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vii conferência internacional de história dos conceitos diálogos ...

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VII CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE HISTÓRIA<br />

DOS CONCEITOS<br />

DIÁLOGOS TRANSATLÂNTICOS<br />

HPSCG – History of Political and Social Concepts Group *<br />

IUPERJ – Instituto Universitário <strong>de</strong> Pesquisas do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, 7-9 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2004<br />

Auditório do Centro Cultural Petrônio Portela da Universida<strong>de</strong> Cândido Men<strong>de</strong>s<br />

PAINEL<br />

Organizado por:<br />

Lúcia Maria Bastos P. Neves (UERJ) & Guilherme Pereira das Neves (UFF)<br />

Apresentado no Workshop História <strong>dos</strong> Conceitos Brasileiros<br />

09/07/2004, 9h30<br />

CONTEÚDO:<br />

Guilherme Pereira das Neves (UFF) – Apresentação<br />

Rodrigo Elias C. Gomes (PPGH-UFF) – A Linguagem política absolutista na langue do<br />

séqüito pombalino – a “Divisão XII” da Dedução<br />

Cronológica<br />

Guilherme Pereira das Neves (UFF) – Pombalismo e constitucionalismo, linguagens<br />

políticas no ocaso do império<br />

William <strong>de</strong> Souza Martins (UGF/FIS) – A Oratória sagrada na corte joanina e na regência<br />

do príncipe D. Pedro (1808-1822)<br />

Lúcia Maria Bastos P. Neves (UERJ) – Revolução: em busca do conceito no império<br />

luso-brasileiro (1789-1822)<br />

Val<strong>de</strong>i Lopes <strong>de</strong> Araujo (UFOP) – A Constituição do conceito histórico <strong>de</strong> evolução<br />

no Brasil (1850-1880)<br />

Programação Geral do Evento<br />

* O trabalho do History of Political and Social Concepts Group po<strong>de</strong> ser acompanhado em<br />

www.jyu.fi/yhtfil/hpscg/in<strong>de</strong>x.html


APRESENTAÇÃO<br />

Em primeiro lugar, queremos expressar nossos agra<strong>de</strong>cimentos aos<br />

organizadores <strong>de</strong>sse encontro pela acolhida dispensada a esse conjunto <strong>de</strong> trabalhos –<br />

pois é disto que se trata. Certamente, eles ainda se encontram muito insuficientemente<br />

articula<strong>dos</strong> entre si e estão longe <strong>de</strong> explorar as temáticas escolhidas com o rigor e a<br />

consistência que se espera <strong>de</strong> uma <strong>história</strong> <strong>dos</strong> <strong>conceitos</strong> ou <strong>de</strong> uma <strong>história</strong> das<br />

linguagens políticas. Não obstante – assim esperamos que fique claro a seguir – eles<br />

constituem mais do que propostas <strong>de</strong> projetos, como foi anunciado no final da sessão <strong>de</strong><br />

ontem. Na realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>correm <strong>de</strong> teses e dissertações <strong>de</strong>fendidas ou na iminência <strong>de</strong> sê-<br />

lo, e também <strong>de</strong> alguns artigos e <strong>de</strong> pelo menos um livro já publica<strong>dos</strong> há algum tempo.<br />

Quando Lúcia e eu fizemos a proposta que nos levou a esta mesa redonda, foram<br />

duas as preocupações que nos moveram. Em primeiro lugar, saudamos esta VII<br />

Conferência como uma oportunida<strong>de</strong> única que se abria para nós <strong>de</strong> fugir do isolamento<br />

em que temos até agora trabalhado com as concepções <strong>de</strong> uma <strong>história</strong> <strong>dos</strong> <strong>conceitos</strong> e<br />

das linguagens políticas, isolamento este que implica em riscos óbvios; e, ao mesmo<br />

tempo, como uma ocasião para quebrar, tanto quanto possível, fronteiras<br />

interdisciplinares, ensejando um diálogo não só com pesquisadores estrangeiros<br />

experientes, mas igualmente com colegas <strong>de</strong> outras áreas ou instituições no Brasil. Em<br />

segundo lugar, tivemos a intenção <strong>de</strong> chamar a atenção para o caráter necessariamente<br />

coletivo <strong>de</strong> um esforço <strong>de</strong>sse tipo; por isso, não quisemos apresentar propostas<br />

individuais e preferimos oferecer uma espécie <strong>de</strong> painel, agregando ex-alunos, colegas e<br />

/ ou orientan<strong>dos</strong>, ainda que, até hoje, não se tenha iniciado um efetivo trabalho em<br />

conjunto. De qualquer modo, foi como historiadores que trabalhamos, ou seja, como<br />

pesquisadores atentos ao risco do anacronismo, como salientou aqui, numa intervenção,<br />

Pim <strong>de</strong>n Boer, e que não sabem fazê-lo a não ser recorrendo a fontes – neste caso,<br />

textos, que <strong>de</strong>vem passar por um escrutínio minucioso.<br />

Na realida<strong>de</strong>, a <strong>história</strong> <strong>dos</strong> <strong>conceitos</strong> e das linguagens políticas nos chegou há<br />

muitos anos através <strong>de</strong> um maravilhoso artigo <strong>de</strong> Melvin Richter, publicado na History<br />

and Theory em 1990 – artigo que Lúcia e eu temos discutido quase a cada ano com<br />

nossos alunos <strong>de</strong> pós-graduação, valendo-se, inclusive, en faute <strong>de</strong> mieux, <strong>de</strong> uma<br />

precária tradução para o português. No momento <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>scoberta, Lúcia estava às<br />

voltas com a cultura política da In<strong>de</strong>pendência para sua tese <strong>de</strong> doutorado, <strong>de</strong>fendida na<br />

USP em 1992, e ainda pô<strong>de</strong> inspirar-se nessas démarches. Para mim, naquela época, era<br />

mais difícil aplicar os procedimentos ao estudo do clero e <strong>de</strong> suas instituições que se iria<br />

2


converter em minha tese, também <strong>de</strong>fendida na USP, em 1994. No entanto, o <strong>de</strong>safio<br />

estava lançado e, nos anos seguintes, ao <strong>de</strong>scobrir outros autores, até periféricos ao<br />

núcleo duro da <strong>história</strong> <strong>dos</strong> <strong>conceitos</strong> e linguagens políticas, como o prematuramente<br />

falecido François-Xavier Guerra, tanto ela quanto eu, continuamos a nos aproximar<br />

cada vez mais da questão, por meio <strong>de</strong> alguns artigos e da tese <strong>de</strong> titular que Lúcia<br />

apresentou à UERJ em 2002.<br />

Paralelamente, ao longo <strong>de</strong>sse período, nossas preocupações não <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ser<br />

transmitidas, mesmo que indiretamente, a nossos orientan<strong>dos</strong>, como é o caso <strong>de</strong> Rodrigo<br />

Elias, também presente nesta mesa, e <strong>de</strong> Patrícia Car<strong>dos</strong>o, que vem <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r uma<br />

excelente dissertação na UFF sobre a polêmica <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada em 1746 pela publicação<br />

<strong>de</strong> O verda<strong>de</strong>iro método <strong>de</strong> estudar <strong>de</strong> Luís Antônio Vernei, na qual a idéia das<br />

linguagens políticas – talvez ela nem saiba! – está presente em tudo, exceto no nome. Já<br />

William Martins e Val<strong>de</strong>i Araújo, igualmente participantes <strong>de</strong>sta mesa, embora ex-<br />

alunos, agora doutora<strong>dos</strong> por outras instituições, encontraram, em gran<strong>de</strong> medida, por<br />

conta própria o caminho da <strong>história</strong> <strong>dos</strong> <strong>conceitos</strong> e das linguagens políticas, mas<br />

relações <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> talvez não sejam estranhas a essa opção e, sem dúvida, permitiram<br />

que acompanhássemos os seus trabalhos, possibilitando igualmente sua inserção nesta<br />

mesa.<br />

Ao nosso ver, essa investigação, se secundada pelos esforços <strong>de</strong> outros<br />

pesquisadores, <strong>de</strong> modo a cobrir um campo relativamente extenso, como se está<br />

tentando fazer aqui, tem o potencial <strong>de</strong> <strong>de</strong>sentranhar <strong>de</strong> uma concepção muito genérica<br />

das Luzes no mundo luso-brasileiro – Luzes ora caracterizadas como mitigadas,<br />

católicas, mediterrânicas ou envergonhadas – uma perspectiva mais clara <strong>de</strong> quais são<br />

as linhas <strong>de</strong> força que fizeram sua especificida<strong>de</strong>, como são a forte presença <strong>de</strong>sse<br />

constitucionalismo antigo e também da própria religião. Isso não é sem conseqüências<br />

para o futuro <strong>de</strong>sse passado – e para o próprio presente! – se a investigação for<br />

conduzida <strong>de</strong> acordo com uma perspectiva histórica consistente e calçada pela erudição<br />

necessária.<br />

Feita, assim, essa apresentação geral, passemos agora a uma rápida exposição<br />

das temáticas <strong>de</strong> cada um, obe<strong>de</strong>cendo a uma or<strong>de</strong>m cronológica, como convém a<br />

historiadores.<br />

3


A LINGUAGEM POLÍTICA ABSOLUTISTA NA LANGUE DO SÉQÜITO<br />

POMBALINO – A “DIVISÃO XII” DA DEDUÇÃO CRONOLÓGICA<br />

Rodrigo Elias Caetano Gomes<br />

PPGH – Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense<br />

A espada da justiça, que o arma, não é para<br />

ficar ociosa.<br />

Paulo, Epístola aos Romanos, capítulo 13,<br />

escrevendo sobre o po<strong>de</strong>r do governante.<br />

O tema <strong>de</strong>ste trabalho é a linguagem política <strong>de</strong>senvolvida por um grupo<br />

específico <strong>de</strong> publicistas no século XVIII português, dando-se aqui ênfase à obra<br />

intitulada Dedução Cronológica e Analítica, <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Seabra da Silva. 1 Este ato <strong>de</strong><br />

enunciação política, composto na década <strong>de</strong> 1760 como peça jurídica que incriminava a<br />

Companhia <strong>de</strong> Jesus por crimes <strong>de</strong> lesa-majesta<strong>de</strong>, pretendia legitimar – ou melhor, dar<br />

base para que se legitimasse – a supremacia da autorida<strong>de</strong> régia em terras lusitanas,<br />

rejeitando as teorias constitucionalistas, i<strong>de</strong>ntificadas na linguagem política absolutista<br />

como monarcômacas. Este termo entrara para terminologia política com a publicação,<br />

em 1600, do livro <strong>de</strong> William Barclay, Sobre a realeza e o po<strong>de</strong>r real, contra<br />

Buchanan, Brutus, Boucher e os outros Monarcômacos. No livro <strong>de</strong> Barclay, assim<br />

como nas outras obras <strong>de</strong> autores anticonstitucionalistas, o termo monarcômacos<br />

<strong>de</strong>signará autores tanto protestantes quanto católicos que, nos seus escritos, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a<br />

supremacia do ‘povo’ no que concerne ao po<strong>de</strong>r político, ou seja, a idéia <strong>de</strong> contrato, o<br />

que limitava a autorida<strong>de</strong> do príncipe. 2<br />

No período consi<strong>de</strong>rado – a segunda meta<strong>de</strong> do século XVIII – <strong>de</strong>ve-se<br />

observar a consi<strong>de</strong>rável importância, para a <strong>de</strong>limitação espacial da qual presentemente<br />

1<br />

Jozeph <strong>de</strong> Seabra da Silva. Deducção Chronologica, e Analytica. Parte primeira, na qual se<br />

manifestão pela successiva serie <strong>de</strong> cada hum <strong>dos</strong> Reyna<strong>dos</strong> da Monarquia Portuguesa, que <strong>de</strong>correrão<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Governo do Senhor Rey D. João III até o presente, os horrorosos estragos, que a Companhia<br />

<strong>de</strong>nominada <strong>de</strong> Jesus fez em Portugal, e to<strong>dos</strong> seus Dominios, por hum Plano, e Systema por Ella<br />

inalteravelmente seguido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que entrou neste Reyno, até que foi <strong>de</strong>lle proscripta, e expulsa pela<br />

justa, sabia, e provi<strong>de</strong>nte Ley <strong>de</strong> 3 <strong>de</strong> Setembro <strong>de</strong> 1759. Dada á luz pelo Doutor ..., Desembargador<br />

da Casa da Supplicação, e Procurador da Coroa <strong>de</strong> S. Magesta<strong>de</strong>, para servir <strong>de</strong> instrucção, e fazer<br />

parte do recurso, que o mesmo Ministro interpoz, e se acha pen<strong>de</strong>nte na Real Presença do dito<br />

SENHOR, sobre a indispensável necessida<strong>de</strong>, que insta pela urgente Reparação <strong>de</strong> algumas das mais<br />

attendiveis entre as Ruinas, cuja existencia se acha <strong>de</strong>turpando a Authorida<strong>de</strong> Regia, e oprimindo o<br />

Publico Socego. Em Lisboa, anno <strong>de</strong> MDCCLXVII. Na Officina <strong>de</strong> Miguel Manescal da Costa por<br />

or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Sua Magesta<strong>de</strong>.<br />

2 Cf. Mario Turchetti. Tyrannie et tyrannici<strong>de</strong> <strong>de</strong> l’Antiquité à nos jours. Paris, Presses Universitaires<br />

<strong>de</strong> France, 2001, p. 418.<br />

4


me ocupo – Portugal e América portuguesa –, do chamado pombalismo, ou seja, a<br />

matriz teórica reformista / centralizadora que tem lugar no Império Português e cujo<br />

principal símbolo é, obviamente, Sebastião José <strong>de</strong> Carvalho e Mello, po<strong>de</strong>roso ministro<br />

do rei d. José (1750-1777). Persuado-me a crer, contudo, que esta matriz teórica<br />

necessitou <strong>de</strong> uma base jurídico-política que estivesse além do próprio Pombal, que só<br />

po<strong>de</strong>ria ser dada por setores intelectuais que estivessem diretamente liga<strong>dos</strong> à<br />

problemática da secularização ou da passagem da transcendência à imanência, processo<br />

intelectual em curso <strong>de</strong>s<strong>de</strong> mea<strong>dos</strong> do século XVII no mundo europeu. Desta forma,<br />

resulta fundamental a apreciação <strong>de</strong> documentos que versem acerca <strong>dos</strong> papéis que a<br />

Igreja, os fiéis, a república (no sentido <strong>de</strong> res publica), o rei e os súditos teriam que<br />

