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ESCOLA DE FORMAÇÃO 2007 ESTUDO DIRIGIDO Caso do ... - Sbdp

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Leitura prévia:<br />

HC 73662-9/MG<br />

Relator: Marco Aurélio<br />

Introdução<br />

<strong>ESCOLA</strong> <strong>DE</strong> <strong>FORMAÇÃO</strong> <strong>2007</strong><br />

<strong>ESTUDO</strong> <strong>DIRIGIDO</strong><br />

<strong>Caso</strong> <strong>do</strong> estupro presumi<strong>do</strong><br />

Prepara<strong>do</strong> por Guilherme Martins Pellegrini<br />

|(Escola de Formação, <strong>2007</strong>)<br />

No caso em questão, foi impetra<strong>do</strong> Habeas Corpus no STF pedin<strong>do</strong> a soltura <strong>do</strong><br />

paciente, com base na alegação de que não estava consubstancia<strong>do</strong> o crime de<br />

estupro pelo qual foi acusa<strong>do</strong>. Tal crime é descrito no artigo 213, conjuntamente com<br />

o 224 <strong>do</strong> Código Penal, os quais dispõem:<br />

Art. 213. Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave<br />

ameaça:<br />

Pena: reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.<br />

Art. 224. Presume-se a violência, se a vítima:<br />

a) não é maior de 14 (quatorze anos)<br />

Boa parte da controvérsia <strong>do</strong> caso gira em torno da idade da vítima – ela tinha<br />

12 anos, apesar de aparentar ser maior de 14 anos, e <strong>do</strong> seu consentimento acerca da<br />

atividade sexual praticada com o maior de idade.


Atipicidade da norma e/ou princípio da liberdade<br />

Transparece, na ementa <strong>do</strong> julgamento, que a ordem de soltura foi concedida<br />

graças à ausência de configuração <strong>do</strong> tipo penal descrito nos artigos 213 e 224, alínea<br />

“a”, <strong>do</strong> Código Penal. Primeiramente, parece ser esse o principal argumento utiliza<strong>do</strong><br />

pelo relator Marco Aurélio para conceder a ordem <strong>do</strong> habeas corpus. Contu<strong>do</strong>, seu voto<br />

não se baseia somente nesse argumento. Ele diz que “(...) forçoso é concluir que não<br />

se verificou o tipo <strong>do</strong> artigo 213 <strong>do</strong> Código Penal”, mas, com relação à presunção de<br />

violência, opta por não fazer uma interpretação sistemática <strong>do</strong> código e opõe outros<br />

argumentos que não somente a atipicidade <strong>do</strong> tipo penal.<br />

Os trechos em que ele cita o consentimento da vítima, como no excerto no qual<br />

ela declara que “(...) manteve relação sexual com o réu na primeira vez que o<br />

conheceu; que tal relação sexual não foi forçada em hipótese alguma; que assim agiu<br />

porque pintou vontade (...)” ou posteriormente quan<strong>do</strong> o Ministro diz que a vítima<br />

manteve “(...) relações com o paciente por livre e espontânea vontade” parecem<br />

indicar que o voto de Marco Aurélio é basea<strong>do</strong> no princípio constitucional da liberdade<br />

(CF art. 3º, I e art. 5º, caput). Porém, Marco Aurélio não faz referência explícita a tal<br />

argumento. Só cita o termo quan<strong>do</strong> diz que “(...) o conceito de liberdade é tão<br />

discrepante daquele de outrora que só seria comparável aos que norteavam<br />

antigamente as noções de libertinagem, anarquia, cinismo e desfaçatez”.<br />

Com essas observações, o relator conclui que o artigo 224 cede à realidade e<br />

não deve ser aplica<strong>do</strong>, pois é anacrônico. Contu<strong>do</strong>, em outra passagem, admite que a<br />

presunção de violência não é absoluta e não se caracteriza quan<strong>do</strong> a vítima não<br />

aparenta ter quatorze anos. Esse trecho <strong>do</strong> voto, embora fortaleça a tese da concessão<br />

<strong>do</strong> habeas corpus, impõe uma dúvida sobre o fundamento principal <strong>do</strong> voto, o que leva<br />

a indagar:<br />

- Há contradição no voto <strong>do</strong> Marco Aurélio, visto que ele diz que “(...) não se<br />

configurou o crime <strong>do</strong> art. 213 <strong>do</strong> Código Penal” ao mesmo tempo em que faz<br />

considerações a respeito da livre vontade da vítima em praticar o ato sexual, o que<br />

excluiria a presunção de violência <strong>do</strong> art. 224?<br />

- Qual seria a razão de conceder o habeas corpus: (a) não aplicação <strong>do</strong> art. 224<br />

por ser contrário aos costumes ou (b) não configuração <strong>do</strong> seu tipo penal?<br />

- O que poderia ser concluí<strong>do</strong>, a partir <strong>do</strong>s argumentos de Marco Aurélio, a<br />

respeito de uma outra vítima que não aparentasse e não tivesse mais de quatorze<br />

anos e quisesse mesmo assim ter relações sexuais com um homem maior de idade que<br />

soubesse de sua precocidade?


