Nação, identidade e conflitos sociais na Nova República: o Plano ...
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Introdução<br />
<strong>Nação</strong>, <strong>identidade</strong> e <strong>conflitos</strong> <strong>sociais</strong> <strong>na</strong> <strong>Nova</strong> <strong>República</strong>:<br />
o <strong>Plano</strong> Cruzado em perspectiva histórica<br />
CHARLESTON JOSÉ DE SOUSA ASSIS *<br />
No Brasil, os anos 80 possivelmente representaram para os setores populares o<br />
pior momento de sua história, pois, pela primeira vez, o país convivia com taxas<br />
inflacionárias da ordem de três dígitos (chegando a quatro no início dos anos 90). Sabe-<br />
se que conquanto atinjam a todos, surtos inflacionários têm poder destrutivo efetivo<br />
sobre os mais pobres, daí as situações desesperadoras vividas por milhões de brasileiros<br />
<strong>na</strong>queles anos.<br />
Diante desse quadro, a pressão social sobre o governo era enorme. Em especial,<br />
porque sobre o governo José Sarney recaíram as expectativas represadas desde os<br />
últimos anos da ditadura militar, cujo término foi marcado por dois momentos críticos,<br />
duas frustrações que, do ponto de vista político-social, foram extremamente duras (ao<br />
menos para a maioria da população): a derrota da emenda Dante de Oliveira e a agonia e<br />
morte de Tancredo Neves.<br />
Essas duas frustrações foram antecedidas por momentos de clímax, nos quais se<br />
acreditou, de alguma forma, que i<strong>na</strong>uguravam uma nova era no Brasil. Após a morte de<br />
Tancredo, cuja agonia foi acompanhada pelo país durante três sema<strong>na</strong>s, o desânimo se<br />
abateu sobre a população, entre outras coisas, porque as ações do novo governo (ou,<br />
como então se dizia, da <strong>Nova</strong> <strong>República</strong>) não surtiam efeito no sentido de mudança nos<br />
planos econômico e social. Some-se a isto o fato de que ocupava a cadeira presidencial<br />
o ex-presidente do PDS, que trabalhara para a derrota da emenda Dante de Oliveira.<br />
Pressio<strong>na</strong>do a dar respostas à <strong>na</strong>ção, o governo Sarney engendrou um plano<br />
econômico que visava colocar um ponto fi<strong>na</strong>l <strong>na</strong> inflação e promover a retomada do<br />
desenvolvimento econômico, retraído desde fins dos anos 70 – o <strong>Plano</strong> Cruzado. No dia<br />
28 de fevereiro de 1986, em cadeia de rádio e televisão, o presidente anunciou o plano<br />
ao país. Em determi<strong>na</strong>do momento do pronunciamento, Sarney abandonou o texto do<br />
* Doutorando em História Social (UFF) e professor da Universidade Salgado de Oliveira.<br />
A<strong>na</strong>is do XXVI Simpósio Nacio<strong>na</strong>l de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 1
discurso e improvisou. Pediu que cada cidadão se tor<strong>na</strong>sse um “fiscal do presidente”<br />
(SARDENBERG, 1987: 295).<br />
Creio que a reação popular que se seguiu àquela mensagem precisa ser melhor<br />
pesquisada, dada sua instantânea, padronizada e repetida resposta. É emblemático que<br />
minutos depois Sarney fora informado por um funcionário do Palácio do Pla<strong>na</strong>lto que<br />
alguém ligara para lá denunciando remarcação de preços em um supermercado de<br />
Brasília (SARDENBERG, 1987: 295). No mesmo dia ocorreram outros acontecimentos<br />
semelhantes, como a depredação da loja Bob‟s no Largo da Carioca, centro do Rio de<br />
Janeiro, poucas horas após o anúncio (KOCHER, 1997, 224). Nos meses seguintes,<br />
milhares de “fiscais do Sarney” atormentaram a vida de proprietários e gerentes de<br />
supermercados, açougues, padarias e armazéns por toda parte, visando garantir o que<br />
consideravam justo: a manutenção do congelamento de preços.<br />
Nosso objetivo neste trabalho é refletir acerca deste fenômeno que envolveu<br />
tanto a esperança e a euforia em seu primeiro momento, quanto a decepção e a revolta<br />
da população ao fi<strong>na</strong>l. Apesar de partir de reflexões propostas por autores como E.P.<br />
Thompson e B. Anderson, entre outros, em tese de doutorado que vem sendo orientada<br />
pela profa. Laura Maciel (Uff), esta comunicação, em especial, pretende refletir sobre o<br />
apaixo<strong>na</strong>do envolvimento da população com o referido plano econômico estritamente<br />
<strong>na</strong> perspectiva do conceito thompsoniano de economia moral dos pobres, dado o<br />
formato de um trabalho desta <strong>na</strong>tureza. Obviamente, a utilização de um conceito<br />
pensado origi<strong>na</strong>lmente para a Inglaterra “pré-industrial” exige uma série de cuidados, a<br />
começar pela demarcação origi<strong>na</strong>l de sua utilização.<br />
O conceito para Thompson<br />
Em seu artigo “A economia moral da multidão inglesa no século XVIII” (1998:<br />
150-202), Edward Thompson demonstra preocupação com o emprego do termo motim,<br />
sobre o qual há muita polêmica <strong>na</strong>s ciências <strong>sociais</strong>. Em geral, em que pesem os<br />
esforços de historiadores como George Rudé, o termo vinha sendo utilizado com um<br />
sentido que ele nomeia como espasmódico. Em outras palavras, os pobres se revoltam<br />
porque têm fome. Portanto, de acordo com essa noção, os motins são puras reações<br />
inconscientes a carências de fundo eminentemente econômico, nos quais as pessoas<br />
reagem de maneira instintiva (THOMPSON, 1998: 150, 151).<br />
A<strong>na</strong>is do XXVI Simpósio Nacio<strong>na</strong>l de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 2
Com o objetivo de combater essa posição teórica da “escola espasmódica”,<br />
Thompson procura demonstrar que “é possível detectar em quase toda ação popular do<br />
