CARLOS MARIGHELLA - Comissão Nacional da Verdade
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<strong>CARLOS</strong> <strong>MARIGHELLA</strong><br />
A versão oficial do Estado ditatorial para a morte de Carlos Marighella<br />
afirma a existência de tiroteio entra agentes policiais do DOPS, de S. Paulo, de um lado,<br />
e Carlos Marighella e membros outros <strong>da</strong> ALN de outro no que ter-se-ia constituído em<br />
confronto aberto, justificando-se, assim, a conduta dos agentes públicos como motiva<strong>da</strong><br />
por legítima defesa.<br />
Da publicação “Direito à Memória e à Ver<strong>da</strong>de”, produzi<strong>da</strong> pela <strong>Comissão</strong><br />
Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, vincula<strong>da</strong> à Secretaria Especial dos<br />
Direitos Humanos <strong>da</strong> Presidência <strong>da</strong> República, extrai-se que:<br />
“Morreu em via pública de São Paulo, durante embosca<strong>da</strong> de<br />
proporções cinematográficas, na qual teriam participado cerca de<br />
150 agentes policiais equipados com armamento pesado, sob o<br />
comando de Sergio Paranhos Fleury, delegado do DOPS que<br />
respondeu a inúmeros processos por liderar um grupo de<br />
extermínio de marginais, auto-intitulado Esquadrão <strong>da</strong> Morte. A<br />
gigantesca operação foi monta<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> prisão de religiosos<br />
dominicanos que atuavam como apoio a Marighella. Na versão<br />
oficial um deles foi levado pelos policiais à livraria Duas<br />
Ci<strong>da</strong>des onde recebeu ligação telefônica com mensagem cifra<strong>da</strong><br />
estabelecendo horário e local de encontro na alame<strong>da</strong> Casa<br />
Branca.<br />
As versões de sua morte guar<strong>da</strong>m contradições e alimentam<br />
agu<strong>da</strong>s polêmicas. Em algumas delas chegam a ser mencionados<br />
dois tiroteios simultâneos, em esquinas diferentes. Na versão de<br />
um relatório policial, Marighella foi precedido por um batedor e<br />
apareceu disfarçado, usando peruca. Alguns documentos<br />
mencionam que ele chegou de carro, outros dizem que chegou<br />
an<strong>da</strong>ndo. Para uns, puxou uma arma <strong>da</strong> cintura; segundo outros<br />
trazia dois revólveres em uma pasta, junto com grana<strong>da</strong>s. Seus<br />
protetores teriam fugido pulando um muro ou utilizando um<br />
furgão. Existe até mesmo um relato que ele teria provocado sua<br />
1
própria execução, gritando “Abaixo a ditadura! Viva a<br />
democracia!”<br />
( pg. 108/109 ).<br />
Analisemos o caso.<br />
No livro “Diário de Fernando: nos cárceres <strong>da</strong> ditadura militar brasileira”,<br />
escrito por frei Betto, mas tendo presente as anotações escritas de frei Fernando de<br />
Brito, registra<strong>da</strong>s ponto a ponto nos seus dias de cárcere, lê-se:<br />
“Reduziu-se o tom de voz, de modo reverencial, quando<br />
ingressou na sala um homem corpulento, rosto redondo,<br />
macilento, cabelos crespos engomados, olhos azuis – o delegado<br />
Sergio Paranhos Fleury. Pareceu-me ter bem mais que 36 anos,<br />
talvez macerado pelos crimes cometidos, cujos requintes de<br />
perversi<strong>da</strong>de teciam-lhe os fios de uma fama medonha. Não me<br />
iludi. Sabia que o chefe do Esquadrão <strong>da</strong> Morte jogava ali sua<br />
carta<strong>da</strong> mais importante. E eu era o coringa que ele trazia na<br />
manga.<br />
Arrancaram-me as roupas, dependuraram-me no pau de arara,<br />
ligaram os eletrodos em minhas orelhas e nos órgãos genitais;<br />
armaram-se de porretes, ro<strong>da</strong>ram a manivela, fizeram-me<br />
estrebuchar sob a virulência <strong>da</strong>s descargas elétricas. Não sei<br />
quantos cavalos do Apocalipse coicearam o meu corpo, sei<br />
apenas que mergulhei num profundo e pavoroso vazio; meu ser<br />
havia se descolado do corpo que, lá em cima, do lado de for,<br />
ardia em dores, berrava ansioso pela morte, atirava-se num<br />
macabro balé ritmado por panca<strong>da</strong>s, chutes e cargas elétricas,<br />
