A Psiquiatria na rota de Ribeiro Sanches - Última Edição
A Psiquiatria na rota de Ribeiro Sanches - Última Edição
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José Pacheco<br />
A <strong>Psiquiatria</strong> <strong>na</strong> <strong>rota</strong> <strong>de</strong> <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong><br />
Breve história biográfica e científica<br />
António Nunes <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong> (1699-1783) era «De família judaica, <strong>na</strong>sceu em<br />
Pe<strong>na</strong>macor e estudou Filosofia e Medici<strong>na</strong> em Coimbra, tendo sido doutorado em<br />
Salamanca [em 1724]. Exerceu clínica <strong>na</strong> Guarda e em Lisboa, assim como em<br />
Be<strong>na</strong>vente. Pouco <strong>de</strong>pois foi para Montpellier e Marselha e daí seguiu para Lei<strong>de</strong>n<br />
(Holanda) on<strong>de</strong> frequentou cursos do célebre fisiologista Boerhaave» (Macedo, 1998).<br />
De facto em 1726 exilou-se em França on<strong>de</strong>, para além das cida<strong>de</strong>s já referidas, também<br />
esteve em Bordéus e pouco <strong>de</strong>pois viajou por Itália (Génova e Pisa) e Inglaterra<br />
(Londres) até ter ido para a Holanda, em 1729, para frequentar o curso <strong>de</strong> Medici<strong>na</strong>,<br />
orientado por Boerhaave (1668-1738).<br />
Posteriormente foi para a corte russa, porque «Deixou tão boa impressão que o<br />
professor <strong>de</strong> Lei<strong>de</strong>n indicou o seu nome para ir para a Rússia a pedido da czari<strong>na</strong> An<strong>na</strong><br />
Ivanova [1693-1740]. Por lá ficou doze anos e adquiriu gran<strong>de</strong> fama como médico da<br />
corte e do exército. Tornou-se membro da Aca<strong>de</strong>mia Real <strong>de</strong> S. Petersburgo assim<br />
como da Aca<strong>de</strong>mia das Ciências <strong>de</strong> Paris, cida<strong>de</strong> que escolheu para residir <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
voltar da Rússia [on<strong>de</strong> esteve entre 1731 e 1747] e on<strong>de</strong> veio a falecer» (Macedo, 1998).<br />
Filinto Elísio (1734-1819), poeta e exilado em Paris, por fuga à Inquisição «… fez<br />
imprimir o Elogio que <strong>de</strong>le compôs o insigne a<strong>na</strong>tomista parisiense Vicq-D’Azir [1748-<br />
1794]» e <strong>de</strong>dicou-lhe uma o<strong>de</strong>:<br />
Tu como Sócrates po<strong>de</strong>s, com Aurélio<br />
Adoçar as mordazes amarguras.<br />
Que os <strong>de</strong>uses (quase digo que invejosos)<br />
Te enviam pelo tempo.<br />
Para além da sua origem judaica, <strong>de</strong>preciativamente chamado estrangeirado, e por isso<br />
só muito tar<strong>de</strong> reconhecida a sua contribuição para a ciência e para a educação em<br />
Portugal. Influenciado pelo enciclopedismo, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u o progresso científico, numa<br />
perspectiva eclética, em que apesar <strong>de</strong> propug<strong>na</strong>r uma visão <strong>na</strong>turalista, em oposição à<br />
visão teológica, consi<strong>de</strong>rava-a, tendo mesmo contactos regulares com os jesuítas da<br />
Chi<strong>na</strong>.<br />
Dele afirmou Sobral Cid (1907) 1 , sobre o seu papel <strong>na</strong> renovação do ensino<br />
universitário: «A contextura estatual da nossa Universida<strong>de</strong> é obra do Marquês, mas o<br />
espírito pedagógico que animou a Universida<strong>de</strong> reformada, foi <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong>, o<br />
insigne médico e pedagogo português, que lho incutiu do seu exílio <strong>de</strong> Paris. Nas<br />
célebres Cartas sobre a Educação Civil e Política da Juventu<strong>de</strong>, dirigidas ao principal<br />
Mendonça 2 , se inspirou o Marquês <strong>de</strong> Pombal [1699-1782] para a criação do Colégio<br />
1 Aparentemente <strong>de</strong>sconhecia que <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong> tivesse <strong>de</strong>ixado obra no campo da <strong>Psiquiatria</strong>.<br />
2 Na época, principal era um título honorífico e hierárquico usado no contexto religioso, universitário ou<br />
político. O único principal que encontramos foi José Francisco Miguel António <strong>de</strong> Mendonça (1786-<br />
1818) que foi patriarca <strong>de</strong> Lisboa e teve, muito mais tar<strong>de</strong>, um papel relevante <strong>na</strong> reforma da
dos Nobres, on<strong>de</strong> pela primeira vez foi introduzido em Portugal o ensino científico<br />
mo<strong>de</strong>rno. Porventura estas cartas representaram uma primeira e longínqua sugestão<br />
pedagógica da reforma <strong>de</strong> 1772, e certo é que a organização dos novos estudos, em<br />
gran<strong>de</strong> parte do que diz respeito à Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia e completamente quanto à<br />
Medici<strong>na</strong>, assentaram no Método para estudar a Medici<strong>na</strong> e apontamentos para a<br />
fundação duma Universida<strong>de</strong> Real, que <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong> elaborou em Paris, a pedido do<br />
Marquês, e enviou para Lisboa por intermédio do embaixador [em Haia] Luís da Cunha<br />
[1662-1749]» (p.327). Contudo, como « … era mal visto <strong>na</strong> corte, e o Marquês <strong>de</strong><br />
Pombal que o sabia mas não queria <strong>de</strong>saproveitar os seus conselhos e indicações,<br />
apresentou maliciosamente com o pseudónimo <strong>de</strong> João Sachetti 3 as memórias e<br />
relatórios que <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong> enviara <strong>de</strong> Paris para a elaboração dos novos estatutos»<br />
(p.328).<br />
No campo da medici<strong>na</strong> escreveu diversas obras sobre doenças venéreas, métodos <strong>de</strong><br />
apren<strong>de</strong>r e estudar medici<strong>na</strong> e cirurgia e até uma memória sobre os banhos <strong>de</strong> vapor <strong>na</strong><br />
Rússia 4 . No Tratado da Conservação da Saú<strong>de</strong> dos Povos (1756) apresentou indicações<br />
universida<strong>de</strong>. Po<strong>de</strong> admitir-se que se tenha inspirado em <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong>, ainda que este nunca lhe<br />
pu<strong>de</strong>sse ter dirigido as Cartas; o mais provável é que Sobral Cid se quisesse referir ao principal Salema,<br />
então ministro português em Paris e a quem <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong> as enviou, mas <strong>na</strong> década <strong>de</strong> 1730 (ver José<br />
Costa Pereira, «Vectores Culturais Portugueses <strong>de</strong> Seiscentos e Setecentos» in José Hermano Saraiva<br />
(Ed.), História <strong>de</strong> Portugal, Publicações Alfa, Lisboa, Volume 5, 1982, Lisboa.<br />
3 Eventualmente alu<strong>de</strong>-se aqui ao médico alentejano Sachetti Barbosa, que foi nomeado pelo marquês <strong>de</strong><br />
Pombal para fazer um plano <strong>de</strong> reforma, mas só aproveitou algumas das i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong>, que<br />
teria ficado irritado com o seu colega <strong>de</strong> profissão.<br />
4 Para <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong> os banhos a vapor eram importantes para a conservação da saú<strong>de</strong> e para tratar<br />
doenças (fadiga, dor, e<strong>de</strong>ma, peso <strong>na</strong> cabeça, indisposições e resfriamentos) e eram baratos (inclusive<br />
havia banhos públicos), fáceis e eficazes. De um modo geral, provocavam transpiração, sudação, conforto<br />
e sonolência. Depois do banho a pessoa <strong>de</strong>via meter-se <strong>na</strong> cama para induzir transpiração. Criticava os<br />
banhos <strong>de</strong> limpeza em ti<strong>na</strong>s, apesar <strong>de</strong> aconselhados por colegas, porque «… o mal que causam muitas<br />
vezes estes banhos <strong>de</strong> limpeza, é relaxar, enfraquecer, inervar as partes sólidas <strong>de</strong> todo o corpo… porque<br />
perturbam a circulação do sangue e provocam catarros, dor <strong>de</strong> cabeça».<br />
Outros tipos <strong>de</strong> banho tinham sempre o problema do ar ou do vapor não serem renovados: «As estufas da<br />
Alemanha e as dos banhos <strong>de</strong> água quente, tanto <strong>de</strong> Itália como do resto da Europa, relaxam sempre o<br />
sistema <strong>de</strong> sólidos…», ao contrário do banho turco ou do usado em Londres que não enfraqueciam o<br />
corpo. Para além disso, «… a respiração <strong>de</strong> várias pessoas fechadas <strong>na</strong> mesma divisão, sem comunicação<br />
com o exterior é extremamente prejudicial, pois que o suor e sobretudo a respiração são matérias não<br />
