Aos textos, com prazer! - Secretaria da Educação
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Restaram apenas alguns rebeldes, talvez os mais rápidos, ou os menos ousados. Vi a longa distância<br />
os policiais pegarem Géricault; ele gritava aflito. O destino de um rebelde antimonarca nas mãos <strong>da</strong><br />
guar<strong>da</strong> nacional é um só: a execução. Géricault sabe disso, não pude conter minha tormenta, atirei-me sem<br />
pensar em direção ao campo de concentração de sol<strong>da</strong>dos. Fui baleado na região do estômago e, após<br />
esse momento, já não me lembro de na<strong>da</strong>.<br />
Acordei em lugar desconhecido. Era obscuro, sombrio, fétido, não sinto mais o cheiro de guerra, o<br />
aroma <strong>da</strong>s pólvoras do qual Paris já se habituara. As teias de aranha no ângulo do teto e as grades de<br />
formas hedion<strong>da</strong>s nos pequeninos vitrôs tornavam o lugar um cenário temeroso. Avistei uma fita de luz à<br />
minha esquer<strong>da</strong>. Era uma porta; estava distante. Me movi lentamente em sua direção; percebi que minhas<br />
mãos e meus pés estavam atados. Arrisquei-me a sentar no chão, pressionei meu abdômen e senti uma dor<br />
desmedi<strong>da</strong> no estômago. O tiro... tinha me esquecido...<br />
Notei movimentos no salão. Passos serenos e cautelosos ron<strong>da</strong>vam pela área pequena <strong>da</strong> sala, mais<br />
pessoas estão aqui. Seriam estranhos? Feridos? Tive medo de tentar averiguar, permaneci deitado e<br />
calado. Estou preso obviamente pela guar<strong>da</strong> nacional. Penso em hipóteses por um otimismo imbecil:<br />
esperança, na ocasião que me encontro, é imprescindível.<br />
A porta se abre. Uma explosão de luz invade o salão de tijolos velhos, dezenas de rebeldes feridos<br />
estão atirados no chão, a maioria deles desacor<strong>da</strong>dos. Cinco sol<strong>da</strong>dos bem divididos no espaço <strong>da</strong> sala,<br />
armados e à espreita. Não restam mais esperanças.<br />
O guar<strong>da</strong> <strong>da</strong> porta sussurra:<br />
— Levantem-se, maricas! — batendo o cabo <strong>da</strong> espingar<strong>da</strong> em alguns manifestantes que o<br />
cercavam. Eles levantaram lentamente, <strong>com</strong> dificul<strong>da</strong>de, mancos, feridos, e alguns mutilados. Sete saíram.<br />
Logo após o sétimo homem sair, a porta foi fecha<strong>da</strong> rapi<strong>da</strong>mente <strong>com</strong>o se não pudéssemos ter acesso à luz.<br />
Ouvia-se um coral lá fora. Vozes de desespero desatinado ecoavam força<strong>da</strong>mente segui<strong>da</strong> de gritos de<br />
choro. Eram os heróis que incitavam: “Viva a república nova!”. Uma voz grave e firme soa exprimindo-os:<br />
“Fogo!”. Ouviam-se os tiros, sincronizados, aniquilando o pequeno coral. Preparam-se os rebeldes do salão,<br />
pois <strong>da</strong>qui sairá a próxima remessa de heróis.<br />
O que pode pensar um homem convicto de que vai morrer? No seu funeral? Os tiros lá fora mal me<br />
deixam pensar; os disparos doem em minha alma, os gritos dos grandes homens, os cânticos, a ordem de<br />
disparo, todos reunidos, mal-ensaiados, acontecendo. Sinto-me cronometrado. Tenho apenas algumas<br />
horas. Preciso selecionar meus pensamentos, afinal, após ele, partirei para onde não sei, e ninguém sabe.<br />
Partirei para o maior mistério <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de.<br />
Tenho anseio pelo sangue dos monarquistas malditos, crápulas, miseráveis, narcisistas, autores de tamanha<br />
insolência. Um país, uma nação submissa a apenas um corpo, de carne, sangue, e equívocos. Prefiro a morte<br />
a ter que conviver <strong>com</strong> esse mal.<br />