enquanto no âmago <strong>da</strong>quele vazio minha identi<strong>da</strong>de, volatiliza<strong>da</strong>,<br />
estilhaçava-se em mil pe<strong>da</strong>ços.<br />
Na outra sala, Ivo era submetido às mesmas atroci<strong>da</strong>des.<br />
Repetiam-se a ele as perguntas que me eram feitas: “Cadê o<br />
Marighella? Como vocês encontram o Marighella”? Em meio à<br />
dor lancinante, balbuciávamos fragmentos de informações, sem<br />
2
no entanto dispor <strong>da</strong> iniciativa de contatar o líder revolucionário;<br />
era ele quem nos contatava, e havia dias nos dissera que se<br />
ausentaria por várias semanas de S. Paulo. Nunca soubemos onde<br />
morava, com quem vivia, como buscá-lo numa situação de<br />
emergência, a que número de telefone recorrer. Assim, os<br />
fragmentos com os quais a repressão montava o quebra-cabeça<br />
remetiam todos aos nossos encontros passados, sem que<br />
tivéssemos a menor idéia de quando Marighella voltaria a nos<br />
procurar. Convenci-me de que, com certeza, a notícia de nossa<br />
prisão correria célere e chegaria até ele.<br />
As torturas prosseguiram até o fim <strong>da</strong> manhã. Ivo e eu fomos<br />
trazidos para o DEOPS de S. Paulo. A viatura entrou no casarão<br />
vermelho ao anoitecer. Levados às celas subterrâneas, recebemos<br />
comi<strong>da</strong>. Quão penoso era mastigar, devido aos hematomas<br />
provocados por panca<strong>da</strong>s e choques na boca e na língua. Apesar<br />
<strong>da</strong>s dores pelo corpo, e do enorme buraco no centro <strong>da</strong> alma, a<br />
exaustão me consumiu no sono.<br />
Retirado <strong>da</strong> cela na tarde do dia seguinte, levaram-me à Livraria<br />
Duas Ci<strong>da</strong>des. Eu havia falado que Marighella costumava ligar-<br />
me no telefone do local de trabalho. De fato, menos de uma hora<br />
depois, sentado à minha mesa, cercado pela equipe do delegado<br />
Fleury, o telefone soou e a senha foi pronuncia<strong>da</strong>: “Aqui é o<br />
Ernesto. Nos vemos na gráfica esta noite.” Por que não me<br />
levaram à livraria no dia anterior? Nem na manhã de terça-feira?<br />
Como sabiam que o cabeça <strong>da</strong> ALN me ligaria exatamente<br />
àquela hora?<br />
Não era a voz de Marighella, como se comprovou,<br />
posteriormente. Julguei que fosse um dos delegados do DEOPS<br />
submetendo-me a um teste. Confirmei o encontro.<br />
( pg. 38/39 ).<br />
Em outra passagem, escreveu frei Fernando:<br />
3
“Não vi Marighella surgir <strong>da</strong>s trevas na alame<strong>da</strong> Casa Branca e<br />
caminhar para a morte. Pressenti que o haviam assassinado<br />
quando ouvi a saraiva<strong>da</strong> de tiros que abateram aquele que fizera<br />
do comunismo seu apostolado, dedicara to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong> à<br />
libertação do povo brasileiro, estivera preso no Estado Novo,<br />
elegera-se deputado federal após a que<strong>da</strong> de Vargas, rompera<br />
com o PCB e fun<strong>da</strong>ra a ALN, agregando-nos a seu grupo de<br />
apoio desde 1967.<br />
Marighella sobressaia pelo porte agigantado. Ostentava uma<br />
peruca que não condizia com seu perfil e lhe emprestava certo ar<br />
jocoso. Olhar penetrante, agudo, voz pausa<strong>da</strong>, mansa, educado e<br />
gentil, sabia escutar e mostrava-se muito seguro em seus<br />
argumentos. Tinha a história do Brasil na cabeça, as lutas<br />
populares e, devido a seus estudos de ciências exatas, facili<strong>da</strong>de<br />
para li<strong>da</strong>r com detalhes técnicos. Dotado de prodigiosa memória,<br />
poliglota, dominava os clássicos e preocupava-se com a vi<strong>da</strong><br />
pessoal de ca<strong>da</strong> militante. Ao mesmo tempo que exigia<br />
segurança de seus companheiros, abusava de sua auto-confiança<br />
e era visto em restaurantes <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> ou em praças no centro <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de.<br />
Não me foi possível discernir entre o real e o imaginário. Uma<br />