assépticas…».<br />
O banho russo, que seria uma síntese feliz entre o romano e o turco, era sequenciado por uma massagem<br />
com sabão e folhas ou ramos <strong>de</strong> tília, amolecidos em água quente. Todos os outros tipos <strong>de</strong> banho<br />
também eram associados a massagens com pomadas, óleos, argila, aguar<strong>de</strong>nte com rábano e águas <strong>de</strong><br />
cheiro, mas <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong> <strong>de</strong>saconselhava o seu uso. Do ponto <strong>de</strong> vista do racio<strong>na</strong>l provocariam uma<br />
«febre mo<strong>de</strong>rada ou leve» ou seja um aumento do ar e do fogo no nosso corpo que eram superiores aos<br />
outros banhos. De resto, este pressuposto, ainda surgia mais claramente expresso, quando afirmava: «O<br />
que é o sabão? É fogo e ar concentrados e con<strong>de</strong>nsados nos sais salinos, nos óleos ou gorduras, ou <strong>na</strong> cal.<br />
As gorduras da Ásia, os aromáticos, as raízes e as cascas amargas, os espíritos voláteis, alcalinos e<br />
oleosos contêm uma maior quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fogo e <strong>de</strong> ar do que o resto dos medicamentos que encontramos<br />
<strong>na</strong> Europa…».<br />
Em qualquer dos casos tinham contraindicações. Nalgumas pessoas podiam provocar dor <strong>de</strong> cabeça ou<br />
se<strong>de</strong> excessiva e, nesse caso, não se <strong>de</strong>via beber porque era perigoso. A pessoa só <strong>de</strong>via entrar quatro a<br />
cinco horas após a refeição.<br />
Os banhos a vapor eram interditos <strong>na</strong> gravi<strong>de</strong>z e o excesso <strong>de</strong> banhos podia provocar dificulda<strong>de</strong>s sexuais,<br />
alterações menstruais e esterilida<strong>de</strong>. Se fossem associados ao uso <strong>de</strong> sangria por ventosas escarificadores<br />
também podia provocar amenorreia. No entanto eram fundamentais nos cinco dias a seguir ao parto,<br />
prevenindo a dor, melhorando a circulação sanguínea, relaxando a pele, prevenindo várias doenças,<br />
sobretudo o «vírus venéreo». O banho a vapor po<strong>de</strong>ria minorar o drama da morte <strong>de</strong> 30% das parturientes<br />
<strong>na</strong>s gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s europeias e, para além disso, as mulheres «… conservariam a sua beleza, as suas
sobre higiene e profilaxia das doenças 5 e, mais tar<strong>de</strong>, indicou uma <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> doente:<br />
«… aquele que não po<strong>de</strong> fazer exercício nem executar a menor função da vida sem<br />
repugnância, nem fadiga <strong>de</strong> todo o corpo ou <strong>de</strong> algumas das suas partes, com dor, fadiga<br />
ou mal estar…» que, como se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>, valorizava a incapacitação.<br />
Terá ainda um lugar <strong>na</strong> história da psicologia e da psiquiatria porque foi dos primeiros 6 ,<br />
nos tempos mo<strong>de</strong>rnos, a reivindicar que o campo das perturbações psíquicas e<br />
emocio<strong>na</strong>is <strong>de</strong>via regressar à medici<strong>na</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Galeno (129/131-200-217), ter<br />
ficado sob o controlo da teologia. Nesta área, a sua obra fundamental é a Dissertação<br />
sobre as Paixões da Alma 7 , escrita origi<strong>na</strong>lmente em francês e que, apesar <strong>de</strong> ser um<br />
trabalho notável para o seu tempo, no plano da compreensão das perturbações psíquicas,<br />
<strong>de</strong>morou mais <strong>de</strong> duzentos anos para ser vertido para a língua portuguesa.<br />
É possível que a Dissertação sobre as Paixões da Alma tenha resultado do facto <strong>de</strong><br />
sofrer <strong>de</strong> uma grave fobia social. Como diz Cor<strong>de</strong>iro (1999), no prefácio à edição<br />
portuguesa, «…a tentativa <strong>de</strong> explicar os seus próprios problemas emocio<strong>na</strong>is que<br />
começaram, a partir <strong>de</strong> certa altura, a perturbar a sua relação com os outros, incluindo a<br />
sua relação com os doentes» (p. IX). Quando a escreveu havia catorze anos que evitava<br />
os amigos e até estar com uma criança lhe era penoso e difícil: «Por esta razão <strong>de</strong>ixei a<br />
prática da Medici<strong>na</strong>. Logo que um enfermo me começava a relatar a sua enfermida<strong>de</strong>,<br />
logo caía e caio nos sintomas referidos <strong>de</strong> tal modo que fico incapaz <strong>de</strong> perceber nem <strong>de</strong><br />
formar juízo sobre o que queria saber» (p. 36).<br />
Síntese sobre a Dissertação sobre as Paixões da Alma<br />
graças e os seus <strong>de</strong>ntes». «Logo que tive a confirmação do sucesso <strong>de</strong>sta prática <strong>na</strong> Rússia, o meu método<br />
<strong>de</strong> tratar e <strong>de</strong> curar as mulheres e as damas <strong>de</strong>pois do parto, era <strong>de</strong> as manter <strong>na</strong> cama, <strong>de</strong> se agasalharem<br />
bem, as mãos e os braços sempre <strong>de</strong>baixo dos cobertores tendo a cabeça coberta; faziam-lhes tomar as<br />
bebidas e os alimentos sempre quentes, e manterem o corpo a transpirar pelo menos num estado <strong>de</strong><br />
transpiração <strong>de</strong>finido durante os cinco primeiros dias: não me arrependo <strong>de</strong> ter aprendido este método das<br />
camponesas russas e <strong>de</strong> outras mulheres que as imitam». Defendia ainda o leite materno como a<br />
amamentação correcta, em <strong>de</strong>trimento do leite <strong>de</strong> amas ou <strong>de</strong> animais.<br />
Relativamente às doenças venéreas, seriam muito frequentes e afirmava que o vírus se espalhava por todo<br />
o corpo. Com frequência, <strong>de</strong>vido às dores <strong>na</strong>s regiões genitais, havia abstinência sexual. Entre os homens<br />
pobres provocaria uma espécie <strong>de</strong> escorbuto. Frequentemente afectaria a <strong>de</strong>scendência, fosse porque<br />
morriam ou ficavam <strong>de</strong>ficientes. A solução era efectuar dois banhos a vapor diariamente associados ao<br />
uso <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cocção <strong>de</strong> «luxo», zimbro, salsaparilha, barda<strong>na</strong> ou, ainda, <strong>de</strong> hidromel e tintura <strong>de</strong><br />
sublimado corrosivo. Se tivesse chagas <strong>de</strong>via lançar-se vi<strong>na</strong>gre ou atear pólvora <strong>na</strong>s pedras quentes do<br />
banho a vapor. Se tivesse dores <strong>na</strong> zo<strong>na</strong> genital <strong>de</strong>via-se aplicar uma cataplasma <strong>de</strong> farinha <strong>de</strong> aveia, leite<br />
e gemas <strong>de</strong> ovo <strong>na</strong>s regiões afectadas. Na fluor albus (leucorreia) a mulher ficava amenorreica e estéril o<br />
que, frequentemente, afectava a relação conjugal. Neste caso, para além do banho a vapor usava uma<br />
<strong>de</strong>cocção das pontas dos ramos <strong>de</strong> giesta picados.<br />
Na varíola mencio<strong>na</strong>va que o uso <strong>de</strong> crostas secas moídas era comum no Casan (<strong>de</strong>via referir-se à cida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Kazan, capital da república do Tartaristão, <strong>na</strong> Rússia) e <strong>na</strong> Chi<strong>na</strong>. No seu receituário, o banho a vapor<br />
associado a dieta alimentar que incluía o hidromel, o leite <strong>de</strong>s<strong>na</strong>tado, a aguar<strong>de</strong>nte, o soro <strong>de</strong> leite e o<br />
quaz acidulado com mel ou açúcar e um cataplasma <strong>de</strong> farinha, óleo <strong>de</strong> linhaça e sementes <strong>de</strong> mostarda,<br />
para aplicar <strong>na</strong> garganta, curaria a doença.<br />
5<br />
Nas maleitas comezinhas como a tosse ou as dificulda<strong>de</strong>s respiratórias sugeria um receituário ainda hoje<br />
popular à base <strong>de</strong> mel, aguar<strong>de</strong>nte e gema <strong>de</strong> ovo. Na febre os caldos <strong>de</strong> farinha e as bebidas à base <strong>de</strong><br />
leite com mel; a água acidulada com vi<strong>na</strong>gre ou as azedas, eram as receitas propostas.<br />
6<br />
No fi<strong>na</strong>l do século XVI, Alessandro Petronio <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ra no De Victum Romanorum (1581) a criação <strong>de</strong><br />
uma Medici<strong>na</strong> da Alma.<br />
7<br />
A obra po<strong>de</strong> ser adquirida <strong>na</strong> Câmara Municipal <strong>de</strong> Pe<strong>na</strong>macor, que a editou.
