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PDF, 60KB - CEAS | Centro de Estudos de Antropologia Social

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VIDEO TOURS<br />

Maria Car<strong>de</strong>ira da Silva *<br />

Etnográfica, Vol. VII (2), 2003, pp. 451-458<br />

Vi<strong>de</strong>o Tours<br />

Realizados em períodos diferentes, <strong>de</strong>bruçando-se sobre contextos distantes<br />

uns dos outros (mas se calhar equidistantes em termos <strong>de</strong> exotismo para a<br />

maioria <strong>de</strong> uma audiência eminentemente oci<strong>de</strong>ntal), Mon Village Taoping <strong>de</strong><br />

Leng Shang (1998), Sight Unseen <strong>de</strong> Nicholas Kurzon (1996) e Cannibal Tours<br />

<strong>de</strong> Dennis O’Rourke (1988) abordam uma questão fundamental da contemporaneida<strong>de</strong><br />

– a do relativismo cultural – que é, ao mesmo tempo, um tópico<br />

inspirador para a revisão epistemológica das ciências sociais, particularmente<br />

da antropologia. 1 Todos o fazem sob o prisma do encontro turístico, da<br />

interacção cultural aparentemente pacífica do turismo. Não é por acaso: cada<br />

vez mais as ciências sociais se <strong>de</strong>bruçam sobre o turismo e vários foram os<br />

autores que tomaram o turista como paradigma do homem contemporâneo<br />

(MacCannel), 1989 [1973] e John Urry, 1991 são apenas os mais sonantes).<br />

MacCannel já nos anos 70 apresentava o turismo como a forma contemporânea<br />

por excelência da ilusão do conhecimento simultaneamente<br />

profundo, autêntico e global face à fragmentação progressiva do mundo e da<br />

socieda<strong>de</strong> típica da contemporaneida<strong>de</strong>. Tanto em Sight Unseen como, <strong>de</strong><br />

modo mais óbvio, em Cannibal Tours encontramos duas figuras que evocam<br />

essa i<strong>de</strong>ia. No primeiro, uma imagem fugitiva do chapéu <strong>de</strong> um turista<br />

que, em Bali, ostenta a proveniência do Rio <strong>de</strong> Janeiro (como aquelas “lousy<br />

T-shirts that my sister bought me in London” ou “in Cancun”, que passam<br />

a integrar a indumentária <strong>de</strong> muitos turistas <strong>de</strong> carreira e que <strong>de</strong>nunciam a<br />

acumulação <strong>de</strong> experiência turística capitalizada, também, socialmente). No<br />

segundo, <strong>de</strong> modo mais explorado, é o personagem <strong>de</strong> um turista alemão –<br />

uma espécie <strong>de</strong> “papa-<strong>de</strong>stinos” – quem nivela o mundo pelas suas viagens,<br />

* Departamento <strong>de</strong> <strong>Antropologia</strong> da Universida<strong>de</strong> Nova <strong>de</strong> Lisboa.<br />

1 No 25.º aniversário do Instituto <strong>de</strong> Ciências Sociais da Universida<strong>de</strong> do Minho, em Outubro <strong>de</strong> 2002, numa tentativa<br />

inteligente <strong>de</strong> captar público para a sua disciplina, a Secção <strong>de</strong> <strong>Antropologia</strong> daquela Universida<strong>de</strong> organizou uma<br />

mostra <strong>de</strong> filme etnográfico, cujo primeiro dia ficou subordinado ao tema do turismo e no qual foram exibidos os<br />

filmes Mon Village Taoping <strong>de</strong> Leng Shang (1998), Sight Unseen <strong>de</strong> Nicholas Kurzon (1996) e Cannibal Tours <strong>de</strong> Dennis<br />

O’Rourke (1988). Tanto a Secção <strong>de</strong> <strong>Antropologia</strong> da Universida<strong>de</strong> do Minho quanto o <strong>Centro</strong> <strong>de</strong> <strong>Estudos</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Antropologia</strong> <strong>Social</strong> (ISCTE) – em cuja vi<strong>de</strong>oteca po<strong>de</strong>mos encontrar estes filmes – se aperceberam já da importância<br />

do filme etnográfico para a promoção da antropologia (para além da relevância do filme como suporte etnográfico,<br />

que aqui não nos ocupará). Foi por ocasião <strong>de</strong>ssa mostra que, em ambiente acolhedor, <strong>de</strong>senvolvi a seguinte reflexão<br />

em torno das formas contemporâneas do turismo espoletada pelos filmes então exibidos. Mantenho aqui o tom informal<br />

com que foi expressa e <strong>de</strong>batida para um público que se pretendia heterogéneo e que havia assistido previamente<br />

