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DOSSIÊ ANTONIO NEGRI / TEXTOS SOBRE FUTEBOL<br />
OS PADECIMENTOS DE UM TORCEDOR DO MILAN<br />
Neste período muitas coisas andam arrevesadas para mim. Mas sobretudo uma: o <strong>futebol</strong>. Sou torcedor do<br />
Milan. Estou vivendo, no entanto, num cárcere romano, cuja população divide-se entre torcedores do Lazio e<br />
do Roma (os dois clubes da cidade eterna). Entre si, dividem-se, escarniçadamente dialéticos, mas quando<br />
estão diante de um milanista, unem-se, escarniçadamente hostis. Como se isso não bastasse, o meu time só<br />
faz é perder. Apesar dos nomes famosos, o Milan é a sombra do timão que já foi. Meu mal-estar está no<br />
ápice: como sobreviver no cárcere, numa situação destas? Desde que o campeonato começou, meus colegas<br />
crim<strong>in</strong>osos, "lazistas" ou "romanistas" que sejam, olham-me com comiseração, quando não com desprezo. Os<br />
meus títulos acadêmicos, m<strong>in</strong>ha fama na mídia, m<strong>in</strong>ha bonomia de cavalheiro, que de <strong>in</strong>ício me valeram<br />
muito respeito, como por encanto dissiparam-se na consideração de meus companheiros de desgraça.<br />
Às segundas-feiras, depois da rot<strong>in</strong>eira derrota dom<strong>in</strong>ical de meu time, não me chamam mais "professor",<br />
mas Toni, familiar e ironicamente Toni. Não poderia haver maior humilhação, não por simplificarem tão<br />
rudemente uma relação que, de qualquer maneira, é dura, mas por eu sentir sua postura como escárnio.<br />
Nesta situação, por vezes, até penso em mudar o objeto de m<strong>in</strong>ha torcida. "Paris bem que vale uma missa!"<br />
Aliás, haveria boas razões para um "arrependimento": depois de ter sido o time do antifascismo milanês, e,<br />
portanto, de esquerda, o Milan foi comprado por Berlusconi, o rás da direita neoliberal italiana. Poderia,<br />
portanto, acobertar com motivos políticos a m<strong>in</strong>ha oportuna conversão para outra torcida. A do Roma<br />
poderia atrair-me: o Roma é o time do proletariado romano, enquanto o Lazio, seu oponente da cidade,<br />
representa antes a burguesia clerical e fascista e a aristocracia populista da província. Mas não posso. O<br />
fantasma de Giordano Bruno, milanista e europeu, queimado numa fogueira romana, aparece para me<br />
admoestar! "Non possumus."<br />
Desde criança meu pai vestia-me nas cores (antifascistas) do Milan e, mais tarde, por volta de 1968 e depois<br />
daquela data (que fique entre nós, não vão repetir isso aos juízes italianos), estive entre os <strong>in</strong>spiradores das<br />
"brigadas rubro-negras", as tropas de assalto da torcida milanista. Os meus amigos, eu os escolhi entre os<br />
milanistas, e entre as tantas vicissitudes de m<strong>in</strong>ha vida, felizes ou desafortunadas que fossem, só não fui<br />
traído pelos milanistas. M<strong>in</strong>ha vida é milanista: a do meu filho também, e eu o perderia se o traísse, e o meu<br />
pai se viraria no caixão. De modo que resisto estoicamente às desventuras do meu time. Assim, quando<br />
urros selvagens se levantam dos pavilhões do presídio (mais <strong>in</strong>tensos do que se uma revolta estivesse em<br />
curso) para comemorar um ou mais gols que o Roma ou o Lazio imp<strong>in</strong>giram ao meu time, sofro calado.<br />
Uma grande e melancólica dignidade, tal que só Plutarco poderia narrá-la, cresce no meu peito. Claro, em<br />
outros momentos eu s<strong>in</strong>to uma certa tentação de aliar-me aos napolitanos e sicilianos (poucos neste cárcere,<br />
