Anais do VI SIMCAM Simpósio de Cognição e Artes ... - anppom
Anais do VI SIMCAM Simpósio de Cognição e Artes ... - anppom
Anais do VI SIMCAM Simpósio de Cognição e Artes ... - anppom
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Maurício Dottori, editor<br />
<strong>Anais</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>VI</strong> <strong>SIMCAM</strong><br />
<strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
Escola <strong>de</strong> Música<br />
Marcos Nogueira, coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r geral<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro, 25 a 28 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2010
<strong>VI</strong> <strong>SIMCAM</strong><br />
<strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
Escola <strong>de</strong> Música<br />
Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Música<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro, 25 a 28 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2010<br />
Beatriz Ilari (UFPR)<br />
Beatriz Raposo <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros (USP)<br />
Daniel Quaranta (UFPR)<br />
Diana Santiago (UFBA)<br />
Graziela Bortz (UNESP)<br />
Indioney Rodrigues (UFPR)<br />
Leomara Craveiro <strong>de</strong> Sá (UFG)<br />
Marcos Nogueira (UFRJ)<br />
Maurício Dottori (UFPR)<br />
Comissão Executiva <strong>de</strong> V <strong>SIMCAM</strong><br />
Marcos Nogueira (Coor<strong>de</strong>nação Geral)<br />
Maurício Dottori<br />
Rael Bertarelli<br />
Comissão Científica:<br />
Maurício Dottori e Marcos Nogueira<br />
Pareceristas:<br />
Associação<br />
Brasileira <strong>de</strong><br />
<strong>Cognição</strong> e<br />
<strong>Artes</strong><br />
Musicais C A P E S<br />
Ney Rodrigues Carrasco (UNICAMP)<br />
Patrícia Lima Martins Pe<strong>de</strong>riva (UnB)<br />
Rael Bertarelli Toffolo (UEM)<br />
Regina Antunes Teixeira <strong>do</strong>s Santos<br />
(UFRGS)<br />
Rita <strong>de</strong> Cássia Fucci Amato (USP)<br />
Rosane Car<strong>do</strong>so <strong>de</strong> Araújo (UFPR)<br />
Sonia Ray (UFG)
Realização:<br />
ABCM – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE COGNIÇÃO MUSICAL<br />
Maurício Dottori (UFPR), Presi<strong>de</strong>nte<br />
Diana Santiago (UFBA), Vice-Presi<strong>de</strong>nte<br />
Graziela Bortz (UNESP), Secretária<br />
Ricar<strong>do</strong> Doura<strong>do</strong> Freire (UnB), Tesoureiro<br />
Marcos Nogueira (UFRJ), Relações Públicas<br />
Beatriz Ilari (UFPR), Representante <strong>do</strong> Comitê Editorial<br />
UFRJ – UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO<br />
Aloísio Teixeira, Reitor<br />
Sylvia da Silveira Mello Vargas, Vice-Reitora<br />
Pró-Reitoria <strong>de</strong> Pós-Graduação e Pequisa<br />
Angela Uller, Pró-Reitora<br />
Decano <strong>do</strong> Centro <strong>de</strong> Letras e <strong>Artes</strong><br />
Leo Soares<br />
Escola <strong>de</strong> Música e <strong>Artes</strong> Cênicas<br />
André Car<strong>do</strong>so, Diretor<br />
Marcos Nogueira, Vice-Diretor<br />
Roberto Mace<strong>do</strong>, Diretor Adjunto <strong>de</strong> Ensino <strong>de</strong> Graduação<br />
Eduar<strong>do</strong> Biato, Diretor Adjunto <strong>do</strong> Setor Artístico-Cultural<br />
Miriam Grosman, Diretor Adjunto <strong>de</strong> Extensão<br />
Marcos Nogueira, Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação<br />
Ermelinda Paz Zanini, Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Curso <strong>de</strong> Licenciatura<br />
Webmaster:<br />
Rael Bertarelli Gimenes Toffolo<br />
<strong>VI</strong> <strong>SIMCAM</strong> www.abcogmus.org/simcam
<strong>Anais</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>VI</strong> <strong>SIMCAM</strong><br />
<strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais
ii<br />
Apresentação<br />
Preza<strong>do</strong>s colegas,<br />
Neste ano <strong>de</strong> 2010, o Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Música da UFRJ completa 30<br />
anos <strong>de</strong> existência e o comemora com muita honra receben<strong>do</strong> o <strong>VI</strong> <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong><br />
e <strong>Artes</strong> Musicais, evento pioneiro na área <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> Musical no país.<br />
O conceito <strong>de</strong> pós-graduação em Música em nosso programa contempla a produção<br />
artística e a bibliográfica em medidas iguais. Contu<strong>do</strong>, nesses 30 anos <strong>de</strong> trajetória<br />
quase 350 trabalhos foram <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong>s e é flagrante a presença maciça <strong>de</strong> pesquisa e<br />
produção nas áreas artísticas. Nos últimos 10 anos, entretanto, a produção bibliográfica<br />
se intensificou nessas áreas, o que po<strong>de</strong> ser entendi<strong>do</strong> também como consequência<br />
da interação com investigações em duas outras áreas emergentes no Programa: Musicologia<br />
e Educação Musical. A consolidação <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s musicais no âmbito das ciências<br />
cognitivas, nos últimos 20 anos, nos parece um campo notavelmente fértil para o<br />
aprofundamento <strong>de</strong>ssas interações entre procedimentos meto<strong>do</strong>lógicos <strong>de</strong> todas as subáreas<br />
que constituem a pesquisa em Música, o que po<strong>de</strong> ser reconheci<strong>do</strong> no crescente<br />
interesse que a comunida<strong>de</strong> acadêmica musical vem <strong>de</strong>monstran<strong>do</strong> pelos recursos <strong>de</strong><br />
construção <strong>do</strong> conhecimento ofereci<strong>do</strong>s pela pesquisa em <strong>Cognição</strong>. Assim sen<strong>do</strong>, manifestamos<br />
nossa satisfação com a realização <strong>de</strong> mais este <strong>SIMCAM</strong> e a aproximação<br />
cada vez maior <strong>de</strong> pesquisa<strong>do</strong>res da nova área.<br />
A concretização <strong>de</strong>ste <strong>VI</strong> <strong>Simpósio</strong> só foi possível graças à colaboração <strong>de</strong> inúmeros<br />
colegas que acreditam, por razões variadas, neste projeto. Gostaria <strong>de</strong> fazer alguns<br />
agra<strong>de</strong>cimentos especiais a Sonia Ray e Mauricio Dottori, coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> último<br />
<strong>SIMCAM</strong> e presi<strong>de</strong>nte da ABCM, pela presença constante, a Rael Toffolo, pelo esforço<br />
incansável <strong>de</strong> conduzir o <strong>SIMCAM</strong>, numa primeira experiência, pelos cami
nhos ainda tortuosos <strong>do</strong>s sistemas on line, às coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>s Grupos <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>,<br />
Beatriz Ilari, Clara Piazzetta, Sonia Ray e Beatriz Raposo, e aos membros <strong>de</strong>sses<br />
GEs, que <strong>de</strong>ram um primeiro impulso essencial para a consolidação <strong>de</strong>ssa iniciativa<br />
inova<strong>do</strong>ra da Associação Brasileira <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais para esta edição <strong>do</strong><br />
<strong>SIMCAM</strong>, e aos conferencistas e membros <strong>de</strong> mesas-re<strong>do</strong>ndas que gentilmente aceitaram<br />
os convites para dividirem conosco um pouco <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> suas pesquisas.<br />
Gostaria <strong>de</strong> enfatizar ainda o apoio incondicional da direção da Escola <strong>de</strong> Música,<br />
aqui representada pelo diretor geral, André Car<strong>do</strong>so, e pelo diretor artístico-cultural,<br />
Eduar<strong>do</strong> Biato, a gentileza <strong>do</strong>s artistas que aceitaram o convite para integrar a programação<br />
<strong>de</strong> concertos <strong>do</strong> <strong>SIMCAM</strong>6, e por toda a equipe técnico-administrativa <strong>do</strong><br />
Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Música e <strong>do</strong> Setor Artístico-Cultural.<br />
Tenho convicção <strong>de</strong> que os esforços empreendi<strong>do</strong>s nos últimos meses serão plenamente<br />
recompensa<strong>do</strong>s com a realização <strong>de</strong> um encontro científico fértil e prazeroso. Sejam<br />
muito bem-vin<strong>do</strong>s ao Rio <strong>de</strong> Janeiro!<br />
Marcos Nogueira<br />
Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r-Geral <strong>do</strong> <strong>VI</strong> Simcam<br />
iii
iv<br />
Nota <strong>do</strong> editor<br />
É um enorme prazer ver que nossa Associação começa o seu segun<strong>do</strong> lustro <strong>de</strong> existência<br />
num simpósio em minha cida<strong>de</strong>, na mais antiga escola <strong>de</strong> música <strong>de</strong> nosso país.<br />
E que este nosso encontro servirá a um balanço <strong>do</strong> que atingimos nos seis anos consecutivos<br />
<strong>de</strong> <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais. Os segui<strong>do</strong>s <strong>SIMCAM</strong> tem se<br />
<strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> um foro privilegia<strong>do</strong> para as discussões sobre como nossas mentes e nossos<br />
cérebros (cuja fronteira <strong>de</strong> distinção constitui-se também em um importante tópico<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>bates) relacionam-se com a música em que vivemos. Este ano, em especial, há<br />
inúmeros trabalhos muito interessantes, o que mostra a gradativa consolidação da<br />
área.<br />
Nesta direção esperamos também que a novida<strong>de</strong> que representam nossos Grupos <strong>de</strong><br />
Estu<strong>do</strong>s, que pela primeira vez acontecem, tenham um futuro muito profícuo.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, o próprio mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> nosso <strong>SIMCAM</strong>, em que a organização local e<br />
a coor<strong>de</strong>nação científica, são realiza<strong>do</strong>s, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> em gran<strong>de</strong> parte in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, pela<br />
universida<strong>de</strong> se<strong>de</strong> e pela associação, vem se mostran<strong>do</strong> <strong>de</strong> tal mo<strong>do</strong> eficaz que a<br />
própria Anppom, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu congresso em Curitiba no ano passa<strong>do</strong>, <strong>de</strong>cidiu-se por<br />
segui-la. E a tendência, espera-se, será a <strong>de</strong> tornar o trabalho científico cada vez mais<br />
eficiente. Para isto, nossa associação conta agora com um <strong>do</strong>mínio e uma página<br />
própria na internet, o que a liberta <strong>do</strong>s vínculos sempre frágeis com computa<strong>do</strong>res <strong>de</strong><br />
universida<strong>de</strong> e nos possibilitou a instalação e o uso <strong>de</strong> software <strong>de</strong> administração <strong>de</strong><br />
conferências e da nossa revista. O pioneirismo em usar o software cobrou um certo<br />
preço este ano; mas, à medida que nos habituemos, teremos uma facilitação imensa<br />
<strong>do</strong> trabalho necessário.
Lancemos também um olhar para o futuro científico <strong>de</strong> nossa Associação. Do ponto<br />
<strong>de</strong> vista da coor<strong>de</strong>nação científica, pu<strong>de</strong> observar que os trabalhos apresenta<strong>do</strong>s sob o<br />
tema <strong>de</strong> <strong>Artes</strong> Musicais e <strong>Cognição</strong> Social foram aqueles cujo número mais cresceu<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro simpósio em Curitiba, quan<strong>do</strong> só alguns poucos trabalhos foram<br />
apresenta<strong>do</strong>s nesta área. E que por isso, como disse, para contemplar as discussões<br />
necessárias sobre a proprieda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s sobre Consciência e Música que ora se<br />
fazem em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, talvez seja necessário incluir um novo tema <strong>de</strong> Filosofia<br />
Cognitiva e Música, e subdividir o tema "A mente e a Produção das <strong>Artes</strong> Musicais"<br />
em <strong>do</strong>is pois os estu<strong>do</strong>s se avolumaram, seja quanto ao aspecto <strong>de</strong> Criação Musical<br />
quanto ao <strong>de</strong> Performance.<br />
Finalmente um agra<strong>de</strong>cimento muito especial ao Marcos Nogueira, Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r<br />
Geral <strong>de</strong>ste simpósio, e ao Rael Toffolo que realizou a implantação online <strong>de</strong> nossa<br />
associação.<br />
Maurício Dottori — Editor, Presi<strong>de</strong>nte da ABCM<br />
v
vi<br />
ÍNDICE<br />
a mente e a percepção das artes musicais<br />
Contextualização Musical no Treinamento Auditivo:<br />
Transferin<strong>do</strong> Memórias à Prática Musical 1<br />
Graziela Bortz<br />
Memória e Imitação na Percepção Musical 9<br />
Ricar<strong>do</strong> Doura<strong>do</strong> Freire<br />
Crítica às teorias representacionalistas da percepção musical 18<br />
André Villa<br />
A relação entre intérpretes e ouvintes na percepção das emoções em música 32<br />
Christian Alessandro Lisboa<br />
Expressões <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> espaço na música 43<br />
Yahn Wagner F. M. Pinto<br />
Percepção e Processamento Musical em Usuários <strong>de</strong> Implante Coclear 54<br />
Scheila Farias <strong>de</strong> Paiva Lima, Cecília Cavalieri França & Stela Maris<br />
Aguiar Lemos<br />
Critérios analíticos perceptivos para a o estu<strong>do</strong> da textura<br />
basea<strong>do</strong>s em correntes auditivas e sua relação com a forma musical 73<br />
Jorge Alberto Falcón<br />
Estu<strong>do</strong> sobre possibilida<strong>de</strong>s da concepção neurocientífica<br />
da percepção rítmica na análise <strong>de</strong> estruturas musicais 84<br />
Pedro Paulo Kohler Bon<strong>de</strong>san <strong>do</strong>s Santos<br />
O ouvi<strong>do</strong> absoluto: prevalência e características em duas universida<strong>de</strong>s brasileiras 93<br />
Patricia Vanzella, Mariana Benassi-Werke, Nayana G. Germano &<br />
Maria Gabriela M. Oliveira<br />
Dos colori<strong>do</strong>s sonoros na música oci<strong>de</strong>ntal<br />
proporciona<strong>do</strong>s pelos diferentes semitons 100<br />
Edmun<strong>do</strong> Hora<br />
Música e <strong>Cognição</strong>: a percepção musical <strong>do</strong> ritmo<br />
em crianças entre 3 e 7 anos numa perspectiva piagetiana 108<br />
Filipe <strong>de</strong> Matos Rocha
a mente e a produção das artes musicais<br />
A valorização <strong>de</strong> parâmetros musicais na preparação<br />
<strong>de</strong> uma obra romântica por estudantes <strong>de</strong> piano 112<br />
Cristina Capparelli Gerling, Regina A. Teixeira <strong>do</strong>s Santos & Catarina<br />
Dominici<br />
Atribuição <strong>de</strong> Causalida<strong>de</strong> na Performance Musical 120<br />
Ana Francisca Schnei<strong>de</strong>r<br />
A influência <strong>do</strong> espaçamento entre notas nas relações <strong>de</strong> consonância e dissonância 128<br />
Orlan<strong>do</strong> Scarpa Neto<br />
Coor<strong>de</strong>nação motora e simplificação <strong>do</strong> movimento.<br />
Uma estratégia técnico-cognitiva para otimizar a ação pianística 146<br />
Maria Bernar<strong>de</strong>te Castelan Póvoas & Alexandro Andra<strong>de</strong><br />
Padrões <strong>de</strong> pensamento:<br />
aplicação da Técnica Alexan<strong>de</strong>r à execução musical 156<br />
Yara Quercia Vieira<br />
Diretrizes para a Elaboração <strong>de</strong> Dedilha<strong>do</strong>s na Performance Violonística 164<br />
Cristiano Sousa <strong>do</strong>s Santos<br />
O Processo Criativo da Composição Musical: uma Visão Sistêmica e Evolutiva 177<br />
Felipe Kirst Adami<br />
O instrumentista e sua obra metamórfica:<br />
por um paradigma aberto para a performance musical 193<br />
Cristiano Sousa <strong>do</strong>s Santos<br />
Sem Fronteiras: Implicações da Performance<br />
no Ensino e Aprendizagem da Música Popular 202<br />
Juliana Rocha <strong>de</strong> Faria Silva & Maria Cristina Cascelli <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong><br />
Investigação e auto-regulação na preparação <strong>de</strong> uma obra pianística 214<br />
Regina Antunes Teixeira <strong>do</strong>s Santos & Cristina Capparelli Gerling<br />
Cogito ergo jazz: improvisational transformations<br />
in Joe Hen<strong>de</strong>rson’s “No Me Esqueça” 221<br />
Mtafiti Imara<br />
A linguagem <strong>de</strong> sinais para improvisação Soundpaiting:<br />
sinalizan<strong>do</strong> uma nova ferramenta para a formação musical 237<br />
Thenille Braun Janzen & Ronald Dennis Ranvaud<br />
vii
viii<br />
O papel <strong>do</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> na expressivida<strong>de</strong> cravística:<br />
aspectos cognitivos no ensino e preparação para a performance 246<br />
Nivia Gasparini Zumpano & Edmun<strong>do</strong> Pacheco Hora<br />
artes musicais, lingüística, semiótica e cognição<br />
Musilinguagem: a música na fala e a fala na música 257<br />
Patrícia Pe<strong>de</strong>riva & Elizabeth Tunes<br />
O conceito peirceano <strong>de</strong> Interpretante<br />
como fundamento para a compreensão <strong>do</strong> campo da interpretação musical 264<br />
Marcus Straubel Wolff<br />
Representação e Socieda<strong>de</strong> 271<br />
Indioney Rodrigues<br />
Interações entre Ritmo Lingüístico e Ritmo Musical no Contexto da Canção 279<br />
Cássio Andra<strong>de</strong> Santos & Beatriz Raposo <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros<br />
Aspectos prosódicos <strong>de</strong> quatro emoções na voz falada 292<br />
Aline Mara <strong>de</strong> Oliveira &Beatriz Raposo <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros<br />
Memória <strong>de</strong> Curto Prazo para Melodias: Efeito das Diferentes Escalas Musicais 301<br />
Benassi-Werke, M. E., Queiroz, M., Germano, N.G., Oliveira, M.G.M.<br />
Mario <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e o Prazer Musical 305<br />
Luciana Barongeno<br />
tecnologia, artes musicais e a mente<br />
Desenvolvimento <strong>do</strong> processos composicionais eletroacústicos<br />
a partir da relação entre live-electronics e re<strong>de</strong>s neurais artificiais 308<br />
Rael Bertarelli Gimenes Toffolo<br />
Som, sinal, movimento: novas modalida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> fazer/pensar música 317<br />
Guilherme Bertissolo<br />
A Ontomemética e a Evolução Musical 330<br />
Marcelo Gimenes<br />
Análise Particional:<br />
uma Mediação entre Composição Musical e a Teoria das Partições 343<br />
Pauxy Gentil-Nunes<br />
PARSEMAT: uma ferramenta para a Análise Particional 355<br />
Pauxy Gentil-Nunes
o <strong>de</strong>senvolvimento paralelo da mente e das artes musicais<br />
Apofenia Musical e Emoção Extrínseca em Música 358<br />
Bernar<strong>do</strong> Pellon <strong>de</strong> Lima Pichin<br />
Desenvolvimento <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s musicais e aquisição da leitura e escrita:<br />
estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> intervenção e correlação com crianças pequenas 369<br />
Caroline Bren<strong>de</strong>l Pacheco<br />
A Experiência Incorporada: Corpo e <strong>Cognição</strong> Musical 383<br />
Wânia Mara Agostini Storolli<br />
<strong>Cognição</strong> musical, especialização cerebral e o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
da in<strong>de</strong>pendência e coor<strong>de</strong>nação motoras 393<br />
Antenor Ferreira Corrêa<br />
Processos <strong>de</strong> criação musical e constituição <strong>do</strong> sujeito:<br />
objetivan<strong>do</strong> uma ética e estética na/da existência 400<br />
Patrícia Wazlawick & Kátia Maheirie<br />
Musicalida<strong>de</strong> na Educação a Distância: Reflexões sobre os usos<br />
das Tecnologias <strong>de</strong> Informação e Comunicação 408<br />
Luciane Cuervo<br />
A Construção da Escala Natural no Tecla<strong>do</strong>: significan<strong>do</strong> sons e teclas 419<br />
Caroline Cao Ponso<br />
Aprendizagem cooperativa:<br />
a diversida<strong>de</strong> como recurso facilita<strong>do</strong>r na aprendizagem <strong>do</strong> instrumento 426<br />
Tais Dantas, Simone Braga & Marcus Rocha<br />
A motivação no processo <strong>de</strong> ensino e aprendizagem musical<br />
realiza<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> aulas coletivas: relato <strong>de</strong> pesquisa concluída 437<br />
Tais Dantas<br />
Processos <strong>de</strong> ensinar & apren<strong>de</strong>r: música, cognição e formação profissional 448<br />
Patrícia Wazlawick, Glauber Benetti Carvalho &Viviane Elias Portela<br />
O Aprendiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> Música por Crianças com Necessida<strong>de</strong>s Educacionais Especiais 458<br />
Joana Malta Gomes<br />
Educação Musical e Lu<strong>do</strong>poiese: vivencian<strong>do</strong> a aprendizagem musical 472<br />
Maristela <strong>de</strong> Oliveira Mosca<br />
O Ensino <strong>de</strong> Música para Pessoas com Doença Mental: a <strong>de</strong>sconstrução<br />
da figura <strong>do</strong> louco e a construção <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> inclusão social 482<br />
Thelma Sy<strong>de</strong>nstricker Alvares<br />
ix
x<br />
‘Musicalida<strong>de</strong> em Ação’ e Processos Cognitivos na Musicoterapia 492<br />
Clara Márcia Piazzetta<br />
Aplicação <strong>do</strong> Conceito <strong>de</strong> Emoção Extrínseca em Música 506<br />
Bernar<strong>do</strong> Pellon <strong>de</strong> Lima Pichin<br />
artes musicais e cognição social<br />
Música e interdisciplinarida<strong>de</strong>: bases epistemológicas e exploração <strong>de</strong> uma interface 517<br />
Rita <strong>de</strong> Cássia Fucci Amato<br />
Coral e trabalho: o canto em conjunto como ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lazer e o coro<br />
como organização produtiva <strong>de</strong> bens e serviços culturais 540<br />
Rita <strong>de</strong> Cássia Fucci Amato<br />
Problemas Sociais <strong>do</strong> A<strong>do</strong>lescente em Cumprimento <strong>de</strong> Medida Sócio-Educativa<br />
que Interferem na <strong>Cognição</strong> Musical 555<br />
José Fortunato Fernan<strong>de</strong>s<br />
Música erudita e cognição social: assim se cria um repertório universal 567<br />
Eliana M. <strong>de</strong> A. Monteiro da Silva<br />
I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s sociomusicais na Canja <strong>de</strong> Viola em Curitiba 580<br />
Grace Filipak Torres<br />
Música e acor<strong>de</strong>om: discutin<strong>do</strong> experiências <strong>de</strong> educação musical na Maturida<strong>de</strong> 595<br />
Jonas Tarcísio Reis & Esther Beyer<br />
A construção <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> harmonia tonal através <strong>de</strong> aulas particulares <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om<br />
na região metropolitana <strong>de</strong> Porto Alegre - RS: três estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> caso 606<br />
Jonas Tarcísio Reis<br />
Ensino coletivo <strong>de</strong> instrumentos musicais: auto-estima e motivação<br />
na aprendizagem musical realizada em grupo 619<br />
Tais Dantas<br />
O Espaço Musicoterapêutico como Campo <strong>do</strong> Representacional:<br />
Representações Sociais, Música e Musicoterapia 631<br />
Fernanda Valentin, Leomara Craveiro <strong>de</strong> Sá &<br />
Magda <strong>de</strong> Miranda Clímaco<br />
I<strong>do</strong>sos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes versus I<strong>do</strong>sos institucionaliza<strong>do</strong>s: as diferenças<br />
na capacida<strong>de</strong> cognitiva entre grupos da terceira ida<strong>de</strong> 642<br />
Mackely Ribeiro Borges
A motivação <strong>do</strong>s alunos para continuar seus estu<strong>do</strong>s em música 651<br />
Janaína Con<strong>de</strong>ssa<br />
Estimulação da memória pelo canto como base <strong>de</strong> educação musical na maturida<strong>de</strong>:<br />
um aspecto cognitivo social 663<br />
Celina Amalia Vettore Maydana &<br />
Maria <strong>de</strong> Fátima Macha<strong>do</strong> Brasil<br />
A referência <strong>do</strong> outro: aquisição <strong>do</strong> conhecimento através da interação 672<br />
Simone Braga & Tais Dantas<br />
Saraus Musicais Escolares: Projeto <strong>de</strong> Cidadania 681<br />
Caroline Cao Ponso & Maria Helenita Nascimento Bernál<br />
Motivação para apren<strong>de</strong>r e ensinar música: uma perspectiva sociocognitiva 684<br />
Liane Hentschke, Cristina Mie Ito Cereser, Miriam Pizzato<br />
& Cassiana Zamith Vilela<br />
Conferências, mesas-re<strong>do</strong>ndas e grupos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong><br />
Conferências 696<br />
Mesas-Re<strong>do</strong>ndas 697<br />
GE — <strong>Cognição</strong> e Ensino e Aprendizagem Musicais 698<br />
GE — <strong>Cognição</strong>, Música e Musicoterapia 700<br />
GE — Criação Musical e <strong>Cognição</strong> 702<br />
GE — Música e Sistemas Dinâmicos 703<br />
xi
a mente e a percepção das artes musicais<br />
Contextualização Musical no Treinamento Auditivo:<br />
Transferin<strong>do</strong> Memórias à Prática Musical<br />
Resumo<br />
Graziela Bortz<br />
gbortz@uol.com.br<br />
Universida<strong>de</strong> Estadual Paulista.<br />
A pesquisa em andamento consiste em explorar as investigações empíricas em cognição<br />
musical aplicadas ao treinamento auditivo para propor novas abordagens <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong> ensino na área <strong>de</strong> percepção musical. Os problemas aponta<strong>do</strong>s por Covington & Lord<br />
(1994) no ensino objetivista da disciplina e suas idéias <strong>de</strong> ensino construtivista são usadas<br />
aqui <strong>de</strong> maneira crítica para propor estratégias distintas, mas complementares, on<strong>de</strong> a<br />
coexistência das duas abordagens é possível. Os objetivos <strong>do</strong> trabalho incluem a revisão<br />
da literatura na área <strong>de</strong> cognição musical e treinamento auditivo e a elaboração <strong>de</strong> estratégias<br />
<strong>de</strong> abordagem <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s tradicionais combina<strong>do</strong>s com méto<strong>do</strong>s novos. Covington<br />
& Lord (1994) <strong>de</strong>screvem o treinamento auditivo tradicional como essencialmente<br />
behaviorista e objetivista, ou seja, basea<strong>do</strong> na transmissão e repetição <strong>de</strong> conhecimentos<br />
específicos e bem <strong>de</strong>marca<strong>do</strong>s, e ten<strong>do</strong> seus procedimentos <strong>de</strong> avaliações mensura<strong>do</strong>s<br />
aritmeticamente. Como vantagens <strong>do</strong> ensino objetivista nessa disciplina, o artigo assinala<br />
a aquisição da habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resgatar as informações adquiridas no treinamento <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong><br />
contexto limita<strong>do</strong> <strong>do</strong>s exercícios feitos em classe. Os autores argumentam que, em longo<br />
prazo e no contexto real <strong>de</strong> trabalho, os resulta<strong>do</strong>s não são tão convincentes e que os<br />
estudantes tornam-se inábeis em transferir os conhecimentos <strong>de</strong> um universo a outro ao<br />
serem treina<strong>do</strong>s em condições simplificadas como se fossem reais. Propõem o uso <strong>de</strong><br />
um laboratório <strong>de</strong> informática em que aplicam o que <strong>de</strong>nominam “explorações controladas”,<br />
on<strong>de</strong> os estudantes po<strong>de</strong>m acessar várias sub-tarefas enquanto buscam o objetivo<br />
maior proposto, <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> planejarem em seu próprio tempo e à<br />
sua maneira. Usan<strong>do</strong> gravações <strong>de</strong> extratos reais <strong>de</strong> músicas, os estudantes gravam diferentes<br />
linhas da partitura em faixas <strong>de</strong> um sequencer. A coexistência das abordagens objetivista<br />
e construtivistas, ao contrário <strong>do</strong> que pensam Covington & Lord, não são, na<br />
opinião da autora <strong>de</strong>sta proposta, necessariamente exclu<strong>de</strong>ntes. O problema da abordagem<br />
exclusivamente objetivista está na falta <strong>do</strong> exercício da transferência <strong>de</strong> um <strong>do</strong>mínio<br />
a outro, no que, <strong>de</strong> fato, consiste a crítica daqueles autores ao objetivismo, ou seja, a falta<br />
<strong>de</strong> contextualização. Esta pesquisa propõe, portanto, a coexistência, o equilíbrio e a interface<br />
entre as duas abordagens.<br />
Introdução<br />
De acor<strong>do</strong> com Covington & Lord (1994), enquanto as pesquisas em cognição musical<br />
têm se <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>ravelmente nos últimos anos, o treinamento audi-<br />
1
2<br />
tivo em sala <strong>de</strong> aula tem si<strong>do</strong> frustrante para professores e alunos. Estes últimos <strong>de</strong>monstram<br />
dificulda<strong>de</strong>s em aplicar o conteú<strong>do</strong> aprendi<strong>do</strong> — que se concentra principalmente<br />
no estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> alturas e ritmo, com a quase que total exclusão <strong>de</strong> outros<br />
aspectos musicais — a seu cotidiano musical, on<strong>de</strong> a complexida<strong>de</strong> <strong>do</strong> material envolve<br />
uma gama <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s muito maior que a oferecida durante os estu<strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong> percepção.<br />
Os autores <strong>de</strong>screvem o treinamento auditivo tradicional como essencialmente behaviorista<br />
e objetivista, ou seja, basea<strong>do</strong> na transmissão e repetição <strong>de</strong> conhecimentos<br />
específicos e bem <strong>de</strong>marca<strong>do</strong>s. Como os conhecimentos, os procedimentos <strong>de</strong> avaliações<br />
também são mensuráveis aritmeticamente. Assim, quan<strong>do</strong> a capacida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s<br />
alunos em reconhecer <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s intervalos isola<strong>do</strong>s, por exemplo, é colocada a<br />
prova, tem-se uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> avaliação quantitativa. Covington & Lord observam<br />
que o méto<strong>do</strong> objetivo <strong>de</strong> ensino e avaliação tem si<strong>do</strong> aplica<strong>do</strong> em todas as<br />
disciplinas <strong>de</strong> conhecimento humano. No entanto, enquanto em outras áreas a educação<br />
tem si<strong>do</strong> fortemente influenciada por pensa<strong>do</strong>res construtivistas, o mesmo<br />
não ocorre na disciplina <strong>de</strong> percepção musical.<br />
Como vantagens <strong>do</strong> ensino objetivista nessa disciplina, o artigo assinala três pontos<br />
principais, a saber: (1) a aquisição <strong>de</strong> conhecimentos e habilida<strong>de</strong>s específicas; (2) a<br />
habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resgatar as informações adquiridas no treinamento; (3) “sucesso <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>do</strong> contexto limita<strong>do</strong> <strong>do</strong>s exercícios <strong>de</strong> treino auditivo isola<strong>do</strong>s”, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> inferir<br />
que “aqueles alunos que se <strong>de</strong>sempenham bem parecem <strong>de</strong>senvolver um tipo<br />
<strong>de</strong> re<strong>de</strong> esquemática ou um sistema <strong>de</strong> expertise <strong>de</strong>seja<strong>do</strong>” (Covington & Lord, 1994,<br />
p. 162). No entanto, o texto acrescenta que, em longo prazo e no contexto real <strong>de</strong><br />
trabalho, os resulta<strong>do</strong>s não são tão convincentes.<br />
O fato <strong>de</strong> um estudante ser capaz, por exemplo, <strong>de</strong> <strong>de</strong>codificar um intervalo <strong>de</strong> trítono<br />
isola<strong>do</strong> não significa que ele automaticamente <strong>de</strong>senvolva a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> diferenciar<br />
esse mesmo intervalo num contexto musical em que ele apareça forma<strong>do</strong><br />
pelo quarto e sétimo graus, exercen<strong>do</strong> a função <strong>de</strong> <strong>do</strong>minante com sétima, ou entre<br />
o segun<strong>do</strong> e sexto graus em mo<strong>do</strong> menor, exercen<strong>do</strong> a função <strong>de</strong> harmonia intermediária<br />
(acor<strong>de</strong> <strong>de</strong> II grau como sub<strong>do</strong>minante).<br />
Elementos isola<strong>do</strong>s <strong>de</strong> seu contexto natural enfatizam a separação <strong>do</strong>s elementos<br />
mais que sua integração. . . . De fato, pesquisas em outros <strong>do</strong>mínios têm <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong><br />
que tal treinamento po<strong>de</strong>, na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>senvolver barreiras entre tipos <strong>de</strong><br />
esquema ao invés <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver a consciência <strong>de</strong> sua interconexão (Covington<br />
& Lord, 1994, p. 162).<br />
Os autores <strong>do</strong> artigo consi<strong>de</strong>ram ainda que o aprendiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> intervalos condiciona<strong>do</strong>s<br />
a uma <strong>de</strong>terminada peça po<strong>de</strong> ser prejudicial, pois o caminho para recuperar<br />
a informação é lento. Talvez se possa comparar este exemplo ao aprendiza<strong>do</strong> da leitura<br />
da clave <strong>de</strong> fá condicionada à clave <strong>de</strong> sol. Decodificar diretamente uma clave<br />
qualquer a partir da visualização das distâncias formadas entre linhas ou espaços é
mais eficiente que recuperar a informação indireta na transferência <strong>de</strong> uma leitura à<br />
outra.<br />
A pesquisa <strong>de</strong> Burns & Ward (1982, p. 264-265), embora reconheça que a percepção<br />
<strong>de</strong> intervalos é uma ferramenta analítica importante para a transcrição <strong>de</strong> melodias,<br />
confirma a teoria <strong>de</strong> que o treinamento da memorização <strong>de</strong> intervalos isola<strong>do</strong>s fragmenta<br />
a cognição melódica. Comentam que “a percepção <strong>de</strong> intervalos melódicos<br />
isola<strong>do</strong>s po<strong>de</strong> ter pouca relação com a percepção da melodia.” Mais tar<strong>de</strong>, acrescentam<br />
que “há evidência consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> que melodias são percebidas como Gestalts<br />
ou padrões, e não uma sucessão <strong>de</strong> intervalos individualiza<strong>do</strong>s e que a magnitu<strong>de</strong><br />
intervalar é apenas um pequeno fator na percepção total.”<br />
Da mesma maneira, Deutsch (1982, p. 287-291) <strong>de</strong>monstra como padrões <strong>de</strong> contorno<br />
melódico são reconheci<strong>do</strong>s no discurso musical como equivalentes, ainda que<br />
se preserve apenas o contorno, e não os intervalos exatos. Afirma que, em longo<br />
prazo, a memória ten<strong>de</strong> a reter informações classificadas hierarquicamente em níveis<br />
mais profun<strong>do</strong>s <strong>de</strong> abstração, lembran<strong>do</strong> que este mo<strong>de</strong>lo se aproxima da teoria analítica<br />
<strong>de</strong> Heinrich Schenker (1868-1935), que utiliza um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> escuta, on<strong>de</strong> o<br />
nível da superfície funciona como um “prolongamento” <strong>do</strong>s níveis estruturais mais<br />
profun<strong>do</strong>s.<br />
Edlung (1974, p. 7) vê como necessida<strong>de</strong> premente a contextualização musical no<br />
treinamento auditivo quan<strong>do</strong> afirma que, “para que as relações tonais nas melodias<br />
sejam entendidas <strong>de</strong> maneira apropriada, <strong>de</strong>ve ser requisita<strong>do</strong> [no treinamento] mais<br />
<strong>do</strong> que a mera facilida<strong>de</strong> em cantar intervalos melódicos isola<strong>do</strong>s”. Po<strong>de</strong>-se recuperar<br />
mais prontamente, na música tonal, a memória da função <strong>de</strong> uma altura em relação<br />
a outras hierarquicamente mais importantes numa tonalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> que o intervalo<br />
exato forma<strong>do</strong> entre duas notas. A escuta dirigida às funções melódicas, tais como:<br />
uma nota que funciona como ornamentação, dirigin<strong>do</strong>-se por salto a outra forman<strong>do</strong><br />
uma escapada, ou <strong>de</strong> uma nota que funciona como conexão <strong>de</strong> outras separadas<br />
por terça (nota <strong>de</strong> passagem), ou ainda uma bordadura, esclarece o discurso<br />
musical, ao invés <strong>de</strong> fragmentá-lo. Em música não-tonal, os intervalos tampouco se<br />
apresentam como elementos isola<strong>do</strong>s. Alguns compositores preferem sonorida<strong>de</strong>s<br />
formadas por grupos <strong>de</strong> notas que se tornam familiares ao ouvi<strong>do</strong> à medida que<br />
façam parte <strong>do</strong> treinamento contextualiza<strong>do</strong>. Edlung (1963) trabalha sempre com<br />
grupos intervalares, nunca individualiza<strong>do</strong>s, na música não-tonal, à maneira semelhante<br />
com que Berkowtiz et al (1960) e Edlung (1974) apresentam intervalos a<br />
partir <strong>de</strong> sua função na música tonal.<br />
Neste senti<strong>do</strong>, é pertinente a crítica ao ensino exclusivamente objetivista da percepção<br />
musical. Faz-se necessária a contextualização constante para que os níveis <strong>de</strong><br />
abstração sejam percebi<strong>do</strong>s e relaciona<strong>do</strong>s e para que a ocorra a transferência <strong>de</strong> conhecimentos<br />
<strong>do</strong> treinamento auditivo à prática real. Intervalos po<strong>de</strong>m ser trabalha<strong>do</strong>s<br />
em melodias tonais ou não-tonais globalmente.<br />
3
4<br />
Objetivos<br />
Embora se busque uma visão ampla no enfoque da disciplina percepção neste trabalho,<br />
a ênfase é dada à percepção <strong>de</strong> alturas. Logicamente, o contexto rítmico e textural<br />
não são excluí<strong>do</strong>s, mas a título <strong>de</strong> limitar o objeto <strong>de</strong> pesquisa, o enfoque recai<br />
nos parâmetros <strong>de</strong> altura (melodia e harmonia).<br />
São utiliza<strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s <strong>de</strong> experiências na área <strong>de</strong> cognição musical, tais como: Deutsch,<br />
(1982, 2006), Krumhansl (1990,2006), Sloboda (2008), Levitin (2006, 2007), Covington<br />
& Lord (1994), entre outros, para elaborar novas abordagens e estratégias<br />
<strong>de</strong> ensino na disciplina <strong>de</strong> percepção musical.<br />
Os objetivos <strong>de</strong>sta proposta são:<br />
Fazer uma ampla revisão da literatura na área <strong>de</strong> cognição musical aplicada ao treinamento<br />
auditivo <strong>de</strong> alunos <strong>de</strong> nível <strong>de</strong> graduação, incluin<strong>do</strong> trabalhos que tenham<br />
foco em outras práticas musicais, mas que possam contribuir indiretamente para o<br />
estu<strong>do</strong> da percepção (improvisação, estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> memória para instrumentistas, piano<br />
complementar, o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> harmonia no tecla<strong>do</strong>, entre outros).<br />
Propor uma nova abordagem <strong>do</strong>s exercícios <strong>de</strong> solfejo e dita<strong>do</strong> melódicos em contextos<br />
tonais e não-tonais, procuran<strong>do</strong> um diálogo constante com os diversos tipos<br />
<strong>de</strong> méto<strong>do</strong>s: trabalhos com melodias escritas especialmente para solfejo e dita<strong>do</strong><br />
(estruturas simplificadas) combinadas com melodias <strong>do</strong> repertório organizadas em<br />
méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> solfejo (estruturas intermediárias), além <strong>de</strong> exercícios <strong>de</strong> solfejo e dita<strong>do</strong><br />
a partir <strong>de</strong> contextos musicais reais (estruturas complexas — um extrato <strong>de</strong> uma sinfonia<br />
ou <strong>de</strong> uma sonata, por exemplo), buscan<strong>do</strong> transferir constantemente as associações<br />
obtidas em contextos simplifica<strong>do</strong>s e intermediários àqueles mais complexos.<br />
Propor, para o trabalho <strong>de</strong> solfejo, a análise prévia das estruturas melódicas apresentadas<br />
<strong>de</strong> maneira a antecipar os <strong>de</strong>safios propostos nas estruturas simplificadas, intermediárias<br />
e complexas, buscan<strong>do</strong> conectar a teoria à prática (<strong>de</strong> fato, a teoria à<br />
percepção que, embora comumente associadas nas gra<strong>de</strong>s curriculares, resultam separadas<br />
na tradição <strong>do</strong> ensino objetivista).<br />
Finalmente, buscar uma visão holística da disciplina <strong>de</strong> percepção, evitan<strong>do</strong> distorções<br />
conseqüentes <strong>do</strong> trabalho com materiais exclusivamente abstratos (intervalos<br />
fora <strong>de</strong> contexto musical, por exemplo). A proposta visa, através da constante contextualização<br />
prática e analítica, integrar as diferentes ativida<strong>de</strong>s musicais <strong>do</strong>s alunos<br />
e <strong>do</strong> curso <strong>de</strong> graduação em música, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a tornar a disciplina menos árida.<br />
Méto<strong>do</strong><br />
Covington & Lord emprestam os conceitos <strong>de</strong> well-structuredness e ill-structuredness<br />
(Spiro et. al. apud Covington & Lord, 1994, p. 163-164) <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s em educação<br />
para <strong>de</strong>screver o primeiro como o contexto localiza<strong>do</strong> da aula <strong>de</strong> percepção tradi-
cional e o segun<strong>do</strong> como a obra musical real. “Compositores po<strong>de</strong>m utilizar diferenças<br />
contextuais como meio <strong>de</strong> manipulação das expectativas <strong>do</strong>s ouvintes. . . . A<br />
música como é percebida auditivamente não é absolutamente previsível”.<br />
Nesta pesquisa, as expressões: estruturas simplificadas e estruturas complexas serão<br />
utilizadas para <strong>de</strong>screver o contexto <strong>de</strong> aula on<strong>de</strong> o conhecimento é filtra<strong>do</strong> (wellstructured)<br />
e aquele em que o estu<strong>do</strong> da música real (ill-structured) ocorre. Será utilizada,<br />
ainda, a expressão ‘estruturas intermediárias’ para se referir àquelas em que<br />
uma camada <strong>de</strong> uma estrutura complexa (uma melodia, harmonia ou um ritmo, por<br />
exemplo) apresenta-se isolada da textura musical original. Embora seja, por essa<br />
razão, mais simples, po<strong>de</strong> apresentar <strong>de</strong>safios particulares que merecem o tratamento<br />
diferencia<strong>do</strong>. Enquanto os termos: estruturas simplificadas, intermediárias e complexas<br />
serão utiliza<strong>do</strong>s para <strong>de</strong>terminar os materiais emprega<strong>do</strong>s, duas estratégias<br />
serão aplicadas para a abordagem <strong>de</strong>sses materiais: análise e montagem/remontagem.<br />
Enquanto as ferramentas <strong>de</strong> estruturas simplificadas utilizam a idéia <strong>de</strong> seleção, a<br />
abordagem <strong>de</strong> estruturas complexas explora a idéia <strong>de</strong> montagem (“assembly”) ou<br />
remontagem (“reassembly”) ao explorar conhecimentos adquiri<strong>do</strong>s anteriormente<br />
e remontá-los num novo contexto (Covington & Lord, 1994, p. 165). Para os autores,<br />
a perspectiva construtivista, ao contrário da objetivista, oferece a possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> tornar a prática da percepção útil ao estudante através da montagem. Eles acreditam<br />
que a experiência particular <strong>de</strong> cada aluno, quan<strong>do</strong> transposta a um novo contexto<br />
<strong>de</strong> estrutura complexa, “não é simplesmente recuperada intacta; é, antes,<br />
reconstruída especificamente para o caso em questão”. Assim, o produto final é<br />
menos importante que o “processo <strong>de</strong> aplicar a experiência pré-existente em novas<br />
situações”.<br />
Os autores crêem que os recursos para os estu<strong>do</strong>s em cognição musical precisam ser<br />
aprimora<strong>do</strong>s e que as pesquisas nessa área explicam melhor a aquisição <strong>de</strong> conhecimento<br />
em estruturas simplificadas que em complexas, embora o aprendiza<strong>do</strong> seja<br />
oposto nessas diferentes condições. Acrescentam que os estudantes tornam-se inábeis<br />
em transferir os conhecimentos <strong>de</strong> um universo a outro ao serem treina<strong>do</strong>s em<br />
condições simplificadas como se fossem reais. Sugerem que uma gran<strong>de</strong> “varieda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> dimensões abstratas” <strong>de</strong>va ser aplicada para que se promova essa habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
transferência (Spiro et. al. apud Covington & Lord, 1994, p. 165).<br />
Propõem o que eles chamam <strong>de</strong> “explorações controladas”, on<strong>de</strong> “se po<strong>de</strong> acessar várias<br />
sub-tarefas enquanto se busca um trabalho maior e mais abrangente, proven<strong>do</strong><br />
[o aprendiz] não somente <strong>de</strong> uma vivência variada, como também da oportunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> planejar estratégias para completar o trabalho por inteiro, ou seja, controlan<strong>do</strong><br />
o aprendiza<strong>do</strong>” (Covington & Lord, 1994, p. 166). Em seu laboratório <strong>de</strong> tecnologia<br />
musical, eles <strong>de</strong>screvem sua experiência com os estudantes da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Kentucky. Usan<strong>do</strong> gravações <strong>de</strong> extratos reais <strong>de</strong> músicas, pe<strong>de</strong>m aos estudantes que<br />
5
6<br />
gravem diferentes linhas da partitura, por exemplo, o baixo, a melodia ou outra linha<br />
<strong>de</strong> algum instrumento qualquer, em outras faixas <strong>do</strong> sequencer. Para isso, os estudantes<br />
têm a seu dispor, tecla<strong>do</strong>s midi, computa<strong>do</strong>res e softwares individuais, além<br />
<strong>de</strong> fones <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>. Relatam os resulta<strong>do</strong>s como extremamente positivos tanto na<br />
aquisição e transferência <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s e conhecimentos, quanto no envolvimento<br />
<strong>do</strong>s alunos na tarefa. Algumas dificulda<strong>de</strong>s comuns, como ouvir e recuperar na memória<br />
a linha <strong>do</strong> baixo, são superadas através <strong>do</strong> esforço e aplicação <strong>de</strong> estratégias<br />
pessoais <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a experiência e velocida<strong>de</strong> particular <strong>de</strong> cada aluno. Além<br />
disso, é possível que o estudante sinta-se menos pressiona<strong>do</strong> por não ter suas dificulda<strong>de</strong>s<br />
expostas e comparadas com aqueles que têm maior facilida<strong>de</strong>.<br />
Estratégia 1: Análise<br />
Ao iniciar uma leitura à primeira vista, o estudante muitas vezes se <strong>de</strong>para com ‘surpresas’<br />
no <strong>de</strong>correr <strong>do</strong> solfejo. O olhar analítico antes <strong>de</strong> se iniciar o exercício é <strong>de</strong><br />
suma importância para que se possam prever os <strong>de</strong>safios inerentes ao extrato em<br />
questão. Com a experiência, as dificulda<strong>de</strong>s são superadas e a leitura se torna pouco<br />
a pouco fluente. É importante que o professor utilize diferentes materiais <strong>de</strong> leitura,<br />
embora possa a<strong>do</strong>tar um material-base. Berkowitz, Frontier & Kraft (1960) e Ottman<br />
(1995) são materiais com estruturas particulares previstas para cada seção.<br />
Assim, os primeiros capítulos abordam somente melodias diatônicas, inserin<strong>do</strong> tonicizações<br />
e modulações à <strong>do</strong>minante e outras harmonias cromáticas pouco a pouco.<br />
São excelentes materiais-base, mas é importante inserir alternativas a essas estruturas<br />
previsíveis para que o estudante <strong>de</strong>senvolva a versatilida<strong>de</strong> e capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> previsão<br />
anterior à leitura. Edlung (1974) oferece um material misto <strong>de</strong> estruturas previsíveis<br />
e não-previsíveis nas diferentes seções e po<strong>de</strong> ser uma boa opção para esse propósito.<br />
No extrato abaixo, a primeira frase da melodia se encontra em Lá menor, modulan<strong>do</strong><br />
à <strong>do</strong>minante na segunda parte da frase seguinte. A terceira frase se inicia com a<br />
mesma melodia que a primeira, no entanto, dirige-se à sub<strong>do</strong>minante da tonalida<strong>de</strong><br />
original através <strong>de</strong> sua <strong>do</strong>minante individual, usan<strong>do</strong>, ainda, o rebaixamento <strong>do</strong> segun<strong>do</strong><br />
grau para acessá-la. Em seguida, na quarta frase, retorna-se a Lá menor através<br />
da <strong>do</strong>minante para voltar a esta última harmonia na semicadência. O extrato é interrompi<strong>do</strong><br />
na harmonia <strong>de</strong> tônica maior.
