UM ESTUDO SOBRE A (RE) - UEG - São Luís de Montes Belos
UM ESTUDO SOBRE A (RE) - UEG - São Luís de Montes Belos
UM ESTUDO SOBRE A (RE) - UEG - São Luís de Montes Belos
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
<strong>UM</strong> <strong>ESTUDO</strong> <strong>SOB<strong>RE</strong></strong> A (<strong>RE</strong>)AFIRMAÇÃO DE IDENTIDADES E<br />
SUBJETIVIDADES EM TEXTOS DE PERFIS DE ORKUT<br />
Samara Gonçalves Lima 1<br />
<strong>RE</strong>S<strong>UM</strong>O: Este estudo se insere em uma pesquisa maior que propõe analisar<br />
como se dá a (re)afirmação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e subjetivida<strong>de</strong>s em discursos<br />
encontrados em textos <strong>de</strong> perfis <strong>de</strong> Orkut. Para tanto, busco nos postulados<br />
teóricos da Análise do Discurso <strong>de</strong> linha francesa, noções <strong>de</strong> elementos como<br />
discurso, sujeito e condições <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> discurso, consi<strong>de</strong>rados<br />
importantes para a análise <strong>de</strong> discursos nessa disciplina. Além disso, retomo<br />
alguns estudos sobre i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s provenientes <strong>de</strong> teorias socioconstrutivistas.<br />
O objetivo aqui é <strong>de</strong>monstrar apenas os caminhos percorridos e os resultados<br />
(ainda não esgotados) <strong>de</strong>ssa pesquisa.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Sujeito. Discurso. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s.<br />
Introdução<br />
A socieda<strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rna apresenta-nos novas técnicas<br />
e tecnologias, mas o discurso conflituoso sobre si e sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
permanece: a busca por um “eu” singular, ou a explicação<br />
para a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “eus” em cada ser também continua [...]<br />
[...] O ser pós-mo<strong>de</strong>rno tem essa incompletu<strong>de</strong> ressaltada, colocada à<br />
mostra nos diversos meios <strong>de</strong> comunicação, e, com as novas tecnologias<br />
há um <strong>de</strong>slocamento do íntimo e do privado para o público.<br />
Maria Regina Momesso <strong>de</strong> Oliveira, 2004<br />
Ao consi<strong>de</strong>rar que o Orkut é uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> discursos - <strong>de</strong>scrita<br />
por Michel Foucault em sua obra “A Or<strong>de</strong>m do Discurso”-, pois dispõe <strong>de</strong><br />
mecanismos <strong>de</strong> sujeição do discurso, proponho encontrar, no Orkut, textos que<br />
possibilitem analisar como se dá o processo <strong>de</strong> (re)afirmação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e<br />
<strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>s construídas por sujeitos discursivos em seus textos <strong>de</strong> perfis.<br />
1 Graduada pela <strong>UEG</strong> – Unida<strong>de</strong> Universitária <strong>de</strong> Campos <strong>Belos</strong> – Goiás, aluna do Programa<br />
<strong>de</strong> Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Goiás (UFG/2010).<br />
Pesquisadora bolsista do CNPq. E-mail: sglimaufg10@hotmail.com
Para tanto, consi<strong>de</strong>ro aspectos fundamentais para a análise, como:<br />
a noção <strong>de</strong> sujeito discursivo, <strong>de</strong> discurso e <strong>de</strong> condições <strong>de</strong> produção do<br />
discurso conforme propõe a Análise do Discurso <strong>de</strong> linha francesa com base<br />
em estudiosos <strong>de</strong>ssa disciplina (PÊCHEUX, 1969; FERNANDES, 2005, 2007,<br />
2008; ORLANDI, 2006, 2007; AGUSTINI, 2007). Recorro ainda aos postulados<br />
socioconstrutivistas sobre i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s discutidos por Oliveira (2004), Hall<br />
(2000), Louro (2000), <strong>de</strong>ntre outros.<br />
Pensar nos conflitos e problemas sociais sem levar em consi<strong>de</strong>ração<br />
uma reflexão acerca da linguagem e da temática das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s é não<br />