mas dotados de uma firme tradição crim<strong>in</strong>osa, da qual, <strong>in</strong>dividualmente, deram prova) para construir uma<br />
musculosa aliança anti-romana. Como os príncipes milaneses e napolitanos faziam, no Renascimento, para<br />
se oporem aos desejos expansionistas do Papa. Uma aliança v<strong>in</strong>gativa que, a cada derrota do Roma ou do<br />
Lazio, saiba retribuir as ofensas sofridas. Infelizmente (tenho de reconhecer, realisticamente) não existem<br />
relações de força que possibilitem a eficácia desta eventual aliança, mais ou menos como já reconheciam<br />
Guicciard<strong>in</strong>i e Maquiavel. Em suma, a vida que estou levando é <strong>in</strong>suportável. E vai ficar mais a<strong>in</strong>da: em<br />
vista do jubileu, e já na previsão das Olimpíadas (esperança felizmente não realizada), os grandes tributos<br />
estatais que convergem sobre Roma fortalecerão estes times e as <strong>in</strong>stalações que utilizam e os viveiros de<br />
onde conseguem seus jogadores. "No future." O meu Milan terá de sofrer esta supremacia por muitos anos<br />
a<strong>in</strong>da? Quando o pesadelo acossa, m<strong>in</strong>ha vida de prisioneiro fica reduzida ao limite do desespero.<br />
Af<strong>in</strong>al por que, pergunto-me, fui me entregar de volta ao cárcere logo num período em que o Milan está<br />
perdendo? Como podia imag<strong>in</strong>ar sair vitorioso numa batalha política, na ausência do suporte de um<br />
poderoso time de <strong>futebol</strong>? Já está bastante claro que o povo e os juízes romanos querem punir a m<strong>in</strong>ha "fé"<br />
<strong>futebol</strong>ística!
DOSSIÊ ANTONIO NEGRI / TEXTOS SOBRE FUTEBOL<br />
Procuro consolar-me: os acontecimentos do <strong>futebol</strong> são aleatórios -repito para mim mesmo-, o esporte é o<br />
re<strong>in</strong>o do efêmero e do imprevisível, os deuses são frívolos em suas preferências e amanhã poderiam voltar a<br />
abençoar o Milan. Mas o meu gênio me aconselha a não ceder à ilusão -pode levá-lo para o alto, mas quando<br />
cair vai ser um desastre. O que eu perderia? No desastre do meu Milan eu já estou mesmo. Penso em<br />
suicídio. Não, não, a vida, de qualquer forma, é sagrada, pelo menos a m<strong>in</strong>ha. Procuremos então adm<strong>in</strong>istrar<br />
a passagem pelo deserto.<br />
Subterfúgios, cam<strong>in</strong>hos de fuga <strong>in</strong>teriores, nicodemismo. Por exemplo: mesmo que permanecendo<br />
<strong>in</strong>timamente milanista, não dê nas vistas, fale sobre isso com um distanciamento cético, lembre com ironia<br />
alguma derrota do passado (já tão distante a ponto de não ferir mais): por que não? Já tentei, sem o menor<br />
sucesso. Eles enxergam você, em todo o caso, como um <strong>in</strong>fiel, um réprobo, um <strong>in</strong>imigo. A astúcia não<br />
compensa. Tento o último maquiavelismo: abstenho-me de qualquer discussão, f<strong>in</strong>jo que o <strong>futebol</strong> não existe<br />
como <strong>in</strong>stituição totalitária da sociedade e, em vez de amaldiçoar este "ópio dos povos", esnobo sua<br />
atulhante presença e suas vulgares paixões.<br />
Aos dom<strong>in</strong>gos, enquanto a massa dos prisioneiros fica grudada, entre imprecações e entusiasmos, aos<br />
rad<strong>in</strong>hos que transmitem "o <strong>futebol</strong> m<strong>in</strong>uto a m<strong>in</strong>uto", eu ando, solitário, na gaiola de cimento do "passeio"<br />
