Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Jean <strong>Monlevade</strong>,<br />
do Castelo à Forja<br />
Romance<br />
Jairo Martins de Souza<br />
2009
© Copyright by Jairo Martins de Souza, Vitória, 2009.<br />
Projeto gráfico e editoração: Douglas Barbosa de Magalhães<br />
Capa: Douglas Barbosa de Magalhães<br />
Ilustrações: Zota Coelho<br />
Digitação: Jairo Martins de Souza<br />
Agradecimentos: Carlos Carrion, Geraldo Eustáquio Ferreira (em especial pela sugestão<br />
do título adotado), Lúcia de Souza Barros e Regiane Castro Souza.<br />
Revisão Final: Olívia Alves Fagundes de Souza<br />
Catalogação: Ana Maria de Matos Mariani - CRB: 12/ES 425<br />
Impressão e fotolito: Grafer Editora Ltda<br />
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)<br />
Souza, Jairo Martins de<br />
S729j Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja: romance / Jairo Martins de<br />
Souza. – Vitória: Grafer, 2009.<br />
362 p. ; 21 cm.<br />
ISBN 978-85-86986-25-3<br />
1. Romance brasileiro. I. Título.<br />
CDD: B869.8<br />
CDU: 821.134.3(81)-31<br />
Todos os direitos reservados. A reprodução de qualquer parte desta obra, por qualquer meio, sem a autorização<br />
do autor, constitui violação da LDA 9.610/98.
Ao meu netinho Dudu que ainda vê a luz do mundo pelos<br />
olhos dos pais. Aos meus familiares. Aos monlevadenses.
I<br />
Léopold Bogenet, o vigário geral<br />
(il était une fois, era uma vez...), 17<br />
II<br />
O primo Jean Antoine era o preferido<br />
do vigário. A Revolução e o inconformado<br />
Philippe de Bogenet, 21<br />
III<br />
O castelo de <strong>Monlevade</strong>, 25<br />
IV<br />
O fidalgo Jean-François. O acidente<br />
em combate!, 29<br />
V<br />
O nascimento de Jean de <strong>Monlevade</strong><br />
e o estranho local do primeiro<br />
sacramento, 37<br />
VI<br />
O caso da bola do jogo de péla, 41<br />
VII<br />
A terrível guilhotina, 47<br />
VIII<br />
A escola em Guéret e os cuidados do<br />
professor Duchamps. Jean é perseguido<br />
pelo maldoso Materazzi, 51<br />
IX<br />
O fidalgo socorre e livra a família de<br />
Martinho das garras de Thurram. O<br />
bondoso abade Ribérry, 65<br />
Sumário<br />
Prefácio, 09<br />
Introdução - O estrangeiro, 11<br />
PARTE 1<br />
Guéret<br />
X<br />
O armazém e as histórias do capitão<br />
Platini, 79<br />
XI<br />
Angéline, 91<br />
XII<br />
Algo mais sobre política e a família<br />
do fidalgo, 99<br />
XIII<br />
O nascimento de Léopold, o vigário<br />
geral, 103<br />
XIV<br />
1806. Martinho faz planos, 115<br />
XV<br />
O médico Colbert e o fidalgo prosseguem<br />
trocando ideias. Tisserand<br />
comenta rapidamente sobre falha<br />
nas intenções de Jean, 119<br />
XVI<br />
O fidalgo não antecipa mudança<br />
de Jean a Paris. Martinho é praticamente<br />
um <strong>Monlevade</strong>. A viagem<br />
de estudos ao país da bota, 121<br />
XVII<br />
O fidalgo busca informações. A<br />
carta para Paris. A Politécnica de<br />
Monge e Carnot, 131
I<br />
Onde se explica o porquê de Jean<br />
e Martinho terem se instalado na<br />
casa de Septimus e Lucillia Pius,<br />
135<br />
II<br />
As razões dos temores de Colbert<br />
quanto a Jean e Angéline.<br />
O confessor Ribérry, 145<br />
III<br />
Jean e Martinho vão ao Louvre.<br />
A casa de Lucillia e Septimus<br />
Pius, 153<br />
IV<br />
O reencontro com Kostas Zavoudakis,<br />
159<br />
V<br />
Os três mosqueteiros. Kostas<br />
conhece o Quartier Latin como<br />
as palmas de suas mãos!, 167<br />
VI<br />
Bernadette e Monique du Lac, 169<br />
VII<br />
A carta roubada, 177<br />
VIII<br />
A Polytéchnique. Bonaparte dá<br />
demonstração de confiança em<br />
<strong>Monlevade</strong>!,183<br />
PARTE 2<br />
Paris<br />
IX<br />
João Gomes Abreu de Freitas,<br />
193<br />
X<br />
O Brasil de 1809, segundo a visão<br />
do capitão Freitas, 201<br />
XI<br />
François. Martinho segue para<br />
Lisboa, 211<br />
XII<br />
Jean passa por risco de cárcere<br />
na Polytéchnique. O aviso por<br />
demais antecipado da chegada<br />
do filho do capitão Freitas, 215<br />
XIII<br />
A Génie Militar e as avançadas<br />
técnicas de guerra do início dos<br />
novecentos, 219<br />
XIV<br />
A graduação. Onde se diz tardiamente<br />
da morte do fidalgo,<br />
225<br />
XV<br />
Ildefonso Gomes de Freitas, 233<br />
XVI<br />
A viagem para o Brésil, 237
I<br />
O Rio de Janeiro e seus escravos.<br />
O engenheiro da école des Mines<br />
se impressiona, 245<br />
II<br />
A casa carioca do capitão Freitas,<br />
253<br />
III<br />
Onde se diz da breve estada no<br />
Rio. A carta de Martinho, 265<br />
IV<br />
O início dos caminhos que levam a<br />
Minas Geraes. <strong>Monlevade</strong> encanta-se<br />
com natureza. A tropa fiscal e<br />
o parente de Agostinho Ferro, 271<br />
V<br />
A caravana finalmente chega a Vila<br />
Rica. O inusitado jantar de gala com<br />
o governador da Província, 281<br />
VI<br />
<strong>Monlevade</strong> faz turismo e reflete<br />
sobre o cotidiano da capital da<br />
Província das Geraes. Martinho<br />
definitivamente entrega sua alma a<br />
Cristo, 299<br />
VII<br />
Rumo a Caeté. O capitão Freitas é forçado<br />
a abandonar a caravana, 307<br />
VIII<br />
São Miguel do Piracicaba. A receptiva<br />
acolhida dos Freitas. Jean de<br />
<strong>Monlevade</strong> encontra-se com Auguste<br />
Saint-Hilaire, 313<br />
PARTE 3<br />
Brésil<br />
IX<br />
Caeté e a usina de Luiz Gouveia.<br />
O futuro Barão de Catas convoca<br />
<strong>Monlevade</strong> para conversa reservada:<br />
assunto sério!, 321<br />
X<br />
O solar <strong>Monlevade</strong> e o arquiteto<br />
Montigny. A primeira fundição de<br />
<strong>Monlevade</strong>, 327<br />
XI<br />
A festa de casamento na Setecentista.<br />
A nova fábrica de ferro, 335<br />
XII<br />
Amigo é para todas as horas. <strong>Monlevade</strong><br />
faz pedido especial a Platini<br />
e Just Fontaine, 341<br />
XIII<br />
Não é fácil manter negócios entre<br />
as montanhas das Minas Geraes. O<br />
agora capitão <strong>Monlevade</strong> amplia<br />
a fábrica de ferro que leva o seu<br />
nome, 345<br />
XIV<br />
Esse menino tem a cara do avô!<br />
Nasce o neto brasileiro do fidalgo<br />
de Guéret, 349<br />
Epílogo, 351<br />
Post Scriptum, 357
Não vos preocupeis, a imaginação humana é bem<br />
mais pobre do que a realidade!<br />
(Ne vous inquiétez pas, l’imagination humaine est<br />
plus pauvre que la réalité!)
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
PREFÁCIO<br />
As origens de João <strong>Monlevade</strong>, cidade siderúrgica de Minas Gerais,<br />
remontam ao ano de 1817 quando aportou no Brasil o cidadão<br />
francês Jean Antoine Félix Dissandes de <strong>Monlevade</strong>. Engenheiro<br />
formado pela duríssima école des Mines de Paris, viera<br />
aceitando comissão do governo de Luís XVIII para estudar os<br />
recursos minerais do Brasil. Seduzido pelas riquezas geológicas<br />
da região, acabou fixando-se em Rio Piracicaba e ali instalou<br />
uma forja catalã que se tornaria a gênese da indústria do aço<br />
de Minas Gerais. Nos últimos anos, malgrado a ausência de trabalhos<br />
acadêmicos e historiográficos, o povo monlevadense tem<br />
reconhecido cada vez mais a amplitude de sua obra e o fascínio<br />
exercido por sua brilhante personalidade. “Jean <strong>Monlevade</strong>, do<br />
Castelo à Forja” não se inscreve no rol das escassas produções<br />
científicas produzidas sobre a maior personalidade do município.<br />
No entanto, preenche com maestria aquela lacuna e agrega conhecimentos<br />
e informações que muito contribuirão para manter<br />
viva a sua memória. O autor, valendo-se do caráter ficcional de<br />
sua narrativa, percorre com criatividade os caminhos trilhados<br />
por Jean <strong>Monlevade</strong> desde a mais tenra idade na cidade de Guéret<br />
até os primeiros anos de sua permanência em Minas Gerais.<br />
É escrita repleta de fantasia, mas não lhe falta o rigor histórico.<br />
E transita no cenário revolucionário da França libertária do século<br />
XVIII com a mesma verossimilhança com que percorre as estradas<br />
de Minas Gerais dos primórdios do século XIX. O resultado é romance<br />
cujo enredo não se cristaliza no passado, pois por meio de<br />
um narrador contemporâneo – Monsieur Tisserand – faz-nos ler<br />
os acontecimentos sob a perspectiva dos tempos atuais. Destarte,<br />
nosso conterrâneo Jairo Martins de Souza, com sua nova obra,<br />
não sai de “trás das vitrines” do menino do <strong>Bazar</strong> <strong>Monlevade</strong> e,<br />
com as lentes do jovem que decifrou o Dossiê <strong>Monlevade</strong>, lança<br />
mais uma vez sua visão apaixonada sobre as origens de sua cidade.<br />
Acompanhemo-lo, caro leitor, nesse novo olhar sobre Jean<br />
de <strong>Monlevade</strong>, revivendo sua saga do Castelo, que a concebe e<br />
enobrece, até à Forja, que a tempera e eterniza.<br />
Geraldo Eustáquio Ferreira (Professor Dadinho)<br />
Graduado em Letras – Ativista Cultural<br />
Pesquisador da História da Cidade de João <strong>Monlevade</strong><br />
9
10 Jairo Martins de Souza<br />
“.... o senhor deverá se surpreender com este relato que lhe<br />
avisei ser longo. Pois mesmo que diga respeito a alguém de nome<br />
muito familiar ao senhor, e à sua cidade, trata-se de quelque chose<br />
d’extraordinnaire! (algo extraordinário)”.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Introdução<br />
O estrangeiro<br />
Estávamos em meados de outono e o correr do dia, inusitadamente<br />
inundado de claridade, antecipava que, quando o Sol<br />
fosse se deitar no horizonte de nossa cidade, a noite despontaria<br />
belíssima e bem arejada.<br />
Não tinha tido o prazer de conhecer aquele simpático senhor<br />
antes dessa ocasião, mas no momento de sua chegada à pequena<br />
praça em que eu estava, bastou que fizesse breve saudação com<br />
o chapéu para que me sentisse instantaneamente atraído por sua<br />
pessoa. Pareceu-me de educação refinada, pois foi extremamente<br />
afável ao me cumprimentar.<br />
Eu gostava de ir àquele local para descansar, ou para me<br />
dedicar a algumas reflexões e eventuais conversas com amigos.<br />
Desta feita tinha acabado de almoçar e, ainda palitando os dentes,<br />
deparei-me com a situação de estar lá sozinho por alguns<br />
minutos. O que não me trouxe qualquer tipo de angústia, pois,<br />
a despeito de muitas folhas já caídas, a sombra confortável de<br />
mangueiras ainda vastamente copadas e o sabor forte dos seus<br />
frutos maduros inundavam e tornavam as cercanias extraordinariamente<br />
aprazíveis.<br />
Não havia outras pessoas por perto e conversávamos assentados<br />
em velho banco de praça com reclame comercial já apagado<br />
pelo tempo. E não veio à tona qualquer indício de pressa neste<br />
contato entre pessoas que se viam pela primeira vez. Nem minha,<br />
nem dele.<br />
Bem, não sou versado em línguas estrangeiras, mas já em<br />
suas primeiras palavras havia suspeitado que ele tinha sotaque<br />
de gente que falava o idioma francês. Até aí nada de excepcional,<br />
isso nunca fora assim tão incomum em nossa região, e eu<br />
poderia facilmente dissipar minha dúvida perguntando-lhe mais<br />
tarde sobre sua origem. Portanto, não foi por isso que, nos primeiros<br />
11
12 Jairo Martins de Souza<br />
instantes do nosso contato, não conseguia parar de olhá-lo, despistadamente,<br />
pelos cantos dos olhos, de tantos em tantos segundos.<br />
Havia algo em sua aparência que realmente tinha chamado<br />
a minha atenção! Talvez parecesse com alguém que tivesse visto<br />
em foto extremamente antiga, enfim, seu rosto era de certa forma<br />
familiar.<br />
Lembrei-me tê-lo visto caminhando distraidamente pelas<br />
ruas do bairro. Tinha chegado recentemente à região e comentara<br />
no hotel que se encontrava apenas de passagem. Em cidades<br />
pequenas nada passa ao largo! A recepcionista, que era inclusive<br />
minha parenta, disse-me ocasionalmente o nome do hóspede do<br />
quarto 101. Não lhe dei atenção devida: recordo-me apenas ter<br />
ouvido algo confuso!<br />
O fato é que (não obstante sua visível dificuldade com o manejo<br />
do português), estivemos matando o tempo com assuntos<br />
frugais sobre temperatura e clima da região. Depois sobre futebol,<br />
e eventos culturais e políticos que estavam por vir nos próximos<br />
meses: o estrangeiro era bem informado!<br />
E à medida que passavam os minutos, avançamos sobre as<br />
últimas ações econômicas do governo, sobretudo as que diziam<br />
respeito às exportações de minérios e placas de ferro as quais,<br />
com a crise dos mercados, vinham despencando de maneira assustadora.<br />
O assunto ocasionalmente caiu para o lado do papel<br />
dos grandes empresários e industriais do Brasil. Destes últimos,<br />
fomos retrocedendo no tempo e eu citei-lhe, de passagem, a importância<br />
histórica do Barão de Mauá que, por sinal, fora tema<br />
recente de série televisiva. Ele disse-me não ter assistido, mas comentou<br />
que muitos outros que aqui fincaram os pés têm também<br />
passagens excepcionalmente brilhantes pelo país.<br />
E perguntou-me: queres ouvir, em primeira mão, a história<br />
de um deles que, no mundo, é pouquíssimo conhecida? Não estou<br />
dizendo de uma narrativa curta! O senhor teria que ter bastante<br />
paciência!<br />
Sua conversa anterior fora do meu gosto, e não precisei pensar<br />
muito para responder-lhe polidamente que sim. Na realidade,<br />
encontrava-me também em estado de graça, pois, entre outras<br />
coisas, tinha obtido bons rendimentos no meu ramo de negócios<br />
ao longo da semana. Fosse o caso, dispunha de todo o fim do dia<br />
para ouvi-lo.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
E foi com leve sorriso estampado no rosto que ele disse-me<br />
de forma animadora: “o senhor deverá se surpreender com este<br />
relato que lhe avisei ser longo. Pois mesmo que diga respeito a<br />
alguém de nome muito familiar ao senhor, e à sua cidade, trata-se<br />
de quelque chose d’extraordinnaire! (algo extraordinário)”<br />
Rearranjei-me no banco, mantendo-me calado, e adquirindo<br />
postura e pose corretas tais como a de quem exterioriza interesse.<br />
Mas foi somente após ter certeza do retorno de minha total<br />
atenção que ele declarou que o princípio de sua história havia<br />
ocorrido em terras muito longínquas. Na França… lá do outro<br />
lado do l’océan Atlantique!<br />
Foi por tudo isso que, ainda em silêncio, decidi que nem mesmo<br />
iria perguntar-lhe o nome.<br />
Não julguei necessário. Intimamente já havia decidido que,<br />
neste livro, iria chamá-lo Tisserand: monsieur Tisserand!<br />
13
14 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
PARTE 1<br />
Guéret<br />
15
16 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
I<br />
Léopold Bogenet, o vigário geral<br />
(il était une fois, era uma vez...)<br />
Poucos meses antes de encerrar definitivamente sua missão no<br />
mundo, o vigário geral Dissandes de Bogenet disse que tinha feito<br />
o sacrifício de doar sua vida a Deus para que toda sua extensa<br />
família, no futuro, fosse reunida no céu. Tinha firme convicção<br />
sobre o que dissera e, durante toda sua vida, havia procurado<br />
fazer jus a essa realidade espiritual.<br />
Foi com tais palavras de um religioso por mim completamente<br />
desconhecido que monsieur Tisserand iniciou sua história. Na<br />
ocasião, prosseguiu, o vigário geral suspeitava da proximidade de<br />
sua morte e estava abrindo o coração para um dos seus familiares<br />
mais chegados!<br />
O vigário era Bogenet. O seu interlocutor, e confidente, era um<br />
seu primo do ramo Lavillatte. Ambas eram famílias de gente nobre<br />
e pertenciam às muitas das notáveis que foram interligadas pelo dinheiro,<br />
pelo desejo dos pais, enfim, pelos casamentos programados<br />
que eram pródigos em ambientes da burguesia europeia.<br />
Bogenet, Lavillatte, Dissandes, <strong>Monlevade</strong> eram exemplos<br />
dessas linhagens ilustres que, se pesquisadas em profundidade,<br />
colocariam às claras ligações extremamente remotas. E, entre seus<br />
membros de procedência Bogenet, sem qualquer sombra de dúvida,<br />
assomaria destacadamente a amada e admirável figura do<br />
vigário geral que confessara suas intenções finais ao parente.<br />
Pois foi, de acordo com testemunho de vozes da época, incansável<br />
na divulgação dos evangelhos, e de ter passado grande<br />
parte do século dezenove espalhando bem-aventuranças no departamento<br />
de La Creuse, na região central da França.<br />
Tanto é daquele jeito que, em tempos difíceis, fortalecia-se<br />
com a simples menção da frase Opus Fac Evangeslistae (faze a<br />
obra de um evangelista!).<br />
17
18 Jairo Martins de Souza<br />
O troco lhe foi dado ainda em vida, sendo personalidade bastante<br />
celebrada ao longo de sua caminhada eclesiástica. Ainda vivo,<br />
havia se tornado famoso pela bondade e pelo despojamento material<br />
que praticava.<br />
Não era incomum que trajasse disfarces e andasse pelas estradas<br />
e vilarejos distribuindo esmolas e ajudando a doentes e necessitados.<br />
Também recusou (fato raríssimo na vida eclesiástica),<br />
por diversas vezes, a mitra de bispo.<br />
E a partir da notícia do seu passamento, nos anos finais dos oitocentos,<br />
seu nome foi homenageado como o de personalidade única<br />
na região. Um parente querido fora levado para debaixo da terra...<br />
O que não impediu circulação de rumor que algo atípico havia<br />
acontecido poucas horas antes de dar o último suspiro. Uma mulher<br />
já de idade avançada fora conduzida discretamente ao aposento<br />
que tinha acesso restrito somente a religiosos. O quarto do<br />
próprio vigário. Lá foram mantidos isolados durante minutos a fio.<br />
Bem, Tisserand comentou, o povo tem como costume especular<br />
coisas fantasiosas nestas ocasiões. Nada ficou provado!<br />
O fato é que o negro das vestes, complementado por joias<br />
simples de azeviche, foi mantido durante dias indicando claramente<br />
o luto dos que o amavam. E, por período ainda mais longo,<br />
expressamente recomendado uso de roupas discretas, desprovidas<br />
de cores fortes, pelos fiéis da comunidade.<br />
Decerto não lhe atribuíram milagres. Não seria verdadeiro!<br />
E sabia-se ser situação incompatível com seu estilo. Mas os jornais<br />
da época, em seus editorais, consideraram-no como digno<br />
de inspiração e modelo de vida. Não somente para sua diocese,<br />
enfatizavam, como também para toda a Igreja de Roma espalhada<br />
pelo mundo.<br />
Prova disso é que, ciente de ser seu rebanho composto basicamente<br />
de analfabetos, desdobrava-se para contratar artistas de<br />
qualidade para ilustrar histórias da bíblia nas paredes e tetos das<br />
igrejas em que exercia influência. Interiores decorados como se fossem<br />
páginas de livros ilustrados de escola dominical. Aconselhava<br />
com prudência usando, como nas sagradíssimas escrituras, belas<br />
metáforas para melhor entendimento por parte dos seus paroquianos.<br />
Grandessíssimo evangelizador!<br />
Que inclusive pregava a tolerância com os seguidores das 95<br />
teses de Martinho Lutero. Assunto explosivo! Sua atuação se estendia<br />
a muito mais que os deveres missionários do seu ofício.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Eram passados mais de duzentos e cinquenta anos desde o<br />
massacre da noite de São Bartolomeu, Tisserand explicou, mas<br />
ainda nos dias do vigário geral, a simples passagem de um daqueles<br />
protestantes por via pública poderia ser estopim certo para<br />
início de zombaria e altercação.<br />
Episódios sangrentos como aquele, graças a homens como o<br />
vigário, não têm mais chance de prosperar!<br />
As figuras e cenas do juízo universal, que vira magistralmente<br />
pintadas no teto da Sistina, bastavam-lhe para todas as circunstâncias.<br />
Ali se resume toda a história e os desígnios do homem, de<br />
acordo com a vontade do criador, dizia.<br />
Pois não era daqueles que assombravam os paroquianos,<br />
conclamando a besta do Apocalipse em seus sermões dominicais<br />
e visitas a fiéis. Para tanto, julgava bastantes as misérias descritas<br />
pela sua amada bíblia nas páginas que o próprio Senhor julgara<br />
de direito. Dava exemplo. Não se dispersava!<br />
E exercitava as virtudes abençoadas nos evangelhos, mas acima<br />
de tudo amava a família, e religiosamente escrevia sobre seus<br />
queridos em bloco de anotações. Talvez fosse sua intenção revisálas<br />
e colocá-las em volume de luxo.<br />
Mas não dizem os críticos de arte que é preciso ler meia biblioteca<br />
para lograr a escrita de um livro? Bem, nem seria preciso<br />
dizer que o vigário tinha grande amor pelo conhecimento! Lia<br />
tanto as inúmeras recomendações do Vaticano quanto as obras<br />
de escritores acreditados de todo o mundo laico.<br />
Não era essa a razão de nunca conversar pelos cotovelos.<br />
Era sua própria prática pastoral. E, portanto, não fizera diferente<br />
quando dissera dos seus amados. O seu estilo de escrita mantevese<br />
curto, telegráfico, normalmente versando sobre as andanças e<br />
conquistas dos seus familiares que, de acordo com seu estilo e formação,<br />
foram dados como concluídos, sem maiores explicações,<br />
com um singelo dominus vobiscum! (o senhor esteja convosco!).<br />
O abade morreu em 1897. Poucos em idade adulta o conheceram<br />
pelo nome, Léopold. Léopold Dissandes de Bogenet. Na<br />
ocasião não foi somente seu corpo físico que se fora para sempre,<br />
pois também levara consigo um dos ramos de sua genealogia.<br />
O celibato custara-lhe altíssimo preço. Custara-lhe a extinção do<br />
ramo Bogenet da família que tanto prezava.<br />
Mas seus rascunhos, já praticamente em formatação final,<br />
19
20 Jairo Martins de Souza<br />
foram recuperados dezenas de anos mais tarde na igreja matriz<br />
da região. Um fiel os encontrou: ele substituía responsável pela<br />
limpeza que padecia de terrível enfermidade. O local foi gaveta<br />
chaveada que fazia parte de mobiliário da sacristia marcado com<br />
etiqueta de irrecuperável. A felicidade maior disso é que, após<br />
investigados pelo Vaticano, puderam ser devolvidos a quem de<br />
direito!<br />
Logicamente foram escritos em latim. O senhor, mon ami,<br />
sabe ser esta a língua corrente nos meios eclesiásticos naqueles<br />
dias e, daí, de difícil acesso a pessoas comuns como eu. Não fosse<br />
um pequeno detalhe. Junto a eles estavam costurados outros<br />
tantos, já vertidos para o francês, com a mesma caligrafia.<br />
Foi a minha salvação, o estrangeiro Tisserand disse, Champollion<br />
não teria ficado mais feliz com sua pedra de roseta!
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
II<br />
O primo Jean Antoine era o preferido do vigário.<br />
A Revolução e o inconformado Philippe de Bogenet<br />
Ainda vou prosseguir dizendo algo mais sobre a vida e morte do<br />
vigário, Tisserand disse. Ele não alcançou o tempo de Matusalém,<br />
mas chegou aos 82. Idade atípica para o século dezenove!<br />
Como também foi atípico o fato dos seus escritos terem sido<br />
bastante centrados na figura de um dos parentes que mal teve contato:<br />
ambos mantiveram-se geograficamente distantes e percorreram<br />
caminhos absolutamente diferentes ao longo de suas vidas.<br />
Pois seu protagonista foi um primo catorze anos mais velho<br />
que fora batizado com o mesmo nome do pai: Jean. O pai, por<br />
sua vez, tinha o mesmo nome do avô. É por aí que se estabelecia<br />
critério de colocação de nomes nos rapazes daquelas antigas<br />
famílias. Entretanto, e não deixando de dar importância a isso,<br />
Tisserand prosseguiu, o que mais desejo deixar fixado em sua<br />
mente, mon ami, é que o vigário citou muito pouco sobre outros<br />
familiares mais próximos de sangue. Talvez propositalmente. Por<br />
exemplo, considerando-se o teor do assunto em questão, o de<br />
não deixar registrado que um dos seus avós, em 1793, escapara<br />
da guilhotina durante andamento da Revolução.<br />
O pai do seu pai chamava-se Philippe de Bogenet, e fora<br />
acusado de supostos deslizes com a comunidade. Incluso em lista<br />
de proscritos, foi preso juntamente com sua amada mulher!<br />
Sentindo-se injustiçado, acabou por tentar se evadir em várias<br />
oportunidades. Sem sucesso! O lucro que teve foi o de conseguir<br />
livrar o pescoço da impiedosa guilhotina.<br />
O fato é que fora figura pública de destaque na região, e exercera<br />
cargos de importância para o governo de Luís XVI e para a<br />
província. Capitão de caça. Conselheiro real. Mestre particular de<br />
águas e florestas...<br />
21
22 Jairo Martins de Souza<br />
Foi em vista disso que Tisserand assinalou que se alongaria<br />
um pouco mais sobre o episódio para não incorrer no mesmo<br />
erro de omissão que o vigário geral cometera.<br />
E, somente para fins de registro e de justiça, mencionou que<br />
o tal esquecimento não havia redundado em prejuízo para apontamento<br />
digno de crédito da história da família. A lacuna fora, em<br />
tempo certo, preenchida por cronista credenciado!<br />
Daí se soube que o avô do vigário fora alvo de outras graves<br />
acusações. Pois, de acordo com o que veio à tona, tinha feito<br />
pouco caso do sangue jorrado durante as ações revolucionárias<br />
e declarado publicamente seu desprezo pela atitude dos patriotas<br />
do Terceiro Estado.<br />
Não podia resultar em nada muito diferente. A ordem de prisão,<br />
emitida intempestivamente pelo Comitê de Saúde Pública,<br />
chegou rapidamente ao seu destino por meio de oficial de justiça<br />
apoiado por forte contingente de soldados. O desenlace foi o velho<br />
Philippe acabar vendo a luz dos seus dias se extinguir enclausurado<br />
no seu próprio castelo: o de Bogenet.<br />
A Revolução e a queda de Luís XVI arruinaram muitas famílias<br />
da nobreza do Ancien Régime, da Velha Monarquia, Tisserand<br />
comentou. Outras tiveram enfraquecidos, de forma significativa,<br />
vastos patrimônios construídos ao longo de muitas gerações.<br />
Não chegou a tanto nas famílias <strong>Monlevade</strong> e Bogenet. E é<br />
por isso que não houve qualquer impedimento para que o mesmo<br />
Philippe passasse o direito de posse dos domínios de Bogenet<br />
para o filho que, não por acaso, chamava-se Jean.<br />
Este Jean, mon ami, Tisserand disse-me, foi um monarquista<br />
convicto que seguiu, ao pé da letra, as mesmas ideias do pai. Mas<br />
não é esse o motivo que me fez mencioná-lo para o senhor! O<br />
fato singular da vida deste homem foi o de ter sido o pai do bondoso<br />
abade a quem não tenho poupado elogios.<br />
E foi quase sem pausa para respiração que Tisserand indagou-me<br />
(em tom de alerta, e voltando a assunto que eu já considerava<br />
entendido) se eu havia reparado que, nesta família, vários<br />
mancebos foram chamados com o nome Jean, João.<br />
Respondi-lhe que sim. E lembrei-lhe que ele próprio, por<br />
duas vezes, já havia informado o fato.<br />
Ele assentiu e, ao mesmo tempo, disse-me ser instante para<br />
fazer determinada avaliação. Não. Não estava sendo precipitado.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
E perguntou-me se eu conseguiria atinar o porquê de seu interesse<br />
em mencionar aqui tão intensamente a vida pessoal deste religioso,<br />
e de sua fé, e que tem, a princípio, não tanta importância<br />
no contexto da história que iria relatar.<br />
Mas não me deu tempo para respondê-lo, pois num átimo,<br />
antecipou-se a qualquer eventual julgamento que viesse a surgir<br />
de minha parte.<br />
A resposta é simples, disse. E vem de afirmação que o senhor<br />
já sabe, e que é, por sinal, a mesma razão pelo qual o prelado<br />
escrevera seus rascunhos. A de realçar o amor que tinha pela família,<br />
e por seus amados!<br />
Desses, um em especial, e que viera ao Brésil para cumprir<br />
tarefa extraordinária.<br />
Não chegou a conviver com o primo Jean Antoine Felix Dissandes<br />
de <strong>Monlevade</strong>, mas orgulhava-se dos seus feitos. Quando<br />
ainda rapazinho, teve felicidade fortuita de comparecer à sua graduação<br />
na École des Mines de Paris. E foi a partir daí que passou<br />
a ter por ele especial interesse. Acompanhou-o, a distância, em<br />
todas as peripécias de sua existência.<br />
Pois é baseado também nisso – ainda é Tiserrand quem diz –<br />
que fiz minhas próprias anotações. Foi de onde criei bases para<br />
lhe dizer o que julgo verossímil nesta história.<br />
É por tudo isso que honestamente desejo que Deus tenha<br />
recebido o abade e aos seus, conforme seu desejo.<br />
E rogo encarecidamente que também com a mesma diligência,<br />
e da mesma forma, acompanhe minhas palavras!<br />
23
24 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
III<br />
O castelo de <strong>Monlevade</strong><br />
O fidalgo Jean-François Dissandes descortinou finalmente a vista<br />
magnífica de <strong>Monlevade</strong>. O belo edifício, construído com pedras<br />
desde o baldrame até o pico da torre de vigia, aguçou-lhe sentimento<br />
de incerteza e aflição. Em condições normais aquele esplêndido<br />
e amado cenário tinha o predicado de inspirar-lhe confiança<br />
e sensação de reduto inexpugnável.<br />
Extraordinariamente fizera o sinal da cruz ao divisar a vista<br />
menor da capela do seu castelo. E, independente de exercício de<br />
sua livre vontade, a descarga de adrenalina disparada para dentro<br />
de suas artérias fez-lhe o pulso acelerar descontrolamente.<br />
Não. Não podia perdê-lo! Não podia faltar com promessa ao<br />
pai, Jean Dissandes de Bogenet!<br />
O château, o castelo, lhe havia sido doado antecipadamente<br />
ao que era de se esperar na relação de transmissão de herança<br />
entre pais e filhos. O ano foi o de 1786.<br />
O pai, por sua vez, em 1740, o havia incorporado ao patrimônio<br />
dos Dissandes de Bogenet trazido como dote pela noiva: a<br />
simpática Marie Niveau de Lagrange de <strong>Monlevade</strong>.<br />
A partir do casamento é que se ajuntou, em termos definitivos,<br />
o nome Bogenet aos <strong>Monlevade</strong>.<br />
E Jean-François não teve como negar a escolha e o encargo<br />
de manter o valioso patrimônio sob os auspícios do brasão de sua<br />
casa, pois quase todos os irmãos, que chegavam à casa dos dezessete,<br />
encontravam-se fora da província servindo à sociedade<br />
em diversos segmentos. Igreja. Exército. Administração pública.<br />
Não os tinha mais por perto. E angustiava-se ao recordar que os<br />
anos felizes de sua infância faziam parte de passado distante. Não<br />
se sentia só. Estava só!<br />
A situação que assumira fora inicialmente planejada pelo pai<br />
25
26 Jairo Martins de Souza<br />
para ser posto a público somente quando estivesse em leito de<br />
morte. O recuo no tempo teve a intenção de propiciar em termos<br />
objetivos um melhor zelo e manutenção da propriedade. Cabialhe<br />
cumprir a missão destinada.<br />
E foi ainda com a respiração fortemente perturbada que o<br />
fidalgo resmungou... Não! Não vou ceder facilmente a novos espasmos<br />
revolucionários de Paris!<br />
Sua via crucis começara há quase dois anos. Em 1789. A<br />
inusitada convocação da Assembléia dos Estados Gerais por Luís<br />
XVI jamais iria se apagar de sua memória.<br />
Foi, o estrangeiro Tisserand reforçou, o que, em termos finais,<br />
acendeu o estopim da Revolução.<br />
Três anos antes, julgara oportuno estabelecer moradia no<br />
castelo <strong>Monlevade</strong> junto com a mulher que escolhera para constituir<br />
família. Ela tinha o sugestivo nome de Felicité, Felicidade.<br />
O clã dos Dissandes de Bogenet, mesmo antes de sua ligação<br />
com os <strong>Monlevade</strong>, era já proprietário, entre outras riquezas, dos<br />
chatôs de Bogenet, Lavillatte, Balleyte e Villecorbet.<br />
Bogenet, cercado de árvores seculares e paisagens sombrias,<br />
era bem mais imponente que <strong>Monlevade</strong>. Assentado em uma colina,<br />
que dominava a paisagem de todos os campos adjacentes,<br />
sua imagem espelhada podia ser vista em lago próximo, exibindo<br />
duas asas perpendiculares articuladas em sua alta torre de proteção.<br />
Castelo de aparência macambúzia, e que perdia em qualidade<br />
de vida por ser bastante afastado da cidade. Havia ficado,<br />
conforme já lhe disse, sob posse de um dos seus primos.<br />
Essas foram razões para fixação da residência dos pais do<br />
fidalgo Jean-François nos domínios de <strong>Monlevade</strong>. Também haviam<br />
levado em conta que o acesso a ele se fazia com muito<br />
maior facilidade.<br />
Viveram lá por 46 longos anos. Foi somente após cedê-lo<br />
ao filho, que o já viúvo Jean Dissandes transferiu morada para a<br />
sede da província.<br />
É onde o encontramos como atual prefeito, sentindo-se infeliz<br />
e sem forças para defender o Ancien Régime. Era mais um dos<br />
cargos de destaque que exercia na antiga província de La Marche.<br />
Antes disso, fora conselheiro do rei no Presidial, e fiscal de<br />
consignações.<br />
Como se vê, Tisserand reforçou, toda a família usualmente<br />
ocupava cargos de destaque na sociedade regional.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
No entanto, era naquela última função, a de alcaide, que<br />
combatia com toda sua alma as ideias revolucionárias. O fidalgo<br />
pressentia que o pai não resistiria às pressões e não tardaria em<br />
renunciar.<br />
Para desgosto de ambos, o governo havia eliminado todos os<br />
títulos conquistados pela espada e por séculos de tradição familiar.<br />
Um acinte à nobreza!<br />
Não fosse bastante, desligara o clero da Igreja. Roubara seus<br />
templos e propriedades. Os padres, os abades, e outras autoridades<br />
eclesiásticas foram alçados à categoria de funcionários públicos.<br />
Receberiam salário do povo. Nada de ordens monásticas.<br />
Nada de igrejas. Um desafio à casa de Deus!<br />
Tudo isso dá ideia extremamente condensada das condições<br />
em que, em seu convulsionado país, sucedia o ano de 1790.<br />
Quantas atribulações! Pelo uivar dos lobos, o sangue prosseguiria<br />
esguichando por todos os cantos do reinado.<br />
27
28 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
IV<br />
O fidalgo Jean-François. O acidente em combate!<br />
A despeito da confusa situação que soubera existir em Paris, a<br />
viagem feita pelo fidalgo transcorrera livre de ameaça de salteadores<br />
que proliferavam pela outrora sossegada província.<br />
Viera a toda velocidade e a condução, como vimos faz pouco,<br />
alcançara seu destino: o castelo <strong>Monlevade</strong>. O bafo quente<br />
e o resfolegar das duas cavalgaduras que a puxavam, além dos<br />
montículos de barro cinza escuro ejetados na horizontal aos pulos<br />
do furo abaixo dos seus rabos eram, por sua vez, sinais de que os<br />
animais estavam prestes a ficar exaustos!<br />
O barulho seco do atrito dos freios, madeira contra madeira,<br />
e a lama atirada para os lados pelas rodas que antecederam a parada<br />
final foram os indicadores derradeiros que haviam anunciado,<br />
de antemão, a presença do fidalgo na sede dos seus domínios.<br />
Seu mau humor não se dissipara por completo e ele, com<br />
aparência resistindo à virada da meia-idade, chegara finalmente<br />
à porta principal do seu domicílio.<br />
Há minutos conseguira ter a alma suavemente refrigerada<br />
pela visão de uma família que se divertia em remanso situado<br />
próximo a pequena ponte que cobria trecho das águas puras<br />
do Creuse. Ao ultrapassá-la percebeu que o cesto parcialmente<br />
coberto com panos, e deixado na relva sob proteção de árvore<br />
copada, indicava que a chuva que passara não havia prejudicado<br />
o piquenique. Dois dos rapazes jogavam pedras rasantes<br />
em remanso próximo. Os círculos concêntricos que se formavam<br />
agradavam-lhes a vista. O pai, com uma das mãos apoiadas no<br />
ombro da filha, acariciava-lhe os cabelos, enquanto pacientemente<br />
ensinava-lhe a pescar. Um terceiro rapaz, que também estava<br />
no cenário, fingia tomar-lhes o caniço. Não parava de se movimentar<br />
e, sorrindo, cutucava-lhe os flancos e fazia folguedos com<br />
a ansiedade da pequena irmã.<br />
29
30 Jairo Martins de Souza<br />
O fato é que, após tal visão de harmonia, vira um forcado<br />
e uma pá abandonados na estrada: obra de algum desleixado.<br />
Ora, o que mais fazer? Por mais que os instruísse, alguns de seus<br />
camponeses teimavam em não seguir pequenos detalhes de organização.<br />
Não fosse isso bastante, alguns dejetos deixados ao largo<br />
por cães sem dono haviam contaminado o ambiente de entrada<br />
de seu castelo. Felizmente, a eles se sobrepunha o aroma de terra<br />
lavada de chuva.<br />
Não era frequente que se aborrecesse com tais detalhes do<br />
cotidiano. Nem poderia. Era homem do campo!<br />
E, já apeando, dissera ao condutor que talvez tivesse que voltar<br />
à cidade: não tarda! O homem já havia guardado o chicote,<br />
quando simultaneamente ouviu o patrão dizer o mesmo a outro<br />
servo que se aproximava apressado para carregar-lhe desgastada<br />
maleta de couro de boi.<br />
Ambos imediatamente entenderam que seu senhor voltava<br />
de um dia extremamente atribulado. Um dia de cão. O que não<br />
notaram é que o fidalgo, com ponta remota de satisfação, vira<br />
que seu trecho preferido da entrada do castelo, situado a alguns<br />
metros após baixo muro de pedras cinzentas estava, de um dia<br />
para o outro, lateralmente todo preenchido por pequenas flores e<br />
cogumelos. Agradava-lhe o contorno sinuoso do caminho!<br />
Mas foi olhando orgulhosamente para a torre de proteção<br />
que marcava o ponto mais alto de sua morada que fez a retirada<br />
do chapéu, pendurando-o imediatamente em pau fixado após a<br />
porta principal de duas bandeiras. E com o canto dos olhos reparou<br />
que a ordem que dera antes de sair em direção ao vilarejo<br />
fora rigorosamente obedecida. Uma das bandeiras da portentosa<br />
porta central de madeira trabalhada estava definitivamente fechada<br />
com seus ferrolhos fortemente soldados e encravados no piso.<br />
Como sempre fazia, olhou-se no espelho, lembrando que a barba<br />
havia ficado por fazer. Foi momento também de confirmar que<br />
a peruca adquirida por alto preço, em Paris, fora intensamente<br />
manchada pela breve intempérie. Com isso mal se deu conta que<br />
as botas estavam sujando grosseiramente o piso cotidianamente<br />
zelado pelos olhos vigilantes da mulher.<br />
Rotineiramente não se movia com tal agilidade. Os que o conheciam<br />
bem sabiam que quando assim se comportava, fazia realçar<br />
sintoma deixado por golpe não muito recente de ponta de baioneta.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Na ocasião em que fora ferido, não fosse colocação imediata<br />
de caneca de açúcar, talvez nem mais pudesse ficar apoiado sobre<br />
um dos pés. Ainda que tenha sido efetiva, a providência tomada<br />
em tempo hábil não foi suficiente para impedir que a mesma dor<br />
profunda voltasse à tona com mais intensidade a cada inverno.<br />
Com o frio, acordava como se estivesse no dia da batalha em que<br />
fora atingido. Chás caseiros e unguentos não davam conta de aliviar<br />
seus sofrimentos. Recordação doída e digna de medalha, em<br />
forma de águia, a ser, merecidamente, recebida das mãos do próprio<br />
Bonaparte. Muitos anos haviam se passado...<br />
Pois o fidalgo Jean-François Dissandes de Bogenet era daqueles<br />
que nunca deixariam de entregar Mensagem a Garcia!<br />
Foi aí que Tiserrand disse, após breve pausa, que o acidente<br />
fora resultado de sua participação na ajuda francesa para libertação<br />
das Treze Colônias da América do Norte.<br />
Atualmente nossa grande discussão com os ingleses, mon<br />
ami, resume-se somente aos confrontos de futebol, questões menores<br />
da política, e recusa de abolição da libra em favor do euro.<br />
Em séculos passados não era assim. Bastava que um dos<br />
príncipes achasse que o outro se trajava com mais elegância para<br />
que o canal da Mancha ficasse manchado de sangue.<br />
Faltou-me dizer, Tisserand comentou, que o fidalgo fisicamente<br />
também havia ficado manco da perna esquerda. Um coxo!<br />
Em momentos críticos, como o descer de uma carruagem, era-lhe<br />
razão para indesejáveis incômodos.<br />
Bem, não fossem aquelas dores bastantes, as agruras do seu<br />
período americano não se reduziam a isto, Jean-François Bogenet<br />
havia adquirido outra enfermidade contra a qual não tinha<br />
recursos. Simplesmente padecia. A ciência evoluía rapidamente,<br />
mas desgostos psicológicos que dependessem de suporte médico<br />
somente viriam a partir dos finais do século dezenove. Nenhum<br />
combatente conseguiria abortar da memória as cenas inundadas<br />
de sangue dos companheiros mortos no cerco de Yorktown, na<br />
Virginia.<br />
Não sem razão, mon ami. O senhor pode perguntar, muitos<br />
ainda sobrevivem, a um ex-pracinha da FEB o que significa estar<br />
em batalha em que prevalece o embate corpo-a-corpo!<br />
Companheiros de farda relataram que o fidalgo comportouse<br />
com a bravura dos guerreiros espartanos encurralados no des-<br />
31
32 Jairo Martins de Souza<br />
filadeiro das Termópilas. O filme Trezentos, Tisserand explicou,<br />
estrelado pelo Brésilien Rodrigo Santoro, pode ilustrar e sensibilizá-lo<br />
magnificamente quanto à dureza dessa comparação. Contudo,<br />
não sendo essa película exemplo bastante, resta-me lembrar<br />
que o fidalgo lutou sob o comando de Rochambeau. Família de<br />
militares famosos. O conde Rochambeau animava os seus com<br />
o conhecido lema de brasão familiar: viver e morrer como um<br />
bravo, vive em preux y mourir.<br />
Foi assim que as imagens e os odores de morte ficaram definitivamente<br />
retidos no inconsciente do fidalgo.<br />
No fundo, Tisserand disse-me, meu propósito era deixar<br />
bem claro que, <strong>Monlevade</strong>, além de oficial destemido, tinha olfato<br />
privilegiado. Isto, em muitas situações, nada contribuía para<br />
seu bem-estar. Já que, quando cheiros como aqueles voltavam<br />
à sua memória, faziam-no com força redobrada, triplicada, quadruplicada,<br />
quintuplicada, enfim, como o milagre da alavanca de<br />
Arquimedes que via agora um dos trabalhadores do castelo usar<br />
para retirada de roda de outra carroça que se projetara em buraco<br />
no mesmo caminho pelo qual havia chegado.<br />
Passaria aquela característica genética para os filhos. O derradeiro,<br />
com maior intensidade: terá três!<br />
Mas o que de fato lhe criava rugas dizia respeito ao futuro do<br />
país e à perpetuação do nobilíssimo nome <strong>Monlevade</strong>.<br />
Com tal estado de espírito, mal se apercebera da presença<br />
de outros trabalhadores e fornecedores que cumpriam seus afazeres<br />
de trabalho e rotina de estrutura dos diversos setores de sua<br />
propriedade: estábulos, plantações, gado e outros afins. Trabalhavam<br />
conversando como faz de hábito quem lida com tarefas<br />
mecânicas e repetitivas. Alguns deles divertiam-se fazendo troças<br />
uns com os outros.<br />
Nessa condição é que também trocavam ideias sobre a nova<br />
situação do clero e da nobreza locais. Um deles cochichara dizendo,<br />
companheiros, falem baixo, passa perto o cavalo de ferradura<br />
rachada, ra, ra, ra, ra...<br />
Era o próprio fidalgo que se dirigia no ritmo em que estava<br />
aos seus aposentos: já podemos vê-lo subindo a escada de acesso<br />
ao primeiro piso. Área íntima e dos dormitórios. Sabia estar lá<br />
a esposa que, em horário vespertino, costumava reservar tempo<br />
para bordar as roupas e trabalhar as rendas da casa.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Já passavam das quatro e a mulher desviou o olhar da peça<br />
de tricô. Levantou a cabeça e, com o canto dos olhos, notou que<br />
o marido chegara. Um frio percorreu-lhe o corpo e alma. Algo o<br />
incomodava...<br />
Jean Dissandes de <strong>Monlevade</strong> retirou a peruca e instantes<br />
depois desvestiu a sobrecasaca de cor azul. Ato contínuo, disse<br />
baixinho para si mesmo, enquanto olhava para a esposa que julgava<br />
distraída com seus afazeres: essa deverá ser a mãe dos meus<br />
outros filhos.<br />
Finalmente buscou os olhos da mulher, que já virara o rosto<br />
para vê-lo concluir aproximação.<br />
Felicité, já sabemos ser este o seu nome, segundos antes estava<br />
ligeiramente ansiosa. Agora mudara seu quadro de sentimentos:<br />
tinha ficado intimamente bastante perturbada. Ouvira<br />
e olhara por fresta da janela que a carruagem do marido havia<br />
chegado, e ele até o momento não se aproximara para beijá-la, e<br />
nem para agradá-la com qualquer outro tipo de afago. Não. Seu<br />
senhor nunca fora dado a esse tipo de comportamento.<br />
Foi quando, acomodando-se ao seu lado, o fidalgo lembrouse<br />
repentinamente dos recentes manuais de cortesia, os quais ele<br />
mesmo gostava de ler em voz alta e, juntos, discutir futura aplicabilidade<br />
para os filhos. Então mudou postura e, abaixando-se,<br />
acariciou-lhe ternamente o rosto e os cabelos. Olhou-a profundamente<br />
nos olhos, e disse, de novo, somente com a alma, como<br />
se dessa forma a outra pudesse ouvi-lo. Estamos pagando nosso<br />
preço, meu amor! A França passa por fortes abalos. Não há outro<br />
jeito. É assim em todo processo histórico de depuração!<br />
La Villate, Bogenet e <strong>Monlevade</strong> são castelos privilegiados,<br />
Félicité, foi o que finalmente verbalizou para a mulher. Ela instintivamente<br />
percebera que o marido tinha dado sequência a algumas<br />
frases que silenciosamente vagavam por sua cabeça. Essas<br />
propriedades acompanham a família há gerações.<br />
Pode ser que haja sistemas que funcionem melhor. Não os<br />
conheço. Se existem, talvez devessem ser testados: desde que se<br />
respeitem direitos estabelecidos! E não é que não tenha consciência<br />
da validade da matemática de Malthus. Não podemos negá-la.<br />
Basta olhar para dentro da nossa própria França e fazer<br />
algumas contas simples. Não se pode simplesmente ignorar as<br />
secas e a força dos invernos que temos tido! As famílias não têm<br />
33
34 Jairo Martins de Souza<br />
tido crescimento geométrico? Não é dezoito o número de filhos<br />
dos meus pais? Daí a fome! As dificuldades têm sido muitas para<br />
todos, Felicité. A começar pela atual falta de clientes para os tisserands<br />
da nossa região...<br />
Ah, Tisserand, percebi!... tisserands. Tecelões. Ofício comum<br />
nas vizinhanças de Guéret. Eureka! Um deles pode estar ajudando-me<br />
a tecer os fios deste livro!<br />
O estrangeiro, homem perspicaz, percebeu que algo inesperado<br />
estava se passando comigo. Então, imaginando dar tempo<br />
ao tempo, levantou-se e, alegando estar com as vias sanguíneas<br />
congestionadas, fez calmamente uma pequena sessão de alongamentos.<br />
Foi a partir daí que, olhando-me o rosto, e sentindo-se novamente<br />
à vontade, prosseguiu divagando sobre os protestos do<br />
fidalgo <strong>Monlevade</strong> que conversava com a mulher.<br />
Nosso rei é amaldiçoado, Felicité! É fantoche calçado pela<br />
escória da Velha Monarquia. Até a Tomada da Bastilha, não tinha<br />
dado conta do que ocorria com o povo em Paris. Não reparava<br />
no vai-e-vem de ministros e colaboradores. O trânsito de cavalos<br />
e carruagens para Versailles era absolutamente extraordinário! A<br />
única palavra que consta em seu diário íntimo no fatídico catorze<br />
de julho foi a palavra Rien! Nada!<br />
Escreveu-a antes de se deitar. Ninguém em sua corte, Felicité,<br />
reflete sobre ideias novas e equilíbrio de contas. Nós, não. Aqui<br />
em <strong>Monlevade</strong> trabalha-se duro. Nobreza devassa. Pompadour, a<br />
marquesa, deixou herdeiros à altura! Mas custa-me, Felicité, aceitar<br />
as execuções sumárias da Revolução. E não é que seja contrário<br />
a tudo. Novos tempos. Novos conceitos. Não fomos ensinados<br />
que o corpo humano é composto de cabeça, tronco e membros?<br />
A sociedade boa de se lidar é também dividida, organizada. Nobreza.<br />
Clero. Plebe. Cada coisa em seu lugar. Fica mais fácil de<br />
manter a ordem. Mas aí alguns se aproveitam e fazem com que o<br />
sistema se sature de injustiça.<br />
O reinado tem que ser mantido, ma chérie. Mas sob luz de<br />
novos conceitos jurídicos. Talvez como os ingleses...<br />
Felicité manteve-se sossegada, enquanto decidia como interceder<br />
e relaxar a alma do seu amado. Próximo, o pequenino bebê<br />
François <strong>Monlevade</strong>, um ano e alguns meses, repousava placidamente<br />
enquanto amamentado por Francine, sua ama de leite.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Por temor de doenças, e de pestes, a mãe prometera, a si mesma,<br />
caso lhe faltasse leite do próprio peito, nunca alimentar os filhos<br />
com leite de vaca.<br />
O celebrado Davi não produziria quadro mais significativo<br />
e bonito do novo modo de viver da família cristã. A despeito de<br />
tantas comoções, tudo exalava cheiro e imagem de amor.<br />
Três. Três longos anos. Fora o tempo após bodas que Felicité<br />
demorara a ter o primeiro filho. Ele acaba finalmente por ceder<br />
ao sono. Ela se enternece. Volta os olhos novamente para o marido,<br />
o angustiado Jean Dissandes. Respeita-lhe o sofrimento, mas<br />
absolutamente venera o rapazinho que dorme tranquilo, alheio às<br />
truculências de um país que protesta contra seu rei e luta articuladamente<br />
pela derrubada do Velho Regime.<br />
Que outros filhos venham à luz em curto prazo para dar seguimento<br />
à vida e desbravar novos mundos. Um deles já está a<br />
caminho: seu senhor não percebera. Quem sabe para abril ou<br />
maio do ano que vem.<br />
Algumas horas mais tarde, e exercida sua magia de mulher,<br />
o fidalgo Jean-François repousava tranquilamente no seu colo.<br />
Nem mesmo o frio parecia acordar-lhe as dores costumeiras do<br />
seu ferimento. O barulho suavemente cadenciado da chuva que<br />
voltara, e caía no telhado, havia também ajudado o seu homem<br />
a espantar parte das preocupações. Melhores tempos. Melhores<br />
colheitas virão. O filho, enrolado em panos revestidos de pele de<br />
carneiro, acordara e olhava-a com olhinhos vivos de quem quer<br />
também novamente alimento. A luz de uma vela bruxuleante, que<br />
insistia em não apagar, fez Felicité perceber que Francine já tinha<br />
um dos mamilos expostos. Pronta para satisfazê-lo.<br />
Daí a minutos estaria arrotando, e voltaria a dormir sossegado.<br />
A mãe sorriu tranquila, prevendo que alguns meses mais e<br />
Deus lhe traria alegria diferente. Sua urina andava mudando de<br />
cor. Não tinha dúvidas: estava grávida novamente!<br />
Ah, a azia que venho sentindo ultimamente prenuncia ser<br />
tempo de Marie-Victoire! Depois dela, somente Jean.<br />
Pois iria chamar seu último filho pelo mesmo nome do pai. O<br />
mesmo do avô... Teria o prazer de vê-lo perpetuado por mais uma<br />
geração na futura imagem do filho. E acrescentaria o nome Antoine.<br />
Ah, não pode ser outro: o seu futuro menino deverá ser o não<br />
menos amado Jean Antoine!<br />
35
36 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
V<br />
O nascimento de Jean de <strong>Monlevade</strong> e o estranho local do<br />
primeiro sacramento<br />
Poucos anos se passaram, Tisserand disse, e com eles o testemunho<br />
de que Felicité tinha razão. Os filhos nasceram-lhe conforme<br />
sua formidável intuição feminina.<br />
O senhor sabe, mon ami, que, dizendo isto, não estou caindo<br />
em pecado. A percepção desenvolvida pelas mães e mulheres<br />
quanto a tais fatos é infalível! Resulta de séculos e séculos de sofrimento<br />
e observação.<br />
É por isso que até mesmo a pequena Maria Vitória, o quarto<br />
membro da família do fidalgo Jean-François, já andava, curiosa,<br />
circulando pelos cantos de <strong>Monlevade</strong>. Felicité acertara na mosca<br />
quanto à causa das azias do início de sua segunda gravidez<br />
e a filha, que, na ocasião, crescia secretamente em seu útero, já<br />
balbuciava frases completas, ainda que um tanto carentes de articulação.<br />
E foi nesta condição que, certa tarde, perguntara o que estava<br />
causando o crescimento paulatino da barriga da mãe. Felicité<br />
penteava-lhe os cabelos e a menina assustou-se, tanto pela inesperada<br />
batida do cabo da escova em sua cabeça, quanto pela<br />
resposta agressiva de sua sempre carinhosa e prestativa mãe! Não<br />
é coisa de criança saber, advertira-lhe. O tom de voz fora inusitadamente<br />
severo.<br />
Maria Vitória não conseguia conter ansiedade pela vinda do<br />
que julgava ser uma irmã. E, por meio de sua graciosa linguagem<br />
infantil, pedia a Deus que lhe presenteasse com uma que gostasse<br />
também de brincar com suas bonecas. Ficou frustrada. Os céus<br />
decidiram não atender às suas preces...<br />
E então o senhor imagine uma madrugada em que o alvorecer<br />
é muito tímido e a temperatura ambiente nos convida a<br />
37
38 Jairo Martins de Souza<br />
permanecer na cama. Pois é. Foi numa dessas que veio ao mundo<br />
Jean Antoine Felix Dissandes de <strong>Monlevade</strong>. Faltou-lhe o nome<br />
Bogenet. De última hora, e por terrível negligência do cartório<br />
de registros, aquele ramo da família não foi anotado no nome<br />
do filho mais novo do fidalgo. Em todas as partes do mundo alguns<br />
funcionários públicos primam pelo descaso com seu ofício e<br />
com suas obrigações. Sendo assim, meu amigo, não é de se estranhar<br />
que mais falhas dessa mesma natureza venham a interferir<br />
em instantes de menor relevo desta história. Garanto-lhe serem<br />
momentos até certo ponto divertidos, o senhor não perderá por<br />
esperá-los.<br />
O que posso adiantar é que Felicité Sallé du Sioudray <strong>Monlevade</strong><br />
– este era o nome completo da esposa do fidalgo Jean-François<br />
– saiu-se magnificamente do parto do último filho. Não se pode<br />
esquecer que era situação em que muitas mães perdiam as vidas!<br />
A parteira da aldeia era mulher despachada. E o fidalgo, afastado<br />
da esposa por alguns passos, escutara com satisfação incontida<br />
o resultado da leve palmada que fora dada nas pequenas<br />
nádegas da criança. Choro forte que ecoou longe e silenciou, por<br />
alguns segundos, o coral de galos que despertavam as almas que<br />
habitavam o castelo.<br />
O médico, que fora convocado por serviçal, estava atendendo<br />
a outra emergência a algumas léguas de distância e não chegaria<br />
em tempo hábil. Então, Yvonne, a mulher que a socorrera,<br />
decidiu untar os dedos com uma espécie de gordura preta, e os<br />
enfiar com vontade no ventre da quase inconsciente Felicité que<br />
era, ao mesmo tempo, compassadamente convocada a expulsar<br />
o filho. Força. Força. O bebê veio logo em seguida. Nascera praticamente<br />
sentado e com cordão umbilical enrolado por duas vezes<br />
no pescoço! Mas sua angústia foi pequeníssima, pois teve-o livrado<br />
com habilidade e destreza. As pequenas e experientes mãos<br />
de Yvonne haviam entrado em alerta e posto a cabo a missão em<br />
questão de segundos!<br />
A mãe, apesar das dores, estava bem. Mas, por precaução, a<br />
eficiente socorrista fez-lhe torniquete e furou uma de suas veias<br />
para permitir saída de quantidade pequena, contudo suficiente<br />
de sangue.<br />
Foi para evitar problemas e limpar o organismo, explicou posteriormente:<br />
madame Felicité vai ficar bem.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
E após enrolar o braço de sua paciente com pano limpo, disse<br />
que aprendera o procedimento com o barbeiro-cirurgião da cidade<br />
que, por sua vez, dissera ter aprendido com o médico Colbert<br />
que atendia clientela de toda a região. Toma, mãe, ele é todo seu!<br />
Felicité tocou-o, por inteiro, da cabeça aos dedos dos pés.<br />
Graças a Deus, não faltava nada ao seu novo filho! E pelos protestos<br />
que fizera ao respirar pela primeira vez os ares do mundo,<br />
por dentro também aparentava ter boa saúde.<br />
Penso não ter sido obra do acaso, Tisserand vaticinou, este<br />
jovem careceria de muita força de vontade para cumprir sua missão.<br />
E foi assim que deu por encerrados os trabalhos de parto do<br />
protagonista de sua história.<br />
Jean de <strong>Monlevade</strong> não foi um bebê bonito. Tinha os olhinhos<br />
azuizinhos e era, digamos assim, engraçadinho. E nunca<br />
em toda a sua vida teria a clássica beleza masculina de um Alain<br />
Delon. Nem mesmo em sonho! Compará-lo, mon ami, com o<br />
Gérard Depardieu quando fez Cyrano de Bergerac tornar-se-ia<br />
o outro extremo. O da feiúra. Quem sabe pudesse ser explicado<br />
como alguém do tipo do Jean Paul Belmondo?... Nem feio, nem<br />
bonito. Bem, o que posso lhe dizer de confiável é que sua constante<br />
elegância no trajar, muitos sabiamente usam este artifício, é<br />
que o fazia parecer bem melhor aparentado do que efetivamente<br />
era. É com esse recurso que se tornava facilmente reconhecido<br />
como un homme charmant, um homem charmoso.<br />
Fazia mais de hora que eu ouvia o estrangeiro a quem decidira<br />
chamar Tisserand. Enquanto o observava mais uma vez olhar<br />
para os lados com a cabeça alta, como se estivesse pesquisando<br />
que tipo de tempo teríamos pela frente, pensava até que ponto<br />
iríamos chegar com a história daquele moço. Foi quando mudou<br />
repentinamente de assunto.<br />
Na ocasião do nascimento de Jean, os moradores das redondezas<br />
de <strong>Monlevade</strong>, disse, mantinham-se relativamente a<br />
distância da cartilha expedida pelo Terror revolucionário. O que<br />
não impedia que alguns, a mando da administração central do<br />
Departamento de Haute-Vienne, acabassem sendo presos e levados<br />
para igrejas e castelos. Soldados circulavam fortemente armados<br />
e a igreja católica continuava sendo combatida em vários<br />
segmentos. Alguns dos seus prelados não concordavam com o<br />
estado de coisas e ficavam sujeitos a sanções. O que celebrou<br />
39
40 Jairo Martins de Souza<br />
o rito de colocação da alma, em Cristo, do filho Jean do fidalgo<br />
talvez tenha sido um deles. Pode ter sido esse o porquê de ter sido<br />
batizado, poucos dias depois do nascimento, em condição absolutamente<br />
singular: o sacramento lhe foi dado em pleno estábulo<br />
dos próprios domínios de <strong>Monlevade</strong>.<br />
Anos mais tarde, Felicité simplesmente declarou que havia<br />
encarado o evento com benignidade. E justificou-se explicando<br />
que, além do comentado, na época, alguns camponeses continuavam<br />
lançando focos de revolta contra donos de feudos como<br />
os de sua família. Daí a precaução tomada. Já o vigário, em suas<br />
notas, simplesmente percebera o acontecido com fé e esperança<br />
de dias melhores. Não nascera naquele tipo de ambiente o Nosso<br />
Senhor?
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
VI<br />
O caso da bola do jogo de péla<br />
A história da família do fidalgo, mon ami, tem algumas peculiaridades<br />
excepcionais e absolutamente contraditórias.<br />
O senhor se lembra da angústia que demonstrara em conversa<br />
reservada que tivera com a esposa Felicité? Pois daí não<br />
demorou muito para tornar-se um Jacobino: um membro do famoso<br />
conselho dos 500. Tal decisão trouxe-lhe muitas situações<br />
de risco.<br />
Imagine um veterano de guerra, um homem coxo, fugindo<br />
pelas janelas de sala onde estivera reunido com correligionários!<br />
Pois foi por meio de cena bizarra como esta que acabou escapando<br />
das garras dos que extinguiam o período revolucionário da<br />
Convenção.<br />
Mas o senhor também deve estar recordado que o fidalgo era<br />
homem feliz dentro do seu seio familiar. Talvez Deus tenha feito<br />
dessa forma para compensá-lo pelas contingências que enfrentou.<br />
Bem, para reforçar esta afirmativa, reservei-lhe exemplo que<br />
ilustra bem a fortuna de que desfrutava como chefe de família.<br />
Ela começa em tarde de primavera quando o menino Jean<br />
Antoine foi com o pai visitar família amiga em Guéret: estamos<br />
no acender das luzes do século dezenove e ele já conta quase dez<br />
primaveras.<br />
E para que o senhor tenha melhor imagem do fato, adiantolhe<br />
descrição do que viram ao chegar à rua principal do vilarejo.<br />
Nada especial. Em sua essência era quadro comum a cidades do<br />
interior daqueles anos. Pois, ao lado do povo, cachorros latiam e<br />
se deslocavam em bandos de um para outro lado e, ao mesmo<br />
tempo, carroças e bancas de mascates eram animadas pelas vozes<br />
das pessoas que davam andamento a cenas de negociações.<br />
Barganhava-se sem descanso pedaços de carne de porco, gali-<br />
41
42 Jairo Martins de Souza<br />
nhas, peixes, coelhos, perdizes... tudo improvisadamente pendurado<br />
em toscos ganchos de ferro. Em barracas mais afastadas o<br />
ritmo não se reduzia quanto a flores, frutos, legumes, enfim, todo<br />
o resto que era exposto para apreciação, consumo e compra dos<br />
viajantes e dos moradores.<br />
O senhor, mon ami, conhece como funcionam estas coisas e<br />
deve ter acertadamente concluído que a feira das tardes de sábado<br />
estava em pleno andamento.<br />
Senão, repare com mais cuidado e sinta que os feirantes recendiam<br />
a alho, cebola e mau hálito. Já alguns compradores, mesmo<br />
sendo dia claro, tomavam vinho livremente, enquanto, entre gargalhadas,<br />
empanturravam-se de tira-gostos. Outros circunstantes<br />
que lá estavam nem para comprar, nem para vender, simplesmente<br />
jogavam damas ou apreciavam disputas de braço de ferro.<br />
Próximo a eles, um policial observava todas as circunstâncias<br />
para evitar brigas ou quaisquer outros aborrecimentos: os desocupados<br />
e arruaceiros da região eram bem conhecidos. Vestido<br />
disfarçadamente, à paisana, um oficial do governo revolucionário<br />
de Paris também fazia sua ronda.<br />
Nessa condição é que o menino Jean Antoine de <strong>Monlevade</strong><br />
e seu cavalo foram efusivamente saudados pelos que os viam<br />
chegar. Aí está, meu amigo, a bem-aventurança que havia lhe<br />
anunciado.<br />
Vou explicá-la, Tisserand disse. Vou esclarecer o porquê do<br />
rapazinho ser tão admirado tanto nas cercanias quanto na própria<br />
Guéret.<br />
O fato é que dias antes chegara até a cidade para estudos<br />
extraordinários com o mestre-escola da cidade: viajara acompanhado<br />
por serviçal do castelo.<br />
Pois o fidalgo dava ao filho cuidadosas lições caseiras, mas<br />
também o havia matriculado na escola local. Daí era de praxe<br />
que todos os dias da semana o menino fizesse o roteiro <strong>Monlevade</strong><br />
– Guéret para chegar até ao educandário.<br />
E é a partir disso que vou economizar palavras, Tisserand informou,<br />
pois o cenário era aproximadamente o mesmo que disse há<br />
pouco. A diferença era que não se tratava de dia de feira, mas sim<br />
de festividades dedicadas à padroeira local. E, como parte das celebrações,<br />
jogava-se tradicional partida de jogo de péla. A população<br />
das redondezas praticamente parava para presenciar o evento.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Não sei se o senhor sabe o que significa a palavra péla, Tisserand<br />
prosseguiu, é raramente usada. É o nome de uma espécie<br />
de jogo de tênis que alguns dizem ser o predecessor do popular<br />
football inventado pelos ingleses. Nós franceses, dizemos abreviadamente<br />
foot: jeu de foot, jogo de futebol... bem, devo voltar ao<br />
episódio que descrevia para o senhor.<br />
O campo em que acontecia o tal cotejo era prioritariamente<br />
reservado para acomodação de tropas militares e, quando desocupado,<br />
servia para prática de animadas partidas. Era essa a<br />
situação!<br />
A bola de jogo, feita de pele de estômago de boi, caíra ocasionalmente<br />
em buraco que permitia justo que lhe coubesse. O que<br />
significa dizer que poucas eram as sobras laterais para tentativa<br />
de puxá-la para fora com varetas, ou qualquer instrumento improvisado<br />
que alguns, a última hora, desesperadamente tentavam<br />
fabricar.<br />
A partida fazia minutos que estava paralisada. Os protestos<br />
cresciam. Menos por parte dos próprios jogadores do que de alguns<br />
presentes que haviam apostado na vitória de um ou de outro<br />
esquadrão.<br />
Jean aproximou-se do local onde estava a roda de gente que<br />
se esgoelava na tentativa de recuperação da bola. E foi vendo<br />
todo aquele deus nos acuda que, de cima do lombo do seu cavalo,<br />
levantou os braços e pediu calma a todos, dizendo: esperem!<br />
Não demora trago essa bola para a superfície! Havia entendido a<br />
circunstância.<br />
Surpreendentemente os presentes deram-lhe ouvidos e perguntaram-lhe:<br />
o que queres dizer, rapaz?<br />
Tragam-me balde cheio de água que, em instantes, terão de<br />
volta a bola de jogo!<br />
Foi imediatamente atendido e com seus braços finos jogou<br />
lentamente o líquido no buraco. Com sua descida, a bola subiu.<br />
Os homens comemoraram! Equipes e assistentes ergueram canecos<br />
de bebidas homenageando o rapaz.<br />
Quando se calaram, Jean pediu-lhes que não o agradecessem,<br />
e sim a Arquimedes e à sua brilhantíssima explicação da lei<br />
do empuxo. Estudei-a em livros antigos do fidalgo, meu pai, ele<br />
tem admiração por este grego. Foi assim que aprendi que poderia<br />
ser usada em casos simples como este. Ou até mesmo em outros<br />
43
44 Jairo Martins de Souza<br />
de grande complicação como os de cálculo de cascos de navios.<br />
Foi a força de Arquimedes que empurrou a bola para cima, complementou.<br />
Não vou acrescentar nada ao que Jean disse, Tisserand prosseguiu.<br />
O senhor, tenho certeza, conhece de cor o enunciado daquela<br />
poderosa lei da natureza, conforme ensinada nas escolas.<br />
Nenhum dos camponeses entendeu nada do que dissera,<br />
mas com olhares de gratidão voltaram rapidamente para o final<br />
da contenda. Palavras de elogio eram ouvidas em todos os cantos<br />
da praça.<br />
Próximo dali o pai, que pernoitara na cidade, sorrira, estava<br />
já de saída mas teve tempo para aplaudir o evento provocado por<br />
seu querido. Fizera eco com o que ouvia. Não posso dizer o contrário<br />
ao que o povo diz, insinuou, estou habituado às estranhezas<br />
desse garoto desde que veio ao mundo.<br />
Então, Tisserand, parece-me que encaixando oportunidade,<br />
disse-me que realmente o rapaz tinha gosto por coisas inusitadas.<br />
O pai tinha razão.<br />
Uma delas era a de cheirar pedras. Examinava-as também<br />
com as mãos para sentir-lhes a textura em mínimos detalhes.<br />
Metia-as cuidadosamente até mesmo entre os dentes. Com isso<br />
verificava se uma era mais fácil de lixar do que a outra, ou se essa<br />
riscava aquela.<br />
A de diamante é a que risca tudo, concluiu. Não é à toa que<br />
monsieur Sarkozy, o ourives, disse-me que não pode deixar de<br />
tê-lo em sua oficina, Jean havia comentado com o pai.<br />
Por tudo isso, o fidalgo escreveu para um parente que morava<br />
em Paris, contando, inclusive, que o filho tinha até mesmo um<br />
cachorro buscador de pedras. Basta que ele as aponte para que<br />
o animal as localize e as extraia mesmo que em locais de difícil<br />
acesso. Totalmente preto. Era razão de o buscador ter sido chamado<br />
de Breu.<br />
O que não se deve estranhar é que também gostava de fazer<br />
coisas comuns a crianças de sua idade. Como pescar no Creuse,<br />
agora é o próprio Tisserand quem diz.<br />
E, logo na primeira ocasião, tinha reparado que os peixes vistos<br />
no fundo de suas águas pareciam maiores lá em baixo do que<br />
quando os pescava. Trazidos para fora se tornavam menores! Ficou<br />
intrigado. Tinha apenas 8 anos e, ao voltar da pescaria, comentou
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
com Flamini, o cozinheiro do castelo. O homem riu, e disse ser<br />
história de pescador.<br />
Não pôde pedir explicações ao fidalgo. O pai estava em viagem<br />
de negócios. No entanto, certificou-se, em almanaque dos arquivos<br />
de <strong>Monlevade</strong>, que a ilusão de peixe grande é culpa de mudança de<br />
velocidade da luz na água do rio. A chamada refração. Não entendeu<br />
bem: a explicação dada era vaga. Mas, suficiente para concluir que<br />
devia ser razão de os pescadores serem ditos como mentirosos...<br />
Daí não ter sossegado até descobrir que René Descartes escrevera<br />
sobre o assunto no livro Le traité du monde et de la lumière<br />
(Tratado sobre o mundo e sobre a luz). Vou pedir a papai para<br />
encomendá-lo. Em Paris...<br />
E é para lá que também vamos, mon ami, passa da hora de<br />
conversarmos um pouco sobre a terrível guilhotina...<br />
45
46 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
VII<br />
A terrível guilhotina<br />
A fresca da tarde se avizinhava, anunciando que o tempo esfriaria<br />
levemente, mas manter-se-ia confortável. Estava cansado e perdi<br />
alguns minutos da exposição de Tisserand, pois devaneara sobre<br />
pontos anteriores de sua história. Ele havia percebido e, de repente,<br />
disse algo que teve o poder de atrair de volta a minha atenção.<br />
Em 1801, o mesmo ano em que Jean de <strong>Monlevade</strong> fez 10<br />
anos, disse, as lâminas insaciáveis da guilhotina francesa completaram<br />
igual período de existência. Deixou de ser aplicada somente<br />
em 1977! O último condenado foi o emigrante tunisiano Hamida<br />
Djandoubi que foi decepado por homicídio de uma jovem mulher.<br />
O possante e singular facão era tão temido pelos nobres franceses<br />
quanto o era, para algumas muçulmanas, o apedrejamento<br />
por deslize às leis do alcorão.<br />
É por isso que vou alongar-me um pouco sobre ele, Tisserand<br />
acrescentou.<br />
Em sua première, a cabeça condenada que rolara, até cair<br />
em recipiente próprio, fora a do pedreiro Pelletier, especialista em<br />
construção de estradas. Em 1793, foram também seus aterrorizados<br />
clientes, o pescoço real de Luís XVI e o de sua esposa: a então<br />
angustiada Habsburgo, Maria Antonieta.<br />
Desde então já se passara tempo suficiente para que fosse<br />
cumprida a lei nefasta de a criação virar-se contra a criatura. O<br />
filho virar-se contra o pai. Foi assim que Louis Guillotin, o médico<br />
que a inventou, tornou-se injustamente amaldiçoado. Pois a violenta<br />
lei da gravidade, e as polias e os contrapesos que usara no<br />
seu projeto foram, no fundo, somente para diminuir a miséria e a<br />
dor dos condenados.<br />
Foi aí que observei que Tisserand, após finalizar a última frase,<br />
estava mantendo um sorriso quase infantil, na face e nos lábios.<br />
47
48 Jairo Martins de Souza<br />
Como pode? São incontáveis as injustiças que podem estar<br />
embutidas neste assunto!<br />
Amigos do próprio fidalgo <strong>Monlevade</strong> poderiam ter sido injustamente<br />
sacrificados! Causou-me certa indignação! E pensei<br />
em pedir-lhe que voltasse a dizer de Jean e os 10 anos que Tisserand<br />
dissera ter completado.<br />
Mas antes disso, concluí que reparara minha estranheza<br />
quanto à aparente incoerência de sua postura, pois imediatamente<br />
explicou-se, com certa tristeza: se não é para afastar a miséria<br />
humana, mon ami, para que nos serve o riso?<br />
E confessou-me ter se lembrado vagamente de alguns versos<br />
do Bocage: dizem que um médico foi/ inventor da guilhotina/<br />
mostrou conhecer da morte/ mostrou conhecer medicina...<br />
Creia-me, caro leitor, ambos demos por encerrado o mal-entendido.<br />
O lucro que tive da situação foi também o de ter confirmada<br />
uma das minhas primeiras impressões, quando do início<br />
do nosso contato nesta praça. O terno de brim, o modo de se<br />
expressar, o olhar vago buscando o horizonte, o ambiente em que<br />
estávamos, enfim, tudo isso me fizera lembrar (ainda que o estrangeiro<br />
tivesse feições bem diferentes e mais envelhecidas) a figura<br />
do Tom Hanks, tal como no início do conhecido Forrest Gump.<br />
Bem, Tisserand poderia não ser artista de profissão, mas tinha<br />
realmente talento para tanto. Recitara o poema com maestria!<br />
E foi daquele ponto que continuou sua história dizendo que<br />
no mesmo 1801 o papa Pio VII voltou a ter controle dos sinos das<br />
igrejas do mundo católico francês. Havia-lhe sido retirado anteriormente<br />
pela Revolução. Paz provisória. Inclusive para as famílias<br />
que perambulavam pelas ruas com estômagos vazios.<br />
Prova dessa minha última afirmação, Tisserand confirmou, é<br />
que até mesmo alguns escritores relataram, a posteriori, inúmeros<br />
casos de jovens de boa intenção condenados à prisão e desprezo<br />
social por caso de simples furto de pão velho para alimentar<br />
irmãos e filhos menores. Em tais histórias, estes infelizes sempre<br />
contaram com o apoio da comunidade cristã!<br />
Repare o senhor que um operário, quando ativo, ganhava 20<br />
sous por dia. Um quilo de pão custava 20 sous. A água era gratuita.<br />
Passava-se a pão e água, mesmo quando se era afortunado o<br />
bastante para ajeitar trabalho. Bem, esses não são dados baseados<br />
em censos governamentais, pois a maioria deles é recheada de
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
falsidades. E sim, levantados em fontes da arte literária francesa<br />
da época. Vendiam-se livros dos seus autores por todo o mundo!<br />
Eles fizeram muito pela França, e é por meio da literatura que<br />
o país conquistou muitos admiradores aqui na longínqua América<br />
do Sul. Tanto é assim que filhos selecionados da burguesia brasileira<br />
andaram visitando Paris para estudos em diversas áreas da<br />
cultura e da arte.<br />
Não é de se surpreender que um desses jovens tenha vindo<br />
a influenciar a vida da família do fidalgo de quem falo. O senhor<br />
que me ouve não perde por esperar a confirmação do que digo!<br />
Tisserand sorriu. Já havia notado que sorria sempre do mesmo<br />
jeito quando pensava dizer algo contraditório. Acertei em<br />
cheio!... pois ele, em questão de segundos, prosseguiu dizendo<br />
que, embora não tivesse o propósito de expor a público seu miserável<br />
conhecimento da história da Europa, a evolução da ciência,<br />
tocada pela Polytéchnique francesa, pelos alemães, pelos ingleses,<br />
e outros pesquisadores avulsos pelo mundo afora, seguia sem solução<br />
de continuidade no início do século dezenove. O cálculo<br />
diferencial avançava a passos de gigante. Não é à toa que sempre<br />
se disse que a matemática anda séculos à frente de outras disciplinas.<br />
Daí estava por se confirmar na prática o que nela já se sabia<br />
por mais de duzentos anos: a Terra não é fixada e nem imóvel<br />
em qualquer ponto definido do espaço infinito. Muito menos no<br />
seu centro. Ela gira em torno do seu próprio eixo, foi o que Leon<br />
Foucault finalmente provou com o pêndulo que veio a montar no<br />
edifício do Panteão!<br />
Tudo. Toda a fantástica evolução daqueles anos foi lenta. A<br />
conta-gotas. Dou-lhe, a mais, o singular exemplo do barco a vapor.<br />
Após milênios de espera, o viajante se libertava da habilidade pessoal<br />
dos capitães no manejo das velas e lemes de suas caravelas.<br />
Para crer como eram complicadas aquelas situações, mon ami,<br />
basta estudar por alto operações simples da matemática de vetores.<br />
Pouco a pouco o estrangeiro desvinculou-se do ar professoral<br />
que subitamente havia assumido. Contudo não deixou de continuar<br />
dando seu parecer dizendo que tais avanços propiciaram ao<br />
povo europeu estender asas para novos continentes.<br />
O Brésil, por exemplo, era visto como se estivesse no estado<br />
em que Deus o havia criado. O jardim do Éden. Um distante retrato<br />
recuperado da criação.<br />
49
50 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
VIII<br />
A escola em Guéret e os cuidados do professor Duchamps.<br />
Jean é perseguido pelo maldoso Materazzi<br />
O professor Duchamps era homem sereno que levava a vida tendo<br />
como prazeres maiores a transmissão de conhecimento aos<br />
seus alunos e a dedicação à igreja de Cristo. Tentara ser cura<br />
d’almas exclusivo, mas a curiosidade científica, as propostas do<br />
suíço Rousseau, assim como outras atrações mundanas, chamaram-no,<br />
inapelavelmente, para o mundo secular. A igreja acabou<br />
por perder parcialmente um bom apascentador de ovelhas do seu<br />
vasto rebanho. A família se conformara, mesmo que houvesse<br />
planejado para ele somente a vida austera do claustro. Os argumentos<br />
do moço foram incontestáveis.<br />
O senhor, meu amigo, verá que Duchamps, no alvorecer de<br />
sua vida adulta, acabou sofrendo grandes decepções. Valeu-lhe,<br />
por final, a grande fé que, a despeito de tudo, sempre demonstrara<br />
ter. Considerava ser a grande herança que recebera dos pais!<br />
A bem da verdade, tudo começara com uma pequena tragédia<br />
familiar. Ainda jovem se apaixonara por uma prima: moça<br />
de cabelos dourados e olhos azuis com a qual convivia desde a<br />
primeira infância. Era daquele tipo de paixão, quem não as teve,<br />
construída pelas brincadeiras infantis e encontros de família regados<br />
com amor, inocência, poemas de rimas pobres e intimidade<br />
de vista de cotovelos descobertos. Não mais que isso.<br />
Não deu outra coisa. Feitos prematuramente os acordos de<br />
dote e compromissos, o casamento foi tão natural como nasce o<br />
sol da manhã, e outras estrelas escondidas pela claridade do dia:<br />
o que nada significa para duas almas apaixonadas, pois a chegada<br />
da noite dá chance a que apareçam, e tornem as madrugadas<br />
ainda mais belas para o casal.<br />
51
52 Jairo Martins de Souza<br />
Mais ainda naqueles dias em que a escuridão das ruas dava<br />
vez a maravilhoso planetário natural coalhado de estrelas extraordinariamente<br />
brilhantes. A vida vislumbrava, para os dois amantes,<br />
augúrios de muitas felicidades muito antes de soarem os gritos e<br />
protestos da Revolução. A promessa era a de um mar banhado de<br />
rosas.<br />
Aí, exatos nove meses após as festas e folguedos nupciais, é<br />
que ocorrera a desdita. Ela morreu. A causa mortis foi complicação<br />
surgida durante o parto que, sabemos, levava para a sepultura<br />
boa parte das mães que davam à luz novos filhos. Mortificado<br />
pelo ocorrido, o jovem viúvo tentou conseguir colocar o corpo<br />
da amada para descanso eterno junto a padres e abades no piso<br />
da igreja da cidade. Era pedido feito pela mulher pouco antes de<br />
morrer. Pensava poder daquela forma, ouvi-los, e a seus sermões,<br />
como se estivessem em púlpitos celestiais. Repousaria mais próxima<br />
do céu...<br />
Não conseguiu. Duchamps sofreu, rebelou-se contra Deus,<br />
chegou até mesmo a pedir que não se pronunciasse tal nome em<br />
suas proximidades, xingou santos que julgava protetores de si e<br />
da família e, por fim, quase sucumbiu à dor da perda precoce.<br />
Desesperou-se mais ainda quando, dias depois, foi comunicado<br />
que o pequeno filhinho que trazia no rosto os olhos azuis da mãe<br />
também se fora. O bebê nascera fraco e débil e não resistira à<br />
ausência do amor e leite maternos. O sofrimento fora triplo para<br />
o pai e o viúvo. A infeliz criancinha ainda não tinha sido batizada<br />
e esperaria no limbo até sua chamada para o céu no final do segundo<br />
milênio.<br />
Após enterrá-lo ao lado da mãe sob pequena campa no cemitério<br />
local, o abatido Duchamps andou pela França sem destino<br />
nem moradia fixa. Com o desencadear de tamanhas desilusões,<br />
encerrara precocemente sonho de ter lar e ninhada de filhos. Tão<br />
miserável era o seu estado que tinha os olhos constantemente<br />
inchados por choro ininterrupto: lembravam os de alguém com<br />
desagradável sintoma de conjuntivite.<br />
Mas antes de fugir para longe de sua desgraça, tivera inspiração<br />
suficiente para gravar em pedra seus nomes, com as datas de<br />
nascimento e morte, assim como duas linhas de poema comentando<br />
sinteticamente, talvez como Machado fez com sua Carolina,<br />
o amor e a falta que definitivamente iria sentir.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Após alguns meses, a vida de andarilho assomou-lhe à consciência.<br />
Pesou prós e contras. A busca do nada significava o quê?<br />
Nenhuma estrada serve para quem não sabe aonde quer chegar.<br />
Era homem forjado no campo. Como um passarinho murcho,<br />
precisava se fixar em um galho. Não podia ficar dando voltas<br />
como um rio de planície. Faltava-lhe decisão imediata.<br />
Ela não demorou e foi extremada. Por não considerar haver<br />
abrigo melhor para reflexão, comprou velho mosteiro, abandonado<br />
no topo de monte e isolado por densa vegetação, onde se<br />
refugiou por cerca de dois anos. Perdeu a noção dos dias da semana.<br />
Revirava velhos conhecimentos que guardava dos tempos<br />
de escola. A gramática. A dialética. A retórica. A aritmética. Lia a<br />
bíblia. Não atinava qual dia deveria consagrar especialmente ao<br />
senhor.<br />
O mundo passou para ele a ter classificação especial. As horas<br />
eram três blocos compactos. Manhã. Tarde. Noite. Com a passagem<br />
do tempo, cansou-se da solidão e da vida de eremita.<br />
O pequeno período de felicidade vivido com a esposa que<br />
não mais estava neste mundo trouxe-lhe saudades e desejo de<br />
voltar a ter vida social. Não. Não é que o luto houvesse se acabado<br />
de todo. Faria parte do seu cotidiano até o final dos seus<br />
dias. Entretanto a carne ainda não havia enfraquecido a ponto<br />
de não sucumbir a contatos com o sexo oposto. Tinha lá suas<br />
sublimações. Pois não se pode ficar eternamente apaixonado por<br />
quem não mais lhe escreveria bilhetes de amor ou lhe faria carinhos.<br />
Sua atitude deixara de ser doentia e mórbida. Voltara a<br />
ler o Novo Testamento. Fizera as pazes com Deus e tinha, enfim,<br />
mirado os tristes eventos como parte de sua cruz terrena.<br />
Considerava-se no caminho da salvação; a dor forja melhor<br />
o caráter que a vida fácil e, por final, viu-se com a alma fortalecida<br />
com as longas noites de reflexão e leitura passadas sob a<br />
luz de vela de sebo e a observação, e anotação, dos movimentos<br />
dos astros noturnos. Para sua felicidade, achara como parte do<br />
espólio do mosteiro, abandonada em armário esculpido nas suas<br />
paredes, uma luneta empoeirada e suja, mas com lentes em bom<br />
estado de conservação. Não descobrira o grande Galileu maravilhas?<br />
Não calculara os quilômetros de altura das montanhas lunares<br />
com uma mais rudimentar do que a que encontrara? Não se<br />
diz ter sido ele, com esse mesmo primitivo instrumento, o primeiro<br />
53
54 Jairo Martins de Souza<br />
a descobrir as assustadoras manchas que sujam a superfície solar?<br />
Não foi absurdamente perseguido por fazer tão grande e prodigiosa<br />
descoberta?<br />
Não são perfeitos nem a estrela que sustenta a vida na Terra,<br />
nem a luz da fé que por vezes campeia e obscurece a cabeça dos<br />
homens. O espírito de Duchamps se elevou. O jovem viúvo voltou<br />
a sorrir!<br />
Por tudo isso, retornara para Guéret. A família recebeu-o de<br />
braços abertos: não é que tivesse sido considerado como um filho<br />
pródigo, mas na prática foi assim. Todos, inclusive amigos<br />
e vizinhos, se alegraram. Os pais, já velhinhos, encheram-se de<br />
esperanças e pensaram para ele um novo direcionamento, um<br />
novo rumo a ser traçado junto a não esquecido desejo que, com<br />
a paixão pela esposa e filho mortos, não pudera ser cumprido. A<br />
dedicação integral do filho aos ofícios religiosos. Não foi possível,<br />
pois Duchamps nunca havia se considerado perfeito e nem<br />
flagelava o corpo quando sentia as tentações do demônio. Não<br />
se iludia quanto a isso. Mesmo que se lembrasse constantemente<br />
de Jesus e as circunstâncias terríveis a que fora solitariamente<br />
submetido no deserto. Temia ultrapassar limites. Sabia que seria<br />
tentado por algumas paroquianas que gostavam de testar a força<br />
das convicções dos homens que se dedicavam a Deus.<br />
Então não pôde atender às expectativas dos seus pais. Mas<br />
não ficou tão distante do que pretendiam. Na altura dos seus 27<br />
anos, e passado breve período de readaptação, decidiu-se pela<br />
solução intermediária de dedicar-se ao magistério. Por meio de<br />
amigos e recomendações, obteve licença, junto a ministro do governo<br />
revolucionário, para trabalhar aplicando método que assinalava<br />
acordo a ser diariamente selado entre mestre e aluno.<br />
Pacto de responsabilidade e compromisso.<br />
É o que hoje se chamaria de escola experimental, Tisserand<br />
comparou, tentando com isso tornar seu relato mais claro.<br />
Nessas condições é que encontramos Duchamps ministrando<br />
aulas para o filho do fidalgo, o brilhante rapazinho Jean Antoine<br />
<strong>Monlevade</strong>. À parte disso, continuava prestando homenagens à<br />
mulher e ao filho, pois visitava-os semanalmente no local onde<br />
deveriam repousar para todo o sempre.<br />
A família não ficou totalmente frustrada com sua decisão, a<br />
felicidade pode ser obtida de várias fontes e que, nesse caso, mo-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
rava muito próxima a eles. Um dos seus irmãos mais novos seguira<br />
carreira juntando-se precocemente aos quadros de Savona. Lá<br />
teria a honra de servir diretamente ao próprio santo padre!<br />
A vida voltava-lhe aos poucos, o sangue circulava normalmente<br />
em suas veias. Para futuro não muito distante, Duchamps<br />
poderia até mesmo voltar a casar e, finalmente, dar chance a si<br />
mesmo e perpetuar nome por meio de filho que viesse a não gorar<br />
como o do seu primeiro amor. Aprimorara definitivamente o<br />
caráter, deixando claro a toda a sociedade que era daqueles que<br />
não tinha a alma dividida entre a crença e a razão.<br />
A Deus o que é de Deus; a César o que é de César. Duchamps<br />
gostava de dizer essa desgastadíssima frase que, convenhamos, se<br />
bem aplicada, nunca cai em mesmice. Mas enquanto um futuro<br />
filho não lhe figurava senão em sonhos, satisfazia-se com ajuda<br />
aos seus prezados alunos. Em especial, agradava-lhe a presença<br />
do pequeno <strong>Monlevade</strong> nas suas turmas de ensino.<br />
O rapazinho, quando do seu gosto, escrevia pequenos textos<br />
satirizando o que via à sua volta tanto em <strong>Monlevade</strong> quanto em<br />
Guéret. Seu estilo, nestas ocasiões, lembrava o de Molière que,<br />
inusitadamente, graças às alfinetadas que dava nos costumes de<br />
sua época, também agradava ao mestre. Era uma das formas por<br />
que demonstrava imensa sede de saber sobre a cultura. Isso, definitivamente,<br />
não era usual aos de sua idade.<br />
As perguntas que o estudante Jean lhe fazia, Tisserand disse,<br />
faziam com que Duchamps ficasse incentivado a estudar mais e<br />
mais: e até mesmo enviar cartas solicitando esclarecimentos sobre<br />
um ou outro assunto a colegas que trabalhavam em Paris.<br />
Daí evoluía cada vez mais ciente dos novos conceitos da física da<br />
natureza que estavam sendo estudados de forma inovadora em<br />
todos os cantos do mundo. O professor aprendia por conta da<br />
intensa curiosidade do seu pequeno aluno!<br />
E assim cometeu acertos e erros. Inclusive declarando à sua<br />
classe, e ao jovem <strong>Monlevade</strong>, que Descartes acertara na mosca<br />
ao afirmar que a Terra tinha a forma de um pepino achatado<br />
na sua linha do Equador. Não perdeu por esperar. Na semana<br />
seguinte, o próprio garoto disse-lhe, reservadamente... Desculpeme,<br />
professor Duchamps, mas pesquisei, em livro que pertence<br />
ao fidalgo, meu pai, e concluí que a Terra é mesmo achatada...<br />
só que nos pólos. Não no equador, como o senhor disse-nos. Ne-<br />
55
56 Jairo Martins de Souza<br />
nhum dos outros estudantes suscitara-lhe a primeira indagação,<br />
nem pesquisara para trazer-lhe informação posterior!<br />
Muitos, Tisserand complementou, julgavam que a Terra fosse<br />
quadrada (mesmo que os paus dos mastros das caravelas emergissem<br />
aos poucos na linha do horizonte, e não de uma só vez),<br />
tal como alegavam alguns antigos.<br />
Não na França. A cultura era bandeira admirável dos anos<br />
pós-revolução. E, particularmente, o interesse dos seus estudantes<br />
pela política era abissal. Por vários motivos. Um deles não muito<br />
estimulante: mais cedo ou mais tarde teriam forçosamente que<br />
empunhar mosquetes, e partir para Deus sabe onde!<br />
Os alunos das classes de Duchamps tinham de 8 a 16 anos.<br />
Boa parte deles constantemente encaminhada pelo orfanato da<br />
cidade que era dirigido por um bondoso homem... o senhor ouvirá<br />
bastante sobre ele no decorrer desta história, o estrangeiro<br />
advertiu-me.<br />
Uma das razões é o fato de ter sido grandessíssimo o número<br />
de pais sem recursos que levavam seus filhos para ficar zelados<br />
por aquele senhor. Ribérry. Seu nome era Ribérry. Após alguns<br />
dias de preparos preliminares, eram matriculados e passavam<br />
parte do dia na escola da cidade bancada pelo governo central. A<br />
escola do professor Duchamps.<br />
E foi nela, por algumas razões que já expliquei ao senhor, que<br />
o então menino Jean de <strong>Monlevade</strong> destacou-se aos olhos oficiais<br />
da comunidade.<br />
O petit-garçon, o rapazinho, tem inteligência primorosa e<br />
muita agudez de espírito, foi o que Duchamps disse certa ocasião<br />
ao fidalgo durante missa dominical. Ainda não tinha plena consciência<br />
de que o pai detinha essa imagem do filho. Tenho planos<br />
especiais para ele e desejo aconselhá-lo a seguir...<br />
A conversa fora reservada e acontecera enquanto caminhavam<br />
lado a lado no adro da igreja. Foi lá que Duchamps confessou<br />
que, mesmo não achando ser o pior dos males do mundo,<br />
achava no mínimo estranha a atitude do rapaz em suas tentativas<br />
de sentir os cheiros e as reações da natureza mineral. O fidalgo<br />
ouviu-o com ar de tranquilidade. Estou ciente do fato, professor<br />
Duchamps. O meu Jean é caso exceção entre os jovens de sua<br />
idade. Poderia ser filho de qualquer outro fidalgo, desculpou-se,<br />
mas é meu: tenho tido sorte com meus filhos...