alucinação suscita<strong>da</strong> por minha mente atordoa<strong>da</strong>? Antes que<br />
pudesse distinguir o que havia de reali<strong>da</strong>de ou projeção<br />
fantasiosa, Ivo e eu escutamos a saraiva<strong>da</strong> de balas. Não vi<br />
Marighella tombar. Esperei que ali se desse também o nosso<br />
fim. Meu corpo, teso, aguardou o impacto de um projétil. Logo<br />
as portas foram abertas e, nós, retirados do veículo. No meio <strong>da</strong><br />
rua, um grupo de pessoas mirava o chão – estirado, jazia o corpo<br />
de Marighella.”<br />
( pg. 40/41 ).<br />
Pesquisando no Arquivo <strong>Nacional</strong>, a <strong>Comissão</strong> <strong>Nacional</strong> <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de<br />
descobriu documento oficial e confidencial, o Relatório Especial de Informações nº<br />
4
09/69, assinado pelo general Milton Tavares de Souza, na quali<strong>da</strong>de de Chefe do<br />
Centro de Informações do Exército, que apresenta quadro detalhado do acontecido.<br />
Principia por relevar fatos subjacentes:<br />
“1. INTRODUÇÃO<br />
a. Em seu REI nº 08/69, o CIE difundiu as informações<br />
produzi<strong>da</strong>s pela OPERAÇÃO BANDEIRANTES ( OB ),<br />
em SÃO PAULO, com relação à AÇÃO<br />
LIBERTADORA NACIONAL, sua organização, seus<br />
propósitos e suas ativi<strong>da</strong>des subversivas. Recor<strong>da</strong>-se que<br />
foram desbaratados 13 aparelhos e presos 19<br />
terroristas <strong>da</strong> ALN, inclusive três que participaram do<br />
seqüestro do Embaixador dos EUA, na GUANABARA.<br />
Prosseguindo nas investigações e aprofun<strong>da</strong>ndo-as<br />
através de interrogatórios minuciosos dos elementos<br />
presos, com o objetivo de chegar ao desbaratamento<br />
total <strong>da</strong> ALN, os integrantes <strong>da</strong> OB extraíram de um<br />
deles – Paulo de Tarso Venceslau –um dos<br />
seqüestradores do Embaixador ELBRICK – a informação<br />
de que, caso obtivesse a liber<strong>da</strong>de, poderia estabelecer<br />
contato com a “organização” através de Frei YVES DO<br />
AMARAL LESBAUPIN, o frei IVO, no Convento dos<br />
Dominicanos <strong>da</strong> rua CAIUBI, 126 – PERDIZES/SP, pelo<br />
telefone 62-2324. Tal informação <strong>da</strong>va substância às<br />
suspeitas já existentes de que religiosos <strong>da</strong> Ordem dos<br />
Dominicanos, particularmente Frei BETTO – <strong>CARLOS</strong><br />
ALBERTO LIBANIO CHRISTO – também do aludido<br />
Convento, estavam envolvidos em ativi<strong>da</strong>des subversivas.<br />
Aliás, o CIE já alertara a comuni<strong>da</strong>de de informações<br />
sobre o fato, em seus REI nº 3 e 5/69, quando declarara,<br />
concluindo, que se fortaleciam os indícios de que o<br />
Convento dos Dominicanos, em SÃO PAULO,<br />
proporcionava homizio a elementos subversivos. Essa<br />
informação forneci<strong>da</strong> pelo terrorista PAULO DE TARSO<br />
Venceslau propiciou ao DEOPS/SP os elementos<br />
necessários para chegar ao Chefe <strong>da</strong> ALN e principal<br />
mentor <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des subversivas em todo o País –<br />
<strong>CARLOS</strong> <strong>MARIGHELLA</strong>, conforme relataremos neste<br />
REI.”<br />
( doc.em anexo – pg. 1/2 )<br />
Ressalta que:<br />
2.“MORTE DE <strong>CARLOS</strong> <strong>MARIGHELLA</strong> E PRISÃO DE<br />
INTEGRANTES DE SEU GRUPO”<br />
5
a. Acompanhando as ativi<strong>da</strong>des de Frei IVO, o DEOPS/SP<br />
seguiu-o até o RIO DE JANEIRO/GB, onde iria manter contato<br />
com o ex-monge beneditino – SINVAL ITACARAMBI LEÃO –<br />
( ex-Frei THIMÓTEO ), elemento recém ingresso na<br />
Organização <strong>MARIGHELLA</strong>, conseguindo prendê-lo em<br />
companhia de Frei FERNANDO DE BRITO, também<br />
dominicano de S. PAULO.<br />
Posteriormente o CENIMAR efetuou a prisão de Frei<br />
THIMÓTEO.<br />
b. Submetidos a intenso interrogatório, Frei IVO e Frei<br />
FERNANDO confessaram que se encontravam no RIO DE<br />
JANEIRO com a finali<strong>da</strong>de de estabelecer um contato político.<br />