à exibição dos filmes em causa. Agra<strong>de</strong>ço o convite e acolhimento da Manuela Ivone Cunha e o <strong>de</strong>bate, que<br />

infelizmente não pu<strong>de</strong>mos então <strong>de</strong>senvolver mais, com a Manuela Palmeirim. Este foi um dos momentos reveladores<br />

do esforço que ambas têm vindo a <strong>de</strong>senvolver no sentido do a<strong>de</strong>nsamento das re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> antropólogos em Portugal.<br />

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Maria Car<strong>de</strong>ira da Silva<br />

estabelecendo constantes comparações entre os variadíssimos sítios turísticos<br />

cumulativamente visitados e horizontalizando as diferenças (construindo um<br />

horizonte plano, horizontal) através da sua experiência turística.<br />

Foi talvez por causa <strong>de</strong>ssa ilusão que os turistas exibiam do conhecimento<br />

global do mundo (e talvez por inveja) que, sobretudo a partir dos<br />

anos 80, eles começaram a povoar uma série <strong>de</strong> estudos antropológicos em<br />

que eram consi<strong>de</strong>rados uma espécie <strong>de</strong> rivais i<strong>de</strong>ntitários dos antropólogos<br />

(ver Crick 1995 e Bruner 1995 e 1996). Afinal, eles iam para os mesmos sítios<br />

que nós, observar as mesmas socieda<strong>de</strong>s exóticas, para <strong>de</strong>stinos cada vez mais<br />

longínquos… à procura <strong>de</strong> uma suposta autenticida<strong>de</strong> cultural. E, em boa<br />

medida, a observação dos turistas contribuiu <strong>de</strong> forma evi<strong>de</strong>nte para a<br />

objectivação da própria postura dos antropólogos, po<strong>de</strong>r-se-ia mesmo dizer<br />

da cultura dos antropólogos. O que encontramos nestes filmes é também isso:<br />

<strong>de</strong> forma mais ou menos velada, os antropólogos estão presentes e são,<br />

também eles, sujeitos a crítica <strong>de</strong>sconstrutiva.<br />

Mas antes <strong>de</strong> terem este efeito objectificador da cultura dos antropólogos<br />

(afinal, o que é que confere especificida<strong>de</strong> a nós antropólogos e ao nosso<br />

conhecimento disciplinar, o que é que nos distingue dos turistas ou viajantes?),<br />

e certamente muito antes <strong>de</strong> provocarem o mesmo processo reflexivo<br />

sobre os realizadores <strong>de</strong> cinema documental (o que justificaria, também, a sua<br />

crescente presença no documentário), os turistas exerceram-no, e <strong>de</strong> forma<br />

mais óbvia, claro está, em relação aos habitantes mais permanentes dos sítios<br />

visitados. Os turistas são espoletadores privilegiados da autoconsciência da<br />

cultura dos ex-primitivos. Este é o pressuposto geral dos três filmes que, assim,<br />

ultrapassam a lógica simplista do global versus local e as posturas puristas do<br />

impacte cultural e do binarismo básico da oposição das culturas, cuja tradução<br />

mais primária são os enunciados da mera assimilação cultural e do<br />

eminente <strong>de</strong>saparecimento da cultura autêntica por via do turismo.<br />

Aquilo a que assistimos em todos estes filmes é a uma atitu<strong>de</strong> participativa<br />

das populações locais – subordinadas, é verda<strong>de</strong>, por um se<strong>de</strong>ntarismo<br />

que os restringe face à mobilida<strong>de</strong> dos estrangeiros, o que continua<br />

a <strong>de</strong>nunciar relações políticas e económicas normalmente assimétricas entre<br />

populações visitadas e populações visitantes – que, no entanto, perante a<br />

consciencialização da mais-valia da cultura mercadorizada por via do turismo<br />

(as activida<strong>de</strong>s turísticas exibidas nos três filmes são formas básicas <strong>de</strong><br />

consumo <strong>de</strong> lugares: as compras, as fotos…) põem mãos à obra para incorporar<br />

os recursos <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong>ssa capitalização na gestão dos seus quotidianos.<br />

