruciais <strong>de</strong><br />

reivindicação operária não apresentara a cor “amarelada” que lhe quiseram atribuir. Ao traçar a história<br />

da “Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café” e da “União Operária dos<br />

Estivadores”, a autora ressalta a importância <strong>de</strong>stes sindicatos no movimento operário carioca,<br />

principalmente na conquista <strong>de</strong> uma das mais importantes reivindicações dos trabalhadores do <strong>porto</strong>: a<br />

Close Shop, – sistema <strong>de</strong> sindicatos fechados, on<strong>de</strong> os sindicalizados teriam ampla preferência na<br />

disputa pelo trabalho.<br />

Embora o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> autonomia e fechamento do mercado <strong>de</strong> trabalho em torno dos sindicatos<br />

tenha sido uma luta comum entre os portuários do mundo inteiro, diversas tentativas nesse sentido não<br />

resultaram em sindicatos closed shop consolidados (exemplos <strong>de</strong> Londres, Liverpool, Seattle e<br />

Portland). Como apontou Cruz, seria então surpreen<strong>de</strong>nte que esse sistema tenha se estruturado tão<br />

fortemente e sobrevivido no Rio <strong>de</strong> Janeiro 53 . Ao contrário do que afirmou Ingrid Sarti, o Sindicato<br />

dos Estivadores <strong>de</strong> Santos não foi o “primeiro sindicato que se impunha in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da Companhia<br />

Empregadora, e que se propunha a agenciar a mão-<strong>de</strong>-obra”. 54 No Rio, os ventos parecem ter soprado à<br />

favor dos sindicatos mais rápido do que na “Barcelona Brasileira” e, apesar dos altos e baixos<br />

constantes 55 , os “amarelos” conseguiram se impor ao patronato já nos primeiros anos do século XX.<br />

Em Santos, apesar da luta se iniciar já na primeira década do século é só na década <strong>de</strong> 1920 que<br />

começa a ter resultados, se consolidando na década seguinte. 56<br />

Dessa forma, apesar dos conflitos que existiram no <strong>porto</strong> e apesar daqueles sindicatos não<br />

terem seguido a i<strong>de</strong>ologia “revolucionária”, eles conseguiram se impor no <strong>porto</strong> entre operários e<br />

patrões, conseguindo no início do século XX gran<strong>de</strong>s conquistas para os trabalhadores.<br />

52<br />

Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit. 1998. p. 22<br />

53<br />

Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit. Afro-Ásia(2000). p. 254.<br />

54<br />

Sarti, Ingrid. Op. Cit.<br />

55<br />

A exemplo <strong>de</strong> alguns lock-outs feitos pelas companhias no início do século, que <strong>de</strong>sestruturavam os sindicatos, como<br />

ocorreu com o “Resistência” em 1908.<br />

56<br />

Silva, Fernando Teixeira da. Op. Cit. p. 31<br />

85


Do conflito, nascem a União e a Resistência<br />

Era manhã do dia 31 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1905. Como acontecia todos os dias, grupos <strong>de</strong> homens se<br />

reuniam no <strong>porto</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro em busca <strong>de</strong> trabalho no serviço <strong>de</strong> carga e <strong>de</strong>scarga <strong>de</strong><br />

mercadorias nos diversos navios que ali ancoravam. Entre eles estavam os estivadores Joaquim da<br />

Silva Fino, brasileiro <strong>de</strong> 23 anos, morador na Rua do Monte n. 2 e Izidoro Pereira da Silva, português<br />

<strong>de</strong> 29 anos, morador do Beco <strong>de</strong> João Ignácio, n.8, ambos en<strong>de</strong>reços da zona portuária carioca. Junto<br />

com outros cinco companheiros, Joaquim e Izidoro se apresentavam para o trabalho <strong>de</strong> <strong>de</strong>scarga no<br />

Navio Campeiro, que estava atracado no Trapiche Reis, quando houve um conflito que <strong>de</strong>ixou os dois<br />

feridos a balas <strong>de</strong> revólver.<br />

Na Delegacia da 3 a Circunscrição Urbana, vários estivadores que ali se encontravam foram<br />

ouvidos pelo <strong>de</strong>legado. O primeiro <strong>de</strong>les, o português José Joaquim Alves, disse que tinha sido<br />

convidado por outros companheiros para trabalhar a bordo do vapor Campeiro e que chegando no<br />

Trapiche Reis, on<strong>de</strong> estava atracado o dito vapor, ali se achava outro grupo <strong>de</strong> homens, entre eles José<br />

Gomes Cardoso, o “Cardosinho”, que recebeu o grupo a tiros <strong>de</strong> revólver. Segundo a mesma<br />

testemunha, a agressão se <strong>de</strong>u pelo fato <strong>de</strong> Cardosinho e seus amigos serem sócios da Socieda<strong>de</strong><br />

Regeneradora dos Estivadores 57 , enquanto seu grupo era composto <strong>de</strong> sócios da União Operária dos<br />

Estivadores. Disse ainda que Cardosinho fora o autor dos disparos, pois só trabalhava com sócios da<br />

Socieda<strong>de</strong> Regeneradora dos Estivadores e que, durante o conflito, gritava para os membros da União<br />

Operária: “o que vocês querem aqui seus canalhas?”.<br />

O <strong>de</strong>poimento das outras quatro testemunhas, como o dos dois ofendidos confirmaram a versão<br />

<strong>de</strong> José Joaquim Alves. No entanto, ao ser ouvido na <strong>de</strong>legacia, Cardosinho, que era contramestre <strong>de</strong><br />

estiva, contou uma outra história. Disse que ele teria sido contratado pelo comandante do vapor<br />

Campeiro para levar dois ternos <strong>de</strong> estivadores para fazer um serviço <strong>de</strong> carregamento e que estando já<br />

com “seu pessoal” a bordo, viu entrar pelo Trapiche Reis um grupo <strong>de</strong> estivadores da União Operária,<br />

que o agrediu e a seus companheiros. Disse ainda que realmente houve tiros “<strong>de</strong> parte a parte”, da qual<br />

saíram feridos Joaquim e Izidoro, não sabendo, no entanto, quem era o autor dos disparos. Afirmava,<br />

no entanto, que os tiros não saíram da arma que trazia consigo.<br />

O caso foi levado a Juízo, mas a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cardosinho pagou sua fiança e ele respon<strong>de</strong>u em<br />

liberda<strong>de</strong>, mesmo tendo sido preso anteriormente por 12 vezes pelos mais variados motivos, conforme<br />

86


atesta a sua folha <strong>de</strong> antece<strong>de</strong>ntes, anexa ao processo. Como as testemunhas não foram encontradas<br />

nos en<strong>de</strong>reços <strong>de</strong>clarados, não comparecendo para <strong>de</strong>por, nada ficou provado e Cardosinho foi<br />

absolvido pelo Juiz da 2 a Pretoria em 26 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1907. 58<br />

Caso semelhante aconteceu em 22 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1907. Eram 11 horas da manhã quando o<br />

<strong>de</strong>legado da 3 a Circunscrição Urbana foi avisado que um indivíduo estava impedindo, sob ameaça <strong>de</strong><br />

um revólver, a <strong>de</strong>scarga <strong>de</strong> uma embarcação na Estação Marítima, no bairro da Gamboa. A força<br />

policial se encaminhou para o local e <strong>de</strong>u voz <strong>de</strong> prisão ao tal indivíduo, que se chamava Raphael<br />

Munhões, um brasileiro <strong>de</strong> 25 anos e fiscal da Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência dos Trabalhadores em<br />

Trapiche e Café.<br />

Na <strong>de</strong>legacia, as testemunhas foram ouvidas. Uma <strong>de</strong>las, o italiano Salvador Magdalena, prestou<br />

o seguinte <strong>de</strong>poimento:<br />

“que hoje, às 11 horas da manhã, na ocasião em que ele <strong>de</strong>poente e mais empregados faziam no Cais da Estação<br />

Marítima uma <strong>de</strong>scarga <strong>de</strong> fardos <strong>de</strong> trapos, aproximou-se <strong>de</strong>le <strong>de</strong>poente o acusado presente à frente <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong><br />

trabalhadores; que o acusado dirigindo-se a ele <strong>de</strong>poente <strong>de</strong> revólver em punho e com ameaças o intimou a cessar a<br />

<strong>de</strong>scarga, dizendo-lhe que aquele serviço só po<strong>de</strong>ria ser feito pelos sócios da Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência dos<br />

Trabalhadores (grifado no original); que ele <strong>de</strong>poente amedrontado com o que se passava, mandou participar à<br />

Polícia e esta chegando pren<strong>de</strong>u em flagrante o acusado (...)” 59<br />

Como no outro caso, este também foi a Juízo e a Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência dos Trabalhadores em<br />

Trapiche e Café, da qual Raphel Munhões fazia parte, pagou igualmente sua fiança para que pu<strong>de</strong>sse<br />

respon<strong>de</strong>r em liberda<strong>de</strong>. Passados quase quatro anos, o processo ainda se arrastava pelas gavetas da 8 a<br />

Pretoria e em 27 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1911 foi julgada extinta a ação penal.<br />

Ao contrário dos <strong>de</strong>mais conflitos narrados, estes apresentam uma novida<strong>de</strong>: não eram apenas<br />

estivadores que brigavam pelo serviço e sim estivadores que reivindicavam a exclusivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus<br />

sindicatos naquele trabalho. Para sabermos porque isso aconteceu é preciso enten<strong>de</strong>r como foram<br />

organizados os sindicatos portuários no Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

57<br />

A Socieda<strong>de</strong> Regeneradora dos Estivadores foi um outro sindicato, fundado no mesmo ano da União Operária dos<br />

Estivadores e sobre o qual trataremos mais adiante.<br />

58<br />

AN – 2a Pretoria. Proc. 4989, maço 880, Gal. A. 1906.<br />

59 a<br />

AN – 8 Pretoria. OR. 5353. 1907.<br />

87


Em 25 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1903, uma greve pelas oito horas <strong>de</strong> trabalho eclo<strong>de</strong> entre os estivadores do<br />

<strong>porto</strong> carioca. Neste dia, nove navios estavam ancorados esperando o carregamento <strong>de</strong> café e as<br />

lanchas com os contramestres <strong>de</strong> estiva atracaram no Cais dos Mineiros para buscar o pessoal que faria<br />

o serviço. No entanto, não havia ninguém na “pare<strong>de</strong>”, pois uma assembléia ocorrida no dia anterior<br />

<strong>de</strong>cidira em prol da greve e uma comissão convidara os estivadores a a<strong>de</strong>rir ao movimento. Os<br />

estivadores fizeram, então, um memorial com suas reivindicações, que foi entregue ao patronato. Os<br />

agentes das companhias <strong>de</strong> navegação julgaram inaceitáveis as condições impostas pelos estivadores e<br />

pediram ao Chefe <strong>de</strong> Polícia, Dr. Cardoso <strong>de</strong> Castro, garantias à manutenção da or<strong>de</strong>m à segurança<br />

daqueles que quisessem trabalhar. No entanto, não foi necessário tanto esforço, pois nenhum conflito<br />

ocorreu e os estivadores continuaram a greve nos dias que se seguiram. 60<br />

Os trabalhadores faziam vigília permanente no cais e nas proximida<strong>de</strong>s para evitar o embarque<br />

<strong>de</strong> estivadores fura-greves. As casas empreiteiras resolveram, então, recrutar pessoal <strong>de</strong> fora da cida<strong>de</strong><br />

ou em outros pontos fora das vistas dos grevistas. No dia 31 <strong>de</strong> agosto, a imprensa publicou que a<br />

greve estaria enfraquecendo, visto que muitos estivadores estariam embarcando em locais afastados e<br />

que estariam mesmo pensando em se apresentar aos patrões abertamente. Os estivadores <strong>de</strong>cidiram,<br />

então, propor um acordo, reduzindo a jornada para 9 horas <strong>de</strong> trabalho (das 7 da manhã às 5 da tar<strong>de</strong>,<br />

com 1 hora <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso e iguais condições para o trabalho à noite). Dias <strong>de</strong>pois, a imprensa informou<br />

que, no dia 2 <strong>de</strong> setembro, <strong>de</strong>zoito estivadores haviam embarcado no Cais dos Mineiros sem que<br />

ocorressem conflitos em virtu<strong>de</strong> da quebra <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>. O que aconteceu, <strong>de</strong> fato, foi que os<br />

estivadores se apresentaram e trabalharam no dia 2 <strong>de</strong> setembro segundo o horário antigo, mas no dia<br />

seguinte, se recusaram a começar o trabalho antes das sete da manhã, ou seja, em horário <strong>de</strong>terminado<br />

por eles próprios. A tática adotada pelos trabalhadores em virtu<strong>de</strong> da recusa dos empreiteiros em<br />

diminuir as horas <strong>de</strong> trabalho foi a da luta diária, modificando o ritmo <strong>de</strong> trabalho conforme com seus<br />

interesses. Nos dias que se seguiram, os jornais se calaram sobre o assunto, não ficando evi<strong>de</strong>nte até<br />

quando durou a luta cotidiana pela jornada <strong>de</strong> nove horas. No entanto, a vitória dos estivadores foi<br />

inegável pois, quando em 1905 explodiu uma nova greve pelas oito horas <strong>de</strong> trabalho, os estivadores<br />

estavam trabalhando das 7 da manhã às 5 da tar<strong>de</strong>, exatamente como haviam reivindicado no acordo<br />

proposto. 61<br />

60<br />

Para mais <strong>de</strong>talhes sobre as greves no <strong>porto</strong> carioca no início do século XX, ver: Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit.<br />

1998.<br />

61<br />

I<strong>de</strong>m. pp. 241-244<br />

88


Como apontou Maria Cecília Velasco Cruz, o que chama atenção na greve <strong>de</strong> 1903 não é tanto<br />

o ganho obtido pelos estivadores, mas a surpreen<strong>de</strong>nte organização daqueles trabalhadores que seriam,<br />

teoricamente, “<strong>de</strong>sorganizados”, já que não havia nenhuma estrutura sindical por trás do movimento. O<br />

que informava a luta daqueles homens, e os agregava em torno <strong>de</strong> interesses e objetivos comuns, eram<br />

re<strong>de</strong>s informais <strong>de</strong> comunicação e saberes compartilhados. Nas palavras da autora, “os estivadores<br />

comportaram-se como um batalhão disciplinado, <strong>de</strong>liberaram, formaram comissões, e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 8 dias<br />

<strong>de</strong> greve, em confronto aberto com os patrões, foram capazes <strong>de</strong> mudar <strong>de</strong> tática, resolvendo trabalhar,<br />

mas se apresentando na “pare<strong>de</strong>” apenas nas horas em que eles próprios haviam <strong>de</strong>terminado. Com<br />

essa forma <strong>de</strong> luta velada e calcada em um <strong>de</strong>safio permanente às regras patronais conquistaram, então,<br />

passo a passo a redução da jornada <strong>de</strong> trabalho, ao tempo que iniciaram também a construção do<br />

sindicato”. 62<br />

O surgimento da União Operária Estivadora, que começa a ser concebido institucionalmente na<br />

onda da greve <strong>de</strong> 1903 é fundamental para o movimento operário do <strong>porto</strong> carioca <strong>de</strong> inícios do século<br />

XX. Com ele nasceu também a gestão coletiva da mão-<strong>de</strong>-obra, principal aspiração da União, como<br />

fica bem claro em seus estatutos:<br />

“A Associação tem por fim <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r e proteger seus associados, (...); resolver as questões entre operários e<br />

patrões, (...); regulamentar as condições <strong>de</strong> trabalho; (...) organizar um sindicato a fim <strong>de</strong> contratar diretamente o<br />

serviço <strong>de</strong> carga e <strong>de</strong>scarga dos navios (...)”. 63 Apesar disso, a união não garantia trabalho aos associados, mas sim<br />

que “empregaria todos os meios ao alcance a fim <strong>de</strong> que os associados tenham preferência nos embarques” 64 .<br />

O fechamento do mercado <strong>de</strong> trabalho em torno <strong>de</strong> sindicatos tinha base na maneira<br />

<strong>de</strong>scontrolada e arbitrária pela qual se dava a contratação dos braços. Como a oferta <strong>de</strong> trabalho nos<br />

<strong>porto</strong>s era bastante irregular, visto ser irregular a entrada e saída <strong>de</strong> navios, não era lá muito vantajoso<br />

para os armadores empregarem diretamente os trabalhadores. Para isso, seria necessário que<br />

utilizassem a própria tripulação do navio, o que não seria muito viável, ou que mantivessem, em cada<br />

<strong>porto</strong> on<strong>de</strong> seus navios atracassem, um grupo permanente <strong>de</strong> homens contratados. Isso significaria a<br />

perda <strong>de</strong> rios <strong>de</strong> dinheiro em cada <strong>porto</strong> on<strong>de</strong> não houvesse nenhum navio ancorado, pois os patrões<br />

estariam pagando regularmente operários que trabalhariam apenas ocasionalmente. Então, por ser mais<br />

62<br />

Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit. 1998. p.245.<br />

63 o<br />

AN - 1 Ofício <strong>de</strong> Títulos e Documentos. Socieda<strong>de</strong> Civil. Livro A-1. Registro da União dos Operários Estivadores, 05<br />

<strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1904.<br />

64<br />

Artigo 11 dos Estatutos. Apud. Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit. 1998. p.247.<br />

89


viável economicamente, na maioria dos casos a estiva era contratada por empreiteiros que agiam como<br />

contratantes da mão-<strong>de</strong>-obra. 65<br />

O problema era que qualquer um podia ser contratado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que fosse escolhido pelo<br />

encarregado da contratação. Essa situação acabava por <strong>de</strong>itar po<strong>de</strong>res <strong>de</strong>mais nas mãos dos<br />

contratadores. Eram eles que escolhiam quem trabalhava e, por conseqüência, quem não trabalhava,<br />

causando inúmeras insatisfações, protestos e, não raro, conflitos, como ficou claro.<br />

Na organização portuária, o mais comum era que os donos das companhias <strong>de</strong> navegação e das<br />

firmas <strong>de</strong> importação/exportação <strong>de</strong>ixassem a resolução <strong>de</strong> todas as questões relativas à força <strong>de</strong><br />

trabalho necessária à movimentação e arrumação da carga nas mãos dos seus capatazes ou <strong>de</strong> firmas<br />

intermediárias. Eram esses intermediários os responsáveis por coor<strong>de</strong>nar o trabalho, pagar os<br />

trabalhadores e escolher quem empregar. No entanto, não havia um critério que guiasse a escolha dos<br />

braços, po<strong>de</strong>ndo o indivíduo ser escolhido num dia e rejeitado no outro. Essas regras arbitrárias e a<br />

liberda<strong>de</strong> que os capatazes ou encarregados tinham na escolha dos homens davam margem a que as<br />

relações pessoais influenciassem a opção por um ou por outro trabalhador, reforçando o po<strong>de</strong>r daquele<br />

que os elege e abrindo caminhos para práticas abusivas. Isso tudo, na prática, significava que se o<br />

encarregado não simpatizasse ou tivesse alguma questão com o candidato, este veria cair por terra as<br />

suas chances <strong>de</strong> trabalho, ao menos naquele serviço. Assim, era comum – e po<strong>de</strong>-se dizer que era<br />

mesmo necessário! – que o operário buscasse ligações <strong>de</strong> nível pessoal com os responsáveis pela<br />

escolha. As relações pessoais acabavam por se tornar um dos principais filtros nas escolhas dos<br />

encarregados.<br />

Esse caráter personalizado das relações <strong>de</strong> trabalho é uma das principais características dos<br />

<strong>porto</strong>s, não só no que diz respeito ao processo <strong>de</strong> escolha dos braços, mas também na organização das<br />

turmas. Nos “ternos”, os homens se juntavam em pares para fazer o serviço, sendo a escolha dos<br />

parceiros baseada em critérios pessoais <strong>de</strong> afinida<strong>de</strong>, tais como amiza<strong>de</strong>, parentesco, religião e até<br />

etnia. 66 É essa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações pessoais que estrutura gran<strong>de</strong> parte da organização do trabalho<br />

portuário. Os indivíduos interagiam no plano pessoal em diferentes momentos, na “chamada livre” ou<br />

no processo <strong>de</strong> trabalho em si.<br />

65 Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit. 1998. p.170.<br />

66<br />

I<strong>de</strong>m. p. 53. A autora tira essas conclusões principalmente a partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> estivadores e arrumadores por ela<br />

entrevistados.<br />

90


Na “pare<strong>de</strong>”, os operários ficam “nas mãos” dos encarregados, e sua possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalho<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> outro indivíduo. Essa situação, associada ao fato <strong>de</strong> não haver barreiras à<br />

entrada <strong>de</strong> quem quer que seja na competição, <strong>de</strong>fine o comportamento dos portuários avulsos em um<br />

ambiente on<strong>de</strong> a competição faz parte <strong>de</strong> suas vidas. O comportamento daqueles homens se ligava à<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> obter vantagens, <strong>de</strong> colocar um indivíduo ou grupo em posição <strong>de</strong> privilégio em<br />

relação aos <strong>de</strong>mais, seja pela violência ou pelos mecanismos informais que pu<strong>de</strong>ssem diminuir a<br />

insegurança do processo <strong>de</strong> escolha na “pare<strong>de</strong>”. Essa situação gerava a maior parte dos conflitos que<br />

surgem no cais do <strong>porto</strong>, que opunham não só indivíduos, mas também grupos <strong>de</strong> indivíduos ou<br />

categorias profissionais.<br />

Por outro lado, diferentemente do que acontecia na “pare<strong>de</strong>”, o trabalho <strong>de</strong>ntro do navio ou nos<br />

armazéns era caracterizado pela cooperação entre os trabalhadores dos ternos. Durante o serviço, os<br />

homens interagiam diretamente e <strong>de</strong> forma personalizada. Feita a escolha dos braços, abandonava-se a<br />

lógica da competição e imperava a lógica do trabalho coletivo, salvo os casos <strong>de</strong> brigas que po<strong>de</strong>riam<br />

surgir entre os homens pelos mais diversos motivos.<br />

Como a lucrativida<strong>de</strong> dos armadores <strong>de</strong>pendia muito do tempo em que era feito o serviço<br />

(quanto mais rápido melhor, pois o navio ficaria menos tempo ancorado) as principais armas<br />

reivindicatórias que os estivadores tinham eram breves paralisações ou diminuição do ritmo <strong>de</strong><br />

trabalho. Como apontou Fernando Teixeira, essas táticas podiam forçar os empregadores a negociar<br />

imediatamente com os operários, para diminuir ao máximo a permanência do navio no <strong>porto</strong>. Segundo<br />

o autor, essas pequenas lutas, que na maioria das vezes não ganhavam as páginas dos jornais, podiam<br />

ser mais eficazes do que gran<strong>de</strong>s greves, que corriam os riscos <strong>de</strong> fracassarem ante a violência policial<br />

e às retaliações dos empregadores. 67<br />

Cientes <strong>de</strong> sua própria força, mas também <strong>de</strong> suas fraquezas, os avulsos chegaram à conclusão<br />

que o que os impedia <strong>de</strong> obter o controle total do trabalho no <strong>porto</strong> era justamente o processo <strong>de</strong><br />

contratação da mão-<strong>de</strong>-obra. Os grupos que tivessem o controle da contratação teriam o domínio <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong> parte do po<strong>de</strong>r no <strong>porto</strong>, <strong>de</strong>cidindo quem trabalhava e em que condições. A solução possível<br />

encontrada pelos operários para tentar resolver essa questão tornou-se uma ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> luta entre os<br />

portuários <strong>de</strong> várias cida<strong>de</strong>s: a Closed Shop. Esse sistema garantiria o controle da contratação do<br />

pessoal aos próprios trabalhadores, através <strong>de</strong> sindicatos fechados. E no mais, <strong>de</strong> acordo com a Closed<br />

Shop, o trabalhador sindicalizado tinha a total preferência na escolha <strong>de</strong> quem faria o serviço, ficando<br />

67 Silva, Fernando Teixeira da. Op. Cit. p. 171.<br />

91


muito difícil aos não-sindicalizados garantir um lugar ao sol. Dessa maneira, além do controle <strong>de</strong> todo<br />

o processo <strong>de</strong> trabalho, os operários também podiam ver diminuir consi<strong>de</strong>ravelmente a oferta <strong>de</strong> mão<strong>de</strong>-obra<br />

pelas barreiras estabelecidas à entrada <strong>de</strong> novos competidores. Essa tendência possibilitou a<br />

esses grupos controlarem a presença <strong>de</strong> um enorme exército industrial <strong>de</strong> reserva – os chamados<br />

“bagrinhos” – que eram responsabilizados pela <strong>de</strong>pressão dos salários. 68<br />

Figura 4<br />

Praça dos Estivadores, na Rua camerino, on<strong>de</strong> se situava a antiga se<strong>de</strong> da União Operária dos Estivadores<br />

Mas não foi tão fácil para os sindicatos do <strong>porto</strong> carioca a imposição da Closed Shop. A<br />

“pare<strong>de</strong>” não <strong>de</strong>sapareceu da cena portuária como num passe <strong>de</strong> mágica. Antes <strong>de</strong> sua consolidação e<br />

legitimação pelo patronato e pelos próprios trabalhadores, muitas barreiras foram encontradas pelo<br />

caminho. Algumas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m interna, já que o estatuto era rigoroso com os sindicalizados, prevendo<br />

punições para aqueles que o contrariavam. Muitas vezes o trabalhador não aceitava algumas regras e<br />

alguns conflitos acabavam surgindo entre eles próprios. E muitos ficaram <strong>de</strong> fora, pois não era<br />

“qualquer um” que po<strong>de</strong>ria ter seu nome nos quadros do sindicato. Para garantir a organização e a<br />

preferência do trabalho aos associados, o sindicato teve que “disciplinar” os operários e diminuir a<br />

multidão <strong>de</strong> homens da “pare<strong>de</strong>”. Assim, numa tentativa moralizadora da classe, criaram um<br />

regulamento que <strong>de</strong>veria ser obe<strong>de</strong>cido pelos sócios e excluíram aqueles que julgavam não ter bons<br />

antece<strong>de</strong>ntes. Em um ofício ao empreiteiro Charles Wallace, em 10 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1903, a União<br />