compreen<strong>de</strong>r que estes fenômenos estão inerentes ao processo <strong>de</strong><br />
transformação pelo qual o mundo vem atravessando (MOITA LOPES, 2003).<br />
De acordo com esse autor, essa abordagem vem sendo cada vez mais<br />
enfatizada por estar relacionada às mudanças culturais, sociais, econômicas,<br />
políticas e tecnológicas pelas quais o mundo está atravessando, e que são<br />
experenciadas, em maior ou menor escala, em comunida<strong>de</strong>s locais<br />
específicas.<br />
Graças aos autores supracitados, é possível enten<strong>de</strong>r que as<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s são construídas e (re)afirmadas ao longo <strong>de</strong> discursos e que são<br />
os próprios sujeitos que constroem e (re)afirmam, portanto, suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e<br />
a dos outros em espaços que proporcionam o surgimento <strong>de</strong> várias<br />
possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> subjetivação (OLIVEIRA, 2004), como em sites <strong>de</strong><br />
relacionamento, por exemplo. E, que por serem líquidas, não- fixas,<br />
transitórias, elas precisam ser reafirmadas por meio do discurso para<br />
continuarem existindo.<br />
1. Fundamentação teórica<br />
Neste trabalho, busco, com base nos postulados da Análise do<br />
Discurso (doravante AD) francesa, a noção <strong>de</strong> discurso preconizada por M.<br />
Pêcheux (1969). Nela, o discurso mais que transmissão <strong>de</strong> informação<br />
(mensagem) é efeito <strong>de</strong> sentidos entre locutores. Esses efeitos, segundo<br />
Orlandi (2006, p.15) “resultam da relação <strong>de</strong> sujeitos simbólicos que participam<br />
do discurso, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> circunstâncias dadas”. Visto como efeito <strong>de</strong> sentidos<br />
entre locutores, o discurso é também <strong>de</strong>finido como um objeto sócio-histórico<br />
49
em que o linguístico está pressuposto. Nessa concepção, não há sentido<br />
evi<strong>de</strong>nte e nem sujeito intencional. Assim como os sujeitos, os discursos<br />
também não são fixos, pois estão se movendo e sofrem transformações sociais<br />
e políticas <strong>de</strong> toda natureza que integram a vida humana (FERNANDES, 2007),<br />
po<strong>de</strong>ndo receber novos sentidos e interpretações em outras circunstâncias.<br />
Por outro lado, são também pertinentes, para este estudo, as<br />
concepções <strong>de</strong> sujeito discursivo apresentadas por Althusser (1973),<br />
Fernan<strong>de</strong>s (2005, 2008), Orlandi (2006). Conforme evi<strong>de</strong>ncia Fernan<strong>de</strong>s<br />
(2005), a AD francesa não focaliza o indivíduo falante compreendido como um<br />
sujeito empírico, como alguém que tem uma experiência individualizada no<br />
mundo. Mas importa o sujeito inserido em conjuntura social, tomado em um<br />
lugar social, histórica e i<strong>de</strong>ologicamente marcado.<br />
Althusser (1973) citado por Orlandi (2006) sugere que para<br />
compreen<strong>de</strong>r a noção <strong>de</strong> sujeito na AD, é necessário compreen<strong>de</strong>r o que é a<br />
forma-sujeito. Pois, segundo ele, todo indivíduo humano, isto é, social só po<strong>de</strong><br />
ser agente <strong>de</strong> uma prática se se revestir da forma-sujeito.<br />
diz que:<br />
Em síntese, a noção <strong>de</strong> sujeito selecionada neste estudo, é a que<br />
O sujeito que tem a ilusão <strong>de</strong> ser o centro <strong>de</strong> seu dizer, pensa<br />
exercer o controle dos sentidos do que fala, e <strong>de</strong>sconhece que a<br />
exteriorida<strong>de</strong> está no interior do sujeito, em seu discurso está o<br />
“outro”, compreendido como exteriorida<strong>de</strong> social (FERNANDES,<br />
2008, p.73, grifos do autor).<br />
Ao consi<strong>de</strong>rar que a exteriorida<strong>de</strong> está relacionada às condições <strong>de</strong><br />
produções <strong>de</strong> discurso, é preciso refletir ainda acerca das condições <strong>de</strong><br />