século XVIII uma noção legitimadora” (THOMPSON, 1998: 152). Longe de afirmar<br />
que a fome ou mesmo o aumento dos preços eram responsáveis por revoltas populares,<br />
o autor de “Costumes em comum” defende que, adicio<strong>na</strong>do a isto, deve-se ter em mente<br />
que o comportamento da multidão se baseava em valores consensuais entre as camadas<br />
populares, que integravam um universo cultural que discrimi<strong>na</strong>va práticas legítimas de<br />
ilegítimas no que diz respeito ao direito de acesso aos gêneros de primeira necessidade.<br />
Tal comportamento,<br />
por sua vez, tinha como fundamento uma visão consistente tradicio<strong>na</strong>l das<br />
normas e obrigações <strong>sociais</strong>, das funções econômicas peculiares a vários<br />
grupos <strong>na</strong> comunidade, as quais, consideradas em conjunto, podemos dizer<br />
que constituem a economia moral dos pobres (THOMPSON, 1998: 167).<br />
Diante disso, podemos compreender que a quebra do que ele chama de<br />
“pressupostos morais” fosse, tanto quanto a carência real de víveres, um motivo para a<br />
rebelião. Em seu esforço, busca evidenciar que as multidões “agiam segundo um<br />
modelo teórico consistente”, modelo esse que buscava obter vantagens explorando a<br />
postura pater<strong>na</strong>lista dos “patrícios”, “extraindo dele todas as características que mais<br />
favoreciam os pobres e que ofereciam uma possibilidade de cereais mais baratos”<br />
(THOMPSON, 1998: 167).<br />
Após essa breve visita ao conceito em Thompson, é importante dar lugar ao<br />
seguinte questio<strong>na</strong>mento: seria possível transpor o uso do conceito pensado para<br />
contexto e épocas tão distintas, quais sejam o século XVIII inglês e o fi<strong>na</strong>l do século<br />
XX brasileiro? Acredito que a resposta resida <strong>na</strong>s próprias observações feitas pelo autor<br />
acerca dos usos que fizeram de “sua” economia moral dos pobres.<br />
As “economias morais”<br />
Ao que tudo indica, “A economia moral da multidão inglesa no século XVIII”<br />
suscitou tanta polêmica quanto influenciou muitos historiadores em todas as partes a<br />
enxergar em toda reação popular a relações econômicas semelhantes às de uma<br />
economia de mercado uma noção de economia moral. Em um sentido mais geral,<br />
portanto, economia moral se confundiria com a noção de direito à subsistência por parte<br />
dos mais pobres em situações <strong>na</strong>s quais o “mercado” lhes impossibilita ou dificulta<br />
extremamente a sobrevivência.<br />
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Sua resposta às críticas foi elaborada em “A economia moral revisitada”<br />
(THOMPSON, 1998: 203-266). Neste texto, explica que, de fato, em suas pesquisas,<br />
limitou o emprego do conceito “aos confrontos <strong>na</strong> praça do mercado a respeito do<br />
acesso (ou direito de acesso) aos “artigos de primeira necessidade” – aos gêneros<br />
essenciais”. (THOMPSON, 1998: 257). Se tomada isoladamente, esta fala realmente<br />
restringe o uso do conceito. Todavia, o mesmo adquire maior abrangência quando ele<br />
ensi<strong>na</strong> que<br />
a questão não é ape<strong>na</strong>s que seja conveniente reunir num termo comum o<br />
feixe identificável de crenças, usos e formas associados com a venda de<br />
alimentos em tempos de escassez, mas também que as profundas emoções<br />
despertadas pelo desabastecimento, as reivindicações populares junto às<br />
autoridades nessas crises e a afronta provocada por alguém a lucrar em<br />
situações de emergência que ameaçam a vida, conferem um peso “moral”<br />
particular ao protesto. Tudo isso, considerado em conjunto, é o que entendo<br />
por economia moral (THOMPSON, 1998: 257).<br />
Ademais, é importante considerar também que Thompson admite que “o termo esteja à<br />
disposição de todo desenvolvimento que possa ser justificado” (THOMPSON, 1998:<br />
257). Realmente, não parece se opor ao seu uso, pois nos informa que havia um debate<br />
em torno do conceito – que ele classifica como “altamente interessante” –<br />
desenvolvendo-se <strong>na</strong> África, <strong>na</strong> Ásia e <strong>na</strong> América Lati<strong>na</strong> e em outras partes, com uma<br />
acepção que não era exatamente a sua. (THOMPSON, 1998: 261).<br />
Por fim, pode-se fazer a defesa do uso de um conceito a priori incapaz de<br />
explicar outra realidade baseando-se no fato de que há muitas décadas a ciência<br />
histórica compreende que existem situações históricas que “mantêm uma afinidade<br />
genérica com as demais surgidas de conjunções comparáveis” (THOMPSON, 2001:95).<br />
Na mesma linha, Eric Hobsbawm nos oferece um interessante exemplo disto quando<br />
nos fala acerca de movimentos camponeses de diversas regiões que apresentam um<br />
caráter semelhante e “altamente padronizado” (HOBSBAWM, 1998: 226-228).<br />
Pessoalmente, ainda que saiba que “toda experiência histórica é obviamente, em<br />
certo sentido, única” (THOMPSON, 2001:79), creio que o que o historiador dos<br />
movimentos populares procura compreender são atitudes que homens, coletivamente,<br />
tomam em determi<strong>na</strong>das situações. É de se esperar que quando as situações sejam<br />
análogas as respostas a elas também possam ser. Ou a História não é uma ciência<br />
huma<strong>na</strong>.<br />
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<strong>Plano</strong> Cruzado: um fenômeno, várias causas<br />
Em História, freqüentemente os fenômenos têm vários elementos que devem ser<br />
encaixados para chegarmos a uma explicação. A participação popular em apoio ao<br />