Trata-se <strong>de</strong> uma revisão, relativamente exaustiva, sobre o que tinha sido dito acerca das<br />
perturbações psíquicas e uma meditação que <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong> afirmava ter durado vinte<br />
e quatro longos anos.<br />
Uma primeira questão situava-se em quem <strong>de</strong>via cuidar das perturbações psíquicas.<br />
Por um lado, o papel do médico fora restringido às doenças do corpo, sendo que<br />
raramente a Medici<strong>na</strong> se interessara pelas causas do sofrimento psicológico, apesar <strong>de</strong><br />
este po<strong>de</strong>r ser bastante incapacitante.<br />
As questões da alma tinham sido entregues aos teólogos que actuavam por via <strong>de</strong><br />
dogmas e conselhos e «… aos legisladores que com leis pe<strong>na</strong>is que tiveram o cuidado<br />
<strong>de</strong> curar os males que causam as paixões <strong>de</strong>sor<strong>de</strong><strong>na</strong>das; não ensi<strong>na</strong>vam nem persuadiam<br />
mas castigavam as faltas, daquela parte inteligente, que eram prejudiciais à socieda<strong>de</strong>.<br />
Castigando induziam o medo nos ânimos <strong>de</strong>sregrados e atemorizavam os inocentes para<br />
não ousar cometer <strong>de</strong>litos…» (p.4). E criticava-os severamente por sugerirem que o<br />
«tratamento» para os maus ímpetos fosse o açoite e a pancada.<br />
Defen<strong>de</strong>u, assim, um retorno ao classicismo, <strong>na</strong> medida em que entendia que <strong>de</strong>viam ser<br />
os médicos a tratar as perturbações psíquicas. Mas, tal como sucedia <strong>na</strong> Grécia Antiga,<br />
achava que os médicos <strong>de</strong>viam ser também filósofos como Pitágoras (570-480 a.C),<br />
Demócrito (460-370 a.C.) e Empédocles (século V a.C.) que a duas mãos eram médicos<br />
e filósofos. Ainda que valorizasse outros como Asclepía<strong>de</strong>s (124-40 a.C.), numa alusão<br />
implícita à pouca importância que <strong>de</strong>u a Hipócrates (460-377 a.C.), sobretudo no que<br />
respeitava à teoria dos humores que, só <strong>de</strong> passagem, referiu e usou para a compreensão<br />
das perturbações psíquicas.<br />
Pouco antes da apropriação pela Igreja Cristã do tratamento das perturbações psíquicas,<br />
Areteu da Capadócia (81-138) e Galeno tinham sido os últimos a abordá-las no plano<br />
conceptual e terapêutico. E dizia sobre Areteu: «Este é o único autor da antiguida<strong>de</strong> e<br />
po<strong>de</strong> ser dito que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le ninguém tratou das paixões da alma próprias a cada<br />
enfermida<strong>de</strong>; que tratou esta nova sintomatologia. Daqui vemos que os diferentes<br />
estados do nosso corpo fazem <strong>na</strong>scer incli<strong>na</strong>ções ou aversões diferentes daquelas<br />
quando gozamos <strong>de</strong> perfeita saú<strong>de</strong>» (p.61).<br />
Estava assim por <strong>de</strong>sbravar o estudo da etiologia, da classificação e do tratamento,<br />
incluindo uma farmacopeia específica, das perturbações psíquicas e emocio<strong>na</strong>is que<br />
<strong>de</strong>viam instituir-se como uma especialização no campo da medici<strong>na</strong>, que seria, no seu<br />
dizer, <strong>de</strong> toda a utilida<strong>de</strong> para a Religião e para a República.<br />
Admitindo, numa visão aristotélica, que a alma podia mover o corpo questio<strong>na</strong>va,<br />
apesar <strong>de</strong> ignorar a resposta, se não seria verda<strong>de</strong>ira a possibilida<strong>de</strong> das disposições do<br />
corpo po<strong>de</strong>rem afectar a alma.<br />
Quis pois estudar as causas e as consequências das perturbações psicológicas, uma vez<br />
que a alma e o corpo, sendo separados, eram igualmente interligados, ainda que <strong>de</strong><br />
forma pouco compreendida: «…sabemos que um homem, pacato e <strong>na</strong> melhor saú<strong>de</strong>,<br />
sendo afrontado com uma palavra injuriosa todo o seu corpo se altera. Sai logo o ânimo<br />
daquela tranquilida<strong>de</strong>, mostra-se pela cara vermelha, carrancuda, os olhos em fogo, por<br />
todos os membros em acções <strong>de</strong>sor<strong>de</strong><strong>na</strong>das, treme, espuma, o coração palpita, o pulso é<br />
trémulo e <strong>de</strong>sor<strong>de</strong><strong>na</strong>do, o estômago não digere os alimentos, todas as secreções se
perturbam e este estado é o que se chama doença. Aqui vemos que o ânimo tem o sumo<br />
po<strong>de</strong>r no corpo para alterá-lo até fazê-lo enfermo e às vezes até per<strong>de</strong>r a vida» (p.5).<br />
E exemplificava como a fome ou o excesso <strong>de</strong> comida, o défice ou o excesso <strong>de</strong> sono, o<br />
álcool, o ópio, a gravi<strong>de</strong>z 8 ou as mudanças <strong>de</strong> ar podiam alterar o comportamento em<br />
pessoas fisicamente saudáveis. E os <strong>de</strong>lírios febris e a centralização da nossa atenção <strong>na</strong><br />
dor violenta. Em todos os casos «… transformam, confun<strong>de</strong>m e perturbam aquela parte<br />
inteligente» (p.6). Ou seja, «… ninguém negará este po<strong>de</strong>r da parte inteligente <strong>na</strong>quele<br />
corpo nem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ste <strong>na</strong> substância ainda que espiritual <strong>de</strong> que se compõe o homem»<br />
(p.6) e que, especificando, «A cada enfermida<strong>de</strong> e a cada doença é própria uma paixão<br />
da alma» (p.60) e que esta, enquanto doença, alteraria, <strong>de</strong> novo, o corpo.<br />
Consi<strong>de</strong>rava, pois, que o temperamento e o comportamento acabavam por ser uma<br />
resultante complexa das disposições do cérebro, das condições ambientais (o clima, o<br />
ar, o vento, a exposição solar), da dieta alimentar, do contexto familiar e da<br />
hereditarieda<strong>de</strong> («Há males hereditários tanto corporais como do ânimo», p.25). E aqui<br />
seguia «Galeno [que] se atrevia pela dieta apropriada a cada temperamento, pela<br />
mudança <strong>de</strong> clima, mudar totalmente as incli<strong>na</strong>ções, mudando primeiro o corpo» (p.58).<br />
Para <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong>, os alimentos e as bebidas podiam alterar incli<strong>na</strong>ções, juízos,<br />
acções e relações sociais. Curiosamente recusava a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que as paixões da alma<br />
fossem simplesmente uma mera consequência da má criação ou dos costumes.<br />
Defen<strong>de</strong>u que o instinto sexual e o instinto <strong>de</strong> conservação tinham um papel fulcral<br />
<strong>na</strong>s reacções psíquicas: «A todo o vivente implantou o Altíssimo aquele seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />
conservar-se e <strong>de</strong> produzir seu semelhante. Estes <strong>de</strong>sejos são a origem <strong>de</strong> todas as<br />
paixões da alma» (p.12). E <strong>de</strong>fendia a mo<strong>de</strong>ração, uma vez que se «… os <strong>de</strong>sejos ou a<br />
aversão passarem além da medida <strong>de</strong> se conservar, servirão á sua <strong>de</strong>struição» (p.12).<br />
Para além disso, o instinto <strong>de</strong> conservação (fome, se<strong>de</strong>, sexo, dor) levar-nos-ia a tentar<br />
manter o estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.<br />
<strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u a existência <strong>de</strong> dois sistemas, o sentir e o mover, que se<br />
encaixavam <strong>na</strong> i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que existia um sensório comum, ou seja, uma espécie <strong>de</strong><br />
central <strong>de</strong> interligação entre o cérebro e o corpo. Esta interligação operava-se através<br />
dos nervos e havia nervos especializados para cada um dos sentidos.<br />
Estes sistemas seriam gover<strong>na</strong>dos pela medula oblongata (bolbo raquidiano), uma vez<br />
que a sua <strong>de</strong>struição fazia com que <strong>de</strong>ixassem <strong>de</strong> funcio<strong>na</strong>r. Verificou que a lesão ou<br />
<strong>de</strong>struição <strong>de</strong> um órgão podia dar lugar a uma dor localizada nessa zo<strong>na</strong> ou noutra<br />
região do organismo (exemplos – cancro do útero, pedras nos rins, hipocondria) 9 . Ou<br />
mesmo a ocorrência <strong>de</strong> dor e <strong>de</strong> outras sensações <strong>na</strong> ausência <strong>de</strong> órgão, como no caso<br />
do membro fantasma dos amputados. «Daqui vemos que quando os nervos que se<br />
distribuem pelo interior do corpo estão ofendidos que po<strong>de</strong>mos perceber a dor, e o mal<br />
em lugar diferente daquele adon<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> a enfermida<strong>de</strong>…» (p.11).<br />
Defen<strong>de</strong>u a tese da interligação entre o cérebro e o corpo: «Do mesmo modo que do<br />
coração saem todas as artérias e que se distribuem por todo o corpo, do mesmo modo do<br />
cérebro e do cerebelo, que vem acabar <strong>na</strong> medula oblongata, saem <strong>de</strong>ste lugar todos os<br />
8 «… é tão <strong>de</strong>sregrada e tão insolente a imagi<strong>na</strong>ção das mulheres prenhes que muitas chegaram a matar<br />
seus maridos para satisfazer o da<strong>na</strong>do apetite <strong>de</strong> carne huma<strong>na</strong>» (p.58).<br />
9 Provavelmente estaria a referir-se a uma dor no diafragma e não a hipocondria como hoje a <strong>de</strong>finimos.
nervos que se distribuem por todo o corpo» (p. XI). A medula oblongata seria o<br />
princípio e o fim dos nervos que conduziam as sensações da periferia para o centro. Para<br />
além da similitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> funcio<strong>na</strong>mento do coração e do cérebro, advogava que estes dois<br />
órgãos se interligavam.<br />
Na medula oblongata situar-se-ia o sensório comum on<strong>de</strong> se localizaria a memória, que<br />
nos permitia conservar i<strong>de</strong>ias e impressões, e que seria material, uma vez que a doença<br />
podia afectar, parcial ou totalmente, a pessoa, sobretudo e paradigmaticamente, se fosse<br />
acometida <strong>de</strong> apoplexia.<br />
Ao entrar no sensório comum uma sensação era comparada com as experiências prévias<br />
(passado/presente, contexto, intensida<strong>de</strong>): «… o homem inteligente e dotado <strong>de</strong> razão<br />
não só compara as i<strong>de</strong>ias presentes com as passadas mas ainda as combi<strong>na</strong> com o<br />
futuro. Estas combi<strong>na</strong>ções fazem-se pela reminiscência, e não pela memória» (p.19). As<br />
paixões da alma <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>riam da reminiscência ou seja da combi<strong>na</strong>ção <strong>de</strong> sensações<br />
passadas, presentes e futuras.<br />
E, ao contrário <strong>de</strong> Helmontis (1579-1644), que situava o princípio do movimento que<br />
causava a doença no piloro, <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong> concluía que era no diafragma que se<br />
encontrava, ao nível do corpo, o termi<strong>na</strong>l universal dos nervos e, consequentemente, se<br />
aí houvesse lesão ou disfunção haveria, consequentemente, uma perturbação psíquica.<br />
Era aí que se situavam os sintomas <strong>de</strong> angústia, as dificulda<strong>de</strong>s em respirar, as náuseas,<br />
os vómitos, os borborigmos 10 . Ou, <strong>de</strong> outro modo, afirmava que «… existem fora do<br />
cérebro, no fim dos nervos, as enfermida<strong>de</strong>s do cérebro <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a vertigem até á apoplexia<br />
e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a tristeza ou escan<strong>de</strong>cência 11 até ao terror e ao furor. Destruído aquele fim <strong>de</strong><br />
nervo ou mudado, fica curado o corpo e o ânimo» (p.67).<br />
No entanto nem tudo vinha dos sentidos, nomeadamente os conceitos e as abstracções.<br />
Ou seja havia paixões da alma que, sendo materiais, só <strong>de</strong>pendiam do sensório comum e<br />
outras que só afectavam a alma. Por exemplo, as i<strong>de</strong>ias novas seriam conceitos<br />
abstractos, elaborados a partir das sensações registadas no sensório comum – a luxúria,<br />
a ambição, a avareza, a superstição, a vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver <strong>na</strong> memória dos homens <strong>de</strong>pois<br />
da morte.<br />
Relativamente à forma como se geravam as paixões da alma, <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u<br />
que, antes <strong>de</strong> tudo, tinham que estar gravadas no sensório comum ou seja, se uma<br />
criança ainda não as tinha impressas não po<strong>de</strong>ria sentir medo, que só ocorria <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
ter experimentado uma sensação <strong>de</strong>sagradável. De um modo geral, as impressões<br />
agradáveis estavam ligadas á conservação e as <strong>de</strong>sagradáveis à <strong>de</strong>struição e por isso a<br />
tendência para por elas sentirmos aversão ou tendência para as evitar. Por outro lado, se<br />
estas impressões não ocorriam, os sujeitos eram <strong>de</strong>sig<strong>na</strong>dos estúpidos e fátuos.<br />
Vejamos agora, num plano conceptual, alguns dos conceitos que utilizava. Defen<strong>de</strong>u<br />
que a vonta<strong>de</strong> podia ser consciente, inconsciente ou meramente reflexiva e instintiva e<br />
que, quando houvesse perfeita saú<strong>de</strong>, esta interagiria harmoniosamente com o corpo.<br />
A percepção do objecto ou <strong>de</strong> um contexto podia ser agradável, <strong>de</strong>sagradável ou<br />
indiferente. Seria igualmente afectada pelo significado que o sujeito lhe atribuía, assim<br />