Foram, então, conduzidos para SÃO PAULO onde, após novos<br />
interrogatórios, denunciaram vários elementos subversivos,<br />
membros <strong>da</strong> organização <strong>MARIGHELLA</strong>, ficando evidenciado<br />
que Frei IVO chefiava um dos grupos.<br />
( doc. em anexo – pg. 2 ).<br />
E, especificamente, sobre a morte de Carlos Marighella, no documento<br />
confidencial diz o general Milton Tavares de Souza:<br />
“e. Cerca <strong>da</strong>s 1600 horas do dia 4 de novembro, Frei IVO, que fora mantido<br />
trabalhando sob vigilância do DEOPS/SP, na Livraria DUAS CIDADES, <strong>da</strong><br />
Ordem dos Dominicanos, em SÃO PAULO, recebeu telefonema de<br />
<strong>CARLOS</strong> <strong>MARIGHELLA</strong> marcando um encontro às 2000 horas do mesmo<br />
dia na alame<strong>da</strong> CASA BRANCA, em frente ao nº 806, local habitual de<br />
contato do líder principal do terrorismo no país, com os Freis IVO e<br />
FERNANDO. Lá, já haviam tido aproxima<strong>da</strong>mente 10 encontros.<br />
f. O DEOPS/SP montou um dispositivo de cerco e conduziu para o local do<br />
encontro os Freis IVO e FERNANDO, ficando na expectativa <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> de<br />
<strong>MARIGHELLA</strong> que, no horário previsto, subiu a alame<strong>da</strong> CASA<br />
BRANCA, aproximou-se do carro dos freis e nele penetrou, ocupando o<br />
assento traseiro. Neste exato momento, obedecendo à ordem de comando, a<br />
equipe do DEOPS/SP, que se encontrava nas imediações do carro, dele se<br />
acercou, <strong>da</strong>ndo voz de prisão a <strong>MARIGHELLA</strong> e ordenando que ele saísse<br />
com as mãos para o alto.<br />
Conforme ficara combinado, os freis saltaram do carro, mas<br />
<strong>MARIGHELLA</strong> não obedeceu à ordem recebi<strong>da</strong> e tentou abrir uma pasta<br />
que portava, onde havia um revólver TAURUS calibre 32, sendo alvejado<br />
pelos policiais, vindo a falecer no local.<br />
Verificou-se, então, intenso tiroteio, afirmando os agentes <strong>da</strong> lei que foram<br />
alvo de disparos, possivelmente por parte de elementos <strong>da</strong> cobertura de<br />
<strong>MARIGHELLA</strong>, a qual, no entanto, não foi identifica<strong>da</strong>. Terminado o<br />
tiroteio verificou-se que haviam sido feridos o Delegado de Ordem Social<br />
do DEOPS/SP – RUBENS CARDOSO DE MELLO TUCUNDUVA – e a<br />
investigadora ESTELA BORGES MORATO do SS/SEOPS/SP que faleceu<br />
posteriormente. Também foi morto na ocasião o dentista FRIEDRICH<br />
ADOLF ROHMANN que sofria de neurose de guerra, razão porque, ao<br />
ouvir o tiroteio, teve um desequilíbrio nervoso e tentou romper o bloqueio<br />
6
policial, sendo confundido com elemento <strong>da</strong> possível cobertura de<br />
<strong>MARIGHELLA</strong>.<br />
Em poder de <strong>CARLOS</strong> <strong>MARIGHELLA</strong> foram encontrados alguns<br />
rascunhos, miudezas, cer<strong>da</strong> de 1.000 dólares americanos, duas cápsulas de<br />
substância ain<strong>da</strong> não analisa<strong>da</strong> e um molhe de chaves, através do qual a<br />
polícia procurará localizar os “aparelhos” onde ele se homiziava.<br />
Os rascunhos encontrados são os constantes do ANEXO 2.<br />
No ANEXO 3, apresentamos uma análise desses documentos, realiza<strong>da</strong><br />
pela 2ª Seção do II Exército.”<br />
( pg. ¾ ).<br />
Permanecendo na pesquisa no Arquivo <strong>Nacional</strong>, a <strong>Comissão</strong> <strong>Nacional</strong> <strong>da</strong><br />
Ver<strong>da</strong>de logrou encontrar a Informação n° 183/QG - 4, do Ministério <strong>da</strong> Aeronáutica,<br />
por seu Centro de Informações <strong>da</strong> Aeronáutica – CISA -, <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> de 24 de novembro de<br />
1969, com a tarja de SECRETO, na linha do informe oficial e sigiloso do general<br />
Milton Tavares, a dizer:<br />
“Em prosseguimento às diligências já do conhecimento <strong>da</strong>s<br />
autori<strong>da</strong>des, no dia 4 do corrente, o DOPS, que mantinha<br />
