ABHYĀSA E VAIRĀGYA - Centro de Estudos de Yoga
ABHYĀSA E VAIRĀGYA - Centro de Estudos de Yoga
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<strong>ABHYĀSA</strong> E <strong>VAIRĀGYA</strong><br />
Os pilares do <strong>Yoga</strong><br />
abhyāsavairāgyābhyāṁ tannirodhaḥ || 12 ||<br />
Por Simão Monteiro<br />
Isso [a cessação da i<strong>de</strong>ntificação com os vṛttis, consegue-se] através da repetição e do <strong>de</strong>sapego.<br />
abhyāsa = repetição, disciplina, prática<br />
vairāgya = <strong>de</strong>sapego<br />
abhyāṁ = através <strong>de</strong><br />
tan = isso<br />
nirodhaḥ = <strong>de</strong>si<strong>de</strong>ntificação<br />
Depois <strong>de</strong> Patañjali nos enumerar os tipos <strong>de</strong> instabilida<strong>de</strong> da consciência nos sūtras anteriores,<br />
agora apresenta-nos duas soluções para eliminarmos a i<strong>de</strong>ntificação com essas instabilida<strong>de</strong>s.<br />
Abhyāsa, a prática constante e Vairāgya, o <strong>de</strong>sapego, são então os dois pilares on<strong>de</strong> assenta o<br />
<strong>Yoga</strong> <strong>de</strong> Patañjali, ou seja, são os dois pilares para po<strong>de</strong>rmos ter um controle sobre os nossos<br />
pensamentos.<br />
A proposta do <strong>Yoga</strong> não é <strong>de</strong> todo evitar os pensamentos ou tentar eliminá-los, mas sim<br />
perceber que aquilo que eu sou não é os pensamentos. Sabendo que a função da mente é<br />
pensar e que isso nos é útil no dia-a-dia, o que há a fazer é saber utilizar a mente para nosso<br />
benefício e não <strong>de</strong>ixar que seja a mente a utilizar-nos. Da mesma forma que eu conduzo um carro<br />
(o veículo), também <strong>de</strong>veria ser eu a conduzir a mente (um outro veículo à minha disposição).<br />
O método para disciplinar a mente e ter as ré<strong>de</strong>as sobre ela é a prática constante e o<br />
<strong>de</strong>sapego. Aliás, este método é também ensinado por Kṛṣṇa a Arjuna na Bhagavad Gītā, capítulo<br />
6: “Sem dúvida, ó Mahābāhu [Arjuna], a mente é agitada e difícil <strong>de</strong> ser controlada. Mas, Kaunteya<br />
[Arjuna], ela é disciplinada através da prática e do <strong>de</strong>sapego. O <strong>Yoga</strong> é difícil <strong>de</strong> ser alcançado por<br />
aquele cuja mente não foi disciplinada. Esta é a minha visão. Mas po<strong>de</strong> ser alcançado por aquele<br />
cuja mente está sob o seu comando, por aquele que se esforça através dos meios a<strong>de</strong>quados<br />
[abhyāsa e vairāgya].”<br />
Se pensarmos numa bateria abhyāsa seria o pólo positivo e vairāgya o pólo negativo. Abhyāsa<br />
consiste em praticar <strong>de</strong> forma constante e responsável, em cultivar um estilo <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> <strong>Yoga</strong>, em<br />
viver em <strong>Yoga</strong>. Em abhyāsa a i<strong>de</strong>ia fundamental é não <strong>de</strong>sistir. Vairāgya consiste em <strong>de</strong>sapegarse,<br />
<strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r-se dos apegos, das aversões e das falsas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Saber ver as coisas como<br />
elas são, com objectivida<strong>de</strong>. Em vairāgya a i<strong>de</strong>ia fundamental é saber soltar, <strong>de</strong>ixar ir, <strong>de</strong>ixar fluir.<br />
A disciplina e <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> abhyāsa leva-nos na direcção certa enquanto vairāgya permite-nos<br />
continuar a viagem interna sem ficarmos agarrados aos prazeres e dores que vamos<br />
experienciando ao longo do caminho.