<strong>de</strong>sempenhar no Imperium, misto <strong>de</strong> abstração e realida<strong>de</strong> que está sendo construído<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> finais do século XV e que, em mea<strong>dos</strong> do século XVIII, é favorecido no mundo<br />

português pela chamada “ditadura pombalina”. 3 Tocamos aqui na temática das<br />

linguagens políticas. Falemos um pouco mais sobre esta.<br />

J. G. A. Pocock, ao discorrer sobre o métier d’historien, nos dá algumas pistas<br />

acerca da consi<strong>de</strong>ração historiográfica <strong>dos</strong> discursos políticos. 4 Partindo da idéia mais<br />

geral <strong>de</strong> discurso, o historiador britânico alega que o conceito <strong>de</strong> uma linguagem<br />

política implica na asserção <strong>de</strong> que o que era comumente conhecido como <strong>história</strong> do<br />

pensamento político é agora conhecido como <strong>história</strong> do discurso político. Desta forma,<br />

argumenta Pocock, observa-se que os atores <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> <strong>história</strong> da qual ora nos<br />

ocupamos faziam parte <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada intelligentsia e eram treina<strong>dos</strong> em <strong>de</strong>terminada<br />

tradição, o que os levava a pensar politicamente <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada maneira. Entretanto,<br />

para que este pensar politicamente seja passível <strong>de</strong> ser historiado, é preciso que ele se<br />

concretize em ações e performances, ou seja, aquilo que o autor chama <strong>de</strong> atos <strong>de</strong><br />

discurso.<br />

Partindo <strong>de</strong>sta afirmação inicial – e, no fundo, idéia central <strong>de</strong> sua teoria –,<br />

este autor observa que um campo <strong>de</strong> estu<strong>dos</strong> que leve em consi<strong>de</strong>ração, ou tenha como<br />

foco central, este tipo <strong>de</strong> ato <strong>de</strong> discurso, <strong>de</strong>ve estar preocupado com o contexto<br />

semântico no qual estes são emiti<strong>dos</strong>. Desta forma, afirma Pocock, “um <strong>dos</strong> contextos<br />

3 Ver. Charles Ralph Boxer. O Império Colonial Português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1981.<br />

4 Ver. J. G. A. Pocock. “O conceito <strong>de</strong> linguagem e o métier d’historien”, in Linguagens do i<strong>de</strong>ário<br />

político. São Paulo, Edusp, 2003. (Clássicos, 25), pp. 63-82.<br />

5


primários em que um ato <strong>de</strong> enunciação é efetuado é aquele oferecido pelo modo <strong>de</strong><br />

discurso institucionalizado que o torna possível”, isto é, pela linguagem. 5<br />

Observei neste trabalho fragmentos <strong>dos</strong> discursos políticos na época<br />

mencionada através <strong>de</strong> uma perspectiva <strong>de</strong> longa duração. Para isto, recorri à concepção<br />

morfológica <strong>de</strong>fendida por Carlo Ginzburg em seu trabalho História Noturna, 6 on<strong>de</strong> o<br />

historiador italiano <strong>de</strong>monstra, através <strong>de</strong> um estudo <strong>de</strong> <strong>história</strong> cultural, a relação entre<br />

sincronia e diacronia na dinâmica histórica, estando esta imersa no binômio ruptura /<br />

permanência. Conjugada a esta noção, procurei utilizar também a noção <strong>de</strong> tradição, tal<br />

como foi tratada pelo filósofo alemão Hans-Georg Gadamer nas <strong>conferência</strong>s em que<br />

discutia a consciência histórica, 7 procurando assim associar indícios forneci<strong>dos</strong> pela<br />

morfologia às linguagens políticas pertencentes a <strong>de</strong>terminadas tradições.<br />

A obra <strong>de</strong> Seabra da Silva, publicada em Lisboa em 1767 “por or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Sua<br />

Majesta<strong>de</strong>” 8 , oferece ao público letrado lusitano a diacronia do sistema colocado em<br />

prática, segundo Seabra da Silva, pela Companhia <strong>de</strong> Jesus com o fim <strong>de</strong> minar a<br />

autorida<strong>de</strong> da monarquia lusitana <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1540.<br />

Trataremos, entretanto, <strong>de</strong> um capítulo que <strong>de</strong>monstra explicitamente as<br />

concepções políticas a partir das quais Seabra da Silva repudia o discurso político<br />

constitucionalista. É, conforme mencionei anteriormente, a “Divisão XII”. Tal divisão<br />

tem lugar especial na estrutura do livro. Ao contrário das outras 14 ‘divisões’, esta não<br />

se refere a um reinado. Destoando assim da rígida estrutura retórica seguida pelo autor,<br />

o próprio título da divisão oferece indícios do lugar que esta ocupa como base para a<br />

argumentação levada a cabo na obra. Ela trata especificamente do ‘absurdo’ político<br />

concretizado com as Cortes <strong>de</strong> 1668: a <strong>de</strong>posição <strong>de</strong> D. Afonso VI.<br />

Desta forma, José <strong>de</strong> Seabra da Silva inicia a “Divisão XII” classificando as<br />

referidas Cortes como “Sinédrio Jesuítico” (p. 350), o que já nos fornece bases para a<br />

constatação <strong>de</strong> que ocorre efetivamente uma confluência, no discurso do autor, <strong>de</strong><br />

tradições que vinham se separando nas linguagens políticas neste final do Antigo<br />

Regime. Ou seja, a assembléia política que <strong>de</strong>liberou pela <strong>de</strong>posição <strong>de</strong> um monarca é<br />

concebida em termos teológicos, como sinédrio, tribunal ju<strong>de</strong>u que, segundo a tradição<br />

cristã do Novo Testamento, con<strong>de</strong>nou Jesus Cristo à crucificação – cabe lembrar, a<br />

5 Cf. I<strong>de</strong>m, p. 64.<br />

6 Carlo Ginzburg. História Noturna: <strong>de</strong>cifrando o sabá. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.<br />

7 Hans-Georg Gadamer. O problema da consciência histórica. Rio <strong>de</strong> Janeiro, FGV, 1998.<br />

8 Cf. Joseph <strong>de</strong> Seabra da Silva. Op. cit., frontispício. Doravante, as indicações <strong>de</strong> páginas <strong>de</strong>sta obra<br />

seguem no texto, entre parênteses.<br />

6


partir <strong>de</strong> um erro jurídico, pois tal tribunal não teria jurisdição para con<strong>de</strong>nar à pena<br />

capital. Portanto, neste ‘simples’ jogo semântico, Seabra da Silva associa as Cortes<br />

(para Seabra, manipulada pelos inacianos) ao tribunal ju<strong>de</strong>u que extrapolara sua<br />

jurisdição, levando-nos a acreditar que o papel <strong>de</strong> Jesus Cristo caberia, obviamente, ao<br />

monarca <strong>de</strong>posto, D. Afonso VI.<br />

Após a apresentação geral do problema, Seabra da Silva passa a discorrer<br />

sobre o mesmo a partir <strong>de</strong> ângulos diversos, chama<strong>dos</strong> <strong>de</strong> fundamentos.<br />

O primeiro seria a própria <strong>história</strong> do Reino. Apelando para um princípio<br />

constitucionalista, o ‘pacto’, que no caso lusitano ter-se-ia firmado nas lendárias Cortes<br />

<strong>de</strong> Lamêgo, o autor afirma que as Cortes <strong>de</strong> 1668 não po<strong>de</strong>riam perverter, “em terra <strong>de</strong><br />

Cristãos”, a “Lei fundamental” ou “princípio da Socieda<strong>de</strong> Civil” portuguesa – “o mais<br />

inviolável Monumento da Civilida<strong>de</strong>, e do sossego público” (p. 355), as Atas das Cortes<br />

<strong>de</strong> Lamêgo. Este ponto é fundamental para a parole <strong>de</strong> Seabra da Silva e, por<br />

conseguinte, para a langue pombalina: ele se apropria <strong>de</strong> um princípio teórico<br />

originalmente constitucionalista – o pacto firmado no contrato social – como<br />

legitimador do po<strong>de</strong>r absoluto do monarca.<br />

O segundo fundamento a partir do qual Seabra da Silva <strong>de</strong>slegitima as Cortes<br />

<strong>de</strong> 1668 e, por conseguinte, a langue constitucionalista, é a própria concepção ortodoxa<br />

do Absolutismo monárquico. Para tanto, este autor firma-se em De Real. Segundo este,<br />

Portugal estaria, juntamente com França, Espanha, as Duas Sicílias e a Sar<strong>de</strong>nha, entre<br />

os governos monárquicos da Europa, os quais não reconheceriam “Superior na<br />

Temporalida<strong>de</strong>”, ou seja, seria uma monarquia in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, cujo monarca não seria<br />

vassalo <strong>de</strong> qualquer outro potentado político. (p. 357)<br />

Ainda seguindo o estilo retórico <strong>de</strong>liberativo aristotélico, tradição da qual a<br />

empreitada ‘ilustrada’ pombalina preten<strong>de</strong>ra expurgar o pensamento político lusitano,<br />

Seabra da Silva vai recolher exemplos na Roma imperial, afirmando assim a<br />

indivisibilida<strong>de</strong> da majesta<strong>de</strong>, ou seja, do po<strong>de</strong>r político monárquico. Seguindo<br />

posteriormente o que havia dito Loyseau no tratado Dos Senhorios, o ilustre membro do<br />

séqüito pombalino afirma, mais uma vez, que o governo monárquico não admite po<strong>de</strong>r<br />

igual ou superior que possa limitar o seu “Pleno Po<strong>de</strong>r” (p. 358) – ou seja, po<strong>de</strong>r<br />

absoluto.<br />

Os dois fundamentos seguintes sobre os quais este autor anti-monarcômaco<br />

constrói sua parole são <strong>de</strong> caráter estritamente teológico. O primeiro <strong>de</strong>les, que recebem<br />

títulos que por si só comprovam esta última afirmação, é por “serem os referi<strong>dos</strong><br />

7


Atenta<strong>dos</strong> das chamadas Cortes incompatíveis com a Lei Divina do Testamento Velho,<br />

e por ela <strong>de</strong>cisivamente reprova<strong>dos</strong>” (p. 359), título do terceiro fundamento da “Divisão<br />

XII”.<br />

Com o claro objetivo <strong>de</strong> conformar o centralismo pombalino à ortodoxia<br />

política cristã, Seabra da Silva passa a discorrer sobre o seu quarto fundamento para a<br />

<strong>de</strong>saprovação das Cortes <strong>de</strong> 1668. Trata-se agora <strong>de</strong> vê-las sob o prisma do Novo<br />

Testamento. E o teórico político escolhido para dar base às pretensões pombalinas não<br />

po<strong>de</strong>ria ser outro senão Ele. Jesus Cristo, segundo o evangelista João, afirmou que o<br />

próprio Pai o enviara à Terra – diz Seabra da Silva – sem “jurisdição Temporal nos<br />

Reinos <strong>de</strong>ste Mundo. E o mesmo nos <strong>de</strong>ixou outra vez igualmente <strong>de</strong>clarado pelo<br />

mesmo Evangelista S. João no outro Capítulo XII: Dizendo, que não viera ao Mundo<br />

para o julgar; mas sim para salvar o Mundo.” (p. 362) Assim, em um ambiente<br />

profundamente preso à ortodoxia religiosa cristã <strong>de</strong> matriz católica, este autor utiliza as<br />

palavras do próprio Messias para <strong>de</strong>slegitimar a interferência da Igreja em assuntos<br />

temporais.<br />

Saindo do campo <strong>de</strong> justificações que Seabra po<strong>de</strong>ria consi<strong>de</strong>rar – pela<br />

estrutura do texto – estritamente teológico, o autor passa a consi<strong>de</strong>rar, no Quinto<br />

fundamento, as razões que tocam a esfera <strong>dos</strong> direitos Divino e Natural. Para Seabra da<br />

Silva, tanto o Velho quanto o Novo Testamento não trariam leis novas quanto à<br />

obediência aos governantes e às prerrogativas <strong>dos</strong> mesmos. Ao contrário, só<br />

reafirmariam aquilo que já era sabido. Segundo o autor da Dedução Cronológica, Deus<br />

já teria infundido em to<strong>dos</strong> os homens, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>dos</strong> tempos, estas leis que diziam<br />

respeito ao po<strong>de</strong>r <strong>dos</strong> soberanos, na forma do Direito Divino e do Direito Natural.<br />

Segundo Seabra da Silva, foi por conta <strong>de</strong>stes que o po<strong>de</strong>r político <strong>dos</strong> governantes<br />

havia sido respeitado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a criação do mundo, com vistas a manter o sossego público.<br />

(p. 366)<br />

Concluindo seus argumentos contra a concepção contratualista <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r,<br />

afirma que a convocação <strong>de</strong> cortes só se fazia (como nas duas primeiras) pela vonta<strong>de</strong><br />

do rei <strong>de</strong> se aconselhar com muitos. Agora, não seria mais tão necessário, pois “ainda<br />

hoje se pratica justamente nas Leis pelas palavras = Tendo ouvido os do Meu Conselho,<br />

e muitos outros Ministros <strong>de</strong> Letras, e Virtu<strong>de</strong>s =: E não tinham para isso outros meios,<br />

enquanto careceram <strong>de</strong> Tribunais Superiores, e Ministros Territoriais, e Locais.” (p.<br />

409) A convocação das Cortes era, portanto, contingente. Agora, com o Estado<br />

<strong>de</strong>vidamente aparelhado, o recurso aos ministros era a única necessida<strong>de</strong> para o bom<br />

8


exercício do po<strong>de</strong>r por parte do monarca. Os jesuítas, por conseguinte, ao tramarem as<br />

Cortes <strong>de</strong> 1668 e a <strong>de</strong>posição <strong>de</strong> um rei, não fizeram outra coisa senão perturbar um<br />

sistema jurídico-político harmônico; seguindo os preceitos <strong>dos</strong> heresiarcas Buchanan e<br />

Rosseo, colocaram em risco a segurança do Estado e da comunida<strong>de</strong> cristã,<br />

posicionando-se contra a legitimida<strong>de</strong> divina e natural <strong>dos</strong> supremos governantes <strong>de</strong><br />

empunhar o gládio da justiça.<br />

9


POMBALISMO E CONSTITUCIONALISMO,<br />

LINGUAGENS POLÍTICAS NO OCASO DO IMPÉRIO<br />

Guilherme Pereira das Neves 9<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense<br />

No final <strong>de</strong> 1805, após os impasses a que tinha conduzido sua atuação entre<br />

1798 e 1802 como bispo em Pernambuco, J. J. da C. <strong>de</strong> Azeredo Coutinho (1742-1821),<br />

natural <strong>de</strong> Campos, solicitou licença à Real Mesa Censória para publicar em Portugal<br />

uma obra em que <strong>de</strong>fendia o tráfico <strong>de</strong> escravos. 10 O pedido recebeu um longo e<br />

minucioso parecer <strong>de</strong>sfavorável <strong>de</strong> Antônio Ribeiro <strong>dos</strong> Santos, clérigo como ele, lente<br />

em Coimbra, autor <strong>de</strong> diversas obras e conhecido pela participação em célebre polêmica<br />

com Pascoal <strong>de</strong> Mello Freire, a respeito do projeto <strong>de</strong> um novo código <strong>de</strong> leis, or<strong>de</strong>nado<br />

por d. Maria I (1777-1792). 11<br />

Na realida<strong>de</strong>, a obra, “o mais completo repositório das idéias políticas” <strong>de</strong><br />