10 Ruídos <strong>de</strong> gases nos intestinos.<br />
11 Aqui usado com o significado <strong>de</strong> entusiasmo.
como pelas «…impressões que ficaram impressas no sensório comum» (p.8). Anotou<br />
ainda a influência do contexto social, exemplificando que um espectáculo estava<br />
associado a alegria, enquanto que um funeral estava ligado a tristeza e que seria através<br />
da imitação que esses processos se operavam. E <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u que o modo <strong>de</strong> apresentação<br />
<strong>de</strong> um acontecimento podia influir <strong>na</strong> nossa reacção emocio<strong>na</strong>l. Por vezes, bastava a<br />
pessoa experimentar um episódio negativo para que ficassem marcas para toda a sua<br />
vida. Exemplificava-o com o caso do imperador romano Nero (54-68) que, sem duvidar<br />
da tirania do seu regime, foi apresentado por Suetónio (64-141) <strong>de</strong> um modo que não o<br />
<strong>de</strong>testamos e, ao contrário, por Tácito (55-120) que fazia com que sentíssemos a<br />
vivência emocio<strong>na</strong>l da sua tirania.<br />
No que respeita à imitação afirmava que «Há no homem uma faculda<strong>de</strong> conhecida por<br />
uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> experiências, que é uma tendência <strong>na</strong>tural a imitar tudo o que ele vê<br />
fazer. A causa da imitação <strong>de</strong>sta tendência <strong>na</strong>tural é inexplicável. Boceja, vomita, chora,<br />
ri ao ver bocejar, vomitar, chorar ou rir: <strong>na</strong>s mulheres o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> uri<strong>na</strong>r se comunica,<br />
quando uma <strong>de</strong>las sente necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o fazer. Esta tendência maqui<strong>na</strong>l à imitação<br />
existe também nos animais. Se um cão ladra todos os cães da vizinhança lhe respon<strong>de</strong>m.<br />
Contudo, esta faculda<strong>de</strong> está mais <strong>de</strong>senvolvida em certas pessoas e indivíduos: <strong>na</strong>s<br />
crianças, <strong>na</strong>s mulheres e <strong>na</strong>s pessoas fracas <strong>de</strong> espírito» (p.14). É provável que, visto<br />
sob o nosso olhar, os exemplos sejam muito mais <strong>de</strong> reacções sintónicas do que <strong>de</strong><br />
imitação ou, no caso dos cães, uma forma <strong>de</strong> comunicação.<br />
Apresentava, igualmente, uma longa lista <strong>de</strong> situações em que uma pessoa podia ficar<br />
doente simplesmente porque vira outra ficar com essa patologia: epiléptico, histérica,<br />
hemorragia, bexigas, peste, tísica 12 . Sugeria mesmo que se <strong>de</strong>via evitar uma ama que<br />
fosse gaga, vesga, disforme, para não influenciar negativamente a criança.<br />
Referia, igualmente, a imitação das pessoas em posição <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> –<br />
inconscientemente as pessoas riam ou tossiam só porque elas o tinham feito. Ainda<br />
hoje, inúmeras pessoas, <strong>de</strong> forma reflexa, assim reagem.<br />
Ou <strong>de</strong> um caso clássico, citado <strong>de</strong> Plutarco (46-126), <strong>de</strong> morte por imitação: «… em<br />
Mileto, cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Caria, se gerou tal constituição do ar que todas as donzelas se<br />
matavam sem causa alguma; parece que as primeiras que foram vítimas <strong>de</strong>sta epi<strong>de</strong>mia<br />
serviram <strong>de</strong> origi<strong>na</strong>l às mais que se mataram igualmente» (p.16). Esta «epi<strong>de</strong>mia»<br />
acabou por ser totalmente <strong>de</strong>belada quando foi adoptada uma medida simples – expor,<br />
completamente nuas, em público, as que se tinham matado.<br />
Defendia que as primeiras impressões (neutras ou traumatizantes), com frequência,<br />
eram marcantes para o resto da vida: «Descartes [1596-1650] afirma que toda a vida<br />
amou os olhos ver<strong>de</strong>s porque <strong>na</strong> sua adolescência estivera e<strong>na</strong>morado <strong>de</strong> uma moça que<br />
os tinha semelhantes» (p.19).<br />
Relativamente à imagi<strong>na</strong>ção consi<strong>de</strong>rou que: «A maior parte do que este imagi<strong>na</strong> mais<br />
serve para a nossa <strong>de</strong>struição do que para a nossa conservação e portanto a <strong>na</strong>tureza só<br />
por este fim nos <strong>de</strong>u o contentamento e a dor que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m das sensações corporais.<br />
Ela representa à alma ilusões e fantasmas e também a força e o enleio <strong>de</strong> se ocupar e<br />
meditar nelas» (p.21).<br />
12 Claro que em nenhuma <strong>de</strong>las, sabe-se hoje, era adquirida por «imitação».
<strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong>, apresentou um ensaio relativamente complexo <strong>de</strong> classificação das<br />
perturbações psíquicas, ainda que <strong>de</strong> um modo relativamente <strong>de</strong>sorganizado e, em<br />
parte, baseado <strong>na</strong>s apresentadas pelos autores clássicos.<br />
Os antigos distinguiam as paixões da alma pela duração e pela intensida<strong>de</strong> da<br />
sintomatologia. Nesse sentido, uma doidice momentânea, como a paixão amorosa ou a<br />
cólera, o impetu faciens <strong>de</strong>scrito por Hipócrates, seria diversa do maníaco que discorria<br />
sem or<strong>de</strong>m e sem capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comparar o verda<strong>de</strong>iro, o útil e o honesto.<br />
Galeno tinha dividido as paixões da alma em dois subgrupos em função dos efeitos e<br />
das consequências das paixões da alma. Estes dois subgrupos eram caracterizados por<br />
dois movimentos diferentes: quando ia da periferia para o centro, daria lugar ao medo e<br />
à tristeza; pelo contrário, quando ia do centro para a periferia dava lugar à alegria, à<br />
raiva ou à esperança.<br />
Mas <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong>, consi<strong>de</strong>rando a classificação <strong>de</strong> Galeno incompleta, estava mais<br />
próximo da versão proposta por Varrão (116-27 a.C.) que afirmava: «Há quatro sortes<br />
<strong>de</strong> paixões da alma: as primeiras duas são contrárias à nossa conservação: a dor e o<br />
medo. A primeira é a percepção do mal presente, e a segunda a percepção do mal futuro<br />
ou impen<strong>de</strong>nte. As outras duas são o contentamento e o <strong>de</strong>sejo; a primeira afecta o<br />
ânimo actualmente, a segunda com a percepção do futuro» (p.23).<br />
Paixões<br />
da alma<br />
I divisão<br />
Negativas<br />
II divisão<br />
Positivas<br />
Conservação da<br />
vida/perpetuação<br />
da espécie<br />
Elasticida<strong>de</strong><br />
dos nervos<br />
Contrária Défice Periferia<br />
↓<br />
Favorável<br />
(se mo<strong>de</strong>rada)<br />
Movimento Percepção<br />
do presente<br />
Centro<br />
Excesso Centro<br />
↓<br />
Periferia<br />
Dor, tristeza Medo<br />
Alegria,<br />
amiza<strong>de</strong>,<br />
raiva<br />
Percepção<br />
do futuro<br />
Desejo,<br />
esperança<br />
O primeiro grupo estaria associado à morte súbita, incluindo a partir <strong>de</strong> um medo, susto<br />
ou terror intenso (<strong>de</strong> <strong>na</strong>ufrágio, ficar sozinho, ver um filho a morrer ou morto, ver um<br />
porco esventrado, ser obrigado a casar com uma mulher feia e hedionda). Noutros casos<br />
podia <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar doenças físicas (v.g. cancro da mama) ou reacções psicossomáticas<br />
(v.g. falsa gravi<strong>de</strong>z).<br />
No segundo, seriam favoráveis à conservação da espécie <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que as vivências fossem<br />
mo<strong>de</strong>radas, porque uma alegria muito intensa e excessiva (v.g. sair da prisão, ganhar um<br />
jogo, enriquecimento inesperado) podia até <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar a morte. Nas alegrias mais<br />
mo<strong>de</strong>radas, a febre, a insónia, a melancolia. Como dizia «Não fomos formados para<br />
sofrer excesso ainda que seja <strong>de</strong> contentamento» (p.45). Aí enquadrava a alegria, a<br />
amiza<strong>de</strong>, a esperança, a escan<strong>de</strong>cência que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que mo<strong>de</strong>radas, podiam contribuir<br />
para prolongar a vida.<br />
No plano neurológico, as perturbações psíquicas podiam ser tanto uma consequência da<br />
fraqueza como do excesso <strong>de</strong> elasticida<strong>de</strong> dos nervos.