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Jean François Bogenet não pretendia fechar rapidamente<br />
assunto, Tisserand interveio, tanto ele quanto Duchamps sabiam<br />
que a conversa prometia ser longa.<br />
E parte dela foi o fato de Duchamps, em dado momento, ter<br />
dito que o menino acreditava mais na força da leitura do que na<br />
dos seus músculos. E relatou para o fidalgo exemplo sugestivo.<br />
Faz poucos dias, dois dos colegas mais velhos colocaram um<br />
pequeno sapo no pedaço de pão que ele trouxera como merenda.<br />
Mais tarde os maus elementos disseram-me tê-lo encontrado<br />
morto quando se encaminhavam para a escola. Viram o batráquio<br />
ser atropelado por roda de carro de bois. Então substituíram<br />
o recheio de queijo de cabra do sanduíche de Jean pelo corpo<br />
amassado do animalzinho. Aproveitaram instantes em que ele<br />
saiu por minutos da sala para fazer obrigação fisiológica no quintal<br />
da escola.<br />
Não foi difícil descobri-los. Uma pequena investigação feita<br />
pelo próprio Jean foi suficiente. Teve ajuda de um aluno novato:<br />
chama-se Martinho.<br />
Esse moço é mais um dos que nunca se ausentaria do grupo<br />
de <strong>Monlevade</strong>, Tisserand relatou: estou ansioso para apresentá-lo<br />
ao senhor. Não o faço de imediato porque devo continuar informando-lhe<br />
o teor do diálogo entre Duchamps e o fidalgo.<br />
Seu filho, caro <strong>Monlevade</strong>, atrai pessoas como a sedução<br />
das abelhas pelo mel. É muito prestativo. Colabora sem descanso<br />
com seus pares, ensinando-lhes como resolver exercícios escolares<br />
mais penosos. Mas não me disse nada a respeito da brincadeira<br />
de mau gosto que os perversos colegas lhe fizeram. O assunto<br />
do sanduíche de sapo chegou aos meus ouvidos unicamente por<br />
meio de terceiros. Aí fiz ouvidos de mercador: decidi me omitir<br />
quanto ao ocorrido.<br />
Por quê? O fidalgo indagou. Jean deu conta do recado por si<br />
mesmo. Contaram-me que reagiu com firmeza, usando a milenar<br />
sabedoria bíblica que conhece bem. Alguns julgaram ter agido<br />
com certa ingenuidade, mas foi assim que desqualificou exemplarmente<br />
os detratores. Reconheci, Duchamps prosseguiu, por<br />
comentários que circularam na escola, que citou os escritos de<br />
Tiago, cobiçais e nada tendes; logo matais. Invejais, e não podeis<br />
alcançar; logo combateis e fazeis guerras.<br />
57
58 Jairo Martins de Souza<br />
A princípio funcionou parcialmente, pois um dos rapazes reagiu<br />
enfurecido, dizendo-se amaldiçoado. Sacou canivete velho e ameaçou<br />
espetar o pequeno Jean. Foi contido pelos demais da classe.<br />
Jean queixou-se dele com o soldado Cousteau. Cousteau? O<br />
novo chefe do destacamento, senhor fidalgo. Chegou à cidade no<br />
dia de ontem. Ainda não fui comunicado, meu filho é ainda uma<br />
criança. Mas autossuficiente. Repara bem, foi até a autoridade<br />
nem mesmo incomodando o pai. Cousteau deu-lhe alguns cascudos<br />
– estou dizendo do agressor denunciado por seu filho – e<br />
disse-lhe para não insistir em atitudes como aquela. De minha<br />
parte, na escola, acabei por passar-lhe, como dever extra, a feitura<br />
de cinquenta cópias do hino nacional. A Marselhesa.<br />
Dê-me o nome, Duchamps. De quem? Do agressor. É meu<br />
dever dizer-lhe, caro fidalgo, que lhe darei esta informação somente<br />
se tiver como resposta promessa de nada ser feito contra<br />
meu aluno. O jovem é esquentado, mas já teve punição bastante.<br />
Promessa feita! Materazzi. O nome é Materazzi: descende de<br />
italianos. A família veio de Sicília e é mais ou menos nova na região.<br />
No dia seguinte, Duchamps prosseguiu, aproveitei a passagem<br />
bíblica que Jean dissera e planejei aula ligando-a a alguns<br />
tópicos da ética e aos jardins de Epicuro. A filosofia de Epicuro. O<br />
silêncio da classe pareceu-me sinal de bom efeito, e interesse por<br />
alguns princípios de Cristo quando ensinados fora do claustro. Aí<br />
cometi infração. A polícia de Bonaparte pode pegar-me pelos pés.<br />
Ao final da entrevista o fidalgo retirou-se para o confessionário<br />
para dar conta oficial dos pecados da semana. Não eram<br />
muitos, e dentro de minutos, acompanhado pela mulher e os três<br />
filhos, encaminhou-se com a alma mais leve para <strong>Monlevade</strong>. O<br />
castelo <strong>Monlevade</strong>.<br />
Então o encontro do fidalgo com Duchamps terminou muito<br />
bem, Tisserand disse. Embora durante seu andamento não tenha<br />
ficado livre, além das que já lhe disse, de outra desconfortável<br />
inquietação.<br />
O motivo foi assunto que ainda não informei ao senhor, mon<br />
ami. Deixei-o para o final por julgá-lo o mais relevante.<br />
O fato é que Duchamps havia dito algo ao fidalgo que, se<br />
por um lado causou-lhe preocupação, por outro foi motivo de<br />
orgulho! Vamos ver do que se trata nas palavras do próprio, como<br />
também as impressões do fidalgo.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Seu filho anda escrevendo cartas a Paris, monsieur <strong>Monlevade</strong>.<br />
Cartas? Sim, cartas. O senhor conferiu a grafia? A do meu<br />
Jean é bem diferenciada. É a do seu filho e, a princípio, deve<br />
trazer-lhe satisfação misturada com tristeza leve. Qual o senhor<br />
quer ouvir primeiro? A notícia boa. Se bem entendi suas palavras,<br />
devo considerá-la razão mais forte que a triste.<br />
É como entendo ser, monsieur. Vou dizê-la. Jean é mais inteligente<br />
e atirado que eu pensava que fosse. Perdoe-me, Duchamps,<br />
isso não é novidade. Peço seguir direto para o que é de<br />
interesse, a tal notícia boa. Que é no mínimo extravagante, senhor<br />
fidalgo. No entanto peço aguardar um minuto mais, tenho mais a<br />
acrescentar além do que o senhor já sabe. O rapaz tem conhecimento<br />
incipiente sobre a matéria metalurgia. Disso realmente não<br />
sei. Faz perguntas inusitadas e escreve como se fosse um adulto<br />
que estudasse engenharia de minas. Por enquanto parabéns,<br />
monsieur. Agradeço em nome de toda a família! Mas e a ruim,<br />
qual é?<br />
Escreveu para um homem bastante extraordinário, monsieur<br />
***, usando o seu nome, senhor fidalgo. Diz ser um estudioso da<br />
região de Guéret que tem como interesse a pesquisa de pedras,<br />
metais e suas propriedades intrínsecas.<br />
Na carta não foi fundo no assunto, mas sugeriu procedimento<br />
para diferenciação da essência de minerais. Simples, mas interessante.<br />
A chave seria aquecê-los para ver que cores a luz de<br />
queima de cada um assume sem ser influenciada pela cor do fogo<br />
do material que está fazendo com que se aqueçam. Não entendi<br />
bem, e nem mesmo percebi se o menino soube se explicar.<br />
Monsieur ***, que é o cavalheiro a quem ele escreveu, trabalha<br />
para o governo e dedica-se apaixonadamente ao tema. É cientista<br />
renomado, e está participando de estudos de aprimoramento<br />
do currículo da escola Polytéchnique, a Politécnica de Paris. Seu<br />
filho assegurou-lhe continuar refletindo sobre o que fazer, qual o<br />
rumo a tomar. O cientista retornou-lhe dizendo-se agradavelmente<br />
surpreendido com tão elegante missiva. Por ora é o que sei!<br />
Entretanto presumo, Duchamps prosseguiu, ser melhor antecipar<br />
pergunta que o senhor, como pai, deve estar ansioso para<br />
saber resposta. Vou dizer-lhe como descobri as tais cartas.<br />
Bem, Jean certo dia estava olhando absortamente para baixo<br />
de sua cadeira na escola. Fui verificar motivo de tal distração.<br />
59
60 Jairo Martins de Souza<br />
Ele não é de se dispersar em classe. A razão foi a que acabei de<br />
contar-lhe. Relia uma daquelas missivas. Passei-lhe reprimenda<br />
e alguns deveres e cópias especiais, inclusive algumas a mais do<br />
hino nacional. Faço sempre desta forma. Ele disse que iria cumprir<br />
tudo à risca e pediu-me para não comunicar ao senhor fidalgo.<br />
Não quero levar preocupações e mais problemas para mon<br />
père, meu pai, bastam-lhe os que já tem.<br />
Quer seguir encaminhando correspondência conforme tem<br />
feito. Disse-lhe ser impossível e adiantei-lhe algumas lições sobre<br />
direito e crime. Esclareci-lhe estar praticando falsidade ideológica,<br />
matéria não inclusa no programa escolar. Interessou-se pelo<br />
tema e pareceu-me compreensivo, mas disse-me que pesquisaria<br />
melhor quando fosse adulto, e fosse por conta própria para Paris.<br />
Ah, entendo! Então não tocarei no assunto com ele, senhor<br />
Duchamps. Que fique o dito como não dito!<br />
Ora, ora, que petit garçon curieux, que menino curioso, agora<br />
quem diz é o fidalgo <strong>Monlevade</strong> para a esposa. Repare daqui da<br />
janela onde estou. Parece explicar algo para Maria Vitória. Jean<br />
muitas vezes carece de uma cobaia para ouvi-lo com atenção. Em<br />
Paris terá chance de ouvir e ser escutado. Por ora, Maria Vitória é<br />
adequada para tanto. É suave e delicada. Mas não explica a dialética<br />
que o contraditório é indispensável para que o homem cresça?<br />
Maria Vitória só ouve. Não se manifesta em termos práticos.<br />
Nem poderia, Tisserand comentou com sombras de tristeza.<br />
Naqueles anos a leitura destinada às mulheres era bastante restrita.<br />
Para elas, os permitidos, e apropriados, seriam livros como<br />
o Um Coração Singelo que Flaubert escreveria dentro de mais<br />
alguns anos. Não. Não Madame Bovary que, inclusive, custou-lhe<br />
execrável processo moral!<br />
O senhor, mon ami, me perdoe pela intempestividade da lembrança<br />
destas obras e do autor. Já volto imediatamente a dizer-lhe<br />
os termos do diálogo entre o fidalgo e sua mulher. Lembro que<br />
diziam sobre o comportamento diferenciado do menino Jean.<br />
E a amizade do menino com o chien noir, o cachorro preto, o<br />
Breu? Não achas que passa das medidas? Breu é seu companheiro<br />
de pesquisas, Felicité. Não vejo nada demais, é somente escudeiro<br />
buscador de pedras. Ultimamente acompanha Jean até mesmo à<br />
escola, e fica nas cercanias até que se encerrem as classes. Não há<br />
com que se preocupar. Cachorro é cachorro, ma chérie!<br />
Está bem, mas e o burro a quem chama de Géo? Dei-lhe de<br />
presente há dias, mulher. Pertencia a monsieur***, o dono do<br />
armazém.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Quando digo monsieur, com três asteriscos, Tisserand explicou,<br />
estou obedecendo fielmente às anotações do abade. Foi<br />
assim que escreveu. Talvez tenha omitido alguns nomes por esquecimento.<br />
E com isso esclarecido, Tisserand disse-me que devíamos voltar<br />
ao diálogo entre o fidalgo e a esposa Felicité. Quando os deixamos,<br />
falavam sobre o burro colocado à disposição do filho Jean.<br />
O burro, Felicité, gosta também de caminhar sobre pedras e<br />
fuçar rochas. Agora tem acompanhado a ele e ao Breu. Aliás, o<br />
nome Géo é forma reduzida do nome géologue.<br />
Um burro geólogo? Esse Jean... ah, marido, sinto-me mal em<br />
fazer troça com as coisas do meu filho...<br />
Não se incomode, Felicité. Não é só você que acha graça<br />
nisto. Até mesmo os amigos de Jean caçoam a respeito daquele<br />
burro. Dizem, acompanhando-o, ra, ra, ra, vejam o diploma na<br />
viseira. Ra, ra, ra, deve ter sido emitido pelo responsável real da<br />
l`école de Mines (escola de minas) de Paris.<br />
Na realidade, o fidalgo respondera descuidadamente à mulher.<br />
O que lhe interessava era voltar ao assunto Maria Vitória. Ela<br />
preocupava-lhe mais. Não. Não é que precisasse estudar. Mulheres<br />
não nasceram para isso.<br />
Era assim que funcionava naqueles anos, Tisserand disse (a<br />
impressão que tive é de que estava refletindo em voz alta sobre<br />
o que o fidalgo dizia), Maria Sklodowska, prosseguiu, a Marie<br />
Curie, foi exceção nascida naquele século. O senhor sabe, ela foi<br />
premiada duas vezes com o Nobel. Um de física e um de química...<br />
O fidalgo Jean-François <strong>Monlevade</strong> nem mesmo sonharia<br />
com tais circunstâncias. Bem, retornemos às suas preocupações.<br />
É. O estudo coloca-lhes besteiras na cabeça e as torna devassas.<br />
Algumas sonham até mesmo em tornar-se atrizes! Deus<br />
que nos livre de prostitutas nessa família! Espero fazer, para essa<br />
menina, um bom contrato de casamento.<br />
O primogênito, François não o colocava intranquilo. O rapazinho<br />
já sonhava ter seu destino na direção da capital.<br />
No entanto, é Jean quem deverá perpetuar o nome <strong>Monlevade</strong>.<br />
Seu brasão nunca iria ficar no esquecimento. Era o que<br />
o fidalgo sentia ao observar a conduta, as brincadeiras e tudo o<br />
mais que fazia o rapaz. As preocupações e as ansiedades quanto<br />
ao futuro da nobre família aos poucos se perderiam no tempo.<br />
61
62 Jairo Martins de Souza<br />
A privilegiada percepção do mundo que tinha fazia com que<br />
captasse tudo que acontecia ao seu lado. Chamava-lhe especial<br />
atenção a chaminé da fundição da família Rochechouart. Não<br />
se cansava de observá-la com olhar interessado. Ficava durante<br />
horas tomando notas e apreciando a fumaça que subia de seus<br />
tijolos de barro.<br />
Rochechouart: para alguns, o contorno da casa e da fábrica<br />
eram sombrios e funestos, pois tinham as paredes escuras e cheias<br />
de fuligem. Algo fantasmagórico situado numa curva de estrada.<br />
Os trabalhadores que eventualmente se deslocavam dos seus domínios<br />
para um ou outro afazer pareciam monstros pintados de<br />
negro: fantasmas que saíam dos negrumes com a cor do fundo<br />
dos infernos!<br />
Não para Jean. Tanto é assim que os desenhava com alma<br />
leve de quem aprecia visões do paraíso. As imperfeições existem<br />
na busca da perfeição: o ferro deixado para trás pela fuligem é o<br />
futuro do mundo. Os anéis escuros subiam ao céu e invadiam espaços<br />
anteriormente limpos e o pequeno fidalgo divertia-se, comparando-as,<br />
as nuvens e a fumaça e, duvido que alguém nunca<br />
disso tenha feito, com carneiros, bois, forjas ou quaisquer outras<br />
figuras exóticas que possuíssem formas brancas, ou negras. Vultos<br />
que, naquelas cercanias cinzentas, mudavam de identidade como<br />
se fossem camaleões.<br />
Bem, é tempo de voltar a lembrar algo mais do fidalgo. Para<br />
tanto voltemos ao professor Duchamps e ao seu magistério em<br />
Guéret.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
“Rochechouart: para alguns, o contorno da casa e da fábrica<br />
eram sombrios e funestos, pois tinham as paredes escuras e cheias<br />
de fuligem. Algo fantasmagórico situado numa curva de estrada.<br />
Os trabalhadores ....”<br />
63
64 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
IX<br />
O fidalgo socorre e livra a família de Martinho das garras<br />
de Thurram. O bondoso abade Ribérry<br />
O nome do garoto era simplesmente Martinho. Na ocasião não se<br />
sabia exatamente quem eram seus pais nem de onde, finalmente,<br />
viera. Aparentava cerca de dez anos, mas na realidade nascera há<br />
apenas sete. Nos oitocentos a Igreja ainda não fazia os registros<br />
dos filhos dos seus fiéis que habitavam em rincões distantes. Os<br />
documentos civis somente viriam, e seriam obrigatórios, com o<br />
passar das décadas.<br />
A dureza da vida, Tiserrand continuou, teria feito curtos os<br />
anos do tal rapazinho. Não o fez por breve contingência que veio a<br />
lhe suceder: foi fato que significou muito. Passadas tantas décadas<br />
afirmo sem qualquer sombra de hesitação que foi o que deu sentido<br />
à sua vida...<br />
O estrangeiro havia abaixado abruptamente a altura de sua<br />
voz. Ela tornou-se sumida. Isso foi informação bastante para que<br />
eu imaginasse que ele estivesse buscando melhor imagem para relatar<br />
algum insólito episódio que eventualmente tivesse acontecido<br />
com o menino. Pus-me a esperar. Aguardava, ansiosamente, que<br />
desse continuidade ao assunto.<br />
Foi quando comentou que o vigário geral escrevera que expor<br />
a público alguns atos do fidalgo <strong>Monlevade</strong> proporcionavam-lhe<br />
especial prazer. O senhor sabe, prosseguiu, que a França em nenhum<br />
momento deixou de estar agitada nos finais e no início do<br />
século dezenove. E o mesmo havia se passado com seu amado<br />
parente. Já na casa dos cinquenta, os cabelos do tio Jean-François<br />
estavam totalmente brancos. Extraíra alguns dentes apodrecidos.<br />
Envelhecera. Mas não piorara do seu andar manco e nem deixara<br />
de lutar por seus ideais. Nunca lograria em se habituar ao que não<br />
considerava justo.<br />
65
66 Jairo Martins de Souza<br />
É o caso, Tisserand acrescentou, da circunstância inusitada que<br />
o fez conhecer a família do sofrido garoto Martinho.<br />
Então contou que a família do rapazinho viajava procedente<br />
de vilarejo situado próximo à fronteira que a França fazia com o<br />
oeste alemão. Não tinha planos concretos, simplesmente fugia da<br />
fome e da pobreza. Foi em data próxima ao dia do Natal de 1801,<br />
e provavelmente a intenção final fosse chegar até as favelas medievais<br />
de Paris, onde buscariam moradia e trabalho.<br />
Meses antes o pai não se deixara convencer pelos argumentos<br />
que lhe diziam os vizinhos: é melhor, mon bon ami, passar<br />
miséria em terras conhecidas do que na solidão das ruas estreitas<br />
e vielas da capital. Não sabes que Paris já conta com mais de cem<br />
mil habitantes?<br />
Bem, Tisserand disse, mesmo que enunciada em anos recentes,<br />
a lei de certo senhor Murphy valia desde o tempo em que a<br />
família do menino viajava pelo gélido dezembro europeu.<br />
Não lhe tomo tempo precioso em dizer, por alto, a terrível<br />
circunstância em que os pobres andarilhos prosseguiam jornada.<br />
Às vezes, caro amigo, alguns ditados, ainda que caídos em<br />
desuso, podem nos servir. Ainda que aparentemente empobrecendo<br />
o texto, por exemplo, o que diz reclamarmos não ter meias<br />
enquanto a outros faltam os pés. Não é propriamente o caso daqueles<br />
infelizes. Não como os pés dessas pessoas que estamos<br />
tratando, assim tão pouco protegidos, afundados na neve, e anestesiados<br />
pelo frio de ventos cortantes. Continuassem assim por<br />
muito mais tempo, sujeitos a essas hipotermias, poderia ser necessário<br />
extirpá-los!<br />
Posso imaginar, mesmo sem ter vivido tal situação, o desespero<br />
do chefe da família, pai extremoso, ao ver os seus pequenos<br />
e a mulher em tal estado de penúria. Nada pode ser pior. Ah, aí é<br />
que entra a lei de Murphy na vida de Martinho. Pobres coitados,<br />
mal sabem que maior desgraça os espera. Por ora, pelo menos<br />
estavam todos juntos, e assim comprovavam mais uma vez o conhecido<br />
fato que a dona miséria adora estar acompanhada. Mais<br />
ainda quando estamos tratando de assunto que diz respeito a pai,<br />
mãe e irmãos: assunto de família.<br />
Nessa situação é que se alegraram os pobres corações à vista<br />
de luzes distantes de pequenas e pálidas iluminações a sebo. Essa<br />
gente desgraçada torna-se feliz por pouca coisa. A noite avançara
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
há cerca de quarto de hora e não fosse a fraca Lua que, com sua<br />
divina providência se encarregara de paralisar a queda de pequeninos<br />
flocos de neve, provavelmente pela manhã todos teriam<br />
sucumbido pelo frio intenso. As casas que haviam visto, por meio<br />
das tais anêmicas e bruxuleantes luzinhas amarelas, anunciavam<br />
presença, a poucas centenas de metros, de pequeno vilarejo. Uma<br />
dádiva, um céu para os pobres coitados. Ânimo. Ânimo, crianças,<br />
disse o pai, se Deus nos ajuda!... Ele vai nos ajudar! Um dos filhos<br />
respondeu com fé. Aqui encontraremos comida e algum pequeno<br />
espaço coberto para passarmos a noite.<br />
As pequenas almas, num último esforço, rapidamente avançaram<br />
no caminho indicado pelos pais e, em poucos minutos, já<br />
os aguardavam próximo às primeiras casas do local. O pai, que<br />
carregava nos braços grande quantidade de tralhas, procurava se<br />
movimentar o mais rápido que podia e, ao mesmo tempo, segurava<br />
com força a pequena bolsa de pano onde guardava alguns<br />
tostões que lhe restavam. Neles se resumia toda a fortuna monetária<br />
da família.<br />
O que tinham a mais era um maltratado burro que fora, até<br />
então, o principal ganha-pão da família. O mirrado dinheiro que<br />
estava na bolsinha era fruto do seu trabalho, pois, sempre que alguém<br />
aceitava proposta, era alugado para prestar biscates. O coitado,<br />
também fraco e esgotado, havia ficado momentaneamente<br />
para trás. Mas ao ver distanciar os patrões e as crianças, fincou<br />
fundo os cascos na neve fofa e, ufa, ufa, finalmente alcançoulhes.<br />
Daí em diante apertou menos a cadência e seguiu também<br />
esperançoso ao lado dos donos. Esses que repetiam, um para o<br />
outro, pode ser que aqui seja possível comprar algum pedaço de<br />
pão preto e copo de água quente, enfim, para dormir qualquer<br />
estábulo nos serve, não estando molhado o capim. Das frestas<br />
das janelas das casas alguns moradores indagavam: quem serão<br />
estes estranhos? O que fazem aqui a estas horas?<br />
Não tão longe, mas escondido pela escuridão de um beco,<br />
o endiabrado Thurram também os observava. Esse homem era<br />
ainda jovem de idade, mas veterano em malfeitos e iniquidades.<br />
Não é tempo de dizer o porquê de ser assim, tão gasto pelas andanças<br />
e pequenos delitos. Tinha seu nome como prioridade de<br />
busca nas fichas de todos os policiais e soldados da região. Nessa<br />
condição é que arquitetava bote a ser aplicado em qualquer opor-<br />
67
68 Jairo Martins de Souza<br />
tunidade que, naquela noite fria, se lhe avizinhasse. O elemento,<br />
como diria o linguajar da caserna da atualidade, morava refugiado<br />
em colinas próximas e viera buscar algo para celebrar suas orgias<br />
de fim de ano. Bandido. Celerado. Malfeitor. Decerto que responderia<br />
“presente” se chamado de qualquer destes nomes. Na<br />
agenda do mal era manequim para muitos outros modelos. É por<br />
tudo isso que fugira recentemente das galés onde estivera preso<br />
por alguns meses e... creio já o leitor ter tido de sobra na mente seu<br />
perfil ignóbil. E, por enquanto, falta somente acrescentar que era<br />
da região e ajuntara bando antigo com poucos dias de procura.<br />
Era essa a principal razão de os moradores locais se encontrarem<br />
em constante estado de vigília. O antigo menino, que agora<br />
soubemos tratar-se de um celerado, esquecera qualquer sentimento<br />
cristão desde tempos de tenra infância. Foi tempo em que<br />
aniquilava pássaros e enforcava gatos por simples prazer de assistir<br />
às suas dores e sofrimentos. Estou dizendo de suas primeiras<br />
experiências no mundo do crime. E o resultado aí está naquele<br />
canto de rua esburacada e cheia de neve que, sabemos, há minutos<br />
cessou de cair. Viera à vila sozinho para não despertar suspeitas,<br />
e, por fim, pois não há mais o que esclarecer sobre a situação,<br />
foi-lhe fácil abocanhar as moedas da família que chegava. O pai<br />
havia colocado as cargas que carregava no chão e as contava cuidadosamente<br />
sob poste isolado de luz oscilante de óleo animal.<br />
Não é difícil entender o sentimento de fragilidade que se<br />
apossa de um ser humano após ser assaltado. Mas não é fácil<br />
explicá-lo por meio de palavras. Mais ainda em condição indefesa<br />
como aquela. O susto fora tão grande quanto o desespero de segundos<br />
depois. Pobre homem que, sentindo-se desesperançado,<br />
sem mais ter nada, sussurrava baixinho para que os outros não o<br />
ouvissem, ó Senhor, por que me abandonastes?<br />
A neve voltou a cair e Thurram retornou para a escuridão<br />
da noite para fazer rápida avaliação do auferido. A mulher e as<br />
filhas, abraçadas, iniciaram choro conjunto. Martinho, o pai e os<br />
outros irmãos resistiam ao desejo de também se exasperar. Não o<br />
fizeram. Tinham que dar exemplo. A vida havia lhes ensinado, e<br />
disso compreendiam bem, que o choro deve ser o último refúgio<br />
do homem.<br />
No outro extremo da rua, dentro de uma taverna, o fidalgo<br />
<strong>Monlevade</strong> iniciava ingestão de sopa de batatas e carne e, ao
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
mesmo tempo, elogiava o bom vinho da casa que lhe fora servido<br />
pelo proprietário. As panelas fumegavam, e o cheiro de comida<br />
nova aquecia não somente o ambiente como também as almas<br />
dos carroceiros, viajantes, soldados e outros frequentadores que,<br />
induzidos pelo clima festivo, passaram a conversar animadamente.<br />
Alguns poucos bebiam de pé, enquanto aguardavam vez, pois<br />
todos os tamboretes e bancos feitos com pranchas de madeira<br />
estavam ocupados por clientes.<br />
Enquanto isso o bandido, após certificar-se da mísera quantidade<br />
de dinheiro que roubara, voltava rapidamente para o local<br />
do crime. Não no sentido psicológico que dizem os detetives de<br />
filmes e livros policiais, mas porque, descontente com o resultado<br />
de sua investida, Thurram viera buscar algo que vira e lembrara<br />
ser também de seu interesse: o pequeno burro. A família atordoada<br />
mal percebera que a pequena corda amarrada no pescoço<br />
do seu animal era contida a custo pelo próprio que não queria<br />
separar-se dos donos.<br />
Tudo isso acontecia nos instantes em que o fidalgo <strong>Monlevade</strong><br />
tomava rumo para certificar-se das condições de pernoite<br />
dos seus animais. A Lua escondida atrás de algumas nuvens dificultava-lhe<br />
a visão, mas independente disso caminhava satisfeito,<br />
em termos de estômago, com o repasto que fizera. A perna aleijada<br />
não incomodava, mas, aí que residia o problema, o espírito<br />
mantinha-se acabrunhado com coisas do dia a dia. Havia trocado<br />
ideias com alguns carroceiros e mascates... bem, já na parte de<br />
fora da taverna teve a atenção chamada pelo movimento atípico,<br />
e que de longe parecia confuso. Os ruídos provinham de local<br />
imediatamente após os estábulos que pretendia verificar e o fidalgo,<br />
em poucas frações de segundo, sentiu-se totalmente tomado<br />
pelo sagrado instinto de preservação que, em situações como esta<br />
e piores, domina a vida de todos os seres nascidos na terra.<br />
Alto lá!, arrête!, o que acontece aqui?, foi o que gritou perguntando,<br />
e já sacando a pistola. Não podia correr – havia precipitadamente<br />
alçado a bengala para cima – mas estava ciente de que<br />
algo errado acontecera ou estava por acontecer. Atirou para o alto.<br />
Thurram em fração de segundos desapareceu na escuridão da noite<br />
e dos caminhos que o conduziriam à fuga e à busca de novas<br />
pilhagens. O burro, instantaneamente deixado de lado, rebelara-se<br />
com o estampido e dera um violento coice para trás, passando a<br />
69
70 Jairo Martins de Souza<br />
milímetros das costas do meliante que fugia do local. Segundos<br />
após, era consolado pelo patrão e pelas crianças, especialmente<br />
por Martinho, o seu preferido. Era tudo que lhes restava....<br />
Feitas as apresentações, o fidalgo <strong>Monlevade</strong> que, como dissemos,<br />
tratava a todos como iguais, acolheu aos pobres-diabos.<br />
Pagou-lhes comida na taverna em que comera há pouco, e conseguiu<br />
peças de roupas limpas junto a dois mascates que conhecera<br />
no mesmo ambiente. Por ter sido cordial, gastou por tudo<br />
o troco de alguns poucos francos. Dos carroceiros, e de outros<br />
homens que lá ainda estavam, conseguiu casacos rotos, mas pesados,<br />
para os pais de Martinho, pois fora considerado um fidalgo<br />
de caráter e de ideias de respeito social. Anteriormente prometera<br />
cargas de retorno e serviços aos tais homens, caso estivessem de<br />
passagem pelas cercanias de Guéret.<br />
Por outro lado, para que todos dormissem em paz, o chefe da<br />
família dos desesperançados havia lhe dito: bastam-nos o calor<br />
dos animais e as paredes dos estábulos em que estava também a<br />
pequena tropa de <strong>Monlevade</strong>. Não foi assim. O fidalgo providenciou-lhes<br />
hospedagem digna em casa de família à paga de outra<br />
pequena quantia.<br />
Um dos filhos do casal jamais esqueceria o nome daquele<br />
nobre senhor que, além de tudo, doara-lhes alguns francos e uma<br />
breve carta de apresentação. Era o próprio Martinho.<br />
Mesmo assim adianto que, de certa forma, foi abandonado<br />
pelos pais em contingência absolutamente inusitada. É terrível para<br />
alguém de tão pouca idade. Ainda que se tenha em mente estivesse<br />
vivendo infância em anos, que o senhor já ouviu por repetidas<br />
vezes, serem chamados também terríveis. Geadas fortíssimas, guerras,<br />
mau governo, aumento de impostos para o povo, inundações...<br />
No entanto, o jovem desmentia alguns ditados pessimistas<br />
que rezam que a miséria gera a violência e a falta de fé. Por exemplo,<br />
o que diz que as razões do estômago são as que prevalecem.<br />
Nem sempre. Esse era o motivo do sorriso enigmático que Tisserand<br />
fizera surgir nos lábios há muitas linhas, talvez folhas, atrás.<br />
O garoto Martinho foi nascido e criado em tempos de aflição.<br />
E aprendera desde cedo a qualidade que identifica o valor de um<br />
verdadeiro economista: a de administrar a vida em período de<br />
escassez. E mais ainda – alguém me explique como isso acontece<br />
– o de fazer, em situação de penúria, que se tornassem mais cân-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
didos os seus pensamentos. Nos dias de hoje seria dos que nunca<br />
careceriam de sessões de psicoterapia.<br />
Uma de suas desditas foi a de que os pais de sangue, poucos<br />
meses depois do evento em que foram roubados por Thurram,<br />
decidiram dar a ele o que supunham ser um futuro melhor.<br />
Conscientes de que nada trariam de bom para o filho, possuíam<br />
muitos outros para dar conta, decidiram basicamente entregá-lo<br />
ao destino.<br />
Não. Não é que tenha sido ele arbitrariamente escolhido para<br />
descarte. A tomada de decisão foi feita após muito choro e muita<br />
indecisão sobre o processo. Na realidade, fora em constrangedor<br />
sorteio. A mãe havia escrito as iniciais dos nomes dos meninos<br />
homens em pequenos pedaços de papel velho cuidadosamente<br />
dobrados em quadradinhos. Anteriormente haviam combinado<br />
que para as meninas não seria deixada qualquer possibilidade de<br />
entrega a terceiros. Foram excluídas da triste loteria.<br />
Em última instância, morreriam, fosse o caso, todos juntos,<br />
os pais e as três filhas. O destino da mais velha já estava, como<br />
de prática daqueles tempos, definitivamente traçado: cuidaria dos<br />
pais até o fim. Às duas menores seria facultada oportunidade de<br />
casamento. Poderiam pelo menos aprender a assinar nome e,<br />
com sorte, dominar a escrita e fazer contas. Mulheres com esses<br />
pequenos predicados eram mais procuradas. Mas o dote principal<br />
seria a lisura de vida e o caráter herdado dos pais. Quem se<br />
candidataria? Uma delas, Beatrice, era assaz bonita. Não fosse a<br />
indumentária, composta de trapos, e os cabelos desgrenhados,<br />
enfim, havia alguma esperança de paixão de algum aprendiz de<br />
ofício que gerasse dinheiro, e bom futuro para criar família.<br />
Foi com essas intenções paternas que o sorteio fora encaminhado<br />
e estava, conforme dizia-lhe faz pouco, em pleno andamento.<br />
Bem, Tisserand prosseguiu, tenho certeza que o senhor<br />
sabe que o tempo é entidade que não tem via de contramão e,<br />
como sempre avança, quebra toda a simetria de universo. Inclusive<br />
a ordem da vida de uma família que deveria ser construída de<br />
forma correta, linear. Filhos pequenos devem ser protegidos, não<br />
abandonados pelos pais!<br />
Com isso, continuou, devo voltar ao miserável mundo daqueles<br />
coitados. É uma das vantagens que a arte e a literatura<br />
nos proporcionam. Pois feitas as combinações familiares, algumas<br />
71
72 Jairo Martins de Souza<br />
somente a título de confirmação de acordos passados, com as<br />
mãos trêmulas, o pai acabara de retirar um dos pequenos papéis.<br />
Entregou-lhe às vistas da mãe. O garoto Martinho estremeceu ao<br />
verificar que ela dirigiu-lhe os olhos molhados de lágrimas. Mas<br />
mostrou-se pronto para seguir sua sina.<br />
Hoje é você! Amanhã talvez sejamos nós: os irmãos miraramlhe<br />
silenciosamente. Alguns imediatamente começaram a soluçar,<br />
as três meninas choravam desconsoladamente. Somente o mais<br />
velho manteve-se firme. Foi bom que tenha sido assim. Martinho<br />
é garoto fraco, eu posso ajudar mais a família. No futuro poderei<br />
alcançar meus sonhos, trabalhar como cocheiro e conduzir carruagens<br />
e carroças pelo país afora. Ou se Deus, e meu corpo não<br />
tão franzino assim o permitirem, ser até mesmo mosqueteiro da<br />
infantaria de Bonaparte.<br />
Minutos mais tarde Martinho foi deixado próximo da entrada<br />
da cidade de Guéret. O pai, abraçando-o por derradeiro, indicoulhe<br />
de braço estendido a frente da casa onde supunha funcionar<br />
o orfanato da região. De certa forma estava tranquilo, o menino<br />
Jesus acompanharia o filho. Nunca havia estudado o latim, mas<br />
decorara desde criança a duras penas a ave-maria, o credo e o pai<br />
nosso. Ensinara a todos os filhos.<br />
Vai. Vai, filho. Leva o nosso burro. Cuida dele e segue para<br />
vida nova que te aguarda! Vai com Deus, meu filho. Não, pai, vocês<br />
é que devem ficar com ele. Nunca os esquecerei. Ainda volto<br />
a encontrá-los. Que Deus os acompanhe!<br />
Dentro de tímida embalagem de pano constava um pequeno<br />
pedaço de pão preto e uma velha blusinha de lã. O garoto já<br />
era bastante arranhado pela vida e fingiu estar firme e, passados<br />
alguns segundos, iniciou caminhada a princípio vagarosa, mas<br />
que logo transformou-se em desabalada carreira. Com os poucos<br />
pertences amarrados na ponta de pedaço de pau fino que<br />
trazia às costas, ele não mais voltou o rosto para trás. As lágrimas<br />
embaçavam-lhe os olhos, corria às cegas.<br />
Uma carroça que passava acelerada jogou-lhe neve misturada<br />
com barro e água na boca, nos olhos, enfim, em todo o rosto.<br />
Ele cuspiu a mistura. O condutor e a charrete pareciam ser os<br />
mesmos que haviam conduzido o fidalgo de volta para seu castelo<br />
faz anos.<br />
O mesmo havia acontecido com o restante da família que, ca-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
minhando em sentido contrário, se distanciava cada vez mais. Pai<br />
e mãe seguiam calados. Não mais veriam o filho! Um dia haviam<br />
sonhado para ele a profissão de carpinteiro construtor de casas.<br />
Quem sabe dessa forma, deixando-o assim, à sua própria sorte,<br />
consiga ser mais feliz!<br />
Mas enquanto isso não chega ao seu desfecho derradeiro,<br />
Tisserand disse-me, peço-lhe licença, por instantes, para voltar ao<br />
caso do sapo no sanduíche de Jean. O caso Materazzi. Lembrase?<br />
Lá havia relatado que Jean tinha alguns aliados e que, inclusive,<br />
o pobre Martinho era um deles.<br />
E foi a partir daquele acontecimento que posso identificar<br />
para o senhor alguns desdobramentos.<br />
A casa que o pai indicara era realmente a do orfanato da<br />
região. E que, por meio de seu responsável, havia acolhido Martinho<br />
com o mesmo empenho e responsabilidade que recebia a todos<br />
os desventurados que batiam à sua porta. Já disse-lhe ser homem<br />
de grande benignidade no coração. Eram frequentes cenas<br />
como aquela da batida de porta de um menino franzino, sujo e<br />
mal vestido. Mesmo não o vendo, o abade assentado no paupérrimo<br />
banco de madeira anotaria mais uma cruz no seu caderno.<br />
Mais uma alma rogava por socorro. Não lhe faltaria amor cristão.<br />
O que era dividido por x, seria dividido por x + 1. Água quente é<br />
também o que não faltaria para acrescentar à já rala sopa de batatas,<br />
repolho, e pedaços de carne de caça, ou qualquer proteína<br />
que fosse colocada à disposição. Há tempo mantinham-se iguais<br />
os recursos enviados por Paris, e escasseavam as contribuições da<br />
população local.<br />
A despeito da pobreza das instalações, o dormitório era dividido<br />
por mais de cinquenta crianças. À noite os flatos que emitiam<br />
felizes, resultado do excessivo consumo de repolho, davam<br />
ideia de que lá dormiam quinhentos. O cobertor individual velho<br />
e maltrapilho não dava conta totalmente do frio. No entanto,<br />
desconsiderando-se todas essas adversidades, o ambiente era<br />
repleto de calor humano. As intrigas existiam, onde não existem,<br />
mas o abade Ribérry acreditava que a vida era composta de fases<br />
que, ao passar, vão fazendo acumular experiências. Como se<br />
fosse uma grande escada composta de milhares de pequenos degraus.<br />
Ao subi-los, encontram-se os céus bíblicos prometidos na<br />
palavra dos evangelistas. Cada indivíduo tem seus percalços, seus<br />
73
74 Jairo Martins de Souza<br />
degraus, construídos de forma específica. A dele era a de integrar<br />
crianças à fé cristã.<br />
O que faltava materialmente às espartanas instalações do edifício<br />
do seu orfanato, glória ao Senhor, podia ser grosseiramente<br />
compensado com as sobras de amor, fé e orações. Alimentar as<br />
almas às vezes logra vencer a fome espúria do corpo. Sim, o homem<br />
precisa de pouco pão e pouco vinho para viver.<br />
Ribérry acreditava também no conhecimento e na ciência<br />
para incentivar o aumento de fé do homem em Deus e na sua<br />
criação. O estudo, pregava, ajuda a criatura a conhecer a natureza<br />
física do criador. Em particular apreciava a astronomia cada<br />
vez mais próxima graças à chegada da notável, e não tão velha<br />
assim, fabricação do telescópio. Caros aprendizes (era assim que<br />
se dirigia aos seus órfãos), as maravilhas e os segredos da natureza<br />
espelham grandiosamente, mas não de forma suficiente, os<br />
mistérios e a imagem apagada do criador!<br />
Para tanto encaminhava seus acolhidos para a escola de Guéret.<br />
Tinha fé na instituição conduzida por Duchamps, com quem<br />
mantinha sinceros laços de amizade. É nessa condição que lá vamos<br />
encontrar o menino Martinho: já eram passados três meses<br />
de sua chegada. Antecipo que foram os anos mais felizes de sua<br />
vida. As aulas de carpintaria que lhe eram dadas por velho profissional<br />
que colaborava com as obras sociais de Ribérry teriam<br />
feito seus pais extremamente felizes. Era a profissão que sonhavam<br />
para ele. Aprendeu a arte e o manejo dos instrumentos com<br />
facilidade. Mas não foi daquela forma que veio a ganhar a vida.<br />
Encurtando o assunto, Tisserand prosseguiu, Martinho tornou-se<br />
companhia constante do filho do fidalgo. E foi em fim de<br />
tarde em que o horizonte tomava aspecto tenebroso (salpicado de<br />
vermelho escuro como o sudário de Jesus), que Jean disse-lhe.<br />
Não entendo exatamente a expressão daquele homem com<br />
casaco marrom, Martinho, parece-me não tirar os olhos de minha<br />
sacola de livros.<br />
Não é ela como um todo, Jean. Veja, julgo que a razão de<br />
tanto olhá-la é a edição que tens exposta das Lettres Philosophiques<br />
(Cartas Filosóficas) de Voltaire.<br />
Pode ser por isso, Martinho. Voltaire foi um dos que deu as primeiras<br />
estocadas nas excrescências da vida monárquica. A capa<br />
do meu livro é quase um insulto para partidários do L`Ancien
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Régime que desconhecem a podridão em que vivia a nobreza de<br />
Versailles. Deve ser um deles. Ainda sobrevivem muitos desses<br />
inconformados no seio do próprio povo.<br />
Pois é, Tisserand prosseguiu, o suposto monarquista era o pai<br />
de Materazzi. O acontecido se passou logo nos primeiros dias de<br />
aulas e Jean havia desenvolvido amizade imediata com Martinho.<br />
O menino o havia procurado, mas não dissera que a princípio<br />
fora atraído pelo sobrenome <strong>Monlevade</strong> do colega. Não se esquecera<br />
do fidalgo que o ajudara e à sua família meses atrás. O fato<br />
é que, a julgar pelo olhar fulminante de Materazzi, pouco faltou<br />
para que Jean fosse agredido. Primeiro fora o filho. Agora o pai.<br />
Mas não foi somente por causa do tal livro, sobre o qual o leitor<br />
já foi dado a conhecer.<br />
Não. Havia algo mais. O homem era antigo empregado nas<br />
propriedades do fidalgo. Não era dos dedicados ao trabalho e,<br />
com a pequena produção agrícola daqueles anos, e o baixo rendimento<br />
da gleba de terra que lhe havia sido destinada, vivia enfurecido<br />
com a situação. Certo dia perdeu as estribeiras e ao ser<br />
gentilmente perguntado sobre o que pretendia fazer para melhorar<br />
a produtividade de seus encargos, enfureceu-se e, desabotoando<br />
a camisa, desafiara o fidalgo, ofendendo-lhe todas as gerações.<br />
O pai de Jean, entendendo a situação, a princípio retrucoulhe<br />
com elegância, explicando-lhe genericamente a situação deplorável<br />
em que se encontrava o país. Pouco depois, dada a insolência<br />
do empregado, colocou-o, com palavras enérgicas, em<br />
situação desconfortável perante os demais camponeses. Aí, um<br />
dos pares de Materazzi, homem ainda jovem, cismou de ficar nervoso.<br />
Defendeu o fidalgo, seu senhorio.<br />
Dizia-se que esse antigo servo tinha os parafusos um tanto<br />
quanto soltos, mas, aos trancos e barrancos, dava conta de suas<br />
obrigações, inclusive de sua roça, mulher e filhos. E, naquele pequeno<br />
conflito em que tomava partido do seu senhor, disse a Materazzi<br />
em francês atravessado e recheado de palavras de baixo<br />
calão, merde, que não somente no seu país como também em<br />
qualquer parte do mundo não se pode suportar tal ofensa a fidalgo<br />
de respeito como <strong>Monlevade</strong>.<br />
Sabemos ser ele coxo e, sendo assim, impedido de lutar duelos<br />
e defender sua honra perante imbecis como Materazzi. Antes<br />
de concluir, prometeu emboscá-lo em noite fechada. E referindo-<br />
75
76 Jairo Martins de Souza<br />
se aos espíritos malignos expulsos de porcos por Jesus, acrescentou<br />
que até mesmo os suínos da região, se informados, protestariam<br />
diante do ridículo que o fidalgo ficara exposto. Esbravejava<br />
alto, quando de repente sacou de canivete de lâmina fina e curta,<br />
mas afiada. Por pouco não chegava a ser um punhal.<br />
A sorte é que, como num passe de mágica, abruptamente<br />
ajoelhou-se, colocou-se de costas e começou a rezar. Segundos<br />
antes, dissera um oh e, estranhamente, acalmara-se: pareceu-lhe<br />
ter visto um risco de luz gigantesco que cortara violentamente o<br />
céu acima de sua cabeça. A seguir um estrondo avassalador, que<br />
se repetiu em intervalos regulares tal como se fosse emitido por<br />
baterias de grandessíssimos canhões. Tudo foi muito rápido. O<br />
raio e trovão que anunciaram tempestade próxima não voltaram<br />
a acontecer.<br />
O homem interpretou os sinais como aviso de que seu tempo<br />
chegara. Instantaneamente fez de novo o sinal da cruz. É daí que<br />
foi dada chance a Materazzi para escapar. Dias depois o defensor<br />
do fidalgo passou a usar camisas somente de cor negra, e dispôsse<br />
a viver de biscates como pedreiro, carregador, transportador de<br />
caixas de fezes, enfim, prestador de serviços menos nobres para<br />
terceiros.<br />
Anos mais tarde andava circulando pelas ruas de Guéret com<br />
um pedaço de pau nas costas, tornando-se um dos mentecaptos<br />
mais famosos da região. Era querido pela população do vilarejo.<br />
O povo gostava e fazia troça de suas traquinagens e estripulias.<br />
Antes disso tinha sido mandado para tratamento no hospital do<br />
conhecido Dr. Esquirol, em Paris. O doutor Esquirol escrevera um<br />
consistente tratado sobre o mal que acometia o rapaz. Lá foi submetido<br />
a banhos de água fria e sangrias. Não funcionou.<br />
E não era tempo ainda dos antigos e decadentes tratamentos<br />
à base de choques elétricos, Tisserand explicou.<br />
Com isto não teve alta médica, mas foi levado de volta para<br />
Guéret pelo próprio fidalgo. Dilsé era o seu nome.<br />
Bom, mas os desafetos do violento Materazzi, o pai, não<br />
eram em pequena quantidade. Havia muitos outros além de Dilsé.<br />
O homem que tentara ofender o fidalgo tornara-se o Judas do<br />
vilarejo. Com o agravante de que todo dia, para ele, era Sábado<br />
de Aleluia. Alguns o ridicularizavam, entre outras coisas, por ter<br />
piolhos amestrados na cabeça, por nunca lavar suas cuecas e por
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
eterno furúnculo nas nádegas que não o deixava em paz. Diziam<br />
também nunca ter tomado banho a conselho e exemplo do próprio<br />
pai, já velho e abandonado. Não fica a saúde do tronco de<br />
uma árvore por conta da não retirada de sua casca? De todas as<br />
formas, a polícia local mantinha sobre ele vigilância moderada.<br />
Aí em sentido contrário é que atua o homem puro de Deus,<br />
eles existem! Pois o abade Ribérry, imune aos medos e terrores<br />
que almas abandonadas como a de Materazzi impõem a terceiros,<br />
acolhera-o em pequeno casebre situado no quintal do orfanato.<br />
Condoera-se da família. Lá o instalara com a função de manutenção<br />
de trato das áreas externas da instituição e outros pequenos<br />
serviços.<br />
Antes do episódio que terminamos de descrever, o abade havia<br />
anotado que Materazzi estivera observando – sua atitude era,<br />
notoriamente, suspeita – o filho de <strong>Monlevade</strong>. Felizmente não<br />
ocasionou nada de grave. Para tanto a razão foi simples e partiu<br />
de atitude de Martinho que mantinha hábito, ao lado dos policiais<br />
da cidade, de manter olhos bem abertos sobre o elemento.<br />
Ele fora prevenido e havia solicitado entrevista com o abade<br />
Ribérry. Foi quando, mesmo que cheirasse como se ainda usasse<br />
cueiros, o garoto calmamente expôs a situação que poderia<br />
tornar-se perigosa para o amigo filho do fidalgo <strong>Monlevade</strong>. Foi o<br />
suficiente para que Ribérry chamasse Materazzi até a sacristia e,<br />
usando todo o seu poder de persuasão, dissuadiu-o de qualquer<br />
intenção pecaminosa. O irritadiço homem a princípio recusou-se<br />
a aceitar conselhos, mas por final pediu perdão e disse que procuraria<br />
esquecer qualquer pretensão quanto a vingar-se do fidalgo.<br />
Julgava-o culpado de sua sorte, mas queria sobretudo manter o<br />
emprego, a casa e a garantia de comida para os seus.<br />
Perceba-se, Tisserand disse com voz mais suave, que Martinho<br />
tentava, de todas as formas, manter pagamento do débito<br />
que julgava ter com os <strong>Monlevade</strong>. Mal sabia ter sido sua primeira<br />
ação como colaborador do filho do homem que, um dia, dera-lhe<br />
as mãos.<br />
77
78 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
X<br />
O armazém e as histórias do capitão Platini<br />
No futuro Jean se lembraria que, na realidade, todas as grandes<br />
mudanças de sua vida se iniciaram em cima de um saco de batatas.<br />
Na maior parte dessas ocasiões, estava acompanhado por<br />
Martinho que, normalmente, tomava proveito e ganhava alguns<br />
sous ao fazer pequenos biscates para o comerciante proprietário<br />
do estabelecimento. Era lá, naquele saco de juta, que costumeiramente<br />
o filho do fidalgo se assentava enquanto ouvia as histórias<br />
de monsieur Platini e de seu empregado Fontaine. Foi a partir de<br />
momentos como esses que tornaram-se grandes amigos.<br />
O menino <strong>Monlevade</strong> gostava de estudar os livros da família,<br />
mas também era apaixonado por coisas e pessoas que haviam<br />
viajado pelo mundo afora. Aprendizado pela prática de terceiros.<br />
Fosse ele nascido nos dias de hoje, Tisserand comentou, exploraria<br />
seletivamente bibliotecas virtuais: não perderia tempo<br />
precioso com o lamaçal de imundices que passeiam pela rede. A<br />
internet ser-lhe-ia indispensável: tal como foram, após sua infância,<br />
as histórias e a experiência de Platini.<br />
Também tenho certeza de que pediria ao fidalgo, seu pai,<br />
condições para explorar o mundo em toda a sua diversidade.<br />
Viajaria muito em suas férias escolares. E, na adolescência, faria<br />
tudo para merecer o privilégio de um intercâmbio com famílias de<br />
outros países. Não se limitaria ao pequeno quadrado da telinha<br />
de computadores e aparelhos de tevê. Com razão. Não se tem a<br />
verdadeira dimensão do mundo e das pessoas ainda que vistas<br />
nas belas imagens do Discovery channel.<br />
É preciso esclarecer, Tisserand disse, que nem Platini, muito<br />
menos Fontaine, paralisavam atividades de rotina para contar casos<br />
e histórias para o garoto. O armazém era movimentado e não<br />
dispunham de tempo para tanto. Trabalhavam conversando. Just<br />
79
80 Jairo Martins de Souza<br />
Fontaine, esse era o nome completo do ajudante, fazia entregas domiciliares<br />
e zelava pela limpeza e integridade do estoque. Também<br />
se incumbia de viagens a Paris em busca de mercadorias para o<br />
patrão. Era muito popular nas redondezas pela habilidade com que<br />
atuava nos jogos de péla locais: o artilheiro das redondezas!<br />
Conheciam-se, ele e Platini, havia anos, pois ambos haviam<br />
seguido ofício de camponeses no Vale do Loire. A crise chegou.<br />
Tornaram-se marinheiros a serviço do governo pouco antes dos<br />
eventos que conduziram à Tomada da Bastilha, em 1789. Isso<br />
não durou mais que doze meses, mas anteriormente também haviam<br />
participado de navegação comercial e viajado por alguns<br />
mares do mundo. Começaram pelo Mediterrâneo, andaram pelo<br />
Tirreno, o Adriático, o Jônico, o de Andaman, até chegar, singrando<br />
as águas do Atlântico, ao antigo caminho de Calicute. Foi<br />
quando, a meio caminho, depararam-se com o Brasil. O que não<br />
fora totalmente por acaso: há séculos havia acontecido o mesmo<br />
com o português Pedro Álvares Cabral. Este fato seria explicado<br />
posteriormente pelos dois marinheiros, e em situação especial,<br />
tanto a Jean quanto a Martinho.<br />
Quando se desligaram da vida da caserna, e de suas guerras,<br />
fizeram-no por razões distintas.<br />
Afortunadamente – o senhor entenderá o que lhe digo em<br />
instantes – as Moiras de suas vidas fizeram cruzar novamente seus<br />
caminhos. Ajuntaram-se novamente na vida civil. Explico-lhe<br />
como isto aconteceu.<br />
Cada um recebera a parte que lhe cabia como indenização<br />
por serviços prestados à nação. É com esse numerário que, pressupunha-se,<br />
deveriam ir adiante constituindo família, e por aí as<br />
coisas deveriam ir seguindo.<br />
O tenente Platini, por privilégios da patente e medalhas de<br />
bravura, recebera quantia considerável. O governo lhe oferecera<br />
propriedades, ele declinou. Fontaine fora premiado em sua maior<br />
parte pelos valores simbólicos das condecorações por valentia.<br />
Mas tanto ele quanto Platini, cada um em seu patamar e, em<br />
parte fazendo jus à fama da classe dos homens do mar, gastaram<br />
muito do que ganharam. A bem da verdade, quase tudo. Durante<br />
alguns meses fizeram a alegria de mulheres da noite nos bordéis<br />
dos bairros pervertidos de Paris. Mulheres e diversões. Diversões<br />
e mulheres. Caíram praticamente em bancarrota. Acabando-se o<br />
dinheiro, voltou-lhes a consciência.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Foi ato de Deus. Certa madrugada, coincidentemente, foram<br />
expulsos ao mesmo tempo de uma taverna por dizerem insultos ao<br />
proprietário, e por mau comportamento diante dos presentes. Daí<br />
é que, passada a bebedeira, viram-se sendo acordados, juntos,<br />
por meio de cachorro vira-latas que lhes lambia o rosto próximo à<br />
porta dos fundos de outro mal afamado bordel. Reencontraramse.<br />
Fontaine queixou-se respeitosamente ao oficial, dizendo que<br />
tinha ido a zero. Conversaram como nos velhos tempos de marinha.<br />
No findar da tarde, já recuperados e após banho de água<br />
quente tomado em estalagem barata, trocaram mais ideias observando<br />
os barcos que transitavam vagarosamente pelas águas<br />
volumosas do Sena. Platini estivera refletindo ao longo de todo<br />
o dia e, intempestivamente, dissera a Fontaine que decidira abrir<br />
fundo de comércio com o pouco que lhe restara. Convidou o antigo<br />
companheiro para participar de sua empreitada. Talvez isso nos<br />
faça recuperar, e seja nossa tábua de salvação, reforçou.<br />
Aceito o convite, decidiram que iriam para o interior do país.<br />
Começaram percorrendo algumas feiras e propriedades como<br />
mascates. Platini era homem sagaz e logo começou a se dar bem.<br />
Fontaine ajudava-o não somente com o serviço bruto de carregar<br />
baús de mercadorias, como também na comercialização de artigos<br />
mais rudes. Eram flexíveis e bons de negócio. Algumas vezes<br />
praticavam escambo e anotavam as entradas e saídas e débitos<br />
de clientes habituais em caderneta protegida com capa reforçada<br />
com couro de boi. Nenhum deles tinha hora para deitar ou acordar,<br />
mas isso para eles, como vimos, tratava-se praticamente de<br />
diversão. Duras mesmo, diziam entre si, eram as horas passadas<br />
lutando contra os ventos e borrascas tropicais.<br />
Platini comprara um burro; daí a pouco possuía duas parelhas<br />
que conduziam pesadas carroças cheiras de quinquilharias.<br />
Não foi preciso longo tempo de amadurecimento na profissão de<br />
ambulante para que percebesse que poderia contar com a certeza<br />
de um ponto fixo. Escolheu local na praça de armas do pequeno<br />
vilarejo de Guéret que crescia a olhos vistos. Produzia pouco vinho,<br />
mas de qualidade. E a tapeçaria, arte em que a região tinha<br />
sucesso milenar, ainda não fora totalmente atingida pelos infortúnios<br />
da Europa.<br />
A negociação com o proprietário do imóvel, um burguês que<br />
se mudara recentemente para Paris, foi árdua. Pedira garantias<br />
81
82 Jairo Martins de Souza<br />
que estavam fora do alcance de Platini. Aí o fidalgo <strong>Monlevade</strong><br />
surgiu em boa hora na vida do antigo militar. Na realidade, o pai<br />
de Jean conhecia Platini por meio de constantes passagens do<br />
mascate pelas redondezas e no seu próprio castelo. Intercedera<br />
junto ao proprietário do imóvel, um seu velho conhecido, e o<br />
negócio pôde ser concretizado com sua fiança.<br />
Próximo dele via-se antiga farmácia de monsieur Paracelsus,<br />
a taverna do sempre exaltado senhor Montalban, a padaria de<br />
Boulanger, a casa de ferragens de monsieur Ferrand, a cervejaria<br />
e casa de monsieur Duval (onde rapidamente se reparavam ferraduras),<br />
e algumas pequenas estalagens.<br />
A parte majestosa daquela praça era o prédio do fórum e o<br />
da direção do município e, por fim, a igreja e o seu campanário.<br />
O povo de Guéret orgulhava-se dessas edificações de belíssima<br />
arquitetura onde o estilo clássico e os inovadores apresentavamse<br />
em harmoniosa miscigenação.<br />
No extremo de um dos seus cantos estendia-se uma viela estreita<br />
que conduzia a algumas casas pintadas de vermelho, exatamente<br />
no ponto contrário àquele em que se localizava a igreja<br />
matriz. O diabo, em todas as partes do mundo, tem sempre que<br />
ser colocado em local diametralmente oposto onde se localiza a<br />
casa de Deus na Terra.<br />
Certa ocasião, Jean se aproximara daquele bloco de casas<br />
que algumas beatas diziam amaldiçoadas. Chamavam-no morada<br />
do demônio. Ao lembrar-se disso, e ao ouvir de longe o eco de<br />
xingos, maldições e palavras de baixo calão que de lá procediam,<br />
o rapaz afastara-se imediatamente. Ainda deu tempo para perceber<br />
que, na ocasião, o tema do falatório era dinheiro e obrigação<br />
não cumprida. De fato sentira medo, mas confessou algumas horas<br />
depois que, mais crescido, teria coragem suficiente para ver de<br />
perto o que significava o pecado que diziam lá grassar. Chamaria<br />
Martinho para que fossem juntos. Na confissão do domingo seguinte,<br />
o capelão admoestou-o e, de imediato, recomendou-lhe a<br />
reza de vários terços e, por final, disse-lhe para que, quando passasse<br />
por aquelas proximidades, fizesse o sinal da cruz e gritasse<br />
alto, vade retro, satanás!<br />
Jean se deu por satisfeito. Ficara sabendo, por meio do próprio<br />
Platini que, no distante Peru, dominado pelos espanhóis, os<br />
padres batiam com varas nas crianças que cometiam pecados
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
dessa natureza. Castigo público. Feito ao vivo nas praças das cidades.<br />
A punição valia quer o ato impuro fosse feito efetivamente<br />
na prática ou somente na intenção. Então, para os prostíbulos<br />
que não visitara, o criativo Jean imaginou que seria interessante<br />
colocar em suas janelas pinturas de uma caveira com duas tíbias<br />
cruzadas. Sinal de navio pirata que aprendera a desenhar ao ver,<br />
de longe, os cadernos do endiabrado colega Materazzi.<br />
Bem, mas é no próspero armazém de Platini que, conforme<br />
dissemos, vamos encontrar o rapaz frequentemente assentado<br />
ouvindo e anotando suas histórias. Como de praxe, acompanhava-o<br />
Martinho. Nessa situação é que esse último demonstrara<br />
uma aptidão até então desconhecida tanto para ele quanto para<br />
os que cercavam. Desenhava com facilidade extrema as cenas<br />
do cotidiano. Portanto, à medida que ouvia os acontecidos, rascunhava<br />
figuras, mares, sereias, aventuras e ondas bravias que<br />
cercavam as tripulações. Não. Não é que fossem prenúncios de<br />
autênticas obras de arte. O que saltava aos olhos era a simplicidade<br />
e os efeitos de claro-escuro que naturalmente emanavam das<br />
mãos do garoto. Jean ficara feliz com a descoberta.<br />
Um talento convivia ao seu lado. É lógico, o filho do fidalgo<br />
<strong>Monlevade</strong> tinha muitos que excediam de longe ao do companheiro.<br />
Não neste caso da arte do desenho e muito menos do da música.<br />
E o pai sinceramente acreditava que seu Jean nunca seria um<br />
Mozart que, em 752, com apenas 6 anos, já tinha feito sua primeira<br />
turnê pela Europa. Mas decidira introduzi-lo precocemente nas primeiras<br />
letras da música. O ouvido apurado fizera a alegria dos pais,<br />
mas não foi suficiente para torná-lo um artista. Assim desenvolveu<br />
somente o bastante para tocar em família. Não mais que isso.<br />
Bem, Tisserand prosseguiu, já disse muito sobre as excelências<br />
e a aplicação do menino Jean. E não é que eu esteja excedendo<br />
nas circunstâncias. Por assim dizer, colocando achas de<br />
lenha em miniatura de lareira! Não no seu caso. É por isso que<br />
lembro mais uma. O contato com monsieur Platini fez com que<br />
o rapaz <strong>Monlevade</strong> criasse também intenso interesse pela arte da<br />
navegação, e os segredos dos mares e sítios distantes.<br />
No comércio do antigo oficial, a hierarquia fora mantida.<br />
Fontaine sempre fora subalterno e nunca se mostrara insatisfeito<br />
com a situação. Em sua família a pobreza jamais fora contestada<br />
e recusada por meio de atos de indignação. Somente por puro<br />
83
84 Jairo Martins de Souza<br />
sentimento psicológico de manada de bois é que andara dando<br />
alguns poucos gritos a favor da Revolução. Juntara-se acidentalmente<br />
à turba, mas não se comportara simplesmente como um<br />
destruidor de patrimônio alheio ou do estado. Diante de tudo isso,<br />
Platini era o patrão de quem gostava e tinha prazer em servir.<br />
O mercador, insisto, fora capitão de fragata, e Fontaine, um<br />
dos seus ajudantes. Homem grato a Platini. Seu antigo superior<br />
ensinara-lhe como trabalhar com as velas e dominar o timão para<br />
fazer frente, e usar a própria força dos ventos que teimosamente<br />
se opunham à sua missão. O segredo é usar bem as intensidades,<br />
as direções e o sentido para onde sopram os ventos. Resumindo,<br />
uso o vigor do próprio adversário para derrotá-lo, dissera-lhe satisfeito<br />
Platini no decorrer de uma de suas lições. Como se faz na<br />
milenar ciência do Judô. Ensinara-lhe também a lidar com números<br />
e a assinar o nome. Ensinara-lhe praticamente tudo que sabia.<br />
Podia até mesmo dar troco e fazer o caixa e a contabilidade dos<br />
negócios do patrão. Tinham confiança mútua.<br />
Um modelo de companheirismo para Jean e Martinho. Sim.<br />
Ambos tinham família. Tinham um ao outro. E a música. Platini<br />
era gaiteiro. Tocava o instrumento como quem abraça a amada. E<br />
bastava um copo de vinho para que Fontaine buscasse o acordeon.<br />
Filhos, se os tiveram, haviam sido perdidos em suas viagens.<br />
Já as mulheres, essas não poderiam esperar por tempo indeterminado<br />
enquanto os dois homens vagavam por portos longínquos<br />
do mundo conhecido. De agora em diante tudo isso poderia<br />
mudar. Há moças interessantes e de boa família que poderiam<br />
redundar em casamento próspero para dois veteranos que ainda<br />
não haviam alcançado a casa dos trinta. Vamos ver o que nos<br />
reserva o futuro!<br />
Foi quando aconteceu algo que motivou as primeiras linhas<br />
desse capítulo. Com alguma imprecisão, tudo começou quando,<br />
certo dia, o dedicado professor Duchamps encontrou-se fortemente<br />
adoentado. O boticário Paracelsus havia verificado sua<br />
garganta e constatado que estava vermelha e cheia de ameaçador<br />
pus branco. Pus. Pus era nome proibido. Deveria ser dito em<br />
voz baixa. Então foi assim que lhe receitou frasco com líquido<br />
escuro que lembrava leite queimado no açúcar, e disse-lhe que<br />
até o momento não era nada grave. Mas que Duchamps deveria<br />
suspender aulas até segunda ordem. Normalmente, Duchamps
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
recorreria a alguns alunos mais velhos, e adiantados, para que<br />
ajudassem aos que não estivessem em dia com seus estudos. Jean<br />
<strong>Monlevade</strong>, embora fosse dos mais jovens, também se via frequentemente<br />
convocado para a função.<br />
Nada disso foi possível, Tisserand comentou, e os motivos<br />
não são dignos de nota. O que interessa dizer é que o imprevisto<br />
proporcionou a Jean e Martinho passagem de toda uma tarde<br />
escutando peripécias de viagens feitas por Platini e Fontaine. O<br />
Breu, com cara de sono, lá estava deitado fitando placidamente<br />
o dono. O céu escuro e a chuva fria que batia forte no telhado<br />
de todas as casas do vilarejo e redondezas haviam espantado os<br />
fregueses da casa.<br />
Então os dois velhos amigos de tantas andanças tinham se<br />
dado direito ao tempo livre colocado a dispor. Isso raramente<br />
acontecia. Sempre arranjavam ocupação extra. O vinho, que tomavam<br />
usualmente na taverna de Montalban, ficava sempre para<br />
quando não sobrasse nenhuma fração de trabalho a ser feita. Lá<br />
era o local onde realmente relaxavam, relembrando aventuras<br />
passadas às vezes não muito recomendáveis para se relatar em<br />
casa de família. Depois a gaita e o acordeon faziam a alegria do<br />
ambiente. Cantavam e dançavam.<br />
Mas confesso que, dadas as condições atípicas daquele dia, e<br />
mesmo que nas instalações do próprio negócio, os dois homens<br />
viram-se tocados diante dos ouvidos curiosos e interessados das<br />
duas crianças. Então, entre outras coisas, contaram-lhes que haviam<br />
visitado novamente o Brésil. Haviam estado por lá acidentalmente<br />
e com rapidez, conforme já havia-lhes dito. Gostaram<br />
e pretenderam voltar. Ficava nos trópicos, parte do globo pouco<br />
visitada pelos europeus dos anos oitocentos.<br />
Platini, em especial, tinha seus segredos. Em dado momento,<br />
retomando suas raízes marítimas, fora até baú que guardava com<br />
extremo carinho no sótão do estabelecimento. Lá também ficava<br />
a cama e o parco mobiliário de que dispunha. Fontaine, por sua<br />
vez, dormia em catre colocado atrás de uma das prateleiras da<br />
área de vendas. Ao voltar, Platini trouxera, em mãos, cópia da<br />
extensa e detalhadíssima carta que o escrivão da esquadra portuguesa<br />
– o que primeiro chegara ao Brésil – escrevera para o imperador<br />
português na ocasião do descobrimento. O texto é legítimo<br />
e integral, disse. Havia sido traduzida para o francês por capitão<br />
85
86 Jairo Martins de Souza<br />
lusitano que tinha família de origens francesas. Na realidade, um<br />
poliglota egresso de Coimbra e que, chamado à luta, estivera até<br />
mesmo navegando e aportara nos mares da China. Foi dele que<br />
Platini obtivera o documento, resgatado como butim de combate.<br />
Jean e Martinho, escutem o que está escrito nesse documento<br />
como se fossem minhas palavras! Descreve melhor do que nós<br />
mesmos o que andamos encontrando pelo Brasil. Não é mais segredo<br />
de Estado. Já foi! Nele também consta anexo que diz que o<br />
império português permitiu que fosse aberto ao mundo há pouco<br />
tempo. Em 1773. Prestem bastante atenção, vou lê-la para vocês.<br />
Mais que isso, vou comentá-la, foi o que por final disse antes<br />
de passar a cumprir o prometido. Daí lembrou-se que não havia<br />
tido o cuidado de mencionar a importância do real endereçado: o<br />
próprio Dom Manuel, o Venturoso. Mas logo a seguir riu, concordando<br />
com o missivista que, de início, e humildemente, declarouse<br />
incompetente para comentar os detalhes técnicos da viagem.<br />
Nem poderia. O senhor Pero Vaz de Caminha – esse era o seu<br />
nome – não era especialista em assuntos de mar. Platini manifestou-se<br />
bem impressionado com a sinceridade do português. O<br />
mais importante desse documento, prosseguiu, é a confirmação<br />
posterior de todos os fatos que relatou.<br />
Pois faz mais de trezentos anos que foi escrito: é datado de<br />
1500! E já diz da possibilidade de existência de muitos metais<br />
preciosos, e que sua natureza verdejante esconde debaixo de suas<br />
árvores uma gigantesca província mineral. Muitos rios e águas,<br />
muitas florestas, muitos animais, muitos peixes... O vermelho do<br />
pau-brasil é exuberante, a inocência dos índios é de se espantar,<br />
a chance de salvação daquelas almas é...<br />
Jean absorvia cada palavra que Platini dizia. Martinho parecia<br />
ligeiramente enfadado com a leitura e explicações. Assim<br />
a tarde passava rapidamente para um, enquanto para o outro<br />
parecia não ter fim. Ao longo de seu relato, o marinheiro disse<br />
ter ido ao porto de São Sebastião do Rio de Janeiro e enalteceu<br />
sua vida e sua beleza natural. A pobreza lá é grande, mas tudo<br />
é compensado pela vista das montanhas e da belíssima baía. É<br />
espontaneamente protegida. Um doce refúgio para navios e tripulação<br />
cansados de sofrer os atropelos e as tormentas de alto mar.<br />
Enquanto isso o Breu já dormia a sono solto.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
O contorno de algumas formalidades legais impostas pelo<br />
império português – não se permitia negociação direta com os<br />
negociantes da sede da colônia lusitana – forçou a nau em que<br />
trabalhavam a ficar parada por tempo indeterminado no porto<br />
brasileiro. Isso foi agravado pela falta de carga e falha em cálculo<br />
de tempo de chegada de frete já contratado e a ser embarcado:<br />
mais ainda por inusitado e extenso período de calmarias.<br />
A falta de ventos sempre foi o maior pesadelo dos navegantes.<br />
Platini sonhava em poder comandar navio a vapor que um oficial<br />
conhecido, de passagem pelo Rio, havia comentado estar em estágio<br />
avançado de projeto para, finalmente, singrar oficialmente<br />
pelos oceanos e mares. Mas todos aqueles atrasos de naturezas<br />
técnicas e comerciais é que lhe propiciaram investir durante três<br />
semanas terra adentro. Ele avançara pelo interior de um estado<br />
chamado Minas Geraes. Esmeraldas. Muito ouro. Muitos minerais.<br />
O rapaz <strong>Monlevade</strong> viajava com o amigo, à medida que ouvia<br />
suas histórias.<br />
Mas nesse dia isso não foi tudo. Platini voltara ao sótão e trouxera<br />
outro bem guardado documento. Uma grande tira de papel. Esse<br />
aqui não trouxe como prêmio de combate. Antes de viajar para as<br />
terras do Brésil, estive nas docas do Tâmisa e ganhei essas informações<br />
de um celerado inglês que se encontrava refugiado de condenação<br />
que lhe fora imposta pela justiça do seu país. Essas chamaramme<br />
mais ainda a atenção e o interesse em visitar os trópicos...<br />
Jean e Martinho não tiravam os olhos do marinheiro quando<br />
esse lia que o Brésil é grande país marítimo da América do Sul, etc.<br />
A leitura foi longa, é por isso que a resumi e vou continuar<br />
resumindo-a, agora é o próprio estrangeiro Tisserand quem diz,<br />
ao mesmo tempo em que lentamente observava as condições do<br />
horizonte que anunciava timidamente algumas nuvens negras.<br />
Parecia querer acrescentar, e trazer para dentro de si, outras condições<br />
indesejáveis para incursões oceânicas. Absorto por sua<br />
tarefa, mal reparara que o vento suave fizera cair duas mangas<br />
maduras ao seu lado. Sorriu meio sem jeito.<br />
E voltando ao seu relato, comentou que Platini verificara que<br />
um dos seus dois ouvintes, Martinho, havia novamente sucumbido<br />
ao sono durante a leitura anterior da carta do talentoso e<br />
detalhista Caminha. Nada disso havia tirado o seu entusiasmo.<br />
Mas, em determinado momento, temeu pela sorte do rapazinho.<br />
87
88 Jairo Martins de Souza<br />
Ele quase se precipitara de cima de pilha de caixotes de maçãs!<br />
Seu companheiro Jean permanecia atento. Parecia magnetizado.<br />
Não perdia sequer uma palavra! Principalmente quando<br />
Platini disse ser o Brésil um país cercado pelo oceano Atlântico e<br />
pelo rio-mar Amazonas, esse ao Norte. Já no Oeste fazia fronteira<br />
com o Paraguai e, ao Sul, com o rio da Prata. Produzia açúcar e<br />
tabaco e tinha minas riquíssimas de ouro e diamantes. É de lá que<br />
os portugueses tiram grandes lucros. Minerais em profusão: era aí<br />
que sempre reparava crescer o interesse do jovem!<br />
No final, Platini disse que o malfeitor inglês lhe dissera com<br />
orgulho que os dados que lhe fornecera foram levantados por<br />
cópia de seu próprio punho da primeira edição da Encyclopaedia<br />
Britannica editada na cidade de Edinburgo. O fato fora recente e,<br />
portanto, confiável. Acontecera em 1771!<br />
A tarde estava por terminar na tranquila Guéret. O trote cadenciado<br />
do animal que conduziria Jean e Martinho de volta ao<br />
castelo foi escutado aos poucos pelos homens e pelos dois rapazinhos<br />
que conversavam no interior da mercearia. Jean desceu<br />
do saco de batatas. Martinho, dos caixotes de maçãs. Fontaine se<br />
preparava para se dirigir ao fundo para verificação de goteira que<br />
percebera ter aparecido no telhado de madeira. Poderia molhar<br />
alguma mercadoria. Platini, apressado, preparava-se para atender<br />
cliente prestes a entrar no estabelecimento.<br />
Recolhidos os passageiros, o carroceiro rapidamente tomou<br />
direção do castelo. Tinha pressa. Recebera salário e desejava ainda<br />
voltar à cidade para rápida passagem na casa de cores vermelhas<br />
que o padre andara insultando no sermão da missa de<br />
domingo. Passaria ao largo de praticamente todo o vilarejo.<br />
Jean mergulhou em pensamentos. Bússolas. Astrolábios.<br />
Água. Floresta. Pássaros. Minérios. Índios. Navios. Riqueza. O rapazinho<br />
não conseguia tirar da cabeça a palavra Brésil!<br />
Martinho, mesmo com o veículo em movimento, acabara de<br />
assinar desenho que fizera, e que ficaria para a posteridade na<br />
vida dos dois amigos. No ambiente do pequeno armazém ambos<br />
estavam lá assentados nas caixas de mantimentos, enquanto<br />
observavam Platini, que discursava e exibia um pequeno globo<br />
terrestre. Não se esquecera do Breu. Próximo a esse e também<br />
assentado, Just Fontaine levantava o indicador como se estivesse<br />
pedindo vez para expor alguma constatação. Uma galinha passa-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
va apressadamente por um dos cantos do recinto...<br />
O rapazinho tinha rara sensibilidade de artista e havia captado,<br />
resumindo em alguns poucos rabiscos, todo o significado e a<br />
profundidade da situação.<br />
Foi quando tive minha atenção chamada pela atitude, e pela<br />
lenta dobrada de corpo que Tisserand assumira sem que eu tivesse<br />
percebido o início. Olhei-o de lado. Ele havia espirrado com suavidade:<br />
desejei-lhe saúde, À tes souhaits! Ele agradeceu. Ofereci-me<br />
para pressionar suas costas para aliviar o incômodo, parecia que<br />
estava em vias de voltar a espirrar. Alarme falso...<br />
Passados alguns segundos, justificou-se, e pediu-me desculpas<br />
alegando ter ficado levemente ansioso.<br />
O senhor vai entender-me melhor daqui a minutos: estou por<br />
iniciar momento especial da história que lhe relato.<br />
89
90 Jairo Martins de Souza<br />
“... que fizera com o fito de caçoar dos amigos. Mal sabia que<br />
ficaria para a posteridade. Na gravura, ambos estavam assentados<br />
nas caixas de mantimentos do pequeno armazém enquanto Platini<br />
e Fontaine trocavam ideias sobre novas rotas de viagem para<br />
o Brésil...”.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
XI<br />
Angéline<br />
As prateleiras envidraçadas do estabelecimento estavam cheias<br />
de pequenas garrafas e vidros que lembravam o que usamos nos<br />
dias de hoje para armazenamento de picles, temperos e outras<br />
iguarias. Foi quando a viu pela primeira vez, e o pai cuidadosamente<br />
parecia dar-lhe por via oral uma pequena quantidade de<br />
remédio. Parte do líquido grosso e escuro, graças à incansável<br />
gravidade terrestre, escorreu lentamente por um dos lados da pequena<br />
colher de ferro batido. Ambos estavam de pé no interior<br />
da própria farmácia de monsieur Paracelsus e mesmo alguém<br />
deficiente na percepção de cheiros notaria que o emanado pelo<br />
remédio ingerido pela garota, e que vazara para o ambiente, era<br />
fortíssimo e lembrava óleo de fígado de bacalhau. Ato contínuo,<br />
o homem limpou a vestimenta da menina cuidadosamente com<br />
pano limpo e, ao mesmo tempo, fez-lhe carícia sinalizando que<br />
estava quase por finalizar. Jean <strong>Monlevade</strong> estremeceu...<br />
Angéline, era esse o seu nome, tinha entre dez e onze anos e<br />
estava totalmente relaxada sob o singular cuidado paterno. Mantinha<br />
os olhos fechados e dava impressão de não ter sentido o ardume<br />
que costuma provocar a ingestão de tais misturas de plantas<br />
e óleos medicamentosos. Essa tranquilidade demonstrava que<br />
o procedimento era uma constante em sua vida. Bastante magra<br />
para os padrões estéticos da época, fora compensada pela natureza<br />
com outros predicados, por exemplo, a beleza que saltava aos<br />
olhos de quem a visse. E não que fosse somente isso. Ainda que<br />
não a conhecesse, não demorou muito para que Jean soubesse<br />
que sua simpatia era cativante, razão suficiente para que, aí de<br />
forma integral, se tornasse absolutamente encantadora.<br />
De fato a moça, ainda menina, lembrava uma daquelas criaturas<br />
geradas pela mistura de muitas raças (como as que temos de<br />
91
92 Jairo Martins de Souza<br />
sobra nos desfiles de misses nos dias atuais), pois a peculiaridade<br />
de sua presença era também marcada pelo diferenciado contorno<br />
dos olhos. Os poucos familiares com os quais tivera contato diziam<br />
tratar-se de lembrança atávica de avós distantes. O formato<br />
amendoado dos olhos da moça, assim como o de alguns povos<br />
do oriente, tinha o detalhe de ser esculpido com fundo azul intenso,<br />
e muito brilhante. Tudo emoldurado por mechas de cabelos<br />
escuros e pele muito branca. Associe tudo isso, o leitor, a um corpo<br />
esguio com cintura bem definida. As ancas eram largas com<br />
protuberância traseira agradável aos olhos dos rapazes. Por fim,<br />
um perfil corporal inocentemente erótico, que se projetava para<br />
a adolescência. Inusitadamente para aqueles dias já tinha altura<br />
bastante destacada.<br />
O pai, médico, doutor Colbert, havia chegado recentemente à<br />
região, e demonstrava habilidade no trato com a filha. Parecia provido<br />
de mais de duas mãos. Toma tudo, chérie, só mais uma colher<br />
desse outro extrato e ficarás bem por essa e muitas outras noites.<br />
Jean havia retornado da escola e, enquanto aguardava a carroça<br />
que o conduziria de volta ao castelo de Guéret, fora até a farmácia<br />
resgatar encomenda que lhe fizera a mãe, Felicité. François<br />
raramente se encarregava deste tipo de serviço. E Maria Vitória<br />
ficava sempre ao lado da mãe. Era rapazinho, por assim dizer,<br />
bem mandado. Mas em particular agradava-lhe essa missão, pois<br />
gostava dos cheiros das essências, dos óleos, dos unguentos, dos<br />
emplastros, assim como das raízes que via colocadas em potes e<br />
pequenos vidros nas prateleiras do comércio. Não repudiava nem<br />
mesmo o do forte remédio à base de peixe que a bonita menina<br />
ingerira. Em outros, provocaria vômito!<br />
O jovem Fourier, o farmacêutico que trabalhava com Paracelsus,<br />
com a aquiescência do patrão (ambos eram sabedores do espírito<br />
investigativo do rapazinho), permitia que Jean, às vezes, fizesse<br />
abertura de alguns dos vidros do estoque para ensinar-lhe conhecimento<br />
de aromas e de procedência das raízes. Jean tem talento<br />
suficiente para ser um perfumista, diziam. Interessa-se por tudo que<br />
vem da terra. Suas pedras, rochas, raízes, cheiros e química. Mas,<br />
como já sabemos, não se limitava a tanto.<br />
Entusiasmava-se pela biologia e pela nova ciência da eletricidade.<br />
A ciência abria novos caminhos para o mundo. Não havia<br />
Luigi Galvani demonstrado que nervo ciático de rã morta tocado
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
por peça metálica próxima de faíscas fazia a perna do bichinho repuxar?<br />
Não foi daí que Volta partiu para inventar a pilha elétrica,<br />
usando cobre e zinco separados por discos de couro impregnados<br />
por restos de água salgada?<br />
Já disse, com outras palavras, que o rapaz tinha índole de<br />
pesquisador. Vou insistir. Pois certa ocasião, na presença de alguns<br />
amedrontados trabalhadores do castelo, decidira repetir a<br />
famosa experiência que o atual embaixador dos Estados Unidos<br />
na França, monsieur Benjamin Franklin, havia feito anos atrás<br />
(estou dizendo do mesmo homem que foi um dos Founding Fathers,<br />
um dos pais fundadores dos Estados Unidos). Ele havia<br />
lançado pipa ao sabor dos ventos em dia de nuvens carregadas.<br />
A linha que usava não foi somente enrolada em tronco de árvore<br />
como também ligada à terra por meio de fio, contudo interrompido<br />
por meio de pequena chave de metal aberta. Uma ponta da<br />
chave era ligada no barbante. A outra, a que estava aberta, ficou<br />
enterrada no solo junto à árvore. O campo tinha poucas árvores.<br />
Era praticamente aberto.<br />
Jean fez o mesmo. Com o início das trovoadas e raios, num<br />
dado momento, aconteceu passagem de fagulha entre as extremidades<br />
da tal chave. Um galho da árvore ficara estilhaçado e<br />
iniciara queima. A terra úmida esfumaçou-se imediatamente. A<br />
carga elétrica acumulada nas nuvens havia escoado violentamente<br />
para a terra. Um boi mugiu assustado. Ovelhas e carneiros<br />
precipitaram-se para todos os lados. Um bando de cachorros saiu<br />
latindo em disparada. Algumas galinhas que estavam nas imediações<br />
correram espavoridas: voltaram para pequeno cercado<br />
coberto. O fogo que se iniciara no galho apagou-se em segundos.<br />
Os serviçais fugiram amedrontados.<br />
Voltaram aos poucos. Desconfiados. O soldado Cousteau,<br />
que ocasionalmente passava próximo ao local, chamou rigorosamente<br />
a atenção do rapaz. Sentiu-se ofendido porque se assustara<br />
e por instinto de sobrevivência, correra como um covarde.<br />
Um militar não deve ceder ao medo e fugir de circunstâncias estranhas<br />
como faz um civil. Jean justificou-se, dizendo do cunho<br />
educacional do evento. As razões foram aceitas, mas a autoridade<br />
policial alegou ter que comunicar ocorrência ao seu superior. O<br />
fidalgo também seria informado dos perigos que aconteceram ao<br />
longo do ocorrido.<br />
93
94 Jairo Martins de Souza<br />
Isso contornado, Jean passou a explicar-lhes que a descarga<br />
de energia na chave, o fogo na árvore, a fumaça no chão foram<br />
resultados dos efeitos de eletricidade em movimento. A carga da<br />
nuvem é positiva e a da terra negativa. Foi o que Franklin havia<br />
decidido. Por convenção. Podia ter chamado de forma contrária.<br />
Bem, Tisserand disse sorrindo, desculpe-me ter alongado em<br />
paixões fora de hora do rapaz, devo voltar à cena da farmácia de<br />
monsieur Paracelsus. Algo se inicia!<br />
Com a presença do médico e filha, a atenção de Jean se concentrara<br />
totalmente no perfil suave da mocinha. O pai, enquanto<br />
trabalhava mantendo a cabeça de sua querida paciente ligeiramente<br />
inclinada para trás, prosseguia dirigindo-lhe afagos: talvez<br />
daí, desse simples ato de amor, viesse a aparente ausência de dor<br />
e a tendência relaxada de sua criança. Ninguém se acostuma com<br />
remédios amargos. Jean continuou observando-os discretamente<br />
e, instantaneamente, imaginou que o pai havia concluído suas carícias,<br />
e que passara a tarefa para que ele prosseguisse. Com isso,<br />
viu-se roçando as costas de suas mãos no rostinho da mocinha<br />
por instantes…<br />
Colbert era sobrinho de ex-ministro de Napoleão e tivera outros<br />
dois filhos. No entanto nunca pudera tirar partido daquele<br />
parentesco privilegiado. Graves problemas de divisão de herança,<br />
quando da morte dos avós, forjaram a separação do pai com o<br />
tio. Havia também muitos outros irmãos, doze no total, caro leitor,<br />
mas todos mortos em uma ou outra empreitada de guerra levada<br />
a efeito pelos reis da França ao longo dos anos.<br />
Angéline era a joia da coroa que guardava com o maior dos<br />
cuidados. Os outros dois filhos também lhe tinham sido muito<br />
caros sob todos os aspectos. Haviam lhe custado muitas horas de<br />
rotina extra. Nasceram com algumas lacunas formativas, quase<br />
que totalmente recuperadas pela paixão e esforço do pai. A mãe<br />
era uma burguesa que vivera os exageros da corte de Versailles.<br />
Morrera precocemente deixando os rebentos aos cuidados exclusivos<br />
do jovem marido. Também precocemente morreram-lhe os<br />
filhos homens e, com tudo isso, os esforços financeiros tinham<br />
sido gigantescos e ele, praticamente, chegou à bancarrota. Então<br />
decidiu reiniciar vida nova e trabalhar no interior do país. Nada<br />
especial. Produziria o suficiente para manter o básico permitido<br />
para um profissional liberal naqueles anos difíceis. Com isso pen-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
sara viver com simplicidade, fora da vida cara e dos luxos da<br />
capital, Paris.<br />
Para tanto, levara consigo a filha que lhe restou. Pretendia<br />
criá-la no saudável ar do campo, casá-la, ter netos e, bem... Foi<br />
somente após deixá-la confortável em cadeira para rápido descanso,<br />
que constatou a presença do rapazinho <strong>Monlevade</strong>. Cumprimentou-o<br />
de forma educada com a cabeça. Lembrou tê-lo visto<br />
com o pai quando fizera visita ao castelo. Um dos seus serviçais<br />
ferira a perna em queda de cavalo. Desde então, Colbert soubera<br />
do entusiasmo que os moradores da cidade tinham pelo rapazinho.<br />
Aproximaram-se. Diga ao fidalgo, seu pai, que, estando na<br />
cidade, estique as pernas até minha casa, foi o que, por fim, falou<br />
a Jean. Entregue a ele este pequeno bilhete. Ambos haviam<br />
percorrido distância igual e Jean recebeu o papel dobrado em formato<br />
de ave, um origami feito com a rapidez de quem tem mãos<br />
de cirurgião. Tudo isso aconteceu a meia distância de Angéline.<br />
Com a demonstração de sua arte, na realidade Colbert quis<br />
dizer que se sentia bem em conhecer o menino. És bem-vindo!<br />
A garota abrira os olhos e, ao perceber a presença de um terceiro,<br />
teve imperceptivelmente modificada a cor das maçãs do rosto.<br />
Avermelhou-se. O pai, que bem a conhecia, sorriu, percebendo<br />
que a presença de Jean trouxera vida ao aspecto, naquele dia,<br />
combalido da filha. Venha você também, complementou. Já tenho<br />
conhecimento do seu interesse pela ciência e pelas artes em geral.<br />
Alguns poucos meses e vários encontros depois, a amizade<br />
entre o fidalgo <strong>Monlevade</strong> e o médico Colbert se consolidara.<br />
Reuniam-se frequentemente.<br />
Pois é, senhor fidalgo, antes de vir para Guéret, estive estudando<br />
propostas até mesmo para experimentar vida nova em outros<br />
continentes pouco conhecidos. Não fui por temor de causar<br />
prejuízos à saúde de minha filha: o senhor sabe que sou gato escaldado.<br />
O mais tentador foi o feito pelo embaixador de Portugal.<br />
Anda às turras com Napoleão, mas os lusitanos estão, por ideia do<br />
príncipe-regente, arregimentando pessoal para melhorar nível de<br />
vida em sua imensa colônia de ultramar, o Brésil. A cidade do Rio<br />
de Janeiro, segundo dizem, é de beleza estonteante, mas a saúde<br />
pública lá não é de se fazer fé. É por isso que o convite incluía<br />
pessoal médico. Os salários e vantagens eram astronômicos.<br />
Mesmo que Jean estivesse conversando com Angéline a poucos<br />
metros de onde se encontravam assentados o pai e o doutor<br />
95
96 Jairo Martins de Souza<br />
Colbert, não perdia palavra do que diziam. Estava habituado a<br />
fazer três ou quatro coisas ao mesmo tempo.<br />
Dizem, Tisserand divagou, que é como Bill Gates se comporta.<br />
Bem, desde então isso já era considerado uma das faculdades<br />
de pessoas superdotadas. Imediatamente desculpou-se pelo deslize<br />
e voltou ao diálogo do médico com o fidalgo.<br />
Esse é um dos motivos por que aceitei o seu convite para hoje<br />
estar aqui tomando esse vinho de boa qualidade, doutor Colbert.<br />
Tenho contatos influentes na corte de Paris, e que são simpáticos<br />
à melhoria de relações com o governo português. Essas pessoas<br />
receberam informação que o senhor estava aqui em Guéret e<br />
pediram-me para renovar-lhe chamada para passar período no<br />
estrangeiro. Ah, monsieur <strong>Monlevade</strong>, fosse na minha juventude<br />
diria sim sem pestanejar. Quando criança pensava até mesmo em<br />
tornar-me o que, no futuro, deverão chamar médico sem fronteiras.<br />
Com a graduação, o casamento com mademoiselle Mathieu,<br />
sua morte, e a vinda dos meus três rebentos, a saúde frágil de Angéline,<br />
não mais pensei sobre o assunto. O senhor já sabe que, de<br />
certa forma, recusei convite anterior e coloquei meu antigo desejo<br />
definitivamente de molho.<br />
É a razão pela qual, repito, procurei-o hoje, agora é o fidalgo<br />
quem diz. Lembro-me de tê-lo ouvido falar por mais de uma vez<br />
sobre este assunto. A necessidade deles não é imediata, Colbert.<br />
Pense bem. Não tens mais esposa, nem os dois filhos que lhe<br />
eram tão caros. A menina Angéline está muito bem e a administração<br />
de saúde em Paris pode dar-lhe tempo suficiente para<br />
encaminhar suas coisas aqui. Fechar seus assuntos. Depois você<br />
segue para o Brasil. A intenção inicial do imperador é mandálo<br />
para uma cidade chamada Vila Rica. É região de montanhas.<br />
Clima ameno. Se for do seu gosto, mando-lhe minuta de contrato<br />
que me enviaram os portugueses. Não há compromisso algum,<br />
leia os termos com cuidado, e depois conversamos.<br />
Postas as cartas na mesa do jeito que descrevi, Tisserand esclareceu,<br />
Colbert calou-se. Pôs-se a estudar mentalmente o assunto.<br />
O quadro que desenhava não era nada animador. Caso<br />
aceitasse a proposta dos portugueses, sua vida mudaria de maneira<br />
radical.<br />
Passaram-se alguns minutos. Ambos ainda permaneciam<br />
calados. Eventualmente tomavam pequenos goles das taças que
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
agora quase se esvaziavam e Colbert entendera, na prática, o porquê<br />
da verdade do aforismo que dizia ser a paz o principal fruto<br />
da árvore do silêncio. Não deixara de pensar nem mesmo um<br />
segundo no fidalgo <strong>Monlevade</strong>, e na proposta que lhe fizera em<br />
favor do imperador português. E finalmente vislumbrara por trás<br />
das nuvens que o fantasma da dúvida, o demônio de Descartes,<br />
não mais o incomodaria. Se tivesse que ir ao estrangeiro iria para<br />
o Brésil. Ele e a filha. Construiria patrimônio. Usaria recursos da<br />
medicina avançada de países do primeiro mundo, enfim, quebraria<br />
lanças e venceria batalhas contra doenças tropicais.<br />
É, Tisserand exclamou introspectivamente pensando sobre a<br />
cena que estava relatando: o médico perdera uma esposa, dois<br />
filhos, mas nunca fora um perdedor, um fracassado, um loser,<br />
como escrevem os roteiristas dos filmes de Hollywood. Mesmo<br />
na adversidade se pode ser feliz. Não temos, lá bem fundo dentro<br />
de nós, nossos jardins internos que, se bem regados e cuidados,<br />
podem nos trazer paz e tranquilidade?<br />
Voltemos ao dilema do médico, Tisserand verbalizou vagarosamente.<br />
Ele estava por decidir o desfecho da proposta recolocada<br />
na mesa pelo amigo fidalgo.<br />
Pois foi por isso que os escritos do vigário geral registraram<br />
que Colbert respirou fundo, e agradeceu polidamente ao fidalgo<br />
pela atenção do momento. E, sem perda de tempo, pediu licença<br />
e encaminhou-se para o banheiro. Por mais forte e dono de si<br />
que fosse, não escaparia a algumas copiosas lágrimas. Não fez<br />
vômito, como fazem os norte-americanos, simplesmente chorou<br />
lembrando-se dos filhos e da esposa que morrera faz tanto tempo.<br />
O choro faz parte da miséria humana. Água benta.<br />
Digo isso no sentido positivo, Tisserand argumentou, pois é<br />
gerada a partir dos nossos mais íntimos sofrimentos. Lava a alma<br />
de quem as verte. Lâminas puras de água que são os verdadeiros<br />
espelhos do amor. Não chorou, insisto, até mesmo Jesus?<br />
A tempestade durou alguns breves minutos. De imediato não<br />
faria sol claro, então Colbert partiria para a análise detalhada da<br />
situação, para o quotidiano. Se feita, a saída da França não precisaria<br />
ser imediata.<br />
97
98 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
XII<br />
Algo mais sobre política e a família do fidalgo<br />
A saúde da família de Felicité <strong>Monlevade</strong> era sustentada por pilares<br />
firmes de dieta baseada em leite de cabra, carne de aves,<br />
caças, animais domésticos, pescados do Creuse e frutas de estação.<br />
O resto ficava por conta do contato com a natureza, o ar<br />
puro, e a relativa tranquilidade das vizinhanças. A região em que<br />
moravam não era extremamente convulsiva. No entanto, a paz<br />
definitiva para a Europa se arrastaria por mais de dezena de anos:<br />
Waterloo não aconteceria de imediato. Dos habitantes de destaque<br />
que se mantinham ativos nos acontecimentos, Philippe de<br />
Bogenet, e alguns poucos companheiros, inclusive o fidalgo Jean-<br />
François de <strong>Monlevade</strong>, eram exceções bem localizadas. Deste último<br />
ressalte-se a heroica, e comentada, fuga pela janela quando<br />
da dissolvência da Convenção. O fato nunca fora esquecido pelos<br />
moradores de sua cidade.<br />
Jean tinha orgulho do pai. No entanto o grupo ligado a <strong>Monlevade</strong><br />
praticava sua rebeldia em focos bem centrados das questões<br />
polêmicas do país. Discutiam, sobretudo, a forma de governo<br />
e o Estado. O ponto chave, perguntavam-se, é se o Estado tinha<br />
valor igual ao resultado da soma obtida pelos valores isolados<br />
do cônsul, magistrados e políticos, etc. e que criam os impostos,<br />
enfim, fazem as leis e modelam os regulamentos. Fosse assim,<br />
estaríamos perdidos!<br />
Para avaliar. Somente para avaliar possível modificação de<br />
rumos, nos seus encontros feitos às escondidas, seguia-se sempre<br />
rápido plebiscito. A forma era colocação de votos em urna fechada.<br />
Um singelo sim ou não, para avaliar desempenho do cônsul<br />
Bonaparte. Com isso, tinha-se noção do grau de coesão dos fidalgos<br />
e convidados participantes. Em segundo lugar, a educação<br />
dos jovens que nasciam aos montes por todos os cantos da antiga<br />
99
100 Jairo Martins de Souza<br />
província. A despeito das inúmeras guerras, a população não parava<br />
de crescer. Pois antes de partir para os conflitos, ou em viagem<br />
de folga de volta à terra, os jovens maridos deixavam suas sementinhas<br />
plantadas no bucho das mulheres. Nove meses depois...<br />
Alguns exaltados vaticinavam que a chegada das máquinas<br />
a vapor destruiria fonte de trabalho das famílias que viviam de<br />
rendimentos da tecelagem e da tapeçaria. O desemprego cresce,<br />
comentavam, temos necessariamente que nos ajuntar às reformas<br />
de Napoleão.<br />
E não é que o grupo caminhasse sempre no mesmo sentido.<br />
Havia divergências que traziam consigo acaloradas discussões<br />
recheadas de tinturas ideológicas e fundo religioso. Aí segue<br />
um exemplo. Certa ocasião resolveu-se fechar questão quanto a<br />
alguns credos que deveriam professar. Algo como itens de uma<br />
cartilha. Um deles seria o de fazer como o apóstolo Paulo havia<br />
ensinado em sua carta aos Romanos: trate bem seu inimigo para,<br />
quem sabe, mais tarde, botar brasas em sua cabeça. Tal fato havia<br />
causado alguma insatisfação a dois ou três dissidentes ateus. Julgavam-no<br />
incompatível com a ideologia professada pelo grupo.<br />
Tudo ficou resolvido com inclusão de uma frase de Montaigne na<br />
mesma ata de reunião. Foi mais ou menos redigido como segue.<br />
Parte do grupo que se reúne nessa oportunidade reconhece que,<br />
para alguns de nós, cristãos, o encontro de algo materialmente<br />
inconcebível é uma excelente oportunidade para acreditar!<br />
Tais questões às vezes eram colocadas na mesa simplesmente<br />
para gerar discussões. O grupo apreciava assuntos controversos.<br />
Todos gostavam de discutir! O caso em pauta fora equacionado<br />
da forma que todos apreciavam: democraticamente. A democracia<br />
era o alvo que todos ambicionavam para o país. Aí que está<br />
o ponto. Jean, quando permitido, participava dos encontros timidamente<br />
situado, mas assentado em local de onde poderia ouvir<br />
claramente os pontos de vista dos participantes. Alguns tinham<br />
bastante leitura e o rapaz escutava-os atentamente, tentando<br />
extrair, de cada palavra, alimento para sua formação moral. Às<br />
vezes se excedia na avidez pela busca de conhecimento e pedia<br />
explicações.<br />
Tal como fazia constantemente nas classes de Duchamps,<br />
levantava as mãos e perguntava o porquê disso ou daquilo. É<br />
bem verdade que, por acanhamento, tivera algumas dificuldades
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
iniciais de quem sai do seio familiar e entra na sociedade dos homens.<br />
A começar pela escola, pois, certa ocasião, confundira-se<br />
ao tentar chamar a atenção do professor, e chamara Duchamps<br />
de pai. Os colegas, durante alguns dias, fizeram chacota com seu<br />
deslize. Jean silenciou por curto período. Depois voltou à carga.<br />
O mesmo ocorrera em uma das tais reuniões dos insatisfeitos com<br />
o regime. Levantara o braço para perguntar sobre um dos últimos<br />
regulamentos estabelecidos por Napoleão e, ao se dirigir para um<br />
dos mais exaltados, o homem chamava-se Delaittre, incorrrera na<br />
mesma falha inconsciente que cometera em diversas ocasiões na<br />
escola. Dissera, novamente, a palavra pai.<br />
Daí pode-se retirar com sabedoria a importância que a imagem<br />
paterna teria na infância e na vida futura do rapaz. Mais uma<br />
vez aí se confirma a força de espelho. A poderosa influência que<br />
o filho usualmente encontra na figura do pai. Não. Não é que a<br />
da mãe possa ser considerada como secundária. Não no caso.<br />
Felicité, privilegiadamente cônscia das habilidades excepcionais<br />
de Jean, participara também da alfabetização do filho: passou-lhe<br />
tudo que sabia.<br />
A partir dos 5 anos o menino Jean estava pronto para ler,<br />
contar e fazer problemas aritméticos. Tudo ensinado em casa. Antes<br />
de ir para a escola de Duchamps, aos 8, já dominava tais operações<br />
com facilidade superior a qualquer outro das redondezas.<br />
Na única vitrine envidraçada da cidade, entendia as palavras escritas<br />
do lado contrário ao que estava com facilidade fora do comum.<br />
E já ajudava os pais na contabilidade da produção agrícola<br />
das áreas férteis do castelo. A partir de determinado momento,<br />
tornou-se indispensável para cálculo da quantidade de novelos<br />
de lã que a mãe necessitaria para confeccionar esse ou aquele<br />
agasalho, essa ou aquela tapeçaria.<br />
Mas, Deus que nos livre, ela jamais sobrecarregaria o filho. O<br />
menino absorvia com naturalidade aquelas incumbências. Inclusive<br />
as de caráter rotineiro. Aliás, mesmo sendo filhos de fidalgo,<br />
todos os seus filhos eram acostumados a cumprir com presteza<br />
algumas obrigações caseiras. Limpe pelo menos o que você sujar,<br />
era bordão que impunha a todos. Antes de entrar nos ambientes<br />
internos do castelo, os filhos automaticamente raspavam cuidadosamente<br />
os sapatos de barro, ou poeira, ou restos de esterco, ou<br />
seja lá que sujeira fosse.<br />
101
102 Jairo Martins de Souza<br />
Felicité ouvira de Jean – que por sua vez ouvira do viajado<br />
monsieur Platini – que, na distante Cingapura, entrava-se em<br />
casa somente com pés descalços.<br />
Achara isso um exagero. Não obstante, sentia-se feliz e convencida<br />
de que os filhos estavam passando aparentemente incólumes<br />
por uma trovoada de anos problemáticos.<br />
Agradecia constantemente a Deus por tão grandiosa bênção!