(sei que "romanistas" e "lazistas" ficam, de todo modo, me espiando). Assovio com uma pont<strong>in</strong>ha de<br />
arrogância. Deus me salve! De vez em quando alguma chacota chega por detrás das grades das janelas que<br />
dão para o "passeio". Chacotas desarmantes. Nem sequer a mais sublime abstração do espírito me salva de<br />
um escárnio que não poderia ser mais prosaico. Alma m<strong>in</strong>ha, não estremeça. E no entanto estremece, mas de<br />
raiva. Não aguento mais este domínio barbaresco. Do <strong>futebol</strong> a gente não se livra. Então, sabem o que vou<br />
fazer? Vou pedir transferência para o cárcere de Milão. Ali, pelo menos, nós, os milanistas, seremos a<br />
maioria.<br />
Estas são as m<strong>in</strong>has prisões, senhores leitores, no triunfo do pós-moderno. Como podem observar, procurei<br />
compreendê-las "gramscianamente" e agir em conformidade. Vou me subtrair à "hegemonia" liquidando<br />
toda e qualquer aquiescência "passiva" com esta: buscarei uma "revolução ativa" que me leve a Milão, onde a<br />
"ditadura democrática" dos milanistas poderá se exercer. Acredito firmemente nisto. Só que, às vezes, num<br />
ímpeto de revolta extremista, ouso pensar que o próprio <strong>futebol</strong> deveria ser elim<strong>in</strong>ado porque é, em todo<br />
lugar, uma prisão; e que as prisões deveriam ser destruídas porque, em todo o lugar, estão <strong>in</strong>vadidas pelo<br />
<strong>futebol</strong>. Mas não digam isso aos meus juízes: quem perdoaria este crime contra "o estado presente das<br />
coisas"?<br />
Tradução de Roberta Barni. Publicado na Folha de S. Paulo em 26 de outubro de 1997<br />
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DOSSIÊ ANTONIO NEGRI / TEXTOS SOBRE FUTEBOL<br />
O FUTEBOL SE ANTECIPA À GLOBALIZAÇÃO<br />
O mundo tornou-se um só. Não há mais forasteiros, estranhos ou coisas externas neste mundo. A<br />
globalização das relações econômicas anda no mesmo passo que a globalização das relações sociais. Hoje, o<br />
mundo se restr<strong>in</strong>ge às ligações f<strong>in</strong>anceiras que vão de <strong>in</strong>divíduo para <strong>in</strong>divíduo, saltando as fronteiras<br />
nacionais. Os contratos não vêm mais com a chancela do Estado, mas com carimbos de advogados que<br />
constituem elos da "lex mercatoria". Agora, não se vira mais cidadão do mundo: você já nasce sendo um. As<br />
platéias de espectadores e torcedores estão globalizadas.<br />
Eu, um italiano, não torci pela Itália nesta Copa, virei um seguidor apaixonado do Senegal. Por um lado, o<br />
Mundial de <strong>futebol</strong> é, nessa perspectiva, um anacronismo s<strong>in</strong>gular. Nele, as nações guerreiam a<strong>in</strong>da, uma<br />
contra a outra. Certo, é um jogo, é uma experiência lúdica que não comporta declarações de guerra: batem<br />
de frente países, e não diferentes imperialismos. Na verdade, tudo isso é uma ficção. Não existem mais<br />
nações, com as relações sociais, econômicas e f<strong>in</strong>anceiras se desenvolvendo em escala universal, onde as<br />
identidades se esvanecem e valem muito pouco no meio de tanto <strong>in</strong>tercâmbio. A Copa se apresenta como<br />
uma ficcional permanência das nações, e o nosso orgulho nacional é artificialmente reavivado.<br />
Neste planeta sem conf<strong>in</strong>s não vale a pena se divertir com essas nações-fetiches. O fato é que o <strong>futebol</strong> não<br />
havia previsto a realidade da globalização. Mas a antecipou. É por isso que o <strong>futebol</strong> é uma chave para<br />