<strong>Plano</strong> Cruzado é um desses. Certamente, tanto os “fiscais” ativos do Sarney – os que<br />
<strong>na</strong>s ruas protestavam contra a remarcação de preços – quanto os passivos – os que em<br />
casa vibravam com as espetaculares prisões de proprietários e gerentes de<br />
estabelecimentos comerciais e que também integravam os 90% que aprovavam o<br />
governo (SINGER in SOLA, 1988:77) – aderiram ao congelamento de preços<br />
euforicamente porque, entre outras razões, já se encontravam irma<strong>na</strong>dos por uma série<br />
de experiências comuns <strong>na</strong>s diversas esferas da vida social, tais como o desemprego, a<br />
inflação, o alto custo de vida, a vivência negativa da ditadura militar, as frustrações com<br />
a corrupção, o arrocho salarial etc.<br />
Adicionem-se ao acima descrito outros dois elementos e temos um ambiente<br />
propício para a ação coletiva: um sentimento <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista que criava a idéia de <strong>na</strong>ção<br />
em oposição aos que considerava “estrangeiros” – como os políticos ligados ao regime<br />
militar, grandes empresários, banqueiros e outros – e o próprio efeito pedagógico das<br />
ações coletivas recorrentes desde o fi<strong>na</strong>l dos anos 70, as quais tinham a capacidade de<br />
auto-alimentar o processo, engrossando cada vez mais as fileiras das ações/protestos<br />
populares. (ASSIS, 2007)<br />
Ditas estas coisas, examinemos o lugar da economia moral dos pobres <strong>na</strong><br />
explicação do fenômeno em questão. Se, do ponto de vista mais global, a adesão<br />
entusiástica ao Cruzado pode ser encarada como um fenômeno no interior de um<br />
processo histórico ainda mais complexo, mas não restrito a questões de sobrevivência<br />
cotidia<strong>na</strong>, do ponto de vista particular pode ser visto como um fenômeno que se<br />
circunscreve – em primeira instância – a esse aspecto. Contudo, é bom que se ressalte<br />
que não foi sem razão que Edward Thompson se apropriou do termo “moral” para<br />
compreender situações dessa <strong>na</strong>tureza. Ao recuperar a expressão setecentista “economia<br />
moral” (THOMPSON, 1998:256) procurou deixar bem claro que não se tratava de levar<br />
em consideração elementos puramente objetivos em suas pesquisas acerca dos pobres<br />
no século XVIII. Assim também entendemos quando da análise do comportamento dos<br />
setores populares durante a vigência do <strong>Plano</strong> Cruzado.<br />
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Aspectos da experiência cotidia<strong>na</strong> dos brasileiros<br />
Registrada pela Fundação Getúlio Vargas desde que esta começou a medir os<br />
preços em 1945, a inflação foi descrita como o fenômeno mais antigo da economia<br />
brasileira. De acordo com o jor<strong>na</strong>lista Carlos Alberto Sardenberg, todo brasileiro tinha<br />
vivência da inflação e dela “todo mundo entendia” O economista Edmar Bacha, por sua<br />
vez, chegou a afirmar que antes do <strong>Plano</strong> Cruzado estava “todo mundo com raiva da<br />
inflação. Tirando a inflação da frente dava para resolver mais tranqüilamente o<br />
problema fundamental de que há muito pobre e pouco rico”. (SARDENBERG,<br />
1987:22). Francisco Carlos Teixeira da Silva (in LINHARES, 1996:347) também<br />
constatou que a população estava “cansada de mais de uma década de inflação<br />
incessante”.<br />
Não somente os acadêmicos percebiam o que a inflação impunha aos brasileiros.<br />
Na própria cultura popular não faltavam elementos que demonstravam a experiência do<br />
fenômeno inflacionário, bem como outros aspectos da realidade social do país. A<br />
música popular e a teledramaturgia de então podem nos oferecer interessantes exemplos<br />
das vivências que compartilhavam as pessoas comuns dos diversos aspectos negativos<br />
da realidade <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, sejam do ponto de vista político, social ou econômico. Na<br />
ausência de espaço, utilizo cartas de populares encaminhadas à Assembleia Nacio<strong>na</strong>l<br />
Constituinte em 1986/7, <strong>na</strong>s quais se percebe muito nitidamente o quanto a inflação<br />
desorde<strong>na</strong>va o cotidiano das classes populares. Elas evidenciam o sentimento popular<br />
de que a inflação era o pior dos males <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is. Francisca Hélia de Freitas Urçulino,<br />
moradora de Freitas (CE), 15 a 19 anos de idade, escreveu:<br />
A minha sugestão é : - Que a inflação que está muito alta pudesse diminuir.<br />
Minha sugestão é que o salário aumentasse para todos, pois tem funcionários<br />
que recebem muito mais do que o seu próximo que trabalha até mais. Que<br />
através de um aumento salarial igualitário as pessoas não percebam o<br />
aumento da inflação. 1<br />
A também cearense Maria Roseli Morçal Moreira, de Trairi, 10 a 14 anos, moradora da<br />
zo<strong>na</strong> rural, disse que “gostaria que baixasse a inflação do país. Para tanto é necessário<br />
uma assembléia de pessoas como Políticos, Estudantes, Professores, etc, afim de<br />
1 Carta de Francisca Hélia de Freitas Urçulino à Assembleia Nacio<strong>na</strong>l Constituinte. Sugestões da<br />
população para a Assembleia Nacio<strong>na</strong>l Constituinte de 1988. ORIGEM: L001 DATA: 20/02/86<br />
FORMUL: 020 DV: 9 TIPO: 10 31/10/86. Disponível em:<br />
http://www.se<strong>na</strong>do.gov.br/legislacao/basesHist/asp/consulta.asp. Acessado em 04 dez. 2009.<br />
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discutirem como mudar a inflação do país”. 2 A carta de Cidelton da Cunha Pinheiro,<br />