68 Os “bagrinhos” eram, no linguajar do <strong>porto</strong>, os trabalhadores não sindicalizados, comparando esses com o peixe que se<br />

alimenta dos restos do tubarão. O “tubarão”, no caso, seriam os sindicalizados. Ingrid Sarti apontou como <strong>de</strong>scriminação o<br />

privilégio concedido aos sindicalizados. Cf. Sarti, Ingrid. Op. Cit.<br />

92


dos Operários Estivadores, por exemplo, <strong>de</strong>clarava ter “por norma, moralizar o trabalho e abolir o<br />

emprego das violências”. 69<br />

Para se filiar àquela socieda<strong>de</strong> era preciso o indivíduo ser proposto por um outro sócio e ser<br />

aceito em sessão do Conselho, ouvida a comissão <strong>de</strong> sindicância. Segundo Ingrid Sarti, o sindicato<br />

estivador era uma “gran<strong>de</strong> família” que controlava seu mercado <strong>de</strong> trabalho 70 . Os laços <strong>de</strong> parentesco<br />

funcionavam como elemento importante quanto ao acesso a esta ocupação e, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, teve<br />

papel importante na manutenção dos <strong>negro</strong>s naquele espaço <strong>de</strong> trabalho. 71<br />

Essa direção afetava a própria vida cotidiana dos trabalhadores, gerando muitos<br />

<strong>de</strong>scontentamentos, principalmente entre os que não eram aceitos pelas organizações e viam diminuir<br />

suas chances <strong>de</strong> trabalho, revelando um certo caráter exclu<strong>de</strong>nte dos sindicatos portuários. Sobre essa<br />

exclusão, Sarti comentou que o privilégio concedido aos membros do sindicato provoca uma<br />

discriminação aos não sindicalizados, legitimando, assim, a coexistência <strong>de</strong> dois setores <strong>de</strong> uma<br />

mesma categoria da classe operária, setores que, segundo ela, são hierarquizados exclusivamente em<br />

função <strong>de</strong> pertencerem ou não ao sindicato. 72 Cruz rejeita completamente a qualificação <strong>de</strong><br />

exclu<strong>de</strong>ntes atribuída aos sindicatos portuários, consi<strong>de</strong>rando a Closed Shop uma luta legítima – e<br />

mesmo necessária – dos trabalhadores 73 . A meu ver, as duas autoras po<strong>de</strong>m ter alguma razão. Se, por<br />

um lado, o monopólio da mão-<strong>de</strong>-obra pelos sindicatos foi uma conquista extremamente importante<br />

para os trabalhadores, inclusive para o fortalecimento da classe frente aos empregadores, por outro,<br />

não é equivocado afirmar que muita gente ficou <strong>de</strong> fora e que esses não tiveram acesso aos benefícios<br />

dos que ficaram “<strong>de</strong>ntro”. Nem todo mundo fazia parte da “gran<strong>de</strong> família portuária” e muitos não<br />

estavam dispostos a obe<strong>de</strong>cer certas regras impostas pelos sindicatos.<br />

Como a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalho para os sindicalizados era muito maior do que para os não<br />

sindicalizados, estes passaram a ter que se contentar com as tarefas dispensadas pelos sócios do<br />

sindicato, que via <strong>de</strong> regra eram mal remuneradas 74 . É possível que alguns daqueles homens que foram<br />

69 Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit. 1998. p.264<br />

70 Sarti, Ingrid. Op. Cit. p. 24.<br />

71 O Livro <strong>de</strong> Matrículas dos sócios informa o nome do proponente. Não é difícil encontrar nesses livros, sócio e<br />

proponente com sobrenome comuns, indicando a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> haver grau <strong>de</strong> parentesco entre eles.<br />

72 Sarti, Ingrid. Op. Cit. p. 28.<br />

73 Sarti coloca que essa situação é fruto da legislação corporativista <strong>de</strong> Vargas. No entanto, essa é uma conquista dos<br />

trabalhadores do <strong>porto</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro obtidas já nas primeiras década do XX, através <strong>de</strong> luta É a chamada “questão dos<br />

bagrinhos”, mencionada páginas atrás, e que nos anos 60 opôs sindicalizados e não sindicalizados em gran<strong>de</strong> conflito<br />

político.<br />

74 João do Rio <strong>de</strong>screve imigrantes portugueses que trabalhavam na carga <strong>de</strong> carvão e manganês na Ilha da Conceição e que<br />

sujeitavam-se a trabalhar horas a fio em troca <strong>de</strong> salários <strong>de</strong> miséria. do Rio, João “A fome negra”, in: A alma encantadora<br />

das ruas. Op. Cit.<br />

93


presos no Cais dos Mineiros na noite <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1909 fossem justamente alguns <strong>de</strong>sses que<br />

ficaram <strong>de</strong> fora dos sindicatos<br />

Mas além dos conflitos internos, outra barreira enfrentada pelo sindicato foi a resistência dos<br />

empreiteiros, que não viam com bons olhos a interferência dos trabalhadores na gestão da mão-<strong>de</strong>obra.<br />

A existência da “pare<strong>de</strong>” para eles era bastante conveniente, pois quanto maior a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

pessoas disputando aquele trabalho, maior o po<strong>de</strong>r dos contratadores, que po<strong>de</strong>riam pagar salários<br />

ínfimos, além <strong>de</strong> contar com a oferta <strong>de</strong> novos braços em qualquer situação adversa, como nos casos<br />

<strong>de</strong> greve. Em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1903, os jornais passam a noticiar o que po<strong>de</strong>mos chamar <strong>de</strong> uma<br />

verda<strong>de</strong>ira guerra entre a União dos Operários Estivadores e o empresário da estiva Levi Andrews e<br />

seu sócio Charles Wallace. No dia 17 daquele mês, o jornal comenta que os estivadores estavam sendo<br />

perseguidos e explorados pelo Sr. L. Andrews que, além <strong>de</strong> pagar salários incompatíveis com o horário<br />

<strong>de</strong> trabalho estipulado, para maior <strong>de</strong>sgosto dos trabalhadores da estiva “impõe-lhes para<br />

companheiros indivíduos como Cardosinho, ainda há pouco pela polícia preso no próprio trabalho, e lá<br />

mantém ainda (...) o preto João, já passado na 1 a e 3 a <strong>de</strong>legacias policiais, e um tal Benjamim, vulgo<br />

Cabo Ver<strong>de</strong>, que acaba <strong>de</strong> cumprir sentença”. O jornal continua, afirmando, aproveitando-se do fato da<br />

União excluir <strong>de</strong> seus quadros esses “maus elementos”, o Sr. Andrews “aliciou um grupo <strong>de</strong> sujeitos<br />

que sob as or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong>sses famigerados preten<strong>de</strong>m não só, talvez, agredir os (...) trabalhadores, como<br />

substituí-los em caso <strong>de</strong> se <strong>de</strong>clararem em greve”. 75<br />

O que estava acontecendo fica muito claro nas páginas da imprensa e foi relatado por Cruz: a<br />

firma empreiteira L. S. Andrews, reagindo contra os ganhos conquistados pelos estivadores na última<br />

greve e contra a própria União dos Operários Estivadores, passou a boicotar os sócios <strong>de</strong>ste sindicato,<br />

impondo a presença <strong>de</strong> outros não muito queridos. No dia 18 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro, o jornal A Nação publica<br />

uma notícia que afirma textualmente que o Sr. Wallace, guardado por capangas, estava diariamente<br />

tentando impedir que “homens que têm na estiva <strong>de</strong>z, doze, quatorze anos <strong>de</strong> trabalho, continuem a<br />

ganhar honestamente a vida.” Dizia ainda que o mesmo Sr. Wallace resolvera “organizar, sob intuitos<br />

<strong>de</strong> beneficiência, uma outra (organização), com conhecidos ladrões como o célebre Cardosinho e<br />

outros <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iros, afim <strong>de</strong> vencê-los pela fome!” 76<br />

Aproveitando os ressentimentos surgidos em virtu<strong>de</strong> da política disciplinadora e da exclusão <strong>de</strong><br />

alguns elementos da formação da União, alguns empreiteiros fomentaram o surgimento <strong>de</strong> uma outra<br />

associação, que teria o papel <strong>de</strong> se contrapor e mesmo ameaçar aquela associação, dividindo a estiva<br />

75 Correio da Manhã, 17/12/1903. p. 2. Apud. Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit. 1998. p. 266.<br />

94


em dois blocos inimigos. Foi assim que, em 27 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1903 – dia em que a União Operária<br />

dos Estivadores foi instalada na Rua Senhor dos Passos – foi fundada, na Rua da Saú<strong>de</strong>, a Socieda<strong>de</strong><br />

Regeneradora e Beneficente dos Estivadores. 77<br />

As tensões entre as duas socieda<strong>de</strong>s eram permanentes. Menos <strong>de</strong> um mês <strong>de</strong>pois da fundação da<br />

Socieda<strong>de</strong> Regeneradora, dois lí<strong>de</strong>res da União dos Estivadores escrevem para o jornal operário A<br />

Nação, criticando a ação daquela socieda<strong>de</strong>:<br />

“(...) Essa associação (Socieda<strong>de</strong> Regeneradora), segundo verificamos, é composta <strong>de</strong> indivíduos estranhos à classe,<br />

que não po<strong>de</strong>m, portanto, intervir em nosso trabalho. A prova disso está no Sr. Capitão Tibúrcio José <strong>de</strong> Lemos, que<br />

nunca se <strong>de</strong>dicou a nossa profissão, como provaremos, se preciso for. Esse Sr. e outros, patrocinados pelo Sr. Carlos<br />

Wallace, (...) querem concular (sic) o direito <strong>de</strong> uma classe inteira em que existem mais ou menos 700 homens,<br />

talvez ignorantes das mo<strong>de</strong>rnas normas <strong>de</strong> civilização, mas dispostos a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o seu direito que positivamente não<br />

é o <strong>de</strong> se curvarem servilmente à vonta<strong>de</strong> e caprichos dos exploradores <strong>de</strong> seu trabalho honrado.” 78<br />

Mas é no ano <strong>de</strong> 1905 que os conflitos explo<strong>de</strong>m e ganham as ruas. Em 27 <strong>de</strong> abril, ocorre o<br />

primeiro conflito grave entre a União dos Operários Estivadores e a Socieda<strong>de</strong> Regeneradora e<br />

Beneficente dos Estivadores em torno <strong>de</strong> um trabalho <strong>de</strong> <strong>de</strong>scarga <strong>de</strong> sacas <strong>de</strong> arroz, trazidos pelo<br />

vapor Inglês “Arroyo”. Substituídos naquele serviço pelos sócios da socieda<strong>de</strong> inimiga 79 , alguns<br />

membros da União partiram abertamente para a luta, invadindo o navio em que se realizava o<br />

<strong>de</strong>scarregamento <strong>de</strong> arroz pelos membros da Socieda<strong>de</strong> Regeneradora. A luta se generalizou no convés<br />

do “Arroyo” e ao final, quando a polícia chegou no local, efetuando algumas prisões, sobraram no<br />

navio alguns feridos e um morto. No dia do enterro <strong>de</strong> Achilles Bello, sócio da União Operária dos<br />

Estivadores, havia muitos boatos <strong>de</strong> que o temido Cardosinho chefiaria um grupo <strong>de</strong> sócios da<br />

Socieda<strong>de</strong> Regeneradora para atacar a se<strong>de</strong> da União, mas nada aconteceu. No entanto, um sócio da<br />

União foi agredido por dois membros da socieda<strong>de</strong> inimiga em um botequim da Rua da Saú<strong>de</strong>. O<br />

enterro foi acompanhado por mais <strong>de</strong> 500 estivadores, comparecendo também representantes <strong>de</strong><br />

76<br />

A Nação, 18/12/1903. p. 1. Apud. Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit. 1998. p. 267.<br />

77<br />

I<strong>de</strong>m. p. 268.<br />

78<br />

União dos Operários Estivadores. Coluna “Mundo Operário”. A Nação. 22/01/04.<br />

79<br />

Como relatou Cruz, o agente Herm Stoltz & Cia confiara a <strong>de</strong>scarga das sacas ao empreiteiro David E. Brow, que<br />

contratara os serviços com a União dos Estivadores na base <strong>de</strong> <strong>de</strong>z sacos a lingada. Dias <strong>de</strong>pois, com o trabalho já em<br />

andamento, o Sr. Brow procurou o fiscal do sindicato para dizer que agora queria que o terno fizesse o serviço a doze sacos<br />

a linguada. Não tendo sucesso, o tal Sr. Brow apelou para a Socieda<strong>de</strong> Regeneradora, que aceitou as condições,<br />

contrariando o “Regulamento sobre Lingadas”, aprovado em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1903 pela União. Os sócios da União foram<br />

pagos pelo tempo trabalhado e em seguida substituídos pelos da socieda<strong>de</strong> inimiga, gerando o conflito. Cruz, Maria Cecília<br />

Velasco e. Op. Cit. 1998. p. 271.<br />

95


diversas outras associações, como da Fe<strong>de</strong>ração das Associações <strong>de</strong> Classe, da União Auxiliadora dos<br />

Artistas Sapateiros, Centro Internacional dos Pintores, Associação <strong>de</strong> Resistência dos Marinheiros e<br />

Remadores, Associação <strong>de</strong> Resistência dos Trabalhadores em Carvão e Mineral, entre outras, dando<br />

provas da legitimida<strong>de</strong> da União dos Operários Estivadores frente às outras organizações do<br />

movimento sindical do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Em Maio <strong>de</strong> 1905, uma onda <strong>de</strong> protestos sacudiu a cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, envolvendo várias<br />

categorias <strong>de</strong> trabalhadores. No dia 29, explo<strong>de</strong> a greve dos canteiros pelas oito horas <strong>de</strong> trabalho e<br />

uma semana <strong>de</strong>pois, a 6 <strong>de</strong> junho, a<strong>de</strong>riram os alfaiates. Em 11 <strong>de</strong> junho, marinheiros e remadores, que<br />

dividiam a se<strong>de</strong> com os estivadores, fizeram um comício on<strong>de</strong> lançam a idéia <strong>de</strong> organizar uma<br />

Fe<strong>de</strong>ração Geral <strong>de</strong> Transportes Marítimos e Terrestres. No dia 16 entram em greve juntamente com os<br />

trabalhadores <strong>de</strong> carvão e conclamam à greve geral todas as classes anexas. Os estivadores da União<br />

<strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m, neste mesmo dia, a<strong>de</strong>rir à greve em solidarieda<strong>de</strong> aos trabalhadores do carvão e aos<br />

estivadores do <strong>porto</strong> <strong>de</strong> Santos, lutando principalmente pelas oito horas <strong>de</strong> trabalho. A greve acirrou os<br />

ânimos entre a União Operária e a Socieda<strong>de</strong> Regeneradora Beneficente dos Estivadores, que se<br />

colocou à disposição dos empregadores para furar a greve e <strong>de</strong>sempenhar os trabalhos da estiva,<br />

aumentando as tensões entre as duas socieda<strong>de</strong>s.<br />

Nos meses <strong>de</strong> agosto e outubro, novos conflitos ocorrem, muitos li<strong>de</strong>rados pelo Cardosinho. No<br />

entanto, após todos os conflitos, a Socieda<strong>de</strong> Regeneradora <strong>de</strong>saparece da cena portuária nos anos que<br />

se seguiram à greve <strong>de</strong> 1905, enquanto a União Operária continua a luta no cais. E foi <strong>de</strong>sta luta, surgiu<br />

a Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, fundada “sob os auspícios da União<br />

dos Operários Estivadores”.<br />

Como a mão-<strong>de</strong>-obra portuária era organizada em diversos setores e ofícios, conviviam,<br />

naquele espaço, estivadores, arrumadores, trabalhadores do carvão mineral, trabalhadores em trapiche<br />

e café, foguistas, guindasteiros, conferentes, feitores, enfim, um sem números <strong>de</strong> categorias. Dada às<br />

especificida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>les, foi muito difícil a organização em sindicatos únicos, havendo,<br />

portanto, uma diferença na organização do trabalho <strong>de</strong> cada categoria portuária. Contudo, existia uma<br />

tendência <strong>de</strong> aproximação entre as categorias que exerciam serviços afins, como é caso dos estivadores<br />

e os arrumadores trabalhadores em trapiche e café. A solidarieda<strong>de</strong> se dava pela semelhança nas<br />

reivindicações, norteadas pelas características semelhantes dos trabalhos, pois, como já foi dito, as<br />

duas categorias atuavam na carga e <strong>de</strong>scarga das mercadorias, diferindo somente o local <strong>de</strong> trabalho:<br />

96


estivadores se ocupavam do interior dos navios enquanto os arrumadores estavam no interior dos<br />

armazéns. 80<br />

As lutas da União Operária dos Estivadores faziam parte <strong>de</strong> um trabalho mais amplo, que<br />

envolvia não apenas a sua própria organização, mas também <strong>de</strong> outras categorias portuárias. Assim,<br />

em 9 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1904 foi fundada, em uma reunião na se<strong>de</strong> da União dos Estivadores, a<br />

“Socieda<strong>de</strong> União dos Trabalhadores <strong>de</strong> Café”, cuja diretoria era constituída por três portugueses<br />

(Secretário Geral, Segundo Secretário e Tesoureiro) e dois procuradores <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sconhecida. No entanto, <strong>de</strong> acordo com informações dos jornais, ao contrário da Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Resistência dos Trabalhadores em Carvão Mineral, também fundada na se<strong>de</strong> dos estivadores, a<br />

socieda<strong>de</strong> dos trabalhadores do café não vingou <strong>de</strong>ssa vez.<br />

Meses <strong>de</strong>pois, no entanto, surgiu aquela que talvez tenha sido o maior fruto <strong>de</strong>ssa ação<br />

organizativa da União dos Estivadores: a Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e<br />

Café. Fundada por iniciativa <strong>de</strong> Cândido Manuel Rodrigues em 15 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1905, também na se<strong>de</strong><br />

dos estivadores, essa socieda<strong>de</strong> congregava não só os trabalhadores <strong>de</strong> tropa empregados nos armazéns<br />

<strong>de</strong> café, mas também os trabalhadores dos trapiches e, tal qual a União dos Estivadores, funcionava no<br />

sistema <strong>de</strong> closed shop. Mas pouco se sabe sobre as sua ativida<strong>de</strong>s até agosto <strong>de</strong> 1906, quando uma<br />

nova greve pelo aumento na tabela <strong>de</strong> preços explodiu no <strong>porto</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro. 81<br />

Após meses <strong>de</strong> luta, que incluiu confrontos com as autorida<strong>de</strong>s policiais, os grevistas<br />

(carregadores, trabalhadores do setor cafeeiro e estivadores) saíram vitoriosos. A Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, fundada há pouco mais <strong>de</strong> um ano, encabeçara essa<br />

vitória, conquistando <strong>de</strong>finitivamente seu espaço no cais. Não é <strong>de</strong> se estranhar que em janeiro <strong>de</strong><br />

1907, poucos meses <strong>de</strong>pois do fim <strong>de</strong>finitivo da greve 82 , ainda no calor dos acontecimentos, Raphael<br />

Munhões, fiscal da “Resistência”, tenha entrado em conflito com alguns homens que estavam fazendo<br />

um trabalho <strong>de</strong> <strong>de</strong>scarga no Cais da Estação Marítima, alegando que “aquele trabalho só po<strong>de</strong>ria ser<br />

feito pelos sócios da Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café”. Essa cena só<br />

mostra como os homens da “Resistência” buscaram assegurar seu lugar no cais como sindicato<br />

fechado, on<strong>de</strong> a escolha dos sócios <strong>de</strong>veria ser garantida. No entanto, para alcançarem esse espaço era<br />

preciso que a socieda<strong>de</strong> se impusesse não só ao patronato, mas também aos trabalhadores que não<br />

80 Albuquerque, Marli Brito <strong>de</strong>. Op. Cit. p.78.<br />

81 Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit. Afro-Ásia (2000). pp. 243-290.<br />

82 Em setembro, a greve some das páginas da imprensa. Não é possível saber, com certeza, a data do fim da greve, mas<br />

possivelmente foi na segunda meta<strong>de</strong> do outubro mês <strong>de</strong> outubro, já que o Correio da Manhã <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong> outubro fala da<br />

greve como “ainda não terminada <strong>de</strong> todo”.<br />

97


faziam parte <strong>de</strong> seus quadros. Para tanto, foi preciso muita luta que, por vezes, acabava se traduzindo<br />

no dia-a-dia em formas violentas <strong>de</strong> ação, que seguiam <strong>de</strong> perto os códigos <strong>de</strong> conduta e os valores<br />

daquele universo masculino.<br />

No entanto, o que realmente importa nisso tudo é perceber como o “Resistência”, assim como a<br />

“União”, se estruturou e se afirmou no cais do <strong>porto</strong> <strong>de</strong> maneira tão rápida e eficiente, impondo sua<br />

presença em um mercado <strong>de</strong> trabalho saturado, on<strong>de</strong> a oferta <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra não especializada era<br />

farta. Prova <strong>de</strong>ssa legitimida<strong>de</strong> foi uma matéria que o jornal Correio da Manhã publicou, no dia 14 <strong>de</strong><br />

outubro <strong>de</strong> 1906, contendo fotos da festa <strong>de</strong> inauguração e do estandarte do Resistência. Assim dizia o<br />

jornal:<br />

“fundada a 15 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1905, sob os auspícios da União dos Estivadores, ganhou bem cedo vida própria e<br />

autônoma (...) Aumentou seu prestígio e valimento <strong>de</strong>cretando a greve geral nos trapiches e nas casas <strong>de</strong> café, em<br />

13/08/1906. Neste trabalho foi eficazmente auxiliado pelo advogado Evaristo <strong>de</strong> Moraes, a quem uma assembléia<br />

conce<strong>de</strong>u o título <strong>de</strong> sócio comum, por não querer o mesmo profissional honras nem distinções no seio da socieda<strong>de</strong><br />

operária. Presentemente, e em razão da greve (ainda não terminada <strong>de</strong> todo) obtêm os carregadores – quase todos<br />

sócios da “Resistência”(como eles lhes chamam) – salários relativamente elevados (...) De acordo com um pacto <strong>de</strong><br />

solidarieda<strong>de</strong> firmado entre as respectivas diretorias por <strong>de</strong>liberações <strong>de</strong> assembléias gerais, são material e<br />

moralmente solidários com a “Associação”, as co-irmãs dos foguistas, estivadores, carvoeiros, marinheiros e<br />

remadores, dos carroceiros e cocheiros. (...)”. 83<br />

Esse pequeno artigo indica o prestígio da Socieda<strong>de</strong> perante aquele jornal e os entre os próprios<br />

trabalhadores. Acompanhando o artigo está uma foto <strong>de</strong> cinco membros da diretoria do Resistência ao<br />

lado <strong>de</strong> Evaristo <strong>de</strong> Moraes. Na foto, além do advogado, que era mulato, estão mais três homens<br />

<strong>negro</strong>s, os diretores do sindicato. Essa foto é representativa da cor dos sócios daquele sindicato como<br />

um todo. Analisando as fichas dos sindicalizados, on<strong>de</strong> estavam anexadas fotos <strong>de</strong> cada um, Cruz<br />

comprovou que os brancos representavam apenas 23,5 % do total dos registrados até o ano <strong>de</strong> 1929. 84<br />

Os pretos compunham 62,3% do total e os pardos 14,2%, como indicados na Tabela I. Não é por acaso<br />

que, nos primeiros anos do século XX, a “Resistência” tenha ficado conhecido como “Companhia dos<br />

Pretos”. 85<br />

83 Correio da Manhã, 14/10/1906. p.3<br />

84 A autora trabalha com amostras. Assim, essa análise é feita a partir <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> 353 fichas.<br />

85 Apelido atribuído ao sindicato por Roberto Moura. Infelizmente, o autor não indica a sua fonte. Moura, Roberto. Tia<br />

Ciata. e a Pequena África no Rio <strong>de</strong> Janeiro.Rio <strong>de</strong> Janeiro: Secretaria Municipal <strong>de</strong> Cultura, 1995. p. 71.<br />

98


Figura 5<br />

Diretoria da Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café junto à Evaristo <strong>de</strong> Moraes<br />

A presença dos <strong>negro</strong>s também se faz sentir com ênfase entre os Estivadores. Ao contrário do<br />

caso do “Resistência”, não temos dados sobre a origem étnica dos sócios da União dos Estivadores. No<br />

entanto, por funcionar como sindicato fechado (e a julgar pelo pouco tempo que a socieda<strong>de</strong><br />

concorrente atuou no <strong>porto</strong>) os registros <strong>de</strong> presos na Casa <strong>de</strong> Detenção novamente nos foi útil para<br />

visualizar a cor <strong>de</strong> seus sócios. 86 Verificando as entradas na Detenção entre os anos <strong>de</strong> 1901 e 1910,<br />

apenas 29% dos estivadores presos são brancos, enquanto 32,6% são pretos e 28,5% pardos, como<br />

indicados na Tabela I.<br />

99


TABELA I<br />

Membros da Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café<br />

Brancos Pretos Pardos Total<br />

Brasileiros 40 219 50 309 (87,5%)<br />

Portugueses 25 --- --- 25 (7,1%)<br />

Italianos 18 --- --- 18 (5,1%)<br />

Africanos --- --- --- 1 (0,3%)<br />

Percentagem 23,5% 62,3% 14,2% 353 (100%)<br />

Fonte : Maria Cecília Velasco e Cruz, "Tradições Negras na Formação <strong>de</strong> um Sindicato" (Áfro-Ásia, 24,<br />

2000). A autora se baseia nas Fichas <strong>de</strong> Sócios da Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência dos Trabalhadores em<br />

Trapiche e Café, encontradas no arquivo morto da mesma socieda<strong>de</strong>.<br />

TABELA J<br />

Estivadores Presos na Casa <strong>de</strong> Detenção, por cor (1901-1910)<br />

Cor Números Percentagens<br />

Brancos 56 29%<br />

Pretos 63 32,6%<br />

Pardos 55 28,5%<br />

Morenos 16 8,3%<br />

Fulos e Caboclos 3 1,6%<br />

Fonte : Livro <strong>de</strong> Registro <strong>de</strong> Entrada <strong>de</strong> Presos na Casa <strong>de</strong> Detenção do Rio <strong>de</strong> Janeiro - APERJ<br />

86<br />

No entanto, é preciso levar em conta que os números serão apenas uma estimativa, não representando uma realida<strong>de</strong><br />

incontestável.<br />

100


É preciso lembrar mais uma vez que, mais do que representar a realida<strong>de</strong> da composição étnica<br />

daqueles trabalhadores, esses números po<strong>de</strong>m apenas indicar que a repressão foi mais forte quando se<br />

tratava <strong>de</strong> pretos e pardos (como mostramos no cap. 1). No entanto, eles são condizentes com o perfil<br />

dos trabalhadores que formaram a maior parte da mão-<strong>de</strong>-obra estivadora no século XIX : os<br />

marítimos que atuavam na cabotagem e no tráfico interno dos <strong>porto</strong>s nacionais no século XIX.<br />