Figura 1.1 — Extrato <strong>do</strong> repertório (Haydn) como apresenta<strong>do</strong> no livro <strong>de</strong> solfejo<br />
Modus Vetus <strong>de</strong> Lars Edlung, p. 112<br />
O uso das ferramentas <strong>de</strong> análise é imprescindível para que o estudante possa prever<br />
os caminhos por on<strong>de</strong> a melodia po<strong>de</strong>rá encaminhá-lo durante a leitura. Além da<br />
pura conscientização teórica, é necessário que ele ouça esses caminhos antes <strong>de</strong> iniciar<br />
o solfejo. Po<strong>de</strong>-se inclusive cantarolar as alterações, por exemplo, da sensível da<br />
<strong>do</strong>minante e <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> grau rebaixa<strong>do</strong> segui<strong>do</strong> da V/ IV para ‘sentir’ essas alterações<br />
e localizar as funções melódicas <strong>de</strong>sses graus altera<strong>do</strong>s.<br />
Estratégia 2: Montagem e remontagem: Escuta <strong>de</strong> estruturas complexas<br />
— Uma abordagem construtivista<br />
Esta é a estratégia <strong>de</strong>scrita por Covington & Lord (1994) como vivência direta com<br />
as estruturas complexas e que os autores chamam <strong>de</strong> montagem (assembly) e remontagem<br />
(reassembly). Uma vez que os estudantes tenham a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolher<br />
a or<strong>de</strong>m e as estratégias particulares usadas para <strong>de</strong>codificar o material, são orienta<strong>do</strong>s<br />
a gravar numa faixa <strong>do</strong> sequencer o que ouviram.<br />
Conclusões<br />
A coexistência das abordagens objetivista e construtivistas, ao contrário <strong>do</strong> que pensam<br />
Covington & Lord (1994), não são, na opinião da autora <strong>de</strong>sta proposta, necessariamente<br />
exclu<strong>de</strong>ntes. O problema da abordagem exclusivamente objetivista<br />
está na falta <strong>do</strong> exercício da transferência <strong>de</strong> um <strong>do</strong>mínio a outro, no que, <strong>de</strong> fato,<br />
consiste a crítica daqueles autores ao objetivismo. Uma fórmula aritmética não é, em<br />
si, um problema ao estudante <strong>de</strong> matemática. O problema é não ser ofereci<strong>do</strong> ao<br />
aluno o conhecimento <strong>de</strong> sua origem, a informação: ‘<strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem?’ Se, ao contrário,<br />
como professores e pesquisa<strong>do</strong>res, oferecermos aos alunos a possível conexão às texturas<br />
complexas da música, respeitan<strong>do</strong> suas próprias experiências e dirigin<strong>do</strong>-as <strong>de</strong><br />
maneira que eles mesmos possam aplicá-las em seu treinamento auditivo, o estu<strong>do</strong><br />
da percepção po<strong>de</strong> se tornar menos ári<strong>do</strong> e mais interessante. Esta pesquisa se encontra<br />
em andamento, sen<strong>do</strong> aplicada aos alunos <strong>de</strong> primeiro e segun<strong>do</strong> anos <strong>de</strong> graduação<br />
em música <strong>do</strong> Instituto <strong>de</strong> <strong>Artes</strong> da Unesp.<br />
7
8<br />
Agra<strong>de</strong>cimentos<br />
À FUNDUNESP, por financiar a apresentação <strong>de</strong>sta pesquisa no <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e<br />
<strong>Artes</strong> Musicais (<strong>SIMCAM</strong> <strong>VI</strong>).<br />
Referências<br />
Berkowitz, Sol, Gabriel Fontrier e Leo Kraft. A New Approach to Sight Singing. New York:<br />
Norton, 1960.<br />
Burns, Edward. M. e W. Dixon Ward. “Intervals, Scales, and Tuning.” In The Psychology of<br />
Music (2ª. ed.) Deutsch, Diana (Org.), p. 241-270. San Diego: Aca<strong>de</strong>mic Press, 1999.<br />
Covington, Kate e Charles H. Lord. “Epistemology and Procedure in Aural Training: In<br />
Search of a Unification of Music Cognitive Theory with Its Applications.” Music Theory<br />
Spectrum 16, n. 2 (Autumn 1994), 159-170.<br />
Deutsch, Diana. “O Quebra-cabeça <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong> Absoluto.” Revista <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais,<br />
vol. 1, n. 1 (maio 2006): 15-21.<br />
———. Psychology of Music (2ª. ed.). San Diego: Aca<strong>de</strong>mic Press, 1999.<br />
Edlung, Lars. Modus Novus. Estocolmo: Nordika, 1963.<br />
———. Modus Vetus. New York: Wilhelm Hansen, 1974.<br />
Kraft, Leo. A New Approach to Ear Training (2ª ed.). New York: Norton, 1999.<br />
Krumhansl, Carol. “Ritmo e Altura na <strong>Cognição</strong> Musical.” In Em Busca da Mente Musical:<br />
Ensaios sobre os Processos Cognitivos em Música — da Percepção à Produção Ilari, Beatriz<br />
S. (Org.), p. 45-109, Curitiba: Editora da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Paraná, 2006.<br />
———. “Tonal hierarchies and rare intervals in music cognition.” Music Perception 7, n. 3<br />
(1990): 53-96.<br />
Levitin, Daniel. J. “Em busca da mente musical.” In Em Busca da Mente Musical: Ensaios sobre<br />
os Processos Cognitivos em Música — da Percepção à Produção Ilari, Beatriz S. (Org.), p.<br />
23-44. Curitiba: Editora da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Paraná, 2006.<br />
———. “Music Arts, Cognition, and Innate Expertise.” <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> III <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e<br />
<strong>Artes</strong> Musicais (maio 2007): p. 21-29.<br />
Ottman, Robert W. Music for Sight Singing. Upper Saddle River: Prentice Hall, 1995.
Resumo<br />
Memória e Imitação na Percepção Musical<br />
Ricar<strong>do</strong> Doura<strong>do</strong> Freire<br />
freireri@unb.br<br />
Departamento <strong>de</strong> Música, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília<br />
O processo cognitivo da percepção musical acontece media<strong>do</strong> pelas maneiras como a<br />
memória atua no registro e processamento das informações auditivas. A abordagem da<br />
percepção musical como processo cognitivo aceita que a memória po<strong>de</strong> atuar <strong>de</strong> diversas<br />
maneiras durante o processo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação e escrita musical. O presente artigo tem<br />
por objetivo estabelecer uma relação entre os diferentes tipos <strong>de</strong> memória e propor mo<strong>de</strong>los<br />
<strong>de</strong> imitação compatíveis com as formas <strong>de</strong> funcionamento <strong>de</strong> cada tipo <strong>de</strong> memória<br />
apresenta<strong>do</strong>: (1) memória <strong>de</strong> longa duração, (2) memória <strong>de</strong> curta duração / memória operacional<br />
e (3) memória sensorial / neurônios espelho. De acor<strong>do</strong> com o mo<strong>de</strong>lo clássico<br />
<strong>de</strong> Attkinson & Shiffrin (1971 apud Sternberg, 2000) a memória po<strong>de</strong> ser processada <strong>de</strong> diversas<br />
maneiras: (1) armazenamento sensorial, perío<strong>do</strong>s <strong>de</strong> tempo muito breves, (2) armazenamento<br />
<strong>de</strong> curto prazo, e (3) armazenamento <strong>de</strong> longo prazo. Bad<strong>de</strong>ley e Hitch (1974<br />
apud Werke 2008) propuseram o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> memória operacional que compreen<strong>de</strong>ria e<br />
substituiria o conceito clássico <strong>de</strong> memória <strong>de</strong> curto prazo. O conceito memória sensorial<br />
po<strong>de</strong> ser revisto e amplia<strong>do</strong> a partir das pesquisas <strong>de</strong> Rizzolatti (2004) sobre neurônios<br />
espelho. No trabalho <strong>de</strong> percepção musical a imitação é uma ferramenta fundamental<br />
para o processo <strong>de</strong> aprendizagem. Cada tipo <strong>de</strong> memória po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> por<br />
meio <strong>de</strong> um tipo específico <strong>de</strong> imitação que irá promover uma forma <strong>de</strong> processamento<br />
da informação musical. São propostas as <strong>de</strong>nominações <strong>de</strong> imitação longa relacionada à<br />
memória <strong>de</strong> longa duração; imitação curta, relacionada à memória <strong>de</strong> curta duração, imitação<br />
operacional relacionada à memória operacional e imitação espelho relacionada ao<br />
funcionamento <strong>de</strong> neurônios espelho. O trabalho <strong>de</strong>monstrou a potencialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se conceber<br />
a imitação como ferramenta para o <strong>de</strong>senvolvimento da memória no contexto da<br />
percepção musical.<br />
Memória e Imitação<br />
A percepção musical po<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar tanto os aspectos fiscos da vibração <strong>do</strong>s sons<br />
quanto os complexos processos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação e significação <strong>de</strong> eventos sonoros<br />
que possam ser semanticamente consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s como música. O processo cognitivo<br />
da percepção musical acontece media<strong>do</strong> pela duração temporal das informações<br />
apresentadas e em conseqüência pelas formas como a memória atua no registro e<br />
processamento das informações auditivas. A abordagem tradicional <strong>do</strong> ensino <strong>de</strong><br />
percepção centra<strong>do</strong> no conteú<strong>do</strong> musical pressupõe que o aluno <strong>de</strong>va memorizar<br />
trechos musicais para ser capaz <strong>de</strong> escrever dita<strong>do</strong>s musicais. No entanto, a abordagem<br />
da percepção musical como processo cognitivo complexo <strong>de</strong>ve observar os diferentes<br />
tipos <strong>de</strong> memória que atuam <strong>de</strong> diversas maneiras durante o processo <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ntificação e <strong>de</strong>codificação musical. A partir da análise <strong>do</strong>s tipos <strong>de</strong> memórias en-<br />
9
10<br />
volvi<strong>do</strong>s no processo e suas relações com os processos <strong>de</strong> imitação propostos é possível<br />
direcionar as práticas <strong>de</strong> percepção musical realizadas em ativida<strong>de</strong>s pedagógicas.<br />
Os estu<strong>do</strong>s inicias sobre a Psicologia da Música realiza<strong>do</strong>s por Seashore (1938) colocavam<br />
a memória como um <strong>do</strong>s aspectos fundamentais da aprendizagem.<br />
O processo <strong>de</strong> aprendizagem em música envolve <strong>do</strong>is aspectos principais: aquisição<br />
e retenção <strong>de</strong> informações e experiências musicais, e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong><br />
habilida<strong>de</strong>s musicais. Estes <strong>do</strong>is aspectos po<strong>de</strong>m ser incluí<strong>do</strong>s no uso comum <strong>do</strong><br />
termo “memória”; assim sen<strong>do</strong>, nós possuímos uma memória consciente, que é<br />
a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tornar acessível a informação e habilida<strong>de</strong>s armazenadas, e também<br />
uma memória subconsciente ou automática, que é um tipo <strong>de</strong> hábito, <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong><br />
nos vários tipos <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s musicais durante a performance.<br />
(Seashore, 1938, pag. 149)<br />
Ao refletir sobre as idéias <strong>de</strong> Seashore po<strong>de</strong>mos verificar que ele propõe que na<br />
aprendizagem estão presentes a aquisição <strong>de</strong> informações musicais, que po<strong>de</strong>m ser<br />
realizadas por meio da imitação e a retenção da informação, característica fundamental<br />
da memória musical.<br />
De acor<strong>do</strong> com Costa (1997), a “memória auditiva caracteriza-se pela capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> ouvir os sons internamente, ou seja, pensar os sons na ausência <strong>de</strong> fonte sonora”.<br />
Seashore (1938) refere-se a esta memória interna a partir <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> imaginação<br />
musical (auditory imagery) como “a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouvir música na lembrança, no<br />
trabalho criativo, e para suplementar os sons físicos atuais na audição musical”. Utilizou<br />
analogias com os processos <strong>de</strong> pintura e escultura para exemplificar seu conceito.<br />
Descreveu também que as imagens auditivas operam durante a audição da<br />
música, na reconstrução (recall) da música ou no processo <strong>de</strong> criação musical. Gor<strong>do</strong>n<br />
(1997) <strong>de</strong>finiu o processo cognitivo <strong>de</strong> audição interna a partir da criação <strong>de</strong><br />
um novo termo teórico: audiação (audiation) que “acontece quan<strong>do</strong> é possível assimilar<br />
e compreen<strong>de</strong>r em nossas mentes, músicas que estejam sen<strong>do</strong> executadas, que<br />
foram executadas no passa<strong>do</strong>, ou para a qual o som não esteja fisicamente presente.”<br />
Também <strong>de</strong>finiu tipos e estágios <strong>de</strong> audiação que incluem: (1) ouvir, (2) ler, (3) escrever,<br />
(4) lembrar e tocar, (5) lembrar e escrever, (6) criar e improvisar na performance,<br />
(7) criar e improvisar durante a leitura, e (8) criar e improvisar durante a<br />
escrita. Lehman, Sloboda e Woody (2007) argumentaram que a performance musical<br />
po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada, principalmente, como uma habilida<strong>de</strong> mental e não apenas<br />
uma ativida<strong>de</strong> física. Utilizaram o conceito <strong>de</strong> representação mental como a<br />
reconstrução interna <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> externo vincula<strong>do</strong> às várias habilida<strong>de</strong>s musicais.<br />
Imitação po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada como um <strong>do</strong>s procedimentos pedagógicos básicos<br />
utiliza<strong>do</strong>s no processo <strong>de</strong> aprendizagem musical. Processos tradicionais <strong>de</strong> ensino<br />
instrumental e vocal, seja em conservatórios europeus ou em culturas <strong>de</strong> tradição<br />
oral, utilizam a imitação <strong>de</strong> trechos musicais como elemento <strong>de</strong> aprendizagem. Na<br />
abordagem <strong>de</strong> Edwin Gor<strong>do</strong>n (1997), o autor estabelece o processo <strong>de</strong> imitação <strong>de</strong>
padrões melódicos e padrões rítmicos como elemento fundamental da aprendizagem<br />
a partir da qual serão estabeleci<strong>do</strong>s os procedimentos <strong>de</strong> instrução musical.<br />
O processo <strong>de</strong> imitação po<strong>de</strong> ser aborda<strong>do</strong> <strong>de</strong> diversas maneiras, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a imitação<br />
<strong>de</strong> notas individuais, imitação <strong>de</strong> intervalos musicais (2 notas), imitação <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s<br />
(grupos <strong>de</strong> três notas simultâneas), imitação <strong>de</strong> linhas melódicas curtas, imitação<br />
<strong>de</strong> frases musicais, até a imitação <strong>de</strong> peças musicais completas. No entanto, quais<br />
sãos as relações que po<strong>de</strong>m existir entre memória e imitação e <strong>de</strong> que maneira a estruturação<br />
da imitação contribui na organização da memória.<br />
Tipos <strong>de</strong> Memória<br />
Na área <strong>de</strong> música existem várias abordagens para o estu<strong>do</strong> da memória. Principalmente<br />
nos processos <strong>de</strong> memorização musical <strong>de</strong> peças musicais nas quais estão relaciona<strong>do</strong>s<br />
elementos da memória mecânica/cinestésica, memória auditiva, memória<br />
visual e memória analítica. (Costa, 1997)<br />
Neste trabalho, será observada, como referência inicial, a abordagem da psicologia<br />
cognitiva que <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o mo<strong>de</strong>lo clássico <strong>de</strong> Attkinson & Shiffrin (1971 apud<br />
Stenberg, 2000) a memória po<strong>de</strong> ser processada <strong>de</strong> três maneiras: 1) armazenamento<br />
sensorial, 2) armazenamento <strong>de</strong> curto prazo, e 3) armazenamento <strong>de</strong> longo prazo.<br />
A partir <strong>de</strong> um estímulo externo a informação po<strong>de</strong> ser registrada pelo sistema sensorial<br />
tanto visual quanto auditivo. A partir <strong>do</strong> registro sensorial, cria<strong>do</strong>r <strong>de</strong> uma<br />
memória sensorial, a informação po<strong>de</strong> ser registrada na Memória <strong>de</strong> Curta Duração,<br />
controla<strong>do</strong> pelos processos <strong>de</strong> ensaio, codificação, <strong>de</strong>cisão e estratégias <strong>de</strong> recuperação<br />
da informação. A fixação permanente da informação irá produzir a Memória <strong>de</strong><br />
Longa Duração.<br />
Bad<strong>de</strong>ley (2004) explica o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> memória operacional que pressupõe a existência<br />
<strong>de</strong> um sistema executivo central que gerencia e atua no controle da atenção<br />
das ações armazenadas. Este sistema é auxilia<strong>do</strong> pela alça fonológica ou articulatória<br />
(phonological loop) que terá a função <strong>de</strong> manter na memória, por poucos segun<strong>do</strong>s,<br />
as informações da linguagem funcional, como um ensaio silencioso das informações<br />
armazenadas a partir <strong>de</strong> referências verbais. O exemplo da alça fonológica po<strong>de</strong> ser<br />
observada quan<strong>do</strong> uma pessoa repete silenciosamente um número <strong>de</strong> telefone, ou<br />
um en<strong>de</strong>reço, por várias vezes, até ter certeza da memorização. O esboço vísuo-espacial<br />
(visuospatial sketchpad), um segun<strong>do</strong> sistema auxiliar, têm a função <strong>de</strong> armazenamento<br />
temporário e manipulação <strong>de</strong> informações visuais e espaciais.<br />
De acor<strong>do</strong> com Sternberg (2000) a memória sensorial é caracterizada pelo armazenamento<br />
rápi<strong>do</strong> que ocorre nos milisegun<strong>do</strong>s seguintes a apresentação <strong>de</strong> uma informação.<br />
Funciona como um repositório inicial, propicia<strong>do</strong> pelos senti<strong>do</strong>s, <strong>de</strong> um<br />
conjunto <strong>de</strong> informações que serão selecionadas e que ingressam nos armazenamentos<br />
<strong>de</strong> curta e longa duração. O conceito <strong>de</strong> memória sensorial po<strong>de</strong> ser revisto e<br />
amplia<strong>do</strong> a partir das pesquisas <strong>de</strong> Rizzolatti (2004) sobre neurônios espelho que<br />
11
12<br />
i<strong>de</strong>ntificou em macacos a presença <strong>de</strong> neurônios com funcionamento específico para<br />
ativar ações musculares são executadas e quan<strong>do</strong> as mesmas ações são apenas observadas<br />
ou escutadas, sen<strong>do</strong> que este funcionamento também está presente nos humanos.<br />
Desta maneira, tornou-se possível verificar que a mente é capaz <strong>de</strong> realizar<br />
representações mentais <strong>de</strong> ações físicas <strong>de</strong> maneira muito rápida e quase que simultaneamente<br />
enviar estímulos para a reprodução das ações musculares observadas.<br />
Gallese e Goldman (2000) realizaram pesquisas sobre neurônios espelho investigan<strong>do</strong><br />
as questões <strong>de</strong> leitura mental <strong>de</strong> macacos e observaram que a atuação <strong>de</strong> neurônios<br />
espelho facilitam a ação <strong>de</strong> grupos musculares <strong>do</strong>s sujeitos observa<strong>do</strong>res em<br />
relação aos sujeitos atores. Neste caso, os da<strong>do</strong>s indicam que neurônios espelho<br />
po<strong>de</strong>m funcionar <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma perspectiva <strong>de</strong> uma teoria da estimulação na<br />
qual os sujeitos observa<strong>do</strong>res conseguem a<strong>do</strong>tar a perspectiva <strong>do</strong>s sujeitos atores por<br />
conseguirem estabelecer um funcionamento cerebral semelhante ao original.<br />
O presente artigo tem por objetivo estabelecer uma relação entre os diferentes tipos<br />
<strong>de</strong> memória e propor mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> imitação compatíveis com as formas <strong>de</strong> funcionamento<br />
<strong>de</strong> cada tipo <strong>de</strong> memória apresenta<strong>do</strong>: 1) memória <strong>de</strong> longa duração, 2) memória<br />
<strong>de</strong> curta duração, 3) memória operacional e 4) memória sensorial / neurônios<br />
espelho. Neste processo são caracterizadas as maneiras <strong>de</strong> utilização <strong>do</strong>s tipos <strong>de</strong> memória<br />
e as formas como estas memórias po<strong>de</strong>m ser usadas nas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> percepção<br />
musical. Nesta contextualização <strong>do</strong> uso da memória faz-se necessário articular<br />
os tipos <strong>de</strong> funcionamento da memória e as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> exercícios <strong>de</strong> percepção<br />
musical.<br />
Discussão Teórica<br />
A memória musical atua como um processo <strong>de</strong> acúmulo <strong>de</strong> informações que <strong>de</strong>vem<br />
ser processadas durante o reconhecimento e transcrição <strong>de</strong> trechos musicais. A memória<br />
po<strong>de</strong> funcionar <strong>de</strong> uma maneira positiva ao criar hierarquias e grupamentos<br />
<strong>de</strong> notas ou <strong>de</strong> maneira negativa ao interferir na i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong>s elementos musicais.<br />
Deutsch (1999) indica que “a memória na música precisa ter o funcionamento <strong>de</strong><br />
um sistema heterogêneo, no qual as várias subdivisões se diferenciam a partir da préexistência<br />
<strong>de</strong> elementos que irão reter a informação.” Assim, na ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> percepção,<br />
o funcionamento da memória envolve vários aspectos que compõem esse<br />
sistema complexo e diversifica<strong>do</strong> <strong>de</strong> estímulos e processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>codificação da informação.<br />
Entre as discussões sobre as similarida<strong>de</strong>s e diferenças entre a memória <strong>de</strong> curta duração<br />
e a memória operacional, <strong>de</strong>stacamos alguns estu<strong>do</strong>s. De acor<strong>do</strong> com Kenrick<br />
(1994, p. 220 apud Engle et al.2000) a memória <strong>de</strong> curta duração é usada para reter<br />
informações por perío<strong>do</strong>s curtos. No entanto, a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> memória operacional<br />
refere-se a um construto mais complexo, <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> como um conjunto <strong>de</strong> elementos<br />
da memória ativa<strong>do</strong>s aos processos centrais <strong>de</strong> execução (Cowan apud Engle et al.<br />
2000).
Os conceitos tradicionais <strong>de</strong> memória estão sen<strong>do</strong> revistos atualmente com novas<br />
propostas <strong>de</strong> construtos teóricos. Ericsson e Kintsch (1995) apresentam estu<strong>do</strong>s<br />
propon<strong>do</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ampliar o conceito <strong>de</strong> memorial operacional para situações<br />
<strong>de</strong> longo prazo. A partir da análise <strong>do</strong>s processos cognitivos presentes na leitura<br />
e compreensão <strong>de</strong> textos, performance <strong>de</strong> alto nível e na ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> joga<strong>do</strong>res avança<strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong> xadrez, os autores refletem sobre os processos <strong>de</strong> armazenamento <strong>de</strong> informações<br />
que precisam ser constantemente acessadas para realização <strong>de</strong> tarefas<br />
complexas. Em ativida<strong>de</strong>s que exigem perícia, “a aquisição <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> memória<br />
permitem que informações importantes sejam armazenadas na memória <strong>de</strong> longa<br />
duração e acessadas pela memória <strong>de</strong> curto prazo” (Ericsson e Kintsch, 1995).<br />
Na área <strong>de</strong> música, Mariana Werke (2008) investigou se a memória operacional é<br />
capaz <strong>de</strong> lidar igualmente com sons verbais (números e pseu<strong>do</strong>palavras) e não-verbais<br />
(tons).O estu<strong>do</strong> observou indícios <strong>de</strong> que material melódico tem características<br />
diferentes <strong>do</strong> material verbal, pois a manipulação <strong>de</strong> seqüências melódicas na memória<br />
operacional parece ser mais difícil <strong>do</strong> que a manipulação <strong>de</strong> seqüências verbais<br />
para os três grupos experimentais. Os resulta<strong>do</strong>s indicam que po<strong>de</strong> existir uma alça<br />
fonológica exclusiva para o conteú<strong>do</strong> musica e indica <strong>de</strong>monstra são necessárias<br />
novas pesquisas para caracterizar melhor as condições em que sequências melódicas<br />
são armazenadas e manipuladas na memória operacional. A hipótese da existência<br />
<strong>de</strong> uma alça musical, ou o treinamento <strong>de</strong> uma operação musical, permite a elaboração<br />
<strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s que possam se beneficiar <strong>de</strong> um funcionamento rápi<strong>do</strong> ao acesso<br />
das informações musicais.<br />
Overy e Molnar- Szakacs (2009) propuseram que os neurônios espelho po<strong>de</strong>m estar<br />
ativos em situações musicais como uma sequência <strong>de</strong> ações motoras que prece<strong>de</strong>m<br />
os sinais musicais, e que o sistema humano <strong>de</strong> neurônios espelho permite a co-representação<br />
e troca <strong>de</strong> experiências entre músico e audiência. Neste contexto, foi<br />
proposto que a imitação, a sincronização, e o compartilhamento <strong>de</strong> experiências<br />
po<strong>de</strong>m ser elementos que promovam o sucesso na realização <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s musicoterápicas<br />
e com crianças com necessida<strong>de</strong>s especiais. Neste caso, o funcionamento<br />
<strong>de</strong> neurônios espelho permite uma comunicação direta entre os participantes <strong>do</strong><br />
processo, ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> espelhamento permitem trocas significativas entre os participantes<br />
das experiências musicais, valorizan<strong>do</strong> aspectos sociais e afetivos envolvi<strong>do</strong>s<br />
no processo.<br />
Em trabalho anterior, Freire (2008) investigou a relação da imitação em tempo-real,<br />
e as imitações simultâneas <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s musicais que foi caracterizada, a princípio,<br />
como ação simultânea que após revisão será consi<strong>de</strong>rada como uma ativida<strong>de</strong> espelho:<br />
O processo <strong>de</strong> Ação Simultânea (espelho) está presente em várias ativida<strong>de</strong>s coletivas,<br />
<strong>de</strong> uma forma direta e produtiva para lí<strong>de</strong>res e participantes <strong>de</strong> grupos<br />
musicais ou <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s esportivas. Uma aula <strong>de</strong> ginástica aeróbica é um bom<br />
13
14<br />
exemplo <strong>de</strong> uma situação em que os participantes conseguem seguir em tempo<br />
real, as indicações <strong>do</strong>s movimentos corporais <strong>do</strong> professor <strong>de</strong> educação física.<br />
Nestas aulas, o movimento é observa<strong>do</strong> e repeti<strong>do</strong> simultaneamente com a música,<br />
sen<strong>do</strong> que o estímulo visual <strong>do</strong> professor é observa<strong>do</strong>, copia<strong>do</strong> e reproduzi<strong>do</strong><br />
como em um espelho ao mesmo tempo em que é apresenta<strong>do</strong> pelo instrutor.<br />
Nesta situação, o estímulo visual é o fator que permite a ação simultânea entre<br />
os movimentos <strong>do</strong>s instrutores e os movimentos <strong>do</strong>s alunos. Um Coral <strong>de</strong> Leigos<br />
é um bom exemplo <strong>de</strong> situação musical na qual as pessoas conseguem acompanhar<br />
a performance musical, mesmo sem saber a leitura musical. Nesta situação<br />
os participantes seguem as indicações musicais <strong>do</strong> regente e os lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong> naipe,<br />
ouvin<strong>do</strong>, olhan<strong>do</strong> os movimentos labiais, seguin<strong>do</strong> a letra da música, sen<strong>do</strong> que<br />
muitas partes da música não estão memorizadas e necessitam <strong>de</strong> exemplos musicais<br />
(colegas, piano, instrumentos, regente) para que as pessoas possam acompanhar<br />
e participar da performance musical. (Freire, 2008)<br />
Resulta<strong>do</strong>s<br />
O processo <strong>de</strong> imitação consiste na repetição <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada informação. No<br />
trabalho <strong>de</strong> percepção musical a imitação é uma ferramenta fundamental para o processo<br />
<strong>de</strong> aprendizagem. Cada tipo <strong>de</strong> memória po<strong>de</strong> ser trabalhada por meio <strong>de</strong> um<br />
tipo específico <strong>de</strong> imitação que irá promover uma forma <strong>de</strong> processamento da informação<br />
musical. Desta maneira são propostas as categorias: imitação longa, relacionada<br />
à memória <strong>de</strong> longa duração; imitação curta, relacionada à memória <strong>de</strong><br />
curta duração; imitação operacional, relacionada à memória operacional e imitação<br />
espelho, relacionada ao funcionamento <strong>de</strong> neurônios espelho. (Fig. 1)<br />
Memória <strong>de</strong> Longo Prazo Imitação Longa<br />
Memória <strong>de</strong> Curto Prazo Imitação Curta<br />
Memória Operacional Imitação Operacional<br />
Memória Sensorial/Neurônios Espelho Imitação<br />
Figura1 — Correlação entre tipos <strong>de</strong> memória e tipos <strong>de</strong> imitação<br />
A imitação longa, relacionada à memória <strong>de</strong> longo prazo, po<strong>de</strong> ser trabalhada por<br />
meio <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s nas quais os sujeitos possam memorizar trechos musicais longos,<br />
após diversas audições, e tentar <strong>de</strong>codificar verbalmente por meio <strong>de</strong> solfejo, ou<br />
transcrever os trechos musicais. (Fig. 2) A característica <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> imitação está<br />
em permitir uma visão <strong>do</strong> contexto musical <strong>de</strong> maneira completa, <strong>de</strong> forma que o<br />
sujeito possa <strong>de</strong>scobrir os <strong>de</strong>talhes a partir <strong>do</strong> to<strong>do</strong>. Neste contexto, a aprendizagem<br />
ocorre da macroestrutura para a microestrutura.