casado, 25 a 29 anos, morador de Santa Luz (PI) e renda de até um salário mínimo, traz<br />
uma interessante lista de realizações para a Constituinte, algumas delas, vinculadas à<br />
inflação e à sua própria experiência de privações com o salário mínimo (em verdade,<br />
uma experiência coletiva):<br />
Que <strong>na</strong> nova constituição traga muitas realizações boas:<br />
1- Terra para quem trabalha e não tem.<br />
2- Que o governo de condições ao pequeno trabalhador rural dando<br />
empréstimos com juros compatívies e não como está.<br />
3- Que o salário mínimo com que muitos vegetam, seja suficiênte para viver.<br />
4- Que os salários de todos os níveis de assalariados sejam reajustado de<br />
acordo com a inflação.<br />
5- Que dê emprego pra quem não tem condições fi<strong>na</strong>nceiras e tem capacidade<br />
e, não pra quem não necessita e não tem condições cultural.<br />
6- Que haja trimestralidade ou a paralização dos preços dos objetos mais<br />
necessário utilizado pelo homen <strong>na</strong> sua vida. 3<br />
Na opinião de Marco Antonio Ribeiro de Freitas, de São João de Meriti (RJ),<br />
casado, 30 a 39 anos, a situação do Brasil era caótica. Segundo ele,<br />
para que o nosso país possa sair do caos em que se encontra, é preciso que<br />
primeiro se acabe com a corrupção nos serviços públicos. E que tome uma<br />
medida enérgica contra essa inflação astronômica. Agora uma mensagem, eu<br />
peço a Deus que a asembleia constituinte venha a ser composta por homens<br />
que estejam realmente com vontade de trabalhar pela nossa <strong>na</strong>ção. 4<br />
Freitas defendia que duas medidas emergências deveriam ser tomadas: o fim da<br />
corrupção e da inflação que não sem razão ele nomeia como astronômica. Sua<br />
mensagem fi<strong>na</strong>l evidencia que os políticos de então não tinham vontade de trabalhar<br />
pela nossa <strong>na</strong>ção, uma vez que ele pede a Deus que a assembléia seja formada por<br />
pessoas com essa vontade.<br />
Castari<strong>na</strong> [Catari<strong>na</strong>?] A. dos Santos, de Telemaco Borba (PR), casada, com<br />
cinco filhos e marido desempregado, “queria que diminuisse a inflação aumentasse<br />
2 Carta de Maria Roseli Morçal Moreira à Assembleia Nacio<strong>na</strong>l Constituinte. Sugestões da população<br />
para a Assembleia Nacio<strong>na</strong>l Constituinte de 1988. ORIGEM: L001 DATA: 20/02/86 FORMUL: 023<br />
DV: 8 TIPO: 10 31/10/86. Disponível em:<br />
http://www.se<strong>na</strong>do.gov.br/legislacao/basesHist/asp/consulta.asp. Acessado em 04 dez. 2009.<br />
3 Carta de Cidelton da Cunha Pinheiro à Assembleia Nacio<strong>na</strong>l Constituinte. Sugestões da população para<br />
a Assembleia Nacio<strong>na</strong>l Constituinte de 1988. ORIGEM: L002 DATA: 20/02/86 FORMUL: 042 DV:<br />
2 TIPO: 10 31/10/86. Disponível em:<br />
http://www.se<strong>na</strong>do.gov.br/legislacao/basesHist/asp/consulta.asp. Acessado em 04 dez. 2009.<br />
4 Carta de Marco Antonio Ribeiro de Freitas à Assembleia Nacio<strong>na</strong>l Constituinte. Sugestões da população<br />
para a Assembleia Nacio<strong>na</strong>l Constituinte de 1988. ORIGEM: L003 DATA: 20/02/86 FORMUL: 052<br />
DV: 8 TIPO: 13 31/10/86. Disponível em:<br />
http://www.se<strong>na</strong>do.gov.br/legislacao/basesHist/asp/consulta.asp. Acessado em 04 dez. 2009.<br />
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salário e fizesse casa para os assalariados”. 5 Igualmente reveladora é a forma como ela<br />
inicia seu texto: “Devido esta chance de poder lhe dizer o penso”. Ao que parece,<br />
brasileiros de diversas origens pensavam de modo semelhante sobre muitas coisas.<br />
Nascimento Gomes de Sousa, de Nazare (GO), casado, 30 a 39 anos, tinha dúvidas<br />
sobre a eficácia da futura Constituição para resolver os problemas do país (inclusive a<br />
inflação). Seu texto deixa evidencia a percepção das desigualdades <strong>sociais</strong>:<br />
A adesão entusiástica ao Cruzado<br />
Considerando a nova constituição, teremos uma nova república?<br />
considerando uma nova constituição, poderá baixar a inflação? Considerando<br />
a nova constituição, poderemos diminuir a divida exter<strong>na</strong>? Considerando a<br />
nova constituição, os banqueiros, industriais, empresários e outros, que<br />
ganham mais de 200 milhões mensais e mordomias lembrarão, daqeles que<br />
/renda, de quem está com fome, em greve, os margi<strong>na</strong>lizados etc? 6<br />
Tendo obtido um retrato das experiências <strong>sociais</strong> com a inflação em suas<br />
dimensões concreta e simbólica, necessitamos recorrer aos acontecimentos, uma vez<br />
que a história “é composta de episódios e, se não podemos adentrá-los, não podemos<br />
adentrar a história absolutamente”.(THOMPSON, 2001:133) Vejamos, então, episódios<br />
vinculados ao Cruzado. Como dito acima, a reação popular ao anúncio do Cruzado foi<br />
imediata. A partir daquele dia 28, multidões, portando a tabela de preços da SUNAB<br />
(Superintendência Nacio<strong>na</strong>l de Abastecimento) publicada diariamente nos jor<strong>na</strong>is, se<br />
sentiram responsáveis pela causa pública (NEVES, 2002:407; RODRIGUES, 1992:46;<br />
SARDENBERG, 1987:270). O ministro da Justiça Paulo Brossard se disse<br />
impressio<strong>na</strong>do com as manifestações populares: “Nunca imaginei que em ape<strong>na</strong>s 24<br />
horas se formasse uma onda gigantesca. Nunca vi nem soube de algo parecido <strong>na</strong><br />
História do Brasil”. 34 A magnitude assumida pela participação popular pareceu<br />
preocupar os editores da revista Veja, tanto que fizeram questão de publicar a seguinte<br />