Segundo os mapas estatísticos da Capitania dos Portos da cida<strong>de</strong>, em 1865, 52,5% da tripulação<br />

das embarcações <strong>de</strong> cabotagem da então província era formada por pretos e pardos, <strong>de</strong>ntre os quais,<br />

80% eram escravos. Dos 47,5% <strong>de</strong> brancos, 72% eram estrangeiros. Já no que diz respeito ao tráfego<br />

interno do <strong>porto</strong>, os homens <strong>de</strong> cor somavam 74%, sendo que nada menos do que 90,2% <strong>de</strong>stes eram<br />

escravos. Dos poucos brancos (26%) que atuavam nesses setores, apenas 11,2% eram brasileiros. 87<br />

Essas informações são extremamente relevantes se levarmos em conta que esses mesmos homens, mais<br />

tar<strong>de</strong>, com as mudanças provocadas pela chegada do vapor, farão parte da mão-<strong>de</strong>-obra estivadora.<br />

Isso porque os marinheiros, amplamente utilizados nos navios à vela, por muitas vezes <strong>de</strong>sciam aos<br />

porões para trabalhar nos volumes que estavam sendo arrumados pelos grupos <strong>de</strong> estivadores. Quando,<br />

em fins do século XIX, os navios a vapor passaram a fazer parte do cotidiano portuário, esses<br />

embarcadiços ficaram praticamente sem função. Ao mesmo tempo, a <strong>de</strong>manda da mão-<strong>de</strong>-obra<br />

estivadora cresceu, empurrada pelos altos custos dos vapores e sua regularida<strong>de</strong> no mar, exigindo que<br />

o trabalho fosse feito rapidamente. Com isso, gran<strong>de</strong> parte daqueles marinheiros sem trabalho, na<br />

maioria <strong>negro</strong>s, foram fazer parte da comunida<strong>de</strong> estivadora. 88<br />

Esses dados po<strong>de</strong>m ajudar a esclarecer os motivos da União dos Estivadores terem “vingado”<br />

no <strong>porto</strong>, ao contrário da Socieda<strong>de</strong> Regeneradora. Maria Cecília Velasco Cruz, usando <strong>de</strong> metáfora,<br />

afirmou que isso acontece porque a União “estava plantada em um solo mais firme”. 89 Para a autora, o<br />

"solo" em que estavam plantadas as raízes dos estivadores que faziam parte da União Operária era o da<br />

experiência dos trabalhadores escravos que faziam aquele serviço e a força daquele sindicato se explica<br />

justamente pelas re<strong>de</strong>s informais <strong>de</strong> comunicação e saberes compartilhados há muito tempo. Se<br />

buscarmos conhecer mais <strong>de</strong> perto os fundadores da União, veremos que Joaquim Januário Nunes 90 era<br />

um preto nascido provavelmente em 1871, ou seja, viveu parte <strong>de</strong> sua vida em uma socieda<strong>de</strong><br />

87<br />

Dados levantados por Maria Cecília Velasco e Cruz. Afro-Ásia (2000). p. 271.<br />

88<br />

Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit. Afro-Ásia (2000). p.273-274.<br />

89<br />

I<strong>de</strong>m, p. 275.<br />

90 o<br />

AN - Registro da União dos Operários Estivadores. 1 Ofício <strong>de</strong> Títulos e Documentos. Livro. A-1<br />

101


escravista. 91 Veremos também que um dos sócios fundadores, o preto João Evangelista Lapier,<br />

nascera em 1919! Segundo o estivador Luiz Gustavo <strong>de</strong> Almeida, Lapier tinha 84 anos quando<br />

participou da fundação da União, em 1903 e morreu com 115 anos, ainda trabalhando... 92<br />

A Socieda<strong>de</strong> Regeneradora, ao contrário, tendo sido fundada pelo patronato para fazer frente à<br />

União e composta <strong>de</strong> pessoas “estranhas à classe”, para usar uma expressão da época, não se sustentou<br />

no cais do <strong>porto</strong>.<br />

Figura 6<br />

João Evangelista Lapier – sócio fundador da União dos Estivadores<br />

Esses dados talvez possam explicar também porque uma primeira tentativa <strong>de</strong> organização dos<br />

trabalhadores em trapiche e café não <strong>de</strong>u certo e a segunda sim. Vimos poucas páginas atrás que na<br />

primeira tentativa, a diretoria era composta <strong>de</strong> uma maioria <strong>de</strong> estrangeiros e a segunda foi por<br />

iniciativa <strong>de</strong> Cândido Manoel Rodrigues, que fundou a Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência dos Trabalhadores em<br />

Trapiche e Café. Assim como Joaquim Januário Nunes, “seu Cândido” também era um homem <strong>negro</strong>,<br />

este nascido em Macaé, Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro, no ano <strong>de</strong> 1869, antes mesmo da Lei do Ventre<br />

Livre. Uma rápida olhada no Livro <strong>de</strong> Matrícula on<strong>de</strong> estão os primeiros sócios daquela socieda<strong>de</strong><br />

91 Informação tirada <strong>de</strong> um processo por agressão que este sofreu em 1905, on<strong>de</strong> consta ter 34 anos.<br />

92 Almeida, Luiz Gustavo Nascimento <strong>de</strong>. Op. Cit. (ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> fotos, s/p.)<br />

102


mostra que ele não era o único nacional a nascer em tempos <strong>de</strong> escravidão 93 . Isso indica que a primeira<br />

tentativa partiu <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> indivíduos que não estavam completamente inseridos no processo <strong>de</strong><br />

organização do trabalho, visto que a maioria <strong>de</strong>les eram portugueses. Provavelmente, os homens que<br />

fundaram a primeira socieda<strong>de</strong> não estavam completamente inseridos na re<strong>de</strong> relações construídas<br />

pelos <strong>negro</strong>s já nos tempos <strong>de</strong> escravidão e, por isso, não tenham conseguido se sustentar na<br />

organização da mão-<strong>de</strong>-obra. 94<br />

Não temos informações sobre a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outros fundadores <strong>de</strong> sindicatos portuários, mas esses<br />

indícios são importantes não somente para constatar o quanto os <strong>negro</strong>s conseguiram se manter<br />

naquele setor, mesmo com a acirrada competição pelo mercado <strong>de</strong> trabalho. Eles são importantes<br />

também para pensarmos que aqueles homens, que por muito tempo foram associados à escravidão – e<br />

conseqüentemente ao <strong>de</strong>spreparo para o trabalho livre – souberam se organizar e lutar pelos seus<br />

interesses <strong>de</strong> classe. Não se po<strong>de</strong> mais <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar o valor da experiência escrava na organização dos<br />

trabalhadores livres, até porque já não é <strong>de</strong> hoje que a figura do escravo apático e submisso está<br />

ce<strong>de</strong>ndo lugar ao escravo que resistiu à escravidão <strong>de</strong> várias formas. E se entre essas formas <strong>de</strong> luta<br />

escrava estavam gran<strong>de</strong>s rebeliões, houve também os pequenos embates cotidianos, não menos<br />

eficazes, válidos ou importantes para explicar os significados da experiência <strong>de</strong> homens e mulheres<br />

que vivenciaram o cativeiro e sonharam com a liberda<strong>de</strong>.<br />

Se <strong>de</strong>rmos uma olhada em alguns relatos <strong>de</strong> viajantes, veremos que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a primeira meta<strong>de</strong> do<br />

XIX, os escravos <strong>de</strong> ganho que trabalhavam no <strong>porto</strong> carioca não só dominaram o mercado <strong>de</strong><br />

carregamento <strong>de</strong> café, como também impuseram uma maneira própria <strong>de</strong> organização do trabalho,<br />

estando longe <strong>de</strong> representar a figura dos <strong>negro</strong>s apáticos e submissos que dominou a literatura da<br />

escravidão durante muito tempo. Henry Chamberlain, por exemplo, referiu-se <strong>de</strong>ssa maneira aos<br />

<strong>negro</strong>s carregadores que faziam ponto na Rua Direita, perto da Alfân<strong>de</strong>ga:<br />

“(...) Esses homens são geralmente escravos que trabalham para seus senhores (...) Quando o peso é muito gran<strong>de</strong><br />

para um único homem o volume é suspenso a um <strong>de</strong>sses paus e carregado por dois indivíduos; com fardos ainda<br />

mais pesados, quatro, seis ou até mais pessoas são chamadas. Um <strong>de</strong>les, geralmente negocia pelo grupo e age<br />

como seu lí<strong>de</strong>r ou, como é chamado, capataz”. 95<br />

93 Livro <strong>de</strong> Matrícula dos sócios da Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café<br />

94 Cruz, Maria Cecília Velasco e. 1998. Op. Cit.<br />

95 Chamberlain, Sir Henry. Views and Costumes of the City and Neighbourhood of Rio <strong>de</strong> Janeiro. Londres: Howlett and<br />

Brimmer Columbian Press, 1822. Apud Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit. Afro-Ásia(2000). p. 257.<br />

103


Baseando-se nas narrativas <strong>de</strong> Mary Graham, que aqui esteve em 1822, Mary Karash conta ainda<br />

que, quando transportavam cargas pesadas, os escravos<br />

“trabalhavam em grupos, com um <strong>de</strong>les servindo <strong>de</strong> lí<strong>de</strong>r. Enquanto caminhavam, o capitão dançava e marcava o<br />

tempo com um chocalho ou duas peças <strong>de</strong> ferro e cantava uma canção africana, acompanhada em coro pelo grupo<br />

(...) um dos trabalhos <strong>de</strong> carregador mais prestigiosos e lucrativos estava no <strong>porto</strong> e na alfân<strong>de</strong>ga, como estivador<br />

(...) o trabalho <strong>de</strong> estivador era uma das ativida<strong>de</strong>s braçais mais lucrativas e <strong>de</strong> status mais alto”. 96<br />

Também baseando-se nas histórias dos viajantes, a historiadora Manuela Carneiro da Cunha<br />

comentou sobre a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compra <strong>de</strong> alforria e das solidarieda<strong>de</strong>s que por vezes se formavam<br />

entre grupos <strong>de</strong> escravos <strong>de</strong> ganho, especialmente os carregadores. Em suas palavras,<br />

“além da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer trabalhos extras, <strong>de</strong> escon<strong>de</strong>r seus ganhos reais, podiam construir solidarieda<strong>de</strong>s<br />

eficazes com membros <strong>de</strong> seu “canto”. Ora, o canto tinha funções <strong>de</strong> consórcio, <strong>de</strong> associação <strong>de</strong> auxílio mútuo<br />

para alforria <strong>de</strong> seus membros. Os carregadores <strong>de</strong> café minas, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, que tinham o monopólio <strong>de</strong>sse<br />

ramo, por exemplo, adiantavam dinheiro para a alforria uns dos outros (...)” 97<br />

Além <strong>de</strong> indicarem a forte presença dos ganhadores no sistema portuário, os relatos sugerem<br />

que a organização do serviço era feita <strong>de</strong> uma forma muito particular, com os escravos formando<br />

grupos que seguiam um lí<strong>de</strong>r ao som <strong>de</strong> músicas africanas. O trabalho coletivo era estruturado pelos<br />

próprios <strong>negro</strong>s. Eram eles que negociavam as tarefas, <strong>de</strong>cidiam o tamanho das turmas <strong>de</strong> acordo com<br />

o tamanho do volume a ser carregado, enfim, eram “sujeitos plenos da ação” 98 . Ao se organizarem<br />

coletivamente, ao som <strong>de</strong> músicas africanas, estabelecendo um ritmo ao trabalho nas ruas da cida<strong>de</strong>, os<br />

africanos imbuíam o trabalho urbano com elementos <strong>de</strong> sua cultura, como também acontecia <strong>de</strong> forma<br />

semelhante na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Salvador, como apontou Reis. 99<br />

Os relatos informam também que aqueles homens se organizavam na busca pela liberda<strong>de</strong>.<br />

Parte fundamental nessa luta eram os fortes laços <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> que os uniam. No entanto, já na<br />

segunda meta<strong>de</strong> do século XIX é possível encontrar vestígios da organização <strong>de</strong> escravos ganhadores<br />

do <strong>porto</strong> carioca com outros fins. No dia 3 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1872, por exemplo, o Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

trazia a seguinte notícia:<br />

96 Karash, Mary. Op. Cit. p. 264.<br />

97 Cunha, Manuela Carneiro da. Op. Cit. p. 34.<br />

98 Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit. Afro-Ásia(2000). p. 260.<br />

99 Reis, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês(1835). São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 358.<br />

104


“Os pretos carregadores também fizeram a sua “pare<strong>de</strong>”, mas à moda da Costa da Mina, isto é, ao som dos cacetes<br />

e <strong>de</strong> gritarias quase selvagens. A causa foi terem exigido mais 20 réis pelo carreto <strong>de</strong> carne-seca aos negociantes<br />

do gênero, e terem este <strong>de</strong>liberado substituí-los por homens livres. Hontem, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1 hora da tar<strong>de</strong>, reunira-se<br />

mais <strong>de</strong> 50 na Praça das Marinhas, quando os trabalhadores brancos estavam fazendo <strong>de</strong>scarga e opuseram-se a<br />

que efetuassem. Travou-se luta (...) os agressores eram sete escravos e um preto liberto(...) 100<br />

O que esse episódio indica é que, aqui, os escravos estavam reunidos e organizados em torno <strong>de</strong><br />

uma reivindicação típica <strong>de</strong> trabalhadores livres: o aumento no valor <strong>de</strong> seus serviços. Para isso,<br />

lançavam mão <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> luta também típica <strong>de</strong> operários: a greve. 101 Difícil não pensar que<br />

durante muito tempo, os <strong>negro</strong>s foram excluídos da história do trabalho no Brasil, como se eles não<br />

tivessem uma história também como trabalhadores.<br />

Esse episódio, assim como aquele citado no início do capítulo, já serviu a alguns estudos como<br />

exemplo <strong>de</strong> conflitos étnicos no <strong>porto</strong> carioca. Afinal, os pretos querem impedir os brancos <strong>de</strong><br />

trabalharem. No entanto, talvez seja possível fazer uma outra leitura: mais do que um conflito baseado<br />

em questões étnicas, que opõe pretos e brancos, não estariam os pretos ganhadores se opondo<br />

principalmente à contratação <strong>de</strong> “fura-greves”?<br />

<strong>História</strong>s <strong>de</strong> organização dos escravos em torno <strong>de</strong> questões relativas às condições <strong>de</strong> vida e <strong>de</strong><br />

trabalho, como a <strong>de</strong>scrita acima, sempre foram vistas como levantes ou rebeliões e nunca entendidas<br />

como reivindicações legítimas <strong>de</strong> trabalhadores 102 . No entanto, elas colocam a questão <strong>de</strong> se é possível<br />

dissociar essas manifestações <strong>de</strong> luta e a experiência cotidiana dos escravos do processo mais amplo <strong>de</strong><br />

formação da classe trabalhadora 103 , especialmente em uma cida<strong>de</strong> como o Rio <strong>de</strong> Janeiro, on<strong>de</strong> as<br />

trajetórias <strong>de</strong> escravos, libertos e livres se cruzavam constantemente no trabalho e fora <strong>de</strong>le.<br />

100<br />

“Ataque <strong>de</strong> Bárbaros”. Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro, 03/05/1872; a notícia também sai no Jornal do Commercio, Jornal da<br />

Tar<strong>de</strong> e Diário <strong>de</strong> Notícias.<br />

101<br />

João José Reis já havia tratado <strong>de</strong> uma greve <strong>de</strong> escravos ganhadores, na Bahia do século XIX. Reis, João José “A greve<br />

negra <strong>de</strong> 1857 na Bahia”, Revista USP, 18 (1993).<br />

102<br />

Como na paralisação, ocorrida em 26/11/1857, dos escravos da Ponta da Areia (estabelecimento <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> do<br />

Barão <strong>de</strong> Mauá, composto <strong>de</strong> fundição e estaleiro). Segundo o jornal A Pátria, os escravos recusaram-se a trabalhar sem<br />

que fossem soltos três <strong>de</strong> seus companheiros que haviam sido presos por <strong>de</strong>sobediência às or<strong>de</strong>ns do mesmo<br />

estabelecimento. Mattos, Marcelo Badaró. “Greves e Repressão Policial aos Sindicatos no processo <strong>de</strong> formação da Classe<br />

Trabalhadora carioca (anos 1850-1910). mimeo.<br />

103<br />

Sobre o resgate da experiência dos egressos da escravidão e das relações entre escravos, libertos e livres, ver: Loner,<br />

Beatriz Ana. Construção <strong>de</strong> classe: operários <strong>de</strong> Pelotas e Rio Gran<strong>de</strong> (1888-1930). Pelotas, Universida<strong>de</strong> Fer<strong>de</strong>ral <strong>de</strong><br />

Pelotas. Ed. Universitária: Unitrabalho, 2001, capítulo 5; Vitorino, Artur José Renda. Máquinas e operários: mudança<br />

técnica e sindicalismo gráfico (São Paulo e Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1858-1912). São Paulo-Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

Annablume/FAPESP, 2000; Wissenbach, Maria Cristina C. “Da escravidão à liberda<strong>de</strong>: dimensões da privacida<strong>de</strong> no<br />

surgimento das metrópoles brasileiras”, in: Sevcenko, Nicolau (org.). <strong>História</strong> da vida privada no Brasil. República: da<br />

105


Esse convívio intenso po<strong>de</strong> ser percebido já no século XIX. Sidney Chalhoub, em Visões da<br />

Liberda<strong>de</strong>, mostrou como a “cida<strong>de</strong> negra” misturava os escravos com o restante da população – on<strong>de</strong><br />

estavam brasileiros brancos e imigrantes – nos muitos cortiços da “cida<strong>de</strong> escon<strong>de</strong>rijo”. 104 Como<br />

observou Carlos Eugênio L. Soares, apesar <strong>de</strong> haver uma tendência entre os imigrantes <strong>de</strong> viver sob o<br />

mesmo teto, "o compartilhar das agruras da miséria urbana criava laços difíceis <strong>de</strong> romper” 105<br />

No início do século XX esses mesmos espaços continuaram a misturar <strong>negro</strong>s e brancos,<br />

nacionais e estrangeiros, que aí compartilhavam das “agruras” da vida ao dividirem o mesmo cortiço<br />

ou enfrentarem a ação da truculenta polícia republicana, e estabeleciam laços <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>. Mas era<br />

também nesses espaços que emergiam relações conflituosas que, não raro terminava nas <strong>de</strong>pendências<br />

das <strong>de</strong>legacias da cida<strong>de</strong> perante o <strong>de</strong>legado. Dessa forma, aqui, mas do que tentar mostrar uma<br />

homogeneida<strong>de</strong> na experiência dos trabalhadores do <strong>porto</strong> buscamos, ao contrário, as contradições que<br />

marcaram essas experiências, <strong>de</strong>ntro e fora do cais.<br />

Mas não foi só em torno dos sindicatos que aqueles homens se organizavam. Naquele início <strong>de</strong><br />

século XX os trabalhadores do <strong>porto</strong> experimentaram também outras formas <strong>de</strong> organização que, não<br />

menos que os sindicatos e as instituições formais <strong>de</strong> luta, também os uniam e os i<strong>de</strong>ntificavam como<br />

comuns. É sobre isso que vamos tratar nas páginas seguintes.<br />

Belle Époque à era do rádio. São Paulo, Companhia das Letras, 1998; Xavier, Regina Célia Lima. Libertos em Campinas<br />

na segunda meta<strong>de</strong> do século XIX. Campinas, Editora da Unicamp, 1996.<br />

104<br />

Chalhoub, Sidney. 1990. Op. Cit.<br />

105<br />

O autor narra um episódio em que um imigrante se opôs à prisão <strong>de</strong> um <strong>negro</strong>. Soares, Carlos Eugênio Líbano. Op. Cit.<br />

pp. 107-8.<br />

106


CAPÍTULO III<br />

ENTRE TERREIROS E SALÕES: sociabilida<strong>de</strong>s e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s portuárias<br />

Um Mina no Porto<br />

Nos capítulos anteriores conhecemos algumas das histórias <strong>de</strong> um velho africano trabalhador<br />

do café que viveu durante muito tempo nos arredores do <strong>porto</strong>. Seus constantes encontros com a<br />

polícia republicana, como vimos, po<strong>de</strong>m simbolizar uma época em que a repressão baseada na<br />

suspeição fazia parte do cotidiano <strong>de</strong> muitos trabalhadores pobres da cida<strong>de</strong>, especialmente aqueles<br />

que não tinham horários regulares como os portuários. Se buscarmos mais a fundo a história <strong>de</strong> vida do<br />

africano Antônio, po<strong>de</strong>remos encontrar elementos que nos guiem por outros caminhos e, assim, tentar<br />

nos aprofundar ainda mais no cotidiano dos <strong>negro</strong>s do <strong>porto</strong>. Algumas referências constantes dos<br />

processos envolvendo Antônio po<strong>de</strong>m oferecer dados interessantes sobre esse misterioso personagem<br />

que fez parte do não menos misterioso mundo do cais.<br />

Durante os <strong>de</strong>poimentos que constam dos processos, por mais que sua memória falhasse ou que<br />

ele <strong>de</strong>spistasse os policiais com informações <strong>de</strong>sencontradas, foi possível constatar que Antônio<br />

nasceu poucos anos após o fim do tráfico negreiro no Brasil, provavelmente em Lagos, on<strong>de</strong> hoje é a<br />

Nigéria. Lagos fazia parte da chamada “Costa dos Escravos”, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> saíram cerca <strong>de</strong> 80% dos cativos<br />

que chegaram à Bahia entre 1780 e 1860, nesta última década já ilegal 1 . Em fins <strong>de</strong> 1851 Lagos passou<br />

a ser controlada pela Inglaterra; talvez por isso em alguns <strong>de</strong>poimentos, Antônio fazia referência à sua<br />

terra natal como “África Inglesa”. Diante <strong>de</strong>sse fato, fica ainda mais difícil saber se Antônio foi ou não<br />

escravo pois, estando Lagos sobre o rígido controle inglês, cessaria aí o tráfico <strong>de</strong> escravos em 1852.<br />

Mas a hipótese não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>scartada: afinal havia a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ele ter vindo criança pelo<br />

tráfico ilegal. Nesse caso, po<strong>de</strong>ríamos supor que Antônio Mina tivesse passado antes pela Bahia, pois<br />

os escravos importados da África Oci<strong>de</strong>ntal que se <strong>de</strong>stinaram ao Rio <strong>de</strong> Janeiro representaram menos<br />

<strong>de</strong> 2% do total, sendo nesta cida<strong>de</strong> os menos significativos numericamente. O fato <strong>de</strong> o africano dividir<br />

1 Lovejoy, Paul. “Los origenes <strong>de</strong> los esclavos en las Americas. Perspectivas metodologicas”, In: Revista <strong>de</strong> <strong>História</strong>.<br />

Universida<strong>de</strong> Nacional <strong>de</strong> Costa Rica, Enero-Junio 1999, n. 39, p.15-16; Araújo, Ubiratan Castro <strong>de</strong>. “1846: um ano na rota<br />

Bahia-Lagos – negócios, negociantes e parceiros”. Afro-Ásia, 21-22, (1998-1999) p. 83-110.<br />

107


sua casa na rua Viscon<strong>de</strong> da Gávea, n. 5 com um casal <strong>de</strong> baianos 2 po<strong>de</strong> reforçar essa possibilida<strong>de</strong>,<br />

mas não comprová-la, pois a amiza<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria ter nascido no Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Muitos dos escravos provenientes da “Costa dos escravos” aportaram no Rio <strong>de</strong> Janeiro através<br />

do tráfico interprovincial, principalmente com a Bahia. 3 Mas nunca po<strong>de</strong>remos ter certeza dos<br />

caminhos percorridos pelo velho africano. Seja como for, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, todos os africanos<br />

oriundos da Costa Oci<strong>de</strong>ntal eram i<strong>de</strong>ntificados genericamente como minas. No século XIX, os minas<br />

do Rio <strong>de</strong> Janeiro incluíam, entre outros grupos, os iorubás (ou nagôs), aussás e tapas. O termo mina,<br />

proveniente da expressão “Costa da Mina”, foi adotado pelos próprios como i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que incluía<br />

todos os oriundos da Costa Oci<strong>de</strong>ntal, mesmo que operassem também com as diferenças <strong>de</strong> subgrupos<br />

étnicos 4 . No caso <strong>de</strong> Antônio, o mais provável é que ele fosse <strong>de</strong> nação nagô, pois as confusas<br />

lembranças <strong>de</strong> seus pais indicam nesse sentido. Segundo Juliana Barreto Farias, para os africanos o<br />

nome pessoal tinha gran<strong>de</strong> força simbólica e era um forte signo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação social ou étnica. 5<br />

Quando chegavam ao Brasil, recebiam nomes cristãos, que, segundo João José Reis, simbolizariam a<br />

passagem da posição <strong>de</strong> africanos para a <strong>de</strong> cativos. No entanto, muitos buscaram conservar uma parte<br />

importante da sua memória pessoal preservando seus nomes étnicos. Se os nomes cristãos eram úteis<br />

apenas nas relações com os brancos, entre eles, mantinham seus nomes originais. 6 Ojhô Adice, como<br />

lembrou chamar seu pai em um <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>poimentos, é, segundo a autora, um nome claramente iorubá<br />

(como também eram chamados os nagôs). Assim como Antônio Adice e Antônio Mina, é um misto <strong>de</strong><br />

nome branco com nome étnico iorubá. 7<br />

Apesar <strong>de</strong> serem minoria no Rio <strong>de</strong> Janeiro, on<strong>de</strong> imperavam numericamente os bantos da<br />

África Central, alguns autores sugerem que os mina exerceram influência importante sobre o restante<br />

da população africana na cida<strong>de</strong>. Segundo Mary Karash, na década <strong>de</strong> 1840 o termo mina adquire um<br />

significado adicional: “o <strong>de</strong> orgulhosos, indômitos e corajosos mulçumanos <strong>de</strong> língua árabe,<br />