<strong>in</strong>terpretar o "espírito do mundo". O <strong>futebol</strong> já havia começado a circulação de mão-de-obra (ou pé-de-obra)<br />
de um país a outro, já tornava híbridos os torneios locais e contam<strong>in</strong>ava as torcidas <strong>futebol</strong>ísticas. Na<br />
Europa, as grandes nações européias são todas híbridas: a seleção italiana bicampeã nos anos 30 estava cheia<br />
de argent<strong>in</strong>os, os franceses vencedores de 1998 eram quase todos estrangeiros. Isso demonstra como o<br />
<strong>futebol</strong> se antecipa à realidade. A força de trabalho <strong>futebol</strong>ística se move com toda a liberdade e chegou a<br />
todos os r<strong>in</strong>cões primeiro que a globalização.<br />
Hoje, observando os torneios locais, se percebe como está avançado esse processo. Foi divertido (digo<br />
ironicamente, af<strong>in</strong>al, tratou-se na verdade de uma afirmação <strong>in</strong>decente) ouvir recentemente um nacionalista<br />
francês exclamar, diante da multicolorida seleção de seu país, que para conquistar a vitória era preciso uma<br />
equipe só de brancos... Pobre idiota! A mistura é irreversível. É uma exigência do mundo. E, além disso, essa<br />
lógica não diz respeito só a equipes de <strong>futebol</strong>. Ela serve como condição para nossa existência, para nós,<br />
seres cosmopolitas... E, depois, existe um efeito profundamente positivo. Essa lógica acaba com a<br />
possibilidade de usar uma herança de cor ou de raça como arma para a exploração ou a exclusão. O<br />
campeonato mundial de <strong>futebol</strong> é útil por isso. Não porque exalta as nações, mas porque mistura as raças, as<br />
cores, as paixões. Em suma, mostra as condições elementares da liberdade.<br />
Tradução de Rodrigo Bertolotto. Publicado na Folha de S. Paulo em 27 de junho de 2002<br />
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DOSSIÊ ANTONIO NEGRI / TEXTOS SOBRE FUTEBOL<br />
O FUTEBOL ESTÁ PRESO NUMA CAMISA-DE-FORÇA<br />
Eu a<strong>in</strong>da não sei, e n<strong>in</strong>guém até este momento sabe, quem vencerá a Copa do Mundo. Nas previsões das<br />
bolsas de apostas e dos "tifosi", a elim<strong>in</strong>ada Itália estava muito bem. Mesmo o Campeonato Italiano, que<br />
alguma vez foi considerado "o mais belo do mundo", é certamente hoje o mais feio. Por quê? Porque é um<br />
<strong>futebol</strong> que não tem mais uma identidade e uma personalidade, é um <strong>futebol</strong> no qual todos os jogadores são<br />
iguais entre si, e, quando aparece algum diferente, acaba reduzido a ser como os outros.<br />
Antes existiam os zagueiros da classe operária, brutos, mas honestos. Existiam os meias velozes que se<br />
moviam transformando o campo em uma rede de possibilidades. Havia os atacantes que surpreendiam pelo<br />
imprevisto. E a<strong>in</strong>da t<strong>in</strong>ha o líbero, que, de sua posição, dom<strong>in</strong>ava tudo. Abria o campo como a golpes de<br />
foice, atravessando dezenas de metros. Depois fechava seu campo como um gladiador, quando, por acaso,<br />
por lá passava um atacante oponente. Hoje, os jogadores são todos iguais e valem a metade ou um quarto<br />
daquilo que valiam os jogadores de um tempo atrás. Não é por nada que os canais esportivos preencham o<br />
tempo com estatísticas, esquemas táticos e replays. Eles precisam criar um logo, uma marca para esses<br />
jogadores sem identidade.<br />
A alternativa é entre o tédio e a violência. O campeonato mais feio do mundo só oferece isso. Há compactos<br />