delegado e investigadores na Livraria “Duas Ci<strong>da</strong>des” <strong>da</strong> Ordem<br />
dos Dominicanos, onde trabalhava Frei Fernando de Brito, à Rua<br />
Bento Freitas 158, recebeu telefonema às 16 hs, do seguinte teor:<br />
“estou na gráfica às oito horas”. O autor <strong>da</strong> telefonema era<br />
<strong>CARLOS</strong> <strong>MARIGHELLA</strong>, e isto significava que às 20 hs. o<br />
principal líder do terrorismo estaria na Alame<strong>da</strong> Casa Branca, em<br />
frente ao número 806. O apontamento era dirigido aos freis<br />
YVES DO AMARAL LESPAUPIN e FERNANDO DE BRITO,<br />
que no mesmo local já se haviam encontrado cerca de dez vezes,<br />
utilizando os padres o carro de Barros Pereira.<br />
(doc. em anexo do Quartel General do Ministério <strong>da</strong><br />
Aeronáutica).<br />
E, detalha<strong>da</strong>mente:<br />
“Montou-se então um dispositivo de 8 veículos, equipados com<br />
rádio e chapas particulares, e os freis foram dirigindo o carro,<br />
precedidos e procedidos de veículos do DOPS. Quinze minutos<br />
7
antes o carro dos freis estacionou no ponto marcado, e desligou<br />
as luzes. Dez minutos antes, desceu a rua um indivíduo mulato,<br />
estacionando, à pé, próximo do carro onde se achava um dos<br />
veículos do DOPS, ocupado por um delegado e uma<br />
investigadora. Sua descrição coincide com a de um dos capangas<br />
de Marighella: mulato de 1m75, 30 anos, com entra<strong>da</strong> no cabelo,<br />
corpo regular mas atlético, vestido com roupa esporte. Observou<br />
durante cinco minutos o carro policial, após o que desceu a rua,<br />
passou pelo carro, parou novamente e seguiu pela rua abaixo. No<br />
horário aprazado, Carlos Marighella subiu a Alame<strong>da</strong> Casa<br />
Branca à pé no sentido bairro-ci<strong>da</strong>de, no sentido contrário ao do<br />
seu capanga, pelo lado contrário ao do carro dos padres.<br />
Atravessou em linha reta em direção a este carro, aproximou-se,<br />
conversou, entrou no carro. Nesse momento, foi <strong>da</strong><strong>da</strong> a ordem<br />
de comando e uma <strong>da</strong>s equipes cercou o automóvel <strong>da</strong>ndo voz de<br />
prisão e man<strong>da</strong>ndo que Marighella saísse com as mãos para<br />
cima. Os freis saltaram do carro conforme o combinado, e o<br />
terrorista ao invés de obedecer, segurou uma pasta de couro<br />
preta, que estava em seu poder. Diante <strong>da</strong> indicação de<br />
resistência, foram feitos disparos, principalmente contra sua mão<br />
esquer<strong>da</strong> que segurava a pasta: esta foi perfura<strong>da</strong> a tiro, perdendo<br />
ele a falange do indicador <strong>da</strong> mão esquer<strong>da</strong>.<br />
Neste ínterim, os outros veículos haviam fechado o quarteirão,<br />
<strong>da</strong>ndo cobertura ao grupo de ataque. No momento em que<br />
Marighella estava sendo intimado a entregar-se, surgiu na<br />
esquina <strong>da</strong> Alame<strong>da</strong> Lorena com Casa Branca, em alta<br />
veloci<strong>da</strong>de, no rumo bairro-ci<strong>da</strong>de, um auto marca Buick, com<br />
um ocupante, que rompeu o cerco policial e continuou a avançar<br />
mesmo após tiros e gritos de advertência, e ter um dos pneus<br />
traseiros perfurado, <strong>da</strong>ndo a níti<strong>da</strong> impressão de tratar-se de<br />
carro de cobertura de Carlos Marighella, motivo porque foi<br />
metralhado, falecendo seu ocupante.<br />
Carlos Marighella usava peruca preta, vestia camisa esporte e<br />
portava um revólver “32”, na pasta, sem número e no bolso, além<br />
8
de miudezas e dinheiro, duas cápsulas de substância ain<strong>da</strong> não<br />
analisa<strong>da</strong>.”<br />
( doc. acima referido ).<br />
Por oportuno, também é anexado a este escrito o Relatório assinado pelo<br />
Bel. Ivair Freitas Garcia, Delegado-Assessor <strong>da</strong> Diretoria do DEOPS/SP, encaminhado<br />
ao Bel. Romeu Tuma, Diretor do DEOPS/SP, com maiores detalhamentos fáticos,<br />
inclusive contendo o croqui do palco <strong>da</strong>s operações.<br />