2<br />

Informações retiradas do Processo Crime instaurado contra Antônio e sua mulher, acusados <strong>de</strong> agredir o companheiro <strong>de</strong><br />

moradia, o baiano Noberto Silva por questões <strong>de</strong> aluguel. AN – 8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 3983. 1905<br />

3<br />

Farias, Juliana Barreto. “Descobrindo os mapas dos minas: alforrias, trabalho urbano e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. (1800-1915). In:<br />

Farias, Juliana Barreto; Gomes, Flávio dos Santos e Soares, Carlos Eugênio. No Labirinto das nações: africanos e<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Arquivo Nacional, 2004 (no prelo). Agra<strong>de</strong>ço a autora por me ce<strong>de</strong>r o texto<br />

antes da publicação e pelas inúmeras conversas sobre nosso amigo africano em comum.<br />

4<br />

Para uma melhor classificação dos grupos e subgrupos étnicos dos africanos escravizados no Brasil, ver: Karash, Mary.<br />

Op. Cit.<br />

5<br />

Farias, Juliana Barreto. Op. Cit.<br />

6<br />

Reis, João José Reis. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês (1835). São Paulo: Brasiliense, 1986. p.<br />

191.<br />

7<br />

Farias, Juliana Barreto. Op. Cit.<br />

108


inteligentes, capacitados e cheios <strong>de</strong> energia – e que trabalhavam duro para comprar sua liberda<strong>de</strong>”. 8<br />

Apesar <strong>de</strong> não haver comprovação da filiação dos minas ao islamismo, o resto da <strong>de</strong>scrição certamente<br />

coinci<strong>de</strong> com as atitu<strong>de</strong>s dos membros do grupo, que teriam usado essa reputação em seu favor 9 .<br />

Muitos <strong>de</strong>sses escravos que foram trazidos para a cida<strong>de</strong>, diretamente da África ou através do<br />

tráfico interprovincial (especialmente Bahia), foram trabalhar no <strong>porto</strong>. O francês Expilly ressaltou que<br />

os minas não davam bons escravos domésticos, mas tinham muitas habilida<strong>de</strong>s mercantis e eram bons<br />

ganhadores, sugerindo que esses escravos tinham gran<strong>de</strong> apreço pela certa liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> que gozavam<br />

os <strong>negro</strong>s <strong>de</strong> ganho. 10<br />

Charles Ribeyrolles, por sua vez, narrou alguns aspectos do Rio <strong>de</strong> Janeiro quando da sua<br />

estadia na cida<strong>de</strong> entre os anos <strong>de</strong> 1858 e 1861:<br />

“(...) Mais além, encontramos a rua <strong>de</strong> São Bento. Gran<strong>de</strong> entreposto <strong>de</strong> café. Dela, sobretudo, partem os <strong>negro</strong>s<br />

minas, atléticos, mármores vivos, que fazem o transporte dos armazéns ao cais. Rebel<strong>de</strong>s <strong>de</strong> toda a sorte <strong>de</strong><br />

escravatura doméstica, formam entre si uma corporação, sustentam uma caixa <strong>de</strong> resgates que a cada ano alforria e<br />

remete alguns às plagas africanas” 11<br />

Outros estrangeiros que aqui estiveram no século XIX notaram a presença dos <strong>negro</strong>s<br />

chamados minas no trabalho <strong>de</strong> carregamento <strong>de</strong> café. O comerciante inglês, J. B. Moore, que viveu no<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro entre 1821 e 1835 também ressaltou que os minas controlavam o mercado <strong>de</strong> trabalho<br />

ligado ao comércio do café na cida<strong>de</strong>, afirmando ainda que esses escravos adiantavam dinheiro para a<br />

alforria uns dos outros, apontando como podiam ser fortes os laços <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> que envolviam<br />

esses africanos 12 .<br />

Tamanha solidarieda<strong>de</strong> e uma certa organização fizeram com que a presença dos <strong>negro</strong>s minas<br />

fosse sentida no Rio <strong>de</strong> Janeiro também como ameaça. Walter Colton, que chega à cida<strong>de</strong> em 1845<br />

chega a mencionar que a sua presença no Brasil colocava em perigo a própria estabilida<strong>de</strong> do sistema.<br />

Segundo ele, <strong>de</strong> um total <strong>de</strong> 15 mil escravos que chegavam anualmente na cida<strong>de</strong>, o mina “traz<br />

8 Karash, Mary. Op. Cit. p.64.<br />

9 Mamigonian, Beatriz Galloti. “Do que o “preto mina” é capaz: etnia e resistência entre africanos livres”. In: Afro-Ásia, 24,<br />

(2000), p.83. Juliana Barreto Farias, em sua dissertação <strong>de</strong> mestrado, estreita a relação entre os minas e a religião islâmica.<br />

Cf. Farias, Juliana Barreto. Entre I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e Diásporas: Negros Minas no Rio <strong>de</strong> Janeiro (1870-1930). Dissertação <strong>de</strong><br />

Mestrado, UFRJ, 2004.<br />

10 Expilly, Charles. Le Brésil tel qu’il est. Apud. Cruz, Maria Cecília Velasco. Op. Cit. Afro-Ásia (2000). p.258.<br />

11 Ribeyrolles, Charles. Brasil Pitoresco, vol.I. Belo Horizonte, Itatiaia/São Paulo, USP, 1980. p. 208-209.<br />

12 Cunha, Manuela Carneiro da. Op.Cit. p. 34.<br />

109


consigo a maior força <strong>de</strong> caráter”e “nunca faz chacota <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>stino” e nem “se submete <strong>de</strong> modo<br />

indigno ao estado <strong>de</strong> escravidão”. 13<br />

Lembremos que em 1872, quando um grupo <strong>de</strong> <strong>negro</strong>s ganhadores que trabalhavam no <strong>porto</strong><br />

paralisou o serviço exigindo aumento, o Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro contou que os pretos carregadores<br />

tinham feito uma “pare<strong>de</strong>”, mas “à moda da Costa da Mina, isto é, ao som do cacete e <strong>de</strong> gritarias<br />

quase selvagens”. Como vimos no capítulo anterior, a notícia sugere que os minas estavam presentes<br />

no trabalho do <strong>porto</strong> <strong>de</strong> maneira forte e atuante, pautando aquelas ações em seus valores e modos <strong>de</strong><br />

ver e viver o mundo. 14<br />

Muitos são os indicativos da força <strong>de</strong> sua presença na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro e, mais<br />

especificamente, no trabalho com o café do século XIX, mas po<strong>de</strong>mos parar por aqui. Por mais que<br />

seja preciso relativizar o seu monopólio em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> outras nações 15 – afinal, não há dados que<br />

comprovem a origem étnica dos africanos trabalhadores do <strong>porto</strong> – cabe consi<strong>de</strong>rar a importância<br />

<strong>de</strong>sse grupo na cida<strong>de</strong> como um todo e, mais especificamente, no trabalho com o café. Os Minas<br />

formavam um grupo com i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> própria e adquiriram um enorme prestígio <strong>de</strong>ntro da comunida<strong>de</strong><br />

negra carioca, talvez pela solidarieda<strong>de</strong> que os envolvia e os unia. Para Carlos Eugênio L. Soares o<br />

grupo se relacionava muito bem com as outras nações e etnias e teriam mesmo mudado a cultura<br />

política dos escravos, substituindo a tática <strong>de</strong> conflito direto com os agentes do Estado por estratégias<br />

<strong>de</strong> dissimulação e atuação nos “subterrâneos”, construindo “re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cumplicida<strong>de</strong> e auto-proteção,<br />

por entre os porões da cida<strong>de</strong> colonial e sob a vista dos guardiões da or<strong>de</strong>m pública”. 16<br />

No entanto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre essas manifestações culturais que remetiam às heranças africanas<br />

sofreram com a repressão que pretendia <strong>de</strong>smantelar os laços e instituições dos <strong>negro</strong>s e não foi nada<br />

fácil vivenciar, no dia-a-dia, os laços que os uniam. Des<strong>de</strong> sempre, os ajuntamentos <strong>de</strong> pretos escravos<br />

foram motivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança, medo e repressão por parte das autorida<strong>de</strong>s. O século XIX assistiu a<br />

uma verda<strong>de</strong>ira guerra contra um <strong>de</strong>sses pontos <strong>de</strong> encontro <strong>de</strong> <strong>negro</strong>s: as casas <strong>de</strong> angú ou zungús,<br />

que existiam na época. Essas casas eram alugadas e freqüentadas por <strong>negro</strong>s escravos ou libertos, que<br />

sofreram perseguições por serem reconhecidas como refúgio <strong>de</strong> escravos fugidos, locais <strong>de</strong> batuque,<br />

feitiçaria etc. Esses locais, segundo Carlos Eugênio L. Soares, foram importantes para a sobrevivência<br />

13<br />

Colton,Walter. Deck and Port or Inci<strong>de</strong>nts of a Cruise in the United States Frigate Congress to California. Nova Iorque,<br />

A. S. Barnes & o., 1850. Apud. Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit. Afro-Ásia(2000). p.258.<br />

14<br />

Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit. Afro-Ásia(2000). p.268.<br />

15<br />

I<strong>de</strong>m. p. 262<br />

16<br />

Soares, Carlos Eugênio L. A capoeira escrava e outras tradições rebel<strong>de</strong>s no Rio <strong>de</strong> Janeiro (1808-1850). Campinas, SP:<br />

Editora da Unicamp/Cecult, 2001. p.111.<br />

110


cultural e principalmente religiosa, pois ali se reproduziam práticas coletivas religiosas <strong>de</strong> origem<br />

africana com uma certa segurança, longe dos olhares das autorida<strong>de</strong>s. 17 Com o avançar do século XIX,<br />

esses espaços começam a ver seus quadros modificados pela inserção cada vez maior <strong>de</strong> crioulos, já<br />

que a população africana diminuía a olhos vistos.<br />

A julgar pelos registros da Casa <strong>de</strong> Detenção, as últimas décadas do XIX testemunharam a<br />

intensa troca cultural entre os <strong>negro</strong>s e os imigrantes, especialmente portugueses, que passaram a<br />

figurar nas prisões feitas <strong>de</strong>ntro dos zungús junto com <strong>negro</strong>s africanos e crioulos, escravos ou libertos.<br />

Essa presença retrata as transformações étnicas e culturais que se refletiam nesses espaços coletivos.<br />

No entanto, para Soares, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da potencial numérico, os africanos ocuparam posições<br />

estratégicas <strong>de</strong>ntro das hierarquias das comunida<strong>de</strong>s, sendo muitas vezes os mestres das casas<br />

coletivas. E <strong>de</strong>staca, entre as diversas nações, os minas como a mais importante, sendo o elo<br />

fundamental com as raízes africanas dos Zungús. 18<br />

Não era difícil, especialmente na segunda meta<strong>de</strong> do XIX, encontrar trabalhadores ligados ao<br />

<strong>porto</strong> fazendo parte das reuniões dos zungús. Soares conta que no ano <strong>de</strong> 1883 ocorreu a última prisão<br />

em massa <strong>de</strong> membros <strong>de</strong> zungús. A polícia <strong>de</strong>u uma batida no número 13 do Largo da Prainha, local<br />

conhecido como ponto <strong>de</strong> encontro <strong>de</strong> trabalhadores portuários, e lá pren<strong>de</strong>u 30 pessoas.<br />

Diferentemente dos outros, este era um espaço coletivo formado apenas por homens, todos com<br />

“profissões da estiva”. Um aspecto interessante <strong>de</strong>ste zungú é que ele não era formado apenas por<br />

<strong>negro</strong>s. Até mesmo estrangeiros faziam parte <strong>de</strong>le, anunciando o papel dos espaços coletivos na troca<br />

cultural característica das últimas décadas do XIX, principalmente entre imigrantes portugueses e a<br />

população negra. Para o autor, esse diálogo foi possível pela proximida<strong>de</strong> ocupacional e social entre<br />

lusos e <strong>negro</strong>s. 19 Com o fim da escravidão e com a entrada cada vez mais numerosa <strong>de</strong> imigrantes, se<br />

intensifica ainda mais a partilha <strong>de</strong> experiências entre <strong>negro</strong>s e brancos, nacionais e estrangeiros, que<br />

irão conviver nas habitações coletivas, freqüentar os mesmos botequins e as mesmas festas, e trabalhar<br />

nos mesmos locais. No <strong>porto</strong>, on<strong>de</strong>, apesar da maioria negra, havia uma quantida<strong>de</strong> significativa <strong>de</strong><br />

portugueses, esse diálogo po<strong>de</strong>ria ser ainda mais intenso. Afinal, se por um lado, a “pare<strong>de</strong>” era o<br />

palco das disputas pelo trabalho, por outro o serviço em si, realizado em turmas <strong>de</strong> trabalho, era<br />

17 Soares, Carlos Eugênio L. Zungú: rumor <strong>de</strong> muitas vozes. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

1998. p.48. Sobre os zungús, ver também: Soares, Luis Carlos. Op. Cit.<br />

18 Analisando os arquivos da Casa <strong>de</strong> Detenção, Carlos Eugênio L. Soares constata que os minas eram a maioria entre os<br />

africanos presos em Zungús entre 1868 e 1886. Cf. Soares, Carlos Eugênio L. Op. Cit. 1998. p.98.<br />

19 I<strong>de</strong>m, p. 91<br />

111


caracterizado pelo sentido coletivo. A intensida<strong>de</strong> das relações entre aqueles homens aumenta se<br />

levarmos em conta que a flui<strong>de</strong>z entre as horas <strong>de</strong> trabalho e o tempo livre estimulava ainda mais o<br />

convívio entre eles fora dos navios, dos armazéns ou dos trapiches.<br />

De volta ao século XX, a imagem que os autos policiais apresentam <strong>de</strong> Antônio Mina está<br />

longe <strong>de</strong> representar a imagem que os viajantes construíram daqueles altivos africanos nos tempos<br />

imperiais. Diante da política regeneradora implementada pelas elites, os poucos africanos que restaram<br />

na cida<strong>de</strong>, bem como os <strong>negro</strong>s em geral, passaram a simbolizar atraso e barbárie, vestígios <strong>de</strong> um<br />

tempo em que a escravidão imperava, impedindo os caminhos da civilização. As transformações por<br />

que passava a cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro varreriam os cenários da “cida<strong>de</strong> negra” e, com elas,<br />

<strong>de</strong>sagregava-se toda uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações construídas na vivência diária e pautadas em manifestações<br />

culturais <strong>de</strong> herança africana. Para Sidney Chalhoub, os republicanos, ao perseguir capoeiras, <strong>de</strong>molir<br />

cortiços e modificar o traçado urbano da cida<strong>de</strong> numa tentativa <strong>de</strong> mudar o sentido do seu<br />

<strong>de</strong>senvolvimento, estavam na verda<strong>de</strong> atacando a memória histórica da busca pela liberda<strong>de</strong>. Como<br />

postula o autor, “eles não simplesmente <strong>de</strong>moliam casas e removiam entulhos, mas procuravam<br />

também <strong>de</strong>smontar cenários, esvaziar significados penosamente construídos na longa luta da cida<strong>de</strong><br />

negra contra a escravidão” 20 . De qualquer forma, muitos aspectos <strong>de</strong>ssa cultura, por mais que tivessem<br />

sido modificados ou reformulados, não foram simplesmente enterrados pela fúria regeneradora. Os<br />

<strong>negro</strong>s continuaram se organizando <strong>de</strong> várias maneiras, recriando suas tradições culturais e políticas<br />

em diferentes espaços: nos cortiços, nas vendas e botequins da cida<strong>de</strong>, nas casas <strong>de</strong> santo, no carnaval<br />

e também no trabalho no <strong>porto</strong>. É possível, através dos infortúnios <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sses homens em seus<br />

constantes encontros com a polícia, vislumbrar como continua a história dos outros tantos <strong>negro</strong>s na<br />

cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Antônio Mina, um feiticeiro conhecido.<br />

Vimos no capítulo anterior, que na noite <strong>de</strong> 05 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1912, nosso amigo africano Antônio<br />

Mina foi preso por causar <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns e agredir a bengaladas os transeuntes da Rua General Pedra.<br />

Vimos também que no processo que sofreu pela agressão, ele foi acusado pelo português Antônio<br />

Moura da Silva, além <strong>de</strong> “<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iro” e “turbulento”, <strong>de</strong> ser também um “feiticeiro conhecido” 21 .<br />

20 Chalhoub, Sidney. Op. Cit. 1996. p. 186.<br />

21 Depoimento <strong>de</strong> Antônio Moura da Silva. AN – 3 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro, 6Z.0411.<br />

112


Diante <strong>de</strong>ssa acusação, impossível não se perguntar: seria mesmo Antônio Mina um “feiticeiro”<br />

ou essa acusação era apenas mais uma que seus “inimigos” lhe incutiram para <strong>de</strong>negrir sua imagem<br />

perante a polícia? Ou seria tão somente um certo preconceito da parte do português em associar<br />

africanos ao “mundo do feitiço”?<br />

Voltemos mais um pouco mais no tempo para lembrarmos do nosso primeiro encontro com o<br />

africano, na tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> 07 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1905, quando ele foi preso por embriagues na Rua Senador<br />

Pompeu 22 . Antônio <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u-se na <strong>de</strong>legacia dizendo que não era ébrio habitual e que só bebeu<br />

naquela ocasião porque estava em casa <strong>de</strong> uns patrícios e que estes o obrigaram a beber. 23 Quem<br />

seriam esses patrícios? Africanos minas, ou africanos <strong>de</strong> outras nações? O que estariam eles fazendo<br />

na tal reunião banhada a cachaça? E, mais importante, que significados culturais a reposta <strong>de</strong>ssas<br />

perguntas po<strong>de</strong> traduzir? Os processos criminais não levantam essas questões, mas po<strong>de</strong>mos buscar<br />

histórias <strong>de</strong> outros africanos para tentar respondê-la.<br />

Referindo-se aos escravos e libertos da Bahia, João José Reis ressaltou as dificulda<strong>de</strong>s para<br />

formar famílias no Brasil <strong>de</strong> acordo com as práticas tradicionais <strong>de</strong> seus lugares <strong>de</strong> origem. Diante<br />

disso, os escravos tinham que encontrar novas formas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação, re<strong>de</strong>finindo a noção <strong>de</strong> família<br />

e linhagem e inventando, aqui, o conceito <strong>de</strong> “parentes <strong>de</strong> nação”. Segundo o autor, na falta <strong>de</strong> uma<br />

re<strong>de</strong> familiar baseada nos laços sanguíneos, a i<strong>de</strong>ntificação étnica ganharia feições <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong><br />

família simbólica, tornando-se, talvez, o principal canal <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> e organização da vida da<br />

maioria dos africanos que aqui viviam. A palavra “parente” teria sido escolhida do vocabulário branco,<br />

pelos escravos, para significar “patrício”. Os membros <strong>de</strong> um mesmo grupo étnico tornavam-se<br />

“parentes” entre si, sendo significativo que até os nossos dias os candomblés se dividam em “nações” e<br />

os seus membros pertençam a uma mesma “família-<strong>de</strong>-santo”. 24 Ainda citando o autor, a intensida<strong>de</strong><br />

com que esses cativos produziam parentescos simbólicos sugere o quanto o cativeiro teve impacto na<br />

vida <strong>de</strong>sses homens e mulheres que vieram <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s em que a estrutura familiar se baseava em<br />

re<strong>de</strong>s complexas, nas quais o culto aos ancestrais tinha gran<strong>de</strong> importância. 25 Essa “família extensa”,<br />

22<br />

Episódio narrado na Introdução <strong>de</strong>ste trabalho.<br />

23 a<br />

AN – 8 Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro, OR. 4056.<br />

24<br />

Reis, João José.. Op. Cit. 1996. p. 231.<br />

25<br />

Reis, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia<br />

das Letras, 1991.<br />

113


usando as palavras <strong>de</strong> Maria Inês Oliveira, era formada por parentes <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração, mas também por<br />

companheiros <strong>de</strong> trabalho. 26<br />

Diante <strong>de</strong>ssas informações, po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar seriamente a hipótese <strong>de</strong> que Antônio Mina<br />

tinha, sim, ligações com outros africanos que ainda residiam na cida<strong>de</strong>, quem sabe os últimos que<br />

viveram os tempos do cativeiro. Tais ligações, para além da i<strong>de</strong>ntificação étnica – afinal eram patrícios<br />

– po<strong>de</strong>riam perfeitamente se dar também por laços religiosos. Os africanos “vivendo no meio dos<br />

seus” 27 , podiam se sentir parte <strong>de</strong> uma família, <strong>de</strong> um grupo que tinha uma história em comum.<br />

Reunindo-se em casas particulares, em irmanda<strong>de</strong>s religiosas, nos locais <strong>de</strong> trabalho (como o <strong>porto</strong>,<br />

que concentrava uma maioria negra) ou entre as famílias <strong>de</strong> santo, organizadas nos terreiros <strong>de</strong><br />

candomblé, esses homens podiam fortalecer esses laços <strong>de</strong> união, criando e recriando suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s.<br />

Tendo sido afastado <strong>de</strong> seus parentes <strong>de</strong> sangue (e as poucas lembranças <strong>de</strong> seus pais indicam que este<br />

afastamento se <strong>de</strong>ra bem cedo), Antônio Mina, e outros africanos como ele, tivera que recriar seus<br />

laços familiares, relacionando-se com seus patrícios ou “parentes <strong>de</strong> nação”, não sendo então por acaso<br />

que ele tenha se casado com uma também africana <strong>de</strong> Lagos, a quitan<strong>de</strong>ira Maria Emine.<br />

Naquela tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1905, Antônio Mina podia estar bebendo umas doses com seus<br />

patrícios sem maiores motivos que não o do encontro, o que por si só já merece nossa atenção. Mas<br />

po<strong>de</strong>ria perfeitamente estar participando <strong>de</strong> alguma festa ou ritual religioso, especialmente se levarmos<br />

em conta o fato <strong>de</strong> Antônio ter sido apontado como “conhecido feiticeiro” 28 . Claro que essa po<strong>de</strong>ria ser<br />

uma falsa acusação com o propósito <strong>de</strong> “manchar” a imagem do acusado frente às autorida<strong>de</strong>s e<br />

incriminá-lo ainda mais – pois feitiçaria era crime na República – mas outros indícios nos levam a crer<br />

que o africano podia ter efetivamente ligações com o candomblé.<br />

Em 1904 João do Rio visitou diversos locais on<strong>de</strong> as manifestações religiosas <strong>de</strong> origem<br />

africana eram cultuadas. Suas matérias sempre faziam menção aos <strong>negro</strong>s minas no comando dos<br />

rituais:<br />

26 Cf. Oliveira, Maria Inês Cortes. O Liberto: o seu mundo e os outros, 1790-1890. Bahia: Corrupio, 1988.<br />

27 Expressão adotada por Maria Inês Cortes Oliveira. Cf. “Viver e morrer no meio dos seus. Nações e comunida<strong>de</strong>s<br />

africanas na Bahia do século XX”. In: Revista USP, São Paulo, n.28,<strong>de</strong>z. 1995/fev.1996.<br />

28 O uso do álcool não era incomum nos rituais. João do Rio, no conjunto <strong>de</strong> crônicas jornalísticas que escreveu para a<br />

Gazeta <strong>de</strong> Notícias em 1904, compiladas em As Religiões do Rio, o jornalista comenta um ritual <strong>de</strong> iniciação <strong>de</strong> uma filha<strong>de</strong>-santo<br />

que assistiu em uma <strong>de</strong> suas incursões pelos candomblés. Em um tom preconceituoso, <strong>de</strong>screve o ritual como<br />

“sinistra pantominia <strong>de</strong> álcool e mancebia”. Gazeta <strong>de</strong> Notícias. “No Mundo dos Feitiços”. 12/03/1904. p. 2<br />

114


“As casas dos minas conservam a sua aparência <strong>de</strong> outrora, mas estão cheias <strong>de</strong> <strong>negro</strong>s baianos e <strong>de</strong> mulatos. São<br />

quase sempre rótulas lobregas, on<strong>de</strong> vivem com o personagem principal cinco, seis e mais pessoas. Nas salas,<br />

móveis quebrados e sujos, esteirinhas, bancos; por cima das mesas, terrinas, pucarinhos <strong>de</strong> água, chapéus <strong>de</strong> palha,<br />

ervas, pastas <strong>de</strong> oleado on<strong>de</strong> se guarda o opelé; nas pare<strong>de</strong>s, atabaques, vestuários esquisitos, vidros; e no quintal,<br />

quase sempre jabotis, galinhas pretas, galos e cabritos. Há na atmosfera um cheiro carregado <strong>de</strong> azeite-<strong>de</strong>-<strong>de</strong>ndê,<br />

pimenta-da-costa e catinga. Os pretos falam da falta <strong>de</strong> trabalho, fumando grossos cigarros <strong>de</strong> palha.” 29<br />

Em uma <strong>de</strong>ssas “visitas jornalísticas”, João do Rio foi até a casa do africano conhecido por<br />

Sanin, um famoso feiticeiro que morava na Rua dos Andradas, on<strong>de</strong> era a “casa do famoso Ojô,<br />

diretor social da feitiçaria”. Durante a conversa com Sanin, este lhe contou, entre outras coisas, sobre<br />

a repressão que os feiticeiros sofriam naqueles duros tempos. É João do Rio que faz as perguntas:<br />

“Mas por que você, um homem tão po<strong>de</strong>roso, não me queria receber?<br />

- Por que andam a falar <strong>de</strong> nós, porque a polícia vem aí. Fizemos outro dia até um <strong>de</strong>spacho no campo <strong>de</strong> Santana<br />

com os <strong>de</strong>ntes, os olhos <strong>de</strong> um carneiro, jabotis, ervas e duas orações para quem fala <strong>de</strong> nós <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> falar.<br />

- Mas por que um carneiro?<br />

- Porque o carneiro morre calado. Foi o Antônio Mina quem fez o <strong>de</strong>spacho e todos nós rezamos <strong>de</strong> bruços e todos<br />

nós <strong>de</strong>mos para o <strong>de</strong>spacho, que custou cento e oitenta e três mil reis.” 30<br />

Será que o Antônio Mina a que se refere o africano Sanim é o nosso amigo africano? Não<br />

po<strong>de</strong>mos provar, mas provavelmente sim. Algumas informações sobre o local em que o “nosso”<br />