de partidas que são tão repetitivas quanto ver o tráfego em uma rodovia. Mas há também jogos com tanta<br />
violência, que chamam a atenção pela novidade e pela paixão. Parecia impossível, mas, de verdade, se está<br />
realizando a profecia do horripilante filme "Rollerball", que vi anos atrás. Disseram-me que, co<strong>in</strong>cid<strong>in</strong>do com<br />
a Copa do Mundo, o filme entrou outra vez em cartaz em algumas repúblicas asiáticas, com enorme sucesso.<br />
É um cenário feroz, onde a cobiça dos dirigentes e dos bookmakers edifica a violência de um esporte<br />
circense, onde os jogadores, para que siga o espetáculo, devem massacram uns aos outros.<br />
Quando a alegria do jogo é substituída pela busca do lucro -e o resultado não é uma honra, mas um<br />
<strong>in</strong>vestimento <strong>in</strong>dustrial-, o <strong>futebol</strong> fica feio. O paradoxal consiste no fato de o Campeonato Italiano ser um<br />
dos paradigma mais importantes do <strong>futebol</strong> mundial. Feio e violento, violento porque é feio e vice-versa. Na<br />
democracia global do Império, esta forma de espetáculo entra como uma luva na era das comunicações. Às<br />
vezes, acho que altíssima frequência de faltas e contusões no jogo são provocadas de propósito para permitir<br />
que seja <strong>in</strong>serida uma propaganda durante a partida. Sei que não é verdade, mas os jogos são tão chatos, que<br />
a <strong>in</strong>serção de publicidade acaba sendo uma coisa prazerosa. O fato é que o <strong>futebol</strong> (o italiano e o mundial)<br />
está agora preso em uma camisa-de-força, aquela que o bus<strong>in</strong>ess e a publicidade determ<strong>in</strong>am em torno de<br />
toda atividade humana. Não há saída: o melhor para recuperar a magia do esporte é fechar os olhos.<br />
Tradução de Rodrigo Bertolotto. Publicado na Folha de S. Paulo em 20 de junho de 2002.<br />
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DOSSIÊ ANTONIO NEGRI / TEXTOS SOBRE FUTEBOL<br />
O ESPORTE MORAL, MAS TAMBÉM POÉTICO<br />
Quando um esporte torna-se uma paixão tão difundida e profunda como conseguiu o <strong>futebol</strong>, isso <strong>in</strong>teressa<br />
ao poder. Os imperadores romanos já sabiam disso, o circo era o <strong>futebol</strong> da época. Mas um esporte não é<br />
simplesmente um momento de liberação para cidadãos <strong>in</strong>felizes e uma compensação lúdica dos sofrimentos<br />
cotidianos. Em suma, um remédio social. O esporte pode ser pensado também como uma ação positiva para<br />
a manutenção da ordem pública. Pode, portanto, se transformar em <strong>in</strong>strumento de organização e<br />
adestramento das massas, ou seja, aquilo que os soberanos absolutistas do século 18 chamavam uma "ação<br />
de polícia".<br />
Em alguns países europeus, americanos, asiáticos e africanos é em torno do <strong>futebol</strong> que acaba se<br />
desenvolvendo boa parte da reflexão sobre a relação entre esporte e polícia. Em que sentido? O <strong>futebol</strong> tem a<br />
vantagem de ser um esporte moral -é difícil compreender como um jogador de <strong>futebol</strong> possa se drogar,<br />
af<strong>in</strong>al, essa ação soma pouco à d<strong>in</strong>âmica do jogo (Maradona ens<strong>in</strong>a). É árduo, quase impossível, por outro<br />
lado, pensar na corrupção no jogo, na falsificação de resultados etc. Eis, então, os exemplos edificantes. Não<br />
é só isso, porém, que <strong>in</strong>teressa ao soberano.<br />