De tudo, resta claro, que Carlos Marighella foi eliminado por agentes<br />
públicos do Estado, sob a supervisão direta do general Milton Tavares de Melo, na<br />
condição de Chefe do Centro de Informações do Exército a que se subordinava a<br />
Operação Bandeirante.<br />
Carlos Marighella foi eliminado quando, sozinho, dirigia-se a encontro,<br />
caminhando na alame<strong>da</strong> Casa Branca.<br />
As forças de segurança mataram, também, metralhando, Friedrich Adolf<br />
Rohmann, ci<strong>da</strong>dão alemão, que não tinha qualquer envolvimento político, mas adentrou<br />
no cenário <strong>da</strong>s operações: estava no lugar errado e na hora erra<strong>da</strong>.<br />
Mataram, ain<strong>da</strong>, a investigadora Estela Borges Morato e feriram o delegado<br />
Melo Tucunduva pelo desatino de atirarem de todos os lados, vez que o cerco contava<br />
com 8 viaturas e, no instante em que Friedrich Rohmann fura o cerco, a fuzilaria<br />
aconteceu pela irresponsável avaliação de que sua, isola<strong>da</strong>, conduta identificava-se<br />
com apoio a Marighella, por companheiros seus.<br />
O historiador Jacob Gorender, no seu livro “Combate nas Trevas”, no<br />
capítulo 24, intitulado “Assim mataram Marighella”, lastreando-se em depoimentos<br />
de membros <strong>da</strong> própria ALN, narra o fato na mesma linha dos documentos oficiais e<br />
secretos do Estado Ditatorial militar:<br />
“Na ver<strong>da</strong>de, nenhum líder revolucionário em situação de<br />
clandestini<strong>da</strong>de circula acompanhado de guar<strong>da</strong>s de segurança.<br />
Regra fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> clandestina consiste em passar<br />
9
desapercebido e, para isto, na<strong>da</strong> melhor do que a naturali<strong>da</strong>de, do<br />
que comportar-se igual a todo mundo. Em caráter excepcional,<br />
porque sentia uma ponta<strong>da</strong> de desconfiança, Marighella enviou<br />
na frente um companheiro a fim de examinar como estava o<br />
lugar de encontro com os frades. Este companheiro não era o<br />
Gaúcho, mas Luís José <strong>da</strong> Cunha, militante <strong>da</strong> ALN vindo do<br />
PCB. Libertado em dezembro de 1970, Genésio de Oliveira<br />
ouviu do próprio Luís Cunha o relato aqui reproduzido.<br />
Às vinte horas, Marighella apareceu subindo a alame<strong>da</strong> Casa<br />
Branca. Como de costume, aproximou-se do Fusca azul, abriu a<br />
porta e sentou no banco de trás. Instantaneamente, conforme<br />
instruções recebi<strong>da</strong>s, Fernando e Yves escapuliram do carro,<br />
deram alguns passos e se jogaram ao solo.<br />
Rodeado de tiras, Fleury surgiu do escuro, apontou um revólver<br />
para Marighella e o intimou a se render. Marighella fixou o olhar<br />
no chefe do Esquadrão <strong>da</strong> Morte e fez um movimento com a mão<br />
para abrir a pequena pasta preta que trazia consigo. Fleury<br />
começou a disparar e os tiras a seu lado o acompanharam,<br />
motivados por uma reação de pânico diante <strong>da</strong> fama de valentia<br />
do homem encurralado dentro do Fusca. Os policiais postados no<br />
fundo <strong>da</strong> rua imaginaram que a guar<strong>da</strong> de Marighella atirava e<br />
responderam também com disparos. O fogo cruzado dos próprios<br />
policiais vitimou de maneira fatal a investigadora Stela Morato,<br />
que antes “namorava” dentro de um automóvel, feriu gravemente<br />
o delegado Tucunduva e matou o protético alemão Friedrich<br />
Adolf Rohmann, cujo carro por azar atravessou o trecho<br />
conflagrado no momento do tiroteio. Com cinco balas no corpo,<br />
Marighella teve morte rápi<strong>da</strong> provoca<strong>da</strong> por hemorragia interna.<br />
( livro citado – pg. 175 ).<br />
10
II<br />
Análise Pericial<br />
Os peritos criminais Celso Nenevê, Mauro Yared e Pedro Cunha<br />
elaboraram pronunciamento técnico a que se pudesse estabelecer a dinâmica do<br />
acontecido, sob essa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de prova.<br />