Figura 2— Atlântico (Ernesto Nazareth — Domínio Público)<br />
Trecho para imitação longa.<br />
A imitação curta, vinculada à memória <strong>de</strong> curto prazo, po<strong>de</strong> ser trabalhada por<br />
meio <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s nas quais os sujeitos po<strong>de</strong>m memorizar trechos musicais curtos,<br />
após poucas audições, e tentar <strong>de</strong>codificar verbalmente por meio <strong>de</strong> solfejo, ou transcrever<br />
os trechos musicais. (Fig. 3) Neste caso, os trechos a serem imita<strong>do</strong>s são <strong>de</strong><br />
curta duração (um ou <strong>do</strong>is compassos) e cada trecho po<strong>de</strong> ser imita<strong>do</strong> várias vezes<br />
antes <strong>de</strong> outro trecho ser apresenta<strong>do</strong>. Neste caso a ação <strong>de</strong> ouvir e imitar trechos<br />
curtos reforça a memória <strong>de</strong> curta duração, que a partir <strong>do</strong> armazenamento <strong>de</strong> diversos<br />
trechos po<strong>de</strong> construir uma memória <strong>de</strong> longa duração.<br />
Figura 3 — Atlântico (Ernesto Nazareth — DP)<br />
Trecho para realização <strong>de</strong> exercícios <strong>de</strong> imitação curta.<br />
As memórias <strong>de</strong> longo e curto prazo são tradicionalmente trabalhadas em ativida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> percepção musical, sejam em dita<strong>do</strong>s ou em procedimentos que músicos populares<br />
e eruditos usam para apren<strong>de</strong>r novas músicas a partir <strong>de</strong> gravações. A memória<br />
operacional apresenta características distintas das anteriores, pois faz-se necessário<br />
acessar e relacionar pequenas quantida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> informação que serão trabalhadas em<br />
tempo real. Por exemplo, quan<strong>do</strong> um violonista acompanha <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> uma música<br />
nova, ele necessita ouvir e memorizar partes da melodia e ao mesmo tempo criar recursos<br />
para verificar qual o acor<strong>de</strong> <strong>de</strong>verá ser utiliza<strong>do</strong>. Esta complexa operação da<br />
memória <strong>de</strong> trabalho é processada pelo sistema executivo central ao lidar com o armazenamento<br />
<strong>de</strong> informações novas (melodia) e sua relação com um conhecimento<br />
adquiri<strong>do</strong> (acor<strong>de</strong>s) a partir da atenção <strong>do</strong> material sonoro, capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resumir<br />
melodias e planejamento das opções harmônicas. A imitação operacional po<strong>de</strong> ser<br />
trabalhada a partir da repetição <strong>de</strong> pequenos grupos <strong>de</strong> três ou quatro notas, que<br />
precisam ser imita<strong>do</strong>s imediatamente, para que as informações sejam mantidas ou<br />
ensaiadas mentalmente. A imitação operacional se diferencia da memória <strong>de</strong> curto<br />
prazo por <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r da repetição imediata e da relação entre as informações que estão<br />
sen<strong>do</strong> armazenadas em tempo real. Outro exemplo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> imitação opera-<br />
15
16<br />
cional é a divisão <strong>de</strong> um trecho musical em pequenos motivos que po<strong>de</strong>m ser apresenta<strong>do</strong>s<br />
em rápidas sequências. (Fig. 4)<br />
Figura 4 — Atlântico (Ernesto Nazareth — DP)<br />
Trecho para ser realiza<strong>do</strong> como imitação operacional<br />
A característica <strong>do</strong>s neurônios espelho é promover uma imitação imediata, ou espelhada,<br />
da ativida<strong>de</strong> principal. A ação e imitação ocorrem quase que simultaneamente,<br />
pois a imitação ocorre frações <strong>de</strong> segun<strong>do</strong> após a ação principal. Por exemplo,<br />
quan<strong>do</strong> uma pessoa tenta cantar uma música que não conhece com outra pessoa que<br />
esteja cantan<strong>do</strong>. A pessoa tenta acompanhar a outra cantan<strong>do</strong> “um pouco <strong>de</strong>pois” e<br />
muitas vezes completan<strong>do</strong> as frases já iniciadas. Esta ativida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser adaptada<br />
para ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> percepção musical, quan<strong>do</strong> uma linha musical é apresentada,<br />
sen<strong>do</strong> imitada imediatamente. Neste caso uma nota precisa ser realizada e imitada<br />
antes da nota seguinte. (Fig. 5) Na imitação espelho a aprendizagem ocorre a partir<br />
da microestrutura, da i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> cada nota apresentada. A princípio, é necessário<br />
uma curta fração <strong>de</strong> segun<strong>do</strong> antes da imitação, mas o tempo <strong>de</strong> resposta po<strong>de</strong><br />
ser reduzi<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>ravelmente a partir <strong>de</strong> um treinamento progressivo. Po<strong>de</strong>-se caracterizar<br />
que a função da imitação espelho seja uma ação que permite a interação<br />
musical em tempo real cujo estímulo e resposta musicais ocorrem tão rápi<strong>do</strong> <strong>de</strong> maneira<br />
que sejam percebi<strong>do</strong>s como uma reverberação sonora, ou seja, algo semelhante<br />
ao efeito <strong>de</strong> <strong>de</strong>lay <strong>de</strong> aparelhos <strong>de</strong> amplificação.<br />
Figura 5 — Atlântico com valores aumenta<strong>do</strong>s (Ernesto Nazareth — DP)<br />
Trecho para ser realiza<strong>do</strong> como imitação espelho<br />
A relação entre memória e imitação po<strong>de</strong> direcionar o trabalho pedagógico <strong>de</strong> percepção<br />
musical com sujeitos <strong>de</strong> diversas ida<strong>de</strong>s. A escolha <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> imitação,<br />
que implica no uso <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> memória, possibilita compreen<strong>de</strong>r<br />
melhor qual o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> aprendizagem envolvi<strong>do</strong> nas diferentes ativida<strong>de</strong>s.<br />
Conclusão<br />
Esta pesquisa <strong>de</strong>monstrou a potencialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se conceber a imitação como ferramenta<br />
estratégica para o <strong>de</strong>senvolvimento da memória no contexto da percepção
musical. Cada tipo <strong>de</strong> memória po<strong>de</strong> ser trabalhada por meio <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> imitação,<br />
que irá promover uma forma específica <strong>de</strong> processamento da informação musical. A<br />
imitação <strong>de</strong> trechos longos, com 4 a 8 compassos, reforça o uso da memória <strong>de</strong> longa<br />
duração enquanto a repetição <strong>de</strong> frases musicais <strong>de</strong> <strong>do</strong>is a quatro compassos utiliza<br />
a memória <strong>de</strong> curta duração. Em casos nos quais são apresenta<strong>do</strong>s padrões musicais<br />
<strong>de</strong> quatro a seis notas, imita<strong>do</strong>s logo em seguida, estará usan<strong>do</strong> a memória operacional.<br />
O uso da memória sensorial/neurônios espelho, por meio da imitação espelho,<br />
que tenta reproduzir simultaneamente a informação apresentada. O uso <strong>de</strong><br />
estratégias diversificadas <strong>de</strong> imitação permite a articulação entre os mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> assimilação<br />
da informação musical e seu processamento pelos diferentes tipos <strong>de</strong><br />
memória.<br />
Bibliografia<br />
Bad<strong>de</strong>ley, Alan D. 2004. The Psychology of Memory. In A.D. Bad<strong>de</strong>ley, M.D. Kopelman<br />
and B.A. Wilson (Ed.), The Essential Handbook of Memory Disor<strong>de</strong>rs for Clinicians. New<br />
York: John Wiley & Sons, Ltd.<br />
Costa, Maria Cristina <strong>de</strong> Souza. 1997. A imagem aural e a memória <strong>do</strong> discurso melódico:<br />
processos <strong>de</strong> construção. Revista Opus, 4 (4): 52-61.<br />
Deutsch, Diana. 1999. The processing of pitch combinations. In Psychology of Music, ed.<br />
Diana Deutsch, 2nd. edition. San Diego: Aca<strong>de</strong>mic Press.<br />
Engle, Randall, Stephen W. Tuholski, James E. Laughlin, Andrew R.A. Conway. 1999. Working<br />
Memory, Short-Term Memory and General Fluid Intelligence: A Latent-Variable<br />
Approach. Journal of Experimental Psychology: General, 128(3): 309-331.<br />
Ericsson, K. An<strong>de</strong>rs e Walter Kintsch. 1995. Long-Term Working Memory. Psychological Review,<br />
102 (2), 211-245.<br />
Freire, Ricar<strong>do</strong>. 2008. Caracterização <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> Ação Simultânea (AS) na performance<br />
e percepção em tempo real. In <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> 4º. <strong>SIMCAM</strong> (<strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais).<br />
São Paulo: USP.<br />
Gallese, Vittorio e Alvin Goldman. 2000. Mirror neurons and the simulation theory of mindreading.<br />
Trends in Cognitive Sciences 4 (7): 252-254.<br />
Gor<strong>do</strong>n, Edwin. 1997. Learning Sequences in Music. Chicago: GIA.<br />
Lehman, Andreas, John Sloboda, Robert Woody. 2007. Psychology for Musicians. Londres:<br />
Oxford Press.<br />
Overy, Katie e Istvan Molnar-Szakacs. 2009. Being Together in Time: Musical Experience<br />
and the Mirror Neuron System. Music Perception, 26 (5): 489–504.<br />
Rizzolatti, Giacomo e Laila Craighero. 2004.The mirror-neuron system. In Annual Review<br />
of Neuroscience, 27: 169-192<br />
Seashore, Carl. 1938. Psychology of Music. New York: Norton.<br />
Sternberg, Robert. 2000. Psicologia Cognitiva. Porto Alegre: <strong>Artes</strong> Médicas.<br />
Werke, Mariana. 2008. Memória operacional para tons, palavras e pseu<strong>do</strong>palavras em músicos.<br />
In <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> 4º. <strong>SIMCAM</strong> (<strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais). São Paulo: USP.<br />
17
18<br />
Crítica às teorias representacionalistas da percepção musical<br />
André Villa<br />
avandrevilla@gmail.com<br />
Departamento <strong>de</strong> música — Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris 8<br />
MSH Paris Nord<br />
Resumo<br />
A gran<strong>de</strong> maioria das atuais teorias <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lização da percepção musical estão inseridas<br />
num paradigma representacionalista da cognição e trabalham pre<strong>do</strong>minantemente com<br />
exemplos basea<strong>do</strong>s em músicas tonais. Estas teorias postulam que nossa percepção realiza<br />
uma extração <strong>de</strong> gestalten <strong>do</strong> continuum sonoro para formar um grupamento em unida<strong>de</strong>s<br />
perceptivas e que, em seguida, nós organizamos estas unida<strong>de</strong>s em uma hierarquização<br />
seqüencial. Nesta perspectiva, esta organização perceptiva é vista como uma<br />
segmentação da superfície musical. Evi<strong>de</strong>ntemente, o principal — e por vezes o único —<br />
elemento musical morfofórico ( i.e. porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> forma) leva<strong>do</strong> em consi<strong>de</strong>ração em tais<br />
mo<strong>de</strong>los é a altura musical ( i.e. pitch, hauteur, Tonhöhe). Este texto <strong>de</strong>senvolve uma análise<br />
baseada na percepção <strong>de</strong> músicas não-tonais e em alguns exemplos extraí<strong>do</strong>s da etnomusicologia<br />
e propõe uma inversão <strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>los teóricos em questão. Em ressonância<br />
com a fenomenologia, a hermenêutica, a fisiologia da ação, a enação e as epistemologias<br />
construtivistas, eu enten<strong>do</strong> a percepção não como um tratamento passivo <strong>de</strong> informações<br />
<strong>do</strong>s estímulos <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> pré-estabeleci<strong>do</strong>, mas como uma ação constitutiva <strong>do</strong> fenômeno<br />
percebi<strong>do</strong>. Neste senti<strong>do</strong>, perceber as estruturas que compõem uma obra musical<br />
é visto não como a realização <strong>de</strong> uma análise que extrai <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma unida<strong>de</strong><br />
funcional global, mais uma ativida<strong>de</strong> que faz emergir um continuo articula<strong>do</strong> à partir <strong>do</strong>s<br />
elementos discretos que formam os “postula<strong>do</strong>s musicais”.<br />
Introdução<br />
A gran<strong>de</strong> maioria das atuais teorias <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lização da percepção e da cognição musical<br />
estão inseridas num paradigma representacionalista da cognição. Expressões e<br />
conceitos como “representações mentais”, “linguagem <strong>do</strong> pensamento”, “tratamento<br />
das informações”, “sistema interno”, “codificação simbólica”, “emergência”, “universais”,<br />
entre outros, são freqüentemente utiliza<strong>do</strong>s nos textos científicos que trabalham<br />
sobre as questões da cognição musical. Entretanto, ao meu enten<strong>de</strong>r, estas utilizações<br />
não refletem nenhum questionamento sobre a origem e os fundamentos filosóficos<br />
e epistemológicos que servem <strong>de</strong> alicerce ao paradigma representacionalista da cognição.<br />
Este texto sugere um olhar crítico sobre estas questões.<br />
Paradigmas representacionalistas e ciências cognitivas:<br />
as origens<br />
Uma gran<strong>de</strong> parte das teorias e <strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> percepção musical disponíveis na
literatura especializada se divi<strong>de</strong>m basicamente como pertencen<strong>do</strong> à <strong>do</strong>is diferentes<br />
paradigmas: o cognitivismo e o conexionismo. No entanto, ambos estão inseri<strong>do</strong>s<br />
numa abordagem computacional e representacionalista da cognição humana. Isso<br />
quer dizer que ambos paradigmas consi<strong>de</strong>ram os indivíduos como sistemas que<br />
tratam as informações pré-estabelecidas pelo mun<strong>do</strong> exterior e que, <strong>de</strong> uma certa<br />
forma, em certas partes <strong>do</strong> nosso córtex existem ativações neuronais ou “esta<strong>do</strong>s<br />
mentais” que representam os da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> percebi<strong>do</strong>. Evi<strong>de</strong>ntemente, em uma<br />
tal abordagem, existe uma relação <strong>de</strong> causa e efeito entre o mun<strong>do</strong> (pré-<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>)<br />
e as representações mentais que nós fazemos <strong>de</strong>ste (a vectorização sen<strong>do</strong> obrigatoriamente<br />
neste senti<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ⇒ percepção). De uma maneira extremamente resumida,<br />
a distinção entre os <strong>do</strong>is paradigmas po<strong>de</strong> ser apresentada da seguinte forma:<br />
O cognitivismo “clássico” admite a existência <strong>de</strong> esta<strong>do</strong>s mentais consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s<br />
como idênticos e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> um da<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> físico (concepção fisicalista<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>) e supõe a existência <strong>de</strong> representações mentais simbólicas que são concebidas<br />
como enuncia<strong>do</strong>s <strong>de</strong> uma linguagem formal interna ao sistema. Esta linguagem<br />
formal — também chamada <strong>de</strong> linguagem <strong>do</strong> pensamento — possui<br />
assim uma estrutura lógico-sintáxica (nível simbólico) que po<strong>de</strong> ser avaliada semanticamente<br />
(nível representacional). Os processos cognitivos são entendi<strong>do</strong>s<br />
como processos computacionais (“cálculos”) efetua<strong>do</strong>s sobre símbolos e representações<br />
segun<strong>do</strong> um sistema <strong>de</strong> regras formais pré-estabelecidas. Os símbolos<br />
po<strong>de</strong>m fazer referências às situações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> (fenômenos externos) e formam<br />
entida<strong>de</strong>s estáveis. Eles po<strong>de</strong>m ser estoca<strong>do</strong>s em memória e transforma<strong>do</strong>s segun<strong>do</strong><br />
as citadas regras (o paradigma cognitivista é também chama<strong>do</strong> <strong>de</strong> simbólico).<br />
Estes “cálculos” são conduzi<strong>do</strong>s sequencialmente — em um processo<br />
basicamente bottom-up — sob a direção <strong>de</strong> centros <strong>de</strong> controle (top-<strong>do</strong>wn) a um<br />
alto nível <strong>do</strong> processo cognitivo. O processo ocorre portanto <strong>de</strong> maneira interna<br />
ao sistema que é assim apresenta<strong>do</strong> como sen<strong>do</strong> linear. O cognitivismo é <strong>de</strong>claradamente<br />
e abundantemente inspira<strong>do</strong> <strong>do</strong>s trabalhos sobre o computacionalismo<br />
e os sistemas formais que <strong>de</strong>ram origem à informática, ao computa<strong>do</strong>r e<br />
aos primeiros projetos <strong>de</strong> pesquisa em inteligência artificial (IA). Este paradigma<br />
consi<strong>de</strong>ra assim as relações entre o físico e o mental como similar ao mo<strong>de</strong>lo das<br />
relações entre software e hardware em informática: o nível computo-representacional<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>scrição <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s e processos mentais (i.e. a cognição humana)<br />
é amplamente autônomo em relação ao nível físico <strong>do</strong> sistema interno no qual<br />
o nível computo-representacional se <strong>de</strong>senvolve (i.e. o córtex humano). “Pensar<br />
é calcular” torna-se a máxima que exprime o pensamento cognitivista e a “máquina<br />
<strong>de</strong> Turing” transforma-se no principal mo<strong>de</strong>lo da mente humana.<br />
O conexionismo se <strong>de</strong>senvolveu principalmente à partir da chamada segunda cibernética<br />
e consi<strong>de</strong>ra a cognição como a emergência <strong>de</strong> esta<strong>do</strong>s globais internos<br />
ao sistema, sen<strong>do</strong> este sistema composto por uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> componentes simples<br />
(e.g. os neurônios humanos, os neurônios formais da informática). O sistema é<br />
consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como sen<strong>do</strong> dinâmico complexo (logo, não-linear) e os “cálculos”<br />
são efetua<strong>do</strong>s em paralelo — tratamento das informações <strong>de</strong> forma massiva —<br />
19
20<br />
em múltiplas interações locais efetuadas pelos elementos que compõem a re<strong>de</strong>,<br />
o que implica em uma ausência <strong>de</strong> centros <strong>de</strong> controle. Os esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> não<br />
são mais representa<strong>do</strong>s por símbolos como no cognitivismo, mas por esta<strong>do</strong>s<br />
emergentes da re<strong>de</strong> conexionista (paradigma sub-simbólico). Esta emergência<br />
produz esta<strong>do</strong>s estáveis e ocorre <strong>de</strong> forma auto-organizável, baseada nos “pesos”<br />
das conexões locais e na formação <strong>de</strong> conjuntos atratores no espaço <strong>do</strong> sistema.<br />
Vista como o surgimento auto-organizável <strong>de</strong> singularida<strong>de</strong>s em sistemas naturais<br />
e baseada nos substratos materiais, a emergência conexionista também é basicamente<br />
bottom-up. Neste senti<strong>do</strong>, o conexionismo — assim como o<br />
cognitivismo — é fisicalista (i.e. tese ontológica segun<strong>do</strong> a qual os constituintes<br />
da realida<strong>de</strong> são entida<strong>de</strong>s físicas ou são <strong>de</strong>terminadas exclusivamente por estas)<br />
e sustenta uma espécie <strong>de</strong> realismo semântico numa fórmula que consiste em reificar<br />
— por vezes hipostasiar — o senti<strong>do</strong> concebi<strong>do</strong> como entida<strong>de</strong> objetiva autônoma,<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> ser apreendi<strong>do</strong> ou não pela “mente” humana.<br />
A percepção como ação constitutiva<br />
<strong>do</strong> fenômeno percebi<strong>do</strong><br />
Como crítica ao paradigma computo-representacional, eu utilizo uma abordagem<br />
em ressonância com a fenomenologia, a hermenêutica, a fisiologia da ação, a enação<br />
e as epistemologias construtivistas.<br />
A fenomenologia como base meto<strong>do</strong>lógica<br />
A característica essencial da meto<strong>do</strong>logia própria à fenomenologia husserliana é <strong>de</strong><br />
priorizar <strong>de</strong>scrição das estruturas fenomenais que caracterizam a forma pela qual<br />
os objetos se apresentam. A fenomenologia não se refere às diferenças entre duas<br />
substâncias “fechadas” em si mesmas (dualismo cartesiano), e propõe uma superação<br />
da oposição entre internalismo/externalismo. Ela prioriza a análise das estruturas que<br />
fazem a “correlação” entre as duas instâncias fundamentais <strong>de</strong> um mesmo fenômeno:<br />
um ato intencional (a noesis, ação <strong>do</strong>a<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>) e o objeto correlato <strong>de</strong>ste ato<br />
(o noema, subordina<strong>do</strong> à noesis, mas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte pois é a unida<strong>de</strong> — ou pluralida<strong>de</strong><br />
— objetiva das <strong>de</strong>terminações). Como cita Jean-Luc Marion, a conquista fundamental<br />
da fenomenologia <strong>de</strong> Husserl é que “fenômeno [Erscheinung] não se diz<br />
nem primeiro, nem somente <strong>do</strong> objeto que aparece, mas também da experiência vivida<br />
na qual e pela qual ele aparece.” (Marion, 1989, 85).<br />
Husserl — e, mais explicitamente, Hei<strong>de</strong>gger e Merleau-Ponty — chama nossa atenção<br />
sobre o fato que é nossa ativida<strong>de</strong>, nossa interação com o mun<strong>do</strong> que nos distingue<br />
<strong>de</strong>le e que o <strong>do</strong>ta <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> para nós. A percepção participa assim ativamente<br />
da constituição <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ao nosso re<strong>do</strong>r. A estrutura enquanto organização própria<br />
<strong>de</strong> um objeto percebi<strong>do</strong> (e.g. uma obra musical) emerge no carrefour da correlação<br />
noesis-noema. A fenomenologia também <strong>de</strong>senvolve <strong>de</strong> forma aprofundada muitas<br />
questões sobre os objetos temporais e po<strong>de</strong> assim funcionar como uma potente e
frutuosa “máquina filosófica” para analisarmos a percepção musical (Villa, 2005 e<br />
2008).<br />
Emergência, hermenêutica e enação<br />
O termo emergência é polissêmico. A significação que eu atribuo a este termo se<br />
aproxima sensivelmente <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> enação sugeri<strong>do</strong> e introduzi<strong>do</strong> em ciências<br />
cognitivas graças ao trabalho <strong>de</strong> Francisco Varela.<br />
O termo enação é uma tentativa <strong>de</strong> “traduzir” a nova <strong>de</strong>signação <strong>do</strong> termo hermenêutica<br />
a<strong>do</strong>tada por Martin Hei<strong>de</strong>gger. Para ele, a hermenêutica não se refere apenas<br />
à disciplina da interpretação <strong>de</strong> textos antigos. Com Hei<strong>de</strong>gger e seu discípulo Gadamer,<br />
a hermenêutica passa a <strong>de</strong>signar “o fenômeno da interpretação como um to<strong>do</strong>,<br />
entendi<strong>do</strong> como a enação ou fazer-emergir [enactment or bringing forth] da significação<br />
sobre um fun<strong>do</strong> [from a background] <strong>do</strong> entendimento” (Varela, Thompson e<br />
Rosch, 1991, 149). Esta hermenêutica “hei<strong>de</strong>ggeriana” pressupõe o conhecimento<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> circundante como inseparável <strong>do</strong> ser que o percebe e <strong>de</strong> suas experiências<br />
vividas.<br />
Esta noção <strong>de</strong> emergência da significação como uma ação encontra-se já germinada<br />
nos fragmentos <strong>de</strong> Heráclito on<strong>de</strong> a palavra grega φυσιζ [phusis ou physis] <strong>de</strong>signa o<br />
processo perpétuo <strong>de</strong> emergência pelo qual as coisas — a natureza — vêm à “ser”<br />
para o ser que percebe (Hei<strong>de</strong>gger, 1958, 326). Este processo <strong>de</strong> emergência, nos escreve<br />
Jean-Michel Salanskis, <strong>de</strong>senvolve um “senti<strong>do</strong>” cada vez que por ele ou nele<br />
há a produção da aparição-estabilização <strong>de</strong> uma morfologia (Salanskis, 2003, 93).<br />
Esta morfologia que, na finalização <strong>de</strong>sta emergência, se impõe à este mesmo ser que<br />
percebe. Esta <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> “senti<strong>do</strong>” nos propõe a interpretação <strong>do</strong> comportamento<br />
cognitivo como a constituição ou a síntese <strong>do</strong> significa<strong>do</strong>. O termo “senti<strong>do</strong>” é aqui<br />
utiliza<strong>do</strong> como a emergência produzida e organizada <strong>de</strong> uma morfologia e é assim<br />
<strong>de</strong>svia<strong>do</strong> e amplia<strong>do</strong> <strong>de</strong> seu uso exclusivamente lingüístico.<br />
Outro argumento originário <strong>do</strong> pensamento hei<strong>de</strong>ggeriano e utiliza<strong>do</strong> como crítica<br />
ao representacionalismo nas ciências cognitivas — e principalmente na sua aplicação<br />
nas pesquisas <strong>de</strong> IA — é a leitura que Hei<strong>de</strong>gger faz da situação<br />
ou <strong>do</strong> homem situa<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> (Hei<strong>de</strong>gger, 1997; Dreyfus, 1979). A hermenêutica<br />
hei<strong>de</strong>ggeriana nos evi<strong>de</strong>ncia assim que as construções <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, da significação, da<br />
funcionalida<strong>de</strong> e mesmo da <strong>de</strong>cisões que possibilitam as constituições percebidas<br />
como ontológicas <strong>do</strong>s objetos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> — e <strong>do</strong> próprio ser-no-mun<strong>do</strong> e da sua<br />
pre-sença (Dasein) — são intrínsecas ao contexto, à re<strong>de</strong> social, a cultura, em outras<br />
palavras, à situação on<strong>de</strong> estes objetos e os sujeitos que os percebem evoluem e interagem.<br />
Este pensamento, <strong>de</strong> uma certa forma, foi igualmente postula<strong>do</strong> por Merleau-Ponty<br />
no conceito <strong>de</strong> “arco intencional” (Merleau-Ponty, 1945, 158).<br />
21
22<br />
Intersubjectivida<strong>de</strong>, neurologia e fisiologia da ação<br />
A intersubjectivida<strong>de</strong> é o conceito da fenomenologia que tenta <strong>de</strong>signar o que hoje<br />
costuma-se chamar <strong>de</strong> cognição social. Em outras palavras, como nós percebemos e<br />
compreen<strong>de</strong>mos o que os outros sujeitos percebem e compreen<strong>de</strong>m.<br />
Os neurônios espelhos fazem parte <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s recentes em neurologia (Rizzolatti e<br />
al., 1995; Rizzolatti e Sinigaglia, 2008) que po<strong>de</strong>m ajudar na compreensão da intersubjectivida<strong>de</strong><br />
por meio <strong>de</strong> fatores biológicos, numa espécie <strong>de</strong> “naturalização”<br />
da fenomenologia. Estes neurônios se encontram principalmente no córtex prémotor<br />
<strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s primatas — macacos e homens — e se ativam tanto quan<strong>do</strong> um<br />
animal realiza uma <strong>de</strong>terminada ação que quan<strong>do</strong> este observa outro animal (normalmente<br />
da mesma espécie) realizar a mesma <strong>de</strong>terminada ação. Assim, os neurônios<br />
espelhos po<strong>de</strong>m nos ajudar à explicar como nós percebemos e compreen<strong>de</strong>mos<br />
as interações <strong>do</strong>s sujeitos que nos circundam com o mun<strong>do</strong> que nos envolve à to<strong>do</strong>s.<br />
Se a percepção é inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da ação e está situada, a intersubjectivida<strong>de</strong> é sem<br />
dúvida um fator primordial na construção cognitiva <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que nos envolve.<br />
As recentes pesquisas em fisiologia da ação (Berthoz e Petit, 2006; Berthoz, 2008)<br />
são esclarece<strong>do</strong>ras neste assunto e revelam o quanto uma abordagem fenomenológica<br />
da percepção po<strong>de</strong> se mostrar pertinente com os da<strong>do</strong>s produzi<strong>do</strong>s nas recentes<br />
pesquisas em fisiologia. Alain Berthoz, em ressonância com a fenomenologia, postula<br />
que o pensamento não vem antes da ação nem vice-versa: a ação contém to<strong>do</strong><br />
o pensamento.<br />
Algumas implicações da utilização<br />
<strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> representação mental<br />
Varela chama a nossa atenção para a seguinte evidência: “somente um mun<strong>do</strong> pré<strong>de</strong>termina<strong>do</strong><br />
po<strong>de</strong> ser representa<strong>do</strong> mentalmente” (Varela, 1989, 92). A simples hipótese<br />
da existência <strong>de</strong> representações mentais pressupõe uma concepção dualista<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Isto implica em aceitar a hipótese que o mun<strong>do</strong> à ser representa<strong>do</strong> não<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> nem <strong>do</strong> ser que o percebe, nem <strong>do</strong> contexto on<strong>de</strong> ocorre o ato perceptivo.<br />
O mun<strong>do</strong> é assim <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong> ontológica separada em duas substâncias<br />
estáticas e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes: o sujeito e o objeto. Temos como conseqüência um realismo<br />
que permite uma especulação sobre a universalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s objetos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
(i.e. um objeto guarda sua ipseida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> quer que ele se encontre no mun<strong>do</strong>) e “autoriza”<br />
uma procura pelos universais em música.<br />
Em seguida, a relação entre uma representação R e a entida<strong>de</strong> representada E <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> elementos exteriores à R e E. Além disso, uma representação exata, no senti<strong>do</strong><br />
que todas as proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma entida<strong>de</strong> E estejam presentes em uma<br />
representação R (i.e. R = E) contradiz o próprio conceito <strong>de</strong> representação. Assim,<br />
o que faz com que, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um paradigma representacionalista, minhas represen-
tações correspondam ou representem <strong>de</strong> maneira a<strong>de</strong>quada as realida<strong>de</strong>s externas?<br />
Formulan<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma outra maneira, quais são os elementos ou regras exteriores às<br />
realida<strong>de</strong>s percebidas e suas respectivas representações mentais que servem <strong>de</strong> ancora<br />
à a<strong>de</strong>quação <strong>do</strong>s símbolos sobre os quais minhas representações mentais se portam?<br />
Se no paradigma representacionalista o mun<strong>do</strong> está separa<strong>do</strong> em duas substâncias<br />
ontologicamente in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, como ocorre esta ponte entre estas duas substâncias<br />
e, principalmente, o que me assegura a a<strong>de</strong>quação entre R e E ? Ou ainda, como fugir<br />
<strong>de</strong>ste solipsismo e chegar à um consenso sobre os objetos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> se não for <strong>de</strong><br />
maneira pública?<br />
As representações como funções operatórias:<br />
o exemplo da composição musical<br />
Eu não excluo a hipótese que possam haver ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma forma representacional<br />
— e portanto simbólica — nas experiências cognitivas cotidianas. Por exemplo,<br />
compor uma obra musical escreven<strong>do</strong> sobre uma pauta, <strong>de</strong>dilhan<strong>do</strong> sobre um violão<br />
ou programan<strong>do</strong> em um computa<strong>do</strong>r. Dentro <strong>de</strong> um paradigma representacionalista,<br />
tais ativida<strong>de</strong>s representacionais reenviam rapidamente ao que Jacques Bouveresse<br />
chama (basea<strong>do</strong> nas análises <strong>de</strong> Wittgenstein sobre a “linguagem privada”) <strong>de</strong> “o<br />
mito da interiorida<strong>de</strong>” (Bouveresse, 1976). De uma maneira resumida, é este “mito”<br />
que faz com que nós acreditemos que as “idéias musicais” nascem prontas e <strong>de</strong> maneira<br />
isolada na cabeça <strong>do</strong> compositor — como representações mentais — e que, em<br />
seguida, ele às exterioriza, seja sobre uma pauta, um instrumento ou um computa<strong>do</strong>r.<br />
Ora, as idéias musicais nascem justamente da interação <strong>do</strong> compositor com tais utensílios.<br />
Mesmo Beethoven não tinha suas idéias musicais prontas em sua cabeça. Seus<br />
sketchbooks nos mostram como a interação <strong>do</strong> compositor com seus ca<strong>de</strong>rnos é que<br />
estruturaram seu pensamento e, por conseguinte, suas composições. A utilização <strong>de</strong><br />
um instrumento musical durante a composição <strong>de</strong>ixa ainda mais evi<strong>de</strong>nte esta interação.<br />
Quanto ao computa<strong>do</strong>r, esta questão torna-se explicita nos argumentos <strong>de</strong><br />
Winograd e Flores que nos evi<strong>de</strong>nciam que os conceitos emergem antes da interação<br />
que na máquina ou na cabeça <strong>do</strong> utiliza<strong>do</strong>r (Winograd e Flores, 1986).<br />
Eu enten<strong>do</strong> assim estas possíveis representações que nós po<strong>de</strong>mos efetuar em relação<br />
ao mun<strong>do</strong> como sen<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m operatória. Elas participam à uma “troca” interativa<br />
que o sujeito — o ser vivo em geral — opera com seu habitat. Estas ativida<strong>de</strong>s<br />
se encontram imersas em uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> processos operatórios que Maturana e Varela<br />
(1980) chamam <strong>de</strong> “acoplamento estrutural” (structural coupling). Sem esta interação,<br />
sem este estatuto operatório, os símbolos não adquirem senti<strong>do</strong> e não po<strong>de</strong>m construir<br />
nenhuma informação. Tanto no ato composicional como na audição <strong>de</strong> uma<br />
peça musical, somente elementos participan<strong>do</strong> a um “acoplamento estrutural”<br />
po<strong>de</strong>m se tornar elementos musicais morfofóricos (i.e. porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> forma musical).<br />
23
24<br />
A memória sem representações<br />
Após tais consi<strong>de</strong>rações, algumas questões sobre a memória se impõem: como po<strong>de</strong>mos<br />
estocar da<strong>do</strong>s e informações em memória sem a utilização <strong>de</strong> símbolos e <strong>de</strong><br />
representações mentais? Ou ainda, como, em tal contexto, po<strong>de</strong>mos hierarquizar<br />
perceptivamente eventos como os graus tonais e suas funções quan<strong>do</strong> escutamos<br />
uma música tonal?<br />
Israel Rosenfield <strong>de</strong>senvolve uma visão crítica sobre a memória entendida como estocagem<br />
permanente <strong>de</strong> imagens em nosso cérebro (Rosenfield, 1994). Em uma releitura<br />
<strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s funda<strong>do</strong>res da neurologia no século XIX — obti<strong>do</strong>s com pacientes<br />
com lesões cerebrais (e.g. Charcot, Broca, Dejerine) — e os confrontan<strong>do</strong> com novas<br />
abordagens da percepção e da memória propostas por Gerald E<strong>de</strong>lman, Rosenfield<br />
nos mostra como a idéia <strong>de</strong> comparar o funcionamento <strong>do</strong> nosso cérebro com o<br />
computa<strong>do</strong>r se revela ina<strong>de</strong>quada. O cérebro, escreve Rosenfield, “parece capaz (. . .)<br />
<strong>de</strong> criar suas próprias generalizações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> sem programas específicos integra<strong>do</strong>s,<br />
nem informações pré-gravadas.” Ao contrario <strong>do</strong> que propõe a abordagem computorepresentacionalista,<br />
nosso córtex não funciona como um disco rígi<strong>do</strong> que estoca<br />
símbolos e representações.<br />
As mudanças <strong>de</strong> “paradigmas musicais”<br />
e o conceito <strong>de</strong> altura musical<br />
Wittgenstein <strong>de</strong>senvolve em seus textos as noções <strong>de</strong> aspectos e <strong>de</strong> ver . . . como (Wittgenstein,<br />
2008). O exemplo típico é o da figura ambígua <strong>do</strong> pato-coelho. Nós po<strong>de</strong>mos<br />
olhar o mesmo estímulo (a figura pato-coelho) e vê-lo como um pato ou vê-lo<br />
como um coelho. Existe assim aspectos <strong>de</strong> um objeto percebi<strong>do</strong> que são <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s<br />
pelo pensamento e por associações.<br />
Epistemologicamente, estas noções também po<strong>de</strong>m ser aplicadas às transformações<br />
<strong>de</strong> “coletivos <strong>de</strong> pensamento” (Denkkollectiv), conceito introduzi<strong>do</strong> por Ludwik<br />
Fleck e <strong>de</strong>pois retoma<strong>do</strong>, transforma<strong>do</strong> e, segun<strong>do</strong> Bruno Latour, reduzi<strong>do</strong>1 por<br />
Thomas Kuhn na forma <strong>de</strong> “paradigmas científicos” (Fleck, 1992; Kuhn, 1983; Latour,<br />
2005). Como no experimento em que Aristóteles viu “somente” uma pedra<br />
(sustentada por um fio), Galileu viu um pêndulo. Ambos “viram” o “mesmo objeto<br />
pêndulo”, mas <strong>de</strong>ram interpretações e tiraram conclusões completamente diferentes.<br />
Em outras palavras, eles <strong>do</strong>taram o “mesmo objeto” <strong>de</strong> <strong>do</strong>is aspectos diferentes, ou<br />
seja, <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s e significações completamente diferentes.<br />
Estas noções wittgensteinianas po<strong>de</strong>m ser aplicadas à percepção musical na sua versão<br />
escutar . . . como. Assim, parte da minha análise é baseada nas principais transformações<br />
ou mudanças <strong>de</strong> “paradigmas musicais” ocorridas durante o século XX<br />
(Villa, 2008). Especialmente com o aparecimento <strong>de</strong> novas estruturas sonoras, novos<br />
conceitos <strong>do</strong> “sonoro-musical” e, principalmente, novos elementos musicais mor-
fofóricos. Os exemplos são múltiplos: o princípio <strong>de</strong> aban<strong>do</strong>no da funcionalida<strong>de</strong><br />
em música (que se manifesta <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o atonalismo <strong>de</strong> Schöenberg) e que mais tar<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolve o que Daniel Charles chama <strong>de</strong> “mudança <strong>de</strong> função da função” (Charles,<br />
1979). O <strong>de</strong>senvolvimento da potencialida<strong>de</strong> <strong>do</strong> “timbre” como elemento porta<strong>do</strong>r<br />
<strong>de</strong> forma musical. O exemplo da pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sons que nos princípios <strong>de</strong> la musique<br />
concrète eram percebi<strong>do</strong>s simplesmente como barulho e que hoje são usa<strong>do</strong>s cotidianamente<br />
como sons musicais em composições contemporâneas e eletroacústicas<br />
(i.e. o objeto sonoro <strong>de</strong> Pierre Schaeffer assume assim o lugar da nota como elemento<br />
morfofórico musical). Ou ainda, a síntese sonora proposta pela elektronische Musik:<br />
o compositor passa à compor não apenas com sons mas os sons em si mesmos. Sem<br />
contar a dissolução da noção <strong>de</strong> forma musical e as transformações geradas pelo advento<br />
da informática musical.<br />
A altura musical como fenômeno emergente<br />
Como nos sinala o compositor Horacio Vaggione, não é a macro-forma <strong>de</strong> uma obra<br />
musical que é o “lugar” ou a “se<strong>de</strong>” da emergência (Vaggione, 2008). Uma peça musical<br />
constitui uma situação multi-local on<strong>de</strong> a emergência é, em potência, onipresente.<br />
Ou seja, ela se encontra em to<strong>do</strong>s os níveis <strong>do</strong> sonoro musical. A emergência<br />
se constrói assim como um conjunto <strong>de</strong> vetorizações multi-direcionais, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />
um espaço constituí<strong>do</strong> — o que se tornou ainda mais evi<strong>de</strong>nte após o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
da informática musical (e.g. estratégias <strong>de</strong> information-hiding) — como uma<br />
re<strong>de</strong> <strong>de</strong> múltiplas escalas <strong>de</strong> duração. Ela se produz seja numa melodia ou num motivo<br />
musical assim como na nota, no ritmo, no timbre, nas diferentes ornamentações,<br />
na espacialização sonora, na nuvem granular, no grão que da origem à nuvem, no<br />
envelope espectral <strong>do</strong> grão, enfim: o som percebi<strong>do</strong> como musical é um fenômeno<br />
construí<strong>do</strong> como emergente à partir <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s multi-estratificadas.<br />
A altura musical como construção cognitiva<br />
Ao contrário <strong>do</strong> axioma pre<strong>do</strong>minante no pensamento computo-representacionalista<br />
da percepção musical, eu não enten<strong>do</strong> a altura musical como um objeto estável,<br />
presente no mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma objetiva e universal. A noção ou conceito <strong>de</strong> altura <strong>do</strong><br />
som como nós oci<strong>de</strong>ntais a enten<strong>de</strong>mos é uma construção cognitiva diretamente relacionada<br />
à um processo histórico-cultural <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>.<br />
A musicóloga Marie-Elisabeth Duchez nos mostra como a <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> um elemento<br />
porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> forma — a altura <strong>do</strong> som — vem a ter <strong>do</strong>is aspectos diferentes <strong>de</strong><br />
expressão entre duas civilizações musicais diferentes como na música grega antiga<br />
instrumental e na música litúrgica <strong>do</strong> início da Ida<strong>de</strong> Média. Enquanto na música<br />
grega antiga a alteração da “altura <strong>do</strong> som” foi obtida pela mudança da tensão — o<br />
Tonus — e o comprimento das cordas da lira (referências quantificáveis), “no canto<br />
gregoriano <strong>do</strong>s <strong>de</strong>z primeiros séculos, a percepção auditiva e a emissão vocal <strong>de</strong> variações<br />
25
26<br />
<strong>de</strong> grave-agu<strong>do</strong> se faziam sem referência físicas, segun<strong>do</strong> as sensações sinestésicas e suas<br />
conexões quinestésicas.” (Duchez, 1988, 287). Assim, na Ida<strong>de</strong> Média, a noção <strong>de</strong> “altura<br />
<strong>do</strong> som” foi <strong>de</strong>senvolvida como uma noção abstrata (sem referências quantificáveis)<br />
para ajudar a aprendizagem <strong>do</strong> canto e orientar a sua execução <strong>de</strong> forma eficaz.<br />
Na música grega antiga, a idéia <strong>de</strong> um elemento responsável pela forma musical (dunamis)<br />
permitiu um acor<strong>do</strong> relativo — porém fixo — <strong>do</strong>s instrumentos e a possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> se po<strong>de</strong>r tocar juntos (e.g. flautas que eram acompanhadas por liras).<br />
Ambas situações histórico-culturais tornaram possíveis as transformações e o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong>stas duas diferentes realizações <strong>do</strong> elemento musical morfofórico.<br />
Porém, a musicóloga nos adverte: “a noção <strong>de</strong> altura <strong>do</strong> som, não é um da<strong>do</strong> imediato<br />
da percepção, mas uma construção racional tardia à partir <strong>de</strong> uma percepção privilegiada,<br />
a <strong>do</strong> caráter musical preferencial grave-agu<strong>do</strong> sobre a qual ela se superpõe conceptualmente”<br />
(Duchez, 1988, 288).<br />
O conceito <strong>de</strong> altura musical é o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma construção cognitiva <strong>de</strong><br />
uma abstração que funciona como um procedimento ou um mo<strong>do</strong> operatório para<br />
combinar as ações que o músico po<strong>de</strong> exercer sobre o som (e.g. a tensão das cordas<br />
vocais ou da corda <strong>do</strong> instrumento) à um <strong>do</strong>s múltiplos aspectos <strong>do</strong> fenômeno sonoro<br />
percebi<strong>do</strong> (o som e suas graduações grave-agu<strong>do</strong> baseadas numa freqüência<br />
fundamental e sua série <strong>de</strong> Fourier). Aspecto este que foi privilegia<strong>do</strong> — <strong>de</strong> maneiras<br />
diferentes — como morfofórico nestes <strong>do</strong>is exemplos <strong>de</strong> “coletivos <strong>de</strong> pensamento”:<br />
o grego antigo e o medieval. Esta representação intermediária, escreve Duchez, “é<br />
heterogênea à percepção e à imaginação auditivas (o conceito <strong>de</strong> altura não é um conceito<br />
sonoro, mas geométrico).” (Duchez, 1988, 301).<br />
Questões sobre os fatores físicos da altura musical<br />
O som sobre o qual nos construímos nossa percepção da altura é constituí<strong>do</strong> fisicamente<br />
por uma re<strong>de</strong> multi-estratificada e multi-escalar — temporal — <strong>de</strong> diferentes<br />
parâmetros (e.g. os transitórios <strong>de</strong> ataque, os aspectos dinâmicos, o envelope espectral,<br />
a duração <strong>do</strong> som, assim como uma possível freqüência fundamental e sua série <strong>de</strong><br />
Fourier). Porém, em uma abordagem baseada na nota musical, a altura se constitui<br />
como um fenômeno emergente estável, à uma escala temporal macro e conserva sua<br />
qualida<strong>de</strong> in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das transformações à uma escala micro. Em um contexto<br />
<strong>de</strong> escuta oci<strong>de</strong>ntal, uma nota “<strong>do</strong>” tocada ao piano conserva esta qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “<strong>do</strong>”<br />
durante toda a sua ressonância, mesmo com todas as transformações que ocorrem<br />
no interior <strong>de</strong>ste fenômeno dinâmico (e.g. redistribuição <strong>de</strong> energia nos parciais,<br />
transformações <strong>do</strong> envelope global, extinção progressiva da ressonância)2. Em certos<br />
contextos <strong>de</strong> escuta “não oci<strong>de</strong>ntais” (e.g. música tibetana para trompas<br />
dung chen, certas músicas indígenas para flautas “à bloco”) são justamente estas transformações<br />
múltiplas no interior <strong>do</strong> som (e.g. transformações espectrais) que são<br />
constituídas e percebidas como elemento musical morfofórico.