5 Carta de Castari<strong>na</strong> A. dos Santos à Assembleia Nacio<strong>na</strong>l Constituinte. Sugestões da população para a<br />
Assembleia Nacio<strong>na</strong>l Constituinte de 1988. ORIGEM: L003 DATA: 20/02/86 FORMUL: 057 DV: 0<br />
TIPO: 14 31/10/86. Disponível em: http://www.se<strong>na</strong>do.gov.br/legislacao/basesHist/asp/consulta.asp.<br />
Acessado em 04 dez. 2009.<br />
6 Carta de Nascimento Gomes de Sousa à Assembleia Nacio<strong>na</strong>l Constituinte. Sugestões da população para<br />
a Assembleia Nacio<strong>na</strong>l Constituinte de 1988. ORIGEM: L003 DATA: 20/02/86 FORMUL: 057 DV:<br />
0 TIPO: 14 31/10/86. Disponível em:<br />
http://www.se<strong>na</strong>do.gov.br/legislacao/basesHist/asp/consulta.asp. Acessado em 04 dez. 2009.<br />
34 REVISTA VEJA, São Paulo: 12 mar. 1986, p. 5. [sem grifo no origi<strong>na</strong>l]<br />
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pergunta dirigida ao ministro: “Estará surgindo um poder incontrolável e acima das<br />
instituições?” 35<br />
Uma das situações mais emblemáticas ocorreu em Curitiba (PR). Indig<strong>na</strong>do com<br />
os preços acima da tabela em um supermercado, Omar Marczynski, declarou em alta<br />
voz, diante de deze<strong>na</strong>s de pessoas: “Em nome do presidente José Sarney eu fecho esse<br />
supermercado”. 36 Mais surpreendente que ter conseguido – com o apoio dos demais –<br />
fechar o estabelecimento, é o fato de aquele indivíduo ter se apropriado da figura do<br />
presidente para fazê-lo. Contudo, não se tratou de situação isolada, mas de um<br />
fenômeno social, tanto que os próprios mentores do Cruzado achavam que “parecia<br />
demais, exagerada, a adesão popular” (SARDENBERG, 1987:295). Segundo a revista<br />
Isto É, era evidente “o otimismo de multidões que têm saudado e aderido ao presidente<br />
José Sarney”. 38 Os “fiscais do Sarney” se tor<strong>na</strong>ram tão populares que Jô Soares, então à<br />
frente do “Viva o Gordo”, um programa humorístico muito popular <strong>na</strong> Rede Globo,<br />
"criou a perso<strong>na</strong>gem “fiscala do Sarney”. 39 Nos parece óbvio que há elementos<br />
“morais” envolvidos no fenômeno. Carlos Alberto Sardenberg pareceu ter percebido<br />
isto à época:<br />
A inflação parou instantaneamente, conforme as pessoas percebiam, com<br />
inédita alegria, a cada vez que iam aos supermercados. O povo de fato fazia<br />
festa <strong>na</strong>s ruas. E nos próprios supermercados, onde os fiscais do presidente,<br />
tomados de fervor patriótico, chegavam a cantar o Hino Nacio<strong>na</strong>l quando os<br />
gerentes curvavam-se às pressões e remarcavam os preços para baixo<br />
(SARDENBERG, 1987:295).<br />
Lourdes Sola também oferece explicações não objetivas para o que estava ocorrendo no<br />
país:<br />
35 Ibid., p. 6.<br />
36 REVISTA VEJA, São Paulo: 12 mar. 1986, p. 5.<br />
38 REVISTA ISTO É, São Paulo: 12 mar. 1986, p. 21.<br />
39 REVISTA VEJA, São Paulo: 30 abr. 1986, p. 25.<br />
A adesão “plebiscitária” ao Cruzado, entretanto, contém outros ingredientes,<br />
até aqui negligenciados. Ela evoca o clima cívico das campanhas pelas<br />
eleições diretas de 1984, e também o das manifestações maciças por todo o<br />
país quando do enterro do Presidente Tancredo Neves (...) Com uma<br />
diferença crucial: dessa vez parecia romper-se a cadeia de frustrações e de<br />
experiências de anti-clímax que havia caracterizado a transição brasileira<br />
desde 1982. Com o Cruzado parecia inequívoca, <strong>na</strong> percepção da população,<br />
a nova fase – “mudancista” – do governo. (...) A julgar pelas evidências<br />
disponíveis <strong>na</strong>s pesquisas de opinião pública, por exemplo, o <strong>Plano</strong> adquiriu<br />
um significado mais complexo e profundo do que o de uma guerra contra a<br />
inflação (SOLA, 1988:43,44[sem grifo no origi<strong>na</strong>l]).<br />
A<strong>na</strong>is do XXVI Simpósio Nacio<strong>na</strong>l de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 9
Ao que parece, o país estava mudando. Estava? É preciso cuidado <strong>na</strong> análise em<br />
momentos como esse, pois, às vezes, o fato de o historiador saber o que de fato ocorreu<br />
– o desfecho – se tor<strong>na</strong> um elemento capaz de turvar sua compreensão do processo.<br />
Thompson estava ciente disso, tanto que nos adverte para o fato de que “é necessário<br />
fazer uma pausa, de tempos em tempos, para lembrar que o modo como as pessoas<br />
conceberam o seu tempo não é necessariamente o modo como ocorreram os<br />
acontecimentos à época” (THOMPSON, 1998:213). Sendo assim, devemos lembrar ao<br />
leitor que sim, para a maioria, estava. Imagine o impacto (e coisas como estas eram<br />
feitas para causá-lo) de uma pessoa comum assistir o diretor-superintendente da Polícia<br />
Federal Romeu Tuma dizendo, diante das câmeras de TV, que “qualquer cidadão tem o<br />
direito de prender em flagrante quem estiver violando os termos do decreto<br />
presidencial”. Muitos chegavam ao delírio ao verem empresários sendo presos, como<br />
Roberto Maksoud, dono do hotel cinco estrelas Maksoud Plaza, de São Paulo, detido<br />
em 4 de março por cobrar o preço do refrigerante acima da tabela. 43<br />
O que dizer do depoimento emocio<strong>na</strong>do de um popular, após interdição de um<br />
supermercado, comentando que não era de lutar por seus direitos, pois “não queria<br />
bancar o palhaço, porque as denúncias davam em <strong>na</strong>da, mas agora isso acabou.<br />
Qualquer coisa, vou direto à polícia. O governo nos devolveu a dignidade”. 44 Há outros<br />
exemplos emblemáticos. Em Porto Alegre, o presidente da Associação Gaúcha de<br />
Supermercados e proprietário de 13 supermercados <strong>na</strong> capital, foi punido com uma<br />