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
XIII<br />
O nascimento de Léopold, o vigário geral<br />
Tisserand disse que uma semana após completar 14 anos Jean<br />
acompanhou a mãe para visitar parentes no castelo de Bogenet.<br />
A data era a de 21 de Abril de 1805 e, como de costume, o enorme<br />
fogão a lenha do castelo <strong>Monlevade</strong> fora reaquecido ainda<br />
pela madrugada. Naquele ano o inverno europeu havia se esticado<br />
e o senhor, mon ami, pode imaginar o frio que fazia à hora em<br />
que Felicité havia se levantado. A névoa era intensa, o sol fraco<br />
demoraria ainda algumas horas para nascer, e todos estavam preparados<br />
para sair após rápido desjejum de pão, queijo de cabra e<br />
leite quente adocicado com açúcar de beterraba. Além de Jean,<br />
também foram com a mãe François e Maria Vitória.<br />
A ocasião era festiva! No cair da noite anterior a notícia havia<br />
chegado a <strong>Monlevade</strong>: a nora do fidalgo Philippe de Bogenet<br />
havia dado à luz a um robusto garoto. Era quem viria a ser, mais<br />
tarde, o próprio vigário geral!<br />
Portanto Léopold Dissandes de Bogenet nasceu no ano da<br />
luxuosa coroação de Bonaparte como rei da Itália. A partir daí, e<br />
após vitória sobre os franceses em Trafalgar, os ingleses iniciaram<br />
cem anos de domínio naval no mundo. Ainda que, naquela ocasião,<br />
o corpo do seu vitorioso comandante Nelson tenha retornado<br />
à Inglaterra dentro de tonel de cachaça de vinho. O almirante<br />
foi um dos 1500 ingleses que pagaram o triunfo com a morte.<br />
O senhor deve estar lembrado, Tisserand explicou, que em<br />
diversos momentos bati na tecla que quase tudo que lhe digo é<br />
a partir das notas do recém-nascido Léopold. Insisto neste ponto!<br />
Com isso procuro eximir-me de culpa quanto à ordem em que<br />
são apresentadas.<br />
Daí não ser verdadeiro dizer que Jean jamais tivesse voltado<br />
a ver Angéline desde a primeira vez em que sentiu ficar corado na<br />
103
104 Jairo Martins de Souza<br />
farmácia de monsieur Paracelsus. Lembram-se? Ele contava apenas<br />
cerca de 10 anos! Nessa fase da vida muitas coisas passam<br />
tão rapidamente quanto chegam. Por exemplo, mal se lembrava<br />
de que dois anos antes de conhecê-la, aos 8, havia contemplado<br />
a maior exibição de fogos de artifício que veria em toda a sua<br />
vida. Foi grandiosa a celebração do 18 de Brumário, protagonizada<br />
em Paris pelo cônsul Napoleão. Na velhice passaria a se lembrar<br />
desses eventos com grande clareza de imagens. Mais ainda de sua<br />
querida Angéline. Amou-a, por toda a adolescência, desde o primeiro<br />
momento em que a viu receber a medicação dada pelo pai.<br />
E prosseguiu amando-a silenciosamente durante a juventude.<br />
Isso quebrara algumas de suas convicções, por exemplo, a<br />
de que não amaria outra mulher com o mesmo carinho que dedicava<br />
à mãe e à irmã. No entanto, as ocasiões para vê-la não<br />
eram frequentes ao longo da semana. Por isso não perdia em<br />
aproveitar as raríssimas visitas que o fidalgo fazia ao médico Colbert.<br />
Não perdia uma quermesse em que a moça tivesse a mínima<br />
possibilidade de comparecer. Não perdia uma missa aos domingos.<br />
Ele, ao lado da família, a mãe, o fidalgo e os irmãos. Ela,<br />
de braços dados com o pai. Apreciava vê-la no confessionário, e<br />
cometia frequentemente o grave pecado de ambicionar momentaneamente<br />
tomar, como seus, os ouvidos do sacerdote.<br />
Observava-a de longe. Devaneava acreditando piamente ser<br />
correspondido. Implorava a Maria Vitória para que procurasse<br />
sempre citar o seu nome a ela quando estivessem juntas. A irmã<br />
devia-lhe muito em termos de carinho e afeto (eram tempos em<br />
que os rapazes mantinham zelo especial pelas irmãs). Ela gostava<br />
da companhia de Angéline. Então respondia sim ao irmão, mas<br />
sempre alegava não saber exatamente como!<br />
Angéline! Angéline crescia a olhos vistos. A cidade comentava<br />
que não demora estaria se transformando em belíssima mulher:<br />
do tipo que jamais careceria do uso de espartilhos. O pai era<br />
orgulhoso de seu produto e, enquanto observava-a crescer, zelava<br />
criteriosamente por sua preparação. Bancava três vezes por<br />
semana a vinda de mademoiselle Beauvoir para ministrar aulas<br />
caseiras para sua criança. O preço cobrado por aquela senhora<br />
era muito alto para os ganhos do médico. Colbert era homem caridoso.<br />
Atendia gratuitamente a muitos dos que o procuravam, e<br />
levava ao pé da letra o juramento que fizera solenemente; enfim,
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
repetia, na prática, as palavras copiadas de Hipócrates há gerações<br />
e gerações.<br />
Com tudo isso a divina providência nada mais poderia fazer<br />
do que premiá-lo com generosa contrapartida. A iniciativa que<br />
tivera, como pai, era-lhe devolvida de forma dobrada. Logo após<br />
primeiros contatos com a futura tutora de Angéline percebera que<br />
ela era de conhecimento e eficiência muito acima dos professores<br />
particulares que conhecera em Paris. A mulher tinha bagagem<br />
suficiente até mesmo para trabalhar com pequenos príncipes e<br />
infantas. Mal sabia que fora por força do seu caráter que Beauvoir<br />
deixara anos atrás de trabalhar com a nobreza de Versailles.<br />
Estava encantada com sua nova pupila!<br />
Tinha razões de sobra. Angéline era aplicada e aprendia com<br />
facilidade tudo que lhe era ensinado. Literatura, música e línguas<br />
estrangeiras eram as suas principais predileções. Tais talentos faziam<br />
com que seu aprendizado fosse muitos graus acima do que<br />
dela pretendia o pai. Ele que, por sua vez, tinha plano simples<br />
para o futuro da filha: o de prepará-la para casar, assumir um<br />
castelo (por mais simples que fosse), e constituir família da forma<br />
mais breve possível. Nesse fulcro é que fundamentalmente apoiara<br />
seu castelo de sonhos.<br />
Foi o que expressara confidencialmente ao fidalgo <strong>Monlevade</strong><br />
em reunião acompanhada por fumaças aneladas de cachimbos<br />
que ambos pitavam ocasionalmente. Ao lado do pai, Jean ouvira<br />
tais palavras do médico como decretação de sua sentença de<br />
morte. Viu-se como doente terminal. Foram palavras duras, mas<br />
instrutivas o suficiente para que ele percebesse e tomasse posição.<br />
Não fosse assim, seu sonho poderia se dissolver sem possibilidade<br />
de voltar atrás. Tinha que entrar em ação!<br />
E a chance de dar início oficial ao seu namoro com Angéline<br />
poderia acontecer na visita de parentes que estava por acontecer.<br />
O jovem <strong>Monlevade</strong> havia suspeitado que o doutor Colbert e a<br />
filha lá se encontravam quando Felicité, radiante, anunciou à Maria<br />
Vitória que estavam chegando ao destino. A pista que induzira<br />
Jean àquela suposição fora significativa, e dentro de minutos, teria<br />
confirmado o acerto de sua previsão.<br />
A principal edificação da propriedade Bogenet fora feita há<br />
cerca de duzentos a duzentos e vinte anos. Crescera ao longo<br />
desse tempo. Novos anexos foram-lhe acrescentados, tal como a<br />
105
106 Jairo Martins de Souza<br />
sua torre de proteção que, mesmo à distância, projetava-se para<br />
o alto e emergia majestosamente das entranhas de suas dependências.<br />
As pedras escurecidas pelo tempo tornavam-no vista um<br />
tanto macabra se olhado de relance, mas dentro dele a vida dos<br />
moradores corria livre e espontânea. Nada de almas penadas e<br />
assombrações!<br />
Felicité Sallé du Sioudray <strong>Monlevade</strong> estava excitadíssima<br />
com a chegada do novo sobrinho. Por falta de tempo, acumulada<br />
que estava com afazeres domésticos, andara se comunicando<br />
com a amiga (consideravam-se verdadeiras irmãs) somente por<br />
cartas trocadas ao longo dos últimos dias. O cavalo que atendia<br />
ao criado que fazia o percurso sabia o caminho praticamente de<br />
cor. Bastava que alguém com bolsa de couro cruzada nas costas<br />
subisse no seu lombo para que o animal tomasse rumo certo.<br />
Faziam planos escritos para o futuro da criança. O que gostaria,<br />
ou que os pais gostariam que fosse, quando crescesse? Um<br />
diplomata, um oficial do exército... Não! Ele seria um padre!<br />
Sim, um padre. E para tanto deveria nascer um menino. A<br />
mãe contava com a ajuda de Deus e a experiência que Felicité<br />
acumulara no assunto. A cunhada era confiável bola de cristal!<br />
As técnicas de ultrassom demorariam quase duzentos anos para<br />
adiantar sexo das crianças para as mães, mas como sabemos, a<br />
esposa do fidalgo tinha olhos privilegiados para certificar-se do<br />
que reservava a cor de urina de mulheres recolhida em recipiente<br />
de vidro. Verificara a da cunhada. Sim, querida, estás grávida, e<br />
digo-lhe, com segurança, que é homem!<br />
Então, sob o olhar benigno e a proteção da heroína Jeanne<br />
d’Arc, a futura padroeira da França, o menino nasceria com saúde<br />
e poderia vir a ser um servo totalmente a serviço do senhor nessa<br />
terra tão carente de fé. Rogavam também à virgem Maria por esse<br />
milagre, que, como sabemos, foram totalmente atendidas.<br />
Horas antes da chegada de Felicité a Bogenet, o vigário geral<br />
já havia completado com sucesso um primeiro movimento naquele<br />
sentido. Estava acabando de nascer. Ao lado da cama da<br />
mãe, que suava em bicas e dava praticamente por encerrado o<br />
ciclo de dores do parto, uma de suas domésticas rezava em voz<br />
baixa. Parecia cansada, via-se claramente que estava quase por<br />
completar o terço do seu rosário: suas ave-marias e seus padresnossos.<br />
Ouçâmo-la por breves instantes. Je vous salue Marie, plei-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
ne de grâces, le Seigneur est avec vous.... Saint Marie, Mère de<br />
Dieu.... Priez pour nous.... Maintenant et à l`heure de nôtre mort,<br />
Ainsi soit-il.... Amem!<br />
Foi somente após recitar completamente a homilia dita pela<br />
piedosa criada que Tisserand deu a entender que passava da hora<br />
de retornarmos aos <strong>Monlevade</strong>. Estavam por chegar horas mais<br />
tarde a Bogenet. Já estavam chegando!<br />
Mas um pouco antes disso, foi observando a satisfação exposta<br />
nos olhos da mãe que Jean de longe pensou ter notado, com<br />
o canto dos olhos, que um dos criados do castelo dos seus tios<br />
conduzia carroça onde julgou ver escrita a letra M, de Médecin.<br />
Segundos depois tinha certeza que o transporte oficial do médico<br />
da cidade acabara de desaparecer escondido pela fachada lateral<br />
da edificação principal. O pai não andaria desacompanhado pela<br />
filha em ocasiões de nascimentos. O coração quase saiu-lhe pela<br />
garganta, tamanha foi sua excitação. Olhou para Maria Vitória,<br />
necessitaria novamente de sua colaboração. A dileta amiga de<br />
Angéline aparentemente dormia em um dos bancos apoiada nos<br />
ombros dos dois irmãos. Nas curvas, seu corpo ora se aproximava,<br />
ora se distanciava dos mesmos, dependia do lado para o qual o<br />
cocheiro desviava o rumo dos cavalos. Alguém que os observasse<br />
do lado de fora da carruagem diria que desde sempre a fraternidade<br />
e as brincadeiras de família e, especialmente entre irmãos,<br />
deveriam permanecer constantes e imutáveis. Não era o caso!<br />
Pois após rápidos testes, ao constatar que Maria Vitória realmente<br />
dormia e não estava forçando tal movimento para fazer<br />
chacota com os irmãos, Jean lembrou-se dos efeitos da força<br />
centrífuga da qual o professor Duchamps lhe falara recentemente.<br />
Estava realmente caído por Angéline, mas era, sobretudo, prático.<br />
Esquecera-se momentaneamente de plano de conquista amorosa a<br />
ser posto em ação. Voltou a olhar para a irmã. O seu interesse manteve-se<br />
alterado em direção à ciência conforme pensamento anterior.<br />
Do amor para os estudos. Continuou a mirá-la com os olhos<br />
agudos de quem faz experiência em aula de ciências: a matéria havia<br />
sido recentemente incluída no currículo das escolas francesas.<br />
A recomendação de Duchamps é a de que não se pode deixar<br />
que o ambiente venha a trair-nos quando de nossas deduções.<br />
No caso, a das forças que aparecem na feitura de curvas.<br />
A da sensação que qualquer coisa indefinida nos empurra, e não<br />
107
108 Jairo Martins de Souza<br />
vemos. Um soldado de artilharia que se recuperava de ferimento,<br />
em Guéret, havia lhe dito que algo similar parece acontecer com<br />
balas de canhão disparadas a distâncias longas.<br />
Forças fictícias. Fantasmas! O moço sorriu feliz, entendera-as<br />
bem. Com a conclusão da curva, a estrada novamente se tornara<br />
reta e a irmã voltara a dormir sem empurrão que a incomodasse.<br />
Os que não se acabavam eram os eventuais solavancos que sofria<br />
quando as rodas da carroça passavam pelos buracos do caminho.<br />
Newton. Ação e reação. A aproximação do castelo fez voltar pensamentos<br />
para a filha de Colbert.<br />
O mirante da curva lentamente percorrida pelo coche abria<br />
próxima a visão de Bogenet. A manhã que agora já nascia estava<br />
deslumbrante e o sol, ainda que parcialmente escondido, não<br />
ofuscava o brilho que a natureza impunha a mais esse dia de<br />
visitas e recreação. Foi festa de família!<br />
Mas que não deixou de ser oportunidade para celebração<br />
de acordos. Na ocasião, Guy de La Vilatte, um tio relativamente<br />
distante, e a esposa Sophie, que também se encontravam presentes<br />
em Bogenet, encantaram-se com a educação e a vivacidade<br />
de François, o filho mais velho do fidalgo. Conversaram muito<br />
e ficou combinado que, antes de voltarem para Paris, tentariam<br />
acertar detalhes de possível transferência com o fidalgo. Não é<br />
que estivessem tão velhos assim, mas fora também a eventual<br />
cooperação do jovem nos seus negócios, isso a discutir, como<br />
também que ele lhes fizesse companhia arejando o ambiente<br />
sombrio da casa de estilo melancólico em que moravam. Felicité<br />
tinha sentimentos ambíguos a respeito. Sim, ficaria feliz pelo filho<br />
mais velho, mas sentiria sua ausência. Não. Não colocaria obstáculos<br />
à situação, era o futuro do primogênito que estava em jogo,<br />
e a questão de estudar fora era pura questão de tempo. O jovem<br />
poderia, nas horas vagas, aprender a lidar com o ramo de importação<br />
e exportação que era o interesse comercial do tio. Uns dias<br />
mais e tudo estaria ajustado.<br />
Jean, ao ouvir parte da conversa, pressentiu que sua sorte<br />
também poderia estar ali presente: em carne e osso.<br />
E foi apenas após se encantar com o pequeno futuro vigário<br />
geral, que passou a circular pelos jardins aguardando que a irmã<br />
trouxesse consigo, a tiracolo, a encantadora Angéline.<br />
A chegada dos familiares do ramo <strong>Monlevade</strong> foi muito fes-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
tejada pelos moradores de Bogenet. A mãe já demonstrava sinais<br />
físicos de excelente recuperação dos esforços feitos durante o nascimento.<br />
É uma das muitas vantagens do atualmente pouco usado<br />
parto natural. Tanto foi assim que pôde receber Felicité fora do<br />
recinto onde o bebê repousava tranquilo após primeiras sessões<br />
de amamentação. O corte do cordão fora perfeito: o umbigo tinha<br />
ficado com aspecto animador, e mãe tinha a pele lisa e aparentava<br />
estar verdadeiramente descansada. No extremo direito da parte<br />
alta de sua cama, deixara suspenso pequeno cordão com bonita<br />
medalha da Virgem Maria trabalhada em prata de qualidade.<br />
O fidalgo <strong>Monlevade</strong> aparecera cerca de três horas da tarde,<br />
após resolver alguns assuntos de urgência. Ficaria para o jantar,<br />
juntamente com todos os demais visitantes. Durante a espera, o<br />
assunto não fora o que dizia respeito à condição do país, tema<br />
recorrente em qualquer situação em que estivessem envolvidos<br />
mais de dois franceses. Filhos. Conversou-se sobre filhos.<br />
François <strong>Monlevade</strong>, Tisserand confirmou, neste mesmo dia,<br />
seria convidado por Guy de La Vilatte para residir na capital, Paris.<br />
E em dado momento chegou a vez de Jean que, nessa altura,<br />
sabemos estar no jardim. O pai falou de sua inteligência; a mãe<br />
disse do seu amor pela família e o carinho que dedicava aos irmãos.<br />
Não exagerara. O médico Colbert ouvira atentamente. Há<br />
tempos viera observando olhares aparentemente dispersos que o<br />
jovem lançava para os lados da filha. É claro, sabia de seus dotes<br />
privilegiados, isso não era nenhuma novidade para os moradores<br />
das redondezas de Guéret. Mas ouvir da própria boca dos pais<br />
sobre o comportamento dentro do seu lar era de grande valia, e<br />
fato a ser levado fortemente em consideração. O médico sorriu. O<br />
rapaz era filho de fidalgo: nunca se sabe...<br />
Nascer, crescer e morrer dentro de pequenas comunidades<br />
tem lá suas compensações, Colbert comentou, aparentemente<br />
atravessando a conversação anterior que prosseguia, e dirigindose<br />
especialmente ao fidalgo. Não nasci, mas vivo em uma delas.<br />
Quanto à morte...<br />
Referia-se a toque de sinos da igreja da cidade que, ao longo<br />
da semana, anunciara a morte de antigo cidadão de Guéret.<br />
O falecido não pertencia à família de Léopold, o vigário geral,<br />
e nem mesmo foi pessoa que pesasse, em especial, nos rumos<br />
da vida particular da família do fidalgo <strong>Monlevade</strong>.<br />
109
110 Jairo Martins de Souza<br />
Mas foi desejo claramente expresso por Léopold que o resumo<br />
da vida do morto constasse generosamente em sua história,<br />
como exemplo de final de existência de quem sai do nada, cria<br />
família com sucesso, e projeta-se na vida social.<br />
Bem, Tisserand acrescentou, além deste pedido especial, não<br />
vou negar que há outro motivo para que aquele cidadão seja<br />
citado aqui. E o senhor mesmo, mon ami, verá que na realidade<br />
três ou quatro linhas seriam mais que suficientes para expô-lo. O<br />
excesso pode ser creditado à minha prolixidade.<br />
Pois, na ocasião do seu passamento, era homem de vasta família,<br />
mesmo não os tendo por perto. Os filhos, de um modo geral,<br />
bem sucedidos, encontravam-se, o que não era de se espantar,<br />
espalhados pelo país e pelo mundo afora. Durante os anos de<br />
casamento, tentara várias vezes que a mulher lhe desse à luz uma<br />
filha, mas somente lhes apareciam varões que, mal passados dos<br />
quinze, como se dizia, botavam pé na estrada. Família de ciganos!<br />
Ele próprio fora ressalva incomum ao longo de sua geração.<br />
Apaixonara-se e havia se casado com moça de sentimentos arraigados<br />
à terra. Esse era o motivo principal de sua permanência<br />
em Guéret. A mulher sempre se recusara em acompanhá-lo, caso<br />
tomasse outros destinos. Mas abandonou-o por razão especial, já<br />
que os sinos da mesma igreja haviam dobrado para ela há meses.<br />
O casal tinha muitos amigos e o caixão ficara exposto por horas<br />
em sua casa. Por final, foi enterrada com reverências especiais<br />
pela comunidade. O marido sentira intensamente a sua falta, e<br />
a de seus bolinhos de trigo. Os filhos e netos, assim como outros<br />
parentes dispersos pelo mundo, cumpriram por ela longo e respeitoso<br />
período luto de corpo e de alma. Em especial, ele, o mais<br />
próximo do coração da falecida, decidiu optar pelo estilo totalmente<br />
fechado que lhe exigia, inclusive, uso de roupas de baixo<br />
totalmente negras.<br />
Foi homem que sofreu muito quando do passamento da mulher.<br />
E que, quando do seu próprio, teve testemunhado seu papel<br />
de realce na sociedade de Guéret. A crônica local destacou que<br />
foi cidadão muito considerado pelos seus conterrâneos. Era marceneiro<br />
de grande habilidade: um verdadeiro escultor. Um artista.<br />
Com poucos anos de exercício da profissão, chegara a ganhar<br />
muito dinheiro e sua prosperidade aumentava a olhos vistos. Aí<br />
ficou mais uma vez provado que a miséria é a única condição que
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
fica a salvo da inveja: ele não ficara imune a alguns comentários<br />
maliciosos. Dizia-se que pagava propinas a funcionários para facilitar<br />
caras e volumosas encomendas governamentais, os sinais de<br />
riqueza tornaram-se dia após dia mais facilmente detectáveis. A<br />
começar pelo belo casarão em que passara a morar, e que ficava<br />
próximo à praça da cidade. Foi lá que morrera pouco após avisar<br />
a um dos criados que chamasse Colbert, pois sentia fortes dores<br />
no peito.<br />
Por via de dúvidas, chamem também o abade, foi o que solicitou<br />
ao mensageiro antes que saísse, e com voz já muito fraca.<br />
Um apressado Ribérry chegou a tempo de apanhar sua última<br />
confissão. A alma foi resgatada a tempo certo! O corpo, não. O<br />
médico viera também rapidamente, mas ao chegar encontrou-o<br />
morto. Colbert gastara somente minutos bastantes para selar o<br />
cavalo e alcançar as poucas quadras que separavam suas residências.<br />
Foi como se tivesse tomado um tiro no peito à curta distância,<br />
comentou algumas horas mais tarde com monsieur Gris. Gris<br />
era o dono da funerária que se encarregaria de todas as providências<br />
para as exéquias.<br />
O velho marceneiro prestara vários serviços à família <strong>Monlevade</strong>.<br />
Trabalhava com precisão, pontualidade e arte e nunca deixava<br />
de atender ao cliente nas ações de pós-venda e manutenção<br />
dos seus produtos. Utilizava somente madeiras de qualidade e o<br />
fidalgo pagava-lhe em dia e, às vezes, encantado com a excelência<br />
dos produtos, premiava-o com pagamento a mais.<br />
A relação, a princípio puramente comercial, com o passar do<br />
tempo havia se transformado em sincera amizade. O especialista<br />
no trato com madeiras era bem mais velho que o fidalgo, e é por<br />
isso que lhe pedira, quando do seu passamento, cuidar da convocação<br />
dos filhos. Pela ordem natural das coisas, devo morrer<br />
antes de você, dissera-lhe. Não chegaram a fazer pacto de sangue,<br />
mas deixara escrito que o amigo deveria zelar pelo cumprimento<br />
dos seus desejos, e aplicação dos haveres em dinheiro que<br />
guardava em sacos escondidos em fundo falso de armário que<br />
ele mesmo fabricara para o objetivo. O grande volume de capital<br />
que acumulara nos últimos anos era mais ainda justificado pelos<br />
muitos trabalhos que fizera para decoração e para as festas da<br />
diocese. Esculpira várias imagens de Cristo, de santos da Igreja<br />
e, em especial, da virgem Maria. Da mesma forma muitas portas<br />
111
112 Jairo Martins de Souza<br />
das igrejas da região levavam a sua assinatura. Faziam-lhe muitas<br />
encomendas. Inclusive contratos de fornecimento de estruturas de<br />
várias toneladas de peso que sustentavam pesadas estátuas de padroeiras<br />
conduzidas por centenas de fiéis em procissões festivas.<br />
Fora por essas e outras razões que destinava largas dotações<br />
para a escola de Duchamps, e para a instituição dirigida por Ribérry.<br />
Pensara nos filhos, mas não se esquecera de alguns desafortunados<br />
que chegavam aos montes.<br />
Um exemplo de sucesso que seguia, e que todos da comunidade<br />
citavam, era o caso do menino Martinho apoiado pelo<br />
amigo <strong>Monlevade</strong>.<br />
Era com tais atitudes que pensava retribuir à comunidade<br />
que lhe proporcionou parte do sucesso que havia obtido em vida.<br />
Deus te dê em dobro tudo que me desejares. Ademais não queria<br />
que nada dos seus esforços fosse disperso em vão. Não é a caridade<br />
o único tesouro que cresce ao ser dividido? Tinha muitas<br />
posses que, como explicado, ficaram sob responsabilidade momentânea<br />
do fidalgo.<br />
Foi o que tinha ocasionado o atraso de sua chegada à casa<br />
dos pais do sobrinho, quando do nascimento do futuro vigário<br />
geral. Em cidades do interior, as horas passam mais devagar.<br />
Tudo isso, Tisserand prosseguiu, fez parte daquela conversa<br />
de visita familiar ao recém-nascido vigário geral. E, indiretamente,<br />
pode ser aproveitado para dar-nos exata figura dos sentimentos<br />
de Felicité quanto ao envio dos filhos a Paris para aprendizado e<br />
estudos. Ela tinha medo intenso da solidão.<br />
Os meninos devem ir em busca do conhecimento e felicidade.<br />
Parece-me certo. Mas... e se minha filha se casa e segue com<br />
o marido para algum país longínquo da América do Sul?<br />
Era, como sempre foi, o lado feminino da questão. Já o fidalgo,<br />
desconsiderando-se suas próprias ideias a respeito, fora constantemente<br />
aconselhado pelo falecido marceneiro a que, como<br />
ele, incentivasse os filhos a buscar a vida pelo mundo. O homem<br />
que não viaja, caro <strong>Monlevade</strong>, é homem de um só livro. De uma<br />
só vida. De um só lugar. Perde a visão geral da criação. É fato conhecido<br />
que não pode sonhar por meio de imagens contadas por<br />
terceiros. O viajante verifica por si mesmo com olhos de ver, in<br />
loco! Se particularmente não procedi dessa forma é porque fiz opção<br />
de vida pelo amor da minha querida mulher. Ganhei a vida
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
com dignidade, mas tornei-me limitado. Se não pude, meus filhos<br />
o fizeram. Temos que criá-los para o mundo! O fidalgo concordara.<br />
Ele próprio, é bem verdade que por pouco tempo, estivera<br />
por outro continente e sabia da importância de conhecer outras<br />
terras e pessoas.<br />
Ouvira dizer que no Brésil... Bem, a sorte dos filhos homens<br />
estava decretada. E Maria Vitória? A menina é muito jovem ainda.<br />
Vamos ver. Vamos ver!<br />
Enquanto isso, entenda-se, enquanto o pai e o doutor Colbert<br />
conversavam, Jean ansiosamente circulava pelas laterais, pelas<br />
imediações e pelo jardim de Bogenet. Tinha ido até antiga ponte<br />
de pedras que passava sobre riacho próximo. Voltara acelerando<br />
o passo, temeroso de perder a chegada da moça. Ia e voltava.<br />
Verificara se havia marcas de sapatos no ponto de encontro. Pés<br />
de gazela. Nada. Não havia nada. Respirou com sentimento antagônico<br />
de alegria e tristeza. A partir daí resolveu não sair do local<br />
e aguardar pacientemente: fosse o tempo que fosse. No entanto,<br />
de cinco em cinco minutos consultava o relógio de bolso que pedira<br />
emprestado ao pai. Para matar o tempo, dias passados, havia<br />
desmontado parcialmente a engenhosa máquina do tempo para<br />
ver como trabalhava o seu mecanismo. Pensou sobre o assunto.<br />
Nada nele identificava as mãos hábeis do mago John Harrison,<br />
o relojoeiro da longitude, mas funciona perfeitamente, constatou<br />
satisfeito.<br />
E com isso o tempo passava. Passava. Ele consultava novamente<br />
o instrumento, mas Angéline não aparecia, conforme havia<br />
combinado com a irmã, Maria Vitória. Maria Vitória era bastante<br />
espirituosa e informara-lhe há pouco, buscando reduzir a ansiedade<br />
do irmão, que Deus tinha feito a mulher a partir das costelas<br />
de Adão... mas quem prepara verdadeiramente as meninas para<br />
a vida é o móvel chamado toucador.<br />
Jean sorriu contrafeito, não lhe agradava ver a irmã usar o<br />
nome de Deus em vão. Mas retrucou a brincadeira dizendo que<br />
não era bem assim. Na verdade, disse-lhe, o homem é que fora<br />
feito de partes da mulher. Não sabes, Vitorinha, que a primeira<br />
mulher tinha três seios e que deste terceiro é que o homem veio<br />
a ter origem?<br />
Gostava de ensinar à irmã, e pensou tomar proveito da oportunidade<br />
para lembrá-la que, bem antes de Cristo, Aristóteles ju-<br />
113
114 Jairo Martins de Souza<br />
rava ser deus o motor imóvel do universo. Mas decidiu falar sobre<br />
o assunto em outro momento mais adequado. Estou muito agitado,<br />
atropelaria as palavras.<br />
A moça não surgia. Imaginou ficar na frente de Colbert e de<br />
joelhos pedir a mão da filha em casamento. Isso seria um desatino,<br />
mas consolou-se imediatamente lembrando-se que São Jerônimo<br />
dissera que o amor não conhece regras, amor ordinem nescit.<br />
Maria Vitória sabia da importância do encontro que engendrara<br />
com Angéline. Ouvira certa ocasião o pai comentar com<br />
Felicité que amor e negócios nunca devem ser misturados. Escutara<br />
a maior parte da conversa entre o pai e os tios Lavillate. Ficou<br />
constrangida, julgou que estivessem falando sobre os irmãos<br />
como se fossem algo frio, imaterial: um negócio a ser encaminhado<br />
com sucesso. Fora rigorosa! No entanto não é esse juízo<br />
especialmente próprio dos jovens?<br />
Jean também mal poderia imaginar que Angéline principalmente<br />
se atrasava por estar ouvindo conversa de adultos em que<br />
fora discutida inicialmente a sorte de François. E que a sua própria<br />
estava em pleno andamento, e prestes a ser concluída!<br />
Finalmente ouviu passos suaves sobre as folhas secas que,<br />
de certa forma, lembravam tapete de cor amarelo-verde que enfeitava<br />
naturalmente o caminho. Era outono. Os olhos azuis de<br />
Angéline iluminaram a face do rapaz que a saudou, desajeitadamente,<br />
com um singelo olá. Olá, Angéline! A moça sorriu. O que<br />
ouvira sobre os rumos futuros do rapaz, fez que viessem à tona<br />
sentimentos que sinceramente gostaria de expressar.<br />
Pensava gostar dele, tê-lo sempre por perto, e subitamente<br />
vira clara a possibilidade de isso não acontecer. Por outro lado...<br />
Bem, de Jean, já tomamos ciência de suas inquietações. Foi por<br />
isso tudo que, após alguns minutos de suave encantamento, começaram<br />
a conversar animadamente. Parecia que há anos se<br />
comportavam daquela forma.<br />
No alto da torre de Bogenet, o médico Colbert coçava vagarosamente<br />
os pelos do seu cavanhaque. Observava-os. Reflexivamente...
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
XIV<br />
1806. Martinho faz planos<br />
Não é que fosse novidade para os franceses, mon ami! Desde<br />
1789, cada ano que chegava apresentava-se recheado de surpresas<br />
sujas de sangue. O de 1806 não foi exceção! A começar pela<br />
invasão de Nápoles, a conquista de Varsóvia e a decretação do<br />
faladíssimo Bloqueio Continental para os países europeus e que,<br />
para os Brésiliens, desculpe, brasileiros, teve como consequência<br />
derradeira... o senhor sabe ter sido o motivo para que o príncipe<br />
João transferisse a capital do decadente reinado dos portugueses<br />
para o Brésil.<br />
Mas aquele ano, em particular, teve alguns belos atenuantes...<br />
Até meados do mês de maio fazia dois anos que Napoleão tivera<br />
seu código civil aprovado. O império mantinha-se abençoado por<br />
Pio VII. O casamento com Josefina seguia até o momento sem<br />
maiores atropelos... Vamos ver como fica tudo isso até os dias<br />
finais de dezembro.<br />
Também fazia um ano que o fidalgo <strong>Monlevade</strong> e a família<br />
estiveram em visita especial em Bogenet no dia em que, o senhor<br />
está lembrado, nascera o bebê Léopold. Na ocasião ficou também<br />
mais ou menos definido que François seguiria quase que imediatamente<br />
para Paris onde passaria a residir com a família do tio<br />
Guy de La Vilatte.<br />
Foi o que efetivamente sucedeu-lhe e, pelos relatos expostos<br />
nas cartas saudosas que o rapaz enviava para seus queridos, ele<br />
estava se saindo muito bem, inclusive sendo de grande valia para<br />
o andamento dos negócios do parente que, conforme propusera,<br />
o recebera de braços abertos.<br />
Felicité estivera algumas vezes de visita ao filho em Paris, mas<br />
não em número de viagens superior às que fazia normalmente ao<br />
longo do ano. Não era de vaidades extremas, mas gostava de ad-<br />
115
116 Jairo Martins de Souza<br />
quirir vestidos e lingeries de acordo com as últimas tendências e padronagens<br />
da, mesmo que decadente, moda da corte. Coco Chanel<br />
demoraria mais de um século para exibir suas excitantes criações.<br />
Às vezes a mãe permitia que Maria Vitória a acompanhasse.<br />
Nessa altura a menina já se encantava com toda a movimentação<br />
da então mais importante capital dos europeus. Foi período em<br />
que Jean, ocupado com os estudos e trabalhos de apoio ao dia<br />
a dia do castelo, mal tinha tempo para atividades extraordinárias<br />
de pesquisas. Nem se diga dos encontros furtivos e juvenis<br />
engendrados em conjunto com Angéline e Maria Vitória. A irmã<br />
divertia-se colaborando com os dois namorados.<br />
Não obstante todas essas ressalvas e atribuições, o adolescente<br />
<strong>Monlevade</strong> fazia o possível para não se afastar dos amigos.<br />
E, por exemplo, mesmo não frequentando tanto o armazém de<br />
monsieur Platini e Fontaine, acompanhava-os a distância. Jurava<br />
para si mesmo não esquecer as lições que lá aprendera.<br />
Foi por mencionar o nome de Fontaine que Tisserand lembrou-se<br />
de atualizar-me sobre a situação do antigo marinheiro.<br />
E disse-me que, naqueles dias, o agora já experiente mercador<br />
exultava de felicidade. Pouco conhecia a respeito das origens de<br />
ditados e frases feitas, mas mais uma vez ficara confirmado que a<br />
união faz a força. Ambos haviam progredido e ele, especialmente,<br />
por deferência e gentileza de Platini, fora guindado à posição<br />
de sócio minoritário. Nessa nova condição é que lograram, após<br />
acordo firmado com o fidalgo proprietário do imóvel, ampliar<br />
bastante as pequenas instalações. Não precisaram dispender muitos<br />
esforços para levantar dois acanhados galpões de estocagem<br />
que possibilitariam melhores condições de atendimento aos seus<br />
clientes. Guardariam estoque bastante somente para três ou quatro<br />
dias de operação dos negócios do armazém. O restante, que<br />
fosse eventualmente necessário, seria provido por meio de acordo<br />
firmado com alguns fornecedores que também colaboraram para<br />
combinação de formas melhores e mais rápidas para atendimento<br />
aos seus pedidos.<br />
As mercadorias, Tisserand divagou, chegariam a eles por<br />
meio de sistema que nos dias de hoje chamaríamos de um primitivo<br />
e precário just in time.<br />
E o fidalgo <strong>Monlevade</strong>, o estrangeiro disse retomando sua<br />
história, novamente intercedera em favor dos amigos do filho, e
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
iniciara, inclusive, negociações para compra do imóvel. Como de<br />
outras oportunidades, mostrou-se pronto para fiar o negócio. Era<br />
essa a razão da alegria incomum de que dissemos Fontaine estar<br />
acometido.<br />
Martinho também acompanhava passo a passo o sucesso dos<br />
amigos já adultos e, mesmo que um tanto esquecido nessas anotações,<br />
procurava não arredar pé do lado de Jean. O rapazinho<br />
era fiel ao juramento que fizera em ser sempre grato, e fazer tudo<br />
ao seu alcance pela família <strong>Monlevade</strong>.<br />
Jamais se esquecera do episódio em que o fidalgo, que sabemos<br />
coxo, salvara a ele e a sua pobre família das garras do então<br />
jovem celerado, Thurram.<br />
E mantinha a mesma atitude em relação à própria família.<br />
Jamais se esqueceria dela! Muitas de suas noites eram dedicadas<br />
à lembrança dos pais e dos irmãos. Sonhava voltar a vê-los felizes<br />
e bem alimentados. Para tanto iria, jurava a si mesmo, percorrer<br />
terras e céus. A ida iminente de Jean para Paris talvez fosse a sua<br />
chance. Quando foi alijado da companhia dos seus, por meio<br />
daquele famigerado sorteio, sabia ser ideia do pai buscar trabalho<br />
em fábricas de acessórios da indústria de roupas parisiense.<br />
Havia muitos alfaiates na capital. Quem sabe o fidalgo também o<br />
encaminhasse para casa de algum outro seu parente? Tinha a seu<br />
favor a amizade de Jean. Não fosse suficiente, também poderia<br />
contar com a intercessão do abade Tibérry, de monsieur Platini, e<br />
do professor Duchamps.<br />
O propósito de Martinho não era estranho para Jean. Por<br />
efeitos de uma ou outra situação, ele já o havia percebido. No<br />
entanto ficara feliz ao saber das intenções diretamente do amigo.<br />
Não sei exatamente se seguirei o mesmo caminho que está sendo<br />
percorrido por meu irmão François, respondeu-lhe. Mas farei<br />
tudo que estiver ao meu alcance. Informarei à mamãe, e negociarei<br />
para que papai consiga também algo para você.<br />
No final disse que apenas aguardaria ocasião adequada para<br />
abordar o assunto com o fidalgo, seu pai. Teria que pegá-lo em<br />
bom momento.<br />
Martinho sentiu-se seguro e feliz, antecipando momentos de<br />
grande felicidade que, adianto, realmente vieram a acontecer.<br />
117
118 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
XV<br />
O médico Colbert e o fidalgo prosseguem trocando ideias.<br />
Tisserand comenta rapidamente sobre falha nas intenções<br />
de Jean<br />
Muito do que acontece na vida de um homem desde seu nascimento<br />
até ser enterrado em uma sepultura pode ser justificado<br />
pelo modo como a sorte o tratou, Colbert disse. O fidalgo <strong>Monlevade</strong><br />
não se atrapalhou com a afirmação que ouvira do amigo.<br />
Não fazia coro com os que julgavam ser o homem construído por<br />
uma ou outra ocorrência dramática em sua vida. Acreditava na<br />
superação, e que a existência, ou não, deste esforço é que realmente<br />
poderia traçar os destinos deste ou daquele indivíduo. Mas<br />
calou-se diante do rumo da conversa. Pensou em mudar assunto,<br />
deixando em aberto o seu seguimento. Interessava-lhe conversar<br />
com o amigo sobre Jean e Angéline. Não sabia como! Ambos<br />
pouco a pouco tomavam consciência de que o interesse que os<br />
filhos tomavam um pelo outro prosperava a olhos vistos. Não<br />
haviam chegado ainda ao compromisso do namoro... Jean era jovem<br />
e sabia buscar as coisas que desejava. Não demoraria muito<br />
para, após solicitar licença ao fidalgo, conversar a quatro paredes<br />
com o sogro Colbert. Depois pai e sogro se entenderiam!<br />
Então Tisserand disse-me que na realidade essas suas últimas<br />
frases tinham sido somente uma consideração para lembrar-me a<br />
formatação e o procedimento que se seguia para iniciar qualquer<br />
tipo de compromisso entre jovens de boa educação no princípio<br />
do século dezenove. O acordo final ficava por conta dos pais.<br />
Que, no caso, conversavam descompromissadamente (ainda<br />
que, em termos íntimos, digerindo possibilidades de compromisso<br />
entre os filhos), sobre questões polêmicas da sorte e do destino<br />
dos seres humanos. O fidalgo dizia ao amigo que de fato a sorte<br />
ajuda mesmo aos que trabalham certo. Antes de Lutero, comen-<br />
119
120 Jairo Martins de Souza<br />
tou, camponeses podiam ser convertidos em bispos. Bastava que<br />
se tornassem ricos. Não concordo com Diógenes que, em passagem<br />
que citava Pítaco, relatou que nem mesmo os Deuses ousam<br />
lutar contra o destino. Ou contra a sorte. Esta última parte fica por<br />
minha conta e responsabilidade: não sou determinista.<br />
Tenha ou não o fidalgo ganho a discussão, era essa a filosofia<br />
que tentava transmitir aos filhos. Principalmente a Jean que, de<br />
todos, era o que mais se interessava por ideias que pudessem<br />
ser úteis na prática. Mas, em alguns aspectos, e devido à pouca<br />
idade, as que naqueles dias queria aplicar em sua vida eram absolutamente<br />
inconsistentes com os sonhos de Angéline. Estudar.<br />
Formar. Casar. Trabalhar. Até aí, tudo bem.<br />
E depois? Como o filho cumpriria desejo antigo de viajar<br />
para países distantes de que aprendera a gostar com as histórias<br />
de Platini e de Fontaine? Pouco lhe relatara sobre a luta que tivera<br />
nas Treze Colônias, mas os livros de sua biblioteca sobravam em<br />
informações, e propiciavam sonhos de aventuras, descobertas,<br />
pesquisas, viagens e fatos improváveis. Não se curvou Göethe<br />
diante da beleza dos altares esculpidos nas minas polonesas de<br />
Wieliczka?<br />
Daí, Tisserand concluiu, ter faltado a Jean análise cuidadosa<br />
de variável importantíssima. Ninguém é perfeito. Com a cabeça<br />
ocupada com tantos outros sonhos, esqueceu-se de levar em conta<br />
o fato de Angéline ser mulher. Uma jovem mulher.<br />
Portanto, não seria imprevisível que pudesse vir a surpreendêlo...<br />
Bem, é mais saudável não me adiantar novamente aos fatos.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
XVI<br />
O fidalgo não antecipa mudança de Jean a Paris. Martinho<br />
é praticamente um <strong>Monlevade</strong>. A viagem de estudos ao<br />
país da bota<br />
Alguns poucos meses depois da mudança de François para Paris,<br />
o fidalgo recebera de Guy de Lavillatte uma longa carta em que<br />
este colocava-o a par dos estudos e comportamento do seu filho<br />
mais velho. Um perfeito relatório com até mesmo o preciosismo<br />
de inclusão de partes copiadas de boletim escolar. O tio Guy era<br />
zeloso, elogiava-o, e dizia do acerto de toda a combinação. Já lhe<br />
disse por várias vezes pessoalmente algo a respeito, caro Jean-<br />
François, mas minha sensação é que devo eternizar no papel essa<br />
feliz ocorrência, foi uma das coisas que comentou. O moço tem<br />
sido uma bênção para nossa casa! Mas não se resumia a tanto.<br />
Ele e a esposa Sophia declararam-se tão satisfeitos com primogênito<br />
dos <strong>Monlevade</strong> que estavam colocando as portas de sua casa<br />
também abertas para o jovem Jean. Tinham ciência, o fidalgo já<br />
lhes havia verbalizado intenção, bem, em breves dias, o rapazinho<br />
também necessitaria ampliar estudos em Paris. Aceitariam<br />
de bom grado o garoto Martinho como contrapeso: neste caso,<br />
o que poderiam discutir posteriormente seriam os custos de sua<br />
manutenção.<br />
A certeza é a de que teriam troco dobrado com a presença<br />
dos irmãos <strong>Monlevade</strong>. No mínimo, com essa atitude, compensariam<br />
parcialmente a grande dádiva que Deus lhes proporcionara<br />
ao ter François debaixo de seu teto. O moço relatara que se dava<br />
muito bem com o irmão, eram amigos, e também se dava bem<br />
com o apadrinhado do pai e, por fim, pelo andar da carruagem,<br />
todos contribuiriam para aumentar mais ainda a felicidade da<br />
casa dos Lavilatte!<br />
121
122 Jairo Martins de Souza<br />
Estudariam o que fazer com Martinho, mas tudo, todas essas<br />
circunstâncias, estava ainda prematuro para tomada de posição.<br />
Foi o que o fidalgo e Felicité decidiram, após conversa com o<br />
professor Duchamps: o ideal seria que Jean terminasse o curso<br />
secundário em Guéret. Na sua cidade, dados os seus predicados,<br />
continuaria recebendo atenção privilegiada do mestre-escola. Aos<br />
18, sairia para Paris. O próprio Jean argumentou que isso não<br />
significaria retardo em sua formação. Só não ressaltou para o pai<br />
que lhe agradava também manter durante mais esse período os<br />
rápidos encontros que tinha com Angéline. Estava certo em ambos<br />
os motivos. A começar que iniciara estudos sobre a língua<br />
grega e, para tanto, estava contando com ajuda de rapaz que,<br />
recentemente, havia chegado à Guéret.<br />
Conhecera-o ao vê-lo em animada conversa no Armazém da<br />
casa Platini-Fontaine. O grego era viajado e, em particular, aprendera<br />
o ofício de tapeceiro artístico na região do Marrocos. E estava<br />
em Guéret em situação aparentemente paradoxal. Pois as pequenas<br />
caravanas de carroças abarrotadas de móveis, que se deslocavam<br />
para outras partes do país, comprovavam que o desemprego<br />
no ramo da tapeçaria, setor forte da economia local, era crescente<br />
na região do Creuse. Muitos iam. Pouquíssimos chegavam!<br />
Entre esses, os membros da família Zavoudakis à qual pertencia<br />
o jovem grego que se tornara interlocutor e amigo de estudos<br />
de Jean. Pais, filhos e irmãos tinham habilidade fora do comum<br />
para ofícios artesanais. Para esse tipo de gente nunca falta trabalho,<br />
e logo se arranjaram em oficinas que produziam encomendas<br />
da burguesia de Paris.<br />
Kostas Kostas Zavoudakis era o seu nome. Jean perguntoulhe<br />
educadamente o porquê do nome dito em dobro, adiantandolhe<br />
ser admirador da cultura e da arte gregas. E mais ainda, para<br />
não ser confundido com gente curiosa, no mau sentido, antes que<br />
fosse respondido, contextualizou outras ideias e afirmou que um<br />
dos seus sonhos era conhecê-las in loco: tanto a cultura quanto a<br />
arte. Não fosse possível nas próprias ilhas gregas, talvez na Sicília<br />
que era mais próxima, e fora ocupada pelos descendentes de<br />
Pitágoras e Aristóteles durante largo período de tempo. O moço<br />
também sabia ser político.<br />
Bem, Tisserand prosseguiu, antecipo que Platini e Just Fontaine<br />
não conseguiram conter risada quando ao final, e juntamen-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
te com Jean, ouviram explicação de que o nome do jovem grego<br />
originalmente não era bem assim.<br />
O erro fora do oficial da imigração! O funcionário distraiu-se<br />
quando da minha entrada no país e escreveu duas vezes meu<br />
nome, Kostas, complementando corretamente com o Zavoudakis.<br />
Quando chamei-lhe atenção, ficou nervoso, e disse impropérios.<br />
Depois se resumiu a tentar me convencer, exibindo regras e folhas<br />
de instruções, como seria difícil e trabalhoso acertar a situação.<br />
Daí tornei-me Kostas ao quadrado. Kostas au carré. Aliás, não<br />
tive somente prejuízos, quando assino por meio de rubrica, faço<br />
assim: Kostas 2 .<br />
O senhor pode imaginar, Tisserand comentou fazendo crítica<br />
social, se o mesmo poderia acontecer duzentos anos depois com<br />
o seu conterrâneo Onassis? Nunca. Isso só acontece com gente<br />
pobre. O bilionário marido de Jackie Kennedy jamais teria qualquer<br />
tipo de visa, de visto, com nome distraidamente duplicado!<br />
Kostas era um batalhador – Tisserand prosseguiu, retornando<br />
de mais uma de suas divagações – e o pago de Jean por suas aulas<br />
de grego ficava por conta de troco de igual teor. Ensinava-lhe tudo<br />
sobre a cultura francesa e, especialmente, a gramática da língua.<br />
Zavoudakis aprendia rápido. Dizia ser parente remoto de Domenikos<br />
Theotokópoulos, o El Greco, famoso artista que fora radicado<br />
em Toledo no século dezesseis. Jean suspirou. Tinha grande vontade<br />
de ver ao vivo o quadro da Adoração do Nome de Jesus do<br />
artista parente de Zavoudakis.<br />
Enquanto isso, não se descuidava também do latim. Começara<br />
inicialmente com o professor Duchamps. Depois, devido ao<br />
seu rápido avanço, chegara ao estágio da quarta declinação em<br />
poucas semanas, a tarefa ficara por conta de aulas particulares<br />
dadas pelo abade Ribérry. Afora uma ou outra lauta refeição incidentalmente<br />
tomada no castelo, o abade nada cobrava do fidalgo.<br />
Cuidava de retribuir sinceramente às generosas contribuições<br />
em dinheiro que recebia de <strong>Monlevade</strong> para cuidar dignamente<br />
das crianças do orfanato.<br />
Dinheiro. Ter e criar filhos custa dinheiro. Manter o orfanato<br />
zelado pelo Abade Ribérry também custa dinheiro. Os filhos miseráveis<br />
nos dias de hoje são como os peixes que a palavra de<br />
Deus disse terem sido multiplicados. Há alguns fiéis que, iniciando<br />
a vida de casal em condições adversas, gastam seus trocados<br />
123
124 Jairo Martins de Souza<br />
com parcimônia inerente à situação. Isso é justo. No entanto, de<br />
acordo com a prática cristã, não se esquecem de usar parcela<br />
conveniente para educação dos filhos. Às vezes, à custa de muitos<br />
esforços, tornam-se remediados e, em alguns poucos episódios,<br />
até mesmo ricos. Casos raros.<br />
E é a partir daí que pode nascer o avaro. O avaro esquece-se<br />
dos filhos. Esquece-se também de filhos de outros menos aquinhoados<br />
que padecem pelas ruas das cidades e campos da França.<br />
Esquece-se da Igreja da mãe de Cristo. Esquece-se do dízimo<br />
sagrado. Esquece-se de compromissos assumidos. Tal espécie de<br />
gente, não os temos em pequena quantidade entre nossos ricos,<br />
vivem seus dias como mendigos, mas morrem com os colchões<br />
atulhados de moedas. Tratam o dinheiro como se fosse uma obra<br />
de arte que somente em casos especialíssimos pode ser tocada.<br />
Um bezerro de ouro. Quem ama o dinheiro tem dificuldade em<br />
amar seus filhos em toda a sua plenitude. Diz a bíblia, em Colossenses<br />
3:5, Exterminai.... a avareza que é idolatria... Queridos<br />
irmãos em Cristo, em especial, dirijo-me aos pais que andam praticando<br />
esse pecado com seus filhos e com a comunidade, as estatísticas<br />
secretas do nosso confessionário...<br />
O senhor sabe, Tisserand disse, que no início do século dezenove<br />
as relações entre pais e filhos não eram nenhuma obra de<br />
Deus. Já fora pior. Dar-lhes um casaco significava quase o mesmo<br />
valor em francos do que dar-lhes um automóvel nos dias de hoje.<br />
O que o padre Mitterrand, auxiliar da diocese em trânsito<br />
pela cidade, disse em um domingo de julho de 1806 tinha como<br />
foco a importância de os pais investirem na educação dos filhos.<br />
Foi o que lhe relatei ao pé da letra faz pouco. Ele estava em vias<br />
de completar o sermão, e a missa se encaminhava para a liturgia<br />
final. E o objetivo de ter lançado aqui tais advertências, mon ami,<br />
é o de ter sensibilizado o coração do fidalgo <strong>Monlevade</strong> em relação<br />
ao amigo do filho, o jovem Martinho. Mitterand conseguira<br />
atingir sua meta dominical. A de tocar corações!<br />
Decerto houve tempo em que os filhos homens eram tratados<br />
como verdadeiros estorvos, e descartados pelas famílias sem<br />
maiores contestações e sofrimentos. Iam de uma casa a outra,<br />
aprendendo profissões enquanto atendiam como ajudantes. Por<br />
sua vez, os filhos das casas para as quais iam possivelmente estivessem<br />
em casas de terceiros e por aí vai. As meninas seguiam
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
roteiro diferente. Com algumas exceções: lembra-se do exemplo<br />
literário, daquele mesmo século, ocorrido com Cosette, a filha de<br />
Fantine, quando foi entregue para as garras da diabólica família<br />
Thenardier?<br />
Mas foi somente após concluída a fala de Mitterrand que o<br />
fidalgo <strong>Monlevade</strong> dissera em voz baixa, quase imperceptível,<br />
diretamente no pé do ouvido da mulher, Felicité. Não é que o<br />
abade visitante lembrou-me que preciso decidir sobre os custos<br />
da estada, estudos e moradia de Martinho em Paris? Decidi-me.<br />
Vou enviar carta a Guy de Lavillatte. Dir-lhe-ei que tudo correrá<br />
por minha conta. Martinho não precisará trabalhar, essa é a condição<br />
que deixarei clara. Para tanto dar-lhe-ei o mesmo valor de<br />
mesada que estipular para Jean. Não posso adiantar se ganhará<br />
bolsa do governo.<br />
Ah, Felicité, tirei um peso que não sabia existir nas minhas<br />
costas! Algo me dizia que devia auxiliá-lo mais radicalmente. Não<br />
me esqueço da triste noite em aquela família foi assaltada pelo então<br />
endiabrado Thurram... bem, água passada não move moinho<br />
de trigo, o fato a ser celebrado é que vamos tentar abrir as portas<br />
do mundo, e de algum liceu importante para aquele rapazinho.<br />
Daqui a três anos definitivamente irá também estudar em Paris!<br />
Desde então, este tempo passou com a velocidade impressionante<br />
com que vibram as asas de um beija-flor. E antagonicamente<br />
muitas coisas aconteceram: talvez seja o que o tenha feito<br />
passar despercebido. O fidalgo não era dado a perder oportunidades.<br />
Nem para si mesmo nem para os filhos. Portanto tinha<br />
olhos e ouvidos atentos para o que acontecia no mundo e, mesmo<br />
a contragosto, observava com visão analítica os movimentos<br />
do corso Napoleão por toda a Europa. Tinha algumas economias,<br />
joias e valores guardados de tempos passados e, a despeito de<br />
sua paixão pela terra em que nascera, surgiram-lhe ganas de empreendedor,<br />
não abriria mão de investir em outros países.<br />
Mais ainda na grande inteligência do seu caçula. O rapaz,<br />
conforme sabemos, estivera diligentemente estudando línguas estrangeiras,<br />
o estado da arte da ciência, assim como disciplinas ligadas<br />
à filosofia, à arte em si, à gramática, à dialética e à estética.<br />
Moço completo. Torna-se repetitivo dizer, a tudo aprendia com<br />
facilidade impressionante.<br />
E, entre tantas vontades, a que mais lhe chamava a atenção<br />
125
126 Jairo Martins de Souza<br />
em termos práticos era o estudo de pedras e o desejo inesgotável<br />
de conhecer os segredos da natureza. Tinha os pés no chão, queria<br />
saber o que lhe fosse possível sobre onde pisava. A matéria<br />
estava debaixo e acima dele e pronta para ser compreendida, às<br />
vezes inalcançável. A luneta de Duchamps aguçava-lhe a curiosidade<br />
quando mirada para a Lua cheia: que tipo de pedra branca<br />
lá existe? Qual a do teto da caverna do dragão que luta com<br />
São Jorge? Fazia conjecturas. Articulava hipóteses. Não sabia que<br />
poderiam ter sido as mesmas rochas que haviam enterrado os dinossauros<br />
aqui na Terra. Nem poderia. Esses demorariam alguns<br />
poucos anos para serem achados em primeira mão, em 1858.<br />
Teriam sido deixados de fora da Arca construída por Noé à custa<br />
do gigantesco tamanho?<br />
Enquanto isso, o cachorro Breu resistia bem ao longo dos<br />
anos e o acompanhava a incursões semanais pelas redondezas<br />
para busca de pequenas pedras que o patrão gostava de ver sob<br />
vários ângulos de entrada de luz.<br />
Às vezes, sob licença expressa do pai, saía bem cedo nas manhãs<br />
de sábado e chegava até as fundições de Mondon. Mondon<br />
ficava próxima a Guéret. A França, mon ami, é pequena se comparada<br />
com o Brasil. Cerca de dezesseis vezes menor! Apreciava<br />
ver os fornos rudimentares e o fogo vermelho dos minérios que<br />
corriam para o estado final de transformação em ferro. Não ia<br />
sozinho. Martinho sempre o acompanhava. De lá só regressava<br />
quando a família já se preparava para dormir. Fazia isso, reforço,<br />
aos sábados. Somente aos sábados. Pois o domingo era prioritariamente<br />
reservado para passeios e ritos de religião com a família,<br />
e encontros furtivos com Angéline.<br />
Não obstante, enquanto esperava chegada de um destes momentos<br />
felizes de final de semana, mantinha os olhos firmes sobre<br />
leituras técnicas e fazia reflexões sobre a química de minérios e<br />
pedras. Não descansava. Tinha vários guias de materiais que o<br />
pai adquirira para ele em Paris. O pai também lhe dera parelha<br />
de cavalos fortes para que não tivesse problema com atrasos nos<br />
retornos de suas empreitadas. Como não poderia deixar de ser,<br />
havia um terceiro indispensável ao grupo, o Breu. Como também<br />
o Géo, o já velho burro de carga, que, às vezes, complicava-lhes<br />
a vida por sua lentidão. Mas era de inestimável ajuda para transporte<br />
de cargas mais pesadas.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Eram muitos os interesses do rapazinho. Como o pai, não<br />
perdia uma boa oportunidade!...<br />
A Itália era uma delas. No mês de agosto de 1806, o fidalgo<br />
havia observado, conforme já disse-lhe, certa movimentação de<br />
aplicação de recursos da burguesia francesa em compra de grandes<br />
propriedades no país vizinho que se encontrava em situação<br />
de penúria. Alguns dos seus contatos em Paris diziam-lhe, <strong>Monlevade</strong>,<br />
não deixes de tomar proveito da situação. Se demoras, os<br />
abutres já lá terão consumido tudo. A milenar região de Nápoles<br />
havia sido, há cerca de um ano, acometida por terremoto que liquidara<br />
quase 27.000 pessoas! A exuberante Itália, desde aqueles<br />
anos se sabia, primava pelo seu imenso acervo cultural acumulado<br />
ao longo de anos das mais variadas ocupações.<br />
Antes dos tempos de Cristo, os gregos lá haviam se estabelecido.<br />
É por isso que Kostas Kostas Zavoudakis havia dito a Jean<br />
que ele conheceria melhor o seu país se, ao invés de ir à própria<br />
Grécia, fosse ver os vestígios da cultura grega que existiam no Sul<br />
da Itália. Confirmara o que o rapaz já tinha estudado com afinco.<br />
Zavoudakis conhecia em detalhes o país dos romanos. Havia se<br />
encantado com suas estradas seculares. Todos os caminhos, todas<br />
as estradas da Itália levam a Roma, confirmava sorrindo. De uma<br />
só tacada, fica-se conhecendo as culturas romanas, são várias, e<br />
as gregas reunidas! Monsieur Platini havia concordado efusivamente,<br />
enquanto cortava algumas réstias de alho, e complementara<br />
com outras informações.<br />
A conversa se desenrolava no interior do armazém. Entretanto<br />
há muito Jean não mais somente ouvia. Frequentemente<br />
era convocado para dar opiniões sobre isso, sobre aquilo. O fato<br />
é que filhos de famílias nobres da Europa se dirigiam a Roma,<br />
Florença, Veneza, etc. para estudar, em pleno sítio, as civilizações<br />
que andaram dominando o mundo antigo. Diziam-se encantados,<br />
e a preço muito baixo. Ademais, como sabemos, Napoleão havia<br />
sido coroado rei da Itália em maio do ano anterior e o antigo<br />
advogado José Bonaparte, seu irmão mais velho, era o novo rei<br />
de Nápoles.<br />
A viagem fora longa. Muitas carruagens, cavalos e embarcações<br />
de pequeno e médio porte. Nestes, o Breu não abria mão de viajar<br />
na proa. Parecia desejar sentir antecipadamente o cheiro dos novos<br />
minerais que o dono esperava conhecer. Em Florença, o jovem<br />
127
128 Jairo Martins de Souza<br />
<strong>Monlevade</strong> ficou horas esquecidas se encantando com as obras de<br />
arte expostas no palácio Uffizi. Enviou carta para Angéline a respeito.<br />
Foi por meio dela, Tisserand acrescentou saindo rapidamente<br />
do curso de sua história, que tomei conhecimento de algumas peculiaridades<br />
desta viagem do fidalgo com os dois jovens. Consta<br />
anexada aos escritos de Léopold, vigário geral. Não me dei ao<br />
trabalho de pesquisar como lá chegou.<br />
O senhor deve ter reparado, Tisserand comentou, que eu disse<br />
dois jovens. Não. Não errei. Realmente François não podia<br />
viajar na ocasião com o fidalgo: tinha obrigações em Paris com os<br />
Lavillatte e com a escola.<br />
Martinho. Martinho era o outro participante. O fiel amigo da<br />
família <strong>Monlevade</strong> fora convidado a participar da empreitada cultural<br />
cuidadosamente articulada por Jean e pelo fidalgo, seu pai.<br />
Vê-se que este vinha cumprindo, à risca, promessa feita durante<br />
andamento da missa do Abade Mitterrand!<br />
E foi tendo a companhia do rapazinho, que amargurara precocemente<br />
a perda da família, que Jean de <strong>Monlevade</strong> quisera<br />
saber tudo sobre as grandes pedras que construíram o Coliseu.<br />
Ficara perplexo com a beleza dos mármores que de lá foram retirados<br />
para construção de partes do Vaticano. Quando o texto das<br />
instruções era somente em latim, fazia cuidadosamente a tradução<br />
para Martinho. Queria compartilhar a satisfação do conhecimento<br />
de todos os detalhes. Assustou-se com a violência do<br />
Vesúvio, admirando-se com a preservação espetacular da cidade<br />
de Pompeia. Catava e colecionava pequenas pedras por todos os<br />
locais que passava. Às vezes comentava com o pai, ressentindo-se<br />
da ausência do seu burro carregador. Também cheirava-as mais<br />
a fundo quando, em determinados ambientes, era-lhe proibido<br />
entrar acompanhado do Breu.<br />
Em Taormina, na Sicília, deslumbrou-se com a vista magnífica<br />
das ruínas antigas de teatro romano, tendo como pano de<br />
fundo as águas então tranquilas do mar Jônico. Ao longe, o Etna,<br />
visto à noite, vomitava fogo lentamente. Jean espantou-se com a<br />
escuridão de suas lavas, e acabou também por coletar algumas<br />
amostras para estudos em casa.<br />
No final das contas, o fidalgo que entrara em contato com<br />
investidores e corretores locais, optou por deixar para outra oportunidade<br />
a eventual compra de propriedades italianas. Fora aler-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
tado que o futuro político da grande península itálica prenunciava-se<br />
tortuoso.<br />
Então me pareceu que Tisserand carecia de um bom copo<br />
de água, pois, praticamente sem respirar, havia falado durante longo<br />
período de tempo. Adivinhei! Ele sugeriu a busca de uma garrafa,<br />
mas antes disso, pretendia esticar somente mais um pouco para concluir<br />
o que chamou de a primeira parte de sua história. Assim fez.<br />
E disse que, às vezes, não é importante conhecer tudo o que<br />
aconteceu em período de tempo de um ou mais anos. Vale mais<br />
saber os resultados em breves momentos que vivemos, ou escrevemos.<br />
Circunstâncias como essas justificam o fato de, nesse<br />
ponto, nos depararmos com a carta de solicitação da entrada de<br />
Jean na Politécnica de Paris!<br />
129
130 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
XVII<br />
O fidalgo busca informações. A carta para Paris.<br />
A Politécnica de Monge e Carnot<br />
Guéret, 16 de Janeiro de 1809. Exmo. Senhor Professor Monge,<br />
Permita-me apresentar-me por mim mesmo. Meu nome é<br />
Jean-François Dissendes de Bogenet e sou irmão de Philippe de<br />
Bogenet e François de La Villate. Eles o têm em alta conta e é,<br />
indiretamente, por meio deles que venho até vossa ilustre presença<br />
para uma solicitação. Tenho dois filhos, François, 19 e Jean<br />
Antoine, 17. O primeiro já está encaminhado, e busca elevação<br />
de espírito e mente aí em Paris. É sobre o segundo que pretendo<br />
falar-lhe. Meus irmãos estiveram com o senhor na celebração<br />
alusiva à posse do bispo Dubourg como representante da Igreja<br />
de Pedro na região de Limoges. Nela excepcionalmente esteve<br />
inclusive nosso imperador Bonaparte. Bem, o fato é que conversaram<br />
sobre possível entrada do meu Jean no quadro de alunos<br />
da Politécnica. Elogiaram-no. É deste tipo de jovem que estamos<br />
carentes, foi resposta dada por Napoleão, acompanhada por sorriso<br />
amigável e bilhete para busca de melhores informações. A<br />
orientação foi a de procurar o senhor conde Laplace no Ministério<br />
da Educação. Foi o que fizeram. Mas não deu certo! O referido<br />
estava em reunião de trabalho com certo funcionário do governo<br />
português enviado pelo princípe-regente João. Felizmente, lá um<br />
alto assessor do estado disse-lhes para dirigir-me diretamente ao<br />
senhor. É o que faço. Ele reparara que a parte superior do envelope<br />
pardo, que um dos meus irmãos carregava, estava marcada<br />
com selo imperial. Caro professor, não sou afeito a pedido sem<br />
sustentação, assim como tenho conhecimento do rigor com que<br />
Vossa Senhoria conduz atos públicos... O que necessito é previsão<br />
da data dos testes orais e escritos. Há uma agenda nacional para<br />
tanto? O tempo urge para que meu filho Jean faça os estudos pre-<br />
131
132 Jairo Martins de Souza<br />
paratórios... Em anexo, além de histórico escolar, que demonstra<br />
a excelência do rapaz nos seus estudos secundários, segue depoimento<br />
do professor Duchamps da escola pública de Guéret. Ele é<br />
testemunha da excepcionalidade do meu rapaz desde tenra idade.<br />
Antecipadamente agradeço por vossa preciosa intercessão e<br />
rápido envio do que lhe solicito. Amistosamente, Jean-François<br />
Dissandes de Bogenet.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
PARTE 2<br />
Paris<br />
133
134 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
I<br />
Onde se explica o porquê de Jean e Martinho terem se<br />
instalado na casa de Septimus e Lucillia Pius<br />
Não. Não estou ficando fora do meu perfeito juízo, Tisserand alertou.<br />
Nem batendo martelo na cabeça de prego já perfeitamente<br />
alojado na madeira. Já disse, mas insisto que, dependendo da<br />
situação, não é impositivo saber em detalhes o que aconteceu<br />
antes da ocorrência de determinado fato. Vale mais o resultado<br />
e o momento presente. A notícia do jornal disse que o carroceiro<br />
esfaqueou um torcedor de outro clube à custa de simples troca de<br />
ofensas. O homem morreu. O agressor foi linchado por populares.<br />
Nada mais interessa!<br />
Não é razão suficiente para convencê-lo? Então troco mais<br />
ainda em miúdos, lembrando que o próprio Brésil discute até os<br />
dias de hoje se Capitu traiu ou não o marido Bentinho. Discute-se<br />
o possível resultado. Mas não diz das razões que a poderiam ter<br />
levado aos braços do, por final, afogado Escobar!<br />
Reconheço, Tisserand contemporizou, há casos em que não<br />
pode ser desta forma. Uma primeira consulta médica é um exemplo.<br />
Por conveniência da instrução do próprio ato clínico, o profissional<br />
teria que ouvir toda a história do paciente até o aparecimento<br />
do sintoma e doença. No entanto isso não acontece. O<br />
relato do doente é usualmente interrompido num tempo médio<br />
de dezoito segundos!<br />
Então é de forma bastante breve que, a despeito da importância<br />
do assunto, abordarei o porquê de encontrarmos Jean Antoine,<br />
Martinho e Kostas em vasta casa de dois pisos na Rua Saint<br />
Jacques em pleno Quartier Latin de Paris. Pode ocorrer mal-entendido,<br />
mas com economia de palavras, certamente evito maiores<br />
constrangimentos. Os proprietários eram Septimus e Lucillia<br />
Pius. A data é algum dia de julho de 1809. Algo acontecera, pois<br />
135
136 Jairo Martins de Souza<br />
a proposta inicial é a de que pelo menos Jean e Martinho fossem<br />
morar com Guy e Sophia de Lavillatte juntamente com François<br />
que, sabemos, já morava na capital.<br />
Diante disso, mon ami, faz-se necessário tomar conhecimento<br />
de que Sophia adoecera, de um momento para outro, de mal<br />
nos pulmões que havia se tornado crônico. Não curava. Não era<br />
questão de vida ou morte, mas acabara por levá-la a estado de<br />
tosse constante e fáceis crises de irritabilidade. É por tal sensação<br />
contínua de desconforto que ela, por toda a vida, pessoa de<br />
modos dóceis e receptivos, começou a implicar com tudo e com<br />
todos. Até com casal de rouxinóis que costumava ficar em árvore<br />
próxima à janela do seu quarto. Temeroso de que, com a chegada<br />
dos novos moradores, a saúde da mulher fosse se complicar, e até<br />
colocar em risco a vida harmoniosa do casal, Guy de Lavillatte<br />
se antecipou. E de fato colocou os joelhos no chão. E orou. Orou<br />
muito. Após poucos dias veio-lhe a resposta em sonhos, reforçada<br />
por conselho do pároco da diocese à qual pertencia. Caminhassem<br />
as nuvens para a direção traçada, não teria condições de<br />
prever dias de céu claro para o seu lar.<br />
Portanto, entre outras iniciativas, adiantou carta ao fidalgo<br />
<strong>Monlevade</strong> relatando-lhe o real risco que poderia se colocar caso<br />
fosse concretizado o combinado. O fidalgo compreendeu. Não<br />
poderia, nem por sonho, ser agente e provocar quaisquer possíveis<br />
desentendimentos ao casal a quem tanto queria bem. Coloquei-me<br />
na sua posição, e a partir daí posso garantir-lhe que não<br />
fico nem um pouco chateado, caro Guy. Tenho consciência das<br />
dificuldades de se ter debaixo do mesmo teto amigos ou parentes<br />
que, a despeito de todo desejo de adaptação, trazem consigo<br />
hábito e modo de vida diferentes. Isso sem considerar a perda de<br />
privacidade. Há tempo hábil para outras soluções. Não tão boas,<br />
admito, mas saudáveis o suficiente. O que não pode ser feito,<br />
não pode ser feito! Já lhe devo em quantidade suficiente pela<br />
recepção amorosa que teve o nosso querido François. Foi o que<br />
resumidamente respondeu ao primo.<br />
E mandou a carta. Eram parentes, sempre foram amigos, e<br />
não restou mágoa quanto ao assunto. O fidalgo não mentira. Sabia<br />
ter alternativa ainda a explorar e, para aplicá-la, aguardaria<br />
um pouco mais. Mesmo porque não havia recebido retorno da<br />
carta enviada à direção da Politécnica e do seu diretor Monge.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Asseguro-lhe, Tisserand disse, enquanto olhava-me diretamente<br />
nos olhos, que o vigário geral não rasgou folhas de suas<br />
anotações. Não havia motivo para tanto. Mas o tal processo durou<br />
meses, e é uma pena que aqui tenha que ser reduzido a algumas<br />
miseráveis linhas.<br />
A Escola de Trabalhos Públicos nasceu a partir de esforços<br />
de figuras de peso saídas dos quadros da inteligentsia francesa<br />
dos finais dos setecentos. Foi tudo muito rápido. Em dezembro de<br />
1794, abriu as portas para seus quatrocentos primeiros alunos de<br />
níveis totalmente diferentes. A grade de ensino e o fardamento os<br />
equalizaria. Um ano depois passou a ser chamada de Polytéchnique,<br />
Politécnica.<br />
Já disse, Tisserand prosseguiu com ar de quem pede desculpas,<br />
que alguns iluminados engendraram a sua fundação. Volto<br />
a repetir porque, entre eles, estava o famosíssimo Monge, autor<br />
da bíblica Arte de Fabricação dos Canhões. E avisou. Vou me estender<br />
um pouco sobre esse homem, pois Gaspard Monge foi um<br />
ídolo não somente para Jean, como também para todos os demais<br />
politécnicos. Há anos passados, ensinava a chamada Teoria<br />
das Fortificações em outra escola militar. A Fortificações consistia<br />
em projetar métodos de defesa para que nada ficasse exposto ao<br />
fogo direto do inimigo. Isso gerava esforços aritméticos intermináveis.<br />
Até antes de Monge... este homem veio ao mundo com o<br />
dom da simplificação. Eliminou os tais cálculos, daí criando bases<br />
para elaboração da então intrigante geometria descritiva. O tridimensional<br />
podia ser visto em um só plano. Com um só desenho<br />
o trajeto de um projétil de canhão agora podia ser representado,<br />
com todas as informações, em uma simples folha de papel. Soldados<br />
inimigos não conseguiriam entender de pronto os projetos de<br />
armas francesas desenhadas com a nova técnica. É por isso que<br />
foi mantida a sete chaves durante quinze anos. Somente veio a<br />
público em 1794 que, como lhe disse, foi o próprio de inauguração<br />
da Polytéchnique. A chamada geometria descritiva tornou-se<br />
disciplina da grade curricular e foi uma das paixões de Jean durante<br />
o período em que esteve envolvido com engenharia e seus<br />
desdobramentos civis e militares. Monge morreu, em 1818, desprezado<br />
pelo renascido regime dos Bourbon. Reforço que, além<br />
dele, outros grandes nomes da ciência, como Fourcroy, o médico<br />
que ajudou a criar os nomes da química tal como conhecidos ainda<br />
hoje, foram fortes colaboradores da Polytéchnique.<br />
137
138 Jairo Martins de Souza<br />
E também não posso omitir algo da verdade da época, Tisserand<br />
prosseguiu, pois de acordo com documentos das chancelarias<br />
estrangeiras, datados de janeiro do mesmo ano em que a geometria<br />
descritiva foi explicada ao mundo, ficava bem claro que<br />
a recém-declarada república francesa tinha inimigos fortíssimos<br />
dentro e fora de suas terras. Os reis europeus não viam com bons<br />
olhos o novo Estado francês, que tinha um rei fraco e submisso<br />
aos excessos do Terror. O clima era de desespero. O país precisava<br />
se defender e faltava-lhe corpo de engenheiros militares para<br />
construção de fortes ao longo de suas fronteiras. E fabricação de<br />
armas. Então, em março daquele ano, o Comitê de Saúde fez<br />
criar comissão para arquitetar as bases do funcionamento de uma<br />
nova escola. E que acabou sendo, em termos finais, a Politécnica<br />
da qual já disse.<br />
Escola de altíssimo nível que tinha não somente caráter militar,<br />
como também método de ensino conformado para gerar funcionários<br />
dedicados ao Estado em todos os seus segmentos. Das<br />
armas e da burocracia. Escola eclética. Na parte básica estudarse-ia<br />
o Direito, as Ciências Naturais, a Arquitetura, a Ciência, a<br />
economia Política, a economia Florestal, a Mineralogia, o Paisagismo,<br />
enfim, tudo que fosse de proveito para formação integral<br />
do engenheiro militar. A princípio o local das aulas foi determinado<br />
como o Palácio Bourbon, Palais-Bourbon. Os professores não<br />
deveriam ter outras credenciais senão a de estar entre os maiores<br />
nomes da ciência da época. Grandes cérebros ministrariam<br />
aulas na instituição. Outros seriam formados na própria. Fábrica<br />
de gênios que, por princípio, não seria exclusiva para a nobreza.<br />
Deveria ser obrigatoriamente democrática, de acordo com os caminhos<br />
da equalité, uma das cláusulas pétreas da Revolução. A<br />
seleção seria por meio de concurso aplicado em todas as regiões<br />
da França. Dificílima!<br />
A Polytéchnique era o sonho de Jean. Ela era algo, Tisserand<br />
disse, guardadas as devidas proporções, como o respeitadíssimo<br />
ITA que vocês têm aqui no Brasil. Uma escola militar de referência<br />
na engenharia e na disciplina.<br />
E é por ser assim, e à parte a decisiva troca de correspondências<br />
entre o pai e o tio Lavillatte, que Jean prosseguia vida<br />
de estudos, trabalho e pesquisas. Preparava-se. Não deixaria de<br />
seguir para a Politécnica. O fato de ser dirigida por militares e
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
seus alunos fazerem parte de corpo de reserva das forças armadas<br />
não lhe trazia qualquer constrangimento. Preparava-se com afinco<br />
para os exames de admissão que selecionaria a elite dos alunos<br />
do país. A perspectiva de envergar o uniforme de gala com todos<br />
os paramentos militares fazia-o sorrir discretamente.<br />
E enquanto contava os meses para iniciar arrumação de baú<br />
de mudança para Paris, os domínios de <strong>Monlevade</strong> funcionavam<br />
como seu laboratório avançado de campo. Procurava ligar o útil<br />
ao agradável. Adiantava soluções para dores de cabeça simples<br />
do quotidiano e, para tanto, procurando bases em matérias futuras<br />
que, em breves dias, estaria desenvolvendo na Politécnica.<br />
Quando alguns serviçais se queixaram da quantidade de ratos<br />
que ameaçavam as colheitas, ele acalmou-os dizendo que rapidamente<br />
amenizaria o transtorno. Felicité não aplaudira a função<br />
que lhe fora delegada pelo fidalgo. Não lhe agradava ver o<br />
filho ligado a tarefas menores em tempo que poderia estar sendo<br />
usado para estudos. Ledo engano.<br />
Bem, não é que para dar cabo da missão o rapaz não usasse<br />
métodos arcaicos. Entretanto procurava desenvolver outros que<br />
lhe proporcionassem maior eficácia. Pedradas. Pedradas não lhe<br />
agradavam. Não obstante ter destreza e pontaria de atirador de<br />
elite é morte doída até mesmo para um roedor. Foi aí que aplicou<br />
métodos estatísticos, e os resultados deram a ele o número correto<br />
da população de gatos. Não foi suficiente. Mas foi nova oportunidade<br />
para vazar seu notável intelecto. Talvez até perdendo-se<br />
em excessos ao que hoje, em termos de engenharia, chamamos<br />
qualidade necessária. Ah, o serviço de um tatu não pode ser substituído<br />
por perfuratriz automática. Assim o jovem talento carecia<br />
de refino a ser futuramente encontrado na Politécnica. O fato é<br />
que desenvolveu algumas ratoeiras com molas mais fortes, procurando<br />
adaptar princípios bem sucedidos e utilizados no projeto da<br />
letal guilhotina. Não pensem ter sido tal tarefa fácil! Já se envolveram<br />
com desenhos de peças e cálculos de forças armazenadas<br />
em molas, vantagens mecânicas, contrapesos, inércias, etc.? Com<br />
elas, num piscar de olhos, aniquilava ratazanas de porte. Mas a<br />
custo altíssimo por morte!<br />
139
140 Jairo Martins de Souza<br />
Na adolescência do Jean de <strong>Monlevade</strong> ainda não existia a<br />
fotografia. A silhueta era um tipo de representação em que apenas<br />
o perfil das pessoas era desenhado em papel preto. Depois se<br />
recortava. Na mostrada acima, baseado nas descrições de Tisserand,<br />
imaginei a figura do rapazinho Jean conversando com o fidalgo,<br />
seu pai, sobre intenção de projeto de ratoeira que planejava<br />
colocar nos celeiros do castelo da família. Observar a postura do<br />
pai com a perna direita avançada. Com isso reduzia dor causada<br />
por antigo ferimento de guerra.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Não tenho dúvidas, Tisserand comentou, de que não seriam<br />
bem sucedidas comercialmente pelo excesso de polias, mecanismos<br />
e mão de obra para fabricação. Tanto é assim que, mesmo<br />
com todos os seus esforços, as armadilhas não eram suficientes<br />
para suprir a demanda, assim como a quantidade de queijo a ser<br />
usado como isca. Até chegar ao Quartier Latin e a Septimus e<br />
Lucillia Pius, Jean ainda criou várias outras melhorias na vida do<br />
castelo. A começar pelas articulações das carroças e as peças de<br />
madeira para prender animais aos arados, assim como ferramentas<br />
que atendiam ao pessoal. Imaginou também irrigação à base<br />
de rodas hidráulicas.<br />
Mas foi quando estava em vias de remediar uso dos dejetos<br />
das pocilgas que, finalmente, vieram as provas escritas de admissão<br />
nacional para a Politécnica. A comissão de selecionadores esteve<br />
em todo o país, inclusive em Guéret. Para os testes orais e a<br />
entrevista final, Jean foi convidado a comparecer a Paris. Martinho<br />
o acompanharia e, para tanto, não era mais somente Martinho.<br />
Era Martin Eugène de <strong>Monlevade</strong>! O fidalgo, após meses de<br />
sonhos e lembranças da oportunidade em que conhecera o jovem<br />
abandonado, decidiu emprestar-lhe o nome. Era sua cota de<br />
participação que julgava ter com a sociedade que lhe proporcionara<br />
tantos benefícios e concessões. Conversou com o juiz de paz<br />
da região, daí surgiu documento em que assumia atrasadamente<br />
a paternidade do menino, mas sem direitos de herança e outros<br />
compromissos formais. Martinho se alegrou. Não porque iria se<br />
esquecer dos pais de sangue. Não. Desses nunca se esqueceria.<br />
Mas o nome <strong>Monlevade</strong> abrir-lhe-ia outras oportunidades para<br />
o mundo. Foi já nessa condição que juntos dormiram a primeira<br />
noite em Paris no quarto de François. A adoentada tia Lavillatte<br />
estava fora por alguns dias e a visita temporária dos dois não<br />
traria transtornos para o marido. Os irmãos mataram saudades,<br />
por meio de horas de conversação madrugada adentro. A luz de<br />
lamparina contemplava-os quando finalmente cediam às pescoçadas<br />
e ao sono pesado.<br />
O Conde de Péluse era, em suas origens já distantes, filho de<br />
um mascate amolador de facas. Tratava-se nada mais nada menos<br />
que o professor Gaspard Monge. A carta que o fidalgo <strong>Monlevade</strong><br />
lhe enviara meses atrás não havia rendido nada de prático. Afora<br />
a cortesia da resposta do homem que parece ter sido o único pelo<br />
141
142 Jairo Martins de Souza<br />
qual Napoleão teve genuína amizade, o conteúdo afirmava que<br />
todos os franceses teriam chances iguais de acesso à Politécnica.<br />
Asseguro-lhe, caro <strong>Monlevade</strong>, que seu estimado Jean não será<br />
tratado como exceção. Basta aguardar edital público previsto...<br />
Amistosamente, Gaspard Monge.<br />
Não podia ter sido melhor. Por várias razões. A primeira foi<br />
a de Jean ter sido aprovado nacionalmente no quinquagésimosegundo<br />
lugar. Já a impossibilidade de alojamento definitivo com<br />
os parentes Lavillatte fez com que os <strong>Monlevade</strong> recorressem à<br />
própria Politécnica. Considerando-se os altos interesses nacionais,<br />
comitês do governo percorriam as casas próximas ao Palais Bourbon,<br />
convocando os moradores a receber os jovens estudantes<br />
como se parentes fossem.<br />
Uma doméstica não pode se dedicar totalmente ao trabalho<br />
na casa de madame quando, em casa, os filhos padecem por falta<br />
de leite e pão. Assim o governo definiu, Tisserand esclareceu –<br />
obviamente, mudando o que deve ser mudado – que, na Politécnica,<br />
os estudantes não poderiam sentir aflições por falta de dinheiro.<br />
A diretoria estabeleceu que os noviços recebessem ajuda<br />
de custo de 15 sous por dia. Era a remuneração de um atirador de<br />
canhão de primeira classe. No fim de 12 meses o salário total deveria<br />
chegar a um mínimo de 900 francos. Além disso, deveriam<br />
ter hospedagem gratuita de boa qualidade às vezes ofertada pela<br />
própria comunidade.<br />
Foi por isso que o importante diretor de estudos da Politécnica,<br />
Gardeur-Lebrun, esteve na casa de Septimus e Lucillia. Acompanhou-o<br />
monsieur Chaussier, o médico inspetor de residências<br />
de candidatos a alunos. A visita de inspeção foi facilitada pelo fato<br />
do dono da casa ter sido um veterano professor de matemática<br />
no College de France. Em 1794, os Pius, certamente um casal de<br />
patriotas que, infelizmente, tinha perdido três filhos na campanha<br />
da invasão da cidade holandesa de Maastricht, haviam se colocado<br />
novamente à disposição do Estado. Como consolo e incentivo<br />
bastante para prosseguir vivendo, restaram-lhes outros três que<br />
não mais ali moravam. A habitação e os proprietários foram aprovados<br />
com louvor. O conforto disponível superava as demandas<br />
espartanas listadas na papelada da instituição. Como vimos, foi<br />
para onde Jean e Martinho foram encaminhados.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
E quanto aos estudos de Martinho? Indaguei, abruptamente,<br />
a Tisserand. Foi para o Lycée Napoléon, Tisserand respondeume.<br />
É escola também famosíssima pela qualidade de ensino. Sua<br />
edificação principal é magnífica! Aliás, e muito a propósito, não<br />
se pode compreender a arquitetura de hoje daquele liceu sem<br />
conhecer as bases de sua história. Ela permanece escondida nas<br />
celas da milenar abadia de Santa Genoveva, e que há séculos foi<br />
estabelecida no Quartier Latin. O prédio do Lycée Napoléon fora<br />
propriedade da Igreja: mais uma das que estiveram sequestradas<br />
pelos comandantes da revolução.<br />
Pois suas instalações foram usadas como sede da Escola Central<br />
do Panteão. Ela deveria fazer, e fez, parte de plano para rede de<br />
ensino secundário que, na ocasião, deveria ser implantado em todo<br />
o país. Inaugurada em 1796, foi a primeira delas, e tinha o perfil<br />
que se encaixava sob medida para jovens franceses como Martinho.<br />
Aí está a resposta completa à pergunta que eu lhe fizera. A comissão<br />
do governo concordou em admiti-lo naquela escola Central,<br />
e o jovem, relativamente receoso (secretamente temia não dar conta<br />
do recado), aceitou o desafio proposto pelo fidalgo <strong>Monlevade</strong>.<br />
Foi por isso que também teve a felicidade de ficar com Jean na<br />
casa dos Pius. Localização privilegiada. De lá divisavam bem próximas<br />
a Praça do Panthéon, a austera universidade Sorbonne, o Collège<br />
de France... E tudo a poucas quadras de algumas pontes do Sena.<br />
Por tais circunstâncias é que dois meses antes do início das aulas<br />
Jean e Martinho – um aos 18, o outro aos 15 anos – podiam ser<br />
vistos caminhando incansavelmente pelas ruas do Quartier Latin.<br />
De Kostas, que era, estão lembrados, em termos oficiais, Kostas<br />
Kostas Zavoudakis, falo depois. É história longa...<br />
Os primeiros dias foram de total encantamento. Estavam em<br />
agosto de 1809 e Paris continuava efervescendo não somente<br />
com o andamento das guerras Napoleônicas, como também com<br />
outros acontecimentos que vinham mudando precipitadamente a<br />
vida social do país. Ainda em <strong>Monlevade</strong>, Jean havia percebido,<br />
e sentira as mensagens dos sinais da fumaça. Agora me encontro<br />
exatamente onde o fogo queima. Nas praças e ruas do quarteirão<br />
latino o povo discutia acaloradamente. Estudantes e professores<br />
conversavam excitados em latim. Soldados, burocratas, ministros e<br />
oficiais cruzavam aquelas ruas quase sempre apressados. O jovem<br />
de Guéret estava absolutamente fascinado com sua vizinhança.<br />
143
144 Jairo Martins de Souza<br />
No antigo platô da Praça do Panteão, não se cansava de ver<br />
a igreja que fora construída para homenagear Santa Genoveva,<br />
Sainte-Geneviève, a padroeira de Paris. Lembrava-se das chaminés<br />
das fundições de Mondon, a algumas dezenas de quilômetros<br />
de Guéret. Imaginava se Santa Genoveva poderia ter a alma de<br />
suas paredes totalmente construída de ferro. Ele é eterno quando<br />
colocado dentro de algo que o protege do ar atmosférico. E é<br />
mais leve que pedras... É bem verdade que a Revolução transformara<br />
a catedral, por decreto, em ambiente para enterrar heróis<br />
nacionais de seu interesse. Mas não destruíra nada de sua grandeza<br />
arquitetônica. Não importando sua destinação, o edifício foi<br />
o primeiro grande monumento em estilo neoclássico. De seu alto<br />
vislumbra-se toda Paris.<br />
Foi daí que Tisserand lembrou-me que, por várias vezes, já tinha<br />
dito sobre a execrável atitude de confisco de bens da Igreja Católica.<br />
E que era por isso que as ossadas de Voltaire e Rousseau já estavam<br />
enterradas nos domínios de Sainte-Geneviève nos dias em que Jean<br />
transferiu-se para Paris. E que pelo mesmo motivo era usada para<br />
outros fins. Bem, antes de fechar o assunto, não podia deixar de<br />
registrar novamente o que algumas pessoas talvez não saibam.<br />
Pois, de certa forma, já mencionara que foi no extremo superior<br />
da cúpula da mesma Sainte-Geneviève, digo, do Panteão,<br />
que, anos mais tarde, em 1851, o habilidoso leigo Léon Foucault<br />
fixou seu pêndulo e, finalmente, deu por encerrada a eterna discussão<br />
se a Terra movia ou não... Sim. Ela se move. Foi com pouquíssima<br />
ajuda que montou um verdadeiro espetáculo científico.<br />
Digno de figurar em quaisquer dos shows do Cirque de Soleil!<br />
Tisserand acrescentou. Tenho orgulho desse patrício! O já morto<br />
Galileu ser-lhe-ia profundamente grato. Não era um herege, um<br />
bruxo, o seu E Pur Si Muove,... Bem, não havia como a Igreja<br />
prosseguir dando murros em ponta de faca: o pior cego é o que<br />
não quer ver.<br />
Então, como vê, Tisserand prosseguiu, desde séculos passados<br />
podia-se gastar muito tempo, e de diversas formas, apreciando<br />
o Panteão francês e seus segredos. Portanto não é novidade<br />
que Jean, às vezes acompanhado por Martinho, passasse horas<br />
observando seus mistérios e refletindo sobre a grandeza das vidas<br />
dos homens que repousavam em suas catacumbas. A lembrança<br />
de Angéline ia se esvaziando lentamente dos seus pensamentos.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
II<br />
As razões dos temores de Colbert quanto a Jean e Angéline.<br />
O confessor Ribérry<br />
Desde a ocasião festiva em que estivera no castelo Bogenet, em<br />
abril de 1805, o médico Colbert não chegava a um acordo consigo<br />
mesmo sobre um possível futuro casamento entre sua Angéline<br />
e o filho do fidalgo <strong>Monlevade</strong>. Na ocasião, disfarçadamente,<br />
observou-os com cuidado. Inclusive, estão recordados, a<br />
distância do alto da torre de Bogenet. O moço fazia a filha sorrir.<br />
Era um bom sinal, mas achava que... Colbert, por tudo que ouvira<br />
sobre o jovem <strong>Monlevade</strong>, acreditava que em breve ele escaparia<br />
pelas estrelas. Com inteligência privilegiada, era decididamente<br />
um homem do mundo. Achava difícil, com todas as perspectivas e<br />
apostas que os habitantes da cidade faziam dele, que pudesse vir a<br />
sentar praça e simplesmente ser um pai de família que viesse para<br />
casa após expediente, cuidasse dos filhos e desse atenção à mulher.<br />
Angéline era delicada. As mulheres de sua família eram educadas<br />
para serem paparicadas. Algumas até mesmo tinham grave<br />
tendência à depressão. Choraria baixinho noite adentro até ceder<br />
abatida pelo cansaço. Não suportaria aguardar o marido em casa<br />
e, quando esse chegasse, fosse se dedicar a estudos e experiências<br />
queimando lamparinas ainda que os galos estivessem cantando o<br />
alvorecer. Conhecia a filha. Sofreria dor física tal como estivesse<br />
sendo picada nos cotovelos por enxame de abelhas.<br />
Era partidário das famílias modernas em que o pai ajudava<br />
a mulher a trocar panos molhados dos filhos, a jogar farinha<br />
de trigo em suas assaduras, a socorrê-los quando chorassem nas<br />
madrugadas. Em sã consciência não deveria ter qualquer tipo de<br />
restrição ao rapaz. Era moço limpo. Asseado. Instruído e filho de<br />
fidalgo. Sujeito de futuro. Tinha tudo para dar certo e ganhar com<br />
sobras para alimentar bem mulher e filhos.<br />
145
146 Jairo Martins de Souza<br />
Tais circunstâncias seriam suficientes para Angéline? Seria a<br />
paixão de menino amadurecida em amor de homem e pai de<br />
família. Hoje é fácil amá-la. Minha filha é linda e desejável. Mas,<br />
e quando estiver desgastada pelos anos e carregada de filhos que<br />
a família Dissandes de Bogenet era pródiga em gerar?<br />
Teria tempo disponível para relaxadamente tomar taças de<br />
vinho de qualidade com o sogro? A vontade de Colbert era acompanhar<br />
a filha e os, se Deus assim o desejasse, possíveis netos.<br />
Não fosse assim, provavelmente tornar-se-ia um velho solitário: o<br />
que lhe seria custoso, pois não tinha queda para vida de ermitão.<br />
Com todo esse peso no seu imaginário, quando muito angustiado,<br />
buscava consolo nas palavras de Mateus no seu dito evangelho da<br />
Igreja, não vos preocupeis com o amanhã, basta a cada dia o seu<br />
próprio mal. Conversara superficialmente com o abade Ribérry<br />
sobre o assunto. Não o fizera a título de segredo de confessionário.<br />
O abade tentou tranquilizá-lo, mas não deixou de dar-lhe razão<br />
quanto à índole expedicionária do rapaz. O desejo de pesquisar<br />
novas terras e seus minerais. Ambos lembraram-se do seu<br />
retorno de viagem ao país da bota, à Itália, que fizera com o pai.<br />
Platini e Fontaine diziam a todos os clientes do entusiasmo que<br />
havia gerado em Jean para conhecimento de outros novos mundos.<br />
Que pai seria esse para seus netos? Apesar das ponderações<br />
do abade Ribérry, o médico, à medida que a conversa avançava<br />
ia criando quimeras e barreiras absolutamente intransponíveis<br />
para os dois jovens. Fora pai que zelara tal como se uma mãe fosse,<br />
não apenas quando esteve sem o devido anteparo da mulher,<br />
mas porque realmente pensava que casamento e família deviam<br />
agregar todos aqueles valores e comportamento.<br />
É por isso que sua alma ficava intranquila quando pensava<br />
no assunto. A conversa com o abade não lhe trouxera consolo.<br />
Seguiria, por tempo que só Deus sabe quanto, com suas ansiedades.<br />
Pois outras havia. A que mais lhe incomodava, isso ele não<br />
citou a Ribérry, é que ainda não havia descartado a ideia de sair<br />
pelo mundo afora. O próprio pai de Jean, o fidalgo <strong>Monlevade</strong>,<br />
fora portador de proposta do governo português. Precisaria pensar<br />
mais sobre o assunto.<br />
Quanto aos jovens, com a partida de Jean para Paris, Colbert<br />
acreditou que a situação realmente se aclarara. Bem, ainda que<br />
o rapaz se mantivesse em Guéret, eles não namoravam de forma
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
oficial e, agora, com a distância... o rapaz formalmente não solicitara<br />
seu consentimento. Isso eventualmente o chateava. Para ele<br />
o fato era mais que um deslize, qualificava-o como uma verdadeira<br />
ousadia. Como se atrevia a tanto?<br />
A vida às vezes nos apresenta algumas vicissitudes que mal<br />
conhecemos, mas que podem se tornar algo fundamental para a<br />
felicidade de determinados períodos de nossa existência,Tisserand<br />
comentou.<br />
Pequenos mal-entendidos podem desaparecer com a simples<br />
menção, por um terceiro, de outra circunstância totalmente alheia<br />
aos fatos. Veja só o caso de Colbert e o jovem <strong>Monlevade</strong> que,<br />
agora, contava 18 anos completos. O médico era homem de caráter<br />
exemplar. O moço também. Por ausência da mera formalidade,<br />
da qual já dissemos, tinham relação totalmente envenenada<br />
pelos ciúmes e pela formação do mais velho. Bastava que se<br />
lembrasse do tal fato para Colbert tornar-se totalmente envolvido<br />
e angustiado com seu estado. No fundo sentia estar injustiçando<br />
o rapaz e sofria com a ingestão do seu próprio fel.<br />
O jovem tinha o futuro sogro em alta conta. Respeitava-o.<br />
Não sabia ser causador do desatino. A situação pedia a presença<br />
de um mediador: foi o que incidentalmente aconteceu!<br />
Pois dias antes de partir para Paris, Jean foi à igreja, fora dos<br />
horários de presença maciça de público, e pediu ao abade Ribérry<br />
tempo especial para atendê-lo no confessionário. Ribérry titubeou.<br />
Pensou pedir que o jovem voltasse outro dia, mas acabou<br />
cedendo ao olhar suplicante do amigo do seu protegido Martinho.<br />
O padre Chirac, titular da igreja, estava em viagem especial a<br />
Roma e Ribérry cobria-lhe temporariamente as funções eclesiásticas.<br />
Andava exausto, dormia pouco, mas encarava o fato como<br />
mais uma missão de rotina. Eram muitos os órfãos e famílias necessitadas<br />
espalhados pela região, enfim, enquanto descansava,<br />
carregava pedras!<br />
Então o abade pediu-lhe para aguardar alguns minutos, pois<br />
tinha recebido aviso de visita urgente na Sacristia. Poderia ser<br />
caso de vida ou morte. Ia atendê-lo logo após. Enquanto aguardava,<br />
Jean sentou-se em banco da igreja, próximo ao altar e logo<br />
caiu absorto em pensamentos. Não. Não meditava sobre o assunto<br />
que o trouxera até Ribérry e do qual ficaremos cientes em<br />
segundos. Cada coisa a tempo certo.<br />
147
148 Jairo Martins de Souza<br />
Pois foi mirando o lado interno do domo da igreja que deu<br />
asas à imaginação quanto às dificuldades que provavelmente os<br />
construtores tiveram para fechar com sucesso o seu arredondado.<br />
Os andaimes devem ter sido compostos de intrincada floresta<br />
de paus. No acabamento final do fechamento da calota esférica<br />
da abóbada os pedreiros devem ter trabalhado absolutamente<br />
deitados. Quantos não devem ter se despencado daqueles 60<br />
metros de altura? Quase a da pirâmide de Teotihuacán, que vira<br />
furtivamente explicada em livro de heresias do acervo de Ribérry!<br />
Novamente desenhos de estruturas de ferros para os andaimes<br />
vieram-lhe à cabeça. Ferros com perfis diferentes. Finos, mas com<br />
encaixes e montagens físicas que lhes dessem resistência equivalente<br />
a peças mais grossas.<br />
<strong>Monlevade</strong> respirava o desconhecido. Respostas brotavam<br />
em sua cabeça como manada de bois tocada por disparo de mosquete<br />
graúdo! Mas não estava absorto o suficiente para deixar<br />
de perceber que o pai de Angéline havia rapidamente saído por<br />
porta lateral da sacristia em direção ao adro. Vestia capote largo e<br />
foi seu ato de ajuste de colocação do chapéu que propiciou visão<br />
privilegiada do perfil do seu rosto. Parecia preocupado. A luz que<br />
entrava inclinada por um dos belos vitrais de alabastro instalado<br />
na parede lateral da igreja ajudou Jean a distinguir tal pormenor.<br />
Estranho... Ele é o motivo de minha conversa com o abade...<br />
Foram para o confessionário. Afora uma ou outra interjeição<br />
que visava encorajar o andamento do relato, o abade ouviu silenciosamente<br />
toda a exposição do rapaz. Jean disse-lhe de todos os seus<br />
sonhos, a maior parte deles o abade já sabia ou deduzira, mas o ponto<br />
chave se relacionava com seus projetos pessoais com Angéline.<br />
Não pedira licença nem ao seu pai, o fidalgo <strong>Monlevade</strong>;<br />
nem a Colbert, o pai da moça. Admitia que, para qualquer pretensão<br />
que tivesse quanto a namoro, ser-lhe-ia vital a aceitação de<br />
ambos. A razão de sua angústia era simples. Não se sentia ainda<br />
preparado para tal diálogo. O que tinha a ofertar além de sonhos?<br />
É claro que seria herdeiro de várias propriedades, o pai era um<br />
rico fidalgo... mas isso para ele não era relevante. Construir o futuro<br />
com suas próprias mãos e méritos era algo capital em seus<br />
propósitos de vida.<br />
Quantas vezes hesitara em conversar com o fidalgo a respeito!<br />
Quantas outras estivera nas redondezas da casa de Colbert,
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
vacilando se batia à sua porta para conversa frente a frente... Que<br />
promessas iria fazer? E se o médico lhe perguntasse tal como acontecera<br />
com filho de outro fidalgo? O que você faria, meu jovem,<br />
caso estivesse com minha filha, e ambos fossem abordados por<br />
um homicida que portasse um punhal? Daria a vida por ela ou<br />
gritaria por socorro a um policial que estivesse nas proximidades?<br />
O rapaz respondera que chamaria a polícia, pois julgava mais<br />
competente para intervir na situação. O pai da moça calmamente<br />
solicitou-lhe sair de sua casa. Jamais permitiria que um covarde<br />
se casasse com a filha. Melhor ficasse para sempre sob guarda dos<br />
irmãos e da família e que, por ela, seguramente, dariam a vida.<br />
Jean de <strong>Monlevade</strong> fora ensinado a cumprir sempre sua palavra.<br />
Não poderia assumir compromisso de data firme. Inadiável.<br />
A agenda que lhe era possível dizer, com prazo fixo de encerramento,<br />
era a da Politécnica. Depois disso tudo seria imprevisível.<br />
E o desejo de aplicar o que iria aprender em terras distantes?<br />
Isso fazia parte dos seus planos desde a infância enquanto ouvia<br />
as histórias de Platini, ou viajava nas gravuras dos livros do fidalgo.<br />
A Politécnica é de caráter às vezes assustadoramente militar<br />
e talvez não fosse a ideal para quem quer sossego e carinho da<br />
família. Nunca se sabe que campanhas e ideias mais passam pela<br />
cabeça de Napoleão. Ah, e a lembrança das insistentes recomendações<br />
de Platini. Viajar é a ruína da felicidade, Jean. Não é que<br />
não fizesse tudo de novo desde o começo, mas foi causa principal<br />
de ter perdido mulher e família. E, confesso, algumas tardes custame<br />
ficar aqui vendendo linguiças e pesos de mercadorias.<br />
O quadro era diferente, mas Jean percebia que, caso não se<br />
cuidasse, poderia viver de forma inarredável a mesma sensação.<br />
Era inquieto. Como Platini. Mas julgava amar a moça! E é com<br />
ela que teria gosto em constituir futura família.<br />
É por todo esse conjunto de dúvidas, afirmações e divagações<br />
que podemos voltar ao confessionário da igreja do padre<br />
Ribérry. Ele havia atendido ao fiel que, em especial, o convocara<br />
na sacristia, e Jean já estava terminando exposição de suas angústias.<br />
Padre, estou confuso! O que me dizes para fazer, enfim,<br />
para aclarar minhas ideias e achar caminho seguro para solução<br />
dos meus conflitos?<br />
Meu filho, Ribérry apressadamente disse-lhe, enquanto se levantava.<br />
Por favor, aguarde um minuto. Vou refletir o que dizer-<br />
149
150 Jairo Martins de Souza<br />
lhe, enquanto alivio a bexiga e o ventre na privada da sacristia.<br />
Não demoro... E não demorou.<br />
A simples sensação de desafogo progressivo magicamente<br />
fizera-lhe ter tempo suficiente para retrucar o que lhe confidenciara<br />
o rapaz. Como também divagar sobre outras coisas que o<br />
atormentavam ultimamente. Repreendera-se porque, a princípio,<br />
estivera um tanto quanto impaciente e quisera despachar logo<br />
o rapazinho <strong>Monlevade</strong>. Também ultimamente andava sobrecarregado<br />
com múltiplas funções. Descobrira por meio de algumas<br />
fiéis que o padre a quem estava substituindo, e a quem muito<br />
apreciava, andara saindo dos trilhos. Cedera aos apelos de instâncias<br />
da carne com uma das paroquianas cujo marido era um<br />
lavrador dado ao álcool e a brigas. E a Revolução que prossegue?<br />
Preferia que as coisas reinassem tranquilas... como antes. A fome e<br />
as carências emocionais e de dinheiro sempre existiram e continuarão<br />
existindo. Cabe aos religiosos a tarefa de amenizá-las e levar<br />
consolo às almas que delas padecem. Nem que seja para ser apedrejado<br />
depois. Não é isto que a prática mostra? Ah, caro amigo,<br />
se quer arranjar um inimigo, ajuda alguém! Bem, decerto há casos<br />
que nem é preciso que o socorro tenha ocorrido. Ele próprio tinha<br />
experiência disso dentro do seu próprio rebanho.<br />
E a relatara a Colbert em entrevista que encerrara faz pouco.<br />
O senhor, mon ami, não estará perdendo tempo em ouvi-la...<br />
Não me disse o caseiro Materazzi que um dos seus sobrinhos<br />
me odeia e que, inclusive, tem divulgado que tenho até mesmo<br />
partes com o demônio? Na ocasião fiquei surpreendido! E retruquei-lhe<br />
veementemente dizendo não entender tal sentimento de<br />
animosidade. Aí foi ele que se mostrou surpreso, e perguntou-me<br />
o porquê da força da minha reação. Lembrou-me ser a ingratidão<br />
sentimento comum entre os seus. Foi daí que, já mais calmo, caro<br />
Colbert, expliquei-lhe não ter sido isso que havia motivado a virulência<br />
de minha resposta. Minha indignação, disse-lhe, podia ser<br />
estranhamente creditada ao fato de nunca ter prestado qualquer<br />
tipo de amparo ao seu tal sobrinho. Nunca o rapaz havia repousado<br />
sob o calor das minhas cobertas. Nem secado seu corpo com<br />
minhas toalhas, ou se deliciado com os sabores do meu fogão,<br />
ou da minha adega, enfim, nem ele, nem quaisquer dos seus familiares<br />
(exceto o próprio Materazzi) e amigos sequer passaram<br />
próximos ou desfrutaram do amor do orfanato que dirijo!