A altura musical como fenômeno situa<strong>do</strong><br />
Um exemplo notável sobre esta questão é ilustra<strong>do</strong> pela gravação efetuada pelo ethnomusicólogo<br />
Simha Arom <strong>de</strong> um músico Ngbaka da África central (Arom 1967,<br />
Levy, 2005). Nicolas Masemokobo interpreta nesta gravação <strong>de</strong> 1967 uma ária <strong>de</strong><br />
caça em seu arco musical Mbéla (“berimbau <strong>de</strong> boca”). Como em um berimbau, o<br />
músico ataca a corda com um baqueta fina e, com o intuito <strong>de</strong> modificar o som emiti<strong>do</strong>,<br />
ele diminui o comprimento da corda com uma faca que lhe serve <strong>de</strong> manchão.<br />
Masemokobo transforma o espectro <strong>do</strong> som emiti<strong>do</strong> abrin<strong>do</strong> e fechan<strong>do</strong> a cavida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> ressonância que é constituída pela sua boca — adicionada ao seu crânio — colocada<br />
contra a corda. Como nos sinala Fabien Levy:<br />
“Esta obra foi apresentada em diversas conferências <strong>de</strong> músicos profissionais, compositores,<br />
musicólogos, estudantes em faculda<strong>de</strong>s européias e americanas. Uma vez colocada<br />
a questão : “quantas notas vocês escutam nesta melodia ?”, to<strong>do</strong>s os auditores<br />
respon<strong>de</strong>ram ter percebi<strong>do</strong>, à primeira escuta, um motivo <strong>de</strong> duas notas [como as<br />
duas variações principais “típicas” produzidas por um berimbau em um toque <strong>de</strong><br />
capoeira], às vezes ornamentadas <strong>de</strong> uma variação espectral <strong>do</strong> timbre. Uma escuta<br />
da obra feita com mais atenção nos revela portanto um motivo não <strong>de</strong> duas mais <strong>de</strong><br />
cinco notas, eventualmente oitavadas, e dissimuladas no interior <strong>do</strong> complexo sonoro.<br />
A melodia, composta por muitos sub-motivos com um certo parentesco, está efetivamente<br />
construída sobre uma escala pentatônica anemitônica, como é <strong>de</strong> costume nos<br />
diferentes repertórios musicais da África central.” (Levy, 2005, 7).<br />
O sonograma (análise espectral feita por FFT) da ária africana em questão (Levy,<br />
2005, 8) nos mostra que a evolução pentatônica <strong>do</strong>s parciais acentua<strong>do</strong>s pela boca<br />
<strong>do</strong> músico são mais “visíveis” — logo, “objetivamente falan<strong>do</strong>”, são mais “sonoros”<br />
— que os <strong>do</strong>is sons “fundamentais” que nós oci<strong>de</strong>ntais privilegiamos na escuta. Já o<br />
“coletivo <strong>de</strong> pensamento” <strong>do</strong> qual Masemokobo e sua tribo participam privilegia a<br />
escuta <strong>de</strong>sta escala pentatônica típica <strong>de</strong>sta região da África.<br />
Eu enten<strong>do</strong> assim que a percepção <strong>do</strong> que nós oci<strong>de</strong>ntais chamamos <strong>de</strong> altura musical<br />
reflete um fenômeno que po<strong>de</strong> — ou não — emergir da interação entre o ser, situa<strong>do</strong>,<br />
que escuta <strong>de</strong> forma intencional um fenômeno sonoro e esta re<strong>de</strong><br />
multi-estratificada que compõem fisicamente o fenômeno em questão.<br />
O conceito <strong>de</strong> “música” e a etnomusicologia<br />
Vários estu<strong>do</strong>s antropológicos, lingüísticos e etnomusicológicos (Feld, 1990; Gratton,<br />
1996; Canzio, 1989; Nattiez, 1989, Lortat-Jacob, 1994) enfatizam o fato que<br />
a palavra genérica correspon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ao nosso termo “música” não existe em diversas<br />
culturas. Os exemplos são numerosos: o Awash é uma “forma <strong>de</strong> música” coletiva<br />
<strong>do</strong> Alto Atlas marroquino, mas também <strong>de</strong>termina a festa on<strong>de</strong> ela ocorre. Entre os<br />
índios Bororos <strong>do</strong> Brasil, o termo roia (traduzi<strong>do</strong> geralmente por canto) significa<br />
algo mais próximo <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> ou maneira <strong>de</strong> agir e ilustra a função <strong>do</strong> texto<br />
27
28<br />
em suas cerimônias. Os jogos vocais <strong>do</strong>s povos Inuits se assemelham mais à uma forma<br />
<strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira infanto-juvenil. Existe ainda o ritual fúnebre Gisaro entre o povo Kaluli.<br />
Este ritual, como nos explica o antropólogo Steven Feld, integra certas “estruturas<br />
musicais” e “sons da natureza” <strong>de</strong> uma forma isenta <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia estética: o<br />
conceito — que Feld nomeou <strong>de</strong> lift-up-over sounding — que rege toda a “expressão<br />
musical” Kaluli solicita um continuum <strong>de</strong> superposições <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s sonoras constituí<strong>do</strong><br />
por uma busca coletiva <strong>de</strong> se evitar o uníssono. Isto porque, no enten<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong>ste povo, escreve o antropólogo, na natureza “to<strong>do</strong>s os sons são <strong>de</strong>nsos, multi-estratifica<strong>do</strong>s,<br />
sobrepostos, alterna<strong>do</strong>s e interconecta<strong>do</strong>s” (Feld, 1990, 265).<br />
Ora, estes e muitos outros exemplo mostram que não é apenas a palavra “música”<br />
que não existe nestas culturas. É o próprio conceito <strong>de</strong> “música” como nós o generalizamos<br />
e o concebemos no oci<strong>de</strong>nte que é inexistente entre tais povos. Isto,<br />
mesmo se entre eles existem práticas culturais que nós, sob um prisma oci<strong>de</strong>ntal,<br />
chamamos <strong>de</strong> “música”. Este constato sugere que o conceito <strong>de</strong> música po<strong>de</strong> ser compreendi<strong>do</strong><br />
como uma forma simbólica no senti<strong>do</strong> que Ernest Cassirer atribui ao<br />
termo (Cassirer, 1972). Ou seja, a música participa <strong>de</strong> uma “lei <strong>de</strong> produção” que<br />
gera as obras artísticas, e que estas obras só adquirem funções simbólicas ou funções<br />
culturais (e.g. valores estéticos, valores sacros, valores lúdicos) quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma<br />
<strong>de</strong>terminada cultura. Não é apenas o conceito <strong>de</strong> música ou a maneira <strong>de</strong> compô-la<br />
ou toca-la que não é universal. A percepção musical também é construída como<br />
sen<strong>do</strong> em gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>terminada pela função social que a “música” adquire enquanto<br />
forma simbólica. Em outros termos, a prática <strong>de</strong> uma expressão sonora em<br />
to<strong>do</strong>s os seus aspectos e a importância que esta exerce em uma <strong>de</strong>terminada cultura<br />
não po<strong>de</strong>, por <strong>de</strong>finição, ser universal. Como, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sta óptica, nós po<strong>de</strong>mos<br />
pensar em “música” como sen<strong>do</strong> um objeto “real” pré-estabeleci<strong>do</strong>, universal e <strong>do</strong><br />
qual nos extraímos informações para po<strong>de</strong>rmos representa-lo mentalmente?<br />
Conclusão<br />
A percepção musical, nos contextos acima <strong>de</strong>scritos, não constrói necessariamente<br />
os mesmos mun<strong>do</strong>s percebi<strong>do</strong>s segun<strong>do</strong> os mesmos “da<strong>do</strong>s físicos”. As interações<br />
<strong>do</strong> sujeito com as formas ou funções simbólicas propostas pela sua cultura, <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong> um Denkkollectiv, é o que <strong>de</strong>termina, ou melhor, possibilita as maneiras <strong>de</strong>ste sujeito<br />
construir seu mun<strong>do</strong> musical e assim perceber o sonoro que o envolve como<br />
sen<strong>do</strong> — ou não — “musical”. Nós nem atribuímos a mesma importância e nem projetamos<br />
da mesma forma nossa intenção <strong>de</strong> escuta sobre o sonoro. Em outras palavras,<br />
nós não compomos, não tocamos e não escutamos basea<strong>do</strong>s nos “mesmos aspectos<br />
<strong>do</strong> sonoro” pois estes aspectos — em um senti<strong>do</strong> wittgensteiniano <strong>do</strong> termo — não<br />
são pré-<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s. Eles são justamente o que nos falta à construir em nossa interação<br />
com o “real”. Este “real” que, em termos musicais, se apresenta como uma<br />
re<strong>de</strong> multi-estratificada, um noema enquanto múltiplo das <strong>de</strong>terminações. Estes as-
pectos não são portanto passíveis <strong>de</strong> nenhuma representação mental. Eles emergem<br />
da interação entre o sujeito que percebe — e da soma <strong>de</strong> suas experiências vividas —<br />
e os fenômenos sonoros <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que o envolve. Aceitarmos a hipótese que o<br />
mun<strong>do</strong> é pré-<strong>de</strong>fini<strong>do</strong> significa retiramos-nos todas as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> “fazermos<br />
emergir” o mun<strong>do</strong> percebi<strong>do</strong>.<br />
Porém, nada impe<strong>de</strong> que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> certos contextos e <strong>de</strong> certas re<strong>de</strong>s sócio-culturais<br />
nós possamos produzir percepções concordantes, estruturadas e baseadas, por exemplo,<br />
em nossas intersubjectivida<strong>de</strong>s e em nossos “coletivos <strong>de</strong> pensamento”. Neste<br />
senti<strong>do</strong>, perceber as estruturas que compõem uma obra musical é visto não como a<br />
realização <strong>de</strong> uma análise que extrai <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma unida<strong>de</strong> funcional<br />
global. Unida<strong>de</strong> esta que seria uma representação mental reificada em uma realida<strong>de</strong><br />
física pré-<strong>de</strong>terminada numa espécie <strong>de</strong> realismo semântico. Perceber o sonoro como<br />
musical refere-se mais a uma ativida<strong>de</strong> que faz emergir um continuum articula<strong>do</strong> à<br />
partir <strong>do</strong>s elementos discretos <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s sonoras multi-estratificadas. Re<strong>de</strong>s estas que<br />
foram por exemplo propostas por um compositor ou um músico executante e que<br />
formam o que nós — por vezes — concordamos em chamar <strong>de</strong> música.<br />
1 Latour nos interpela sobre o fato <strong>de</strong> que assimilar o Denkkollectiv <strong>de</strong> Fleck aos paradigmas<br />
<strong>de</strong> Kuhn é um erro. Segun<strong>do</strong> ele, Kuhn retira to<strong>do</strong> o interesse <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> Fleck e retêm<br />
para seu paradigma somente “aquilo que não po<strong>de</strong> ser pensa<strong>do</strong> <strong>de</strong> outra forma.” Latour nos escreve:<br />
“<br />
Kuhn (. . .) re-racionalizou e profundamente <strong>de</strong>ssocializou o que Fleck tinha inventa<strong>do</strong>. Passar<br />
<strong>do</strong> estilo coletivo ao paradigma é esvaziar o surgimento <strong>do</strong> pensamento <strong>de</strong> todas as suas interações,<br />
é fazer <strong>de</strong>le um banal épistèmè à la manière <strong>de</strong> Foucault. Com Kuhn, nos voltamos à<br />
Kant e a Durkheim. Com Fleck, nós íamos totalmente em um outro rumo.” (Latour, 2005).<br />
2 Roger Shepard e Jean-Clau<strong>de</strong> Risset nos mostraram que com diferentes manipulações entre<br />
as freqüências fundamentais <strong>de</strong> um som e seu envelope espectral, nós po<strong>de</strong>mos criar ilusões<br />
sonoras (sons que sobem ou <strong>de</strong>scem infinitamente) que <strong>de</strong>monstram que a altura como nós<br />
oci<strong>de</strong>ntais a percebemos esta baseada em ao menos <strong>do</strong>is aspectos <strong>do</strong> sonoro bem diferentes:<br />
a altura tonal e a altura espectral (Shepard, 1964; cf. as obras Fall e Mutations <strong>de</strong> Risset).<br />
Referências bibliográficas<br />
Arom, Simha. 1967. “Arc musical (Centrafrique) – Pista n° 6” in Dournon, Geneviève e<br />
Schwarz, Jean. 1990. CD Instruments <strong>de</strong> musique du mon<strong>de</strong>. Paris: Collection<br />
CNRS/Musée <strong>de</strong> l’Homme – Le chant du Mon<strong>de</strong> LDX 274 675.<br />
Berthoz, Alain. 2008. Le sens du mouvement. Paris: Odile Jacob.<br />
Berthoz, Alain e Petit, Jean-Luc. 2006. Phénoménologie et physiologie <strong>de</strong> l’action. Paris: Odile<br />
Jacob.<br />
Bouveresse, Jacques. 1976. Le Mythe <strong>de</strong> l’intériorité. Expérience, signification et langage privé<br />
chez Wittgenstein. Paris: Les Éditions <strong>de</strong> Minuit.<br />
29
30<br />
Canzio, Riccar<strong>do</strong>. 1989. Le mon<strong>de</strong> sonore <strong>de</strong>s Bororos, CD Auvidis – Unesco D 8201.<br />
Cassirer, Ernst. 1972. La philosophie <strong>de</strong>s formes symboliques — vol. III. Paris: Les Éditions <strong>de</strong><br />
Minuit.<br />
Charles, Daniel. 1979. Lê temps <strong>de</strong> la voix. Paris: Éditions Universitaires.<br />
Dreyfus, Hubert L. 1979. What Computers Can’t Do: A Critique of Artificial Reason, New-<br />
York: Harper and Row. Second edition.<br />
Duchez, Marie-Elisabeth. 1988. “La notion musicale d’élément porteur-<strong>de</strong>-forme” in McAdams,<br />
Stephen e Deliège, Irène. La musique et les sciences cognitives. Bruxelles: Pierre Mardaga.<br />
Feld, Steven. 1990. Sound and Sentiment: Birds, Weeping, Poetics and Song in Kaluli Expression.<br />
Phila<strong>de</strong>lphia : University of Pennsylvania Press.<br />
Fleck, 1992; Genesis and Development of a Scientific Fact. Chicago: The University of Chicago<br />
Press.<br />
Gratton, Nancy. E. (1996) Kaluli, disponível na Web : http://www.sscnet.ucla.edu/anthro/<br />
faculty/fiske/135b/kaluli.htm<br />
Hei<strong>de</strong>gger, Martin. 1958. Essais et conferences. Paris: Gallimard.<br />
Hei<strong>de</strong>gger, Martin. 1997. Ser e tempo. 2 volumes. Petrópolis: Vozes.<br />
Kuhn, Thomas S. 1983. La structure <strong>de</strong>s révolutions scientifiques. Paris: Flammarion.<br />
Latour, Bruno. 2005. “Transmettre la syphilis ‘ partager l’objectivité”. Posfácio da tradução<br />
francesa <strong>do</strong> livro <strong>de</strong> Ludwig Fleck [1934]. Genèse et développement d’un fait scientifique.<br />
Paris: Les Belles Lettres. http://www.bruno-latour.fr/poparticles/poparticle/p099.html<br />
Levy, Fabien. 2005. “Notre notation musicale est-elle une surdité au mon<strong>de</strong>?”. Disponível na<br />
Web: http://www.fabienlevy.net/en/theorie/TheorRechbr.html<br />
Lortat-Jacob, Bernard. 1994. Musiques en fête. Nanterre: Publications <strong>de</strong> la Société d’ethnologie.<br />
Marion, Jean-Luc. 1989. Réduction et <strong>do</strong>nation : Recherches sur Husserl, Hei<strong>de</strong>gger et la phénoménologie,<br />
Paris: PUF.<br />
Maturana, Varela e Francisco, Maturana. 1980. Autopoiesis and cognition. Boston: Rei<strong>de</strong>l.<br />
Merleau-Ponty, Maurice. 1945. Phénoménologie <strong>de</strong> la perception. Paris: Gallimard.<br />
Nattiez, Jean-Jacques. 1989. “Jeux vocaux <strong>de</strong>s Inuit”. CD OCORA C-55907l http://www.thecanadianencyclopedia.com/in<strong>de</strong>x.cfm?PgNm=TCE&Params=Q1SEC840385<br />
Rizzolatti, Giacomo et al. 1995. “Premotor cortex and the recognition of motor actions” in<br />
Cognitive Brain Research 3, 131-141.<br />
Rizzolatti, Giacomo e Sinigaglia, Corra<strong>do</strong>. 2008. Les neurones miroirs. Paris: Odile Jacob.<br />
Rosenfield, Israel. 1994. A invenção da memória. São Paulo: Editora Nova Fronteira.<br />
Salanskis, Jean-Michel. 2003. Herméneutique et cognition. Paris: Septentrion.<br />
Shepard, Roger N. 1964. “Circularity in judgments of relative pitch” in Journal of the Acoustical<br />
Society of America 36, 2346-53.<br />
Vaggione, Horacio. 2008. “Composition musicale: représentations, granularités, émergences”<br />
in Intellectica 48-49, Revue <strong>de</strong> l’Association pour la Recherche Cognitive, 155-174.<br />
Varela, Francisco. 1989. Connaître les sciences cognitives. Paris: Seuil.
Varela, Francisco, Thompson, Evan e Rosch, Eleanor. 1991. The embodied mind. Massachussetts:<br />
MIT Press.<br />
Villa, André. 2005. “Objets sonores, phénoménologie et sciences cognitives” in A. Se<strong>de</strong>s &<br />
H. Vaggione (éds.), Actes <strong>de</strong> 12e Journées d’Informatique Musicale — JIM 2005, St. Denis,<br />
Université <strong>de</strong> Paris <strong>VI</strong>II — CICM. Na Web : http://jim2005.mshparisnord.org/articles.htm<br />
Villa, André. 2008. “Questions sur le processus <strong>de</strong> segmentation <strong>de</strong> la surface musicale dans<br />
la perception <strong>de</strong>s musiques contemporaines et électroacoustiques” in Intellectica n° 48-<br />
49, Revue <strong>de</strong> l’Association pour la Recherche Cognitive, 115-154.<br />
Winograd e Flores. 1986. L’intelligence artificielle en question. Paris: PUF.<br />
Wittgenstein, Ludwig. 2008. Observações Sobre a Filosofia da Psicologia. Aparecida: Editora<br />
Idéias & Letras.<br />
31
32<br />
A relação entre intérpretes e ouvintes<br />
na percepção das emoções em música<br />
Christian Alessandro Lisboa<br />
Christian.lisboa@gmail.com<br />
Núcleo <strong>de</strong> Música, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Sergipe<br />
Resumo<br />
Este artigo discute elementos presentes nos estu<strong>do</strong>s sobre emoções em música como,<br />
por exemplo, a questão das emoções básicas e resume alguns <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s<br />
através <strong>de</strong> uma experiência realizada para a tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> intitulada “A intenção <strong>do</strong><br />
intérprete e a percepção <strong>do</strong> ouvinte: um estu<strong>do</strong> das emoções em música a partir da obra<br />
Piano Piece <strong>de</strong> Jamary Oliveira”, cujo objetivo era investigar a transmissão <strong>de</strong> emoções<br />
em música. O experimento contou com a participação <strong>de</strong> três pianistas e 105 ouvintes,<br />
que utilizaram um software especialmente <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> para este experimento, a fim <strong>de</strong><br />
registrar em tempo real as emoções <strong>do</strong>s ouvintes ao ouvirem a peça Piano Piece (1984)<br />
<strong>de</strong> Jamary Oliveira. Os resulta<strong>do</strong>s trazem informações sobre a influência <strong>do</strong> intérprete na<br />
transmissão <strong>de</strong> emoções e da<strong>do</strong>s sobre a percepção <strong>do</strong>s ouvintes.<br />
Introdução<br />
Des<strong>de</strong> o fim <strong>do</strong> séc. XIX estu<strong>do</strong>s como os <strong>de</strong> Gilman (1892, 1892a) e Downey<br />
(1897) procuram enten<strong>de</strong>r como e quais emoções os ouvintes percebem nas obras<br />
musicais. Apesar da importância <strong>de</strong>stes trabalhos por seu pioneirismo, o mo<strong>de</strong>lo<br />
<strong>de</strong>scritivo <strong>de</strong> Gilman e Downey focava no individuo, fornecen<strong>do</strong> uma gran<strong>de</strong> riqueza<br />
<strong>de</strong> informações sobre quais emoções eram percebidas e como o ouvinte “pensa”<br />
a música, porém, não possibilitava registros quantitativos como, por exemplo, o grau<br />
<strong>de</strong> coincidência na percepção das emoções entre diversos ouvintes, ou a relação entre<br />
as emoções que um intérprete preten<strong>de</strong> transmitir e a percepção <strong>de</strong>stas pelos<br />
ouvintes.<br />
Os avanços tecnológicos <strong>do</strong> séc. XX permitiram o aparecimento <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s que<br />
fazem uso <strong>de</strong> equipamentos eletrônicos para quantificar elementos presentes nas<br />
pesquisas sobre emoções em música. Um exemplo po<strong>de</strong> ser encontra<strong>do</strong> no trabalho<br />
<strong>de</strong> Nielsen (1983) que registrou a tensão percebida pelos ouvintes ao longo <strong>de</strong> uma<br />
música através <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> pinça com uma resistência <strong>de</strong> mola no centro ligada<br />
a um potenciômetro. Durante o experimento os ouvintes <strong>de</strong>veriam pressionar mais<br />
ou menos a pinça, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a tensão que percebiam. Este tipo <strong>de</strong> experimento<br />
possibilitou traçar relações entre diferentes ouvintes e entre a estrutura da peça e a<br />
tensão percebida. Mais recentemente, com o <strong>de</strong>senvolvimento da informática, autores<br />
como Namba et Al (1991), Salga<strong>do</strong> (2006) e Lisboa (2008) passaram a utilizar<br />
softwares <strong>de</strong> computa<strong>do</strong>r para medir e compreen<strong>de</strong>r a relação entre as emoções pretendidas<br />
pelo intérprete e as emoções percebidas pelos ouvintes.
São muitos os conceitos e referenciais teóricos envolvi<strong>do</strong>s no estu<strong>do</strong> aqui relata<strong>do</strong><br />
(Cf. Lisboa, 2008), porém para que se tenha um entendimento básico sobre os resulta<strong>do</strong>s<br />
obti<strong>do</strong>s e <strong>de</strong> como se <strong>de</strong>senvolveu o experimento, basta que se tenha o conhecimento<br />
<strong>do</strong> que são as emoções básicas.<br />
Segun<strong>do</strong> as pesquisas no campo da psicologia, o ser humano possui emoções inatas<br />
e emoções aprendidas. As emoções inatas são chamadas <strong>de</strong> emoções básicas, primárias<br />
ou fundamentais, e as emoções aprendidas, também chamadas <strong>de</strong> secundárias e<br />
terciárias, são aquelas que <strong>de</strong>rivam <strong>de</strong> uma ou mais emoções básicas. Plutchik (1980)<br />
em sua teoria sobre emoções básicas cria uma metáfora entre cores e emoções que<br />
nos ajuda a enten<strong>de</strong>r a diferença entre emoções básicas, secundárias e terciárias, na<br />
qual po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar as emoções secundárias e terciárias como um refinamento<br />
das emoções básicas, ou seja, se imaginarmos as emoções como cores, as emoções<br />
básicas seriam o vermelho, amarelo e azul, e as emoções secundárias e terciárias seriam<br />
o ver<strong>de</strong>, vermelho claro, vermelho escuro, vinho, alaranja<strong>do</strong>, etc.<br />
Não existe um consenso entre os autores <strong>de</strong> quais emoções são básicas. Isto ocorre<br />
<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> às diferenças meto<strong>do</strong>lógicas e conceituais que envolvem questões semânticas<br />
e relativas à origem das emoções básicas (biológica ou psicológica). As questões semânticas<br />
estão ligadas tanto ao problema <strong>de</strong> tradução entre diversas línguas, como<br />
também à própria <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> emoções através <strong>de</strong> palavras. Por exemplo, as palavras<br />
alegria e felicida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m estar se referin<strong>do</strong> à mesma coisa, apenas com palavras diferentes,<br />
pois alguns dicionários se referem a elas como sinônimos, porém, se analisarmos<br />
as mesmas palavras <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista mais filosófico, a felicida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria<br />
ser encarada como algo mais amplo (por exemplo, a felicida<strong>de</strong> no trabalho, no casamento,<br />
na vida, etc.) e a alegria seria algo mais imediato, como quan<strong>do</strong> se revê um<br />
amigo, ganha-se um presente, ou recebe-se uma boa notícia. Esta interpretação, por<br />
exemplo, <strong>de</strong>squalificaria completamente a felicida<strong>de</strong> como uma emoção, pois as<br />
emoções são por <strong>de</strong>finição reações breves e intensas, o que tornaria a felicida<strong>de</strong> um<br />
afeto1, e a alegria uma emoção. A origem das emoções também divi<strong>de</strong> os autores,<br />
enquanto alguns acreditam que as emoções básicas têm origem biológica e estiveram<br />
presentes ao longo da história <strong>do</strong> homem por uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sobrevivência,<br />
como, por exemplo, o “me<strong>do</strong>” necessário para i<strong>de</strong>ntificar e fugir <strong>do</strong>s perigos, outros<br />
dão a elas um caráter mais psicológico, sugerin<strong>do</strong> que as emoções básicas são aquelas<br />
que po<strong>de</strong>m ser reconhecidas em qualquer cultura, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> sua utilida<strong>de</strong><br />
para a sobrevivência.<br />
Parece-nos imprescindível que qualquer estu<strong>do</strong> que pretenda analisar a transmissão<br />
<strong>de</strong> emoções <strong>de</strong>va trabalhar com um conjunto <strong>de</strong> emoções pre<strong>de</strong>finidas, pois caso<br />
contrário a experiência pessoal <strong>de</strong> cada ouvinte tanto emocional quanto gramatical<br />
irá gerar um conjunto <strong>de</strong> adjetivos muito gran<strong>de</strong>, o que dificulta, ou até mesmo impossibilita<br />
o estu<strong>do</strong> da inter-relação entre ouvintes, ou a relação entre ouvintes e intérpretes.<br />
Devi<strong>do</strong> à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolher um conjunto <strong>de</strong> emoções, nos parece<br />
33
34<br />
lógico a opção por um conjunto <strong>de</strong> emoções básicas, ao invés <strong>de</strong> um conjunto aleatório.<br />
Diante disto, optamos para o nosso experimento, pelas emoções básicas propostas<br />
por Paul Ekman: alegria, tristeza, raiva, me<strong>do</strong>, surpresa e nojo .<br />
Paul Ekman, em suas pesquisas, utilizou figuras <strong>de</strong> rostos com diversas expressões,<br />
estas figuras foram mostradas em diferentes culturas e foi pedi<strong>do</strong> às pessoas que<br />
i<strong>de</strong>ntificassem a emoção que aquele rosto estava sentin<strong>do</strong>. As emoções elencadas por<br />
Ekman são as que foram reconhecidas igualmente em todas as culturas pesquisadas<br />
(Cf. Ekman, 1973, 1992, 1992a, 1993, 1999, 1999a, 1999b).<br />
Acreditamos ser impossível generalizar qualquer experimento com emoções para<br />
to<strong>do</strong>s os seres humanos, diante das diferenças culturais, <strong>de</strong> percepção, <strong>de</strong> memória<br />
emocional, etc. Mas, para po<strong>de</strong>rmos ampliar as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma “pequena” generalização,<br />
acabamos optan<strong>do</strong> por utilizar o conjunto <strong>de</strong> emoções básicas proposto<br />
por Paul Ekman. A escolha <strong>de</strong>ste conjunto levou em conta três elementos: o primeiro<br />
é o fato da meto<strong>do</strong>logia empregada por Paul Ekman, que, como menciona<strong>do</strong>, procura<br />
<strong>de</strong>finir as emoções basea<strong>do</strong> no reconhecimento <strong>de</strong>stas por diversas culturas, o<br />
que a nosso ver contribui para a generalização. O segun<strong>do</strong> elemento foi a realização<br />
<strong>de</strong> uma pré-experimentação na qual as emoções mais citadas para a música proposta<br />
se encaixavam em sua maioria nas emoções propostas por Ekman. O terceiro motivo<br />
foi a gran<strong>de</strong> relação entre as emoções citadas pelos pianistas envolvi<strong>do</strong>s neste trabalho<br />
e as emoções propostas por Ekman.<br />
Além da escolha <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> emoções, necessitávamos também escolher uma<br />
obra musical para compor o nosso experimento, e para isto levamos em conta alguns<br />
elementos:<br />
As escolhas interpretativas em peças <strong>do</strong> repertório erudito normalmente têm gran<strong>de</strong><br />
influência <strong>de</strong> clichês interpretativos2 relativos ao perío<strong>do</strong> histórico-musical em que<br />
a peça foi composta, e da memória auditiva que o intérprete e o ouvinte possuem<br />
daquela peça. Da mesma maneira, as emoções pretendidas pelo intérprete, e as emoções<br />
percebidas pelo ouvinte, estão muito ligadas à memória, ou seja, um ouvinte<br />
muitas vezes associa uma música ou um estilo musical a um fato ou um momento<br />
da sua vida, além <strong>de</strong> que o cinema e a televisão contribuem para isso associan<strong>do</strong> música<br />
a imagens que se traduzem em emoções. Diante disto, procuramos uma peça<br />
pouco conhecida tanto <strong>do</strong>s pianistas como <strong>do</strong>s ouvintes em geral, para que não existissem<br />
associações prévias <strong>de</strong>sta peça com emoções na memória <strong>do</strong>s sujeitos <strong>de</strong>ste<br />
estu<strong>do</strong>. Definimos também que <strong>de</strong>veria ser uma peça <strong>do</strong> séc. XX, perío<strong>do</strong> este que<br />
não possui ainda um clichê interpretativo3. Desta forma, a peça exige que o executante<br />
monte toda a sua interpretação apenas na partitura e nas impressões sonoras,<br />
assim como o ouvinte, que terá menor referência emotiva em relação à peça.<br />
Outro ponto importante na escolha da música foi a duração. Procuramos uma peça<br />
que não fosse muito curta, e que tivesse trechos musicais que apresentassem elementos<br />
(velocida<strong>de</strong>, altura, intensida<strong>de</strong>, etc.) diferentes, para que pudéssemos ter mais
<strong>de</strong> uma emoção presente ao longo da música. Como iríamos trabalhar com uma<br />
peça <strong>do</strong> séc. XX, optou-se também por escolher uma que usasse a escrita musical<br />
convencional (sem bulas), a fim <strong>de</strong> facilitar o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s intérpretes. Diante disto,<br />
optamos pela Piano Piece (1984) <strong>de</strong> Jamary Oliveira (cf. Behágue, 2008), por ser<br />
uma peça <strong>de</strong> um compositor baiano mundialmente conheci<strong>do</strong>, e <strong>de</strong> reconhecida<br />
qualida<strong>de</strong> técnica e musical, além <strong>de</strong> conter to<strong>do</strong>s os pré-requisitos que <strong>de</strong>sejávamos.<br />
O Experimento<br />
No experimento aqui relata<strong>do</strong>, foi <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> um software para computa<strong>do</strong>r que<br />
chamamos <strong>de</strong> PAE (Programa <strong>de</strong> Avaliação das Emoções), para registrar em tempo<br />
real a emoção percebida por 105 ouvintes na peça Piano Piece (1984) <strong>de</strong> Jamary Oliveira.<br />
As telas <strong>do</strong> software, que foram apresentadas aos ouvintes <strong>de</strong> maneira seqüencial,<br />
po<strong>de</strong>m ser observadas na figura 1.<br />
Figura 1 – Telas em seqüência <strong>do</strong> software PAE.<br />
No experimento foi pedi<strong>do</strong> a três pianistas que estudassem e gravassem a peça. Os<br />
pianistas então ouviram sua própria gravação e com o auxílio <strong>do</strong> software, marcaram<br />
as emoções básicas <strong>de</strong> Paul Ekman que julgavam estar transmitin<strong>do</strong> aos ouvintes durante<br />
sua performance. Ao utilizar o software, os pianistas eram direciona<strong>do</strong>s diretamente<br />
para a última tela, na qual existem seis botões com os nomes das emoções<br />
básicas, conforme a figura 1. A marcação <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s pianistas po<strong>de</strong> ser observada no<br />
gráfico da figura 2.<br />
35
36<br />
Figura 2 – Gráfico das emoções pretendidas – Pianista 2.<br />
No gráfico da Figura 2, temos no eixo x o tempo da gravação em segun<strong>do</strong>s, e no eixo<br />
y a emoção que o pianista julgava estar transmitin<strong>do</strong>.<br />
O mesmo software foi aplica<strong>do</strong> aos ouvintes, porém com algumas etapas a mais. No<br />
procedimento <strong>do</strong>s ouvintes, o programa exibia primeiro um pequeno questionário,<br />
no qual os ouvintes <strong>de</strong>viam prestar as seguintes informações: nome, ida<strong>de</strong>, sexo, estilos<br />
musicais que costuma ouvir, se já estu<strong>do</strong>u música e caso afirmativo durante<br />
quanto tempo, e a formação escolar. Estas informações foram utilizadas para traçar<br />
um perfil <strong>do</strong>s sujeitos pesquisa<strong>do</strong>s. Após o questionário os ouvintes passaram por<br />
uma tela <strong>de</strong> informações e em seguida <strong>de</strong>viam ouvir a gravação da peça Piano Piece<br />
<strong>de</strong> um <strong>do</strong>s pianistas e escrever, no espaço apropria<strong>do</strong> <strong>do</strong> software, durante a audição,<br />
todas as emoções que percebiam nesta música. A única limitação era a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> que cada emoção fosse <strong>de</strong>scrita em apenas uma palavra, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> os ouvintes listar<br />
quantas emoções <strong>de</strong>sejassem. Após esta audição, e o surgimento <strong>de</strong> uma nova tela<br />
<strong>de</strong> informações, os ouvintes visualizavam uma tela com seis botões, cada um com o<br />
nome <strong>de</strong> uma emoção básica das propostas por Ekman. O programa então executava<br />
a gravação novamente, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta vez o ouvinte com o auxilio <strong>do</strong> mouse <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r<br />
pressionar o botão4 da emoção básica que julgavam correspon<strong>de</strong>r ao trecho<br />
que estavam ouvin<strong>do</strong>, manten<strong>do</strong> o botão da emoção pressiona<strong>do</strong> até que esta emoção<br />
não existisse mais, ou que tivesse muda<strong>do</strong> para outra. Quan<strong>do</strong> julgassem que não<br />
existia nenhuma emoção, ou que a emoção que percebiam não se encaixava em nenhuma<br />
das básicas, não <strong>de</strong>viam pressionar nenhum <strong>do</strong>s botões. Para cada ouvinte,<br />
as seis emoções propostas mudavam <strong>de</strong> botões aleatoriamente para evitar a preferência<br />
por uma <strong>de</strong>terminada posição <strong>do</strong> botão. O procedimento com os ouvintes<br />
foi repeti<strong>do</strong> até que se obteve 35 ouvintes para cada interpretação, totalizan<strong>do</strong> 105<br />
ouvintes nas três interpretações. Vale ressaltar que cada ouvinte teve contato apenas<br />
com uma das interpretações.
