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DE SEATTLE À PRAÇA TAHRIR:<<strong>br</strong> />
RUAS, RISOS E REVOLUÇÕES 1<<strong>br</strong> />
John Cowart Dawsey 2<<strong>br</strong> />
“A rua é o palco”, escreveu Jerry Rubin nos anos de 1960 a respeito dos protestos<<strong>br</strong> />
contra a guerra de Vietnã (cf. Schechner 1995: 64). Em 2011, pelo mundo afora,<<strong>br</strong> />
manifestantes também tomaram ruas e praças. Num choque de vida e movimento, <strong>com</strong><<strong>br</strong> />
abalos sismológicos, irrompeu a “primavera árabe”. Num universo social e simbólico<<strong>br</strong> />
descentrado, um foco de atenções: a Praça Tahrir de Cairo, Egito. Os primeiros<<strong>br</strong> />
tremores, porém, aconteceram em fins de 2010, na Tunísia. Depois e ao longo das<<strong>br</strong> />
manifestações no Egito, surgiriam movimentos na Líbia, na Síria e em outros países<<strong>br</strong> />
árabes. Levantes também ocorreram na Europa: Grécia, Espanha, Portugal e Rússia. E,<<strong>br</strong> />
nos Estados Unidos, irradiando de Nova York, o movimento Occupy Wall Street.<<strong>br</strong> />
Richard Schechner (1995: 48-49) escreve: “Se há uma tradição (...) de construir grandes<<strong>br</strong> />
monumentos destinados especificamente para a apresentação de performances – arenas,<<strong>br</strong> />
estádios, e teatros – também há uma longa história de performances informais que<<strong>br</strong> />
ocorrem (na tomada e no uso) de locais que não foram imaginados arquitetonicamente<<strong>br</strong> />
<strong>com</strong>o teatros”. Um detalhe (não mencionado por Schechner): monumentos<<strong>br</strong> />
frequentemente são produzidos <strong>com</strong>o formas de cele<strong>br</strong>ar performances informais que,<<strong>br</strong> />
em ruas e praças, se transformaram em movimentos vitoriosos.<<strong>br</strong> />
Em 2011, desafiando elites, manifestantes derrubaram ditadores e alteraram cenários<<strong>br</strong> />
sociais e políticos das chamadas “democracias”. Foram “bem sucedidos”. Também<<strong>br</strong> />
viraram capas de revistas e manchetes de jornais. “O manifestante” (The protestor) foi<<strong>br</strong> />
escolhido pela Time Magazine (cf. Andersen, 2011) <strong>com</strong>o “pessoa do ano” (person of<<strong>br</strong> />
the year).<<strong>br</strong> />
Daí, a singularidade do livro de Julia Ruiz Di Giovanni. As atenções da autora voltamse<<strong>br</strong> />
à Batalha de Seattle de 1999, aos protestos de Praga de 2000, e às manifestações de<<strong>br</strong> />
Gênova de 2001, ou, seja, aos movimentos da alter ou anti-globalização que, em seu<<strong>br</strong> />
artigo de abertura (Ibid.), Time Magazine chama de “ineficazes e irrelevantes”. Tratase,<<strong>br</strong> />
conforme Di Giovanni, de um conjunto de “insurreições que, por sua natureza<<strong>br</strong> />
temporária, nunca chegaram a <strong>com</strong>pletar o ‘destino trágico’ das revoluções traídas”.<<strong>br</strong> />
Assim se produz um deslocamento fecundo. Somos levados a revisitar alguns dos<<strong>br</strong> />
1 prefácio para o livro Artes do impossível: protesto de rua no movimento antiglobalização, de Julia Ruiz<<strong>br</strong> />
Di Giovanni. São Paulo: Anna Blume, <strong>2012.</strong><<strong>br</strong> />
2 Professor Titular do Departamento de Antropologia e coordenador do Núcleo de Antropologia,<<strong>br</strong> />
Performance e Drama (Napedra) da Universidade de São Paulo.<<strong>br</strong> />
1
palcos ou “cenas primordiais” (Berman 1990) do novo século. De acordo <strong>com</strong> Edgar<<strong>br</strong> />
Morin, citado por Di Giovanni, se o século XX termina <strong>com</strong> a queda do muro de<<strong>br</strong> />
Berlim, em 1989, o século XXI <strong>com</strong>eça, em 1999, <strong>com</strong> a Batalha de Seattle. De fato,<<strong>br</strong> />
seria Seattle um ponto originário nos movimentos recentes de universos sociais e<<strong>br</strong> />
