Contocrônicas, umas Tantas - KBR Editora Digital
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Jacob B. Goldemberg<br />
nático —, a família em volta e em prantos. Teve alguma dii culdade<br />
em abrir caminho, com a bolsa e o laptop batendo contra uns<br />
e outros; agoniada, viu o caixão começar a se mover em direção<br />
a seu destino i nal. Neste momento, o salto agulha se quebrou<br />
— um traje prático mas nem tanto, há limites que a elegância<br />
não permite desconsiderar —, a executiva perdeu o equilíbrio, o<br />
laptop escapou-lhe da mão e, leve, como ela tanto procurara, foi<br />
lançado à frente caindo sobre a esteira; desesperada, ela tentou<br />
pegá-lo se projetando contra a urna funerária e arrastando para<br />
o solo sua elegância, que já nem era tanta, e a bandeira do mais<br />
querido, aos gritos de “ele é meu!”, “parem o caixão!”<br />
Nesta altura da cerimônia, o responsável pelo acionamento<br />
nem tomou conhecimento dos gritos e choros — o equipamento<br />
não para —, acostumado ao desespero do cônjuge sobrevivente,<br />
a cena é sempre a mesma... Dentre as expressões dos circunstantes<br />
— espanto, surpresa, susto —, a que tornou o momento mais<br />
constrangedor foi a da esposa do falecido, que nem a conhece e,<br />
certamente, se questiona: “Quem é essa louca? Será que o safado<br />
tinha... e eu não sabia? Ele não valia tanto desespero... E ainda é<br />
vascaína, a safada!”<br />
Em meio à inusitada coreograi a, para um evento dito fúnebre,<br />
Beethoven atacou de Nona — um dos mistérios da eletrônica<br />
de ponta, essa incompatibilidade entre o telefone celular e<br />
a campainha de telefone; só são aceitos toques escalafobéticos,<br />
quanto mais, melhor; e alto, para os devidos psiusss nos locais favoritos:<br />
cinema, teatro, hospitais, igrejas e velórios, e agora, também,<br />
o crematório.<br />
Bolsa aberta, agenda e tudo o mais espalhados pelo chão<br />
e embolada com o glorioso estandarte rubro-negro, a executiva<br />
tenta, em posição ingrata, recolher os escombros; os mais próximos<br />
se recompõem, tentam ajudá-la — os homens, naturalmente!<br />
—, uns com olhar reprovador, outros segurando o riso e arriscando<br />
um olhar galante.<br />
— Cadê meu celular! Ei, peraí, não pisa! Tira a porra dessa<br />
bandeira daqui!<br />
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