Antônio Mina convivia e as ruas que morou também indicam a possibilida<strong>de</strong> do Antônio Mina <strong>de</strong> João<br />

do Rio seja o mesmo africano que conhecemos logo na introdução <strong>de</strong>ste trabalho. Mas, se ele não era<br />

exatamente um feiticeiro conhecido, certamente conviveu <strong>de</strong> perto com muitos que eram assim<br />

chamados na cida<strong>de</strong>.<br />

Durante os anos em que Antônio apareceu nos autos policiais, ele <strong>de</strong>clarou diferentes<br />

en<strong>de</strong>reços. Em 1905 morava na Rua Viscon<strong>de</strong> da Gávea n.5; Em 1907 já aparece morando na General<br />

Pedra, 154. No ano seguinte, morou nas ruas Barão <strong>de</strong> São Félix, 54 e na João Caetano, 52 e em 1912<br />

voltou para o mesmo número da General Pedra, ficando nesta rua até pelo menos 1915, mas em algum<br />

momento mudou-se para o número 367.<br />

29 do Rio, João do. As Religiões do Rio. Op. Cit.<br />

30 I<strong>de</strong>m.<br />

115


Todas essas ruas faziam parte das freguesias <strong>de</strong> Santana e Santa Rita e tinham uma certa<br />

proximida<strong>de</strong> umas com as outras. Nos arredores da Praça Onze, a Rua João Caetano foi en<strong>de</strong>reço <strong>de</strong><br />

um importante candomblé da cida<strong>de</strong>, a casa <strong>de</strong> Cipriano Abedé, pai-<strong>de</strong> santo <strong>de</strong> figuras importantes e<br />

<strong>de</strong> sambistas conhecidos, como João da Baiana, que fora estivador em sua juventu<strong>de</strong>. A rua fazia<br />

esquina com a General Pedra, que, segundo Brasil Gerson era “uma típica rua <strong>de</strong> cortiços” 31 . Ambas<br />

eram vizinhas da Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Itaúna, on<strong>de</strong> ficava a casa-<strong>de</strong>-santo do não menos importante Assumano<br />

Mina do Brasil, um africano que, assim como Antônio, era “da Costa da África” e foi um dos<br />

primeiros a instalar um candomblé na cida<strong>de</strong>. Pai Assumano, Sanim ou qualquer outro <strong>de</strong>stes famosos<br />

pais <strong>de</strong> santo da região bem po<strong>de</strong>riam ter participado da tal reunião <strong>de</strong> patrícios on<strong>de</strong> Antonio Mina<br />

bebeu antes <strong>de</strong> ser pego pela polícia na noite <strong>de</strong> 07 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1905. Ainda segundo Brasil Gerson,<br />

quando as reformas urbanas <strong>de</strong> Pereira passos modificaram as ruas do centro da cida<strong>de</strong>, ainda existiam<br />

nos quarteirões finais da General Pedra, vizinhos ao Campo <strong>de</strong> Santana, bem como no das ruas São<br />

Pedro e da Alfân<strong>de</strong>ga, várias “casas <strong>de</strong> vendas <strong>de</strong> ervas medicinais dos pretos minas” “muitos <strong>de</strong>les<br />

mandigueiros, e que tão numerosos e famosos haviam sido no Rio Antigo.” 32<br />

A rua Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Itaúna ficou muito conhecida também por ser, na década <strong>de</strong> 10, o en<strong>de</strong>reço<br />

da casa <strong>de</strong> Tia Ciata, conhecido reduto <strong>de</strong> sambistas <strong>negro</strong>s, especialmente os baianos, ela própria uma<br />

<strong>de</strong>stacada freqüentadora dos candomblés da região. Em uma rua próxima, a Marquês <strong>de</strong> Sapucaí,<br />

estava a casa <strong>de</strong> Benzinho Bamboxê, outro pai-<strong>de</strong>-santo afamado. As ruas Viscon<strong>de</strong> da Gávea e Barão<br />

<strong>de</strong> São Félix, também típicas <strong>de</strong> cortiços, ficavam mais próximas do <strong>porto</strong> e era nesta segunda rua que,<br />

no fim do século XIX, moraram as mais <strong>de</strong> 3.000 pessoas do Cabeça <strong>de</strong> Porco, além do conhecido<br />

Dom Obá II d’África. Na época em que Antônio Mina morou na Barão <strong>de</strong> São Félix, lá funcionava o<br />

candomblé <strong>de</strong> João Alabá, também muito conhecido por ser o pai <strong>de</strong> santo <strong>de</strong> Tia Ciata e <strong>de</strong> muitos<br />

sambistas que freqüentavam sua famosa e festeira casa. 33 Certamente esses espaços festeiros e<br />

religiosos fizeram parte da vida <strong>de</strong> muitos homens que trabalhavam no <strong>porto</strong>, mesmo porque essas<br />

ruas, com seus cortiços e outras moradias populares, figuravam no en<strong>de</strong>reço fornecido à polícia por<br />

muitos <strong>de</strong>les, como já vimos no capítulo anterior. Essa referência é ainda mais forte se pensarmos nos<br />

portuários <strong>negro</strong>s, que, assim como no trabalho, ainda guardavam em suas memórias – mas também na<br />

prática diária – os costumes e as tradições religiosas dos tempos da escravidão.<br />

31<br />

Gerson, <strong>História</strong> das Ruas do Rio. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Lacerda Editores, 2000. p. 175.<br />

32<br />

I<strong>de</strong>m, p. 60<br />

33<br />

Rocha, Agenor Miranda. As Nações <strong>de</strong> Ketu: origens, ritos e crenças: os candomblés antigos do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Mauad, 2000.<br />

116


A freguesia <strong>de</strong> Santana era, sem dúvida, a região da cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> se concentrava a maior parte<br />

dos candomblés da cida<strong>de</strong>, especialmente porque a zona portuária e arredores da Cida<strong>de</strong> Nova e Praça<br />

Onze foram locais <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> concentração dos <strong>negro</strong>s (africanos ou crioulos) oriundos da Bahia, que<br />

chegavam aos montes no Rio <strong>de</strong> Janeiro na segunda meta<strong>de</strong> do século XIX. Segundo Roberto Moura,<br />

“o grupo baiano iria situar-se na parte da cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> a moradia era mais barata, na Saú<strong>de</strong>, perto do<br />

cais do <strong>porto</strong>, on<strong>de</strong> os homens, como trabalhadores braçais, buscavam vagas na estiva” 34 . Já em 1886,<br />

Mãe Aninha chega da Bahia e abre, junto com Bamboxê e Obá Saniá (será o tal Sanin, que João do<br />

Rio visitou em 1904?), uma casa <strong>de</strong> santo no bairro da Saú<strong>de</strong>.<br />

Agenor Rocha sugere que foi o crescimento das ativida<strong>de</strong>s portuárias, junto à inauguração da<br />

Estrada <strong>de</strong> Ferro Central do Brasil, que transformou à região num pólo <strong>de</strong> atração da população pobre,<br />

especialmente os baianos, que po<strong>de</strong>riam se empregar nesses locais. 35 Nesse pedaço da cida<strong>de</strong> era<br />

possível encontrar abrigo e solidarieda<strong>de</strong> baseados em laços <strong>de</strong> parentesco (<strong>de</strong> sangue ou “<strong>de</strong> nação”) e<br />

em afinida<strong>de</strong>s religiosas. Como contou Carmem Teixeira Barbosa, a Tia Carmem, os <strong>negro</strong>s reuniramse<br />

em torno <strong>de</strong> casas <strong>de</strong> outros <strong>negro</strong>s já instalados na cida<strong>de</strong>:<br />

“Tinha na Pedra do Sal, na Saú<strong>de</strong>, ali que era uma casa <strong>de</strong> baianos e africanos, quando chegavam da África ou da<br />

Bahia. Da casa <strong>de</strong>les se via o navio, aí já tinha o sinal que vinha gente <strong>de</strong> lá (...) Era uma ban<strong>de</strong>ira branca, sinal <strong>de</strong><br />

Oxalá, avisando que vinha chegando gente. A casa era no morro, era <strong>de</strong> um africano, ela chamava Tia Dadá e ele<br />

Tio Ossum, eles davam agasalho, davam tudo até a pessoa se aprumar (...)” 36<br />

Percebe-se como a i<strong>de</strong>ntificação étnica e a religião dos orixás exerciam forte eixo <strong>de</strong> ligação<br />

entre os <strong>negro</strong>s que ali chegavam, mas também entre os que ali já estavam. A expressão cunhada mais<br />

tar<strong>de</strong> por um <strong>de</strong> seus moradores <strong>de</strong>u àquela região uma <strong>de</strong>finição que ficou na memória – construída<br />

posteriormente – da cida<strong>de</strong>: “Era a Pequena África no Rio <strong>de</strong> Janeiro”, disse certa vez o sambista<br />

<strong>negro</strong> Heitor dos Prazeres referindo-se às primeiras décadas do século XX. Se por um lado o apelido<br />

não dá conta da diversida<strong>de</strong> étnica e cultural da região naqueles tempos (afinal, a região era moradia <strong>de</strong><br />

muitos brancos, inclusive estrangeiros), por outro, ela po<strong>de</strong> ser interessante para expressar parte da<br />

vida cultural dos <strong>negro</strong>s que ali viviam. O ambiente festeiro e religioso da “Pequena África” marcou a<br />

experiência dos homens do cais, que circulavam pela região freqüentemente. Mas, assim como no<br />

zungú do largo da Prainha, que misturou pretos e brancos, inclusive estrangeiros, as festas e os rituais<br />

34 Moura, Roberto. Op. Cit. p.44<br />

35 Rocha, Agenor Miranda. Op. Cit.<br />

36 Moura, Roberto. Op. Cit. p.43.<br />

117


que aconteciam ali não eram privilégio dos pretos e pardos. Era comum ver brancos e pretos<br />

participando das mesmas festas <strong>de</strong> samba e macumbas da região. Referindo-se às festas que a baiana<br />

Tia Ciata dava constantemente em sua casa, João da Baiana dizia que “a festa era <strong>de</strong> preto, mas branco<br />

também ia lá divertir”. 37<br />

No entanto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, os ajuntamentos <strong>de</strong> pretos e manifestações culturais que remetessem<br />

às heranças africanas não eram bem vistos pelas autorida<strong>de</strong>s. Mas se é certo que, com o endurecimento<br />

da repressão no regime republicano, homens como Antônio Mina se tornavam, especialmente por sua<br />

cor e profissão, suspeitos em potencial, sendo constantemente vítimas das manhas <strong>de</strong> uma polícia que<br />

suspeitava e reprimia vadios, ébrios, capoeiras, feiticeiros e sambistas (sempre associados à<br />

malandragem) é também certo que eles tinham sua próprias formas criativas <strong>de</strong> lidar com a repressão.<br />

Uma das maneiras era escon<strong>de</strong>r tais práticas no âmbito privado. Como disse certa vez João da Baiana,<br />

referindo-se às festas nas casas das tias baianas, que, segundo ele, misturava samba e candomblé 38 , “a<br />

festa era assim: baile na sala <strong>de</strong> visitas, samba <strong>de</strong> partido alto nos fundos da casa e batucada no<br />

terreiro”. 39<br />

Mas escon<strong>de</strong>r seus costumes no interior das casas não era a única maneira que os <strong>negro</strong>s<br />

encontraram para enfrentar a fúria regeneradora. Po<strong>de</strong>mos aqui mais uma vez relembrar nosso amigo<br />

africano Antônio Mina. Em alguns processos que ele respon<strong>de</strong>u, o africano teve sua fiança paga. Em<br />

03 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1914, por exemplo, <strong>de</strong>sembolsou 306 mil réis para respon<strong>de</strong>r um processo por<br />

agressão em liberda<strong>de</strong>. 40 Mas essa não foi a única vez... Em 16 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1907, quando foi preso<br />

por estar embriagado e agredir um condutor <strong>de</strong> bon<strong>de</strong> na Rua Senador Eusébio, o africano também<br />

pagou 300 mil réis <strong>de</strong> fiança e mais 6 mil réis <strong>de</strong> prêmio do <strong>de</strong>pósito 41 . Menos <strong>de</strong> um mês <strong>de</strong>pois, em<br />

26 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1907, quando foi <strong>de</strong>tido por embriagues na rua Barão <strong>de</strong> São Félix, foram pagos<br />

100 mil réis <strong>de</strong> fiança e 2 mil réis <strong>de</strong> prêmio do <strong>de</strong>pósito 42 .<br />

37<br />

Moura, Roberto. Op. Cit. p. 83.<br />

38<br />

Depoimento <strong>de</strong> João da Baiana ao Museu da Imagem e do Som. MIS, As Vozes Desassombradas do Museu. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Secretaria <strong>de</strong> Estado e Cultura, 1970. p. 52.<br />

39<br />

Depoimento citado por Moura, Roberto. Op. Cit. p. 83.<br />

40 a<br />

8 Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. 6Z. 2312. 1915.<br />

41<br />

AN – Tribunal do Júri do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Proc. 5128; Maço 889; Gal. A. 1908.<br />

118


Figura 7<br />

Fiança <strong>de</strong> 300 mil réis paga por Antônio Africano<br />

Nota-se que o valor das tais fianças não eram pouca coisa para um velho carregador <strong>de</strong> café.<br />

Lembremos que em um dos episódios que envolveram o preto, ele contou com a ajuda <strong>de</strong> dois<br />

advogados, o que era no mínimo curioso para alguém que pegava pesado sacas <strong>de</strong> café e morava nos<br />

bairros populares, em ruas típicas <strong>de</strong> cortiços. Ou Antônio Mina sabia como ninguém fazer economia,<br />

ou alguém o ajudava quando se metia em apuros. O mais provável, porém, é que as duas opções<br />

estejam corretas.<br />

Em conversa que João do Rio tivera com o africano Júlio Ganam em maio <strong>de</strong> 1905, este<br />

proferiu as seguintes palavras ao jornalista, que parece não acreditar no que ouve:<br />

42 AN – 8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 6923. 1908.<br />

119


“– (...) Africano tem resistência, menino, africano pagou seu corpo. Eu juntei, vintém a vintém, um conto e<br />

oitocentos para me comprar e houve escravas, como a mãe <strong>de</strong> Henriqueta, que juntaram dinheiro para comprar o<br />

próprio corpo e mais o das filhas.<br />

– Mas como, homem <strong>de</strong> Deus?<br />

– Ora, como! Trabalhando, nos aluguéis, no café, ven<strong>de</strong>ndo santos ou doces na rua e com auxílio do feitiço. Não<br />

ria! Africano sempre ven<strong>de</strong>u feitiços aos brancos, porque os brancos sempre acreditaram em feitiços. Hoje os<br />

africanos daquele tempo estão ricos.” 43 (grifo meu)<br />

Segundo o “orgulhoso alufá” Júlio Ganam, antes mesmo do 13 <strong>de</strong> maio, que para ele não<br />

significava “nada para os africanos”, os africanos já estavam livres. Ao ser perguntado pelo jornalista<br />

como isso acontecera, ele respon<strong>de</strong> que em 1888 quase todos os africanos já haviam morrido e os<br />

poucos que restaram, já tinham comprado sua carta <strong>de</strong> alforria, juntando “vintém por vintém”. E<br />

informou que enquanto as mulheres vendiam acarajés, miçangas e “feitiços”, o café foi para os homens<br />

o veio inesgotável”.<br />

Os minas traziam da África Oci<strong>de</strong>ntal uma forte tradição mercantil, pouco comum entre as<br />

outras “nações” africanas na cida<strong>de</strong>, e por isso conseguiam manter as associações com caixas <strong>de</strong><br />

alforria, além <strong>de</strong> economizarem dinheiro, muitos <strong>de</strong>les tendo feito fortuna, como contou o alufá ao<br />

cronista. Talvez Antônio tenha conseguido juntar seu quinhão durante os anos e pagar as fianças,<br />

sendo provável que sua mulher, a ven<strong>de</strong>dora ambulante Maria Emine, também uma mina, tenha<br />

ajudado Antônio Mina a “comprar sua liberda<strong>de</strong>” e se livrar da polícia republicana com suas possíveis<br />

economias arrecadadas na venda mercadorias e, quem sabe, <strong>de</strong> feitiços...<br />

No mais, as histórias contadas por Júlio Ganam a João do Rio po<strong>de</strong>m nos ajudar a <strong>de</strong>scobrir<br />

mais sobre a vida <strong>de</strong> Antônio Mina e, com ele, <strong>de</strong> outros africanos e seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes no <strong>porto</strong><br />

carioca. Segundo dissera o alufá, era no penoso trabalho com o café que os pretos conseguiam uns<br />

recursos extras. Primeiro começavam como carregadores das sacas, <strong>de</strong>pois<br />

“subiam a ajudante. Em seguida, passavam a capitão (...) e enfim chegavam a furadores. [Furador] era o chefe<br />

supremo do carregamento <strong>de</strong> café. Todo o grão que caía era <strong>de</strong>les. Como havia dias em que furavam umas mil<br />

sacas, juntavam à noite (...) duas e três sacas fora o que escondiam” 44<br />

43 João do Rio. “Negros Ricos”, Gazeta <strong>de</strong> Notícias. 13/05/1905. Agra<strong>de</strong>ço mais uma vez à Juliana Barreto Farias pela<br />

referência. A autora faz uma análise mais extensa e interessantíssima sobre as incursões <strong>de</strong> João do Rio pelas casas dos<br />

africanos em sua já citada dissertação <strong>de</strong> mestrado sobre os minas no Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

44 João do Rio. “Negros Ricos”, Gazeta <strong>de</strong> Notícias. 13/05/1905<br />

120


Os furadores <strong>de</strong> café se apropriariam <strong>de</strong> alguns grãos exce<strong>de</strong>ntes, ficando com o dinheiro <strong>de</strong><br />

sua venda e conseguindo acumular alguns recursos. Talvez no século XX essa prática não fosse mais<br />

tão corrente, mas, a julgar pelo que contou Ganam ao cronista João do Rio, no século XIX essa prática<br />

parecia freqüente e através <strong>de</strong>la, muitos africanos conseguiram sua alforria, além <strong>de</strong> acumular algum<br />

dinheiro. 45 É possível que Antônio Mina tenha participado <strong>de</strong>sse esquema <strong>de</strong> apropriação do exce<strong>de</strong>nte<br />

do café, pois referências <strong>de</strong> que ele tenha trabalhado nesse serviço são constantes nos processos. Em<br />

um <strong>de</strong>les, quando respon<strong>de</strong>u por embriagues em junho <strong>de</strong> 1905, uma das testemunhas <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa, o<br />

empregado no comércio Horácio Antônio Pestana, afirmou que Antônio era um “homem morigerado”<br />

que “trabalha como furador <strong>de</strong> café”, profissão que o próprio <strong>de</strong>clara no mesmo processo. 46<br />

Ainda há um <strong>de</strong>talhe interessante que po<strong>de</strong> significar apenas uma coincidência, mas merece ser<br />

comentado: Lembremos que em 5 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1912, Antônio é acusado <strong>de</strong> promover <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns na rua<br />

General Pedra “armado <strong>de</strong> uma bengala.” 47 Em outro conflito, <strong>de</strong> 1914, ele é acusado <strong>de</strong> agredir os<br />

fregueses do Botequim do Vidal com um guarda-chuva 48 . Há ainda alguns outros casos em que o<br />

africano aciona outros objetos contun<strong>de</strong>ntes, como uma barra <strong>de</strong> ferro, para atacar seus oponentes ou<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong>les. Claro que o africano po<strong>de</strong> se valer da bengala ou do guarda-chuva apenas por<br />

motivos outros, como ter on<strong>de</strong> apoiar o peso da ida<strong>de</strong> ou se proteger da chuva. No entanto, é<br />

interessante perceber o que nos diz João Reis sobre os lí<strong>de</strong>res dos cantos em Salvador. Segundo o<br />

autor, esses lí<strong>de</strong>res traziam sempre consigo uma espécie <strong>de</strong> bastão representativo <strong>de</strong> seu cargo no<br />

canto. Esse costume não era <strong>de</strong>sconhecido na África, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> provavelmente foi trazido pelos<br />

escravos. Em 1825, quando um embaixador do Reino do Benim visitou a cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

este apresentou uma bengala como prova <strong>de</strong> seu cargo. 49 Talvez os objetos que Antônio Mina sempre<br />

trazia fosse um símbolo <strong>de</strong> sua li<strong>de</strong>rança no <strong>porto</strong>. Em um outro processo por embriagues, <strong>de</strong><br />

novembro <strong>de</strong> 1907, seu advogado Henrique Pereira <strong>de</strong> Mello afirma em <strong>de</strong>fesa do africano que “é<br />

trabalhador na estiva (...) já tendo merecido cargos <strong>de</strong> chefia.” 50<br />

45<br />

Casos assim foram observados por Maria Helena Machado em sua análise sobre o trabalho escravo em lavouras<br />

paulistas, como Taubaté e Campinas, ao longo do XIX. Segundo a autora, durante à noite, alguns escravos <strong>de</strong><br />

proprieda<strong>de</strong>s da região, muitas vezes ajudados por libertos, furtavam pequenas parcelas da produção agrícola. Os<br />

produtos furtados eram trocados por pinga, fumo <strong>de</strong> rolo, doces e sobretudo dinheiro, nas tavernas e vendas ao redor<br />

das fazendas. Além <strong>de</strong> contribuir para selar alianças entre escravos, libertos e brancos pobres, essas práticas<br />

alimentavam uma economia escrava autônoma. Machado, Maria Helena. Crime e Escravidão. Trabalho, luta e<br />

resistência nas lavouras paulistas. 1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.104.<br />

46 a<br />

AN – 8 Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR 4077. 1905.<br />

47 a<br />

AN – 3 Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro, 6Z.0411. 1912<br />

48 a<br />

8 Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. 6Z. 2312. 1915<br />

49<br />

Reis, João José. Op. Cit., p.360. Apud. Farias, Juliana Barreto. Op. Cit. P.108.<br />

50 a<br />

8 Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 6923. 1908.<br />

121


De qualquer forma, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguém, além <strong>de</strong> sua mulher, ajudar o africano é bem<br />

plausível – afinal, tratando-se <strong>de</strong> trabalhadores autônomos, não há economia que agüente duas fianças<br />

em menos <strong>de</strong> um mês e mais as <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong> dois advogados – sendo bem possível que o africano<br />

tivesse, no seu quadro <strong>de</strong> relações, pessoas <strong>de</strong> uma outra camada social. Quem sabe sua fiança não foi<br />

paga por algum rico apreciador dos feitiços <strong>de</strong> Antônio Mina? Provavelmente nunca saberemos a<br />

reposta, mas po<strong>de</strong>mos afirmar que essa é uma possibilida<strong>de</strong> real <strong>de</strong>ntro da complexa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações<br />

sociais que eram travadas na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro da virada do século. Além disso, vimos que, no<br />

processo que sofreu por agressão em 1912, <strong>de</strong>puseram a seu favor dois negociantes, inclusive um da<br />

elegante Rua do Ouvidor 51 , indicando que as relações <strong>de</strong> Antônio Mina podiam envolver pessoas <strong>de</strong><br />

diferentes camadas sociais.<br />

Os vizinhos <strong>de</strong> Antônio Mina, os feiticeiros João Alabá, Cipriano Abedé, Pai Assumano e<br />

Bamboxê, só para citar os que ficaram mais conhecidos, tinham pessoas ilustres em seus quadros <strong>de</strong><br />

relações, certamente interessadas em seus “po<strong>de</strong>res sobrenaturais”. João do Rio tece seus comentários<br />

sobre os feiticeiros que tinham suas casas <strong>de</strong> santo na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

“(...) Toda essa gente vive bem, à farta (...) Deixa dinheiro quando morre, às vezes fortunas superiores à 100 contos<br />

<strong>de</strong> réis, e achincalham o nome <strong>de</strong> pessoas eminentes da nossa socieda<strong>de</strong>, entre conselhos às meretrizes e goles <strong>de</strong><br />

paraty.<br />

As pessoas eminentes não <strong>de</strong>ixam, entretanto, <strong>de</strong> ir ouvi-los às batucas infectas, porque os feiticeiros que po<strong>de</strong>m dar<br />

riquezas, palácios e eternida<strong>de</strong> do amor, que mudam à distância com uma simples mistura <strong>de</strong> ervas, moram em<br />

casinholas sórdidas, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> emana um nauseabundo cheiro (...)” 52<br />

E conversando com um daqueles feiticeiros, um africano, este lhe contou sobre pessoas que<br />

tiveram ajuda <strong>de</strong> seus feitiços para subir na vida. Ele teria mesmo mencionado nomes <strong>de</strong> políticos, que<br />

João do Rio preferiu não publicar:<br />

“Os nomes conhecidos surgiam, tumultuavam, empregos na polícia, na Câmara, relações no Senado, interferência<br />

em <strong>de</strong>saguisados <strong>de</strong> famílias notáveis (...)<br />

Eu vi senhoras <strong>de</strong> alta posição saltando às escondidas, <strong>de</strong> carros <strong>de</strong> praça, para correr, tapando a cara com véus<br />

espessos, a essas casas” 53<br />

51 AN – 3 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro, 6Z.0411. 1912<br />

52 Rio, João do. As Religiões do Rio. Op. Cit.<br />

53 Rio, João do. As Religiões do Rio. Op. Cit.<br />

122


Algumas <strong>de</strong>ssas casas <strong>de</strong> santo e <strong>de</strong> samba eram <strong>de</strong> certa forma protegidas, pois seus donos e<br />

freqüentadores buscaram alianças com pessoas influentes. A casa da Tia Ciata, por exemplo, era uma<br />

<strong>de</strong>ssas casas que tinham uma espécie <strong>de</strong> “salvo-conduto”. Seu marido era um <strong>negro</strong> baiano que obteve<br />

um certo status na comunida<strong>de</strong> da Pequena África pela sua trajetória incomum entre os <strong>negro</strong>s <strong>de</strong> sua<br />

época: era letrado e chegou mesmo a freqüentar, por algum tempo, o curso <strong>de</strong> medicina em Salvador.<br />

No Rio <strong>de</strong> Janeiro, trabalhou no Jornal do Comércio como linotipista e como funcionário da<br />

Alfân<strong>de</strong>ga, estando <strong>de</strong> certa forma ligado ao <strong>porto</strong>, mas em uma função mais qualificada. Mais tar<strong>de</strong>,<br />

conseguiu um emprego no gabinete do chefe <strong>de</strong> polícia, tendo sido nomeado ao cargo pelo próprio<br />

Venceslau Brás. A nomeação se <strong>de</strong>u a pedido <strong>de</strong> Tia Ciata, a quem o presi<strong>de</strong>nte estava muito grata por<br />

tê-lo curado com suas rezas e ervas uma ferida na perna que nenhum médico havia conseguido curar.<br />