Vinculação de direitos fundamentais entre particulares<br />

Francisco Rezek e Maurício Corrêa, juntamente com o relator, também admitem<br />

que o consentimento da vítima foi toma<strong>do</strong> como um argumento <strong>do</strong> voto, apesar de<br />

Maurício Corrêa dar maior ênfase à atipicidade da norma. Diante desses três votos,<br />

cabe verificar que se trata, implicitamente, de uma vinculação de direito fundamental<br />

entre particulares. Isso porque princípios constitucionais modificaram o entendimento<br />

da aplicação da norma infraconstitucional, que poderia estar em conflito com esses<br />

princípios. Nesse entendimento, os direitos fundamentais não necessitam da<br />

intermediação de uma norma infraconstitucional para produzir efeitos, ou seja, há<br />

vinculação de direitos fundamentais porque os ministros aplicam esses direitos<br />

diretamente da constituição, afastan<strong>do</strong> o entendimento tradicional da norma<br />

infraconstitucional. Tal vinculação ocorre no âmbito penal, que prima por uma<br />

legalidade formal mais rígida e não costuma admitir vinculação de direitos<br />

fundamentais diretamente pelo tribunal, sem a intermediação de uma lei. A principal<br />

questão que surge dessa constatação é:<br />

- o juiz poderia no caso, diretamente e contrarian<strong>do</strong> a lei, vincular direitos<br />

fundamentais entre particulares, seja basea<strong>do</strong> no princípio da liberdade ou da<br />

autonomia privada?<br />

Prevalência da realidade face à norma<br />

Ao la<strong>do</strong> da referida utilização <strong>do</strong>s princípios para julgar contra legem, é<br />

interessante notar no caso um problema de cunho sociológico, que é a ocasião em que<br />

uma realidade fática deve prevalecer diante de uma lei. Já foi dito que o Ministro Marco<br />

Aurélio havia considera<strong>do</strong> que “a presunção de violência <strong>do</strong> artigo 224 <strong>do</strong> Código Penal<br />

cede à realidade”. Também escreveu no seu voto que “não há como deixar de<br />

reconhecer a modificação de costumes” e que “já não socorre à sociedade os rigores<br />

de um Código ultrapassa<strong>do</strong>, anacrônico e (...) até descabi<strong>do</strong>”. O que cabe debater<br />

frente a essa constatação <strong>do</strong> acórdão é:<br />

- Pode o juiz, ao constatar realidade social diversa da estipulada em lei, como<br />

foi dito no caso, desconsiderá-la face à realidade?<br />

- Quan<strong>do</strong> ele faz essa desconsideração, quais são as conseqüências para o<br />

ordenamento jurídico?


Atualização das leis através da interpretação<br />

Marco Aurélio também sugere que a legislação, “ao invés de obnubilar a<br />

evolução <strong>do</strong>s costumes, deveria acompanhá-la, dessa forma protegen<strong>do</strong>-a”, e, apesar<br />

de não entrar em maiores detalhes, diz que “cabe ao intérprete da lei arrefecer tanta<br />

austeridade, flexibilizan<strong>do</strong> (...) o texto normativo”. Em uma sociedade marcada por<br />

intensa e constante mudança social, a tarefa legislativa acaba se voltan<strong>do</strong> mais à<br />

atualização de leis <strong>do</strong> que à previsão de novos projetos e legislações.<br />

Mesmo assim, fazer com que os costumes coincidam com o disposto das<br />

normas jurídicas nem sempre é possível. Como indagou Maurício Corrêa no acórdão, o<br />

juiz deverá emprestar a interpretação que sua consciência ditar, já que o processo<br />

legislativo caminha a passos de tartaruga? Portanto, apesar de Corrêa discordar de tal<br />

posicionamento, pergunta-se:<br />

- a atividade jurisprudencial, por lidar mais freqüentemente com os casos que<br />

chegam até ela, é uma via adequada à “atualização” ou “acompanhamento” das leis<br />

pelos costumes?<br />

- Nessas hipóteses, o que é um costume e quem o define?<br />

- <strong>Caso</strong> admitida essa hipótese, até que ponto pode-se dizer que ela fica<br />

comprometida nos países de “common law”, como o Brasil, nos quais a jurisprudência<br />

não costuma ter força como precedente e vincular decisões?<br />

Tratamento coletivo e conseqüências desta decisão<br />

Mesmo com o uso de precedentes não sen<strong>do</strong> tão rigoroso no Brasil, ou, como<br />

apontou Maurício Corrêa, consideran<strong>do</strong> que a jurisprudência é construída no caso<br />

concreto, não se poden<strong>do</strong> generalizar entendimentos, é importante observar quais<br />

possíveis conseqüências poderiam advir da utilização <strong>do</strong> caso trata<strong>do</strong> como<br />

precedente, que é o que fazem Carlos Velloso e Néri da Silveira em seus votos. Os<br />

Ministros que não concederam o habeas corpus seguiram a argumentação da proteção<br />

social <strong>do</strong> menor, contida no artigo 227, §4º, da CF, além de darem tratamento coletivo<br />

à questão, visto que até agora ela tinha si<strong>do</strong> abordada unicamente de um ponto de<br />

vista individual. Os argumentos vence<strong>do</strong>res não tiveram esse cuida<strong>do</strong>, trataram a<br />

questão consideran<strong>do</strong> somente as partes envolvidas. Visto o entendimento <strong>do</strong> tribunal<br />

para o caso em questão e estenden<strong>do</strong> sua ratio decidendi para outros casos<br />

semelhantes e para a realidade social brasileira, cumpre indagar:


- como a questão deveria ser tratada: individual ou coletivamente?<br />

- por que há a preocupação, no caso, por via de Habeas Corpus, com outros<br />

jovens que não unicamente os presentes no caso?<br />

- pode-se dizer que os Ministros estão preocupa<strong>do</strong>s com a possível formação de<br />

um precedente, que poderia ser aplica<strong>do</strong> não só no STF mas também nas outras<br />

instâncias inferiores?<br />

- em que medida o acórdão li<strong>do</strong> pode acabar propician<strong>do</strong> um ambiente de<br />

prostituição infantil num país marca<strong>do</strong> pela falta de educação de parte da sociedade e<br />

no qual alguns a<strong>do</strong>lescentes de menos de 14 anos não possuem total discernimento<br />

<strong>do</strong>s seus atos?

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