Azeredo Coutinho, nas palavras <strong>de</strong> Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda, <strong>de</strong>fendia a escravidão e<br />

o tráfico apenas como meio para atingir um outro alvo. 12 Como esclarece o bispo já na<br />

“Dedicatória”, o “objeto principal <strong>de</strong>sta Análise é o <strong>de</strong> <strong>de</strong>smascarar os insidiosos<br />

princípios da seita filosófica”, que tinham passado a circular liga<strong>dos</strong> à Revolução<br />

Francesa. 13 Isso porque, em sua concepção do po<strong>de</strong>r, “o homem, para viver em<br />

socieda<strong>de</strong>, não precisa fazer pactos; antes, pelo contrário, é necessário uma força para o<br />

apartar <strong>de</strong>la.” (p. 243-5) Tal força<br />

é uma obra totalmente da natureza para os seus fins, assim como a fome e a se<strong>de</strong><br />

para a existência <strong>dos</strong> homens; [...] logo, to<strong>dos</strong> os meios necessários para a<br />

existência das socieda<strong>de</strong>s, ainda que seja pela <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> alguns <strong>dos</strong> membros<br />

<strong>de</strong>la, que as quiserem arruinar ou <strong>de</strong>struir, são concedi<strong>dos</strong> pela mesma natureza que<br />

criou as socieda<strong>de</strong>s; logo, só <strong>de</strong>sta necessida<strong>de</strong> da existência das socieda<strong>de</strong>s é que<br />

se <strong>de</strong>vem <strong>de</strong>duzir to<strong>dos</strong> os direitos das socieda<strong>de</strong>s, e, por conseguinte, daqueles que<br />

têm o direito <strong>de</strong> a governar, e não <strong>dos</strong> supostos pactos e convenções. (p. 245-6)<br />

Ao mesmo tempo,<br />

9 Este trabalho contou com o apoio do CNPq e da FAPERJ, por conta <strong>de</strong> uma bolsa <strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong> e<br />

<strong>de</strong> um projeto PRONEX, coor<strong>de</strong>nado por Ronaldo Vainfas.<br />

10 “Análise sobre a justiça do comércio do resgate <strong>dos</strong> escravos da costa da África”. In: Rubens Borba <strong>de</strong><br />

Moraes (ed.). Obras econômicas <strong>de</strong> J. J. da Cunha <strong>de</strong> Azeredo Coutinho. São Paulo: Ed. Nacional,<br />

1966. p. 231-307.<br />

11 Para Ribeiro <strong>dos</strong> Santos, ver José Esteves Pereira. O pensamento político em Portugal no século<br />

XVIII: António Ribeiro <strong>dos</strong> Santos. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1983.<br />

12 Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda. Apresentação. In: Rubens Borba <strong>de</strong> Moraes (ed.). Obras econômicas <strong>de</strong><br />

J. J. da Cunha <strong>de</strong> Azeredo Coutinho. São Paulo: Ed. Nacional, 1966. p. 13-53. p. 49.<br />

10


como uma gran<strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> [...] não po<strong>de</strong> ser governada e dirigida por toda ela ao<br />

mesmo tempo, porque tudo seria tumultuário, anárquico e sem or<strong>de</strong>m, [...] foi<br />

absolutamente necessário para o maior bem <strong>dos</strong> mesmos homens em socieda<strong>de</strong><br />

[...], autorizar certo po<strong>de</strong>r ou po<strong>de</strong>res para fazerem as leis, e por elas regularem o<br />

maior bem da socieda<strong>de</strong> [...] em tais ou tais circunstâncias; logo, os direitos <strong>dos</strong><br />

que estão autoriza<strong>dos</strong> para fazer o bem das socieda<strong>de</strong>s [...] são provenientes da<br />

necessida<strong>de</strong> da existência das mesmas socieda<strong>de</strong>s [...] <strong>de</strong> que eles estão<br />

encarrega<strong>dos</strong>. (p. 248, grifo no original)<br />

Assim, embora a or<strong>de</strong>m na multidão possa ter sido estabelecida por meio <strong>de</strong><br />

eleições, por uma proclamação ou qualquer outro meio, para evitar a <strong>de</strong>struição da<br />

socieda<strong>de</strong>, é necessário punir os transgressores, que ameaçam a existência da socieda<strong>de</strong>;<br />

o que exige, por sua vez, um juiz “imparcial e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”. Como, porém, “não se<br />

po<strong>de</strong> dizer in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte aquele cujas ações ou <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do juízo e censura do<br />

outro, necessariamente se <strong>de</strong>ve confessar que o po<strong>de</strong>r ou po<strong>de</strong>res, quaisquer que eles<br />

sejam, [...] <strong>de</strong>vem absolutamente ser in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes do juízo e censura <strong>de</strong>ssa multidão<br />

[...]” (p. 298-9)<br />

Por isso, confessa “ingenuamente” o prelado, não ver outro juiz para os abusos<br />

do exercício do po<strong>de</strong>r pelas autorida<strong>de</strong>s constituídas senão Deus. E “esta é a razão<br />

porque até antes da seita <strong>dos</strong> novos filósofos era reconhecido como um princípio <strong>de</strong><br />

eterna verda<strong>de</strong> em política que a pessoa do soberano ou soberanos é um ente sagrado,<br />

acima do qual, neste mundo, não há juiz.” (p. 299-300) Como resultado, qualquer<br />

membro da socieda<strong>de</strong> “tem direito <strong>de</strong> propor ao soberano legislador [...] tudo o que lhe<br />

parecer ao bem do todo da socieda<strong>de</strong>, pois que o legislador, como homem, é sujeito ao<br />

erro e ao engano”. No entanto, “se o legislador não emendar a sua lei, [...] <strong>de</strong>ve este<br />

sujeitar-se à <strong>de</strong>cisão como fundada em justa razão <strong>de</strong> alguma circunstância que ele<br />

ignora; mas nunca <strong>de</strong>ve resistir, [...] porque seria arrogar-se um direito que lhe não<br />

compete [...].” (p. 253)<br />

Apesar <strong>de</strong> excessivamente sumário, esse resumo da concepção do po<strong>de</strong>r em<br />

Azeredo Coutinho permite estabelecer a distância que o separava <strong>de</strong> seu censor. Em seu<br />

parecer, Antônio Ribeiro <strong>dos</strong> Santos consi<strong>de</strong>ra que a obra do bispo contém certos<br />

princípios gerais que enten<strong>de</strong> “serem erra<strong>dos</strong>, ou mal seguros, e <strong>de</strong> mui temerosas<br />

conseqüências”. 14 São aqueles que estabelecem a<br />

13 “Análise...”, p. 233. Doravante, as páginas vão indicadas no texto.<br />

14 António Ribeiro <strong>dos</strong> Santos. Parecer (1806). Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Real<br />

Mesa Censória, Licença <strong>de</strong> Impressão, caixa 58, documento 115. p. 2. Doravante, as páginas vão<br />

indicadas no texto.<br />

11


total e absoluta <strong>de</strong>negação ou exclusão <strong>dos</strong> pactos sociais, e até [a] sua<br />

possibilida<strong>de</strong>, tanto expressos como tácitos; e a positiva asserção <strong>de</strong> que o sistema<br />

das convenções sociais é inteiramente contrário à natureza do homem e <strong>de</strong>struidor<br />

da or<strong>de</strong>m social, doutrina só própria <strong>de</strong> Hobbes, <strong>de</strong> Maquiavel ou <strong>de</strong> outro algum<br />

falso político; e doutrina que o autor <strong>de</strong>ste papel, por quão boas julgo as suas<br />

intenções, não teria jamais adotado, se se tivesse acautelado da confusão <strong>de</strong> idéias<br />

com que proce<strong>de</strong> neste Discurso [...]. (p. 2)<br />

Para Ribeiro <strong>dos</strong> Santos, Azeredo Coutinho confun<strong>de</strong> as noções <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong><br />

“menor simples ou <strong>de</strong> família, <strong>de</strong> que o homem necessita logo que ele nasce e que é<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> pacto positivo” e aquelas <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> “composta maior ou civil e<br />

política”; e disso seguem-se “ruinosas conseqüências”,<br />

por quanto, postos semelhantes princípios, vem a <strong>de</strong>struir-se inteiramente o único<br />

fundamento legítimo <strong>de</strong> to<strong>dos</strong> os impérios e a origem <strong>dos</strong> direitos <strong>dos</strong> príncipes e<br />

das obrigações <strong>dos</strong> vassalos, qual é o consenso geral <strong>dos</strong> povos, seja expresso seja<br />

tácito, seja anterior seja posterior e superveniente à ereção <strong>dos</strong> Esta<strong>dos</strong>, sem o qual<br />

não po<strong>de</strong> haver império que não venha da força e da violência <strong>de</strong> um conquistador<br />

e usurpador, que nunca po<strong>de</strong> ter direito <strong>de</strong> reinar sobre homens livres pela natureza,<br />

enquanto não sobrevem o concurso do consentimento, ou expresso ou tácito, <strong>dos</strong><br />

povos que a posteriori o ratifique e consoli<strong>de</strong>. (p. 2-3)<br />

A sustentarem-se, portanto, os princípios <strong>de</strong> Azeredo,<br />

vem consequentemente a combater-se também as leis fundamentais positivas <strong>dos</strong><br />

impérios, sejam monárquicos, sejam aristocráticos, sejam ainda <strong>de</strong>mocráticos, que<br />

não são realmente outra coisa senão pactos e convenções sociais <strong>dos</strong> povos<br />

relativos à união e or<strong>de</strong>m civil, à forma do governo, à pessoa física ou moral do<br />

imperante e à maneira <strong>de</strong> sua administração e regimento e vem igualmente a<br />

combater-se as eleições <strong>dos</strong> povos nos absolutos interregnos e os juramentos<br />

recíprocos que os povos e os mesmos príncipes prestam na sua exaltação ao trono,<br />

que são outros tantos pactos e convenções sociais e civis. (p. 3)<br />

Recorrendo então à erudição histórica, insiste Ribeiro <strong>dos</strong> Santos que, ao<br />

argumentar <strong>de</strong>ssa forma, não seria possível sustentar em direito, como são sustenta<strong>dos</strong>,<br />

“os títulos augustos e soberanos da legítima origem e autorida<strong>de</strong> da coroa <strong>de</strong> nossos<br />

reis”, posto que se fundam “na cessão <strong>de</strong> direitos da coroa <strong>de</strong> Leão, que já os houvera da<br />

lei fundamental <strong>dos</strong> povos na eleição <strong>de</strong> Pelágio”. Assim como ocorreu “<strong>de</strong>pois na<br />

aclamação pelos povos do sr. d. Afonso Henriques”, naquela <strong>de</strong> d. João I e “na outra do<br />

sr. d. João IV, que foi um <strong>dos</strong> mais sóli<strong>dos</strong> títulos e padrões da elevação da real casa <strong>de</strong><br />

Bragança ao trono <strong>de</strong> Portugal.” E acrescenta:<br />

[d]o que fica pon<strong>de</strong>rado, se vê que semelhante doutrina, bem contra as mesmas<br />

intenções do autor <strong>de</strong>ste papel, como se <strong>de</strong>ve presumir, por si mesma e por suas<br />

conseqüências, <strong>de</strong>strói os fundamentos das legítimas socieda<strong>de</strong>s civis e se opõem<br />

aos verda<strong>de</strong>iros interesses, direitos e obrigações <strong>dos</strong> povos; e é mais perigosa e<br />

funesta aos mesmos príncipes do que a outra revolucionária e sediciosa <strong>dos</strong><br />

monarcômacos [atacada por Azeredo]. (p. 4)<br />

12


Contemporâneos no tempo, próximos pela condição comum <strong>de</strong> eclesiásticos e<br />

integrantes da mesma reduzida elite intelectual luso-brasileira ilustrada, o bispo e o<br />

censor pertenciam sem dúvida a universos mentais distintos, cuja configuração procedia<br />

<strong>de</strong> tradições diversas do pensamento político nos Tempos Mo<strong>de</strong>rnos. 15 No caso do<br />

primeiro, os fundamentos <strong>de</strong> sua argumentação, embora não o revele, encontram-se<br />

naqueles autores da segunda escolástica, como Vitória e Suárez, divulga<strong>dos</strong> pelos<br />

jesuítas, para os quais<br />

‘o po<strong>de</strong>r da comunida<strong>de</strong> é transferido absolutamente’ ao seu governante [...], <strong>de</strong><br />

modo que ‘ele jamais po<strong>de</strong> ser tomado como mantido <strong>de</strong> uma forma meramente<br />

<strong>de</strong>legada’ [...]. Segue-se que jamais po<strong>de</strong>mos falar da ação da comunida<strong>de</strong><br />

‘transferindo o po<strong>de</strong>r da comunida<strong>de</strong> ao príncipe’ como um ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>legação que<br />

<strong>de</strong>ixa a comunida<strong>de</strong> ela própria com o controle último. Ao contrário, <strong>de</strong>vemos<br />

concordar que ‘tal transferência não é um ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>legação, mas <strong>de</strong> preferência<br />

uma espécie <strong>de</strong> alienação’ [...], como resultado da qual ao governante ‘é atribuído<br />

po<strong>de</strong>r absoluto, para ser usado por si mesmo ou seus agentes <strong>de</strong> qualquer maneira<br />

que julgar conveniente’ [...]. 16<br />

Sob esse aspecto, mostrava-se perfeitamente afinado com Pascoal <strong>de</strong> Mello Freire, o<br />

autor do projeto do novo código, e com muitos outros, que eram her<strong>de</strong>iros da eclética<br />

ótica pombalina, tal como ela transparece, pelo menos, na famosa Dedução cronológica<br />

e analítica. 17 No entanto, por outro lado, essa linguagem do aristotelismo político 18 do<br />

pombalismo vê-se temperada, em sua obra, por um curioso historicismo, que o faz dizer<br />

que “a justiça das leis humanas não é, nem po<strong>de</strong> ser absoluta, mas sim relativa às<br />

circunstâncias” (p. 238). Afinal, para o bispo, se o direito natural é ditado pela razão<br />

natural, “o menino, o velho, o sábio, o ignorante, têm cada um sua razão particular, a<br />

que ele chama natural; logo, são tantos os direitos naturais quantas são as razões do<br />

menino, do velho, do sábio, do ignorante, etc.” (p. 242) Já o censor filiava-se, sem<br />

tergiversar, à tradição do direito natural que, <strong>de</strong> Grócio a Rousseau, valorizou cada vez<br />

mais a razão a-histórica, característica das Luzes, para estabelecer o método <strong>de</strong>dutivo e<br />

15<br />

Para a idéia <strong>de</strong> tradição, cf. Hans-Georg Gadamer. O problema da consciência histórica. Trad. <strong>de</strong> P.<br />

C. D. Estrada. Rio <strong>de</strong> Janeiro: FGV, 1998. Para maiores <strong>de</strong>talhes, cf. Guilherme P. Neves. Guardar<br />

mais silêncio do que falar: Azeredo Coutinho, Ribeiro <strong>dos</strong> Santos e a escravidão. In: José Luís<br />

Car<strong>dos</strong>o (org.). A economia política e os dilemas do império luso-brasileiro (1790-1822). Lisboa:<br />