Além <strong>do</strong> registro <strong>do</strong> software, elaboramos também uma tabela <strong>de</strong> comparação das<br />
execuções <strong>do</strong>s três pianistas, na qual registramos as diferenças <strong>de</strong> interpretação (articulação,<br />
frasea<strong>do</strong>, dinâmica, pedal, etc.) entre os pianistas, para verificarmos como<br />
estas diferenças influenciaram na percepção <strong>do</strong>s ouvintes. Os três pianistas apresentaram<br />
interpretações muito diferentes <strong>de</strong>sta peça, e esta diferença fica clara na duração<br />
das gravações. Enquanto o Pianista 1 levou 10 minutos e 29 segun<strong>do</strong>s (629<br />
segun<strong>do</strong>s) para executar a peça, o Pianista 2 levou 9 minutos e 1 segun<strong>do</strong> (541 segun<strong>do</strong>s)<br />
e o pianista 3 levou 7 minutos e 47 segun<strong>do</strong>s (467 segun<strong>do</strong>s). Apesar <strong>de</strong><br />
termos utiliza<strong>do</strong> a duração das gravações como exemplo, por ser este o elemento que<br />
nos permite uma fácil visualização das diferenças sem o auxílio da tabela <strong>de</strong> comparações,<br />
cabe ressaltar que em to<strong>do</strong>s os outros elementos (articulação, frasea<strong>do</strong>, dinâmica,<br />
pedal, etc.) houveram muitas diferenças entre as três interpretações. Uma<br />
amostra <strong>do</strong> início da tabela <strong>de</strong> comparações po<strong>de</strong> ser observada na Figura 3.<br />
Figura 3 – Tabela <strong>de</strong> comparação <strong>de</strong> execuções<br />
Um fato interessante que ocorreu durante a marcação das emoções básicas, é que alguns<br />
ouvintes relataram a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pressionar mais <strong>de</strong> um botão ao mesmo<br />
tempo para <strong>de</strong>screver a emoção que estavam perceben<strong>do</strong>. Como não existia esta possibilida<strong>de</strong><br />
em nosso software, orientávamos a pressionarem o botão da emoção que<br />
julgassem ser mais forte. Apesar <strong>de</strong> alguns ouvintes não nos consultarem sobre isto,<br />
foi possível observar que estes ouvintes em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s trechos alternavam o clique<br />
entre <strong>do</strong>is ou três botões “enlouquecidamente”. A nosso ver, este fato reforça a idéia<br />
<strong>de</strong> que em certos trechos os ouvintes estavam tentan<strong>do</strong> representar emoções secundárias<br />
a partir da união <strong>de</strong> emoções básicas, o que está <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a teoria <strong>de</strong><br />
Plutchik, <strong>de</strong> que as emoções secundárias seriam uma união <strong>de</strong> emoções básicas.<br />
Os da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> experimento foram compila<strong>do</strong>s e submeti<strong>do</strong>s a procedimentos estatísticos.<br />
Além disto, elaboramos outro software para analisar o grau <strong>de</strong> coincidência<br />
na marcação <strong>do</strong>s ouvintes. Este software analisou a marcação das emoções <strong>do</strong>s ouvintes<br />
segun<strong>do</strong> a segun<strong>do</strong>, e fez uma comparação semelhante à utilizada em testes<br />
<strong>de</strong> DNA, para verificar o grau <strong>de</strong> semelhança na marcação <strong>do</strong>s ouvintes. A partir<br />
<strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s foram elaboradas re<strong>de</strong>s como a da Figura 4, na qual cada ponto re-<br />
37
38<br />
presenta um ouvinte. Quan<strong>do</strong> um ponto está uni<strong>do</strong> a outro, significa que estes <strong>do</strong>is<br />
ouvintes marcaram as mesmas emoções, exatamente nos mesmos segun<strong>do</strong>s da obra,<br />
em mais <strong>de</strong> 50% <strong>de</strong> todas as marcações ao longo da peça.<br />
Figura 4 – Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouvintes <strong>do</strong> Pianista 1.<br />
A primeira conclusão que obtivemos ao observar os gráficos das emoções marcadas<br />
pelos ouvintes, é que sempre temos uma ou duas emoções em <strong>de</strong>staque. Quan<strong>do</strong><br />
temos apenas uma emoção em <strong>de</strong>staque é porque o trecho musical estava <strong>de</strong>spertan<strong>do</strong><br />
nos ouvintes uma das emoções básicas propostas, porém quan<strong>do</strong> tínhamos<br />
duas emoções em <strong>de</strong>staque, provavelmente o trecho <strong>de</strong>spertava uma emoção secundária,<br />
que acabou sen<strong>do</strong> representada por duas emoções básicas. A partir disto, ao<br />
somarmos o percentual <strong>de</strong> ouvintes que marcaram as duas emoções mais <strong>de</strong>stacadas,<br />
verificamos que durante toda a peça, a concordância na escolha das emoções entre<br />
os ouvintes é <strong>de</strong> aproximadamente 70%. Esta porcentagem <strong>de</strong> concordância está em<br />
linha com outros estu<strong>do</strong>s, o que sugere que existe um padrão <strong>de</strong> reconhecimento <strong>de</strong><br />
emoções por parte <strong>do</strong>s ouvintes não apenas nesta peça, mas na música <strong>de</strong> forma geral.<br />
Verificamos também que a estrutura da composição é <strong>de</strong>terminante na percepção<br />
das emoções que uma peça po<strong>de</strong> transmitir. Esta influência po<strong>de</strong> ser verificada, por<br />
exemplo, nos gráficos <strong>de</strong> Tristeza representa<strong>do</strong>s na Figura 5. Nestes gráficos5, temos<br />
no eixo x o tempo da gravação, e no eixo y a porcentagem <strong>de</strong> ouvintes que pressionou<br />
o botão Tristeza em cada segun<strong>do</strong>.
Figura 5 – Gráficos da marcação <strong>de</strong> Tristeza feita pelos ouvintes<br />
para a interpretação <strong>de</strong> cada pianista.<br />
39
40<br />
Não foi possível quantificar a contribuição <strong>do</strong> compositor e <strong>do</strong> intérprete para a percepção<br />
das emoções <strong>de</strong> uma peça, porém, a partir da Figura 5, fica claro que a influência<br />
<strong>do</strong> intérprete é bem pequena em relação à <strong>do</strong> compositor. Vale lembrar que<br />
as interpretações foram muito diferentes, e os ouvintes que marcaram as emoções<br />
<strong>de</strong> cada gravação foram pessoas diferentes. Apesar disto, os gráficos para a gravação<br />
<strong>do</strong>s três pianistas foram muito similares, o que indica que a composição é a maior<br />
responsável pelas emoções que uma peça <strong>de</strong>sperta no ouvinte. Porém, as diferenças<br />
<strong>de</strong> percepção <strong>do</strong>s ouvintes em alguns trechos, aliadas às diferenças interpretativas<br />
notadas, sugerem que mesmo que em menor intensida<strong>de</strong>, o intérprete influencia na<br />
percepção <strong>do</strong> ouvinte. A influência <strong>do</strong> intérprete se <strong>de</strong>u tanto enfatizan<strong>do</strong> e disfarçan<strong>do</strong><br />
as emoções da estrutura, quanto adicionan<strong>do</strong> novas emoções. Os executantes<br />
que planejaram as emoções que <strong>de</strong>sejavam transmitir tiveram mais êxito <strong>do</strong> que<br />
aquele que não planejou, o que sugere que mesmo os intérpretes não ten<strong>do</strong> consciência<br />
<strong>de</strong> quais elementos musicais <strong>de</strong>vem ser manipula<strong>do</strong>s para melhor transmitir<br />
uma <strong>de</strong>terminada emoção, o simples fato <strong>de</strong> planejarem as emoções favorece que<br />
manipulem estes elementos <strong>de</strong> forma a transmitir as emoções com mais eficiência.<br />
Ao <strong>de</strong>screverem livremente as emoções na primeira audição da peça (no próprio<br />
programa <strong>de</strong> computa<strong>do</strong>r), os ouvintes utilizaram 178 adjetivos diferentes. Esta varieda<strong>de</strong><br />
comprova a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se utilizar um conjunto pre<strong>de</strong>fini<strong>do</strong> <strong>de</strong> emoções<br />
neste tipo <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>. É interessante notar, que com exceção <strong>do</strong> Nojo, que não foi cita<strong>do</strong><br />
espontaneamente, e teve participação irrelevante na marcação <strong>do</strong>s ouvintes,<br />
todas as outras cinco emoções básicas <strong>de</strong> Ekman estão entre as 10 emoções mais citadas<br />
espontaneamente. Esta posição em <strong>de</strong>staque na lista <strong>de</strong> 178 emoções sugere<br />
que estas emoções realmente po<strong>de</strong>m ter algo <strong>de</strong> básico.<br />
Foi observa<strong>do</strong> também, que a maioria <strong>do</strong>s ouvintes i<strong>de</strong>ntifica a emoção <strong>de</strong> um trecho<br />
musical num tempo <strong>de</strong> seis a oito segun<strong>do</strong>s após o evento musical <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ante.<br />
Sen<strong>do</strong> que alguns ouvintes i<strong>de</strong>ntificam com apenas quatro segun<strong>do</strong>s <strong>de</strong> música.<br />
Diante <strong>de</strong>stes, e outros elementos presentes em nosso estu<strong>do</strong>, concluímos que o reconhecimento<br />
das emoções que uma peça po<strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar po<strong>de</strong> ser uma valiosa ferramenta<br />
para o músico tomar <strong>de</strong>cisões interpretativas. A nosso ver, o intérprete não<br />
<strong>de</strong>ve planejar as emoções <strong>de</strong> uma peça aleatoriamente, mas basea<strong>do</strong> nas emoções<br />
que a própria composição <strong>de</strong>sperta. Isto é importante, pois verificamos que a menos<br />
que o intérprete <strong>de</strong>sconfigure inteiramente a composição, ele nunca irá modificar<br />
completamente a emoção inerente a composição. Desta forma o estu<strong>do</strong> e reconhecimento<br />
das emoções <strong>de</strong> uma peça musical seguem os mesmos caminhos <strong>do</strong>s diversos<br />
tipos <strong>de</strong> análise musical, no qual o executante procura enten<strong>de</strong>r as intenções <strong>do</strong> compositor<br />
a fim <strong>de</strong> ressaltar ou escon<strong>de</strong>r <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s elementos da estrutura. Acreditamos<br />
que com o aprofundamento <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> emoções em música, po<strong>de</strong>remos<br />
i<strong>de</strong>ntificar os mecanismos e elementos responsáveis pela <strong>de</strong>finição da emoção que<br />
será percebida pelo ouvinte, para que compositores e intérpretes possam manipular<br />
estes elementos conscientemente.
1 Segun<strong>do</strong> Oatley e Jenkins (apud Juslin & Zentner, special issue 2001/2, p. 6) a palavra afeto<br />
é consi<strong>de</strong>rada um termo mais geral, que inclui diferentes fenômenos como preferência musical,<br />
emoção e humor. Já a palavra emoção refere-se a reações mais breves e intensas, que levam a<br />
mudanças relevantes no esta<strong>do</strong> da pessoa.<br />
2 Enten<strong>de</strong>mos como clichês interpretativos alguns mo<strong>de</strong>los que passam a ser reconheci<strong>do</strong>s<br />
como característicos <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> música ou perío<strong>do</strong> musical. Por exemplo, existe o clichê<br />
<strong>de</strong> que a música <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> barroco não <strong>de</strong>ve ser executada com rubatos, enquanto a <strong>do</strong> perío<strong>do</strong><br />
romântico <strong>de</strong>ve possuir muitos rubatos.<br />
3 Mesmo na música <strong>do</strong> séc. XX alguns clichês se formam em torno <strong>de</strong> um compositor ou uma<br />
obra, porém, diferente <strong>de</strong> outros perío<strong>do</strong>s da história da música, a gran<strong>de</strong> varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> estilos<br />
presentes no séc. XX não permite a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> clichês que <strong>de</strong>finam a música <strong>de</strong> to<strong>do</strong> este<br />
perío<strong>do</strong>.<br />
4 Os botões mudavam sua cor para ver<strong>de</strong> enquanto permaneciam pressiona<strong>do</strong>s.<br />
5 Os gráficos foram <strong>de</strong>senha<strong>do</strong>s no mesmo tamanho, apesar <strong>de</strong> cada gravação ter uma duração<br />
diferente. Se fôssemos <strong>de</strong>senhar os gráficos na mesma proporção, basea<strong>do</strong>s no tempo <strong>do</strong> eixo<br />
X, o gráfico <strong>do</strong> Pianista 3 ficaria mais curto que o <strong>do</strong> Pianista 2, que por sua vez ficaria mais<br />
curto que o <strong>do</strong> Pianista 1. Isso foi feito propositadamente, pois <strong>de</strong>sta forma ao compararmos<br />
os gráficos visualmente (sem atentar para o tempo no eixo X), os traça<strong>do</strong>s que se encontram<br />
nas mesmas posições em cada gráfico correspon<strong>de</strong>m aproximadamente ao mesmo trecho musical.<br />
Referências<br />
Behágue, Gerard. “Oliveira, Jamary.” In Grove Music Online, edited by L. Macy, 2008.<br />
Downey, June E. “A Musical Experiment.” American Journal of Psychology 9, no. 1 (1897):<br />
63-69.<br />
Ekman, P. Are There Basic Emotions? Psychological Review 99, no. 3 (1992): 550-53.<br />
———. “An Argument for Basic Emotions.” Cognition and Emotion 6, (1992a): 169-200.<br />
———. “Basic Emotions.” In T. Dalgleish and M. Power (Ed.) Handbook of Cognition and<br />
Emotion. Sussex, U.K.: John Wiley & Sons, Ltd., 1999.<br />
———. “Basic Emotions.” In T. Dalgleish and M. Power (Ed.) Handbook of Cognition and<br />
Emotion. Sussex, U.K.: John Wiley & Sons, Ltd., 1999 a.<br />
———. “Cross-Cultural Studies of Facial Expression.” In P. Ekman (Ed.) Darwin and Facial<br />
Expression: A Century of Research in Review, 169-222. New York: Aca<strong>de</strong>mic Press, 1973.<br />
———. “Facial Expression and Emotion.” American Psychologist 48, no. 4 (1993): 384-92.<br />
———. “Facial Expressions.” In T. Dalgleish and M. Power (Ed.) Handbook of Cognition and<br />
Emotion. Sussex, U.K.: John Wiley & Sons, Ltd., 1999b.<br />
Gilman, Benjamin Ives. “Report of an Experimental Test of Musical Expressiveness (Continued).”<br />
American Journal of Psychology 5, no. 1 (1892): 42-73.<br />
———. “Report on an Experimental Test of Musical Expressiveness.” American Journal of<br />
Psychology 4, no. 4 (1892a): 558-76.<br />
Juslin, Patrik N., and Marcel R. Zentner. “Current Trends in the Study of Music and Emo-<br />
41
42<br />
tion: Overture.” Musicae Scientiae (special issue 2001/2): 3-21.<br />
Lisboa, Christian A. “A Intenção <strong>do</strong> Intérprete e a Percepção <strong>do</strong> Ouvinte: Um Estu<strong>do</strong> das<br />
Emoções em Música a Partir da Obra Piano Piece <strong>de</strong> Jamary Oliveira.” Doutora<strong>do</strong>, Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral da Bahia, 2008.<br />
Namba, Seiichiro; Sonoko Kuwano; Tadasu Hatoh; e Mariko Kato. “Assessment of Musical<br />
Performance by Using the Method of Continuous Judgment.” Music Perception 8, no. 3<br />
(1991): 251-76.<br />
Nielsen, F. V. Oplevelse Av Musikalsk Spœnding. Copenhagen: Aka<strong>de</strong>misk Forlag, 1983.<br />
Plutchik, Robert. The Emotions: Facts, Theories, and a New Mo<strong>de</strong>l. New York: Ran<strong>do</strong>m<br />
House, 1962.<br />
———. “A General Psychoevolutionary Theory of Emotion.” In R. Plutchik & H. Kellerman<br />
(Ed.), Emotion: Theory, Research, and Experience: Theories of Emotion, p. 3-31. New<br />
York: Aca<strong>de</strong>mic Press, 1980.<br />
Salga<strong>do</strong>, Antonio. “A Expressivida<strong>de</strong> na Face e na Voz <strong>do</strong> Cantor e sua Importância na Comunicação<br />
<strong>do</strong> Conteú<strong>do</strong> Emotivo <strong>de</strong> uma Performance Musical.” Performance Online 2,<br />
no. 1 (2006): 1-13.
Resumo<br />
Expressões <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> espaço na música<br />
Yahn Wagner F. M. Pinto<br />
yahn.wagner@terra.com.br<br />
Departamento <strong>de</strong> Música, Universida<strong>de</strong> Candi<strong>do</strong> Men<strong>de</strong>s<br />
O campo das expressivida<strong>de</strong>s musicais tem si<strong>do</strong> alvo <strong>de</strong> inúmeras discussões nos estu<strong>do</strong>s<br />
da música e da estética. Sob a luz das ciências cognitivas, principalmente a partir das áreas<br />
da filosofia, da psicologia e da semiótica, propomos uma revisão <strong>de</strong> conceitos pertinentes<br />
a essa discussão. Assim, sugerimos <strong>do</strong>is tipos básicos <strong>de</strong> expressões musicais, a expressão<br />
<strong>de</strong> tempo e a expressão <strong>de</strong> espaço, as quais constituem um primeiro nível representativo<br />
<strong>do</strong>s objetos musicais, enquanto entida<strong>de</strong>s passíveis <strong>de</strong> representar algo diferente <strong>do</strong> som<br />
que os produz. É através da diferença entre estes <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> expressão que enten<strong>de</strong>mos<br />
um objeto musical, sobretu<strong>do</strong> sua relação com o ouvinte. Desse mo<strong>do</strong> po<strong>de</strong>remos classificar<br />
a experiência com o objeto musical <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> mais interiorizada ou mais exteriorizada<br />
e, assim, discutir as possibilida<strong>de</strong>s representativas da música.<br />
Introdução<br />
No histórico da evolução humana, a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicação parece ter ti<strong>do</strong> um<br />
papel fundamental para a permanência <strong>do</strong> homem como espécie macroscópica <strong>do</strong>minante.<br />
No geral, toda espécie animal que tem a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver em comunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> algum tipo <strong>de</strong> comunicação, seja ela baseada em química (como<br />
os feromônios <strong>do</strong>s insetos sociais) ou em ondas sonoras (como fazem as baleias e os<br />
homens). Comunicar é tornar algo comum, ou seja, fazer com que se tenha a sensação<br />
<strong>de</strong> que disponibilizamos para outros indivíduos da comunida<strong>de</strong> nossas idéias, emoções,<br />
conceitos, etc. Assim, estes indivíduos passam a ter uma experiência comum e,<br />
com isso, se tem a sensação <strong>de</strong> que algo é transmiti<strong>do</strong>.<br />
É freqüente encontrarmos discussões acerca da música como um tipo <strong>de</strong> comunicação.<br />
Muitos são os que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a idéia <strong>de</strong> que algo é comunica<strong>do</strong> com a música,<br />
ou seja, algo que o compositor i<strong>de</strong>alizou, sentiu e conceituou seria “transmiti<strong>do</strong>” até<br />
o ouvinte, <strong>de</strong> algum mo<strong>do</strong>. Como se tivéssemos um código musical comunicante<br />
claramente estabeleci<strong>do</strong>.<br />
Este artigo trata <strong>de</strong> algumas possibilida<strong>de</strong>s expressivas da música. O centro <strong>de</strong> nossa<br />
investigação é a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> algo ser musicalmente expressivo <strong>de</strong> uma mesma<br />
coisa para várias pessoas. O conceito <strong>de</strong> expressão está intimamente liga<strong>do</strong> ao conceito<br />
<strong>de</strong> representação, pois tu<strong>do</strong> o que é expresso não passa <strong>de</strong> representação, assim<br />
como também é representação este algo que <strong>de</strong>sejamos expressar.<br />
43
44<br />
Representação como permanência<br />
Enten<strong>de</strong>mos por representação, o resulta<strong>do</strong> cognitivo da atuação <strong>de</strong> um organismo<br />
no ambiente, ou <strong>do</strong> ambiente sobre o organismo. Nossa percepção <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> só é<br />
possível pelas representações que fazemos <strong>de</strong>le. Nossos senti<strong>do</strong>s nunca atuaram <strong>de</strong><br />
mo<strong>do</strong> passivo no mun<strong>do</strong>, pois sempre estiveram liga<strong>do</strong>s a um corpo que os conduzia<br />
às experimentações <strong>de</strong>sse mun<strong>do</strong>. Assim, qualquer percepção <strong>de</strong> um organismo sobre<br />
o mun<strong>do</strong> sempre será ativa.<br />
No histórico das ciências cognitivas temos inúmeros experimentos que comprovam<br />
essa afirmação. Po<strong>de</strong>mos citar como exemplo o clássico estu<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong> por Held e<br />
Hein (1958) com filhotes <strong>de</strong> gatos expostos à luz em condições controladas. Os<br />
gatos eram dividi<strong>do</strong>s em <strong>do</strong>is grupos, o primeiro podia circular livremente pelo ambiente<br />
arrastan<strong>do</strong> um carrinho que continha um filhote <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> grupo. Estes ficavam<br />
imóveis, mas compartilhavam das mesmas experiências visuais que os <strong>do</strong><br />
primeiro grupo. Depois <strong>de</strong> algumas semanas os gatos foram soltos e, enquanto os<br />
filhotes <strong>do</strong> primeiro grupo se comportavam normalmente, os filhotes <strong>do</strong> segun<strong>do</strong><br />
grupo se comportavam como se fossem to<strong>do</strong>s cegos. Tropeçavam nos objetos, caiam<br />
pelas escadas, etc. Este estu<strong>do</strong> nos mostra a necessida<strong>de</strong> da ação para a formação da<br />
percepção e, por conseqüência, da representação.<br />
É bem provável que o primeiro esquema <strong>de</strong> representação tenha surgi<strong>do</strong> como algo<br />
que confere ao corpo a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar à percepção a sensação <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>,<br />
pois embora nossa experiência com o mun<strong>do</strong> seja contínua, nossa consciência registra<br />
os eventos <strong>de</strong> maneira pontual e distinta em um plano espaço-temporal. Quan<strong>do</strong><br />
realizamos uma ação, realizamo-la em um tempo <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> e, assim, nos expressamos<br />
sobre esta ação <strong>de</strong> forma pontual. Contu<strong>do</strong>, necessitamos da sensação <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong><br />
em nossa percepção, pois é essa continuida<strong>de</strong> que nos possibilita a sensação<br />
<strong>de</strong> permanência em nossa consciência. Ou seja, se não pudéssemos perceber uma experiência<br />
<strong>de</strong> forma contínua nós não po<strong>de</strong>ríamos ter uma consciência permanente,<br />
quer dizer, teríamos um corpo <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> vários momentos distintos <strong>de</strong> consciência<br />
e não conecta<strong>do</strong>s. Desse mo<strong>do</strong>, essa representação <strong>do</strong> contínuo parece ser uma espécie<br />
<strong>de</strong> “inferência lógica” que o corpo faz <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, através <strong>de</strong> duas ou mais experiências<br />
pontuais.<br />
A proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> permanência é fundamental para concebermos a idéia <strong>de</strong> tempo e<br />
para a constituição da memória. Segun<strong>do</strong> Immanuel Kant “o permanente (. . .) é a<br />
substância <strong>do</strong> fenômeno, quer dizer, o seu real, real que permanece sempre o mesmo<br />
como substrato <strong>de</strong> toda mudança” (Kant 2005,196).<br />
Dizemos também que quan<strong>do</strong> há permanência há duração. Para Henri Bergson, o<br />
tempo é da<strong>do</strong> pela consciência e a memória é a duração <strong>de</strong>ssa consciência, já que a<br />
memória é a progressão orgânica <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> para o presente e não um mero mecanismo<br />
<strong>de</strong> recordação que intui o presente segun<strong>do</strong> uma regressão ao passa<strong>do</strong>.