produção e do jogo <strong>de</strong> imagens dos discursos. Pêcheux relaciona a linguagem<br />
à sua exteriorida<strong>de</strong> sob o conceito <strong>de</strong> interdiscurso, ou seja, o interdiscurso se<br />
articula ao complexo <strong>de</strong> formações i<strong>de</strong>ológicas 2 representadas no discurso<br />
pelos dizeres do sujeito em uma dada situação e conjuntura. O dizer está<br />
associado, <strong>de</strong>sse modo, às suas condições <strong>de</strong> produção, à sua exteriorida<strong>de</strong>.<br />
Para Foucault, ser um sujeito é ocupar uma posição enquanto<br />
enunciador. Para ele, os discursos são enunciados. A unida<strong>de</strong> elementar do<br />
2 Formações i<strong>de</strong>ológicas são as posições em que se inscrevem os sujeitos.<br />
50
discurso é, portanto, o enunciado. Desse modo, aquilo que é ser um sujeito<br />
para Foucault é consistente com sua concepção <strong>de</strong> discurso (HENRY, 1997).<br />
Por ser uma posição <strong>de</strong> sujeito no discurso, o enunciador e o<br />
<strong>de</strong>stinatário são pontos da relação <strong>de</strong> interlocução e indicam diferentes<br />
posições sujeito (ORLANDI, 2006). Segundo essa autora, isso está relacionado<br />
às chamadas formações imaginárias que dirigem o discurso. Também<br />
<strong>de</strong>nominado “jogo <strong>de</strong> imagens”, que segundo Pêcheux, <strong>de</strong>sempenha função<br />
importante, uma vez que <strong>de</strong>termina<br />
[a] imagem que o sujeito faz <strong>de</strong>le mesmo, a imagem que ele faz <strong>de</strong><br />
seu interlocutor, a imagem que ele faz do objeto do discurso. Assim<br />
como também se tem a imagem que o interlocutor tem <strong>de</strong> si mesmo,<br />
<strong>de</strong> quem lhe fala, e do objeto <strong>de</strong> discurso.<br />
(ORLANDI, 2006, p.15).<br />
Para Pêcheux (1969), essa relação imaginária que o sujeito tem com<br />
o próprio discurso é uma manifestação da tentativa (ilusória) <strong>de</strong> controlar o<br />
próprio discurso. Porém, “o sujeito não é o senhor <strong>de</strong> sua vonta<strong>de</strong>; ou temos<br />
um sujeito que sofre as coerções <strong>de</strong> uma formação i<strong>de</strong>ológica e discursiva, ou<br />
temos um sujeito submetido à sua própria natureza inconsciente.” (AUTHIER-<br />
<strong>RE</strong>VUZ, 1982).<br />
Segundo Orlandi (2007) as formações imaginárias são projetadas e<br />
<strong>de</strong>terminadas pela posição e o lugar que o sujeito ocupa no discurso, <strong>de</strong>sse<br />
modo, na relação discursiva, são as imagens que constituem as diferentes<br />
posições dos sujeitos (ORLANDI, 2007).<br />
No que tange à temática das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, compreendo que é nos<br />
discursos que os sujeitos constroem suas múltiplas e distintas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />
(sexual, <strong>de</strong> gênero, <strong>de</strong> classe, <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> raça etc.). E essas<br />
múltiplas e distintas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s constituem, portanto “os sujeitos, na medida<br />
em que esses são interpelados a partir <strong>de</strong> diferentes situações, instituições ou<br />
agrupamentos sociais” (LOURO, 2000).<br />
Segundo a autora supracitada, para que o sujeito possa se<br />
reconhecer em uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é necessário respon<strong>de</strong>r afirmativamente a uma<br />
interpelação e estabelecer um sentido <strong>de</strong> pertencimento a um grupo social <strong>de</strong><br />
referência. Mas a verda<strong>de</strong> é que somos “sujeitos <strong>de</strong> muitas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s”, que<br />
51
po<strong>de</strong>m ser transitórias, contingentes, contraditórias, fragmentadas,<br />
multifacetadas, não-fixas e plurais, conforme atesta Hall (2000, p.108)<br />
[...] as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s não são nunca unificadas; elas são na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />
tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; elas não são, nunca,<br />
singulares, mas multiplamente construídas ao longo <strong>de</strong> discursos,<br />
práticas e posições que po<strong>de</strong>m se cruzar ou ser antagônicas. As<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s estão sujeitas a uma historicização radical, estando em<br />
processo <strong>de</strong> mudança e transformação.<br />
Os sujeitos constroem e (re)afirmam suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s (e as alheias)<br />
em espaços que proporcionam o surgimento <strong>de</strong> várias possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
subjetivação (OLIVEIRA, 2004), como a escola e as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> comunicação<br />
virtual, por exemplo. Isso gera a chamada “crise <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>”, pois eles<br />
buscam um “eu” singular por meio <strong>de</strong> uma luta constante em torno da<br />
construção <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que lhes seja própria, exclusiva. E é por meio da<br />
língua que o sujeito busca essa subjetivação (ORLANDI, 2006).<br />
2. Metodologia e corpus <strong>de</strong> estudo<br />
Para a análise <strong>de</strong> como se dá (re)afirmação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e a<br />
busca por subjetivida<strong>de</strong>s dos sujeitos inscritos em uma re<strong>de</strong> social virtual<br />
conhecida como Orkut, alguns textos foram extraídos <strong>de</strong> perfis <strong>de</strong>sse site <strong>de</strong><br />
relacionamento, esses textos constituem, portanto, o corpus da análise. Os<br />
princípios metodológicos que direcionam o estudo advêm da análise crítico-<br />
reflexiva, que permite voltar, portanto, um olhar criterioso e reflexivo para os<br />
efeitos <strong>de</strong> discursos encontrados nos textos <strong>de</strong> perfis <strong>de</strong> Orkut, bem como<br />
constatar o lugar histórico-social e i<strong>de</strong>ológico <strong>de</strong> on<strong>de</strong> falam esses sujeitos e,<br />
sobretudo, como eles são interpelados pelos discursos para (re)afirmarem suas<br />
múltiplas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s ou para buscarem um “ser autêntico”.<br />
Conforme afirma Fernan<strong>de</strong>s (2005), po<strong>de</strong>-se perceber as posições<br />
i<strong>de</strong>ológicas dos sujeitos pela materialida<strong>de</strong> dos seus discursos. E para<br />
Pêcheux, o discurso é o lugar on<strong>de</strong> a i<strong>de</strong>ologia se manifesta na linguagem. O<br />
52
discurso se materializa na linguagem que por sua vez se materializa no texto.<br />
Nesse sentido, <strong>de</strong>monstro a seguir algumas consi<strong>de</strong>rações resultantes da<br />
análise dos efeitos <strong>de</strong> sentidos que os textos <strong>de</strong> perfis <strong>de</strong> Orkut produzem.<br />
A fim <strong>de</strong> possibilitar a compreensão <strong>de</strong> como o corpus foi analisado,<br />
exponho na seção seguinte uma breve análise <strong>de</strong> dois textos.<br />
3. Análise <strong>de</strong> textos 3 <strong>de</strong> perfis do Orkut<br />
No perfil <strong>de</strong> uma usuária é possível ler o seguinte texto extraído da<br />
mesma forma como a usuária o notificou:<br />
Texto 1<br />
Sou Do tipo que naum vive <strong>de</strong> aparências.<br />
Sou simples, sincera, realista, bonita...<br />
...Sou muito feminina e esta feminilida<strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong> ser vista no meu modo <strong>de</strong> vestir ou falar.<br />
Sou ousada, intensa e extremamente carinhosa.<br />
Naum tenho hora certa ou limites para dizer o que sinto.<br />
Sou gentil e solidária.<br />
Sou interessada nos prazeres da vida, jamais no valor das coisas.<br />
Vivo o presente e naum me <strong>de</strong>ixo levar<br />
pelas incertezas do que ainda está por vir.<br />
Sempre fui e serei a mesma...<br />
Esperançosa e <strong>de</strong>terminada...<br />
