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Identidade: Trechos de O Personalismo ... - Sala de Estudos

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extraído do livro O <strong>Personalismo</strong>, <strong>de</strong> Emmanuel Mounier.<br />

Há sempre algo em nós que resiste essencialmente a todo esforço <strong>de</strong><br />

reciprocida<strong>de</strong>, uma como que “má- vonta<strong>de</strong>” fundamental. Até a nossa<br />

existência é como que inerente a uma opacida<strong>de</strong> irredutível, a uma indiscrição<br />

que é barreira à livre comunicação. Se é verda<strong>de</strong> que a pessoa é, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as suas<br />

origens, movimento para os outros, “ser- para”, é verda<strong>de</strong> também que, sob um<br />

outro aspecto, nos surge caracterizada, em oposição às coisas, pelo pulsar<br />

duma vida secreta on<strong>de</strong> incessantemente parece <strong>de</strong>stilar a sua riqueza. Seria a<br />

altura <strong>de</strong> falarmos, como toda a gente, <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>, vida interior,<br />

interiorida<strong>de</strong>, se estas palavras não solicitassem ambíguas representações<br />

espaciais e não parecessem fixar a vida pessoal numa fase recôndita que, como<br />

veremos, não é oposta ao movimento <strong>de</strong> comunicação, mas pulsação<br />

complementar.<br />

É preciso, entretanto, não nos precipitarmos quando falamos do inefável. Afinal,<br />

a explicação, por <strong>de</strong>finição, <strong>de</strong>ixa fugir o singular que é uno e indivisível. A<br />

pessoa não é “uma coisa” que se po<strong>de</strong> encontrar no fundo das análises, ou uma<br />

combinação <strong>de</strong>finível <strong>de</strong> aspectos. Se fosse uma súmula, po<strong>de</strong>ria ser<br />

inventariada: mas é, exatamente, o não- inventariável. Inventariável, po<strong>de</strong>ria<br />

ser <strong>de</strong>terminada - mas é exatamente o centro da liberda<strong>de</strong>. É mais uma presença,<br />

do que um ser exposto; presença ativa e sem fundo.<br />

Compreen<strong>de</strong>-se assim que a vida pessoal esteja naturalmente ligada a um certo<br />

segredo. As pessoas completamente viradas para fora não têm a experiência<br />

<strong>de</strong>sta profunda distância: ignoram o “respeito pelo segredo”, pelo seu e pelo<br />

dos outros. É <strong>de</strong>sse modo que nos esbarramos com o tema do pudor: o pudor é<br />

o sentimento da pessoa que não quer ser esvaziada nas suas expressões, nem<br />

ameaçada em seu ser pelos sentimentos que assumiria a sua existência uma vez<br />

que esta “totalmente se manifestasse”. O pudor físico não traduz pois a<br />

impureza do corpo mas, antes, significa que eu sou infinitamente mais do que<br />

esse corpo olhado e alcançado. O pudor dos sentimentos revela que cada um<br />

<strong>de</strong>les me limita e me trai. Mas não fico envergonhado por ser esta nu<strong>de</strong>z ou<br />

esse personagem, mas por parecer não ser mais do que isso. O contrário, pois, do<br />

pudor é a vulgarida<strong>de</strong>, o consentimento em não ser mais do que oferece a<br />

aparência imediata quando se exibe perante os olhares do público.<br />

Aparece então o perigo, que é real, <strong>de</strong> nos encerrarmos em nós próprios:<br />

<strong>de</strong>masiada ruminação dissipa-nos, <strong>de</strong>masiada interiorida<strong>de</strong> sutiliza-nos,<br />

<strong>de</strong>masiada atenção a nós próprios - mesmo que seja espiritual - instala o<br />

egocentrismo como um cancro em terreno próprio. A imagem do eu substituise<br />

ao eu vivo - mais propriamente diríamos que o eu se vê viver, não tendo<br />

interesse senão pelo efeito que produz ou pelo efeito que por ele é produzido.<br />