As populações visitadas fazem-no <strong>de</strong> formas diferentes e os filmes<br />

mostram também isso. Portanto, o visionamento dos três enriquece-os mutuamente.<br />

De outro modo po<strong>de</strong>ríamos cair num extremo oposto ao <strong>de</strong>ssa visão<br />

clássica dos impactes culturais <strong>de</strong>strutivos do turismo e pensar – <strong>de</strong> modo<br />

452


Vi<strong>de</strong>o Tours<br />

igualmente essencialista – que todas as socieda<strong>de</strong>s e todos os indivíduos têm<br />

a mesma capacida<strong>de</strong> reactiva e recicladora face aos seus efeitos. De facto, isso<br />

também não é verda<strong>de</strong>.<br />

Em Mon Village Taoping vemos que é Long Xiaoqiong – uma jovem<br />

chinesa cujo percurso biográfico, que culmina no retorno à sua al<strong>de</strong>ia natal,<br />

terá certamente contribuído para o seu empenhamento na tarefa da promoção<br />

da sua cultura – quem dirige, aparentemente, os trabalhos <strong>de</strong> transformação<br />

da “sua” al<strong>de</strong>ia em <strong>de</strong>stino turístico. Estamos perante o exemplo mais óbvio<br />

da “encenação da cultura” (MacCannel 1989 [1973]): o palco da “taopinguização”<br />

faz lembrar, em muito (até no autoritarismo e na disciplina com que<br />

Long Xiaoqiong dirige as performances turísticas), as iniciativas do Estado<br />

Novo para a promoção da “al<strong>de</strong>ia mais portuguesa”.<br />

Em Sight Unseen vemos como vários membros da mesma família balinesa<br />

integraram <strong>de</strong> modos diferentes, e com sucesso aparente, os recursos que<br />

o turismo e outras importações concomitantes trouxeram à ilha num dia-a-<br />

-dia que, alheio às reclamações nostálgicas <strong>de</strong> alguns turistas <strong>de</strong>sapontados<br />

pela “falta <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong>”, pela “corrupção cultural” evi<strong>de</strong>nte na proliferação<br />

dos Pizza Hut e dos Kentucky Fried Chicken, continua a ser o do<br />

“típico” Bali.<br />

Cannibal Tours é, talvez, dos três, aquele que vai mais longe (o realizador<br />

já foi em várias situações acusado pelo seu excessivo zelo caricatural)<br />

nessa tentativa simultânea <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar o imperialismo inerente ao turismo<br />

(é o que ele faz quando caricatura e sublinha o etnocentrismo dos turistas)<br />

mas <strong>de</strong>, ao mesmo tempo (querendo também com isso, imagino, <strong>de</strong>smontar<br />

os pressupostos paternalistas e igualmente etnocêntricos que projectam<br />

mera passivida<strong>de</strong> nos nativos), evi<strong>de</strong>nciar a consciência e a participação dos<br />

“ex-nativos” na encenação daquilo que MacCannel <strong>de</strong>signa como a “versão<br />

mais acabada do mito capitalista” (1992: 28). Diz MacCannel que o encontro<br />

entre o turista e o seu outro é a cena <strong>de</strong> uma utopia partilhada do proveito<br />

sem exploração, logicamente o objectivo último <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> “economia<br />

canibal” partilhada por ex-primitivos e pós-mo<strong>de</strong>rnos – uma versão do sonho<br />

capitalista <strong>de</strong> “todos a enriquecerem juntos” (MacCannel 1992: 29).<br />

De facto, em Cannibal Tours vemos os “primitivos” da Nova Guiné<br />

queixando-se do facto <strong>de</strong> serem explorados. Mas fazem-no com parcimónia<br />

e controladamente: com o cuidado <strong>de</strong> não tirar valor à sua “primitivida<strong>de</strong>”.<br />

Isto acontece assim porque eles têm mais experiência nesses encontros mercadorizados<br />

(os turistas, em princípio, só lá vão uma vez, ao passo que eles<br />

recebem muitos turistas), o que também se evi<strong>de</strong>ncia no seu controlo retórico<br />

(o velho ancião local faz um relato da história do canibalismo na ilha e<br />

termina rematando: “este é o fim da história”). Na realida<strong>de</strong>, eles parecem<br />

mais conscientes da encenação em curso. E nessa encenação dizem: “os<br />

turistas são a reencarnação dos espíritos canibais”, ou seja: canibalizam os<br />