As experiências emocio<strong>na</strong>is mo<strong>de</strong>radas e positivas podiam aliviar inúmeros<br />
sofrimentos. Os doentes com artrite aliviavam a dor, com música, convívio e<br />
companhia. Parir ou ter um filho ou ser eleito para um cargo também podiam aliviar<br />
males físicos (v.g. gota). Mesmo <strong>na</strong>s emoções positivas e quentes o excesso também era<br />
perturbador (alegria, amor, cólera, indig<strong>na</strong>ção, sauda<strong>de</strong>s).<br />
Lista e <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> emoções<br />
Reacções emocio<strong>na</strong>is Definição<br />
Agritu<strong>de</strong> Ânimo <strong>de</strong>primido pelo mal presente. A<br />
pessoa não pensa noutra coisa.<br />
Luto ou planto (pranto) Dor pela coisa amada.<br />
Sauda<strong>de</strong> Perda ou ausência do objecto amado.<br />
Misericórdia Dor pela miséria alheia.<br />
Preguiça Medo do trabalho.<br />
Penitência Acções contra a consciência.<br />
Desespero Sentir que não há solução para o mal que<br />
sentimos.<br />
Vergonha Medo <strong>de</strong> fazer coisas injustas, <strong>de</strong>sonestas<br />
ou <strong>de</strong> realizar acções que atentem contra a<br />
nossa reputação ou conservação.<br />
Pudor ou pejo Convencer-se que as suas acções po<strong>de</strong>m<br />
ser injustas ou ter medo <strong>de</strong> ser difamado.<br />
Suspeitas (<strong>de</strong>sconfiança) Ameaça <strong>de</strong> dano <strong>na</strong> reputação ou no<br />
corpo.<br />
Inveja Dor pelo aumento <strong>de</strong> quem não amamos<br />
com paixão.<br />
Adiantava que as reacções emocio<strong>na</strong>is se interligavam às fisiológicas, e que podiam ser<br />
tanto uma consequência <strong>de</strong> disposições hereditárias, nomeadamente do instinto <strong>de</strong><br />
conservação, como <strong>de</strong> factores adquiridos, em particular a aprendizagem através da<br />
imitação.<br />
Por outro lado, interligava as reacções psíquicas, assim como as doenças orgânicas, à<br />
constituição física. Se fosse <strong>de</strong>licada, estaria em risco <strong>de</strong> sofrer <strong>de</strong> perturbações do<br />
estômago e intestinos, flatos, cefaleias, convulsões e zumbidos e, mais especificamente<br />
psicológicas a hipocondria e a histeria. Se fosse robusta, associava-se a hemorragias,<br />
vómitos <strong>de</strong> sangue, aneurismas, pedras nos rins, icterícia e, <strong>na</strong> esfera psíquica, à mania e<br />
à epilepsia. Para além da má conformação do corpo, as paixões da alma podiam<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r também do estado dos nossos humores, uma vez que os humores <strong>de</strong>generados<br />
ou perturbados, ao actuar no diafragma, podiam afectar o cérebro.<br />
Ou seja haveria causas inter<strong>na</strong>s localizadas no cérebro (duramáter, cerebelo, glândula<br />
pineal) e nos órgãos internos do corpo (pâncreas, cólon, mesentério, veia porta, coração,<br />
fígado, pulmões) que <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>riam as doenças mentais, especificamente a <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong><br />
mental, as fobias, a mania, a melancolia crónica assim como neurológicas (a epilepsia).<br />
Notou ainda que havia uma associação entre os estados <strong>de</strong> alma e as doenças físicas:<br />
aborrecimento e enxaqueca, tristeza e hemoptises, activida<strong>de</strong> <strong>de</strong>lirante e estados febris.
Na hidropsia (expectoração <strong>de</strong> sangue) atribuía valor a coisas sem importância e<br />
apresentava resiliência ao sofrimento, assim como ao <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> viver. De resto, «… o<br />
pulso pequeno, a respiração interrompida e rara, a cor da cara mudada, as insónias, as<br />
dores <strong>de</strong> cabeça, lassidão e peso <strong>de</strong> todo o corpo, as ânsias e sufocações, os aneurismas<br />
e pólipos do coração e da aorta, os <strong>de</strong>smaios, a <strong>de</strong>sesperação, a coagulação dos humores<br />
até à morte, o marasmo, o pericárdio como vi pegado ao coração <strong>de</strong>pois da morte,<br />
provêm das alterações que recebem as artérias pela força dos nervos que as abraçam,<br />
encolhidos e cerrados ou puxados para a sua origem» (p.25-26).<br />
Relativamente à importância da relação médico-doente assi<strong>na</strong>lou o seguinte: «É um<br />
gran<strong>de</strong> segredo <strong>na</strong> mão do médico prático ter a alegria a seu po<strong>de</strong>r para usar <strong>de</strong>la <strong>na</strong><br />
maior parte da sua prática, conserve e aumente a sua reputação para que o enfermo<br />
tenha nele a mais firme esperança; far-se-á agradável com <strong>de</strong>coro porque com a<br />
conversação agradável e um não sei quê no modo <strong>de</strong> expressão e do gesto muitas<br />
queixas tiram daqui o maior vigor dos remédios que or<strong>de</strong><strong>na</strong>r» (p.43). E refere ainda a<br />
forma como um dos seus mestres agia: «… a graça, com <strong>de</strong>cência, o saber da judiciosa<br />
conversação, a cordialida<strong>de</strong> com que mostrava magoar-se <strong>na</strong>s dores difíceis, animava<br />
aqueles ânimos ainda que abatidos» (p.43).<br />
No campo das perturbações psíquicas apresentou um amplo leque <strong>de</strong> situações<br />
clínicas que englobavam a maioria das doenças mentais. Relativamente ás fobias<br />
<strong>de</strong>screveu uma série <strong>de</strong> situações extremas <strong>de</strong> medo que podiam conduzir à morte (ver<br />
filho a morrer ou morto, mulher que ficou sozinha em casa, homem obrigado a casar<br />
com mulher disforme e hedionda, entrar num barco tendo um medo terrível <strong>de</strong><br />
<strong>na</strong>ufrágios, não encontrar um argumento durante uma discussão). Noutros casos, ainda<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>, os sustos, os terrores e as tristezas podiam levar à loucura,<br />
catalépsia, mania, melancolia crónica ou mesmo a doenças físicas, como o cancro da<br />
mama.<br />
Quando a intensida<strong>de</strong> era menor, a ansieda<strong>de</strong> e a tristeza eram o quadro sintomático<br />
mais relevante. No entanto, o medo, ao provocar alterações <strong>na</strong> circulação sanguínea,<br />
podia melhorar as doenças orgânicas (febre intermitente, artrite, paralisias) e psíquicas<br />
(manias e hidrofobias 13 ).<br />
No que respeitava à sua etiologia, admitia que podia ter, até uma origem pré-<strong>na</strong>tal: «O<br />
terror que sentiram as mulheres prenhas, dispõem os cérebros da sua prole a mover-se<br />
mais facilmente com semelhantes sensações. Jacob VI <strong>de</strong> Inglaterra (1603-1625) não<br />
podia ver espada nua porque sua mãe, estando <strong>de</strong>le prenhada, se assustou, vendo ferir<br />
um seu súbdito» (p.25).<br />
No que respeita à sintomatologia anotou a mencio<strong>na</strong>da por Galeno, como o pulso lento,<br />
o corpo tenso, as alterações <strong>na</strong> respiração e <strong>na</strong> transpiração e a falta <strong>de</strong> memória. No<br />
caso concreto do medo, a tensão, a cara <strong>de</strong>scorada, os arrepios no corpo e no cabelo, a<br />
circulação lenta. E no caso do pudor, da vergonha e do medo, os sintomas específicos <strong>de</strong><br />
corar, baixar os olhos e sentir <strong>de</strong>sânimo.<br />
13 Apesar <strong>de</strong> a colocarmos aqui, o mais provável era que se referisse à raiva, on<strong>de</strong> o doente apresenta<br />
sintomas hidrofóbicos. No entanto, os sintomas são subtilmente diferentes, <strong>de</strong> uma autêntica fobia à água.<br />
<strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong>, eventualmente, também po<strong>de</strong>rá ter-se referido a esta, mas nem sempre é claro.
Relativamente ao tratamento refere que «… as [paixões] mo<strong>de</strong>radas po<strong>de</strong>m às vezes<br />
curar algumas enfermida<strong>de</strong>s, achando aqui verda<strong>de</strong>ira a consi<strong>de</strong>ração que fez o célebre<br />
Guntz, físico-mor <strong>de</strong> El-Rei da Polónia, no comentário que fez <strong>de</strong> humoribus <strong>de</strong><br />
Hipócrates (Lipsia, 1745,8º, p.219) <strong>de</strong> que as paixões inesperadas e os sustos não<br />
horrendos servem <strong>de</strong> cura a muitos males. Curou-se a paralisia causada por velhos<br />
reumatismos, a ciática, a hidrofobia, os fluxos <strong>de</strong> sangue, as quartãs, as febres, os<br />
soluços e as hérnias» (p.33) e ainda as manias e os <strong>de</strong>lírios amorosos. Ou seja, uma<br />
paixão podia servir <strong>de</strong> remédio a outra, sobretudo se tivesse efeitos opostos, como no<br />
caso da raiva e do medo.<br />
De uma forma geral, os banhos a vapor seriam um precioso auxiliar para diminuir a<br />
ansieda<strong>de</strong>, assim como para induzir um sono tranquilo e satisfatório.<br />
Relativamente ao medo <strong>de</strong> realizar operações, criticava os cirurgiões por ignorarem a<br />
sua importância no contexto clínico. É <strong>de</strong> suspeitar que, <strong>na</strong> época, sem anestesiantes <strong>de</strong><br />
eficácia, <strong>de</strong>via ser difícil alguém não ter medo <strong>de</strong> se submeter a uma qualquer<br />
intervenção cirúrgica.<br />
Refere que os hidrofóbicos se curavam mergulhando-os em água fria, quando estavam<br />
<strong>de</strong>scuidados. Esse efeito não resultava <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s medici<strong>na</strong>is da água mas da<br />
experiência permitir que <strong>de</strong>ixassem <strong>de</strong> ficar aterrorizados pelo contacto com a água. E<br />
ficava espantado «…é uma coisa notável que a mesma paixão produza efeitos<br />
contrários» (p.33) ou ainda «… o terror e o pavor po<strong>de</strong>m causar a paralisia mas temos<br />
observações que a mesma paixão curou o mesmo mal» (p.34). Apesar disso advertia:<br />
«… não se <strong>de</strong>vem pôr em prática estes métodos violentos quando houver outros<br />
remédios mais seguros…» (p.35).<br />
No entanto, noutro trabalho especificava outros modos <strong>de</strong> tratamento, como o uso <strong>de</strong><br />
panos embebidos em água misturada com vi<strong>na</strong>gre e uma alimentação á base <strong>de</strong> flor <strong>de</strong><br />
farinha, carne ou peixe leves, uma bebida acidulada e um pouco <strong>de</strong> aguar<strong>de</strong>nte. Para<br />
além disso, «Durante todo o tratamento o doente <strong>de</strong>ve evitar os prazeres do amor, os<br />
licores espirituosos, as paixões vines, é preciso obrigá-lo a habitar um lugar obscuro».<br />
No entanto, o tratamento principal, se tivesse medo da água, era ir ao banho <strong>de</strong> vapor <strong>de</strong><br />
seis em seis horas «… e que lá fique tanto quanto pu<strong>de</strong>r suportá-lo sem <strong>de</strong>smaiar»<br />
(<strong>Sanches</strong>, 1779).<br />
A fobia social era uma reacção fóbica que não afectaria os cegos, uma vez que os<br />
fóbicos sociais tinham «… dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> olhar para o objecto que se quer ver» (p.38), o<br />
que incapacitaria a pessoa para o <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> cargos públicos. E <strong>de</strong>screveu-a <strong>de</strong><br />
forma minuciosa: «Os que se envergonham sentem <strong>na</strong> boca do estômago uma ansiosa<br />
angústia, um como nó <strong>na</strong> garganta, não respiram por alguns momentos, fica o ar <strong>de</strong>ntro<br />
do bofe, adquire aí maior rarida<strong>de</strong>, esten<strong>de</strong>-se, comprime as veias pulmo<strong>na</strong>res que<br />
levam o sangue ao ventrículo esquerdo; não se vaziando o ventrículo direito, não po<strong>de</strong><br />
entrar no sinus do mesmo lado o sangue da veia cava superior que traz o sangue da<br />
cabeça. Daqui vem que o sangue se espalha pela cara, além disso os nervos se encolhem<br />
e aquela porção do par sétimo que se espalha por toda a cara vermelha, o pensamento se<br />
turba, turba-se a memória, o pulso é vazio e irregular; então se sentem <strong>na</strong> cara ingratos e<br />
dolorosos movimentos, todos os músculos se retiram e se mudam <strong>de</strong> mil modos, os<br />
olhos vêem turvos, fica todo o ânimo com o corpo todo conster<strong>na</strong>do» (p.35).