...Sou uma menina <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s.<br />
Nas dobraduras <strong>de</strong>sse texto é possível i<strong>de</strong>ntificar, a priori, um sujeito<br />
que tenta se reafirmar enquanto i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero feminina - “Sou muito<br />
feminina” - e, ao mesmo tempo, obe<strong>de</strong>cer aos padrões estipulados pelos<br />
vários discursos convencionalmente pré-estabelecidos acerca do que é ser<br />
homem ou mulher na matriz heteronormativa 4 - “e esta feminilida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser<br />
vista no meu modo <strong>de</strong> vestir ou falar”. O sujeito inscrito nessa matriz,<br />
precisa estar a todo tempo afirmando o seu gênero por meio do<br />
comportamento, do corpo, do discurso, da forma <strong>de</strong> se vestir, <strong>de</strong>ntre outros<br />
meios. Conforme afirma Butler (1999, p.6-7),<br />
3 É importante reiterar que a noção <strong>de</strong> texto utilizada aqui é a proposta por Agustini (2007,<br />
p.306) a qual diz que o texto é “um lugar <strong>de</strong> encontro entre a memória, sedimentação <strong>de</strong><br />
discursos, e as condições <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> uma forma historicamente válida <strong>de</strong> ser sujeito <strong>de</strong><br />
dizer”.<br />
4 De acordo com Butler (1999), na matriz heteronormativa há apenas duas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
gênero: a masculina e a feminina.<br />
53
[o] gênero seria a estilização repetida do corpo, um conjunto <strong>de</strong> atos<br />
reiterados <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um marco regulador altamente rígido [...], mas<br />
esses atos e gestos seriam performáticos no sentido em que a<br />
essência ou i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que supostamente expressam são<br />
construções manufaturadas e sustentadas através <strong>de</strong> signos<br />
corporais e outros meios.<br />
Desse modo o sujeito discursivo respon<strong>de</strong> afirmativamente aos já-<br />
ditos que prescrevem sócia, histórica e discursivamente como o sujeito <strong>de</strong>ve<br />
portar-se ou comportar-se para não subverter a norma. Além disso, ao<br />
reconhecer ainda que inconscientemente a possível transitorieda<strong>de</strong> do seu<br />
“estar mulher”, ele precisa reafirmar que “Sempre [foi] e [será] a mesma...”<br />
Discurso este que parece legitimar uma constante busca pela sua subjetivida<strong>de</strong><br />
e ao mesmo tempo respon<strong>de</strong>r a uma interpelação social homogeneizante.<br />
Tal interpelação o leva a afirmar que sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero<br />
correspon<strong>de</strong> à sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sexual, pois “a admissão <strong>de</strong> uma nova i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
sexual ou <strong>de</strong> uma nova i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero é consi<strong>de</strong>rada uma alteração<br />
essencial, uma alteração que atinge a ‘essência’ do sujeito” (LOURO, 2000,<br />
p.13) e transgri<strong>de</strong> os preceitos da matriz heteronormativa.<br />
Outra evidência <strong>de</strong> reafirmação <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser<br />
encontrada no texto a seguir.<br />
Texto 2<br />
Vc per<strong>de</strong> seu tempo tentando me imitar<br />
Tem noção <strong>de</strong> como isso é ridículo?<br />
Se liga, eu sou única, não dá pra copiar ;)<br />
Deixa eu me apresentar, prazer, Beatriz<br />
Sim, sim eu <strong>de</strong>ixo vc babar<br />
(ainda mais porque vc não tem opção)<br />
Gostou amore?<br />
Ad, que não tira pedaço não<br />
O resto é por minha conta<br />
Pra que <strong>de</strong>screver aqui meus <strong>de</strong>feitos & qualida<strong>de</strong>s?<br />
Se vc me julga como bem enten<strong>de</strong>r (!)<br />
Se não gosta do modo como conduzo minha vida<br />
Faça melhor... cui<strong>de</strong> da sua<br />
Beijo&voltesempre;)<br />