Comissão Nacional para as Comemorações <strong>dos</strong> Descobrimentos Portugueses, 2001. p. 13-62.<br />

16<br />

Quentin Skinner. The Foundations of Mo<strong>de</strong>rn Political Thought. Cambridge: University Press, 1980.<br />

v. 2, p. 183.<br />

17<br />

Ver o capítulo 4, “A linguagem política absolutista na langue do séqüito pombalino”, da dissertação<br />

em elaboração <strong>de</strong> Rodrigo Elias Caetano Gomes, mestrando do PPGH-UFF.<br />

18<br />

Cf. Anthony Pag<strong>de</strong>n. Introduction. In: I<strong>de</strong>m (ed.). The Languages of Political Theory in Early-Mo<strong>de</strong>rn<br />

Europe. Cambridge: University Press, 1990. p. 1-17.<br />

13


abstrato no estudo do direito, em reação aos conflitos e instabilida<strong>de</strong>s <strong>dos</strong> séculos XVI e<br />

XVII e em oposição ao <strong>de</strong>safio cético lançado por autores como Montaigne e Bayle. 19<br />

Não obstante, essas diferenças não eram capazes <strong>de</strong> apagar um traço que os unia,<br />

aproximando-os <strong>de</strong> Edmund Burke, cujas idéias eram apreciadas no círculo do ministro<br />

Rodrigo <strong>de</strong> Souza Coutinho (1796-1803), afilhado <strong>de</strong> Pombal. 20 De fato, a perspectiva<br />

<strong>de</strong> Burke valorizava a common law e opunha-se à pretensão <strong>de</strong> ditar uma nova or<strong>de</strong>m<br />

social a partir da razão contida no direito natural, que viabilizara o sonho da Revolução<br />

Francesa. 21 Nesse sentido, embora tanto um quanto outro se voltassem, <strong>de</strong> maneiras<br />

diversas, para o passado como resultado <strong>de</strong> uma insatisfação com o presente, era, sem<br />

dúvida, Azeredo quem maior afinida<strong>de</strong> revelava com o autor irlandês, graças à sua<br />

preocupação <strong>de</strong> que se não introduzissem modificações abruptas, capazes <strong>de</strong> abalar a<br />

or<strong>de</strong>m estabelecida, em sua visão, suscetível, sim, <strong>de</strong> aperfeiçoamentos, mas impossível<br />

<strong>de</strong> superar. No caso do segundo, é verda<strong>de</strong>, o domínio da linguagem do direito natural<br />

afastava-o do historicismo <strong>de</strong> seu adversário e tornava-o menos antipático às propostas<br />

francesas <strong>de</strong> transformar o mundo a partir da razão; mas, na realida<strong>de</strong>, ele tampouco<br />

conseguia levar a lógica <strong>de</strong>ssa posição às últimas conseqüências. Na questão da<br />

escravidão, preferia “guardar mais silêncio do que falar” e, embora incomodassem-no<br />

os ranços absolutistas do pombalismo, que restringiam a liberda<strong>de</strong> do indivíduo e a<br />

ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma inscipiente esfera pública <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, revelava-se impotente para olhar<br />

em direção ao futuro e advinhar o liberalismo, pois era no passado da monarquia que<br />

buscava a solução do constitucionalismo.<br />

Nesse conservadorismo arraigado e nessa dificulda<strong>de</strong> para pensar a História<br />

como algo mais do que um acúmulo <strong>de</strong> benfeitorias materiais resi<strong>de</strong>m certamente traços<br />

importantes <strong>de</strong>ssas envergonhadas Luzes luso-brasileiras povoadas <strong>de</strong> clérigos. 22<br />

Contudo, produto <strong>de</strong> tradições muito mais <strong>de</strong>nsas e variadas, talvez, do que se supunha,<br />

19 M. E. Novak. Natural Law. In: John W. Yolton et al. The Blackwell Companion to the Enlightenment.<br />

Oxford: Blackwell, 1991. p. 351-2. Ver também John Dunn. “Contractualism”. In: The History of<br />

Political Theory and Other Essays. Cambridge: University Press, 1996. p. 39-65; Richard Tuck. The<br />

‘Mo<strong>de</strong>rn’ Theory of Natural Law. In: Pag<strong>de</strong>n (ed.). The Languages ..., p. 99-119; Robert Derathé.<br />

Jean-Jacques Rousseau et la science politique <strong>de</strong> son temps. Paris: Vrin, 1979; Georges Gusdorf. La<br />

Révolution galiléenne. Paris: Payot, 1969. v. 2, p. 480-3.<br />

20 José da Silva Lisboa. Prefácio. In: I<strong>de</strong>m (org.). Extratos das obras políticas e econômicas <strong>de</strong> Edmund<br />

Burke. Rio <strong>de</strong> Janeiro: na Imprensão Régia, 1812.<br />

21 J. G. A. Pocock. “Burke’s Analysis of the French Revolution”. In: Virtue, Commerce, and History:<br />

Essays on Political Thought and History, Chiefly in the Eighteenth Century. Cambridge: University<br />

Press, 1988. p. 193-212 e “Burke and the Ancient Constitution: A Problem in the History of I<strong>de</strong>as”.<br />

In: Politics, Language and Time: Essays on Political Thought and History. New York: Atheneum,<br />

1971. p. 202-32.<br />

22 O adjetivo “envergonhadas” é <strong>de</strong> Evaldo Cabral <strong>de</strong> Mello.<br />

14


como esse encontro 23 entre Azeredo Coutinho e Ribeiro <strong>dos</strong> Santos permite entrever,<br />

elas exigem uma pesquisa bem mais ampla do que aquela ao alcance <strong>de</strong> um pesquisador<br />

isolado e justificam iniciativas como a <strong>de</strong>sta mesa.<br />

23 Peter Burke. Varieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>história</strong> cultural. Trad. <strong>de</strong> A. Porto. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira,<br />

2000. p. 255-60<br />

15


A ORATÓRIA SAGRADA NA CORTE JOANINA<br />

E NA REGÊNCIA DO PRÍNCIPE D. PEDRO (1808-1822)<br />

William <strong>de</strong> Souza Martins<br />

Universida<strong>de</strong> Gama Filho<br />

Faculda<strong>de</strong>s Integradas Simonsen<br />

Por meio da análise da temática proposta, a comunicação em pauta preten<strong>de</strong><br />

aproximar dois campos <strong>de</strong> estu<strong>dos</strong>, à primeira vista bem distintos entre si: o exame das<br />

representações da socieda<strong>de</strong> cristã e da monarquia presentes nos sermões; e a pesquisa<br />

das idéias políticas e religiosas do clero atuante na época imediatamente anterior à<br />

emancipação política brasileira. No primeiro <strong>dos</strong> campos <strong>de</strong> estu<strong>dos</strong> referi<strong>dos</strong>, as<br />

análises mais importantes priorizam o século XVII e, sobretudo, a excepcional produção<br />

oratória do pe. Antônio Vieira 24 . Essa concentração <strong>de</strong> trabalhos historiográficos na<br />

época seiscentista <strong>de</strong>ixa praticamente <strong>de</strong> lado outras conjunturas da socieda<strong>de</strong> lusitana<br />

em que a eloqüência sagrada católica exerceu um papel <strong>de</strong> peso na produção e na<br />

divulgação <strong>de</strong> imagens relativas ao corpo social e à realeza. Por outro lado, o estudo das<br />

idéias do clero nas três décadas iniciais do século XIX leva em conta, acima <strong>de</strong> tudo, a<br />

participação do mesmo em movimentos <strong>de</strong> caráter liberal, como a revolução <strong>de</strong> 1817 e a<br />

Confe<strong>de</strong>ração do Equador (1824), ambos ocorri<strong>dos</strong> em Pernambuco 25 . Não obstante, é<br />

intrigante perceber que, no mesmo momento em que parte <strong>dos</strong> sacerdotes<br />

pernambucanos <strong>de</strong>safiava a autorida<strong>de</strong> monárquica, diversos representantes do clero<br />

fluminense faziam do púlpito um instrumento <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa da monarquia e da socieda<strong>de</strong> do<br />

Antigo Regime 26 .<br />

Uma das conjunturas que não recebeu a <strong>de</strong>vida atenção <strong>dos</strong> estudiosos da<br />

parenética luso-brasileira foi o período <strong>de</strong> permanência da corte joanina no Brasil.<br />

24 Vi<strong>de</strong>, por exemplo: Alcir Pécora. Teatro do sacramento. A Unida<strong>de</strong> Teológico-retórico-política <strong>dos</strong><br />

Sermões <strong>de</strong> Antônio Vieira. Campinas: Ed. da UNICAMP, São Paulo: Edusp, 1994; Luiz Felipe Baêta<br />

Neves. Vieira e a Imaginação Social Jesuítica. Maranhão e Grão-Pará no século XVII. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Topbooks, 1997.<br />

25 Ver, por exemplo: Fr. Venâncio Willeke, O.F.M. Os Franciscanos e a In<strong>de</strong>pendência do Brasil. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro-Brasília: IHGB, 1981; Gilberto Vilar <strong>de</strong> Carvalho. A Li<strong>de</strong>rança do Clero nas Revoluções<br />

Republicanas (1817 a 1824). Petrópolis: Vozes, 1980; e Marco Morel. Frei Caneca: entre Marília e a<br />

Pátria. Rio <strong>de</strong> Janeiro: FGV, 2000.<br />

26 Antônio Carlos Villaça aponta que, tal como o Seminário <strong>de</strong> Olinda, cujos estatutos tinham sido<br />

reforma<strong>dos</strong> <strong>de</strong> acordo com as diretrizes da ilustração ibérica, os estatutos da província franciscana do<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro haviam sido atualiza<strong>dos</strong> segundo as mesmas diretrizes, em 1776. Como explicar, então,<br />

a diferença na atuação <strong>dos</strong> sacerdotes das duas regiões, na década que antece<strong>de</strong>u a in<strong>de</strong>pendência?<br />

Vi<strong>de</strong> O Pensamento Católico no Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1975, p. 30.<br />

16


Somente os testemunhos <strong>de</strong> época e as análises <strong>de</strong> alguns poucos autores salientaram a<br />

importância da eloqüência sagrada naquele contexto, quando os fastos da monarquia<br />

eram infalivelmente acompanha<strong>dos</strong> pelas exibições <strong>dos</strong> pregadores nos numerosos<br />

templos da cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro e em outras localida<strong>de</strong>s da América portuguesa 27 .<br />

No que tange ao volume da produção oratória, talvez apenas os <strong>de</strong>cênios imediatamente<br />

posteriores à restauração monárquica, ocorrida em 1640, rivalizem com o período<br />

joanino. Entretanto, somente uma pequena parcela do avultado número <strong>de</strong> sermões<br />

prega<strong>dos</strong> neste último período logrou ser preservada. No interior <strong>de</strong>sse subconjunto, o<br />

trabalho em questão irá se <strong>de</strong>bruçar sobre as peças oratórias publicadas pela Impressão<br />

Régia entre os anos <strong>de</strong> 1808 e 1822. De acordo com o inventário mais completo <strong>dos</strong><br />

livros que vieram à lume com o selo da referida oficina, constam 53 peças <strong>de</strong> oratória<br />

sagrada, pregadas em diferentes partes do Brasil 28 . Em uma etapa mais adiantada da<br />

pesquisa, a análise <strong>de</strong>sses sermões impressos po<strong>de</strong>rá ser completada com o exame da<br />

produção oratória que permaneceu inédita, <strong>de</strong>positada na Biblioteca Nacional do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro e nas livrarias conventuais, ou que foi mais tar<strong>de</strong> coligida em outras<br />

publicações.<br />

Tendo em vista a predominância, nas socieda<strong>de</strong>s do Antigo Regime, da difusão<br />

oral da cultura em relação à transmissão escrita da mesma, a oratória sagrada adquiria<br />

uma repercussão muito mais ampla do que os trata<strong>dos</strong> políticos que tinham também<br />

como objeto a <strong>de</strong>fesa da realeza 29 . Enquanto estes últimos confinavam-se à esfera muito<br />

reduzida <strong>dos</strong> letra<strong>dos</strong>, as peças oratórias eram apresentadas aos súditos portugueses nos<br />

lugares on<strong>de</strong> costumavam freqüentar o culto divino, em diversas ocasiões ao longo do<br />

ano. A primeira tarefa que se impõe à análise <strong>de</strong>sses sermões é o estabelecimento <strong>de</strong><br />

critérios que os dividam <strong>de</strong> acordo com: a temática enfocada, que podia ser o elogio<br />

fúnebre, o panegírico, a oração em ação <strong>de</strong> graças, etc.; o lugar on<strong>de</strong> haviam sido<br />

prega<strong>dos</strong>, se na corte do Rio <strong>de</strong> Janeiro ou em qualquer outra localida<strong>de</strong> do Brasil; e,<br />

27 Ver, por exemplo: pe. Luiz Gonçalves <strong>dos</strong> Santos. Memórias para servir à História do Reino do<br />

Brasil (1825). Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1981, 2 v; Oliveira Lima. D. João VI no<br />

Brasil. 3 a ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Topbooks, 1996, p. 621; e Riolando Azzi. A Crise da Cristanda<strong>de</strong> e o<br />

Projeto Liberal (História do Pensamento Católico no Brasil, v. 2). São Paulo: Paulinas, 1991, pp. 147-<br />

160.<br />

28 Ana Maria <strong>de</strong> Almeida Camargo e Rubens Borba <strong>de</strong> Moraes. Bibliografia da Impressão Régia do Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro (1808-1822). São Paulo: Edusp-Kosmos, 1993, 2 v.<br />

29 Sobre os referi<strong>dos</strong> trata<strong>dos</strong> políticos, no número <strong>dos</strong> quais se <strong>de</strong>stacam os “espelhos <strong>de</strong> príncipes”,<br />

vi<strong>de</strong>: Ana Isabel Buescu. Imagens do Príncipe. Discurso normativo e Representação (1525-1549).<br />

Lisboa, Cosmos, 1996; Marcos Antônio Lopes. O I<strong>de</strong>al Ético da Realeza nos Espelhos <strong>de</strong> Príncipes<br />

da Ida<strong>de</strong> Clássica (1640-1700). Dissertação <strong>de</strong> Mestrado apresentada à USP. São Paulo: mimeo.,<br />

17


por fim, o autor da peça oratória. Com relação a este último aspecto, torna-se logo<br />

evi<strong>de</strong>nte a importância <strong>dos</strong> pregadores pertencentes às or<strong>de</strong>ns regulares, particularmente<br />

à Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> São Francisco. A <strong>de</strong>fesa do regime monárquico empreendida na produção<br />

oratória <strong>de</strong>sses religiosos constituía uma garantia para a existência <strong>dos</strong> próprios<br />

institutos em que haviam professado, numa época marcada pela generalizada hostilida<strong>de</strong><br />

da opinião pública ilustrada em relação ao clero regular. Assim, é significativo asinalar<br />

que muitos <strong>dos</strong> religiosos em questão − entre os quais po<strong>de</strong>m-se citar Fr. Antônio <strong>de</strong><br />