simbólicos?<<strong>br</strong> />
Neste estudo, a autora demonstra a relevância de uma antropologia das formas<<strong>br</strong> />
expressivas – <strong>com</strong> destaque aos escritos de Victor Turner – para discutir os levantes de<<strong>br</strong> />
Seattle, Praga e Gênova. Estes eventos também nos levam a repensar algumas<<strong>br</strong> />
formulações da antropologia. A seguir, algumas questões.<<strong>br</strong> />
Revolução copernicana. Chamam atenção as reflexões de Victor Turner (1982)<<strong>br</strong> />
desenvolvidas em Liminal to liminoid.... Após a Revolução Industrial, as formas de<<strong>br</strong> />
expressão simbólica se dispersam, num movimento de diáspora, a<strong>com</strong>panhando a<<strong>br</strong> />
fragmentação das relações sociais. Trata-se, diz Turner (1986: 42), evocando o signo da<<strong>br</strong> />
tragédia, de um sparagmos, ou desmem<strong>br</strong>amento. Creio, porém, que eventos <strong>com</strong>o os<<strong>br</strong> />
de Seattle, Praga e Gênova, discutidos por Di Giovanni, a<strong>br</strong>em perspectivas, em suas<<strong>br</strong> />
dimensões lúdicas, para que possamos detectar outras formas de conceber os<<strong>br</strong> />
movimentos que ocorrem em universos sociais e simbólicos, apontando para o que eu<<strong>br</strong> />
chamaria de revolução copernicana em relação aos processos de significar o mundo. Em<<strong>br</strong> />
levantes <strong>com</strong>o esses se evidenciam formas de descentramento e fragmentação na<<strong>br</strong> />
recriação de universos sociais e simbólicos. As ruinas dos monumentos de gloriosas e<<strong>br</strong> />
centrípetas revoluções do século XX dão testemunho de promessas traídas e de<<strong>br</strong> />
esperanças ainda não realizadas. Seu monumento mais insólito: o muro de Berlim.<<strong>br</strong> />
Interrupção de ciclos infernais. Em 2011, diz a Time Magazine (Andersen, 2011), o<<strong>br</strong> />
manifestante tornou-se novamente um maker of history, ou “fazedor da história”. E deu<<strong>br</strong> />
fim ao chamado “Fim da História” enunciado por Francis Fukuyama em 1989. No<<strong>br</strong> />
elogio aos movimentos de 2011, a cele<strong>br</strong>ação da ideia do progresso – velho narcótico do<<strong>br</strong> />
século XX. Inspirando-se nos estudos de René Girard, Julia Ruiz Di Giovanni revela<<strong>br</strong> />
<strong>com</strong>o processos arcaicos – tais <strong>com</strong>o o “jogo sacrificial” de vítimas e vingadores, e<<strong>br</strong> />
pacifistas e blackblockers – possivelmente vêm à superfície em Seattle. Até que ponto<<strong>br</strong> />
ideias de progresso contribuem para manter ciclos infernais? Eis uma tarefa<<strong>br</strong> />
benjaminiana: implodir o “continuum da história” (cf. Benjamin 1985). Imagens do<<strong>br</strong> />
passado articulam-se ao presente num momento de perigo. Entre elas, as de Seattle,<<strong>br</strong> />
Praga e Gênova, que, em narrativas <strong>com</strong>o as da Time Magazine, se afundam nos<<strong>br</strong> />
limiares do esquecimento.<<strong>br</strong> />
Margens das margens. Afinidades entre carnavais e movimentos revolucionários<<strong>br</strong> />
merecem atenção. Ambos provocam deslocamentos, <strong>com</strong> efeitos de interrupção.<<strong>br</strong> />
Brincam <strong>com</strong> o perigo. Produzem inversões: “Não eram os manifestantes que estavam<<strong>br</strong> />
excluídos, mas os chefes de estado é que estavam cercados”! O perigo vem das<<strong>br</strong> />
margens. “Carnaval contra o capital!” Chama atenção nos levantes de Seattle, Praga e<<strong>br</strong> />
Gênova um duplo deslocamento – às margens das margens. Assim se produz um<<strong>br</strong> />
estranhamento não apenas em relação ao capital, mas, também, em relação aos próprios<<strong>br</strong> />
2
movimentos que a ele se opõem. “Nem heróis, nem mártires, nem machões!” enuncia o<<strong>br</strong> />