Bergson faz distinção entre <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> duração: duração espacializada e duração<br />
pura (Bergson 1927, 82). Os fenômenos que envolvem gran<strong>de</strong>zas extensivas, ou seja,<br />
gran<strong>de</strong>zas que po<strong>de</strong>m ser medidas, necessitam <strong>de</strong> uma espacialização <strong>do</strong> tempo para<br />
que haja a percepção <strong>de</strong> duração. Parafrasean<strong>do</strong> seu exemplo, para saber da hora<br />
quan<strong>do</strong> escuto as badaladas <strong>de</strong> um relógio, preciso contar quantas são as badaladas.<br />
É necessário representar as badaladas em um espaço para que possamos contá-las.<br />
O ato <strong>de</strong> contar necessita então <strong>de</strong> uma percepção espacializada, pois, embora os badalos<br />
sejam percebi<strong>do</strong>s em momentos temporais diferentes, o simples fato <strong>de</strong> perceber<br />
intervalos vazios entre os batimentos nos diz que é no espaço que a operação<br />
<strong>de</strong> contagem, no caso, se efetua, no contrário, seriam apenas pura duração e, <strong>de</strong>ssa<br />
forma, contínuas e indistintas.<br />
De forma diferente, os fenômenos que envolvem gran<strong>de</strong>zas intensivas, ou seja, não<br />
mensuráveis, propiciam em nós a percepção <strong>de</strong> duração através <strong>de</strong> uma “penetrabilida<strong>de</strong>”<br />
das partes. A esse tipo <strong>de</strong> duração, Bergson <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> duração pura. Um<br />
<strong>de</strong> seus principais exemplos sobre o conceito <strong>de</strong> duração pura é, curiosamente, o da<br />
nossa percepção acerca da duração <strong>de</strong> uma música ou melodia. Assim, para que notas<br />
musicais tornem-se melodias, <strong>de</strong>vo percebê-las<br />
uma na outra, penetran<strong>do</strong>-se e organizan<strong>do</strong>-se entre si (. . .), <strong>de</strong> maneira a formar<br />
o que chamaremos <strong>de</strong> uma multiplicida<strong>de</strong> indiferenciada ou qualitativa, sem<br />
qualquer semelhança com o número: obterei assim a imagem da duração pura,<br />
mas também me terei afasta<strong>do</strong> por completo da idéia <strong>de</strong> um meio homogêneo<br />
ou <strong>de</strong> uma quantida<strong>de</strong> mensurável (. . .). Logo, é preciso admitir que os sons se<br />
compunham entre si e agiam, não pela sua quantida<strong>de</strong> enquanto quantida<strong>de</strong>, mas<br />
pela qualida<strong>de</strong> que a sua quantida<strong>de</strong> apresentava, isto é, pela organização rítmica<br />
<strong>do</strong> seu conjunto. (ibid., 75-76)<br />
A idéia <strong>de</strong> duração pura está diretamente relacionada ao conceito <strong>de</strong> memória aqui<br />
utiliza<strong>do</strong>. É a memória que garantirá a penetrabilida<strong>de</strong> das partes que formam uma<br />
música. Ela é que propiciará que a primeira nota da música ainda esteja presente, <strong>de</strong><br />
algum mo<strong>do</strong>, na última nota <strong>de</strong>ssa mesma peça.<br />
Desse mo<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r a concepção <strong>de</strong> tempo bergsoniano como movimento<br />
intuí<strong>do</strong>, em oposição ao paradigma tradicional que consi<strong>de</strong>ra o tempo como<br />
or<strong>de</strong>m mensurável <strong>do</strong> movimento. Assim, Bergson <strong>de</strong>termina que a intuição <strong>do</strong> movimento,<br />
ou seja, sua percepção clara e imediata, é possível apenas porque há persistência<br />
<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> sobre o presente. O tempo é, portanto, manifestação da memória,<br />
pois o passa<strong>do</strong> sempre carregará as potencialida<strong>de</strong>s ou virtualida<strong>de</strong>s que se atualizarão<br />
e serão intuídas no presente.<br />
Uma melodia só dura porque percebemos movimento nela. Não percebemos o entrar<br />
e sair <strong>de</strong> notas como se fossem <strong>de</strong>sconectadas, mas sim um fluxo contínuo que<br />
se <strong>de</strong>sloca no tempo e no espaço virtualiza<strong>do</strong> das alturas sonoras. É como um filme,<br />
no qual não percebemos os quadros e sim o movimento das imagens.<br />
45
46<br />
Nossa experiência no mun<strong>do</strong> resulta em representações. De acor<strong>do</strong> com Bergson,<br />
nossa interação com a matéria parece ter a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> construir sistemas isoláveis.<br />
Assim, em suas palavras:<br />
Os contornos distintos que atribuímos a um objeto, e que lhe conferem sua individualida<strong>de</strong>,<br />
não são mais que o <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> um certo tipo <strong>de</strong> influência que<br />
po<strong>de</strong>ríamos exercer em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> ponto <strong>do</strong> espaço: é o plano <strong>de</strong> nossas ações<br />
eventuais que é <strong>de</strong>volvi<strong>do</strong> aos nossos olhos, como que por um espelho, quan<strong>do</strong><br />
recebemos as superfícies e as arestas das coisas. (Bergson 2005, 12)<br />
É essa característica que nos faz pontuar eventos em nosso contínuo <strong>de</strong> experiências<br />
e, assim, é o que possibilita que eventos sejam percebi<strong>do</strong>s como durações espacializadas.<br />
Kant utiliza o conceito <strong>de</strong> representações a priori como aquelas que fundamentam<br />
toda e qualquer representação. Para ele, essas representações a priori são <strong>de</strong> tempo e<br />
<strong>de</strong> espaço. Segun<strong>do</strong> Kant, a intuição empírica se relaciona com os objetos, <strong>de</strong>terminan<strong>do</strong>-os,<br />
por meio da sensação, e os fenômenos são as in<strong>de</strong>terminações <strong>do</strong> objeto<br />
nessa intuição (Kant 2005, 65). Desse mo<strong>do</strong>, o tempo é a representação <strong>do</strong> “eu mesmo”<br />
como objeto. É o nosso senti<strong>do</strong> interno. Por sua vez o espaço é a representação gerada<br />
pela intuição sensível <strong>de</strong> objetos que não pertençam ao “eu mesmo”. É o que possibilita<br />
a configuração, a relação e a gran<strong>de</strong>za <strong>do</strong> objeto. Apresenta-se como nosso senti<strong>do</strong><br />
externo (ibid., 68-71).<br />
To<strong>do</strong>s os nossos senti<strong>do</strong>s operam em conjunto com outros, para po<strong>de</strong>rem nos dar<br />
as percepções olfativas, palatinas, táteis, visuais e auditivas. Quan<strong>do</strong> apreciamos o<br />
sabor <strong>de</strong> uma comida estamos, também, categorizan<strong>do</strong> como gosto algumas impressões<br />
que são olfativas. A percepção visual também lida com informações provindas<br />
<strong>de</strong> outras fontes sensoriais. Segun<strong>do</strong> Varela, Thompson e Rosch, cerca <strong>de</strong> 80% <strong>do</strong><br />
que as células <strong>do</strong> NGL (Núcleo Genicula<strong>do</strong> Lateral) recebem – região <strong>do</strong> tálamo<br />
que atua na percepção visual juntamente com o córtex visual –, provém <strong>de</strong> outras<br />
regiões <strong>do</strong> cérebro e apenas cerca <strong>de</strong> 20% provém da retina (Varela et al. 2003, 107).<br />
Assim, gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong> nossa percepção é uma construção baseada no<br />
histórico <strong>de</strong> atuação <strong>de</strong> nosso corpo com o mun<strong>do</strong>.<br />
As representações parecem, portanto, ser as realizações das imagens que nosso corpo<br />
absorve <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Essas imagens são interpretadas como objetos e para tal necessitam<br />
<strong>do</strong> intercruzamento <strong>de</strong> informações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>ns diversas, geran<strong>do</strong> uma realida<strong>de</strong><br />
referente à ação <strong>de</strong> um corpo com to<strong>do</strong>s os corpos ou com o mun<strong>do</strong>.<br />
Como menciona Peirce, representar é “estar no lugar <strong>de</strong>, isto é, estar numa tal relação<br />
com um outro que, para certos propósitos, é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> por alguma mente como<br />
se fosse esse outro” (Peirce 2003, 61). Desse mo<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>-se consi<strong>de</strong>rar que nosso<br />
organismo possui representações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, ou até mesmo po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rá-lo<br />
essencialmente como um núcleo <strong>de</strong> representações <strong>do</strong> ambiente. Enquanto nosso<br />
organismo vive e interage com a estrutura total <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, nosso pensamento está
con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> a enten<strong>de</strong>r o mun<strong>do</strong> pelas representações. O mun<strong>do</strong> só tem capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> existir para nós na medida em que temos a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> representá-lo.<br />
Expressão musical<br />
Nossa ação no mun<strong>do</strong>, ou seja, nosso processo <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> representações é uma<br />
forma <strong>de</strong> expressão. A matéria se exprime, ou melhor, é exprimível como um sistema<br />
com tendências a um fechamento, normalmente algum tipo <strong>de</strong> objeto (na acepção<br />
mais ampla que esse termo possa ter). Enten<strong>de</strong>mos por fechamento, o limite que<br />
nossa consciência constrói nas representações da matéria, ou melhor, nas representações<br />
da experiência. As interações entre as ações da matéria terminam <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>an<strong>do</strong><br />
imagens (no senti<strong>do</strong> bergsoniano) que são essas primeiras formas <strong>de</strong><br />
expressão da matéria. A matéria se revela <strong>de</strong> alguma forma, ela assume os contornos<br />
que <strong>de</strong>limitam a ação <strong>de</strong> outro objeto sobre ela (Bergson, 2005). Tais contornos são<br />
<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s pelos fechamentos. Conseguimos <strong>de</strong>limitar o fechamento <strong>de</strong> um objeto<br />
e o início <strong>de</strong> outro por percebermos, <strong>de</strong> alguma forma, senti<strong>do</strong>s próprios e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />
que emergem <strong>de</strong>sses diferentes objetos.<br />
O termo expressão possui variadas conceituações em diferentes <strong>do</strong>utrinas e correntes<br />
<strong>de</strong> estu<strong>do</strong>. No campo da semiologia, ele é cunha<strong>do</strong> por Louis Hjelmslev, ocupan<strong>do</strong><br />
o senti<strong>do</strong> anteriormente <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> por Saussure como significante. Para Ferdinand<br />
Saussure o signo é entendi<strong>do</strong> como uma entida<strong>de</strong> psíquica bilateral, forma<strong>do</strong> por<br />
um conceito (significa<strong>do</strong>) e uma imagem sonora (significante). Em Hjelmslev temos o<br />
signo sen<strong>do</strong> forma<strong>do</strong> pela associação <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> (antes significa<strong>do</strong>) com a expressão<br />
(antes significante). Ele ainda propõe uma noção <strong>de</strong> estratificação <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> e da<br />
expressão em três níveis: forma, substância e matéria (Nöth 1996, 57-58). Assim, o<br />
estrato <strong>de</strong> substância projeta a forma, na matéria. Por exemplo, a matéria <strong>de</strong> expressão<br />
é formada pelas possibilida<strong>de</strong>s expressivas (fonéticas, gráficas, gestuais, etc.) <strong>do</strong> ser<br />
humano, enquanto que a substância <strong>de</strong> expressão é constituída pelas possibilida<strong>de</strong>s<br />
fonéticas ou gráficas e ortográficas <strong>de</strong> uma língua específica. Já a forma <strong>de</strong> expressão<br />
é a transformação da substância <strong>de</strong> expressão em forma pura. Assim, “a língua falada<br />
e sua transcrição fonética um a um são duas substâncias manifestan<strong>do</strong> uma forma”<br />
(ibid., 65), ou seja, a manifestação <strong>de</strong> uma língua específica. Hjelmslev utiliza então<br />
o termo expressão como algo que se refere a um conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> próprio signo e<br />
não a um conteú<strong>do</strong> externo.<br />
Peter Kivy apresenta, em seu livro The cor<strong>de</strong>d shell (1980), uma teoria sobre expressivida<strong>de</strong><br />
musical, mais precisamente sobre a expressivida<strong>de</strong> emocional. Kivy realiza,<br />
em sua teoria, uma distinção fundamental entre <strong>do</strong>is mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> utilização <strong>do</strong> termo<br />
expressão, que ele <strong>de</strong>nomina “expressar” (algo) e “ser expressivo <strong>de</strong>” (algo) (Kivy 1980,<br />
13). Assim, um compositor po<strong>de</strong> querer expressar uma <strong>de</strong>terminada emoção em sua<br />
música, como tristeza, e, no entanto, essa música po<strong>de</strong> não ser expressiva <strong>de</strong>ssa emoção.<br />
Assim, ser expressivo <strong>de</strong> é, em nossa acepção, a possibilida<strong>de</strong> que um da<strong>do</strong> objeto<br />
47
48<br />
ou sinal tem <strong>de</strong> significar algo. Esses <strong>do</strong>is mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> utilização refletem uma postura<br />
diversa da expressão em relação ao intérprete. Essa distinção fica muito clara nos<br />
exemplos por ele utiliza<strong>do</strong>s. Em suas palavras:<br />
Se, sob as circunstâncias apropriadas, eu estiver incita<strong>do</strong> pela angústia a gritar e<br />
cerrar meu punho, eu po<strong>de</strong>ria corretamente dizer que expressei minha emoção;<br />
e os atos <strong>de</strong> gritar e <strong>de</strong> cerrar o punho são corretamente ditos como o expressar<br />
ou expressões <strong>de</strong> minha angústia (. . .). Quan<strong>do</strong>, ao contrário, nós <strong>de</strong>screvemos o<br />
rosto <strong>do</strong> São-Bernar<strong>do</strong> como um rosto triste, nós não estamos dizen<strong>do</strong> que ele<br />
expressa tristeza, mas, no entanto, que é expressivo <strong>de</strong> tristeza. (ibid., 12)<br />
Com isso, po<strong>de</strong>mos dizer que um objeto ou sinal po<strong>de</strong> ser forma<strong>do</strong> em <strong>de</strong>corrência<br />
da expressão <strong>de</strong> um ou vários signos. Essa relação é similar à <strong>de</strong>scrita por Roland<br />
Barthes como fundamento <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> conotação. Para ele, a conotação é um<br />
signo secundário que tem como expressão (no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> Hjelmslev) um signo primário,<br />
<strong>de</strong>notativo, forma<strong>do</strong> por uma expressão primária e um conteú<strong>do</strong> primário<br />
(Nöth 1996, 134-135). Assim, quan<strong>do</strong> temos a expressão <strong>de</strong> angústia, citada acima,<br />
com o grito e o cerramento <strong>do</strong> punho, estamos lidan<strong>do</strong> com <strong>do</strong>is signos primários<br />
com significações inicialmente <strong>de</strong>notativas. O som <strong>do</strong> grito é sua expressão primária<br />
que se relaciona ao seu conteú<strong>do</strong> inicial “grito”. A imagem visual <strong>do</strong> punho cerra<strong>do</strong><br />
é sua expressão primeira e relaciona-se ao seu conteú<strong>do</strong> inicial “mão fechada” ou<br />
“punho cerra<strong>do</strong>”. No entanto, a totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses <strong>do</strong>is signos gera a expressão <strong>do</strong> signo<br />
secundário que tem como conteú<strong>do</strong> (secundário) “homem angustia<strong>do</strong>”, pois foi através<br />
<strong>do</strong> punho cerra<strong>do</strong> e <strong>do</strong> grito que o homem angustia<strong>do</strong> expressou sua emoção.<br />
Todavia, esses <strong>do</strong>is signos, ou melhor, esses <strong>do</strong>is atos po<strong>de</strong>m não ser expressivos da<br />
mesma emoção que fora expressa. Por exemplo, vamos imaginar que estamos assistin<strong>do</strong><br />
a um filme que mostrasse o punho cerra<strong>do</strong> <strong>de</strong> algum homem juntamente com<br />
o som <strong>de</strong> seu grito e, em seguida, a cena nos mostrasse que este homem acabou <strong>de</strong><br />
ganhar na loteria. Constatamos que esses atos não eram a expressão <strong>de</strong> angústia, embora<br />
talvez num primeiro momento eles pu<strong>de</strong>ssem ser expressivos <strong>de</strong>ssa emoção, mas<br />
sim atos <strong>de</strong> expressão <strong>de</strong> euforia, alegria e felicida<strong>de</strong>.<br />
Quan<strong>do</strong> as expressões em questão não são inteiramente codificadas, ou seja, não têm<br />
um significa<strong>do</strong> (conteú<strong>do</strong>) previamente estipula<strong>do</strong> através da consolidação <strong>de</strong> estereótipos,<br />
como é muitas vezes o caso da música <strong>de</strong> concerto, não temos como garantir<br />
que a emoção, idéia ou conceito que queremos expressar produza um resulta<strong>do</strong> que<br />
seja expressivo <strong>de</strong>sse mesmo conteú<strong>do</strong> para qualquer outra pessoa. Também não se<br />
tem como garantir que pessoas <strong>de</strong> hábitos culturais semelhantes consi<strong>de</strong>rem uma<br />
música, ou trecho <strong>de</strong>la, como expressivos <strong>de</strong> um mesmo tipo <strong>de</strong> conteú<strong>do</strong>. Contu<strong>do</strong>,<br />
existe uma tendência a formação <strong>de</strong> estereótipos que ficam mais fortes conforme os<br />
hábitos culturais e sociais sejam mais semelhantes. Tais estereótipos não são necessariamente<br />
códigos, entretanto, estes são forma<strong>do</strong>s por estereótipos <strong>de</strong> alto grau. Nas<br />
palavras <strong>de</strong> Edson Zampronha:<br />
O estereótipo é um grau avança<strong>do</strong> <strong>de</strong> cristalização <strong>de</strong> hábitos interpretativos que
esultam <strong>de</strong> um processo inteligente (não mecânico) <strong>de</strong> adaptação e ajuste, ou,<br />
se quisermos, <strong>de</strong> autocorreção, para a realização <strong>de</strong> construções mentais hipotéticas<br />
e falíveis <strong>do</strong> ambiente à nossa volta. (Zampronha 2000, 165)<br />
Além <strong>do</strong>s elementos culturais, que possuem gran<strong>de</strong> importância no processo <strong>de</strong> comunicação,<br />
existem também alguns elementos expressivos trans-culturais. Estes elementos<br />
retratam um estágio da comunicação ainda <strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong> <strong>de</strong> códigos<br />
aprendi<strong>do</strong>s e fundamentam a base <strong>de</strong> toda comunicação possível. A <strong>de</strong>limitação que<br />
fazemos, em objetos, das imagens que chegam a nós ocorre porque a matéria se expressa,<br />
ou melhor, é expressiva <strong>de</strong>ssa mesma forma, inicialmente, para to<strong>do</strong>s os seres<br />
<strong>de</strong> uma mesma espécie. É o que nos diz o princípio <strong>do</strong> Inatismo, bastante utiliza<strong>do</strong><br />
na psicologia da Gestalt. A esses elementos expressivos trans-culturais chamaremos<br />
<strong>de</strong> mo<strong>do</strong>s inatos <strong>de</strong> percepção.<br />
O objeto musical e os mo<strong>do</strong>s inatos <strong>de</strong> percepção<br />
Para Bob Sny<strong>de</strong>r, a principal questão a ser solucionada para a compreensão <strong>do</strong> funcionamento<br />
<strong>do</strong> sistema auditivo é o <strong>de</strong> saber como uma única variação contínua <strong>de</strong><br />
pressão <strong>do</strong> ar que chega a cada um <strong>de</strong> nossos ouvi<strong>do</strong>s po<strong>de</strong> se transformar em representações<br />
<strong>de</strong> distintas fontes sonoras presentes no ambiente (Sny<strong>de</strong>r 2000, 31). O<br />
que observamos que acontece com as imagens que chegam a nós, tanto as visuais<br />
quanto as auditivas, é que elas são agrupadas, <strong>de</strong> algum mo<strong>do</strong>, para gerar em nós a<br />
percepção <strong>de</strong> objetos distintos. Tal agrupação é, ainda nas palavras <strong>de</strong> Sny<strong>de</strong>r, “a tendência<br />
natural <strong>do</strong> sistema nervoso humano <strong>de</strong> segmentar as informações acústicas<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> externo em unida<strong>de</strong>s, cujos componentes estejam relaciona<strong>do</strong>s forman<strong>do</strong><br />
algum tipo <strong>de</strong> to<strong>do</strong>” (ibi<strong>de</strong>m). Assim o fenômeno da agrupação é entendi<strong>do</strong> como<br />
inerente à estrutura <strong>de</strong> funcionamento da mente humana. Sny<strong>de</strong>r diferencia esse<br />
tipo <strong>de</strong> agrupação, ao qual <strong>de</strong>nomina também <strong>de</strong> agrupação primitiva, <strong>de</strong> outros<br />
tipos, chama<strong>do</strong>s <strong>de</strong> agrupações aprendidas. Esse outro tipo <strong>de</strong> agrupação seria forma<strong>do</strong><br />
por uma gran<strong>de</strong> influência <strong>de</strong> nossa memória aprendida (<strong>de</strong> curto e longo<br />
prazo), ao passo que a agrupação primitiva teria certa in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong>sses processos<br />
<strong>de</strong> memória, ela estaria ligada à memória da espécie, ou seja, a estrutura orgânica<br />
perpetuada durante a existência da espécie humana.<br />
Uma das correntes <strong>de</strong> pesquisa que busca explicar os processos <strong>de</strong> agrupação, como<br />
<strong>de</strong>scritos por Sny<strong>de</strong>r, é o estu<strong>do</strong> com bases na Psicologia da Gestalt. Os psicólogos<br />
da Gestalt propuseram leis que visavam explicar como a percepção está organizada<br />
(Gardner 2003, 126). Estas leis foram formuladas com bases em inúmeros estu<strong>do</strong>s<br />
que pu<strong>de</strong>ram explicar a “aparência fenomênica” <strong>de</strong> certas “qualida<strong>de</strong>s da forma” através<br />
<strong>de</strong> processos cerebrais análogos (ibi<strong>de</strong>m). Bregman (1999) <strong>de</strong>screve os principais<br />
elementos da Gestalt além <strong>de</strong> relacioná-los à percepção auditiva. Contu<strong>do</strong>, não cabe<br />
ao âmbito <strong>do</strong> presente artigo uma discussão <strong>de</strong>talhada sobre os princípios <strong>de</strong> agrupação<br />
da Gestalt. Este já é um material bastante explora<strong>do</strong> por estudiosos <strong>do</strong> campo<br />
49
50<br />
<strong>de</strong> cognição musical e foge ao escopo <strong>de</strong> nossa discussão principal. No entanto, cabe<br />
enfatizar que proce<strong>de</strong>mos nossas observações ten<strong>do</strong> em consi<strong>de</strong>ração as proprieda<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> agrupação <strong>de</strong>senvolvidas por essa vertente <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>.<br />
A to<strong>do</strong> o momento somos bombar<strong>de</strong>a<strong>do</strong>s por imagens, sejam elas <strong>de</strong> procedência<br />
visual, auditiva, ou relativa a algum outro senti<strong>do</strong> perceptivo. Para todas essas imagens<br />
construímos contornos e limites, que transformam a imagem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em<br />
imagem <strong>do</strong>s objetos que compõem o mun<strong>do</strong>. Certa imagem visual só se torna imagem<br />
<strong>de</strong> algo quan<strong>do</strong> passa a reter características <strong>do</strong> objeto ao qual ela correspon<strong>de</strong>,<br />
tornan<strong>do</strong>-se assim uma representação. Essas são frutos <strong>de</strong> nossa ação sobre esses objetos.<br />
No caso das experiências auditivas lidamos com algo que não é material, o som. O<br />
som existe no mun<strong>do</strong> material e é produzi<strong>do</strong> e difundi<strong>do</strong> pela matéria, mas não é<br />
matéria e sim um efeito provoca<strong>do</strong> por um tipo <strong>de</strong> movimento <strong>de</strong>la. O aparato auditivo<br />
é constituí<strong>do</strong> <strong>de</strong> tal forma que capta esse tipo <strong>de</strong> movimento. O movimento<br />
<strong>de</strong> outros objetos excita as moléculas <strong>de</strong> ar que chegam a nós retransmitin<strong>do</strong> o tipo<br />
<strong>de</strong> “movimento sonoro” <strong>do</strong> objeto. Nesse caso então temos a sensação <strong>de</strong> que as imagens<br />
se dirigem ao nosso corpo trazen<strong>do</strong>-nos os objetos. Mas que objetos são estes?<br />
Na percepção visual temos a sensação (reforçada pelos outros senti<strong>do</strong>s) <strong>de</strong> que o objeto<br />
tem correspondência com a matéria, mas na percepção auditiva o objeto não<br />
tem como representar, <strong>de</strong> imediato, o mun<strong>do</strong> material. Ele po<strong>de</strong> até ser uma característica<br />
da ação <strong>de</strong> outros tipos <strong>de</strong> objeto, no mun<strong>do</strong> material, como exemplo o<br />
tique-taque <strong>de</strong> um relógio é <strong>de</strong>corrente da ação <strong>de</strong> seu pêndulo, mas se o pêndulo<br />
estiver em repouso não haverá o objeto sonoro <strong>do</strong> tique-taque. A matéria possui a<br />
potencialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gerar um som e para realizá-lo é necessária a ação entre proprieda<strong>de</strong>s<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> material, que são entendidas como ações entre objetos materiais.<br />
Para a escuta <strong>de</strong> um fonograma, o som é produzi<strong>do</strong> pela ação da membrana <strong>do</strong>s altofalantes<br />
no ar. Contu<strong>do</strong>, ao ouvirmos o som <strong>de</strong> um violino, escutamos e compreen<strong>de</strong>mos<br />
este como fruto da ação <strong>do</strong> arco sobre a corda, mesmo numa gravação, o que<br />
gera para nossa percepção uma fonte material virtual. Mesmo quan<strong>do</strong> não conhecemos<br />
a fonte virtual produtoras <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> som têm a tendência <strong>de</strong> experimentá-lo<br />
<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com nossas experiências passadas <strong>de</strong> ação sobre objetos<br />
materiais.<br />
A gran<strong>de</strong> diferença entre a percepção visual e a percepção auditiva, em relação aos<br />
seus respectivos objetos, é que na primeira eles se confun<strong>de</strong>m e se integram nas fontes<br />
materiais e na segunda eles não coinci<strong>de</strong>m com suas fontes. Ao perceber o movimento<br />
<strong>de</strong> um objeto visual constatamos que há locomoção <strong>de</strong> sua fonte material,<br />
como um carro, por exemplo. Na percepção <strong>de</strong> movimento <strong>do</strong> objeto sonoro, a mudança<br />
espacial da fonte sonora não influi tanto na percepção <strong>do</strong> movimento <strong>do</strong> objeto,<br />
porém a mudança <strong>de</strong> alguns parâmetros qualitativos, como altura <strong>de</strong> nota,<br />
espectro harmônico e intensida<strong>de</strong>, geram a clara percepção <strong>de</strong> movimento <strong>do</strong> objeto.
Quan<strong>do</strong> escutamos uma ambulância passan<strong>do</strong> por nós, percebemos o movimento<br />
da fonte sonora (ambulância) passan<strong>do</strong>, por exemplo, da nossa esquerda para a nossa<br />
direita, no entanto o principal movimento realiza<strong>do</strong> pelo objeto sonoro é o “subir”<br />
e “<strong>de</strong>scer” característico <strong>de</strong> qualquer sirene. É importante, portanto, enten<strong>de</strong>r e preservar<br />
a distinção entre movimento <strong>do</strong> objeto sonoro e movimento da fonte sonora.<br />
Este último po<strong>de</strong>rá ser também entendi<strong>do</strong> como movimento <strong>do</strong> objeto sonoro que,<br />
por sua vez, não implica a locomoção <strong>de</strong> sua fonte.<br />
Um estu<strong>do</strong> semântico da música <strong>de</strong> certo <strong>de</strong>ve levar em consi<strong>de</strong>ração as possibilida<strong>de</strong>s<br />
expressivas <strong>do</strong>s objetos sonoros utiliza<strong>do</strong>s. Todavia, tais possibilida<strong>de</strong>s expressivas<br />
são extremamente particulares e imprecisas. Um mesmo objeto po<strong>de</strong> ser<br />
expressivo <strong>de</strong> algo para alguém num da<strong>do</strong> momento e num momento seguinte passar<br />
a ser entendi<strong>do</strong> como expressivo <strong>de</strong> outro algo para este mesmo alguém. Assim a<br />
única possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> semântico trans-cultural é o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s objetos<br />
que darão suporte às significações. Só com o entendimento <strong>de</strong> tais objetos é que será<br />
realmente possível compreen<strong>de</strong>r que tipos <strong>de</strong> padrões <strong>de</strong> organização entre os objetos<br />
ten<strong>de</strong>rão a possuir certa significação para certa cultura, ou certo estilo musical,<br />
ou certa pessoa.<br />
A música, num escopo mais amplo, é <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> códigos comunicacionais, ou<br />
pelo menos ela não possui códigos com o mesmo grau <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong> que a comunicação<br />
oral ou verbal. Todavia, a experiência musical nos parece ser carregada <strong>de</strong><br />
muitos senti<strong>do</strong>s. Estes são os senti<strong>do</strong>s que transformam os objetos sonoros em objetos<br />
musicais, ou seja, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se referenciar a outras experiências é o que<br />
confere a um objeto, inicialmente apenas sonoro, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser também um<br />
objeto musical.<br />
Expressões <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> espaço<br />
Quan<strong>do</strong> percebemos algum objeto musical, temos, a princípio, a percepção <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> objetos materiais. Embora o som não possua matéria, quan<strong>do</strong> escutamos<br />
e percebemos algo – nos níveis <strong>de</strong> expressões <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> espaço – estamos<br />
atribuin<strong>do</strong> a ele qualida<strong>de</strong>s da matéria. Esse entendimento irá possibilitar a relação<br />
metafórica entre as idéias <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> espaço geradas pela percepção <strong>do</strong> objeto sonoro<br />
e as idéias <strong>de</strong> tempo e espaço que julgamos associáveis a tal percepção. A partir<br />
<strong>de</strong>sse ponto, os senti<strong>do</strong>s começam a ser muito mais afeta<strong>do</strong>s pela faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> julgamento<br />
individual.<br />
Como visto anteriormente, possuímos como representações a priori o tempo e o espaço.<br />
O tempo é o nosso senti<strong>do</strong> interno, a representação daquilo que julgamos ser o<br />
“eu mesmo” ou o self. O espaço é nosso senti<strong>do</strong> externo, a representação daquilo que<br />
julgamos que não pertença ao “eu mesmo”. Assim, que tipo <strong>de</strong> representações nós<br />
formulamos durante nossas experiências com a música? De acor<strong>do</strong> com o mencio-<br />
51
52<br />
na<strong>do</strong> aqui, as expressivida<strong>de</strong>s, em analogia às durações, se categorizam em <strong>do</strong>is tipos:<br />
as expressões <strong>de</strong> tempo e as expressões <strong>de</strong> espaço. Em cada uma <strong>de</strong>ssas expressões irá<br />
pre<strong>do</strong>minar, respectivamente, as representações que geram nosso senti<strong>do</strong> interno e<br />
as que geram nosso senti<strong>do</strong> externo.<br />
A expressão é uma espécie <strong>de</strong> registro que as ações executadas pelas coisas acabam<br />
produzin<strong>do</strong>. Desse mo<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> falamos <strong>de</strong> expressões <strong>de</strong> tempo, estamos tratan<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> uma tentativa <strong>de</strong> comunicação que tem por objetivo exteriorizar as representações<br />
<strong>de</strong> tempo <strong>do</strong> ser que realiza o ato expressivo. Em contrapartida, tais expressões somente<br />
tornar-se-ão expressivas <strong>de</strong> tempo se forem intuídas como duração pura e,<br />
assim, aquele que as intui incorporará tal percepção para um senti<strong>do</strong> interno, somará<br />
tal intuição ao que ele <strong>de</strong>termina como o “eu mesmo”. Desse mo<strong>do</strong> irá intuir tal experiência<br />
não como um objeto exterior, uma nova sensação, mas sim como uma nova<br />
vivência, algo que somente ele tem condições <strong>de</strong> experimentar e sentir.<br />
Já as expressões <strong>de</strong> espaço, são tentativas <strong>de</strong> uma comunicação que visam exteriorizar<br />
as representações daquilo que não é percebi<strong>do</strong> como o “eu mesmo” <strong>do</strong> sujeito que<br />
realiza o ato expressivo. Todavia, para que estas expressões <strong>de</strong> espaço se tornem expressivas<br />
<strong>de</strong> tal dimensão elas têm que ser intuídas como durações espacializadas.<br />
Assim o agente que irá “receber” estas expressões terá que interpretá-las à luz <strong>de</strong> suas<br />
representações a priori <strong>de</strong> espaço, o que significa enten<strong>de</strong>r os objetos assim percebi<strong>do</strong>s<br />
como exteriores e, <strong>de</strong>ssa forma, sen<strong>do</strong> compreendi<strong>do</strong>s como objetos comuns a<br />
outros indivíduos.<br />
Desse mo<strong>do</strong>, as representações que formulamos durante a experiência musical oscilam<br />
entre as representações <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s internos e externos, tempo e espaço. Portanto,<br />
oscilamos nossa percepção entre uma experiência <strong>de</strong> vivência individual,<br />
egocêntrica, que contribuirá para a nossa construção <strong>do</strong> “eu mesmo”, e uma experiência<br />
com objetos exteriores, com sensações entendidas como compartilháveis, que<br />
contribuem para a nossa sensação <strong>de</strong> que há algo que se torna comum durante a tentativa<br />
<strong>do</strong> ato comunicativo.<br />
A percepção <strong>de</strong> mudança está claramente implícita na percepção <strong>de</strong> “duração espacializada”<br />
ou das expressões <strong>de</strong> espaço. Para que haja a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma percepção<br />
<strong>de</strong> “duração espacializada” é necessária a percepção clara <strong>de</strong> grupos, ou blocos,<br />
isola<strong>do</strong>s que ocupem lugar no tempo e/ou no espaço. Com isso, a “duração espacializada”<br />
ganha uma percepção <strong>de</strong> movimento, ou então, a percepção <strong>de</strong> um movimento<br />
entre coisas diferentes gera a percepção <strong>de</strong> uma “duração espacializada”. É<br />
interessante notar que, embora o movimento esteja associa<strong>do</strong> aqui à “duração espacializada”,<br />
é o senti<strong>do</strong> interno que abriga o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> movimento. Quan<strong>do</strong> algo se<br />
move, ocorre sempre em relação ao “eu mesmo”. Aquilo que não se move em relação<br />
ao “eu mesmo” está, <strong>de</strong>vidamente, estático. Entretanto, se a consciência <strong>de</strong> um indivíduo<br />
tiver a noção que esse “eu mesmo” está em movimento, as coisas que estão<br />
juntas ao “eu mesmo” ten<strong>de</strong>rão a ser percebidas em movimento relativo a um mun<strong>do</strong>
externo, para<strong>do</strong>. Por exemplo, quan<strong>do</strong> vejo um avião no ar tenho a percepção <strong>de</strong> seu<br />
movimento, no entanto embora o traça<strong>do</strong> <strong>de</strong> seu movimento possa ser <strong>de</strong>scrito em<br />
vias espaciais, a sua percepção se dá em relação ao “eu mesmo”, em seu senti<strong>do</strong> interno.<br />
Assim, a percepção <strong>do</strong> movimento é uma espécie <strong>de</strong> ação individual sobre um espaço<br />
coletivo. Nosso corpo é um “centro <strong>de</strong> ação”. Ele recebe e <strong>de</strong>volve os movimentos,<br />
nessa mutua relação entre ser e ambiente.<br />
A partir <strong>de</strong>ssas dimensões espaço-temporais, em suas formas expressivas, é que teremos<br />
as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> associações semânticas com outros <strong>do</strong>mínios <strong>de</strong> experiência,<br />
como emotivas, i<strong>de</strong>ológicas ou até mesmo referentes a outros tipos <strong>de</strong> sensação,<br />
como a visual, por exemplo. São essas estruturas que possibilitam à música soar não<br />
apenas como conjuntos <strong>de</strong> sons sintaticamente organiza<strong>do</strong>s, mas sim como uma experiência<br />
que possui formas análogas às nossas vivências com um mun<strong>do</strong> real. A pesquisa<br />
cognitiva nos oferece uma perspectiva real <strong>de</strong> investigação <strong>do</strong>s processos <strong>de</strong><br />
significação musical que fundamentará futuras pesquisas para além das representações<br />
a priori aqui discutidas.<br />
Referências bibliográficas<br />
Bergson, Henri. 1927. Ensaios sobre os da<strong>do</strong>s imediatos da consciência. Tradução João da Silva<br />
Gama. Lisboa: Edições 70.<br />
———. 2005. A evolução cria<strong>do</strong>ra. Tradução Bento Pra<strong>do</strong> Neto. São Paulo: Martins Fontes.<br />
Bregman, Albert S. 1999. Auditory scene analysis: the perceptual organization of sound. Cambridge,<br />
MA: MIT Press.<br />
Gardner, Howard. 2003. A nova ciência da mente. Tradução Cláudia Malbergier Caon. São<br />
Paulo: Editora da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo.<br />
Held, R., and A. Hein. 1958. Adaptation of disarranged hand-eye coordination contingent<br />
upon re-afferent simulation. Perceptual-Motor Skills 8: 87-90.<br />
Kant, Immanuel. 2005. Crítica da faculda<strong>de</strong> <strong>do</strong> juízo. Tradução Valério Roh<strong>de</strong>n e António<br />
Marques. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Forense Universitária.<br />
Kivy, Peter. 1980. The cor<strong>de</strong>d Shell: reflections on musical representation. Princeton: Princeton<br />
University Press.<br />
Nöth, Winfried. 1996. A semiótica no século XX. São Paulo: Annablume.<br />
Peirce, Charles San<strong>de</strong>rs. 2003. Semióticas. São Paulo: Perspectiva.<br />
Sny<strong>de</strong>r, Bob. 2000. Music and memory. Massachusetts: The Massachusetts Institute of Technology<br />
Press.<br />
Varela, Francisco, Evan Thompson, e Eleanor Rosch. 2003. A mente incorporada: ciências cognitivas<br />
e experiência humana. São Paulo: Artmed.<br />
Zampronha, Edson S. 2000. Notação, representação e composição. São Paulo: Annablume/Fapesp.<br />
53
54<br />
Percepção e Processamento Musical<br />
em Usuários <strong>de</strong> Implante Coclear<br />
Scheila Farias <strong>de</strong> Paiva Lima<br />
scheilafplima@yahoo.com.br<br />
Cecília Cavalieri França<br />
poemasmusicais@terra.com.br<br />
Programa <strong>de</strong> Pós- Graduação em Música, ESMU-UFMG<br />
Stela Maris Aguiar Lemos<br />
smarislemos@yahoo.com.br<br />
Departamento <strong>de</strong> Fonoaudiologia, ESME-UFMG<br />
Resumo<br />
A presente pesquisa investiga as relações existentes entre a percepção da linguagem oral<br />
e a percepção da música em sur<strong>do</strong>s adultos, pós-linguais, usuários <strong>de</strong> Implante Coclear<br />
ten<strong>do</strong> como base os parâmetros <strong>de</strong> freqüência e duração, utiliza<strong>do</strong>s na programação das<br />
estratégias <strong>de</strong> codificação <strong>de</strong> fala e processamento <strong>do</strong> som nos aparelhos <strong>de</strong> Implante<br />
Coclear (IC). Possui como objetivos: avaliar o processo perceptivo-musical <strong>de</strong> um adulto<br />
com sur<strong>de</strong>z pós-lingual, usuário <strong>de</strong> Implante Coclear; <strong>de</strong>screver seu <strong>de</strong>sempenho nas ativida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> percepção musical referentes à discriminação <strong>de</strong> pitch, timbre e duração utilizan<strong>do</strong><br />
como meio a apreciação musical e compará-lo à literatura pesquisada visan<strong>do</strong><br />
uma melhor forma <strong>de</strong> proporcionar a prática da apreciação musical ao mesmo. Embora<br />
os implantes cocleares sejam projeta<strong>do</strong>s objetivan<strong>do</strong> a percepção da fala, atualmente a<br />
percepção da música apesar <strong>de</strong> um <strong>de</strong>safio, torna-se uma possibilida<strong>de</strong> viável e imprescindível<br />
no aprimoramento na tecnologia <strong>do</strong> implante coclear e das estratégias <strong>de</strong> processamento<br />
<strong>do</strong>s mesmos. A percepção e a apreciação da música se constituem <strong>de</strong>safios<br />
a serem supera<strong>do</strong>s pelos usuários <strong>de</strong>sta tecnologia, que permite a recuperação da audição<br />
para pessoas com sur<strong>de</strong>z total. A partir da caracterização <strong>do</strong>s antece<strong>de</strong>ntes musicais e<br />
fonoaudiológicos <strong>do</strong> indivíduo, por meio da coleta <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos específicos como audiometria<br />
tonal e mapeamento <strong>do</strong> implante coclear, avaliação <strong>do</strong> processamento auditivo<br />
e preenchimento <strong>de</strong> questionário específico pelo participante <strong>do</strong> estu<strong>do</strong>, será <strong>de</strong>lineada<br />
a avaliação da percepção musical <strong>do</strong> mesmo. A pesquisa a<strong>do</strong>ta uma abordagem experimental,<br />
na qual as mudanças perceptivo-musicais apresentadas pelos indivíduos estuda<strong>do</strong>s<br />
possam ser observadas, a partir <strong>de</strong> registros realiza<strong>do</strong>s nas aulas <strong>de</strong> apreciação. Um aspecto<br />
importante no estu<strong>do</strong> da percepção da música em usuários <strong>de</strong> IC é a possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>, diante <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s, viabilizar propostas <strong>de</strong> treinamento para o aperfeiçoamento das<br />
habilida<strong>de</strong>s auditivas e cognitivo-musicais.<br />
Palavras-Chave<br />
Apreciação Musical, Processamento Musical, Implante Coclear
Introdução<br />
Por ser tão difundida e importante para a socieda<strong>de</strong>, a música <strong>de</strong>sperta o interesse<br />
<strong>de</strong> neurocientistas que buscam enten<strong>de</strong>r o mo<strong>do</strong> pelo qual ela é processada, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
os órgãos sensoriais até o córtex.<br />
Descobertas recentes da neurociência, educação, psicobiologia, psicologia <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
e psicologia da música vêm fomentan<strong>do</strong> um interesse crescente acerca<br />
<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento cognitivo-musical <strong>do</strong> ser humano (Gardner, 1997; Ilari, 2002;<br />
Swanwick e Tillman, 1986). Apesar disso, ainda se sabe pouco sobre as possibilida<strong>de</strong>s<br />
e benefícios da música em relação às pessoas com Deficiência Auditiva.<br />
A Neurociência Cognitiva da Música estuda os processos cognitivos relaciona<strong>do</strong>s à<br />
percepção e à apreensão <strong>de</strong> sons e melodias, observan<strong>do</strong>-se os circuitos neurais envolvi<strong>do</strong>s<br />
na criação e/ou processamento da música (Altenmüller, 2004).<br />
Atualmente, a área encontra-se em gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque e refere-se ao funcionamento<br />
<strong>do</strong> cérebro ao ouvir e produzir música, bem como à i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong>s procedimentos<br />
mentais relaciona<strong>do</strong>s ao processamento musical por parte <strong>do</strong>s indivíduos. Embora<br />
existam textos seculares sobre o processamento musical, somente nas últimas décadas<br />
esta se tornou uma área <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> sistematizada, em que se <strong>de</strong>staca a procura <strong>de</strong> entendimento<br />
sobre a organização cerebral, mental, <strong>do</strong> músico para a música. Como<br />
parte das neurociências cognitivas, encontram-se análises sobre os déficits clínicos<br />
da percepção e/ou performance musical e investigações das correlações anátomofuncionais,<br />
por meio <strong>de</strong> imagens cerebrais <strong>de</strong> humanos. Para Oliveira e colabora<strong>do</strong>res<br />
(2005), pesquisas na área da audição, envolven<strong>do</strong> a complexida<strong>de</strong> das vias<br />
auditivas na transmissão <strong>de</strong> estímulos sonoros, da percepção ao processamento em<br />
regiões complexas <strong>do</strong> cérebro, tornam-se base para o estu<strong>do</strong> da percepção, bem como<br />
<strong>do</strong> <strong>de</strong>sempenho musical.<br />
Segun<strong>do</strong> Ilari (2005), nas últimas décadas tem ocorri<strong>do</strong> um crescente interesse pelo<br />
<strong>de</strong>senvolvimento cognitivo musical, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a recentes <strong>de</strong>scobertas no campo da neurociência.<br />
Distinções como alturas, timbres e intensida<strong>de</strong>s, iniciam a partir <strong>do</strong> décimo<br />
mês <strong>de</strong> vida e tornam-se refina<strong>do</strong>s ao longo da mesma, bem como as<br />
preferências musicais. A relação entre Música e <strong>Cognição</strong> contempla processos cognitivos<br />
relaciona<strong>do</strong>s à ativida<strong>de</strong> musical que subsidiam as recentes <strong>de</strong>scobertas no<br />
campo da neurociência cognitiva. A compreensão <strong>de</strong>stes processos po<strong>de</strong> beneficiar<br />
professores <strong>de</strong> música em bases educativas e performáticas, bem como contribuir<br />
para a compreensão <strong>do</strong> funcionamento <strong>do</strong> cérebro por parte <strong>do</strong>s neurocientistas.<br />
Zatorre (2003) chama a atenção para a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir bem o aspecto específico<br />
da função musical a ser estuda<strong>do</strong> e, quan<strong>do</strong> possível, i<strong>de</strong>ntificar os componentes<br />
cognitivos associa<strong>do</strong>s a essa função. O mesmo autor <strong>de</strong>clara que a Neurociência<br />
Cognitiva da Música é uma área muito recente em pesquisas, apesar <strong>de</strong> um extenso<br />
volume <strong>de</strong> pesquisas na área, que po<strong>de</strong> ser comprova<strong>do</strong> pelos <strong>do</strong>is volumes <strong>do</strong>s <strong>Anais</strong><br />
55
56<br />
da Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Ciência <strong>de</strong> Nova York <strong>de</strong>dica<strong>do</strong>s exclusivamente ao tema (Peretz,<br />
Zatorre, 2001; Avanzini, 2003). Em recente artigo, Peretz e Zatorre (2005) relatam<br />
a situação atual das pesquisas em Neurociência e alertam que este é um campo rico<br />
e fecun<strong>do</strong> <strong>de</strong> investigação sobre percepção, memória, emoção e performance musical.<br />
“A música e a fala são formas <strong>de</strong> comunicação humana através <strong>de</strong> sons e compartilham<br />
semelhanças no que se refere ao seu processamento cerebral, à localização<br />
espacial no cérebro e às proprieda<strong>de</strong>s acústicas como altura, ritmo e timbre, que<br />
po<strong>de</strong>m ser traçadas no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> toda a vida.” (Trainor, 1996; Trevarthen, 2001<br />
e Marin e Perry, 1999).<br />
Assim como na música, o meio mais importante da linguagem oral é o som. Se ouvi<strong>do</strong>s<br />
isoladamente, sejam eles da fala ou <strong>de</strong> instrumentos, os sons, com suas características<br />
físicas e acústicas, são simplesmente sons. Ao realizarmos algum tipo <strong>de</strong><br />
combinação com essas estruturas sonoras, iniciamos a existência da linguagem. De<br />
acor<strong>do</strong> com Sloboda (1997), o que os torna linguagem é a capacida<strong>de</strong> que o cérebro<br />
humano tem <strong>de</strong> organizá-los.<br />
Cutietta (1996) encontrou uma estreita relação entre o aprendiza<strong>do</strong> <strong>de</strong>stas duas formas<br />
<strong>de</strong> comunicação humana por sons. Em sua pesquisa, alunos musicaliza<strong>do</strong>s <strong>de</strong>monstraram<br />
um <strong>de</strong>sempenho superior ao <strong>de</strong> seus colegas não musicaliza<strong>do</strong>s para<br />
tarefas <strong>de</strong> percepção e articulação da fala. Um estu<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong> por Thompson<br />
(2003) sugeriu que os músicos possuem uma habilida<strong>de</strong> superior aos não-músicos<br />
na percepção da prosódia na fala, tanto em frases faladas como em frases musicais<br />
análogas (Thompson, Schellenberg e Husain, 2003). Os pesquisa<strong>do</strong>res afirmam que<br />
tal habilida<strong>de</strong> se esten<strong>de</strong> à interpretação <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> emocional, que é transmiti<strong>do</strong><br />
através da prosódia contida tanto na fala quanto na música.<br />
Cervellini (2003) ressalta em sua obra que a música, como uma forma <strong>de</strong> comunicação,<br />
é fundamental ao ser humano porque carrega em seu bojo a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
viver, sentir e expressar emoções. Sen<strong>do</strong> a música uma das formas <strong>de</strong> lazer mais comumente<br />
<strong>de</strong>scritas, se torna imprescindível a tentativa <strong>de</strong> propiciar a percepção musical<br />
satisfatória aos usuários <strong>de</strong> Implante Coclear (IC), visan<strong>do</strong> proporcionar<br />
melhor qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida e socialização <strong>do</strong>s mesmos.<br />
Assim como a fala, a música comunica-se transmitin<strong>do</strong> mensagens afetivas e expressivas<br />
importantes. Entretanto, a música é finalmente abstrata e sua interpretação é<br />
altamente subjetiva, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>de</strong> fatores tais como o treinamento musical, prática<br />
auditiva da música e contexto cultural.<br />
Sobre a percepção musical, Krumhansl (2000) ressalta que esta possui uma longa e<br />
distinta história, como tópico <strong>de</strong> investigação psicológica, e afirma que a percepção<br />
musical tem se torna<strong>do</strong> objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> por meio <strong>de</strong> meto<strong>do</strong>logias diversificadas,<br />
bem como recebi<strong>do</strong> atenção praticamente em todas as abordagens teóricas da psicologia,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a psicofísica à neurociência. A autora explica que a psicologia cogni-
tiva é o principal impulso para as recentes pesquisas <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à sua ênfase na influência<br />
<strong>do</strong> comportamento sobre a percepção, pois envolve estímulo, interpretação e<br />
esquemas cognitivos (como padrões <strong>de</strong> ritmo e altura), por meio <strong>de</strong> experiências<br />
anteriores.<br />
Sabe-se atualmente que, assim como o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento da linguagem,<br />
o <strong>de</strong>senvolvimento auditivo tem como ápice para aquisição das habilida<strong>de</strong>s auditivas<br />
e as distinções entre alturas, timbres e intensida<strong>de</strong>s, o perío<strong>do</strong> entre o nascimento e<br />
o décimo aniversário. (Werner e Van<strong>de</strong>bos, 1993). É também nessa época que o indivíduo<br />
<strong>de</strong>senvolve suas preferências e memórias musicais, e que se inicia o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
cognitivo-musical através <strong>de</strong> processos, como impregnação e imitação,<br />
que estão normalmente associa<strong>do</strong>s às funções psicossociais como a comunicação,<br />
inclusive <strong>de</strong> emoção, o en<strong>do</strong>sso <strong>de</strong> normas culturais e étnicas, e o entretenimento.<br />
(Ilari e Majlis, 2002; Ilari e Polka; Trainor, 1996; Trehub e Schellenberg, 1995; Gregory,<br />
1998; Huron, 1999 e Trevarthen 2001). Por este motivo, pessoas que se tornaram<br />
<strong>de</strong>ficientes auditivas após este perío<strong>do</strong> e realizaram o IC, obten<strong>do</strong> benefícios<br />
na percepção da fala, possuem gran<strong>de</strong>s chances <strong>de</strong> retomar a apreciação musical<br />
como prática auditiva.<br />
Conforme menciona<strong>do</strong>, a música e a fala compartilham diversas similarida<strong>de</strong>s. Não<br />
obstante, o presente estu<strong>do</strong> objetiva analisar apenas a percepção da variação <strong>de</strong> freqüência<br />
– pitch – e a percepção <strong>de</strong> modificação na duração e no timbre. Tais elementos,<br />
comuns à utilização <strong>de</strong> estratégias para o processamento <strong>do</strong> som nos<br />
equipamentos <strong>de</strong> IC, também se fazem presentes e essenciais em situações <strong>de</strong> apreciação<br />
musical.<br />
Em relação à prática da apreciação musical, Wuytack (1995) salienta que ensinar os<br />
alunos a ouvir, <strong>de</strong> forma analítica, uma obra musical, é um <strong>do</strong>s objetivos da educação<br />
musical. Assim, é possível levá-los a apreen<strong>de</strong>r e compreen<strong>de</strong>r os vários elementos<br />
musicais (timbre, dinâmica, tempo, ritmo, forma, etc.) no <strong>de</strong>curso da unida<strong>de</strong> temporal,<br />
bem como <strong>de</strong> suas múltiplas divisões.<br />
A apreciação musical é uma área <strong>do</strong> conhecimento, uma forma <strong>de</strong> se relacionar com<br />
a música que envolve muitas maneiras <strong>de</strong> ouvir e comportar-se perante o estímulo<br />
sonoro. Embora existam diversos estu<strong>do</strong>s sobre os benefícios <strong>do</strong> IC para a percepção<br />
<strong>de</strong> fala, a percepção da música ainda se constitui um vasto campo <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> para os<br />
profissionais da área e, ao mesmo tempo, um <strong>do</strong>s maiores <strong>de</strong>safios para os usuários<br />
<strong>do</strong> implante.<br />
Deste mo<strong>do</strong>, faz-se necessário investigar as relações existentes entre a percepção da<br />
fala e a percepção da música, a fim <strong>de</strong> contribuir com usuários <strong>de</strong> IC em suas tentativas<br />
<strong>de</strong> prática e apreciação musical, não só no contexto sócio-cultural, mas também<br />
como forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento perceptivo-musical <strong>do</strong>s mesmos; bem como contribuir<br />
com Educa<strong>do</strong>res Musicais, Musicoterapeutas e Fonoaudiólogos, ao sugerir<br />
propostas para sua prática <strong>de</strong> apreciação musical.<br />
57
58<br />
Processamento Auditivo e Implante Coclear<br />
a) Neurofisiologia da Audição<br />
A audição é uma modalida<strong>de</strong> sensorial <strong>do</strong>minante, um senti<strong>do</strong> especializa<strong>do</strong> na percepção<br />
<strong>do</strong>s sons. É por meio da audição que o ser humano <strong>de</strong>senvolve várias habilida<strong>de</strong>s,<br />
<strong>de</strong>ntre elas a aquisição e manutenção da linguagem e da fala (Iório,1995). O<br />
ouvi<strong>do</strong>, órgão fundamental para a audição, é encontra<strong>do</strong> em to<strong>do</strong>s os animais vertebra<strong>do</strong>s<br />
e, no caso da espécie humana, seus receptores se localizam no ouvi<strong>do</strong> interno,<br />
que é o responsável não apenas pela audição, mas também pelo equilíbrio <strong>do</strong><br />
corpo. Para compreen<strong>de</strong>r o processo <strong>de</strong> condução e percepção <strong>do</strong> som, é preciso conhecer<br />
o sistema auditivo.<br />
O Sistema Nervoso Auditivo é composto por duas partes: Sistema Nervoso Auditivo<br />
Periférico (SAP) e Sistema Nervoso Auditivo Central (SAC). O SAP é responsável<br />
pela condução e transformação <strong>do</strong> som, modifican<strong>do</strong> o estímulo auditivo <strong>de</strong> mecânico<br />
para estímulo elétrico, e possui como principais componentes: Orelha externa<br />
(que compreen<strong>de</strong> o pavilhão, o canal auditivo e a membrana timpânica), Orelha<br />
média (que compreen<strong>de</strong> os ossículos: martelo, bigorna e estribo) e Orelha interna<br />
(cóclea, sáculo, utrículo e canais semicirculares). (Fig.1)<br />
Figura 1.1 — Anatomia e fisiologia <strong>do</strong> Sistema Auditivo Periférico<br />
A informação auditiva, captada pela orelha externa, é conduzida à orelha média,<br />
on<strong>de</strong> se encontra a ca<strong>de</strong>ia ossicular (Fig. 1), composta pelos ossículos martelo, bigorna<br />
e estribo. Estes ossículos têm como funções principais a transmissão das vibrações<br />
sonoras <strong>do</strong> meio aéreo, no ouvi<strong>do</strong> médio, para o meio líqui<strong>do</strong>, no ouvi<strong>do</strong><br />
interno. No ouvi<strong>do</strong> interno, a energia é transformada em impulsos neurais pela cóclea,<br />
inician<strong>do</strong> a análise sonora <strong>de</strong> freqüência e intensida<strong>de</strong>. Estes impulsos elétricos<br />
são transmiti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> nervo auditivo ao cérebro, on<strong>de</strong> são interpreta<strong>do</strong>s como som.