Cultivar essa imagem do eu, conservá-la, protegê-la, torna-se então o único<br />

objetivo da vida. Des<strong>de</strong> o séc. XV o Homem Oci<strong>de</strong>ntal escorrega<br />

continuamente por esse caminho. Todos os valores foram arrastados para o<br />

teatro sofisticado <strong>de</strong> Narciso. E’ então que é preciso lembrar à pessoa que ela só<br />

se encontra e se fortifica por intermédio do objeto: é preciso sair da<br />

interiorida<strong>de</strong> para alimentar a própria interiorida<strong>de</strong>. A pessoa é uma<br />

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interiorida<strong>de</strong> que tem necessida<strong>de</strong> duma exteriorida<strong>de</strong>. É preciso pois que não<br />

<strong>de</strong>sprezemos tanto a vida exterior: sem ela, a vida interior tornar-se-ia<br />

incoerente, tal como, sem vida interior, aquela mais não seria que <strong>de</strong>lírio.<br />

Por isso, a pessoa expõe-se, exprime-se: faz face, é rosto. A palavra grega mais<br />

próxima da noção <strong>de</strong> pessoa é prósopon: aquele que olha <strong>de</strong> frente, que afronta,<br />

e que encontra por vezes um mundo hostil. A atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> oposição e proteção<br />

pertence, pois, à sua própria condição. Além do que, quando falamos <strong>de</strong> uma<br />

personalida<strong>de</strong> vincada, dizemos: um original. Na verda<strong>de</strong>, é certo que a pessoa<br />

é o que nunca se repete, mesmo quando as faces e gestos dos homens, caindo<br />

sem cessar na generalida<strong>de</strong>, se copiam <strong>de</strong>sesperadamente à superfície. Mas a<br />

procura da originalida<strong>de</strong> surge sempre como produto secundário, para não<br />

dizer subproduto da vida pessoal. O herói em plena batalha, o amante quanto<br />

se entrega, o criador obcecado pela sua obra, o santo transportado pelo amor <strong>de</strong><br />

Deus não procuram, nesses momentos em que atingem algo da mais alta vida<br />

pessoal, diferenciar-se ou singularizar-se pois o seu olhar não está virado para<br />

a forma das suas ações, mas está com eles, inteiro, lançado para fora <strong>de</strong>les<br />

próprios, <strong>de</strong>masiado entregue ao que são para pensar como são. E - mais ainda -<br />

todos eles nos dizem que atingem nesses “cumes da existência” uma como que<br />

“banalida<strong>de</strong> superior”, isto é, os mais simples temas da humanida<strong>de</strong> comum. É<br />

a dificulda<strong>de</strong> em agarrar essa intensa banalida<strong>de</strong> sem a diluir nas cores cinzentas da<br />

vulgarida<strong>de</strong> que constitui o ato <strong>de</strong> fazer-se e tornar-se pessoa. A pessoa é assim<br />

chamada a atingir o extraordinário no próprio centro da vida cotidiana. Esse<br />

extraordinário não a separa - porque toda pessoa é chamada para coisas<br />

extraordinárias. Como escreveu Kierkegaard, ele que, no entanto, por vezes foi<br />

atraído pela tentação do extremo: “O homem verda<strong>de</strong>iramente fora do comum<br />

é o homem verda<strong>de</strong>iramente comum”.<br />

Sendo assim, a pessoa não é o mais maravilhoso objeto do mundo, objeto que<br />

conhecêssemos <strong>de</strong> fora, como todos os outros. É a única realida<strong>de</strong> que<br />

conhecemos e que, simultaneamente, construímos <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro. Sempre presente,<br />

nunca se nos oferece. Mas não nos precipitemos, contudo, arrumando-a no<br />

reino do indizível: sendo os recursos da pessoa in<strong>de</strong>finidos, nada do que a<br />

exprime a esgota, nada do que a condiciona a escraviza. Não sendo um objeto visível,<br />

também não é resíduo interno, uma qualquer substância escondida por <strong>de</strong>trás<br />

dos nossos comportamentos. Quem se recusa a escutar esse apelo e a<br />

comprometer-se na experiência duma vida pessoal, per<strong>de</strong> o seu sentido como<br />

se per<strong>de</strong> a sensibilida<strong>de</strong> dum órgão que já não funciona.<br />

extraído do livro Teoria e Realida<strong>de</strong> do Outro, <strong>de</strong> Pedro Entralgo<br />