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Materazzi, a princípio, ouviu-me intrigado. E, passada fração<br />
de segundos, riu gostosamente! E disse-me que, de sua parte, eu<br />
nunca ouviria palavras tão irresponsáveis como as do parente.<br />
Ser-me-ia sempre grato por ter ajudado a si e a seus dependentes.<br />
Jamais sujaria o prato em que estava comendo!<br />
Bem, confesso, doutor Colbert, além deste raro ato de dignidade<br />
do aborrecido Materazzi, há outras belas exceções! Há casos<br />
em que a gratidão genuína prevalece com muito mais intensidade.<br />
Estrelas que brilham solitariamente em noites escuras.<br />
Veja só o que acontece com o garoto Martinho. Mesmo que<br />
na realidade tenha feito muito pouco por ele, o rapazinho não<br />
se cansa de espalhar sua gratidão aos quatro ventos. Muito mais<br />
ainda quando diz do fidalgo Jean-François, bem, ele faz por merecer<br />
e está praticamente pronto para rumar com destino a Paris.<br />
Lá a injustiça tem andado a solta. Mas não nos ensinou Göethe<br />
que os erros do Estado são menos prejudiciais aos homens que a<br />
desordem nas ruas?<br />
E foi aí que se lembrou que, faz pouco, o médico Colbert fê-lo<br />
ficar angustiado a troco de problemas diretamente envolvidos com<br />
o moço que o aguardava. Ninharias. O moço não bebe. Não fuma.<br />
É católico... a mágica estaria no encaminhamento adequado da<br />
solução. O rapaz disse-lhe repetidamente, padre, tenho dúvidas...<br />
Neste ponto, Tisserand disse, o abade lembrou-se que até<br />
mesmo Judas fora condescendente nesses casos, e dissera em<br />
sua palavra ‘apiedai-vos dos que têm dúvidas’. Deveria ser duro<br />
com <strong>Monlevade</strong>, chamando-o energicamente à responsabilidade<br />
quanto aos danos futuros que poderia causar à filha de Colbert?<br />
Sim, Jean disse em voz baixa, aprofundando ligeiramente os<br />
lábios entremeio à janelinha feita com treliças de madeira que<br />
separavam o seu rosto da presença do abade. O abade havia lhe<br />
perguntado se estava preparado para prosseguir. Um tanto quanto<br />
intrigado, Jean de <strong>Monlevade</strong> observou que o confessor não<br />
mais o via de frente, pois havia se posicionado de tal forma que<br />
seu ouvido direito captasse diretamente a sua fala.<br />
Foi nessa posição que Ribérry reiniciou o sacramento de<br />
forma um tanto inusitada para o rapaz. Disse-lhe que Deus era<br />
único. É tão único que para reinar não precisa existir. É a única<br />
certeza que o cristão deve ter: o resto é o resto. Você, Jean, como<br />
cristão, e com sua juventude, tem não somente o dever como<br />
151
152 Jairo Martins de Souza<br />
também o direito de sentir tudo e todas as dúvidas que relatou<br />
neste confessionário. Todas elas são pertinentes, mas não devem<br />
dar bases a sofrimento. O ponto é que se não tem certeza em<br />
priorizar a vida caseira, domiciliar, com apoio vinte e quatro horas<br />
por dia à sua futura esposa, não vá conversar com Colbert. Ele<br />
gosta de você. Admira-o. Mas arrisco-me a dizer que não seria<br />
pior que você arreasse um bom cavalo e fugisse levando a moça<br />
na garupa. Colbert sabe de todos os seus predicados, mas é radical<br />
naquele ponto. Foi o que me disse há pouco. Não me sinto mal<br />
em confidenciar-lhe isso, pois me foi dito fora do confessionário.<br />
Ele me procurou pelas mesmas razões que você veio até minha<br />
presença. Está temendo que algo se precipite, tendo em conta sua<br />
mudança próxima para Paris.<br />
Resumindo, disse-me que mesmo ciente de que a filha firmasse<br />
compromisso, e conhecendo suas possíveis características<br />
futuras como marido, ele não abençoaria a união.<br />
Pense nisto! O casamento não abençoado pelos pais é fadado<br />
ao insucesso. Reflita devagar e faça sua opção. Depois de fazê-la,<br />
qualquer que seja ela, tudo ficará mais tranquilo.<br />
Foi quando Ribérry cometeu falha grave de avaliação. O abade<br />
nem mais se lembrava da primeira vez em que ingerira água<br />
seca, o salitre, misturado em sua dieta. Anos depois ele mesmo<br />
andara injetando nitrato de potássio em salame servido aos noviços.<br />
Esquecera-se da força da juventude, mesmo que refreada,<br />
em jovens polidos e de boa saúde como Jean. <strong>Monlevade</strong> tinha<br />
dezoito anos e, esquecidos tantos outros interesses, transpirava<br />
hormônios e fluidos que, conduzidos por sonhos, eram expulsos<br />
clandestinamente nas madrugadas do castelo!<br />
Não há razão para duvidar que tenha sido esse o grande dilema<br />
que tomou conta do seu íntimo. O abade, mesmo que sem<br />
pressioná-lo, pedira-lhe decidir... Foi difícil, mas...<br />
Decidira não decidir. Iria dar tempo ao tempo. Ainda que não tivesse<br />
qualquer tipo de contato físico com Angéline, não suportaria a<br />
impossibilidade de não vir a acontecer. Ou vê-la casar-se com outro.<br />
A princípio ficara um pouco contrariado. Com tal atitude estava<br />
indo contra velho ditado que lhe ensinara o fidalgo Jean-<br />
François, se não vais ocupar a moita, deixa que por lá outro tome<br />
assento!<br />
Perturbou-se por poucos dias. Não é a juventude época de<br />
embriaguez sem necessidade de beber goles de vinho?<br />
Foi nessas condições amorosas que vamos encontrá-lo nas<br />
redondezas da casa da família Pius.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
III<br />
Jean e Martinho vão ao Louvre. A casa de Lucillia e<br />
Septimus Pius<br />
Por insistência do próprio Jean, a viagem para Paris fora feita desacompanhada.<br />
Era forma que encontrou para se acostumar com<br />
ideia que brotava em seu interior, pois, instintivamente, sabia que<br />
jamais voltaria a morar em <strong>Monlevade</strong>. Lágrimas furtivas brotaramlhe<br />
dos olhos quando se despedira da mãe na porta de saída. Maria<br />
Vitória, após abraçá-lo, manteve-se a distância. Parecia chorosa. Já<br />
o fidalgo não se preocupou, o filho tinha mesmo que iniciar nova<br />
vida, ele estava extremamente assoberbado de incumbências e, afinal<br />
de contas, era viagem direta sem troca de cavalos ou parada<br />
para pouso em estalagem. Breu, excitado, latia ininterruptamente,<br />
parecia saber que também iria conhecer novas paisagens.<br />
O Casal Pius gostava de animais e deixara que o cão fosse<br />
incluído no pacote de hospedagem. A casa tinha terreiro central<br />
e, bem, o transporte fora contratado ida e volta. Os pais não precisariam<br />
aguardar carta de boa chegada dos rapazes. Homem de<br />
préstimos, o próprio carroceiro combinara informá-los sobre andamento<br />
da viagem em seu retorno. Ficaria em Paris o suficiente<br />
para carregar mercadorias encomendadas por Platini a seus fornecedores<br />
parisienses. Não voltaria vazio de carga!<br />
Fazia algumas horas que estavam em Paris. Paris. De longe<br />
Jean <strong>Monlevade</strong> admirou os quatro imponentes cavalos de bronze<br />
que soubera faltantes na Basílica de São Marcos. Finalmente<br />
estava no Museu Napoleão. O Louvre! Não vivemos de comparações?<br />
Por minutos, e ao mesmo tempo em que admiravam a<br />
famosa obra de arte, ele e Martinho conversaram sobre o quanto<br />
haviam crescido na agitada turnê italiana que haviam feito com<br />
o fidalgo. Para este, fora longa viagem de negócios. Para eles,<br />
lazer e cultura. O tempo voa. Quase três anos eram passados!<br />
153
154 Jairo Martins de Souza<br />
E lembraram-se que, no retorno, Platini dissera-lhes que, afora<br />
altura diferente do Sol com relação à linha do horizonte e uma ou<br />
outra estrela que lhe confere identidade especial, o céu parece ser<br />
igual em todos os mares que navegara. Mas não sair de casa é ler<br />
um só livro, disse, e a vista de cenários e sons de outras línguas e<br />
terras desperta sensações absolutamente desconhecidas. Um tanto<br />
à custa disso que, naquele mesmo dia, Jean havia falado, talvez<br />
excessivamente, sobre a sensacional experiência italiana, comentando<br />
o quanto havia ficado encantado com a construção e com<br />
os mosaicos dourados da famosa catedral de Veneza. Quarenta<br />
mil pedacinhos por metro quadrado. Não é por nada que ficara<br />
conhecida como a igreja de ouro! O Palácio dos Doges, situado ao<br />
lado, fica humilde perante tanta riqueza. Mas nunca ninguém fica<br />
totalmente satisfeito e, após viagens, é comum as pessoas lembrarem-se<br />
mais das coisas que deixaram de ver do que as que viram,<br />
bem, e é frequente que amigos lhe digam de forma risonha: você<br />
tem que voltar àquela atração, pois deixou de ver o melhor. É por<br />
isso que Jean disse que não precisou anotar em seu diário de viagem<br />
que tinha ficado um pouco frustrado na ocasião, e contava os<br />
dias para ver os famosos cavalos turcos de Constantino.<br />
Como vimos faz pouco, Tisserand disse, ele havia finalmente<br />
saciado seu desejo. E finalizara também explicação a Martinho<br />
tentando justificar o motivo de Napoleão os ter confiscado durante<br />
a campanha de ocupação da Itália.<br />
Foi a razão, Tisserand concluiu, de ambos não os terem visto<br />
em São Marcos!<br />
E ainda comentando sobre a beleza das tais esculturas é que<br />
acabaram de cruzar o Parque das Tulherias: já estavam junto ao<br />
Arco do Carrossel. De frente, o belíssimo pátio do Palácio. Ao<br />
lado, o Sena viajava tranquilo para o Canal da Mancha e, em<br />
poucos minutos, conheceriam a celebrada Mona Lisa. Pena que<br />
estivessem pouco expostas as relíquias que o exército havia trazido<br />
durante a invasão aos monumentos egípcios.<br />
Temos somente duas horas para visitar tudo e todos os setores<br />
do museu, foi o que Jean disse para Martinho. É muito pouco<br />
tempo e ele abre justo aos sábados e domingos. O imperador<br />
andou restringindo os horários de entrada de visitantes. Interessame,<br />
em primeiro lugar, ver o Escravo Morrendo, de Michelangelo.<br />
Foi feita em pedra de mármore especial trazida de...
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Foi neste ponto que Tisserrand interrompeu a visita ao museu,<br />
esclarecendo que os primeiros dias dos rapazes, em Paris,<br />
não podiam ter sido de outra forma. Visitas. Visitas. Fica cansativo<br />
falar em detalhes sobre elas.<br />
E achava melhor prosseguir sua conversa, lembrando a si<br />
mesmo que estava em falta com sua história. Não dissera nada<br />
sobre os primeiros momentos de Jean de <strong>Monlevade</strong> em Paris. E<br />
pouquíssimo sobre a chegada à casa dos Pius. A razão era simples:<br />
não tinha praticamente nada a reportar. Pois mal a carroça<br />
chegara, o Breu não havia esperado convocação e pulou rapidamente<br />
para o quintal em busca de pedras e reconhecimento do<br />
terreno. Os donos da casa riram de sua atitude, e reforçaram que<br />
seu lugar definitivamente deveria ser o terreiro. Não temos gatos<br />
e nunca adotamos qualquer bicho de estimação, portanto, nada<br />
do Breu circular pelos aposentos da casa. Há uma neurose geral<br />
da saúde pública quanto a cachorros que babam, qualquer um<br />
desses é suspeito de raiva, assim como a outras doenças espalhadas<br />
por animais.<br />
E não demorou minutos para que se sentissem à vontade na<br />
nova casa. Os Pius eram firmes, porém solícitos e disponíveis. Os<br />
dois pisos da casa deveriam ser mantidos limpos e asseados com<br />
a contribuição de todos os moradores. Parte do piso inferior que<br />
dava para a rua tinha três grandes portas duplas e era alugado<br />
para monsieur Bènèdict Dubois. Monsieur Dubois é livreiro de<br />
renome que gosta de negociar com obras antigas. Seu estabelecimento,<br />
Septimus Pius informou, fica fechado nos finais de semana.<br />
Jean mal poderia esperar até a chegada da segunda-feira!<br />
O casal Pius, sabemos, morava sozinho. Os dois filhos homens<br />
que lhes restavam vivos acompanhavam as andanças das<br />
forças de Napoleão. Um era médico. O outro era intendente de<br />
materiais a serviço permanente no estrangeiro. A filha casara-se<br />
com oficial da marinha e seguira com o marido para Lyon. Ambos<br />
eram professores sob contrato com órgão ligado a setor revolucionário<br />
da educação.<br />
A cozinha da casa é ampla e as achas de lenha do fogão<br />
devem ser mantidas secas para uso imediato, foi o que Lucillia<br />
recomendou para Martinho. Bem, a mulher de Septimus era ligeira,<br />
pois, praticamente ao mesmo tempo, voltou-se para Jean<br />
e disse-lhe que a varrição aqui é diária. E, num átimo, dirigiu-se<br />
155
156 Jairo Martins de Souza<br />
a ambos, e explicou que em sua casa não se permitia comer à<br />
capitão, ou seja, com as mãos. Usamos somente colheres e facas,<br />
avisou. A secagem de panelas e pratos deve ser feita aproveitando<br />
o sol que, na parte da tarde, projeta seus raios pelas janelas<br />
desse ambiente em que estamos. Depois tais utensílios devem ser<br />
pendurados nestes ganchos que estou lhes indicando. No inverno<br />
são secos aproveitando o próprio calor do fogão enquanto a<br />
fumaça defuma as carnes e linguiças. A lareira pode ser acesa<br />
sempre quando necessário. Cada um deve lavar suas próprias<br />
ceroulas e calções... o sabão para os dentes e banho fica ao lado<br />
de bacia no próprio quarto. Quando não aquecida por tubos que<br />
passam dentro do fogão, a água deve ser esquentada somente<br />
naquele tacho de cobre maior, foi o que disse elevando abruptamente<br />
a altura de sua voz e apontando para enorme panela<br />
encostada em canto de parede. Com o menor faço doces. De<br />
repente abaixou a voz como se estivesse envergonhada e fosse<br />
pedir algo muito íntimo (o que foi confirmado logo a seguir), pois<br />
prosseguiu dizendo que só se pode defecar nos penicos. Somente<br />
nos penicos. Cada um deve usar o seu próprio, e a sujeira não<br />
podia ser jogada na rua.<br />
Bem, dona Lucillia concluiu sorrindo, não creio que essas incumbências<br />
possam vir a atrapalhar estudos. Ao seu lado, Septimus<br />
acrescentou que caso faltasse óleo de baleia para as lamparinas,<br />
poderia ser comprado na mercearia de monsieur Lumière<br />
que ficava três casas à direita. O uso deveria ser feito com parcimônia,<br />
alertou.<br />
Toda a conversa aconteceu após recebimento das chaves da<br />
casa pelos novos moradores, e, como não poderia deixar de ser,<br />
depois de breve apresentação formal. Ao término das orientações,<br />
os rapazes colocaram os baús nos quartos e seguiram entusiasmados<br />
para conhecer as famosas redondezas do Quartier Latin.<br />
Septimus e Lucillia não se importaram. Os estudantes foram<br />
muito bem recomendados e eles estavam de saída para a feira.<br />
Entenderam bem a ansiedade dos recém-chegados.<br />
Poucos minutos mais tarde os moços estavam, além de felizes,<br />
absolutamente aliviados. Na Itália haviam-lhes dito que não<br />
se justificava olhar nenhum edifício por aqui, após ter visto a beleza<br />
das obras dos arquitetos italianos. Não era bem assim. Os<br />
franceses podiam se orgulhar de suas construções! Vive la France!
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Ao voltar mais tarde, verificaram que mais recomendações<br />
haviam sido deixadas em papel fixado em painel de madeira colocado<br />
na parede de um dos corredores.<br />
Jean sorriu quando as leu. Mencionava também algo mais<br />
sobre comportamento a ser exigido do Breu. E, após alguns minutos,<br />
foi com sentimento contraditório que se lembrou que não<br />
mais tocaria tambor na banda da cidade em datas festivas. Nem<br />
mais expulsaria lobos que rondavam galinhas espalhadas pelo<br />
terreiro. O trombone de Martinho também deixaria de ser ouvido.<br />
No entanto, de modo geral, a rotina entre quatro paredes não<br />
seria tão diferente da que ambos estavam habituados a seguir no<br />
castelo.<br />
De certa forma, madame Lucillia lembrou-lhe a mãe, Felicité.<br />
À noite, antes de dormir, pediu especialmente por ela em suas<br />
orações.<br />
157
158 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
IV<br />
O reencontro com Kostas Zavoudakis<br />
Tisserand era incansável! Dado momento disse ser a tartaruga de<br />
Zenão que se movimenta lentamente, mas está sempre adiantada<br />
ao veloz Aquiles. Eu confirmei a ele que estava tudo ótimo. Que<br />
o ritmo estava adequado, o assunto continuava me interessando,<br />
e absolutamente não me sentia sobrecarregado. Fosse o caso de,<br />
por qualquer motivo, me sentir incomodado, dir-lhe-ia!<br />
Muito bem, retrucou. Parecia aliviado. Mas prosseguiu com<br />
sua história estranhamente dizendo que nos dias de hoje não é<br />
surpreendente que um brasileiro se encontre acidentalmente com<br />
parente próximo no Arco do Triunfo. Entre amigos é muito frequente.<br />
Entre pessoas de mesma cidade mais ainda. Vai-se em<br />
poucas horas do Rio a Paris.<br />
Nos início dos 800, pouco se viajava. Afora um ou outro cidadão<br />
que, sabe-se lá o porquê, crescia sedento por aventuras,<br />
as pessoas nasciam e criavam família sem nunca por os pés fora<br />
do seu vilarejo. Não incluo aqui recrutamentos para guerras em<br />
países estrangeiros, ou fuga por escassez de comida. Eram muitos<br />
os que morriam sem conhecer o palácio do seu rei ou a capital<br />
do seu país.<br />
A bem da verdade, as condições de miséria e saneamento<br />
eram praticamente iguais entre os pequenos vilarejos e os centros<br />
de riqueza. O que fazia a diferença era a cultura, as obras arquitetônicas<br />
e a arte. Em Paris, com mais intensidade ainda. A cidade<br />
de Paris é, sempre foi, por excelência, uma capital cosmopolita,<br />
polo de atração de pensadores, artistas, inovações e grandes mudanças.<br />
Para boa fortuna de Jean, esse predicado contribuiu para<br />
consolidar a fortaleza do seu caráter, pois fez com que muitos dos<br />
avanços sociais que ocorreram naqueles dias acontecessem muito<br />
próximos a ele.<br />
159
160 Jairo Martins de Souza<br />
Para tanto, entre outros privilégios, bastava-lhe alguns poucos<br />
passos de caminhada para chegar ao agradável ambiente da<br />
livraria de monsieur Dubois. E, do lado de fora, a história do<br />
período napoleônico era feita nas ruas, monastérios, repartições<br />
públicas e escolas do Quartier Latin. Nas suas esquinas e praças<br />
discutia-se de tudo. Naqueles dias os jovens discutiam a arte, a<br />
ciência e filosofia com ardor. Dava-se a vida por essa ou aquela<br />
ideia. Viver é sofrer? A contemplação da arte anestesia os efeitos<br />
da dor de existir, conduzindo ao domínio da vontade pelas pessoas?<br />
Perguntas eternas. Os jovens vazavam noites e madrugadas<br />
esgotados menos pelo vinho do que pela força de suas convicções.<br />
São questões antigas, Tisserand comentou e, após breve meditação,<br />
disse-me não ser atitude adequada assumir sem cuidadosa<br />
análise crítica as ideias daqueles tempos. Mas concordava que<br />
a novela de tevê atual tem a resposta para a última pergunta que<br />
havia colocado na mesa. A da admiração pelas Artes. Mas concordava<br />
com a ideia de Schopenhauer de a música ser a primeira<br />
delas. Além de não ter referência material e libertar por instantes<br />
o homem, obviamente a dança, a pintura, a escultura, a literatura,<br />
etc. são refinamentos que vieram depois.<br />
Bem, mas não foi exatamente por isso que Jean não se espantou<br />
ao escutar alguém conversar animadamente em grego enquanto<br />
caminhava pela Saint Jacques. Era fato comum nas imediações.<br />
A quantidade de professores e estudantes que falavam<br />
línguas estrangeiras na Sorbonne, no Colégio da França e outras<br />
instituições era total. Ouvia-se latim e grego por todos os seus<br />
cantos. Portanto não era de surpreender que fosse razão única da<br />
área se chamar Quartier Latin, quarteirão latino.<br />
O detalhe é que a voz lhe soava familiar. Estava próximo de<br />
casa e havia saído a pedido de Lucillia para buscar barras de sal e<br />
açúcar preto no armazém de monsieur Lumière. Tanto ele quanto<br />
Martinho haviam sido apresentados ao comerciante e bastavalhe<br />
assinar o lançamento de retirada da mercadoria em pequena<br />
caderneta destinada ao casal Pius.<br />
O homem versado em grego estava de costas e seu interlocutor<br />
era monsieur Dubois, o dono da livraria. Dubois era poliglota<br />
e o assunto era o de negociações diplomáticas sobre pedido de<br />
retorno, feito por outros governos, considerando-se obras de arte<br />
que Napoleão trouxera em seus avanços pelo mundo afora. O
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
diálogo aparentava ser mais entre dois amigos do que cliente e<br />
vendedor. <strong>Monlevade</strong> aproximou-se.<br />
Kostas Zavoudakis era baixo e atarracado. Tinha braços e<br />
pernas curtas e tratava todos os assuntos como se fosse o dono do<br />
mundo. Mas quando dizia algo ofensivo ou que julgasse de mau<br />
gosto, no final da sentença, talvez por cautela ou respeito, abaixava<br />
paulatinamente o tom de voz. Fazia parte do seu modo de ser.<br />
Não podia ser outro. Fazia alguns meses que não o via. O<br />
grego saíra de Guéret às pressas e não se despedira dos amigos.<br />
Jean aguardou-o, enquanto se recordava das aulas de latim que<br />
tivera com aquele rapaz que ali conversava animado, e quão úteis<br />
seriam para o futuro quando estivesse estudando matérias de filosofia<br />
antiga na Politécnica. A despeito da boa base dada por<br />
Duchamps, o grego ia bem mais fundo nas matérias. O que de<br />
fato mais uma vez estava sendo comprovado, pois a conversa<br />
da dupla que Jean observava rendeu tempo, só terminando alguns<br />
minutos depois quando ambos, já no interior do comércio<br />
de Dubois, passaram a folhear alguns livros a respeito de direito<br />
internacional. Jean entrou na livraria.<br />
Dubois saudou-o efusivamente. Explico dentro de segundos<br />
tal entusiasmo, Tisserand justificou, e, com isso, peço-lhe também<br />
aguardar por outros tantos o reencontro que anunciei, faz pouco,<br />
entre Jean <strong>Monlevade</strong> e Kostas Zavoudakis.<br />
Pois ainda que houvesse muitos estudantes pela região que<br />
careciam de trabalho para reforçar mesada, Tisserand prosseguiu,<br />
a carência de bons caixeiros no Quartier Latin era patente. Os<br />
clientes eram tratados como se fossem velhos inimigos. Não acontecia<br />
diferente no estabelecimento de Bènèdict Dubois. Tinha<br />
para ajudá-lo somente um aprendiz que pouco se interessava pelo<br />
serviço. Gostava de ler algumas partes do acervo, mas o serviço<br />
de balcão definitivamente não fazia parte do seu métier.<br />
É nesse vácuo que Jean havia entrado e facilmente sido aceito<br />
no fechado círculo de amizades de Dubois. Com poucos dias<br />
de conhecimento o rapaz inclusive o ajudara a realizar vendas<br />
a fregueses indecisos. A educação refinada dava-lhe condições<br />
tanto de vender cereais e tecidos no armazém de Platini, quanto<br />
livros épicos de prosa, poesia, e os recém-lançados romances<br />
do estoque do amigo livreiro. Numa delas, o jovem curiosamente<br />
pesquisava algumas obras quando uma senhora e a filha educa-<br />
161
162 Jairo Martins de Souza<br />
damente bateram com os dedos na porta interna de vidro. Não as<br />
conhecia. Jean acenou-lhes, entrem, a loja está aberta, empurrem a<br />
porta... Ato contínuo, reparou que Kostas fora deixado de lado por<br />
Dubois, e que este pedia-lhe que o aguardasse enquanto iria buscar<br />
outra obra para subsidiar ponto de vista que estava defendendo.<br />
A moça que acabara de entrar no ambiente tinha algo familiar<br />
a Jean. Custou-lhe apenas poucos segundos para descobrir o<br />
que havia lhe causado tal sensação... ela tinha o jeito de caminhar<br />
de Maria Vitória! E, já dentro da loja, punha-se a pesquisar por<br />
conta própria as prateleiras atulhadas de livros. Dubois era organizado<br />
e a identificação dos assuntos em seu estoque facilitava<br />
sobremaneira a busca dos seus clientes. Gostava de acentuar que<br />
sua prática era a de fazer com que se sentissem em casa. E para<br />
que não fossem incomodados com perda de tempo, quanto aos<br />
preços, costumava até mesmo deixá-los marcados em suas capas.<br />
Percebendo a demora do livreiro que ainda dedicava atenção<br />
ao primeiro cliente, Jean acercou-se das freguesas e perguntoulhes<br />
se poderia ajudar na seleção de alguma obra. Notara que<br />
estavam hesitantes. Elas disseram que sim. Estavam habituadas a<br />
comprar lãs, tecidos, vestidos e aviamentos. Não livros.<br />
Bènèdict Dubois compreendeu sua atitude e assentiu, baixando<br />
educadamente a cabeça, enquanto dirigia olhar por cima<br />
dos ombros do cavalheiro a quem atendia.<br />
Jean indagou-lhes e soube que as freguesas buscavam livro<br />
que deveria ser adequado para leitura de moça de família. Então<br />
pediu-lhes licença e dentro de poucos minutos voltou com exemplar<br />
de Orgueil et Préjugés de autoria da inglesa Jane Austen. É<br />
leitura feita sob medida para mulheres de todo o mundo, foi o<br />
que lhes disse com firmeza. Não era livro novo. E exemplar único<br />
nesta loja, explicou, pois Austen não encontrara editora que o<br />
aceitasse quando fizera seu lançamento há dez anos, enfim, livro<br />
de qualidade que custava barato. Casamento, propriedade e intrigas<br />
constituíam a sua trama... Convenceu-as.<br />
Bem, passa da hora de voltar a Kostas Zavoudakis que, não<br />
se dando por vencido, buscava também mais recursos para retomar<br />
o polêmico assunto que iniciara com o ocupado Bènèdict. O<br />
grego tinha dois ou três livros abertos à sua frente e não reparara<br />
a aproximação de <strong>Monlevade</strong> que, com sorriso nos lábios, cutucou-lhe<br />
as costas com os dedos para que o amigo virasse o corpo
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
e o rosto. Kostas, absorto em sua leitura, reagiu como se estivesse<br />
sendo assaltado, mas logo em seguida abriu largo sorriso.<br />
Foi grande e absolutamente sincera a satisfação do reencontro.<br />
Disseram saudações em grego e latim, há meses não nos vemos,<br />
e depois se retiraram para a calçada da rua para não perturbar<br />
o silêncio que deve predominar em ambiente de leitura. Antes<br />
disso, rapidamente, disseram a Bènèdict Dubois, conhecemo-nos<br />
faz tempo, o porquê de tamanha manifestação de amizade. O<br />
livreiro mostrou-se surpreso e satisfeito: gostava de ambos!<br />
Kostas explicou a Jean o motivo de sua saída repentina de<br />
Guéret. Oportunidade, disse. Oportunidade imperdível. Recebi<br />
correspondência de fidalgo parisiense que havia gostado de uma<br />
de minhas produções de tapeçaria. Adquiriu-a aqui mesmo em Paris,<br />
e recomendou-me a terceiros de suas relações. Disse-me ambicionar<br />
por mais peças e, por fim, indicou-me à oficina de tapeceiro<br />
de monsieur Tapis aqui na capital. O salário era tentador. Decidi<br />
vir e trouxe toda a minha família. Eles estão bem e a maioria foi<br />
empregada com o mesmo empresário. As indústrias recém-implantadas<br />
não competem com nossa produção pessoal e personalizada.<br />
Você sabe, <strong>Monlevade</strong>, e modéstia à parte, somos artesãos<br />
de qualidade em um ou outro segmento e, graças aos deuses do<br />
Olimpo, trabalho nunca nos faltou. Então Jean perguntou-lhe sobre<br />
o fato de ter sumido, de não ter se despedido dos amigos. Não<br />
sou dado a despedidas, Kostas disse-lhe. Magoam-me. É costume<br />
familiar. Mas sentia falta de todos vocês. Como está o fidalgo<br />
<strong>Monlevade</strong>? E Martinho, e o abade Ribérry?<br />
O grego contou-lhe que estava morando nas redondezas de<br />
Paris. Dividia apartamento com senhor de origem portuguesa e<br />
que praticamente vivia confinado em casa. Chamava-se João de<br />
Barro Barro. Acontecera com ele mais ou menos o que sucedera<br />
com Kostas. A autorização de laisser-passer, salvo-conduto, de<br />
sua documentação francesa fora preenchida de forma errônea.<br />
Na realidade pertencia à família Barros. Kostas riu. Barro ao quadrado!<br />
Deve ter sido o mesmo oficial que me atendeu, e contou<br />
ao português sua desdita com a duplicação do seu prenome,<br />
Kostas. O fato de terem vivido a mesma experiência permitiu de<br />
imediato maior aproximação entre ambos. A alma humana tem<br />
essa característica! Para todos os efeitos, concluiu o lusitano, agora<br />
sou, de forma completa, João Joaquim Barro Barro.<br />
163
164 Jairo Martins de Souza<br />
A companhia constante de Barro, Tisserand explicou, valeu<br />
a Kostas rapidamente absorver rudimentos da língua portuguesa.<br />
Isso evoluiu. Com poucos meses não somente entendia e trocava<br />
ideias com o companheiro, como também optara por algumas<br />
mudanças nos rumos de sua vida. O aluguel na parte central da<br />
cidade era alto para seu bolso e ele, entre outras coisas, abandonara<br />
o ofício de tapeceiro. A jornada de trabalho era longuíssima<br />
e não lhe propiciava tempo livre para fazer o que realmente gostava.<br />
Estudar, conhecer outras línguas além das que sabia, e explorar<br />
novos mundos por meio de livros. Buscara novos caminhos<br />
e, por enquanto, sustentava-se mascateando publicações. Foi o<br />
porquê de conhecer Bènèdict Dubois.<br />
A conversa perdurou por mais de hora. Entraram na casa dos<br />
Pius e alongou-se por mais outro tanto. Os Pius gostaram dos modos<br />
polidos da conversa de Kostas. Sentiram, sobretudo, ser moço<br />
firme em suas convicções. Martinho, que havia saído para ajustar<br />
documentação no liceu onde iria estudar, chegou e daí deu início<br />
à nova rodada de indagações entre os amigos. O grego falou-lhe<br />
do seu atual trabalho e de como lhe propiciava ler informações<br />
sobre outros países. Foi quando se lembraram com mais saudade<br />
das tardes passadas no armazém de Platini. Falaram sobre tudo.<br />
Sobre a política europeia e a nova força do mundo, os Estados<br />
Unidos da América. Sobre dragões, demônios, bichos-preguiça e<br />
peixes voadores que assolam a América do Sul. Certos animais<br />
que vivem no Brésil nunca tinham sido vistos comendo. Dizia-se<br />
que se alimentam de vento, e da energia dos raios do Sol. É por<br />
isso, Martinho concluiu, que lagartos estranhos, que tem mãos de<br />
homem e chifres de boi, ficam na pedra durante horas. Esses seres<br />
nunca se molham mesmo que expostos à chuva constante durante<br />
semanas. Muitos navegantes ouviram estas histórias da boca<br />
de índios de diferentes tribos e desenharam gravuras horrendas a<br />
partir de suas descrições.<br />
Isso só me faz ficar mais curioso, e instiga-me a ver com meus<br />
próprios olhos o que existe por aqueles mundos, Jean disse. E<br />
sobretudo sobre seus minerais preciosos, esmeraldas e turmalinas.<br />
Duvido, acrescentou, que os demônios e os dragões realmente<br />
existam: esses bichos foram criados desde Adão e Eva no coração<br />
e nas profundezas do cérebro humano. Fazem parte do imaginário<br />
primitivo: são meras construções de mentes criativas.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Mas foi conversando com os Pius e com Bènèdict Dubois que<br />
Jean cercou-se de ideias quanto à possibilidade de convívio diário<br />
com Kostas. Além da amizade praticariam o latim e grego, é claro,<br />
enquanto não estivesse entre as salas e os muros da Politécnica.<br />
Para tanto, escreveu carta para o fidalgo expondo o que tinha em<br />
mente. Foi aprovado. Resumidamente o plano que propusera fora<br />
o seguinte: os Pius tinham quarto vago; os filhos ausentes não mais<br />
voltariam para casa dos pais; Bènèdict Dubois precisava de assistente<br />
em sua livraria.<br />
Passados alguns dias lá estava Kostas chegando com seu pequeno<br />
baú de mudança. Moraria com os Pius a troco de aluguel<br />
de preço razoável e que incluía pensão à base de sopa de batatas,<br />
ensopados e pão. O leite, a manteiga e o queijo ficavam de fora<br />
por causa da escassez. Bom negócio para todos. Nestes tempos<br />
difíceis seria fonte de renda segura para o casal, pois o fidalgo<br />
<strong>Monlevade</strong> novamente havia intercedido, garantindo – acontecesse<br />
o que acontecesse – a segurança e a pontualidade do pagamento<br />
mensal.<br />
O grego passaria a trabalhar imediatamente como vendedor<br />
na livraria de Dubois. As mercadorias estão aí, dissera a Kostas.<br />
Que se una o útil ao agradável: acredito piamente que, para você,<br />
não deverá ser tarefa desagradável tomar contato com todo o meu<br />
estoque. Pelo menos com os escritos de capa e contracapa. Kostas<br />
sorriu e respondeu-lhe dizendo que era o mesmo que atribuir ao<br />
Breu missão de zelar por ossos de cordeiro. Teria tempo de sobra!<br />
O fato é que o jovem grego não conseguira acertar documentação<br />
para acesso à escola pública francesa. Os burocratas não<br />
se entendiam no Ministério de Negócios Estrangeiros. Havia tentado<br />
insistentemente. Talvez houvesse algum problema de foco<br />
diplomático entre os países, pois o francês normalmente não era<br />
xenófobo, e ele obtivera grau máximo no teste de conhecimento<br />
da língua. Não. Sua pele era bronzeada, mas decididamente<br />
as negativas não eram consequência de repulsa ao povo grego,<br />
ou às culturas de povos de menor importância na ocasião. Na<br />
própria livraria de Dubois constavam dois exemplares de As Mil<br />
e Uma Noites traduzidas para o francês, e ele via a todo tempo<br />
vários estrangeiros circularem livremente pelas ruas do Quartier<br />
Latin. Inclusive árabes com suas roupas típicas. O lugar era uma<br />
Babel!<br />
165
166 Jairo Martins de Souza<br />
Mas acima de tudo Zavoudakis tinha trânsito livre pelo país<br />
e ambicionara ingressar no Lycée Napoléon. Foi por conta disso<br />
que foi tomado por extrema irritação quando teve pedido de admissão<br />
recusado. Criticou deslavadamente o país. E ironicamente<br />
disse para Jean que, na solicitação para estudos, assinara o prenome<br />
que lhe fora outorgado na imigração, Kostas Kostas. Teria<br />
causado certo mal-entendido? Não. Não podia ser por tanto. No<br />
frigir dos ovos, concluiu, o princípio revolucionário da igualdade<br />
não estava sendo totalmente aplicado. Conversa fiada de políticos!<br />
Ficara frustrado. Mas estudaria por conta própria! Material<br />
obviamente não lhe faltava!
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
V<br />
Os três mosqueteiros. Kostas conhece o Quartier Latin<br />
como as palmas de suas mãos!<br />
Alexandre Dumas ainda era um bebê e publicaria o seu famoso<br />
Os Três Mosqueteiros somente em março de 1844. Tivesse conhecido<br />
posteriormente Jean de <strong>Monlevade</strong>, Martinho, e Kostas<br />
Zavoudakis, não tenho dúvidas de que teria matéria de qualidade<br />
para estereotipar mais ainda seus protagonistas Atos, Portos e<br />
Aramis. Pelo menos em termos de amizade. Não fez dessa forma<br />
Vitor Hugo quando estudou e percorreu os esgotos subterrâneos<br />
de Paris? Pois é. Foi com ajuda de mapas emprestados por dileto<br />
amigo, um veterano funcionário municipal, que o famoso escritor<br />
planejou uma das mais ousadas fugas do injustiçado Valjean.<br />
Nada se faz sozinho, mon ami! Tanto a riqueza quanto a cultura<br />
são produtos das atividades de homens e mulheres de todas as<br />
camadas sociais. Com muito esforço, cooperação e estudo...<br />
O ruído provocado pela queda de mais uma manga chamou a<br />
nossa atenção, fazendo com que Tisserand interrompesse por instantes<br />
o que estava dizendo enquanto, com uma das mãos, apanhava<br />
a fruta que restara ilesa mesmo com o impacto no solo. Tão<br />
logo colocou-a de lado, retomou a palavra dizendo que, ao longo<br />
dos séculos, muitas iniciativas de mudanças de paradigmas do<br />
pensamento mundial foram concentradas em alguns moradores de<br />
Paris. Descartes. Montesquieu. Poincaré. Rousseau. Sartre... Todos<br />
esses são grandes exemplos.<br />
E é também na mesma eterna capital dos franceses, mon ami,<br />
que vamos encontrar novamente nossos três jovens amigos. Eles<br />
se preparavam para praticar o que mais gostavam de fazer: conversar<br />
e trocar ideias. Era domingo e Septimus havia saído com a<br />
mulher para a missa matutina da igreja de Saint-Séverin.<br />
Quartier Latin! Já conheço os detalhes de suas calçadas e<br />
prédios históricos como se fossem as unhas dos dedos das minhas<br />
mãos. Talvez suficientes para publicar um guia turístico para estran-<br />
167
168 Jairo Martins de Souza<br />
geiros. Bem, para os amigos faço o trabalho de graça. Foi o que<br />
Kostas exclamou com ar sorridente para Jean e Martinho enquanto<br />
terminavam de descer os degraus da casa dos Pius e se dirigiam<br />
para a Rua Saint Jacques.<br />
Paris já foi romana, Kostas Zavoudakis disse, e portanto tem<br />
algumas partes enterradas que são como a velha Roma. Pudéssemos<br />
escavar, possivelmente encontraríamos calçadas de pedra escondidas<br />
há séculos nessas vizinhanças. Os romanos deixaram sua<br />
marca inapagável pelo mundo antigo desde os tempos de Cristo.<br />
Formigas batedoras. A linha de frente carimbava para sempre a<br />
terra invadida. Estão lembrados da cidade de Pompeia e a preservação<br />
causada pelos estragos do Vesúvio? O traçado das ruas<br />
e das edificações das partes desenterradas havia sido seguido por<br />
toda a Europa: templos, teatros, fóruns e belos edifícios.<br />
Já estavam na pequena calçada, e o grego afirmou, com ar<br />
despreocupado, ter plena consciência de que os amigos sabiam,<br />
mas não custava repetir que, caso fossem caminhando pela direita,<br />
alcançariam justo a Rue des Ecoles, a Rua das Escolas. Lá<br />
estão a Sorbonne, fundada em 1253; e o College de France, mais<br />
recente, de 1530. Muitas casas de suas redondezas abrigam repúblicas<br />
de estudantes que vêm de todo o país e do exterior. Daqui<br />
mesmo, vocês podem ver que há cobertores e roupas de baixo<br />
estendidas nas janelas, há pouco sol e muita umidade. O edifício<br />
com aspecto de prisão, que fica à esquerda do College, é um antigo<br />
convento que possuiu um belíssimo claustro... hoje tornou-se a<br />
escola em que eu gostaria de estudar e é a mesma em que, você,<br />
Martinho, está matriculado: o Lycée Napoléon!<br />
O grupo rapidamente decidiu seguir para a direita. Kostas esclareceu<br />
que, tivessem ido para a esquerda, dariam de frente com<br />
a Rua Petit Pont. Rua curta! Mas vive lotada de gente. E, inevitavelmente,<br />
acabariam por passar pela ponte, de mesmo nome,<br />
que vai dar na outra margem do Sena. O hospital militar fica nas<br />
proximidades, assim como muitos edifícios públicos.<br />
Antes disso, caso dobrássemos à esquerda chegaríamos ao<br />
Boulevard Saint Michel. Lá proliferam estalagens, tavernas e livrarias<br />
nossas concorrentes.<br />
É para onde iremos. Se há algum desses aberto, é hora de<br />
celebrar! Os dois recém-chegados sorriram. E instintivamente<br />
contaram as moedas que tinham no bolso. Kostas era espirituoso<br />
e animado. Jean sentiu-se em casa como se estivesse comodamente<br />
indo trocar ideias no armazém de Platini.<br />
Definitivamente nunca voltaria a se assentar sobre saco de<br />
batatas!
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
VI<br />
Bernadette e Monique du Lac<br />
Todo jovem solteiro que tem atrás de si uma boa fortuna está<br />
sempre em busca de esposa, foi o que Lucillia Septimus disse.<br />
Jean, por exemplo, nem mesmo precisa ganhar dinheiro com sua<br />
própria carreira para tanto... O marido sorriu sem que ela notasse.<br />
É, pensou em responder-lhe, isso é verdade incontestável, a<br />
vida e as noitadas de vida solteira cansam... Mas calou-se. Havia<br />
acabado de colocar roupa de dormir e sua intenção era apagar<br />
a lamparina, bem, fazer sexo e, como todo bom marido, cair em<br />
sono profundo. No entanto, melhor que a mulher tivesse voltado<br />
para assunto de terceiros, ao invés de buscar algum que envolvesse<br />
diretamente o casal. Não estou com ânimo para discutir<br />
problemas de relação. Sorriu novamente, agora relembrando o<br />
lado feminino da frase com que a mulher se prontificara a iniciar o<br />
diálogo. Desde que a conheço, Lucillia tem esse lado casamenteiro,<br />
mudou em muitas coisas, não quanto a este quesito! Mas não<br />
lhe disse nada de volta. A mulher irritou-se. Você não me ouve. O<br />
rapaz tem tudo para ser um bom partido para Monique!<br />
Prefiro Bernadette, Septimus finalmente retrucou sem rodeios.<br />
Não é tão formosa, mas é mais inteligente. O que, a princípio,<br />
nada significa, pois Jean disse-me, logo no primeiro dia que<br />
chegou aqui, que é praticamente noivo em Guéret. O nome da<br />
moça é Angéline. Mas mesmo não conhecendo ainda a fundo as<br />
preferências do filho do fidalgo <strong>Monlevade</strong>, tudo leva a crer que,<br />
caso houvesse escolha de sua parte com relação às moças que<br />
estamos falando, sua opção seria a letra B. De Bernadette.<br />
Você diz isso para me contrariar. A sua preferência dentre as<br />
nossas sobrinhas sempre foi por Bernadette. Ela tem o estilo do<br />
corpo e o gênio da falecida mãe. É bonita, é agradável: hoje! Pois<br />
a sensação que tenho é que vai virar uma baleia irascível quando<br />
169
170 Jairo Martins de Souza<br />
mais velha. Monique não. Seu biótipo é o do Pai. O de Secundus.<br />
Seu irmão mesmo depois de velho ainda não perdeu a elegância,<br />
mon chér. Quanto ao noivado com a moça de Guéret, não acredito<br />
que vá durar. Homem é como passarinho. Caso não tenha<br />
filhotes, esquece-se rapidamente de árvore em que pousou. Não<br />
é por acaso que não tenho ouvido nem uma palavra da boca dele<br />
sobre a tal moça.<br />
Septimus decidiu voltar a manter-se calado e simplesmente<br />
não mais discordar de Lucillia. Ele queria noite tranquila e, como<br />
de praxe, caso continuassem o diálogo, a coisa ia esquentar. A<br />
chegada dos três rapazes havia trazido paz à sua casa. Lucillia<br />
estava dispersando preocupações e energias que anteriormente<br />
costumava esgotar somente em suas costas, adotara novos filhos,<br />
enfim, a vida estava melhorando.<br />
Quanto a Monique, a brasa fora acesa, Tisserand continuou,<br />
não sei se apagaria tão facilmente por parte da mulher e da sobrinha.<br />
Creio que um sopro fosse suficiente para...<br />
Falavam de <strong>Monlevade</strong>, e Monique du Lac estava excitada.<br />
Então ele vai estudar na Politécnica, tia Lucillia? Sim. E disse-me<br />
estar absolutamente ansioso em conhecê-la, Lucillia Pius complementou<br />
mentindo.<br />
A senhoria de Jean de <strong>Monlevade</strong> não era má pessoa, Tisserand<br />
observou. Simplesmente acreditava que o destino dos dois<br />
jovens estava em suas mãos. E, como num jogo de baralho, distribuiria<br />
as cartas do modo que julgava adequado. Nem que fosse<br />
necessário fazer pequenas trapaças como a mentira que vimos<br />
dizer para a sobrinha. Os jovens precisam ser direcionados para<br />
bons casamentos e famílias. Ela, como tantos outros, não ligaria<br />
essa atitude a qualquer tipo de perversão.<br />
Então quando posso conhecê-lo? Minha intenção é noivar rapidamente.<br />
A moça fora sincera, homens solteiros tornam-se, sem<br />
que o saibam, imediatamente reféns de suas pretendentes e sogras<br />
– exclua-se aqui o desavisado Jean, pois a moça era órfã de mãe.<br />
Vou providenciar, querida. Vou providenciar. Primeiro conversarei<br />
com Secundus para que, ocasionalmente, venha nos visitar<br />
no próximo domingo à tarde. Ele não se oporá. Dir-lhe-ei<br />
das qualidades do rapaz <strong>Monlevade</strong>. Faço muito gosto, tia. Vou<br />
até conversar com papai para que me encomende vestido novo.<br />
Vou querê-lo branco com cinto vermelho e com enfeites de tule
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
de mesma cor no decote. Mas confesso, titia, mesmo não sendo<br />
rapaz, vou ter que colocar as barbas de molho. O estudante parisiense,<br />
tia Lucillia, costuma namorar durante séculos e, depois<br />
de formado, abruptamente casar-se com outra mulher... conheço<br />
vários casos de amigas que, no fim dos tais anos, acabaram virando<br />
titias.<br />
Não se preocupe, querida, ele estará sob minha guarda e<br />
olhos. Confie em mim!<br />
O almoço havia transcorrido festivamente e Jean conversava<br />
de forma descompromissada com a sobrinha de Septimus Pius.<br />
Estavam em sala de refeições improvisada no segundo piso, o<br />
que era de se estranhar, pois normalmente a casa comia no andar<br />
térreo em mesa colocada na própria cozinha. Este cômodo era de<br />
tamanho apreciável e ficava no nível da Rua Saint Jacques. Mas<br />
estava com parte em obras, bem, mesmo com os pratos cheios de<br />
ossos de galinha, e canecas vazias ao lado, ninguém se dispunha<br />
a se levantar dos dois bancos que se estendiam paralelamente ao<br />
maior comprimento do balcão improvisado. Os convidados em<br />
especial aguardavam convite dos anfitriões.<br />
Os irmãos Septimus e Secundus fumavam charutos enquanto<br />
ouviam Kostas que lhes explicava como conhecera <strong>Monlevade</strong>,<br />
como havia chegado até Guéret e, por final, a Paris. Septimus<br />
não se incomodava de escutar de novo a mesma história. Lucillia<br />
fingia prestar atenção ao que dizia o grego, mas na realidade<br />
observava de soslaio a Jean <strong>Monlevade</strong> e a Monique du Lac.<br />
Avaliava reações. Conferia cuidadosamente se sua fórmula daria<br />
resultado. Dissimulava atenção para os demais presentes. A cada<br />
movimento que considerava significativo, uma risada, um olhar<br />
de admiração, um movimento de toque entre as mãos, a moça<br />
vestia luvas após o almoço, enfim, qualquer ato que considerasse<br />
suspeito, fazia-lhe trocar olhares significativos com o marido. Eram<br />
craques na aplicação de tal código de sinais: haviam começado<br />
como brincadeira, durante período de namoro e noivado, para<br />
driblar a dura marcação dos pais da então mocinha. Décadas de<br />
convivência fizeram-lhes aprimorar o método.<br />
Contudo, naquele final de refeição, Lucillia, totalmente centrada<br />
em seu objetivo, não percebia os olhares que Jean, por cima<br />
dos ombros de Monique, dirigia para a irmã Bernadette que, por<br />
sua vez, mantinha diálogo não menos animado com Martinho. A<br />
171
172 Jairo Martins de Souza<br />
moça timidamente devolvia-lhe os olhares. Já Septimus sorrira internamente,<br />
pois notara discretamente o que ocorria. Desta feita<br />
não comunicou o fato à Lucillia com os olhos, resultado de anos<br />
da tal prática que lhes disse. Aguardaria instante propício...<br />
O ruído de carruagem que freava nas proximidades da frente<br />
da casa dos Pius não passou despercebido a nenhum dos circunstantes<br />
convidados pelo casal. A seguir, o de vozes que falam em<br />
dinheiro, finalizadas com um fique com o troco. Depois o barulho<br />
de alguns toc, toc, na porta de entrada. Parecia acontecer em uma<br />
das que davam acesso à livraria de Bènèdict Dubois. O livreiro<br />
pode estar aguardando um cliente de fora em horário extraordinário,<br />
disse Lucillia a Septimus. Para hoje não fomos avisados de<br />
presença desse tipo de comprador, Kostas esclareceu, adiantando-se<br />
à resposta do senhorio. Pode ser que seja...<br />
Vou verificar, Jean disse. E já na extremidade do patamar<br />
superior, mais uma vez criticou o projeto da escada da casa dos<br />
Pius. Mais alguns dias de residência e conversaria polidamente a<br />
respeito. Era extensa, e de degraus curtos e estreitos. Construída<br />
entre paredes era de se esperar que fosse relativamente escura<br />
mesmo ao longo de dia de sol firme. A iluminação natural vinha<br />
de dentro da casa. Fraca. Do lado de fora a luz do dia mal penetrava<br />
no diminuto espaço entre a parte inferior da porta e o piso.<br />
Assim, antes de descer a escada, não somente para melhorar<br />
a iluminação dos degraus, como também por educação, e para<br />
reconhecimento do eventual visitante, Jean acionou extenso pedaço<br />
de corda estendido em paralelo com os degraus, e que servia<br />
como acionamento remoto da porta de entrada. Todos que estavam<br />
na casa ouviram atentos o destravamento do trinco e o puxão<br />
posterior que rapaz dera para permitir ingresso de quem batia.<br />
Mas foi com espanto que o ouviram dizer em voz alta, Papai!<br />
Ora, que surpresa mais agradável!<br />
Foi viagem feita às pressas, o fidalgo disse, após ter saudado<br />
a todos, e rapidamente se incorporado aos assuntos e ao espírito<br />
festivo que, de pronto, sentiu existir no grupo. Monique aguardou<br />
momentos até ser apresentada por Septimus. Lucillia estava<br />
envaidecida pela beleza da sobrinha: realmente era uma moça<br />
bonita! Ela estava graciosamente vestida de branco com enfeites<br />
vermelhos. Exatamente como planejara! De início o fidalgo,<br />
concentrado nas atenções a Septimus e Lucillia, não a observa-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
ra. Mas era observado. A moça acompanhava-o com os olhos,<br />
buscando avaliar o modo como o possível sogro se comportava.<br />
Agradava-lhe o jeito do futuro avô dos seus rebentos. O fidalgo<br />
lembrava o filho, desde que acrescentadas algumas imperfeições,<br />
a exemplo do andar claudicante, e, obviamente, os vincos e rugas<br />
da idade. Ele trouxera apenas uma caixa de madeira que disse<br />
conter documentos a serem entregues em determinado ministério<br />
do governo. Procurava com esse procedimento, explicou, esclarecer<br />
sobre impostos cobrados em excesso de suas propriedades.<br />
Quanto será o valor de sua fortuna?, tia Lucillia se perguntava.<br />
Bem, tinha três filhos, François, Maria Vitória... Tivesse condição<br />
de ver a papelada saberia quanto o pai de seu seleto hóspede, aí<br />
deixando-se de considerar o altíssimo valor de suas propriedades,<br />
faturava em um ano. Trinta, quarenta mil francos?<br />
O fidalgo indagou a Septimus sobre como andavam as coisas<br />
na capital e em particular sobre os rapazes. Vai tudo muito bem,<br />
monsieur Jean-François, mas o fato é que aconteceu erro anterior<br />
de minha parte... um erro de cálculo. O senhor fidalgo sabe fazer<br />
contas e seguramente vai entender. Na realidade não avaliei adequadamente,<br />
há tempos que Lucillia e eu estamos sós, o quanto<br />
interfere a chegada de mais dois, corrijo, três moradores de fora.<br />
Ele não previra necessidade de melhoria na casa, daí o desarranjo<br />
causado para ampliação da área da mesa de refeição na<br />
cozinha como também, isso já fora feito, a substituição da palha<br />
do forro dos quartos. Tudo, todos estes detalhes, representa custo<br />
para nosso orçamento, Septimus disse. A vantagem é que não<br />
tinha despesas de aluguel, a casa fora herança deixada pelo pai,<br />
etc. e tal. O senhor fidalgo não é responsável por rateio dessas<br />
despesas, no entanto...<br />
Assunto delicado... O bolso é, em muitos acontecimentos, a<br />
parte mais sensível do corpo humano, Tisserand opinou, bem, ficou<br />
suspenso por alguns minutos. Enquanto isso, o dono da casa<br />
disse ao visitante para servir-se de comida que ainda restava em<br />
duas panelas já colocadas de volta sobre as trempes do fogão.<br />
Ainda estão quentes, Lucillia complementara. Mas quanto à sua<br />
pergunta anterior sobre Jean e Martinho, Septimus retomou, a<br />
encomenda tem sido melhor que prevíamos. Ambos são ordeiros<br />
e cumpridores de horários. Nenhum deles faz restrições à comida<br />
que lhes servimos.<br />
173
174 Jairo Martins de Souza<br />
Também não negam a qualquer pedido feito, Septimus<br />
prosseguiu. E quanto a Kostas... Kostas, entre outras coisas, tem<br />
enriquecido a casa com seu conhecimento de cultura clássica.<br />
Bènèdict Dubois diz tratar-se de belo exemplo de autodidatismo.<br />
É. Este jovem grego tem realmente muitas qualidades, o fidalgo<br />
assentiu. O motivo foi lembrança das aulas que ministrara a Jean.<br />
Nada mais justo que tenha a bela recepção que tem tido nesta<br />
casa, pensou.<br />
No entanto, com toda aquela conversa anterior, o fidalgo deduziu<br />
que o homem habilmente solicitava ajuda de custo para<br />
fazer frente aos investimentos que julgou necessários em data<br />
posterior à combinação que haviam feito. E entendeu que sim,<br />
eram justificáveis, afinal de contas, estavam sendo realizados para<br />
que Jean e Martinho tivessem uma melhor qualidade de vida. Se<br />
os lucros respingam em terceiros, tanto melhor.<br />
Além de justo, disso sabemos por meio de diversos outros<br />
episódios, o fidalgo era homem generoso, e imediatamente sacou<br />
embrulho de papel em que havia colocado maior quantidade de<br />
dinheiro. Deu-lhe maço de notas. Septimus contou-as e, demonstrando<br />
honestidade de propósitos, buscou planilha de custos, e<br />
devolveu-lhe alguns francos por julgar excessiva a quantia que<br />
lhe fora entregue.<br />
Mais ainda o sogro crescia aos olhos de Monique que a tudo<br />
observava a distância de alguns passos. Se o filho for desprendido<br />
como o pai, jamais me faltará dinheiro para compra de vestidos,<br />
perucas e espartilhos. O que não esperava foi atitude que o fidalgo<br />
tomou reservadamente a seguir. Ele chamara o filho no canto<br />
da sala e colocou-lhe nas mãos um pequeno envelope.<br />
Decorridos poucos dias que a carroça aportara à casa dos<br />
Pius, trazendo Jean e Martinho, e ela já se ressentia da falta de<br />
notícias de Jean. Sentia-se negligenciada, já que o considerava<br />
um grande amigo! Era em essencial o que Angéline dizia em carta<br />
entregue ao pai, Colbert, para que repassasse a qualquer mensageiro<br />
de confiança que estivesse de saída para Paris. Pedira encarecidamente<br />
que isso fosse feito da forma mais breve possível e,<br />
para tanto, que o pai fizesse solicitação ao primeiro emissário que<br />
preenchesse os requisitos.<br />
Calhou-lhe que, acidentalmente, algumas horas antes de seguir<br />
para a capital, o fidalgo não estivera se sentindo bem. Isso
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
não é nada, disse-lhe Colbert, após auscutá-lo, convocado que<br />
fora por serviçal de <strong>Monlevade</strong>. Fora a galope e instruído por Felicité<br />
a dizer somente que trata-se de emergência, doutor Colbert.<br />
Essa respiração curta tem um nome, amigo fidalgo, chama-se<br />
ansiedade. É a que normalmente se tem quando se vai a velório<br />
de alguma pessoa conhecida. Vou receitar-lhe alguns chás de<br />
ervas calmantes de boa qualidade. O senhor as encontrará com<br />
facilidade nas prateleiras de monsieur Paracelsus.<br />
O fidalgo perguntou-lhe pelo preço da consulta, obviamente,<br />
devido às circunstâncias, feita nas dependências do próprio<br />
castelo, enquanto Felicité do lado de fora da porta do quarto<br />
ansiosamente aguardava o diagnóstico sobre o mal-estar súbito<br />
do marido. Estava realmente assustada: ele chegara a desfalecer.<br />
Não é nada em dinheiro, disse-lhe Colbert. Entretanto, como sei,<br />
e para tanto não tenho quaisquer restrições médicas, que estás de<br />
partida para Paris, o pago que lhe peço é entregar carta de minha<br />
Angéline para seu filho Jean. Não creio constar nenhum segredo<br />
de Estado. Aliás, como pai, essa é minha esperança. Ela pediu-me<br />
confidencialidade, urgência e discrição. Sei poder contar com o<br />
senhor em todos esses atributos. O fidalgo riu, enquanto, fazendo<br />
uso do seu aguçado olfato, desfrutava da suave fragrância que<br />
exalava do elegante envelope que lhe era entregue. Assim fico<br />
imediatamente bom o suficiente para subir correndo, sem minha<br />
bengala, até o pico do monte Kilimanjaro. É incumbência prazerosa.<br />
Assim foi.<br />
Mas antes de sair teve tempo de contar o episódio para a<br />
esposa. Ela disse-lhe inadvertidamente, não vais lê-la? O fidalgo<br />
estremeceu e ficou rubro com o pergunta da mulher. Felicité<br />
nunca procedera assim. A princípio, qualquer correspondência a<br />
terceiros, mesmo que não selada, como era o caso, deve ser vista<br />
somente pelo destinatário. A moça, Angéline, não lambera as<br />
bordas do envelope com cola. Mas conteve-se. Lembrou-se das<br />
recomendações que há pouco recebera de Colbert. A vida é breve<br />
e todos nós temos teto de vidro. Não leve as coisas a ferro e fogo,<br />
caro fidalgo. E saiu para fazer suas obrigações na latrina externa<br />
que o filho fizera-lhe construir nas proximidades do quintal do<br />
castelo. Não lhe agradava ir para a estrada sem tomar líquido e<br />
fazer suas necessidades pessoais.<br />
No entanto, ao dobrar a curva da parede lateral do edifício,<br />
175
176 Jairo Martins de Souza<br />
fez o que não costumava fazer. Fez vista grossa ao perceber que<br />
Felicité rapidamente ia com as mãos de encontro ao embornal de<br />
couro onde se achava a missiva. Não gritou, alto lá, nem disse<br />
nada. Maria Vitória estava próxima e não vira que a mãe colocava<br />
a carta no punho do vestido e, por final, já se retirava, solicitando<br />
à menina que a deixasse sozinha por alguns momentos. O<br />
fidalgo vacilou, mas decidiu manter-se calado. Ele absolutamente<br />
não queria que a filha tomasse conhecimento do ato a princípio<br />
insensato da mãe. Quando voltou, a carta estava cuidadosamente<br />
colocada no mesmo lugar. Felicité estava de pé, reflexiva, ao lado<br />
do cavalo selecionado para transportar o marido. Na caixa colocada<br />
na parte de trás viam-se algumas outras menores repletas de<br />
pequenas pedras que o marido levaria para o filho Jean. Faziam<br />
parte de sua coleção e tinham ficado, por excesso de carga, para<br />
serem acrescentadas futuramente à sua mudança.<br />
A filha não mais estava por perto. Não obstante, o fidalgo<br />
decidiu calar-se quanto ao acontecido: fervia por dentro e estava<br />
envergonhado. Falhara no zelo solicitado quanto à confidencialidade<br />
da encomenda. Absurdamente lembrou-se dos tempos de<br />
farda quando de sua participação em campos estadunidenses.<br />
Por sua grande determinação em cumprir corretamente o que lhe<br />
era destinado, várias vezes vazara flancos inimigos para entregar,<br />
intactas, correspondências secretas do alto comando do exército<br />
francês.<br />
A mulher simplesmente disse-lhe ao vê-lo com olhar de censura:<br />
sei o que pensas. Mas sou mãe. Tenho ética de mãe. Não é<br />
que pense que Jean em algum momento da vida tenha fumado<br />
haxixe junto com a namorada. Entretanto me agrada saber o que<br />
pensam, o que pretendem para o futuro, se têm planos, se é que<br />
os têm. Meu filho não é claro em suas intenções e a moça é decidida.<br />
Queres saber o que li? O fidalgo calou-se. Percebeu não<br />
ser capaz de absorver totalmente o que lhe dissera a mulher. Mas<br />
perdoou-a. Ela tinha razões de mãe. Parecia preocupada. Que<br />
mais poderia dizer? Absurdamente manteria sigilo quanto ao ato<br />
nefasto da mulher. E para não complicar seu estado de nervos,<br />
tentaria desesperadamente esquecê-lo. Não. Não quero saber do<br />
que se trata! Não quero saber o que diz a moça Angéline!