453


Maria Car<strong>de</strong>ira da Silva<br />

turistas. O filme explora e acentua esse efeito <strong>de</strong> “primitivização” dos turistas:<br />

mesmo nas suas indumentárias eles acabam por aparecer mais “nus” do que<br />

os nativos da Nova Guiné e a cena final <strong>de</strong> encarnação dos selvagens por<br />

travestismo (em que os turistas se pintam e mascaram <strong>de</strong> nativos – um<br />

estádio habitual em muitos rituais turísticos) serve como apogeu <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ia.<br />

Este é, também, o filme que evi<strong>de</strong>ncia mais cruamente as raízes comuns<br />

a muitos dos processos culturais em curso em zonas <strong>de</strong> turismo exótico, e não<br />

é por acaso que inci<strong>de</strong> sobre um <strong>de</strong>stino também explorado por antropólogos.<br />

Tal como Bali, a Nova Guiné – e sobretudo a região do Sepik – é uma das<br />

terras sagradas da antropologia, que funcionou como uma espécie <strong>de</strong> laboratório<br />

da antropologia e do relativismo cultural. Foi aqui, como lembra ainda<br />

MacCannel (1994), que Margaret Mead, Gregory Bateson e Reo Fortune<br />

analisaram – sob uma atmosfera romanceada (que cobriu também as célebres<br />

trocas <strong>de</strong> marido <strong>de</strong> Mead) – as oposições e ambivalências do sexo e do<br />

género, da morte e do canibalismo, imortalizadas em clássicos como Naven<br />

<strong>de</strong> Bateson (1958 [1936]) ou Growing Up in New Guinea <strong>de</strong> Mead (1930),<br />

obras que estruturaram o imaginário dos antropólogos, dos psicanalistas<br />

e não só.<br />

Na verda<strong>de</strong>, o que se revela nestes filmes e, mais uma vez, sobretudo<br />

em Cannibal Tours, é que turismo e antropologia fazem parte da formação<br />

discursiva do colonialismo (Bruner 1989). No caso concreto da Nova Guiné,<br />

o canibalismo (a cultura) foi pacificado pelos militares, expurgado pelos<br />

missionários, analisado pelos antropólogos e reconstruído, agora sem perigo,<br />

pelos e para os turistas. E foi isso que aconteceu em muitos dos territórios<br />

contemporâneos <strong>de</strong> turismo.<br />

O mesmo se passou em Bali, embora isso não esteja tão exposto em<br />

Sight Unseen, porque enquanto O’Rourke está mais preocupado em incidir<br />

sobre os processos culturais dos turistas e as modalida<strong>de</strong>s do encontro com<br />

o seu outro, Nicholas Kurzon <strong>de</strong>bruça-se propositadamente sobre a vida<br />

local, para lá do enfoque meramente turístico. Mesmo assim, também no seu<br />

filme existem referências à “balinização” <strong>de</strong> Bali empreendida por artistas<br />

e intelectuais e pelos governos locais. Fala-se na “goona-goonização”, na<br />

erotização da “Ilha dos Deuses”, o “Paraíso Perdido” hindu numa região<br />

maioritariamente islâmica. Não é dito, mas nós sabemos, que Bateson e Mead<br />

também por lá passaram e foram, inclusivamente, responsáveis por coreografias<br />

que filmaram nos anos 30 (encenando-as durante o dia, por causa da<br />

luz, quando se tratava <strong>de</strong> ritos noturnos; cf. Bruner 1996). Estas coreografias,<br />

que foram mais tar<strong>de</strong> etnografadas por Geertz, fazem hoje parte dos pacotes<br />

turísticos, com uma autenticida<strong>de</strong> estratigráfica incontestavelmente legitimada<br />

pelos antropólogos. Na verda<strong>de</strong>, a cultura <strong>de</strong> Bali está hoje <strong>de</strong> tal forma<br />

imbuída <strong>de</strong> turismo que alguns autores chegam mesmo a tomar o turismo<br />

como “a cultura balinesa” (ver Picard 1995: 47, 55- 56).<br />

454


Vi<strong>de</strong>o Tours<br />

O já clássico Cannibal Tours mereceu algumas críticas que importa<br />

aqui retomar (ver Bruner 1989). O’Rourke é acusado <strong>de</strong> negligenciar a<br />

contextualização da dinâmica socioeconómica endógena, <strong>de</strong> empreen<strong>de</strong>r<br />

uma uniformização caricatural dos turistas e, também, das populações<br />

locais, <strong>de</strong> secundarizar a presença importante dos intermediários (guias,<br />

intérpretes, recepcionistas e outros funcionários turísticos) e <strong>de</strong> omitir a<br />

sua própria presença no encontro turístico que regista. Embora a pertinência<br />