multa de 27 mil cruzados. Alertados por consumidores indig<strong>na</strong>dos, os fiscais<br />
apareceram <strong>na</strong> filial do bairro Cidade Baixa. Ali, o empresário “foi vaiado, quando<br />
tentava explicar-se aos fiscais, pela multidão de clientes acotovelados entre as<br />
prateleiras”. 45 Em Ipatinga (MG), o gerente do Hipermercado Jumbo, Valtenir Via<strong>na</strong>,<br />
foi pego em pleno dia com a remarcadora de preços e também acabou <strong>na</strong> prisão. 46 No<br />
Rio de Janeiro (RJ), um dos casos envolveu a remarcação de preços de um simples pote<br />
de geléia, que fez a popular Cláudia Hele<strong>na</strong> da Silva Ramos reunir uma multidão de 150<br />
43 REVISTA VEJA, São Paulo: 05 mar. 1986, p. 23.<br />
44 Ibid., p. 36.<br />
45 REVISTA VEJA, São Paulo: 05 mar. 1986, p. 23.<br />
46 REVISTA ISTO É, São Paulo: 05 mar. 1986, p. 20.<br />
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clientes que varreu a loja em busca de outros produtos com preço acima da tabela. 47<br />
Destes, cerca de 80 foram à delegacia com dois carrinhos, lotados de produtos – a prova<br />
do crime. À imprensa, Cláudia declarou: “Não precisamos ter vergonha de conferir<br />
preços. Temos que brigar por cada centavo. 48 Sintomaticamente, o cortejo recebeu<br />
aplausos por onde passou até a delegacia.<br />
Há poucos momentos em que a roda da História gira a favor das pessoas<br />
comuns. Guardadas as devidas proporções, parecia que isto estava ocorrendo. E as<br />
pessoas pareciam saber estar vivenciando um momento especial. Ao fechar um<br />
supermercado onde uma pessoa comum havia sido ofendida pelo gerente com uma série<br />
de palavrões por questio<strong>na</strong>r o preço dos ovos dias antes, o delegado-regio<strong>na</strong>l da<br />
SUNAB no Recife (PE), Otávio Augusto Cavalcanti, declarou, muito aplaudido pelos<br />
consumidores: “Para mim não existe nem grande nem pequeno empresário e sim maior<br />
ou menor infrator”. 49 Mamede Paes Mendonça, então proprietário de extensa rede de<br />
supermercados, que dizia não dormir “tranqüilo quando não vende barato”, 50 foi objeto<br />
de troça do delegado regio<strong>na</strong>l da SUNAB em Salvador (BA), que afirmou: “Acho que<br />
ele então não está dormindo tranqüilo há um bom tempo”. 51 O infortúnio dos ricos era<br />
percebido pelos pobres como uma espécie de justiça. Uma inédita – ou rara – inversão<br />
da ordem.<br />
Deferência, intimidação e violência: as multidões e as autoridades<br />
As autoridades exibiam um comportamento favorável à população, como vimos<br />
em exemplos anteriores. Nada mais compreensível, uma vez que as mesmas estavam<br />
cientes de que há uma espécie de “negociação entre forças <strong>sociais</strong> desiguais em que os<br />
mais fracos ainda têm direitos reconhecidos sobre os mais fortes” (THOMPSON,<br />
1998:260). Assim, além de compreender este dado da realidade, digamos, mais<br />
propriamente “moral”, as autoridades necessitam operar sobre consensos, e não sobre<br />
permanente conflito com a maioria:<br />
47 REVISTA ISTO É, São Paulo: 12 mar. 1986, p. 35.<br />
48 Ibid.<br />
49 Ibid.<br />
50 Ibid.<br />
51 Ibid.<br />
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Porém, uma vez mais, os distúrbios eram uma calamidade social que devia<br />
ser evitada mesmo a um custo alto. O custo podia ser o de encontrar um<br />
meio-termo entre o “preço econômico” elevado no mercado e o preço<br />
“moral” tradicio<strong>na</strong>l determi<strong>na</strong>do pela multidão (THOMPSON, 1998:192).<br />
Pronunciamentos e mesmo ações favoráveis de autoridades em situações como<br />
estas a favor da população também foram encontradas nos motins do século XVIII. E.<br />
P. Thompson recorre ao elucidativo exemplo de Lord Kenyon, presidente do Supremo<br />
Tribu<strong>na</strong>l inglês, que se posicionou claramente contrário aos interesses capitalistas,<br />
quando defendeu que o atravessamento de mercadorias deveria continuar a ser um<br />
delito, pois “é uma medida essencial para a existência do país”. Segundo Kenyon,<br />
“quando as pessoas sabem que há uma lei a que recorrer, isso acalma suas mentes”, e<br />
acaba com a ameaça de “insurreição” (THOMPSON, 1998:211).<br />
A atitude acima não foi a única. Ao contrário, era um tipo de atitude muito<br />
comum, à semelhança (e guardadas as devidas proporções) das que vimos relativas ao<br />
Cruzado. Contudo, há gradações entre as diversas situações. Podemos vislumbrar que<br />
há as que possuem abrangência geral e as que operam localmente. O evento envolvendo<br />
Lord Kenyon, por exemplo, teve abrangência geral. Entretanto, como no Cruzado<br />
haviam as situações localizadas – algumas delas depois tor<strong>na</strong>das gerais pela cobertura<br />
jor<strong>na</strong>lística – envolvendo a população, seus inimigos no mercado e a autoridade, nos<br />
protestos estudados por Thompson isso também era comum. Em 1795, por exemplo, ele<br />
descreve um motim em Seven Dials, onde um magistrado londrino se deparou com uma<br />
multidão demolindo uma padaria acusada de vender pão com peso indevido. Ao invés<br />
de repreender a multidão pelo ataque à propriedade privada ou coisa semelhante, o<br />
magistrado, ao constatar que o peso realmente estava incorreto, distribuiu todo o<br />
estoque de pão à multidão (THOMPSON, 1998:175).<br />
As demonstrações de algum tipo de deferência, gratidão ou respeito às<br />
autoridades por parte das pessoas comuns integram o teatro desse tipo de ação coletiva.<br />
Nessa perspectiva, tor<strong>na</strong>-se possível compreender a “devoção” popular ao presidente<br />