No caso da fobia social, os remédios eram inúteis. Sugeria que o doente tossisse,<br />
escarrasse, falasse em voz alta ou se zangasse porque «… saindo o ar do bofe, acelerase<br />
a circulação e não se enche o cérebro <strong>de</strong> sangue o que turba o pensamento» (p.38).<br />
No ciúme mórbido, que <strong>de</strong>sig<strong>na</strong>va como paixão dos zelos, a pessoa achava que o<br />
objecto amado estava a ser possuído por outro, seria «… acompanhada com suspeitas,<br />
com <strong>de</strong>sonra, com vergonha, não só é capaz <strong>de</strong> fazer cair melancólico e atrabiliário mas<br />
ainda maníaco» (p. 40). Doença muito frequente em Portugal, <strong>de</strong>correria <strong>de</strong> uma<br />
fraqueza do sistema nervoso e seria acompanhada <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão, <strong>de</strong> juízo confuso e <strong>de</strong><br />
sintomas como o peito oprimido e o choro que seriam aliviadores porque aceleravam a<br />
circulação do bofe.<br />
Relativamente ao amor excessivo, começava por tentar estabelecer uma <strong>de</strong>finição <strong>de</strong><br />
amor normal, estabelecendo uma <strong>de</strong>strinça relativamente à amiza<strong>de</strong>: «Difere o amor da<br />
amiza<strong>de</strong>. Esta é aquele amor que temos para nos unir com a utilida<strong>de</strong> que redunda da<br />
virtu<strong>de</strong>. Aquele, o amor que temos para nos unir com o objecto amado e representado<br />
por este, tem por objecto a representação <strong>na</strong>tural da coisa amada, e a amiza<strong>de</strong> a<br />
representação das potências da alma or<strong>de</strong><strong>na</strong>da» (p.46).<br />
A paixão amorosa seria uma doença da alma ociosa, <strong>na</strong> medida em que a pessoa se<br />
fixava no objecto amado, ficava fora <strong>de</strong> si e esquecia o passado e não perspectivava o<br />
futuro. Exemplificava com um caso clássico: «Pinta Virgílio [70-19 a.C.] a Dido<br />
amorosa <strong>de</strong> Eneias domi<strong>na</strong>da da paixão <strong>de</strong> tal modo que não vê nem ouve outra coisa,<br />
parece toda transformada no objecto que ama» (p.46). Afirmava que a paixão amorosa<br />
atacava os nervos e as artérias, correndo o risco do apaixo<strong>na</strong>do ficar cataléptico ou<br />
maníaco. Na mulher o amor excessivo podia afectar os ovários. Referia ainda que a<br />
paixão amorosa não era inevitavelmente em relação a pessoas mas também a estátuas,<br />
árvores e animais. E referia-se ainda, negativamente, aos «amores <strong>de</strong> A<strong>na</strong>creonte» (563-<br />
478 a.C.), que <strong>de</strong>viam ser homossexuais, se consi<strong>de</strong>rarmos que o poeta não escon<strong>de</strong>u os<br />
seus <strong>de</strong>sejos em relação aos rapazes 14 .<br />
Relativamente à sintomatologia do amor doentio referia que a pessoa apresentava a cara<br />
<strong>de</strong>scorada, os olhos encovados e quebrados, a insónia, as dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> memória e<br />
raciocínio, a fatuida<strong>de</strong>, a mania e a melancolia. Na presença do objecto amado, o<br />
embaraço, o peso <strong>na</strong> boca do estômago, os <strong>de</strong>smaios ou os batimentos cardíacos<br />
acelerados eram os sintomas mais comuns 15 .<br />
<strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong>, como em relação a qualquer outra patologia, dá vários exemplos em<br />
que as problemáticas amorosas podiam conduzir à morte: nos amores proibidos, <strong>na</strong><br />
separação do objecto amoroso e <strong>na</strong> rejeição do amado, por exemplo quando o homem<br />
não podia casar com ela.<br />
14 Pelo menos é muito explícito no fragmento nº 4:<br />
Rapaz <strong>de</strong> olhar virgíneo<br />
Desejo-te, mas tu me evitas,<br />
Não sabendo que da minha<br />
Alma gover<strong>na</strong>s as ré<strong>de</strong>as.<br />
Tradução <strong>de</strong> Andytias Soares <strong>de</strong> Moura (gargantadaserpente.com, consultado 23.4.08).<br />
15 Sintomas que já seriam conhecidos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que Erástrato <strong>de</strong> Alexandria (260 a.C.) os <strong>de</strong>screvera pela<br />
primeira vez. De resto, Erástrato, assim como Herófilo (300 a.C.) tinham concluído que o cérebro era uma<br />
zo<strong>na</strong> vital e tinham distinguido os nervos motores dos sensitivos.
Não se referia à existência <strong>de</strong> uma paixão amorosa transitória mas, apesar disso,<br />
estabelecia diferentes graus que perturbariam <strong>de</strong> modo diverso o ânimo da pessoa.<br />
Assim <strong>na</strong>s paixões amorosas mo<strong>de</strong>radas podia ajudar o exercício e a ocupação física,<br />
assim como a mudança <strong>de</strong> «i<strong>de</strong>ias ingratas», «… enquanto a paixão não causa insónias,<br />
ânsias, nem se sente aquele peso no estômago, o melhor remédio é a ausência, fazer<br />
jor<strong>na</strong>das, viagens por mar; nesta mudança <strong>de</strong> ar e variada <strong>de</strong> objectos e principalmente<br />
se enjoarem, alimpa-se o estômago, adquire maior elasticida<strong>de</strong> o diafragma e todas as<br />
vísceras; muda-se aquela i<strong>de</strong>ia amorosa do sensório comum» (p. 50).<br />
Nos casos graves, quando o amante já tinha melancolia e humor atrabiliário, seguia a<br />
regra geral: «Cura-se também o ânimo excitando paixões contrárias àquela domi<strong>na</strong>nte»<br />
(p.51) que no caso consistiria em «inculcar ódio do objecto amado», «mudar <strong>de</strong> clima»<br />
ou «comer frutos do Estio». Nesta patologia não aconselhava a mergulhar o corpo, <strong>de</strong><br />
súbito, em água fria, porque no seu enten<strong>de</strong>r, isto não resultava porque só curava o<br />
sensório comum mas ficava no corpo a atrabílis, que seria mais facilmente adquirida,<br />
por via das paixões, nos climas meridio<strong>na</strong>is.<br />
Relativamente à raiva, que a<strong>na</strong>lisava exaustivamente, <strong>de</strong>finia-a com clareza e indicava<br />
uma série <strong>de</strong> tratamentos para a <strong>de</strong>belar e reconhecia-lhe méritos terapêuticos, para<br />
outras patologias, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que em doses mo<strong>de</strong>radas, sobretudo para evitar um mal<br />
presente.<br />
Definia-a do modo seguinte: «A ira é um sumo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> castigar a quem ofen<strong>de</strong>u. O<br />
ódio é uma ira antiga, a inimiza<strong>de</strong> e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vingar-se observando a ocasião, e é<br />
discórdia um rancor procedido <strong>de</strong> aversão e antigo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vingar-se» (p.52). No que<br />
respeita ao quadro sintomático: «Mostra-se pela cara incendiada, pelos olhos vibrando<br />
fogo, pela voz rouca e entoada, pelos tremores dos beiços, pelo mor<strong>de</strong>r das mãos e bater<br />
dos pés com elas, e com os pés. O pulso é forte, veloz, cheio, a boca seca e virada, todas<br />
as secreções se <strong>de</strong>têm e todo o corpo se conhece alterado e enfermo» (p.52) e, noutros<br />
casos, podia apresentar suores, horripilações, mu<strong>de</strong>z, curada com um vomitório e, <strong>na</strong><br />
mulher podia estar associada a correr sangue pelos bicos dos peitos. Ao nível dos<br />
factores precipitantes indicava que a fome e a se<strong>de</strong> podiam <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar uma reacção <strong>de</strong><br />
cólera.<br />
A ira associada ao <strong>de</strong>sespero podia conduzir à morte (exemplificava o caso <strong>de</strong> vários<br />
imperadores), aneurismas, febres, cálculos <strong>na</strong> bexiga do fel, vómitos, diarreia. No<br />
entanto avisava que «A ira suprimida não mata subitamente mas, como veneno lento,<br />
faz termi<strong>na</strong>r a vida» (p.54) e aparecia expressa em perturbações psicossomáticas como a<br />
asma.<br />
No que respeita à terapêutica sugeria que o remédio para a ira era o medo, instigado por<br />
outrém: «…dizia o gran<strong>de</strong> Boerhaave que um algoz fazia os homens mais virtuosos que<br />
cem pregadores» (p.54). Especificava que «Aqueles que por constituição particular são<br />
coléricos <strong>de</strong>vem usar a dieta vegetal, dormirem o mais que pu<strong>de</strong>rem, evitar exercícios<br />
violentos, diminuir a atenção dos sólidos por banhos <strong>de</strong> vapor e dormir em cama mole»<br />
(p.55). Não dar purgas ou vomitórios, porque «… o ópio <strong>de</strong>sfeito em vi<strong>na</strong>gre ou as<br />
emulsões <strong>de</strong> soro <strong>de</strong> leite seriam o remédio. Melhor que tudo banhos <strong>de</strong> vapor» (p.55).<br />
Relativamente às proprieda<strong>de</strong>s terapêuticas da raiva, dizia: «Ainda que o enfurecer-se e<br />
agastar-se com <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vingar-se seja prejudicial à nossa saú<strong>de</strong>, esta paixão incitada
por um pru<strong>de</strong>nte médico po<strong>de</strong>rá curar muitas enfermida<strong>de</strong>s que tocam a <strong>na</strong>tureza da<br />
paralisia e fatuida<strong>de</strong>» (p.55). Seria indicado pois enfurecer ou injuriar os sujeitos com<br />
febres, gota, artrites e <strong>na</strong> esfera psicológica, as histéricas, os maníacos, os<br />