<strong>de</strong> algumas <strong>de</strong>stas críticas a Cannibal Tours possa ser questionável, a<br />

verda<strong>de</strong> é que Sight Unseen e Taoping, os dois filmes mais recentes, parecem<br />

realmente mais atentos a alguns dos tópicos sensíveis apontados a<br />

O’Rourke.<br />

Em relação à primeira crítica (<strong>de</strong>scontextualização da dinâmica<br />

socioeconómica endógena), Sight Unseen toma, justamente, a cultura como um<br />

processo e, como tal, não isola a activida<strong>de</strong> turística <strong>de</strong> outras ocorrências em<br />

curso. Na verda<strong>de</strong>, o que nos revela é um processo <strong>de</strong> mercadorização<br />

interno, <strong>de</strong>corrente do turismo, mas paralelo a ele: um processo que envolve<br />

a formação <strong>de</strong> uma empresa familiar – o pai é sacerdote, a mãe produz<br />

oferendas e o filho filma as cerimónias – em torno da mercadorização da<br />

activida<strong>de</strong> cerimonial local, que foi possível pelas alterações <strong>de</strong> ritmo a que<br />

passaram a ser sujeitos os trabalhadores da activida<strong>de</strong> turística (e o narrador<br />

comenta: “a tradição está em constante transformação”). Por seu turno, Mon<br />

Village Taoping também mostra claramente o papel activo da população no<br />

processo <strong>de</strong> turistificação e, em relação ao segundo tópico crítico (a ausência<br />

dos intermediários nos encontros turísticos), a centralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Long<br />

Xiaoqiong torna bem explícita a importância dos percursos individuais e<br />

<strong>de</strong>smistifica a i<strong>de</strong>ia – que ensombra ainda alguma da antropologia e da<br />

sociologia da cultura que se <strong>de</strong>dica a estes processos – <strong>de</strong> que as comunida<strong>de</strong>s<br />

reagem em bloco ao turismo.<br />

Em relação à omissão do papel do realizador – que, em Cannibal Tours<br />

acaba por, perversamente (e propositadamente?), sublinhar a oposição simplista<br />

entre turistas e primitivos –, Kurzon assume em Sight Unseen que, tal<br />

como um turista, um visitante com uma câmara (logo, também um realizador)<br />

transporta consigo uma imagem pré-formatada do lugar que vem<br />

filmar e, para obviar isso, experimenta timidamente incursões visuais nas<br />

televisões locais e nos filmes produzidos por um dos filhos do sacerdote,<br />

mostrando as diferenças fundamentais que existem entre o modo <strong>de</strong> filmar<br />

do visitante – que procura padrões, no presente, para po<strong>de</strong>r generalizar – e<br />

o modo <strong>de</strong> filmar <strong>de</strong>ste jovem, que procura antes particularida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>talhes<br />

e pessoas, porque filma para a preservação <strong>de</strong> memórias locais e particulares.<br />

O recurso à televisão e à câmara <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o surgem aqui como mais um dos<br />

testemunhos <strong>de</strong> que a “mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>” não mata necessariamente a “tradição”:<br />

antes a po<strong>de</strong> potencializar.<br />

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Maria Car<strong>de</strong>ira da Silva<br />

Bruner, que também trabalhou sobre Bali (1995, 1996), propõe que se<br />

tome este tipo <strong>de</strong> zonas <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino turístico – que ele <strong>de</strong>signa <strong>de</strong> bor<strong>de</strong>rzone<br />

à semelhança do que Renato Rosaldo já propusera para as zonas <strong>de</strong> fronteira<br />

com o México (bor<strong>de</strong>rland, Rosaldo 1988) – como zonas privilegiadas para a<br />

análise dos processos <strong>de</strong> fabricação da cultura. De facto, são zonas <strong>de</strong><br />

criativida<strong>de</strong> cultural por excelência e bons laboratórios para pensarmos a<br />

contemporaneida<strong>de</strong> e a cultura não como um produto – como alguns<br />

antropólogos clássicos as tomaram e como a maioria dos turistas faz, com o<br />

intuito <strong>de</strong> “preservá-la” – mas sim como um processo – e com o intuito <strong>de</strong><br />