Santa Úrsula Rodovalho, Fr. Francisco <strong>de</strong> Sampaio e Fr. Francisco <strong>de</strong> São Carlos, to<strong>dos</strong><br />

da província franciscana da Imaculada Conceição do Rio <strong>de</strong> Janeiro − eram,<br />

simultaneamente, pregadores régios. De modo complementar, a sacralização da realeza<br />

efetuada por intermédio <strong>dos</strong> sermões representava uma barreira aos letra<strong>dos</strong> <strong>de</strong>fensores<br />

da soberania popular.<br />

Sob o aspecto teórico-metodológico, a comunicação em pauta baseia-se nos<br />

pontos <strong>de</strong> vista que João Francisco Marques apresentou na introdução <strong>de</strong> sua maior<br />

obra 30 . Segundo o referido autor, o sermão propriamente dito constitui uma peça<br />

oratória apresentada em ocasiões extraordinárias, distinguindo-se das admoestações <strong>de</strong><br />

caráter catequético ou didático ditas pelos sacerdotes no trabalho <strong>de</strong> cura das almas.<br />

Também é <strong>de</strong> suma importância o fato <strong>de</strong> que os textos em análise possuem,<br />

simultaneamente, características da linguagem oral e da linguagem escrita. O primeiro<br />

aspecto tornava os sermões um <strong>dos</strong> mais importantes veículos <strong>de</strong> comunicação do<br />

Antigo Regime, colocando ao alcance <strong>de</strong> um vasto público analfabeto ou semi-letrado<br />

doutrinas religiosas e políticas que, <strong>de</strong> outro modo, não po<strong>de</strong>riam conhecer. Tais<br />

doutrinas são apresentadas numa roupagem específica, constituída, entre outros<br />

elementos, por uma <strong>de</strong>terminada escolha <strong>de</strong> idéias (inventio) e por um estilo a<strong>de</strong>quado à<br />

apresentação da matéria exposta (elocutio) 31 . Não obstante, seria ina<strong>de</strong>quado sublinhar<br />

apenas os aspectos técnicos do sermão. Como peça oratória que é, o sermão <strong>de</strong>stina-se<br />

sempre a convencer e a <strong>de</strong>mover o público ao qual se <strong>de</strong>stina <strong>de</strong> uma certa verda<strong>de</strong>. 32<br />

Fiel suas às origens greco-latinas, é um discurso voltado para a ação prática,<br />

1995; e Iara Lis Carvalho Souza. Pátria Coroada. O Brasil como Corpo Político Autônomo (1780-<br />

1831). São Paulo, Ed. da UNESP, 1999, pp. 13-38.<br />

30<br />

João Francisco Marques. A Parenética Portuguesa e a Restauração (1640-1668). Porto: INIC, 1989,<br />

v. 1, pp. 1-22.<br />

31<br />

A respeito da retórica da época, ver também o tratado do pe. Inácio Felizardo Fortes, intitulado Breve<br />

Exame <strong>de</strong> Pregadores, analisado por Maria Beatriz Nizza da Silva. Cf. Cultura e Socieda<strong>de</strong> no Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro (1808-1821). 2 a . ed. São Paulo: Nacional, 1978, pp. 172-179.<br />

32<br />

Renato Barilli. Retórica. Lisboa: Presença, 1985, pp. 13-117.<br />

18


constituindo uma linguagem transversal que, ao utilizar as doutrinas neo-tomistas e<br />

certas passagens da Bíblia consagradas pela tradição da Igreja, procura tornar-se<br />

acessível a parcelas mais amplas <strong>de</strong> ouvintes. Assim, o engenho revelado pelo orador no<br />

uso apropriado das figuras discursivas constitui apenas um instrumento para, através do<br />

espanto, obter o convencimento da audiência. No que tange ao suporte escrito do<br />

sermão, a preocupação principal <strong>de</strong>ve ser a <strong>de</strong> situar os 53 textos publica<strong>dos</strong> pela<br />

Impressão Régia em relação ao conjunto da oratória sagrada do período. O referido<br />

conjunto po<strong>de</strong>rá ser reconstituído a partir da consulta às crônicas da época − em cujo<br />

âmbito se <strong>de</strong>stacam as Memórias do pe. Luiz Gonçalves <strong>dos</strong> Santos − ou à Gazeta do<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, publicada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1808.<br />

Ao se enfatizar acima a relação entre os sermões e a política, é necessário estar<br />

atento aos elementos <strong>de</strong> discurso por meio <strong>dos</strong> quais a referida relação se apresenta na<br />

oratória sagrada. Assim, as técnicas hermenêuticas utilizadas pelos teólogos estão<br />

presentes nos sermões, tanto a tipologia, segundo a qual as passagens do Velho<br />

Testamento <strong>de</strong>vem ser lidas como prefiguração do Novo, quanto o esquema, fixado<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Ida<strong>de</strong> Média, <strong>dos</strong> quatro níveis <strong>de</strong> significação do texto bíblico (literal,<br />

alegórico, moral e escatológico) 33 . Na oratória sagrada, tais procedimentos analíticos<br />

são adapta<strong>dos</strong> à interpretação da realeza lusitana e do lugar por ela ocupado na<br />

socieda<strong>de</strong> cristã. Assim, o príncipe regente D. João aparece, por exemplo, equiparado ao<br />

sábio rei Salomão no sermão pregado em 1793 no Rio <strong>de</strong> Janeiro por Fr. Antônio <strong>de</strong><br />

Santa Úrsula Rodovalho, que seria <strong>de</strong>pois publicado pela Impressão Régia 34 . Já a<br />

representação da socieda<strong>de</strong> segundo as diferentes partes do corpo humano − tópico que,<br />

carente <strong>de</strong> bases na Bíblia, encontrava-se assentado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Baixa Ida<strong>de</strong> Média − acha-<br />

se presente, por exemplo, no sermão que Fr. Francisco <strong>de</strong> São Carlos pregou na mesma<br />

cida<strong>de</strong> em 1819: “o Estado é um corpo vivo e animado cujo coração, que é o rei, leva<br />

até às extremida<strong>de</strong>s a sístole e a diástole do sangue vital da socieda<strong>de</strong>” 35 . Por sua vez, a<br />

interpretação moral da natureza figura no panegírico fúnebre que São Carlos <strong>de</strong>dicara<br />

três anos antes à rainha D. Maria I, que é evocada sob os epítetos <strong>de</strong> “mística palmeira”,<br />

33<br />

João Adolfo Hansen. Alegoria. Construção e Interpretação da Metáfora. São Paulo: Atual, 1987, p. 43.<br />

Ver também William <strong>de</strong> Souza Martins. Membros do Corpo Místico: Or<strong>de</strong>ns Terceiras no Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro (c. 1700-1822). Tese <strong>de</strong> Doutorado apresentada à USP. São Paulo:mimeo, 2001, v. 1, pp. 48-<br />

64.<br />

34<br />

José Luiz Alves. Os Claustros e o Clero no Brasil. Revista do IHGB. Rio <strong>de</strong> Janeiro, LVII (parte II):<br />

1-257, 1895, pp. 131-2.<br />

35<br />

Benjamin Franklin Ramiz Galvão. O Púlpito no Brasil. Revista do IHGB. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 92 (146): 7-<br />

160, 1922, p. 88.<br />

19


“nova rosa”, “augusta raiz bragantina”, entre outros 36 . Por fim, completando os quatro<br />

níveis <strong>de</strong> significação fixa<strong>dos</strong> pela tradição patrística, a realeza lusitana cumpria<br />

também um papel escatológico. Nos sermões já referi<strong>dos</strong> <strong>de</strong> Fr. São Carlos, o caráter<br />

provi<strong>de</strong>ncial da monarquia lusitana é lembrado por intermédio <strong>de</strong> uma imagem<br />

tradicional, a aparição <strong>de</strong> Cristo a D. Afonso Henriques, em Ourique. A esse propósito,<br />

é interessante lembrar que tal imagem surgira também com força em outro período<br />

crítico para a existência da monarquia lusitana, isto é, a conjuntura da restauração 37 . A<br />

alusão ao mito fundador do reino <strong>de</strong> Portugal revela que a oratória sagrada se inscrevia<br />

num tempo cíclico, a<strong>de</strong>quado aos fins que esperava alcançar, quais sejam, a sacralização<br />

da monarquia e da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> or<strong>de</strong>ns.<br />

De acordo com o que foi visto acima, é possível referir que os diferentes agentes<br />

discursivos falam uma mesma linguagem política, para empregar a terminologia<br />

consagrada por J. G. A. Pocock 38 . Assim, os diferentes atos <strong>de</strong> enunciação referi<strong>dos</strong><br />

apelam para tópicos discursivos semelhantes, para lugares-comuns retóricos familiares<br />

tanto aos oradores como à audiência que os escuta. A base comum discursiva é<br />

constituída pela doutrina da Segunda Escolástica que, ao combater as teses occamistas e<br />

conciliaristas, segundo as quais a concordância <strong>dos</strong> súditos era essencial para dar<br />

legitimida<strong>de</strong> ao governo do Imperador, advogava o po<strong>de</strong>r absoluto do papa sobre o<br />

corpo visível da Igreja, cuja diretriz tornou-se particularmente visível no Concílio <strong>de</strong><br />

Trento 39 .<br />

Ainda que seja possível discernir um tempo cíclico na produção oratória,<br />

coerente, segundo João Francisco Marques, com o caráter provi<strong>de</strong>ncial e messiânico da<br />

monarquia lusitana, os sermões produzi<strong>dos</strong> no período joanino aten<strong>de</strong>m, na maior parte<br />

<strong>dos</strong> casos, a <strong>de</strong>mandas específicas do momento, marcado pelas ameaças à integrida<strong>de</strong> da<br />

monarquia lusitana e pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>sta <strong>de</strong> firmar-se no Novo Mundo. Tais elementos<br />

conferem certa peculiarida<strong>de</strong> ao período em foco, ainda inserido em um contexto<br />

marcado pela presença da monarquia absoluta. A partir do ano <strong>de</strong> 1821 e, sobretudo, do<br />

ano seguinte, é possível verificar a influência das idéias constitucionalistas nas obras <strong>de</strong><br />

oratória sagrada. Isso constitui uma mudança importante na cultura política tradicional,<br />

36<br />

Ibid., pp. 80-81.<br />

37<br />

João Francisco Marques. A Parenética Portuguesa e a Restauração (1640-1668). Porto: INIC, 1989,<br />

v. 2, p. 20.<br />

38<br />

J. G. A. Pocock. O Conceito <strong>de</strong> Linguagem e o Metier d’Historien. In: Linguagens do I<strong>de</strong>ário<br />

Político. São Paulo: Edusp: 2003, pp. 63-82.<br />

39<br />

Quentin Skinner. As Fundações do Pensamento Político Mo<strong>de</strong>rno. São Paulo: Cia das Letras, 1996,<br />

pp. 394-425.<br />

20


marcada pela sacralização da monarquia através da pregação religiosa, que se<br />

transforma, aos poucos, na cultura política mo<strong>de</strong>rna, caracterizada pela livre discussão<br />

<strong>de</strong> idéias em uma esfera pública. Assim, seguindo, uma vez mais, os passos <strong>de</strong> João<br />

Francisco Marques, este trabalho preten<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver uma análise sincrônica <strong>dos</strong><br />

sermões, isto é, estudar os seus conteú<strong>dos</strong> temáticos mais importantes, indissociáveis<br />

das formas consagradas pela oratória católica e, ao lado disso, estudá-los segundo uma<br />

perspectiva diacrônica, sensível às alterações introduzidas pelos eventos no panorama<br />

político da monarquia portuguesa. Sob o ponto <strong>de</strong> vista metodológico, o período em que<br />

está circunscrita a pesquisa presta-se bem à abordagem das linguagens políticas<br />

<strong>de</strong>finidas por Pocock, que as situa na média duração. 40<br />

40 J. G. A. Pocock, op. cit., pp. 66-67.<br />

21


REVOLUÇÃO: EM BUSCA DO CONCEITO<br />

NO IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO (1789-1822)<br />

Lúcia Maria Bastos P. Neves 41<br />

Professora Titular <strong>de</strong> História Mo<strong>de</strong>rna<br />

Universida<strong>de</strong> do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

No início do oitocentos, embora ainda refletisse “a instabilida<strong>de</strong> das coisas<br />

humanas”, a idéia <strong>de</strong> revolução já <strong>de</strong>scera, <strong>de</strong> um modo geral, <strong>dos</strong> céus à terra. 42 Apesar<br />

disso, o conceito assumia significa<strong>dos</strong> múltiplos, que iam do movimento <strong>dos</strong> astros às<br />

mutações da natureza, <strong>dos</strong> governos e das socieda<strong>de</strong>s. Em alguns casos, ainda adquiria<br />

um sentido catastrófico <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência, <strong>de</strong>struição da or<strong>de</strong>m divina ou <strong>de</strong>sorganização<br />

universal; em outros, já indicava crises políticas e rupturas, como a Revolução Inglesa<br />

<strong>de</strong> 1688, a In<strong>de</strong>pendência das colônias inglesas da América e a própria Revolução<br />

Francesa. Tomando como fontes dicionários, mas também panfletos, periódicos e a<br />

documentação oficial – analisada, tanto quanto possível, <strong>de</strong> acordo com uma<br />

perspectiva das linguagens políticas e da <strong>história</strong> <strong>dos</strong> <strong>conceitos</strong> em minha tese <strong>de</strong><br />

doutorado, <strong>de</strong>fendida na USP em 1992 – esta exposição preten<strong>de</strong> então explorar a<br />

trajetória do significado <strong>de</strong> revolução junto às elites políticas e culturais do império<br />

luso-brasileiro ao longo do período que antece<strong>de</strong> a In<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> 1822. 43<br />

Um tanto quanto surpreen<strong>de</strong>ntemente, no início do século XVIII, em seu<br />

Vocabulário português, o padre Rafael Bluteau indicava vários senti<strong>dos</strong> para o termo<br />

revolução. Inicialmente, sua <strong>de</strong>finição voltava-se para a idéia <strong>de</strong> “tempos revoltosos,<br />

revoltas e perturbações na república”. Em seguida, <strong>de</strong>screvia os outros senti<strong>dos</strong>:<br />

“revolução <strong>dos</strong> astros”; “revolução na astronomia”; “revolução na astrologia”;<br />

“revolução no Estado, mudança, nova forma <strong>de</strong> governo”; “revolução <strong>de</strong> humores no<br />

corpo”; “revolução nos cabelos”; “revolução das almas”. 44 Situado entre as influências<br />

41 Este trabalho contou com o apoio do CNPq e da FAPERJ, por conta <strong>de</strong> uma bolsa <strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong> e<br />

<strong>de</strong> um projeto PRONEX, coor<strong>de</strong>nado por José Murilo <strong>de</strong> Carvalho.<br />

42 Para a <strong>história</strong> do conceito <strong>de</strong> revolução, ver Alain Rey. Révolution, histoire d’un mot. Paris:<br />