Ter um marido na polícia e um presi<strong>de</strong>nte da república como “cliente” era uma maneira <strong>de</strong> Ciata<br />

manter sua casa funcionando, com os bailes, sambas e candomblés 54 .<br />

Francisco Guimarães, o Vagalume, também mencionou em suas memórias as relações entre os<br />

“pais <strong>de</strong> santo” e “muita gente boa”. Segundo o cronista, entre os admiradores <strong>de</strong> Pai Assumano – o<br />

“Príncipe dos Alufás” – estava José do Patrocínio Filho, que o teria conhecido por intermédio do<br />

sambista Sinhô, que freqüentava o terreiro. Vagalume conta ainda que as festas na casa <strong>de</strong> Cypriano<br />

Abedé – “o maior Babalaô do Brasil” – também eram freqüentadas pela “gente da alta roda”,<br />

incluindo o Senador Irineu Machado, que teria pagado 20:000$000 réis para que os trabalhos <strong>de</strong><br />

Abedé lhe garantissem as eleições. Diz ainda que em frente à casa <strong>de</strong> Cypriano Abedé, na rua João<br />

Caetano, n. 69, nos dias <strong>de</strong> função, paravam gran<strong>de</strong>s fileiras <strong>de</strong> automóveis <strong>de</strong> luxo, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>de</strong>scia<br />

gente <strong>de</strong> Copacabana, Botafogo, Laranjeiras, entre outros bairros nobres. Entre a “gente escolhida” que<br />

estacionou seu automóvel em frente ao candomblé do pai <strong>de</strong> santo, já em 1930, foi o filho do próprio<br />

Presi<strong>de</strong>nte da República, o Sr. Washington Luiz. 55<br />

Ligações entre feiticeiros e elementos da elite, revelam um intenso diálogo cultural também<br />

entre pessoas <strong>de</strong> diferentes origens sociais. Tais relações vinham <strong>de</strong> longe: Gabriela dos Reis Sampaio,<br />

através da história do famoso feiticeiro <strong>negro</strong> Juca Rosa, que, na segunda meta<strong>de</strong> do século XIX<br />

mantinha relações com a “fina flor da nobreza imperial”, contou um pouco sobre as re<strong>de</strong>s que ligavam<br />

po<strong>de</strong>rosos e subordinados, as trocas culturais constantes e os conflitos permanentes que envolviam<br />

senhores e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. Segundo a autora havia um movimento <strong>de</strong> interpenetração, <strong>de</strong> mútuas<br />

54 Cunha, Maria Clementina Pereira. Op. Cit. p. 217; Moura, Roberto. Op. Cit. p. 97.<br />

123


influências, entre brancos e <strong>negro</strong>s, entre elites e subordinados, já que os escravos e outros<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes viviam no mesmo mundo e até no mesmo teto que senhores brancos, convivendo<br />

diariamente. 56<br />

Nosso amigo africano – e também seus patrícios e <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes – viveu diariamente as<br />

contradições próprias da sua época. A repressão aos ditos feiticeiros vinha <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos da Corte,<br />

agravando-se na conjuntura da Lei <strong>de</strong> 1871. Mas o Brasil, com a Proclamação da República, passou a<br />

ser um Estado Laico, on<strong>de</strong> era garantida por lei a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todas as religiões. Dessa forma, foi<br />

necessários agir nos meandros da lei para garantir a repressão aos ditos feiticeiros, contra os quais era<br />

aplicada a lei contra práticas <strong>de</strong> medicina ilegal, ou curan<strong>de</strong>irismo. Os rituais <strong>de</strong> cura realizados pelos<br />

pais e mães-<strong>de</strong>-santo – os feiticeiros - passam a ser consi<strong>de</strong>rados, tais como a vadiagem e embriagues,<br />

uma contravenção e reconhecidas como “práticas <strong>de</strong> magia e falsa medicina”. Dispositivos legais são<br />

criados para <strong>de</strong>finirem as religiões <strong>de</strong> origem africana como perigosas à saú<strong>de</strong> e contrárias à moral<br />

pública, tornando freqüentes as investidas policiais que violavam os templos e terreiros, invadiam<br />

casas e prendiam lí<strong>de</strong>res e fiéis. 57<br />

O recru<strong>de</strong>scimento da repressão, no entanto, equivaleu a um reconhecimento do quanto essas<br />

práticas ainda estavam vivas na República; mas assim como outras que lembravam um passado<br />

escravista, <strong>de</strong>veriam ser reprimidas em nome do progresso e da or<strong>de</strong>m 58 . Talvez por isso, o feiticeiro<br />

Sanin estivesse preocupado a ponto <strong>de</strong> fazer, com a ajuda <strong>de</strong> Antônio Mina e outros feiticeiros, um<br />

<strong>de</strong>spacho <strong>de</strong> 183 mil réis no Campo <strong>de</strong> Santana para que parassem <strong>de</strong> falar <strong>de</strong>les e a polícia não os<br />

incomodasse. Longe <strong>de</strong> quererem ficar eternamente se escon<strong>de</strong>ndo em becos, morros e em casinhas<br />

sórdidas com cheiro nauseabundo, como <strong>de</strong>screveu João do Rio, os <strong>negro</strong>s feiticeiros queriam exercer<br />

sua religiosida<strong>de</strong> sem interrupções <strong>de</strong> policiais como a que ocorreu em 12 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1906, quando a<br />

polícia <strong>de</strong>u uma batida na casa <strong>de</strong> um curan<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> nome Pedro Leitão, na Praça da República n. 111.<br />

55 Guimarães, Francisco (Vagalume). Na Roda do Samba. 2 a Ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: FUNART, 1983.<br />

56 Sampaio, Gabriela dos Reis. A <strong>História</strong> do Feiticeiro Juca Rosa: cultura e relações sociais no Rio <strong>de</strong> Janeiro Imperial.<br />

Tese <strong>de</strong> Doutorado, Cecult, Unicamp, 2000. No entanto, há que se estabelecer uma diferença básica sobre como eram vistas<br />

as práticas culturais dos <strong>negro</strong>s no Império e na República. Nos tempos da escravidão, o controle <strong>de</strong>ssas práticas eram<br />

feitas <strong>de</strong>ntro dos mecanismos do paternalismo, baseada principalmente na sujeição pessoal, na dominação do escravo pelo<br />

senhor. Na República, o controle às manifestações negras é institucionalizado e passam a ser um problema do estado,<br />

portanto, reprimido mais duramente. As trocas culturais, que no início do século XIX eram consi<strong>de</strong>radas habituais, mesmo<br />

que entendidas como ru<strong>de</strong>s e bárbaras, na República passam a ser entendidas como “ameaças que necessitam ser punidas<br />

mais do que anteriormente”.<br />

57 Maggie, Yvone. Medo do Feitiço: relações entre magia e po<strong>de</strong>r no Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Arquivo Nacional, 1992.<br />

58 Sampaio, Gabriela dos Reis. Op. Cit. p. 186.<br />

124


O próprio <strong>de</strong>legado daquela circunscrição, o Dr. Mário Brant, se encarregou <strong>de</strong> pren<strong>de</strong>r Leitão que,<br />

segundo o Correio da Manhã, “foi <strong>de</strong>vidamente autuado <strong>de</strong> acordo com o Código Penal” 59 .<br />

A religião era parte importante da vida daquelas pessoas e a manutenção <strong>de</strong> suas crenças e<br />

práticas religiosas tinha uma dimensão fundamental na organização <strong>de</strong> suas vidas, contribuindo para a<br />

sociabilização e articulação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Ligar-se aos “da alta roda” era uma estratégia possível <strong>de</strong><br />

sobrevivência, uma maneira <strong>de</strong> garantir proteção para dar continuida<strong>de</strong> aos seus ritos. Tais alianças<br />

podiam incluir até mesmo autorida<strong>de</strong>s policiais. João do Rio conta <strong>de</strong> um <strong>de</strong>legado que, estando<br />

“amarrado a uma paixão” conseguiu seus intuitos “graças ao prodígio <strong>de</strong> um galo preto”. 60 E,<br />

segundo Vagalume, as funções no candomblé <strong>de</strong> “Sua Majesta<strong>de</strong>” Cypriano Abedé eram<br />

perfeitamente permitidas pela polícia “em vista <strong>de</strong> ser ali uma Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências Ocultas, com<br />

organização <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> civil”. 61 Como teria Abedé obtido tal permissão? Provavelmente com uma<br />

ajudinha <strong>de</strong> seus seguidores influentes.<br />

O estivador, Ogã 62 e sambista João da Baiana também tinha suas amiza<strong>de</strong>s na política, bem<br />

pautadas em um jogo <strong>de</strong> interesses mútuos. Ele mesmo sugere ter atuado como cabo eleitoral <strong>de</strong><br />

muitos <strong>de</strong>les no cais do <strong>porto</strong>. Entre eles: Irineu Machado, o mesmo que teria pago Cypriano Abedé<br />

para fazer um trabalho que lhe garantisse o Senado. Mas também <strong>de</strong> Men<strong>de</strong>s Tavares, o candidato do<br />

presi<strong>de</strong>nte Arthur Bernar<strong>de</strong>s para o senado. O sambista conta que estes e outros ilustres, como o<br />

Coronel Costa e Marechal Hermes “viviam nas casas das baianas” 63 Segundo o próprio sambista, em<br />

um <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>poimentos, para ele e seus companheiros “era bom andar com o governo. Davam<br />

automóvel pra gente e salvo conduto para polícia.” 64 Além <strong>de</strong> ascensão social, manter relações com<br />

“gente boa” po<strong>de</strong>ria garantir-lhe salvo conduto para que homens como João da Baiana pu<strong>de</strong>ssem<br />

continuar suas macumbas, tocar seus sambas até então proibidos e exibir seus pan<strong>de</strong>iros, instrumento<br />

visto com maus olhos pela polícia como “coisa <strong>de</strong> malandro e vagabundo”. Tanto que já é famosa a<br />

história do Pan<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> João da Baiana, que, segundo ele mesmo gostava <strong>de</strong> contar nas suas<br />

entrevistas, foi furado pelo policial que o pren<strong>de</strong>u por vadiagem em 1908, quando este se dirigia à<br />

59 Correio da Manhã, 12/01/1906. Coluna: “Na polícia e nas Ruas”. p.3<br />

60 do Rio. João. As Religiões do Rio. Op. Cit.<br />

61 Guimarães, Francisco. Na Roda do Samba. Op. Cit.<br />

62 Ogã é o responsável pela música nos candomblés.<br />

63 MIS. As Vozes Desassombradas do Museu. Op. Cit. p.57.<br />

64 Entrevista <strong>de</strong> João da Baiana a Jota Efegê. Arquivo do Museu da Imagem e do Som (recorte <strong>de</strong> revista sem referência)<br />

125


Festa da Penha. Na ocasião, outro influente político, o Senador Pinheiro Machado, mandou fazer-lhe<br />

outro pan<strong>de</strong>iro e nele escreveu uma <strong>de</strong>dicatória assinada para que nunca mais a polícia o tirasse.<br />

Nesse ano, o Chefe <strong>de</strong> Polícia era o Sr. Mello Tamborim, que parece ter sido bastante duro com<br />

aqueles que consi<strong>de</strong>rava como a “malandragem” da cida<strong>de</strong>. Apesar <strong>de</strong> ter que conviver com outro<br />

instrumento <strong>de</strong> “malandros” em seu próprio nome, o Sr. Tamborim proibiu os pan<strong>de</strong>iros na Festa da<br />

Penha. Mas sempre era possível improvisar. O jornal O Paiz divulgou que tendo seus instrumentos<br />

apreendidos na entrada da festa, “os sambistas arranjavam garrafas, nas quais batiam com pedaços <strong>de</strong><br />

pau”. O jornal conta ainda que “a zona portuária marcava presença na festa”, cantando seus versos<br />

improvisados on<strong>de</strong> brincavam com o Chefe <strong>de</strong> Polícia, que tinha nome <strong>de</strong> instrumento:<br />

“quando eu vim da Bahia<br />

Passamos na Providência<br />

As baianas <strong>de</strong>ram vivas<br />

OH! Yayá tem paciência<br />

Já estou zangado<br />

não sei pra que vim,<br />

estou amolado<br />

com “seu”Tamborim” 65<br />

Práticas culturais associadas à população negra, como candomblés e sambas eram perseguidos,<br />

como já foi dito por diversos autores e pelos próprios contemporâneos em <strong>de</strong>poimentos posteriores. Ao<br />

olhar das elites, essas manifestações não eram lá muito civilizadas. No entanto, apesar <strong>de</strong> toda<br />

repressão sofrida, esses homens e mulheres souberam, <strong>de</strong> diferentes formas, dialogar com novas regras<br />

e manter seu espaço.<br />

A região que ia do cais do <strong>porto</strong> aos arredores do Campo <strong>de</strong> Santana (atual Praça da<br />

República), foi palco <strong>de</strong> inúmeras vivências dos <strong>negro</strong>s do <strong>porto</strong> e da afirmação e reorganização <strong>de</strong><br />

antigas práticas culturais dos <strong>negro</strong>s. Mas também foi um lugar privilegiado no sentido da troca <strong>de</strong><br />

experiências entre eles e pessoas <strong>de</strong> diferentes cores, nacionalida<strong>de</strong>s e culturas. Essas relações eram<br />

estabelecidas nos diversos espaços <strong>de</strong> convivência, como nos bares, nas habitações coletivas, nos<br />

65 O Paiz, 05/10/1908.<br />

126


carregamentos <strong>de</strong> café, nas casas <strong>de</strong> santo, nas festas religiosas 66 e no profano carnaval que tinha ali<br />

um dos principais redutos da folia da gente pobre. Gente que costumava se divertir durante os dias <strong>de</strong><br />

folguedo nos cordões e nos ranchos que saíam nas ruas próximas à Praça da República. Mas que<br />

também se divertia durante todo o ano nos bailes dançantes organizados pelas mesmas agremiações<br />

que faziam a festa durante três dias do mês <strong>de</strong> fevereiro. Entre esses trabalhadores pobres, iremos<br />

encontrar muitos portuários curtindo, mas também organizando a festa...<br />

Folias Portuárias<br />

O carnaval <strong>de</strong> 1911 <strong>de</strong>ve ter sido um pouco mais animado que os outros para gran<strong>de</strong> parte dos<br />

moradores da zona portuária e também <strong>de</strong> outros pontos da cida<strong>de</strong>. Um grupo <strong>de</strong> foliões seguiu um<br />

rancho que pela primeira vez saiu <strong>de</strong> sua se<strong>de</strong> na Rua Barão <strong>de</strong> São Félix, n. 283 e <strong>de</strong>sfilou pelas ruas<br />

do centro do Rio exibindo seu estandarte nas cores roxa e branca. À frente, o diretor <strong>de</strong> harmonia João<br />

Machado Gue<strong>de</strong>s comandava os pan<strong>de</strong>iros, tamborins e bombos que marcavam o andamento da<br />

marcha e davam o ritmo ao percurso que o rancho faria 67 . Pelas ruas, ouviam-se o coro:<br />

“(...) Ouço cantar, que alegria<br />

Vejo o Kananga, na folia (...)” 68<br />

Era o “Kananga do Japão” que, tendo sido fundado no ano anterior, fazia o primeiro dos muitos<br />

outros <strong>de</strong>sfiles que animaram o carnaval carioca e que tornou o Kananga um dos mais famosos ranchos<br />

da cida<strong>de</strong>. Mas não era a primeira vez que João Machado Gue<strong>de</strong>s, então com 23 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>,<br />

participava <strong>de</strong> um rancho. Muito antes, quando contava apenas 10 anos, João já figurava como portamachado<br />

69 do “Filhos da Jardineira” e do “Botão <strong>de</strong> Rosas”, tendo ao seu lado outros “moleques” com<br />

que convivia na infância, tais como Antoninho, Tem-Dengo, Getúlio Marinho, Donga e Heitor dos<br />

Prazeres. João foi o único carioca dos doze filhos do casal <strong>de</strong> baianos Félix José Gue<strong>de</strong>s e “tia”<br />

Perciliana Maria Constança, daí o apelido que recebeu ainda menino e que levou por toda a vida: João<br />

da Baiana. Sob esse nome, tornou-se um sambista famoso, autor <strong>de</strong> sambas conhecidos como<br />

66<br />

Muitas festas religiosas da cida<strong>de</strong> aconteciam no Campo <strong>de</strong> Santana. Entre as mais importantes, está a Festa do Divino<br />

Espírito Santo. Cf.: Abreu, Martha. Op. Cit.<br />

67<br />

Efegê, Jota. Figuras e Coisas do Carnaval Carioca. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Funarte, 1982.<br />

68<br />

Jornal do Brasil, 24/03/1970. Jota Efegê.<br />

127


“Batuque na Cozinha”, “Cabi<strong>de</strong> <strong>de</strong> Molambo” e “Patrão prenda seu gado”, sucessos ainda hoje em<br />

qualquer roda <strong>de</strong> samba.<br />

Neto <strong>de</strong> ex-escravos, nasceu em maio <strong>de</strong> 1887, um ano antes da abolição da escravatura. Foi<br />

criado na Rua Senador Pompeu, no bairro portuário da Saú<strong>de</strong> – a Rua do Peu, como ele e seus<br />

companheiros <strong>de</strong> samba costumavam chamar – e, como muitos homens <strong>negro</strong>s que viviam naquela<br />

região, tornou-se estivador ainda na primeira década do século XX, aos 20 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Mas quando<br />

não estava literalmente pegando pesado no cais do <strong>porto</strong>, João da Baiana podia ser facilmente<br />

encontrado em alguma das muitas associações carnavalescas espalhadas pela cida<strong>de</strong>, ou no terreiro <strong>de</strong><br />

seu pai-<strong>de</strong>-santo João Alabá que ficava na mesma rua do seu “Kananga do Japão”, na Barão <strong>de</strong> São<br />

Félix.<br />

Figura 8<br />

João da Baiana<br />

Morador da Zona Portuária durante boa parte <strong>de</strong> sua vida, João da<br />

Baiana freqüentou a região durante toda sua juventu<strong>de</strong>. Era lá que estava sua<br />

família, seus amigos, seu terreiro, seu trabalho e boa parte <strong>de</strong> sua diversão.<br />

Mas não se contentou só com aquele pedacinho da cida<strong>de</strong> e, como sambista<br />

e folião conquistou muitos outros espaços: da Praça Tira<strong>de</strong>ntes à Lapa<br />

Boêmia; do Morro da Favela ao morro <strong>de</strong> São Carlos, no Estácio; da Praça<br />

Onze ao Palácio das Laranjeiras. João da Baiana conviveu entre prostitutas,<br />

capoeiras e governadores e, apesar <strong>de</strong> ter morrido pobre e relativamente<br />

esquecido, foi imortalizado posteriormente como sendo um dos maiores<br />

sambistas <strong>de</strong> todos os tempos.<br />

Em várias entrevistas e memórias escritas sobre João da Baiana fica clara a sua participação em<br />

vários ranchos da cida<strong>de</strong>, talvez uma vocação inspirada em seus pais, que junto com outros migrantes<br />

trouxeram da Bahia a tradição <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> festejo. De fato, a organização dos ranchos durante o<br />

carnaval parece mesmo ter sido obra principalmente dos <strong>negro</strong>s baianos que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a segunda do XIX,<br />

se instalaram nos bairros da Saú<strong>de</strong>, Gamboa e Cida<strong>de</strong> Nova. Central nesse processo foi a figura <strong>de</strong><br />

Hilário Jovino Ferreira, Ogã do terreiro <strong>de</strong> João Alabá que fundou vários ranchos importantes no Rio<br />

69 Porta-machado é uma espécie <strong>de</strong> guarda <strong>de</strong> honra do porta-estandarte, que abria os <strong>de</strong>sfiles dos ranchos..<br />

128


<strong>de</strong> Janeiro, como “A Jardineira” e o “Rei <strong>de</strong> Ouros”, este último contando com a “proteção espiritual”<br />

<strong>de</strong> Assumano Mina do Brasil, como contou Vagalume.<br />

Hilário chegou na cida<strong>de</strong> em fins do século XIX 70 e, apesar <strong>de</strong> pernambucano <strong>de</strong> nascença, teve<br />

um importante papel junto à comunida<strong>de</strong> baiana que se formou em torno da região. Era filho <strong>de</strong> exescravos<br />

alforriados que se mudaram <strong>de</strong> Pernambuco para Salvador, on<strong>de</strong> viveu antes <strong>de</strong> chegar no Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro. A exemplo <strong>de</strong> Tia Ciata e seu marido, bem como João da Baiana e outros, Hilário Jovino<br />

também buscou alianças com gente “da alta” e, como muitos outros migrantes daquela época, filiou-se<br />

à Guarda Nacional em busca <strong>de</strong> proteção e enraizamento na nova cida<strong>de</strong>. O Lalau <strong>de</strong> Ouro, como era<br />

conhecido na época, morou em vários en<strong>de</strong>reços da zona portuária, como a Pedra do Sal e o Beco João<br />

Inácio, no Morro da Conceição. E como João da Baiana e muitos outros <strong>negro</strong>s que viviam na região,<br />

também labutou no cais do <strong>porto</strong> carioca 71 .<br />

As ruas que circundavam a Praça da Republica – palco da grandiosa festa do Divino Espírito<br />

Santo 72 – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos imperiais, quando ainda se chamava Campo <strong>de</strong> Santana, era o principal<br />

espaço festeiro da cida<strong>de</strong>. O lugar era especialmente propício a esses encontros: era aí que ficava a<br />

Estação Central do Brasil, que ligava os subúrbios ao centro da cida<strong>de</strong>; se as áreas mais nobres da<br />

cida<strong>de</strong> eram ocupadas pelos foliões mais “civilizados”, àquele lugar restavam os foliões menos<br />

favorecidos que, com seus cordões, blocos e ranchos animavam o carnaval dos trabalhadores pobres.<br />

No mais, as agremiações sempre po<strong>de</strong>riam contar com uma ajudinha do comércio local que, formado<br />

especialmente pelos mesmos bares, quiosques, cafés, etc., muito se interessava pelo gran<strong>de</strong> público<br />

que concorria aos festejos. Assim, no carnaval, a região era palco das festas promovidas pelas<br />

associações carnavalescas locais, mas também <strong>de</strong> outros bairros pobres da cida<strong>de</strong>, que ali se<br />

encontravam nos dias <strong>de</strong> folguedo, fazendo <strong>de</strong> suas ruas e praças o pedaço mais animado da cida<strong>de</strong>. Ao<br />

menos para a população pobre, o que fazia dali também a parte mais “suspeita” e vigiada.<br />

No início do século XX, as freguesias <strong>de</strong> Santana, Espírito Santo e Santa Rita, on<strong>de</strong> está<br />

localizada a zona portuária e a Cida<strong>de</strong> Nova, concentravam, entre os anos <strong>de</strong> 1901 e 1910, 37% das<br />

agremiações carnavalescas, entre ranchos, cordões e outras socieda<strong>de</strong>s, sendo que em maior número<br />

70 As fragmentadas referências biográficas apontam que ele chegou adulto no Rio <strong>de</strong> Janeiro em 1870, tendo vindo da<br />

Bahia. No entanto, alguns indícios indicam que essa data não é compatível com sua trajetória, sendo o mais provável que<br />

1870 seja o ano <strong>de</strong> seu nascimento. Um exemplo <strong>de</strong>sses indícios é a comparação com a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Tia Ciata, que morreu na<br />

década <strong>de</strong> 20 antes <strong>de</strong> completar 60 anos. A bibliografia conta que entre Ciata e Jovino não havia muita diferença <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.<br />

Assim, se ele tivesse chagado adulto em 1870, ele seria muito mais velho que Ciata. Além disso, consta que ele fundou o<br />

Rei <strong>de</strong> Ouros assim que chegou na cida<strong>de</strong>. No entanto, não se tem notícias <strong>de</strong>sse rancho antes <strong>de</strong> 1890. ...<br />

71 Cf. Cunha, Maria Clementina Pereira. Op. Cit. E Moura, Roberto. Op. Cit.<br />

129


estavam os "terríveis cordões", vistos com negativida<strong>de</strong> pelos foliões mais "requintados", assim como<br />

pelos jornalistas e a polícia 73 .<br />

Segundo Maria Clementina Pereira Cunha, essa negativida<strong>de</strong> era dada principalmente aos<br />

grupos originários da parte mais pobre da cida<strong>de</strong>, ou seja, dos morros, da Cida<strong>de</strong> Nova e das<br />

imediações do <strong>porto</strong>. Para a autora,<br />

"se era aí, nesse pedaço da Capital Fe<strong>de</strong>ral, que se concentrava a maior parte da população (e esta foi sempre<br />

pobre, negra, pouco dada a versos feitos com técnica ou a minuetos <strong>de</strong> salão), era também nela que se concentrava<br />

o Carnaval <strong>de</strong> rua tido como <strong>de</strong>sagradável e primitivo, capaz <strong>de</strong> atormentar os poetas, que o chamavam <strong>de</strong><br />

"cordões" como um meio <strong>de</strong> discriminação e <strong>de</strong>núncia". 74<br />

O sambista Donga, também morador e freqüentador da região e famoso por ter em seu nome o<br />

primeiro samba registrado com esse nome, o Pelo Telefone, fala daquela parte da cida<strong>de</strong> em seu<br />

<strong>de</strong>poimento ao Museu da Imagem e do Som:<br />

“(...) Lá era o Quartel-General <strong>de</strong>vidamente assessorado pelo gran<strong>de</strong> Hilário Jovino. Lá pelos lados do Depósito,<br />

da Saú<strong>de</strong>, é on<strong>de</strong> estavam os baianos. Também na Rua do Costa. Mais para o centro tinha a Rua da Alfân<strong>de</strong>ga, a<br />

rua do Hospício, atual Buenos Aires (...). Ali, era tudo <strong>negro</strong> mina, era tudo africano, tudo baiano.” 75<br />