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
VII<br />
A carta roubada<br />
A carta não estava recheada de enigmas como os costumeiramente<br />
desvendados pelo pai dos detetives literários, o famoso<br />
Auguste Dupin. O senhor, por acaso, leu o extraordinário conto O<br />
Mistério da Carta Roubada?...<br />
Foi o que Tisserand disse, enquanto refletia sobre o impacto<br />
que a quebra de sigilo daquela correspondência poderia ter causado<br />
na consciência inatacável do fidalgo Jean-François.<br />
Um tanto retardadamente, respondi-lhe que sim. Eu havia<br />
lido e gostado não somente daquele como também de outros<br />
grandes escritos do mestre Edgar Allan Poe. Então ele comentou,<br />
antecipadamente, que não somente o pai sofrera quanto ao<br />
episódio da carta entregue em Paris. Os efeitos no filho foram<br />
obviamente amplificados. Tinha personalidade de ferro, forjada<br />
na cultura e na família, mas não ficou imune aos devastadores<br />
efeitos do documento enviado pela namorada...<br />
Bem, vejamos o acontecido com as palavras originais do destinatário<br />
da missiva. O próprio Jean de <strong>Monlevade</strong>.<br />
Esta carta, Martinho, foi como uma pancada no meu estomago.<br />
Golpe curto e seco. Não o desejaria para o pior dos meus<br />
inimigos. Vou torná-lo mais breve ainda para você.<br />
Estas foram as frases que, após recolher-se ao seu quarto, dissera<br />
para o meio-irmão. A delicada folha de papel que mantinha<br />
nas mãos ainda exalava resquícios dolorosos de doce e conhecido<br />
perfume de mulher. Tal como acontecia com o pai, a extraordinária<br />
capacidade de cheiros trazia-lhe eventualmente momentos de<br />
grande dor. De costas para o irmão, tinha o semblante triste e fitava<br />
o lerdo movimento noturno de duas carroças que passavam<br />
carregadas de mercadorias pela Saint-Jacques.<br />
Com isso, prosseguiu, evito dor maior. Ainda que nem mes-<br />
177
178 Jairo Martins de Souza<br />
mo saiba o sentimento que se passa por dentro de mim. Orgulho<br />
ferido? Talvez... Sempre tive perfeita consciência de amá-la, mas<br />
esqueço-me dela com facilidade. O fato é que nem bem saí de<br />
Guéret, e ela chega à conclusão que não me ama! Não que em<br />
algum momento tivesse dito ou escrito isso. Ela nunca sussurrou<br />
nem de longe nem de perto, eu te amo!<br />
Mas deixou claro que gosta de mim de maneira muito especial.<br />
Aprecia minha inteligência, meu modo de ser, meu espírito<br />
aventureiro... mas não o suficiente para compromisso de casamento.<br />
Resumindo, por dentro estou arrasado e até mesmo pensando<br />
em ir até lá para, de minha parte, fazer ajuste definitivo<br />
dessa situação. Poderia voltar com papai ainda hoje...<br />
Fosse você, não iria, o pai disse-lhe com a voz embargada.<br />
Não vertera lágrimas como Jean, que parecia ter chorado, mas<br />
tinha os olhos ligeiramente avermelhados pelo empoeirado da<br />
estrada que fazia efeito tardio. Havia subido as escadas para o<br />
segundo piso, dormiria no quarto do filho, e escutara acidentalmente<br />
parte da conversa. Não era homem de encostar ouvido em<br />
madeira de portas! Tenho mais experiência com mulheres que<br />
você, meu filho. Deixe-me contar uma pequena história de minha<br />
juventude. Jean estremeceu. Martinho fez menção de se retirar.<br />
Um pai nunca se dirigia aos filhos quanto a assuntos de foro íntimo.<br />
O pai postiço deteve-o com um gesto: pode ficar. O resultado<br />
de sua ação foi explosivo e Jean, subitamente atento, por instantes<br />
desvinculou-se de sua própria angústia. A impressão que lhe<br />
passava é que uma testemunha inesperada chegava para depor<br />
em sofrido tribunal de júri. Poderia virar o jogo. O fidalgo finalizou<br />
entrada no aposento e prosseguiu. Antes de conhecer sua mãe<br />
andei enrabichado com uma moça que viera da cidade de Bordeaux.<br />
Apaixonei-me. Tinha os olhos embaçados pela paixão e<br />
não reparava que ela era reticente quanto aos meus propósitos de<br />
casamento. Conclusão, dispensou-me com os mesmos argumentos<br />
que ouvi você dizer a Martinho. Amaldiçoei minha aparência<br />
e minha falta de jeito com as mulheres. Mas encantei-me pouco<br />
tempo depois por outra jovem de distinta família de Guéret. Não<br />
deu outra! Tão logo ficou sabendo do fato, a primeira, a que havia<br />
me dispensado, assediou-me dizendo que fora um engano,<br />
que realmente gostava de mim e por aí vai. Cedi. Pouco tempo<br />
depois voltou a colocar-me na mesma situação. Resumindo, não
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
exagero ao dizer-lhe que sofri como um condenado às galés, mas<br />
não perdi a fé no amor. O verdadeiro vem na hora certa. E para<br />
mim veio. O coração do jovem é como madeira de lei e não se<br />
dobra a assédio de cupins. Desculpe a metáfora, pois sei que na<br />
prática passas por difícil situação... e é por tudo isso que lhe disse<br />
não ser adequado você insistir em procurá-la. Somente lhe trará<br />
mais sofrimento. Agradeço-lhe pelo conselho, papai. Mas não é<br />
bem a mesma situação. Parece-me ter também que passar por<br />
isso. Aprender com minha própria experiência. Fazer como Tomé,<br />
e ver com meus próprios olhos. Cada caso é um caso. Não ficarei<br />
tranquilo pelo resto dos meus dias se não esclarecer vis a vis, frente<br />
a frente, minha situação com Angéline. Se não se importa, irei<br />
com você de volta para Guéret.<br />
O pai assentiu sem mais comentários. Ficou-lhe claro que seu<br />
rapazinho encontraria saída honrosa para a família. Não. O filho<br />
não seria encontrado bêbado em tavernas parisienses por causa<br />
daquele espartilho!<br />
No dia seguinte almoçavam juntos no castelo <strong>Monlevade</strong>.<br />
Felicité e Maria Vitória ficaram radiantes com o imprevisto! Jean<br />
disse-lhes estar lá simplesmente porque aproveitara a companhia<br />
do pai, bem, matava saudades dos seus amados.<br />
Mais tarde seguiu sozinho para Guéret, pedira ao pai para<br />
não acompanhá-lo. Chegando lá, amarrou o cavalo em pau de<br />
madeira que ficava próximo ao armazém de Platini e, instantaneamente,<br />
decidiu procurar os amigos somente após conversar<br />
com Angéline. Faltavam-lhe condições psicológicas e não poderia<br />
arriscar-se a perder o foco de sua viagem. Os sinos da igreja bateram<br />
dezesseis horas. A tarde findava em termos práticos, pois<br />
o dia já se tornava escuro e não demora as lamparinas seriam<br />
acesas e, na maior parte das casas, todos teriam jantado.<br />
Tomou a direção da casa de Angéline. Para sua sorte, as ruas<br />
estavam vazias e não perderia tempo para conversa com conhecidos<br />
com os quais não poderia deixar de trocar algumas palavras.<br />
Ser-lhe-ia penoso mentir quanto à razão do seu abrupto retorno.<br />
A casa do médico Colbert ficava na rua principal e mais próxima<br />
da farmácia de Paracelsus do que da igreja. Daí, Jean lembrou-se<br />
de que o médico caçoava dizendo que, em se tratando de enfermidades,<br />
acreditava mais na ciência do que em providências<br />
divinas. Deus não pode se ocupar com assuntos terrenos de um<br />
ou outro indivíduo, dizia. Tem missões mais importantes em sua<br />
179
180 Jairo Martins de Souza<br />
agenda. À vista do seu destino final, fê-lo recuperar que as janelas<br />
e a porta de entrada, assim como as demais que lhe eram vizinhas,<br />
ficavam contíguas à calçada da rua. Estava ansioso. Sorriu<br />
nervosamente ao pensar que se tivesse um charuto ao alcance,<br />
seria capaz de fumá-lo. Mil ideias passavam por sua cabeça. Inclusive<br />
suspeição de estar sendo observado através de frestas de<br />
janelas e portas. Notou que todas estas últimas estavam fechadas.<br />
Isso fez com que hesitasse mais ainda em bater na que se avizinhava<br />
e que tinha duas bandeiras estreitas. O coração saltou-lhe<br />
no peito ao rever a pequena plaqueta onde se viam claramente<br />
escritas as palavras, Colbert Boyer, Médecin. Jean analisou-as.<br />
Estava ainda indeciso. Não bateu. Voltou a caminhar pela rua<br />
e passou pelo local observando-o despistadamente. Uma. Duas.<br />
Três vezes. Pensou em desistir e voltar para <strong>Monlevade</strong>, e depois<br />
para Paris o mais rápido possível. Finalmente, toc, toc, toc...<br />
A velha senhora que o atendeu disse Colbert ter saído para<br />
atender parto complicado em castelo localizado em área rural.<br />
Não. Não sabia onde. Somente podia informar que era atendimento<br />
demorado, pois a filha o acompanhara e, provavelmente,<br />
passariam a noite fora. Jean agradeceu-lhe um tanto quanto confusamente.<br />
Por fim, voltou-lhe as costas e retornou ao ponto onde<br />
amarrara seu cavalo.<br />
Melhor assim, suspirou. Sua intenção agora era a de que Angéline<br />
jamais soubesse de sua estada em Guéret. Veria rapidamente<br />
os amigos, dormiria com os pais e a irmã em <strong>Monlevade</strong>,<br />
e partiria na manhã seguinte de volta para Paris.<br />
Assim fez. Mas tão logo manifestou intenções de retorno imediato<br />
com os amigos Platini e Fontaine, o segundo disse-lhe ter<br />
que buscar mercadorias na capital. Não. Não é que fossem de<br />
urgente necessidade, mas poderia antecipar viagem e levá-lo consigo.<br />
Aguardaria Jean na porta do armazém no dia seguinte pela<br />
manhã.<br />
Poucos quilômetros antes de chegar à capital, Jean já havia<br />
afastado sua decepção amorosa para algum canto que não mais<br />
o incomodasse. A sensação de recusa nunca é agradável, mas era<br />
homem feito. A barba no seu rosto crescia como mato raso em<br />
campo aberto. E não é que não tivesse consciência que o incidente<br />
ficara mal resolvido, e que seu epílogo, ainda que decidido,<br />
mantinha-se sem a frase final. Já em certo trecho da viagem che-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
gara à conclusão que ouvira várias vezes da boca do pai, o que<br />
não tem remédio, filho, já está remediado. Por outro lado havia<br />
também a eficiente regra da substituição, enfim, não se esquecera<br />
do que havia acontecido na casa dos Pius em dia anterior. As<br />
irmãs du Lac eram bastante atraentes. E Monique confessara ter<br />
gostado do modo atencioso e prestativo de Martinho. Não descartaria<br />
a possibilidade de que juntos pudessem frequentar a casa<br />
das duas irmãs, caso o meio-irmão estivesse de acordo. O pai<br />
delas, monsieur Secundus, conversara amplamente com ambos.<br />
Bom sinal. E melhor ainda foi que, à medida que os minutos passavam,<br />
sua juventude permitia que o bonito rosto de Bernadette<br />
fosse, aos poucos, substituindo a face não menos bela de Angéline.<br />
E assim a curta viagem seguia também acompanhada pelo<br />
bom humor de Just Fontaine que, como sempre, descrevia mais<br />
viagens que fizera com o sócio.<br />
As paisagens do Maciço Central enchiam de luz os pensamentos<br />
dos dois viajantes.<br />
181
182 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
VIII<br />
A Polytéchnique. Bonaparte dá demonstração de<br />
confiança em <strong>Monlevade</strong>!<br />
As du Lac eram sobretudo receptivas e acolheram Jean e Martinho<br />
de braços abertos. O pai, Secundus, ainda que discretamente<br />
desconfiado, recebeu-os também de forma mais que amistosa.<br />
Imaginou ficar no lucro se pelo menos um deles viesse a se tornar<br />
seu genro. Assim, parte dos dias que antecederam ao início<br />
das aulas na Politécnica e no Lycée Napoléon foram de agradáveis<br />
conversas, e carícias furtivas, na aprazível propriedade que<br />
a família do viúvo habitava nos arredores de Paris. As moças<br />
eram bem formadas e estudavam música e línguas estrangeiras<br />
por meio de professores particulares. Tia Lucillia Pius, por livre<br />
e espontânea vontade, encarregava-se de espionar as atividades<br />
parisienses dos rapazes, e as mantinha informadas do dia a dia<br />
dos seus hóspedes.<br />
Jean e Martinho não se sentiam ameaçados em maior escala<br />
pelos olhares sedutores de Bernadette e Monique. Nada de<br />
noivados precipitados. A ideia era de simples desfrute, coisas<br />
da juventude, suas prioridades eram outras. Na verdade não se<br />
descuidavam da preparação para enfrentar o início do período<br />
escolar. Jean esgotava quase todo o seu tempo livre passando<br />
os olhos nos livros do estoque de Bènèdict Dubois. Virava e revirava<br />
as páginas da primeira edição dos 35 volumes da fabulosa<br />
L’ Encyclopedie organizada em 1751 pelo eminente Diderot. Tentava<br />
controlar desejo de conhecer todas as coisas de uma só vez,<br />
pois identificava um novo mundo em cada obra que tocava as<br />
mãos. Aí aparecia a bem-aventurança de ter amigo com propósitos<br />
semelhantes. Continha-se trocando ideias com Kostas sobre<br />
prioridades de o que ler em primeira instância.<br />
183
184 Jairo Martins de Souza<br />
Dubois apreciava a ansiedade do moço. Antes fossem assim<br />
todos os estudantes do Quartier Latin, dizia consigo mesmo. Já o<br />
Breu, em vista das necessidades do dono, estava um tanto obeso<br />
pela falta de atividade no campo. Jean raramente saía com o<br />
animal pelas ruas e redondezas, e as únicas pedras que seu cão<br />
andava abocanhando eram as que, brincando, jogava para que<br />
as buscasse no quintal dos Pius.<br />
31 de outubro de 1809. Finalmente o primeiro dia de aulas.<br />
Nas horas iniciais de apresentação do ano letivo, a Politécnica<br />
efervesceu com a chegada dos novos estudantes. A maior parte já<br />
se conhecia diante de presença antecipada nas ruas de Paris enquanto<br />
buscavam moradia e faziam reconhecimento da cidade,<br />
dos bares, parques e demais amenidades. Outros apresentavamse<br />
entre si e faziam troças introdutórias. Pouco durou. Como sabido,<br />
a escola era lastreada em moldes militares e os iniciantes<br />
foram rapidamente colocados em forma e seguidos os procedimentos<br />
protocolares de homenagens à pátria. Os alunos veteranos<br />
estavam também presentes trajando reluzentes uniformes de<br />
gala e chapéus crista de galo.<br />
Jean estava exultante! Sabia que este ano servir-lhe-ia para<br />
aprofundar conhecimentos sociais. Não. Não é que a ciência fosse<br />
deixada de lado. Mas, de início, o propósito essencial da Politécnica<br />
era o de elevar a consciência do aluno transformando-a na<br />
de cidadão. Era sua filosofia de ensino permanente, ainda que<br />
andasse criando algumas situações desagradáveis. Alguns cadetes<br />
às vezes se mostravam contrários ao regime e repeliam ostensivamente<br />
certas orientações do governo.<br />
Daí para frente sempre foi assim! O senhor se lembra dos<br />
protestos de 1968? Tisserand justificou. Paris foi incendiada! E o<br />
foco da revolta e da insatisfação partiu exatamente das universidades<br />
de Nanterre, da Sorbonne... e da Politécnica em que Jean<br />
começava a ser integrado. Não somente os estudantes pediam<br />
reformas como também o país estava desgastado com a guerra da<br />
Argélia. É o que gerou o famoso “é proibido proibir”, e provocou<br />
a queda do prestigiadíssimo herói da Segunda Grande Guerra, o<br />
Marechal De Gaulle. Isso teve efeito dominó em todo o mundo,<br />
pois alcançou rapidamente a Universidade de Berkeley, na Califórnia,<br />
e fermentou o descontentamento que lá já era grande. E<br />
enquanto os universitários ianques pediam o fim da guerra no
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Vietnã, os hippies arregaçavam as mangas e praticavam a contracultura.<br />
Nada de cabelo escovinha. Nada de terno e gravata.<br />
Nada de cigarros finos e uísque. Tudo de maconha e drogas pesadas.<br />
Foi por meio dessas que os Beatles escreveram parte de sua<br />
história musical. Não é por outra razão que Lennon e McCartney<br />
criaram Lucy in the sky with diamonds... A garota com olhos de<br />
caleidoscópio.<br />
Aconteceu daquele jeito, Tisserrand prosseguiu, e culminou<br />
com a promiscuidade do festival de Woodstock em 69.<br />
Tudo isso (ajunte-se aqui o I had a dream, que foi como ficou<br />
conhecido o sonho do pastor Luther King) fez detonar o prestígio<br />
do então presidente Lyndon Johnson. Um fato notável estava por<br />
acontecer. Os negros nunca mais seriam proibidos de frequentar<br />
banheiros de brancos ou assentar-se nos bancos da frente de conduções!<br />
No Brèsil os protestos da distante Polytéchnique ecoaram<br />
por meio dos estudantes que levantaram bandeiras contra o regime<br />
militar. A geração de 64. O resto o senhor já sabe.<br />
E desculpe-me por tais divagações, Tisserand disse-me com<br />
olhar suplicante. No fundo partiram de exemplo tomado da longínqua<br />
revolução francesa dos tempos de infância, e adolescência,<br />
do filho do fidalgo <strong>Monlevade</strong>.<br />
Respondi-lhe calmamente, entendo! E confirmei com sorriso<br />
tímido. Ele agradeceu-me dizendo, merci, e então esclareceu que,<br />
a bem da verdade, fica aqui estabelecido que desde o findar do<br />
século dezoito os colegas de Jean de <strong>Monlevade</strong> sempre tiveram<br />
atitude de recusa quando julgavam estar a nação prejudicada.<br />
E não era incompreensível o gosto que o imperador devotava<br />
à Polytéchnique. Nela repousavam as ideias dos enciclopedistas e<br />
o Iluminismo. E foi a excelência do seu ensino que a fez tornar-se<br />
a menina dos seus olhos. Tanto é assim que, em 1798, na campanha<br />
do Egito, levou consigo quarenta e dois dos seus alunos. No<br />
final recheou o estoque de arte egípcia do Louvre.<br />
Pour la Patrie, les Sciences et la Gloire (pela pátria, pela ciência<br />
e pela glória). Essas palavras tornavam patente o propósito<br />
que a nação esperava da Politécnica. Mais ainda, resumiam o<br />
pressuposto ideal de Bonaparte. A pátria em primeiro lugar!<br />
O comandante da instituição passou em revista a tropa de<br />
estudantes já uniformizados, mas ainda desprovidos de espírito<br />
de caserna. Recebeu-os com palavras de incentivo e confiança<br />
185
186 Jairo Martins de Souza<br />
no futuro técnico da nação. Estamos defasados em relação aos<br />
ingleses e alemães. A França precisa investir em projetos industriais<br />
de porte e de infraestrutura. E de modernizar sua máquina<br />
bélica. A grande Enciclopédia de Diderot e D’Alembert diz da<br />
importância das especializações na engenharia de guerra. A de<br />
ataque e defesa. A de construção naval. E a de pontes, inclua-se<br />
aí as flutuantes, que façam nossas divisões atravessarem rios de<br />
águas caudalosas de um dia para o outro. E estradas. E grandes<br />
canais de águas e, finalmente, o apoio simultâneo à estrutura de<br />
construção civil.<br />
Enquanto observava atentamente o rosto de cada novo aluno,<br />
o oficial acrescentou que a matemática teria prioridade máxima.<br />
E que, por exemplo, o domínio das teorias de probabilidades<br />
dá mais precisão à logística de deslocamentos de homens, cavalos,<br />
canhões, carroças de carga, intendência e comunicação entre<br />
divisões de combate. Faça-se aqui justiça a Fermat e a Pascal:<br />
foram-nos de grande valia neste campo... A Politécnica, senhores,<br />
foi criada para fornecer cérebros capazes de prover inteligência a<br />
tais intenções.<br />
Foi mais ou menos assim, Tisserand prosseguiu, que o militar<br />
disse estar encerrando participação na cerimônia, e informando<br />
com sorriso alvissareiro que o melhor estava ainda por vir, e que<br />
estava feliz por estar ali presente, enfim, como a aplicação de todos<br />
seria importante para o progresso tecnológico do povo francês.<br />
Terminado o ritual de boas vindas, foram ouvidas outras autoridades<br />
governamentais e convidados ilustres.<br />
Perfilado e, ao mesmo tempo, atento aos discursos que ditariam<br />
seus próximos anos, Jean lembrava-se dos esforços que<br />
fizera para estar ali perante tantas autoridades. Por exemplo, nas<br />
madrugadas escuras de <strong>Monlevade</strong>, estudara antecipadamente<br />
os seis volumes do curso completo de Matemática de Etienne<br />
Bézout. Deu certo. Era a bíblia da matéria fosse o propósito de<br />
alguém conseguir acesso à Politécnica. Nela a geometria era priorizada<br />
em relação às enigmáticas soluções algébricas.<br />
O manual do aluno lhes foi passado com extenso leque de<br />
recomendações, ressalvas e normas de comportamento social.<br />
Destacava essencialmente que mesmo o militar não credenciado<br />
tem papel social distinto e é, por excelência, o braço armado da<br />
Nação. Logo após o encerramento da cerimônia, todos se enca-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
minhariam para aula inaugural celebrada em alto estilo e grande<br />
pompa. <strong>Monlevade</strong> sorriu. A cerimônia dizia-lhe ser homem formado,<br />
e obtendo certificado de aceitação na duríssima sociedade<br />
francesa. Breve vestiria casaca, calção justo, meia-calça, boné<br />
francês, laçarote e sapato de campanha. Botões e galões dourados<br />
sobressairiam nas mangas do casaco e no quepe do boné.<br />
O mesmo uniforme do soldado de infantaria do exército francês,<br />
Tisserand esclareceu. A partir de 1804, por ordem expressa<br />
do imperador, era a vestimenta oficial dos alunos da Politécnica.<br />
A Polytéchnique. Nas celebrações festivas ostentavam um pesado<br />
fuzil: na ponta do seu cano reluzia afiada baioneta.<br />
Maior ainda foi seu estado de encantamento ao lembrar-se<br />
que Monge, o grande geômetra, pudesse vir a ser seu professor!<br />
Seu rosto espalhava sentimento de felicidade. Lembrou-se de<br />
algo que lera sobre a escola que Pitágoras (que não deixava de<br />
ser um conterrâneo de Kostas), fundara bem antes do nascimento<br />
de Cristo. No seu portal de entrada, diziam estar escrito: Não entre<br />
aqui quem não for um geômetra. Conteve a custo o riso. Temia ser<br />
mal interpretado pelos colegas e oficiais que compunham a tropa<br />
de iniciantes. Não entre na Politécnica quem não for... um Monge!<br />
Foi quando a autoridade que falava passou a palavra final<br />
que estava reservada para o imperador. A grande atração do<br />
evento. Próximo a ele, Eblé. Em carne e osso. Jean o conhecia<br />
muitíssimo de nome. Era o respeitado general chefe de engenharia<br />
do exército nacional. O jovem levantou mais o peito e afundou<br />
a barriga. Uma fração de segundo depois elevou o solado traseiro<br />
do grosseiro sapato militar. Sentiu-se mais alto. À medida que<br />
Bonaparte falava, percebeu a energia que emanava do corpo do<br />
comandante supremo em posição assumida de quem se prepara<br />
para o combate. Diante de quem causava calafrios em reis e<br />
generais de todo o mundo, calha bem o silêncio e, no pátio da<br />
escola, não se ouvia nenhum outro som. Jean mal respirava!<br />
Fosse o caso, Tisserand ilustrou, ouvir-se-ia o bater de asas de<br />
minúscula mosca.<br />
Da pesada cabeça, afundada em um curto pescoço que parecia<br />
unido aos ombros arqueados, destacava-se o poderosíssimo<br />
rosto com seus insinuantes olhos cinza claros. Aos 39 anos, as palavras<br />
saíam-lhe da boca com facilidade criando, em alguns, sentimentos<br />
de temor; em outros, adoração. Fascinantes. Persuasivas.<br />
187
188 Jairo Martins de Souza<br />
<strong>Monlevade</strong> experimentava no ar uma inusitada sensação de<br />
força e poder! O sacrifício do pai, feito coxo por ferida de batalha,<br />
assomou-lhe à cabeça. A imagem de breves relatos de outros<br />
militares sacrificados em combate complementava o cenário. Naquele<br />
momento, para ele, a morte digna seria a de um soldado<br />
em batalha.<br />
As palavras faltam-me quando relato tais imagens, Tisserand<br />
desculpou-se. Então, para que tenhas noção precisa do idealismo<br />
de que Jean estava possuído, é bastante excluir do mundo a arte<br />
de Goya. Francisco Goya. Ainda que reconheça, confessou, ser<br />
solução excessivamente dramática, pois a obra do espanhol expressa<br />
obsessivamente a verdade. Mas também é verdade que a<br />
figura exponencial do imperador que discursava abortaria quaisquer<br />
imagens dos 80 quadros da famosa série Désastres de La<br />
Guerra. O cadete <strong>Monlevade</strong> rasgaria tais telas com a baioneta<br />
do seu fuzil.<br />
Napoleão, Tisserand prosseguiu, a despeito de algumas qualidades,<br />
enganava o povo assim como fazem todos os déspotas!<br />
E as pinturas do artista espanhol retratam a crueldade da invasão<br />
à sua terra que o imperador iniciara um ano antes de Jean entrar<br />
para a Politécnica. Pisara a península ibérica como pneu de bicicleta<br />
que atropela formiga miúda. Após a fracassada experiência<br />
russa, a situação se reverteria. Nem Jean, nem qualquer dos outros<br />
aspirantes, tinha consciência da insanidade das pretensões<br />
de conquistas do grande orador.<br />
E o fidalgo <strong>Monlevade</strong> parecia estar ali cochichando palavras<br />
de incentivo nos seus ouvidos. Não mais ouvia a voz do imperador<br />
que prosseguia discursando. O pano de fundo era o bater<br />
distante de tambores. De forma inusitada um intenso sentimento<br />
de orgulho e destemor caminhou por suas veias e artérias. Arrepiou-se.<br />
Por instantes, novamente sentiu-se audacioso soldado.<br />
Estivesse em campo de batalha, avançaria em linha reta até onde<br />
encontraria em trincheiras o acovardado exército inimigo!<br />
Na sua passagem pela tropa escolar, o imperador pareceu<br />
ter assentido com a cabeça ao fitar o filho do fidalgo <strong>Monlevade</strong>.<br />
Explicara anteriormente que sairia mais cedo devido a compromissos<br />
inadiáveis. Olhar penetrante. Poucos no mundo podiam<br />
sustentá-lo. Tomado por intenso rubor, o jovem abaixou timidamente<br />
o rosto.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
No entanto teve tempo para captar sensação de ter lido algo<br />
nos lábios do Marechal. Do alto do seu trono, Bonaparte nunca<br />
deixaria de ser um militar. Pareceu-lhe terem sido frases vagarosas,<br />
conto com você, <strong>Monlevade</strong>. Você é do meu corpo de inteligentsia.<br />
Vai ajudar a expansão dos ideais franceses para outras<br />
terras e continentes.<br />
Ecoou pelos ares sequência planejada de tiros de mosquete.<br />
O imperador voltou-se para a saída acompanhado por sua guarda<br />
pessoal.<br />
Não era qualquer pedido pessoal de Bonaparte certamente<br />
irrecusável? O jovem respirou fundo. Passaram-se alguns poucos<br />
minutos até que voltasse à posição mais relaxada de descansar.<br />
A cerimônia se alongava. Um dos noviços, levado pelo cansaço<br />
e pela madrugada gasta em taverna do Quartier, assustou<br />
os demais colegas ao desmaiar. Estava extenuado. Quase desmanchou<br />
a formação, como se tivesse tido ideia de provocar um<br />
incontrolável efeito dominó. Foi sustentado pelos colegas, mas<br />
vergonhosamente teve que ser conduzido até a enfermaria.<br />
Felizmente Napoleão já havia se acomodado na poltrona de<br />
veludo vermelho de sua confortável carruagem. Não abriria a<br />
cortina de sua janela, no entanto viajaria ovacionado pelas ruas<br />
de Paris! Demorara mais que o previsto para chegar à porta de<br />
saída. A caminhada fora interrompida, em vários momentos, para<br />
atender a demonstrações de apreço de alguns oficiais que haviam<br />
participado de campanhas passadas. Daí a minutos, seguiria célere<br />
acompanhado por pesada estrutura de segurança e apoio.<br />
Alguns cavaleiros vestidos com uniforme de gala preparavam-se<br />
para subir em seus cavalos. Mas o grosso da movimentação girava<br />
em torno do séquito de carruagens e carroças de apoio que<br />
ultimava detalhes para a partida.<br />
Desde os tempos dos faraós funciona assim, Tisserand comentou<br />
com ar de tristeza. Os custos de deslocamentos de imperadores<br />
e presidentes sempre foram elevadíssimos. Pense na<br />
penúria do povo francês na ocasião. Reflita sobre nossos dias atuais.<br />
Inclusive os do Brésil. Poucos fazem ideia de quanto se gasta<br />
quando um rei ou presidente vai de uma cidade A para outra<br />
B. Há ocasiões que nem fazem discurso. Rasgam fitas simbólicas.<br />
Participam de festas e jantares. Três horas depois fazem o mesmo<br />
em outra cidade ou Estado. A cada uma delas o gasto poderia le-<br />
189
190 Jairo Martins de Souza<br />
vantar hospital de porte médio. Ou grande escola. A cada passeio<br />
tudo começa do zero. Assentos de aeronaves. Carros. Cerimoniais.<br />
Convidados. Helicópteros. Horas extras. Hotelaria. Jatos privados.<br />
Logística. Milhares de pessoas. Pessoal de segurança. Políticos. Políticos...<br />
A maior parte deles não deve ser levada a sério!<br />
Mesmo movido por impulso inicial, não retruquei nada sobre<br />
a última frase do estrangeiro. É verdade que circula pelo mundo!<br />
E ele, dando continuidade à descrição que desviara curso, informou<br />
terem sido os novos politécnicos encaminhados para aula<br />
inaugural e, posteriormente, para suas classes. Lá Jean soube ser<br />
o aluno de número 52. Tanto nos quartéis quanto nos colégios militares,<br />
para alguns propósitos, deve prevalecer o princípio da impessoalidade.<br />
O recruta é um deles. O indivíduo é simplesmente<br />
associado a um número. <strong>Monlevade</strong> fica então ligado ao 52.<br />
Não sei se essa era o posição com a qual fora classificado entre<br />
os jovens nacionalmente ingressados naquele ano, Tisserand<br />
admitiu. O número foi o de quatrocentos. Pode ser. O fato é que<br />
as aulas introdutórias e as atividades físicas foram intensas nos<br />
primeiros dias.<br />
O período de adestramento perdurou por poucas semanas.<br />
<strong>Monlevade</strong>, assim como os outros noviços, sofreu na própria pele<br />
as consequências da dureza da ideologia de formação militar.<br />
Leva-se o homem a zero para forjar a condição de inferioridade<br />
inerente à disciplina hierárquica. Para tanto o sinal de continência<br />
ao superior é pormenor indispensável.<br />
O que, por sinal, foi circunstância única de constrangimento<br />
para Jean durante sua fase inicial de adaptação. Estava absorvido<br />
circulando pelo pátio da escola e, inadvertidamente, passou<br />
por oficial de alta patente sem prestar-lhe a devida reverência.<br />
O coronel chamou-lhe rigorosamente a atenção e Jean sentiu-se<br />
extremamente humilhado. Não foi somente isso. Teve que fazer<br />
diversas flexões comandadas por sargento que, para tanto, fora<br />
convocado pelo irado oficial. O pior é que fora obrigado a ficar<br />
retido no quartel em dia em que haviam, ele e Martinho, programado<br />
visita às irmãs du Lac. Não se aborreça. Foi o que Martinho<br />
disse-lhe dias mais tarde. Isso vai passar.<br />
Além do que as escolas militares funcionam da mesma maneira<br />
que os quartéis, agora foi Kostas Zavoudakis quem acrescentou.<br />
É lei geral. Por todo mundo é assim. Parece-me que os<br />
soldados de todos os cantos leem os mesmos livros. Não têm ou-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
tro recurso. A Arte da Guerra de Sun Tzu é apreciado há mais de<br />
2000 anos. Recentemente é que Napoleão fez restrições às manobras<br />
intelectuais de O Príncipe, do florentino Maquiavel. Para<br />
o militar em combate, o casaco roto é arma única para combater<br />
o frio do inverno. A ideia é reducionista. É a de transformar o cidadão<br />
em elemento. Na Grécia não é diferente. Faz-se com que o<br />
recruta beije o chão para lembrá-lo de sua condição de obediência<br />
irrestrita. Na guerra o canto do cisne é o hino nacional, Allons<br />
enfants de la patrie, le jour de gloire...<br />
Então eu disse a Tisserand que o mesmo fazem os brasileiros<br />
antes dos jogos da sua seleção de futebol, Ouviram do Ipiranga às<br />
margens plácidas...<br />
Ele sorriu. E, um átimo depois, disse também gostar de outras<br />
áreas esportivas, inclusive competições de ciclismo. Na França,<br />
explicou, o ciclismo tem adeptos desde o porto de Calais até os<br />
Montes Pirineus. Desde o Norte até o Sul. Quem, no mundo, nunca<br />
ouviu falar do Tour de France? No entanto, disse-me que preferia<br />
não se alongar no tema, pois o tempo estava se escoando. Eu<br />
lucraria mais, finalizou, se imediatamente prosseguisse ouvindo<br />
o que Kostas Zavoudakis dizia a <strong>Monlevade</strong>. O grego procurava<br />
contemporizar, o assunto prosseguia sendo a detenção transitória<br />
que este havia sofrido...<br />
Muitos, no mundo, gostariam de estar no seu lugar, Jean. O<br />
fechamento da Academia de Ciências fez com que outros grandes<br />
mestres tenham ido para a Politécnica. Não se surpreenda, se,<br />
com a ausência de Lagrange, seu professor de Cálculo venha a<br />
ser o próprio Fourier! Você é da Polytéchnique e, portanto, terá, aí<br />
é que deverá ficar atento, nos seus calcanhares, mulheres interessantíssimas<br />
à caça de marido. As du Lac são exemplos disso. Não<br />
é soldado raso. Seu fuzil não é extensão do seu corpo... como do<br />
soldado raso. Um braço. Uma perna a mais... bem, nada o impedirá<br />
de ter contato direto com o próprio imperador!<br />
Foi aí que, intempestivamente, o grego teve que interromper<br />
seu raciocínio e pediu licença para atender chamado de Bènèdict<br />
Dubois. O livreiro estava tendo dificuldades para entender o que<br />
lhe solicitava cliente com sotaque especial!<br />
191
192 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
IX<br />
João Gomes Abreu de Freitas<br />
O capitão João Abreu de Freitas estava na França há apenas dois<br />
dias. Figura de realce na Província de Minas Geraes, deixara esposa<br />
e filhos há prolongadas semanas para realizar velho sonho<br />
de conhecer a Europa. Não lhe agradava viajar desprovido de<br />
mulher, mas sua senhora alegou não suportar viagem de tão longo<br />
curso. Tinha tendência a enjoos de tal monta que suaves solavancos<br />
de charrete provocados pelas ondulações das estradas<br />
próximas já lhe criavam desconfortável ânsia de vômito. Imagine<br />
o que aconteceria no convés de um navio! O senhor, a esposa<br />
dissera-lhe, teria que gastar todo o seu tempo derramando baldes<br />
de água doce na minha cabeça!<br />
Freitas curvou-se diante da alegação. Viajaria só. Consolouse<br />
mais ainda ao se lembrar que a mulher não suportava ausência<br />
de casa. O zelo e o amor que tinha pelos filhos, os pais em idade<br />
avançada, suas coisas, seus escravos, ajuntar-se-iam a outros incontáveis<br />
motivos. Tanto era assim que a viagem mais distante<br />
que fizera fora até Vila Rica, a capital da Província. Ah, viagens<br />
marítimas... Ela não conhecia, não tinha saúde, e nem mesmo<br />
interesse em participar de uma delas!<br />
Já na casa dos cinquenta, há anos o capitão vinha postergando<br />
a empreitada europeia que, de fato, se resumia a intenso<br />
desejo de pisar os solos da França e de Portugal. Lisboa e Paris. A<br />
primeira por ser terra dos avós e Paris, bem, Paris era o centro da<br />
cultura mundial da época.<br />
Era daqueles homens que apreciavam a leitura, mas sua intensa<br />
participação na vida da província, e na de suas propriedades,<br />
dificultava acesso a obras literárias e a viagens que almejava<br />
fazer. Com algumas restrições, em termos formais, fora bem educado<br />
de berço. Aprendera a gramática, o latim e o francês: língua<br />
193
194 Jairo Martins de Souza<br />
que chegou a dominar razoavelmente, mas, pela falta de uso, caíra<br />
no esquecimento.<br />
Homem prático, visitaria museus e as Tulherias, mas tentaria<br />
entender melhor, in loco, o que acontecia na Europa e suas ligações<br />
com Portugal. A expectativa era união do útil ao agradável.<br />
O fato é que, enquanto a temporada de inverno dava sinais de<br />
chegada em Paris, a floração do café prometia safra alvissareira<br />
em suas áreas agrícolas do Vale do Piracicaba. Aproveitaria<br />
estada para estudar possibilidade de negociação direta com importadores<br />
europeus. A ideia de redução de interferência de atravessadores<br />
cariocas – e de funcionários de firmas inglesas – estava<br />
há tempos germinando em sua cabeça. Visitaria fábricas de<br />
equipamentos agrícolas. No Brasil não existia fundição de ferro<br />
suficiente para fornecimento de ferramentas nem em quantidade,<br />
nem em qualidade. E, pior ainda, Lisboa havia cerceado a criação<br />
dessas indústrias e ordenado destruição das existentes.<br />
Encurtando as palavras, o ferro importado não era bastante<br />
para ampliação dos seus negócios e suas terras. Os esforços e os<br />
recursos das fundições coloniais, diziam os portugueses, devem<br />
ser prioritariamente destinados para o fabrico de ferramentas de<br />
extração de ouro e diamantes. A colônia nos é de grande utilidade<br />
para comercializar esses produtos. É o que nos dá dinheiro para<br />
cobrir despesas de além-mar.<br />
Situação constrangedora! Por incrível falta de matéria prima,<br />
os ferreiros das redondezas não davam conta de atender a forte<br />
demanda dos domínios agrícolas de Freitas. Ele ouvira rumores<br />
de que em breve isso iria mudar, mas por enquanto... por enquanto<br />
tentaria importação direta.<br />
A oportunidade daquele ano de 1809 não podia ser perdida.<br />
O gado engordava e o charque era produzido em grande quantidade<br />
e, apesar das estradas ruins e falta de pontes, chegava a<br />
bom preço no mercado carioca que fora grandemente reforçado<br />
pela chegada da corte do futuro João VI. Estava faturando bem<br />
e a perspectiva era a de que os negócios seguissem a todo vapor.<br />
Cerca de doze mil novos consumidores de elite. A maioria alimentada<br />
pelo erário imperial. O problema é que este, o que não<br />
se trata de novidade, costumava não honrar compromissos. O<br />
capitão ouvia queixas inesgotáveis de parceiros que compunham<br />
o grosso do comércio da cidade. O pessoal do Ministério de Ne-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
gócios do Reino fornecia bilhetes de crédito às vezes de difícil<br />
resgate.<br />
Então parte do que lhes seria destinado, assim como o excedente<br />
de produção, poderia ser absorvido por empresas de shipping<br />
supply de frotas de navios transoceânicos. Era o que também<br />
pretendia negociar com investidores franceses que se dedicavam<br />
ao ramo. A falta de alimentos de qualidade durante sua própria<br />
viagem é que lhe abrira os olhos para a oportunidade de novo<br />
negócio. Gastara quarenta e oito dias para chegar até Lisboa, o<br />
corpo enfraquecera, sentira na própria pele a carência de suprimentos<br />
básicos na embarcação. E foi após passar por tais desconfortos<br />
é que prosseguira por terra, e em melhores condições de<br />
abastecimento, até Paris, seu destino final.<br />
A empreitada não foi fácil de ser levada a cabo. Portugal estava<br />
em estado de guerra declarada contra o governo de Napoleão<br />
e Freitas havia conseguido entrar no país sob auspícios de amigos<br />
influentes no comércio internacional. O fato de ser brasileiro<br />
ajudou bastante, pois os portos da colônia haviam sido abertos<br />
para nações estrangeiras pelo império português. A França era<br />
uma das exceções, mas era comum fazer negócios com países em<br />
estado de conflito por meio de intermediários. Os governos lutam<br />
entre si. As pessoas e empresas, não! Por exemplo, a partir do Rio<br />
havia possibilidade de se levar café, açúcar e madeira para portos<br />
do Mediterrâneo ou o de Rotterdam, nos Países Baixos. E, de lá,<br />
por terra, seguiriam para os compradores finais. Bastava que se<br />
ajustassem bem as cargas de navios e interesses dos armadores.<br />
Transações triangulares. O frete ficava mais caro, mas funcionava.<br />
Também Freitas acreditava que a situação de litígio entre Portugal<br />
e França não perduraria. E aí as madeiras de lei das suas terras<br />
poderiam ser incluídas em pauta de exportação sem os atropelos<br />
de costume. Os europeus e a revolução industrial consumiam-nas<br />
com incrível voracidade. Barcos. Navios. Móveis. Casas. Nem se<br />
mencione os promissores acionamentos a vapor! A Mata Atlântica<br />
de suas montanhas era pródiga naqueles e em outros tipos menos<br />
nobres de árvores. Com isso também abriria caminho para novas<br />
áreas de pasto para o seu plantel de bovinos. Nem mesmo tinha<br />
conhecimento do número total de animais que possuía!<br />
Por fim, visitaria a faculdade de medicina de Paris. Um dos<br />
filhos, que recentemente iniciaria estudos médicos no Rio, havia<br />
195
196 Jairo Martins de Souza<br />
lhe pedido permissão futura para completar sua formação acadêmica<br />
no estrangeiro. Freitas analisaria as condições. Quando<br />
a situação diplomática melhorasse, poria em prática o que fosse<br />
possível quanto ao assunto.<br />
Mas para conseguir tais coisas, havia grande problema já citado<br />
por mim nas entrelinhas, Tisserand lembrou. O capitão João<br />
Abreu de Freitas não se lembrava bem do francês falado. O ponto<br />
positivo é que lia com certa facilidade, mas, reforço, carecia de<br />
bons ouvidos e segurança suficientes para discutir questões delicadas<br />
que normalmente envolvem assuntos comerciais. A solução foi<br />
intérprete arregimentado no Rio a troco de bom pago contratual.<br />
Não passou de Lisboa. Resultado das agruras da travessia do<br />
Atlântico, fase inicial da viagem, o jovem profissional sucumbiu<br />
à má forma física de quem se dedica integralmente às letras. Mal<br />
desceu do navio, foi levado às pressas e deixado sob tratamento<br />
em hospital civil de uso exclusivo dos ingleses que, na ocasião,<br />
detinham as rédeas de comando da capital dos lusitanos. Não se<br />
recuperou a tempo.<br />
Freitas seguiu em frente. Não era homem de desistir facilmente<br />
de suas empreitadas. Conseguiu sua meta e, em tempo hábil,<br />
chegou a Paris. Comunicava-se por meio de sinais, e das poucas<br />
palavras que exercitara pronúncia com o frustrado intérprete. Era<br />
inteligente e acreditava poder melhorar com o passar dos dias.<br />
É para tanto que entrara na livraria de Dubois. Um dicionário<br />
de melhor procedência ser-lhe-ia de grande utilidade. Por hora,<br />
contratara, com sucesso, serviços de hotelaria e alimentação no<br />
hotel Saint-Séverin, localizado perto da catedral de mesmo nome.<br />
E foi caminhando pelas ruas adjacentes que chegara à Saint-Jacques.<br />
Fora atraído pela exposição de livros colocados à vista por<br />
Dubois e pegara um deles que, em especial, havia lhe chamado<br />
atenção. Os autores estiveram em alguns limites de terras brasileiras!<br />
Folheou-o. Fazia parte de outros quatro volumes... O título<br />
era Le voyage aux régions equinoxiales du Nouveau Continent,<br />
fait en 1799-1804, par Alexandre de Humboldt et Aimé Bonpland.<br />
Ainda no Brasil, Freitas lera sobre tal viagem em jornais que<br />
lhe chegavam com semanas de atraso procedentes do Rio de Janeiro.<br />
Na ocasião, fora notícia de primeira página e tinha tido tanto<br />
destaque quanto o acompanhamento que os brasileiros faziam<br />
dos fatos inusitados que se passavam em solo francês.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Com isso não quero dizer que o habitante do Brasil de 1809,<br />
e em particular a corte portuguesa, fizesse pouco caso da Revolução<br />
Francesa. Estaria cometendo pecado fatal, Tisserand disse. As<br />
guerras e conflitos diplomáticos europeus eram acompanhados<br />
por meio de informes e boletins reservados emitidos, tanto pelos<br />
próprios portugueses, como também por espiões. Provavelmente<br />
iam e vinham a cada navio aportado no porto do Rio de Janeiro:<br />
Dom João mantinha-se vigilante em seu refúgio carioca.<br />
E também não posso deixar de dizer, prosseguiu, que a obra<br />
de Humboldt que o Capitão Freitas tinha em mãos havia mudado<br />
o conceito que os europeus tinham da América do Sul. Nem<br />
tanto do Brasil, pois dele a coisa se deduzia por extensão: ninguém<br />
pode esquecer que os portugueses, a não ser por especial<br />
licença, não permitiam que estrangeiros colocassem os pés no<br />
solo de sua colônia. Haviam negado prerrogativa até mesmo ao<br />
próprio Humboldt! Mas não há como esconder território de quase<br />
oito milhões e quinhentos mil metros quadrados! E a riqueza<br />
dos dados e textos contidos nas páginas dos livros do alemão fez<br />
com que o mundo compreendesse toda a riqueza e diversidade<br />
dos solos americanos. Humboldt era um gênio! Abriu o diálogo<br />
entre os hemisférios do globo, pois escreveu que os povos não são<br />
melhores ou piores: são apenas diferentes. Antropólogo. Botânico.<br />
Diplomata. Etnógrafo. Físico. Geógrafo. Geólogo. Humanista.<br />
Mineralogista. Vulcanólogo. Não fosse bastante, foi quem lançou<br />
as bases para estruturar os estudos de Geografia, Geologia, Climatologia<br />
e Oceanografia.<br />
Falava-se muito dele nas rodas intelectuais cariocas, tendo<br />
sido grande o destaque dado pela imprensa à ordem de prisão<br />
emitida contra ele pelo governo de Lisboa. Nas anotações do<br />
abade a situação estava ressaltada em caixa alta!<br />
Aí Tisserand explicou que essas são as razões pelas quais<br />
João Abreu de Freitas passou a olhar algumas páginas da obra<br />
que tinha em mãos com mais atenção. Foi quando ouviu algo que<br />
lhe soou estranho.<br />
Qu’est-ce que vous demandez?, o dono da livraria disse-lhe.<br />
O brasileiro virou-se, atrapalhado. Estava tão absorvido por pensamentos<br />
que não observara a chegada de Dubois. E não entendera<br />
a pergunta. Ato contínuo disse sem pensar ao balconista, Je<br />
suis Brèsilien, eu sou brasileiro. Dubois sorriu. A despeito da obs-<br />
197
198 Jairo Martins de Souza<br />
tinada ofensiva de Napoleão contra o povo lusitano, recebia muitas<br />
obras de Coimbra e vendia bastante os poemas de Camões. O<br />
cliente falava português. Vou convocar Kostas Zavoudakis!<br />
Não preciso lhe dizer, mon ami, Tisserand disse-me, que aí foi<br />
o momento em que o grego havia interrompido sua conversação<br />
com Jean nas linhas finais do capítulo próximo passado. Atenderia,<br />
convocado pelo patrão, a cliente que falava português com<br />
sotaque diferente!<br />
O longo período passado por Zavoudakis em companhia<br />
do português João de Barro mostrou, pela primeira vez, grande<br />
utilidade prática. O cliente brasileiro rapidamente sentiu-se<br />
à vontade, mesmo que ambos tivessem perdido alguns minutos<br />
se adaptando. Ele, ao lusitano estrangeirado de Kostas. Esse, ao<br />
sotaque brasileiro de um habitante das Minas Geraes. E que, esquecido<br />
momentaneamente do propósito inicial de aquisição de<br />
dicionário, permitiu que o centro da conversa fosse o belo livro<br />
que tinha em mãos. Os quatro volumes de Humboldt vendem<br />
muito bem, Kostas assegurou-lhe. Não os li em detalhes, mas se<br />
precisar de esclarecimentos, posso solicitar a um amigo que lhe<br />
explique o que for do seu interesse. O homem respondeu que sim.<br />
Gostaria de ter melhores informações. Kostas pediu-lhe licença e<br />
encaminhou-se para o segundo piso da edificação. Quando voltou<br />
o jovem <strong>Monlevade</strong> estava ao seu lado.<br />
Tenho praticamente de cabeça os segmentos do Le Voyage<br />
que se relacionam a materiais vulcânicos e mineralogia, Jean disse-lhe.<br />
Kostas traduziu e imediatamente Freitas indagou-lhe o porquê<br />
de tamanho interesse. O moço poderia ser um dos seus filhos!<br />
Eles também morriam de amores pelos minérios de sua terra!<br />
Jean foi seco. Trata-se de amor antigo. No entanto, percebendo<br />
sua aparente indelicadeza, complementou que lhe agradava a<br />
ideia de desvendar os mistérios da natureza. Em particular os dos<br />
minérios e terras. Então você devia conhecer as minhas, Freitas<br />
disse-lhe. Lá os minérios de ferro e alumínio afloram à superfície...<br />
Bem, Tisserand disse parecendo estar com ar cansado, daí<br />
se pode concluir que a conversa passaria a ser interminável. Que<br />
fique o miolo dela a cargo da imaginação do senhor, mon ami.<br />
Digo-lhe somente que, no seu término, o brasileiro preparava-se<br />
para sair carregando em sacola de couro os volumes do Le voyage...<br />
como contrapartida deixara cento e quarenta e oito francos
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
pagos diretamente ao próprio Dubois. O livreiro ficara feliz e disse<br />
para si mesmo recompensar especialmente a Jean por mais essa<br />
venda. A Kostas caberia, conforme combinação anterior, pequeno<br />
percentual sobre o valor de capa.<br />
No entanto não ficaria somente nisso, pois antes que se precipitasse<br />
para a Saint-Jacques, o grego trouxera-lhe dicionário que<br />
sabia existir em prateleira pouco usada da loja. Tamanho fora<br />
seu gosto pela conversação que o brasileiro não se dera conta de<br />
que lhe faltara suprir o principal motivo de entrada no estabelecimento!<br />
O Nouveau dictionnaire Français-Portugais era de autoria<br />
original do capitão Manuel de Sousa e fora atualizado, e editado,<br />
sob a responsabilidade de Joaquim José da Costa e Sá. Custarlhe-ia<br />
mais 64 francos. O capitão brasileiro barganhou. Em minha<br />
terra, Minas Geraes, se faz assim, disse justificando-se. Dubois,<br />
após rápida avaliação mental, propôs-lhe total de duzentos francos.<br />
Negócio fechado. Economizara 12.<br />
O comprador cumprimentou a todos pela gentileza do atendimento<br />
e, finalmente, tomou direção do hotel Saint-Séverin. Dissera<br />
que iria voltar.<br />
Dois dias depois cumpriu a promessa. A ideia era aguardar<br />
pelo sábado seguinte, pois tivera conhecimento que o jovem<br />
<strong>Monlevade</strong> estaria ocupado ao longo da semana. O rapaz se interessara<br />
fortemente pelas coisas e pela descrição que fizera de<br />
sua fazenda de São Miguel do Piracicaba. E o capitão Freitas, não<br />
obstante a dificuldade de comunicação, contaria as horas para ter<br />
com ele mais alguns dedos de prosa.<br />
Kostas havia colaborado impecavelmente para que se fizessem<br />
entendidos. Mas uma semana é muito tempo para quem está<br />
só em país estrangeiro! Frustrado por não estar logrando êxito<br />
para iniciar suas gestões comerciais, o brasileiro resolvera procurar<br />
ajuda a quem achou ter competência para tanto. Não conseguia<br />
se comunicar. O aforismo de que qualquer ideologia sempre<br />
deve ser associada a um orçamento, fê-lo decidir deixar as tão desejadas<br />
visitas culturais para após a conclusão de sua agenda de<br />
possíveis negócios. Ficaria por duas semanas. Decidira que fosse<br />
ou não bem sucedido, uma delas seria dedicada à exploração da<br />
cultura e dos museus.<br />
No entanto, por ora sua intenção era reencontrar o grego chamado<br />
Kostas. Kostas Zavoudakis. Tinha pressa!<br />
199
200 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
X<br />
O Brasil de 1809, segundo a visão do capitão Freitas<br />
201<br />
É período pequeno, Bènèdict Dubois disse a Kostas Zavoudakis.<br />
E perante as circunstâncias não posso impedi-lo de aceitar a proposta<br />
do capitão Freitas. Sentir-me-ia constrangido. Vinte mil<br />
francos é muito dinheiro! Em duas semanas receberá o que posso<br />
lhe em pagar em dois anos. Reconheço, Kostas, que o movimento<br />
cresceu com sua participação na loja. Você é bom de trato com<br />
o público. Alguns clientes, a maioria estudantes, têm denunciado<br />
veladamente preferência de serem atendidos especificamente por<br />
você. Explica bem o conteúdo das obras. É honesto. Não esconde<br />
se são boas ou não para essa ou aquela disciplina... bom, sei não<br />
ter sido assim, mas você dá ideia de ter nascido com a barriga<br />
por trás de balcões. E, portanto, sabe que mesmo precariamente<br />
posso dar conta do recado sozinho.<br />
Diante dessas palavras de Dubois, Tisserand prosseguiu, não<br />
creio ser preciso reforçar que Freitas havia proposto ao grego o<br />
serviço temporário de intérprete. Por quinze dias contados a partir<br />
do momento de fechamento do negócio. Cinquenta por cento do<br />
valor a ser pago de imediato. Os restantes 10.000,00 francos, no<br />
final do período ajustado. Kostas estava absolutamente exultante.<br />
As negociações só não ficaram acertadas em segundos porque<br />
ambos concluíram que, para tanto, careciam da aquiescência de<br />
Bènèdict Dubois.<br />
Foi o que vimos acontecer algumas palavras atrás. Kostas<br />
mudar-se-ia temporariamente para o hotel Saint-Séverin à custa<br />
do brasileiro. Mas manteria valor a ser pago ao casal Pius: o<br />
combinado incluía acompanhar o capitão vinte e quatro horas<br />
por dia.<br />
Quando estavam de saída, <strong>Monlevade</strong> surgiu do nada vestindo<br />
o celebrado uniforme da Polytéchnique. Parecia orgulhoso
202 Jairo Martins de Souza<br />
do fardamento. Um dos professores adoecera, e ele pedira licença<br />
especial para tratar de problemas particulares. Precisava urgentemente<br />
buscar encomenda de algumas pedras que solicitara a colega<br />
que estudava na école des Mines. Iria buscá-la na própria. O<br />
rapaz era cliente da livraria de Dubois. Sim. Posso conseguir algo<br />
desses minérios brasileiros no laboratório de metalurgia. Foi o que<br />
dissera a Jean, observando as folhas do livro de mineralogia que<br />
o outro lhe indicava. Desde que seja pequena amostragem e em<br />
forma de pó. Daí combinara que, quando disponíveis, avisar-lheia<br />
por meio de Dubois ou Kostas que, teoricamente, poderiam<br />
ser encontrados a qualquer momento no horário comercial de<br />
funcionamento da livraria.<br />
Pois nesta altura dos acontecimentos a cada dia Jean pernoitava<br />
menos na casa dos Pius. Dormia na própria Politécnica<br />
e levava vida de soldado submetido a intenso regime de estudo<br />
e pesquisa. Desde o início das classes, professores e alunos eram<br />
duramente exigidos pelas normas do novo tipo de ensino criado<br />
pela Revolução. E que, diga-se de passagem, passou a ser modelo<br />
para o mundo.<br />
Mas voltemos à situação que chegara a bom termo entre Kostas<br />
e o capitão Freitas. Dizíamos, lembram-se, que esse último<br />
estava por sair. E foi exatamente a chegada de <strong>Monlevade</strong> que fez<br />
com que repensasse a intenção. Pois, com isso, viu poder tomar<br />
proveito e ficar mais um pouco, deixando patente seu desejo de<br />
conversar com o rapaz e, enfim, nunca se sabe o hábito de gente<br />
que mora em terra estrangeira, caso se retirasse da casa dos Pius,<br />
poderia parecer que saíra em função da chegada do outro! Não<br />
era de sua formação familiar dar chance a esse julgamento.<br />
Foi por isso que, após assentados nos bancos da mesa da<br />
cozinha, a conversa iniciou-se com pergunta vulgar feita a Jean<br />
pelo capitão Freitas. E que lhe saiu da cabeça naquele instante<br />
simplesmente como recurso para fazer-se mais simpático quanto<br />
às perspectivas do reencontro que tanto desejava. Le noble,<br />
votre père, a-t-il déjà au Brésil? (o fidalgo seu pai já esteve no<br />
Brasil?). O brasileiro já sabia a resposta, pois fizera a mesma<br />
pergunta sobre o pai de Jean quando do primeiro encontro com<br />
o jovem.<br />
Para que o senhor entenda melhor da superficialidade da tal<br />
indagação, Tisserand explicou, vou dar-lhe exemplo esclarecedor.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
203<br />
Imagine que, em dia de nuvens fechadas e negras, uma pessoa<br />
encontra um conhecido e, após parar para cumprimentá-lo, diz:<br />
parece que vai chover, não é? É puro ato de cortesia. O mesmo<br />
foi feito por Freitas a <strong>Monlevade</strong>. O jovem entendeu a situação, e<br />
retribuiu-lhe com agradável movimento de incentivo.<br />
Mas o que também havia animado a Freitas é que tinha tido<br />
condições de fazer a tal pergunta por contra própria. Fora frase<br />
pronta: ele a tinha decorada na ponta da língua. E para tanto<br />
dispensara a ajuda do seu intérprete ainda sob contrato, pois o<br />
próprio Kostas Zavoudakis havia lhe recomendado soltar a voz<br />
quaisquer que fossem as circunstâncias. Não se envergonhe caso<br />
venha a cometer erros, capitão. É assim que se aprende, ou se<br />
volta a falar, qualquer idioma estrangeiro!<br />
E Jean de <strong>Monlevade</strong> respondeu-lhe o que já sabemos. Não,<br />
meu pai nunca esteve em terras da América do Sul. Foi somente<br />
a alguns países da Europa e, ocasionalmente, aos Estados Unidos<br />
em missão de guerra. Kostas traduziu. E, ao mesmo tempo, passou<br />
a explicar ao capitão Freitas as peculiaridades da construção<br />
das frases que <strong>Monlevade</strong> dissera. Era mais que um intérprete. O<br />
contratante não sabia, mas havia levado de quebra um excelente<br />
professor. Por conta disso, Freitas retirou o dicionário de Joaquim<br />
Sá da sacola de couro. Não gostaria de interromper o curso da<br />
conversa para consultá-lo, mas em último caso...<br />
E em dado momento disse a Jean que a França era país muito<br />
noticiado no Brasil. No entanto não sentira até então que acontecia<br />
o fato contrário. É verdade, Jean respondeu-lhe. E é oportunidade<br />
rara essa que me aparece. Não vou perdê-la. Fale-me<br />
das coisas do seu Brésil. Tenho informações de que tem extensas<br />
províncias de minérios. Centenas de minas de ouro e diamantes<br />
sendo exploradas. Muitos dos nossos têm escrito livros fantasiosos<br />
sobre excepcionais riquezas de águas, florestas, monstros tropicais<br />
e quantidade imensa de pássaros. Alguns deles nem mesmo chegaram<br />
a viajar até lá. Escreveram por relato de terceiros. Por sinal,<br />
aqui na nossa própria livraria, temos alguns poucos exemplares<br />
do livro de autoria de certo monsieur Jacques Barraband. Ele é<br />
pintor nascido não muito distante de Guéret, e é um dos que teve<br />
como tema as coisas do seu país. Não me recordo o nome da<br />
obra, mas as gravuras internas são belíssimas. Uma delas mostra<br />
o espetacular le petit toucain...
204 Jairo Martins de Souza<br />
Temos muitos outros pássaros, <strong>Monlevade</strong>. Milhares de espécies.<br />
E até mesmo mais belas que a do tucano. Nosso plantel é<br />
incalculável. No entanto isso é complemento quase insignificante.<br />
É detalhe de um quadro de milhões de quilômetros quadrados. O<br />
meu Brasil tem território gigantesco!<br />
Kostas traduziu assentindo com a cabeça. Já havia visto todas<br />
as gravuras do excelente livro de Barraband.<br />
Daí Freitas lembrou que o assunto que iria dizer é história<br />
conhecida em todo o mundo, mas iria repassá-la concisamente<br />
para Jean.<br />
Vou simplesmente repetir ao pé da letra as mesmas palavras<br />
que ele usou, Tisserand disse-me.<br />
A ameaça e posterior invasão que Bonaparte impôs a Portugal<br />
no ano passado, <strong>Monlevade</strong>, colocou o Brasil no mapa do<br />
mundo. 1808 é nosso ano notabilis. O motivo? Portugal é dono<br />
do Brasil. E um dos muitos países da Europa emparedados pelas<br />
brigas entre França e Inglaterra. País pequeno. Seu rei era e continua<br />
sendo tinhoso e fingia não saber a qual senhor se curvar.<br />
Fazia jogo de empurra-empurra: para “inglês ver”!<br />
Não se diz que na luta entre as ondas do mar e as pedras da<br />
praia quem leva prejuízo é o indefeso ouriço? Pois é. Portugal foi<br />
o ouriço!<br />
É por isso que seu príncipe-regente e sua corte tiveram que<br />
fugir de sua terra e sua Lisboa. É aí que entra o Brasil. Fugiram<br />
levando consigo toda a documentação e gente para, de lá, tocar<br />
os negócios do império! O povo português assistiu a tudo de camarote<br />
às margens do Tejo. Um rei ou general nunca deve correr<br />
em qualquer situação. Fica ridículo! Mais ainda quando dá ideia<br />
de fuga de inimigo: não deve o capitão ser o último a abandonar<br />
navio? Não podia ter sido daquela forma!<br />
Mas foi. E sendo assim pelo menos a tempo certo: poucos<br />
dias depois o esfarrapado exército do general Junot invadia totalmente<br />
a capital dos portugueses. O fato é que, antes da escapada,<br />
o país havia deixado às claras estar a favor da Inglaterra. Não diz<br />
também o evangelista que só se pode servir a um de dois prováveis<br />
senhores?<br />
Neste ponto, Tisserand reiterou que, de fato, os franceses tinham<br />
diferenças com o rei português. Não com o povo brasileiro.<br />
Este tinha como realidade única e exclusiva a de ser oprimido e
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
205<br />
espoliado pelos lusitanos: cuja riqueza era quase que total e exclusivamente<br />
retirada do solo de sua riquíssima colônia. Os franceses,<br />
em 1808, andaram invadindo terras portuguesas na Europa,<br />
não as brasileiras. E poucos anos depois sua intelingentsia<br />
tornou-se grande fornecedora de cultura para o Brésil. Por meio<br />
de acordo com os próprios portugueses!<br />
Pois os franceses não acabaram por aqui, no Brasil, fazendo<br />
papel de cronistas pictóricos da vida da corte? Não estiveram por<br />
aqui Lebreton e seu grupo de famosos? Por mim, Tisserand disse<br />
satisfeito, bastaria a riqueza da pintura dos Taunay. Pai e filho. O<br />
pai com seus quadros de simplicidade absolutamente encantadora.<br />
Parecem-nos sempre familiares, mesmo que, em alguns detalhes<br />
sutilmente acrescentados pelo artista, retratem a distante realidade<br />
europeia. A tranquilidade e bucolismo que transmitem impressionam<br />
a alma de quem os vê até os dias de hoje. Mas, e Debret?<br />
Pintor de história e do cotidiano do imperador... e Montigny!?<br />
Foi aí que Tisserand pediu-me alguns minutos de reflexão<br />
para reviver os relaxantes sentimentos que lhe traziam as obras<br />
de arte daqueles seus conterrâneos. Pouco depois, absolutamente<br />
renovado, retornou sua fala ao ponto em que havia inesperadamente<br />
interrompido o discurso de Freitas.<br />
Pois Kostas havia concluído a tradução e o brasileiro havia<br />
se disposto a expor algumas consequências da vinda da corte<br />
portuguesa. Após aceita de bom grado, ele adiantou que ela não<br />
nos trouxe somente coisas boas. Há atropelos de monta, <strong>Monlevade</strong>.<br />
A começar pela parte imobiliária. Imagine o esforço feito<br />
pela cidade do Rio de Janeiro para abrigar milhares de novos<br />
moradores de luxo! Clérigos, ministros, militares, diplomatas,<br />
funcionários do alto escalão, etc. E, além deles, suas famílias,<br />
criados...<br />
É como, Tisserand comentou, se Juscelino tivesse feito em<br />
questão de dias, a mudança de capital do Brasil para pequena<br />
cidade do interior de Alagoas. Palmeira dos Índios, por exemplo.<br />
Não para a planejada Brasília com transferência feita a contagotas.<br />
O fato é que, em questão de horas, a nata de Lisboa passou<br />
a habitar as ruas da pequena cidade do Rio de Janeiro. Bem,<br />
não é que fosse um problema para os novos moradores: aquele<br />
povo não era de maiores leituras... mas achar uma livraria no Rio<br />
daqueles dias era como procurar agulha em palheiro.
206 Jairo Martins de Souza<br />
E foi após citar esse conhecido fato que, Tisserand, ilusoriamente,<br />
devolveu a palavra ao capitão João Gomes Abreu de Freitas.<br />
Vou traçar, caro <strong>Monlevade</strong>, um pequeno painel final da colônia<br />
vista de mais perto do que da proa dos navios que trouxeram<br />
o príncipe-regente e acompanhantes. Informações fresquinhas,<br />
saídas há pouco do forno. As que vocês, franceses, têm, são baseadas<br />
em dados de compêndios do século dezoito montados com<br />
base em outros dos séculos dezesseis e dezessete. É coisa recente<br />
a permissão de estrangeiros no Brasil. Então, vamos lá!<br />
Kostas interveio para traduzir a Jean o que Freitas dissera. E<br />
terminou com um rápido Alons-y, um vamos lá. Daí o brasileiro<br />
percebeu ser momento de prosseguir: a senha fora visão de rápido<br />
movimento de cabeça do grego. A realidade da colônia brasileira,<br />
disse, não é das mais agradáveis: vou listar-lhe a situação.<br />
Quebra na indústria da cana de açúcar. Na do algodão. Na do<br />
tabaco. Minas Gerais produz quase todo o laticínio do país. O Rio<br />
Grande, a carne salgada. O ouro quase esgotado.<br />
O Brasil é colônia de gente supersticiosa, <strong>Monlevade</strong>. Acomodada.<br />
Na maior parte colorida de preto à custa de sol forte.<br />
Tanto de lá quanto dos campos africanos. Os negros são nossos<br />
pés, mãos, martelo e prego. Nossos burros e mulas. É mercadoria<br />
boa para encher os bolsos de dinheiro de empresários: a escravatura<br />
é forte ramo de negócio.<br />
Lá se diz que não se pode misturar manga com leite. Um raio<br />
não cai duas vezes no mesmo lugar. Palavra de rei não volta atrás.<br />
Olhar para gato preto dá azar. Colocar vassoura atrás da porta faz<br />
visita indesejável ir embora mais depressa.<br />
E não é que esteja fazendo pouco caso, ou deixando vazar<br />
sentimento de inferioridade. Mas na minha terra dança-se muito.<br />
Brinca-se muito. Pouco se conhece de música clássica. Não se lê.<br />
Até mesmo porque Portugal policia com punhos de aço a venda<br />
de livros sobre ideias modernas. Principalmente os que dizem<br />
algo sobre a cultura daqui, da França revolucionária. Na fuga,<br />
Dom João não se esqueceu das joias, das porcelanas e do dinheiro.<br />
Raspou o cofre. Mas deixou para trás as 60.000 obras da<br />
Biblioteca Nacional de Lisboa! Portugal, caro <strong>Monlevade</strong>, é povo<br />
de gente carola. Reis atrasados. País atrasado. Não tem indústrias,<br />
é quase medieval. E não posso dizer que o caso dos livros esquecidos<br />
tenha sido fato surpreendente, pois diz-se que até mesmo o<br />
infante Miguel, gente da nova geração, não aprecia a leitura.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
207<br />
Freitas a essa altura, Tisserand ponderou, entusiasmava-se<br />
com seu próprio resumo!<br />
Creia-me, <strong>Monlevade</strong>, nem a prática da arte da pintura é estimulada<br />
na velha Lisboa. Tampouco nas suas colônias que é de<br />
onde tira maior fonte de sustento. Artistas e artesãos são gente<br />
de segunda classe. É trabalho manual. Trabalho manual é para<br />
escravo. Na França não é assim: mesmo que seja voz corrente<br />
que, no passado, o próprio Voltaire andou auferindo lucros com<br />
tráfico de escravos. Já de nossa parte importamos cerca de dois<br />
milhões de negros. Bem, não é que todos os ricos queiram que<br />
a corte retorne a Lisboa, <strong>Monlevade</strong>, mas alguns deles têm colocado<br />
a vassoura de piaçava atrás das suas portas. O desrespeito<br />
aos particulares tem sido grande. O governo imperial tomou-lhes<br />
casas por meio de decreto simples para abrigar os recém-chegados.<br />
Basta colocar placa na moradia desejada com as iniciais de<br />
Príncipe Real. Um p e um r maiúsculos. Pronto. O morador já<br />
pode ser desalojado para uso de inquilino da corte. Também os<br />
custos para sustentar esse pessoal e seus luxos fizeram com que o<br />
governo gastasse mais e mais dinheiro. Um poço sem fundo. Já<br />
se fala que há negociações para novos empréstimos gigantescos<br />
a serem obtidos com os ingleses. Não tenho bola de cristal, mas<br />
creio que, a médio prazo, o barril de pólvora deve estourar no<br />
colo dos brasileiros. Mais impostos!<br />
No entanto, Freitas esclareceu aliviado, o saldo é extremamente<br />
positivo. Éramos colônia. Agora somos sede de governo<br />
de país europeu. Não foi por generosidade real que D. João abriu<br />
nossos portos para todas as nações amigas do mundo. Espero<br />
ansiosamente, e não abro mão, da França ser incluída nesse rol<br />
o mais breve possível. Tudo isso, Freitas concluiu, foi por força de<br />
o centro decisório dos negócios portugueses ter sido transferido<br />
para o Rio de Janeiro. No dia em que pisou em solo carioca, o<br />
Rio se iluminou!<br />
É claro, agora é o próprio Tisserand quem diz, não como na<br />
entrada de ano novo, os reveillons dos anos 2000. Lamparinas<br />
e velas não dão luz alta, e fogos de pólvora fazem mais fumaça<br />
que claridade. Mas os badalos dos sinos das igrejas da cidade não<br />
paravam de ser puxados. Buzinaços dos anos 800. O Rio tinha<br />
então cerca de 60.000 habitantes e estava feliz! Foi surpreendente!<br />
As princesas e a rainha Carlota desceram com as cabeças ras-
208 Jairo Martins de Souza<br />
padas: culpa de piolhos que infestavam o miserável estado em<br />
que viajaram por mais de três meses. Imediatamente carequice<br />
virou moda entre as mulheres chiques da sociedade carioca. Em<br />
qualquer tempo, ídolos e princesas têm influência assustadora nos<br />
hábitos do povo. Basta lembrar que, em década recente, Björk e a<br />
top Naomi Campbell também rasparam as cabeças e tiveram uma<br />
verdadeira legião de seguidoras. Falta de gosto...<br />
Aí Tisserand pareceu-me enfadado e voltou a falar do capitão<br />
Freitas. Devolveu-lhe a palavra a partir do momento em que o<br />
próprio confidenciava ao filho do fidalgo que, a partir do que lhe<br />
explicara, algumas mudanças estavam acontecendo muito rápido<br />
na colônia. Outras, não!<br />
Convenhamos, <strong>Monlevade</strong>, a situação é inusitada. O império<br />
português nunca nos permitiu instalar fábricas de quaisquer tipos<br />
de produtos, à exceção de sacos de juta e, acredite, o ferro. A<br />
produção deste último foi iniciada precocemente, em 1585, com o<br />
ousado Afonso Sardinha, mas sempre a passo lentíssimo. E, para<br />
piorar, há dez anos paramos totalmente por ordem direta da coroa.<br />
No entanto hoje falta-nos pouco para entrar definitivamente<br />
em outra era de sua manufatura, <strong>Monlevade</strong>. Mais moderna. O<br />
governo da Província de São Paulo contratou o famoso Varnhagen<br />
para projetar usina siderúrgica às margens do rio Ipanema.<br />
O rei aprovou! O alemão tem experiência no ramo! Há também<br />
rumores de chegada ao país do geólogo e metalurgista Eschwege<br />
para construção de siderúrgica em uma cidade chamada Congonhas<br />
do Campo. É da mesma província em que moro. A ideia é<br />
fazer lá a primeira corrida de ferro coado no Brasil. Projeto ambicioso!<br />
No comando está homem influente no meu país, o conde<br />
de Palma. O conde de Palma é atual governador da Província<br />
de Minas Geraes e a usina tem nome que vem muito a calhar.<br />
Chama-se Patriótica, Patriotique. O império deseja ter material de<br />
primeira para fabricação de espingardas e canhões.<br />
Interessa-lhe seguir o assunto? Freitas indagou a <strong>Monlevade</strong>.<br />
Tenho falado por meio de frases curtas para facilitar o trabalho<br />
do nosso amigo grego. O moço, após ouvir a tradução feita por<br />
Kostas, respondeu-lhe diretamente, oui! Ça c’est bon.<br />
Freitas havia suspeitado, Tisserand explicou, mas ainda não<br />
percebera totalmente o entusiasmo que <strong>Monlevade</strong> tinha por<br />
tudo que se relacionava à matéria prima e à fabricação do ferro,<br />
e suas aplicações.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
209<br />
No entanto continuou mais animado pelo modo e a energia<br />
com que o jovem dissera as palavras sim! Isso é bom.<br />
Pela primeira vez os portugueses estão preocupados com a<br />
falta de barras de ferro em sua colônia. A influência e mando dos<br />
britânicos nos negócios de Portugal ainda dura décadas, <strong>Monlevade</strong>.<br />
O baixo preço praticado por eles prejudica a viabilidade da<br />
nossa siderurgia. O incrível é que o próprio rei português concede<br />
a eles baixas tarifas de importação. Ferro barato! E, afora as<br />
cargas de contrabando, Lisboa é apenas trampolim de passagem<br />
para os metais e madeiras do Brasil seguirem para Londres. Mais<br />
de sessenta por cento. Não foram eles que escoltaram D. João e<br />
seus súditos quando da sua fuga para o Brasil? O débito continua<br />
sendo grandessíssimo!<br />
Mas voltando aos trabalhos com os minérios de ferro, <strong>Monlevade</strong>,<br />
é fácil avaliar que desde Pedro Cabral o foco dos portugueses<br />
era somente o de extrair e enviar para a sede o ouro e as<br />
pedras preciosas fartamente encontradas no nosso subsolo. Lucro<br />
a qualquer custo. Já o ferro precisa ser processado. Daí é que é<br />
negligenciado.<br />
Felizmente a coisa mudou um pouco. Vieram muitos sanguessugas<br />
anexados à caravana real, mas também alguns poucos<br />
competentes para discutir políticas de melhoria. De nossa parte, a<br />
ajuda vem de brasileiros capazes como certo Visconde de Cairu,<br />
que ainda não tive o prazer de conhecer, e os irmãos Andrada.<br />
Esses últimos estudaram em Coimbra. Alguns estrangeiros também<br />
nos ajudam ou visitando-nos, ou morando definitivamente<br />
no Brasil. A maioria deles é pródiga em relatar suas experiências.<br />
Há franceses neste bolo. Bem, afora isso, vamos ter aumento da<br />
demanda de açúcar e algodão, o consumo do café cresce, enfim,<br />
tudo leva a crer que, a despeito dos interesses do império, e dos<br />
políticos nacionais e estrangeiros, vamos entrar nos eixos!<br />
Também, <strong>Monlevade</strong>, até então, só podíamos negociar com<br />
Portugal. Não é mais assim. Mesmo que, o que é não nenhum<br />
fato novo, a França ainda caminhe por fora, essa é uma das razões<br />
de eu estar aqui em Paris.<br />
Para se ter uma ideia do que se passa em Lisboa, basta imaginar<br />
o caldeirão de ideias, juízos e julgamentos que campeiam<br />
a cabeça do seu povo. Lisboa é capital de periferia da Europa,<br />
mas não deixa de ser europeia e, portanto, seu povo é europeu.
210 Jairo Martins de Souza<br />
E não se mudou para as praias do Rio: ficou em casa que pega<br />
fogo. Então sua corte é expulsa de casa e passa a habitar colônia<br />
repleta de negros e mulatos ignorantes dos pés à cabeça.<br />
A sede de certa forma passa a ser colônia. Talvez tenha sido<br />
pior para Lisboa do que o devastador terremoto de 1755: milhares<br />
de fiéis mortos e dezenas de igrejas destruídas. Em contrapartida,<br />
a colônia também, de certa forma, passa a ser sede. É como<br />
se um senhor de muitos escravos fosse para a senzala morar com<br />
os escravos: para tanto tem que melhorá-la. Bem, parece-me que<br />
Dom João tem levado a situação a contento. A saída do castelo<br />
de Mafra, e a ausência constante da companhia de religiosos fizeram-lhe<br />
bem. Saiu da toca. De medroso e indeciso em Portugal,<br />
passou a ser bom negociador aqui no Brasil. Tem sido cortês e<br />
paciente com seus súditos coloniais. Que continue assim, fazendo<br />
acertadamente seus deveres.<br />
Na calada da noite, à luz de lamparina de óleo que se esgotava,<br />
Jean de <strong>Monlevade</strong> concluía resumo pessoal das informações<br />
que ouvira do capitão brasileiro. Sua privilegiada intuição dizialhe<br />
que lhe seriam úteis em futuro não muito distante!<br />
Silenciosamente fez coro com Freitas para que as relações<br />
entre França e Portugal voltassem à normalidade.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
XI<br />
François. Martinho segue para Lisboa<br />
Os dias voam,Tisserand disse, estamos em 1810 e, repare o senhor,<br />
mon ami, já se passaram seis meses após início das aulas da<br />
Polytéchnique. O sonho de Jean de <strong>Monlevade</strong> estava em pleno<br />
andamento. E foi nessa tão esperada condição que fora a Guéret<br />
aproveitando os três dias de folga dos feriados de final de ano.<br />
Em casa, limitou-se a matar saudades e ouvir os pais conversando<br />
longamente na confortável sala de estar. E, após o almoço, deitou-se<br />
no seu quarto, deixando que a infância voltasse enquanto<br />
observava as nuvens que passavam ao largo de sua janela. Com<br />
seu afastamento de casa, repara, que a irmã crescera e já pensava<br />
em rapazes e namoro. Esteve rapidamente com o professor Duchamps<br />
e passou alguns poucos minutos com os amigos Platini e<br />
Fontaine. Achou tempo também para visitar rapidamente o sempre<br />
ocupado padre Ribérry: ele prosseguia em plena atividade<br />
no seu ainda movimentado orfanato. Todos entenderam a situação<br />
do jovem amigo. Respeitavam-no. Ninguém desconhecia o<br />
aperto e o rigor de ensino na cobiçada escola Politécnica. Tinha<br />
deveres e matérias a estudar.<br />
Não me manifestei nem fiz qualquer tipo de comentário a<br />
tais palavras de Tisserand. Preferi o silêncio, pois não sou pessoa<br />
que gosta de interromper o outro quando este tem a palavra. Até<br />
mesmo defendo a prática de acenos para manter andamento das<br />
conversas dois a dois em que me envolvo: prefiro usá-los ao invés<br />
dos tradicionais, sim, entendo, também acho... é por isso que,<br />
habitualmente, o máximo que me permito é, mantendo os lábios<br />
cerrados, emitir breve som nasal de uhum, uhm... minha senhora<br />
não aprova, mas minhas ferramentas para tanto são a cabeça, os<br />
olhos, as mãos, o polegar, os ombros e por aí vai.<br />
E, é claro, não tenho certeza de estar sempre com a razão,<br />
211
212 Jairo Martins de Souza<br />
mas acredito piamente que, agindo desta forma, o canal de interlocução<br />
fica em níveis diferentes. Um fala com a boca. O outro<br />
com o corpo. Não há possibilidade de interferência entre as ondas<br />
de voz de pessoas que dialogam usando esse processo semiótico.<br />
Uma não anula a outra.<br />
No entanto, sou do tipo radical flexível. Não levo nada a ferro<br />
e fogo e, então, levantei discretamente a mão direita e, ao mesmo<br />
tempo, falando baixo, perguntei a Tisserand. E Martinho? Por que<br />
tem passado longe dos escritos do vigário geral? O estrangeiro<br />
assustou-se levemente.<br />
Não é bem assim, respondeu. Na realidade, Leopold Bogenet<br />
andou citando o rapaz brevemente nessa altura das páginas do<br />
seu caderno de anotações. A responsabilidade da omissão é minha.<br />
Foi proposital: algo como faz o tradutor de obra literária. O<br />
senhor, por acaso, conhece a expressão traduttore tradittore? A de<br />
quem traduz um livro, acaba escrevendo outro! Com um aceno<br />
de cabeça, respondi-lhe sim. Pois é, Tisserand confessou. Tenho<br />
traído o texto original...<br />
O mesmo fiz acontecer com François. Ele também se tornou<br />
figura ausente nesse meu relato. Recorda-se que lhe disse estar<br />
morando com os tios Lavillatte? Respondi-lhe novamente que sim.<br />
Ele não se mudou nem de cidade, nem de casa. Continua lá, Tisserand<br />
confirmou. No entanto, nunca era encontrado. Jean esteve<br />
procurando por ele em diversas ocasiões e os tios diziam-lhe estar<br />
na casa de namorada. Diziam-lhe também, ironicamente, que a<br />
moça sugava-lhe todos os momentos disponíveis do dia e da noite.<br />
Chamava-se coincidentemente Maria Vitória. O mesmo<br />
nome da irmã dos dois rapazes <strong>Monlevade</strong>.<br />
Na realidade, os tios Guy e Sophia Lavillatte não a conheciam<br />
pessoalmente e julgavam, a partir das informações do sobrinho,<br />
ser de alta estirpe e circular pelas rodas de luxo dos salões de Paris<br />
e até mesmo de Versailles. Não lhe dava gosto que o rapaz a apresentasse<br />
à família. Dizia que, quando se casasse, casaria com o seu<br />
escolhido, não com seu núcleo familiar. Bastava-lhe o dos pais. E,<br />
ressaltava que, em especial, o do lado materno. Não abria mão da<br />
companhia da mãe nem por minutos e dizia que, fosse possível,<br />
levaria os pais para que morassem todos juntos.<br />
François, Sofia Lavillate dizia ao marido, está cego pela paixão,<br />
e não tem tido argumentos e força para sentir que tais ati-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
tudes poderão significar grande pedra no caminho de sua futura<br />
família.<br />
Parecia-lhes, Tisserand prosseguiu falando como se fosse<br />
porta-voz dos Lavillatte, que François andava evitando a companhia<br />
do irmão. Com isso pensava preservar a tranquilidade do<br />
seu relacionamento com a mulher que o escolhera.<br />
Jean absolutamente não conseguia entender o porquê da posição<br />
da futura cunhada em relação à família <strong>Monlevade</strong> ser de<br />
absoluto desprezo! Mais ainda porque os Lavillatte disseram-lhe<br />
que François havia falado das qualidades de sua gente à bizarra<br />
mulher. Especialmente do próprio Jean que era parente mais próximo<br />
tanto de sangue quanto geograficamente. Nada significou.<br />
A indiferença permaneceu incompreensivelmente inalterada. O fidalgo,<br />
meu pai, sentir-se-ia absolutamente ressentido com a postura<br />
da nora, e com a cegueira do filho, Jean prognosticou. Mas não<br />
seria ele que exporia a situação. Apenas se limitou a dizer como as<br />
pessoas fazem quando diante de realidades absurdas. C’est la vie.<br />
Qu’est-ce qu’on peut faire? (É a vida. Que posso fazer?).<br />
O senhor entendeu por que François anda desaparecido? Então<br />
vamos a Martinho.<br />
Martinho havia – se já lhe disse, repito – por concessão especial<br />
do fidalgo, passado a assinar Martinho Eugène de <strong>Monlevade</strong>.<br />
E, segundo o abade informou (ele o fez de forma bastante concisa),<br />
havia decidido após dois meses de estada em Paris que tomaria<br />
rumo diferente do que havia sido planejado para ele. A despeito<br />
de ter já trajado o uniforme de gala do Lycée Napoléon, não se<br />
adaptara às fortes exigências que a escola lhe impunha em termos<br />
de estudos. Mas não era razão única: ele tinha mais motivos!<br />
Mesmo com ajuda de Jean não dava cabo de suas tarefas, e<br />
ficara frustrado por não poder atender expectativa que o fidalgo<br />
Jean-François nele depositara. Passou a acreditar, piamente, que<br />
não fora forjado para tais coisas. Ademais, Monique du Lac havia<br />
terminado namoro de forma sumária. Dissera-lhe por meio<br />
de bilhete deixado para lhe ser entregue em mãos pela tia torta,<br />
Lucillia Pius. Sempre os recebera guarnecidos com suave fragrância.<br />
Este continha apenas palavras rápidas, secas e diretas. Caro<br />
amigo, foi bom: enquanto durou! O amargurado Martinho pensou<br />
em se jogar de uma das pontes do Sena e se deixar levar até<br />
as águas frias do Pacífico. Não o fez. Imaginou o corpo cheio de<br />
213
214 Jairo Martins de Souza<br />
pus. Dias depois a ferida já estava secando, embora tivesse consciência<br />
de que a cicatriz iria permanecer para sempre. Ninguém<br />
se esquece do primeiro amor. Foi período de muita preocupação<br />
para Jean: o amigo meio-irmão lhe era muito caro. E sensível.<br />
Ambos haviam lido, recentemente, exemplar de As Desventuras<br />
do Jovem Werther, de Goethe, que figurava discretamente nas<br />
estantes de monsieur Dubois. Livro proibido pela Igreja, pois causara<br />
comoção à juventude alemã em décadas passadas. Muitos<br />
suicídios foram cometidos em série. Foi mais um motivo para que<br />
<strong>Monlevade</strong>, durante alguns dias, observasse cuidadosamente o<br />
amigo. Não queria que acontecesse com ele o que acontecera<br />
com o criado de Werther que o encontrara morto a tiro de pistola.<br />
Suicidara-se. Não suportara a decepção amorosa causada pela<br />
perda do amor de sua Charlotte.<br />
Graças às preces dos Pius e do acompanhamento assíduo<br />
do amigo Jean, no caso de Martinho, a vida não havia copiado<br />
a arte. O rapaz não se sacrificaria e não haveria produção de livros<br />
póstumos de textos pecaminosos. Como vimos, aos poucos,<br />
estava se acostumando com a ideia de que a moça du Lac não<br />
o amava. Já tivera perdas mais importantes, pais e irmãos, sua<br />
alma era habituada a conviver com o sofrimento. Aí que está.<br />
Também não obtivera êxito no desejo inesgotável de encontrar a<br />
família, mesmo procurando por todas as vielas dos bairros secundários<br />
de Paris. A saída que logrou foi desejar servir ao seu país<br />
de peito aberto. Não se diz que o patriotismo é o último refúgio do<br />
soldado? Sentia-se como um deles. Pedira licença ao fidalgo para<br />
honrar o nome <strong>Monlevade</strong>, vestindo a farda do esquadrão dos<br />
caçadores a pé. Começaria por baixo, mas ambicionava chegar a<br />
fazer parte do corpo de guarda do próprio Napoleão. Ou mesmo<br />
do seu serviço secreto. Bem, inicialmente iria trabalhar no hospital<br />
para feridos de guerra de Lisboa. Com isso honraria em especial<br />
também a própria família, os pais e os irmãos.<br />
O fidalgo assentiu. Tinha consciência da força de trabalho do<br />
rapaz que adotara. Foi assim que Jean perdeu a sombra que o<br />
acompanhava desde os tempos de criança. Árvore amiga. Faltarlhe-ia<br />
muito o querido companheiro que, abruptamente, decidira<br />
compor campanha de ajuda aos soldados que restaram machucados<br />
dos esquadrões de Junot.<br />
Que Deus o proteja! Sei que o senhor da mesma forma anda sentindo<br />
falta do moço, Tisserand concluiu. Não me culpe. É por aquelas<br />
razões que anda desaparecido dos eventos que ando relatando...
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
XII<br />
Jean passa por risco de cárcere na Polytéchnique. O aviso<br />
por demais antecipado da chegada do filho do capitão Freitas.<br />
Com a notícia da partida de Martinho para as terras portuguesas<br />
da península ibérica, Tisserand manteve-se calado por alguns minutos.<br />
Eu também refletia sobre o assunto, como também sobre os<br />
desdobramentos que poderia ter causado no andamento da vida<br />
de Jean de <strong>Monlevade</strong>. É como se ambos estivéssemos repassando<br />
todos os anos em que os dois amigos viveram praticamente<br />
juntos. Nesse clima de reflexão, absorvíamos a brisa que soprava<br />
suave sobre nossos rostos. Algumas mangas quase passadas da<br />
hora precipitaram-se no chão. Um moleque coletou algumas e<br />
meteu em embornal. Levantei-me e apanhei duas que sobraram<br />
ilesas. Ofereci a Tisserand. Ele agradeceu afirmativamente, mas<br />
disse que chuparia depois. Retruquei-lhe que essa era também<br />
minha intenção. Ambos não queríamos sujar nossas roupas com<br />
o intenso caldo amarelo da fruta.<br />
Então ele retomou sua história dizendo, estranhamente, que<br />
o casamento é caso especial a ser constantemente vigiado. Olhava<br />
despretensiosamente a fruta para verificar traços de podridão<br />
ou bicada de passarinho. E continuou. Foi apenas um exemplo,<br />
pois, não se tomando as precauções adequadas, a rotina, qualquer<br />
rotina, queima todo e qualquer tipo de atividade humana.<br />
A não ser que esteja ligada a elas qualquer tipo de obssessão.<br />
Como a de verificar insistentemente se fechou ou não a porta de<br />
entrada, ou a de não tocar a mão em maçaneta de fechadura, ou<br />
a de pedir repetidamente a cada cinco minutos a bênção paterna<br />
antes de se deitar. É claro que aqui não digo, e não incluo, hábitos<br />
individuais de saúde tais como o escovar os dentes após as refeições,<br />
ou o de colocar as mãos à frente da boca durante o bocejo,<br />
ou a limpeza das partes após cumprimento de necessidades, ou,<br />
215
216 Jairo Martins de Souza<br />
por final, o desejo de banhar-se sempre que se está sujo. Esse tipo<br />
de coisa é feita de forma praticamente automática e sobre ela não<br />
cabe qualquer tipo de especulação filosófica.<br />
Portanto não é de nosso interesse, Tisserand comentou, dizer<br />
sobre os primeiros doze meses em que Jean esteve dentro dos<br />
muros da Polytéchnique. Seria repetir coisas, pois toda instituição<br />
militar tem rotina aborrecida. A Polytéchnique, a Politécnica, não<br />
é exceção. É baseada nesta premissa que procedo daquela forma,<br />
mesmo sabendo que, lá dentro, <strong>Monlevade</strong> conviveu com alguns<br />
gênios da matemática do mundo, enfim, vou relatar-lhe o mínimo<br />
necessário. Com isso tento evitar risco de mesmice.<br />
O senhor sabe que manter os sapatos limpos, a farda sempre<br />
alinhada, fazer exercícios físicos, praticar a ordem unida, prestar<br />
continência a quem de direito, perfilar-se quando convocado são<br />
deveres inseparáveis de todo indivíduo que segue academia militar.<br />
Com o agravante (em períodos atribulados esses valores têm<br />
efeito multiplicado: fuzilam-se indisciplinados a troco de nada) de<br />
os fatos que agora relato pertencerem ao período do Primeiro Império<br />
francês: o ano corrente é o de 1810. Isto, por si só, explica a<br />
que Jean esteve submetido em termos de disciplina.<br />
No entanto, nada o impedia de estudar muito. Era imbatível<br />
em química e física e, para tanto, aprofundou-se exemplarmente<br />
nos árduos caminhos da matemática avançada. Na Politécnica<br />
primava-se, segundo orientação dos seus fundadores, pelo nivelamento<br />
dos alunos em primeira instância e, ao mesmo tempo, por<br />
sólido conhecimento matemático. Lá realmente se contava com<br />
quantos paus se faz uma canoa!<br />
Continua ainda desta forma nos dias de hoje. Tanto é assim<br />
que é chamada de Xis. Escola Xis. O x das equações matemáticas.<br />
Jean de <strong>Monlevade</strong> é X1809: qualquer francês sabe o que<br />
significa. Significa ter sido estudante da Polytéchnique admitido<br />
no ano de 1809. Entretanto, a despeito dessa matematicidade levada<br />
a extremos, e conforme ostensivamente já lhe disse, o interesse<br />
por problemas sociais também era lá tido em grande conta.<br />
O aluno da Polytéchnique tinha não somente obrigação de<br />
debruçar-se sobre temas filosóficos como também desenvolvê-los<br />
em classe. Sua missão é servir à nação, não a si mesmo. Assim,<br />
desde seus verdes anos, tornava-se capacitado para seguir com<br />
eficiência qualquer carreira de engenharia, matemática, física, as-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
tronomia e por aí segue. Muitas provas orais e discussões com<br />
professores e alunos mais antigos faziam, ao lado de trabalho no<br />
campo, com que a teoria fosse incorporada à prática.<br />
Estas ferramentas permitiriam a Jean percorrer com mais<br />
propriedade a carreira que escolhera desde tenra infância. O leque<br />
de opções colocado à disposição pela escola era generoso.<br />
Engenharia militar (Génie Militaire), de Minas (des Mines) e de<br />
Pontes (des Ponts).<br />
A carta chegara até a casa dos Pius e aguardou três dias para<br />
ser entregue a Jean <strong>Monlevade</strong>. Junto a ela, viera pequena caixa<br />
de madeira cuidadosamente enrolada por saco de pano de algodão<br />
amarrado com cordão grosso.<br />
Novamente o filho do fidalgo Jean-François fora retido dentro<br />
dos muros da Polytéchnique por motivo, digamos, fútil. Explico.<br />
Um dos colegas fora detido por protestar em voz alta contra disposição<br />
emitida pela direção da escola. Moço de alma combativa,<br />
sua família era da própria Paris e ele era também excepcional aluno<br />
em matemática. Do mesmo nível de <strong>Monlevade</strong>. Foi por isso<br />
que Jean estivera procurando-o para trocar ideias sobre estudos<br />
avançados, e novas investigações, da natureza das curvaturas de<br />
superfícies. A ferramenta que estava pesquisando era proposta por<br />
Monge, e basicamente constava de aplicação insistente do cálculo.<br />
Isso, no futuro, Tisserand informou, prepararia o caminho a<br />
ser percorrido pelo fenômeno chamado Gauss. Um outro grande<br />
craque no assunto!<br />
Mas voltemos a Jean e à sua procura pelo companheiro de<br />
estudos que, obviamente, não foi encontrado em sala de aulas.<br />
Disseram-no estar em cela cumprindo prisão temporária por<br />
desrespeito. Incomunicável. Posto, como se dizia, em regimes<br />
aquartelados, no gelo. Jean estava ansioso. Não suportou ideia<br />
de esperá-lo sair do xadrez, e quebrou as regras ao tentar falar<br />
com o rapaz entremeio às grades que o isolavam do mundo da<br />
Polytéchnique. Foi pego. O sargento chefe da guarda indagoulhe<br />
se gostaria de prosseguir estudos do lado de dentro da cela.<br />
Jean respondeu-lhe, não. Então suma daqui! Mas não deixou de<br />
anotar o mau comportamento do aluno. Daí o filho do fidalgo<br />
<strong>Monlevade</strong> ter sido punido com três dias de pernoite forçado nos<br />
alojamentos. Não é que tenha sido ruim. Por falta de vaga, fora<br />
encaminhado para alojamento de alunos mais avançados no curso.<br />
O dormitório ficava em piso afastado da rua e comportava em tor-<br />
217
218 Jairo Martins de Souza<br />
no de cem alunos. Jean aproveitou para tomar contato com um e<br />
outro, de habilidades reconhecidamente superiores em matemática<br />
e química, e com os quais tinha interesses comuns. Fez escambos<br />
de selos raros por obras literárias que sabia não constar na livraria<br />
de Dubois. E, bem, como sempre fazia, tomou partido da inusitada<br />
situação. Depois das oito da noite o silêncio deveria ser total.<br />
Por isso que, a princípio, não lhe desagradou ficar as mesmas<br />
72 horas para saber da mensagem que lhe enviara o capitão João<br />
Abreu de Freitas. Fazia meses que o amigo voltara para o Brasil.<br />
Foi uma longa carta em que o brasileiro confirmava muito do que<br />
dissera anteriormente em seus contatos pessoais com Jean. Escrita<br />
em duas versões. Uma em português. A outra em francês. Mostreas<br />
a Kostas Zavoudakis, pediu-lhe gentilmente, nas entrelinhas do<br />
texto, para que fique orgulhoso do meu desenvolvimento e minha<br />
aplicação. Como prova de consideração, avisou ter enviado, em<br />
anexo, exemplar de dicionário francês-português. Era do mesmo<br />
autor que o brasileiro adquirira na livraria de Dubois. E era o que<br />
estava guardado dentro da caixa que cruzara o oceano. No lado<br />
interno da capa, escrevera: ao jovem <strong>Monlevade</strong> com agradecimentos<br />
pela boa acolhida em Paris. Oferece, João Gomes Abreu<br />
de Freitas. Abaixo, colocou assinatura e data. Jean ficou bastante<br />
agradecido com a carta e o presente. O latim que aprendera na<br />
escola de Duchamps em Guéret facilitaria muito seu uso. O português<br />
e o francês são baseados naquele idioma, e praticaria mais o<br />
primeiro com Kostas. Não há sombra de dúvida que tal atitude seria<br />
de grande valia para seus estudos dos minérios da América do<br />
Sul. Afinal de contas, o Brèsil ocupa quase metade de suas terras.<br />
Mas o destaque foi que, num rápido post scriptum, informou<br />
que seu filho Ildefonso deveria chegar à França num prazo máximo<br />
de três anos. Já se informara, junto a entidades dos impérios<br />
português e brasileiro, de todas as formalidades legais para fazer<br />
aperfeiçoamento médico em Paris. Estava cursando com sucesso<br />
a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de janeiro. E disse<br />
mais. Disse que sabia estar avisando com bastante antecedência,<br />
coisas de pai amoroso, mas gostaria que <strong>Monlevade</strong>, estando em<br />
Paris na ocasião, desse algumas orientações ao rapaz. Sei que<br />
posso contar com sua ajuda... Do amigo João...
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
XIII<br />
A Génie Militar e as avançadas técnicas de guerra do início<br />
dos novecentos<br />
Ao final do seu primeiro ano em Paris, Jean de <strong>Monlevade</strong> alcançou<br />
a chamada primeira divisão na Polytéchnique. Tinha 19 anos<br />
e ocupara a privilegiada posição de terceiro colocado.<br />
Foi hora de Tisserand ponderar que foram confirmadas todas<br />
as previsões feitas para a vida do rapaz. O filho do fidalgo<br />
<strong>Monlevade</strong> tinha realmente inteligência privilegiada. Ribérry, Duchamps,<br />
Platini, Fontaine e muitos outros que eram chegados a<br />
ele exultaram com o sucesso do jovem amigo. Jean os informara<br />
por carta individual enviada a cada um deles.<br />
Aliás, faltou-me enfatizar com mais veemência, Tisserand exclamou<br />
com ar de quem pede desculpas, que o jovem adorava<br />
escrever cartas. Escrevia para a família e os amigos, mesmo que<br />
não ocorresse nenhum fato novo. Ainda que longe dos números<br />
de Humboldt, cientista de quem já lhe disse (e que deixou<br />
mais de 35000 cartas em seu espólio!), as suas eram suficientes<br />
para descansar os pais, e evitar-lhes viagens constantes a Paris.<br />
Preocupava-se com eles, em termos práticos, já idosos e cansados<br />
pela vida, e procurava antecipadamente tranquilizá-los com mensagens<br />
de otimismo e comentários sobre o seu cotidiano. Escrevia<br />
como se estivesse em casa conversando sobre generalidades na<br />
sala de estar de <strong>Monlevade</strong>!<br />
A família e a cidade de Guéret ainda iriam se orgulhar mais<br />
ainda do jovem cadete! Não concluíra com honras e sem maiores<br />
atropelos a difícil fase preparatória da Xis? Paris, e o ambiente em<br />
que ele estava diretamente envolvido, eram extremamente propícios.<br />
Esqueça-se propositalmente aqui o constante estado de<br />
guerra que o imperador mantinha em terras estrangeiras.<br />
Pois na capital francesa de 1810, as novidades de maior re-<br />
219
220 Jairo Martins de Souza<br />
alce foram a anulação do casamento de Napoleão com a imperatriz<br />
Josefina. Circularam boatos que a ex-viúva o traía. Foi esse o<br />
estopim da separação? Ou foi o fato de ela ter se tornado estéril?<br />
Qualquer que tenha sido o motivo, Josefina foi a paixão da vida<br />
do homem mais poderoso que a França conheceu. E que dizia ser<br />
ela, a própria França, sua única amante. Frase somente de efeito,<br />
pois não totalmente verdadeira: não escolhera a austríaca Maria<br />
Luiza para deitar-se em novo matrimônio no mesmo ano de 1810?<br />
É certo que fuxicos dessa natureza deixam de ser frugais à<br />
medida que dizem respeito a homens poderosos como Bonaparte.<br />
Tanto é assim que também faziam parte do cotidiano que Jean descrevia<br />
para a família. Mas intrigas conjugais, mesmo que palacianas<br />
não conseguem mover, em termos finais, a máquina do mundo.<br />
Essa é tarefa para poucos. Jean de <strong>Monlevade</strong> inexoravelmente<br />
seria um desses privilegiados: tinha mente brilhante, era um aluno<br />
xis, e contava com a completíssima biblioteca da école e, na casa<br />
dos Pius, a livraria de Dubois.<br />
Era lá que Kostas Zavoudakis o ajudava a localizar material<br />
para pesquisa em pontos de interesse. Enquanto isso, o Breu ficava<br />
aguardando-o com ansiedade. Já era idoso, mas se mantinha<br />
forte como nos tempos de juventude. Quando o seu dono<br />
chegava, prosseguia trazendo-lhe uma ou outra pedra do quintal<br />
dando sinal de boas vindas. Brincadeira eterna! Jean retribuía-lhe<br />
com afagos. O cão costumava até deitar-se de costas no chão<br />
com as patas viradas para o alto, tamanha era sua satisfação. Às<br />
vezes extrapolava e vertia água amarelada para o alto, molhando<br />
inadequadamente o terreno. E o dono, caso não se cuidasse!<br />
Jean ria das reações do seu antigo companheiro de pesquisas de<br />
campo. O Breu parecia compreender que o patrão não lhe dava<br />
a atenção costumeira por falta de tempo.<br />
Também pouco depois da ida de Martinho para Portugal,<br />
Jean fora noticiado não mais precisar comparecer à casa de Bernadette<br />
du Lac. Ela havia adotado posição similar à que a irmã<br />
Monique tivera com relação ao próprio Martinho. O bilhete lhe<br />
fora entregue mais ou menos em condições semelhantes, e parecia<br />
ter sido escrito pela mesma pessoa. Não poderia ser mera<br />
coincidência que o papel tivesse o mesmo perfume e a mesma<br />
letra redonda e elegante. Ambos devem ter sido escritos a quatro<br />
mãos: Bernadette e Monique!
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
221<br />
Foi o que Jean deduziu, recordando-se instantaneamente do<br />
texto que Martinho havia lhe mostrado quando do seu rompimento<br />
com a outra du Lac. Bem, disporia de tempo precioso a<br />
mais para dedicação aos seus propósitos.<br />
Lucillia Pius ficou arrasada por alguns dias. Se o cavalo arreado,<br />
nos dado de presente, para na porta de nossa casa, não<br />
há outro caminho: tem que ser montado! Não entendia a atitude<br />
das sobrinhas. Por fim conformou-se com o fato, mas prometera<br />
comentar com o pai da moça para considerar mudança de sua<br />
atitude. Até então fizera sua parte, e iria até o final.<br />
Após ter dado a conhecer sobre a situação amorosa do filho<br />
do fidalgo, Tisserand informou que sua entrada direta, em 1810,<br />
na Engenharia Militar, a Génie Militaire, não foi surpresa para o<br />
próprio. Os admitidos na primeira divisão da Polytécnique desfrutavam<br />
de direito exclusivo para pedir ingresso nos quadros da<br />
Génie.<br />
Neste ponto não faz mal informar, Tisserand disse, que quatro<br />
anos mais tarde um jovem chamado Augusto Comte seria admitido<br />
na mesma Polytéchnique. Tinha 16 anos de idade e influenciaria<br />
muito a Jean, pelo fato de ter sido responsável pela criação<br />
da pragmática filosofia Positivista. <strong>Monlevade</strong> tornou-se adepto<br />
das ideias do colega de escola. É inclusive por causa delas que,<br />
na bandeira do Brésil republicano, consta a conhecida frase, Ordem<br />
e Progresso. Por sua vez, tal como <strong>Monlevade</strong>, na Polytéchnique,<br />
Comte foi fortemente afetado pelo físico Sadi Carnot, pela<br />
inovadora matemática de Cauchy, e pela mecânica analítica de<br />
Lagrange. O astrônomo Laplace foi também objeto de admiração<br />
comum.<br />
Imagine o senhor o altíssimo nível em que direta, ou indiretamente,<br />
aconteceu a formação do filho do fidalgo!<br />
Aí foi momento em que Tisserand exclamou com ar vitorioso<br />
que, na Génie Militaire, figuravam também as melhores cabeças<br />
do Império francês. Exibira sorriso cada vez mais largo à medida<br />
que completava a frase.<br />
Fiquei agradavelmente impressionado com a satisfação demonstrada<br />
pelo estrangeiro em razão do sucesso do protagonista<br />
de sua história. E, em termos psicológicos, percebi existir algo<br />
mais por trás de sua expressão de alegria. Não demorei menos<br />
que um minuto para que verificar que estava certo.
222 Jairo Martins de Souza<br />
Pois Tisserand relatou logo a seguir que, doze meses depois,<br />
Jean de <strong>Monlevade</strong> saíra da Escola Especial de Engenharia Militar<br />
com a excepcional classificação de quarto colocado. Estudara<br />
topografia, relevos de terrenos, fortificações, construção de pontes,<br />
montagem de bússolas, sextantes...<br />
Ao contrário do que Rousseau dissera, Jean comprovou na<br />
Génie que as guerras não são ganhas pela coragem e os rompantes<br />
heróicos dos soldados. Tais iniciativas louváveis jamais substituem<br />
a técnica e a disciplina ordenadas. O jovem não se sentia<br />
como um Napoleão que se tornara tenente de artilharia aos 19,<br />
mas aperfeiçoara-se na geometria descritiva aplicada às técnicas<br />
de construção de canhões e máquinas. Compreendera o dinamismo<br />
das táticas modernas de infantaria, de cavalaria, de artilharia,<br />
de análises de relevos de terrenos, balística e potência das armas<br />
de fogo. Tudo isso era material que havia estudado preliminarmente<br />
na Polytéchnique. E que foi motivo de guardar por toda<br />
sua vida o Manual da Arte da Guerra e da Fortificação de autoria<br />
de Gay de Vernon. Vernon foi diretor de estudos da Polytéchnique,<br />
e a obra lhe fora presenteada por Dubois.<br />
A partir daí é que finalmente iniciou agenda para dar cabo de<br />
sonho posterior. A escola de Minas, a école des Mines. Para tanto<br />
a secretaria da escola registrou a data de sua entrada em 14 de<br />
setembro de 1811. Ao saber da noticia, Jean agradeceu silenciosamente<br />
a todos que o ajudaram. A Deus, à mãe, aos irmãos, aos<br />
amigos, aos professores, ao casal Pius, enfim, a todos, tal como se<br />
faz em convite final de formatura.<br />
Para o pai fez homenagem em capítulo especial de forma feliz,<br />
mas denunciando certa angústia nas entrelinhas. Parecia uma<br />
premonição (a qual já explico). Faltou somente um pensamento,<br />
um aforismo ou passagem da bíblia. Já o Breu não foi esquecido.<br />
Era parte da família!<br />
Outro que viria a se tornar praticamente parte da família seria<br />
o filho do capitão Freitas. Mas estava demorando bem mais que o<br />
previsto para acertar ida para Paris, Tisserand disse. E justificou.<br />
Portugal retardou por demais a reatar relações diplomáticas com<br />
os franceses. O pai de Ildefonso, lembro que este era o nome<br />
do rapaz, a cada três ou quatro meses, trocava correspondências<br />
com <strong>Monlevade</strong>. E evoluía cada vez na língua francesa: era o que<br />
se percebia pela crescente fluidez do texto que sua bela caligrafia
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
223<br />
mostrava a cada carta que chegava. Andava treinando também<br />
a fala, foi o que informara em uma de suas últimas missivas. O<br />
francês Guido Tomás Marlière, homem de altíssimas relações pessoais,<br />
estivera pelas Geraes e havia passado alguns dias com o<br />
fazendeiro. Era homem que havia conquistado a confiança do imperador,<br />
enfim, foi com ele que Freitas praticara bastante a língua.<br />
Marliére foi um dos que veio a colaborar com <strong>Monlevade</strong> no<br />
Brésil, Tisserand acrescentou. Mas, por ora, o que me interessa<br />
assinalar, e que restou escondido nas entrelinhas do que lhe disse,<br />
finalizou, é que, enquanto o filho Ildefonso não chegava a Paris,<br />
Freitas mantinha estreita correspondência com <strong>Monlevade</strong>.<br />
Não se declaravam cansados de trocar ideias sobre o Brésil<br />
de D. João e a França de Bonaparte.