Segundo Louro (2000), o sujeito precisa <strong>de</strong> algo que dê um<br />
fundamento para suas ações <strong>de</strong> uma forma que lhes garanta coerência, por<br />
isso, constroem narrativas pessoais, autobiografias. Em muitas “autobiografias”<br />
encontradas em perfis <strong>de</strong> Orkut, por exemplo, o sujeito não apenas tenta<br />
54
fundamentar suas ações, como busca uma forma para partilhar com os outros,<br />
atributos originais que ele julga possuir, o seu “ser autêntico”, único, singular,<br />
como é visível na expressão “eu sou única”. Em outras palavras, é nessa<br />
“escrita <strong>de</strong> si” que ele acredita revelar sua singularida<strong>de</strong>, sua marca i<strong>de</strong>ntitária<br />
que o torna diferente e ao mesmo tempo, normal, visto que é <strong>de</strong>ssa forma que<br />
terá a aceitação do outro - “gostou amore?”.<br />
É possível perceber no texto em análise que o sujeito discursivo<br />
constrói a imagem <strong>de</strong> seu interlocutor (o leitor do seu perfil) e antecipa <strong>de</strong><br />
forma dialogizante uma resposta a esse interlocutor: “Se não gosta do modo<br />
como conduzo minha vida - Faça melhor... cui<strong>de</strong> da sua”. E é a imagem<br />
<strong>de</strong>sse interlocutor (sujeito simbólico) que prescreve o que o sujeito po<strong>de</strong> ou não<br />
escrever (dizer) no perfil.<br />
Nesses e em muitos outros textos <strong>de</strong> perfil <strong>de</strong> Orkut é possível<br />
encontrar uma tentativa dos sujeitos <strong>de</strong> marcar sua autenticida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r<br />
aos pré-conceitos sociais, <strong>de</strong> reafirmar-se enquanto i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero, <strong>de</strong><br />
sexo, religião, raça. Entretanto, é nesse espaço que os sujeitos muitas vezes<br />
confessam sua legítima condição <strong>de</strong> assujeitamento, <strong>de</strong> interpelação pela<br />
i<strong>de</strong>ologia que pré-existe à sua individualida<strong>de</strong> e que o pren<strong>de</strong> à condição <strong>de</strong> ser<br />
social.<br />
Consi<strong>de</strong>rações gerais<br />
Nos textos <strong>de</strong> perfis <strong>de</strong> Orkut é possível perceber que muitos<br />
usuários <strong>de</strong>sse site <strong>de</strong> relacionamento, assumem, enquanto sujeitos<br />
discursivos, uma forma-sujeito que tem a ilusão <strong>de</strong> ser a origem do sentido<br />
(MALDIDIER, 2003), expondo textos que não são <strong>de</strong> sua autoria e, muitos<br />
sequer citam a fonte <strong>de</strong>sses textos, agindo apenas pela i<strong>de</strong>ntificação 5 com o<br />
discurso encontrado nesses textos. Desse modo, apropriam-se <strong>de</strong> músicas,<br />
5 A interpelação do indivíduo em sujeito <strong>de</strong> seu discurso se efetua pela i<strong>de</strong>ntificação (do sujeito)<br />
com a formação discursiva que o domina (isto é na qual ele é constituído como sujeito): essa<br />
i<strong>de</strong>ntificação, fundadora da unida<strong>de</strong> (imaginária) do sujeito, apóia-se no fato <strong>de</strong> que os<br />
elementos do interdiscurso [...] que constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o<br />
<strong>de</strong>termina, são reinscritos no discurso do próprio sujeito (PÊCHEUX, 1977, p.163 apud<br />
FERNANDES, 2008).<br />
55
poesias, biografias, escritas <strong>de</strong> outros sujeitos a fim <strong>de</strong> tentar <strong>de</strong>screver,<br />
(re)afirmar suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Trazem <strong>de</strong> outra(s) voz(es) discursos que<br />
acreditam reafirmar o que/quem representam/são na/para a socieda<strong>de</strong>,<br />
discursos esses que tentam respon<strong>de</strong>r afirmativamente a uma interpelação e<br />
estabelecer um sentido <strong>de</strong> pertencimento a um grupo social <strong>de</strong> referência<br />
(LOURO, 2000).<br />
Nesses discursos, os sujeitos inscritos assumem várias posições-<br />
sujeito. Alguns se revestem <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias dominantes - como a da matriz<br />