José Sarney ou ao seu festejado ministro da Fazenda Dilson Fu<strong>na</strong>ro, 56 bem como as<br />
56 “Em todos os lugares por onde circulou desde a edição do pacote econômico de 28 de fevereiro – da<br />
Escola de Guerra Naval ao Congresso, auditórios o aplaudiram de pé”. REVISTA VEJA, São Paulo:<br />
19 mar. 1986, p. 36; Por incrível que possa parecer, uma missa em prol da saúde de Fu<strong>na</strong>ro – que<br />
sofria de câncer linfático – atraiu 1000 populares a uma igreja em Curitiba [!]. As pessoas foram<br />
atraídas por um anúncio de jor<strong>na</strong>l mandado publicar <strong>na</strong> Gazeta do Povo, que dizia: “Em intenção de<br />
vida longa ao Sr. Ministro Dilson Fu<strong>na</strong>ro”. Cf. ASSIS, op. cit., p. 153.<br />
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demais autoridades presentes aos atos públicos de fechamentos de supermercados. Eles<br />
passaram a ser importante <strong>na</strong> medida em que sua atuação se ajustava ao sistema de<br />
valores da população. Nesse sentido, é verdade que podemos dizer que era como se<br />
tivessem deixado sua condição huma<strong>na</strong> comum para figurar de modo especial no afeto<br />
popular, como espécies de heróis que subverteram a ordem em favor dos menos<br />
aquinhoados.<br />
No caso inglês, Thompson lembra o quanto era difícil reprimir uma multidão<br />
que alegremente gritava “Deus, Salve o Rei”. Não seria nesse sentido a famosa frase<br />
“em nome do presidente Sarney eu fecho esse supermercado”? Nada melhor que ter a<br />
Polícia a seu lado, sobretudo para uma população com experiência recente de violência<br />
policial contra os setores populares. Agora, a força policial estava ali para prender os<br />
ricos [!]. Creio que fazia todo sentido – se entendermos como estratégias que fazem<br />
parte da cultura política de então – a deferência a Sarney, a Fu<strong>na</strong>ro e até mesmo às<br />
autoridades que estavam presentes às interdições da SUNAB. Assim fica mais fácil<br />
entender os aplausos que recebiam as autoridades sempre que baixavam as portas dos<br />
estabelecimentos e colocavam a faixa que dizia: “Este estabelecimento foi interditado<br />
pela SUNAB por estar praticando preço acima do autorizado”. 58<br />
Como nos motins a<strong>na</strong>lisados por Thompson, a presença constante da população<br />
nos estabelecimentos comerciais se constituía em estratégia tanto para fazer acontecer<br />
quanto para manter as conquistas. Essa presença tinha o efeito de intimidar não somente<br />
os empresários mas também o governo, o mesmo ao qual a população demonstrava<br />
deferência para lembrá-lo o tempo todo de que lado ele deveria ficar. Fazendo a<strong>na</strong>logia<br />
com as guerras, Thompson lembra o quanto a expectativa de motins, por si só, tem<br />
efeito sobre os que detêm (ou tem que proteger) a propriedade (THOMPSON,<br />
1998:187). Naturalmente, é de se esperar que os últimos, tanto quanto possível, se<br />
esforcem por manter a paz social. Em alguns casos, ela pode – paradoxalmente – ser<br />
mantida fazendo-se uso da violência. Brasílio Sallum Jr. (in SOLA, 1988:136) explica<br />
que a acolhida popular do Cruzado foi tão avassaladora “que mesmo os setores<br />
empresariais prejudicados pelo congelamento não podiam expressar publicamente sua<br />
divergência, sob pe<strong>na</strong> de reações contrárias até violentas”.<br />
58 REVISTA VEJA, São Paulo: 26 mar. 1986, p. 95.<br />
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De fato, a violência existiu, como era de se supor, uma vez que o comércio em<br />
geral, afirmava ter necessidade de remarcar os preços. De acordo com reportagem de<br />
Veja, “em todos os Estados do país registraram-se não só manifestações de simpatia à<br />
coragem com que agora se enfrenta a inflação”. Em seguida, informou que no Rio de<br />
Janeiro, ocorrera “selvageria”, devido “ao descontentamento popular contra<br />
comerciantes que remarcavam seus preços covardemente”, depredando-se lojas. 61 Por<br />
outro lado, é interessante observarmos que a repressão aos populares foi débil. Isto<br />
porque, como o próprio Thompson descobriu,<br />
a questão da ordem não era absolutamente simples. A i<strong>na</strong>dequação das forças<br />
civis se combi<strong>na</strong>va com a relutância em empregar a força militar. Os próprios<br />
oficiais tinham bastante humanidade, e estavam rodeados de muita<br />
ambigüidade quanto a seus poderes em confrontos civis, manifestando uma<br />
marcante falta de entusiasmo por esse “serviço odioso” (THOMPSON,<br />
1998:188).<br />
Há que se lembrar que os integrantes das forças policiais também compartilhavam dos<br />
valores (e da condição social) do restante da população pobre. Aliás, havia legitimidade<br />
em reprimir, por exemplo, uma manifestante em cuja carteira havia uma foto do<br />
ministro da Fazenda, como se fosse a de um <strong>na</strong>morado? Imaginemos o constrangimento<br />
causado ao governo se ela dissesse a um delegado, chorando, que não entendia porque<br />
houvera sido presa, pois estava ali fazendo cumprir o que o próprio governo<br />
determi<strong>na</strong>ra. E se, em seguida, sacasse a foto da carteira e repetisse as mesmas palavras<br />
que disse a um repórter de Veja: “Ninguém fez tanto por nós”. 63 Me parece que a noção<br />
de estratégia nos auxilia a compreender esse comportamento popular, típico do<br />
Cruzado. Assim se explica o já citado “o governo nos devolveu a dignidade”. 64<br />
Vimos as diversas formas de intimidar serviam como recado tanto para o<br />
governo aliado quanto para o empresariado, que estava no pólo oposto. Entretanto, era<br />
de se esperar que os recados endereçados para os primeiros fossem, em certa medida,<br />