hipocondríacos indiferentes e os que sofriam <strong>de</strong> amores doentios.<br />
<strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong> <strong>de</strong>fendia que a raiva, mo<strong>de</strong>rada e sem <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vingança, era positiva:<br />
«Não <strong>de</strong>ve o médico reprimir (…) estes movimentos involuntários <strong>de</strong> cólera (…) <strong>de</strong>ve<br />
antes prevenir os assistentes que servem <strong>de</strong> remédio àquela doença» (p.52). Se só<br />
provocasse agastamento teria um papel positivo, <strong>na</strong> medida em que, <strong>de</strong> início,<br />
melhorava a circulação.<br />
Descreve um caso <strong>de</strong> cleptomania <strong>de</strong> uma mulher grávida e que teve como<br />
consequência, mais tar<strong>de</strong>, a filha também sofrer <strong>de</strong>sta patologia. A seu ver a filha ter<br />
cleptomania resultava do facto <strong>de</strong> a mãe ter esses comportamentos no <strong>de</strong>curso da<br />
gravi<strong>de</strong>z.<br />
No caso do jogo patológico afirmava que «Poucos são os jogadores por ofício que não<br />
sejam melancólicos e a paixão do jogo é uma doença do ânimo que tem a sua origem no<br />
humor atribiliário» (p.44).<br />
Quando afirmava que «Todos observaram aqueles <strong>de</strong>sor<strong>de</strong><strong>na</strong>dos apetites das donzelas<br />
<strong>na</strong>quele tempo que prece<strong>de</strong> a evacuação dos mênstruos» (p.59), referia-se a casos <strong>de</strong><br />
pica, em que as donzelas comiam carvão, gesso, sal e até imundícies.<br />
No que se referia aos efeitos psíquicos do consumo <strong>de</strong> várias substâncias referia que o<br />
álcool, a datura 16 e o ópio alteravam o juízo e a imagi<strong>na</strong>ção. Claramente, situava-os <strong>na</strong><br />
<strong>na</strong>tureza excessiva do comportamento, assim como no défice <strong>de</strong> controlo que podiam<br />
envolver: «Acusamos temerariamente <strong>de</strong> viciosos aqueles que não po<strong>de</strong>m corrigir-se da<br />
frequência <strong>de</strong> actos luxuriosos, da bebedice, <strong>de</strong> jogar as cartas e <strong>de</strong> furtar. São estes<br />
vícios enfermida<strong>de</strong>s, <strong>na</strong> verda<strong>de</strong>, do ânimo e que têm a sua origem <strong>na</strong> conformação e<br />
nos humores do corpo. Nestes casos pertence ao teólogo <strong>de</strong>cretar a consciência e instruir<br />
como se po<strong>de</strong> alcançar a graça divi<strong>na</strong> para curar aquele ânimo e aos legisladores retê-lo<br />
pelo medo, e pelo terror dos castigos públicos, mas ao médico pertence ou curar o corpo<br />
ou induzir outra enfermida<strong>de</strong> que produza paixões diferentes» (p.63). E referia ainda<br />
que «… os médicos <strong>na</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> curarem estes vícios ou pela dieta e diferente<br />
modo <strong>de</strong> viver ou fazendo mudar <strong>de</strong> clima como nós fazemos, mandando os moços <strong>de</strong><br />
vida dissoluta para a Índia e <strong>de</strong>mais Colónias…» (p.65). Os banhos a vapor eram<br />
indicados para aliviar os sintomas associados aos excessos <strong>de</strong> álcool, <strong>de</strong> exercício físico<br />
ou <strong>de</strong> alimentação.<br />
Relativamente às perturbações psicóticas referia que «Costumam nos hospitais dos<br />
doidos, tratar os maníacos ou furiosos como bestas feras à força <strong>de</strong> açoutes e <strong>de</strong><br />
castigos» (p. 69). Estes teriam o condão <strong>de</strong> mudar as i<strong>de</strong>ias doidas porque «Vêm a si e<br />
tanto que vêem vir o seu algoz, logo falam razoáveis» (p. 69). <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong><br />
explicava que isso acontecia porque tinham recebido uma acção violenta no fim dos<br />
nervos que iria induzir uma alteração positiva ao nível das i<strong>de</strong>ias doidas.<br />
16 Desig<strong>na</strong>ção genérica para um grupo <strong>de</strong> plantas que têm efeitos alucinogéneos.
No entanto avisava «Mas a causa daquela i<strong>de</strong>ia doida fica no corpo; é necessário curar<br />
esta <strong>de</strong>pois, mudando-a, como dissemos, às vezes por alguns anos, pela dieta e pelos<br />
remédios» (p. 70). Indicava ainda um tratamento para as i<strong>de</strong>ias doidas, <strong>de</strong>lirantes e<br />
insensatas e que consistia em mergulhar a cabeça do doente <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> água, durante<br />
alguns segundos para este sentir medo <strong>de</strong> morrer e, <strong>de</strong>sse modo, ser possível <strong>de</strong>struir a<br />
i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>lirante.<br />
E exemplificava: «Ouvi contar a Boerhaave que um doutíssimo homem melancólico<br />
caíra no <strong>de</strong>lírio que tinha as per<strong>na</strong>s <strong>de</strong> vidro pelo que sempre estava assentado por temer<br />
que caminhando se quebrasse. Um dia, por acaso, a criada varrendo, por mau jeito, <strong>de</strong>u<br />
tal pancada <strong>na</strong> per<strong>na</strong> do pobre melancólico que o feriu. Com a força da dor mudou-se<br />
aquela i<strong>de</strong>ia que tinha e ficou curado <strong>de</strong>la, estando já persuadido que as suas per<strong>na</strong>s<br />
eram <strong>de</strong> carne e osso» (p.69). Aqui, como noutros casos, enga<strong>na</strong>va-se <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong><br />
<strong>na</strong> análise explicativa: não era a dor mas o confronto i<strong>na</strong>balável e inequívoco com a<br />
realida<strong>de</strong> 17 que permitiu, excepcio<strong>na</strong>lmente, que se alterasse a activida<strong>de</strong> <strong>de</strong>lirante.<br />
Relativamente à histeria afirmava que as doenças dos ovários, do útero, das trompas <strong>de</strong><br />
Falópio activavam as queixas histéricas, uma vez que havia uma ligação entre estes<br />
órgãos e o sensório comum. E que, quanto à etiologia, «… uma paixão violentíssima,<br />
principalmente no tempo que correm os lóquios ou os mênstruos, bastará para ficarem<br />
estas miseráveis histéricas enquanto viverem…» (p.28). Verificou que <strong>na</strong>s mulheres<br />
histéricas, a dor tendia a ocorrer em zo<strong>na</strong>s diferentes daquelas on<strong>de</strong> possivelmente<br />
haveria algum tipo <strong>de</strong> lesão ou disfunção. As soluções terapêuticas eram os fortificantes,<br />
as dietas, as viagens e a vida alegre.<br />
Relativamente às perturbações da aprendizagem <strong>na</strong>s crianças, referia que as palmadas<br />
e açoites eram eficazes porque a dor excitava o sensório comum duro e estúpido que,<br />
<strong>de</strong>sse modo, se tor<strong>na</strong>va mais elástico e ficava mais apto a receber novas i<strong>de</strong>ias. No<br />
entanto, advertia que este método não era aplicável a todos porque havia as crianças que<br />
reagiam positivamente se fossem repreendidas ou elogiadas verbalmente e neste caso<br />
bater-lhes seria contraproducente porque «O medo, o terror e a vergonha acanhará<br />
aquele <strong>de</strong>licado e elástico sensório comum» (p. 70).<br />
Relativamente aos problemas da lateralida<strong>de</strong> referia que: «Acusamos um menino<br />
canhoto <strong>de</strong> má educação mas falsamente. Eu vi trazer o braço esquerdo cosido no<br />
vestido para se acostumar o direito mas tudo foi inútil para se acostumar o menino e<br />
<strong>de</strong>pois rapaz que conheci. Sempre foi usando do braço esquerdo; po<strong>de</strong>rá ser que nestes<br />
as vísceras estejam ao revés» (p.64). Esteve próximo <strong>de</strong> acertar <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong>, só que<br />
a causa não estava <strong>na</strong>s vísceras mas <strong>na</strong> dominância dos hemisférios cerebrais.<br />
No que respeita à <strong>de</strong>pressão, afirmava que o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ser estimado e venerado e <strong>de</strong><br />
forçar os outros a pensar bem <strong>de</strong> nós continha em si o risco <strong>de</strong> inquietação e <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sgosto. «A alma <strong>de</strong>primida per<strong>de</strong> a faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> julgar e, às vezes, também <strong>de</strong> querer.<br />
Neste caso diz Buffon: tanto que quisermos ser mais felizes do que a <strong>na</strong>tureza nos<br />
17 De memória recordamo-nos <strong>de</strong> uma mulher que, durante anos, fora atormentada pela i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que os<br />
homens da al<strong>de</strong>ia on<strong>de</strong> vivia lhe ro<strong>de</strong>avam a casa, com gran<strong>de</strong> alarido, com a intenção <strong>de</strong> a molestar<br />
sexualmente. A i<strong>de</strong>ia persistiu, apesar <strong>de</strong> nunca ter, <strong>de</strong> facto, sido agredida no plano sexual. Esta i<strong>de</strong>ia<br />
<strong>de</strong>lirante, associado a um <strong>de</strong>lírio auditivo, que lhe <strong>de</strong>spertava um pavor intenso, foi <strong>de</strong>struída, quando um<br />
dia, em que <strong>de</strong>ve ter tido mais coragem, foi à janela e não viu ninguém. Compreen<strong>de</strong>u então que as vozes<br />
que ouvia só podiam vir <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da sua própria cabeça.