224 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
XIV<br />
A graduação. Onde se diz tardiamente da morte do fidalgo<br />
O senhor sabe, mon ami, que um pressuposto contador de histórias<br />
não pode ficar continuamente dando saltos no tempo. Não<br />
pode ficar pulando para frente e para trás.<br />
No entanto mais uma vez não tenho alternativa: é imposição<br />
dada pelos escritos do próprio abade, Tisserand comentou. Depois<br />
volto à cronologia regular!<br />
Rogo-lhe paciência! Vou recordar-lhe somente alguns números<br />
e datas que... bem, não são tantos assim e a meta é ajudá-lo<br />
a não se perder no emaranhado de informações que tenho desovado<br />
sobre Jean de <strong>Monlevade</strong>. A começar voltando ao ano<br />
de 1810, quando de sua promoção a aluno de primeira divisão<br />
da Polytéchnique. Lembro que, na mesma ocasião, foi atendido<br />
em sua demanda para servir na ambicionada Engenharia Militar<br />
(Génie Militaire). Um ano depois, em 1811, e após quatro promoções,<br />
foi admitido na école des Mines.<br />
O fato novo é que quatro anos mais, em janeiro de 1815,<br />
veio a ser nomeado aluno de primeira classe. E vinte e três meses<br />
foram suficientes para acontecer uma das grandes efemérides de<br />
sua vida. <strong>Monlevade</strong> tornou-se engenheiro de minas em primeiro<br />
de abril de 1817.<br />
Formar-se engenheiro pela école des Mines não era pouca<br />
coisa! Foram muitas e muitas horas de estudos e discussões orais<br />
com colegas e professores. Outras tantas foram gastas à luz de<br />
lamparina ajudada pelo calor e luz da lareira acolhedora da casa<br />
dos Pius. A vida em escolas especiais francesas, como a école des<br />
Mines, era duríssima! O piedoso casal se condoía com as horas<br />
de sono perdidas pelo moço. Desde sua primeira entrada pelas<br />
portas da casa, era como se um dos filhos que andavam espalhados<br />
pelo mundo tivesse retornado ao lar. Ressentiam-se com a<br />
225
226 Jairo Martins de Souza<br />
ausência de Martinho, mas, ao longo dos anos, tornavam-se cada<br />
vez mais felizes não somente com a presença de Jean como também<br />
com a de Kostas. Cada um tinha estilo próprio de agregar<br />
valores: melhoravam o ambiente. Os Pius amavam a lareira de<br />
ferro fundido que o próprio Jean projetara com detalhes estéticos<br />
e técnicos absolutamente inovadores. A antiga era de pedras<br />
e às vezes espalhava fuligem pela casa. Lucillia frequentemente<br />
acompanhava Jean noite adentro. Religiosamente, como era de<br />
seu feitio, de hora em hora levantava-se de sua cadeira e amorosamente<br />
servia-lhe café para que não ficasse sonolento. O ruído<br />
suave da agulha do seu tricô acompanhava a escrita silenciosa do<br />
rapaz. Parecia incansável ao molhar a pena no pequeno vaso de<br />
tinta. Ao fundo um ou outro estalido de acha de lenha queimando<br />
na lareira fazia-lhes lembrar que o tempo existe. A vista cansada<br />
da boa mulher é que, por final, empurrava-a para a cama. Mas<br />
antes disso sempre havia alguns botões mais para pregar. Não.<br />
Não eram as roupas da casa assim em tamanha quantidade! É<br />
que a combativa esposa de Septimus Pius nunca se cansava de<br />
trabalhar em causas sociais patrocinadas pelos comitês de ajuda<br />
aos pobres do seu bairro.<br />
Não sabia! Mas foi mais um modelo para Jean ao longo de<br />
sua vida no cone sul do mundo.<br />
Então Tisserand paralisou discurso por instantes. Eram momentos<br />
únicos em que eu percebia que há horas o estrangeiro<br />
conversava comigo. Às vezes parecia cansado. Parecia. Pois<br />
a energia voltava-lhe instantaneamente e ele prosseguia com a<br />
mesma disposição e estado de espírito.<br />
É pensando sobre isso que intentei pedir-lhe para adiarmos<br />
o resto para a manhã do dia seguinte. Estávamos em um sábado.<br />
Eu não trabalhava aos domingos e poderíamos estar nessa praça à<br />
hora em que ele julgasse adequado. Foi quando ele atropelou meus<br />
pensamentos, e disse algo que dava outra direção à conversa.<br />
Estava um tanto distraído, mas entendi que o estrangeiro iria<br />
contextualizar rapidamente os anos de 1810 a 17 no mundo. O<br />
senhor pode considerar como se fosse um algo mais aos esclarecimentos<br />
que o capitão Freitas dera a Jean durante passagem por<br />
Paris. O interesse em retomar esse rumo, Tisserand ressaltou, era<br />
relembrar que muito havia acontecido desde que o então cadete<br />
Jean entrara na Polytéchnique. Além disso, não custa insistir que
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
227<br />
muito do que sobrevive em nossa memória é fixado por repetição<br />
de tempos em tempos. Diz-se sobre um assunto. Diz-se sobre ele<br />
novamente usando palavras diferentes. É assim que se retém o<br />
conhecimento. Sigamos!<br />
Pois o Congresso de Viena, em 1815 havia redesenhado os<br />
mapas políticos e geográficos da Europa. A França expulsara Bonaparte.<br />
Luís XVIII assumira o poder. Brevemente navios a vapor<br />
cruzariam os oceanos... Na América do Sul, o Brésil fora elevado<br />
à categoria de Reino Unido. Os artistas Nicolas-Antoine Taunay<br />
e seu irmão Auguste, Joachim Lebreton, Jean-Baptiste Debret, e<br />
o arquiteto Grandjean de Montigny já haviam chegado a terras<br />
cariocas. A famosa Missão francesa: missionários da cultura.<br />
O Real Gabinete de Mineralogia – fundado por Dom João,<br />
em 1810, no Rio de Janeiro – estava sob nova direção. O barão<br />
de Eschwege, prestigiadíssimo engenheiro alemão, fora confirmado<br />
como diretor da nascente siderurgia brasileira. Já disse-lhe,<br />
mon ami, que Freitas, pouco dias após sua chegada a Paris, havia<br />
mencionado este homem a Jean. Em Congonhas do Campo, a<br />
fábrica Patriótica produzia ferro em escala industrial. Em Morro<br />
do Pilar, o Intendente Câmara fazia o mesmo com o ferro líquido:<br />
o gusa de alto forno. Ambas as indústrias eram localizadas na província<br />
em que morava o capitão João Gomes Abreu de Freitas.<br />
Estas informações chegavam aos poucos ao conhecimento<br />
de Jean de <strong>Monlevade</strong>, por meio das já referidas correspondências<br />
que trocava com o brasileiro. A amizade mantinha-se firme, a<br />
despeito da imensa distância que os separava.<br />
E havia algo mais. O filho do capitão, o jovem Idelfonso, já<br />
estava em Paris. Mostrei-me surpreso, há muito desejava saber a<br />
quantas andava a situação do jovem médico brasileiro! Mas para<br />
meu desencanto, Tisserand imediatamente manifestou desejo de<br />
voltar ao que dizia sobre a formatura e o estado de espírito de<br />
<strong>Monlevade</strong><br />
Não pedi. Mas explicou-me a razão de assim proceder. Havia<br />
alguns detalhes da vida familiar do próprio Jean, disse-me, que<br />
passam da hora de serem postos nesse relato. Alguns são tristes,<br />
não lhe apetecia dizê-los, mas não há mais como postergar!<br />
E por tudo que Léopold, o vigário geral, relatou até aqui,<br />
vê-se que o filho do fidalgo <strong>Monlevade</strong> absolutamente fez por<br />
merecer o tão ambicionado título de engenheiro des Mines! Pena
228 Jairo Martins de Souza<br />
que o pai não tenha podido assistir em gozo de vida a coroação<br />
deste êxito do filho. Aos 52 anos, o fidalgo <strong>Monlevade</strong> havia morrido,<br />
o ano foi o de 1812. Felicité disse para amigas que, para seu<br />
consolo, concluíra que ele se fora em estado de total confiança em<br />
ter salvamento por Cristo Jesus. Iria para sua eterna morada no<br />
céu e lá ficaria esperando pela mulher. O local do seu passamento<br />
foi como teria sido de seu desejo: em sua própria casa. Morrera<br />
dormindo nas dependências do seu próprio castelo <strong>Monlevade</strong>. A<br />
esposa nunca deixaria de comentar como foi duríssimo o despertar<br />
daquela manhã. Conversara com o marido à noite. Ele usou-a<br />
com gentileza e amor. Poucas horas depois, o grande golpe. Seu<br />
querido Jean-François, pai dos seus três filhos, nunca mais retornaria<br />
do seu sono final.<br />
Aí está justificada a sensação estranha que Jean tivera quando<br />
do seu ingresso na école des Mines.<br />
As exéquias foram feitas da forma mais simples possível, conforme<br />
orientação que o fidalgo deixara em seu testamento. Nada<br />
de luxo ou ostentação. A França perde alma altamente cidadã,<br />
foi o comentário geral. Lá estavam, além de autoridades locais<br />
e do governo central, os amigos do fidalgo e os da família. Não<br />
vou listá-los para você, mon ami, o rol seria por demais extenso.<br />
Mas em funerais e festas de casamento as pessoas que são sempre<br />
lembradas são as que não estiveram presentes. Foi o que aconteceu<br />
a Martinho. Nunca poderia chegar a tempo de Lisboa, onde<br />
sabemos estar cumprindo missão de soldado. Jean havia lhe enviado<br />
carta imediatamente. A notícia deveria levar no mínimo dez<br />
dias para alcançar o velho companheiro a quem o pai autorizara<br />
uso de nome. O filho chorou tardiamente o morte do fidalgo, seu<br />
pai postiço.<br />
François permaneceu alguns dias mais em Guéret com a<br />
mãe, ajudando-a a organizar os objetos e documentos do pai<br />
morto. Maria Vitória estava assustada com o que acontecera, não<br />
há como negar, isso faz parte da miséria humana... Os filhos abdicaram<br />
seus direitos em favor da mãe. Quando ela subir ao céu<br />
para encontrar-se com papai, veremos como estas questões de<br />
propriedade ficam por final, foi o que disseram quase ao mesmo<br />
tempo. E Maria Vitória? Alguém perguntou. Com Maria Vitória<br />
ninguém deve ser preocupar, foi o que os filhos homens responderam.<br />
No momento certo daremos a ela dote adequado, que
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
229<br />
ninguém se preocupasse, não abandonariam essa responsabilidade<br />
deixada pelo pai, enfim, iriam deixá-la em situação absolutamente<br />
tranquila.<br />
Jean e François temiam pela saúde da mãe. Estavam conscientes<br />
de que a paixão que ela sentia pelo marido era formidável.<br />
Não fosse esse sentimento bem cuidado, poderia matá-la em breve<br />
tempo. Manteriam observação constante nos primeiros meses<br />
de luto. Pediriam especial atenção do abade Ribérry que, embora<br />
envelhecido, continuava bastante ativo e cada vez mais abraçado<br />
ao sacerdócio. Crescia em bondade e amizade aos seus paroquianos<br />
que, em troco, diziam-lhe não estar ficando mais velho, e sim<br />
tornando-se melhor. A esperança é que, a médio prazo, a dor da<br />
mãe fosse superada pela fé. Ela não poderia ceder à tristeza da<br />
perda, bem, tinha uma filha que ainda deveria ser preparada para<br />
o casamento, por fim, os rapazes não tinham dúvidas de que,<br />
além de tudo, teria que amparar, e ser amparada, diretamente por<br />
Maria Vitória. Assim foi!<br />
Um ano depois, François casou-se com a noiva que dissemos<br />
não se dar conta da família <strong>Monlevade</strong>. Daí praticamente desapareceu<br />
da vida de Jean. Se bem que seja verdade que, quando se<br />
encontravam, o eterno laço de sangue fazia-os comportarem-se<br />
como velhos camaradas. Mas era fato raro. Dois anos depois do<br />
matrimônio, ou seja, em 1815, Jean foi informado por terceiros<br />
que era tio de um bonito bebê chamado Elisabeth-Clémence. Tio<br />
de primeira viagem. Foi visitá-la, mas pouco demorou. Após alguns<br />
minutos de contato, a esposa de François, acompanhada da<br />
mãe e algumas amigas, retirou-se em direção aos seus aposentos<br />
para amamentação. Saíram falando alegremente sobre o aspecto<br />
saudável do bebê. Ficou por lá.<br />
E mamãe? Jean perguntou a François. Já esteve com o primeiro<br />
neto? Ainda não, François respondeu. Minha esposa decidiu<br />
comunicar-lhe somente daqui a alguns dias quando terminar<br />
o tempo do seu resguardo. Então Jean fumou um charuto a mais<br />
em companhia do irmão e, mal apagadas as cinzas, montou cavalo<br />
que havia alugado para chegar até a casa do próprio. Não<br />
mais voltou.<br />
Nem foi convocado para tanto. Como dissemos, a solução<br />
adotada foi a de encontrar-se esporadicamente com François em<br />
restaurantes da cidade. Rápidos momentos em que propiciava
230 Jairo Martins de Souza<br />
ao irmão saber dos amigos comuns de tempo passado, e de sua<br />
amada família.<br />
E é por falar em família, Tisserand disse, que devo convidálo<br />
a voltar à cerimônia de formatura na école des Mines. Eram<br />
instantes em que se falava dos pais ausentes e, Jean, emocionado,<br />
rememorava o estilo carinhoso e preocupado do fidalgo,<br />
seu pai. Nunca mais teria chance de apreciar sua bela escrita dizendo<br />
do dia a dia do castelo que tanto amava. Letras floreadas.<br />
Um perfeito calígrafo! Quando criança tentava imitá-lo em suas<br />
anotações escolares. Enfim, não foi somente por isso que, naquele<br />
mesmo dia das celebrações de sua formatura em engenharia,<br />
homenageou-o, in memoriam, em cartas endereçadas à mãe e<br />
aos amigos. Caprichou de forma especial na caligrafia. Sentiu-se<br />
como no dia em que recebera a triste notícia. Chorou intensamente.<br />
E, mais ainda, lembrou-se do que já pressupostamente<br />
sabemos: no momento do enterro havia feito emocionada elegia.<br />
O sentimento e a dor imediata da falta fizeram com que sentisse<br />
responsabilidade crescente quanto a eternização do nome <strong>Monlevade</strong>.<br />
Aumentaria esforços. Uma coisa puxa a outra, diminuiria<br />
tempo livre. Multiplicaria o número de cartas a serem enviadas<br />
para a mãe. Foi por ter tudo isso em conta que, na ocasião, havia<br />
retornado o mais breve possível para Paris.<br />
E aqui estamos novamente diante do resultado. Na primeira<br />
fila de pais de formandos, a mãe e a irmã acenavam sorridentes.<br />
Estavam ansiosas por abraçá-lo. François compareceu somente<br />
no encerramento da cerimônia. Justificou atraso, dizendo ter tido<br />
necessidade de levar a filha ao médico. Praticamente teve que<br />
carregá-la no colo: é por isso que estava com a roupa um pouco<br />
amassada. Vocês sabem o que acontece normalmente com as<br />
crianças e os velhos nessa troca de estação! Havia compensado<br />
parcialmente a frustração de Jean, por não vê-lo de imediato na<br />
cerimônia, trazendo a tiracolo o jovem primo Léopold que passava<br />
uns poucos dias em Paris. Jean, ao vê-lo, divagou por instantes<br />
sobre a rapidez da passagem do homem pela terra. Há poucos<br />
anos vira o nascimento daquele rapazinho que o cumprimentava<br />
e dizia-lhe – com olhar de admiração – estar entrando como noviço<br />
em escola religiosa. Meu sonho é chegar a ser um vigário geral!<br />
À direita, em banco reservado para convidados, o casal Pius,<br />
de braços dados, observava e se enternecia com a felicidade do
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
formando que consideravam quase como filho. Nas últimas noites,<br />
já deitados e antes de dormir, sofriam por antecipação diante<br />
da perspectiva de novos caminhos a serem trilhados pelo rapaz.<br />
As sobrinhas, as irmãs du Lac, compareceram, vestidas a caráter:<br />
haviam sido convidadas não somente por Jean, como também<br />
por famílias de outros formandos. Em breves momentos Bernadette<br />
disse-lhe estar noiva de jovem marquês que viera recentemente<br />
da Baviera. Paixão à primeira vista. Que não a impedia de<br />
olhar com admiração o reluzente anel que o antigo namorado havia<br />
posto no dedo anular direito. Presente da mãe. Enquanto isso,<br />
Monique mostrava aliança de casamento a Felicité. Havia se casado<br />
com filho de conhecido importador de produtos brasileiros.<br />
Anteriormente havia pedido a Jean que transmitisse recomendações<br />
a Martinho. Ambas desejaram-lhe felicidades e partiram em<br />
carruagem deixada à disposição pelo marido de Monique. Jean<br />
reparou que, ao retirar-se, Bernadette virou ligeiramente a cabeça<br />
e dedicou-lhe rápido e imperceptível olhar de despedida final. À<br />
exceção de Lucillia Pius, ninguém mais notou a circunstância: o<br />
reboliço era grande e a festa seguiu animada!<br />
Não se dispunha de fotografia, nem mesmo a partir das primitivas<br />
câmeras à base de caixa escura, Tisserand comentou.<br />
Muito menos das modernas digitais. E, pior ainda, mesmo que<br />
grandes pintores da corte costumassem comparecer para registrar<br />
festividades de graduação como a des Mines, como já disse-lhe,<br />
mon ami, Taunay, Debret e outros grandes já se encontravam em<br />
terras brasileiras.<br />
Mas não seria surpresa se fosse descoberto, nos dias de hoje,<br />
algum quadro perdido no sótão de velha casa parisiense e que retratasse<br />
algo daquela cerimônia e... bem, ainda que não se tendo<br />
em mãos nenhum registro daquela natureza, não é difícil imaginar<br />
a felicidade dos formandos. A de Jean de <strong>Monlevade</strong>, mais<br />
uma vez, atingiu seu clímax quando Ildefonso Gomes de Freitas<br />
aproximou-se e cumprimentou-o efusivamente.<br />
O filho do capitão Freitas havia se tornado um dos seus amigos<br />
prediletos!<br />
231
232 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
XV<br />
Ildefonso Gomes de Freitas<br />
As relações entre Portugal e a França voltaram a ser amigáveis<br />
exatamente no dia 18 de junho de 1814. Aproximadamente um<br />
ano depois, em junho de 1815, o capitão Freitas dava por encerradas,<br />
com sucesso, as negociações com o cônsul francês no<br />
Brasil, o coronel Jean-Baptiste Maler. O assunto foi longo período<br />
de estudos médicos que o filho pretendia usufruir em Paris. Maler<br />
havia chegado ao Rio em abril daquele ano.<br />
Foi por tudo isso que, em agosto do mesmo ano, o jovem<br />
médico Ildefonso Gomes de Freitas já estava a caminho da Europa<br />
a bordo do Minas Geraes. Vimo-lo faz pouco na cerimônia de<br />
graduação de Jean na école des Mines.<br />
E o senhor corretamente deve ter concluído, Tisserand prosseguiu,<br />
que não era de hoje que chegara a Paris. Então é mister<br />
voltar alguns meses na linha do tempo para vê-lo chegar à casa<br />
de Septimus e Lucillia Pius. Pois por meio de convincente intermediação<br />
de Jean, o casal havia ganhado um novo inquilino. A<br />
princípio, uma simples substituição: ocuparia os aposentos originalmente<br />
pertencentes a Martinho.<br />
Já lhe disse, Tisserand lembrou, que Jean de <strong>Monlevade</strong><br />
mantinha correspondência regular com o capitão Freitas. Pois é.<br />
O hábito estendera-se ao filho. O rapaz tinha, tal como o fidalgo<br />
<strong>Monlevade</strong>, uma bela caligrafia, que era sempre acompanhada<br />
de textos de fácil leitura e bom humor. Isso dava sabor especial<br />
para Jean. O jovem fazia-lhe lembrar o pai. Escrevia em um francês<br />
quase perfeito e, tão logo concluíra o bater de palmas na porta<br />
da casa dos Pius, Jean comprovou que sua fala era também de<br />
qualidade. Praticamente sem sotaque!<br />
O doutor Ildefonso nem bem havia entrado e já dizia de sua<br />
satisfação por estar na cidade de que o pai falava com tanto ca-<br />
233
234 Jairo Martins de Souza<br />
rinho. E, poucos segundos depois, comentava sobre a admiração<br />
que nutria pela cultura francesa. Eram sentimentos e elogios absolutamente<br />
sinceros, pois, passados alguns minutos mais de conversação,<br />
ficou patente que não era pessoa de planejar agrados<br />
convencionais. Deus, os Pius imediatamente perceberam, havia<br />
lhe dado de presente algo que é privilégio de poucos: a espontaneidade.<br />
E não foi somente por essa característica que encantou<br />
a todos. Tinha modos totalmente diferentes de Jean, Martinho e<br />
Kostas. Mais expansivo. O humor criativo e cheio de bons sentimentos<br />
aflorava a cada nova situação. Lucillia sentiu que havia<br />
conquistado mais uma pérola para seu lar. Septimus sorria pelos<br />
cantos da casa.<br />
Não fosse bastante, o rapaz era extremamente musical. Saía<br />
do interior da residência cantando e voltava com o mesmo estado<br />
de espírito e atitude. Alma boa. Com o passar dos dias, ao expor<br />
a arte que se praticava na província de Minas Geraes a Jean, a<br />
Kostas, e ao casal Pius, já cantava em francês algumas modinhas<br />
regionais. Trouxera consigo uma belíssima viola de dez cordas.<br />
Dizia ser companheira inseparável!<br />
A simpatia com que tratava as pessoas fazia-o ainda mais<br />
agradável aos olhos. Até o Breu logo se deu conta do caráter vivaz<br />
do jovem médico brasileiro. Logo no primeiro contato, foi-lhe atirando<br />
um pequeno pedaço de calhau para que o cão o trouxesse<br />
de volta. A brincadeira que tanto agradava ao animal também<br />
passou a fazer parte do cotidiano de ambos.<br />
Qui est-il? Quem é o rapaz? Lucillia Pius aprendera a conviver<br />
diariamente com a pergunta que lhe era feita pelas moças<br />
das casas próximas. Procurava ser reticente. Instantaneamente<br />
passou a alimentar ciúmes das que tentavam se aproximar do<br />
novo inquilino. O caso das irmãs du Lac não lhe saía da cabeça.<br />
Não se dera a contento naquela oportunidade. Não cometeria os<br />
mesmos erros. Escolheria a dedo!<br />
O capitão Freitas, sabemos, havia dado várias aulas de Brésil<br />
a Jean. Mas o filho dizia-lhe as mesmas coisas trazendo a tiracolo<br />
algo novo. Discutia apaixonadamente. Com mais intensidade ainda,<br />
após ingestão de um ou dois canecos de vinho: desde sua chegada<br />
declarou-se apreciador dos tintos franceses. Foi nessa condição<br />
festiva que analisou conjuntamente com Jean a veracidade<br />
das anotações do britânico John Mawe, On a Gold Mine in South
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
America, de 1812. A farra do ouro já havia sido feita pelo portugueses,<br />
agora não era assim tão fácil encontrar o precioso metal.<br />
Independente do tema, conflituoso ou não, as palavras que<br />
Ildefonso proferia eram temperadas com levíssimas pitadas de<br />
amor. O pai era homem prático. O filho fazia tudo ficar mais bonito<br />
e sedutor. A região de São Miguel do Piracicaba tornava-se<br />
a mais bela do mundo. A propriedade do pai era extensíssima e<br />
um cavaleiro podia gastar dias para conhecer seus limites. Não há<br />
meios de conhecê-la por inteiro, pois tinha longos trechos de mata<br />
fechada. Inexpugnável. Proliferavam onças, gatos do mato, tatus,<br />
antas... e as nunca vistas mulas sem cabeça. Mostrava gravuras<br />
dos animais procurando-as nas páginas de obras da livraria de<br />
Dubois. Nas águas dos rios brasileiros, peixes como piaus, dourados,<br />
cascudos e bagres eram pegos praticamente à mão. É muita<br />
fartura. A terra é fértil e ao mesmo tempo riquíssima em minérios<br />
e metais. O ouro ainda existia por lá. Bastava ser procurado. Um<br />
paraíso perdido e praticamente intocado.<br />
A parte prática da coisa é que Ildefonso, em avanço, dera<br />
início a procedimentos para obtenção de salvo-conduto para que<br />
o engenheiro francês pudesse viajar por áreas de mineração de<br />
Minas Geraes. Lembrar que, a princípio, para as autoridades do<br />
reinado lusitano, todo cidadão da França era considerado, em<br />
potencial, um espião a serviço do império do seu país. Com isso<br />
anunciava veladamente segundas intenções para que Jean fosse<br />
ter até terras brasileiras. O pai era antigo conhecido do ministro<br />
dom Manoel de Portugal e Castro e fora a fonte da qual partiria<br />
o sauf-conduit para o amigo francês. Isso seria colocado em<br />
ação caso houvesse interesse do próprio. Jean ficou agradecido<br />
e cada vez mais admirava a capacidade do médico brasileiro de<br />
se antecipar às necessidades de terceiros. Definitivamente o sulamericano<br />
não era egoísta: pensava sempre no outro!<br />
Permaneceriam amigos para sempre, foi o que Tisserand disse<br />
sorrindo. Mais ainda até quando Jean concluía seu curso superior<br />
na école des Mines. O contato era constante, bem, quando<br />
<strong>Monlevade</strong> se formou a França estava sob comando mais equilibrado<br />
de Luís XVIII. No entanto, o exemplo do terror branco<br />
demonstrava que o país ainda mantinha restos das convulsões sociais<br />
dos anos anteriores. Os monarquistas estavam dando o troco...<br />
Mas não era somente por isso que Jean sentia-se fortemente<br />
235
236 Jairo Martins de Souza<br />
inclinado a deixar temporariamente seu país e, preferencialmente,<br />
viajar ao Brésil. Pesava mais na balança as paixões despertadas<br />
pelas descrições dos membros da própria família Freitas, como<br />
também o desafio de conhecimento de novas províncias minerais.<br />
Convenceria seus amigos. Levaria o Breu. Todos poderiam<br />
acompanhá-lo!<br />
Martinho ainda trabalhava em Lisboa. Platini e Fontaine em<br />
Guéret. Ultimamente escreviam dizendo que andavam inquietos<br />
com a monotonia da vida do interior. Já Kostas Zavoudakis...<br />
Kostas era homem do mundo. Não tinha dúvidas de que atenderia<br />
chamado do amigo engenheiro.<br />
Foi por isso que imediatamente o jovem engenheiro de Minas<br />
iniciou planejamento da viagem. Partiria inicialmente sozinho.<br />
Analisaria o terreno. Depois, fosse o caso, convocaria os amigos.<br />
Iriam para o novo mundo!
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
XVI<br />
A viagem para o Brésil<br />
A rota de viagem que Jean de <strong>Monlevade</strong> havia traçado terminava<br />
na fazenda do capitão Freitas às margens do Piracicaba. Rio de<br />
águas mansas, foi o que o amigo dissera-lhe. A conselho de Ildefonso<br />
também incluíra passagem por alguns dias na propriedade<br />
de um dos seus irmãos. Era próxima à do pai, e o subtenente<br />
José Joaquim Gomes de Freitas o receberia com muito prazer. O<br />
senhor, caro doutor <strong>Monlevade</strong>, mesmo sem ter contato pessoal<br />
com a maioria dos nossos, é um velho amigo da família. Com<br />
essas e outras orientações, o recém-formado engenheiro de minas<br />
planejara todas as circunstâncias dos eventos de viagem com<br />
precisão de laboratorista.<br />
Portanto, para não aborrecê-lo, caro amigo, vou dizer de suas<br />
intenções somente por alto. Foi como parcialmente Tisserand deu<br />
como encerrado o assunto.<br />
Sairia de Paris a tais horas do dia 2 de abril de 1817, um dia<br />
após sua graduação. Chegaria ao porto do Havre. Embarcaria<br />
para Lisboa, local onde seguramente mais passageiros e mercadorias<br />
seriam acrescentados ao número de viajantes e volume de<br />
carga. Conheceria a capital do império português. Lá também<br />
programara, por carta, encontrar-se com Martinho. Conversaria<br />
com o amigo sobre possibilidades futuras. E seguiria diretamente<br />
para o porto do Rio: Saint-Bernard era o nome do barco. Confiava<br />
não haver problemas de aguardo de chegada dessa embarcação.<br />
O mesmo estava no Havre há meses sofrendo reparos no<br />
casco, e essa era sua primeira viagem após volta às águas. Gastaria<br />
de 45 a 90 dias, totais.<br />
Antes da viagem de <strong>Monlevade</strong>, mon ami, muitas, ao longo<br />
dos séculos, haviam sido feitas seguindo o mesmo percurso. Antes<br />
mesmo, dizem, do descobrimento das terras brasileiras. Em<br />
237
238 Jairo Martins de Souza<br />
particular, o senhor encontrará, no Brésil, dezenas de livros de<br />
história que informam muito bem sobre as agruras das travessias<br />
transoceânicas do início do século dezenove. O tema virou moda<br />
nos últimos anos. Talvez porque os passageiros tenham sofrido os<br />
mais variados tipos de males! Basta lembrar a que foi feita pela<br />
família real quando fugia do assédio francês em 1808.<br />
Foi por isso que, quanto à fase marítima da viagem, Jean<br />
havia esboçado seus planos de forma ainda mais meticulosa. Era<br />
um politécnico. O tempo de estada no mar era variável, mas seguramente<br />
longo. Informou-se sobre todas as condições de viagem<br />
e da tripulação do Saint-Bernard. Inteirou-se da quantidade de<br />
barris de água embarcados e dos aprovisionamentos de carnes e<br />
cereais. Fez papel de engenheiro de suprimentos com facilidade.<br />
Não é que fosse algo inusitado. Aprendera muito de tudo no período<br />
tanto da Polytéchnique quanto da Génie Militaire. Para um<br />
graduado de sua qualidade, o exercício fora de facilidade extrema<br />
se comparado com os que fizera em simulações dentro do programa<br />
de estudos das ditas escolas.<br />
E a école des Mines seria de proveito insubstituível quando<br />
estivesse no Brésil. Preparou planilhas e estabeleceu alvos de sítios<br />
a serem visitados, e fez uso de conhecimentos técnicos misturados<br />
com estratégias de alta precisão militar.<br />
No Rio de Janeiro, ajustaria, em termos finais, papelada<br />
com o cônsul francês e representantes do governo local. Alimentava<br />
esperança de que o capitão Freitas o aguardasse para<br />
acompanhá-lo até Minas Geraes. Pronto o salvo-conduto para a<br />
ambicionada região de minérios, bastavam-lhe algumas poucas<br />
assinaturas adicionais relacionadas pela burocracia imperial. Isso<br />
concluído, viajaria para Vila Rica. A cavalo. Estudara relatos de<br />
viajantes europeus e informações que estes recebiam de tropeiros<br />
que por lá transitavam: a Estrada Real que partia do Rio e passava<br />
pela região não era nada confiável. Caso contratasse carruagem,<br />
a viagem poderia perdurar por semanas! Depois partiria<br />
para Caeté, Sabará... e, finalmente, São Miguel do Piracicaba,<br />
seu destino derradeiro.<br />
E assim foi amparado em sua intensa formação que chegou<br />
com sucesso ao Rio de Janeiro em meados de maio de 1817.<br />
Tempo recorde! Os ventos foram favoráveis em todo o percurso<br />
da viagem.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
E a despeito de todos os possíveis acidentes que já disse, tanto<br />
agora, quanto em outros momentos, Tisserand prosseguiu, não<br />
aconteceram somente situações de desconforto. Nem considero<br />
aqui seu reencontro com Martinho em Lisboa, que foi de satisfação<br />
a toda prova. O meio-irmão ficaria aguardando a chamada<br />
que Jean ficara de enviar diretamente do Brésil. Já no trecho Lisboa-Rio,<br />
fizera amizade com outros novos passageiros. Entre eles,<br />
alguns poucos brasileiros que retornavam à colônia por um ou<br />
por outro motivo. Incluam-se neste grupo, três jovens advogados,<br />
filhos de famílias de negociantes abastados do Rio, que haviam<br />
concluído viagem de complementação de estudos feitos na universidade<br />
portuguesa de Coimbra. Jean imediatamente lembrouse<br />
do amigo Ildefonso.<br />
O grupo de moços quebrou a monotonia da travessia do<br />
Atlântico, e fez com que o tempo passasse mais rápido e irreverente.<br />
Não paravam de discutir animadamente sobre teorias jurídicas.<br />
Não chegavam a um acordo. O que mais vale? O Direito da<br />
palavra escrita ou o explicitado pelos costumes? Uma trilha usada<br />
pelos viajantes desde tempos imemoriais deve ser compulsoriamente<br />
eleita como traçado original de caminho a ser rasgado pelo<br />
Estado? E a revolução que havia sido sufocada recentemente por<br />
Dom João em Pernambuco? Riam dos excessos. Os revolucionários<br />
haviam decidido usar cachaça, ao invés do vinho, durante<br />
as missas. A matéria-prima das hóstias passara a ser a farinha de<br />
mandioca ao invés do trigo importado. Ninharias. Pelo menos<br />
nisso, os jovens e impulsivos rapazes chegaram a um acordo. Mas<br />
nessas alturas já estavam encharcados de vinho. Não todos. Um<br />
deles não perdia tempo ocioso. Tal como <strong>Monlevade</strong>, não era de<br />
desperdiçar oportunidades.<br />
Então, Tisserand argumentou, posso tranquilamente assumir,<br />
como dizem os nascidos nas terras das Geraes, que ambos não<br />
dormiam no ponto. Havia outros fatores a considerar, complementou.<br />
Eram praticamente da mesma idade e tornaram-se amigos<br />
principalmente por terem muitos pontos de vista em comum.<br />
Mesmo que legalista, o advogado era descendente de antigo donatário,<br />
Martinho Afonso de Souza, de capitania hereditária recebida<br />
no Brasil de séculos passados. <strong>Monlevade</strong> não entendeu a<br />
circunstância de imediato, bem, o fato é que o descendente Raimundo<br />
Horácio de Souza julgava que a república traria melho-<br />
239
240 Jairo Martins de Souza<br />
res efeitos que a monarquia no seu Brasil. É afirmação perigosa,<br />
<strong>Monlevade</strong> disse-lhe. Haja vista o castigo severo imposto pelos<br />
portugueses aos revolucionários pernambucanos que andaram,<br />
inclusive, buscando a ajuda do afamado Thomas Jefferson nos<br />
Estados Unidos... Ainda assim, passavam horas conversando.<br />
Sim. Voltariam a se encontrar. É o que ficou estabelecido entre<br />
os dois. O ex-politécnico <strong>Monlevade</strong>, agora engenheiro de Minas,<br />
gostava também de discutir assuntos sociais. Herança da<br />
Polytéchnique. Era, volto a dizer, uma das razões de gostar de<br />
aprender muito, de tudo.<br />
Tanto é assim que também tentava absorver constantes lições<br />
de navegação com o capitão e o imediato responsáveis pela<br />
embarcação. Lembravam-lhe os amigos Platini e Fontaine. Com<br />
o olhar aparentemente perdido no horizonte, observava horas seguidas<br />
a natureza do mar e suas ondas. Ficava devaneando sobre<br />
tsunamis, as famosas ondas gigantes que assombram os mares, e<br />
grandes icebergs que viajam desde os polos gelados do mundo.<br />
Mas, de concreto, o que viu foram baleias e golfinhos que seguiam<br />
rota para algum lugar. Um dos marinheiros disse-lhe tê-los<br />
visto em muito maior quantidade na distante ilha de Fernando de<br />
Noronha. Talvez águas mais propícias para reprodução...<br />
Ocasionalmente, próximo à Ilha da Madeira, reparou, no longe<br />
das águas, um pequeno tonel perdido na imensidão do oceano.<br />
Estudou-o. Detidamente. Com o mar sem ventos, o tal barril<br />
somente subia e descia. As ondas simplesmente passavam. Não<br />
se quebravam. O barril permanecia no mesmo lugar. A mesma<br />
energia que tirava das ondas, para subir, era devolvida quando<br />
voltava. Onda é energia pura. Imaterial. <strong>Monlevade</strong> sorriu ao<br />
confirmar, na prática, as teorias que aprendera na Polytéchnique.<br />
Na água funciona assim. No ar é a mesma coisa, concluiu. Ondas<br />
são ondas. Tanto as dos mares quanto as do som... daí pensou<br />
em tiros de pistola que podem ser ouvidos quando a vítima foge,<br />
e se esconde protegido por esquina. Bateu palmas para o criador.<br />
Assim, com olhar perdido para o horizonte margeado pelas<br />
águas do Atlântico, Jean de <strong>Monlevade</strong> novamente deixou-se levar<br />
pelos mistérios engendrados pelo criador. Refração. Difração.<br />
Interferência. Reflexão. Quanta engenhosidade!<br />
E, para sua maior fortuna, a Génie Militaire fornecera-lhe<br />
meios teóricos para passar algo de novo para todo o pessoal de
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
241<br />
bordo. Fazia o complicado parecer extremante fácil. Foi assim que<br />
fazia anotações e levantava dados. Na imensidão do oceano aprimorou-se<br />
na leitura dos astros e, com isso, aprofundou-se na astronomia:<br />
para tanto, usava cuidadosamente a velha luneta de Duchamps.<br />
Gastou também muito do seu tempo revisando estudos.<br />
O foco principal era a língua portuguesa. Já a dominava relativamente<br />
bem, mas dedicou-se, em especial, à expansão do seu<br />
vocabulário. E quando o grumete, pendurado na gaiola do mastro<br />
da embarcação, finalmente gritou, terra a vista!, estava pronto.<br />
Pronto para entender definitivamente o Brésil.<br />
Nem vou dizer do encantamento que assombrou <strong>Monlevade</strong><br />
à medida que o navio entrava na baía da Guanabara. Seria lugarcomum!<br />
Foi o que Tisserand disse, animadamente, enquanto alertava<br />
estar finalizando a segunda parte de sua história. Mas a embarcação<br />
teve que aguardar dois dias para liberação de embarque.<br />
Graças a esse retardo, o jovem engenheiro teve tempo para ver,<br />
de camarote, o entardecer e o amanhecer mais extraordinários<br />
que vira em sua existência. No segundo dia tinha avistado, de longe,<br />
os acenos de alguém de aspecto conhecido. Estava de braços<br />
dados com uma bela e bem vestida mulher. O nível de tensão que<br />
o viajante sentia foi reduzido praticamente a zero ao reconhecer,<br />
por final, o amigo e futuro anfitrião. Com cabelos mais esbranquiçados<br />
pelo tempo, João Gomes de Abreu de Freitas aguardava-o<br />
com feição sorridente. Parecia ansioso!
242 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
PARTE 3<br />
Brésil<br />
243
244 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
I<br />
O Rio de Janeiro e seus escravos. O engenheiro da<br />
école des Mines se impressiona<br />
245<br />
Passados alguns dias navegando próximo às águas do litoral brasileiro,<br />
Jean ainda não havia se acostumado ao clima úmido dos<br />
trópicos e ao sol do Brésil. Mesmo que, em terra, os brasileiros<br />
não estivessem ainda enfrentando as altas temperaturas do seu<br />
verão, o engenheiro francês da Polytéchnique queimou e descascou<br />
a pele. Estava prestes a iniciar sua missão extraordinária e<br />
o corpo reagiu, conforme sua ótima saúde. Em poucos dias já<br />
procurava jeito de se safar neste novo ambiente, e o artifício foi<br />
o mesmo que os africanos haviam aprendido com a natureza ao<br />
longo de milênios. Passou a produzir, imperceptivelmente, altas<br />
quantidades de melanina. A proteína da cor. O resultado é que<br />
não demorou muito e já apresentava sinais de forte bronzeamento.<br />
E não é que tenha sido pego de surpresa: como sabemos,<br />
planejara criteriosamente a viagem. E protegera o rosto com certa<br />
pasta de cor branca que era normalmente usada para proteger os<br />
dentes durante escovação. A receita lhe fora fornecida por Paracelsus,<br />
o farmacêutico de Guéret, como resposta a uma sua carta<br />
em que pedia orientação. Se não funcionar totalmente, caro Jean,<br />
pelo menos lhe trará benefício parcial: nós, franceses, usualmente<br />
temos a pele excessivamente clara... O pote não era grande, mas<br />
suficiente para os muitos dias de viagem.<br />
Na realidade, também disso já sabemos, Jean pesquisara, e<br />
soubera que mesmo os viajantes bem sucedidos a caminho do<br />
novo mundo sempre padeciam de uma ou outra dificuldade.<br />
Aguardavam-no dezenas de dias de muita ansiedade, temor por<br />
falta de ventos, correntes marítimas, tubarões, baleias e muito<br />
medo das tormentas que sempre estavam por vir. E foi em função<br />
disso que levara em conta pormenores como pequeno estoque
246 Jairo Martins de Souza<br />
particular de água potável e carne salgada. Enfim, na engenharia<br />
militar aprendera a lidar com emergências e situações de guerra.<br />
Foi como tratou desde o início a travessia do Atlântico: inclusive<br />
não se esquecendo de acrescentar um belo mosquete de mais de<br />
um metro e meio. Tinha coronha trabalhada com detalhes dourados.<br />
Arma mais para exibição em parada militar do que para<br />
uso em situações comuns. Fora presente do pai que a adquirira de<br />
famoso armeiro de Amsterdam. De luxo!<br />
Os holandeses eram famosos pela sofisticação e qualidades<br />
das armas que fabricavam... Não pretendia usá-la, mas... quem poderia<br />
garantir que não fossem bater de frente com navios piratas?<br />
Ou ser abatido, durante tempestades, por ondas que vazavam<br />
pelos conveses. Outra situação de gravíssimo risco! <strong>Monlevade</strong><br />
sempre tivera conhecimento da ocorrência destes e de outros<br />
maiores infortúnios. O afundamento total da embarcação era um<br />
dos que acontecia com bastante frequência.<br />
Até mesmo em anos não afastados dos próprios dias em que<br />
vivemos, Tisserand comentou. O acidente com o Titanic foi um<br />
deles. O senhor também se lembra? Perguntou-me. Talvez tenha<br />
sido o que causou o maior número de mortes. Cerca de 1500 pessoas<br />
afogadas de uma só vez nas águas geladas do Atlântico Norte.<br />
Mas, nos anos de <strong>Monlevade</strong>, morriam centenas e centenas<br />
por ano nos mares do mundo. Robôs como o das cenas iniciais<br />
da película que romanceou aquele conhecido acidente ainda desvendarão<br />
muitos heróis anônimos, amores e segredos. Incontáveis<br />
apaixonados como Leonardo di Caprio perderam suas vidas!<br />
Certamente <strong>Monlevade</strong> não morreria congelado como o rapaz do<br />
Titanic, pois seria pouquíssimo provável que se deparasse com<br />
icebergs desgovernados. Mas, antes de viajar, pesquisou todas as<br />
condições do navio.<br />
E inclusive trouxe consigo, Tisserand prosseguiu, desde rações<br />
de bicarbonato de sódio até pequeno livro de rudimentos<br />
de medicina prática. O homem prevenido vale por dois é ditado<br />
conhecido também na França. Talvez tenha nascido lá (L’homme<br />
averti en vaut deux). Junto com frutas ressecadas, no seu baú<br />
de viagem figuravam as roupas mais leves que possuía em seu<br />
guarda-roupa. Não mais era um militar, mas pertencia à reserva<br />
dos próprios. Foi por isso que optou por deixar algumas fardas<br />
para trás. Podiam ser encontrados em seus pertences uma de
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
247<br />
campanha e a especial, de gala. Com a prática dos que tiveram<br />
cotidiano vivido na caserna, poucos segundos tendo às mãos um<br />
ferro a brasa ser-lhe-iam bastantes para torná-la em condições de<br />
uso. O fardamento de luxo pode lhe ser útil em momento de exceção,<br />
Ildefonso avisara-lhe, com ar jocoso. Faz mais presença. Dá<br />
aura de autoridade e, com isso, costuma afastar maus elementos<br />
e condições.<br />
Já lhe disse, meu amigo, Tisserand continuou, que o Saint-<br />
Bernard teve que aguardar dois dias para que fosse liberado o desembarque<br />
de passageiros e cargas. Poderia lhe dizer vários motivos<br />
para tanto, há muitos, mas garanto que o principal era por ser<br />
o navio de bandeira francesa. Os ingleses pareciam ter prioridade<br />
em todos os assuntos de Portugal. Além disso, o porto do Rio, a<br />
olhos vistos, primava pela desorganização e fervilhava de gente e<br />
mercadorias que chegavam em quantidade da Inglaterra.<br />
Foi exatamente a sensação que <strong>Monlevade</strong> tivera em seus<br />
primeiros momentos em terra. Anos mais tarde ainda se lembraria<br />
dos paus de carga que eram puxados por negros e burros e que<br />
lançavam sacas de café em convés de navio inglês. Na época era<br />
uma das poucas contrapartidas às importações da colônia, afora<br />
a cana-de-açúcar e as cargas de madeira. Demorou a mudar...<br />
Próximo a eles, em situação de risco, um capataz exagerava nos<br />
xingos e simultaneamente dava ordens para melhoria das cordas<br />
de amarração. Comandava a chegada de toras de madeira até a<br />
área de estocagem. Rápido suas mulas, o navio que vai levá-las<br />
chega depois de amanhã! Não pode ficar esperando no porto. Se<br />
o patrão tiver que pagar demurrage, multa por espera, acabo com<br />
o lombo de vocês!<br />
Outros africanos, já dentro do navio, eram praticamente açoitados<br />
enquanto rearranjavam o material embarcado para dentro dos porões.<br />
De fato, na ocasião, Jean pôs-se a olhar detidamente a rotina<br />
da praça aproveitando momento em que aguardava orientações<br />
da polícia imperial carioca. Pois afora as orientações de Ildefonso,<br />
é daquele jeito que julgara rapidamente melhor absorver a cultura<br />
local. Visitar feiras livres, pesquisar o que faziam os ambulantes, o<br />
mercado de frutas, de carne, verduras...<br />
Havia carroças. Muitas carroças. Em sua maioria puxada por<br />
burros. Algumas ficavam estacionadas em fila indiana e coletavam<br />
clientes que chegavam esporadicamente. Outras passavam a
248 Jairo Martins de Souza<br />
passo lerdo em movimento constante e ocupado. Um casal de cor<br />
vendia cocadas. O marido também carregava um pau comprido<br />
que tinha quatro galinhas amarradas para negociação. Um freguês,<br />
com aspecto de estivador, interrompeu-lhe os passos para<br />
verificar qualidade e aspecto do produto. Retirou alguns trocados<br />
do embornal enquanto o vendedor punha-se a retirar a ave<br />
escolhida. Um minuto atrás enxotara bando de cachorros que<br />
ameaçavam sua mercadoria. Uma mulher passou com cesto de<br />
roupas assentado em cima de sua cabeça. Entre o próprio cesto e<br />
a cabeça da negra, <strong>Monlevade</strong> viu pedaço de pano enrolado em<br />
espiral amassada. Riu da situação que nunca vira. Alguns homens<br />
apressados faziam cálculos de lastro, os de manejo e equilíbrio<br />
das cargas. Eram os que realmente comandavam os trabalhos<br />
portuários. Outros faziam conferência de quantidades enquanto<br />
verificavam planilha de impostos. Mude este monte de sacos para<br />
bombordo. Aqueles outros não podem embarcar. Falta-lhes o selo<br />
de liberação real! Dois práticos conversavam entre si. Jean percebeu<br />
que falavam sobre negociações com armadores. O número<br />
de navios que chegava ao porto do Rio aumentava a cada ano...<br />
É país adequado para se usar farda, Jean concluiu. Tinha<br />
razão. Um soldado havia circulado pelas imediações e fora efusivamente<br />
saudado pelos passantes. Ainda que não fosse por<br />
unanimidade, pois nem todos pareciam apreciá-lo. Alguns negros<br />
olharam-no de soslaio: pareciam temê-lo. Apesar da cena que observava,<br />
<strong>Monlevade</strong> confirmou que o momento do desembarque<br />
não teria sido ocasião para uso de fardamento de gala. E foi com<br />
roupas claras, e chapéu de abas largas, que abandonou o convés<br />
do navio em direção à escada de saída. Molhou os pés, conse-<br />
quência da maré que batia... Nem mesmo se deu conta. O coração<br />
batia acelerado. Mon Dieu, meu Deus, estou no Brésil!<br />
Não é que fossem muitos degraus, mas as pernas pareceramlhe<br />
pesadas quando assomou ao nível da praça que dava acesso<br />
às instalações de chegada de estrangeiros. O Largo do Paço. Praça<br />
grandiosa! O engenheiro francês espantou-se com a beleza do<br />
conjunto arquitetônico emoldurado pela magnífica paisagem da<br />
capital da colônia. Do lado aberto do retângulo formado pela praça<br />
podia ver ao fundo as edificações da Ordem das Carmelitas.<br />
Trocou mentalmente de posição. De lá imaginou a belíssima vista<br />
direta que os religiosos desfrutavam da chegada dos navios e o
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
249<br />
azul celestial das águas cariocas. Povo abençoado!<br />
No entanto, a falta de exercícios arruinara-lhe temporariamente<br />
os músculos. Com o pensamento desviado para o súbito<br />
incômodo e, enquanto batia os pés para retirada do excesso de<br />
água, foi abruptamente chamado até pequeno aposento construído<br />
de pedras nas margens do porto. O homem que o convocara<br />
era de estatura bastante baixa.<br />
Mas não chegava a ser um pigmeu, Tisserand comentou. O<br />
inusitado de sua ereta e agitada figura era o contorno do abdômen<br />
que exibia majestosamente. Dava ideia de ter engolido uma monumental<br />
azeitona: parecia um reizinho! Jean sorriu ao se lembrar de<br />
pinturas que vira de João VI. E foi comparando mentalmente que<br />
concluiu que o oficial de plantão, provavelmente português, tinha a<br />
pança aumentada do seu próprio recém-aclamado imperador. E o<br />
mais importante, trajava uniforme do exército imperial. Problemas.<br />
<strong>Monlevade</strong> mal tinha respirado os primeiros ares de terra!<br />
Em poucos minutos tomou conhecimento do assunto do contratempo.<br />
Estava mais ou menos avisado, portanto o fato não lhe<br />
causou surpresa: o próprio Ildefonso havia lhe alertado sobre a<br />
falta de critérios de alguns oficiais portugueses. Em condições rotineiras<br />
estavam sempre à busca de alguma gorjeta, enfim, vamos<br />
ao fato, foi como Tisserand encerrou frase delicada que desistira<br />
de mencionar.<br />
Livros. <strong>Monlevade</strong> trouxera livros em grande quantidade. Romances,<br />
grandes obras da literatura universal, dicionários, obras<br />
sobre viagens ao Brésil feitos por conterrâneos franceses e europeus<br />
e, sobretudo, livros técnicos. De mineração, de cálculo,<br />
tratados de botânica, química, siderurgia, militares... O oficial que<br />
anotou chegada dos passageiros do navio cismou de vasculhar,<br />
avisado que fora pelo pessoal de bordo, o baú de <strong>Monlevade</strong>,<br />
para certificar-se de que não havia nenhum material contrário aos<br />
interesses de Portugal. Viajantes franceses são sempre suspeitos,<br />
comentou com um colega de turno. Normalmente trazem textos<br />
subversivos!<br />
Não temos qualquer litígio pendente com o seu país, Jean<br />
argumentou em português claro. O homem surpreendeu-se. O<br />
elemento praticamente não tinha sotaque. A paz entre a França e<br />
Portugal foi assinada em 1814, o engenheiro francês complementou.<br />
Inclusive temos grandes artistas que para cá vieram o ano
250 Jairo Martins de Souza<br />
passado para dar partida a certa academia de artes do Rio de<br />
Janeiro. De minha parte sou encarregado de levar a termo missão<br />
extraordinária para o governo do meu país. Vim para o Brésil em<br />
condições especiais.<br />
Para comprovar o que dizia retirou da maleta de mão documento<br />
emitido pelo governo francês. O soldado lusitano verificouo<br />
com desdém e, não se dando por vencido, retrucou mal humorado:<br />
isto não é de minha competência. Não fui comunicado<br />
oficialmente do fato. Sei como as coisas funcionam, senhor visitante.<br />
Participei da invasão que fizemos à Guiana francesa no tempo<br />
de Napoleão. Não creio que a França tenha mudado com Luís<br />
XVIII. É só o que tenho a lhe responder. Daí afirmou ter que abrir<br />
também os caixotes discriminados como de instrumentos, assim<br />
como todas as demais bagagens de <strong>Monlevade</strong>. Não é comum<br />
chegada de estrangeiro com tal quantidade de baús e caixotes...<br />
Paciência. Paciência. É o que Jean rogava para si mesmo.<br />
Temia pela luneta que ganhara de Duchamps, pelos produtos químicos<br />
cuidadosamente embalados... temia por tudo. Cada item<br />
era fundamental para determinar o sucesso de sua viagem.<br />
Talvez, <strong>Monlevade</strong> pensou, o oficial português fosse do tipo<br />
de soldado que, quando envolvido em batalha, por mais tímida<br />
que seja, nunca mais a esquecesse. Fica em estado de guerra até<br />
o fim de seus dias. Um daqueles que fica esquecido em ilhotas<br />
pessoais e não percebe o tempo passar. Desafia o tempo. Desconhece<br />
que com ele, o tempo, tudo passa. Lembrou-se que, desde<br />
criança, Platini dissera-lhe da existência de tais militares. Foi com<br />
esses olhos que viu o homem abrir e folhear seus livros. Fingia ler.<br />
Logo os devolveu. Não entendia nada em francês.<br />
Mas disse que iria reter bagagem por quatro dias. Dois desses<br />
por conta exclusiva de pesquisa sobre as origens do mosquete<br />
dourado encontrado na bagagem. Esse item, o oficial avisou, tinha<br />
grande chance de ser confiscado. Quanto ao resto, que o<br />
estrangeiro não se preocupasse, era caso simples de averiguação<br />
totalmente conforme procedimentos de rotina. No prazo estipulado<br />
poderia, fosse o caso, proceder retirada no Armazém de Ver<br />
o Peso. O proprietário era certo senhor Sá. Não há como errar, é<br />
o único aqui do Cais. Basta pagamento de taxa de armazenagem<br />
ainda a ser estipulada.<br />
Foi quando Jean intimamente revoltou-se e decidiu mostrar<br />
um de seus trunfos. O aceite de emissão de salvo-conduto emitido
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
pelo governo português lhe fora entregue ainda em Paris. Tinha<br />
assinatura do próprio ministro! Bastava-lhe passar pelo departamento<br />
imperial competente para validação. Isso era para ser feito<br />
aqui no Rio quando do desembarque. Demorou um pouco, mas<br />
foi desta forma que foi liberado para seguir para busca de hotel<br />
apenas com pequena mala de mão. As peças de roupa nela contidas<br />
ser-lhe-iam suficientes para cobrir o período. O oficial sutilmente<br />
deu a entender que poderia dar mais rapidez ao processo...<br />
Não comentei, mas poderia ter dito a Tisserand que tais procedimentos<br />
ainda são comuns no Brasil. Senti-me momentaneamente<br />
envergonhado!<br />
O Largo do Paço era poeirento, mas, como sabemos, extremamente<br />
majestoso. Jean ficou por lá durante momentos que lhe<br />
pareceram eternos. O morro do Corcovado. A arquitetura e a engenharia<br />
dos aquedutos dos Arcos da Lapa. Tão bonitos quanto os<br />
que vira na própria Roma. O Pão de Açúcar. Freitas e o filho não<br />
haviam exagerado. É paisagem ímpar! Trocou de novo, mentalmente,<br />
de posição. Era prática constante em sua vida. O fidalgo, seu<br />
falecido pai, ensinara-lhe a fazer assim em todas as circunstâncias.<br />
Com o colocar-se no lugar do outro, fica-se mais humano, o pai<br />
argumentava.<br />
Jean imaginou-se no alto daqueles morros. Se a vista daqui<br />
é extraordinária, a do pico promete ser duas vezes melhor. Fosse<br />
terra colonizada por italianos, foi o que pensou, teriam edificado<br />
um mosteiro ou uma cidade medieval no ponto mais elevado<br />
daquelas maravilhas. Mais próximos do altar sagrado. O próprio<br />
céu. Lembrou-se de que assim vira em Assis e Taormina que visitara<br />
junto com seu querido pai. Ouviu batida lenta de sinos de<br />
igreja. Pareciam vir da igreja do outeiro da Glória.<br />
Com os olhos umedecidos por lágrimas furtivas, confirmou<br />
que cá em baixo, bem próximo a ele, a quantidade de escravos<br />
negros impressionava. Tinha visto pouquíssimos durante sua<br />
existência. Na maior parte faziam o trabalho que, na França, era<br />
destinado somente aos animais. Circulavam descalços. De cada<br />
dez homens que passavam, suando em bicas, seis eram pretos.<br />
Não paravam de trabalhar: ora carregavam fidalgos em liteiras,<br />
ora conduziam charretes... Alguns caminhavam envergados pelo<br />
peso de baldes de água coletada em chafariz próximo. Alguém<br />
disse-lhe, anos mais tarde, ser o mais famoso da cidade, era chamado<br />
de o da pirâmide. Um dos pretos passou bem por per-<br />
251
252 Jairo Martins de Souza<br />
to. Os pés encardidos e cheios de rachaduras pareciam feitos de<br />
couro velho e descolorido. As unhas dos seus dedos, totalmente<br />
encravadas, estavam cheias de sujeira até a carne. Envolveu-se<br />
em novos pensamentos, com isso o tempo foi passando, e a tarde<br />
caía. Resolveu se movimentar. Tinha muito ainda a fazer nesse<br />
fim de dia. Um negro aproximou-se e timidamente ofereceu-lhe<br />
transporte. Jean entendeu sua mensagem mais pelo gestual do<br />
que pelas palavras do próprio. O sotaque era absurdamente cheio<br />
de chiados. Sotaque de angolano. Que faz esse preto aqui? A algumas<br />
dezenas de metros de distância podia ver dois outros que<br />
mantinham liteira em posição de pronta saída. O engenheiro de<br />
minas agradeceu!<br />
Ainda em Paris, pedira a Ildefonso para desenhar pequeno<br />
mapa das ruas centrais do Rio. Já o estudara detidamente, mas<br />
decidiu abri-lo para recordar-se de detalhe fortuito. Foi quando<br />
ouviu a voz um pouco rouca de Freitas.<br />
Jean! Jean de <strong>Monlevade</strong>! Virou-se para a direção de onde<br />
lhe gritara o amigo. Ele já estava a poucos metros de distância.<br />
Abraçaram-se. É um grande prazer recebê-lo aqui do outro lado<br />
do mundo...<br />
Nunca fui, e não pretendo ser diplomata, foi o que brasileiro<br />
passou a lhe dizer. Mas tenho boa ficha na área de negócios<br />
exteriores do governo. E amigos. Principalmente amigos. Estive<br />
providenciando liberação mais rápida do Saint-Bernard, o navio<br />
em que você veio. É por isso que não pude estar aqui no momento<br />
exato do seu desembarque. Deixe que aquele meu negro<br />
carregue a sua mala de madeira.<br />
Bené, venha cá! Rápido, crioulo! Carregue isso aqui para o<br />
doutor <strong>Monlevade</strong>!<br />
E não se preocupe com hospedagem, Jean, você vai ficar em<br />
casa que tenho mantido aqui no Rio para abrigar-me em viagens<br />
de Minas. Seu mosquete já está liberado, e o resto da parte pesada<br />
da bagagem mando pegar depois por meio de carroça.<br />
Ainda hoje! Já mexi com meus pauzinhos para liberá-la imediatamente...
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
II<br />
A casa carioca do capitão Freitas<br />
Temos que aguardar mais alguns poucos minutos! Foi o que o<br />
capitão Freitas disse a Jean enquanto colocava os pés sobre os<br />
estribos. O pequeno cabriolet vergou imediatamente e o cavalo<br />
irritou-se pelo esforço que o brasileiro fizera para chegar até o<br />
banco de passageiros. Era homem um tanto alto, estava acima do<br />
peso, e o veículo... bem, a estabilidade do sistema fora perturbada<br />
mais do que a Física permite e havia tirado sossego do animal<br />
que estivera comendo capim enquanto aguardava comando de<br />
marcha.<br />
Quase imediatamente Jean havia penetrado no veículo pela<br />
outra extremidade do banco, e foi com alguma dificuldade que<br />
tanto ele quanto a carroça foram mantidos a postos pela destreza<br />
do cocheiro. Quando ainda do lado de fora, a capota abaixada<br />
havia-lhe permitido observar que o estofado fora feito com couro<br />
resistente e grosso. O forte tom marrom agradou-lhe, assim como<br />
a habilidade do artesão testemunhada em seus detalhes de acabamento.<br />
Carruagem de primeiríssima qualidade!<br />
Poderia tê-la, mas não é de minhas posses, Freitas respondeu-lhe<br />
sem ser ter sido perguntado, enquanto reforçava a fixação<br />
da capota para que se mantivesse aberta. Aluguei-a por toda a<br />
semana. É pequena e ágil. Estes predicados nos serão de valia<br />
nesta sua estadia pelo Rio e arredores. Por hoje nos atende bem<br />
e, se necessário, tenho opção de troca por veículo de mais passageiros<br />
e cavalos.<br />
Com a chegada da corte faz dez anos, o Rio passou a ter boas<br />
centrais de aluguel de transporte. Não nos faltam semoventes... e<br />
é tendo isso em conta que planejei facilidades de acordo com o<br />
roteiro que você, caro <strong>Monlevade</strong>, avisou-me querer cumprir no<br />
Brasil. Se é que não tenha mudado de ideia... Não. Não é de meu<br />
253
254 Jairo Martins de Souza<br />
desejo. Continuo mantendo intenção, conforme lhe escrevi, de<br />
passar somente dois ou três dias nesta cidade.<br />
Muito bem. É tempo bastante para conhecer por alto o que<br />
temos por aqui. Não para desfrutar as maravilhas das praias. Para<br />
tanto, é preciso tempo de verdade. E não para fazer como o imperador<br />
João que entra no mar de Copacabana carregado por<br />
escravos. O povo carioca gosta de fazer chacotas com a circunstância!<br />
Mais ainda porque Sua Majestade é protegido contra mordidas<br />
de peixes por paredes vazadas de um barril.<br />
Nem pensar, <strong>Monlevade</strong> respondeu sorrindo. Por mim cairia<br />
como vim ao mundo nessas águas azuis. Em alguns pontos parecem<br />
espelhos: chamam-me como a Narciso.<br />
Freitas sorriu satisfeito ao olhar de lado a face feliz do amigo<br />
que lhe tornara os dias bem mais agradáveis durante sua estada<br />
em Paris. Que não se diga do apoio dado ao seu querido Ildefonso.<br />
Tinha intenção de retribuir-lhe em dobro. Daqui a pouco<br />
saímos, foi o que repetiu a seguir, justificando-se pela imobilidade<br />
da situação. Repentinamente pensara que seria atitude receptiva<br />
manter o amigo bem informado do que acontecia diariamente<br />
na cidade. Há razões extras, caro <strong>Monlevade</strong>, para termos que<br />
aguardar tempo maior que o requerido, e é por isso que deixei<br />
condições para que haja passagem de brisa aqui dentro da condução.<br />
E, é claro, para que sintas o calor da tarde já amenizado<br />
pelas horas.<br />
Sei que na Polytéchnique, na Génie Militaire, e na école des<br />
Mines, estudaste praticamente de tudo, mas há detalhes locais<br />
que... bem, o motivo do retardo de nossa saída é evento da coroa<br />
real que acontece praticamente todos os dias da semana. Os sinos<br />
que ouviste faz pouco, prezado <strong>Monlevade</strong>, anunciaram encerramento<br />
da estada diária de João VI na igreja da Glória. É onde<br />
regularmente faz suas orações e assiste a missas vespertinas e...<br />
fato é que nos últimos meses, e dias, não tem faltado a essas celebrações<br />
por motivo algum. Por duas razões. A primeira é que ainda<br />
prossegue com ritual de luto pela morte da sua mãe e rainha.<br />
Pobre mulher! Ainda em Portugal, perdeu o primogênito acometido<br />
pelo vírus da varíola. Foi quando começou seu infortúnio! Ela<br />
própria, alegando razões de fé, não permitiu que o vacinassem.<br />
Após a fatídica perda do filho assomaram suas intempestivas crises<br />
de insanidade mental. De Maria, a piedosa, passou a ser Ma-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
ria, a louca. Já a segunda razão da assiduidade do imperador à<br />
Glória é que a conspiração republicana aqui no Brasil, e levada<br />
a efeito na Província de Pernambuco, foi recentemente sufocada.<br />
Vinha se arrastando desde março deste ano!<br />
Desde então, Sua Alteza atende a essa cerimônia da tarde.<br />
Depois segue para o palácio de São Cristóvão para atendimento<br />
a ministros e cerimônia de beija-mão; é exatamente o que está iniciando<br />
a fazer agora. Lá em São Cristovão é onde parte da corte<br />
o aguarda. A agenda real não varia muito, <strong>Monlevade</strong>. O homem<br />
é recatado. Não gosta de viajar...<br />
Foi aí que Tisserand voltou à realidade e, lembrando-se dos<br />
dias atuais, alfinetou. É das poucas coisas que o governo de João<br />
VI era diferente do Brésil de hoje: o das tournées, dos giros, pelo<br />
mundo afora à custa do erário. Seu neto Pedro II foi um dos precursores<br />
do modelo atual. Certa ocasião ficou cerca de um ano<br />
passeando por países europeus. É por essas e outras tantas que<br />
nós, estrangeiros, ficamos cientes que, no Brasil, os presidentes não<br />
ficam um instante em seu trono de Brasília. Parecem ter nojo da palavra<br />
trabalho. Mas não gosta o nosso, o francês, de expor a mulher<br />
para todos os continentes? Não é Carla Bruni o atual colírio para os<br />
olhos do mundo? Por que alguns têm tanto e outros tão pouco? Ah,<br />
desculpe-me, mon ami, mas a beleza desta incomparável modelo,<br />
fez-me esquecer, por instantes, que o engenheiro <strong>Monlevade</strong> há<br />
pouco botara os pés no porto de São Sebastião do Rio de Janeiro.<br />
Estava estacionado no largo do Paço enquanto aguardava<br />
passagem de séquito da realeza, lembra-se? A situação continuava<br />
a mesma! E, para distraí-lo, Freitas prosseguia dizendo que é<br />
também em São Cristóvão que João VI gosta de distribuir moedas<br />
e receber pedidos de empregos para seus súditos. A máquina<br />
pública está inchadíssima. A corrupção grassa, e é imensa a quantidade<br />
de cavaleiros que trajam uniforme do esquadrão imperial!<br />
Você vai notar que a princípio virão somente os batedores. Depois<br />
o pessoal de segurança. Um outro tanto exagerado de gente.<br />
Aqui nessa colônia, <strong>Monlevade</strong>, gastar dinheiro do povo, fazer<br />
favores com mãos alheias, não é considerado pecado. Desde que<br />
seja a partir do rei ou um dos seus inúmeros prepostos. Embora<br />
tenha que confessar que nesse último ponto tenhamos ganhado<br />
a sorte grande, pois o nosso, em especial, tem hábitos simples e é<br />
de boa índole. A despeito de suas esquisitices, gosta mesmo é de<br />
255
256 Jairo Martins de Souza<br />
rituais religiosos, e de ficar próximo da população. Exceto em situações<br />
reconhecidamente excepcionais, não gosta de festas e grandes<br />
demonstrações de luxo. Não são muitos os eventos em que<br />
sua segurança interdita ruas, durante longo período, para permitir<br />
passagem livre de comitiva. Estamos diante de uma exceção!<br />
A rainha participa desse cortejo diário? Foi o que Jean perguntou-lhe,<br />
enquanto incansavelmente admirava o verde intenso<br />
das florestas que se destacavam distantes e compunham, por fim,<br />
o cenário. Nunca vira nada igual!<br />
Freitas iniciou sua resposta dizendo-lhe que nem mesmo um<br />
nobre da linhagem dos Bragança escapa das agruras do casamento,<br />
mas deixou-a a meio caminho. O motivo foi ter sentido<br />
no ar enorme fruição que emanava da face do amigo francês. O<br />
engenheiro da école des Mines parisiense movia a cabeça lentamente,<br />
enquanto exibia sinais de acentuado deslumbramento.<br />
Freitas vira iguais expressões de êxtase estampadas nos rostos de<br />
vários outros recém-chegados ao país. Então foi somente com a<br />
passagem de alguns segundos que, finalmente, prosseguiu intenção<br />
que entrecortara.<br />
Nossa rainha mal fala com o marido, amigo <strong>Monlevade</strong>! Ainda<br />
em Portugal residiam em castelos diferentes: ele, no de Mafra,<br />
com suas duzentas janelas; e ela, no de Queluz. O mais bizarro<br />
casal de todos os reinos do mundo. Esses dois têm em comum<br />
somente a feiura e os tijolos e luxos dos castelos que disse. No<br />
Brasil, <strong>Monlevade</strong>, acontece o mesmo que acontecia em alémmar.<br />
Ela, em sua bela chácara de Botafogo; ele, no Palácio de<br />
São Cristóvão.<br />
Aí que está. A riqueza dos reis portugueses foi construída em<br />
grande parte sobre os ombros dos habitantes da minha província.<br />
Minas Geraes praticamente carregou, e continua carregando,<br />
Portugal nas costas. Bem, é casamento sem amor, tal como o de<br />
João e Carlota. No caso desses, a aliança foi colocada nos mãos<br />
dos impérios em que nasceram. O português e o espanhol. Não<br />
na do casal. Você é europeu, <strong>Monlevade</strong>, e sabe por experiência<br />
própria que a realeza casa-se por interesses. Pode ser até que os<br />
envolvidos se encaixem, e acabe dando certo. Não é o caso. Dom<br />
João é sabidamente desleixado e enfadonho. Carlota é ambiciosa<br />
e maledicente. É o que a imprensa diz por meio de caricaturas,<br />
e com razão. E que também me faz imaginar se você sabe que
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
jornal é coisa recente para nós. O único que tínhamos até dez<br />
anos atrás era publicado em Londres e entrava... bem, tratavase<br />
de impresso clandestino e não é por meio dele que você vai<br />
saber melhor dessas intrigas palacianas. Como também não irás<br />
se surpreender em ouvir que certos camareiros reais dizem que<br />
a rainha anda colocando chifres na cabeça do marido. Não se<br />
diz na própria França que Josefina andou traindo Napoleão com<br />
fidalgo que tinha cargo de quase ministro?<br />
Os batedores finalmente assomaram à esquina de rua próxima,<br />
trazendo pó e o ruído das patas dos cavalos que pisavam<br />
forte no chão de terra mal batida. Fossem rinocerontes, Tisserand<br />
ponderou sorrindo, poderia jurar que procuravam conflitos com<br />
seus semelhantes. A seguir surgiram a comitiva real, e o grupo de<br />
soldados que resguardava a traseira do cortejo. O povo aplaudiu,<br />
e alguns moradores acenavam com lenços das portas das lojas e<br />
das janelas das casas.<br />
O movimento cessou. Freitas e <strong>Monlevade</strong> puseram-se a caminho<br />
de Botafogo. Chegaremos em 15 minutos, o brasileiro avisou.<br />
E, ao longo da pequena jornada, transitaram por ruas de<br />
pouco movimento onde eventualmente ouviam-se gritos de vendedores<br />
de vassouras, cestas, balaios, espanadores e garrafas. O<br />
comércio ambulante aqui é intenso, <strong>Monlevade</strong> comentou, fazendo<br />
uso do lugar privilegiado que lhe fora concedido dentro<br />
da condução. Freitas, cordialmente, respondeu-lhe, é verdade...<br />
Encontra-se quase de tudo nas ruas do Rio. Inclusive prostitutas,<br />
você vai vê-las ao cair da noite! <strong>Monlevade</strong> acenou com a cabeça.<br />
Intimamente não se surpreendera com a informação do amigo.<br />
Em Paris isso também faz parte do visual da cidade, e voltou<br />
sua atenção novamente para o que se passava nas ruas... Daí ter<br />
reparado, entre outros detalhes menores, que as construções ao<br />
nível das ruas sem calçamento, em sua maior parte, constituíamse<br />
de dois pisos. O primeiro usualmente reservado para fundos<br />
de comércio.<br />
E à medida que iam se afastando do centro, as casas escasseavam,<br />
tornando-se mais pobres e com construções mais afastadas<br />
da entrada dos terrenos. Em sua maioria, ficava fácil perceber pelas<br />
paredes sem reboco, feitas de barro seco entrelaçado por cintas<br />
vegetais e madeirame barato. Nos terreiros, às vezes cercados<br />
por estacas de bambu mal travadas, viam-se roupas de má quali-<br />
257
258 Jairo Martins de Souza<br />
dade que secavam penduradas em fios de corda de juta esticados.<br />
Galinhas passeavam bicando o chão de um lado para o outro.<br />
A cerca de duzentos metros da chegada, Freitas indicou-lhe<br />
bonito sobrado totalmente avarandado. A caiação era recente. O<br />
branco de suas paredes contrastava agradavelmente com o azul da<br />
pintura de suas portas e janelas que, além deste pormenor, tinham<br />
contorno superior em arco envidraçado. Construção sóbria, contudo<br />
marcante. Transpirava agradável limpeza. E parecia casa de<br />
fazenda, pois não havia outras residências de igual porte por perto.<br />
A proximidade de árvores altas e copadas aumentava mais ainda a<br />
sensação de frescor que predominava no local.<br />
É onde moro no Rio, o mineiro complementou. Aluguei este<br />
imóvel por ser parecido com a casa grande da minha fazenda no<br />
vale do Piracicaba. O antigo morador, e proprietário, era diplomata<br />
inglês que se aposentou e tinha decidido encerrar seus dias aqui<br />
mesmo no Brasil. Para tanto comprou castelo nas vizinhanças de<br />
Petrópolis. Muitos estrangeiros têm feito isso, <strong>Monlevade</strong>. Este, em<br />
particular, disse-me crer que o clima da região de montanhas cariocas<br />
é o melhor do mundo.<br />
É realmente uma bela casa, <strong>Monlevade</strong> concordou, já quando<br />
adentravam o interior da moradia. Foi ótimo ter passado pelo<br />
pomar de entrada e sentido o aroma de tamanha diversidade de<br />
frutos. É passeio que relaxa a alma de qualquer viajante... É uma<br />
pena que minha mulher, por causa dos seus enjoos, não consiga<br />
viajar para cá, agora foi Freitas quem disse e prosseguiu. Então<br />
mantenho aqui somente o necessário para estada confortável e<br />
recepção de pessoas que, frequentemente, convido para almoços e<br />
jantares. Em sua maioria, clientes dos produtos das minhas terras.<br />
Donos de restaurantes, mercadores, exportadores... para dar conta<br />
disso, tenho cozinheira e três escravas de limpeza de casa, e mais<br />
dois negros para manutenção do quintal. Você se sentirá bem aqui!...<br />
Isso é um paraíso, <strong>Monlevade</strong> disse a Freitas, enquanto descia<br />
as escadas dirigindo-se ao primeiro piso. O amigo aguardava-o<br />
para o café da manhã, tinha ao seu lado algumas folhas de jornal<br />
já lidas. Dormi muito bem, prosseguiu. O ruído da mata embaloume,<br />
também o coaxar dos sapos e o despertar com os galos foi<br />
algo que não estou habituado em Paris. Lembra-se que tenho um<br />
cachorro? O Noir. No castelo <strong>Monlevade</strong>, em Guéret, acordava<br />
com seus latidos. Era o meu relógio despertador desde criança.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Na casa dos Pius, continuei acordando com eles. Tinha intenção<br />
e gostaria de tê-lo trazido. Desisti poucos dias antes de embarcar,<br />
ele está velho, bem, temi que não suportasse a viagem e tivesse<br />
o infortúnio de ter que jogar sua carcaça ao mar... ah, mon bon<br />
Dieu! Foi noite maravilhosa, tenho o corpo absolutamente relaxado<br />
e descansado.<br />
Fico feliz, Freitas respondeu-lhe enquanto acenava para que<br />
as escravas trouxessem café e suco frescos.<br />
Haviam conversado até altas horas na noite anterior. Indagado<br />
por Freitas sobre sua jornada, Jean começara do início.<br />
Contara-lhe sobre os preparativos da longa viagem e a não menos<br />
duradoura peregrinação pelo Atlântico: ainda que, felizmente,<br />
tenha chegado ao fim em tempo surpreendentemente menor...<br />
O capitão ouvira tudo com atenção, e ficara interessadíssimo no<br />
episódio da chegada e a falta de educação do oficial português.<br />
Ficou chateado, mas tentou reduzir sua importância. Não queria<br />
que o visitante tivesse má impressão de sua terra. Conheço<br />
a fama do capitão Agostinho Ferro, foi, o que, inicialmente, comentou.<br />
Não é sujeito baixinho, com pança exagerada e cheio de<br />
prepotência? É. Então é o próprio. É conhecido pela alcunha de<br />
azeitona por razão fácil de se saber: gosta de vestir-se com capote<br />
verde-oliva sobre o uniforme até mesmo quando está de folga.<br />
O que é coisa rara. Este sujeitinho é famoso por aplicar sermões<br />
e ameaçar aos estrangeiros que chegam aqui. É ocasião em que<br />
aproveita para defecar regulamentos que não existem, e que saem<br />
de seu próprio juízo. Julga estar acima do bem e do mal. Mas tem<br />
caminhado sobre corda bamba, pois, ao longo dos últimos meses,<br />
está sob investigação do intendente de polícia quanto a atividades<br />
de contrabando de madeiras de lei. Provavelmente não deverá dar<br />
em nada, pois alguns nomes de políticos foram ajuntados como<br />
elementos de interesse ao inquérito policial... esse homem não<br />
representa o significado da palavra brasileiro, amigo <strong>Monlevade</strong>.<br />
Não absorveu nossa cultura cordial, e não é sujeito antigo na cidade.<br />
Veio da região do Porto dois anos depois da chegada da comitiva<br />
real. Também não gosta de franceses. Nem de nós, brasileiros.<br />
Mas o maior problema dele é com o cidadão francês. Em<br />
suas bebedeiras, recita incontavelmente as tentativas de tomada<br />
do Brasil a Portugal. Binot Gonneville, 1504, Santa Catarina.<br />
Nicolas Villegaignon, 1555, Rio de Janeiro. Charles des Vaux e<br />
259
260 Jairo Martins de Souza<br />
outros, 1594, Maranhão. O corsário René Duguay-Trouin, 1711...<br />
ah, por este último alimenta ódio especial. O desgraçado, diz, invadiu<br />
e tomou conta do Rio por eternos 50 dias. Devolveu-a somente<br />
depois de receber altíssimo resgate da nossa coroa.<br />
E, à medida que vai listando o nome dos tais franceses, vai<br />
contando-os nos dedos para não esquecer nenhum. Com isso,<br />
Agostinho Ferro deixa sempre para o final o caso de Charles-Marie<br />
de la Condamine que invadiu a Amazônia em 1743. Pelo menos,<br />
diz, esse fez algo útil para o mundo: descobriu a borracha. Mas o<br />
ápice da mágoa de Ferro fica por conta da invasão das ideias da revolução<br />
francesa. Aí fica nervoso, se exalta, e diz que deve ser feita<br />
declaração de guerra em circunstâncias tais e tais, e assim segue o<br />
raciocínio de sua mente sinistra.<br />
<strong>Monlevade</strong> conhecia os fatos que Freitas dissera, contudo<br />
não se manifestara. Poderia lembrar mais naquela conversa. Poderia<br />
lembrar que seus conterrâneos de anos, e séculos passados,<br />
foram os únicos estrangeiros que conquistaram o coração dos<br />
índios nativos. A gema do Brésil. Não se diz que, para seduzir<br />
uma nação, não se pode matar os costumes do seu povo? Não<br />
fizeram dessa forma os romanos que dominaram o mundo com<br />
seus impérios? Pois foi mesmo assim que aqui funcionou. Desde<br />
1504, nós, franceses, fincamos raízes culturais neste novo mundo.<br />
Tanto é assim que foi ano em que o índio carijó Essomericq foi<br />
levado para a Europa. Lá estabeleceu família, tornou-se Binot de<br />
Paulmier, envelheceu, e lá mesmo foi enterrado. O selvagens brèsiliens<br />
tornaram-se mais que amigos dos franceses. Tornaram-se<br />
aliados. Alguns dos nossos chegaram aos extremos de conversão<br />
e adoção do antropofagismo. Quem diria!?... Ainda assim nossa<br />
relação com o Brésil não era completa. Portugal não mantinha,<br />
mesmo que a trancos e barrancos, sua rica colônia até aquele ano<br />
de 1817?<br />
A prudência, Tisserand prosseguiu, ensinara a <strong>Monlevade</strong><br />
quando, e por que, calar-se. E sua França, disso não tinha dúvidas<br />
era, a partir da revolução, a mola condutora do mundo! É<br />
por isso que continuou apenas ouvindo quando Freitas cortou o<br />
silêncio e disse existir algo de irracional na postura de Agostinho<br />
Ferro. Não entendia gente daquele tipo...<br />
Bem, Tisserand dispôs-se a esclarecer, talvez a do tipo formada<br />
nos velhos moldes que adormecem, por exemplo, debaixo da
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
eterna rixa entre os nascidos na região da cidade do Porto e os<br />
de Lisboa. Desde tempos imemoriais, inclusive nos anos em que<br />
Ferro viveu, portuenses e lisboetas brigam como condenados.<br />
Tinham rusgas milenares. Hoje, Tisserand explicou, seus resquícios,<br />
inconscientes, estão centrados apenas no foot, no futebol.<br />
Os torcedores do Benfica de Lisboa comemoram efusivamente as<br />
derrotas do Porto em copas europeias... mas a soberania nacional<br />
os une. O elo da corrente é fechado quando ouvem o hino português<br />
em copas do mundo. Às armas, às armas!... sobre o mar! O<br />
esplendor de Portugal!<br />
Isso acontece, o estrangeiro concluiu, a qualquer tempo, ou<br />
de alguma outra forma qualquer, com os cidadãos de qualquer<br />
país! ... Não agia daquela forma o camarada Agostinho Ferro?<br />
Ah, mon ami, mesmo que tenha nascido no Porto, ele é, acima<br />
de tudo, um português. E não suportava os franceses pela invasão<br />
de Lisboa naqueles anos.<br />
Quanto a nós, brasileiros, o alferes simplesmente nos acha<br />
raça inferior. Mas ultimamente tem estado mais furioso que o normal.<br />
Quer saber o motivo?... Teve pedido de emprego recusado<br />
para sobrinho no Banco do Brasil. O diretor é brasileiro de nascença.<br />
Não se conformou com a resposta de que não poderia ser<br />
atendido porque o banco estava quebrado. O funcionário alegou<br />
a boca pequena que D. João não para de mandar emitir dinheiro<br />
sem lastro.<br />
Impostos. Mais impostos. É solução que tem adotado para<br />
compensar despesas da corte. Falsa. Artificial. O emissário que<br />
me relatou a conversa, Freitas prosseguiu, disse-me que Ferro ria<br />
quando o funcionário lhe passava justificativa. Que se dane! Meu<br />
interesse é o emprego do filho da minha irmã. É método que<br />
não funciona e nunca funcionará, o capitão brasileiro prosseguiu<br />
dizendo com ar inconformado. Atitude deficiente. Dom João não<br />
consegue repor o que o império já havia retirado daqui mesmo,<br />
da sua própria colônia. Nem mesmo com a venda de concessões<br />
de interminável lista de títulos de nobreza para particulares,<br />
enfim, não dá conta de encher aquele poço sem fundo. Nosso<br />
soberano desconhece, ou não se lembra, dos motivos da reforma<br />
protestante, a venda de indulgências fez causar perda ao poder de<br />
fogo dos papas e do catolicismo. Pode acontecer o mesmo com o<br />
sangue azul da monarquia portuguesa. A colônia é católica. Mas<br />
261
262 Jairo Martins de Souza<br />
a gastança generalizada, e os abusos, não somente podem como<br />
também já estão gerando outros tipos de protestos. Outro tipo<br />
de protestantismo. Já tivemos no ano passado o movimento republicano<br />
de Pernambuco. Há dinheiro para atender a tudo que<br />
a corte demanda aqui na capital, mas nunca se tem para aplicar<br />
nas sofridas províncias do nordeste. Daí o movimento alastrou-se<br />
e quase vingou. Continuando assim, até mesmo pode cair a monarquia.<br />
É assunto perigoso!<br />
É por isso – é ainda Freitas que continuava suas explicações<br />
– que devo voltar ao tenente Agostinho Ferro que é tema menor.<br />
Meu informante aqui na alfândega disse-me também que o cargo<br />
que o oficial pretendia para o sobrinho não podia, em hipótese<br />
alguma, ser preenchido por analfabeto. Em tese! Pois na realidade<br />
não precisaria comparecer ao escritório. Bastava ter habilidade<br />
para andar sobre suas duas pernas para buscar pagamento mensal.<br />
Ferro sabia disto, e enfureceu-se. Parece que está descontando<br />
com altos juros nos passageiros e donos de carga que chegam.<br />
Faz o que chama de operação tartaruga.<br />
Não. Reforço que não tenho contato direto com o tipo, Freitas<br />
esclareceu. Estou ciente destes fatos porque tenho feito exportações<br />
de café e meus agentes usualmente pagam dezessete por<br />
cento do valor de minhas vendas, à guisa de contribuição, ao<br />
sindicato daquele senhor. A intendência da polícia, na pessoa do<br />
delegado Pedro Botelho Guerra, tem batalhado pela eliminação<br />
de corruptos como ele. Policial por demais rigoroso. Deve ser exonerado,<br />
é questão de dias, pelos burocratas do império!<br />
O Rio é belíssimo, <strong>Monlevade</strong>, mas eventualmente não é flor<br />
que se cheire! Isso obviamente não acontecerá, eu não permitiria<br />
tal condição, mas lembro-lhe que aqui é preciso cuidado especial<br />
para circular em suas vielas. De dia ou à noite!<br />
Bem, o senhor que me lê já sabe que, dependendo do tema<br />
da conversação, não é de meu feitio interromper quando alguém<br />
se dirige a mim. Procedo assim, pois quando tal situação ocorre<br />
comigo, costumo perder a linha de pensamento, bem, de certa<br />
forma, temo que o outro também perca o foco.<br />
Mas a gravidade dos assuntos que Tisserand me dissera por<br />
último fez-me reconsiderar atitude. Não suportaria meu próprio<br />
silêncio. Então, como de meu hábito, simplesmente levantei a<br />
mão direita até a altura do peito e, ao mesmo tempo, mantive
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
dedo indicador quase na vertical. Pedi tempo a Tisserand. Ele<br />
percebeu e passou-me a palavra.<br />
Fico triste que no meu país tenha sido sempre assim, monsieur.<br />
Pelo que relatastes o que mudamos em termos de corrupção<br />
foi o índice. Nos dias de hoje, caiu. Caiu oficialmente de dezessete<br />
para dez por cento...<br />
263
264 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
III<br />
Onde se diz da breve estada no Rio. A carta de Martinho<br />
O capitão João Gomes Abreu de Freitas sorriu gostosamente. Estava<br />
sozinho e observava o amigo que caminhava entre as árvores<br />
do seu quintal. O engenheiro francês não conhecia mulher!<br />
Com isto não quero que o senhor tenha um conceito errado<br />
sobre o comportamento do amigo brasileiro de <strong>Monlevade</strong>, Tisserand<br />
exclamou! E não é meu propósito insinuar que fosse sujeito<br />
depravado. Então para que me entendas melhor, modifico minha<br />
linguagem dizendo que o fazendeiro não era pessoa de duas caras!<br />
Pelo contrário, já sabemos ser homem de família e fortemente preso<br />
a valores tradicionais.<br />
Era o que passava aos filhos. Católico por excelência, fizesse<br />
chuva, fizesse sol, comparecia invariavelmente às missas dominicais.<br />
Fazia tanta questão de manter família, empregados e escravos<br />
unidos naqueles momentos semanais de manifestação de fé<br />
que as celebrações eram feitas em sua própria fazenda. Também<br />
obedecia religiosamente ao calendário cristão de festas, procissões<br />
e dias santos...<br />
Por sinal, o senhor se lembra que, quando da chegada de <strong>Monlevade</strong>,<br />
ele compareceu ao Largo do Paço acompanhado por uma<br />
vistosa mulher? Não me causa surpresa, Tisserand comentou, que<br />
tenha deduzido, equivocadamente, que o capitão Freitas estivesse<br />
dando sinais de estar saltando os trilhos... é tempo de colocar em<br />
pratos limpos o acontecido...<br />
O acaso viera a tomar conta da situação. Jean, sem que soubesse,<br />
fora testemunha de presença de uma das raras companhias<br />
femininas de Freitas quando, ainda no navio, visualizara o amigo<br />
que o saudava.<br />
Bem, tratava-se de antiga namorada que, embora não tão<br />
mais jovem que ele, era daquelas com quem os anos foram be-<br />
265
266 Jairo Martins de Souza<br />
nevolentes. O resultado é que a cada temporada que passava, ela<br />
mesma confessara ao antigo namorado, tinha sua beleza aumentada<br />
pelo amadurecimento da face e a paz que dela fazia emanar.<br />
Uma quarentona encantadora!<br />
Haviam se encontrado nas proximidades do Paço Imperial.<br />
Há anos não se viam, e a elegante senhora não foi perguntada e<br />
nem dissera dos seus propósitos. Ele relatara que estava aguardando<br />
chegada de amigo francês. Vamos saudá-lo juntos? Fora sua<br />
indagação derradeira, como também motivo para vê-los de braços<br />
dados no ancoradouro do porto carioca. Ficou somente doce lembrança.<br />
Não mais se viram!<br />
Jean não lhe havia pedido explicações nem indagara quem<br />
era a mulher que acompanhara o amigo antes do seu desembarque.<br />
A justificativa havia partido do próprio. Não queria que o<br />
francês tivesse impressão errônea de seu antigo amor ou do seu<br />
comportamento como pai de família. Foi daí que a conversa, regada<br />
a taças de vinho, fez com que Freitas soubesse de detalhes<br />
íntimos da vida do convidado.<br />
Não é que, em termos de companhias femininas, <strong>Monlevade</strong><br />
fosse qualquer tipo de santo declarado. Ele mesmo havia confessado<br />
a Freitas. Nos tempos inaugurais da Polytéchnique andou<br />
frequentando com alguma assiduidade, embalado pela companhia<br />
de alguns companheiros, diversos bordéis da grande Paris.<br />
Farra de estudante. O vinho, ainda que bebido com moderação,<br />
fazia-o agradavelmente perder a cabeça. Brincava. Improvisava<br />
piadas. A juventude fazia com que seu juízo fosse comandado<br />
por outras partes sensíveis do corpo. Mas não tinha tido até o<br />
momento a tão esperada conjunção carnal. Era virgem!<br />
Não sei a razão, Tisserand comentou, de Léopold de Bogenet<br />
ter omitido tais fatos nas páginas em que relatou sobre as peripécias<br />
do jovem em Paris. Talvez, a princípio, desejasse esconder dados<br />
de natureza moral da família na França. Pode ser. Mas pode<br />
ter sido também por mero esquecimento. Este tipo de assunto<br />
possivelmente não o interessasse, daí terem sido despertados apenas<br />
quando indispensáveis no encadeamento de suas anotações.<br />
Qualquer dessas suposições poderia ser causa bastante para<br />
o vigário geral ter trazido à tona, tão tardiamente, a condição de<br />
pureza do rapaz, e em madrugada a que esteve presente o fazendeiro<br />
das Geraes.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
267<br />
Certo é que o capitão condoeu-se com a situação e, tal como<br />
faria com qualquer um dos seus filhos (de certa forma era como<br />
considerava Jean de <strong>Monlevade</strong>), na noite do dia seguinte já tinha<br />
agendado encontro com conhecida mariposa da noite carioca.<br />
Séverine Sorel era o seu nome. Tudo deveria ocorrer, de<br />
maneira fortuita, após almoço que promoveria para apresentar<br />
o engenheiro francês a algumas pessoas da corte e da sociedade<br />
locais.<br />
E não foi previsto para tanto. Pois <strong>Monlevade</strong> e a inesperada<br />
conterrânea tiveram refeição prolongada até o fim da tarde, e<br />
agradavelmente estendida com aperitivos que, por sua vez, alcançaram<br />
noite fechada. A francesa, Séverine, era natural da cidade<br />
de Bordeaux e, pródiga em encantos pessoais, fez com que Jean<br />
se deixasse levar a extremos que jamais havia se permitido. Na<br />
situação, imaginou-a com os rostos de Angéline e de Bernadette<br />
du Lac, decerto, e é bem verdade, o teor de álcool das inofensivas<br />
bebidas de frutas brasileiras contribuiu enormemente para<br />
o fato. Como acontece com muitos outros europeus, foi traído<br />
pela doçura de suas essências. No dia seguinte, soube acidentalmente<br />
que certa tentativa de pagamento de serviços amorosos<br />
havia sido feito diretamente à bela senhorita por intermédio de<br />
rico senhor que, coincidentemente, morava sob este mesmo teto.<br />
Não se concretizou! Não houve aceite por parte da delicada profissional.<br />
Foi quando Jean tomou conhecimento de que tudo fora<br />
armado pelo amigo Freitas. Ele desabou por instantes. Poucas<br />
horas depois concluiu que sua vez chegara não da forma que<br />
imaginara em sonhos. Mas aconteceu. Libertas quae sera tamen.<br />
Intimamente agradeceu ao amigo.<br />
O incidente serviu, além de tudo, para apimentar sua programação<br />
carioca. Caso alcançasse idade para ter netos adultos,<br />
contar-lhes-ia no fim dos seus dias. E visitou o que tinha de ser<br />
visitado à guisa de turismo, e ainda teve tempo de sobra para ir<br />
ao ministério de negócios regularizar de vez a situação de seu<br />
salvo-conduto. Quando não acompanhado por Freitas, foi-lhe fácil<br />
reconhecer todas as paragens simplesmente lembrando-se das<br />
descrições entusiasmadas que Ildefonso lhe fizera ainda em Paris.<br />
E, também confirmar, conforme o jovem médico lhe adiantara,<br />
que o próprio ministro Manoel de Portugal e Castro faria a liberação<br />
final.
268 Jairo Martins de Souza<br />
Não foi por ato de Deus. Na realidade, Freitas a tudo fazia<br />
acontecer mais rápido. Era homem querido e de boas relações.<br />
<strong>Monlevade</strong> repetidamente viu-lhe distribuir gorjetas e cortesias<br />
para os setores monárquicos envolvidos na operação. Como também<br />
promover revezamentos de cavalo e cocheiro do cabriolé<br />
que os conduzia às diferentes partes da cidade. Norte e Sul. O Rio<br />
tinha poucas ruas.<br />
Em torno de quarenta e três, Tisserand prosseguiu, onde a insegurança<br />
marcava ponto a cada esquina. A maior parte do povo<br />
andava com faca enrolada em pano e amoitada debaixo do capote.<br />
Isso quando não o fazia com garrucha de pequeno calibre!<br />
Em termos de violência, e guardadas as devidas proporções, mon<br />
ami, o Rio de hoje não era diferente da pequena cidade do princípio<br />
dos 800. Com agravante do maior fedor e da pestilência,<br />
resultados de abandono pela administração real. Fezes humanas<br />
eram encontradas a torto e a direito: escravos defecavam onde<br />
lhes sobrevinham as necessidades. E chegavam acorrentados aos<br />
montes, roubados de sua distante terra natal. O número aumentava<br />
ano a ano. Essas miseráveis criaturas, que traziam consigo<br />
mão de obra barata, eram filhas da natureza esquecida na África,<br />
e não tinham o mínimo pudor em safar-se do que a própria<br />
lhes exigia. Nas esquinas e lotes vagos, a concentração de urina<br />
acumulada e velha era absolutamente insuportável! Daí o senhor<br />
pode calcular a fedentina reinante no cotidiano dos cariocas que<br />
habitavam fora do núcleo central da cidade. Provocaria vômitos<br />
em estômago de urubu.<br />
Então fica claro que Freitas não mostrou ao amigo francês somente<br />
o Brasil dos sonhos europeus – notei que Tisserand parecia<br />
ainda ligado ao assunto anterior. O paraíso perdido! Mostrou-lhe<br />
também a principal podridão da sociedade colonial portuguesa.<br />
Levou-o inclusive à popular Loja na Rua do Valongo. Lá, explicou<br />
a <strong>Monlevade</strong>, funciona ponto de venda da mercadoria que mais<br />
chega ao porto do Rio. Valorizadíssima! É onde o escravo africano<br />
passa por avaliação e negociações de compra e venda por particulares,<br />
fazendeiros e empresários. Não é coisa bonita de se assistir,<br />
Freitas alertou. Mas faz parte de espetáculo da nossa história que<br />
deprime a mais seca das almas. Imagine situação em que a própria<br />
mercadoria vê selar o seu destino em terra estranha. Irmãos, pai,<br />
mãe e amigos são separados propositalmente!... O porquê de tamanha<br />
desumanidade? Evitar rebeliões!
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Foi aí que Tisserand trouxe algo à tona que me surpreendeu.<br />
Ele disse-me que a visita feita por <strong>Monlevade</strong> ao Valongo não é<br />
nada diferente das que milhares de pessoas fazem anualmente aos<br />
restos do famoso campo de concentração e extermínio de Auschwitz,<br />
na Polônia. Concordei. Nenhuma delas é feita com satisfação.<br />
Isso é coisa somente para certos políticos que visitam e gostam<br />
de ser fotografados junto a áreas abatidas por acidentes naturais,<br />
ou até mesmo o caso de expectadores de cinema que veem fatos<br />
equivalentes. Na arte admira-se, com algum constrangimento, fatos<br />
que, na vida real, seriam insuportáveis!<br />
Misérias humanas à parte, deu tudo certo, Tisserand disse,<br />
fechando o assunto. Três dias após chegar ao Brésil, Jean de<br />
<strong>Monlevade</strong> estava pronto para viajar para a província de Minas<br />
Geraes e, em especial, para a ansiada fazenda às margens do Rio<br />
Piracicaba que, como sabemos, seria seu destino final.<br />
Mas alterou a cronologia que havia projetado, pois lhe surgiu<br />
nova situação. Inesperada. Freitas recebera carta urgente de Lisboa<br />
que chegara às suas mãos após vários tropeços. O emitente,<br />
Martinho <strong>Monlevade</strong>, anunciava, nas suas entrelinhas, que iria<br />
fazer surpresa a Jean. A remessa havia sido feita bem antes da<br />
chegada do irmão e amigo a Lisboa. Antecipar-se-ia à convocação<br />
que seria combinada com o próprio e seguiria para a capital<br />
da colônia. Mas nada deveria ser dito a respeito de sua iminente<br />
viagem. A idéia era sair de Lisboa no próximo barco após a passagem<br />
de Jean pela capital dos lusitanos. Martinho escreveu ir<br />
para onde o amigo estivesse.<br />
Foi um tanto constrangedor, mas para evitar desencontros e<br />
perdas de tempo desnecessárias, Freitas foi obrigado a quebrar<br />
contrato e alertou a Jean. O francês emocionou-se!<br />
Retardaria partida para Minas Geraes quantos dias fossem<br />
necessários!<br />
269
270 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
IV<br />
O início dos caminhos que levam a Minas Geraes. <strong>Monlevade</strong><br />
encanta-se com natureza. A tropa fiscal e o parente<br />
de Agostinho Ferro<br />
Uma semana depois, Freitas e Jean de <strong>Monlevade</strong> já trotavam<br />
pelos caminhos que os levariam a Minas. O capitão, conforme desejo<br />
anteriormente manifestado, procurava exercer papel de cicerone<br />
para o amigo francês. Para tanto, a cada cenário que julgava<br />
de interesse, parava a montaria e, pacientemente, explicava sobre<br />
as peculiaridades da belíssima natureza da colônia.<br />
Martinho seguia-os a distância suficiente para eventualmente<br />
participar do diálogo que parecia nunca esgotar assunto. A carta<br />
que enviara a Freitas indicava que o Cristina, esse era o nome da<br />
embarcação em que deveria viajar, tinha previsão de sair a tempo<br />
certo das proximidades do convento dos Jerônimos e da Torre de<br />
Belém. Aconteceu como previsto. E ele havia, disso já sabemos,<br />
partido de Lisboa poucos dias depois de <strong>Monlevade</strong> e resolvera,<br />
com a decisão de nova vida, mudar também de visual. Quando<br />
de sua chegada ao Rio, o velho amigo de infância quase não o<br />
reconheceu: estava com barba espessa e bigode bem esculpido.<br />
Não queria que chegasse a tanto, mas chegou a assustar a Jean<br />
de <strong>Monlevade</strong>.<br />
Ansioso, o engenheiro da Polytéchnique já ajuizava que algo<br />
grave poderia ter acontecido com a antiga criança amparada por<br />
Ribérry no fatídico dia do sorteio. Ainda que não fosse de espírito<br />
pessimista, e nem de se preocupar desnecessariamente com o<br />
dia de amanhã, <strong>Monlevade</strong> não podia menosprezar os perigos do<br />
Atlântico. Há anos ambos não haviam concordado, em sensível<br />
discussão, que as forças da natureza haviam sido feitas pelo criador<br />
somente para lembrar aos homens a vulnerabilidade de sua<br />
existência?<br />
271
272 Jairo Martins de Souza<br />
No final deu tudo certo! Foi com essas rápidas palavras que Tisserand<br />
resumiu, e deu por encerrado o curto, mas sofrido episódio.<br />
E prosseguiu imediatamente relatando que os dois meiosirmãos<br />
abraçaram-se, e não esconderam publicamente a alegria<br />
pelo novo reencontro. Foi daí, e após rápido turismo pelo Rio,<br />
(Jean já estava familiarizado com os locais de interesse), que procederam<br />
aos preparativos para a peregrinação até Minas Geraes,<br />
suas igrejas e minas a céu aberto. Novamente aí ficou demonstrada<br />
a capacidade de organização que <strong>Monlevade</strong> tinha para quaisquer<br />
tipos de empreitadas. Freitas ficou admirado com a capacidade<br />
de adaptação do aspirante francês!<br />
Proponho seguirmos pelo caminho novo, foi o que disseralhe.<br />
É mais seguro que o iniciado tradicionalmente no vilarejo de<br />
Paraty. E é mais rápido. Sei, mon ami, que gostarias de mostrarme<br />
todo o vale do Paraíba do Sul e a vila de Paraty, e não duvido<br />
de que sejam absolutamente encantadores, mas tenho certa pressa<br />
em chegar até Minas Geraes. Posso conhecer esses sítios em<br />
outra oportunidade.<br />
Assim foi feito. No chamado caminho novo, o estado das estradas<br />
e trilhas não era dos melhores e os três escravos que os<br />
acompanhavam não relaxavam. Não tinham descanso. Andavam<br />
a pé e, afora os próprios, ainda seguia na comitiva um mulato<br />
liberto, a cavalo, e que já viajara com Freitas em outras ocasiões.<br />
Teria também a função de batedor e guia, pois conhecia bem as<br />
dificuldades e vicissitudes do trecho Rio-Geraes. Tinha desvantagem<br />
de ser um tanto atrevido, mas tal fato era compensado por<br />
ser bom de cozinha.<br />
Jean os ocupava, a todos, com função especial, que era busca<br />
dessa ou aquela amostra de terreno. Ah, como faz falta aqui o<br />
meu velho amigo Breu!<br />
Com isto a bagagem da tropa crescia rapidamente e não demora,<br />
em alguma parada, teriam que adquirir mais semoventes<br />
e balaios. Enquanto isso não ocorria, o mulato procurava redistribuir<br />
a carga entre as mulas, e cestos de taquara, e sacos, para<br />
equilibrar pesos entre os animais de tração. Martinho <strong>Monlevade</strong>,<br />
por delegação de Freitas e de Jean, observava detidamente<br />
todos os movimentos que aconteciam no pequeno comboio.<br />
Com algumas horas de tropa, já dominava todas as variáveis e<br />
cuidados que deveriam ser tomados para que tudo ocorresse de
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
acordo com as melhores expectativas. Inclusive que mulas não<br />
se reproduzem e são nascidas do cruzamento de jumentos com<br />
éguas. Animal híbrido: como o burro, seu irmão de batalha. Já o<br />
jumento, Freitas explicou-lhe, é aquele bicho que tem tromba do<br />
tamanho da de um elefante. É também bastante resistente!<br />
O trecho a ser percorrido não era de Norte a Sul do Brasil<br />
como fazem tropas regulares, mas mesmo nestas pequenas há<br />
grande ciência na sua condução, Freitas disse-lhe. Normalmente<br />
há envolvimento de profissionais altamente especializados: o que<br />
cuida dos cestos e suas amarrações é um deles. O arranjador de<br />
cargas é outro. Para segurança das mesmas acaba criando nós de<br />
todos os tipos: é um artista! Há também o que cuida dos próprios<br />
animais, dos seus couros, ferraduras e alimentação. É o indispensável<br />
homem dos suprimentos, pois as jornadas são muito longas<br />
em termos do seu dia a dia. O que eles têm em comum, digamos<br />
assim, a companhia de todos, é instrumento de cordas chamado<br />
viola. É o que dá o lado musical desses corajosos homens que<br />
saem regularmente do extremo sul da colônia e chegam até Natal,<br />
já nas longínquas paragens do Rio Grande do Norte.<br />
Bem, apesar de todas essas variáveis, a partir do segundo dia<br />
Martinho passaria a comandar as atividades dos escravos e do<br />
mulato. Este que, curiosamente, passara a ser chamado menino<br />
da tarde, fora destronado com poucas horas a mais no cargo.<br />
O tolerante francês, novato em comandar esse tipo de gente em<br />
expedição, cansou-se das arengas que seu pupilo provocava entre<br />
os pretos. Por que menino da tarde?, Jean indagou-lhe. É filho de<br />
homem do meio-dia com mulher da meia-noite. Português com<br />
africana. Daí a cor morena de sua pele!<br />
Bom, ao assumir funções do menino da tarde, o mesmo<br />
Martinho percebeu que em algumas situações a tarefa a mais não<br />
lhe seria tão pesada. As próprias mulas, em caso de dificuldades<br />
de passagem, automaticamente buscavam solução entre os meandros<br />
do caminho!<br />
Jean de <strong>Monlevade</strong> estava absolutamente extasiado com o<br />
canto dos pássaros... Pareciam não se cansar! A cada minuto aparecia<br />
um tipo diferente e com canto singular e, antes que perguntasse<br />
ao amigo, ouvia: esse é um canário do campo... Aquele é<br />
um curió... O reino animal se manifestava fulgurante sob todas as<br />
formas. Na terra, besouros, cobras, insetos, lesmas... nas árvores,<br />
273
274 Jairo Martins de Souza<br />
pássaros, cores exuberantes, e bandos de pequenos macacos que<br />
olhavam desconfiados para a caravana que passava lentamente.<br />
No ar, papagaios e araras passavam em bandos barulhentos. Platini<br />
tinha razão. As cidades, as serras, os matos... tudo dava pistas<br />
de estar na exuberante terra dos papagaios. O afamado e pouco<br />
conhecido pays des perroquets!<br />
O antigo aluno da Polytéchnique mal se dava conta dos ressaltos<br />
e valas do caminho, como também que, naquela viagem,<br />
estava sendo germinada a causa das terríveis dores lombares que<br />
o acometeriam nos últimos anos de sua vida. A coluna vertebral,<br />
ainda jovem, trabalhava desatinadamente como a de um amortecedor<br />
de veículos que sofre em estrada cheia de costeletas. Como<br />
lhe disse, mon ami, iria dar-lhe resposta retardada.<br />
Nos raros momentos em que ambos – refiro-me a Freitas e<br />
a <strong>Monlevade</strong> –, estavam calados, o francês abria livros. Tinha alguns<br />
poucos selecionados e colocados em bolsa de couro que<br />
ficava amarrada ao alcance das mãos. O que mais consultava<br />
fora emprestado pelo próprio capitão das Geraes e versava sobre<br />
o relevo, pequenas pousadas e povoados da região. Não é que o<br />
simples ato de ler naquelas condições fosse tarefa fácil. Pois quanto<br />
aos estudos e anotações, tudo conspirava contra o dedicado<br />
<strong>Monlevade</strong>. O movimento irregular das patas de sua montaria,<br />
a atenção eventualmente capturada por outras atrações, o reflexo<br />
dos raios solares nas páginas que, avidamente, passava para<br />
frente e para trás, a sombra de árvores copadas que escureciam<br />
abruptamente a estrada, enfim, todas essas situações complicavam<br />
mais ainda suas pesquisas iniciais. E para fazer frente a tais<br />
empecilhos, o jovem engenheiro forçava exageradamente as vistas<br />
e não posso dizer que não tenha alcançado seu objetivo. Para<br />
tanto, em dado momento, chegou a pedir a um dos escravos que<br />
se encarregasse de puxar sua montaria. Já o tempo, após dois<br />
dias de viagem, mantivera-se firme. Isso facilitara sobremaneira o<br />
progresso dos estágios iniciais da empreitada.<br />
Por ordem expressa e soberana de D. João, havia sido fundado,<br />
em 1810, o Real Gabinete de Mineralogia do Rio de Janeiro,<br />
foi o que, em dado momento, Freitas recordou-lhe. Tal fato chamou<br />
especialmente a atenção de Jean <strong>Monlevade</strong>, pois o amigo<br />
disse inclusive ter chegado a deslocar alguns dos ganhames de<br />
sua fazenda para o setor de mineração. O Brasil tem grande futu-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
ro nesse setor de sangria do seio de sua terra, acrescentou. Não<br />
nos esqueçamos que este é um dos principais motivos para estar<br />
aqui o barão de Eschwege. A usina chamada de Patriótica, <strong>Monlevade</strong>,<br />
encontra-se em pleno andamento. Não a conheço, mas<br />
fica em Congonhas do Campo. Foi a primeira no Brasil a produzir<br />
ferro por meio de malho hidráulico. O próprio Eschwege foi o<br />
consultor para o intento. Aliás, não veio ao Brasil somente para<br />
dirigir a empresa: também foi contratado para o mister de professor.<br />
Andou ensinando tanto técnicas mais modernas de manuseio<br />
aos trabalhadores de mineração, quanto engenharia a oficiais do<br />
exército. Foi um dos que deu as cartas de como seria o ensino da<br />
matemática e da física na Academia Militar do Rio de Janeiro.<br />
Esta escola foi criada há seis anos, em 1811.<br />
Foi a primeira no ensino de engenharia do Brasil, Tisserand<br />
complementou. Umas das que vieram a originar a tradicional<br />
Agulhas Negras. Essa academia, o senhor, com certeza sabe, é,<br />
hodiernamente, a dos oficiais da aviação militar brasileira.<br />
Mas foi por outras duas razões que os olhos de <strong>Monlevade</strong><br />
cresceram, e ele notoriamente expandiu mais ainda a concha das<br />
orelhas quando ouviu Freitas repetir que a missão de Eschwege,<br />
em Itabira, foi na área do ouro. E no ano passado, Freitas continuou,<br />
D. João aprovou os estatutos das sociedades de mineração.<br />
Finalmente, tudo estava pronto, burocraticamente, para se instalar<br />
uma companhia de mineração no Brasil!<br />
Bem, voltemos à viagem, Tisserand disse, pois, pouco após<br />
aquelas informações de Freitas, o mesmo comentou que as mulas<br />
que comprara para cumprir o percurso de sua casa de Botafogo<br />
até a fazenda Nossa Senhora da Justiça eram excepcionalmente<br />
fortes e ordeiras. A tropa andava a passo forçado, mas parava<br />
insistentemente para eventual troca de ideias do capitão com seu<br />
convidado. Os balaios estavam lotados de víveres e instrumentos<br />
de trabalho do engenheiro de minas: não obstante o grosso de<br />
sua bagagem ter ficado na cidade do Rio de Janeiro. Após roteiro<br />
a ser cumprido é que Jean <strong>Monlevade</strong> determinaria local para<br />
onde deveriam ser encaminhados. Foi o que combinara com Freitas<br />
e seus empregados. Sim, por enquanto ficariam aguardando<br />
ordem de envio a partir de Minas Geraes.<br />
A comitiva crescia. Em Petrópolis, um negro e três mulas<br />
aparelhadas foram acrescentadas a preço de ocasião. Arreios e<br />
275
276 Jairo Martins de Souza<br />
cordas de qualidade vieram ajuntados ao lote de mercadorias. O<br />
africano tinha bons dentes e era, segundo o vendedor, muito bom<br />
de braço e bem mandado. Não. Não, “coronel” Freitas. Não é do<br />
tipo fujão...<br />
Martinho <strong>Monlevade</strong> foi testemunha da negociação. Absolutamente<br />
consternado. Ainda não havia se acostumado com homens<br />
escravos, tratava-os como iguais, bem, a vida nos trópicos<br />
portugueses era muito diferente do esquema europeu. Havia de<br />
se acostumar!<br />
Petrópolis, a cidade por que passamos – agora é Tisserand<br />
quem diz – tem clima agradabilíssimo de montanhas. Foi o motivo<br />
do futuro imperador Pedro II ter lá possuído o seu palácio<br />
de verão: o atual e famoso Museu Nacional da cidade. Muitas<br />
cascatas, fios de água e Mata Atlântica. Próximo a isso tudo, habitou<br />
também o Barão e Visconde de Mauá. O maior patrocinador<br />
privado do progresso do Brésil império... Resumindo, Tisserand<br />
explicou, tivesse este homem nascido algumas décadas antes, e<br />
é por isso que aqui aparece, <strong>Monlevade</strong> e sua pequena comitiva<br />
poderiam ter feito o trecho até agora viajado por meio de trem a<br />
vapor. Irineu Evangelista de Souza também chefiou e financiou<br />
outras grandes empreitadas nacionais. Iluminação a gás do Rio.<br />
Companhia de navegação do Amazonas. O próprio Banco do<br />
Brasil. Seu erro foi ter provocado soberba em Pedro II...<br />
Não o deixei completar a frase. Pela primeira vez, desde que<br />
o estrangeiro iniciara sua história, resolvi interrompê-lo drasticamente.<br />
Queria acrescentar algo que julguei, naquele momento,<br />
imprescindível. Petrópolis também, disse-lhe, foi onde Alberto<br />
Santos Dumont, o homem que tornou possível a prática da aviação,<br />
fez erigir sua pequena casa. É conhecida por A Encantada!<br />
Ele sorriu. Entendi que queria argumentar que os americanos<br />
não pensam daquela forma. Mas não o fez. Deve saber que isso<br />
mexe com os nervos dos brasileiros... os irmãos Wright...<br />
No entanto respondeu-me sim. E, creio, para mostrar que tinha<br />
bom conhecimento das coisas recentes do meu país, falou<br />
do palácio Quitandinha do mineiro Joaquim Rolla. Rolla foi um<br />
caipira que dominou a jogatina nos anos do Estado Novo de Getúlio.<br />
E o seu Quitandinha era um hotel cassino de realce mundial.<br />
O Brésil republicano assinou a declaração de guerra contra as nações<br />
do eixo nos seus requintadíssimos salões. Errol Flynn, Henry<br />
Fonda, Bing Crosby foram alguns de seus hóspedes...