No mais amplo sentido do termo, máscara é qualquer objeto humano que<br />

manifeste uma vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão ou <strong>de</strong> ocultação. São máscaras a alegoria<br />

carnavalesca, a do ritual do selvagem, o prósopon do ator grego e a persona do<br />

romano, e o matagal atrás do qual se mascara o soldado e tantas outras mais.<br />

A rigor, a máscara o é enquanto simultaneamente expressa e oculta: oculta a<br />

individual personalida<strong>de</strong> do mascarado e expressa a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste <strong>de</strong> parecer<br />

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aos <strong>de</strong>mais - e em algumas ocasiões também a si mesmo - o que a máscara<br />

representa. Haverá sem dúvida casos em que predomina o momento ocultativo<br />

sobre o momento expressivo: tal é, por exemplo, o do soldado que se mascara<br />

com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> parecer um vegetal silvestre. Há outros em que predomina<br />

a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão sobre a <strong>de</strong> ocultação, e este foi o caso do ator antigo.<br />

Mas, genericamente consi<strong>de</strong>rada, o que expressa a máscara? Na resposta a esta<br />

questão, há <strong>de</strong> se distinguir dois planos: um, <strong>de</strong> caráter psicológico e, outro, <strong>de</strong><br />

or<strong>de</strong>m antropológica, e ainda metafísica. Do ponto <strong>de</strong> vista psicológico, a<br />

máscara manifesta que um homem quer mostrar - sem ser i<strong>de</strong>ntificado - um<br />

modo <strong>de</strong> ser mais ou menos reprimido em sua alma quando os <strong>de</strong>mais<br />

reconhecem sua real i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. “ O homem mascarado - escreve Rof - po<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ixar em liberda<strong>de</strong> sua parte secreta e profunda: suas paixões; as quais, por<br />

certo, costumam ser as mesmas em todos os humanos, e por isso quase todas as<br />

máscaras proce<strong>de</strong>m com gran<strong>de</strong> monotonia em suas orgias e brumas”.<br />

Mas este é só o primeiro plano da resposta: em sua dimensão mais profunda, a<br />

máscara, uma das invenções mais antigas da humanida<strong>de</strong>, manifesta a<br />

constitutiva aspiração do homem em ser tudo o que a sua limitação lhe impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser.<br />

Mas a única maneira possível <strong>de</strong> que uma coisa seja outra é a metáfora, o ser<br />

como ou quase-ser. Do que se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> que, <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista geral ou<br />

antropológico, a máscara é um artefato mediante o qual o homem mais<br />

primitivamente manifesta a condição indigente, ambiciosa e metafórica da sua<br />

própria realida<strong>de</strong>.<br />

Enquanto outro, o mascarado é um homem com vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> mostrar um eu<br />

distinto do ser, e daí o que ele é para quem subitamente lhe percebe: alguém<br />

expressamente capaz <strong>de</strong> tudo, e portanto o homem enquanto tal. Ante um<br />

homem sem máscara, seja-me conhecido ou não, eu não posso <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ver tal<br />

homem; mas ante um mascarado, cuja i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> real se me escapa, eu vejo<br />

duas coisas: o outro postiço e falso que a máscara expressa e, sob esta, um homem,<br />

uma vonta<strong>de</strong> capaz, em princípio, <strong>de</strong> todas as intenções que a condição<br />

humana permite sentir e inventar. O outro da máscara me apresenta o incerto<br />

outro do homem, isto é, o próprio homem: todos os seres humanos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Adão<br />

até meu vizinho e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> São Francisco <strong>de</strong> Assis a Jack o Estripador vivem <strong>de</strong><br />

algum modo nesse outro que a máscara me oculta e me expressa.<br />

Mas o mascarado não me permite viver a reciprocida<strong>de</strong>, a relação genérica;<br />

mas o faz sendo-me ele um indivíduo concreto e visível, e a percepção <strong>de</strong> tal<br />

nebulosa humana - uma realida<strong>de</strong> que é homem e não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser homem -<br />

me força a não sair do estado <strong>de</strong> puro alerta que a vivência da relação com um<br />

outro humano imediatamente suscita.<br />

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