O estudo é apresentado em 15 ( quinze ) páginas, arquivado e à disposição<br />
de todos no âmbito dessa <strong>Comissão</strong> <strong>Nacional</strong> <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, do qual destacaremos alguns<br />
tópicos eluci<strong>da</strong>tivos.<br />
No item dedicado às “análises <strong>da</strong>s imagens do corpo no interior do<br />
veículo”, dizem os peritos em suas “observações técnicas”:<br />
“1 – Existiam pelo menos três perfurações na parte direita do<br />
para-brisa do veículo, identificados com os números 1 e 2, com<br />
características de terem sido produzi<strong>da</strong>s por passagens de<br />
projéteis de arma ( s ) de fogo;<br />
2- Não foram observados vestígios de sangue na moldura <strong>da</strong><br />
porta e na parte externa <strong>da</strong> lataria, que pudessem caracterizar o<br />
transporte do corpo para o interior do veículo;<br />
3- A mancha de sangue observa<strong>da</strong> na parte anterior do corpo<br />
(número 3) é compatível com a posição em que o cadáver<br />
encontrava-se no interior do veículo e tinha origem nos<br />
ferimentos observados na lateral direita de sua face(número 4).”<br />
Prosseguem, em trecho adiante:<br />
2- Não foram observados vestígios de sangue na moldura <strong>da</strong><br />
porta, na lataria, no estribo <strong>da</strong> lateral esquer<strong>da</strong> do veículo e na<br />
área externa, que pudessem caracterizar o transporte do corpo<br />
para o seu interior;<br />
3- As dobraduras ( setas vermelhas ) observa<strong>da</strong>s nas regiões<br />
identifica<strong>da</strong>s como “pernas de calça” apresentavam<br />
características de terem sido produzi<strong>da</strong>s em sentido contrário ao<br />
indicado na peça do subitem I. IV. Essas dobraduras foram<br />
forma<strong>da</strong>s de cima para baixo e <strong>da</strong> direita para a esquer<strong>da</strong>, em<br />
relação ao veículo, tendo, o banco posterior e a moldura <strong>da</strong> porta<br />
servido para prender o tecido <strong>da</strong> calça durante a acomo<strong>da</strong>ção do<br />
corpo.”<br />
Por mais de uma vez, o que, inclusive, há de se repetir em asserções<br />
posteriores, no mesmo tópico, os peritos não constatam vestígios de sangue nas<br />
molduras <strong>da</strong>s portas, ou nos estribos, o que, e o tenho por evidente, afasta, cabalmente,<br />
a versão de que Marighella fora morto, an<strong>da</strong>ndo na rua e, depois, transportado para o<br />
carro.<br />
11
Nas conclusões, e no campo <strong>da</strong>s “proposições determinantes”, vale dizer,<br />
quando se alcança maior grau de certeza na análise ensejando a afirmação de que<br />
determina<strong>da</strong> situação ocorreu, estabelecem os peritos que:<br />
“a) É possível afirmar que a feri<strong>da</strong> existente na região torácica<br />
direita de Carlos Marighella apresenta a zona de tatuagem<br />
inscrita na zona de esfumaçamento e que essa zona de<br />
enfumaçamento apresenta contornos bem definidos, com<br />
diâmetro relativamente pequeno e a coloração bem enegreci<strong>da</strong> (<br />
figura ao lado ). Essas características são verifica<strong>da</strong>s em disparos<br />
efetuados com a boca do cano muito próxima do anteparo, ou<br />
seja, em distâncias inferiores a oito centímetros, conforme<br />
ensaios já realizados e biografia existente na Balística Forense;<br />
b) A proposição acima, alia<strong>da</strong> com o trajeto desse projétil no<br />
corpo, caracteriza que o projétil que atingiu a região torácica<br />
direita do corpo de Carlos Marighella foi disparado a menos de<br />
oito centímetros do corpo, com o atirador posicionado no mesmo<br />
nível ou em plano levemente superior ao de Carlos Marighella.<br />
De forma análoga, o projétil que atingiu a região mentoniana<br />
também foi disparado com o atirador em condições semelhantes.<br />
Carlos Marighella estaria sentado ( ou em posição próxima desta)<br />
com o tronco tendendo ao piso, conforme ilustrações produzi<strong>da</strong>s<br />
a seguir:”<br />