As funções <strong>do</strong> SAP incluem recepção, <strong>de</strong>tecção, condução e transdução <strong>do</strong> sinal<br />
acústico em impulsos neuroelétricos.<br />
Os impulsos nervosos origina<strong>do</strong>s no ouvi<strong>do</strong> interno são envia<strong>do</strong>s para o córtex auditivo<br />
pelo ramo coclear <strong>do</strong> nervo auditivo, percorrem as fibras até o tronco encefálico<br />
e chegam aos hemisférios direito e esquer<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> serão processa<strong>do</strong>s e<br />
interpreta<strong>do</strong>s, completan<strong>do</strong> o trajeto por to<strong>do</strong> o SAC (Aquino e Araújo, 2002 p.<br />
25-27).<br />
Pickles (1985) enfatizou que o córtex auditivo é importante na discriminação <strong>de</strong><br />
or<strong>de</strong>ns temporais <strong>de</strong> eventos acústicos e na discriminação da duração <strong>de</strong> estímulos<br />
acústicos curtos. Existem indícios <strong>de</strong> que a música tem base biológica e que o Sistema<br />
Nervoso Periférico e Central apresenta uma organização funcional para o seu processamento,<br />
seja apoian<strong>do</strong> a percepção (apreensão da melodia e discriminação <strong>de</strong><br />
timbre), seja provocan<strong>do</strong> reações emocionais (envolven<strong>do</strong> a participação das áreas<br />
sub-corticais e <strong>do</strong> lobo frontal). A importância e participação <strong>do</strong>s lobos temporais,<br />
especialmente o lobo temporal direito, na discriminação <strong>de</strong> timbre e no processo <strong>de</strong><br />
harmonia, também já é conhecida.<br />
Tabela 1.1 — Vias Auditivas e sua Função no Processamento Auditivo<br />
Sabe-se que a resposta para a música no SAP e no SAC é diferenciada. No final da<br />
década <strong>de</strong> 1980, McKenna e Weinberger contestaram o conceito <strong>de</strong> que “células da<br />
via auditiva responsáveis por uma dada freqüência sempre respon<strong>de</strong>riam da mesma<br />
forma quan<strong>do</strong> essa freqüência era <strong>de</strong>tectada”. Estudan<strong>do</strong> o contorno melódico e a<br />
variação <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> nas diferentes freqüências <strong>do</strong>s neurônios individuais <strong>do</strong> córtex<br />
auditivo <strong>de</strong> gatos, observaram que o número <strong>de</strong> <strong>de</strong>scargas das células variava <strong>de</strong><br />
acor<strong>do</strong> com o contorno apresenta<strong>do</strong> e <strong>de</strong>pendia da localização <strong>de</strong> um da<strong>do</strong> som <strong>de</strong>ntro<br />
da melodia. Dessa forma, concluem que o padrão <strong>de</strong> uma melodia faz diferença<br />
no processamento da informação auditiva: as células <strong>do</strong> SAC po<strong>de</strong>m respon<strong>de</strong>r com<br />
mais intensida<strong>de</strong> para uma <strong>de</strong>terminada freqüência (F0) quan<strong>do</strong> o mesmo é precedi<strong>do</strong><br />
por outros sons <strong>do</strong> que quan<strong>do</strong> ele é o primeiro. Além disso, as células reagem<br />
<strong>de</strong> maneira diferente ao mesmo som quan<strong>do</strong> ele faz parte <strong>de</strong> um contorno ascen<strong>de</strong>nte<br />
<strong>do</strong> que quan<strong>do</strong> é <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte ou mais complexo (Weinberger, 2007).<br />
59
60<br />
b) Percepção Auditiva/ Processamento Auditivo<br />
De acor<strong>do</strong> com Borchgrevink (1982c, 1985) e Gerken (1985), a percepção não é a<br />
recepção passiva <strong>do</strong> estímulo, mas sim um processamento cerebral ativo envolven<strong>do</strong><br />
habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> atenção e diversas estratégias <strong>de</strong> cognição que resultam em: sensação,<br />
discriminação, i<strong>de</strong>ntificação, <strong>de</strong>tecção <strong>de</strong> mensagem e função simbólica.<br />
Para Musiek e Pinheiro (1987), a discriminação <strong>de</strong> diferentes seqüências <strong>de</strong> freqüências<br />
se inicia com a localização <strong>de</strong>stas na membrana basilar da cóclea, que mantém<br />
esta representação tonotópica através <strong>de</strong> todas as vias auditivas centrais. O reconhecimento<br />
consciente <strong>de</strong>stas seqüências ocorre no córtex auditivo primário <strong>do</strong> lobo<br />
temporal, em ambos os hemisférios cerebrais, chegan<strong>do</strong> primeiramente no lobo temporal<br />
contralateral à orelha estimulada.<br />
Frota e Pereira (2006) explicam que o processamento auditivo é a percepção auditiva<br />
que se dá via senti<strong>do</strong> da audição. Katz e Wil<strong>de</strong> (1999; p.486) <strong>de</strong>finem Processamento<br />
Auditivo como a construção realizada pelo ouvinte, a partir <strong>do</strong> sinal auditivo, tornan<strong>do</strong><br />
esta informação acústica funcionalmente útil. Este processo envolve a percepção<br />
<strong>do</strong>s sons e as habilida<strong>de</strong>s que utilizamos com esta informação sonora (Katz<br />
et. al., 1992; Katz e Wil<strong>de</strong>, 1994; Ferre,1997).<br />
Para Jacob (2000), o processamento auditivo é um conjunto <strong>de</strong> operações que o sistema<br />
auditivo realiza como: receber, <strong>de</strong>tectar, aten<strong>de</strong>r, reconhecer, associar e integrar<br />
os estímulos acústicos para, posteriormente, programar uma resposta, analisar e interpretar<br />
os padrões sonoros. Refere-se ao conjunto <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s auditivas necessárias<br />
para <strong>de</strong>codificação, interpretação, análise e organização das informações<br />
acústicas envolven<strong>do</strong>, além da percepção <strong>do</strong> som, estruturas <strong>do</strong> Sistema Auditivo<br />
Periférico e Central.<br />
Pinheiro e Musiek (1985) afirmaram que todas as funções <strong>do</strong> sistema auditivo central<br />
são influenciadas pelo tempo, porque to<strong>do</strong>s os eventos acústicos correm no<br />
tempo. Gil et al. (2000) relatam que muitos processos perceptuais e auditivos, como<br />
a percepção correta das variações <strong>do</strong>s elementos acústicos e da or<strong>de</strong>nação temporal<br />
<strong>do</strong>s mesmos, estão envolvi<strong>do</strong>s no reconhecimento e na i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong>s padrões<br />
auditivos.<br />
Sobre o Processamento Auditivo Temporal, verificamos no <strong>do</strong>cumento emiti<strong>do</strong> pela<br />
ASHA em 1996 informações complementares, mencionan<strong>do</strong> que o mesmo po<strong>de</strong><br />
ser dividi<strong>do</strong> em quatro categorias: or<strong>de</strong>nação temporal, integração temporal, mascaramento<br />
temporal e resolução temporal (Asha, 1996).<br />
Schinn (2003) <strong>de</strong>fine Processamento Auditivo Temporal como a capacida<strong>de</strong> da percepção<br />
ou alteração <strong>do</strong> som com um tempo <strong>de</strong> <strong>do</strong>mínio <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> e está intimamente<br />
relacionada à percepção da fala, bem como à maioria das habilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> processamento<br />
auditivo visto que, <strong>de</strong> alguma forma, as informações auditivas se relacionam<br />
com o tempo. Santos e Russo (2007) <strong>de</strong>screvem processamento temporal como o
processamento <strong>do</strong> sinal acústico em função <strong>do</strong> tempo <strong>de</strong> recepção que se relaciona,<br />
<strong>de</strong>ntre outras etapas, com a percepção <strong>de</strong> fala e a duração das consoantes.<br />
Hirsh (1959), em seus relatos, afirmou que o processamento temporal constitui a<br />
habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realizar uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> tarefas auditivas, <strong>de</strong>ntre elas a percepção <strong>de</strong><br />
fala e a percepção <strong>de</strong> música. No caso da música, <strong>de</strong> perceber a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> uma seqüência<br />
melódica, levan<strong>do</strong> em conta a altura da nota. No caso da fala, as diferenças<br />
entre as palavras levam em consi<strong>de</strong>ração a discriminação da duração da consoante e<br />
a or<strong>de</strong>m temporal <strong>do</strong> final das duas consoantes em cada palavra. Ex: boots e boost.<br />
Em sua pesquisa, o autor ainda afirma que a essência da percepção auditiva temporal<br />
encontra-se nas mudanças acústicas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um tempo e, por este motivo, relata<br />
que intervalos <strong>de</strong> tempo entre os estímulos sonoros são suficientes para o ouvinte<br />
perceber a or<strong>de</strong>m <strong>do</strong>s mesmos, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> estímulo e mesmo que seja<br />
por poucos milissegun<strong>do</strong>s.<br />
Campos et. al. (2008) realizaram um estu<strong>do</strong> com <strong>do</strong>is grupos <strong>de</strong> indivíduos para investigar<br />
as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nação temporal em indivíduos usuários <strong>de</strong> IC multicanal,<br />
por meio <strong>do</strong>s testes <strong>de</strong> Padrão <strong>de</strong> Freqüência e <strong>de</strong> Padrão <strong>de</strong> Duração. Os<br />
autores utilizaram a meto<strong>do</strong>logia comparativa <strong>de</strong> um grupo controle e <strong>de</strong> um grupo<br />
experimental e concluíram, a partir <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s, que os indivíduos usuários<br />
<strong>de</strong> IC avalia<strong>do</strong>s neste estu<strong>do</strong> apre sentaram semelhante <strong>de</strong>sempenho no teste <strong>de</strong><br />
or<strong>de</strong>nação temporal (padrão <strong>de</strong> freqüência e <strong>de</strong> duração), quan<strong>do</strong> compara<strong>do</strong>s ao<br />
grupo <strong>de</strong> indivíduos com audição normal.<br />
c) Percepção e processamento da música<br />
As semelhanças entre a construção da linguagem musical e da linguagem verbal envolvem<br />
processos auditivos muito semelhantes na produção e na percepção <strong>do</strong> som.<br />
Com o intuito <strong>de</strong> esclarecer como o sistema auditivo processa e <strong>de</strong>codifica estes sinais,<br />
muito se tem pesquisa<strong>do</strong> sobre este assunto nas últimas décadas (Bang, 1991).<br />
De acor<strong>do</strong> com Schochat (1996), as ativida<strong>de</strong>s periféricas são responsáveis pela sensação,<br />
enquanto as centrais são responsáveis pela percepção. Por este motivo, cabe<br />
ressaltar que, no presente estu<strong>do</strong>, o termo Percepção Auditiva refere-se a uma ativida<strong>de</strong><br />
auditiva central, diferente <strong>do</strong> termo sensação auditiva, que seria a sensação da<br />
audição em nível periférico.<br />
Sobre o processo perceptivo musical, Duarte e Mazzoti (2006) afirmam que, por<br />
meio da percepção e da criação, a informação sonora é selecionada e re-contextualizada.<br />
A seleção e a re-contextualização propiciam ao sujeito um novo valor e significa<strong>do</strong><br />
aos elementos seleciona<strong>do</strong>s, além <strong>de</strong> explicarem porque po<strong>de</strong> haver, em<br />
diferentes grupos, diferentes representações para o mesmo objeto musical. Os autores<br />
afirmam ainda que esta seleção e re-contextualização possuem como resulta<strong>do</strong><br />
a organização <strong>do</strong>s elementos seleciona<strong>do</strong>s, a criação <strong>de</strong> imagens sonoras e a formação<br />
<strong>de</strong> cognições centrais. Esta informação perceptiva é assimilada aos esquemas, facili-<br />
61
62<br />
tan<strong>do</strong> a organização <strong>do</strong>s eventos sonoros em padrões e geran<strong>do</strong> expectativas <strong>de</strong> eventos<br />
futuros (Krumhansl, 2000).<br />
Cuddy (1992) afirma que a percepção auditiva, apesar <strong>de</strong> diferente, é parte integrante<br />
da ativida<strong>de</strong> musical e questiona o objetivo <strong>de</strong> isolar-se a percepção auditiva<br />
para realizar estu<strong>do</strong>s especializa<strong>do</strong>s ou interpretações <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s coleta<strong>do</strong>s em experimentos.<br />
Segun<strong>do</strong> a autora, ainda existe muito para ser <strong>de</strong>scoberto sobre as relações<br />
entre a estrutura perceptiva e o processo <strong>de</strong> compreensão musical. Ela <strong>de</strong>screve que,<br />
em relação à utilização <strong>de</strong> testes auditivos para o estu<strong>do</strong> da percepção musical, o propósito<br />
<strong>de</strong>stes é a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> influências da compreensão musical na percepção <strong>de</strong><br />
eventos auditivos. Por este motivo, também sugere a utilização e a<strong>de</strong>quação <strong>do</strong> termo<br />
“Percepção Musical”, em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> “Percepção Auditiva”, pois a ênfase da <strong>de</strong>scoberta<br />
não está focada no ouvi<strong>do</strong>, mas na mente.<br />
Ten<strong>do</strong> se comprova<strong>do</strong> que a percepção musical não se relaciona apenas com um <strong>do</strong>s<br />
hemisférios cerebrais, mas com uma re<strong>de</strong> neural, esta é ativada durante a escuta (Altenmüller,<br />
2001; Peretz, 2002). A música proporciona uma maneira complexa na<br />
organização cerebral <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> á sua relação direta entre música-movimento e percepção-ação.<br />
De acor<strong>do</strong> com Janata e Grafton (2003), esta relação consiste em seqüências<br />
<strong>de</strong> movimento e som que proporcionam múltiplas experiências em toda a mente.<br />
Conforme <strong>de</strong>scrito, a partir <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong> musical ocorre uma intensa reorganização<br />
plástica cerebral, resultan<strong>do</strong> na alteração das áreas sensório-motoras corticais<br />
(Pantev, 2003).<br />
Pascual-Leone (2001) selecionou indivíduos <strong>de</strong> diversas ida<strong>de</strong>s, ten<strong>do</strong> como critérios<br />
que os mesmos não tocassem nenhum instrumento musical, não soubessem datilografar<br />
usan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os <strong>de</strong><strong>do</strong>s e nem tivessem empregos que exigissem habilida<strong>de</strong>s<br />
manuais. Eles foram orienta<strong>do</strong>s, ainda, a estudar uma seqüência <strong>de</strong> notas para mão<br />
(conforme alguns méto<strong>do</strong>s tradicionais para o ensino <strong>do</strong> piano e tecla<strong>do</strong>) por duas<br />
horas diárias, obe<strong>de</strong>cen<strong>do</strong> a critérios estabeleci<strong>do</strong>s pelo pesquisa<strong>do</strong>r. Em uma segunda<br />
etapa, o grupo foi dividi<strong>do</strong> em <strong>do</strong>is subgrupos, sen<strong>do</strong> que apenas um continuou<br />
a treinar. O autor <strong>de</strong>monstrou que estas modificações neurais, <strong>de</strong>correntes <strong>do</strong><br />
aprendiza<strong>do</strong> musical, não ocorrem apenas em processos <strong>de</strong> formação cerebral (em<br />
torno <strong>do</strong>s cinco a nove anos), mas que, conforme Sloboda (2003), os seres <strong>de</strong> todas<br />
as ida<strong>de</strong>s têm a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> processar o material sonoro tanto absoluta quanto relativamente,<br />
e que essas habilida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>senvolvidas com o treino em qualquer<br />
ida<strong>de</strong>.<br />
Quan<strong>do</strong> um adulto ouve uma peça musical atentamente e compreen<strong>de</strong> esta linguagem,<br />
as informações são processadas em gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> e velocida<strong>de</strong>. Gran<strong>de</strong><br />
parte <strong>de</strong>ste processamento é automática, abaixo <strong>do</strong> plano consciente <strong>de</strong> análise, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong><br />
à impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> refletir <strong>de</strong>talhadamente enquanto ouve a música. Neste<br />
caso, é necessário ouvir mais <strong>de</strong> uma vez, pois, mesmo atento, o aprecia<strong>do</strong>r não consegue<br />
compreen<strong>de</strong>r to<strong>do</strong>s os significa<strong>do</strong>s envolvi<strong>do</strong>s, visto que os elementos da sen-
tença musical são processa<strong>do</strong>s mais rapidamente. Porém, existe uma aprendizagem<br />
perceptual que é obtida no contexto <strong>de</strong> sua cultura particular e que, comprovadamente,<br />
influencia na aquisição <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s cognitivo-musicais (Dowling,1999).<br />
d) Percepção da música e Implante Coclear<br />
De acor<strong>do</strong> com Campos et. al. (2008), indivíduos com <strong>de</strong>ficiência auditiva apresentam<br />
prejuízo na sensação sonora que permite a discriminação entre sons graves/agu<strong>do</strong>s,<br />
fortes/fracos e longos/curtos. Os autores também alertam que a perda auditiva<br />
neurossensorial distorce a percepção <strong>do</strong> som, resultan<strong>do</strong> em redução na sensibilida<strong>de</strong>,<br />
crescimento anormal da sensação <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>, redução na seletivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> freqüências<br />
e redução na resolução temporal. Com o comprometimento da capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> resolução <strong>de</strong> freqüências, há dificulda<strong>de</strong> na percepção <strong>de</strong> fala, principalmente<br />
diante <strong>de</strong> ruí<strong>do</strong> competitivo. O envelope temporal da fala, que codifica informações,<br />
encontra-se distorci<strong>do</strong> em um sistema auditivo altera<strong>do</strong>, resultan<strong>do</strong> em distorção<br />
na percepção <strong>de</strong> fala. Bevilacqua (2004) <strong>de</strong>staca que o processa<strong>do</strong>r <strong>de</strong> fala analisa<br />
continuamente o sinal acústico da fala e <strong>do</strong>s sons ambientais e proporciona a codificação<br />
<strong>de</strong>sses sons, preservan<strong>do</strong> as características importantes <strong>do</strong> espectro e da informação<br />
temporal <strong>do</strong>s sons da fala. As informações <strong>de</strong> espectro <strong>do</strong> sinal acústico<br />
são codificadas pela estimulação <strong>de</strong> diferentes eletro<strong>do</strong>s e a informação temporal é<br />
codificada pelo controle temporal das <strong>de</strong>scargas nas fibras <strong>do</strong> nervo auditivo.<br />
Ao contrário da prótese auditiva convencional, que apenas amplifica o som recebi<strong>do</strong><br />
para a cóclea, o implante coclear capta a onda sonora através <strong>do</strong> microfone (um componente<br />
externo) e a transforma em impulso elétrico através <strong>do</strong>s eletro<strong>do</strong>s (um <strong>do</strong>s<br />
componentes internos) estimulan<strong>do</strong> diretamente o nervo coclear, realizan<strong>do</strong> a função<br />
das células ciliadas da cóclea que estão danificadas ou ausentes. Os avanços na<br />
tecnologia <strong>do</strong>s implantes cocleares e as formas <strong>de</strong> processamento <strong>do</strong> som têm mostra<strong>do</strong><br />
excelentes benefícios para a percepção <strong>de</strong> fala na maioria <strong>do</strong>s usuários <strong>de</strong> IC,<br />
contu<strong>do</strong> a percepção e a apreciação da música ainda se constituem os maiores <strong>de</strong>safios.<br />
(Fig.2)<br />
O microfone é responsável pela captação <strong>do</strong> som; o processa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> sinal <strong>de</strong> fala converte<br />
o som em sinais elétricos, que são envia<strong>do</strong>s por meio <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> transmissão,<br />
via radiofreqüência, para o receptor interno e, posteriormente, para o feixe<br />
<strong>de</strong> eletro<strong>do</strong>s inseri<strong>do</strong>s na cóclea.<br />
O funcionamento <strong>do</strong>s eletro<strong>do</strong>s <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>do</strong> projeto <strong>do</strong> eletro<strong>do</strong>, ou seja, <strong>do</strong> número<br />
<strong>de</strong> eletro<strong>do</strong>s e <strong>de</strong> sua configuração. O tipo <strong>de</strong> estimulação po<strong>de</strong> ser analógico ou pulsátil.<br />
A ligação da transmissão po<strong>de</strong> ser transcutânea ou percutânea. O processamento<br />
<strong>do</strong> sinal é responsável pela representação da forma da onda.<br />
O hábito <strong>de</strong> ouvir e apreciar música varia significativamente entre os usuários <strong>de</strong> IC.<br />
Embora os implantes cocleares sejam projeta<strong>do</strong>s objetivan<strong>do</strong> a percepção da fala,<br />
atualmente a percepção da música é vista como uma possibilida<strong>de</strong> viável e impres-<br />
63
64<br />
cindível no aprimoramento na tecnologia <strong>do</strong> implante coclear e das estratégias <strong>de</strong><br />
processamento <strong>do</strong>s mesmos.<br />
Figura 2 — Componentes <strong>do</strong> implante coclear:<br />
1) Microfone e processa<strong>do</strong>r da fala (captura sons <strong>do</strong> meio e os converte em sinais digitais<br />
enquanto o processa<strong>do</strong>r manda sinais digitais para os componentes internos,<br />
através <strong>de</strong> uma bobina receptora externa); 2) bobina interna e o implante que fica<br />
sob a pele num nicho fresa<strong>do</strong> no osso temporal; 3) fio com eletro<strong>do</strong>s (anéis) <strong>do</strong> implante<br />
localiza<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro da cóclea. Converte os sinais digitais <strong>do</strong> processa<strong>do</strong>r em<br />
energia elétrica; 4) Nervo auditivo que é estimula<strong>do</strong> pela energia elétrica e envia sinais<br />
ao cérebro para o processamento da audição.<br />
Com a utilização <strong>do</strong> IC, o som percebi<strong>do</strong> po<strong>de</strong> se diferenciar radicalmente <strong>do</strong>s padrões<br />
acústicos normais. Para proporcionar uma audição completa ao usuário <strong>de</strong><br />
implante coclear, é necessário <strong>de</strong>senvolver habilida<strong>de</strong>s auditivas além da <strong>de</strong>tecção<br />
sonora proporcionada pelo aparelho (Lima e Santos, 2007).<br />
Atualmente, muito se tem avança<strong>do</strong> na tecnologia <strong>do</strong>s implantes cocleares e suas<br />
formas <strong>de</strong> processamento <strong>do</strong> som têm mostra<strong>do</strong> excelentes benefícios. Embora existam<br />
diversos estu<strong>do</strong>s sobre os benefícios <strong>do</strong> Implante Coclear para a percepção <strong>de</strong><br />
fala, a percepção da música ainda se constitui um vasto campo <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> para os<br />
profissionais da área e ao mesmo tempo um <strong>do</strong>s maiores <strong>de</strong>safios para os usuários<br />
<strong>de</strong> IC.<br />
Os prováveis benefícios ofereci<strong>do</strong>s aos usuários <strong>de</strong> implante coclear por meio <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> apreciação musical dirigida, certamente nortearão futuras pesquisas na<br />
área, bem como contribuirão para seu <strong>de</strong>sempenho na percepção e produção da fala
e na inserção e\ou re-inserção <strong>de</strong>stes indivíduos no mun<strong>do</strong> da música e na fruição<br />
da mesma como prática social.<br />
Cervellini (2003) ressalta em sua obra que a música, como uma forma <strong>de</strong> comunicação,<br />
é fundamental ao ser humano porque carrega em seu bojo a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
viver, sentir e expressar emoções. Sen<strong>do</strong> música uma das formas <strong>de</strong> lazer mais comumente<br />
<strong>de</strong>scritas, se torna imprescindível a tentativa <strong>de</strong> propiciar a percepção musical<br />
satisfatória aos usuários <strong>de</strong> implante coclear, visan<strong>do</strong> proporcionar melhor qualida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> vida e socialização <strong>do</strong> mesmo.<br />
Na tentativa <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar relações existentes entre habilida<strong>de</strong>s musicais e habilida<strong>de</strong>s<br />
psico-acústicas, foram realiza<strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s sobre a plasticida<strong>de</strong> cerebral <strong>de</strong> adultos<br />
(Gil et al., 2000; Brennan e Stevens 2002). Por meio <strong>do</strong> treinamento perceptivo <strong>de</strong><br />
intervalos, ritmo e outros, a prática musical estimula o <strong>de</strong>senvolvimento da percepção<br />
auditiva melódica e harmônica.<br />
Estu<strong>do</strong>s constataram que é possível generalizar os benefícios <strong>do</strong> treinamento auditivo,<br />
realiza<strong>do</strong> para um tipo <strong>de</strong> estímulos sonoros, para outras situações <strong>de</strong> escuta<br />
(Oxenham et al., 2003).<br />
O IC foi projeta<strong>do</strong>, principalmente, para permitir a boa percepção <strong>de</strong> fala em ambientes<br />
silenciosos. Embora bem sucedi<strong>do</strong> nesta área, seu <strong>de</strong>sempenho no que se refere<br />
à percepção da música tem si<strong>do</strong> muito inferior ao i<strong>de</strong>al. Os usuários <strong>de</strong> IC<br />
relatam ter a música como o segun<strong>do</strong> estímulo acústico mais importante em sua vida,<br />
per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> somente para a compreensão da fala; entretanto, a maioria <strong>de</strong>stes se queixa<br />
<strong>de</strong> não conseguir sucesso nas tarefas perceptivo-musicais.<br />
Para enten<strong>de</strong>r o motivo <strong>do</strong> implante não codificar bem a música, é necessário compreen<strong>de</strong>r<br />
como o sistema auditivo <strong>de</strong> um normo-ouvinte codifica música. Um <strong>do</strong>s<br />
elementos fundamentais da música é a melodia. De acor<strong>do</strong> com Limb (2006), o<br />
processamento <strong>de</strong> melodias e sons musicais exige estruturas altamente especializadas<br />
e diferenciadas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> e captação <strong>do</strong>s sons pela orelha externa, sua condução na orelha<br />
média e transdução na orelha interna, até a discriminação no córtex auditivo primário,<br />
envolven<strong>do</strong> as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> resolução temporal, resolução <strong>de</strong> freqüência<br />
(ou espectral) e codificação da intensida<strong>de</strong>. Por este motivo, o autor consi<strong>de</strong>ra que<br />
o reconhecimento da música seja uma das condições mais <strong>de</strong>safia<strong>do</strong>ras e difíceis<br />
para o usuário <strong>de</strong> IC.<br />
Estu<strong>do</strong>s recentes têm mostra<strong>do</strong> a dificulda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s usuários <strong>de</strong> IC para reconhecer a<br />
música, apesar <strong>de</strong> a maioria apresentar excelentes resulta<strong>do</strong>s nos testes <strong>de</strong> reconhecimento<br />
<strong>de</strong> fala em conjunto aberto. Por conta da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se avaliar aspectos<br />
da audição que vão além <strong>do</strong> reconhecimento <strong>de</strong> fala, Nommons et al., (2008) <strong>de</strong>senvolveram<br />
um protocolo computa<strong>do</strong>riza<strong>do</strong>, <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> “Clinical of Music Perception<br />
test”, para avaliação quantitativa <strong>do</strong> <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>sses indivíduos em<br />
discriminar e reconhecer padrões melódicos. A administração é realizada em campo<br />
livre com medidas padronizadas. A avaliação engloba as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> discrimina-<br />
65
66<br />
ção <strong>de</strong> pitch, i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> timbre e i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> melodias, e dura, aproximadamente,<br />
45 minutos.<br />
Gfeller et. al (2007) avaliaram a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> discriminação <strong>de</strong> pitch em função <strong>do</strong><br />
tamanho <strong>do</strong> intervalo <strong>de</strong> freqüência e as relações <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s com os da<strong>do</strong>s <strong>de</strong>mográficos,<br />
bem como a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconhecimento <strong>de</strong> melodia em 114 indivíduos<br />
implanta<strong>do</strong>s. Os pacientes com inserção completa <strong>do</strong> feixe <strong>de</strong> eletro<strong>do</strong>s longo<br />
foram significativamente pior que os indivíduos usuários <strong>de</strong> implante <strong>de</strong> feixe curto<br />
que usavam Aparelho <strong>de</strong> Amplificação Sonora Individual (AASI) convencional concomitante.<br />
Houve uma correlação significativa entre a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> discriminação<br />
<strong>de</strong> pitch e o reconhecimento <strong>de</strong> melodias familiares.<br />
Looi et al. (2008) estudaram o reconhecimento <strong>de</strong> 38 pares <strong>de</strong> ritmo; a escala <strong>de</strong><br />
Pitch em intervalos <strong>de</strong> freqüências <strong>de</strong> uma oitava, meia oitava e um quarto <strong>de</strong> oitava;<br />
o reconhecimento <strong>de</strong> 12 instrumentos e o reconhecimento <strong>de</strong> melodias familiares<br />
em indivíduos usuários <strong>de</strong> AASI convencionais e em usuários <strong>de</strong> IC. Não houve diferença<br />
entre os grupos na tarefa <strong>de</strong> reconhecimento <strong>do</strong>s padrões rítmicos e no reconhecimento<br />
<strong>de</strong> instrumentos musicais, porém houve diferença estatisticamente<br />
significante entre os grupos no teste <strong>de</strong> reconhecimento <strong>de</strong> pitch e <strong>de</strong> melodia, com<br />
as médias <strong>do</strong>s indivíduos usuários <strong>de</strong> IC piores em relação aos usuários <strong>de</strong> AASI.<br />
Com relação ao méto<strong>do</strong> para o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> reconhecimento musical em usuários <strong>de</strong><br />
AASI ou IC, a literatura internacional, com freqüência, apresenta os testes para a<br />
percepção <strong>do</strong> timbre (reconhecimento <strong>de</strong> instrumentos musicais), <strong>do</strong> Pitch (escala<br />
<strong>de</strong> intervalos <strong>de</strong> oitava), <strong>de</strong> músicas familiares (gravações tradicionais) ou melodias<br />
(sons musicais toca<strong>do</strong>s em algum instrumento, ex: Flauta ou Piano) – Looi et al.<br />
(2008); Nimmons et al. (2007); Sucher e McDermont (2008); Gfeller et al. (2007).<br />
Outros realizaram a avaliação por meio <strong>de</strong> questionários como PMMA (Primary<br />
Measures of Music Audition) (Filipo et al. 2008; Lassaletta et al. 2008; Brockmeier<br />
et al. 2007).<br />
Em seus estu<strong>do</strong>s, Sucher e McDermont (2007) e Laneau et al. (2006) sugerem que<br />
o baixo <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> usuários <strong>de</strong> IC para reconhecer a música resi<strong>de</strong> na dificulda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> discriminação <strong>de</strong> pitch, habilida<strong>de</strong> que está preservada em normo-ouvintes.<br />
A percepção <strong>do</strong>s intervalos pelo ouvi<strong>do</strong> humano é logarítmica. Isto significa que<br />
uma progressão exponencial <strong>de</strong> freqüências é percebida pelo ouvi<strong>do</strong> como uma progressão<br />
linear <strong>de</strong> intervalos, o que po<strong>de</strong>ria ser prejudica<strong>do</strong> pelo filtro utiliza<strong>do</strong> na<br />
estratégia <strong>de</strong> codificação <strong>de</strong> fala (ECF) utilizada no IC. Já Haummann et al. (2007)<br />
atribuem a dificulda<strong>de</strong> com música não só à limitação na percepção <strong>do</strong> pitch, mas<br />
também <strong>do</strong> timbre.<br />
Para Vongpaisal et al. (2006), as dificulda<strong>de</strong>s em perceber as características fundamentais<br />
para o reconhecimento da música <strong>de</strong>rivam <strong>do</strong> fato <strong>do</strong> processa<strong>do</strong>r <strong>de</strong> fala<br />
ainda ser insuficiente na codificação espectral, filtran<strong>do</strong> muitos <strong>de</strong>talhes importantes.<br />
Gfeller et al. (2006) acreditam que a preservação <strong>de</strong> resíduos auditivos nas freqüên-
cias graves seria um fato importante e que po<strong>de</strong>ria auxiliar no reconhecimento da<br />
música popular.<br />
Em média, os indivíduos implanta<strong>do</strong>s não apresentam dificulda<strong>de</strong>s em i<strong>de</strong>ntificar<br />
o ritmo, porém, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da estratégia <strong>de</strong> processamento <strong>de</strong> fala e <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo<br />
<strong>do</strong> implante utiliza<strong>do</strong>, o reconhecimento <strong>de</strong> melodias, especialmente aquelas sem<br />
pista verbal, é muito reduzi<strong>do</strong>. A percepção <strong>do</strong> timbre geralmente também é insatisfatória<br />
e os usuários ten<strong>de</strong>m a relatar uma qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> som pobre e pouca satisfação<br />
ou prazer em escutar música (McDermoott, 2004).<br />
O estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Silva et al. (apud Silveira et al. 2002) <strong>de</strong>monstrou que o treinamento<br />
musical favorece a eficácia das habilida<strong>de</strong>s auditivas como atenção e discriminação<br />
<strong>de</strong> freqüências, intensida<strong>de</strong> e duração <strong>de</strong> estímulos sonoros, otimizan<strong>do</strong> assim as habilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> processamento auditivo.<br />
Ten<strong>do</strong> a plasticida<strong>de</strong> <strong>do</strong> sistema nervoso auditivo central como comprovação comportamental,<br />
neurofisiológica e fundamento para o <strong>de</strong>senvolvimento auditivo <strong>de</strong><br />
adultos, o treinamento auditivo melhora a percepção <strong>de</strong> sinais acústicos complexos,<br />
proporcionan<strong>do</strong> seu aprimoramento no que se refere a elementos como timbre, duração<br />
e freqüência, conti<strong>do</strong>s na audição tanto da fala quanto da música (Schochat<br />
et al. 2002, Roth 2001, Lin 2002).<br />
Recentemente, Vongpaisal et al. (2004a) avaliaram as habilida<strong>de</strong>s para o reconhecimento<br />
<strong>de</strong> música em um grupo com 10 usuários <strong>de</strong> IC entre 8-18 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.<br />
Juntamente com estes, havia também um grupo controle com pessoas <strong>de</strong> audição<br />
normal. Ao contrário <strong>de</strong> outros estu<strong>do</strong>s que utilizavam canções familiares ou canções<br />
folclóricas tradicionais, os autores optaram pela utilização <strong>de</strong> canções populares.<br />
Cada canção possuía quatro versões, sen<strong>do</strong> estas: Gravação original (voz e instrumental),<br />
somente instrumental (sem voz), Somente Melodia no piano e Melodia<br />
no contra baixo acompanhada com bateria. Os autores perceberam que não houve<br />
nenhum sucesso nas tarefas para o reconhecimento somente com as versões instrumentais.<br />
Outro estu<strong>do</strong>, utilizan<strong>do</strong> crianças e a<strong>do</strong>lescentes, objetivou o reconhecimento<br />
<strong>de</strong> temas musicais <strong>do</strong>s programas <strong>de</strong> televisão favoritos <strong>do</strong>s participantes<br />
(Vongpaisal et al., 2004b). Foram oferecidas diferentes versões para realização da<br />
tarefa, que envolveu a música original, versões instrumentais e versões melódicas.<br />
Os autores obtiveram o mesmo resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> menciona<strong>do</strong> anteriormente: somente<br />
as versões originais e com voz foram reconhecidas pelos usuários <strong>de</strong> IC.<br />
Objetivan<strong>do</strong> replicar o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Vongpaisal et al. (2004b) com crianças japonesas<br />
e verificar seu <strong>de</strong>sempenho diante da particularida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ensino musical e da exposição<br />
musical <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a tenra ida<strong>de</strong> no Japão, Nakata (2005) realizou o estu<strong>do</strong> utilizan<strong>do</strong><br />
versões originais, instrumentais e com a melodia realizada por uma flauta<br />
sintetizada. O autor concluiu que as crianças japonesas pu<strong>de</strong>ram i<strong>de</strong>ntificar os temas<br />
musicais <strong>de</strong> seus programas prediletos com mais facilida<strong>de</strong> e sucesso que seus pares<br />
cana<strong>de</strong>nses.<br />
67
68<br />
Um aspecto importante no estu<strong>do</strong> da percepção da música em usuários <strong>de</strong> IC é a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> viabilizar, diante <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s, propostas <strong>de</strong> treinamento para o<br />
aperfeiçoamento <strong>de</strong>sta habilida<strong>de</strong> (Galvin et al., 2007). Fu e Galvin (2007) <strong>de</strong>senvolveram<br />
um programa computa<strong>do</strong>riza<strong>do</strong> <strong>de</strong> treinamento auditivo com o objetivo<br />
<strong>de</strong> direcionar a reabilitação auditiva em casa. Tal recurso mostrou-se efetivo e melhorou<br />
a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconhecimento <strong>de</strong> fala e <strong>de</strong> música <strong>do</strong>s indivíduos implanta<strong>do</strong>s<br />
que fizeram seu uso correto.<br />
Consi<strong>de</strong>rações Finais<br />
A presente pesquisa intencionou realizar um levantamento bibliográfico referente<br />
ao processo <strong>de</strong> percepção <strong>do</strong>s sons da fala e da música em pessoas usuárias <strong>de</strong> IC,<br />
bem como conceituar e relacionar a percepção sonora com o processamento auditivo,<br />
para tarefas que envolvem habilida<strong>de</strong>s para o processamento temporal utilizan<strong>do</strong><br />
os parâmetros <strong>de</strong> freqüência e duração.<br />
Estu<strong>do</strong>s sobre a percepção auditiva com adultos usuários <strong>de</strong> IC conquistam, a cada<br />
dia, um espaço significativo na literatura médica. No entanto, a maioria <strong>de</strong>stas possui<br />
sua origem <strong>de</strong> interesse no funcionamento e na programação <strong>do</strong> equipamento <strong>de</strong><br />
IC. Tal fato aponta para a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pesquisas voltadas à realização e elaboração<br />
<strong>de</strong> programas para ao treinamento auditivo <strong>do</strong> usuário <strong>de</strong> IC, a fim <strong>de</strong> possibilitar a<br />
otimização das habilida<strong>de</strong>s auditivas por meio da realização <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s que estimulem<br />
a plasticida<strong>de</strong> cerebral para a percepção <strong>de</strong> estímulos auditivos, principalmente<br />
da música.<br />
Em relação às informações obtidas sobre a percepção musical com o IC, é importante<br />
ressaltar que não foram encontra<strong>do</strong>s, na literatura, da<strong>do</strong>s referentes à percepção<br />
musical <strong>de</strong> usuários <strong>de</strong> IC na população brasileira. Os estu<strong>do</strong>s encontra<strong>do</strong>s referemse<br />
apenas a indivíduos da América <strong>do</strong> Norte, Europa, Ásia e Japão, o que sugere um<br />
vasto campo a ser explora<strong>do</strong> em nosso país, tanto por Fonoaudiólogos quanto por<br />
Musicoterapeutas e Educa<strong>do</strong>res Musicais que <strong>de</strong>sejam contribuir com o campo das<br />
<strong>Artes</strong> Musicais nas Neurociências. Um aspecto importante no estu<strong>do</strong> da percepção<br />
da música com usuários <strong>de</strong> IC é a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> viabilizar propostas <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s<br />
musicais que contribuam para o treinamento e aperfeiçoamento, não só das habilida<strong>de</strong>s<br />
auditivas, mas também cognitivo-musicais.<br />
Acredita-se que, por meio <strong>de</strong>sta pesquisa, seja possível avaliar a percepção da música,<br />
a partir da utilização <strong>de</strong> parâmetros <strong>de</strong> duração e freqüência, comuns entre o processamento<br />
<strong>do</strong> som pelo equipamento <strong>de</strong> IC e a produção musical; verificar estratégias<br />
para o aprimoramento <strong>do</strong> reconhecimento <strong>de</strong> timbres utilizan<strong>do</strong><br />
instrumentos musicais varia<strong>do</strong>s, bem como otimizar o <strong>de</strong>sempenho auditivo <strong>do</strong>s indivíduos<br />
participantes para ativida<strong>de</strong>s cotidianas, principalmente para as tarefas <strong>de</strong><br />
audição e apreciação musical.