Gallimard, 1989. expressão em <strong>de</strong>staque, cf. p. 58.<br />

43 Ver Corcundas e constitucionais: a cultura política da In<strong>de</strong>pendência (1820-1823). Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Revan, 2003. Na época, foram importantes, entre outros, os seguintes textos: Melvin Ritcher.<br />

Reconstructing the History of Political Languages: Pocock, Skinner and the Geschichtliche<br />

Grundbegriffe. History and Theory. Middletowmn, 29 (1): 38-70, 1990. Q. Skinner. As fundações do<br />

pensamento político mo<strong>de</strong>rno. São Paulo, Companhia das Letras, 1996. J. G. A. Pocock. Politcs,<br />

Languag and Time. Essays on Political Thought and History. New York: Atheneum, 1971.<br />

44 Vocabulario Portuguez e Latino ... pelo padre D Raphael Bluteau. Coimbra: Officina <strong>de</strong> Pascoal da<br />

Silva, 1720. v. 7, p. 319-320.<br />

22


do classicismo e <strong>de</strong> uma pré-ilustração, Bluteau emprestava ao termo não só o sentido<br />

<strong>de</strong> um ciclo completo <strong>de</strong> mudança, mas também, sob a possível inspiração do francês<br />

Furetière, o <strong>de</strong> um acontecimento extraordinário que ocorre no mundo. Sem dúvida,<br />

como exemplos, recorria aos escritos da Antiguida<strong>de</strong> Clássica, principalmente Cícero e<br />

ainda não era capaz <strong>de</strong> usar o termo como os ingleses, relacionando revolução a um<br />

acontecimento político preciso e nacional, como a Revolução Gloriosa <strong>de</strong> 1688. 45<br />

Quase cem anos mais tar<strong>de</strong>, Antônio <strong>de</strong> Moraes Silva, na segunda edição <strong>de</strong> sua<br />

recompilação <strong>de</strong>sse Vocabulário, em 1813, mantinha os diversos senti<strong>dos</strong> para a<br />

palavra, <strong>de</strong>monstrando que muitos usos antigos continuavam vivos – revolução<br />

astronômica, revolução <strong>dos</strong> valores morais, revolução nas ciências naturais, mas<br />

mostrava-se bem mais superficial quanto ao emprego relacionado à política. Falta-lhe<br />

uma idéia explícita e precisa <strong>de</strong> revolução e era ao termo revolta que atribuía o sentido<br />

<strong>de</strong> “levantamento, perturbação da or<strong>de</strong>m doméstica, política”. Desconhecimento ou<br />

cautela, em função <strong>dos</strong> tempos que vivia? 46<br />

De fato, no mundo luso-brasileiro, ainda que os acontecimentos <strong>de</strong> 1789 tenham<br />

emprestado um sentido mais preciso ao conceito, passando a i<strong>de</strong>ntificar uma agitação<br />

violenta, que irrompia <strong>de</strong> forma surpreen<strong>de</strong>nte, semelhante à idéia <strong>de</strong> guerra civil, o<br />

termo revolução apresentava-se sempre qualificado. Na Gazeta <strong>de</strong> Lisboa <strong>de</strong> 4 <strong>de</strong><br />

agosto, algumas semanas após a tomada da Bastilha, por exemplo, o movimento ainda<br />

era chamado <strong>de</strong> “famosa revolução <strong>de</strong> Paris”. Mais adiante, porém, à medida que o<br />

processo revolucionário se <strong>de</strong>senrolava, com a ascensão <strong>dos</strong> jacobinos, a proclamação<br />

da República em 1792 e a execução <strong>de</strong> Luís XVI, em janeiro <strong>de</strong> 1793, não houve mais<br />

dúvidas quanto a essa “extraordinária e temível revolução literária e doutrinal”, que<br />

propagava “novos, inauditos e horrorosos [...] sentimentos políticos”, cujos abomináveis<br />

princípios, fatais aos soberanos e aos povos, não podiam <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar a<br />

preocupação das autorida<strong>de</strong>s. 47<br />

Nessa conjuntura, a revolução chegou a ser concebida como uma “tríplice<br />

conspiração”, urdida contra o altar, o trono e a socieda<strong>de</strong> civil pela “pestilencial<br />

45<br />

Alain Rey. Révolution, histoire ... p. 54-55.<br />

46<br />

Antonio <strong>de</strong> Morais Silva. Diccionario da Lingua Portuguesa. Lisboa: Tip. Lacerdina, 1813. v. 2, p.<br />

629.<br />

47<br />

Carta <strong>de</strong> Lei <strong>de</strong> 17 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1794. Apud Antonio Delgado da Silva. Colleção da Legislação<br />

Portuguesa. (legislação <strong>de</strong> 1791 a 1801). Lisboa: Tipografria Maigrense, 1828. p. 194. Para a<br />

expressão em itálico <strong>de</strong> Rodrigo <strong>de</strong> Souza Coutinho, ver A. Mansuy-Dinis Silva. Portrait d’un homme<br />

d’État: D. Rodrigo <strong>de</strong> Souza Coutinho, Comte <strong>de</strong> Linhares, 1755-1812. Lisboa/Paris: Commission<br />

Nationale pour les commémorations <strong>de</strong>s Découvertes Portugaises/Centre Culturel Calouste<br />

Gulbenkian, 2002. p. 298.<br />

23


irmanda<strong>de</strong>” <strong>dos</strong> jacobinos, formada a partir <strong>de</strong> seitas há muito tempo escondidas nas<br />

lojas maçônicas, como fez o abbé Barruel, cujas idéias não tardaram a circular em<br />

Portugal e cuja principal obra teve trechos traduzi<strong>dos</strong> em português, no momento das<br />

invasões napoleônicas. Não é <strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>r, por conseguinte, que essa perspectiva da<br />

Revolução Francesa como “a peste da Europa e o terror das potências” continuasse a<br />

povoar o imaginário político das elites luso-brasileiras, nos anos seguintes. 48<br />

Não obstante, em seu periódico Correio Braziliense, publicado em Londres, foi<br />

Hipólito da Costa um <strong>dos</strong> primeiros luso-brasileiros a pensar revolução no sentido mais<br />

mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> ruptura, aplicado ao contexto político. Demonstrava, com certeza, horror à<br />

Revolução Francesa, já que esta teria levado os franceses e o mundo ao caos, e trazia a<br />

marca da influência <strong>de</strong> Edmund Burke, que assimilara no ambiente inglês. Conservava a<br />

distinção entre revoluções físicas e morais, mas entendia estas últimas como “a<br />

mudança repentina, em qualquer país, da forma <strong>de</strong> governo, da religião, das leis ou <strong>dos</strong><br />

costumes”, que <strong>de</strong>viam ser evitadas. No entanto, julgava digno <strong>de</strong>sejarem-se “aquelas<br />

mudanças graduais e melhoramentos nas leis, que se fazem necessários pelos progressos<br />

da civilização e que são dita<strong>dos</strong> pelas circunstâncias <strong>dos</strong> tempos”. 49 Portanto, <strong>de</strong> Burke,<br />

assimilara a idéia <strong>de</strong> uma perfeita continuida<strong>de</strong> entre o passado e o presente, mas<br />

almejando “reformas úteis”, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não fossem “feitas pelo povo”, das quais sempre<br />

<strong>de</strong>corriam “más conseqüências”. 50<br />

Por outro lado, a partir <strong>de</strong> 1821, valendo-se da nova conjuntura, foram os escritos<br />

constitucionais, ao circularem nos dois la<strong>dos</strong> do Atlântico, que colocaram, sem dúvida,<br />

a palavra revolução no vocabulário político luso-brasileiro. Ainda que <strong>de</strong> utilização<br />

mais restrita, o termo não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser empregado para <strong>de</strong>finir o movimento político<br />

que sacudiu o mundo ibérico entre 1820 e 1821. Na opinião do Revérbero<br />

Constitucional Fluminense, a “Revolução <strong>de</strong> Portugal, se é que assim se <strong>de</strong>va chamar a<br />

luta da justiça contra o <strong>de</strong>spotismo”, tinha viabilizado o estabelecimento do sistema<br />

48 Entre 1795 e 1797, apareceram em Portugal os três volumes da História abreviada da perseguição,<br />

assassinato e do <strong>de</strong>sterro do clero francês durante a revolução (Porto, Oficina <strong>de</strong> A. Alvarez Ribeiro)<br />

<strong>de</strong> M. l’Abbé Barruel. Trechos das Mémoires pour servir à l’Histoire du Jacobinisme. [1797/1798].<br />

Hambourg, P. Fauche, Libraire, 1803 surgiram traduzi<strong>dos</strong> por José Agostinho <strong>de</strong> Macedo em O<br />

segredo revelado ou a manifestação do systema <strong>dos</strong> Pedreiros-Livres e Illumina<strong>dos</strong> e sua influencia<br />

na fatal revolução francesa. Obra extraída das Memórias para a <strong>história</strong> do Jacobinismo do aba<strong>de</strong><br />

Barruel e publicada em portuguez, etc. Parte I. Lisboa: Imp. Régia, 1809. Ver também Os Pedreiros<br />

Livres, e os Ilumina<strong>dos</strong>, que mais propriamente se <strong>de</strong>veriam <strong>de</strong>nominar TENEBROSOS, <strong>de</strong> cujas<br />

seitas se tem formado a pestilencial Irmanda<strong>de</strong>, a que hoje se chama Jacobinismo. Reimpresso no Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, Impressão Régia, 1809.<br />

49 Correio Braziliense. Londres. nº 93, v. 16, fevereiro <strong>de</strong> 1816. p. 187.<br />

50 Correio Braziliense.Londres. nº 36, v. 6, maio <strong>de</strong> 1811, p. 573 e nº 15, v. 3, agosto <strong>de</strong> 1809, p. 153<br />

24


epresentativo. Apesar disso, herança do vocabulário político francês, que fazia lembrar<br />

o estigma da Revolução Francesa, o uso do termo exigia uma justificação. Afinal, se<br />

a palavra revolução é sempre terrível aos ouvi<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> tiranos; também o <strong>de</strong>ve ser<br />

aos ouvi<strong>dos</strong> do povo, porque toda a revolução traz consigo inconvenientes. Mas há<br />

casos em que ela é indispensável e então sofrem-se alguns males para conseguir<br />

muito maior soma <strong>de</strong> bens. Um inverno rijo é uma revolução; mas sem o inverno<br />

não po<strong>de</strong> medrar a primavera e o verão. 51<br />

Na realida<strong>de</strong>, essa curiosa revolução não implicava obrigatoriamente uma<br />

transformação nas estruturas vigentes. O Manifesto da Nação portuguesa aos soberanos<br />

e povos da Europa, lançado em 15 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1820, recorreu a um tom mo<strong>de</strong>rado<br />

para afastar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma intervenção da Santa Aliança e não empregou a<br />

palavra, chegando a afirmar que o nome <strong>de</strong> rebelião tem sido usado para “se manchar a<br />

glória <strong>dos</strong> portugueses, para se fazerem odiosos os seus patrióticos movimentos”. 52<br />

Por isso, mais do que revolução, predominava na época o conceito <strong>de</strong><br />

regeneração, que acabou por i<strong>de</strong>ntificar o próprio movimento vintista e o conjunto do<br />

movimento liberal, que se iniciara em Portugal no “sempre memorável” 24 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong><br />

1820, dia em “que a aurora política raiou no berço da monarquia portuguesa”. Ao<br />

repercutir no Brasil em 1821, os objetivos <strong>dos</strong> dois reinos passavam a coincidir: fazer<br />

tremer o <strong>de</strong>spotismo e regenerar-se a Nação. Assim, era possível saudar a a<strong>de</strong>são do Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro ao movimento como o “Dia 26 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1821! Dia <strong>de</strong> salvação e <strong>de</strong><br />

Regeneração do Reino do Brasil!” 53 Da mesma forma, o jornal O Bem da Or<strong>de</strong>m<br />

felicitava toda a Nação lusa que, “reaquistando [sic] seus direitos, [tomara] sobre si a<br />

árdua tarefa da sua Regeneração política, mediante uma Constituição ou Lei<br />

fundamental”. 54 Filha das mitigadas Luzes ibéricas, a idéia <strong>de</strong> regeneração política<br />

previa “uma reforma <strong>de</strong> abusos e uma nova or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> coisas”, capazes <strong>de</strong> empreen<strong>de</strong>r<br />

uma ação salvadora e restituir os antigos direitos que a Nação lusa havia perdido,<br />

<strong>de</strong>vido ao <strong>de</strong>spotismo, que grassava por todo o Império, incluindo o Brasil. 55 No<br />

51 Citações, respectivamente, em Revérbero Constitucional Fluminense nº 11, 22 janeiro 1822. Bahia.<br />

Ida<strong>de</strong> d’Ouro do Brasil. nº 20, 22 fevereiro 1821.<br />

52 Citações, respectivamente, em Manifesto da Nação portugueza aos soberanos e povos da Europa.<br />

Reimpresso no Rio <strong>de</strong> Janeiro: Real Typographia. 1821, p. 7.<br />

53 Cf. Maria Cândida Proença. A Primeira Regeneração: o conceito e a experiência nacional (1820-<br />

1823). Lisboa: Livros Horizonte, 1990. Ver ainda Telmo <strong>dos</strong> S. Ver<strong>de</strong>lho. As palavras e as idéias na<br />

revolução <strong>de</strong> 1820. Coimbra: Instituto Nacional <strong>de</strong> Investigação Científica, 1981, p. 289-292. Para a<br />

primeira citação ver Des<strong>de</strong> que a Aurora Política raiou no berço da Monarchia Portugueza. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Tip. Regia, 1821, [p. 1]; para a segunda Conciliador do Reino Unido. nº 1, 1 março 1821.<br />

54 O Bem da Or<strong>de</strong>m. nº 4, 1821.<br />

55 A Regeneração constitucional ou guerra e disputa entre os carcundas e os constitucionais: origem<br />

<strong>de</strong>stes nomes, e capitulação <strong>dos</strong> corcundas escrita pela constitucional europeu ao constitucional<br />

brasileiro e oferecida a to<strong>dos</strong> os verda<strong>de</strong>iros constitucionais. [Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imp. Régia], 1821, p. 3.<br />

25


entanto, <strong>de</strong>sejando-se as reformas úteis, repudiavam-se as revoluções violentas, o que<br />

evi<strong>de</strong>nciava que o conceito <strong>de</strong> revolução ainda estava próximo do sentido astronômico,<br />

fundamentado numa concepção <strong>de</strong> retorno a uma situação anterior.<br />

Além disso, é preciso não esquecer que essa mudança, embora natural,<br />

continuava a ser resultado da mão toda-po<strong>de</strong>rosa <strong>de</strong> Deus. Em discurso que antece<strong>de</strong>u<br />

às eleições <strong>dos</strong> <strong>de</strong>puta<strong>dos</strong> às Cortes <strong>de</strong> Lisboa, o bispo do Pará, d. Romualdo <strong>de</strong> Souza<br />