Relevo, agora, três itens, também no campo <strong>da</strong>s “proposições<br />
determinantes” que, a meu juízo, por completo afastam a versão de tiroteio entre<br />
grupos de pessoas rivais, ou que Carlos Marighella posicionava-se como agressor<br />
dos policiais. De se ler:<br />
“f) a característica <strong>da</strong> feri<strong>da</strong> observa<strong>da</strong> na região torácica direita,<br />
produzi<strong>da</strong> por entra<strong>da</strong> de projétil expelido por arma de fogo,<br />
disparado com a extremi<strong>da</strong>de livre do cano ( “boca do cano” )<br />
posiciona<strong>da</strong> a curta distância ( menos de oito centímetros ) do<br />
peito de Carlos Marighella, não é compatível com feri<strong>da</strong>s<br />
encontra<strong>da</strong>s em tiroteios ( versão registra<strong>da</strong> no Histórico do<br />
Laudo Ca<strong>da</strong>vérico de Carlos Marighella), em confrontos ou em<br />
troca de tiros. Esse tipo de feri<strong>da</strong>, com a distância de disparo<br />
considera<strong>da</strong> – curta distância – é comumente encontra<strong>da</strong> em<br />
locais onde o agressor ( ou agressores ) tem a intenção de matar<br />
as vítimas, em eventos conhecidos como execuções. ( grifos<br />
meus e do original ).<br />
g) não é citado pelo perito que examinou a bolsa que estaria com<br />
Carlos Marighella qualquer vestígio de sangue nessa peça. Como<br />
existia a versão de que Carlos Marighella foi atingido na mão<br />
quando tentava abrir a bolsa, seria esperado que vestígios de<br />
sangue alcançassem a estrutura <strong>da</strong> bolsa e, nesse caso, seriam<br />
descritos pelo perito que a examinou. Assim, considerando a<br />
inexistência desses vestígios de sangue e considerando que a<br />
arma estaria acomo<strong>da</strong><strong>da</strong> no interior <strong>da</strong> bolsa, é determinante que<br />
Carlos Marighella não teve acesso a essa arma e que sua mão<br />
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feri<strong>da</strong> não entrou em contato ou esteve próxima dessa peça,<br />
pois não é citado qualquer vestígio de sangue na sua<br />
estrutura.”<br />
h) as portas abertas formavam vãos de dimensões suficientes<br />
para permitir a passagem de projéteis e, até mesmo, a<br />
aproximação de atirador e a realização de disparos a curta<br />
distância contra a vítima, sem que ficassem registrados impactos<br />
contra a lataria do veículo.”<br />
Esse pronunciamento pericial desdobra-se em vários itens, estabelecendo<br />
quadro de todo coerente e fun<strong>da</strong>mentado, <strong>da</strong>í porque, e assim se caracterizando sua<br />
óbvia importância, integra Anexo ao presente texto como ponto de leitura integralmente<br />
indispensável.<br />
Para encerrar este item, extraio trecho inserto nas “proposições sugestivas”,<br />
ou seja, quando o grau de certeza não atinge dimensão determinante e indicativa, mas, e<br />
em análise contextual, a conclusão apresenta<strong>da</strong> faz-se em possível e provável:<br />
b) A análise <strong>da</strong>s proposições anteriores e dos posicionamentos<br />
<strong>da</strong>s avarias observa<strong>da</strong>s no veículo, ilustra<strong>da</strong>s no subitem II.3,<br />
predominantemente na parte anterior do veículo, sugerem que a<br />
aproximação do ( s ) atirador (es ), quando Carlos Marighella foi<br />
ferido pelos projéteis expelidos por arma ( s ) de fogo que<br />
atingiram seu corpo, se deu dos dois lados <strong>da</strong> parte anterior do<br />
veículo, predominantemente do seu lado direito, e prosseguiu até<br />
que um dos atiradores alcançasse o vão <strong>da</strong> porta direita do<br />
veículo, de onde disparou os dois projéteis que atingiram a<br />
cabeça e a mão esquer<strong>da</strong> de Carlos Marighella ( disparo único ) e<br />
a sua região torácica direita, em disparo quase encostado e com<br />
Carlos Marighella praticamente confinado no banco traseiro<br />
do veículo, com pouco espaço e tempo para se defender.”<br />
(grifei ).<br />
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