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
277<br />
Aí Tisserand deu ideia de ter se enjoado do tema e, com certa<br />
preocupação, complementou. Não devemos nos esquecer, mon<br />
ami, que, no contexto do meu relato, estávamos nos referindo a<br />
anos anteriores ao fim do primeiro quartil do século dezenove. Mil<br />
oitocentos e dezessete foi tempo de escravos...<br />
E é por isso que devemos voltar ao trecho em que estávamos,<br />
disse-me. Voltemos a Freitas e a João de <strong>Monlevade</strong>!<br />
João de <strong>Monlevade</strong>! Sei que o senhor, mon ami, deve ter<br />
estranhado o aportuguesamento do nome. De Jean para João.<br />
Bem, mas somente quando cabível é que vou chamá-lo dessa<br />
forma, esclareceu. Pesa o fato de já estarmos há alguns dias no<br />
Brésil...e, adianto-lhe, jamais o engenheiro francês deverá colocar<br />
os pés fora dessa colônia. Não é ela, segundo o Benjor, terra<br />
abençoada por Deus?<br />
Na velhice, <strong>Monlevade</strong> chegou a ter algum tipo de sonho em<br />
que voltava à casa e à família. Contudo nem posso levar a sério<br />
esse tipo de intenção. Acontece com todos os velhos! Não se diz<br />
também que é idade em que as pessoas voltam com muito mais<br />
força à vida que viveram quando crianças?<br />
Os viajantes, sabemos, não venciam as distâncias a passo<br />
contínuo. A caravana parava com o fito de atender às mais variadas<br />
necessidades, entre elas as que, polidamente, chamaremos de<br />
hidráulicas. Para carga e descarga. Eram incontáveis os sítios em<br />
que a natureza entregava-lhes, a custo zero, água limpíssima e da<br />
melhor qualidade. Os arroios e regatos cruzavam prodigamente a<br />
estrada. Em um desses, um dos negros, por distração, fez com as<br />
mulas saciassem a sede a montante do ponto em que <strong>Monlevade</strong><br />
e Freitas recolhiam água em cantil. O mulato, mesmo destituído<br />
do cargo de encarregado, enfureceu-se e o maltratou.<br />
Os humanos são assim, Freitas comentou com <strong>Monlevade</strong>.<br />
Veja você, este homem há meses era escravo! Agora é liberto. E<br />
trata um seu semelhante como detestava ser tratado. É verdade,<br />
<strong>Monlevade</strong> assentiu, a natureza do homem geralmente torna-se<br />
louca quando chega ao poder... Daí a conversa voltou ao fato<br />
que havia gerado a violência no seio da caravana. Lembra-me<br />
La Fontaine, <strong>Monlevade</strong> disse. Pensei o mesmo, Freitas retrucou.<br />
Você está se referindo à fábula do Lobo e do Cordeiro, não é?<br />
Sim. Este mulato é como o lobo: ignora a fraqueza do negro para<br />
massacrá-lo. Sujeito ladino!
278 Jairo Martins de Souza<br />
Mas, como era de se esperar, as paradas eram também para<br />
alimentar o corpo e o espírito de cada viajante. E é por essa última<br />
razão que os negros levavam velas e aguardente e, às vezes,<br />
deixavam pequenas quantidades em pontos de encruzilhada. Era<br />
momento único em que eram acompanhados pelo mulato, cruz<br />
credo! Martinho não os impedia, mas se persignava a cada novo<br />
procedimento. Os africanos de segunda geração sentiam também<br />
muita fome, daí solicitarem chorosamente paradas extras para<br />
comer frutas silvestres ou apanhar farinha nos cestos das mulas<br />
que levavam suprimentos. Quando surgia algum casebre à beira<br />
da estrada que anunciava venda de comida, eriçavam os beiços.<br />
Quem sabe o francês pagaria para eles pão com linguiça de porco<br />
no meio? O engenheiro era mão aberta e os tratava bem.<br />
Alguns pontos da viagem mereciam ser chamados de mirantes.<br />
As placas indicativas praticamente inexistiam e a bússola de<br />
<strong>Monlevade</strong> era frequentemente alçada para verificar posição do<br />
ponteiro na rosa dos ventos. O cenário continuava a deslumbrar<br />
o francês. Mon Dieu, quel pays merveilleux! (Meu deus, que terra<br />
maravilhosa!). Madeira. Dos pássaros já dissemos. Muita madeira.<br />
Nas Geraes é material que também sobra: era o que Freitas<br />
repetia e repetia.<br />
Os pouquíssimos mata-burros evitavam maiores cuidados<br />
com a guia das mulas. Nesta situação tranquila, haviam passado<br />
pelos povoados de Itaipava e Pedra do Rio. Com um detalhe,<br />
no mínimo, curioso. Após curva de estrada, haviam topado com<br />
comboio de ciganos. Como esse povo que não tem casa chegou<br />
da Europa até este novo mundo? Foi o que <strong>Monlevade</strong> perguntou<br />
a Freitas. A resposta veio com o silêncio. Não. Não sei, o<br />
fazendeiro do Piracicaba finalmente arrematou, enquanto algumas<br />
pegajosas e maltrapilhas mulheres se acercavam, oferecendo<br />
préstimos de leitura de mãos.<br />
Antes disso, Martinho já tinha se colocado em posição de defesa,<br />
cuidando de ter facilidade de alcance da espingarda que<br />
mantinha junto de si. Não. Não pensara originalmente em gente<br />
ruim. A arma era para espantar onças e matar cobras, caso fosse<br />
necessário ao longo da viagem. Esse povo tem fama de ladrão. As<br />
ciganas convenceram os negros e o mulato, e esses viram o que<br />
lhes reservava o futuro, sob o ponto de vista daquela gente suja<br />
que perambula por países e países, e como vimos, não ficam de<br />
fora suas colônias, enfim, gente sem eira nem beira, desde que o
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
279<br />
mundo é mundo. Uma delas tanto pediu a <strong>Monlevade</strong> que conseguiu,<br />
por fim, que lhe fosse permitida a leitura das linhas de suas<br />
mãos. Jamais sairás deste lado do mundo, ela disse. Casarás com<br />
uma nativa e serás muito feliz com sua mulher e filhos. E também<br />
ficarás rico, complementou.<br />
<strong>Monlevade</strong> riu com vontade! Elas dizem o mesmo na França,<br />
e deu-lhe uma pequena moeda. Pode ser que tenhas razão, foi o<br />
que comentou em francês. A mulher não entendeu o que aquele<br />
senhor havia dito, mas sorriu, escandalosamente, a custo da moeda<br />
que rapidamente embolsara. Foi mera coincidência, o fato dos<br />
ciganos estarem arranjando as tralhas para sair do local. Levantavam<br />
acampamento. Um dos seus cachorros correu latindo com<br />
algo marrom-escuro na boca, e fez com que João de <strong>Monlevade</strong><br />
se lembrasse do seu estimado Noir. O engenheiro francês sorriu.<br />
Daí a pouco as duas caravanas seguiriam viagem. Uma para o<br />
Rio. A outra para Minas Geraes.<br />
Passada a primeira curva, e já não podendo ser avistada pelas<br />
mulheres, a comandada pelo capitão Freitas aproveitou para<br />
fazer, conforme combinamos, breve parada hidráulica. Feito isso,<br />
foi embora. Um dos negros, o último da fila, disse que os ciganos<br />
ainda não haviam saído. Não soube explicar o porquê. Não consigo,<br />
nem nunca vou entender esta gente, comentou.<br />
Lá, na região de Secretário, Freitas foi saudado efusivamente<br />
pelo dono de pequena quitanda e restaurante situada próximo<br />
a cruzamento de córrego. Tratava-se de senhor nascido nas terras<br />
da província da Bahia e que viera, pleno de esperanças, há<br />
tempos, da região de Salvador. A centenária cidade baiana com<br />
a perda do título de capital perdera também grandemente sua<br />
força econômica. Tinha sotaque cantado e <strong>Monlevade</strong> entendeu<br />
pouquíssimo do que dizia. O homem da Bahia ama seu torrão<br />
natal e não gosta de deixar suas terras, confessou, mas tenho mulher<br />
e filhos para alimentar, enfim, vou servir-lhes o mesmo que<br />
a eles sirvo, arroz, feijão tropeiro, couve rasgada, ovo de galinha<br />
e carne de porco assada. Depois teremos também burundanga.<br />
<strong>Monlevade</strong> não entendeu e imediatamente sacou seu dicionário<br />
francês-português. Não achou a palavra que o hospedeiro pronunciara.<br />
Freitas sorriu e disse, adivinhando-lhe pensamentos,<br />
não vai achar aí, neste pai-dos-burros, o significado do termo que<br />
o homem disse, caro <strong>Monlevade</strong>. É regionalismo.<br />
No Brasil isso é comum! Na Bahia, burundanga é o mesmo<br />
que, dessert, sobremesa!
280 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
V<br />
A caravana finalmente chega a Vila Rica. O inusitado<br />
jantar de gala com o governador da Província<br />
Muito se pode dizer de uma viagem, mon ami, qualquer viagem.<br />
Elas são completamente diferentes do sentimento que se tem ao<br />
ver, pela tevê, roteiros espetaculares cumpridos por repórteres especializados.<br />
Recordo-me já lhe ter dado opinião sobre este assunto,<br />
Tisserand observou, mas não custa repetir que mesmo em<br />
casos em que são mostradas paisagens cinematográficas, sabe-se<br />
que a tela pequena reduz inexoravelmente a imensidão e a grandeza<br />
dos cenários vistos ao vivo. Melhor é gastar solado de sapatos<br />
pelos caminhos do mundo. Ainda que em passeio bem curto<br />
e feito por meio de metrô e que tenha, simplesmente, levado o<br />
viajante de um bairro a outro de uma grande cidade. É situação<br />
em que os cinco sentidos são atiçados, inclusive o olfato, que fica<br />
ausente nos livros e no cinema.<br />
Vou complicar mais um pouco, Tisserand alertou. Vou colocar<br />
pitada de paixão. Digamos que o passeio de metrô seja feito<br />
em dia de jogo de decisão de campeonato europeu de futebol,<br />
Manchester United versus Barcelona. Pode haver briga de torcedores.<br />
Pode ocorrer pequeno furto. Uma pessoa que nada tem a<br />
ver com o futebol pode ter a carteira subtraída, e perder dinheiro, e<br />
carteira de habilitação, e cartão de crédito, e documentos pessoais.<br />
Caso a sorte mude seu rumo, ela mesma, esta mesma pessoa,<br />
pode ser socorrida, caso seja mulher, por moço de boa família,<br />
atualmente sem compromisso, ou que venha de relação desgastada,<br />
e que tenha profissão de respeito, aí sem dúvida o grande<br />
transtorno pode virar um belo encontro de amor!<br />
Não fosse assim, poderia ser pior ainda. Poderia, após o dito<br />
furto, ocorrer um blecaute de energia e os passageiros ficam lá,<br />
angustiados, uns atrasados para o trabalho, outros pendentes de<br />
281
282 Jairo Martins de Souza<br />
encontro com seus amados em estações a meio-caminho, outros,<br />
a maioria já bêbada, e a caminho do estádio mal se preocupa, e<br />
ouve em pequenos rádios a pilha as preliminares do grande prélio<br />
de daqui a pouco...<br />
Tudo isso que acontecer em tão pequeno percurso é sensação<br />
real. Não é de livros. Não é imaginária... e, se é assim, imagine<br />
o senhor, Tisserand prosseguiu, uma viagem ao interior do Brésil<br />
dos 800 como a que estava descrevendo anteriormente. Lembro<br />
que era feita por 5 negros, um liberto que xingava, e dava ordens<br />
não autorizadas aos seus irmãos de cor, um número que não mais<br />
me lembro de mulas, um engenheiro de minas francês, um fazendeiro<br />
do século dezenove de Minas Geraes, e um outro também<br />
homem estrangeiro que, quando menino, fora na prática, adotado<br />
por fidalgo. Pode ocorrer chuva forte (a que chamamos de facas<br />
e canivetes), e a rústica estrada ficar intransitável mesmo para<br />
os cascos duros de semoventes habituados a caminhar por pisos<br />
que arrebentam quaisquer tornozelos. Podem aparecer assustadores<br />
animais selvagens, e insetos que forçariam os viajantes a cavalgar<br />
vestidos como criadores de abelhas... pode acontecer mais<br />
em viagem daquelas condições. Um dos viajantes pode adoecer.<br />
Pode pegar febre amarela ou esquistossomose. Pode ficar gripado<br />
e com febre: não pode ser deixado para trás, pois a caravana já<br />
é pequena, não deve ser fracionada, então o ritmo de todos se<br />
reduz. Uma mula pode machucar o tornozelo, a ferradura pode<br />
soltar-se e fazer com que fique a três pés e, pior ainda, quebrar a<br />
perna e não poder deixar de ser sacrificada! Como dividir a carga<br />
entre os outros animais já com peso suficiente em seus lombos?<br />
Felizmente no nosso caso nada disso aconteceu, e que levasse<br />
a problemas de realce. Um dos negros foi picado por marimbondo<br />
nas proximidades de um dos olhos e simplesmente ficou por<br />
longas horas com o rosto absurdamente inchado. Não deixou de<br />
cumprir suas obrigações. Outro machucou o dedão ao dar topada<br />
em pedra pontiaguda escondida no piso. Não chegou a mancar<br />
mais que um par de horas, ele tinha, todos tinham, os pés como<br />
uma carapaça de tartaruga, enfim, nada grave! O capitão Freitas<br />
era quem mais solicitava paradas hidráulicas, é claro, não sabia,<br />
mas a idade fizera-lhe crescer a próstata e, com isso, não lhe preocupou<br />
o fato de estar urinando fino e com jato curto. Nem tinha<br />
como. Pois mesmo que acostumado ao torresmo e ao excesso de
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
café, assim como a outros fatores de irritação que impõem maus<br />
tratos à sofrida glândula prostática, não tinha recursos de saber<br />
sobre certo mal, de nome antigamente impronunciável e que, ao<br />
fim de tudo, afeta e é temida por todos os homens, bem, a terrível<br />
enfermidade podia estar em pleno andamento.<br />
Naturalmente, por ser ainda jovem, <strong>Monlevade</strong> viajava alheio<br />
à inconveniência que afetava o amigo. O esforço empregado para<br />
chegar até Petrópolis fora compensado pelo clima ameno e as<br />
deliciosas paisagens da Serra dos Órgãos. Que foram seguidas<br />
pelas não menos belas da Serra do Mar. Após essa última, a da<br />
Mantiqueira. Um pouco antes dessa, por meio de uso de pequena<br />
balsa alugada a um barqueiro ribeirinho, a pequena caravana<br />
lograra ir de margem à outra do Paraíba do Sul. Bom momento<br />
para pescaria e descanso, pois <strong>Monlevade</strong> tinha as nádegas absolutamente<br />
prejudicadas e doídas pelos passos irregulares do seu<br />
cavalo. E que lhe serviu para rapidamente recuperar integralmente<br />
as forças e ficar novamente entusiasmado: sua grande viagem<br />
de pesquisa mal havia começado! Conversava animado, recapitulando<br />
com o capitão Freitas sobre todo o potencial que tinha o<br />
“eldorado” geológico existente na província mineira que o aguardava<br />
quase virgem!<br />
Nessas circunstâncias, e passadas aproximadamente três semanas<br />
após saída do Rio, chegaram todos vivos e saudáveis às<br />
proximidades da chamada Vila Rica. O sinal indicador foi a visão<br />
longínqua do pico do Itacolomi que antecipava, e continua<br />
antecipando, aos viajantes que a capital da província estava por<br />
ser alcançada. Aquela imponente elevação rochosa se destacava,<br />
altaneira, no panorama da região. Foi em suas vizinhanças, Tisserand<br />
prosseguiu, que, pelos idos de 1693, bandeirantes paulistas<br />
descobriram cascalhos de cor preta que escondiam metal amarelo<br />
de qualidade requintada. Procuravam escravos. Acharam riqueza.<br />
Estou dizendo aqui sobre fato marcante que deu início ao Ciclo<br />
do Ouro na economia colonial do Brésil.<br />
Vila Rica também, Tisserand disse, foi onde o revoltoso português<br />
Felipe dos Santos, por conta de seus protestos contra a<br />
proibição do comércio do próprio ouro em pó nas Geraes, teve o<br />
corpo despedaçado pelas forças do exército português.<br />
E por falar no assunto, prosseguiu, a comitiva de <strong>Monlevade</strong><br />
já divisava claramente o Itacolomi quando foi abordada por patrulha<br />
imperial composta por três soldados e um alferes.<br />
283
284 Jairo Martins de Souza<br />
No momento do acontecido, Freitas havia ficado fora de vista,<br />
pois pedira tempo para defecar e, como de hábito, se encaminhara<br />
para a traseira de arbusto ao longo da estrada e de altura<br />
suficiente para mantê-lo oculto enquanto fazia suas necessidades.<br />
Vai ser rápido, disse. Podem seguir em frente que dentro de minutos<br />
os alcanço. Não. Não se preocupem, estamos praticamente<br />
em Vila Rica!<br />
O pequeno pelotão de militares disse alto lá!, e se identificou<br />
como responsável pela fiscalização de produtos minerais que<br />
circulavam entre a província de Minas e a do Rio de Janeiro. A<br />
produção de ouro está muito baixa, cabe-nos a missão de evitar<br />
contrabando em geral. A coroa carece de impostos...<br />
O comentário não foi bem recebido por <strong>Monlevade</strong> que os<br />
ouvia calado. Como de hábito a pronúncia do português ouvido<br />
da boca de um dos próprios trazia-lhe certa complicação.<br />
Pediu que repetisse. A sorte é que o alferes permitiu que um dos<br />
soldados, esse um brasileiro, refizesse a mensagem exatamente<br />
com as mesmas palavras. <strong>Monlevade</strong> entendeu. Inclusive que<br />
havia necessidade de inspeção da carga colocada nas cangas<br />
das mulas. Um deles, um dos militares, cutucou uma delas com<br />
a ponta da carabina e se excitou. Fazia papel de cão farejador.<br />
Aí tem!<br />
Dê-me a garrucha que tens atrelada ao cinto, o oficial solicitou<br />
a <strong>Monlevade</strong>. Podes apanhá-la com suas próprias mãos,<br />
foi o que Jean instintivamente disse-lhe de volta, temendo que<br />
qualquer movimento seu gerasse má interpretação e desse ideia<br />
de reação excessiva ou desacato ao que lhe ordenara a autoridade<br />
militar. Martinho colocou a mão na coronha de sua arma,<br />
o comandante do pelotão hesitou, <strong>Monlevade</strong> preparou-se para<br />
negociar. O alferes fez sinal de alerta para seus dois subalternos. O<br />
clima ficara tenso. Que trazes nos cestos?, perguntou mudando de<br />
assunto. Amostras. Amostras de minérios, senhor oficial. Mostreas,<br />
o alferes respondeu. <strong>Monlevade</strong> imediatamente lembrou-se de<br />
Agostinho Ferro, o militar da aduana carioca, algo na fisionomia<br />
do seu interlocutor...<br />
Mas, finalmente, retrucou. Fique à vontade, o senhor pode<br />
inspecionar as amostras. E terá facilidade de entendê-las, elas estão<br />
quimicamente identificadas. Por exemplo, a que tem já nas<br />
mãos é o trióxido diférrico, a hematita...
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Não é minério de ouro, ou de prata? Temos ordens para sequestrar<br />
qualquer carregamento que... Não. Não é. Assim como<br />
não são todas as minhas demais: sou engenheiro de minas e absolutamente<br />
interessado em processos da siderurgia aplicados<br />
aqui no Brésil.<br />
Não há nem mesmo necessidade de dizer que foi <strong>Monlevade</strong><br />
quem fez tal afirmação, Tisserand complementou. E foi o mesmo<br />
<strong>Monlevade</strong> quem perguntou: por favor, diga-me qual é a sua graça?<br />
Estava curioso.<br />
Meu nome é Ferro, o alferes respondeu. Antônio Ferro. Sou<br />
de nobre família de militares que veio para o Brasil recentemente.<br />
Ocupamos altos cargos no exército de sua Alteza Real.<br />
Conheço um dos seus irmãos, <strong>Monlevade</strong> contemporizou,<br />
interrompendo-o, e aqui apresento-lhe o mesmo documento que<br />
a ele mostrei recentemente. O meu salvo-conduto. Tome...<br />
Não precisa mostrar-lhe, <strong>Monlevade</strong>, agora quem participa<br />
da conversa é Freitas que surgira da curva do caminho e não fora<br />
percebido pelos demais. Deixe estar que darei solução a este impasse.<br />
Vai nos dar muito trabalho desfazer e refazer a carga.<br />
O alferes Ferro é homem que tem bom senso. Em segundos<br />
entenderá toda a situação. Venha cá, senhor alferes, vamos ter<br />
uma conversa de homem para homem.<br />
Para tornar o assunto mais curto, Tisserand disse que é assim<br />
que as coisas sempre funcionaram no Brésil. Bastou que Freitas dissesse<br />
que era velho conhecido do ordenança da cidade, e lhe citasse<br />
o nome, e sua amizade com Dom Manoel de Portugal e Castro, para<br />
que fosse dada passagem a Minas Geraes, com reverências: não<br />
somente para ele, como também para seus convidados.<br />
Cerca de hora e meia depois, entraram na bela praça localizada<br />
no então chamado Morro de Santa Quitéria onde se situava o<br />
Palácio do Governador de Minas Geraes, o próprio Dom Manoel.<br />
A bandeira da província estava içada ao alto ao lado da imperial.<br />
O homem estava atendendo hoje nos seus ofícios.<br />
Bela construção. À sua frente, a poucas centenas de metros,<br />
podia se ver o mais belo ainda, Paço Municipal, que abrigava, em<br />
sua parte térrea, os condenados da província. Celas com paredes<br />
inexpugnáveis. <strong>Monlevade</strong> imediatamente reparou que esse imponente<br />
edifício lembrava, de passagem, o monumental Capitólio de<br />
Roma, que visitara em sua viagem à Itália com o fidalgo, seu pai.<br />
285
286 Jairo Martins de Souza<br />
O Palácio dos Governadores da Província de Minas Geraes,<br />
Tisserand explicou, transformou-se posteriormente na Escola de<br />
Minas e, além disso, abriga um excepcional Museu de Mineralogia<br />
que possui mais de 20 mil amostras de pedras de todas as partes<br />
do Globo. Merece ser visitado! <strong>Monlevade</strong> passaria dias e dias<br />
refletindo e admirando tais riquezas... Já o Paço Municipal, prosseguiu,<br />
nos dias de hoje, é reservado para as atrações do Museu<br />
da Inconfidência. O zelo e o cuidado com que é administrado<br />
lembram os melhores padrões europeus. Bem, voltemos aos nossos<br />
visitantes que dele estão se aproximando...<br />
Vamos procurá-lo tão logo estejamos alojados, Freitas disse entusiasmado,<br />
enquanto lembrava a <strong>Monlevade</strong> que ele e o titular da<br />
província eram amigos do peito. A praça estava cheia de mercadores<br />
e tropeiros. Ocasionalmente os sinos das igrejas de Vila Rica tocavam<br />
insistentemente... Vila Rica não é mais rica de ouro, Freitas comentou.<br />
Passou a ser conhecida como Vila Pobre. Já sabes, amigo <strong>Monlevade</strong>,<br />
que faz tempo o império português impediu o crescimento<br />
da indústria, principalmente a da siderurgia... Hoje o comércio<br />
está centrado na cultura do café, e no gado de corte e leiteiro.<br />
E devo lhes dizer que não sei se há razão especial para que<br />
estes sinos estejam tocando desesperadamente. É o que fazem a<br />
todo tempo por estas bandas, foi o que Freitas esclareceu aos amigos<br />
franceses. Percebera que Martinho e <strong>Monlevade</strong> haviam se<br />
entreolhado, perguntando-se, mutuamente, qual seria a razão de<br />
tamanha algazarra. A província de Minas, em geral, – é o capitão<br />
Freitas que ainda tem a palavra – é isolada do resto do Brasil pelas<br />
montanhas. E até pouco tempo, conforme já disse-lhe, por aqui<br />
não havia jornais: era proibido por vontade do imperador. Tudo é<br />
dado a conhecer por meio do toque dos badalos de suas igrejas.<br />
Não conheço o código das batidas de cor, mas creio serem, as que<br />
acabam de tocar, as típicas de informação de horário de missa...<br />
Aguarde, mon ami, por instantes, que vou consultar meu relógio<br />
de bolso para certificar-me se é hora completa.<br />
Bem, Tisserand disse, pequenos detalhes como estes à parte,<br />
foi somente após recolherem os animais, e serem acolhidos em<br />
pousada, que se encaminharam para o palácio do governador.<br />
Se bem que, acrescentou, a bem da verdade, a sequência de fatos<br />
não foi tão linear assim. Pois não é que fosse lei imutável, entretanto<br />
praticamente a toda chegada da caravana a alguma cida-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
287<br />
de, sempre acontecia acidente de pequena monta. Não os tenho<br />
relatado, contudo vou dizer-lhe sobre o que ocorreu com uma<br />
das mulas na descida de pequena ladeira que desemboca quase<br />
defronte à matriz de São Francisco de Assis. É caso singular!<br />
A caravana, que seguia em avanço aos passos entrecortados<br />
de <strong>Monlevade</strong>, já estava na rua do hotel que Martinho havia<br />
contratado. Ao seu lado, refiro-me a <strong>Monlevade</strong>, com o cavalo<br />
caminhando parelho, Freitas mantinha-se em ritmo igual. O que<br />
não podia ser diferente, Tisserand comentou, pois o fazendeiro<br />
explicava ao engenheiro francês tudo que conhecia sobre a vista e<br />
o interessante casario colonial que havia se descortinado em Vila<br />
Rica. Terra árida. Os minerais afloram ao solo...<br />
A hospedagem, Martinho perguntara anteriormente a oficial<br />
português que passava pelo local, ficava à direita da igreja de São<br />
Francisco em pequeno trecho de morro inclinado, e rua estreita,<br />
enfim, situada quase na vertical. Martinho reparou que o homem,<br />
ao dizer o nome do santo, respeitosamente persignou-se. Daí concluiu<br />
ser homem de confiança.<br />
Então perguntou mais. Perguntou se o tratamento, a comida<br />
e a bebida eram de qualidade bastante para receber o filho de<br />
um fidalgo francês e um capitão do exército imperial. O lusitano<br />
disse que sim. Com um detalhe. É preferida por hóspedes mais<br />
jovens, pois o dono é sujeito falante e dado a goles de cachaça e<br />
animação. O senhor vai gostar.<br />
Estou com mais cinco negros e dois amigos. Um jovem e um<br />
senhor de idade, não lhe disse, mas esse último não é somente<br />
capitão, como também é extremamente poderoso nessas terras de<br />
Minas Geraes. Não há problemas, o elemento respondeu a Martinho.<br />
Eu mesmo já estive hospedado por lá alguns dias antes de<br />
trazer mulher e filhos de Portugal. O hotel pertencia, e foi aberto,<br />
por família de um árabe festivo que viera para o Brasil em busca<br />
de ouro e diamantes. Com a crise da mineração, acabou por se<br />
dedicar ao comércio de hospedaria. Vendeu para um patrício de<br />
mesma índole. Este repassou a outro igual, e assim, pitorescamente,<br />
ocorre com aquela instituição.<br />
Normalmente os donos repassam a propriedade de cinco em<br />
cinco anos. Mas a filosofia se mantém a mesma e, todos os antigos<br />
proprietários, esse é o detalhe, mantêm consigo as chaves<br />
da portaria, e dos quartos, por toda a vida. Incontáveis donos.
288 Jairo Martins de Souza<br />
Não se surpreenda. Há mais. Todos têm apelidos que falam com<br />
precisão apaixonada de suas personalidades. Eles podem ser vistos<br />
em pinturas colocadas no saguão do tal hotel. Dizem ser mal<br />
assombrado!<br />
Deus nos proteja e nos guarde, Tisserand comentou, emendando<br />
que foi exatamente na rua empinada deste hotel que um<br />
dos negros, seu nome era Tião, ao cutucar as ancas de uma das<br />
mulas com vara curta, errou, talvez propositalmente, o alvo e acabou<br />
por aprofundá-la no ânus do animal. Foi uma correria só! A<br />
mula estava quase em frente do hotel. Aí que se podia ler que o<br />
nome era Jardim de Alá: estava escrito em placa pequena e um<br />
tanto nababesca.<br />
Bem, enquanto isso a mula já alcançava velocidade extrema<br />
e, ao cair estrepitosamente em buraco, veio a permitir que parte<br />
de sua carga se precipitasse no solo irregular da ladeira. Uma<br />
comprida caixa de madeira acompanhou-a, abrindo-se, e algo<br />
cilíndrico veio a se espatifar em pedra de quartzito de bom tamanho<br />
que se encontrava encravado no solo da rua que, já disse,<br />
era quase uma ribanceira. Somente a parte pontiaguda aflorava<br />
no terreno e, para complicar, o desesperado animal caiu por cima<br />
dos destroços que exibiam, inclusive, pequenos e brilhantes estilhaços<br />
de cristal. A alma de Martinho se assustou pelo amigo<br />
<strong>Monlevade</strong>. Imediatamente veio-lhe à memória o carinho que o<br />
filho do fidalgo tinha por sua velha luneta. O instrumento de lazer<br />
e estudos do seu meio-irmão não mais existe!<br />
<strong>Monlevade</strong> não sabia o que estava ocorrendo. Naquele exato<br />
momento, seu mister era a escuta atenciosa ao entusiasmado<br />
Freitas, ambos ainda não haviam dobrado a esquina da praça<br />
que dava à ladeira em que estava o restante da acidentada caravana.<br />
Repentinamente algo estranho, um certo corre-corre de<br />
alguns populares perturbou a ambos, e não demorou para que<br />
tomassem conhecimento do acontecido. O crioulo feriu-se? <strong>Monlevade</strong><br />
perguntou. Não. O Tião está bem. A mula é que acabou<br />
por quebrar a perna. Precisa ser sacrificada, Martinho finalizou<br />
aborrecido. Assim se faça, mon ami, <strong>Monlevade</strong> respondeu-lhe.<br />
Quanto à minha luneta, não se amofine, posso substituí-la.<br />
Já o carinho do professor Duchamps, tendo ou não mais a posse<br />
do instrumento, é insubstituível. Tanto é assim que está guardado<br />
no mais fundo do meu coração. Na realidade a perda desta
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
289<br />
luneta, que me acompanha desde menino, sugere-me, ou é mais<br />
um sinal de que não voltarei a Guéret. É quase uma premonição.<br />
Talvez a negligência do moleque Tião tenha servido para algo.<br />
Sendo assim, vou interpretá-la como para mostrar-me que há, em<br />
andamento, certa quebra de contato entre mim e a minha infância.<br />
Não com meu estimado professor Duchamps!<br />
No piso de pedras da rua, próximos dos cilindros da luneta,<br />
muitos passantes se acercavam do animal caído, e dos materiais<br />
que Tião e os outros negros estavam terminando de catar.<br />
E enquanto faziam isso, Freitas continuava olhando a bandeira<br />
eriçada nas janelas do palácio do governador. O vento agitavaa<br />
suavemente. Acreditava que, mesmo sem audiência marcada<br />
com antecipação, seria recebido pelo amigo. Estava certo!<br />
Como o senhor, mon ami, estará absolutamente certo se imagina<br />
que mais cedo ou mais tarde seletos amigos franceses de<br />
<strong>Monlevade</strong> irão ter com ele aqui na fascinante terra dos papagaios.<br />
É o que haviam prometido!<br />
Não era tempo em que satélites geoestacionários bisbilhotavam<br />
a vida dos cidadãos, Tisserand comentou. Fosse o caso, e<br />
se João <strong>Monlevade</strong>, em plena Ouro Preto do início do primeiro<br />
quartil do século dezenove, tivesse aparelho celular de GPS, e<br />
se demais condições técnicas fossem preenchidas, veria que, em<br />
determinado navio de bandeira francesa que cruzava o Atlântico<br />
próximo à ilha da Madeira, estavam já em plena viagem Fontaine,<br />
Zavoudakis e Platini. Reparasse melhor, notaria também a<br />
satisfação e a alegria que reinava entre eles. Com mar tranquilo<br />
e bons ventos, jogavam carteado, e vislumbravam grandes momentos<br />
com o amigo engenheiro da Polytéchnique. O destino da<br />
embarcação era obviamente o Brésil!<br />
Deixemo-los seguir viagem, e que Deus os guie, essa foi forma<br />
respeitosa que Tisserand encontrou para finalizar, por ora, o<br />
assunto. É tempo de voltar à visita de <strong>Monlevade</strong> e Freitas ao<br />
excelentíssimo senhor governador da Província de Minas Geraes.<br />
O advogado Raimundo Horácio de Souza levantou-se e cordialmente<br />
cumprimentou o recém-chegado. O governador, que<br />
há segundos estava sentado à cabeceira da longa mesa de reuniões,<br />
abriu um largo sorriso e, ato contínuo, encaminhou-se para<br />
saudar o velho amigo capitão Freitas. Enquanto caminhava em<br />
sua direção, pensou imediatamente em providência para alçá-lo
290 Jairo Martins de Souza<br />
à condição de major. Essas coisas são de fácil feitura, desde que<br />
para pessoas pelas quais o imperador tenha simpatia declarada.<br />
Era o caso.<br />
Já se abraçavam quando Jean, que se atrasara ao atender<br />
pedido tardio de vistas de documentação, entrou no ambiente<br />
conduzido pelo chefe do cerimonial do Palácio. Aí foi que, e de<br />
forma estranha ao clima normalmente circunspecto do ambiente,<br />
ouviu-se alegre e ruidosa saudação que partiu do advogado<br />
R. Horácio. <strong>Monlevade</strong>, meu amigo, que boas novas o trazem à<br />
Vila Rica? Os demais presentes entreolharam-se surpreendidos.<br />
O advogado explicou sucintamente a situação à sua excelência,<br />
o governador da província e, após apresentação formal do engenheiro<br />
francês aos demais, retiraram-se momentaneamente para<br />
rápida conversa em particular.<br />
Daí automaticamente foram formados dois grupos de conversação.<br />
Após alguns poucos minutos, ajuntaram-se todos. <strong>Monlevade</strong>,<br />
mesmo que absorvido pelo reencontro com o jovem brasileiro<br />
que conhecera durante a travessia do Atlântico, percebeu<br />
que, ao lado, Freitas insistia em determinado tema com a autoridade<br />
máxima da província. Suspeitou, mas não tinha condições<br />
de verdadeiramente atinar sobre o que discutiam. Na realidade<br />
estava em jogo assunto de seu mais alto interesse.<br />
Manoel de Portugal e Castro não era homem de meias palavras,<br />
Tisserand informou. Ia direto ao assunto. E foi desta forma<br />
que se dirigiu a <strong>Monlevade</strong> quando todos se encontravam assentados,<br />
e à vontade, em confortáveis cadeiras em torno de mesa<br />
de trabalho. A sua era de espaldar avantajado, dando a entender<br />
sua posição superior em relação aos demais.<br />
Com que então, Jean de <strong>Monlevade</strong>, estás preparado para<br />
dar passo à frente com a mineração aqui na nossa Geraes? Asseguro-lhe,<br />
o império está necessitado de empreendedores que<br />
tenham o seu perfil. Estou informado de que o senhor é técnico<br />
de formação excepcional...<br />
Foi quando Jean Antoine Dissandes de <strong>Monlevade</strong> deduziu<br />
o porquê das argumentações veladas do amigo Freitas ao dialogar<br />
com o governador. E prontamente respondeu, sim. Vejo com<br />
bons olhos. É razão de estar aqui e foi o motivo de ter solicitado<br />
salvo-conduto para viajar pela região... Tenho lido muito a respeito<br />
do seu potencial e...<br />
Peço-lhe escusas para dizer-lhe duas coisas, caro <strong>Monlevade</strong>,
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
o governador da província interrompeu-o polidamente. A primeira<br />
é lembrar que não estás liberado para circular no distrito diamantino.<br />
Nosso governo tem severas restrições para circulação de<br />
estrangeiros na região. A outra é que deves analisar com cuidado<br />
o que, às vezes, se escreve sobre nossas terras. Veja, por exemplo,<br />
o que seu compatriota Montaigne escreveu no século dezesseis,<br />
expondo nossas vísceras ao divulgar sobre o hediondo costume<br />
da antropofagia. Nem mesmo esteve por aqui! Este tempo já não<br />
mais existe em nosso império. É coisa superada, <strong>Monlevade</strong>... Alguns<br />
franceses são mal informados sobre nossa terra...<br />
Posso garantir, agora é <strong>Monlevade</strong> quem diz, e também seguramente<br />
contar com o testemunho do nosso amigo comum, o capitão<br />
Freitas, que em tempo algum poderia concordar com tal perspectiva.<br />
Definitivamente não é aquela a ideia atual dos franceses a respeito<br />
do Brésil. É a terra do futuro! Alimentará o mundo!<br />
E foi nesse tom que a conversa prosseguiu, estendendo-se<br />
por período superior ao inicialmente previsto. Manoel Portugal<br />
ouvia com atenção e a cada instante se tornava mais receptivo<br />
ao engenheiro francês: ainda que tudo não tenha corrido às mil<br />
maravilhas. Mas as diferenças de pontos de vista acabaram por<br />
gerar frutos. Mal-entendidos foram velozmente postos em pratos<br />
limpos. Acordos verbais foram firmados. Sim, <strong>Monlevade</strong> viajaria<br />
pelas Geraes, de acordo com as regras estabelecidas pelo império<br />
português com relação a atitudes de estrangeiros. O advogado<br />
Raimundo Horácio de Souza – agrada-me saber que ele e<br />
o senhor já se conhecem – seria o intermediador com a corte a<br />
respeito de qualquer eventual mudança de rota e objetivos. Fora<br />
contratado recentemente, a mando do próprio imperador, para<br />
apoio legal a Eschwege, o curador do Gabinete de Mineralogia do<br />
império. Ao tomar conhecimento da notícia, R. Horácio não lhe<br />
tinha dito tal novidade, <strong>Monlevade</strong> sorriu internamente. Sentiu-se<br />
em casa. Entretanto o rosto permaneceu impassível.<br />
Aí foi que eu mesmo reparei que, ele, Tisserand, é que tinha<br />
sorriso explicitamente estampado no rosto. Eu poderia jurar que<br />
se comportava assim porque, naquela altura de sua história, a<br />
presença do advogado era garantia de sucesso burocrático das<br />
intenções do engenheiro francês. Pelo menos em termos legais<br />
e de desembaraço judicial em quaisquer eventuais instâncias do<br />
império. Até mesmo com João VI, que era o ápice de todos os<br />
poderes.<br />
291
292 Jairo Martins de Souza<br />
Bem, à medida que o sorriso de Tisserand se desmanchava,<br />
pus-me a postos para continuar a ouvi-lo. Não demorou. Ele disse<br />
que, por fim, o governador convidou Freitas e <strong>Monlevade</strong> para<br />
jantar de gala que promoveria naquela mesma noite. É o motivo<br />
do agitado toque de sinos que vocês escutaram hoje pela manhã,<br />
esclareceu. Trata-se praticamente de mesa redonda sobre a<br />
situação da mineração, da indústria e do comércio do ferro e aço<br />
nacionais. Os diamantes escasseiam. O ouro não mais reluz por<br />
aqui. E não é de agora.<br />
Isso acontece desde o aumento de tributação imposto por<br />
Pombal, foi época em que já estávamos decadentes. Mas sua atitude,<br />
ao fim e ao cabo, gerou a inconfidência mineira de 1788.<br />
Aliás, muito bem contida pelo governador e doutor em filosofia,<br />
o conde de Barbacena. É lógico, caro <strong>Monlevade</strong>, a situação mudou.<br />
Entretanto não posso omitir que muitos livros de autores<br />
franceses foram encontrados com os inconfidentes. Eles andaram<br />
influenciando psicologicamente não somente os mineiros, como<br />
também outras províncias para tentativas de derrubada do governo<br />
imperial. Bem, mas antes disso, repito, já estávamos decadentes.<br />
Sim. Morro Velho ainda produz relativamente bem. E o ouro<br />
continuará a ser procurado por aqui, mas não como antes. Com<br />
os diamantes é o mesmo. Por causa disso, os mineiros tem tido<br />
vistas somente para o café e a criação de gado.<br />
Enfim, falaremos sobre indústria. Falaremos sobre o ferro. Falaremos<br />
sobre sua fundição. Estarão presentes o bispo de Mariana<br />
e empresários do porte de Romualdo Barros, proprietário de rica<br />
lavra de ouro em Congonhas. Esse homem, o governador acrescentou,<br />
tem porte para ser um dos meus sucessores! Tem ideias<br />
de implantar fundição de ferro. Muitos outros empresários do império,<br />
de igual calibre, e assessores estrangeiros, estão hoje aqui<br />
em Vila Rica: discutiremos políticas de revitalizaçao da província.<br />
Aprendi a produzir grandes eventos com o marquês de Marialva,<br />
<strong>Monlevade</strong>. Para essa, digamos assim, festa, contratei o mesmo<br />
cerimonialista que ele usou para promover o casamento, acontecido<br />
o ano que passou, entre a princesa austríaca Leopoldina e o<br />
nosso Dom Pedro.<br />
No entanto não estou sendo irresponsável. A província não<br />
sofrerá sangria de dinheiro com tais custos, há empresário que<br />
se prontificou a arcar com tudo. As taças de cristal serão as dos
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
tchecos da Boêmia. Os candelabros e jarras dos venezianos de<br />
Murano. Os pratos e xícaras dos alemães de Meissen. Os talheres<br />
de ouro serão daqui mesmo de Vila Rica, contudo trabalhados<br />
na Itália. Bem, não distribuirei peças selecionadas de diamantes<br />
como Marialva fez em Viena, mas alguns pequenos brindes confeccionados<br />
em ouro serão entregues ao presentes. Não posso<br />
deixar sem memória física esse encontro que pode mudar definitivamente<br />
a política industrial do império. Sem sorteio. Tudo isso<br />
regado a bom vinho, e garanto, bom papo. Essas são as condições<br />
em que serão servidas comidas dignas das mais ricas cortes europeias,<br />
Manoel Portugal orgulhosamente complementou.<br />
Mas faltou a ele citar, não me vem à memória o motivo, Tisserand<br />
lembrou, que lá deverá estar também o futuro Barão de<br />
Catas Altas, o senhor João Baptista Ferreira Chichôrro de Souza<br />
Coutinho. É o xis da questão. O homem do dinheiro. Foi ele<br />
quem pagou as despesas de toda a solenidade. Já naquele ano,<br />
Souza Coutinho andava fazendo cortesias à corte para obtenção<br />
de título de nobreza junto a Sua Alteza Imperial. Não demoraria<br />
a tornar-se barão e, adianto, Tisserand acrescentou, tio torto de<br />
João de <strong>Monlevade</strong>, tendo sido peça essencial para o sucesso da<br />
vida do engenheiro francês no Brasil.<br />
E foi naquele mesmo evento que capitão Freitas comentou<br />
com Martinho <strong>Monlevade</strong> sobre algumas excentricidades da vida<br />
do dito João Batista. Há algumas absolutamente inusitadas. Ele<br />
fora sacristão da igreja do vilarejo de Catas Altas e perdeu, por<br />
morte, a mulher do seu primeiro casamento, e cujo pai era o<br />
capitão-mor da região. Homem de posses! Casou-se outra vez.<br />
Agora com uma das irmãs da falecida: isso não era incomum naqueles<br />
dias. Mas por infortúnio do destino, o sogro em dose dupla<br />
de João Batista ficou também repentinamente viúvo. Daí foi que<br />
aconteceu o inusitado, mon ami!<br />
O velho viúvo veio a casar-se com uma das irmãs do próprio<br />
João Batista. Isto fê-lo então tornar-se cunhado do próprio sogro<br />
que, entre outras coisas, era proprietário das minas de ouro de<br />
Gongo Soco. Quando de sua morte – refiro-me à do sogro – não<br />
produziam absolutamente nada!<br />
À custa de tal confusa situação de parentesco, o antigo zelador<br />
da igreja de Catas Alta tornou-se o único herdeiro do cunhado. Ou<br />
do sogro. O senhor, mon ami, pode escolher a opção que quiser.<br />
293
294 Jairo Martins de Souza<br />
Daí ficou rico! A sorte havia se tornado sua companheira. Gongo<br />
Soco, já sob sua posse, começou a produzir toneladas de ouro,<br />
tendo sua fama se espalhado por todo o mundo cristão. De um<br />
momento para o outro, João Baptista Ferreira tornou-se um dos<br />
homens mais ricos da província e, quiçá, do Brasil!<br />
Nada resta do seu espólio, Tisserand prosseguiu em tom de<br />
lamentação. Os Pedros I e II estiveram em Gongo Soco somente<br />
quando a mina já era possuída pelos ingleses da Imperial Brazilian<br />
Mining Association. Lá foi construído até mesmo um Arco do Triunfo<br />
para que tais fatos ficassem para a história. O pequeno monumento<br />
era porta de entrada da antiga Estrada Real que ligava Sabará<br />
a Vila Rica. Hoje são ruínas cobertas por frondosa gameleira!<br />
Bem, obviamente não é por essa minha última consideração<br />
que Freitas e <strong>Monlevade</strong> haviam aceitado de bom grado o convite<br />
feito pelo governador, Tisserand finalizou. No entanto solicitaram<br />
se a cortesia poderia ser estendida a Martinho <strong>Monlevade</strong>.<br />
O governador dissera que sim, e educadamente perguntou<br />
o motivo da ausência de Martinho ao compromisso que estavam<br />
tendo.<br />
<strong>Monlevade</strong> respondeu-lhe que havia ocorrido imprevisto. Tinham<br />
providências a tomar devido a pequeno acidente: Martinho<br />
era o encarregado, não o explicou, mas o governador compreendeu<br />
e, por final, ambos se retiraram. Outros cidadãos aguardavam<br />
audiências de há muito programadas. Descansariam até o<br />
momento aprazado para a festividade.<br />
A despeito de ser fato conhecido os grandes privilégios dados<br />
aos ingleses naqueles anos do império, Jean de <strong>Monlevade</strong> foi, de<br />
certa forma, o centro das atenções. Não deu aos que o procuraram<br />
qualquer forma de tratamento indevido. Jamais faria, Tisserand<br />
prosseguiu, tal como um mal humorado escritor francês que<br />
dissera: os brasileiros nos dão borboletas, mas nos pedem ideias!<br />
<strong>Monlevade</strong> era sujeito polido. Não era dos que, pelo mau humor<br />
constante, parecem ter feito pacto com o rabudo. Como engenheiro<br />
da école des Mines, e com passagem pela afamada Polytéchnique,<br />
era convocado aqui e ali pelos participantes do encontro.<br />
Enquanto isso, a todo o tempo, os convivas dissertavam entusiasticamente<br />
sobre os efeitos de criação de fábricas nacionais de<br />
ferro, e a própria entrada de capital estrangeiro vindo dos cofres<br />
da nobreza de ultramar. A presença na província, e entre nós, do
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
mundialmente conceituado cientista August de Saint-Hilaire pode<br />
abrir novos mercados para todos os presentes. Está por ir ou já<br />
foi, <strong>Monlevade</strong> não entendeu bem, em visita oficial às forjas de<br />
Itabira, Girau, Penha, Bonfim e Ribeirão.<br />
Saint-Hilaire era uma celebridade festejada. E que disse, entre<br />
uma e outra garfada, ter ficado surpreendido com a qualidade<br />
dos machados, ferraduras e outros implementos agrícolas feitos<br />
em Minas. Nosso mercado é pequeno, foi o que um dos proprietários<br />
que lá se encontrava afirmou a ele em contrapartida. É apenas<br />
regional. Podia ser maior. Não temos maior saída por falta de<br />
estradas e comunicações. Sou proprietário de forja em Itabira.<br />
Fabrico até mesmo espingardas, complementou.<br />
Temos mais de cem de outras forjarias operando no Maranhão,<br />
assinalou um homem baixinho e de cabeça chata. Era<br />
brasileiro de terras distantes. Viera a conselho do próprio dom<br />
João, e que lhe fora dado durante audiência a que comparecera<br />
no Palácio de São Cristovão, no Rio. Explicou a todos que fizera<br />
tentativa frustrada de busca de apoio para fabricação de armas<br />
de fogo em sua manufatura. O nortista havia informado à sua<br />
alteza real que o problema não era técnico e sim de matéria prima.<br />
Faltava ferro no Brasil. O rei retrucou-lhe, dizendo também<br />
da preocupação do seu império quanto ao assunto. Tanto é assim<br />
que havia facilitado, há cerca de cinco a sete anos, a criação de<br />
duas fábricas. Agora, em 1817, não se lembrava bem dos nomes.<br />
Um dos seus camareiros informou-lhe tratar-se da Real Fábrica<br />
de Ferro do São João do lpanema, próximo a Sorocaba. E a Real<br />
Fábrica de Ferro de Morro do Pilar, em Minas Gerais, um outro<br />
auxiliar acrescentou. O erário havia gasto muito dinheiro para<br />
produção de ferros fundido, maleável e de aço para, inclusive, ter<br />
o benefício de exportação.<br />
Foi o próprio Eschwege quem justificou o fracasso dessas<br />
duas empreitadas. Era uma das outras eminências presentes, e<br />
atribuiu o insucesso principalmente ao ainda baixo consumo de<br />
ferro e de aço na colônia. Ao terminar acrescentou os custos de<br />
transportes, os altos impostos do governo português e carência<br />
de mão-de-obra adequada. Sim, as ordens do imperador foram<br />
adequadas, mas...<br />
Varnhagen, diretor da Fábrica de Ipanema, também disse dos<br />
percalços de sua empresa em Sorocaba. O camareiro real disse a<br />
295
296 Jairo Martins de Souza<br />
verdade ao nosso amigo que veio do Norte, referia-se ao empresário<br />
nordestino que há pouco havia falado nesta cerimônia. Sim,<br />
também tive apoio do imperador e continuamos tendo bastante<br />
hematita. Nossas reservas são enormes. E lá, herren und damen,<br />
senhores e senhoras, estamos usando o que há de mais recente<br />
para injeção de ar no forno. Não usamos, senhores, nem escravos,<br />
nem cavalos para acionar os foles. Nossas rodas d’água são<br />
tocadas confiavelmente pelo rio Ipanema. O minério se reduz a<br />
metal de forma constante: isso quer dizer que temos lá ferro de<br />
boa qualidade. Nem é preciso dizer que há florestas e lenha, digo<br />
carvão, de sobra para os fornos. A empresa é frutuosa, produzimos<br />
1500 quilos por semana, mas...<br />
Há muitos estrangeiros falando neste encontro, peço por instantes<br />
a palavra. Serei breve! Prometo. Quem disse assim foi o<br />
intendente dos diamantes da província, Manuel Ferreira da Câmara,<br />
lembrando ter sido companheiro de José Bonifácio nos estudos<br />
de minas e metalurgia na Europa. Fui o primeiro a fabricar<br />
ferro fundido no Brasil, afirmou. Portanto sou daqueles que acreditam<br />
na força do império português e, contando com o apoio do<br />
mestre alemão Schonewolf, minha ideia é ter, em breve, produção<br />
de trinta e sete toneladas em um só ano. Disse isso, e se calou.<br />
Sobreveio-lhe enxurrada de aplausos!<br />
Faltou-me dizer, Tisserand falou quase desculpando-se. Faltou-me<br />
dizer que, no início do jantar, todos os presentes foram<br />
se identificando, à medida que indicados pelo Governador, no<br />
sentido dos ponteiros de um relógio. A nata da inteligentsia e do<br />
empreendedorismo do ferro no Brésil. E é o que me fez lembrar,<br />
Tisserand assinalou, dos nomes de Theodoro de Freire, dono de<br />
próspera fundição no Rio de Janeiro, e de Daniel Muller, de fábrica<br />
de espingardas no porto militar de São Paulo.<br />
Naquele fausto jantar de chegada a Vila Rica, Tisserand voltou<br />
a esclarecer, Jean de <strong>Monlevade</strong> comportou-se, além de tudo,<br />
como um japonês. Notava e anotava tudo, e usando de sua habilidade<br />
incomum de traçar linhas fugidias e rápidas, rascunhava<br />
rapidamente os rostos, ao lado dos nomes dos presentes que lhe<br />
eram apresentados. Inclusive, esta com o perfil e o corpo elegante<br />
desenhados com maior capricho, a presença de uma jovem e<br />
simpática mocinha que permaneceu sempre afastada do grupo de<br />
homens que discutiam o futuro siderúrgico do império. Deus fez a
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
297<br />
fêmea, as costureiras fazem a mulher. Foi o que pensou, sorrindo,<br />
ao observar a singela elegância da jovem mineira. Nas poucas<br />
vezes em que a viu aproximando-se de cavalheiros, fê-lo conduzida,<br />
e segurando delicadamente os braços do tio, o próprio João<br />
Baptista Ferreira de Souza Coutinho. O futuro barão de Catas<br />
Altas, de quem já dissemos.<br />
O nome da menina era Clara. Clarinha. Aquela moça tranquila<br />
e sossegada tinha jeito de quem poderia fazer o liame definitivo<br />
do engenheiro francês com as terras de Minas Geraes. Não<br />
havia funcionado, Tisserand recordou, com Angéline, a filha do<br />
médico Colbert. Nem com uma das irmãs du Lac, a despeito,<br />
estão lembrados, do empenho de Lucillia Pius.<br />
Vamos ver o que o futuro reserva para o filho caçula do fidalgo<br />
Jean-François! Não exatamente agora, Tisserand disse. Pois no<br />
jantar de Vila Rica que dizia, o resultado da troca de ideias que<br />
proliferaram iria ser resumido, a quatro mãos, pelo intendente dos<br />
diamantes da província e por Eschwege, o estrangeiro curador do<br />
Gabinete de Mineralogia. O primeiro, espelhando o ponto de vista<br />
do império português sobre estratégias de extração e pesquisa<br />
do solo de sua colônia; o segundo, naquele instante, também representando<br />
a comunidade científica europeia quanto a técnicas<br />
modernas para tanto.<br />
Um documento com aquelas prerrogativas, Tisserand comentou,<br />
hoje provavelmente seria chamada com o sugestivo nome de<br />
A Carta Mineral de Vila Rica. Posteriormente seria entregue, em<br />
mãos, ao próprio imperador.<br />
Mas o fato é que a cerimônia havia se encerrado e os dois<br />
franceses e o fazendeiro de São Miguel do Piracicaba saíam das<br />
dependências do Paço. <strong>Monlevade</strong> estava feliz. Via oportunidade<br />
de ouro para exercitar seus conhecimentos e emprestar sua cultura<br />
para ajudar ao desenvolvimento da região do seu dileto amigo Ildefonso.<br />
E a do pai, que, por deferência especial, o acompanhava.<br />
Em pouco tempo essa terra caminharia com os próprios pés.<br />
Fora informado por Freitas que as lojas maçônicas cariocas sofriam<br />
fortemente influência das francesas, e eferveciam em discussões<br />
sobre pensamentos republicanos. Além do que, a própria<br />
república pernambucana que fora abafada pelo império português<br />
em Recife havia tentado, repito, buscar apoio até mesmo no<br />
distante Estados Unidos. Os efeitos psicológicos do feito haviam<br />
perturbado enormemente aos anseios de João VI.
298 Jairo Martins de Souza<br />
Não podia negligenciar tais pensamentos, pois tinha assistido,<br />
com os próprios olhos, fatos parecidos na então atribulada vida<br />
do seu país.<br />
Foi tudo muito rápido, tempus fugit, o tempo voa. A avalanche<br />
de pensamentos revolucionários do ex-cadete da Polytéchnique<br />
foi embora tão rapidamente quanto viera e, ao concluir<br />
a descida da escada de acesso à porta principal do Paço, Jean<br />
de <strong>Monlevade</strong> já estava recapitulando que, em sua caderneta de<br />
anotações, tinha os nomes e endereços postais de todos os envolvidos<br />
no encontro.<br />
Daí sorriu reflexivamente. Desde que cheguei ao Rio, tenho<br />
tido belas perspectivas. Aqui nas Geraes o clima é de montanhas.<br />
Agradável no inverno. No verão provavelmente os insetos devem<br />
incomodar, mas nada que mosquiteiro de tela fina ou o fechar<br />
de portas e janelas ao fim da tarde não possam bloquear. O que<br />
não se pode é permitir que pocilgas como as que vejo aqui em<br />
Vila Rica, ou porcos fuçando pelas ruas, como esses que passam<br />
agora nas nossas proximidades, seja comportamento de rotina<br />
em minha futura morada. O Brésil é lugar onde construirei meu<br />
lar e minha fortuna!<br />
Ao seu lado, Freitas parava para cumprimentar conhecido<br />
que tomava rápido trago de cachaça. O homem, por sinal muito<br />
bem trajado, já estava de saída de um armazém. Conversaram<br />
rapidamente, mas de forma objetiva. <strong>Monlevade</strong> tirou o chapéu<br />
para também saudar o amigo de Freitas. Virou-se de lado e voltou<br />
a sorrir, enquanto acabava de fechar a caderneta para colocá-la<br />
em embornal.<br />
Ah, a mocinha não ficara, e nem poderia ter ficado, de fora<br />
dos seus lembretes. Foi sob o olhar cuidadoso do tio é que lhe<br />
dissera o nome e a cidade em que morava. Não. Não precisa<br />
mais nada, monsieur <strong>Monlevade</strong>, com estes dados o senhor me<br />
encontra, é claro, se isso não importunar ao meu querido tio, foi<br />
o que disse sorrindo.<br />
De forma alguma, foi como se expressou o futuro barão de<br />
Catas Altas. Disse com firmeza, mas paradoxalmente, de forma<br />
receptiva.<br />
No Brésil, o já passado menino de Guéret não poderia perder<br />
velho hábito de escrever cartas!
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
VI<br />
<strong>Monlevade</strong> faz turismo e reflete sobre o cotidiano da<br />
capital da Província das Geraes. Martinho definitivamente<br />
entrega sua alma a Cristo<br />
Na manhã seguinte, Freitas acompanhou Martinho e <strong>Monlevade</strong><br />
em passeio pelas principais ruas e igrejas de Vila Rica. A ideia era<br />
ficar até o outro dia pela manhã. Na parte da tarde, ele aproveitaria<br />
estada na capital da província para acertar alguns pormenores<br />
de compra e venda de café e gado junto à receita e a cartório<br />
imperial. A capital da província centraliza tudo, informou. Aqui<br />
não se trata pomba rolinha como se fosse trocal, o empresário<br />
tem que pedir a bênção frequentemente a funcionários e agentes<br />
públicos. E ainda azeitar com propinas andamento de grande<br />
parte de nossos processos comerciais. A corrupção neste reinado,<br />
amigo <strong>Monlevade</strong>, vem se alastrando e toma corpo não somente<br />
no Paço Imperial de São Cristovão! É assunto que me causa náuseas.<br />
Então vou, se assim me for permitido, mudar o tema desta<br />
conversa. Mudemos para mulheres, Freitas acrescentou e, com<br />
isso, numa fração de segundo trocou a sisudez momentânea de<br />
sua face por um largo sorriso. As que nascem nesta cidade são<br />
chamadas de nativas. Nativas... como se fossem todas índias! A<br />
maior parte delas tem pernas batatudas, foi o que disse agora dirigindo<br />
olhar tanto para <strong>Monlevade</strong> quanto para Martinho. Atinou<br />
que os amigos não entenderam, então explicou: as subidas e descidas<br />
destas ladeiras é que forjam essa situação, complementou.<br />
Teve que explicar novamente. Todos riram.<br />
Foi quando Tisserand disse que há tempo não se referia a<br />
certo fato. Havia se remexido no banco como se algo repentinamente<br />
o tivesse incomodado. As horas passavam, e eu continuava<br />
ouvindo-o com o mesmo interesse de quando iniciara a relatar<br />
a tal quelque chose d’ extraordinnaire que prometera.<br />
299
300 Jairo Martins de Souza<br />
Aí escutei-o dizer que havia algo da infância de Jean de <strong>Monlevade</strong><br />
que merecia ser novamente recordada. O seu aguçado<br />
sentido de audição e olfato. Principalmente deste último. Já lhe<br />
disse que conseguia diferenciar minérios pelo próprio cheiro. E<br />
mais ainda: sentia o mesmo que os caçadores de depósitos subterrâneos<br />
de água no nordeste brasileiro. O senhor sabe que esses<br />
últimos, portando varas compridas na vertical, sentem estranhas<br />
vibrações quando passam por cima de veios de água? As varas<br />
ressonam em suas mãos. Não era incomum, ao passar por áreas<br />
plenas de metais, o engenheiro sentir o corpo eriçar por inteiro.<br />
Tentava explicar tal sensação por meio das equações de ressonâncias<br />
entre corpos, essencialmente as de capacitores e indutores,<br />
que aprendera na Polytéchnique, mas não se consolava.<br />
Pelo menos em termos teóricos. O detalhe é que, ao cruzar veios<br />
mais ricos, chegava, até mesmo, a ser incomodado com constantes<br />
movimentações no baixo ventre. Para tanto encontrou explicação<br />
não muito satisfatória, e se acomodou por falta de razão<br />
mais convincente. A culpa era o de desejo intenso de possuir e<br />
explorar as entranhas daquelas riquezas. Bem, era assim que estava<br />
se sentindo em toda região ferrífera das Minas Geraes. O ar<br />
e a umidade locais estavam inundados de cheiros agradáveis de<br />
minérios. Inspirava-lhe saúde!<br />
No entanto, insisto, Vila Rica não justificava o nome. Dos<br />
anos 700, restava-lhe a bauxita, o ferro, o calcário, o manganês,<br />
a dolomita. Faltam técnicas para explorá-las, <strong>Monlevade</strong> refletiu.<br />
Quem sabe no futuro...<br />
Foi quando abruptamente tropeçou em pedra talhada que,<br />
junto com outras, repousava amontoada em canto da rua. O calçamento,<br />
haja vista a profusão de materiais espalhados pela via,<br />
fora paralisado provavelmente por falta de verba pública. <strong>Monlevade</strong><br />
viu que alguns negros riram do que acontecera a ele. Como<br />
de regra, <strong>Monlevade</strong> reparou, estavam descalços. Nunca vira um<br />
negro calçado nas terras do Brésil. Não havia se incomodado<br />
com o riso deles, e riu também. Abaixou-se e analisou a pedra<br />
que quase lhe fizera ir ao chão. Cheirou-a. Apalpou-a. Sílica de<br />
qualidade. Bom para piso de casa e calçamento. Dura séculos!<br />
Enquanto isso, uma parelha de bois mansos puxava carroça<br />
com alguns sacos de farinha, dois pretos, os mesmos que haviam<br />
debochado do seu tropeço, preparavam-se para receber a carga
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
defronte a um atacadista do produto. Outros dois lutavam para<br />
manter os animais sossegados e colocavam pedras lascadas nas<br />
rodas de madeira para que a carga e os bois não se arrastassem<br />
morro abaixo. Ao lado, outro escravo carregava um velho<br />
guarda-chuva nas mãos e instruía os procedimentos do grupo de<br />
serviçais. Dava ideia de liberto, e chegou a atingir um dos outros<br />
pretos com força, usando com energia o cabo do instrumento.<br />
Esses últimos coitados eram seguramente de aluguel.<br />
O tempo não passa para esta gente, <strong>Monlevade</strong> comentou<br />
com Martinho. O que passou aqui foi o tempo do ouro fácil, o<br />
ouro à flor da terra. Isso não deve mudar por enquanto, prosseguiu,<br />
e não posso criticar o governo de Dom João. Neste quesito,<br />
como francês, não me sinto com autoridade moral bastante. Não<br />
se diz que quem raspa o decalque de um juiz vai dar de cara com<br />
o carrasco? A abolição da escravatura nas colônias da França é<br />
recente. Foi em 793!<br />
Conforme disse-lhe há muito, mon ami, Tisserand continuou,<br />
os líderes da revolução francesa exigiam que, entre as disciplinas<br />
da Polytéchnique, fossem incluídas fortes instruções sobre ciências<br />
humanas. Foi uma das razões que, de certa forma frustrado<br />
em termos sociais, o engenheiro francês prosseguia caminhando<br />
pela capital da província das Geraes. As ruas mostravam mundo<br />
diferente do que vivera na noite anterior em que jantara com o<br />
governador e seus convidados.<br />
E é por isso que não perdia os detalhes do cotidiano da cidade.<br />
Vira traços e anotara como eram realmente os brasileiros<br />
do interior, cafuzos, mulatos... Os primeiros, filhos de pretos com<br />
índios; os segundos, filhos de brancos com negros. Freitas disseralhe<br />
existir certa hierarquia. Os mulatos julgavam-se superiores aos<br />
negros brasileiros. Estes, por sua vez, desdenhavam os nascidos<br />
na própria África. Mas todos faziam trabalhos braçais.<br />
Pode-se pensar alto somente na presença de um amigo, foi o<br />
que <strong>Monlevade</strong> comentou com Freitas enquanto observavam um<br />
feitor que dava cascudos em um escravo. Para mim é o que dá<br />
sentido, com todas as letras, ao substantivo amizade. Então posso<br />
lhe dizer, mon ami, o que acabei de pensar. É triste. Acabei de<br />
concluir mais uma vez, Freitas, que na vida acostuma-se a tudo.<br />
Pois é. Fiquei absolutamente consternado com o que vimos<br />
na Loja de Escravos da Rua do Valongo... Agora vejo o negro que<br />
301
302 Jairo Martins de Souza<br />
ali está sendo espancado como se fosse parte do meu cotidiano...<br />
o que faço? Freitas respondeu-lhe com um olhar triste. Nada.<br />
<strong>Monlevade</strong> compreendeu. Estava em desvantagem, era um<br />
estrangeiro e, não somente isso, era um estrangeiro francês. Veja,<br />
ore, converse com amigos, escreva, mas não se manifeste publicamente<br />
sobre o assunto! É, portanto, e com os olhos ligeiramente<br />
avermelhados, que foi se afastando discretamente da cena de<br />
agressão. Adotou como estratégia o que todo ser humano faz.<br />
Passou a observar o céu e os horizontes das montanhas de Vila<br />
Rica e a refletir, bem, modificando o que o Hamlet de Shakespeare<br />
disse, e disse certo, que há mais coisas entre o céu e a terra que<br />
até um ex-aluno da Polytéchnique pode imaginar.<br />
Nas varandas das casas de, no máximo dois pisos, moradores,<br />
espias de plantão, permaneciam observando, curiosos, o que<br />
se passava pelas ruas. E igrejas. Muitas igrejas. A esperança dos<br />
que ficavam debruçados, observando a vida passar, é que algo<br />
diferente ou estranho pudesse acontecer. Um acidente de carruagem,<br />
ou carroça, ou até mesmo com uma simples mula que<br />
tem no lombo cangas com instrumentos científicos de estrangeiro.<br />
Alguns não viram, mas souberam que acontecera um grave na<br />
ladeira próxima à igreja de São Francisco, bem defronte ao hotel<br />
de Alá. O animal fora sacrificado com tiro certeiro de garrucha.<br />
Ou quem sabe, ver os dois estrangeiros que passavam às vezes falando<br />
em francês: não já tinham sido vistos por alguns felizardos?<br />
Portanto rostos fugidios, o que é fato comum em pequenas<br />
cidades, observavam Martinho e <strong>Monlevade</strong> entremeio às gretas<br />
das janelas. De Freitas não se pode dizer o mesmo. É figura daqui<br />
mesmo. Um militar à paisana seguia-os discretamente. A poucos<br />
metros de distância, um negro, vestido com roupas que mais pareciam<br />
um pijama de saco branco, carregava desajeitadamente<br />
um pesado balde de leite e estava por entrar em confeitaria que<br />
ficava na esquina da Praça do Paço do Governo. Mesmo com<br />
riscos de entornar a espessa nata da parte superior do líquido,<br />
tinha aguardado humildemente que os estrangeiros terminassem<br />
de entrar. O miliciano, por sua vez, subitamente deu por encerrada<br />
sua missão ao ver os três amigos sumirem por dentro das<br />
portas para degustação de café. Não teria nada de anormal para<br />
informar ao alferes Ferro. Os franceses haviam se comportado<br />
bem, e já estavam de volta às proximidades do hotel e do palácio<br />
do governador.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
À parte esse detalhe, que nem ele nem Freitas haviam percebido,<br />
o engenheiro francês observara cuidadosamente as ruas<br />
que guardam segredos e histórias jamais conhecidas da revolta<br />
de Felipe dos Santos e, principalmente, da inconfidência mineira<br />
do também alferes Tiradentes. Fizera isso e, ao mesmo tempo,<br />
prosseguira sentindo vibrações extraordinárias das quais disse faz<br />
pouco e, mais ainda, acrescentadas pela lembrança da bonita figura<br />
da moça chamada Clara. O tio franqueou-lhe oportunidade.<br />
Escrever-lhe-ia. Manteria contato.<br />
E Martinho? O estrangeiro Tisserand perguntou-me. Causame<br />
estranheza, mon ami, que o senhor não tenha me indagado o<br />
porquê de ele não ter expressado opiniões desde sua estada em<br />
Portugal.<br />
Surpreendi-me com a preocupação do estrangeiro. Na verdade<br />
ele, de certa forma, adivinhara meus pensamentos. E disse-me<br />
que, de fato, não foi somente a barba crescida que diferenciou<br />
Martinho quando de seu retorno de Lisboa. Era outro homem.<br />
Não que tivesse deixado de ser bondoso como sempre fora. Voltara<br />
notadamente mais circunspecto. Reflexivo. Dissera que vira<br />
coisas horríveis. Lisboa não mais estava ocupada pelos franceses.<br />
Portugal não mais era dividido entre Napoleão e os espanhóis.<br />
Mas a presença dos ingleses de Beresford fê-lo testemunhar injustiças<br />
em incontáveis situações. Queria ser justo. Ajudava aos pobres<br />
e necessitados. Não permitia que um negro assumisse carga<br />
superior às suas forças. Tinha braços fortes e não negava auxílio a<br />
quem quer que fosse. Cumprimentava a todos que encontrava nas<br />
ruas. Uma carroça com rodas emperradas no barro, um miserável<br />
que pede um naco de pão, um cego que roga por auxílio, enfim,<br />
esses sempre poderiam contar com sua ajuda.<br />
No entanto, a vida ensinara-lhe que quem aceita a ideia de<br />
ser pessoalmente justo não pode temer a de viver sozinho. Ajudava.<br />
Mas sabia que o troco era a ingratidão. A ajuda dada de<br />
coração é impossível de ser paga. Confirmara a duras penas o<br />
que Ribérry certa ocasião martelara em sua cabeça. Não espere<br />
troco quando fizer caridade ou emprestar dinheiro, caro Martinho,<br />
quem recebe grande favor se irrita e, por não ter condições de pagar,<br />
passa a odiar a quem o ajudou. Por tudo isso não sabia bem<br />
o que fazer. Talvez a batina e o exemplo do abade Ribérry fossem<br />
por final a sua solução existencial. Com uma diferença. Não é<br />
303
304 Jairo Martins de Souza<br />
possível que Deus tenha criado a mulher a partir da costela de<br />
Adão se não fossem para se separar e, ao fim e ao cabo, viverem<br />
vida conjunta. Nunca seria celibatário. Que Deus seria esse que<br />
viesse a frear seus instintos naturais?<br />
Mas por ora a opção era seguir seu caminho ao lado do amigo<br />
e meio-irmão Jean de <strong>Monlevade</strong>. Tinha grande auxílio na<br />
bíblia que recebera de presente do fidalgo, poucos dias depois<br />
de sua admissão no orfanato de sua nunca esquecida Guéret.<br />
Sua terra por adoção. Emprestava-a sempre que possível para<br />
os colegas de infortúnio e sonhava que todas as crianças que lá<br />
chegassem pudessem receber um exemplar.<br />
Um exemplar da bíblia, naqueles dias, era destinado a poucos<br />
privilegiados. Custava muito dinheiro, Tisserand esclareceu.<br />
Impossível de ser adquirido em quantidade por instituição de<br />
crianças de poucos recursos como a de Guéret.<br />
A que Martinho ganhara tinha dedicatória especial. Em noite<br />
de troca de ideias sobre alguns trechos que nela havia selecionado,<br />
permitira a Jean que lesse a mensagem especial que o fidalgo<br />
havia lhe ofertado. Na ocasião ainda moravam em Paris. O amigo<br />
emocionou-se, pois se deparou com a bonita caligrafia do pai<br />
que simplesmente copiara o tranquilizante salmo 23: Martinho, o<br />
Senhor é o meu pastor; nada me faltará. Deitar-me faz em pastos<br />
verdejantes; guia-me mansamente a águas tranquilas. Refrigera a<br />
minha alma.... certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão<br />
todos os dias da minha vida, e habitarei na casa do Senhor<br />
por longos dias.<br />
O dia do sorteio em que perdera a companhia dos pais e dos<br />
irmãos não lhe saía da memória. Seria um dos escolhidos? Lia um<br />
versículo por dia. Olhava para as florestas de Minas e via restos de<br />
um Éden recuperado. Lugar santo. Olhava para Jean. Via olhos<br />
que cobiçavam a mesma terra como vasto manancial de combustível<br />
para fundição de ferro.<br />
Para ele qualquer pico de montanha de Minas seria sítio para<br />
edificar mosteiro. Para Jean, ele sabia, a mesma montanha significava<br />
a palavra ferro. Ferro. Ferro para edificar casas, produzir<br />
armas, estruturas, foices, máquinas...<br />
A missão do irmão era uma. A dele, outra. A de forjar caráter<br />
de brasileiros que buscassem consolo e refrigério na fé cristã.<br />
A construção de um mosteiro, ou igreja, poderia vir a ser o ins-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
trumento. Montaria uma biblioteca, pouquíssimos têm livros por<br />
aqui. E ajudaria a Jean. Jean o ajudaria. Fosse mosteiro, havia de<br />
visitar um bem antigo que Freitas dissera-lhe existir na província<br />
do Espírito Santo. Poderia erigir um daquela monta em algumas<br />
dessas montanhas que contemplava. Talvez com nome dedicado<br />
a escravos ou operários. Ou a ambos. Não era São José um marceneiro?<br />
Para Jean de <strong>Monlevade</strong>, tudo que viam significava a riqueza<br />
e a produção. Para Martinho, tudo simbolizava a fé. Em dados<br />
momentos, em Vila Rica, pediu licença e separou-se por horas<br />
de <strong>Monlevade</strong> e Freitas para observar detidamente os altares pintados<br />
a ouro de Nossa Senhora do Pilar. Esteve em outras... algumas<br />
inacabadas por falta de recursos. Os bispos e figuras de<br />
grande devoção tinham sepulturas mais próximas do altar. Mais<br />
próximos de Deus. Desejava profundamente ser um deles. Em todos<br />
os templos, debruçou-se e rezou em voz alta atraindo atenção<br />
dos outros fiéis. Emocionou-se com a simplicidade da Igreja do Rosário<br />
construída, exclusivamente, para uso dos pretos convertidos.<br />
Ao finalizar seu roteiro em São Francisco de Assis, o hotel de<br />
Alá era próximo, de repente lembrou-se de que deveria balbuciar<br />
suas preces em português. Estava no Brésil, mas a alma por alguns<br />
instantes selecionados repousou candidamente na França.<br />
Ao lado dos familiares perdidos. Rezou mais. Refletia sobre as<br />
palavras que repetia, e repetia e repetia. Com isso considerava<br />
estar preparado para as agruras do dia que, graças a Deus, estaria<br />
por passar!<br />
De tudo sobrava-lhe, em termos práticos, que seu destino era<br />
o de servir a Jean de <strong>Monlevade</strong> com toda força dos seus braços<br />
e alma. Não havia prometido a si mesmo?<br />
305
306 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
VII<br />
Rumo a Caeté. O capitão Freitas é forçado a abandonar a<br />
caravana<br />
Eram 5 horas da manhã e a caravana estava ultimando preparativos<br />
para partida de Vila Rica. Às cinco e dezessete estava pronta<br />
para seguir rumo a Caeté. Justo o horário pré-marcado com todos<br />
pelo engenheiro francês! Os negros se surpreenderam: como<br />
são esquisitos estes europeus! Foi aí que Tisserand chamou-me<br />
atenção para o fato de ter dito que <strong>Monlevade</strong> assumira a coordenação<br />
geral da viagem. É por razão justa, acrescentou. O homem<br />
que Freitas cumprimentara, e que tomava gole de cachaça em<br />
bar, havia-lhe alertado de algo importante que acontecera em sua<br />
fazenda durante sua estada no Rio e viagem de volta a Geraes.<br />
Havia ocorrido uma enchente de proporções consideráveis<br />
na região e alguns parceiros do capitão, que trabalhavam em regime<br />
de meia, sofreram fortes prejuízos. Não Freitas. Pelo menos<br />
diretamente. A casa grande de sua fazenda, assim como seu gado<br />
e suas plantações de maior produtividade, ficavam em terrenos<br />
altos, distantes das margens do Piracicaba. Desculpou-se com os<br />
dois amigos, mas seguiria direto para São Miguel, enquanto o<br />
grupo se dirigiria para Caeté. Aguardá-los-ia em sua casa.<br />
Foi razão de já ter partido na madrugada seguinte acompanhado<br />
do Tião, que havia se tornado escravo de estima. O homem<br />
era habituado a levantar-se antes dos galos.<br />
A partir de agora, Jean de <strong>Monlevade</strong> dependeria somente<br />
de si e da experiência que outro mulato tinha pelas estradas<br />
das Geraes. E foi já nestas condições que ouviu alguém chamá-lo<br />
com voz não muito alta. Tinha o pé a meio caminho para alcançar<br />
estribo do seu cavalo. Virou-se. O tom de voz era familiar. A<br />
caravana, inclusive os pretos a pé, também virou o rosto para o<br />
local de onde o som provinha. O homem estivera no jantar promovido<br />
pelo governador e pago por João Baptista... <strong>Monlevade</strong><br />
307
308 Jairo Martins de Souza<br />
mentalmente repassou os olhos por sua caderneta de anotações<br />
até localizar um dos rostos que desenhara. Encontrou-o na letra L.<br />
Luiz Soares de Gouveia era igualmente capitão e rapidamente<br />
informou a <strong>Monlevade</strong> que, por acaso, também iria dirigir-se a<br />
Caeté. Conheço a região. Se o senhor me concede o privilégio,<br />
posso guiá-lo até lá. Podemos ajuntar nossos recursos, estou com<br />
poucos negros, e, pelo menos é minha intenção, temos muito que<br />
conversar!<br />
E foi enquanto cavalgavam lentamente, tendo ao fundo a<br />
bela visão do mar de montanhas mineiro, é que chegaram ao xis<br />
da questão que <strong>Monlevade</strong> suspeitava existir. Não seria por nada<br />
que o empresário mineiro buscaria companhia para gastar horas<br />
jogando conversa para fora! Gouveia andou rodeando o assunto,<br />
enfim, Jean já estava quase, ele mesmo, em vias de indagar ao<br />
capitão. Afinal, o que desejas em relação a mim?<br />
Ouvi dizer, monsieur <strong>Monlevade</strong>, que o ferro na Europa já<br />
está sendo usado até mesmo em grandes áreas públicas. Estações<br />
de trens, pavilhões... Deves estar bem mais informado sobre essas<br />
construções revolucionárias.<br />
C’est vrai, Jean falou distraidamente, em francês, ao lembrarse<br />
de Paris e seu surpreendente desenvolvimento, é verdade. O<br />
futuro do ferro é enorme na construção. Seu uso deverá ampliarse<br />
assustadoramente: a idade do Ferro, caro Gouveia, mal começou...<br />
imagino que dentro de poucos anos não precisaremos<br />
mais, para construir edifícios mais altos, de usar paredes com mais<br />
de metro de largura. O ferro, senhor Gouveia, fará com que fiquem<br />
finas como as de uma panela de cozinha.<br />
Pois é, tenho terras com muitas árvores e madeira. E muita<br />
jacutinga. Não digo somente do pássaro, monsieur, a despeito de<br />
tê-lo também em grande quantidade. É boa caça, mas não vem<br />
ao caso. A que digo é a do minério que chamamos pelo mesmo<br />
nome. Dizem ser rico em ferro...<br />
E pouco enxofre e fósforo, Jean respondeu-lhe. Bom para<br />
fundição! Aí que está, Luís Gouveia imediatamente aproveitou a<br />
deixa. A ideia é aproveitar tudo isso...<br />
O senhor deve ter concluído, Tisserand afirmou, que, em<br />
situação como a que descrevi, nada mais natural que pudesse<br />
surgir uma sociedade entre os dois para funcionamento de fundição.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Bem, os dois homens mal se conheciam, mas Gouveia tinha<br />
pesquisado rapidamente as origens de <strong>Monlevade</strong> e especulara<br />
ocasionalmente com Freitas sobre o engenheiro e seu procedimento.<br />
Não poderia existir, nas terras de Minas, sócio mais adequado.<br />
Quanto a <strong>Monlevade</strong>, bem, <strong>Monlevade</strong> consultaria, provavelmente,<br />
o mesmo Freitas. Apenas para tirar peso da consciência, pois<br />
por tudo que tinham conversado, até então, não tinha dúvidas da<br />
aprovação. Entraria com o conhecimento; Gouveia, com o capital.<br />
Daí, já praticamente combinados, a conversa prosseguiu ainda<br />
consistente, porém com maiores intervalos de silêncio. Ambos<br />
estavam se entregando à concepção particular de alguns detalhes.<br />
<strong>Monlevade</strong>, em metalurgia e técnicas fabris; Gouveia, em obter licença<br />
junto à coroa imperial. A ideia era procurar imediatamente<br />
o governador!<br />
Não vou desgastá-lo com detalhes do restante da viagem,<br />
Tisserand disse-me. A conversa prosseguiu, depois de acordo verbalmente<br />
selado, em tom quase sempre comercial. A cada nova<br />
paisagem, <strong>Monlevade</strong> via chance de dar à luz produtivo centro<br />
metalúrgico.<br />
Em Caeté não foi difícil descobrir a melhor situação para<br />
construção da usina de ferro. A princípio não faltava nada. A não<br />
ser que... E a mão-de-obra? Perguntara a Gouveia.<br />
Farta. Foi o que lhe respondeu prontamente o capitão. Tenho<br />
muitos escravos e, se necessário for, encomendo alguns<br />
mais ao Rio de Janeiro. Há empresas que fazem trabalho de<br />
seleção e que, até mesmo, mandam candidato para entrevista e<br />
conferência de saúde, sem compromisso de aluguel ou compra.<br />
Também posso fazer o que não é do meu gosto, ir eu mesmo ao<br />
Valongo...<br />
Então realmente não há problemas, <strong>Monlevade</strong> afirmara-lhe.<br />
A fase de treinamento fica por minha conta. Ensinarei a alguns.<br />
Que ensinarão a outros. Com essa ideia de multiplicadores a cadeia<br />
do conhecimento se espalha fácil, enfim, até que os próprios<br />
trabalhadores treinem totalmente uns aos outros. É claro que não<br />
poderei ensinar todos os mistérios do processo. Nem mesmo eles<br />
teriam condições de aprendê-los. Há muita química, mineralogia e<br />
geologia que se escondem atrás de uma simples fábrica de fundição<br />
de ferro.<br />
309
310 Jairo Martins de Souza<br />
Além de dirigir e instruir a rotina de fabricação, Gouveia e<br />
<strong>Monlevade</strong> combinaram que este último também assumiria papel<br />
de fiscal da qualidade do ferro fabricado. Colocaria em prática os<br />
tesouros que aprendera na Polytéchnique e na école des Mines.<br />
Isso foi Caeté. Não sem deixar que o novo sócio partisse totalmente<br />
abastecido e bem informado sobre caminho a tomar,<br />
Gouveia disse que seguiria de volta para Vila Rica para providências<br />
junto a cartórios e à fazenda da província. Não. Não deixaria<br />
de ir primeiramente visitar o governador Manoel de Portugal e<br />
Castro!<br />
Nas demais localidades em que passaram, as imagens se<br />
repetiram abrandadas. Vila Rica era a capital e lá <strong>Monlevade</strong> e<br />
Martinho haviam visto o melhor, em termos das Geraes, da arte<br />
e arquitetura barroca. Não mais surgiriam com a força que tanto<br />
havia impressionado o engenheiro francês. Daí prosseguiram<br />
passando sempre pelas fachadas de muitas igrejas. A todas Martinho<br />
pedia pequeno tempo para contemplação e causava algum<br />
atraso. <strong>Monlevade</strong> não reclamava, mas tantas eram que, às vezes,<br />
somente se persignava à passagem da porta. E os sinos tocavam.<br />
Tocavam...<br />
Foi assim que <strong>Monlevade</strong> e Martinho viram casas simples feitas<br />
de pedra e muitos escravos trabalhando descalços e encardidos.<br />
Os edifícios coloniais eram bonitos, contudo mal cuidados.<br />
Nada de neoclassicismo. E pobreza. Quanta pobreza! Como pode<br />
acontecer em terras tão abençoadas?<br />
E não é que não tenham sido abordados novamente por alguma<br />
aborrecida patrulha imperial, Tisserand disse em tom de encerramento.<br />
A família Ferro entranhara-se em todas as províncias<br />
e vilarejos desta receptiva colônia. No entanto, o salvo-conduto<br />
imperial fazia com que se safassem de qualquer situação: “siga<br />
na paz do Senhor, doutor <strong>Monlevade</strong>. Daqui a três léguas bem<br />
contadas, há pinguela em péssimo estado. Atravesse as mulas em<br />
ponto raso, assim e assado...”.<br />
A viagem prosseguia entrecortada e longa. Característica que<br />
fazia com que os escravos e o mulato se desentendessem com<br />
mais frequência. Fora proveitosa. E nem <strong>Monlevade</strong> nem Martinho<br />
foram acometidos de diarreia, conforme haviam sido avisados.<br />
Alguns carrapatos, sim. Aparecem com mais frequência nos<br />
pastos onde éguas soltam suas águas, um dos pretos explicou a
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Martinho, enquanto este retirava um bem gordinho de sua perna.<br />
<strong>Monlevade</strong> foi premiado com um dos grandes que havia se alojado<br />
no saco escrotal. Ali soube que era tipo chamado de redoleiro.<br />
O detalhe é que foi percebido pelo francês somente pelo terceiro<br />
dia: O temor de infecção foi grande! Não vingou, graças aos céus!<br />
A comida mineira recendia a gordura de porco e torresmo.<br />
Logo no início da jornada pelas alterosas, Jean provou o feijão<br />
misturado com carne suína que os pretos faziam e que comiam<br />
com farinha de mandioca. Experimentou carne de jacaré e de<br />
tatu. Iguarias raras apresentadas pelo mulato que, bom de trempe,<br />
nunca usava uma mais larga que o fogão de cascalhos que improvisava.<br />
Os pretos também deram sua contribuição, pescaram<br />
bagres e assaram no espeto. O tempo de comida consistia, além<br />
de tudo, de minutos consagrados à confraternização. As rusgas e<br />
mal entendidos ficavam imediatamente esquecidos quando Martinho<br />
dizia palavras de união, e de agradecimentos ao Senhor,<br />
tanto pelo sucesso da viagem quanto pelo alimento ora sendo<br />
concedido.<br />
Não que fosse seu costume, refiro-me a <strong>Monlevade</strong>, Tisserand<br />
explicou, mas nessas estradas o engenheiro francês podia<br />
tomar banho em água clara e limpa quando lhe aprouvesse. Isso<br />
não faltava. Tanto ele quanto Martinho trocavam cuecas de três<br />
em três dias, os negros lavavam suas roupas de uso constante e<br />
deixavam-nas secar expostas ao sol no lombo das mulas. Com<br />
tudo isso, <strong>Monlevade</strong> não perdia a aparência de elegância e trato<br />
fino que aprendera com o pai. Mas, quanto às necessidades humanas,<br />
ambos ressentiram a falta de pano para limpeza. Os pretos<br />
ensinaram-lhes a distinguir folhas que, desculpe-me a ironia,<br />
Tisserand falou, poderiam cumprir o papel. Mas como disse, não<br />
faltavam córregos e regatos para beber água, e para afins mais<br />
íntimos como os que, faz pouco, acabei de citar.<br />
Por felicidade não foram muito incomodados por bichos do<br />
mato. É bem verdade que os negros mataram muitas cobras, quase<br />
sempre por diversão. A rotina é que atravessassem o caminho<br />
sem aborrecer aos passantes. Hospedaram-se aqui e ali e, na falta<br />
de estalagem, encontravam sempre um colono ou fazendeiro bom<br />
samaritano que os recebia cordialmente. É por isso que foram poucas<br />
as ocasiões em que dormiram no mato. Consciente do perigo,<br />
<strong>Monlevade</strong> temia acender fogueira e provocar incêndio florestal,<br />
311
312 Jairo Martins de Souza<br />
pois com a quantidade de árvores existentes, não tinha dúvidas de<br />
que terminariam literalmente fritos.<br />
Bem, Tisserand explicou, <strong>Monlevade</strong> poderia galopar dias<br />
sem parar. Era treinado para tanto. Não tinha o exército francês o<br />
maior plantel de animais treinados da Europa?<br />
Mas dois dias antes de chegar a São Miguel do Piracicaba,<br />
consultava o relógio quase de hora em hora. Faltavam-lhe condições<br />
para leitura. Para mandar notícias. Para escrever cartas. Precisava<br />
descansar. Para isso contava com a fazenda Nossa Senhora<br />
da Justiça, do amigo Freitas.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
VIII<br />
São Miguel do Piracicaba. A receptiva acolhida dos Freitas.<br />
Jean de <strong>Monlevade</strong> encontra-se com Auguste Saint-Hilaire<br />
A caravana seguia morosamente no sentido contrário às águas<br />
do Rio Piracicaba e acabava de deixar para trás uma bifurcação<br />
de larga trilha. <strong>Monlevade</strong> e acompanhantes estavam seguros de<br />
estar a poucas léguas do vilarejo de São Miguel. Um cavaleiro a<br />
galope vinha se aproximando em sentido contrário.<br />
Foi o que Tisserand disse, após um breve descanso de voz.<br />
Havia cessado de falar por instantes e, com a mão no gogó, emitira<br />
sons estranhos: alguns divertidos. E foi somente quando deu<br />
por concluídos os exercícios – pedira-me paciência com breve sinal<br />
de mão – é que informou estar obedecendo a instruções de fonologista<br />
que o aconselhara, desta forma, a amenizar antigos calos<br />
em suas já desgastadas cordas vocais. Aspirara muitos resíduos de<br />
calcário ao longo da vida, e sua voz fora ferramenta indispensável<br />
durante longos anos de árduo trabalho diário.<br />
Pó de giz! Foi aí que descobri sua verdadeira profissão, sem<br />
que me desse ao trabalho de perguntá-lo... O estrangeiro era na<br />
realidade un professeur, um professor! Ah, tarde demais... Prosseguirá<br />
aqui, ficticiamente, sendo o nosso já familiar tisserand!<br />
O tal cavaleiro, ele explicou, não podia ter o rosto identificado<br />
nem mesmo por Martinho que trotava à frente de todos. O Sol,<br />
com seus raios vespertinos, confundia sua visão já obscurecida<br />
por sombras e pela poeira de ventania que acontecia de passagem.<br />
Pelo que se podia depreender da situação, o viajante parecia<br />
não ter intenção, nem tempo, para cumprimentar a gente de <strong>Monlevade</strong><br />
que caminhava em sentido contrário.<br />
O que seria grave falha de etiqueta de homem do campo!<br />
Nas Geraes, era habitual que todo viajante pelo menos acenasse<br />
chapéu para qualquer outro que encontrasse na estrada.<br />
313
314 Jairo Martins de Souza<br />
“A caravana seguia morosamente no sentido contrário às<br />
águas do Rio Piracicaba e acabava de deixar para trás uma bifurcação<br />
de larga trilha. Pela admirável paisagem, <strong>Monlevade</strong> e<br />
acompanhantes sabiam estar a poucas léguas do vilarejo de São<br />
Miguel...”.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
A distância mais próxima permitiu a Martinho ver que vestia roupa<br />
de tropeiro. Chapéu largo, capote e calça preta.No entanto,<br />
inesperadamente, Martinho pediu a todos os seus que parassem:<br />
após passagem, o estranho havia puxado bruscamente as rédeas<br />
do animal. Ato contínuo, sua montaria parou de forma um tanto<br />
quanto desajeitada, e relinchando estrepitosamente. As mulas e<br />
os pretos se assustaram e houve certo reboliço em trecho que a<br />
caravana vinha cortando estrada de forma tranquila, desejosa de<br />
colocar a caminhada a termo.<br />
O homem, de cor parda, identificou-se um tanto atabalhoadamente.<br />
Chamava-se Gervásio. Só Gervásio. Não. Não tinha<br />
sobrenome. Mas era feitor da fazenda Nossa Senhora da Justiça<br />
e, a mando do patrão, fora enviado para localizar um estrangeiro<br />
chamado João. João de <strong>Monlevade</strong>.<br />
Caso o encontrasse, e a seu grupo, deveria pedir, por gentileza,<br />
que o acompanhassem até a própria fazenda que era de<br />
propriedade do capitão João Gomes de Abreu de Freitas. Sua<br />
missão era encaminhá-lo o mais rapidamente possível!<br />
A casa grande da fazenda de Freitas era localizada em pequeno<br />
promontório de belíssimo vale. Pertencia aos Freitas por<br />
gerações. Toda a família fora convocada para dar-lhes as boas<br />
vindas. E na sala principal havia até mesmo pequena faixa com<br />
dizeres simples, em francês, mas que expressava o respeito que a<br />
família dedicava ao estrangeiro. Um dos pequenos a escreveu. Foi<br />
o esclarecimento dado por dona Amância, esposa do capitão que,<br />
orgulhosamente, apontou para um dos netos com o indicador<br />
da mão direita. Envergonhado, o menino imediatamente fugiu e<br />
escondeu-se por trás de uma das portas. A família riu feliz.<br />
Daí seguiram-se as apresentações. Este é fulano, esta é beltrana.<br />
Este é o mais velho, o José Joaquim. Aquele que se esconde<br />
atrás da porta é o...<br />
<strong>Monlevade</strong> era conhecido e amado pela família Gomes de<br />
Freitas, não somente pela forma com que recebera o moço Ildefonso<br />
em Paris, como também pela propaganda antecipada feita<br />
pelo chefe do clã, o próprio Freitas. O capitão, <strong>Monlevade</strong> reparou,<br />
no sossego do seu lar era chamado carinhosamente por dona<br />
Amância de meu João. Bem, conjecturou feliz, e por extensão,<br />
talvez na intimidade do seu quarto a coisa mudasse para meu<br />
Joãozinho!<br />
315
316 Jairo Martins de Souza<br />
Decerto que, e apesar do largo tempo em que se conheciam,<br />
não sabia se o título capitão significava que o amigo fosse militar<br />
de carreira, ou se era simplesmente honorífico. O fato é que meu<br />
João era expressão carinhosa que lhe agradou. E não seria de todo<br />
mau que fosse assim chamado por uma brasileira chamada Clarinha.<br />
Mon petit Jean...<br />
O ausente Ildefonso, que sabemos estar aprimorando estudos<br />
médicos em Paris, sem quaisquer dúvidas, era o orgulho de<br />
todos os parentes. Entre eles, José Joaquim Gomes de Freitas. O<br />
Quinzinho. Eram parecidíssimos. Não falava francês, mas tentou<br />
dizer sejam bem-vindos: vous êtes bienvenue. Foi dessa forma<br />
que tentou saudar a Jean e a Martinho, como se esses fossem seus<br />
velhos companheiros.<br />
Tão logo ficou novamente a sós com o amigo brasileiro, <strong>Monlevade</strong><br />
ansiosamente revelou-lhe sobre possível acordo a ser consolidado<br />
com o capitão Gouveia da região de Caeté. A reação foi<br />
animadora. Conheço o Gouveia de longa data. É homem de palavra.<br />
Não precisa assinar nada. É daqueles que honram e fazem<br />
negócio a fio de bigode. Já fizera várias transações comerciais com<br />
o fazendeiro de Caeté, algumas delas de monta, e nunca tivera<br />
problemas. Nem nunca ouvira qualquer queixa a respeito de seu<br />
comportamento. No final qualificou-o como homem de família.<br />
Nada mais persuasivo podia se dizer sobre o caráter de um mineiro.<br />
Intimamente, o sentimento de Freitas em relação à indústria<br />
de fundição era melhor ainda. Finalmente aparecera fórmula concreta<br />
de o amigo francês se fixar à terra. Por enquanto ele fica<br />
em Caeté, depois se arranja um jeito de puxá-lo mais para perto.<br />
Era boa companhia, homem de educação refinada. Bom modelo<br />
para os seus. Elevaria o nível de cultura da família. Isso tudo sem<br />
levar em conta a satisfação que seguramente teria o seu querido<br />
e ausente Ildefonso.<br />
A família compreendeu que os visitantes desejariam se recolher<br />
cedo nesta primeira noite. Após todos alojados, os escravos foram<br />
encaminhados para a bem cuidada senzala. O mulato protestou,<br />
conseguiu colchão de crina e foi decidido que dormiria no chão ao<br />
lado do catre do feitor da fazenda, o também pardo Gervásio.<br />
Jean abriu a janela do seu quarto. As dobradiças mal lubrificadas<br />
rangeram estrepitosamente ao contato. A casa estava silenciosa<br />
e a noite chegara fria e estrelada. Restava-lhe, para compro-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
var a existência de vida, os barulhos intensos vindos do mato, dos<br />
pântanos e das águas. A força do hábito fez com que automaticamente<br />
consultasse sua bússola de forma lenta e cuidadosa. Não<br />
precisaria. Em um dos extremos do vale, em forma de vê, ficava<br />
fácil contemplar a majestade do Cruzeiro do Sul. Contrapartida<br />
da estrela Polar aqui neste hemisfério, <strong>Monlevade</strong> pensou. Emocionou-se.<br />
Ato contínuo, lamentou novamente a perda da luneta<br />
presenteada por Duchamps.<br />
Ildefonso tinha razão. Não era o vinho e a saudade de sua<br />
terra que o faziam, em Paris, dizer que neste lugar provavelmente<br />
ficam antecipadas as visões definitivamente celestiais do universo<br />
conhecido. Melhor deitar-me na varanda para apreciar esse mar<br />
infindável de estrelas.<br />
Terminou por adormecer de cansaço, e sonhando com a<br />
magnificência e o poder da natureza cósmica. Bem antes do alvorecer,<br />
acordou incomodado pelo aumento do frio úmido da<br />
região. Lá estava de novo Vênus com seu amarelo pálido. Marte<br />
e o seu vermelho intenso. Saturno. E a via Láctea, La voie lactée,<br />
a via do leite. Inundada de estrelas! Oceanos e oceanos de astros<br />
que brilham há milhões e milhões de anos. O que acontece na superfície<br />
da Lua nesse exato momento? Algum choque com cometa<br />
especial? Dans quelques seconds je peut savoir (em segundos fico<br />
sabendo). Pensou e sentiu-se como o cada vez mais religioso Martinho<br />
e, sinceramente, se emocionou. Ah, meu Deus, curvo-me a ti!<br />
Colocaste, aos meus pés, o passado da criação. Amém!<br />
Assim foi a primeira noite de <strong>Monlevade</strong> em São Miguel do<br />
Piracicaba. Com apenas uma manta para se proteger das intempéries.<br />
Anos depois declarou aos filhos ter sido extremamente feliz.<br />
Dormira com as estrelas!<br />
O engenheiro Jean de <strong>Monlevade</strong> era assim, Tisserand concluiu,<br />
escravo do conhecimento, escravo da Polytéchnique, da<br />
école des Mines e da matemática. Quanto a outras questões, não<br />
mudara desde tempo de criança. A silhueta do fidalgo, seu pai,<br />
não o abandonava: prosseguia com a sensibilidade e o espírito de<br />
família aguçados.<br />
É por isso que devemos voltar à Nossa Senhora da Justiça! O<br />
clã dos Freitas o aguarda para o primeiro café da manhã.<br />
Festivo. O primeiro café da manhã em família de Jean Antoine<br />
Dissandes de <strong>Monlevade</strong> foi absolutamente festivo! Minto. Não<br />
somente ele. Durante vários dias o clima manteve-se o mesmo.<br />
317
318 Jairo Martins de Souza<br />
Depois a casa, mesmo dispensando sempre atenção especial aos<br />
convidados, retomou sua rotina.<br />
Com uma exceção, há sempre uma delas para que a regra<br />
fique justificada, Tisserand, emendou. É que esteve por lá rapidamente<br />
o próprio Auguste Saint-Hilaire!<br />
Ainda que Freitas tenha comparecido ao jantar de Vila Rica,<br />
não foi naquela situação que se tornara chegado ao famoso cientista!<br />
Trocaram somente frases curtas: o francês, não por acaso,<br />
soubera referências antecipadas sobre o fazendeiro que habitualmente<br />
recebia grandes personalidades em sua fazenda. Era de<br />
conhecimento geral ser o mineiro excepcionalmente culto e praticante<br />
de várias línguas, inclusive o francês. A casa grande da<br />
fazenda da Nossa Senhora da Justiça era, na realidade, pousada<br />
e parada obrigatórias para viajantes ilustres que buscavam conhecer<br />
as Geraes. Freitas era assim: extremamente hospitaleiro.<br />
O fato é que nos dias em que Saint-Hilaire esteve em São<br />
Miguel, <strong>Monlevade</strong> dormira acidentalmente na fazenda do alferes<br />
José Joaquim e, sendo assim, perdeu a oportunidade de contato<br />
mais longo com o famoso compatriota. Lamentou-se mais tarde.<br />
O cientista havia sido também aluno da Polytéchnique e dividira<br />
quarto com o químico Gay-Lussac.<br />
O senhor deve estar se lembrando, mon ami, que o alferes<br />
era o filho mais velho do capitão Freitas. Ele tinha uma pequena<br />
fábrica de ferro em sua propriedade e é por isso que o francês não<br />
fora convidado somente para visitá-lo em termos sociais. Unir-seia<br />
o útil ao agradável. Foi prevista breve consultoria para melhora<br />
do processo, treinamento dos escravos, etc.<br />
Quando retornou, Saint-Hilaire estava de saída. Encontraram-se<br />
acidentalmente. Os escravos já conduziam suas malas e<br />
apetrechos para o lombo das mulas. Foi tudo muito rápido, mas o<br />
cientista teve tempo suficiente para esclarecer-lhe não estar fazendo<br />
biopirataria. A imprensa do império no Rio de Janeiro estava<br />
equivocada, dissera-lhe, pois estivera injustamente acusando-o<br />
do referido crime... As ambições do nosso império, caro <strong>Monlevade</strong>,<br />
são universais, e o que faz bem a ele, faz também ao<br />
Brésil. Aí é que os interesses se misturavam. As caixas de plantas<br />
que enviara para terras francesas passariam a fazer parte do<br />
acervo científico mundial. Pois, até então, eram desconhecidas e<br />
poderiam eventualmente ser de excepcionais usos em pesquisas
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
e aplicações médicas. Escreveria um livro sobre o assunto: como<br />
cientista, seu sonho na vida era divulgar preciosidades como as<br />
achadas nesta terra.<br />
Fora diálogo que poderia demorar horas pelas articulações<br />
filósoficas que vieram em decorrência da sutileza do tema, mas a<br />
conversa, por absoluta carência de tempo, rapidamente chegou a<br />
termo. <strong>Monlevade</strong> e Saint-Hilaire eram homens bem práticos e já<br />
haviam conversado brevemente, como sabido, durante o jantar<br />
do governador e, por final, atualizaram andamento de intenções<br />
de viagem, de um e de outro. <strong>Monlevade</strong>, sabedor que o cientista<br />
retornaria diretamente para o Rio de Janeiro, solicitou-lhe<br />
favor especial. Antes disso, perguntou-lhe se conhecia o arquiteto<br />
Grandjean de Montigny. Saint-Hilaire respondeu-lhe afirmativamente,<br />
indagando o porquê da pergunta. Jean explicou-lhe que<br />
gostaria de oferecer ao eminente arquiteto uma proposta de trabalho.<br />
É possível de sua parte? Saint-Hilaire assentiu prontamente.<br />
Então peço-lhe gentileza de entregar, em mãos, a correspondência<br />
que tenho aqui pronta para envio neste pequeno volume.<br />
Assim foi feito! Anos mais tarde Saint-Hilaire escreveu a amigos,<br />
pouco antes da publicação do seu famoso “Viagem pela Província<br />
de Rio de Janeiro e Minas Geraes”, sobre a distinção e a<br />
elegância do conterrâneo que viera da pequena Guéret. Surpresa<br />
agradabilíssima! Foi como assinalou o fato de encontrar-se com<br />
um engenheiro de Polytéchnique em rincões tão remotos! A França<br />
tem muito a dar ao Brésil na figura deste filho de fidalgo.<br />
Quatro anos depois, Saint-Hilaire retornou para a França.<br />
Fora envenenado por ingestão de mel de vespa e havia ficado<br />
com o sistema nervoso extremamente abalado. Mas não morreu<br />
à custa de tal acidente.<br />
Com isso, mais uma vez resumo páginas do rascunho que o<br />
abade escreveu, Tisserand disse. A verdade é que ele soube de<br />
nuances como esta através do próprio Jean.<br />
É que, como reiteradamente tenho dito ao senhor, Jean escrevia<br />
muitas cartas. Daí não ser surpreendente que muito do que se<br />
passou em Minas Geraes ter vindo à tona exatamente por meio de<br />
Kostas Zavoudakis.<br />
Quanto a isso, não lhe perguntei nada, como é do meu feitio.<br />
O estrangeiro era criterioso, explicar-me-ia a tempo certo. No<br />
entanto não vou deixar de relatar que, naquele intervalo de dias,<br />
319
320 Jairo Martins de Souza<br />
<strong>Monlevade</strong> foi conduzido por todas as roças, pastos e instalações<br />
da grande fazenda do amigo latifundiário. Não sou presunçoso<br />
como os ingleses, Freitas disse-lhe. Não posso chegar ao ponto de<br />
dizer que o sol nunca se deita nas terras dos Gomes de Freitas. Mas<br />
realmente nossas propriedades são extensíssimas!<br />
Na mesma ocasião, um emissário de Gouveia viera galopando,<br />
quase sem descer do cavalo, para comunicar a <strong>Monlevade</strong>,<br />
por meio de carta longa e minuciosamente detalhada, que as coisas<br />
iam bem e que tudo estava encaminhado junto aos órgãos<br />
da província e a Intendência de Mineração no Rio. Dom João VI<br />
aplaudira a ideia. A missiva era praticamente um pré-contrato.<br />
Leu-a com cuidado. Passou-a a Freitas. Tudo bem, o amigo respondeu,<br />
e acrescentou. Creio que o Gouveia fez este documento<br />
simplesmente para orientá-lo. É operação complexa: envolve vários<br />
segmentos da administração imperial. E confirmou reforçando<br />
o que anteriormente havia dito a <strong>Monlevade</strong>. Não. Não se<br />
carece de formalidade quando um homem como este capitão está<br />
envolvido. O emissário posicionou-se para esperar alguns poucos<br />
minutos. Não disfarçava pressa de retorno, e novamente havia<br />
optado por nem mesmo descer do animal. E quando decidiu deslocar-se<br />
para dar-lhe água em tina colocada por um dos escravos,<br />
<strong>Monlevade</strong> chamou-o de volta. O cavalo batia os cascos no chão,<br />
era do tipo marchador. Por favor, podes retornar ao capitão Gouveia<br />
com o que trouxeste.<br />
Freitas a tudo assistiu. Foi única testemunha. A expressão De<br />
Acordo, em letras garrafais, havia sido escrita na diagonal da folha<br />
em cima da própria carta que <strong>Monlevade</strong> recebera de Gouveia.<br />
Imediatamente abaixo seguia data e assinatura: João de<br />
<strong>Monlevade</strong>.<br />
Bem, Tisserand concluiu, foi esse o dia em que o engenheiro<br />
francês da école des Mines decidiu que, na escrita, passava da<br />
hora de abrasileirar seu nome!