Coelho, achava indispensável afirmar que “nossa Regeneração política” tivera êxito<br />

porque era “um efeito da Divina Providência”. 56 De fato, embora já revestido <strong>de</strong><br />

implicações políticas, o conceito <strong>de</strong> revolução ainda guardava no universo luso-<br />

brasileiro uma conotação <strong>de</strong>gradante, sob a inspiração do pensamento religioso. Nessa<br />

perspectiva, para José da Silva Lisboa, em 1822, revolução era uma “praga”, que<br />

<strong>de</strong>struía a felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> toda uma geração e produzia a “anarquia e a guerra civil”. 57 E,<br />

no Roteiro Brasílico, chegou a afirmar: “As obscenas harpias da Revolução da França<br />

surgiram da anarquia, do caos, que gerou tantas coisas monstruosas e prodigiosas; e<br />

voando sobre nossas cabeças, casas, e mesas, nada <strong>de</strong>ixaram impoluto, e não<br />

contaminado”. 58 Nessa ótica, posteriormente à criação do mundo, mesmo o dilúvio,<br />

conforme constava da Bíblia, constituía a primeira crise do mundo natural e assumia as<br />

proporções <strong>de</strong> uma revolução inaugural. 59<br />

Por conseguinte, as revoluções continuavam, na mentalida<strong>de</strong> do período, a<br />

constituir um fator cíclico, que resultavam em mudanças maiores ou menores, violentas<br />

ou não, que quebravam o tempo físico e perturbavam a natureza das coisas, sendo<br />

<strong>de</strong>stinadas pela providência divina para flagelos <strong>dos</strong> povos. Nesses termos, ainda que o<br />

mundo luso-brasileiro, graças à irradiação das Luzes ao longo do século XVIII,<br />

começasse a discutir o sentido mais mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> revolução – recorrendo à idéia <strong>de</strong><br />

Montesquieu, que a entendia como a modificação da estrutura política e não como uma<br />

agitação violenta e sangrenta – e incorporasse novos valores jurídicos e institucionais ao<br />

conceito, uma parcela consi<strong>de</strong>rável das elites intelectuais, ainda em princípios do século<br />

XIX, <strong>de</strong> um lado, continuava a ver na revolução a dimensão divina e provi<strong>de</strong>ncial,<br />

caracterizando-a como fatal e terrível. De outro, o daquela minoria que procurava<br />

56<br />

Discurso que recitou o Bispo do Pará, D. Romualdo <strong>de</strong> Souza Coelho, no dia do mez <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong><br />

1821, em que se proce<strong>de</strong>o a eleição <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong> das Cortes. Maranhão: Tip. Nacional, 1822, p. 3.<br />

57<br />

Para a citação, ver José da Silva Lisboa. Reclamação do Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Tip. Nacional,. Parte<br />

XII, 1822.<br />

58<br />

Roteiro Brazilico ou coleção <strong>de</strong> princípios e documentos <strong>de</strong> direito político em série <strong>de</strong> números. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: Tip. Nacional, 1822, parte II, p. 24.<br />

59<br />

Alain Rey. Révolution, histoire ... p. 32-53.<br />

26


superar a visão litúrgica do conceito e reconhecia o potencial <strong>dos</strong> homens para interferir<br />

na vida pública em seu próprio proveito, no entanto, a interpretação da idéia <strong>de</strong><br />

revolução não conseguia se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r <strong>de</strong> uma perspectiva <strong>de</strong> reforma. Talvez, resida<br />

aí, nesse caráter conservador e religioso, um <strong>dos</strong> traços mais importantes das<br />

“envergonhadas Luzes ibéricas”. 60<br />

60 A expressão é <strong>de</strong> Evaldo Cabral <strong>de</strong> Mello.<br />

27


A CONSTITUIÇÃO DO CONCEITO HISTÓRICO DE EVOLUÇÃO<br />

NO BRASIL (1850-1880)<br />

Val<strong>de</strong>i Lopes <strong>de</strong> Araujo<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Ouro Preto<br />

Para a consciência histórica contemporânea parece quase impossível conceber<br />

qualquer relação com o passado sem o recurso, em maior ou menor grau, ao conceito <strong>de</strong><br />

evolução. Não é preciso ser um historiador para “saber” que o mundo em que vivemos é<br />

produto <strong>de</strong> uma evolução histórica, que to<strong>dos</strong> os aspectos da nossa realida<strong>de</strong> humana<br />

possuem uma <strong>história</strong> que po<strong>de</strong> ser narrada como o acúmulo <strong>de</strong> momentos sucessivos.<br />

Mas nem sempre essa forma quase intuitiva <strong>de</strong> pensar esteve disponível. O conceito<br />

histórico <strong>de</strong> evolução, talvez o conceito central da historiografia mo<strong>de</strong>rna, é uma<br />

invenção relativamente recente. Esta pesquisa visa estudar a <strong>história</strong> da constituição<br />

<strong>de</strong>sse conceito no contexto intelectual brasileiro entre 1850 e 1880.<br />

Embora a historiografia tenha muito contribuído para o entendimento do<br />

chamado “bando <strong>de</strong> idéias novas” da geração <strong>de</strong> 1870, não existe ainda um estudo<br />

<strong>de</strong>talhado <strong>de</strong> um <strong>dos</strong> <strong>conceitos</strong> centrais <strong>de</strong>ssa geração, ou seja, o conceito <strong>de</strong> evolução.<br />

Mesmo os trabalhos que compararam a geração romântica com a geração cientificista,<br />

pouco <strong>de</strong>staque confeririam a esse aspecto da questão. 61 Enquanto <strong>conceitos</strong> como<br />

progresso, civilização e or<strong>de</strong>m foram razoavelmente estuda<strong>dos</strong>, o conceito <strong>de</strong> evolução,<br />

em suas especificida<strong>de</strong>s, permaneceu à sombra.<br />

A escolha <strong>de</strong>sse recorte cronológico não é aci<strong>de</strong>ntal. A década <strong>de</strong> 1850 é<br />

caracterizada pela historiografia como o momento <strong>de</strong> consolidação do mo<strong>de</strong>lo político e<br />

social do Império. Do ponto <strong>de</strong> vista da <strong>história</strong> intelectual, essa década é o momento<br />

em que o romantismo e o ecletismo espiritualista se tornam hegemônicos. Tal<br />

hegemonia estava fundada em uma concepção teleológica e provi<strong>de</strong>ncial da <strong>história</strong>,<br />

mas não evolucionista. O otimismo quanto ao futuro do Império era limitado pela<br />

permanência <strong>de</strong> uma compreensão cíclica do tempo histórico, que imaginava as<br />

civilizações realizando um périplo eterno <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e <strong>de</strong>cadência.<br />

61 Para um exemplo mais recente no campo da <strong>história</strong> da historiografia, ver Arno Wehling. De<br />

Varnhagen a Capistrano. Rio <strong>de</strong> Janeiro: UFRJ, Tese <strong>de</strong> Titularida<strong>de</strong>, 1997, mimeo. Exemplos do<br />

tratamento da questão, fora do campo da <strong>história</strong> da historiografia, são os trabalhos <strong>de</strong> Terezinha<br />

28


No continente europeu, ao longo da década <strong>de</strong> 1850, eram <strong>de</strong>senvolvi<strong>dos</strong><br />

instrumentos epistemológicos que prometiam totalizar a nova experiência, aberta pela<br />

autoconsciência da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> um tempo histórico linear e processual. A idéia <strong>de</strong><br />

que as “<strong>história</strong>s” da humanida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>riam ser entendidas como formando apenas uma<br />

gran<strong>de</strong> <strong>história</strong> progressiva era alimentada e alimentava um conjunto <strong>de</strong> novos discursos<br />

culturais e científicos. Com autores como Spencer e Darwin, a idéia <strong>de</strong> evolução<br />

progressiva e linear se autonomizava, na medida em que o motor <strong>dos</strong> processos<br />

evolutivos era buscado em fenômenos aleatórios, não necessariamente teleológicos,<br />

inscritos na própria realida<strong>de</strong>. 62 Se para boa parte do pensamento romântico o progresso<br />

era apenas uma possibilida<strong>de</strong> quando garantido por uma inteligência superior — cuja<br />

existência era difícil comprovar empiricamente —, para o discurso evolucionista, a<br />

linearida<strong>de</strong> da marcha evolutiva estava assentada na própria natureza das coisas.<br />

No contexto brasileiro, o choque entre essas duas concepções marca igualmente<br />

um choque geracional. O “bando <strong>de</strong> idéias novas” <strong>de</strong> que nos fala Silvio Romero trazia<br />

também um bando <strong>de</strong> novos homens ansiosos por ocupar posições <strong>de</strong> prestígio social.<br />

Pela baixa institucionalização do sistema intelectual brasileiro no século XIX, o<br />

caminho para esse embate era, naturalmente, a polêmica pessoal. Um <strong>dos</strong> embates mais<br />

significativos foi a que opôs o jovem Joaquim Nabuco ao “monumento” José <strong>de</strong><br />

Alencar. Não apenas pelo peso <strong>dos</strong> nomes envolvi<strong>dos</strong>, mas pelo conteúdo e pela<br />

dimensão, a polêmica Alencar-Nabuco é um evento central na <strong>história</strong> do conceito <strong>de</strong><br />

evolução no Brasil. 63<br />

A recepção do conceito <strong>de</strong> evolução é uma das marcas distintivas entre a geração<br />

<strong>de</strong> 1870 e a geração romântica. Para Alencar, o conceito não adquirira ainda a<br />

centralida<strong>de</strong> para o discurso histórico que assumiria para a geração <strong>de</strong> 1870. Suas<br />

referências estavam mais ligadas às teorias da geração espontânea do século XVIII do<br />

Collichio. Miranda <strong>de</strong> Azevedo e o darwinismo no Brasil, e <strong>de</strong> Angela Alonso. Idéias em movimento:<br />

a geração <strong>de</strong> 1870 na crise do Brasil-Império.<br />

62 Para uma <strong>de</strong>nsa e minuciosa análise do embate entre uma biologia teleológica e outra “mecanicista”<br />

no contexto germânico do XIX, ver Timothy Lenoir. The strategy of life: teleology and mechanics in<br />

nineteenth-century German biology. Em especial, o capítulo 6, “Teleomechamism and Darwins’s<br />

theory”, pp. 246-75.<br />

63 Em um trecho no mínimo curioso, Nabuco critica o fato <strong>de</strong> Alencar ter criado um episódio em “O<br />

Guarani” em que uma índia pe<strong>de</strong> um beijo a Peri. Ora, argumenta Nabuco, Darwin havia provado em<br />

seu livro “A expressão das emoções nos homens e animais” que o beijo como forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstração<br />

<strong>de</strong> afeto não existiria em os indígenas. Cf. Coutinho, Afrânio (Org.). A polêmica Alencar-Nabuco, p.<br />

91. O leitor cuida<strong>dos</strong>o po<strong>de</strong>rá verificar o uso pragmático que Nabuco faz do livro <strong>de</strong> Darwin, pois o<br />

29


que ao novo mo<strong>de</strong>lo que teve em Darwin e Spencer suas principais referências nesse<br />

momento inicial. 64<br />

Em posição igualmente crítica estava outro “monumento” da geração romântica.<br />

Em 1880, Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães publicou seus “Comentários e pensamentos” sobre o<br />

evolucionismo. O livro está entre as críticas mais conscientes e bem <strong>de</strong>senvolvidas à<br />

Teoria da Evolução produzidas no século XIX brasileiro. Magalhães não só acusava os<br />

novos homens <strong>de</strong> ciência <strong>de</strong> burlarem os limites empíricos com suas especulações e<br />

hipóteses vazias <strong>de</strong> comprovação, como também apontava para a questão mais <strong>de</strong>licada<br />

para a sua geração, i.e., a afirmação <strong>de</strong> que o processo histórico é cego, ou seja, sua<br />

força seria o resultado <strong>de</strong> movimentos aleatórios e aci<strong>de</strong>ntais. A ausência <strong>de</strong> “causas<br />

finais”, <strong>de</strong> uma força vital ou providência, dissolvia a crença no progresso da civilização<br />

garantido por uma força superior cujos <strong>de</strong>sígnios seriam imperscrutáveis. Magalhães é<br />

bastante claro em sua crítica quando aponta a questão fundamental que separava a<br />

geração espiritualista do novo “materialismo”:<br />

As disposições teleológicas, ou causas finais [...] prestaram sempre valiosos<br />

argumentos para nos fazer crer que o universo é obra intencional <strong>de</strong> uma sabedoria<br />

divina, e não o resultado do acaso.<br />

É quanto basta para que os materialistas não só suprimam a consi<strong>de</strong>ração da<br />

finalida<strong>de</strong> no estudo <strong>dos</strong> fatos e das causas imediatas, mas ousem mesmo negar a priori<br />

que haja plano, or<strong>de</strong>m e fim em cousa alguma do universo [...]. 65<br />

Na ausência <strong>de</strong> um conceito histórico <strong>de</strong> evolução fundado em convicções<br />

“científicas”, a historiografia da geração romântica esteve sempre <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da<br />

existência <strong>de</strong> uma providência divina ou “força vital” orientadora da História. O novo<br />

conceito <strong>de</strong> evolução, com todo o peso <strong>de</strong> legitimação científica com o qual emergia,<br />

oferecia a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontrar, no movimento mesmo da realida<strong>de</strong>, o “motor” da<br />

<strong>história</strong>. É na busca <strong>de</strong>ssas leis históricas fundadas na natureza biológica, social e<br />

psicológica do ser humano que a geração <strong>de</strong> 1870 tentará substituir a Providência. A<br />

historiografia romântica, na medida em que não po<strong>de</strong>ria avançar os <strong>de</strong>sígnios divinos,<br />

parecia ter sua capacida<strong>de</strong> explicativa limitada.<br />

único trecho em que trata da questão, o célebre naturalista não menciona os indígenas do Brasil. Cf.<br />

Charles Darwin. The expressions of emotions in man and animals, pp. 439-40.<br />

64 Cf. Coutinho, Afrânio (Org.). A polêmica Alencar-Nabuco, passim.<br />

65 Cf. Domingos José Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães. Comentários e pensamentos, p. 31. Grifo meu.<br />

30


No Brasil, até 1850, a recepção das gran<strong>de</strong>s sínteses histórico-filosóficas, que<br />

estão assentando a autoconsciência da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> na Europa, é fragmentada e<br />

eclética. 66 O conceito <strong>de</strong> evolução se formava lentamente ao longo <strong>de</strong>ssas décadas, mas<br />

não estava completamente disponível. Uma análise <strong>dos</strong> dicionários publica<strong>dos</strong> ao longo<br />

da primeira meta<strong>de</strong> do século é revelador <strong>de</strong>sse fenômeno. No mais influentes <strong>de</strong>les, o<br />

<strong>de</strong> Moraes, durante várias edições o verbete permanecerá surpreen<strong>de</strong>ntemente pobre:<br />

“Evoluções, s. m. pl. Os movimentos, e figuras, que se mandam fazer aos Batalhões, e<br />

Esquadrões: v. g. evolução difícil, bem, ou mal feita, etc”. 67 Associado aos exercícios<br />

bélicos, a palavra indicava, metaforicamente, outros tipos <strong>de</strong> movimentos, mas nunca a<br />

noção <strong>de</strong> acumulação progressiva. Por isso, era muito comum aparecer na forma plural.<br />