A oportunidade que se oferece é a de tomar o <strong>futebol</strong> como paradigma da ordem social, o jogo dos chutes<br />
como um "tipo ideal" da constituição (física e moral) de um país. Seja pelo lado positivo ou pelo negativo. Do<br />
lado positivo: na medida em que em torno do <strong>futebol</strong> podem se materializar as supostas virtudes de um<br />
povo (a <strong>in</strong>ventividade brasileira, a astúcia italiana, a discipl<strong>in</strong>a alemã, o d<strong>in</strong>amismo esnobe dos <strong>in</strong>gleses). Do<br />
lado negativo: as partidas, que podem virar receptáculos da violência popular, se oferecem como terreno<br />
ideal para demonstrar quanto é necessário o poder da polícia.<br />
Juntemos a estas considerações banais algumas outras reflexões. Há um grande jornalista esportivo na Itália,<br />
Gianni Brera, que conseguiu traçar em seus artigos um espécie de panorama representando o<br />
desenvolvimento italiano do pós-guerra até o triunfo capitalista dos anos 60. Traçou também (de forma<br />
sublim<strong>in</strong>ar) o desejo de grupos que não se aproximavam do poder, que combatiam o capitalismo e, mesmo<br />
assim, viviam. Não se tratava, portanto, para Brera, de reduzir os atores do <strong>futebol</strong> em uma tensão<br />
unidimensional da comunidade, do orgulho nacional, da aventura quase imperialista quando jogava a<br />
seleção italiana. Tratava-se sobretudo de mostrar, no <strong>futebol</strong>, como os oprimidos poderiam tomar<br />
consciência, se emancipar e se rebelar. Com Brera, o jornalismo esportivo, de dispositivo de polícia, se abre,<br />
de repente, para uma representação das classes subalternas.<br />
Hoje, se o <strong>futebol</strong> é a imagem destas classes, como poderá <strong>in</strong>dicar o movimento da multidão uma esperança,<br />
um novo salto adiante? Não estaríamos sendo exigentes demais se pedíssemos a nós mesmos que<br />
produzíssemos um movimento político que fosse feito da elegância do toque de bola (democrático) de<br />
Ronaldo, ou do spr<strong>in</strong>t (socialista) de Vieri. O que não dá mesmo para pedir para o próximo campeão do<br />
mundo é que levantem seus punhos proletários como fizeram os afro-americanos na Olimpíada de 1968.<br />
Não, de verdade, não queremos cerimônias. Para mim, já me chateia ouvir o rumor daqueles anos<br />
nacionalistas. O fato é que, como contava Brera, bastam grandíssimos lances e belíssimos jogos para restituir<br />
a esperança de ser, nós todos, uma multidão, no mundo, fraternalmente. Porque o <strong>futebol</strong> é essa poesia<br />
política...<br />
Tradução de Rodrigo Bertolotto. Publicado na Folha de S. Paulo em 13 de junho de 2002<br />
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DOSSIÊ ANTONIO NEGRI / TEXTOS SOBRE FUTEBOL<br />
O FUTEBOL É LINDO POR EXALTAR A HARMONIA<br />
O <strong>futebol</strong> é o mais l<strong>in</strong>do esporte do mundo, e isso porque é um jogo de virtudes. Explico: Maquiavel def<strong>in</strong>e<br />
como virtuoso aquele jogo no qual os jovens guerreiros romanos dançavam nos dias de festas, celebrando a<br />
vida e a guerra, o amor e a morte, a coragem e a generosidade. Maquiavel criticava, com essa def<strong>in</strong>ição, a<br />
maneira cristã, onde a alegria e o jogo foram estirpados e trocados por rituais tristíssimos. O <strong>futebol</strong> é,<br />
portanto, virtuoso porque é um jogo que reúne 22 s<strong>in</strong>gularidades que colaboram para um objetivo comum.<br />
Isso exalta a cooperação de pés e cérebros.<br />