“preservar a dignida<strong>de</strong> humana”. E a melhor maneira <strong>de</strong> o fazer é começar<br />

por perceber o sentido <strong>de</strong> “dignida<strong>de</strong> humana” em diferentes lugares e<br />

momentos do mundo.<br />

O que parece querer ser ilustrado em cada um <strong>de</strong>stes filmes é que,<br />

enquanto os turistas parecem movidos pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> parar a história (um<br />

<strong>de</strong>sejo que foi transposto para as ciências sociais por abordagens fixistas do<br />

fim da história e do mapeamento do mundo), as populações visitadas<br />

parecem continuar, como sempre, a <strong>de</strong>senvolvê-la localmente. É a convergência,<br />

mais ou menos pacífica, <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>sejos diferentes – o <strong>de</strong>sejo e expectativa<br />

<strong>de</strong> parar a história que move os turistas e o laborioso empenhamento<br />

das populações visitadas na continuação da história no seu dia-a-dia – que<br />

nos permite imaginar que um terceiro <strong>de</strong>sejo, mais perverso, possa cobiçar,<br />

igualmente, os <strong>de</strong>stinos turísticos carregados <strong>de</strong> história: aquele, mais aflitivo,<br />

que preten<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta feita mudar radicalmente a história e os mapas do mundo<br />

e que parece ser o que move o terrorismo.<br />

Falando da nostalgia do real e do autêntico e do predomínio do<br />

simulacro nas socieda<strong>de</strong>s contemporâneas, Marc Augé (1997) refere que esta<br />

mise en spectacle, esta passagem ao todo ficcional que baralha a distinção<br />

entre o real e o fictício esten<strong>de</strong>-se ao mundo inteiro e diversos factores concorrem<br />

para ela: o turismo, sem dúvida, mas também a ecologia, a televisão,<br />

a Internet. A novida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Augé está em mostrar como o fazem <strong>de</strong> forma<br />

concorrencial e ao mesmo tempo convergente. A guerra termina e o turismo<br />

aparece como uma espécie <strong>de</strong> forma acabada da guerra, <strong>de</strong> saque do mundo.<br />

As agências <strong>de</strong> viagens esquartejam a terra, divi<strong>de</strong>m-na em percursos,<br />

enfiam-na em pacotes turísticos, fazem da natureza um produto. Mas nalguns<br />

casos vão mais longe: servem a guerra ou, noutros casos, a guerrilha, bem<br />

acondicionada mas ao vivo, <strong>de</strong>pois do aperitivo da televisão. Algumas<br />

modificaram os itinerários habituais, por exemplo no Peru, on<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois do<br />

sequestro dos diplomatas pelo movimento Tupac Amaru, passaram a incluir-<br />

-se visitas à embaixada do Japão em Lima, ou na Bósnia, que se tornou,<br />

imediatamente <strong>de</strong>pois da guerra e consequente exportação televisiva, um<br />

<strong>de</strong>stino turístico procurado, seguindo-se-lhes Timor, <strong>de</strong>pois o Afeganistão…<br />

Atentas ao êxito <strong>de</strong> marketing do aperitivo da ficção por imagem, muitas<br />

456


Vi<strong>de</strong>o Tours<br />

agências passaram a servir uma prelibação dos seus <strong>de</strong>stinos na TV por cabo<br />

ou na Internet.<br />

Atentados como os que ocorreram em 1997 no Vale dos Reis, no Egipto,<br />

ou em Bali em 2002 dão razão a Augé, mas complicam, ainda mais, o seu<br />

raciocínio: já não é apenas a guerra que antecipa o turismo ao dar visibilida<strong>de</strong><br />

aos <strong>de</strong>stinos, é o terrorismo que elege os seus alvos pela con<strong>de</strong>nsação simbólica<br />

e também pela visibilida<strong>de</strong> promovida e antecipada pelo turismo. A televisão<br />

vem, a seguir, explorar ingredientes importantes para os media: o exotismo e a<br />