heteronormativa, da socieda<strong>de</strong> normatizadora/normalizadora, patriarcal,<br />
alienante. Outros subvertem, resistem, negam essas i<strong>de</strong>ologias. Porém, são os<br />
discursos midiáticos, políticos, religiosos, normatizadores que marcam vários<br />
discursos dos textos <strong>de</strong> usuários <strong>de</strong> Orkut.<br />
O Orkut é um espaço discursivo on<strong>de</strong> os sujeitos po<strong>de</strong>m afirmar<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s suas e alheias, buscar o seu “ser autêntico” (a subjetivida<strong>de</strong>) e<br />
negar/resistir a discursos i<strong>de</strong>ológicos. Nesse espaço, há ainda o jogo <strong>de</strong><br />
imagens, pois os sujeitos fazem imagem <strong>de</strong> si para seus interlocutores, fazem<br />
a imagem <strong>de</strong>stes para si, fazem a imagem do objeto do discurso (a “escrita <strong>de</strong><br />
si”), posicionam-se no lugar <strong>de</strong> seus interlocutores ao escrever sobre si, enfim,<br />
há uma relação imaginária que revela um sujeito submetido à sua própria<br />
natureza inconsciente.<br />
Os textos <strong>de</strong> perfil <strong>de</strong> Orkut revelam também que outra forma <strong>de</strong> se<br />
(re)afirmar enquanto “ser autêntico” é resistir aos já-ditos que constroem as<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s existentes. Alguns grupos <strong>de</strong> resistência recorrem ao “não-dizer”<br />
para se reafirmarem como “ser autêntico”. Ao se recusar a falar <strong>de</strong> si, o sujeito<br />
preten<strong>de</strong> dizer que não existe um referencial que o i<strong>de</strong>ntifique, que o <strong>de</strong>screva.<br />
Isso se confirma em textos que dizem “Quem sou eu: Cego, surdo e mudo” ou<br />
“in<strong>de</strong>scritivelmente in<strong>de</strong>scritível”, “não há palavras que possam me<br />
representar”. A respeito disso, Agustini (2007, p.306) atesta que:<br />
[...] se o sujeito resiste é porque algo do exterior lhe afeta <strong>de</strong> modo<br />
constitutivo, o que significa dizer que há aí um trabalho sobre<br />
sentidos já-dados, já-sedimentados, produzindo uma necessida<strong>de</strong><br />
discursiva referente à textualização do político 6 , <strong>de</strong> se voltar sobre<br />
essa memória, (<strong>de</strong>s)dobrando-a em uma enunciação outra. Esse<br />
6 Para enten<strong>de</strong>r sobre “textualização do político” ver Courtine (1981), Orlandi (1999).<br />
56
movimento constitutivo parece negar a existência <strong>de</strong> processos <strong>de</strong><br />
subjetivação.<br />
Desse modo, a autora propõe que a relação entre o dizer e o sujeito<br />
do dizer não é apenas <strong>de</strong> reforço (dobra) <strong>de</strong> memória, mas também <strong>de</strong><br />
resistência a ela.<br />
Muitos sujeitos que se inscrevem nesses discursos (<strong>de</strong> perfil <strong>de</strong><br />
Orkut) parecem buscar por uma subjetivida<strong>de</strong> autêntica, e se<br />
esquecem/ignoram o fato <strong>de</strong> que são sujeitos heterogêneos, cindidos,<br />
atravessados pelo inconsciente, habitados por <strong>de</strong>sejos recalcados que<br />
irrompem via simbólico, pela linguagem onírica ou verbal (OLIVEIRA, 2004),<br />
constituídos por discursos pré-construídos sócio-historicamente. Muitos<br />
ignoram que o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ser diferente é materializado em dizeres já-ditos, em<br />
vozes que se entrecruzam, que não são, portanto, originários <strong>de</strong>sses sujeitos.<br />
Essa luta i<strong>de</strong>ntitária <strong>de</strong> se reafirmar no e pelo discurso, a ilusão <strong>de</strong><br />
singularida<strong>de</strong> revelada nesses lugares homogeneizantes apenas corrobora<br />
para que as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s se tornem cada vez mais fragmentadas,<br />
multifacetadas e confusas.<br />
É possível concluir, portanto, que esses textos produzem sim efeitos<br />