Na edição, publicada entre 1850-53, do “novo dicionário da língua portuguesa”, <strong>de</strong><br />

Eduardo Faria, já era possível i<strong>de</strong>ntificar as <strong>de</strong>rivações orgânicas do conceito, mas<br />

nenhum vestígio <strong>de</strong> seu uso histórico. Após a <strong>de</strong>scrição “bélica”, como no Moraes, o<br />

dicionarista registra: “Evolução orgânica, (fisiol.) <strong>de</strong>senvolvimento das partes pelo<br />

crescimento. Evolução <strong>dos</strong> germens”. 68<br />

Entretanto, no mesmo Faria, é possível perceber, pela leitura <strong>de</strong> verbetes<br />

relaciona<strong>dos</strong>, como ainda se estava distante <strong>de</strong> uma concepção histórica <strong>de</strong> evolução.<br />

No verbete <strong>de</strong>dicado a Hegel, por exemplo, nada se fala sobre sua filosofia da <strong>história</strong>,<br />

resumindo assim a questão central <strong>de</strong> sua filosofia: “[...] Hegel parte da idéia, e preten<strong>de</strong><br />

só pela força da dialética fazer emanar tudo da idéia [...]”. 69 Quando se verifica o que o<br />

dicionarista entendia por dialética, a construção enviesada da frase se esclarece:<br />

“Dialética, s. f. (v. dialético) arte <strong>de</strong> raciocinar com exatidão, parte da filosofia que<br />

ensina as regras do raciocínio. V. Lógica, que é o termo mais usado”. 70 Portanto, o<br />

elemento da filosofia <strong>de</strong> Hegel que estaria mais próximo do conceito histórico <strong>de</strong><br />

evolução é ainda entendido em sua acepção retórica, como simples argumentação. É<br />

apenas na edição do Moraes <strong>de</strong> 1877-1878, portanto, após o bando <strong>de</strong> idéias novas da<br />

geração <strong>de</strong> 1870, que o conceito <strong>de</strong> evolução receberá um <strong>de</strong>senvolvimento plenamente<br />

histórico, social e político:<br />

66 Sobre o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>dos</strong> <strong>conceitos</strong> históricos na representação do tempo no Brasil na primeira<br />

meta<strong>de</strong> do século XIX, ver Val<strong>de</strong>i Lopes <strong>de</strong> Araujo. A experiência do tempo: mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e<br />

historicização no Império do Brasil, passim.<br />

67 Antônio <strong>de</strong> Moraes Silva. Dicionário da língua portuguesa [1813]. O verbete é praticamente o mesmo<br />

nas edições anteriores <strong>de</strong> 1789, 1813, 1823, 1831 e 1844.<br />

68 Eduardo Faria. Novo dicionário da língua portuguesa, vol. II.<br />

69<br />

70<br />

Ibi<strong>de</strong>m, vol. III, p. 626. Grifo meu.<br />

Ibi<strong>de</strong>m, vol. II, p. 875.<br />

31


Evolução [...] § (fig.) Desenvolvimento <strong>de</strong> uma idéia, <strong>de</strong> um sistema, <strong>de</strong> uma ciência, <strong>de</strong><br />

uma arte, etc. § (tir. fisiol.) O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um órgão até a sua completa formação.<br />

[...] Evolução Histórica, ou simplesmente evolução, <strong>de</strong>senvolvimento e aperfeiçoamento<br />

progressivo das socieda<strong>de</strong>s e sua civilização numa or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>terminada. § Evolução<br />

orgânica; sistema fisiológico cujos partidários supõem, que o novo ser que resulta do ata<br />

da geração preexistia a esse ato. § Evolução política; - social; <strong>de</strong>senvolvimento<br />

progressivo no espírito público <strong>de</strong> idéias políticas, ou sociais, <strong>de</strong> modo a conseguir-se o<br />

seu triunfo sem a violência das revoluções [...]. 71<br />

Embora possuíssem uma série <strong>de</strong> instrumentos conceituais para lidar com os<br />

fenômenos históricos — que mais tar<strong>de</strong> seriam reorganiza<strong>dos</strong> em torno do conceito<br />

histórico <strong>de</strong> evolução —, a geração “romântica” estava distante do entendimento<br />

orgânico, imanente e acumulativo do <strong>de</strong>senvolvimento das socieda<strong>de</strong>s humanas. É<br />

apenas pelo conceito histórico <strong>de</strong> evolução que os vestígios <strong>de</strong> um tempo cíclico<br />

po<strong>de</strong>rão ser substituí<strong>dos</strong> por uma compreensão progressiva e linear da <strong>história</strong> das<br />

civilizações. A ausência do conceito <strong>de</strong> evolução tornou a escrita da <strong>história</strong> uma<br />

operação ambígua e complexa, pois apenas por ele seria possível juntar passado,<br />

presente e futuro em um processo linear e sem ruptura, ou, como expresso no verbete do<br />

Moraes, sem revoluções. 72 Assim, ao lado das tentativas parciais <strong>de</strong> narrar a <strong>história</strong> do<br />

Brasil, encontram-se estratégias variadas <strong>de</strong> enfrentamento <strong>de</strong> um tempo crescentemente<br />

historicizado. 73<br />

É na conjuntura <strong>de</strong> embate entre a concepção romântica e as novas idéias da<br />

geração <strong>de</strong> 1870 que esta pesquisa preten<strong>de</strong> mapear a constituição do conceito <strong>de</strong><br />

evolução como categoria do discurso histórico. A ênfase no embate <strong>de</strong>verá ser<br />

relativizada pela atenção aos elementos <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong> entre os dois momentos, ou<br />

seja, em que medida o conceito <strong>de</strong> evolução vai se constituído no interior do<br />

pensamento “romântico”. Para encaminhar essas questões, algumas perguntas <strong>de</strong>verão<br />

ser respondidas: Como se escrevia <strong>história</strong> na ausência <strong>de</strong>sse conceito <strong>de</strong> evolução? De<br />

que maneira o processo histórico era narrado? Quais os <strong>conceitos</strong> alternativos para a<br />

idéia <strong>de</strong> evolução? De que modo a introdução <strong>de</strong>sse novo conceito transforma o<br />

discurso historiográfico em seu conjunto? Quais as rupturas e continuida<strong>de</strong>s que po<strong>de</strong>m<br />

ser apontadas na constituição <strong>de</strong>sse conceito?<br />

71 Antônio <strong>de</strong> Moraes Silva. Dicionário da língua portuguesa, vol. I, p. 867. [1877-8]. Grifos meus.<br />

72 Cf. Reinhart Koselleck. “Le concept d’histoire”. In ____. L’expérience <strong>de</strong> l’histoire, p. 82.<br />

73 Sobre a modalização do tempo na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, ver Hans Ulrich Gumbrecht. “Cascatas <strong>de</strong><br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>” In ____. Mo<strong>de</strong>rnização <strong>dos</strong> senti<strong>dos</strong>, p. 15-7.<br />

32


PROGRAMA<br />

VII CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DOS CONCEITOS<br />

DIÁLOGOS TRANSATLÂNTICOS<br />

4ª feira, 07/07/2004<br />

11:00 – Palestra Inaugural<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, 7-9 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2004<br />

Melvin Richter (City University of New York - EUA) – Mais que uma rua <strong>de</strong> mão<br />

dupla: análise, tradução e comparação <strong>de</strong> <strong>conceitos</strong> <strong>de</strong> culturas diferentes da nossa<br />

14:30 – História <strong>dos</strong> Conceitos na Europa: Projetos nacionais<br />

Javier Fernán<strong>de</strong>z Sebastián (Universidad <strong>de</strong>l País Vasco - Espanha) – De la historia <strong>de</strong>l<br />

pensamiento a la semántica histórica <strong>de</strong>l léxico político: Una experiencia española<br />

en historia conceptual<br />

Wyger Velema (Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Amsterdã - Holanda) – Historia conceitual:<br />

perspectivas holan<strong>de</strong>sas<br />

Henrik Stenius (Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Helsinki - Finlândia) – A recepção da <strong>história</strong> <strong>dos</strong><br />

<strong>conceitos</strong> na Finlândia<br />

16:00 – The History of Concepts in the New World: National Projects<br />

Elias Palti (Universidad Nacional <strong>de</strong> Quilmes - Argentina) – Sobre la tesis <strong>de</strong> la<br />

refutabilidad esencial <strong>de</strong> los conceptos y la historia intelectual latinoamericana: <strong>de</strong><br />

la historia <strong>de</strong> los conceptos políticos a la historia <strong>de</strong> los lenguajes políticos<br />

Martin Burke (City University of New York - EUA) – História conceitual nos Esta<strong>dos</strong><br />

Uni<strong>dos</strong>: o projeto nacional que está faltando<br />

João Feres Júnior (IUPERJ - Brasil) – Para uma <strong>história</strong> conceitual crítica do Brasil:<br />

recebendo Begriffsgeschichte<br />

5ª feira, 08/07/2004<br />

9:30 – O conceito <strong>de</strong> civilização<br />

Pim <strong>de</strong>n Boer (Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Amsterdã - Holanda) – Civilização; comparando<br />

<strong>conceitos</strong> e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

Bernardo Ricupero (USP - Brasil) – A ambígua relação entre romantismo e<br />

“civilização” no Brasil e na Argentina (1830 – 1870)<br />

Ilkka Liikanen (Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Joensuu – Finlândia) – A fronteira entre Finlândia e<br />

Rússia: uma trincheira do conflito entre civilizações?<br />

Carolina Rodríguez-Alcalá (Unicamp - Brasil) – Cultura e civilização nos discursos<br />

sobre o Novo Mundo<br />

11:00 –O conceito <strong>de</strong> nação/nacionalismo<br />

Ephraim Nimni (University of New South Wales - Austrália) – O conceito <strong>de</strong><br />

autonomia nacional-cultural e seu significado para as teorias do nacionalismo<br />

contemporâneas<br />

33


Temístocles Cezar (UFRGS - Brasil) – Varnhagen: um historiador entre a Europa e o<br />

Novo Mundo: ensaio sobre o conceito <strong>de</strong> <strong>história</strong> no Brasil do século XIX<br />

Norma Côrtes (UERJ - Brasil) – O ser da nação é o tempo: os <strong>conceitos</strong> <strong>de</strong> nação e<br />

nacionalismo na filosofia <strong>de</strong> Álvaro Vieira Pinto<br />

Fernando Lattman-Weltman (PUC-RJ - Brasil) – Aventuras do liberalismo no Brasil: A<br />

positivação da negativida<strong>de</strong> política, ou a vitória final do conceito<br />

14:30 – Encontros Transatlânticos e Mudança Conceitual<br />

Ricardo Benzaquen <strong>de</strong> Araújo (IUPERJ/PUC-Rio - Brasil) – Através do espelho:<br />

presença da Europa e elaboração da subjetivida<strong>de</strong> em minha formação, <strong>de</strong><br />

Joaquim Nabuco<br />

José Eisenberg (IUPERJ - Brasil) – Mudança Conceitual e Práticas Institucionais: a<br />

teologia moral <strong>dos</strong> jesuítas da segunda escolástica<br />

Luciana Villas Boas (Columbia University - EUA) – Selvagens <strong>história</strong>s <strong>de</strong> um pio<br />

autor: exemplarieda<strong>de</strong>, diferença e contexto no livro <strong>de</strong> Hans Sta<strong>de</strong>n<br />

16:00 - Europe in the New World<br />

Jan Ifversen (Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Aarhus - Dinamarca) – Quem são os oci<strong>de</strong>ntais?<br />

Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese (USP - Brasil) – Escravidão e po<strong>de</strong>r patriarcal nos escritos<br />

sobre o governo <strong>dos</strong> escravos nas Américas, c.1660-1720<br />

Christiane Laidler (UERJ - Brasil) – Liberalismo e escravidão no século XIX: idéias e<br />

historiografia.<br />

6ª feira, 09/07/2004<br />

9:30 – Workshop: História <strong>dos</strong> Conceitos Brasileiros (Sessão com apresentações<br />

curtas <strong>de</strong> pesquisas sobre <strong>história</strong> conceitual do Brasil)<br />

Lúcia Maria Bastos P. Neves (UERJ - Brasil); Guilherme Pereira das Neves (UFF<br />

- Brasil); William <strong>de</strong> Souza Martins (UGF/FIS - Brasil); Val<strong>de</strong>i Lopes <strong>de</strong> Araujo<br />

(UFOP - Brasil); Rodrigo Elias Caetano Gomes (UFF - Brasil); Thamy<br />

Pogrebinschi (IUPERJ - Brasil); Pedro Villas Boas (IUPERJ - Brasil); Helga<br />

Gahyva (IUPERJ - Brasil)<br />

11:00 – Encontros Transatlânticos e Mudança Conceitual<br />

Leopoldo Waizbort (USP - Brasil) – “dargestellte Wirklichkeit” e “sentimento da<br />

realida<strong>de</strong>”: um <strong>de</strong>slocamento transatlântico [no campo <strong>dos</strong> estu<strong>dos</strong> literários]<br />

João Adolfo Hansen (USP - Brasil) – Categorias retórico-teológicas da representação na<br />

política católica luso-brasileira (Séculos XVI, XVII, XVIII)<br />

Janete Flor <strong>de</strong> Maio Fonseca (UFMG - Brasil) – Correspondências <strong>de</strong> brasileiros na<br />

Europa oitocentista<br />

Christian Lynch (IUPERJ - Brasil) – A mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> como critério <strong>de</strong> uma historia do<br />

conceito na periferia<br />

14:30 – O conceito <strong>de</strong> cidadão/cidadania<br />

Patricia Springborg (Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Sydney - Austrália) – O mo<strong>de</strong>lamento clássico e a<br />

circulação do conceito <strong>de</strong> cidadania<br />

34


Vicente Oieni (Iberoamerikanska institutet - Suécia) – La invención <strong>de</strong>l ciudadano<br />

ilustrado en el proceso <strong>de</strong> emancipación en el Río <strong>de</strong> la Plata<br />

Uffe Jakobsen (Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Copenhagen - Dinamarca) – O conceito <strong>de</strong> cidadania<br />

no discurso público dinamarquês<br />

Maria Alice <strong>de</strong> Carvalho (IUPERJ) – O conceito <strong>de</strong> cidadania no Brasil: construção e<br />

<strong>de</strong>safios<br />

16:00 – Mesa Redonda: Aspectos metodológicos da <strong>história</strong> <strong>dos</strong> <strong>conceitos</strong><br />

Kari Palonen (Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jyväskylä - Finlândia) – A temporalização <strong>dos</strong> <strong>conceitos</strong><br />

e a temporalização da política<br />

Marcelo Jasmin (IUPERJ/PUC-Rio - Brasil) – Contextos e <strong>conceitos</strong>: comparando<br />

ontologias e metodologias<br />

Rubén Darío Salas (Universidad <strong>de</strong> Buenos Aires - Argentina) – Método retóricohermeneutico<br />

y discurso histórico-político<br />

35

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