Por mais paradoxal que pareça, podemos aplicar ao <strong>futebol</strong> os esquemas que derivam da sociologia do<br />
trabalho. Até o trabalho pós-moderno, imaterial e virtual, nasce da cooperação de funções <strong>in</strong>telectuais (de<br />
mãos e cabeças), realiza-se através de meios de comunicação e produz por meio de f<strong>in</strong>íssimos nexos. O<br />
<strong>futebol</strong> seria como jogo pós-moderno? Não, certamente não: a modalidade nasceu em uma bela praça da<br />
Florença renascentista e foi codificado nas faculdades <strong>in</strong>glesas. É, logo, um fruto da modernidade. Apenas o<br />
<strong>futebol</strong>, melhor que qualquer outro esporte, adaptou-se à nova época na qual entramos, já que é o esporte<br />
das multidões.<br />
Das grandes multidões, que criam o espetáculo, mas, acima de tudo, daquelas pequenas multidões, aquelas<br />
aglomerações s<strong>in</strong>gulares, que constróem uma equipe. Faz algumas semanas, fui assistir a um ensaio do<br />
maestro Claudio Abbado com a Filarmônica de Berlim: um verdadeiro tre<strong>in</strong>amento de grande s<strong>in</strong>gularidade.<br />
Maravilhoso era acompanhar a acumulação de partituras e torneios <strong>in</strong>strumentais em um som sempre<br />
perfeito e dist<strong>in</strong>to, o som do que é comum. De tanto em tanto, o maestro se distanciava, descia do palco e<br />
fazia ver que a orquestra tocava soz<strong>in</strong>ha. Também vendo o <strong>futebol</strong>, tenho a impressão de ouvir uma música<br />
tocada por si só. A importância do técnico é primordial, un<strong>in</strong>do o lúdico a uma eventual obra-prima.<br />
Mas voltemos para a sociologia do trabalho: também o trabalho imaterial, isto é, o trabalho <strong>in</strong>telectual,<br />
<strong>in</strong>formático se articula através do fraseado múltiplo da s<strong>in</strong>gularidade. E, se a máqu<strong>in</strong>a organiza a produção,<br />
a cooperação l<strong>in</strong>guística constrói seu sentido. Na medida em que aproximando os fonemas formamos<br />
palavras, e, juntando palavras, podemos gritar gol! Como grandes pensadores lógicos, os jogadores de<br />
<strong>futebol</strong> constróem significado com a <strong>in</strong>teligência dos pés, supervisionado pelo cérebro comunitário, que<br />
permite desl<strong>in</strong>dar a ação complexa. Abbado desce do tablado, e a orquestra segue tocando. Produção da<br />
multidão, produção pós-moderna, produção <strong>in</strong>telectual.<br />
O <strong>futebol</strong> nasceu faz tanto tempo, mas somente hoje, quando entramos nessa nova era, pôde mostrar<br />
<strong>in</strong>teiramente o fascínio da vida atual, pós-moderna, imaterial. Dê uma olhada em outros esportes coletivos: o<br />
<strong>futebol</strong> americano ou o rúgbi não são construídos como uma totalidade, como uma música em coro. São,<br />
sim, fragmentos de episódios do jogo. Os dois conjugam uma exacerbação de performances <strong>in</strong>dividuais. São<br />
esportes esquizofrênicos, típicos da articulação moderna, sempre <strong>in</strong>completa, ao mesmo tempo de massa e<br />
<strong>in</strong>dividual. Contrário a tudo isso, o <strong>futebol</strong>: aqui não há massa nem simplesmente <strong>in</strong>dividualidade. Há<br />
multidão que contempla as s<strong>in</strong>gularidades, há uma proliferação múltipla de ações s<strong>in</strong>gulares, há um coral<br />
polifônico.<br />
Tradução de Rodrigo Bertolotto. Publicado na Folha de S. Paulo em 06 de junho de 2002<br />
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