61 REVISTA VEJA, São Paulo: 05 mar. 1986, p. 21. Registre-se o fato da matéria atribuir como covardia<br />
a atitude de aumentar os preços, o que revela que o veículo estava a favor do grosso de seus leitores,<br />
que concordavam com as medidas. No limite, pode revelar que não era possível assumir posição<br />
diferente sem encontrar severa oposição por parte dos leitores, ainda que a revista quisesse defender<br />
posições mais liberais. O uso do termo selvageria para classificar a revolta parece encontrar <strong>na</strong><br />
covardia dos comerciantes um adversário à altura. Assim, a revista não ficava mal com seus leitores,<br />
situados nos dois pólos do conflito. Embora tenha se colocado a favor do plano, não ficava bem – até<br />
por razões existenciais – apoiar o ataque à propriedade. [sem grifos nos origi<strong>na</strong>is]<br />
63 REVISTA VEJA, São Paulo: 19 mar. 1986, p. 36.<br />
64 Ibid., p. 36.<br />
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sutis, ao passo que ao empresariado fossem bem diretos, como demonstraram exemplos<br />
anteriores. Um trecho de editorial do jor<strong>na</strong>l O Estado de São Paulo, evidencia o quanto<br />
era realmente difícil para os defensores da economia de mercado se colocarem contra o<br />
congelamento de preços no Brasil de 1986: “Quando o povo tem prazer em exercer<br />
funções de polícia contra os comerciantes (<strong>na</strong> malhação do Judas, em Brasília, não se<br />
escreveu no boneco „os ricos‟?)”... (FONSECA, 1994:234). O recado aqui pode ter sido<br />
tão direto quanto os quebra-quebras ocorridos.<br />
Obviamente, a manutenção deste clima de animosidade interessava ao governo,<br />
pois desviava as atenções de sua ineficiência, e ao povo, que garantia sua liberdade – no<br />
interior de certos marcos – para continuar sua luta pela manutenção do congelamento.<br />
Interessava, portanto, ao governo, deixar bem claro de que lado estava. Nada que tenha<br />
escapado a Thompson, que observou esta postura <strong>na</strong> gentry, a qual obtinha com isso a<br />
grande vantagem de continuar no poder: “Mas é claro que tinham a intenção de produzir um<br />
efeito simbólico, eram uma demonstração para os pobres de que as autoridades agiam<br />
vigilantemente para defender seus interesses” (THOMPSON, 1998:160). Por outro lado, no<br />
que diz respeito ao comportamento dos pobres, é freqüente “encontrar frases rebeldes,<br />
geralmente (suspeita-se) para gelar o sangue dos ricos com seu efeito teatral”. Quanto a<br />
isso, o exemplo da malhação do Judas é emblemático.<br />
Thompson adverte que não devemos exami<strong>na</strong>r este tipo de motim em busca de<br />
“intenções políticas manifestas e articuladas, embora de vez em quando elas apareçam”<br />
(THOMPSON, 1998:193). Entretanto, há que ressaltar que se por um lado não podemos<br />
classificar as ações da multidão em termos de atividades políticas – partidária, sindical,<br />
estudantil etc. –, não significa que suas ações sejam apolíticas, muito pelo contrário. Ao<br />
agir coletivamente (ao lado do Estado ou contra o mesmo), os populares demonstram ter<br />
noção de que operam no campo da política e que, nessa acepção, fazem parte dela e/ou<br />
acreditam ter o poder de interferir <strong>na</strong> mesma.<br />
Considerações fi<strong>na</strong>is<br />
O congelamento de preços acabou da pior forma possível. E no pior momento<br />
possível. Em 21 de novembro de 1986, ape<strong>na</strong>s seis dias após a consagradora eleição que<br />
garantiu estrondosa vitória ao PMDB, 68 o governo Sarney, talvez acreditando que a<br />
68 No dia 15 de novembro de 1986 a população havia dado ao PMDB a maior votação da história do país<br />
A<strong>na</strong>is do XXVI Simpósio Nacio<strong>na</strong>l de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 15
fantástica adesão que possuía fosse acrítica, cega, tomou medidas que fizeram com a<br />
inflação retor<strong>na</strong>sse de maneira virulenta, sendo percebida pela população quase que<br />
imediatamente. 69 Porém, <strong>na</strong>da disso impediu a fúria popular, por ocasião o ocaso do<br />
plano. As pessoas souberam tanto apoiar quando lhes parecia a melhor coisa a fazer,<br />
quanto protestar quando tudo ruiu, o que reforça a proposta de que a adesão foi<br />
eminentemente condicio<strong>na</strong>l. A partir dos violentos aumentos de preços de novembro de<br />
1986 que desfizeram os pressupostos morais do Cruzado, entre os coros mais cantados<br />
pelas multidões em protestos, greves e quebra-quebras estava “O povo não esquece,<br />
Sarney é PDS”. 73 Amargando enorme impopularidade, restou a José Sarney arrastar seu<br />
(des)governo até 1990, sob forte pressão popular, que nem mesmo os meios de<br />
comunicação foram capazes de arrefecer.<br />
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Paulo: Companhia das Letras, 1987.<br />
com 22 dos 23 estados, 44 das 49 cadeiras no Se<strong>na</strong>do que estavam em disputa e a maioria em pelo<br />
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69 SOLA, Lourdes. Choque heterodoxo e transição democrática sem ruptura: uma abordagem<br />
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73 Jor<strong>na</strong>l do Brasil: Rio de Janeiro, 1º jul. 1987. Caderno Cidade.<br />
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Letras, 1998.<br />
______________. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Organização:<br />
Antonio Luigi Negro, Sergio Silva. Campi<strong>na</strong>s, SP: Ed. da UNICAMP, 2001.<br />
A<strong>na</strong>is do XXVI Simpósio Nacio<strong>na</strong>l de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 17