permite logo seremos <strong>de</strong>sgraçados» (p.21). Para além disso, i<strong>de</strong>ntificou com clareza<br />
que, <strong>na</strong> mulher, a melancolia se podia associar à menopausa. Referindo-se à importância<br />
dos banhos <strong>de</strong> vapor dizia «Os mesmos banhos, as mesmas fricções, as mesmas loções<br />
com água mor<strong>na</strong> ou fria seriam um alívio e um remédio excelente nos <strong>de</strong>sgostos, <strong>na</strong>s<br />
<strong>de</strong>pressões, no aborrecimento, <strong>na</strong> tristeza, <strong>de</strong> seguida a acessos <strong>de</strong> paixões fortes: então<br />
o banho <strong>de</strong> vapor é preferível ás viagens por terra ou por mar; seria o alívio mais rápido<br />
e mais fácil» (<strong>Sanches</strong>, 1779) e contribuiriam para induzir um sono mais tranquilo e<br />
satisfatório. Na melancolia induzida por <strong>de</strong>sgostos, vida monóto<strong>na</strong> e se<strong>de</strong>ntarismo e<br />
associada a perturbações gastrointesti<strong>na</strong>is, aconselhava passar um mês sem trabalhar, a<br />
libertar-se <strong>de</strong> todas as preocupações e a fazer banhos a vapor diariamente.<br />
Na <strong>de</strong>pressão bipolar notou as oscilações <strong>de</strong> humor, ora avaros, ora pródigos.<br />
Valorizavam coisas sem importância. Na mania eram <strong>de</strong>sconfiados, furiosos, alegres,<br />
luxuriosos e <strong>de</strong>pois tristes, chegando a ferir o próprio corpo.<br />
Nas i<strong>de</strong>ias fixas, on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong>riam incluir inúmeras categorias patológicas, segundo os<br />
actuais critérios <strong>de</strong> diagnóstico, <strong>de</strong>via provocar-se uma dor intensa porque mudar o<br />
corpo «… pela dieta e pelos remédios que, produzindo um novo estado do corpo, se<br />
produzam também novas i<strong>de</strong>ias» (p.69). Prescrevia assim, com intuitos purgativos, o<br />
uso <strong>de</strong> uma dieta vegetal, constituída por ervas, raízes, leite, fruta e mel ou mais<br />
inovadora, a salivação pelo gálico, porque «… purgam todos os humores antigos e se<br />
reparam outros feitos com esta nova dieta» (p.71).<br />
No que concerne à epilepsia referia que quando os doentes sentiam um vapor ou uma<br />
aura, enquanto sintoma prodomático, que lhes subia dos membros inferiores ou<br />
superiores em direcção ao diafragma, on<strong>de</strong> se dava o ataque convulsivo. A solução<br />
terapêutica era pôr uma «… corda forte com fivela <strong>na</strong>quela parte on<strong>de</strong> se levanta o<br />
vapor (…) até causar uma violentíssima dor, o que serve às vezes <strong>de</strong> remédio» (p.66).<br />
Também se usavam evacuantes e antiepilépticos.<br />
Notas críticas e conclusivas<br />
Como já referimos, <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong> foi dos primeiros a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>ntro da medici<strong>na</strong>, a<br />
criação <strong>de</strong> uma especialização em psiquiatria, termo que só viria a ser cunhado por<br />
Johann Christian Reil (1759-1813) em 1833 (cf. Austragesilo, 1951) ou em 1808,<br />
segundo outras fontes, mais conformes à realida<strong>de</strong> 18 .<br />
Relativamente à imitação, <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong> mistura coisas que hoje classificaríamos<br />
como reacções sintónicas e simpáticas que diferem claramente da imitação, <strong>na</strong> medida<br />
em que são menos consciencializadas, menos mediadas pelo <strong>de</strong>sejo e pela vonta<strong>de</strong> e<br />
muito mais reguladas pelo sistema nervoso autónomo. Anote-se como relevante a<br />
referência ao papel da imitação, enquanto <strong>de</strong>senvolvimento característico <strong>de</strong> certas fases<br />
da evolução da criança. Anote-se ainda a confusão relativamente ao contágio através <strong>de</strong><br />
vírus que erroneamente era classificado como imitação.<br />
No que respeita às fobias refira-se a especificida<strong>de</strong> da época no caso fobia dos<br />
<strong>na</strong>ufrágios que, então, eram clinicamente mais relevantes do que hoje. Provavelmente<br />
18 Eventualmente uma possível confusão entre datas <strong>de</strong> publicação do texto em que o termo psiquiatria<br />
aparece mencio<strong>na</strong>do.
porque hoje existe uma ampla varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> alter<strong>na</strong>tivas para fazer viagens longas e<br />
assim a fobia <strong>de</strong> voo adquire uma outra relevância. Pelo contrário, a claustrofobia, hoje<br />
uma reacção fóbica muito frequente, nem sequer aparecia mencio<strong>na</strong>da.<br />
De uma forma geral apresentou uma concepção extremamente mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong> sobre as<br />
perturbações psíquicas e emocio<strong>na</strong>is. Abarcou-as <strong>na</strong> sua globalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>dicando uma<br />
parte significativa da obra a patologias que, mesmo no século XIX, ainda não tinham<br />
sido estudadas e a<strong>na</strong>lisadas. Curiosamente, a patologia menos mencio<strong>na</strong>da, as<br />
perturbações psicóticas, seria a que predomi<strong>na</strong>ntemente faria parte do interesse da<br />
psiquiatria no século XIX, centrada <strong>na</strong>s políticas <strong>de</strong> inter<strong>na</strong>mento do doente psiquiátrico<br />
crónico.<br />
Efectivamente só no fi<strong>na</strong>l do século XIX é que a psiquiatria viria a valorizar outras<br />
patologias «menores» que, genericamente, foram, <strong>de</strong>pois, englobadas por Freud (1856-<br />
1939) no conceito <strong>de</strong> neurose.<br />
Mesmo que não tivesse acertado <strong>na</strong>s localizações cerebrais, é nítido que já as admitia<br />
como hipótese e é claro que procurou estabelecer uma inter-relação entre o<br />
funcio<strong>na</strong>mento do corpo e da mente. Frequentemente, é excessivo, ainda que incisivo,<br />
quando apresenta exemplos <strong>de</strong> casos extremos em que uma experiência psicológica e<br />
emocio<strong>na</strong>l intensa po<strong>de</strong> ter como consequência a morte, uma vez que esses casos são,<br />
felizmente, extremamente raros. Em qualquer dos casos, para efeitos <strong>de</strong>monstrativos, do<br />
papel do mundo psíquico <strong>na</strong>s reacções do organismo físico são elucidativos e<br />
relevantes. Mesmo que, por vezes, tenha confundido as meras reacções psíquicas,<br />
inerentes ao sofrimento físico, conseguiu apresentar um quadro empírico e<br />
compreensivo sobre muitas perturbações psíquicas e cognitivas.<br />
É um texto quase enxuto <strong>de</strong> referências teológicas e filosóficas sobre o funcio<strong>na</strong>mento<br />
do mundo psíquico que claramente já assentava no pressuposto <strong>de</strong> que as funções<br />
psíquicas se localizavam no cérebro.<br />
Apesar da teoria hipocrática dos humores ter prevalecido até ao fi<strong>na</strong>l do século XIX,<br />
<strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong> só acessoriamente se socorre <strong>de</strong>la, enquanto explicação causal ou no<br />
que respeita a uma qualquer indicação terapêutica.<br />
Uma parte significativa das soluções terapêuticas parece ineficaz ou ingénua mas é<br />
preciso ter presente que, ainda no fi<strong>na</strong>l do século XIX, pouco se tinha progredido nessa<br />
matéria. Para além disso, <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong> apresentou sugestões ou i<strong>de</strong>ias em que<br />
muitos ainda hoje se po<strong>de</strong>m rever. Os comportamentalistas ficarão satisfeitos por aí<br />
encontrarem referências ao uso do reforço ou da exposição. Os psicossomáticos <strong>de</strong><br />
inspiração psica<strong>na</strong>lítica por aí encontrarem notas explícitas sobre o conceito <strong>de</strong><br />
hostilida<strong>de</strong> suprimida, tão em voga há setenta ou oitenta anos atrás. Mesmo os<br />
freudianos mais puros aí encontrarão referências explícitas sobre a importância do<br />
<strong>de</strong>senvolvimento infantil e, inclusive, pré-<strong>na</strong>tal. Os novos terapeutas emocio<strong>na</strong>is aí se<br />
po<strong>de</strong>rão rever também, <strong>na</strong> exacta medida em que <strong>Ribeiro</strong> <strong>Sanches</strong> <strong>de</strong>u às emoções um<br />
papel <strong>de</strong> relevo no funcio<strong>na</strong>mento psíquico, assim como <strong>na</strong>s patologias que lhe estavam<br />
associadas.<br />
Referências Bibliográficas
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Macedo, M.M. (1998) – História da Medici<strong>na</strong> Portuguesa no século XX, <strong>Edição</strong> dos<br />
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Pré-História ao século XX, Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Cultura, 1991, 4: 23-39.