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
IX<br />
Caeté e a usina de Luiz Gouveia. O futuro Barão de<br />
Catas convoca <strong>Monlevade</strong> para conversa reservada:<br />
assunto sério!<br />
Houve algumas modificações quando da elaboração formal do<br />
contrato que foram facilmente justificadas por Gouveia, e entendidas<br />
e aceitas da mesma forma por <strong>Monlevade</strong>. O documento<br />
final não o colocava na condição de sócio!<br />
Fosse constar dessa forma, lembrar que estamos tratando de<br />
um estrangeiro, o resultado seria catastrófico para a empreitada.<br />
Atrasaria papéis fiscais e de cartório, travaria andamento e faria<br />
gerar várias outras necessidades burocráticas.<br />
Então, a troco de bom pagamento, o engenheiro francês faria<br />
estudo adequado de viabilidade, e o que, nas indústrias de hoje,é<br />
chamado de pay back (retorno do investimento). Afora isso, teria<br />
compromisso de fazer as plantas básicas e o projeto detalhado da<br />
instalação de Caeté. Obviamente também colocaria a fábrica em<br />
funcionamento e dedicaria tempo definido para treinar os feitores<br />
e escravos indicados por Gouveia. Sua ideia era diversificar os recursos<br />
que aplicava no café e no açúcar e, caso acontecesse com<br />
sucesso o que se esperava, a restrição à produtividade da fábrica,<br />
como sempre, ficaria por conta das montanhas das Geraes que<br />
isolavam a província dos demais mercados do reino. Mexeria com<br />
seus pauzinhos e insistiria com o governador da Província para criar<br />
novos acessos e melhorar os trechos das pouquíssimas existentes.<br />
Foi o que, em essência, ficou definitivamente estabelecido<br />
nos termos da carta a que Freitas havia dado aprovação verbal.<br />
E o que realmente acabou acontecendo. A partir daí, o engenheiro<br />
francês daria somente consultoria de tempos em tempos.<br />
Estava tranquilo. Aqui no Brésil não teria problemas de matériasprimas.<br />
Dominava as técnicas de fabricação. Precisaria de minério,<br />
321
322 Jairo Martins de Souza<br />
água e carvão. Sobrava minério. Sobrava água. Sobrava madeira.<br />
Estivesse com este projeto na França, encontraria graves dificuldades.<br />
Veja-se o caso da madeira que, sabemos, lá era disputada<br />
à ponta de faca entre fabricantes de navio e de ferro. Já<br />
naqueles dias, o estrangeiro esclareceu, as florestas europeias estavam<br />
em seus últimos estertores.<br />
O senhor já deve ter notado, mon ami, que não é meu desejo<br />
aborrecê-lo com enfadonhos detalhes técnicos, Tisserand disseme,<br />
demonstrando aspecto de alívio. Nem mesmo os conheço.<br />
Por outro lado, sentir-me-ia mal em não lhe dizer que <strong>Monlevade</strong><br />
usaria água em abundância para acionar rodas que tocariam os<br />
foles de ar. Este sopro mantém o carvão aceso do mesmo jeito<br />
que em fogão a lenha caseiro. Sem ele, não se faz o ferro.<br />
A tudo isso, <strong>Monlevade</strong> acrescentou o pulo do gato. Pois foi<br />
baseado em conhecimentos profundos de química é que adicionou<br />
areia de rio no segundo cozimento do ferro. Não me pergunte<br />
o porquê. Insisto que não saberia lhe responder, Tisserand<br />
afirmou defendendo-se. Mas foi com aquela simples providência<br />
que resolveu grave problema de deterioração precoce da fornalha<br />
em uso. Isso acontecia em função do tipo de minério da mina<br />
disponível na própria região. Fez trabalho de qualidade em Caeté.<br />
Tanto é assim que o sucesso da usina do capitão Gouveia<br />
chegou posteriormente até os ouvidos do príncipe-regente. O<br />
francês <strong>Monlevade</strong> é de capacidade e comportamento irretocáveis<br />
e tem trazido lucros para a Província. Dizem pegar sem preguiça<br />
nas ferramentas, mas com a elegância de nobre europeu. O<br />
estrangeiro dá exemplo para os escravos, mesmo estando sempre<br />
vestido com apuro. Filho de fidalgo, fidalgo é.<br />
Entusiasmei-me, e estou indevidamente perdendo tempo em<br />
detalhes sem maior relevo, Tisserand advertiu-se. Então peço que<br />
o senhor, mon ami, acompanhe-me de volta a Caeté. Pois o que<br />
Jean de <strong>Monlevade</strong> encontrou naquela vila foi muito mais que<br />
uma indústria de ferro. Explico-lhe.<br />
O empresário João Batista Ferreira de Souza Coutinho foi<br />
quem havia pago as despesas do jantar promovido pelo governador<br />
da província em Vila Rica. Mas não foi esta a razão que fez<br />
João de <strong>Monlevade</strong> lembrar-se de sua figura ao vê-lo circular em<br />
carruagem de luxo pelos pedregosos caminhos da cidade. Ele era<br />
tio de Clara Sofia!
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Clara Sofia, la jolie et jeune femme, com quem trocara olhares<br />
significativos no paço da província. Ainda não estava seguro<br />
se devia escrever-lhe, mas volta e meia não somente consultava<br />
o esboço de retrato que fizera, como também o endereço que a<br />
menina havia lhe fornecido, estão lembrados, sob os olhos atentos<br />
do próprio tio.<br />
No primeiro dia que chegara a Caeté, <strong>Monlevade</strong> soubera<br />
que o milionário Coutinho morava no mais belo sobrado de arquitetura<br />
colonial da vila. Era uma de suas muitas casas, pois<br />
mantinha, afora a de Catas Altas, residências fixas em Vila Rica,<br />
Sabará, Santa Luzia, Brumado e Gongo Soco. Com um ponto em<br />
comum. Em todas elas, a mesa ficava sempre posta para receber<br />
a qualquer pessoa de suas relações.<br />
A de Caeté é edificação singular, Tisserand acrescentou. Inclusive<br />
atualmente é onde se localiza o Museu Regional da cidade.<br />
Destaca-se mais ainda, e é o que a torna mais imponente,<br />
por ser localizada entre casas de um só piso, e por sua situação<br />
de grande afastamento lateral com as mesmas. No tempo do rico<br />
João Batista era conhecida como Casa Setecentista.<br />
E é lá que vamos encontrá-lo, pois o empresário estava de<br />
passagem por sua casa de Caeté e, sabedor da presença de <strong>Monlevade</strong>,<br />
convidou-o para jantar. Foi neste dia que Batista Coutinho<br />
apareceu com variáveis que <strong>Monlevade</strong> até então desconhecera<br />
em seus tantos anos de vida!<br />
A moça Clara Sofia perdeu o pai precocemente, foi o que,<br />
em dado momento, um sério Coutinho disse ao francês.Tinha em<br />
torno de 45 anos e ambos estavam na sala de visitas da própria<br />
Setecentista. Jean era, não por acaso, o único convidado, e a<br />
partir do momento que escutara do anfitrião que precisavam ter<br />
conversa reservada, a quatro paredes, desconfiara do motivo do<br />
convite. Freitas alertara-lhe algumas peculiaridades da família mineira.<br />
Vamos ver se é isso mesmo.<br />
Esse meu parente, pai da moça, era muito querido por mim.<br />
Daí praticamente adotei a menina como filha. Ela foi, e está sendo<br />
criada, como uma princesa e, asseguro-lhe, senhor <strong>Monlevade</strong>,<br />
muitos dos meus sonhos de pai estão centrados em sua figura.<br />
O senhor entende bem o que estou dizendo?<br />
Foi aí que <strong>Monlevade</strong> se atrapalhou, não poderia imaginar-se<br />
em tal situação. Quando do seu platônico caso com Angéline, o<br />
323
324 Jairo Martins de Souza<br />
médico Colbert fora bem mais discreto! O resultado foi que confundiu-se<br />
com o inusitado da circunstância e disse oui, je comprends.<br />
O compenetrado Coutinho não entendeu a resposta. O ambiente<br />
tornou-se absolutamente tenso por segundos. Mas Jean havia<br />
se recuperado do imprevisto e rapidamente emendou com um<br />
retificador sim, eu entendo! O senhor pode continuar! Coutinho<br />
imediatamente relaxou os músculos, e preparou-se para prosseguir.<br />
Obrigado pela resposta, foi o que disse também percebendo<br />
que deveria aliviar o peso de sua conversa. Ela é, <strong>Monlevade</strong>, descendente<br />
de antigo donatário premiado com terras brasileiras pela<br />
coroa portuguesa. O que não é pouca coisa. O capitão Vasco Fernandes<br />
Coutinho foi homem poderosíssimo na capitania do Espírito<br />
Santo. Tanto é assim que o nome completo da minha querida é<br />
Clara Sofia de Souza Vasco Fernandes Coutinho.<br />
Bem, o senhor conhece com sobras a rigidez da família do<br />
interior de Minas Gerais dos dias de hoje, Tisserand disse, e pode<br />
imaginá-la, com facilidade, na palavra de um dos seus chefes de<br />
há quase duzentos anos. O discurso de Coutinho foi longo!<br />
Ele tinha temores quanto ao poder de sedução, considerandose<br />
a polidez e o modo elegante da fala de <strong>Monlevade</strong>. A sobrinha<br />
era mais que uma filha e poderia ter problemas futuros. Em dado<br />
momento até mesmo pediu licença e leu alguns textos bíblicos,<br />
que tinha como exemplares, para o engenheiro francês. <strong>Monlevade</strong><br />
entendeu melhor ainda a situação. Lembrou-se do fidalgo,<br />
seu pai. E deixou que o homem liberasse todas as suas intenções.<br />
E ao término, escutou-o dizer que estava ouvindo muito o<br />
nome <strong>Monlevade</strong> em reuniões familiares. Alguns são a favor do<br />
namoro. Outros contra. Prefeririam que o senhor fosse oriundo da<br />
nobreza inglesa. Eu, particularmente, sou a favor dos franceses.<br />
Para resumir o encontro dos dois cavalheiros em Caeté, Tisserand<br />
disse-me, e para que o senhor perceba como estava, em<br />
termos psicológicos, a situação daquele momento, ocorre-me<br />
exemplo bem conhecido na arte literária brasileira de anos não<br />
muito passados. Pois é. Em o Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo,<br />
Pedro Terra desconfiava abertamente das intenções do capitão<br />
Rodrigo Cambará em relação à sua filha Bibiana.<br />
Bem, Baptista Coutinho não chegou a tais extremos com <strong>Monlevade</strong>.<br />
Mas conceitualmente não há tanta diferença assim! Ambos,<br />
Coutinho e Pedro Terra, queriam o melhor para suas filhas.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Também não me sinto inseguro em afirmar, Tisserand vaticinou,<br />
que, à medida que os minutos foram se escoando, o empresário<br />
mineiro foi ficando cada vez mais confiante no futuro de sua<br />
sobrinha. Não há outra razão para ter mudado o foco e passado a<br />
falar das personalidades com que tinha contato frequente, assim<br />
como de suas minas e sua relação com o futuro econômico do<br />
Brasil. Já enxergava <strong>Monlevade</strong> como genro adotivo.<br />
Vejamos a outra face da moeda, Tisserand comentou. Faz-<br />
-se necessário conhecer mais a fundo também o que se passava<br />
pela cabeça de Jean, e sua cultura francesa. Pois enquanto ouvia<br />
as palavras do, digamos assim, tio João, um dos barões da economia<br />
mineira, ele revisava mentalmente alguns propósitos de<br />
sua vida. A moça era realmente interessante e poderia ser coisa<br />
de futuro. A substituta. A substituta de Angéline. Poderia cumprir<br />
com ela o que sonhara fazer com a namorada dos seus sonhos de<br />
adolescente. É certo que já havia decidido criar raízes no Brésil.<br />
E prosperar. Percebia que, para tanto, poderia contar com a amizade<br />
do empresário.<br />
Diante de tudo isso, ficou claro para Jean de <strong>Monlevade</strong> que<br />
o namoro com Clara Sofia de Souza havia oficialmente se iniciado.<br />
Iria a Catas Altas formalizá-lo com a própria tão logo os<br />
compromissos em Caeté o permitissem. Poderia fazê-lo por carta.<br />
Não havia sido selado desta forma o compromisso entre Pedro I<br />
e Leopoldina?<br />
Não temia recusa. O tio da moça falava como representante<br />
oficial da família. Além disso, conversaria com Freitas em Piracicaba,<br />
iria a terras disponíveis para venda, enfim, compraria propriedade<br />
no Vale do Piracicaba, construiria casa...<br />
325
326 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
X<br />
O solar <strong>Monlevade</strong> e o arquiteto Montigny.<br />
A primeira fundição de <strong>Monlevade</strong><br />
O senhor deve estar lembrado que o arquiteto Granjean de Montigny<br />
era um dos integrantes mais famosos da chamada Missão<br />
Francesa e estava no Rio desde os idos de 1816. Foi assim que<br />
Tisserand retomou seu discurso após breve período de descanso.<br />
Havia aproveitado o lapso de silêncio quanto à sua história e<br />
feito alguns novos exercícios com suas cordas vocais. Desta vez<br />
não se justificou, e eu entendi perfeitamente. Ele disse mais sobre<br />
Montigny. Disse que era bastante divulgado, no Rio de Janeiro,<br />
que o francês que fugira das perseguições da revolução francesa<br />
estava perfeitamente adaptado às condições da vida nos trópicos.<br />
Prova maior disso é que já projetara vários prédios de destaque,<br />
como também muitos palcos de celebrações importantes da vida<br />
da corte de João VI.<br />
Foi exatamente lá que Saint-Hilaire havia cumprido a promessa<br />
feita a <strong>Monlevade</strong> na Nossa Senhora da Justiça. Entregara<br />
a Montigny a carta do engenheiro da Polytéchnique em tempo<br />
mais breve possível, conforme solicitado. Daí Montigny ter tomado<br />
conhecimento do pedido de <strong>Monlevade</strong>, solicitando-lhe gentilmente<br />
que fizesse planta baixa e fachada de residência solar que<br />
gostaria de edificar em terreno ainda a ser localizado e passível<br />
de compra.<br />
Mas, em termos gerais, <strong>Monlevade</strong> afirmou-lhe, como cliente,<br />
peço-lhe que o arranjo seja feito conforme minhas intenções. Em<br />
anexo, o senhor, professor Montigny, encontrará planta de locação<br />
a ser seguida e que deverá ser concretizada seja in natura ou<br />
seja no cabo de enxadas e picaretas.<br />
Também enviava desenho que fizera ilustrando as florestas e<br />
montanhas do entorno. As disponibilidades de água e benfeito-<br />
327
328 Jairo Martins de Souza<br />
rias seriam tais e tais... Pedia preço e dizia aguardar resposta mais<br />
breve possível. Por fim, ressaltava ter consciência das grandes<br />
empreitadas em que Montigny provavelmente estava engajado,<br />
mas seria honroso ter a participação de tão grande talento a seu<br />
serviço.<br />
Dois meses foram bastantes para que a resposta e o desenho<br />
de Montigny chegassem e, junto com ele, recomendação para<br />
que fosse construído com detalhamento a ser feito pelo próprio<br />
<strong>Monlevade</strong>. Falta-me tempo, Montigny argumentou. Além do<br />
que, não costumo executar nem mesmo rascunhos sem visitar o<br />
sítio das obras. Estou tratando o seu caso, caro <strong>Monlevade</strong>, como<br />
uma exceção. E, portanto, em algumas situações, de certa forma<br />
tive que usar o truque que nós, arquitetos franceses, chamamos<br />
de trompe l’oeil que é, por exemplo, quando incentivamos pintura<br />
de janelas em paredes internas. Simulacros de janelas. Trabalhei<br />
com suposições e assim tive que enganar os olhos... Peço<br />
levar tal fato em consideração se for encontrado qualquer defeito<br />
nas ideias que lhe envio.<br />
E o conterrâneo <strong>Monlevade</strong> tem razão! Estou às voltas com<br />
grandes projetos imperiais, contudo não estou em particular preocupado<br />
com o bom desfecho deste seu projeto, pois sei ser um engenheiro<br />
da Polytéchnique capaz de elaborar o detalhamento desta<br />
minha sugestão sem maiores atropelos. Não. <strong>Monlevade</strong> nada lhe<br />
devia. Os rabiscos haviam lhe custado cerca de dez minutos!<br />
Daí Jean partiu para a compra do local idealizado. Encontrou-o<br />
após diversas andanças pela região, e contando com ajuda<br />
indispensável do capitão Freitas e o filho José Joaquim. A negociação<br />
foi concretizada com pagamento direto ao proprietário feito<br />
por Luís Gouveia, que devia a <strong>Monlevade</strong> restos de pagamento<br />
por serviços prestados em Caeté. Em termos geográficos, o local<br />
escolhido para construção da casa grande da fazenda ficava em<br />
torno de catorze quilômetros distante do vilarejo de São Miguel<br />
do Piracicaba.<br />
O senhor sabe, mon ami, Tisserand disse-me, quase dois séculos<br />
são passados e a tal casa mantém-se ainda de pé. O que não<br />
sobreviveu foi o atraente parque circular de jabuticabeiras com seu<br />
belo chafariz central. Nele, a água, conduzida por rudimentares<br />
canos de ferro, vinha de lugar mais alto e era projetada para chegar<br />
a altura superior do telhado da própria casa grande que tinha
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
dois andares. Totalmente construídos sobre baldrames de pedra e<br />
madeira. Montigny era craque! Imagine a beleza do cenário!<br />
Ao projeto de Montigny, <strong>Monlevade</strong> acrescentou as moradias<br />
dos escravos e demais edificações não inclusas no pedido feito ao<br />
arquiteto. Inclusive a igreja que, por sua vez, teve projeto do seu<br />
interior desenhado totalmente por Martinho.<br />
Espero, Tisserand comentou, que o senhor não tenha se esquecido<br />
desse dote que o meio-irmão de <strong>Monlevade</strong> demonstrara<br />
desde tempo de criança.<br />
Martinho. Martinho continuava sempre que possível ao lado<br />
do amigo de infância e da nunca esquecida Guéret, mas a prioridade<br />
de sua vida, a religião, fora elevada ao extremo. E um ano<br />
após chegada em Minas Geraes, seus esforços intelectuais eram<br />
quase completamente direcionados para aquela que considerava<br />
sua maior missão na Terra. Não. Não mudara de opinião quanto<br />
a questões de formação familiar. Continuava pensando em<br />
mulheres e casamento. Tanto é assim que enquanto <strong>Monlevade</strong><br />
prosseguia namoro com Clara Sofia, ele mantinha compromisso<br />
com uma das amigas da mesma. O nome era Efigênia. Figênia.<br />
Efigênia era fruto de relacionamento rápido entre um rico comerciante<br />
português com uma de suas escravas. Mas a moça também<br />
foi educada e tratada como filha. Até nesses pequenos detalhes,<br />
os dois meios-irmãos pareciam ter destino convergente. Caso as<br />
coisas corressem de acordo, noivaria em breve e casaria mais rápido<br />
ainda.<br />
Aliás, os outros amigos antigos de <strong>Monlevade</strong> também não<br />
haviam desaparecido de sua vida. Ele estava ansioso para revêlos<br />
e a oportunidade estava próxima, pois além da compra da<br />
fazenda, em 1818, sua preocupação era a construção da casa e<br />
regularização definitiva de sua permanência no Brasil. Precisava ir<br />
ao Rio de Janeiro. Zavoudakis estava por lá há cerca de 9 meses.<br />
Não Platini e Just Fontaine.<br />
A última vez que falei sobre eles, Tisserand lembrou-me, estavam<br />
em pleno curso de viagem com destino ao Brasil. Chegaram<br />
bem, apesar da mil vezes relatada dureza do percurso marítimo.<br />
Nem é preciso citar detalhes, não é mesmo? O fato é que nenhum<br />
dos três alcançou Minas: por várias razões. Cada um teve as suas<br />
pessoais... vou explicá-las de forma resumida, começando pelo fim<br />
do abecedário.<br />
329
330 Jairo Martins de Souza<br />
Zavoudakis. Kostas Zavoudakis é com quem Jean de <strong>Monlevade</strong><br />
mantinha correspondência mais constante. O motivo é que<br />
o grego era o único dos três que mantinha endereço fixo.<br />
Ele, na chegada, havia se hospedado junto com Platini e Fontaine<br />
no hotel dos Estrangeiros. Foi onde, de imediato, conheceu<br />
uma bela e enfeitada francesa dona de conhecido bordel na Praia<br />
de Copacabana. Apaixonou-se. E, com poucos dias de conhecimento,<br />
pediu-a em casamento. Com uma condição. Pediu encarecidamente<br />
à mulher que largasse o negócio. Ela respondeu-lhe,<br />
em tom de brincadeira que, após boa lavagem, qualquer coisa na<br />
vida fica adequada para consumo. Zavoudakis não entendeu o<br />
gracejo, e propôs-lhe mudança de ramo. A mulher a princípio relutou:<br />
muitos homens solitários haviam-lhe feito o mesmo convite<br />
ao longo dos anos. O grego pensou ter perdido o que considerava<br />
início de nova vida em família. As mulheres da vida, pelo aprendizado<br />
do sofrimento, Kostas sempre soubera, terminavam sendo<br />
esposas de melhor qualidade.<br />
Então, ainda jovem de idade, mas com larga experiência, ela,<br />
depois de horas de reflexão, acabou por aceitar a proposta de peito<br />
aberto. O grego era boa pessoa. Ilustrado. Algumas circunstâncias<br />
trágicas de sua vida é que a tinham levado a seguir a terrível<br />
vida fácil, à qual dava adeus... bem, dessa forma declarou fim de<br />
carreira, apesar de certos clientes terem procurado seu carinho<br />
por meses a fio.<br />
E foi, para levar a cabo vida decente, que, entre uma coisa e<br />
outra, ambos definiram, de comum acordo, pelo ramo de livros.<br />
A cidade do Rio era carente de boas livrarias e Zavoudakis teria<br />
suprimento fácil de grandes obras por meio do forte elo de amizade<br />
que certamente manteria por toda a vida com Dubois. Mencionou-o<br />
à sua amada e não se surpreendeu quando ela disse-lhe<br />
conhecer o antigo patrão parisiense. É também boa pessoa, ela<br />
comentou com ar enigmático. Foi um dos meus clientes constantes<br />
quando eu estava em início de carreira. Zavoudakis compreendeu,<br />
lembrando-se que Dubois era celibatário convicto. Mas<br />
pediu à mulher que o poupasse, e não voltasse a citar o assunto.<br />
O patrão, em tarde de pouco movimento, dissera-lhe que preferia<br />
mulheres de aluguel.<br />
Daí mudaram-se para o Hotel de France, no Largo do Paço,<br />
onde moraram por alguns dias até encontrarem bonito sobrado
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
em Botafogo. Compraram-no. Lá o grego supôs ser seu ponto<br />
de referência até o fim dos seus dias. Portanto, foi endereço de<br />
onde enviou sua primeira carta para <strong>Monlevade</strong>, informando, em<br />
especial, que casara às pressas, assim como tudo que vinha acontecendo<br />
em sua vida. Havia postado a missiva para a fazenda<br />
Nossa Senhora da Justiça, a do Capitão Freitas, conforme haviam<br />
combinado ainda em Paris.<br />
Na mesma comunicação, dizia que Fontaine e Platini sucumbiram<br />
ao chamado de Netuno, o deus das águas. O convite feito<br />
pelo comandante do navio Résistence para seguir até o porto de<br />
Nossa Senhora do Desterro, em Santa Catarina, foi aceito sem<br />
maiores considerações. A longa viagem que fizeram da Europa ao<br />
Rio despertou em ambos antigos sentimentos de amor pelo desconhecido.<br />
Quando voltassem dariam notícias, o menino <strong>Monlevade</strong><br />
poderia contar com eles em futuro próximo. Não agora. No<br />
entanto, meses eram passados e ainda não davam sinal de vida.<br />
Mas voltemos à casa que <strong>Monlevade</strong> pretendia erigir nas proximidades<br />
do Rio Piracicaba, Tisserand remendou. A lembrança<br />
dos amigos ausentes de <strong>Monlevade</strong> conduziu-me a afastamento<br />
do que dizia.<br />
O fato é que a falta de estradas convenceu a ele que deveria<br />
prover, para fins de subsistência, todos os produtos agrícolas para<br />
si, sua futura família e para os empregados e escravos de sua<br />
fábrica.<br />
Sim. Sua fábrica! Pois tendo em vista todas as variáveis que<br />
vinha analisando desde que chegara ao Brasil, <strong>Monlevade</strong> decidira<br />
ter a sua própria de ferro. Plantaria árvores frutíferas. Teria abelhas.<br />
Coelhos. Gado. Cabritos. Porcos. Tudo isso em quantidade<br />
suficiente para alimento de cerca de 200 pessoas. Seu negócio<br />
era o ferro.<br />
Lançou mãos à obra. Bem, não pôde ser considerado surpreendente,<br />
Tisserand sugeriu, o fato de ter a família Freitas como<br />
vizinhos da grande extensão de terras que adquirira. Não sei dizer<br />
exatamente quantos quilômetros quadrados, desculpou-se, mas<br />
tenho referências mais palpáveis. Entre elas que eram cortadas<br />
por cerca de 8 quilômetros do curso de águas do Rio Piracicaba e<br />
englobava todos os bairros da atual grande <strong>Monlevade</strong>, inclusive o<br />
Jacuí, Carneirinhos, o Onça, a Vila Tanque e outros tantos de não<br />
menor importância. Sendo assim, para interligar e dar saída para<br />
331
332 Jairo Martins de Souza<br />
seus produtos, o brilhante engenheiro assegurou-se de imediatamente<br />
projetar e construir ponte de madeira sobre o Piracicaba.<br />
Alguns anos eram passados, não sei exatamente quantos, e já<br />
tinha todas as instalações funcionando perfeitamente. Martinho,<br />
enquanto o meio-irmão viajava a estudos, serviço e pesquisa mineral,<br />
acompanhava todos os passos do promissor negócio e instalações<br />
associadas. Plantava-se abacate, feijão e muitos outros<br />
frutos carnosos e secos. O ferro escorria dos ainda tímidos fornos<br />
catalães e era trabalhado nas oficinas. No entanto, como era de<br />
se esperar para os anos 800 em Minas Geraes, poucas toneladas<br />
de ferro, trabalhados ou não, saíam da porteira da fazenda a cada<br />
mês. A pedra preciosa da fundição era o fabrico de pequenos objetos<br />
e acessórios para a recém-implantada indústria de extração<br />
do ouro em Minas. É o que dava dinheiro!<br />
Tudo de lá era de qualidade. Isso porque o requintado <strong>Monlevade</strong><br />
era extremamente técnico. Uma exceção nas terras ferrosas<br />
de Minas. O único dono de forja que entendia e acompanhava<br />
detidamente o andamento de cada passo da fabricação de bem<br />
desenhadas peças. Repito o que já disse: praticamente pegava<br />
na mão dos escravos para que aprendessem a malhar adequadamente<br />
os produtos.<br />
Escravos. Vou dizer algo de sua relação com os escravos.<br />
Após primeiros dias de Brésil, intimamente <strong>Monlevade</strong> os recusou.<br />
Considerava a escravatura situação humana deprimente!<br />
Algum tempo depois achava ser condição transitória. Passaria,<br />
não demora. Acostuma-se a tudo, concluiu, lembrando-se que já<br />
pensara assim em outras circunstâncias. Era mal indispensável. A<br />
partir disso, tomou partido do inferno dos negros, tentando tornálo,<br />
dentro de suas possibilidades, o mais ameno possível. Decerto<br />
que punia os que se comportavam mal com rigor absolutamente<br />
necessário e usava os mecanismos usuais. Para própria instrução<br />
do autor, dizia, o mal feito não pode ser tolerado. Mas não permitia<br />
excessos. Aos negros que faziam pequenos furtos, os capatazes da<br />
fazenda e da fábrica de ferro tinham ordens para aplicar com parcimônia<br />
as chibatadas no tronco, a argola nos pescoço e a peia no pé.<br />
No entanto, Tisserand destacou, era regra geral que todos<br />
dormissem acorrentados. A diferença de Jean de <strong>Monlevade</strong> em<br />
relação a outros proprietários de escravos era a de que o próprio<br />
dono lhes havia ensinado a fabricar chaves para que se libertas-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
sem à noite! Escravos adestrados na indústria do ferro. Escravos<br />
chaveiros!<br />
Os que o haviam acompanhado na caravana desde o Rio de<br />
Janeiro foram, exceto o Tião que, sabemos, mantivera-se ligado<br />
aos Freitas, compulsoriamente devolvidos a seus donos, após vencimento<br />
do contrato de aluguel. Na ocasião, como cortesia, Freitas<br />
presenteara-lhe com um bom de serviço, chamado Tomás. Um<br />
quase mulato muito esperto. Com tal sorte, <strong>Monlevade</strong> adquirira<br />
outro escravo, do sexo feminino, agora indicado por Martinho, e<br />
que a localizara em andanças pela região, a Isaura. O antigo dono<br />
aproveitava-se da pobre mulher e cobrou caríssimo pela venda de<br />
sua valiosa mercadoria. A escrava Isaura era de comportamento e<br />
beleza de se admirar. Tinha pose e altivez de princesa. Por fim, a<br />
dupla, força das circunstâncias, envolveu-se, e se casou. Não mais<br />
deixaram o filho do fidalgo Jean-François até o fim dos seus dias.<br />
<strong>Monlevade</strong> entendia do riscado, e ensinava as artes do trato<br />
com o ferro com a paciência que aprendera com seu estimado professor<br />
Duchamps. Era o único que tinha sob suas ordens escravos<br />
artesãos. Foi o que chegou aos ouvidos do imperador. A intendência<br />
real inclusive passou a comprar-lhe diversos itens de cavalaria e<br />
utensílios em geral para provimento de suas necessidades.<br />
Os pedidos de consultoria técnica também não cessavam. Aí<br />
é que demonstrava para a sociedade imperial toda sua inteligência<br />
e conhecimento. Executava-as com presteza e precisão tão<br />
logo tivesse ido ao local e pesquisado as variáveis a serem levadas<br />
em consideração. Os profundos conhecimentos de química e<br />
mineralogia, associadas à sua forte base matemática, exaustivamente<br />
trabalhada nos anos da xis, fizeram com que sua fama se<br />
espalhasse por todos rincões da província.<br />
É por isso que foi convidado por indicação de senador do<br />
império, em 1823, a fazer levantamento sobre as minas de galena,<br />
e suas proporções de chumbo e prata, na região do Abaeté. Ele já<br />
havia feito vários estudos desta natureza, mas decerto não se deve<br />
deixar de levar em consideração o peso do dedo de Souza Coutinho,<br />
o próprio Barão de Catas Altas. Ajudou-o por várias vezes,<br />
como anos antes o próprio <strong>Monlevade</strong> havia prognosticado. O pai<br />
por adoção de Clara Sofia cumpria magistralmente seu dever.<br />
O trabalho de Abaeté, além de tecnicamente perfeito, foi<br />
considerada autêntica obra literária. Foi algo precioso a mais e<br />
333
334 Jairo Martins de Souza<br />
a ser acrescentado em seu dossiê de estrangeiro francês que era<br />
guardado e mantido a sete chaves nos arquivos do império. Lá<br />
figurava, sem economia de elogios, o zelo que dedicava aos seus<br />
produtos, instalações e escravos.<br />
Em vista disso, Tisserand alegou que o próprio Monteiro Lobato,<br />
o festejado criador do sítio do pica-pau amarelo, o veria<br />
como perfeito exemplo do que pensava a respeito do papel e da<br />
sintonia que devem existir entre empresa, sociedade, empregados<br />
e lucro. <strong>Monlevade</strong> deixou raízes poderosas neste sentido!<br />
E, a despeito de toda sua intensa atividade, sempre conseguia<br />
algum tempo livre para visitar Clara Sofia. Dentro do velho<br />
estilo francês, sempre lhe trazia pequenos presentes e flores. A<br />
moça se encantava mais e mais com os bons modos e a educação<br />
do noivo. Amava-o.<br />
Era neste clima ameno, e recheado de carinho e respeito, que<br />
namoravam em varandas, e caminhavam lado a lado em pequenas<br />
estradas rurais. À noite, a Lua iluminava os seus caminhos.<br />
Faziam planos e, respeitosamente, imaginavam o futuro. Com um<br />
detalhe. Clara Sofia jamais mencionara a possibilidade de um dia<br />
cruzarem o oceano para que ela conhecesse a terra do amado.<br />
Como todas as mulheres que haviam passado pela vida de <strong>Monlevade</strong>,<br />
temia não suportar tão longa viagem. As ondas marítimas<br />
em alto-mar causavam pavor aos viajantes, foi o que eventualmente<br />
ouvia falar de amigos que haviam ousado enfrentar a situação.<br />
Chegam normalmente a quase três metros e ameaçam<br />
arrastar os que se encontram no convés...<br />
O que não representava possível atrito entre os amados. Jean<br />
não pensava também em retornar à França. Passara a ser chamado<br />
de capitão, mesmo não tendo a devida patente. Gostava da tal<br />
promoção de cortesia!
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
XI<br />
A festa de casamento na Setecentista.<br />
A nova fábrica de ferro<br />
Este namoro está excessivamente longo, o empresário de minérios<br />
e de ouro João Baptista Ferreira Chichôrro de Souza Coutinho<br />
comentou com a mulher. Ele ainda não havia recebido o título<br />
de barão de Catas Altas, mas tinha riqueza e fama equivalentes<br />
às de um Eike Batista dos dias de hoje, Tisserand assinalou.<br />
A família toda está comentando... de minha parte gosto muito<br />
do engenheiro <strong>Monlevade</strong>, principalmente de suas competências,<br />
mas julgo ser tempo de voltar a conversar com ele sobre agenda<br />
de casamento. Já usei contatos e procurei ajudá-lo, e o ajudei,<br />
em várias ocasiões. E não me arrependi. Confesso que o retorno<br />
foi magnífico com respeito às minhas relações com o governo.<br />
Ganhei prestígio a mais. Também tenho notícias constantes de<br />
que seus negócios prosperam, enfim, nossa Clarinha é paciente<br />
e sabemos das intenções do noivo... no entanto, creio passar da<br />
hora de tomar algumas providências: esses europeus!<br />
Concordo, marido, respondeu-lhe a mulher que ouvia pacientemente<br />
as preocupações de João Baptista.. Faça o que seu<br />
coração comanda, independente de qualquer comunicação à menina<br />
Clara Sofia.<br />
Dito e feito. João <strong>Monlevade</strong> sabia que a cultura das famílias<br />
mineiras tinha certa aversão a circunstâncias que julgava corriqueiras,<br />
mas concordou sem maiores restrições. Não podia também<br />
deixar de levar em conta a verdadeira adoração que tinha<br />
pelos bolinhos de fubá que dona Mariana Perpétua, a mãe de<br />
Clarinha, a venerável viúva do capitão José Álvares da Cunha<br />
Porto, preparava-lhe com toda a consideração e cuidados. Casase<br />
não somente com a mulher. Casa-se com a família e, principalmente,<br />
com a sogra.<br />
335
336 Jairo Martins de Souza<br />
Apenas solicitou tempo para mobiliar mais adequadamente<br />
seu solar em Piracicaba e receber cartas de retorno do recebimento<br />
dos convites que enviara para a mãe e os irmãos François e<br />
Maria Vitória. Não os via há dez anos, quem sabe decidissem vir<br />
até o Brésil.<br />
Daí o tempo se arrastou. Cinco meses depois recebeu respostas<br />
praticamente simultâneas, vindas da França, em que o irmão e<br />
a irmã pesarosamente diziam da impossibilidade de comparecer.<br />
A mãe, Felicité, enviou-lhe linhas amorosas, dedicando-lhe votos<br />
de felicidade e breve chegada de netos. Não poderia também vir<br />
até sítio tão distante. A saúde precária não suportaria. Aguardava<br />
visita do filho...<br />
Da França havia assuntado também Duchamps, a família<br />
Pius, e o abade Ribérry. Somente Lucillia Pius respondeu-lhe a<br />
tempo. O marido Septimus havia morrido e ela estava praticamente<br />
de saída deste mundo. Desejou-lhe felicidades.<br />
No entanto confirmaram presença tanto Zavoudakis e esposa<br />
quanto os velhos amigos Platini e Fontaine. Os marinheiros ocasionalmente<br />
estariam no Rio por bom período. Nestas circunstâncias,<br />
o casamento ficou ajustado para 04 de janeiro de 1827. O<br />
dote da moça alcançaria a cifra de 80 contos de réis. Com isso,<br />
Tisserand esclareceu, compravam-se dezenas de quilos de ouro!<br />
Os convidados, após o casamento a ser realizado na igreja matriz<br />
de Caeté, seriam ricamente recebidos na Casa Setecentista. Várias<br />
figuras de importância da província, inclusive o governador,<br />
estariam presentes. Baptista Coutinho prometia realizar uma autêntica<br />
festa de arromba, era voz corrente que sofria irremediavelmente<br />
da grave doença do perdularismo. Ele havia vendido a<br />
mina de ouro de Gongo Soco dois anos antes, mas continuava<br />
como um dos homens mais ricos da província. A casa prometia<br />
estar cheia de convivas. O antigo sacristão de Catas Altas era,<br />
sobretudo, um exibicionista!<br />
Com a perspectiva de formação de família própria e, de certa<br />
forma, alheio aos preparativos festivos do matrimônio, <strong>Monlevade</strong><br />
havia tomado importante decisão de comum acordo com Clara<br />
Sofia. Usaria o dinheiro do dote da futura mulher, e criaria uma<br />
verdadeira indústria metalúrgica. Padrão para todas as demais<br />
que viessem a se instalar nas terras do Brasil. Encomendaria equipamentos<br />
ingleses de reconhecida qualidade! Descortinavam-se<br />
novos momentos de sucesso para sua indústria.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Sete mil quilos é muito peso, Jean! Foi Martinho quem afirmou-lhe,<br />
preocupado. Em termos de transporte oceânico não é<br />
de assustar, mas como trazer os equipamentos do Rio de Janeiro<br />
até o Piracicaba? Por meio de estradas é tarefa impossível, Jean<br />
respondeu-lhe. A ideia é usar vias fluviais, a partir da capitania<br />
do Espírito Santo. Já estudei a logística contando com suporte<br />
de Marlière, um grande entendido no assunto, e fiz o roteiro de<br />
navegação em água doce. O Rio Doce é a solução. Quanto à passagem<br />
por cachoeiras, criação de pontes provisórias e ultrapassagem<br />
de outros obstáculos naturais, há que se ver. Vou pedir ajuda<br />
ao exército imperial. Os militares são bons neste tipo de empreitada...<br />
além disso, posso contar com Platini e Fontaine. Vou tentar<br />
convencê-los quando vierem ao meu casamento com Clara Sofia.<br />
Estamos em 1826, Tisserand avisou-me.<br />
Entendi seu recado. O estrangeiro, como de hábito, certamente<br />
faria breve contextualização dos dois grandes momentos<br />
que <strong>Monlevade</strong> passava. Os planos de casamento, filhos e o nascimento<br />
de um novo momento industrial do ferro no Brésil.<br />
Então ele prosseguiu relatando que desde que <strong>Monlevade</strong><br />
chegara ao Brasil, em 1817, muitas coisas haviam acontecido.<br />
E resumiu-as. Dom João VI havia retornado com sua corte para<br />
Lisboa em 1821. No mesmo ano Bonaparte morrera na ilha de<br />
Santa Helena, e o britânico Faraday havia apresentado o primeiro<br />
motor elétrico: <strong>Monlevade</strong> fora avisado por um dos seus pares de<br />
Paris. Um ano depois, o filho Pedro, de João VI, e que havia sido<br />
feito príncipe-regente quando de sua volta para Portugal, havia<br />
declarado a independência do Brasil.<br />
Nascia um novo país que respirava arejado pelas ideias das<br />
terras francesas. No entanto, tudo isso pouco, ou nada, fizera mudar<br />
na vida do engenheiro <strong>Monlevade</strong> em Minas Geraes. A exceção,<br />
com o passar do tempo, naturalmente foi a chegada da eletricidade<br />
a ser aplicada na indústria siderúrgica por meio de motores.<br />
A vida de nós todos é, sem que saibamos, Tisserand continuou<br />
um tanto quanto pensativo, influenciada por fatores externos<br />
que mal conhecemos. Por exemplo, os efeitos resultantes das<br />
ações secretas da maçonaria francesa naqueles grandes acontecimentos<br />
nacionais. A recusa de <strong>Monlevade</strong> em tornar-se um daqueles<br />
pedreiros fê-lo ausente de tais eventos. O convite viera do<br />
Rio e a recusa bem entendida pelos emissários. <strong>Monlevade</strong> estava<br />
fisicamente fora da localização de lojas maçônicas.<br />
337
338 Jairo Martins de Souza<br />
Mas voltemos a alguns detalhes do casamento: o padrinho de<br />
Clara Sofia pensava alto. O chefe da cozinha real de Pedro I fora<br />
convidado, a peso de ouro, a coordenar as atividades culinárias<br />
do evento. O rei o havia liberado sem restrições, pois sabia do<br />
poder financeiro do empresário mineiro. Na realidade, a ideia era<br />
convocar o famoso Antonin Carème que tivera sob sua responsabilidade<br />
o banquete de celebração do sempre lembrado congresso<br />
de Viena em 1815. Foi o que recompôs o mapa e o poder das<br />
monarquias europeias!<br />
Decerto o senhor pensa que estou novamente exagerando<br />
quanto às excentricidades de Catas Altas, Tisserand chamou-me a<br />
atenção. Havia notado com absoluta razão o meu ar de descrédito.<br />
Mas Baptista Coutinho não era somente conhecido, em várias<br />
partes do mundo, pelas riquezas do ouro da mina de Gongo Soco<br />
como também pelo comportamento perdulário que já comentei.<br />
E, na realidade, o grande empecilho para a ausência do primeiro<br />
grande cozinheiro francês foi o próprio, e riquíssimo, barão de<br />
Rothschild. Carème, na ocasião, estava a serviço exclusivo do homem<br />
mais rico do mundo, e que não permitiu sua ausência por<br />
tão longo período.<br />
Em compensação, além do cozinheiro real, também seguiriam<br />
para Caeté camareiros imperiais especializados em coordenação<br />
de grandes eventos. E, como deferência especial ao noivo,<br />
o cardápio consistiria de comidas francesas e mineiras selecionadas<br />
criteriosamente. Bem equilibradas, e em mesas ricamente<br />
adornadas com enfeites dignos de casal da realeza. Muitas flores.<br />
Até mesmo os escravos e serviçais foram premiados com refeições<br />
especiais à base de feijão e carnes diversas. Feijoada e churrascos<br />
na brasa. Muito foguetório e fumaça de pólvora queimada.<br />
Nestas bases, Tisserand comentou, a festa foi coroada de êxito...<br />
A imensa cama de casal de Baptista Coutinho mal cabia a<br />
quantidade de presentes que, por este motivo, estavam sendo organizadamente<br />
esparramados pelo quarto de dimensões também<br />
extravagantes. O irmão François enviara-lhe da França pequena<br />
placa de bronze com o brasão dos Dissandes de <strong>Monlevade</strong> gravados<br />
em ouro. Mal sabia, Tisserand adiantou que, no futuro, sua filha<br />
casar-se-ia com o filho do irmão que se encontrava tão distante!<br />
Zavoudakis, além de pequeno constrangimento que explico<br />
em breve, trouxe-lhe livros de qualidade. Por sua vez, Platini e
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Fontaine presentearam-lhe com dois pequenos bustos de capitão<br />
de quepe e charuto comprados na cidade de São Salvador, na<br />
Bahia. Conversaram muito. Meu casamento não vai ser do tipo<br />
grego, <strong>Monlevade</strong> brincou, em que o homem é a cabeça e a mulher<br />
o pescoço, qual seja, vira a cabeça do seu amado para onde<br />
lhe aprouver. O combinado era construção de família a dois. Ela<br />
dirigindo a cozinha e a casa, e ele cuidando de buscar dinheiro na<br />
indústria do ferro e outros afins. As gargalhadas ecoaram pelo salão.<br />
O ditado é o mesmo aqui também no Brésil: o homem nasce,<br />
cresce, fica bobo e casa.<br />
O enxoval da noiva foi absolutamente enriquecido com dezenas<br />
de roupas feitas e gravadas a mão com as iniciais dos nomes<br />
dela mesma e do noivo, CJ. E, mesmo a contragosto de Jean,<br />
toda a província e a sede do governo tomaram conhecimento da<br />
pompa com que foram realizadas as cerimônias nupciais. O imperador<br />
Pedro I não pôde comparecer por fortes razões não explicadas<br />
em carta, de próprio punho, que enviou a <strong>Monlevade</strong>. Não<br />
disse sobre suas crises de epilepsia que estavam se tornando cada<br />
vez mais frequentes. Bastou-lhe citar o luto pela morte recente da<br />
esposa, a imperatriz Maria Leopoldina, que havia partido para a<br />
eternidade em dezembro do ano próximo passado. Não viajaria!<br />
Mas mandaria representação na pessoa do importante Ministro<br />
da Fazenda Imperial, o marquês de Queluz, etc. e tal.<br />
339
340 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
XII<br />
Amigo é para todas as horas. <strong>Monlevade</strong> faz pedido especial<br />
a Platini e Just Fontaine<br />
A festa do matrimônio de Jean de <strong>Monlevade</strong> e Clara Sofia foi<br />
também, como ocorre usualmente em grandes celebrações, evento<br />
de negócios e acordos. Inclusive entre amigos, pois, em um<br />
dos salões, <strong>Monlevade</strong> estava radiante com a presença dos amigos<br />
Zavoudakis, Platini e Fontaine e, animadamente, convidava<br />
os dois últimos para coordenar transporte de importante carga<br />
que planejava receber nos próximos meses no porto do Rio. Zavoudakis<br />
era o único que tinha companhia feminina. Veio com a<br />
esposa francesa que, ao ser apresentada a <strong>Monlevade</strong>, enrubesceu<br />
levemente. Não houve qualquer tipo de desdobramento, mas<br />
ambos se recordaram do inesquecível fim de tarde em que estiveram<br />
juntos na casa carioca de Freitas. Anos haviam se passado,<br />
e... bem, entenderam a situação com a dignidade de caráter que<br />
eram portadores: as cenas de amor desfrutadas foram imediatamente<br />
jogadas para algum local intocável de suas memórias. De<br />
sua parte, Jean, passada surpresa de tão inesperado reencontro,<br />
seguiu dizendo aos amigos que os pesados equipamentos siderúrgicos<br />
deveriam ser levados, tão logo chegassem, diretamente para<br />
São Miguel do Piracicaba. Tarefa difícil.<br />
Já lhe disse ligeiramente sobre o tema, Tisserand lembroume.<br />
<strong>Monlevade</strong>, na ocasião, já tinha como certa a colaboração<br />
dos dois amigos para solucioná-lo.<br />
Eles que, não habituados ao uso de trajes de luxo, estavam<br />
um tanto quanto atrapalhados, e ouviam atentamente o antigo<br />
menino que, por sua vez, em tempos passados os ouvira assentado<br />
em saco de batatas. Após alguns copos de vinho, a emoção<br />
crescia ao lembrarem aqueles bons tempos. Estamos, caros amigos,<br />
perante vida nova... o que passou, passou!<br />
341
342 Jairo Martins de Souza<br />
Aceitaram a missão de coração aberto. Ainda que a princípio<br />
um tanto temerosos pela falta de experiência com navegação fluvial<br />
em águas onde poderiam encontrar animais ferozes e índios<br />
antropófagos. Não. Desses não há mais, Jean garantiu-lhes. O<br />
governo de Dom Pedro tem agido energicamente neste sentido.<br />
A situação mudou mais ainda quando Jean disse-lhes que<br />
contariam com ajuda preciosa do capitão Guido Marlière, antigo<br />
tenente do Regimento de Cavalaria da província de Minas Geraes,<br />
e atual diretor-geral dos índios.<br />
O francês Marlière, Tisserand esclareceu, pode ser entendido,<br />
em tempos recentes, como uma perfeita mistura entre os irmãos<br />
Villas-Boas e o marechal Cândido Rondon.<br />
E, sendo assim, os dois amigos fariam viagem totalmente<br />
orientada por homem que, além de conhecer bem o trajeto marítimo<br />
do Rio até a vila de Vitória, dar-lhes-ia suporte garantido<br />
por órgãos oficiais. E teriam na retaguarda ninguém menos que<br />
João Diogo Sturz, um profundo conhecedor de todo o leito do<br />
Rio Doce.<br />
Daí, saindo dele, chegar ao Rio Piracicaba e ao distrito de<br />
São Miguel aconteceria, se tudo desse certo, num longo piscar de<br />
olhos. Sturz, inclusive, <strong>Monlevade</strong> comentou, é meu sócio nesta<br />
empreitada. Temos contrato de premiação, caso a carga chegue a<br />
salvo e a tempo: uma espécie de seguro de viagem e transporte.<br />
Tais informações não foram suficientes para acalmar a alma<br />
de Platini. Ele buscou saber e analisou, principalmente, a ficha<br />
técnica de Marlière tal como fazia quando da contratação de seus<br />
marinheiros.<br />
Guido Marlière. Francês radicado no Brésil. Bom trânsito junto<br />
aos índios da província do Espírito Santo. Em 1811, apontado<br />
Tenente agregado do Regimento de Cavalaria de Minas. Acusado<br />
e preso injustamente como espião de Bonaparte. Absolvido posteriormente<br />
e premiado como Comandante da Colonização da<br />
Bacia do Rio Doce. Estudou a navegabilidade do grande rio que<br />
vazava de Minas ao Atlântico na província do Espírito Santo.<br />
Aprovado! O homem é dos nossos. Foi o que disse para Fontaine,<br />
após receber relatório encomendado a um contato que fizera<br />
no Rio.<br />
Quanto aos dados de Sturz, não obteve nenhuma informação<br />
detalhada. Nem do engenheiro Lenoir, que foi indicado à últi-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
ma hora para acompanhamento técnico e zelo pelo manuseio dos<br />
equipamentos. A despeito disso, concluíram que estas circunstâncias<br />
não deveriam significar motivos para preocupações. Ambos<br />
foram indicados pelo próprio Jean. Podemos ficar tranqüilos!<br />
Enquanto isso, Tisserand observou, os produtos da fábrica<br />
de ferro já eram classificados os melhores do mercado nacional, e<br />
vendidos muito além das fronteiras das províncias de São Paulo<br />
e Goiás. Jean mantinha pesada estrutura de propaganda. Distribuía<br />
calendários e folhinhas fartamente espalhados pelas ferrarias<br />
e lojas de comerciantes varejistas do ramo, inclusive armazéns.<br />
Em qualquer boteco, achava-se banha de porco e ferramentas<br />
oriundas da fábrica de ferro e da fazenda de <strong>Monlevade</strong>.<br />
Seus escravos e feitores riam quando seu capitão lhes dava<br />
exemplos de como fazer com que a indústria desse lucro. Alguns<br />
deles choraram de rir quando <strong>Monlevade</strong> disse-lhes o porquê de<br />
comerem mais ovos de galinhas do que das patas. As galinhas<br />
avisam quando o produto está pronto, explicou!<br />
A fundição <strong>Monlevade</strong> fabrica as melhores ferraduras, cravos...<br />
As festas religiosas da região eram destacadas nas folhinhas<br />
da fábrica. E as ilustrações à base de gravuras de santos e madonas,<br />
e do menino Jesus, ficavam a cargo do dedicado Martinho.<br />
Caso fossem desenhos técnicos de ferraduras, parafusos, etc.,<br />
Jean tomava para si a tarefa.<br />
Ele estava se tornando figura folclórica na província. Em termos<br />
práticos dizia, muito antes de Luther King, que os negros<br />
têm também direito a sonhos, enfim, desmentia alguns hipócritas<br />
escravistas que alegavam que sua mercadoria nem mesmo tinha<br />
alma. Tanto é assim que permitia cultos afros, mas, por meio de<br />
Martinho, não deixava de orientá-los sobre os princípios cristãos.<br />
Muitos se convertiam! Também era fato divulgado que lhes ensinava<br />
rudimentos de francês e não era raro que seus escravos<br />
fizessem entre si a saudação, bon jour! Bom dia!<br />
Mas, voltando aos novos investimentos feitos por Jean, não<br />
sei exatamente e não posso adiantar qual a função de tão pesados<br />
equipamentos na nova fábrica de <strong>Monlevade</strong>, Tisserand explicou.<br />
Apesar de saber, pelo menos é o que pude deduzir de suas notas<br />
que chegaram até Zavoudakis e daí... bem, o que se sabe é que o<br />
galpão situado nas proximidades da margem esquerda do Piracicaba<br />
teria que ser ampliado.<br />
343
344 Jairo Martins de Souza<br />
O vigário geral, reforço, não se dedicou a entrar em detalhes<br />
sobre a arte de trabalhar o ferro e a siderurgia. A ideia que tenho,<br />
e devido ao fato de, na nota de desembaraço na alfândega carioca,<br />
terem sido descritos como grandes objetos cilíndricos de ferro,<br />
é que eram destinados a transformar o ferro em chapas. Possivelmente<br />
laminadores! Imagino, Tisserand divagou (com expressão<br />
satisfeita de quem encontra solução para assunto desconhecido),<br />
o que os escravos das culturas agrícolas da fazenda de Jean<br />
pensaram ao ajudar a transportá-los para o edifício da fundição.<br />
Por que máquinas tão pesadas para amassar mandioca? Já não<br />
temos aqui polvilho suficiente? O capitão <strong>Monlevade</strong> definitivamente<br />
perdeu o juízo!
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
XIII<br />
Não é fácil manter negócios entre as montanhas das Minas<br />
Geraes. O agora capitão <strong>Monlevade</strong> amplia a fábrica de<br />
ferro que leva o seu nome<br />
Nunca fui dado às artes da pesca. Nem oceânicas nem fluviais,<br />
Tisserand prosseguiu, mas temo aumentar o episódio que vou<br />
lhe relatar. É história somente de quem a viveu contar para os<br />
netinhos. Na realidade parece relato de pescador, pois desde o<br />
porto inglês de Dover até o Rio de Janeiro, aconteceram inúmeras<br />
peripécias. Foi longuíssima. Não posso dizer que foram vistos<br />
monstros marítimos nem baleias assassinas, mas as viagens transoceânicas,<br />
como de praxe, não deixavam saudades em quem<br />
as fazia. À custa disso que Lenoir, o engenheiro responsável pela<br />
encomenda, benzeu-se e agradeceu a Deus ao vislumbrar a baía<br />
da Guanabara. Sua angústia havia se iniciado com as inúmeras<br />
dificuldades de colocar os equipamentos dentro do navio que os<br />
trouxe. Oh, coisa de difícil manuseio!<br />
Até então tudo está absolutamente correto, juro-lhe ser assim,<br />
ainda é Tisserand quem diz, mas a situação ficou realmente<br />
preta quando, após atenções burocráticas, a desajeitada carga foi<br />
liberada para transporte do Rio para o interior de Minas. Mais exatamente<br />
para a fábrica de ferro <strong>Monlevade</strong>, à atenção do monsieur<br />
Jean Antoine Felix Dissandes de <strong>Monlevade</strong>. O capitão <strong>Monlevade</strong>.<br />
Não no trecho marítimo em águas nacionais, Tisserand corrigiu,<br />
pois, com Platini ao lado de homem bom conhecedor da costa<br />
Rio-Espírito Santo, a carga seguiu tranquilamente até a vila de<br />
Vitória, que foi ponto de apoio para reabastecimento e descanso<br />
da tripulação. Conforme recomendação de Martinho, os amigos<br />
de <strong>Monlevade</strong> visitaram o Convento da Penha na bela localidade<br />
de Vila Velha. Lá fizeram orações e encomendaram bons presságios<br />
para a perigosa viagem que empreenderiam após chegada<br />
345
346 Jairo Martins de Souza<br />
ao porto fluvial de Linhares: já estamos falando diretamente das<br />
águas do Rio Doce.<br />
Não mais viajavam em embarcação marítima, mas em canoas<br />
de porte exclusivamente construídas por agente designado<br />
pelo império o qual, já disso tomamos conhecimento, prestaria<br />
suporte à expedição. A troca havia sido feita a duras penas em Linhares,<br />
e o capitão Marlière estava dedicando máximo empenho<br />
ao cumprimento da sua missão.<br />
As ordens imperiais foram expressas... o empreendimento<br />
do engenheiro <strong>Monlevade</strong> é de máxima importância para a vida<br />
industrial da província! Foi o que lhe foi dito diretamente pelo<br />
governador em seu paço de Vila Rica.<br />
Sua missão, prezado Marlière, é levar a bom termo os preciosos<br />
laminadores até Antônio Dias. De lá seguirão para a fábrica de<br />
monsieur <strong>Monlevade</strong> em carros de boi ou no lombo de escravos...<br />
Tudo na vida pode ser facilmente resumido em poucas palavras,<br />
Tisserand comentou. Posso dizer somente que foram noventa<br />
dias. Noventa dias foi quanto durou a arriscada expedição<br />
que, em linha reta, seriam em torno de quinhentos quilômetros. A<br />
primeira do gênero no Brésil.<br />
Olhei-o com interesse, considerando o seu modo de dizer<br />
tornado abruptamente introspectivo. Ele continuou sua fala, aparentemente<br />
não tomando conhecimento da minha estranheza, e<br />
disse que tinha outros exemplos para indicar como as palavras<br />
reduzem as coisas. Napoleão invadiu Portugal e fez com que Dom<br />
João fugisse para o Brasil. Jesus foi crucificado pelos judeus por<br />
ser considerado um revolucionário em potencial. Ronaldo Nazário<br />
teve mal súbito passageiro e o Brasil perdeu a copa de 1998...<br />
Quanta leviandade, acrescentou consternado! Não se fala do<br />
sofrimento do povo português que perdeu sua cabeça pensante.<br />
Não se fala da dor de cravos de ferro enterrados na pele nua das<br />
mãos e dos pés do Salvador. Não se fala do choque narcísico que<br />
acometeu a alma dos brasileiros...<br />
O mesmo posso dizer da aventura de Lenoir, Marlière, Fontaine<br />
e Platini. Pois ela envolveu várias divisões do exército imperial<br />
com ajuda inimaginável dos índios Botocudos e material de<br />
apoio. Foram transpostas cachoeiras, incontáveis perigos de doenças<br />
e obstáculos naturais até que um dos emissários de <strong>Monlevade</strong><br />
os localizasse nas proximidades de Antônio Dias. A imprensa<br />
da província comemorou o feito, e celebrações e missa de Ação
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
de Graças foram feitas tanto no solar <strong>Monlevade</strong> quanto no Paço<br />
da Província em Vila Rica. Martinho imediatamente comunicou<br />
chegada aos monges capixabas do Mosteiro de Nossa Senhora<br />
da Penha. Vossas preces foram preciosas!<br />
Antes disso, mesmo que a vida seguisse sua rotina corriqueira<br />
na fazenda e na fábrica, Jean enviava, semanalmente, emissários<br />
que procuravam saber do andamento da viagem. Cruzavam-se<br />
entre si e faziam passagem de carta de posto a posto. O governo<br />
de dom Pedro, os índios Botocudos... Aí que está! A preocupação<br />
era grande pelos perigos da empreitada. O Rio Doce era o único<br />
caminho para se transportar sete mil e quinhentos quilos de ferro.<br />
Não havia estradas!<br />
Foi aí que Tisserand esclareceu que, ao longo dos anos, Jean<br />
praticamente implorou ao governo imperial pela construção, em<br />
linha reta, de estrada que ligasse Minas à saída marítima da província<br />
do Espírito Santo. Morreu sem vê-la!<br />
Mas ficou extremamente feliz ao reencontrar-se com Platini<br />
e Fontaine. Não esperou que chegassem até seu solar e foi ter<br />
com eles às margens do Rio Doce. Ele, elegantemente vestido;<br />
os outros, barbudos e sujos. Abraçou-os fortemente e agradeceu<br />
dizendo, agora é por conta do nosso pessoal de terra. Vamos diretamente<br />
para o solar <strong>Monlevade</strong>. Clara Sofia nos espera; a hora<br />
é de celebração!<br />
Em poucos dias os equipamentos estavam montados e em<br />
funcionamento. A fábrica de <strong>Monlevade</strong> subia mais um degrau de<br />
prosperidade e tornava-se cada vez mais famosa em todos os pontos<br />
do império. O engenheiro francês havia vencido nos trópicos!...<br />
No entanto, nem tudo na vida são flores, Tisserand disse-me.<br />
Jean de <strong>Monlevade</strong> tinha um grande inimigo que morava no coração<br />
do governo do império português. A competição desleal<br />
dos produtos ingleses, estranhamente privilegiados pela política<br />
de Pedro, o príncipe-regente. Isso fazia-o sair do sério! Houve<br />
ocasiões em que pensou desistir!<br />
E não é que não estivesse ficando bastante rico. Estava. A<br />
renda da fábrica era-lhe de boa lucratividade. É que via na política<br />
imperial um grande obstáculo para a indústria do ferro no Brésil!<br />
Bem conduzida, dizia, a nação poderia alimentar todo o mundo<br />
com produtos de qualidade excepcional. Razões não faltavam.<br />
O solo é rico, os mineiros são inteligentes e jeitosos, os escravos<br />
poderiam ser facilmente treinados...<br />
347
348 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
XIV<br />
Esse menino tem a cara do avô! Nasce o neto brasileiro do<br />
fidalgo de Guéret<br />
Após a belíssima festa que havia sido dada por Baptista Coutinho,<br />
Jean e Clara Sofia partiram em lua-de-mel. Estavam radiantes.<br />
É bem verdade que a moça um tanto temerosa. Do seu corpo,<br />
até então, o noivo vira-lhe somente os tornozelos. Clarinha sabia<br />
ser bonita e atraente, mas não conhecia bem as consequências<br />
da cama de casal. Preocupava-lhe principalmente a de dormir<br />
ao lado de um homem. Dona Maria Perpétua não a orientara:<br />
naqueles dias não se tocava no assunto sexo com as filhas.<br />
O resultado disso, Tisserand comentou, é que a mãe, antes<br />
da subida da filha na carroça para acompanhar até o final dos<br />
seus dias ao marido francês, disse-lhe. Clara. Clarinha, leve esse<br />
santinho com você. Não o deixe em momento algum. E aí, minha<br />
santa, se na hora H você não gostar, feche os olhos. Feche os<br />
olhos, minha filha, e reze a Nosso Senhor...<br />
Foi uma das razões pelas quais o casamento demorou quinze<br />
dias para ser consumado. Jean era paciente e, no final, amaramse<br />
com a delicadeza, o respeito e o entusiasmo de quem se casou<br />
por amor verdadeiro.<br />
E não demorou para que o antigo aluno da xis escrevesse<br />
para os irmãos e a mãe, informando-lhes ser pai pela primeira vez<br />
em poucos meses. Um entusiasmado Zavoudakis, ao ser comunicado,<br />
imediatamente enviou-lhe livro da recém-surgida literatura<br />
infantil. Com isso, disse, tanto faz que seja menino ou menina. E,<br />
entre outras coisas, avisou, em tom ocasional, e dizendo-se conformado,<br />
não poder desfrutar o prazer da paternidade. Séverine<br />
Zavoudakis, à custa do seu passado, havia se tornado estéril...<br />
Jean emocionou-se, e condoído da desdita do amigo, mandoulhe<br />
em troca uma gravura em que o amigo grego aparece partici-<br />
349
350 Jairo Martins de Souza<br />
pando do batismo do bebê que iria nascer. Assim, indiretamente<br />
fazia-lhe convite para apadrinhar o filho: pensou servir-lhe como<br />
consolo e tornar-se-iam, definitivamente, além de amigos, compadres.<br />
Jean de <strong>Monlevade</strong> teve o prazer de ter ao seu lado no parto<br />
do filho – que também responderia como João, tal como o pai e o<br />
avô franceses – o doutor Ildefonso Freitas. O antigo companheiro<br />
dos tempos de estudante, em Paris, voltara fazia pouco tempo e<br />
estava decidido a exercer a medicina no Rio de Janeiro. Com o<br />
envelhecimento dos pais, e a pedido da família, mudou de ideia,<br />
e estabelecera-se como médico no Vale do Piracicaba. Foi nestas<br />
condições que atendeu à gravidez da esposa do amigo. Ao concluir<br />
o parto, disse para a negra que o assistia: esse menino tem<br />
a cara do avô!<br />
No ano seguinte, em 1829, Tisserand disse, a cena se repetiu.<br />
Ildefonso novamente exclamou, agora para a amiga Clara Sofia:<br />
Clarinha, esta menina tem a cara da avó!<br />
Do lado de fora do quarto, Martinho agradecia a Deus por<br />
mais essa graça.<br />
Jean e Clara Sofia não lograram êxito quanto aos planos de<br />
extensa família! Joãozinho e Mariana <strong>Monlevade</strong> foram seus únicos<br />
herdeiros. E o menino, assim como o pai, gostava de procurar<br />
e analisar pedras. E, ainda copiando o modelo paterno, eternizou<br />
gosto, iniciado desde tenra idade, de ter o seu cachorro buscador.<br />
O capitão Jean Antoine Felix Dissandes de <strong>Monlevade</strong> nunca<br />
deixara de ter o seu noir. O seu breu. Manteve sempre ao seu lado<br />
um vira-latas de cor preta bem treinado. Quando o Breu, o noir<br />
da vez, morria, ele arranjava um pequenino e o adestrava.<br />
Com isso não se esquecia dos dias de criança na distante<br />
Guéret que nunca voltaria a ver.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Epílogo<br />
O fundador da Fábrica de Ferro <strong>Monlevade</strong> morreu de causas<br />
naturais na madrugada de catorze de dezembro de 1872. Foram<br />
mais de oitenta anos de profícua existência.<br />
Na sala de visitas do Solar de sua fazenda, o povo e autoridades<br />
da Província renderam-lhe homenagens póstumas que perduraram<br />
por três longos dias. Muitos foram os que reverenciaram<br />
o cadáver, vestido a rigor, que repousava em caixão de jacarandá<br />
coberto por rosas e flores silvestres. Depois do seu fechamento,<br />
foi revestido com as bandeiras da França e do Brésil. E todos<br />
entenderam o pedido de dona Clara de passar os derradeiros<br />
momentos com o marido somente na presença dos parentes e<br />
amigos mais íntimos. Martinho emocionou-se ao fazer a oração<br />
que antecedeu a primeira pá de cal. <strong>Monlevade</strong>, conforme seu<br />
próprio desejo, foi enterrado na parte central de pequeno cemitério<br />
mandado construir por ele mesmo como última morada para<br />
seus escravos.<br />
Quem sabe um dia decida-se que suas cinzas sejam retiradas<br />
e colocadas em panteão municipal. Na França se faz assim!<br />
Se há, no fogo que arde no inferno, alguma forma de se jogar<br />
uma pitada do bem, Jean de <strong>Monlevade</strong> procurou fazê-lo. Duchamps,<br />
Ribérry e o fidalgo Jean-François, seu pai, foram seus mestres.<br />
É por isso que, na condução feita a pé até seu destino final,<br />
alguns dos seus escravos suplicavam para prestar derradeira ajuda<br />
ao seu amado senhor.<br />
Passados alguns meses, o quase octogenário Martinho decidiu<br />
voltar para a França. Disse também ter cumprido sua missão no<br />
Brésil e deixou para trás, bem encaminhados, a mulher e os filhos.<br />
Lá procurou exaustivamente, ao longo dos anos finais de sua<br />
vida, mas não conseguiu localizar os irmãos dos quais se separara<br />
no inesquecível dia do sorteio. As imagens nunca haviam desaparecido<br />
de sua cabeça. Finalmente, quando convocado pelas<br />
351
352 Jairo Martins de Souza<br />
“E todos entenderam o pedido de dona Clara de passar os<br />
derradeiros momentos com o marido somente na presença dos<br />
parentes e amigos mais íntimos...”.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
trombetas celestiais, foi enterrado com honras eclesiásticas no cemitério<br />
de Saint-Sulpice-le-Guérétois.<br />
Platini acabou por casar-se com uma filha de escravos que<br />
trabalhavam no Solar <strong>Monlevade</strong>. Dizia, sorridente, que cavalo<br />
velho precisava de capim novo. Levou-a para a França e dele não<br />
se teve mais notícia.<br />
Fontaine retornou a vida de marinheiro e morreu afogado<br />
quando cruzava rios amazônicos. O acidente aconteceu na mesma<br />
ocasião em que lá perdeu a vida um dos filhos de Nicolas<br />
Taunay: um dos artistas franceses da Missão de 1816.<br />
Zavoudakis? Zavoudakis, como disse-lhe, não teve filhos e deixou<br />
toda sua correspondência com Jean <strong>Monlevade</strong> aos cuidados<br />
dos descendentes de François. Foi das mãos destes últimos que alguns<br />
fatos chegaram ao conhecimento de Leopold, o vigário geral.<br />
O resto é história conhecida, Tisserand disse. Possivelmente<br />
devem ter sido escritas versões refinadas, e verossímeis, sobre<br />
a vida do engenheiro francês na região do Piracicaba. E nelas,<br />
acredito, deve ter sido incluído, e disso não se pode duvidar, que<br />
manteve estreitos laços de amizade com a família do amigo Freitas<br />
até o fim dos seus dias. O mesmo vale para sua cultura, elegância,<br />
autoridade e fineza no trato com os familiares, escravos e<br />
empregados. Poderiam ser declamados em verso e prosa.<br />
Lamentavelmente, pouquíssimo foi salvo pela comumente<br />
infalível tradição oral.<br />
Mas nada disso impediu que se tornasse figura quase lendária<br />
na siderurgia nacional.<br />
A Missão Extraordinária saiu-lhe melhor que a encomenda.<br />
Pois, ainda que sob outras bandeiras, o brasão dos Dissandes de<br />
<strong>Monlevade</strong>, indiretamente, espalhou-se pelo mundo e prossegue<br />
sendo dignificado em todos os continentes em que se consome o<br />
aço com avidez. O velho fidalgo Jean-François ficaria orgulhoso<br />
do seu produto.<br />
A fábrica de ferro deu origem à famosa Companhia Siderúrgica<br />
Belgo Mineira. E que, por sua vez, fez gravitar, ao seu lado,<br />
a futura cidade batizada de João <strong>Monlevade</strong>. Justa homenagem!<br />
Após dizer isso, o estrangeiro, a quem eu decidira chamar Tisserand,<br />
levantou-se. Fazia horas que falava sem parar. Tinha os<br />
olhos ligeiramente molhados por lágrimas furtivas. Entendi, com<br />
dificuldade, que tentava dizer algo como ter, parcialmente, termi-<br />
353
354 Jairo Martins de Souza<br />
nado sua sina. Também, mon ami, disse-me, fui encarregado de<br />
dar cabo de uma missão!... Não com a importância da cumprida<br />
por Jean de <strong>Monlevade</strong>... bem, falta-me dizer algo para encerrála.<br />
Algo muito particular!...<br />
O ramo Bogenet da família Dissandes de <strong>Monlevade</strong> não havia<br />
se extinguido com a morte do vigário geral, conforme pressuposto<br />
pela comunidade de Guéret. Não no sangue. Ele, antes<br />
de abraçar a vida clerical, cometera um pecado do qual tardou a<br />
saber as sequelas.<br />
Tivera um filho sem nunca ter recebido o sacramento do matrimônio.<br />
O desajeitado coito, desfecho das sensações e carícias desenfreadas<br />
de dois adolescentes, havia acontecido em banco de carruagem<br />
velha e abandonada às margens do Creuse. Mal se conheciam. A<br />
mãe da moça, viúva e amargurada, assim que reparou no crescimento<br />
inesperado da barriga da filha, mudou-se da região. Leópold jamais<br />
soube da existência do seu fruto proibido, mas as imagens especialíssimas<br />
que o geraram jamais deixaram sua memória!<br />
Meu nome é Toujours La France Bogenet, por final me comunicou.<br />
O último dos Bogenet. E digo isso por ser celibatário por<br />
opção. Foi assim que vivi toda a minha vida e, em grande parte<br />
dela, somente com o nome da mãe da minha longínqua avó, que<br />
foi a moça que teve caso fortuito com o próprio vigário.<br />
Desde aquela tarde de amor insensato, mais de um século se<br />
passou. Foram muitas gerações.<br />
E minha ilusão é a de que o senhor, mon ami, tenha entendido<br />
que quem está diante de sua presença é o produto derradeiro<br />
daquele filho bastardo!<br />
E, mesmo sendo parente tão distante no tempo, por compaixão,<br />
solidarizo-me com Léopold Bogenet, o vigário geral. Imagino<br />
o sentimento de aflição que deve ter tomado conta do seu carcomido<br />
corpo ao se dar conta daquele nascimento, pouco antes de<br />
subir aos céus.<br />
Pois sua efêmera paixão da juventude havia comparecido ao<br />
seu leito de morte para vê-lo pela última vez! Na ocasião, a Igreja<br />
desmentira o acontecido. Mas o fato é que, do lado de fora da casa<br />
episcopal, era o seu próprio filho que aguardava a saída da mãe!<br />
Este homem, um legítimo Bogenet, nunca soube que o pai,<br />
a poucos passos de distância, estava por dar seu último suspiro.<br />
A boa notícia é que o velho vigário geral teve tempo suficien-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
te para modificar seus últimos desejos e anotações. E colocou seu<br />
infortúnio a descoberto, incluindo, às pressas, o pecado mortal<br />
que cometera.<br />
Assim escreveu que, após sua morte, os rascunhos dos seus<br />
escritos deveriam ser guardados pela diocese, a partir de extremado<br />
amigo de batina, e a serem entregues a parente mais idoso, e<br />
mais próximo de sangue, por extensíssimo número de anos a ser<br />
estipulado por seus superiores em Roma.<br />
Morreu pensativo, ciente que este longo tempo retardaria e<br />
encobriria tudo que escrevera, inclusive (aí está o seu castigo),<br />
coisas que o encantavam. A admiração que tinha pelo primo<br />
<strong>Monlevade</strong> seria obscurecida.<br />
Mas a estratégia de última hora levaria também ao esquecimento<br />
o seu infeliz ato de adolescente.<br />
Foram essas as razões, Toujours La France esclareceu, de,<br />
tanto tempo depois, ter sido escolhido pelos responsáveis do seu<br />
espólio, e de ter recebido o livrinho pelo correio. A partir daí, foi<br />
que decidi adotar o sobrenome Bogenet.<br />
E há anos procurava alguém como você, mon ami, explicou<br />
já com os olhos secos. O rosto voltara a ter a tranquilidade de<br />
sempre, mas não disse mais nada.<br />
Diante do seu silêncio, o meu sentimento foi o de que ele soubera<br />
antecipadamente ter achado, em mim, alguém que teria a<br />
paciência e a disponibilidade suficientes para escutá-lo com atenção.<br />
E, mais ainda, com amor no coração bastante para publicá-la<br />
a qualquer custo.<br />
Este estrangeiro não confiaria a qualquer um a história que o<br />
parente distante deixara.<br />
O silêncio que se seguiu confirmou minha impressão. Diante<br />
disso, emocionei-me e respondi-lhe que, de bom grado, faria<br />
cumprir seu desejo.<br />
Pediu-me prometer. E informou-me ser, de sua parte, o ato<br />
final. Seria suficiente um pequenino corte de gilete no braço de<br />
um e de outro. Juntaríamos as mãos. Depois misturaríamos um<br />
pouquinho de sangue em pequena pedra de minério de ferro. O<br />
símbolo das Minas Geraes e de <strong>Monlevade</strong>. Um simples e infantil<br />
ritual de irmãos de sangue. Concordei de imediato com a solicitação,<br />
mesmo explicando-lhe ser caso especial.<br />
Não procedo desta forma desde criança, disse-lhe...<br />
355
356 Jairo Martins de Souza
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
Post Scriptum<br />
Em 30 de Setembro de 2008, chegou até minha caixa de e-mails<br />
a seguinte mensagem escrita em língua francesa:<br />
“Bonjour, nous sommes désolés mais nous ne connaissons<br />
pas cette personne. Essayez peut-être auprès de la bibliothèque<br />
municipale de Guéret. Bonnes recherches. Le service accueil.”<br />
O jeito prático e direto, com que o texto fora escrito, propiciou-me<br />
fazer tradução sem maiores dificuldades: “Bom dia! Estamos<br />
desolados, mas não temos conhecimento sobre essa pessoa.<br />
Talvez consiga algo por meio da Biblioteca Municipal de Guéret.<br />
Boa pesquisa. Do serviço de Ajuda”.<br />
Não foi por acaso que tal correspondência havia chegado a<br />
mim. Era resposta a uma indagação que eu mesmo havia postado<br />
para a prefeitura da pequena cidade de Guéret, localizada na região<br />
do Limousin, departamento de La Creuse. O país é a França.<br />
Eu procurava informações!<br />
Pois foi nas belas paisagens do seu maciço central que havia<br />
nascido um dos “bandeirantes” do fabrico de ferro e aço no<br />
Brasil. Um dos nossos Fernão Dias Paes Leme da siderurgia. Seu<br />
nome completo é Jean Antoine Felix Dissandes de <strong>Monlevade</strong>. O<br />
João <strong>Monlevade</strong>.<br />
O fato é que eu havia escrito duas obras literárias ambientadas<br />
no município de João <strong>Monlevade</strong>, Minas Gerais. E, por questões<br />
de contexto, pouco mencionei sobre a vida do estrangeiro<br />
que possibilitara dar vida àquelas situações.<br />
Não é de se surpreender que, mais tarde, me sentisse na obrigação<br />
de prestar-lhe homenagem e agradecimento. Talvez uma<br />
pequena biografia. Para tanto, iniciei primeiros movimentos de<br />
pesquisa. Fiz busca virtual no mercado livreiro do Brasil. Nada.<br />
Nenhuma obra constava sobre a vida do eminente engenheiro de<br />
minas francês.<br />
A coisa evoluiu. E demorou pouco tempo para que tivesse<br />
357
358 Jairo Martins de Souza<br />
decidido a escrever, e publicar, biografia de Jean de <strong>Monlevade</strong><br />
que estivesse à altura do que representou para a indústria do ferro<br />
no nosso país. Daí o leitor pode imaginar quão frustrante foi, para<br />
mim, a resposta que fiz constar no início deste apêndice.<br />
Para minha boa fortuna, pouquíssimo tempo depois, tive conhecimento<br />
da existência de livro que teria alguns dados confiáveis<br />
sobre as origens e a família francesa de Jean de <strong>Monlevade</strong>.<br />
Água limpa se bebe na fonte!<br />
No caso, a de um escritor que detém diploma honorífico de<br />
cavaleiro da ordem das artes e das letras (chevalier de l’ordre des<br />
arts e des lettres). O francês Robert Guinot havia escrito, em 2005,<br />
um pequeno livro biográfico chamado “Jean De <strong>Monlevade</strong>: pionnier<br />
français de la sidérurgie Brésilienne” (Guénegaud, 2005).<br />
Li-o. Num piscar de olhos, concluí que estava diante de um<br />
personagem fascinante. Dadas as mesmas condições, <strong>Monlevade</strong><br />
poderia ter sido empresário do porte do espetacular Mauá!<br />
No entanto, nada é perfeito! Ao concluir a leitura, lembreime,<br />
com certa amargura, de que Einstein, em um dos seus comentários<br />
sobre o cotidiano, disse que, na vida, tudo que tem<br />
valor é inexoravelmente ligado a um preço. O que paguei foi o de<br />
confirmar definitivamente que muito pouco ficou registrado sobre<br />
a vida pessoal do, digamos assim, monsieur <strong>Monlevade</strong>.<br />
As informações do livro do écrivain Guinot são escassas. E,<br />
em termos de França, não há melhores disponíveis. Perderam-se<br />
com o tempo!<br />
Mas restou confirmado que Jean de <strong>Monlevade</strong> foi cidadão<br />
que teve formação técnica e humanista pesadíssimas! Pelos idos<br />
de 1809, havia estudado na escola de maior prestígio no mundo.<br />
A Polytéchnique de Paris. Depois teve breve passagem pela engenharia<br />
militar, e concluiu estudos graduando-se como engenheiro<br />
de minas. Foi nessa condição que veio para o Brasil.<br />
Polytéchnique! A menina dos olhos de Napoleão! Era famosa<br />
por ser de acesso dificílimo. E sem favores. O jovem Stendhal,<br />
recém-premiado com o primeiro lugar de matemática de Grenoble,<br />
e futuro grande escritor de O Vermelho e o Negro, foi um dos<br />
que, por perda de horário de provas, lamentou não ter tido oportunidade<br />
de vestir o uniforme de tão singular instituição.<br />
Tudo acima foi motivo bastante para que eu ficasse imaginando<br />
coisas. Quais teriam sido os colegas de <strong>Monlevade</strong> na clas-
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
se de 1809? Com quais gênios da época manteve contato direto?<br />
O geômetra Gaspard Monge? O físico Gay-Lussac? O filósofo Augusto<br />
Comte?...<br />
E minha ideia inicial mudara. Por absoluta impossibilidade,<br />
meu projeto não seria mais uma biografia! Passou para a decisão<br />
de escrever um romance sobre os anos mal conhecidos da vida<br />
do “fundador” do município mineiro de João <strong>Monlevade</strong>. No fundo,<br />
um recorte imaginário de sua vida na França, de suas ideias,<br />
e de suas relações. O mundo dos séculos dezoito e dezenove seria<br />
extremamente propício para tanto.<br />
Mas todo romance é inspirado em algo que o escritor vê ou<br />
sente. Uma pintura vista em museu que retrata cena bucólica do<br />
cotidiano da vida campestre, um perfume que suscita sensação<br />
reprimida, um crime ocorrido em rua escura...<br />
Inspirei-me no que poderia ter acontecido por trás das verdades<br />
relatadas por Guinot. Aí foi onde realmente dei asas à minha<br />
imaginação. O fato de Jean de <strong>Monlevade</strong> ter nascido em berço<br />
de fidalgo, e de ter cruzado a infância durante andamento da revolução<br />
francesa facilitaria mais ainda a tarefa. Os efeitos daquele<br />
duríssimo período foram sentidos em sua própria carne e família!<br />
No Brasil teve sua própria. Como vimos, casou-se, criou filhos<br />
e terminou seus dias no Vale do Rio Piracicaba<br />
A ocasião não poderia ser mais adequada. Pelos meus cálculos,<br />
gastaria 6 meses para escrevê-lo, portanto concluiria o livro<br />
em meados de 2009. Ano da França no Brasil!<br />
No entanto, já praticamente em março, e por motivos alheios<br />
à minha vontade, pouco havia avançado com meu projeto. Foi<br />
quando tomei uma autêntica ducha de água fria! Fiquei ciente<br />
de que um jornalista monlevadense havia sido encarregado por<br />
importante órgão de imprensa regional a elaborar, tal como de<br />
minha intenção, biografia romanceada de Jean de <strong>Monlevade</strong>!<br />
Minha mulher sorriu quando percebeu minha frustração momentânea:<br />
alguém havia se adiantado ao meu desejo. Não se<br />
incomode, disse-me, esqueceu-se que o cálculo diferencial foi<br />
alinhavado simultaneamente, e de forma avulsa, por Newton e<br />
Leibnitz?<br />
Tive que sorrir de volta pelo exagero da comparação. E decidi<br />
seguir em frente.<br />
359
360 Jairo Martins de Souza<br />
<strong>Monlevade</strong> merece ser romanticamente visto por mais de um<br />
par de olhos.<br />
Oxalá outros órgãos de imprensa, instituições públicas e privadas,<br />
assim como outros conterrâneos, decidam homenageá-lo<br />
da mesma forma.<br />
Antecipadamente, desejo-lhes um sincero bonne route!<br />
O autor<br />
Vitória, 05/7/2009.
Jean <strong>Monlevade</strong>, do Castelo à Forja<br />
361
362 Jairo Martins de Souza<br />
* * *<br />
Esse livro foi editado e impresso em papel<br />
Polen soft 80g/m 2 e Capa Triplex 250g/m 2<br />
pela Grafer Editora em 2009<br />
* * *<br />
Grafer Editora<br />
Rua: Fagundes Varella, 135 Soteco - Vila Velha - ES<br />
Tel.: 27 3219-3524 - email: grafer.editora@gmail.com