tatra sthitau yatno’bhyāsaḥ || 13 ||<br />
Dos dois [anteriormente mencionados], abhyāsa é o esforço estabelecido [na <strong>de</strong>si<strong>de</strong>ntificação com<br />
os pensamentos].<br />
tatra = dos dois<br />
sthitau = estabelecido<br />
yatna = esforço<br />
abhyāsa = repetição<br />
Abhyāsa, a prática responsável e constante (como <strong>de</strong>finiu o comentador dos sūtras, Vyāsa), é<br />
saber ver como a mente, <strong>de</strong> novo e <strong>de</strong> novo, é apenas um instrumento para ser utilizado pelo Eu,<br />
ātmā. Sendo um instrumento é diferente daquele que o utiliza, Eu. Os pensamentos são eu, mas<br />
Eu sou muito mais do que simples pensamentos, Eu sou aquele que observa os próprios<br />
pensamentos.<br />
Uma vez que temos uma percepção equivocada daquilo que somos (pensamos ser os nossos<br />
pensamentos), é necessário um constante esforço e disciplina para vermos a mente com uma<br />
certa distância e assim reconhecermos a natureza do Eu, que é livre <strong>de</strong> pensamentos. Isto é<br />
abhyāsa.<br />
Dentro do contexto da meditação abhyāsa inclui a prática <strong>de</strong> japa, a repetição <strong>de</strong> um mesmo<br />
mantra. O japa permite ao praticante enten<strong>de</strong>r o processo <strong>de</strong> pensar, perceber as respostas<br />
condicionadas da mente, os apegos e aversões, as facilida<strong>de</strong>s e dificulda<strong>de</strong>s da própria mente<br />
para assim po<strong>de</strong>r ter uma mestria sobre ela. Mas esta disciplina po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve ser aplicada a todas<br />
as situações do dia-a-dia bem como à própria prática <strong>de</strong> <strong>Yoga</strong> que fazemos diariamente, como<br />
veremos a seguir.<br />
sa tu dīrghakālanairantaryasatkārāsevito dṛḍhabhūmiḥ || 14 ||<br />
Porém, esse [abhyāsa] estabelece-se firmemente pela prática ininterrompida, por longo tempo e<br />
com real <strong>de</strong>dicação.<br />
sa = esse<br />
tu = porém, mas<br />
dīrgha = longo<br />
kāla = tempo<br />
nairantarya = “sem diferença”, ininterrompidamente, incessantemente<br />
satkāra = reverência, <strong>de</strong>dicação real<br />
āsevitaḥ = praticado<br />
dṛḍha = firme<br />
bhūmi = terra, estabilização<br />
Para que abhyāsa dê seus frutos e funcione é necessário que seja feito por um longo tempo, <strong>de</strong><br />
forma ininterrompida e com profunda e real <strong>de</strong>dicação. As mudanças na nossa vida não<br />
acontecem <strong>de</strong> um dia para o outro. Se <strong>de</strong>cidimos empreen<strong>de</strong>r o caminho do <strong>Yoga</strong> com o objectivo<br />
<strong>de</strong> conhecermos a nossa natureza real, a <strong>de</strong> que somos livres <strong>de</strong> limitação, vamos <strong>de</strong>pararar-nos<br />
com diversas dificulda<strong>de</strong>s colocadas pelos condicionamentos construídos por nós próprios ao<br />
longo <strong>de</strong>sta e <strong>de</strong> outras vidas.