Turbilhões de memórias e recor<strong>da</strong>ções narcotizam meu cérebro. Penso, me diviso, me multiplico, me<br />
analiso. Qual é minha essência? Quem sou eu? Resmungos? Mentiras? Sonhos? Lembro-me do tempo em que<br />
não me in<strong>com</strong>o<strong>da</strong>vam os absolutistas, que era feliz, que admirava o belo. Serei apenas mais um<br />
manifestante eliminado para o grande faturamento <strong>da</strong> Casa Real, <strong>com</strong>o o agricultor elimina gafanhotos<br />
para uma boa colheita. 31<br />
Minha história a miúdo<br />
Jailson Amâncio Nunes<br />
Sou um cabra muito macho<br />
Um poeta nordestino<br />
Que sofri quando menino<br />
Na minha vi<strong>da</strong> singela<br />
Filho de Maria Istela<br />
Serva fiel do divino<br />
Francisco Matias Nunes<br />
Que hoje já falecido<br />
Foi o meu papai querido<br />
Que o inimigo matou<br />
Mas o meu pai vacilou<br />
Porque não foi bom marido<br />
Por causa <strong>da</strong> vai<strong>da</strong>de<br />
Traindo a minha mãezinha<br />
Trouxe uma sorte mesquinha<br />
Com falsas amizades<br />
Perdeu a felici<strong>da</strong>de<br />
Perdeu a vi<strong>da</strong> que tinha<br />
Quando eu era pequeno<br />
As minhas irmãs queri<strong>da</strong>s<br />
Sem nenhuma despedi<strong>da</strong><br />
Se separaram de mim<br />
Pois aí vi tendo o fim<br />
De uma vez só duas vi<strong>da</strong>s<br />
31<br />
Foi na déca<strong>da</strong> de oitenta<br />
Que esse fato aconteceu<br />
Três aninhos tinha eu<br />
De um posto estávamos vindo<br />
E quem vinha dirigindo<br />
Triste notícia nos deu<br />
Em um posto de saúde<br />
Veio um carro me buscar<br />
Alguém para avisar<br />
A eu e a minha mãezinha<br />
Que desconfia<strong>da</strong> vinha<br />
Já <strong>com</strong>eçou a chorar<br />
Disse aquela doutora<br />
Que guiando o carro vinha<br />
Que no canal que ali tinha<br />
Morreram duas meninas<br />
To<strong>da</strong>s duas pequenininhas<br />
Eram minhas irmãzinhas<br />
A Salete, a Vanusa<br />
Que morreram afoga<strong>da</strong>s<br />
Estavam ali deita<strong>da</strong>s<br />
Sem poder me <strong>da</strong>r carinho<br />
E eu fiquei ali sozinho<br />
Muitas lágrimas derrama<strong>da</strong>s<br />
Vendo elas ali para<strong>da</strong>s<br />
Todos lhe observavam<br />
E muitos nos consolavam<br />
Perguntei: estão dormindo?<br />
Vendo aqueles braços lindos<br />
Que antes me carregavam<br />
Minha mãe disse: estão,<br />
Mas não vão mais acor<strong>da</strong>r<br />
Eu <strong>com</strong>ecei a chorar<br />
Porque elas nos deixaram<br />
Duas partiram, três ficaram<br />
E a tristeza no lar<br />
Jailson, 29 anos, 2ª série do Colégio Estadual Olavo Ferreira Neto, DIREC 15 – Juazeiro.<br />
Depois nasceu Jailton<br />
Pra me fazer <strong>com</strong>panhia<br />
E pro lar alegria<br />
Já <strong>com</strong>eçou a voltar<br />
Comecei a me acostumar<br />
E vencer a melancolia<br />
Depois nasceu Francinete<br />
No ano oitenta e seis<br />
No dia trinta do mês<br />
Não teve mais pranto algum<br />
Pois onde só era um<br />
Agora já eram três<br />
E <strong>da</strong>ndo à luz outra vez<br />
Minha mãe fez paradeiro<br />
O caçula e o derradeiro<br />
Foi Janeildo, e só<br />
Quem cortou o umbigo foi vó<br />
E eu tava lá no terreiro<br />
Quando já podia entrar<br />
Eu parti bem de repente<br />
E entrei todo contente<br />
Vendo a obra que Deus fez<br />
Um bebê de sete mês<br />
Era um pingo de gente<br />
Nem as bor<strong>da</strong>s <strong>da</strong> orelha<br />
Eram ain<strong>da</strong> termina<strong>da</strong>s<br />
Mas num é que o camara<strong>da</strong><br />
Hoje tá um homem feito<br />
Completo sem um defeito<br />
E todo cheio de arma<strong>da</strong><br />
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