<strong>de</strong> (re)afirmação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e subjetivida<strong>de</strong>s. Porém, <strong>de</strong>vo salientar que o<br />
que foi apresentado aqui é apenas uma das várias interpretações dos efeitos<br />
que tais discursos po<strong>de</strong>m produzir. Ao consi<strong>de</strong>rar a opacida<strong>de</strong>, a não-<br />
transparência e não-evidência da linguagem abrem-se margens para que<br />
outros sentidos possam ser escavados, visto que assim como os sujeitos, as<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e os discursos, os sentidos também não são fixos, mas passíveis a<br />
novas posições e movências.<br />
Referências<br />
AGUSTINI, Carmem. (N)as dobraduras do dizer e (n)o não-um do sentido e do<br />
sujeito: um efeito da presença do interdiscurso no intradiscurso. In: INDURSKY,<br />
Freda; FER<strong>RE</strong>IRA, Maria Cristina Leandro. Análise do discurso no Brasil:<br />
mapeando conceitos, confrontando limites. <strong>São</strong> Carlos: Claraluz, 2007.<br />
57
AUTHIER-<strong>RE</strong>VUZ, J. W. Hétérogénéité montrée e hétérogénéité constitutive:<br />
élements pour une approache <strong>de</strong> láutre dans lê discours. In: DRLAV – Revue<br />
<strong>de</strong> Linguistique, n.26, 1982.<br />
BUTLER, J. Gen<strong>de</strong>r Trouble: Feminism and the Subversion of I<strong>de</strong>ntity. 10th<br />
ed. New York: Routledge, 1999.<br />
FERNANDES, Cleu<strong>de</strong>mar Alves. De sujeito a subjetivida<strong>de</strong> na Análise do<br />
Discurso. In: SARGENTINI, Vanice; G<strong>RE</strong>GOLIN, Maria do Rosário. Análise do<br />
Discurso: heranças, métodos e objetos. <strong>São</strong> Carlos: Claraluz, 2008, p.69-82.<br />
______. Análise do discurso: reflexões introdutórias. 2ª ed. <strong>São</strong> Carlos:<br />
Claraluz, 2007.<br />
______. Análise do discurso: reflexões introdutórias. Goiânia: Trilhas<br />
Urbanas, 2005.<br />
HALL, S. Quem precisa <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>? In: Silva, T. T. (Org.). I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e<br />
diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 103-<br />
133.<br />
HENRY, Paul. Os fundamentos teóricos metodológicos da “Análise Automática<br />
do Discurso”. In: GADET, F. HAK, T. Por uma análise automática do<br />
discurso. Uma introdução à obra <strong>de</strong> Michel Pêcheux. Campinas: Editora da<br />
Unicamp, 1997.<br />
LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da Sexualida<strong>de</strong>. In: LOURO, Guacira<br />
Lopes (Org.) O corpo educado: pedagogias da sexualida<strong>de</strong>. Belo Horizonte:<br />
Autêntica, 2000, p. 7-34.<br />
MALDIDIER, Denise. A inquietação do discurso. (Re)ler Michel Pêcheux hoje.<br />
Campinas: Pontes, 2003.<br />
MOITA LOPES, L. P. (Org.) Discursos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s: discurso como espaço<br />
<strong>de</strong> construção <strong>de</strong> gênero, sexualida<strong>de</strong>, raça, ida<strong>de</strong> e profissão na escola e na<br />
família. Campinas: Mercado <strong>de</strong> Letras, 2003.<br />
OLIVEIRA, Maria Regina Momesso <strong>de</strong>. Weblogs: a esposição <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>s<br />
adolescentes. In: SARGENTINI, Vanic; NAVARRO-BARBOSA, Pedro (Orgs.)<br />
M. Foucault e os domínios da linguagem: discurso, po<strong>de</strong>r, subjetivida<strong>de</strong>s.<br />
<strong>São</strong> Carlos: Claraluz, 2004, p. 201–214.<br />
ORLANDI, Eni P. Análise <strong>de</strong> Discurso. In ORLANDI, Eni; LAGAZZI-<br />
RODRIGUES, Suzy. Discurso e Textualida<strong>de</strong>. Campinas: Pontes, 2006.<br />
______. Análise <strong>de</strong> discurso: princípios e procedimentos. Campinas, <strong>São</strong><br />
Paulo. Pontes, 2007.<br />
58
PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD-69). Trad. E. P. Orlandi. In<br />
GADET, F. & & HAK, T. (Orgs.) Por uma análise automática do discurso:<br />
uma introdução à obra <strong>de</strong> Michel Pêcheux. Campinas, Editora da UNICAMP,<br />
1990. (título original, 1969) HAK, T. (Orgs.).<br />
59