72 Sobre a festa do Divino, ver: Abreu, Martha. Op. Cit.<br />

73 Cunha, Maria Clementina Pereira. Op. Cit. p. 166<br />

74 I<strong>de</strong>m.<br />

75 MIS, As Vozes Desassombradas do Museu. Op. Cit. p. 78.<br />

130


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João do Rio afirmou que, “o Carnaval teria <strong>de</strong>saparecido se não fosse o entusiasmo dos grupos<br />

da Gamboa, do Saco, da Saú<strong>de</strong> e da Cida<strong>de</strong> Nova” 76 . Se fizermos mais um passeio pelas ruas da região<br />

na virada do século XIX para o XX, iremos encontrar inúmeras associações carnavalescas e dançantes<br />

vizinhas aos candomblés, cortiços e bares que proliferavam aos montes na região. Algumas tinham<br />

suas se<strong>de</strong>s nesses mesmos espaços, como o “Bloco Carnavalesco Chora na Macumba” que funcionou<br />

em uma casa <strong>de</strong> cômodos da Barão <strong>de</strong> São Félix n. 152. Algumas ainda dividiam a mesma se<strong>de</strong>, como<br />

a “União das Flores”, que funcionou no início do século XX na rua General Caldwell, n. 47, mesmo<br />

en<strong>de</strong>reço da “Socieda<strong>de</strong> Carnavalesca Teimosos das Chamas” e da “Amadores da Estrela”.<br />

Só no trecho que compreen<strong>de</strong> as ruas Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Itaúna, Senador Pompeu, Senador Eusébio e<br />

Barão <strong>de</strong> São Felix, iremos encontrar, além das casas <strong>de</strong> santo e dos cortiços já mencionados páginas<br />

atrás, muitas outras “casas suspeitas”. Só nesse pedacinho da região estavam os “terríveis” cordões<br />

Rompe e Rasga, Teimosos Carnavalescos, Estrela da Aurora, Filhos do Inferno, Triumpho <strong>de</strong> São<br />

Lourenço, Nação Angola, Filho <strong>de</strong> Satã, entre outros. Ali também se instalaram muitos ranchos, como<br />

o Pedra do Sal, o Rosa Branca (que saía da casa da Tia Ciata) e o Rei <strong>de</strong> Ouros, fundado por Hilário<br />

Jovino, só para citar alguns dos mais famosos. 77 Todas essas ruas já são conhecidas por nós por terem<br />

sido palco dos encontros <strong>de</strong> Antônio Mina, Cardosinho, Bexiga, Pernambuco e outros com a polícia,<br />

além <strong>de</strong> ter sido o en<strong>de</strong>reço <strong>de</strong>stes e <strong>de</strong> muitos outros trabalhadores do <strong>porto</strong> carioca. Dessa forma, a<br />

associação pela polícia <strong>de</strong> muitas <strong>de</strong>ssas organizações com os “vagabundos” e “<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iros<br />

conhecidos” era inevitável e justificava, pelo menos aos seus olhos, a atuação repressiva.<br />

Como João da Baiana, outros trabalhadores do <strong>porto</strong> ficaram famosos por sua participação na<br />

organização <strong>de</strong> associações carnavalescas. Elói Antero Dias, por exemplo, mais conhecido por Mano<br />

Elói, fazia parte do quadro <strong>de</strong> sócios da “Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e<br />

Café” <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pelo menos 1910 78 e sua atuação como organizador <strong>de</strong> ranchos e blocos carnavalescos<br />

andava junto com sua atuação na política portuária. Nascido no ano <strong>de</strong> 1889 em Resen<strong>de</strong>, interior do<br />

Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro, Mano Elói chegou na cida<strong>de</strong> carioca em 1903 e morou e freqüentou a zona<br />

76 do Rio, João. “Cordões”. In: A Alma Encantadora das Ruas. Op. Cit. p. 230.<br />

77 Cunha, Maria Clementina Pereira. Op. Cit. p. 168<br />

78 Livro <strong>de</strong> Matrículas da Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, encontrado no Arquivo do atual<br />

Sindicato dos Arrumadores do Rio <strong>de</strong> Janeiro. O nome <strong>de</strong> Elói Antero Dias consta como filiado em 1910, mas sua filiação<br />

po<strong>de</strong> ser anterior, pois nesse livro estão os nomes <strong>de</strong> alguns sócios fundadores como admitidos no sindicato neste mesmo<br />

ano.<br />

132


portuária durante muito tempo, antes <strong>de</strong> fixar residência no Morro da Serrinha, no bairro suburbano <strong>de</strong><br />

Madureira, on<strong>de</strong> foram morar muitos outros portuários expulsos pelas reformas urbanas na segunda<br />

década do século XX. Nos seus tempos <strong>de</strong> menino, costumava ven<strong>de</strong>r balas no Campo <strong>de</strong> Santana e,<br />

mais tar<strong>de</strong>, já atuando no cais, costumava percorrer os redutos <strong>de</strong> sambistas da cida<strong>de</strong>, na Pedra do Sal,<br />

no Morro da Favela e Santo Antônio, além <strong>de</strong> ser freqüentador <strong>de</strong> terreiros <strong>de</strong> macumba. 79<br />

Mas, ao contrário <strong>de</strong> seu colega <strong>de</strong> profissão, sua atuação como sambista e organizador <strong>de</strong><br />

blocos e ranchos parece ter sido mais forte nos subúrbios cariocas. Na década <strong>de</strong> 20 participou<br />

ativamente da fundação das escolas <strong>de</strong> samba Deixa Malhar e Portela, além do Bloco Carnavalesco<br />

Prazer da Serrinha. Tempos <strong>de</strong>pois, já na década <strong>de</strong> 40, Mano Elói fundou, junto a outros sambistas<br />

que trabalharam no cais do <strong>porto</strong>, como Sebastião Molequinho, João “Gradim” e sobrinho <strong>de</strong> Hilário<br />

Jovino – Aniceto do Império – uma das mais antigas escolas <strong>de</strong> samba do Rio, a Império Serrano,<br />

her<strong>de</strong>ira do antigo Prazer da Serrinha. Até os dias <strong>de</strong> hoje, os membros do “Resistência”, atualmente<br />

chamado <strong>de</strong> "Sindicato dos Arrumadores do Rio <strong>de</strong> Janeiro", têm entrada livre na quadra da Império<br />

Serrano, bastando apresentar a carteira <strong>de</strong> sindicalizado 80 .<br />

Mas, para além dos estivadores que ficaram mais ou menos famosos no mundo do samba e do<br />

carnaval, como João da Baiana, Hilário Jovino, Mano Elói, Sebastião Molequinho, Aniceto da<br />

Serrinha, João Gradim, etc., certamente muitos outros homens do cais tomaram parte dos inúmeros<br />

grupos festeiros da cida<strong>de</strong>. Associações carnavalescas em geral e clubes dançantes eram, junto aos<br />

botequins, a principal forma <strong>de</strong> lazer da população pobre em geral. É importante percebermos essa<br />

ligação mais íntima que muitos dos portuários mantinham com alguns <strong>de</strong>sses centros recreativos, pois<br />

tanto quanto as <strong>de</strong> cunho sindical, elas marcaram a experiência dos portuários, fazendo parte do<br />

universo cultural daqueles trabalhadores. O sambista Bucy Moreira, neto <strong>de</strong> Tia Ciata, lembrou dos<br />

homens que freqüentavam as festas <strong>de</strong> sua avó, incluindo seus próprios familiares:<br />

“eles eram <strong>de</strong> festa, mas também <strong>de</strong> trabalho (...) A maioria trabalhava na estiva. Tive mais <strong>de</strong> vinte primos na<br />

estiva, conferentes, estivadores. Tive um primo presi<strong>de</strong>nte da estiva (...)”. 81<br />

79 Cf. Valença, Rachel. Serra, Serrinha, Serrano: O Império do Samba. Rio <strong>de</strong> Janeiro: J. Olympio, 1981.<br />

80 Conversas com os membros do Sindicato dos Arrumadores do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Especialmente o "seu" Mesquita.<br />

81 Moura, Roberto. Op. Cit. p.71<br />

133


Roberto Moura reforça a relação entre os trabalhadores portuários e a organização do carnaval.<br />

Segundo ele, como sindicato <strong>negro</strong>, a "Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e<br />

Café" teve o seu próprio rancho: o Recreio das Flores, na Saú<strong>de</strong>, que teria Marinho da Costa Jumbeba,<br />

neto <strong>de</strong> Tia Ciata, como mestre sala. Sua irmã Lili Jumbeba relembrou os tempos em que o rancho<br />

brilhava em seus <strong>de</strong>sfiles:<br />

“O Recreio trazia aqueles holofotes do cais, que ele era estivador e tinha licença <strong>de</strong> trazer. O Recreio das Flores<br />

era do cais do <strong>porto</strong>, podia outro vir bom, mas o Recreio tinha que ganhar (...)” 82<br />

O Recreio das Flores funcionou em diferentes en<strong>de</strong>reços da zona portuária que já conhecemos<br />

bem. Até pelo menos 1908 teve se<strong>de</strong> na Rua Barão <strong>de</strong> São Félix, 211; em 1912 na Rua da Saú<strong>de</strong>, 231 e<br />

em 1913 funcionava na Rua do Livramento, 83. Em 1912, Miguel Rosso, sócio-fundador da “União<br />

Operária dos Estivadores”, era o Vice-Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>ste rancho, que contava com a presença <strong>de</strong> outros<br />

estivadores entre os membros <strong>de</strong> sua diretoria. 83 Certamente, este rancho fez a alegria <strong>de</strong> muitos<br />

portuários nos dias <strong>de</strong> carnaval, mas também nos bailes que promovia durante o ano. No entanto, nem<br />

sempre tudo eram flores para o Recreio das Flores e em alguns momentos a polícia se intrometeu nos<br />

planos dos foliões. Assim, se no ano <strong>de</strong> 1913 o comissário <strong>de</strong> polícia João Inácio do Espírito Santo<br />

informou ao Chefe <strong>de</strong> Polícia que a dita socieda<strong>de</strong> era composta <strong>de</strong> “<strong>de</strong> operários, estivadores e<br />

empregados do comércio, rapazes or<strong>de</strong>iros contra os quais nada consta nesta <strong>de</strong>legacia” 84 , em alguns<br />

momentos não era essa a opinião das autorida<strong>de</strong>s.<br />

No ano <strong>de</strong> 1915, por exemplo, o Recreio das Flores não teve permissão para continuar suas<br />

ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> lazer, frustrando as expectativas <strong>de</strong> seus seguidores. O comissário Salvio <strong>de</strong> Azevedo, da<br />

4 a DP, assim escreveu ao Chefe <strong>de</strong> Polícia:<br />

“(...) informo que nada me consta que <strong>de</strong>sabone a Diretoria do Clube Recreio das Flores (...), no entanto os sócios<br />

e freqüentadores do aludido clube, são ladrões, vigaristas e indivíduos que vivem exclusivamente <strong>de</strong> jogos <strong>de</strong> azar<br />

e por diversas vezes presos e alguns processados por esta <strong>de</strong>legacia. O fim do clube é explorar jogos <strong>de</strong> azar <strong>de</strong><br />

toda espécie e reunir em sua se<strong>de</strong> os indivíduos citados acobertados por uma Diretoria composta <strong>de</strong> membros que<br />

graciosamente xxx (sic) as suas assinaturas como Diretores sem a menor responsabilida<strong>de</strong> ou intervenção direta". 85<br />

82 Moura, Roberto. Op. Cit. p.72<br />

83 Banco <strong>de</strong> Dados Clubes e Socieda<strong>de</strong>s (BDCS). Reg. 1493; GIFI - 6C - 367 (pacote 418, Caixa 5556)<br />

84 BDCS – reg. 240; GIFI - 6C – 432 (pacote 459, Caixa 5621)<br />

134


Aos olhos das autorida<strong>de</strong>s policiais, apesar <strong>de</strong> nada <strong>de</strong> concreto <strong>de</strong>sabonar sua diretoria, o<br />

Recreio das Flores tornava-se um perigo na medida em que seus sócios eram reconhecidos por<br />

“ladrões e vigaristas” que, segundo comissário, eram acobertados pela diretoria. Na opinião da polícia,<br />

a finalida<strong>de</strong> do clube, longe <strong>de</strong> ser a <strong>de</strong> diversão <strong>de</strong> trabalhadores pobres, era promover os jogos <strong>de</strong><br />

azar. Talvez o fato <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>les já terem sido processados pela polícia dava margem para que<br />

fossem consi<strong>de</strong>rados “ladrões e vigaristas”.<br />

Em artigo sobre Clubes Recreativos no Rio <strong>de</strong> Janeiro da segunda década do século XX,<br />

Leonardo Pereira apontou constantes diferenças na forma como participantes e autorida<strong>de</strong>s viam esses<br />

clubes. Mas esta visão negativa não era uma peculiarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comissários e <strong>de</strong>legados. Para o autor,<br />

cronistas <strong>de</strong> jornais cariocas também ajudaram a construir uma visão negativa dos clubes dançantes.<br />

Sempre os caracterizando como “antros <strong>de</strong> perdição e violência”, para muitos esses clubes eram o<br />

lugar da “fina flor da zona escura”, on<strong>de</strong> o “<strong>negro</strong> <strong>de</strong> azeviche” dançava com a dama “da mesma cor”,<br />

como se referiu o Correio da Manhã ao “Recreio das Turmalinas”, em 1916. Essa imagem pejorativa<br />

que o jornalista construiu do clube indica o abismo que separava as concepções dos letrados sobre<br />

aqueles bailes e o modo como eram vividos pelos que ali encontravam sua diversão. 86 Freqüentados<br />

especialmente por trabalhadores pobres, gente que atuava no serviço informal, gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>les<br />

pretos e pardos, as reuniões nesses clubes festeiros representavam um perigo para aqueles que não iam<br />

a seus salões.<br />

Para que as socieda<strong>de</strong>s recreativas pu<strong>de</strong>ssem festejar o carnaval ou promover bailes dançantes<br />

nos outros dias do ano, era preciso antes tirar uma licença, que <strong>de</strong>veria ser renovada anualmente. Esses<br />

pedidos eram encaminhados às autorida<strong>de</strong>s policiais, que investigavam a socieda<strong>de</strong> em questão e<br />

<strong>de</strong>cidiam se concediam a licença ou não. Para que pu<strong>de</strong>ssem continuar com seus divertimentos, era<br />

preciso “provar” que eram pessoas or<strong>de</strong>iras, interessadas apenas em divertirem-se sem maiores<br />

conseqüências. Mas, como aconteceu com o Recreio das Flores nem sempre as coisas aconteciam<br />

como o planejado, e muitos clubes tiveram seus pedidos <strong>de</strong> licença in<strong>de</strong>feridos, ou suspensos. O<br />

“Clube Couraceiros do Inferno”, por exemplo, em 1914 teve seu pedido <strong>de</strong> licença negado pelas<br />

autorida<strong>de</strong>s. Com se<strong>de</strong> na Rua <strong>de</strong> Santana, n.55, na Praça Onze, o clube foi consi<strong>de</strong>rado pelo inspetor<br />

do corpo <strong>de</strong> segurança como um local "freqüentado por homens e mulheres <strong>de</strong> baixa esfera, que ali<br />

85 BDCS – reg. 1900; GIFI – IJ 6 563<br />

86 Pereira, Leonardo Afonso <strong>de</strong> Miranda. “E o Rio Dançou: i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e tensões nos clubes recrativos cariocas (1912-<br />

1922)”. In: Cunha, Maria Clementina Pereira da. Carnavais e outras F(r)estas: ensaios <strong>de</strong> história social da cultura.<br />

Campinas, SP: Ed. da Unicamp, Cecult, 2002.<br />

135


provocam constantes conflitos, tendo, há pouco tempo, havido um assassinato em sua se<strong>de</strong>." E o<br />

comissário <strong>de</strong> segurança pediu seu fechamento "como medida <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m social", já que na sua visão, os<br />

que participavam das festas do “Couraceiros” era a "escória social." 87<br />

Em 1915 Cypriano José <strong>de</strong> Oliveira, presi<strong>de</strong>nte da “Socieda<strong>de</strong> Familiar Dançante e<br />

Carnavalesca Clube dos Mangueiras”, com se<strong>de</strong> na Vila <strong>de</strong> Marechal Hermes, encaminhou um pedido<br />

<strong>de</strong> licença para que sua socieda<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse funcionar. O Chefe <strong>de</strong> Polícia pe<strong>de</strong> informações ao Inspetor<br />

da 2 a Delegacia Auxiliar sobre a diretoria do Clube. Este, respon<strong>de</strong> com as seguintes palavras:<br />

“A Socieda<strong>de</strong> Dançante e Carnavalesca Club das Mangueiras tem a sua se<strong>de</strong> em um botequim à Av. 1 o <strong>de</strong> Maio<br />

n.6, na Vila <strong>de</strong> Marechal Hermes. Cypriano José <strong>de</strong> Oliveira é o presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sta socieda<strong>de</strong>; figura nesta seção<br />

registrado em prontuário, como grevista, e como tal já foi processado. Caralampio Trille é sócio <strong>de</strong>ste Clube, esse<br />

mesmo indivíduo é agitador, revolucionário perigoso, e em 1904 esteve envolvido e tomou parte saliente nas<br />

greves e acontecimentos ocorridos neste ano. (...) os <strong>de</strong>mais sócios são operários e empregados da estiva” 88<br />

É interessante perceber, como apontou Cunha, o esforço policial em associar formas diversas<br />

<strong>de</strong> “perigo”: a um grupo <strong>de</strong> foliões on<strong>de</strong> figuram grevistas, revolucionários e talvez metidos com a<br />

revolta da vacina, junta-se o fato da se<strong>de</strong> funcionar em um botequim. Era o mais que o suficiente para<br />

que a suspeição que recaía sobre esse tipo <strong>de</strong> agremiação tomasse forma. 89 O sócio “agitador e<br />

revolucionário” <strong>de</strong> nome suspeito era um espanhol anarquista com um longo histórico <strong>de</strong> militância em<br />

seu país e que, no Brasil, participou <strong>de</strong> várias socieda<strong>de</strong>s operárias, ajudando a fundar jornais<br />

libertários como A Greve, em 1903. No início dos anos 1910, Caralampio Trille presidia a Socieda<strong>de</strong><br />

Operária Fraternida<strong>de</strong> e Progresso da Gávea. 90 Já o “grevista” Cypriano José <strong>de</strong> Oliveira era<br />

carregador no cais do <strong>porto</strong> já havia sido Fiscal Geral e até Presi<strong>de</strong>nte do “Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência<br />

dos Trabalhadores em Trapiche e Café”, on<strong>de</strong> exercia forte militância no cais. Essas informações não<br />

agradaram muito às autorida<strong>de</strong>s policiais. Com uma diretoria potencialmente “perigosa”, o pedido <strong>de</strong><br />

licença foi negado ao Clube dos Mangueiras.<br />

Em março <strong>de</strong> 1912, a “Socieda<strong>de</strong> Carnavalesca Triunfo dos Beija-Flores” encaminhou o pedido<br />

<strong>de</strong> licença anual para que pu<strong>de</strong>sse funcionar. A socieda<strong>de</strong> tinha se<strong>de</strong> na rua Bom Jesus do Monte, n. 7,<br />

87 BD – rg. 9245. GIFI. pacote 489, caixa 5668<br />

88 BDCS – reg.1849; GIFI IJ6 135.<br />

89 Cunha, Maria Clementina Pereira. Op. Cit. p. 201.<br />

90 Sobre Caralampio Trille: A Epoca 19/09/1913 e 3/10/1913; Cruz, Maria Cecília Velasco e. Op. Cit.1998. p. 260.<br />

136


no Morro da Favela e tinha como membros <strong>de</strong> sua diretoria homens <strong>de</strong> diferentes profissões. O<br />

presi<strong>de</strong>nte Antônio Campos dos Santos não <strong>de</strong>clarara profissão, mas o vice, Severino Eduardo<br />

Pimentel era pedreiro; o 1º Secretário, Joaquim <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Bastos era portuário e trabalhava nas<br />

<strong>de</strong>scargas da estação marítima; o 2º Secretário, Francisco <strong>de</strong> Mello e Albuquerque era operário do<br />

arsenal <strong>de</strong> marinha; o fiscal Julio <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Bastos trabalhava como adido na Estrada <strong>de</strong> Ferro<br />

Central e o 2º Fiscal, Joaquim Bernardo, disse trabalhar em um armazém 91 . Apesar das informações<br />

não serem claras, encontramos um Joaquim Bernardo entre os sócios fundadores da União Operária<br />

dos Estivadores, po<strong>de</strong>ndo se tratar da mesma pessoa 92 .<br />

No dia 20 <strong>de</strong> março, o inspetor do corpo <strong>de</strong> segurança informou ao Chefe <strong>de</strong> Polícia que aquela<br />

socieda<strong>de</strong> era composta <strong>de</strong> “<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iros e vagabundos, não se encontrando pessoa alguma que<br />

abonasse a conduta dos mesmos”. Na semana seguinte, em um parecer divergente do inspetor, o<br />

comissário esclarecia que a mesma socieda<strong>de</strong> era composta <strong>de</strong> “homens do trabalho com domicílio<br />

certo, não havendo inconveniente algum na aprovação dos estatutos”. Alguns dias <strong>de</strong>pois o inspetor se<br />

pronuncia novamente com resultados <strong>de</strong> uma sindicância em que apurou que alguns membros da dita<br />

socieda<strong>de</strong> já haviam tido problemas com a polícia. Diante da divergência <strong>de</strong> opiniões entre as<br />

autorida<strong>de</strong>s, ficou <strong>de</strong>cidido que a licença seria concedida caso fossem eliminados <strong>de</strong> seus quadros, os<br />

“elementos nocivos”. Ao contrário do que muitas vezes ocorria em situações semelhantes, a licença foi<br />

concedida dias <strong>de</strong>pois. No entanto, o 2 o <strong>de</strong>legado informou que o presi<strong>de</strong>nte se comprometera a<br />

eliminar os sócios “nocivos”. Esse comprometimento do presi<strong>de</strong>nte da tal socieda<strong>de</strong> parece ter sido o<br />

diferencial para que a licença fosse liberada.<br />

No entanto, não sabemos se os tais sócios consi<strong>de</strong>rados nocivos, ou seja, os “<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iros e<br />

vagabundos” apontados pelo inspetor foram mesmo eliminados dos quadros da socieda<strong>de</strong> ou se aquela<br />

foi apenas uma estratégia para que a socieda<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse conseguir a licença. Afinal, existe aqui um<br />

diferencial entre o olhar da polícia e o olhar dos próprios membros da socieda<strong>de</strong>. Provavelmente, nem<br />

o presi<strong>de</strong>nte e nem os outros membros se viam <strong>de</strong>sta forma e não tinham <strong>de</strong> si a imagem que o inspetor<br />

<strong>de</strong> segurança tentou projetar. Nem mesmo o comissário parecia compartilhar da opinião do inspetor,<br />

numa prova do quão subjetivo po<strong>de</strong>ria ser o julgamento. Talvez só o fato <strong>de</strong> funcionar no Morro da<br />

Favela e parte da sua diretoria ser composta por homens <strong>de</strong> profissões simples e eventuais, como<br />

pedreiros, carregadores e trabalhadores em armazéns, fosse o motivo do inspetor consi<strong>de</strong>rar a<br />

91<br />

BD – rg. 793. GIFI. pacote 416, caixa 5553<br />

92<br />

Lista <strong>de</strong> nomes dos sócios fundadores da União dos Estivadores em: Almeida, Luiz Gustavo Nascimento <strong>de</strong>. Op. Cit. p.<br />

52.<br />

137


socieda<strong>de</strong> perigosa e seus membros “<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iros e vagabundos”. De qualquer forma, mais do que<br />

expressar que concordavam com a visão da autorida<strong>de</strong>, ao prometer a eliminação dos sócios “nocivos”,<br />

os membros da socieda<strong>de</strong> estariam buscando uma maneira <strong>de</strong> continuar seus divertimentos e evitar<br />

problemas com a polícia. Casos como estes po<strong>de</strong>m nos aproximar das experiências dos trabalhadores<br />

do <strong>porto</strong> nos momentos <strong>de</strong> lazer, além <strong>de</strong> indicar como as autorida<strong>de</strong>s atuavam na vida <strong>de</strong>ssas pessoas<br />

e a imensa diferença entre a percepção que estes trabalhadores tinham <strong>de</strong> suas próprias práticas e a<br />

visão da polícia.<br />

No entanto, a relação da polícia com aqueles divertimentos nem sempre era tão dura e<br />

dicotômica. No dia 23 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1904, por exemplo, o Correio da Manhã divulgou uma crítica a um<br />

policial que teria se entregado aos prazeres das danças em um daqueles salões:<br />

“Há dias realizou-se um baile numa socieda<strong>de</strong> existente na rua Espírito Santo, on<strong>de</strong> a polícia já tem penetrado por<br />

várias vezes para apaziguar conflitos que sempre ali se dão. A essa festa presidiu como autorida<strong>de</strong> policial um tal<br />

suplente Mattos, indivíduo já célebre por suas façanhas. Mattos, esquecendo-se, talvez, da compostura que <strong>de</strong>via<br />

conservar, não resistiu às tentações <strong>de</strong> um ‘choroso maxixe’ e a ele se entregou <strong>de</strong> corpo e alma, num <strong>de</strong>lírio<br />

infernal.<br />

Ro<strong>de</strong>ado por mulheres, foi praticando ele cenas que muito <strong>de</strong>pões contra a autorida<strong>de</strong> incumbida <strong>de</strong> manter a<br />

or<strong>de</strong>m, tornando-se assim o primeiro a dar o mau exemplo.<br />

Que magnífico mantedor da or<strong>de</strong>m!” 93<br />

Os policiais também eram trabalhadores pobres e muitas vezes visinhos daqueles clubes e <strong>de</strong><br />

seus freqüentadores. Talvez o tal suplente Matos já freqüentasse aquela associação ou qualquer outra<br />

quando não estava <strong>de</strong> serviço. Mas, para o jornalista, a atitu<strong>de</strong> do policial <strong>de</strong>punha completamente<br />

contra a sua função <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> responsável pela manutenção da or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>ntro do salão on<strong>de</strong>,<br />

segundo ele, ocorriam constantes conflitos.<br />

No mais, se por um lado é inegável o preconceito e a suspeição em relação aos divertimentos<br />

dos pobres, é certo também que eles souberam criar estratégias para driblar a repressão policial e o<br />

olhar atravessado dos letrados. Uma <strong>de</strong>las foi a própria tentativa <strong>de</strong> se a<strong>de</strong>quar a certos padrões<br />

<strong>de</strong>finidos pelas elites como “a<strong>de</strong>quados”. Para Maria Clementina Pereira Cunha, os ranchos<br />

carnavalescos foram centrais nesse processo. Formados no início do XX no seio da comunida<strong>de</strong><br />