inocência por um lado, o terror e a morte, por outro.<br />

O’Rourke, que fora criticado pelo seu distanciamento quase snob em<br />

relação aos turistas em Cannibal Tours, mudou <strong>de</strong> postura num filme mais<br />

recente e bem mais polémico: The Good Woman of Bangkok (1991). Habituado<br />

a tertúlias <strong>de</strong> filme documental, ele <strong>de</strong>nunciara já o uso re<strong>de</strong>ntor que as<br />

audiências selectas das mostras fazem do documentário, como se este género<br />

cinematográfico, ao retratar, supostamente, a “realida<strong>de</strong>” com mais “verda<strong>de</strong>”,<br />

servisse a absolvição a um público elitista. Os realizadores <strong>de</strong> cinema<br />

documental, ao legitimarem um ponto <strong>de</strong> vista aparentemente distanciado<br />

dos processos que filmam e on<strong>de</strong> o espectador se po<strong>de</strong> colocar <strong>de</strong><br />

forma segura, são muitas vezes tomados como heróis <strong>de</strong> culto, eles próprios<br />

protagonistas porque “reveladores” <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpabilizante<br />

(O’Rourke s/d.).<br />

Já em Cannibal Tours não me parece que O’Rourke queira assumir essa<br />

responsabilida<strong>de</strong>. Pelo contrário: ao ausentar-se do filme (levando consigo o<br />

lugar seguro do realizador), ele acaba por nos obrigar – castigando-nos – a<br />

colocarmo-nos ao lado dos turistas (e isso é doloroso). Mas em The Good<br />

Woman of Bangkok vai ainda mais longe: ele filma o quotidiano <strong>de</strong> uma<br />

prostituta tailan<strong>de</strong>sa em todos os seus <strong>de</strong>talhes mais sórdidos, colocando-se<br />

na posição “real” <strong>de</strong> um cliente – assumindo a culpa e responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

todos os turistas sexuais. Ao fazer isso, não <strong>de</strong>ixa qualquer lugar, qualquer<br />

posição confortável para o espectador. Exige-lhe, pelo contrário, uma atitu<strong>de</strong><br />

activa, autónoma, não induzida, perante a realida<strong>de</strong> que está retratando.<br />

O’Rourke revela que foi necessário filmar a partir da “pior situação possível”<br />

para obrigar o espectador a encontrar o seu próprio lugar e reconhecer algo<br />

acerca <strong>de</strong> si próprio, e este acto <strong>de</strong> reconhecimento é, certamente, o mais<br />

doloroso. E embora se <strong>de</strong>scortine alguma teatralida<strong>de</strong> neste seu gesto – em<br />

si mesmo discutível –, quis referi-lo aqui para que fiquemos alerta e não nos<br />

acomo<strong>de</strong>mos tranquilamente nestes pontos <strong>de</strong> vista, sem dúvida importantes<br />

e sedutores, do cinema documental e etnográfico. Que os filmes nos sirvam<br />

antes <strong>de</strong> poisos ou miradoiros para nos ajudar a <strong>de</strong>scobrir e a construir os<br />

nossos próprios pontos <strong>de</strong> vista, tal como os olhares dos turistas servem a<br />

objectificação e a reinterpretação dos processos culturais dos indivíduos<br />

visitados.<br />

457


Maria Car<strong>de</strong>ira da Silva<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

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PICARD, Michel, 1995, “Cultural Heritage and Tourist Capital: Cultural Tourism in Bali”, LANFANT,<br />

M.-F., J. B. ALLCOCK, e E. M. BRUNER (orgs.), International Tourism: I<strong>de</strong>ntity and Change, Londres,<br />

Sage, 44-66.<br />

ROSALDO, Renato, 1988, “I<strong>de</strong>ology, Place and the People without Culture”, Cultural Anthropology, 3 (1),<br />

77-87.<br />

URRY, John, 1991, The Tourist Gaze: Leisure and Travel in Contemporary Society, Newbury Park, CA, Sage.<br />

FILMOGRAFIA<br />

Dennis O’Rourke, Cannibal Tours, DCinema, 1988, 67 min.<br />

Dennis O’Rourke, The Good Woman of Bangkok, Film Australia Productions, 1991, 82 min.<br />

Leng Shang, Mon Village Taoping, Sichuan Television, 1998, 45 min.<br />

Nicholas Kurzon, Sight Unseen, Documentary Educational Resources, 1996, 27 min.<br />

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