Sendo assim, é necessária uma gran<strong>de</strong> disciplina por parte do praticante, uma gran<strong>de</strong><br />
preseverança e <strong>de</strong>dicação ao longo da vida para po<strong>de</strong>r ir <strong>de</strong>smanchando as falsas noções<br />
que tem acerca <strong>de</strong> si mesmo. Patañjali diz-nos claramente neste sūtra para termos uma vida <strong>de</strong><br />
<strong>Yoga</strong>, viver uma vida <strong>de</strong>dicada inteiramente ao <strong>Yoga</strong>. Abhyāsa é manter como priorida<strong>de</strong><br />
número um a libertação, Mokṣa.<br />
Normalmente, quando começamos a praticar e a estudar o <strong>Yoga</strong> somos autênticos leões, com<br />
muita vonta<strong>de</strong> e entusiasmo para praticar e apren<strong>de</strong>r. À medida que o tempo vai passando, se não<br />
mantivermos este abhyāsa, esta vonta<strong>de</strong> ten<strong>de</strong> a murchar quando nos <strong>de</strong>paramos com os<br />
obstáculos naturais que vão surgindo no caminho. Eventualmente, po<strong>de</strong>mos até interromper a<br />
prática e o estudo por <strong>de</strong>sânimo, por falta <strong>de</strong> motivação, por não vermos os resultados que<br />
esperávamos, por falta <strong>de</strong> confiança ou por outra coisa qualquer e, ao interrompermos, quebramos<br />
o processo <strong>de</strong> crescimento.<br />
A evolução não se dá num fim-<strong>de</strong>-semana ou em meses, po<strong>de</strong> <strong>de</strong>morar uma vida inteira ou vidas!<br />
Portanto há que ter paciência e confiança no método e no professor para continuarmos firmes no<br />
caminho e isso requer maturida<strong>de</strong> por parte do praticante. O praticante <strong>de</strong>ve escolher um tempo<br />
sustentável para praticar e estudar, <strong>de</strong> forma a não <strong>de</strong>sanimar a meio do caminho com a<br />
eventual exigência que colocou a si mesmo. Com uma disciplina forte vamos ganhando os<br />
benefícios do <strong>Yoga</strong> e ao sentirmos esses benefícios vamos querer praticar e estudar mais e com<br />
maior gosto, reforçando o nosso abhyāsa.<br />
O abhyāsa é ainda alimentado pela presença em Sat Sangas, on<strong>de</strong> convivemos com outras<br />
pessoas que partilham a mesma se<strong>de</strong> pelo conhecimento e on<strong>de</strong> normalmente escutamos um<br />
professor que tem mais experiência <strong>de</strong> <strong>Yoga</strong> e nos dá um alento extra através das suas palavras e<br />
conhecimento.<br />
Abhyāsa é fazer um pacto comigo mesmo, assumir o compromisso <strong>de</strong> dirigir os meus<br />
maiores esforços, <strong>de</strong> forma constante, para o conhecimento <strong>de</strong> mim mesmo. Somente com<br />
este abhyāsa é que po<strong>de</strong>mos esperar uma mente preparada para o ensinamento <strong>de</strong> Vedānta, uma<br />
mente com uma boa dose <strong>de</strong> discernimento, <strong>de</strong>sapego, tranquilida<strong>de</strong>, concentração, expansão e<br />
valores.<br />
dṛṣṭānuśravikaviṣayavitṛṣṇasya vaśīkārasañjñā vairāgyam || 15 ||<br />
[Quando o yogi] fica livre <strong>de</strong> todo o <strong>de</strong>sejo pelos objectos vistos ou revelados [por outrem], adquire<br />
um estado <strong>de</strong> domínio e atentivida<strong>de</strong> chamado vairāgya.<br />
dṛṣṭa = o que é visto<br />
anuśravika = aquilo que é ouvido ou recebido como testemunho <strong>de</strong> outrem<br />
viṣaya = objecto<br />
vitṛṣṇasya = referente àquele que é livre <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos<br />
vaśīkāra = domínio, controle<br />
sañjñā = consciência, atentivida<strong>de</strong>, unidirecionalida<strong>de</strong> da mente<br />
vairāgya = <strong>de</strong>sapego, ausência <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos<br />
Depois <strong>de</strong> explicar em que consiste abhyāsa, Patañjali apresenta-nos o segundo pilar on<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve<br />
assentar o <strong>Yoga</strong>, vairāgya. Vairāgya, o <strong>de</strong>sapego, é um conceito que po<strong>de</strong> suscitar más<br />
interpretações e, portanto, necessita <strong>de</strong> uma boa reflexão da nossa parte.