93 Correio da Manhã. 20/03/1904. Coluna: “Na Polícia e nas Ruas”. p. 2.<br />

138


aiana, os ranchos se distinguiram das formas mais espontâneas <strong>de</strong> folia carnavalesca – como os<br />

cordões – justamente por sua organização. 94<br />

Em uma <strong>de</strong> suas entrevistas a Vagalume, Hilário <strong>de</strong>monstrou seu orgulho em ver <strong>de</strong>sfilar o<br />

“Rei <strong>de</strong> Ouro”:<br />

“Naquele tempo o Carnaval era feito pelos cordões <strong>de</strong> velhos, pelos zé-pereiras e pelos cucumbis da rua João<br />

Caetano e da rua do Hospício. O Rei <strong>de</strong> Ouro, meu Vagalume, quando se apresentou com perfeita organização <strong>de</strong><br />

rancho no Rio <strong>de</strong> Janeiro: porta-machado, porta-ban<strong>de</strong>ira, batedores, etc. Perfeitamente organizado, saímos<br />

licenciados pela polícia. Quem se interessou pela nossa licença foi o velho Araújo, o escrivão da antiga Quinta<br />

Pretoria (...). Naquela Pretoria trabalhavam e eram nossos amigos os senhores Serafim, Augusto e Fre<strong>de</strong>rico Moss<br />

<strong>de</strong> Carvalho, Mauro <strong>de</strong> Almeida, hoje cronista carnavalesco (...) Era também empregado na Pretoria Avelino<br />

Pedro <strong>de</strong> Alcântara, que foi eleito nosso primeiro vice-presi<strong>de</strong>nte. Devo dizer que o Rei <strong>de</strong> Ouro foi um sucesso” 95<br />

Ainda segundo Maria Clementina Pereira Cunha, a conexão que pessoas como Hilário Jovino e<br />

Tia Ciata estabeleceram com elementos influentes da socieda<strong>de</strong> foram <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância no<br />

sentido <strong>de</strong> buscar a proteção <strong>de</strong> certas práticas culturais estigmatizadas e mesmo perseguidas. Os<br />

ranchos nasceram com aparência <strong>de</strong> “espaço da or<strong>de</strong>m” e contaram com o apoio <strong>de</strong> intelectuais e com<br />

a garantia do próprio aparato policial, tanto que o “Rei <strong>de</strong> Ouro”, aquele mesmo que tinha proteção<br />

espiritual <strong>de</strong> Pai Assumano, contou com um empregado da polícia na vice-presidência <strong>de</strong> sua primeira<br />

diretoria. Cunha afirma que os ranchos consolidaram um novo padrão <strong>de</strong> brincar o carnaval,<br />

aproveitando-se da “experiência compartilhada das habitações coletivas, da ajuda mútua, dos terreiros<br />

<strong>de</strong> candomblé e do trabalho no <strong>porto</strong>” 96 .<br />

Muitos trabalhadores do cais freqüentaram esses espaços <strong>de</strong> convívio e lazer e, como Mano<br />

Elói e outros membros <strong>de</strong> sindicatos portuários exerceram cargos <strong>de</strong> chefia em clubes carnavalescos e<br />

dançantes concomitantemente às suas atuações no sindicato. Entre os nomes da “Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café” encontramos outros nomes 97 : Antenor dos Santos,<br />

por exemplo, era companheiro <strong>de</strong> Mano Elói no sindicato, mas também nos jongos organizados por<br />

94 Cunha, Maria Clementina Pereira. Op. Cit. p. 218.<br />

95 Diário Carioca. 27/02/1931. Citado por Moura, Roberto. Op. Cit. p. 89.<br />

96 Cunha, Maria Clementina Pereira. Op. Cit. p. 218<br />

97 Apesar <strong>de</strong> alguns nomes serem bastante comuns, a probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se tratar das mesmas pessoas é bem gran<strong>de</strong>, pois em<br />

alguns pedidos <strong>de</strong> licença consta a profissão dos membros da diretoria, o que nos informa que eram “trabalhadores do<br />

café”, ou “trabalhadores do cais do <strong>porto</strong>”.<br />

139


eles no Morro da Serrinha 98 . Antenor chegou a ser presi<strong>de</strong>nte da Portela e provavelmente é ele o<br />

Antenor que, em 1905, foi mestre-canto do “Grêmio Infantil Rosa do Engenho Velho” 99 . Mas os<br />

exemplos se seguem entre os membros <strong>de</strong>sse sindicato: João Campos era, em 1912, secretário da<br />

“Socieda<strong>de</strong> Carnavalesca Príncipe Coroado”, no Morro <strong>de</strong> Santo Antônio, que tinha como presi<strong>de</strong>nte o<br />

também trabalhador do cais Perciliano da Silva 100 ; Horácio <strong>de</strong> Souza Moreira, além <strong>de</strong> sócio do<br />

“Resistência” também foi o Vice-Presi<strong>de</strong>nte do “Clube Carnavalesco Filhos do Castelo <strong>de</strong> Ouro”, com<br />

se<strong>de</strong> na La<strong>de</strong>ira do Seminário, no Centro 101 ; Entre os nomes do Livro <strong>de</strong> Sócios do “Resistência”, foi<br />

encontrado ainda um Gastão <strong>de</strong> Souza que foi, em 1906, o presi<strong>de</strong>nte da “Socieda<strong>de</strong> Carnavalesca<br />

Rainha do Mar”, no bairro da Glória. 102<br />

Entre os sócios-fundadores da União dos Estivadores foram encontrados vários nomes que<br />

constam na direção das associações <strong>de</strong> lazer espalhadas pela cida<strong>de</strong>. 103 José Alves Pereira, por<br />

exemplo, em 1906 era o Presi<strong>de</strong>nte do “Grupo Carnavalesco Flor do Castelo”, com en<strong>de</strong>reço na Rua<br />

do Castelo, 32 104 ; neste mesmo ano, Alfredo Nunes do Vale era o vice-presi<strong>de</strong>nte da “Grupo<br />

Carnavalesco Filhos da Cachoeira”, com se<strong>de</strong> em São Cristóvão 105 ; João Antônio <strong>de</strong> Oliveira era, em<br />

1912, o 2 o Secretário do “Clube Dançante Familiar e Recreativo Os Faíscas”, na Rua do Areal, 38 106 ;<br />

Em 1913, Manoel Pereira da Silva era o presi<strong>de</strong>nte do “Clube Carnavalesco Heróis do Brasil”, no<br />

bairro <strong>de</strong> Campo Gran<strong>de</strong> 107 e Ricardo Antônio <strong>de</strong> Moraes dirigia, em 1915, o “Grupo Carnavalesco<br />

Cornetas <strong>de</strong> Madureira”, no bairro <strong>de</strong> mesmo nome. 108 Na rua Senador Pompeu, n. 246 funcionava a<br />

“Socieda<strong>de</strong> Dançante Carnavalesca Reinado <strong>de</strong> Siva”, cujo presi<strong>de</strong>nte Arthur Maria <strong>de</strong> Araújo era<br />

sócio <strong>de</strong>ste sindicato. Próximo dali, em um sobrado na rua da Saú<strong>de</strong>, n. 166, o estivador Manoel da<br />

98<br />

Valença, Rachel. Op. Cit. Apesar <strong>de</strong> ser um nome comum, com certeza trata-se do mesmo Antenor pois, segundo Rachel<br />

Valença, um certo Antenor dos Santos, trabalhador da estiva, era mineiro e dava jongo na Rua Itaúba, na Serrinha. Essas<br />

informações (incluindo o en<strong>de</strong>reço) batem com a ficha <strong>de</strong>le no Livro <strong>de</strong> Matrícula <strong>de</strong> Sócios do “Resistência”. Consta que<br />

sua matrícula é <strong>de</strong> 1910.<br />

99<br />

BD – reg. 10318. GIFI - 6C - 135<br />

100<br />

BD – reg. 1474. GIFI - 6C – 367 (pacote 418 Caixa 5556)<br />

101<br />

BD – reg. 238; GIFI – IJ6 564.<br />

102<br />

BD – reg. 3545. GIFI - 6C - 170 (pacote 178 caixa 5359)<br />

103<br />

Ao contrário daqueles encontrados no “Resistência”, não po<strong>de</strong>mos assegurar - especialmente nos casos <strong>de</strong> nomes muito<br />

comuns - que tratam-se das mesmas pessoas.<br />

104<br />

BD – Reg. 1115. GIFI - 6C – 171 (pacote 179 Caixa 5360)<br />

105<br />

BD – reg. 1144. GIFI - 6C - 170 (pacote 178 caixa 5359)<br />

106<br />

BD – reg. 8529. Doc. Polícia - pacote 416 - caixa 5553<br />

107<br />

BD – reg. 598. GIFI - 6c – 432<br />

108<br />

BD – reg. 275. AN IJ6 564<br />

140


Costa fazia as vezes <strong>de</strong> tesoureiro do “Grupo Carnavalesco Estrela <strong>de</strong> Ouro da Saú<strong>de</strong>” 109 . E Procópio<br />

Augusto Andra<strong>de</strong> além <strong>de</strong> estivador sindicalizado, era o presi<strong>de</strong>nte da “Socieda<strong>de</strong> Dançante Mimosos<br />

Pierrots”, que funcionava na General Pedra, n. 76. Também encontramos como 2 o secretário do<br />

“Grupo Carnavalesco Filhos dos Teimosos do Engenho Velho”, em 1906 110 , um certo Joaquim Nunes,<br />

talvez o “Pernambuco”, que conhecemos páginas atrás nos seus encontros com a polícia.<br />

Ao que parece, não era só <strong>de</strong> política que os membros dos sindicatos portuários viviam.<br />

Militantes políticos e membros <strong>de</strong> sindicatos, também po<strong>de</strong>riam se organizar em torno <strong>de</strong> associações<br />

não sindicais, como as <strong>de</strong> cunho recreativo, indicando os diferentes níveis <strong>de</strong> articulação daqueles<br />

trabalhadores. Os sócios das associações recreativas, como apontou Leonardo Afonso <strong>de</strong> Miranda<br />

Pereira, ao fazer do lazer um motivo <strong>de</strong> união, mostravam ter ali um elemento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, formando<br />

laços que eram expressos em momentos diversos. 111 Assim como os sócios daqueles sindicatos<br />

portuários, ao se reunirem para festejar o carnaval, organizarem ranchos ou simplesmente se<br />

encontrarem em bailes e festas mostram que os laços que os uniam iam além daqueles construídos<br />

durante o trabalho e nas assembléias sindicais. Se por um lado eles se reuniam para discutir os rumos<br />

da greve, sobre a jornada <strong>de</strong> trabalho ou o preço dos volumes das sacas, por outro também se reuniam<br />

para resolver o dia apropriado para sair o rancho, quando haveria baile na se<strong>de</strong> do clube recreativo e<br />

outras questões relativas ao seu lazer. E nesses momentos, assim como no trabalho e no sindicato, eles<br />

também se reconheciam como fazendo parte <strong>de</strong> um mesmo grupo, com interesses semelhantes, se<br />

i<strong>de</strong>ntificando como trabalhadores.<br />

109 Nos registros dos trabalhadores portuários da Casa <strong>de</strong> Detenção consta um Manoel da Costa com en<strong>de</strong>reço na Rua da<br />

Saú<strong>de</strong>, 8. A “Estrela <strong>de</strong> Ouro da Saú<strong>de</strong>” no número 166 daquela mesma rua, aumentando as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> serem a<br />

mesma pessoa.<br />

110 BD – reg. 1145. GIFI - 6C – 170 (pacote 178 Caixa 5359)<br />

111 Pereira, Leonardo Afonso <strong>de</strong> Miranda. “E o Rio Dançou”. Op. Cit. p. 427.<br />

141


CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Durante as páginas que constituíram esse trabalho, perseguimos alguns<br />

trabalhadores do <strong>porto</strong> com intuito <strong>de</strong> que, através <strong>de</strong> fragmentos <strong>de</strong> suas histórias <strong>de</strong> vida,<br />

estes nos mostrassem um pouco <strong>de</strong> como viviam.<br />

Um <strong>de</strong>les foi Antonio Mina, que nos guiou pelas ruas da cida<strong>de</strong> contando parte <strong>de</strong><br />

sua história. Apesar <strong>de</strong> não sabermos como aquele africano chegou no Brasil e quando<br />

começou a trabalhar no <strong>porto</strong> carioca, vimos que muitos africanos, especialmente os minas<br />

como ele, fizeram parte do cartão-postal do <strong>porto</strong> da cida<strong>de</strong> no século XIX. Esses mesmos<br />

africanos que tanto seduziram os viajantes com seus corpos nus, seus ritmos ca<strong>de</strong>nciados e<br />

sua forma peculiar <strong>de</strong> organizar o carregamento <strong>de</strong> café, causaram medo e <strong>de</strong>sconfiança nos<br />

brancos e já no século XIX mereceram atenção especial das autorida<strong>de</strong>s.<br />

No início do século XX, a cida<strong>de</strong> era outra. Não se ouvia mais os cânticos africanos<br />

ecoando pelas ruas e os guindastes já faziam parte da paisagem do cais, que agora<br />

misturava homens e máquinas. Os poucos africanos que restavam já estavam velhos para<br />

aquele trabalho pesado. No entanto, apesar dos brancos superem os <strong>negro</strong>s numericamente<br />

em toda parte da cida<strong>de</strong>, a cor que predominava no cais ainda era negra. Se por um lado os<br />

filhos das Áfricas não cantavam mais suas canções, não balançavam seus chocalhos e nem<br />

seduziam mais viajantes, por outro, seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes continuaram colorindo a cena<br />

portuária, imbuindo o trabalho e o cotidiano com experiências adquiridas nos tempos da<br />

escravidão.<br />

A República, com seus i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> civilização e suas pretensões científicas, tentaria<br />

arrasar <strong>de</strong> uma vez por todas qualquer vestígio <strong>de</strong>ssa cultura, perseguindo capoeiras,<br />

feiticeiros, sambistas e todos aqueles que julgavam não se a<strong>de</strong>quar ao novo mundo do<br />

trabalho livre. No pós-abolição, os poucos africanos que restaram na cida<strong>de</strong> e seus muitos<br />

<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, agora libertos, traziam na cor da pele as lembranças da escravidão e, por isso,<br />

eram, já <strong>de</strong> saída, os principais suspeitos e potenciais vítimas da política repressiva.<br />

O cais do <strong>porto</strong>, além <strong>de</strong> contar com uma maioria <strong>de</strong> pretos e pardos, organizava a<br />

maior parte <strong>de</strong> sua mão-<strong>de</strong>-obra através do trabalho avulso, sem vínculo empregatício, o<br />

143


que ia <strong>de</strong> encontro com aquilo que se esperava do i<strong>de</strong>al da nova socieda<strong>de</strong> do trabalho livre,<br />

especialmente por não haver limites claros entre a hora do trabalho, da folga e do lazer. O<br />

trabalho no <strong>porto</strong> misturava esses momentos, o que afetava a vida dos operários em<br />

diversos níveis.<br />

Nosso amigo Antônio Mina parecia representar tudo aquilo que a república não<br />

queria para esse novo mundo e, por isso, sofreu bastante com a repressão. Mas, como<br />

vimos, ele não foi o único. Muitos outros <strong>negro</strong>s como ele sofreram com a suspeição<br />

generalizada, que os transformavam em pessoas perigosas.<br />

No entanto, apesar da visão negativa que a socieda<strong>de</strong> tinha dos libertos e dos <strong>negro</strong>s<br />

<strong>de</strong> uma maneira geral, julgando-os incapazes (e até perigosos!) para a vida em liberda<strong>de</strong>,<br />

muitos <strong>de</strong>les conseguiram dialogar com as novas regras, manter seu espaço e se<br />

organizarem <strong>de</strong> diversas formas.<br />

No trabalho no <strong>porto</strong>, homens que viveram <strong>de</strong> perto as agruras da escravidão –<br />

como Cândido Manoel Rodrigues, Joaquim Januário Nunes e João Evangelista Lapier,<br />

prováveis ex-escravos ou filhos <strong>de</strong> escravos – organizaram sindicatos importantes, cujo<br />

quadro era formado por uma maioria <strong>de</strong> <strong>negro</strong>s como eles.<br />

Mas não era apenas no trabalho que esses homens se organizaram. Como vimos, os<br />

<strong>negro</strong>s do <strong>porto</strong> também se organizavam em torno da religião e do lazer. E nesses<br />

momentos também sofreram com a repressão republicana que, assim como o Império,<br />

<strong>de</strong>sconfiava <strong>de</strong> ajuntamentos <strong>de</strong> <strong>negro</strong>s e <strong>de</strong> práticas culturais que remetiam à escravidão e<br />

à África.<br />

De qualquer forma, mesmo tendo dominado o cenário do cais carioca e mesmo<br />

tendo ocupado regiões específicas da cida<strong>de</strong> – como Santa Rita e Santana, on<strong>de</strong> se<br />

concentrava a maioria – os <strong>negro</strong>s não se isolaram. Apesar <strong>de</strong> serem maioria ali, os brancos,<br />

principalmente imigrantes portugueses passaram a marcar presença na cena portuária <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

fins do XIX.<br />

Brancos e <strong>negro</strong>s compartilhavam cada vez mais os espaços <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong><br />

moradia, <strong>de</strong> lazer e religiosos e compartilhavam também a suspeição da polícia republicana<br />

que, apesar <strong>de</strong> atingir preferencialmente pretos e pardos, também tratava os “quase <strong>negro</strong>s<br />

<strong>de</strong> tão pobres” com a mesma truculência.<br />

144


Pessoas <strong>de</strong> diferentes cores e nacionalida<strong>de</strong>s estabeleceram relações baseadas no<br />

conflito, mas também <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>, revelando que não é possível pensar na classe<br />

trabalhadora em termos <strong>de</strong> uma homogeneida<strong>de</strong>. No Rio <strong>de</strong> Janeiro do início do século, os<br />

trabalhadores formavam uma massa bastante heterogênea. No entanto, ao compartilharem<br />

experiências semelhantes e se reunirem em espaços coletivos, se sociabilizavam, forjavam<br />

os laços <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> e se i<strong>de</strong>ntificavam, não apenas como <strong>negro</strong>s e brancos, ou nacionais e<br />

portugueses, mas como trabalhadores.<br />

Aqui, contamos com a ajuda <strong>de</strong> Antônio Mina, Bexiga, Pernambuco, Cardosinho,<br />

Sabino Montezuma e muitos outros para contar essa história. No entanto, quantas histórias<br />

ainda não faltam ser contadas? Esse trabalho não dá conta <strong>de</strong> todas elas e por isso mesmo,<br />

ele é apenas o começo, pois ainda há muito o que se investigar sobre o misterioso cais do<br />

<strong>porto</strong> e muitos personagens esperando serem <strong>de</strong>scobertos...<br />

145


Índice <strong>de</strong> Mapas e Figuras<br />

* p. 25. (figura 1) - Trabalhadores <strong>de</strong>scarregando mercadorias no <strong>porto</strong> do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro. Apud. Cruz, Maria Cecília Velasco e. “Tradições Negras na Formação <strong>de</strong><br />

um Sindicato: Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, 1905-1930.” In: Afro-Ásia, 24 (2000).<br />

* p. 35 (figura 2) - Estalagem na Rua Senador Pompeu. Apud. ROCHA, Oswaldo Porto. A<br />

Era das Demolições.Rio <strong>de</strong> Janeiro: Secretaria Municipal <strong>de</strong> Cultura, 1986.<br />

*p. 38 (mapa 1) – Cruls, Gastão Aparência da Cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

J. Olympio, 1965. Apud. Moura, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro.<br />

* p. 78 (figura 3) – “O Cardosinho”. Gazeta <strong>de</strong> Notícias – 06/03/1904<br />

* p. 92.(figura 4) - Praça dos Estivadores. Apud. ALMEIDA, Luiz Gustavo Nascimento<br />

<strong>de</strong>. Estivadores do Rio <strong>de</strong> Janeiro: um século <strong>de</strong> presença na história do movimento<br />

operário brasileiro. R J: Topbooks, 2003.<br />

* p. 99 (figura 5) – Gazeta <strong>de</strong> Notícias – 14/10/1906<br />

* p. 102 (figura 6) - João Evangelista Lapier. Apud. ALMEIDA, Luiz Gustavo<br />

Nascimento <strong>de</strong>. Estivadores do Rio <strong>de</strong> Janeiro: um século <strong>de</strong> presença na história<br />

do movimento operário brasileiro. R J: Topbooks, 2003.<br />

* p. 119 (figura 7) - Fiança <strong>de</strong> 300 mil réis paga por Antônio Africano. NA - 8 a Pretoria<br />

do Rio <strong>de</strong> Janeiro. 6Z. 2312. 1915.<br />

*p.128 (figura 8) – João da Baiana e seu pan<strong>de</strong>iro. Site: www.<br />

cliquemusic.com.br/artistas/João-da-baiana.asp ( acessado às 17:12 hs, <strong>de</strong><br />

19/01/2005)<br />

* p. 131. (mapa 2) – Grupos Carnavalescos agrupados pelas freguesias. Apud. Cunha,<br />

Maria Clementina Pereira da. Ecos da Folia. uma história social do Carnaval<br />

carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.<br />

147


Arquivo Nacional<br />

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8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 3444. 1904. Pedro José <strong>de</strong> Oliveira<br />

10 a Vara Criminal. Cx. 331, Prc. 818. 1909. Cândido Manoel Rodrigues<br />

8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR.6923. 1908. Antônio Africano<br />

8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 3650. 1909. Antônio Alves e outros<br />

8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 3313. 1904. Sabino Carlos Montezuma<br />

8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR.2283. 1902. Vicente Rodrigues Pereira<br />

8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR.4152. 1905. Vicente Rodrigues Pereira<br />

8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro – OR.4024. 1905. Vicente Rodrigues Pereira<br />

8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR.3445. 1904. Marcelo Pinto <strong>de</strong> Souza.<br />

8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 7044. 1909. Antônio Africano<br />

3 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro, 6Z.0411. 1912. Antônio Africano<br />

8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. 6Z. 2312. 1915. Antônio Africano<br />

8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 1783. 1901. Vicente Rodrigues Pereira<br />

8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 1831. 1901. Joaquim Januário Nunes<br />

3 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Proc. 14424; Maço 775. 1905. Joaquim Januário Nunes<br />

8a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 2411. 1902. Benedito José da Silva e Matheus Teixeira<br />

3 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Proc. 1043, maço 893, gal. A. 1910. Oscar Antônio da Costa<br />

10 a Vara Criminal. Cx. 320, Proc. 679. 1902. João Morgado<br />

149


8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 5816. 1902. Olympio Batista Ribeiro<br />

8 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro. OR. 5816. 1907. Olympio Batista Ribeiro<br />

2 a Pretoria do Rio <strong>de</strong> Janeiro; m.890, Cx. 5156. 1909. Caetano Damásio.<br />

2a Pretoria. Proc. 4989, maço 880, Gal. A. 1906. José Gomes Cardoso.<br />

8 a Pretoria. OR. 5353. 1907. Raphael Munhões.<br />

Tribunal do Júri do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Proc. 5128; Maço 889; Gal. A. 1908. Antônio Africano<br />

GIFI<br />

6C.316, ofício 558. 1909<br />

6C. 210. Ofício n. 23. 1907.<br />

6C. 210. Ofício n. 24. 1907<br />

6C – 69; ofício n. 5. 1901<br />

6C – 210; ofício n. 25. 1906<br />

GIFI (BDCS)<br />

GIFI - 6C – 367; pacote 418; Caixa 5556 (BDCS – Reg. 1493)<br />

GIFI - 6C – 432; pacote 459; Caixa 5621 (BDCS – reg. 240)<br />

GIFI - IJ 6 563 (BDCS – reg. 1900)<br />

GIFI - pacote 489; caixa 5668 (BDCS – reg. 9245)<br />

GIFI - 6C – 135 (BDCS– reg. 10318)<br />

GIFI - 6C – 367; pacote 418; Caixa 5556 (BDCS – reg. 1474)<br />

GIFI – IJ6 564 (BDCS – reg. 238)<br />

GIFI - 6C – 170; pacote 178 caixa 5359. (BDCS – reg. 3545)<br />

GIFI - 6C – 171; pacote 179; Caixa 5360 (BDCS – Reg. 1115)<br />

GIFI - 6C – 170; pacote 178; Caixa 5359 (BDCS – reg. 1144)<br />

GIFI - pacote 416 - caixa 5553 (BDCS – reg. 8529)<br />

GIFI - 6c – 432 (BDCS – reg. 598)<br />

GIFI IJ6 564 (BDCS – reg. 275)<br />

GIFI - 6C – 170; pacote 178; Caixa 5359 (BDCS – reg. 1145)<br />

GIFI - IJ6 135 (BDCS – reg.1849)<br />

150


Outros<br />

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Socieda<strong>de</strong> Civil. Livro A-1/ 05 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1904.<br />

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Títulos e Documentos. Socieda<strong>de</strong> Civil. Livro A-1/ 21 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1905.<br />

Arquivo Público do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

Livros <strong>de</strong> Registro <strong>de</strong> Entrada <strong>de</strong> Presos na Casa <strong>de</strong> Detenção do Rio <strong>de</strong> Janeiro – vários<br />

livros (1901-1909)<br />

Biblioteca Nacional<br />

Correio da Manhã: 20/03/1904; 17/12/1903; 27/01/1904; 30/01/1904; 29/02/1904;<br />

16/03/1904; 17/03/1904; 18/08/1905; 12/01/1906; 17/01/1906; 29/08/1906; 18/02/1907.<br />

Gazeta <strong>de</strong> Notícias: 12/03/1904; 10/06/1904; 06/02/1906; 06/03/1906.<br />

Jornal do Commercio: 03/05/1872; 22/10/1906.<br />

Jornal do Brasil: 20/07/1895; 24/03/1970.<br />

A Nação: 18/12/1903; 22/01/1904.<br />

A Época: 19/09/1913; 30/10/1913.<br />

O Paiz: 05/10/1908.<br />

Diário Carioca: 27/02/1931.<br />

A Noite: 02/05/1914.<br />

Revista Kosmos: Fevereiro <strong>de</strong> 1906.<br />

151


Impressos Oficiais<br />

Código Penal <strong>de</strong> 1890. Decreto <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1890, Rio <strong>de</strong> Janeiro. Imprensa<br />

Nacional.<br />

Recenseamento Geral da República dos Estados Unidos do Brasil, ano <strong>de</strong> 1890. Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

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