Bloco Pink. Busca-se interromper alguns dos ciclos infernais acima mencionados.<<strong>br</strong> />
Dialética da em<strong>br</strong>iaguez. Há formas de em<strong>br</strong>iaguez capazes de suscitar uma percepção<<strong>br</strong> />
lúcida. A loucura do Bloco Pink ilumina um louco cotidiano. E seu riso produz um<<strong>br</strong> />
duplo efeito de estranhamento, em relação ao cotidiano e ao extraordinário também. Até<<strong>br</strong> />
mesmo os movimentos mais bem sucedidos e carregados de glória, ou, então, os que<<strong>br</strong> />
revelam aspirações intergalakticas, do tamanho de um “movimento dos movimentos” –<<strong>br</strong> />
um termo que, no plano teológico, poderia evocar uma espécie de coincidentia<<strong>br</strong> />
oppositorum – não deixam de ser efêmeros. Eis a sabedoria que vem dos carnavais: tudo<<strong>br</strong> />
se transforma. Mas, quando o próprio movimento das coisas procura eternizar-se sob o<<strong>br</strong> />
signo da ordem, os locais <strong>com</strong>emorativos correm o risco de virar monumentos do terror.<<strong>br</strong> />
A história se repete, diz Karl Marx, primeiro <strong>com</strong>o tragédia e, depois, <strong>com</strong>o farsa. Mas,<<strong>br</strong> />
talvez as ações do Bloco Pink sugiram uma questão: os usos da farsa, em <strong>com</strong>binação<<strong>br</strong> />
<strong>com</strong> outros recursos de repertórios carnavalescos, podem ser decisivos para fins de<<strong>br</strong> />
interromper um ciclo infernal?<<strong>br</strong> />
Diante de uma tempestade chamada “progresso”, o livro de Julia Ruiz Di Giovanni pede<<strong>br</strong> />
para ser lido por quem se vê num estado de prontidão, <strong>com</strong>o quem busca captar um<<strong>br</strong> />
lampejo. Imagens do passado relampeiam. Articulam-se ao presente, suscitando efeitos<<strong>br</strong> />
de despertar. “Viver é muito perigoso”, diz um dos personagens de João Guimarães<<strong>br</strong> />
Rosa (1988: 26). Talvez o leitor também se imagine em meio à travessia. Na virada das<<strong>br</strong> />
páginas do livro nos encontramos <strong>com</strong> remoinhos de histórias – não apenas das coisas<<strong>br</strong> />
que vieram a ser, mas, também, das que submergiram, ou caíram no esquecimento. São<<strong>br</strong> />
histórias de coisas que ainda não se realizaram. Creio que, ao produzirem inervações<<strong>br</strong> />
corporais, elas podem nos fazer despertar para algumas das imagens e formas que se<<strong>br</strong> />
alojam nas entranhas dos sonhos da vida social.<<strong>br</strong> />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<<strong>br</strong> />
Andersen, Kurt. The protestor. Time Magazine. December 14, 2011. Disponivel em:<<strong>br</strong> />
http://www.time.<strong>com</strong><<strong>br</strong> />
Benjamin, Walter. So<strong>br</strong>e o conceito da história. In: Benjamin, W. O<strong>br</strong>as escolhidas I:<<strong>br</strong> />
magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 222-232.<<strong>br</strong> />
Berman, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.<<strong>br</strong> />
São Paulo, Companhia das Letras, 1990.<<strong>br</strong> />
Rosa, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.<<strong>br</strong> />
Schechner, Richard. The street is the stage. In: Schechner, R. The future of ritual:<<strong>br</strong> />
writings on culture and performance. Paperback edition. London and New York:<<strong>br</strong> />
Routledge, 1995, p. 45-93.<<strong>br</strong> />
3
Turner, Victor. Liminal to liminoid, in play, flow, ritual. In: Turner, V. From ritual to<<strong>br</strong> />
theatre: the human seriousness of play. New York: PAJ Publications, 1982, p. 20-60.<<strong>br</strong> />
Turner, Victor. Dewey, Dilthey, and drama: an essay in the anthropology of experience.<<strong>br</strong> />
In: Turner, V., e Bruner, E. M., orgs. The anthropology of experience. Urbana e<<strong>br</strong> />
Chicago: University of Illinois Press, 1986, p. 33-44.<<strong>br</strong> />
4