Este “livre <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos” que Patañjali refere não quer dizer sem <strong>de</strong>sejos. Não é possível ao ser<br />
humano ser sem <strong>de</strong>sejos, o <strong>de</strong>sejo é um po<strong>de</strong>r que o ser humano possui, aliás um po<strong>de</strong>r que o<br />
distingue dos outros seres vivos. Graças a esse po<strong>de</strong>r o ser humano po<strong>de</strong>, por exemplo,<br />
empreen<strong>de</strong>r a busca pelo auto-conhecimento. Mumukṣutvam é esse <strong>de</strong>sejo ar<strong>de</strong>nte pela liberação.<br />
Portanto, ter <strong>de</strong>sejos não é algo negativo. O problema não é <strong>de</strong>sejar, o problema é ser<br />
governado pelos <strong>de</strong>sejos, ser levado a fazer qualquer coisa para realizar os <strong>de</strong>sejos esquecendo,<br />
muitas vezes, os nossos valores pelo que é a<strong>de</strong>quado e correcto.<br />
A mente tem uma percepção subjectiva do mundo julgando que os objectos, experiências<br />
ou pessoas têm a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nos fazerem felizes ou infelizes. Ao pensarmos <strong>de</strong>sta<br />
maneira vivemos em busca daqueles objectos que nos proporcionem prazer e tentando evitar<br />
aqueles que julgamos serem portadores <strong>de</strong> sofrimento. O <strong>Yoga</strong> não diz que é a presença ou<br />
ausência dos objectos que nos faz felizes mas sim que a felicida<strong>de</strong> que tanto buscamos é nossa<br />
natureza real.<br />
Como diz o Swami Paramarthananda: “Desapego não é abandonar o mundo mas sim<br />
abandonar a ilusão <strong>de</strong> que é através do mundo e <strong>de</strong> seus objectos que alcançaremos a<br />
felicida<strong>de</strong>”. Desapegar-me não significa <strong>de</strong>ixar os meus afazeres, <strong>de</strong>ixar as responsabilida<strong>de</strong>s que<br />
tenho com a minha família, amigos e trabalho e isolar-me numa montanha. Isso é fugir. E se eu<br />
preciso <strong>de</strong> fugir do mundo para resolver os meus problemas é porque eu ainda não os resolvi e a<br />
única forma <strong>de</strong> resolver os problemas advindos das relações que estabeleço no mundo é, no<br />
mundo, resolver esses problemas. Senão, para on<strong>de</strong> eu for, os problemas irão comigo.<br />
Vairāgya é a consequência natural <strong>de</strong> vivekaḥ, a discriminação entre o que é real e eterno (o<br />
Ser, Brahman) e o que é aparente e não-eterno (mithyā). Quando temos esta capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
discernir, reconhecemos mais facilmente a incapacida<strong>de</strong> que o mundo tem para nos fazer felizes,<br />
para nos proporcionar um estado <strong>de</strong> ausência <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência. E quando nos damos conta disso o<br />
<strong>de</strong>sapego surge naturalmente. Até nos darmos conta disso estamos apegados a tal objecto,<br />
situação, pessoa, etc.<br />
Desapego é olhar para os objectos tal como são, sem emprestar a minha subjectivida<strong>de</strong>,<br />
sem projectar neles o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> me fazer feliz ou infeliz. Ver uma casa como uma casa e não<br />
como uma fonte <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, ver o dinheiro como dinheiro, a pessoa amada tal como é e não<br />
como uma extensão <strong>de</strong> mim mesmo. Compreendo que todas estas coisas po<strong>de</strong>m trazer alegria ou<br />
tristeza ou um misto dos dois e que esses estados são transitórios, começam e acabam. Percebo<br />
que em todo o ganho existe uma perda e que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> satisfazer um <strong>de</strong>sejo, um novo <strong>de</strong>sejo<br />
sempre surge. Entendo que tudo aquilo que é observável é limitado no tempo e espaço e por isso<br />
aquilo que me po<strong>de</strong> proporcionar é também limitado.<br />
Se estou convencido que tendo tal casa a minha segurança está garantida, no dia em que a casa<br />
se for a minha segurança vai junto. Se julgo que na ausência <strong>de</strong> tal pessoa posso finalmente ser<br />
livre, a minha felicida<strong>de</strong> fica <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da presença <strong>de</strong>ssa pessoa e portanto é uma liberda<strong>de</strong><br />
limitada. Enten<strong>de</strong>r que a minha segurança, a minha felicida<strong>de</strong>, a minha liberda<strong>de</strong> e o meu bemestar<br />
na vida não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da presença ou ausência dos objectos é vivekaḥ, discernimento. E<br />
este discernimento conduz a vairāgya.<br />
Assim, vou abandonando as falsas expectativas que criei acerca do mundo e seus objectos. Os<br />
objectos não me pren<strong>de</strong>m, eu os prendo por causa do valor subjectivo que projecto neles. Quando<br />
compreendo isto a prisão <strong>de</strong>saparece e vejo as coisas tal como são. Isto é vairāgya.