Referências Bibliográficas<br />
American Speech-Language-Hearing Association (ASHA) Task force on central auditory<br />
processing consensus <strong>de</strong>velopment. Central auditory processing: current status of Research<br />
and implications for clinical practice. Technical report. 1995. p.47-61.<br />
American Speech-Language-Hearing Association. Central auditory processing current status<br />
of research and implications for clinical practice, American Journal of Audiology 5(2), 41-<br />
54, 1996.<br />
Argimon, I. I. L. et al. Instrumentos <strong>de</strong> avaliação <strong>de</strong> memória em i<strong>do</strong>sos: uma revisão. RBCEH,<br />
jul.-<strong>de</strong>z., p. 28-35, 2005.<br />
Bang, Carlos. Um mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> som e música: musicoterapia e fonoaudiologia musical com<br />
crianças porta<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> <strong>de</strong>ficiência auditiva e <strong>de</strong>ficiência múltipla. In: Ruud, E. (Org.)<br />
Música e Saú<strong>de</strong>. São Paulo: Summus, 1991, p. 19-34.<br />
Bellis, Teri J. Assessment and management of Central Auditory Disor<strong>de</strong>rs in the Educational<br />
setting: from science to practice. Canada: Thomson Delmar Learning, 2003.<br />
Bento, R. F. et al. Resulta<strong>do</strong>s auditivos com o implante coclear multicanal em pacientes submeti<strong>do</strong>s<br />
a cirurgia no hospital das clínicas da faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> medicina da universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
são paulo. Rev. Bras. Otorrinolaringol. v. 70, n. 5, p. 632-7, set./out. 2004<br />
Bevilacqua, M. C., Costa Filho, O. A., Martinho, A. C. F. Implante Coclear. In: Ferreira, L.<br />
P., Befi-Lopes, D.; Limongi, S. C. (Org.). Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong> Fonoaudiologia. São Paulo: Roca,<br />
2004, p. 751-61.<br />
Brasil. Ministério da Saú<strong>de</strong>. Da<strong>do</strong>s e indica<strong>do</strong>res. 2005. Disponível em:<br />
.<br />
Acesso em: 04 out. 2005.<br />
Brasil. Ministério da Saú<strong>de</strong>. Da<strong>do</strong>s Estatísticos – Censo 2000. Disponível em:<br />
http://portal.sau<strong>de</strong>.gov.br/portal/sas/sapd/visuaçizar_texto.cfm?idxt=21458&janela=1<br />
Acesso em: 04 out. 2005.<br />
Brasil. Ministério da Saú<strong>de</strong>. Secretaria <strong>de</strong> Atenção à Saú<strong>de</strong>. Departamento <strong>de</strong> Ações Programáticas<br />
Estratégicas. Manual <strong>de</strong> legislação em saú<strong>de</strong> da pessoa com <strong>de</strong>ficiência / Ministério<br />
da Saú<strong>de</strong>, Secretaria <strong>de</strong> Atenção à Saú<strong>de</strong>, Departamento <strong>de</strong> Ações Programáticas<br />
Estratégicas. – 2. ed. rev. atual.– Brasília : Editora <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong>, 2006.<br />
Brasil. Ministério da Saú<strong>de</strong>. Secretaria <strong>de</strong> Atenção à Saú<strong>de</strong>. Departamento <strong>de</strong> Ações Programáticas<br />
Estratégicas. Manual <strong>de</strong> legislação em saú<strong>de</strong> da pessoa com <strong>de</strong>ficiência / Ministério<br />
da Saú<strong>de</strong>, Secretaria <strong>de</strong> Atenção à Saú<strong>de</strong>, Departamento <strong>de</strong> Ações Programáticas<br />
Estratégicas. – 2. ed. rev. atual.– Brasília : Editora <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong>, 2006.<br />
Brasil. Portaria nº 2.073/GM, <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2004. Institui a Política Nacional <strong>de</strong><br />
Atenção à Saú<strong>de</strong> Auditiva.<br />
Brockmeier, S. J. Comparison of musical activities of cochlear implant users with different<br />
speech-coding strategies. Ear Hear, 2007, 28(2 suppl.): 49S-51S.<br />
Campos, P. D. et al. Habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nação temporal em usuários <strong>de</strong> implante coclear<br />
multicanal. Revista Brasileira <strong>de</strong> Otorrinolaringologia, São Paulo 74 (6) Nov. / Dez. 2008,<br />
p. 884-9.<br />
Capovilla, F. C. O implante coclear como ferramenta <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento lingüístico para a<br />
criança surda. Rev. Bras. Cresc. <strong>de</strong>senvolv. hum., 1998, 8 (1/2): p. 76-88<br />
Cervellini, Nadir Haguiara – A musicalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> sur<strong>do</strong>: Representação e estigma. São Paulo:<br />
69
70<br />
Plexos, 2003.<br />
Cuddy, Lola L.; Upitis, Rena. Percepção Auditiva. In: Colwell, R. (Ed.). Handbook of Research<br />
on Music Teaching and Learning. New York : Schirmer Books, 1992, p. 333-343.<br />
Cutietta, R. A. Language and music programs. Update: The applications of Research in Music<br />
Education n. 9,1996a., p. 26-31.<br />
Freire, Katya Guglielmi Marcon<strong>de</strong>s. Treinamento auditivo musical: uma proposta para i<strong>do</strong>sos<br />
usuários <strong>de</strong> próteses auditivas. Tese. São Paulo: Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> São Paulo, 2009.<br />
Frota, S. Pereira, L. D. A importância <strong>do</strong> processamento auditivo para a leitura e a escrita. In:<br />
Frota, S; Goldfeld, M. Enfoques em audiologia e sur<strong>de</strong>z. São Paulo: AM3; 2006. p. 87-<br />
121.<br />
Frota, S. Avaliação básica da audição. In: Frota, S. Fundamentos em Fonoaudiologia. Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro: Guanabara Koogan, 1998, p. 41-59.<br />
Frota, S.; Sampaio, F. Logoaudiometria. In: Frota, S. Fundamentos em Fonoaudiologia. Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro: Guanabara Koogan, 1998, p. 61-68.<br />
Gardner, R. Social Psychology and Second Language Learning: The role of attitu<strong>de</strong>s and Motivation.<br />
Edward Arnold, 1985.<br />
Gfeller, K.; Witt, S.; Adamek, M.; Mehr, M.; Rogers, J.; Stordahl, J.; Ringgenberg, S. Effects<br />
of training on timbre recognition and appraisal by postlingually <strong>de</strong>afened cochlear implant<br />
recipients. J. Am. Acad. Audiol., v. 13, n. 3, mar. 2002. p. 132-145.<br />
Gil, D. Treinamento auditivo formal em adultos com <strong>de</strong>ficiência auditiva [tese]. São Paulo:<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> São Paulo; 2006.<br />
Gil, D.; et al. Efeito <strong>do</strong> treinamento auditivo para a percepção musical nos testes <strong>de</strong> padrão<br />
<strong>de</strong> freqüência e duração. Acta Awho, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 64-67, abr.-jun. 2000.<br />
Gómez, M. V. S. G. et al. Critérios <strong>de</strong> Seleção e Avaliação Médica e Audiológica <strong>do</strong>s Candidatos<br />
ao Implante Coclear: Protocolo HC-FMUSP. Rev. Bras. Otorrinolaringol., 2004,<br />
8(4), p. 295.<br />
Gregory, A. The roles of music in society: the ethnomusicological perspective. In The social<br />
psychology of music. In: Hargreaves, D. J.; North, A. C. (Org.) Oxford: Oxford University<br />
Press. 1998. p. 123-140.<br />
Hirsh, I. J. Auditory perception of temporal or<strong>de</strong>r. J Acoust Soc Am, v. 31, n. 6, p. 759-767,<br />
1959.<br />
Ilari, B. On musical parenting of babies and young children: Musical behaviors of mothers<br />
and infants. Early Child Development and Care (no prelo).<br />
Ilari, B.; Majlis, P. Children’s songs around the world: An interview with Francis Corpataux.<br />
Music Education International, n.1, 2002., p. 3-14.<br />
Ilari, B.; Polka, L. Infants’ preferences for musical timbre and texture: A report from two experiments.<br />
Early Child Connections (no prelo).<br />
Ilary, B. S. (Org.) Em busca da mente musical: Ensaio sobre os processos cognitivos em música<br />
– da percepção à produção. Curitiba: Ed. UFPR, 2006, p.45-95.<br />
Iorio, M. C. M. Estu<strong>do</strong> comparativo da seleção e <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> próteses auditivas analógicas<br />
e digitalmente programáveis. In: BEHLAU, M. Fonoaudiologia Hoje. São Paulo, Socieda<strong>de</strong><br />
Brasileira <strong>de</strong> Fonoaudiologia & Editora Lovise, 1995.<br />
Jacob, L. C.B.; Alvarenga, K. F.; Zeigelboim, B. S. Avaliação audiológica <strong>do</strong> sistema nervoso
auditivo central. Arq. Int. Otorrinolaringol. 2000; 4(4) p. 144-51. Disponível em:<br />
. Acesso em 18<br />
jan. 2008.<br />
Kalatzis, V.; Petit, C. The Fundamental and Medical Impacts of Revent Progress in Research<br />
on Hereditary Hearing Loss. Hum. Mol. Genet. Rev., 7(10) p. 1589-97, 1998.<br />
Klagenberg, K. F., Ribas, A, Basseto, J. M., Novak, V. Resulta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> teste “Staggered Spondaic<br />
Words” em usuários <strong>de</strong> próteses auditivas. Rev. Soc. Bras. Fonoaudiol., 2005; 10(2): p.<br />
106-110.<br />
Koelsch, S. Neural substrates of processing syntax and semantics in music. Current Opinion<br />
in Neurobiology, n. 15, 2005, p. 207-212.<br />
Levitin, D. J.; Menon, V. Musical structure is processed in “language” areas of the brain: a<br />
possible role for Brodmann Area 47 in temporal coherence NeuroImage. n. 20, 2003, p.<br />
2142-2152.<br />
Lima, S. F. P; Santos, C. M. S. Treinamento Auditivo com adulto usuário <strong>de</strong> Implante Coclear.<br />
Trabalho <strong>de</strong> Conclusão <strong>do</strong> curso <strong>de</strong> Fonoaudiologia <strong>do</strong> Centro Universitário Metodista<br />
Izabela Hendrix. Belo Horizonte, 2007.<br />
Marin, O. S. M.; Perry, D. W. Neurological aspects of music perception and performance. In:<br />
Deutsch, D. The psychology of music, (Ed.). p. 653-724. San Diego: Aca<strong>de</strong>mic Press,<br />
1999.<br />
Marin, O. S. M.; Perry, D. W. Neurological aspects of music perception and performance. In:<br />
Deutsch, D. The psychology of music, (Org.). p. 653-724. San Diego: Aca<strong>de</strong>mic Press,<br />
1999.<br />
Mencher, G.T. Challenge of Epi<strong>de</strong>miological Research in the Developing World: Overview.<br />
Audiology, 2000, p. 178-183. [Medline]<br />
Musiek, F. E. et al. The GIN (Gaps-in-Noises) Test Performance in Subjects With and Without<br />
Confirmed Central Auditory Nervous System Involvement. Ear and Hearing, v. 26,<br />
n. 6, p. 608-618, <strong>de</strong>z. 2005.<br />
Nakata, T. et al. Music Recognition by Children with Implants. J Physiol Anthropol Appl<br />
Human Sci, 24, p. 29-32, 2005.<br />
Northern, J. L.; Downs. M. P. Audição na infância. 5a ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Guanabara Koogan;<br />
2002.<br />
Patel et al. Processing Prosodic and Musical Patterns: A Neuropsychological Investigation.<br />
Brain and Language, n. 61, 1998, p. 23-144.<br />
Pereira, L. D.; Cavadas, M. Processamento Auditivo Central. In: Frota, S., (Org.). Fundamentos<br />
em fonoaudiologia: audiologia. 2. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Guanabara Koogan, 2003. p.<br />
135-160.<br />
Pereira, L. D. Sistema auditivo e <strong>de</strong>senvolvimento das habilida<strong>de</strong>s auditivas. In: Ferreira, L. P.<br />
et al. Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong> Fonoaudiologia. São Paulo: Roca, 2005, p. 547-552.<br />
Pereira, L. D. Processamento Auditivo Central: abordagem passo a passo. In: Pereira, L. D.;<br />
Schochat, E. Processamento auditivo central: manual <strong>de</strong> avaliação. São Paulo: Lovise, 1997.<br />
Cap. 5, p. 49-59.<br />
Pinheiro, M.; Musiek, E. Assessment of Central Auditory Dysfunction: Foundations and Clinical<br />
Correlates. Baltimore: Williams & Wilkins, 1985.<br />
Ramos, C. S.; Pereira, L. D. Processamento auditivo e audiometria <strong>de</strong> altas freqüências em<br />
71
72<br />
escolares <strong>de</strong> São Paulo. Pró-Fono Revista <strong>de</strong> Atualização Científica. Barueri (SP), v. 17, n.<br />
2, p. 153-164, maio-ago. 2005.<br />
Rizzi, F. M. L.; Bevilacqua, M. C. Efeito <strong>do</strong> número e localização <strong>do</strong>s eletro<strong>do</strong>s na cóclea na<br />
percepção da fala <strong>de</strong> indivíduos pós-linguais implanta<strong>do</strong>s. São Paulo: Rev. Bras. Otorrinolaringol.,<br />
2003. 69(3), p. 364-369.<br />
Santos, T. M. M; Russo, I. P. Prática <strong>de</strong> Audiologia Clínica. São Paulo: 6. Ed. Cortez, 2007,<br />
p.281.<br />
Schochat, E. Avaliação <strong>do</strong> processamento auditivo: revisão da literatura. Rev. Bras. Med. Otorrinolaringol<br />
5, n. 1, p. 24-31, 1998.<br />
Silveira et al. Tonalida<strong>de</strong> (Pitch) e Processamento Auditivo. In: Aquino, Antonio Maria Claret<br />
Marra <strong>de</strong>. Processamento auditivo: eletrofisiologia & psicoacústica. São Paulo: Lovise,<br />
2002. 176 p.<br />
Sloan, C. Introduction: What is Auditory Processing? Why is It Impor tant? In: ______.<br />
Treating Auditory Processing Difficulties in Children. San Diego: Singular Publishing<br />
Group, 1986. p. 1-4.<br />
Sloboda, John A. Música como linguagem In: Wilson, Frank; Roermann, Franz L. Music and<br />
child <strong>de</strong>velopment. St. Louis, MO: MMB Music Inc., 1997.)<br />
Taborga-Lizarro, M. B. L. Processos temporais auditivos em músicos <strong>de</strong> Petrópolis [monografia].<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro: Universida<strong>de</strong> Católica <strong>de</strong> Petrópolis, 1999. In: Batista, Pollyanna<br />
Barros. Relação entre a auto-percepção da aprendizagem <strong>do</strong> inglês, avaliação <strong>do</strong>s aspectos<br />
auditivos temporais e consciência fonológica. Belo Horizonte, 2009, p. 29.<br />
Thompson, W. F.; Scjellenberg, E. G.; Husain, G. Perceben<strong>do</strong> prosódia no discurso: Efeitos<br />
<strong>de</strong> aulas <strong>de</strong> música. Annals of the New York Aca<strong>de</strong>my of Sciences, 999, 2003, p. 530-532.<br />
Trainor, L. J. Infant preferences for infant-directed versus non-infant directed playsongs and<br />
lullabies. Infant Behavior & Development 19, 1996, p. 83-92.<br />
Trehub, S. E.; Schellenberg, E .G. Music: Its relevance to infants. Annals of Child Development<br />
11, 1995, p. 1-24.<br />
Trevarthen, C. Origins of musical i<strong>de</strong>ntity: evi<strong>de</strong>nce from infancy from social awareness. In:<br />
Mac<strong>do</strong>nald, R.; Hargreaves, D.; Miell, D. (Org.) Musical I<strong>de</strong>ntities. Oxford: Oxford University<br />
Press, 2001, p. 21-40.<br />
Werner, L. A.; Van<strong>de</strong>nbos, G. R. Developmental psychoacoustics: what infants and children<br />
hear. Hospital and Community Psychiatry 44, p. 624-626, 1993<br />
Wuytack, J.; Palheiros. G. Audição Musical Activa. Porto: Associação Wuytack <strong>de</strong> Pedagogia<br />
Musical, 1995.
Critérios analíticos perceptivos para a o estu<strong>do</strong> da textura<br />
basea<strong>do</strong>s em correntes auditivas<br />
e sua relação com a forma musical<br />
Jorge Alberto Falcón<br />
jorgef@musician.org<br />
PPGM – Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Paraná<br />
Resumo<br />
Sugerem-se aqui alguns critérios analíticos para a análise das texturas em música. A abordagem<br />
para o trabalho se realiza com base em princípios cognitivos, primordialmente na<br />
interpretação perceptiva das ca<strong>de</strong>ias auditivas que geram planos sonoros e os tipos <strong>de</strong><br />
vínculos que se produzem entre eles para conformar texturas. Analisan<strong>do</strong> a matéria sonora<br />
e os critérios <strong>de</strong> organização <strong>do</strong>s materiais, po<strong>de</strong>mos estabelecer alguns princípios (integração,<br />
in<strong>de</strong>pendência e subordinação) que estruturam sistemicamente a arquitetura musical.<br />
Finalmente consi<strong>de</strong>ra-se a variável complexida<strong>de</strong>-simplicida<strong>de</strong> e sua resultante<br />
perceptiva <strong>de</strong> tensão-relaxamento e a variável permanência-mudança em função da evolução<br />
temporal na relação da textura com a forma musical. Há exemplos <strong>de</strong> aplicação<br />
<strong>de</strong>stes conceitos.<br />
Palavras chave<br />
Análise musical, ca<strong>de</strong>ias auditivas, textura, cognição, Gestalt.<br />
Este estu<strong>do</strong> sobre textura musical visa propor critérios analíticos que consigam, por<br />
meio da análise perceptiva, estabelecer conceitos sóli<strong>do</strong>s para a categorização da matéria<br />
sonora e sua organização, e da interpretação pelo cérebro em unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>.<br />
Primeiramente <strong>de</strong>vemos estabelecer uma <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> objeto a estudar. Para isto<br />
usaremos uma <strong>de</strong>finição ampla e genérica <strong>de</strong> Textura, baseada nos conceitos <strong>de</strong> Enrique<br />
Belloc:<br />
Textura é a resultante da qualida<strong>de</strong> da matéria sonora e os mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> organização<br />
a que esta é submetida.<br />
Para o estu<strong>do</strong> da matéria sonora se aproveitarão os trabalhos <strong>de</strong> P. Schaeffer (1988)<br />
e M. Chion (2009) sobre a tipo-morfologia <strong>do</strong> objeto sonoro.<br />
Os mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> organização referem-se a:<br />
1. Quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> planos sonoros;<br />
2. Hierarquias existentes entre os planos sonoros;<br />
3. Critérios <strong>de</strong> relacionamento entre eles;<br />
4. Evolução e comportamento no tempo das unida<strong>de</strong>s texturais (<strong>do</strong>ravante <strong>de</strong>nominadas<br />
UT).1<br />
73
74<br />
É necessário <strong>de</strong>finir plano sonoro da maneira mais exata possível, porque este conceito<br />
será fundamental para to<strong>do</strong> o trabalho.<br />
Chamaremos plano sonoro — <strong>do</strong>ravante PS — ao som ou conjunto <strong>de</strong> sons que por<br />
causa da sua constituição psicoacústica (natureza da sua conformação tipo-morfológica)<br />
ou sua função (sons <strong>de</strong> diferentes características tipo-morfológicas que se relacionam<br />
por igualda<strong>de</strong> ou semelhança <strong>de</strong> comportamento ou principio <strong>de</strong> ação) são<br />
percebi<strong>do</strong>s como uma unida<strong>de</strong> funcional e <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro da textura da música.<br />
Em alguns instrumentos, como a bateria, é possível reconhecer perceptivamente a<br />
coexistência <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> um PS <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a ser um instrumento forma<strong>do</strong>, por sua vez,<br />
por vários instrumentos <strong>de</strong> características tímbricas diferentes como se po<strong>de</strong> ver na<br />
figura 1:<br />
Fig.1 — <strong>do</strong>is primeiros compassos da bateria da música Kashmir <strong>de</strong> Led Zeppelin.<br />
Neste fragmento, é possível reconhecer quatro planos superpostos, correspon<strong>de</strong>n<strong>do</strong><br />
a (1) prato <strong>de</strong> ataque (crash), (2) chimbal (hi-hat), (3) caixa (snare drum) e (4)<br />
bumbo (kick drum). Todavia <strong>de</strong>vem-se fazer algumas consi<strong>de</strong>rações já que é possível<br />
observar que ocupam diferentes espaços registrais, além <strong>de</strong> ser possível agrupá-los<br />
em <strong>do</strong>is pares <strong>de</strong> planos sonoros por questões <strong>de</strong> espessura, riqueza e cor tímbrica :<br />
(1) PSs 1 e 2 e (2) PSs 3 e 4.<br />
Assim reconhecem-se PSs <strong>de</strong> características diferentes. Isto é possível porque interpretamos<br />
e segregamos as diferentes correntes auditivas <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> às características<br />
tipo-morfologicas <strong>do</strong>s sons que a constituem. Bregman (apud Levitin, 2007) chama<br />
isto <strong>de</strong> enca<strong>de</strong>amento perceptivo pelo timbre (streaming by timbre, no original em<br />
inglês).2 Nosso cérebro segrega ou integra em duas or<strong>de</strong>ns: simultânea e sucessivamente.<br />
A integração ou segregação na simultaneida<strong>de</strong> representa a maneira pela<br />
qual discriminamos sons que se manifestam, por motivos <strong>de</strong> harmonicida<strong>de</strong> ou constituição<br />
espectral, como eventos diferencia<strong>do</strong>s que conformam, ao se <strong>de</strong>senvolverem<br />
no tempo, correntes auditivas espectrais coerentes.<br />
1. Mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> organização da matéria sonora: quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> planos sonoros.<br />
Nosso cérebro tem a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconhecer e diferenciar a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> PSs<br />
existentes num trecho musical. É possível ter <strong>de</strong> um a centenas <strong>de</strong> PSs superpostos,<br />
porém a informação sobre quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> planos se apresenta mais significativa se<br />
associada ao tipo <strong>de</strong> vínculo relacional existente entre estes PSs.<br />
A menor quantida<strong>de</strong> possível <strong>de</strong> PSs é um. Este tipo foi <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> tradicionalmente<br />
<strong>de</strong> monofonia ou monodia. Todavia é possível percebermos, em algumas situações<br />
monódicas, a existência virtual <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> uma corrente auditiva ou PS. Este<br />
fenômeno é chama<strong>do</strong> <strong>de</strong> polifonia figurada ou virtual. Este recurso é muito usa<strong>do</strong>
por músicos barrocos em obras para instrumentos solos, como as suítes para cello<br />
<strong>de</strong> J. S. Bach e por guitarristas como Angus Young em Thun<strong>de</strong>rstruck e outros músicos<br />
<strong>de</strong> hard rock ou classic rock como Ingwie Malmsteen ou Ritchie Blackmore.<br />
2. Mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> organização da matéria sonora:<br />
hierarquias existentes entre os planos sonoros.<br />
Nem to<strong>do</strong>s os PSs se apresentam à nossa percepção com a mesma importância. Alguns<br />
planos parecem estar numa posição superior <strong>de</strong> hierarquia perceptiva que outros.<br />
Isto se po<strong>de</strong> ser explica<strong>do</strong> <strong>de</strong> várias maneiras:<br />
• Um PS aparece ressalta<strong>do</strong> à nossa percepção quan<strong>do</strong> possui informação em<br />
maior quantida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> melhor qualida<strong>de</strong> comparativamente com outro <strong>de</strong><br />
quantida<strong>de</strong> e qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> informação menor ou mais pobre. Belkin (1999)<br />
afirma que complexida<strong>de</strong>, novida<strong>de</strong>, volume e riqueza tímbrica são dimensões<br />
que usualmente hierarquizam um PS superiormente a outro.<br />
• Nosso cérebro tem tendência à economia <strong>de</strong> esforços. Unida<strong>de</strong>s gestálticas mais<br />
compactas, claras, fechadas e simples ten<strong>de</strong>m a ser percebidas com mais facilida<strong>de</strong>.<br />
• O que a Gestalt chama <strong>de</strong> experiência anterior faz com que um objeto conheci<strong>do</strong>,<br />
que aparece junto a um material menos familiar, se perceba como mais importante,<br />
pela associação ao objeto já assimila<strong>do</strong> previamente. Desta maneira o cérebro<br />
não tem que fazer um esforço <strong>de</strong> interpretação extra, recuperan<strong>do</strong> as<br />
significações extraídas <strong>do</strong> objeto numa oportunida<strong>de</strong> previa. Isto parece contraditório,<br />
com a idéia <strong>de</strong> Belkin exposta anteriormente, sobre a novida<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />
material, assunto que será esclareci<strong>do</strong> mais adiante.<br />
• No caso da música, por ser um fenômeno que precisa <strong>do</strong> tempo para acontecer,<br />
também po<strong>de</strong>mos acrescentar a variável evolução temporal. Krumhansl (2000)<br />
afirma que a organização perceptiva <strong>de</strong> padrões temporais só é possível sem necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> apelar à memória numa faixa limitada <strong>de</strong> tempo (até 5 seg.).3 Assim,<br />
gestalts que duram mais <strong>do</strong> que este perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> tempo são processadas mais <strong>de</strong>moradamente<br />
e com maior dificulda<strong>de</strong>, per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> seu lugar <strong>de</strong> figura hierarquizada,<br />
enquanto figuras <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sses limites temporais são interpretadas mais<br />
fácil e rapidamente.4<br />
• Quan<strong>do</strong> estamos frente a um exemplo como um lied <strong>de</strong> Schubert, po<strong>de</strong>mos<br />
comprovar que os PSs que incluem texto possuem um nível semântico diferente<br />
ao carregar em si a significação da palavra. Isto é, visto <strong>de</strong> outra maneira, um PS<br />
com informação diferenciada quantitativa e qualitativamente.<br />
Para organizar os critérios hierárquicos entre PSs utilizaremos a abreviatura Hier1<br />
para o PS mais importante, Hier2 para o segun<strong>do</strong> em importância perceptiva e assim<br />
por diante, sen<strong>do</strong> o último da numeração o menos hierarquiza<strong>do</strong>.<br />
Assim, é muito freqüente a superposição <strong>de</strong> vários PSs com diferentes hierarquias.<br />
As relações hierárquicas entre PSs <strong>de</strong> um trecho musical não são fixas, <strong>de</strong>finitivas,<br />
nem estáticas. É muito freqüente a troca <strong>de</strong> hierarquias <strong>de</strong> um PS passan<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma<br />
75
76<br />
Hier1 a outra menos importante. Na textura chamada tradicionalmente <strong>de</strong> polifonia,<br />
e sobretu<strong>do</strong> na polifonia contrapontística da alta Ida<strong>de</strong> Média e <strong>do</strong> Renascimento,<br />
são muito comums texturas com vários PSs trocan<strong>do</strong> <strong>de</strong> hierarquia permanentemente<br />
sem <strong>de</strong>finir claramente um plano hierarquiza<strong>do</strong> por sobre os outros. Os primeiro<br />
20 segun<strong>do</strong>s na interpretação <strong>de</strong> The Consort of Musicke <strong>do</strong> madrigal Gioite<br />
voi col canto <strong>de</strong> Carlo Gesual<strong>do</strong>, <strong>do</strong> V Libro <strong>de</strong>i Madrigali, é um exemplo <strong>de</strong> cinco<br />
PSs que alternam permanentemente hierarquias e pre<strong>do</strong>minâncias perceptivas.<br />
3. Mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> organização da matéria sonora:<br />
vínculos e critérios <strong>de</strong> relacionamento entre PSs num trecho musical.<br />
Quan<strong>do</strong> num trecho musical coexistem <strong>do</strong>is ou mais PSs po<strong>de</strong>mos ter duas situações:<br />
as hierarquias perceptivas entre PSs serão diferentes ou iguais.<br />
Na primeira situação, algum <strong>de</strong>les se apresentará ressalta<strong>do</strong> perceptivamente. Aquele<br />
que tiver informação mais interessante quantitativa ou qualitativamente, gestalts<br />
mais claras e fáceis <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r, novida<strong>de</strong>, ou referência a algo conheci<strong>do</strong>5 será prioriza<strong>do</strong><br />
por nossa percepção como mais importante <strong>do</strong> que outro. Esta configuração<br />
textural será chamada <strong>de</strong> figura-fun<strong>do</strong>, analogamente a fenômenos perceptivos visuais.<br />
Denominaremos assim, então, <strong>de</strong> subordinação ao critério <strong>de</strong> relacionamento no<br />
qual uma figura se apresenta hierarquizada (Hier1) por sobre o fun<strong>do</strong>, subordina<strong>do</strong><br />
perceptivamente à figura principal (Hier2).<br />
Quan<strong>do</strong> as hierarquias entre os PSs são iguais se apresentam duas situações: (1) os<br />
PSs são muito pareci<strong>do</strong>s tipo-morfologicamente e/ou compartilham algum mo<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> ação ou comportamento que os unifica; ou (2) se manifestam como objetos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />
tipo-morfologicamente e/ou diferem no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> ação ou comportamento.<br />
No primeiro caso estamos frente a uma situação <strong>de</strong> integração. Este critério <strong>de</strong>screve<br />
vários PSs agin<strong>do</strong> uniformemente <strong>de</strong> uma maneira articulada e em plano <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong>.<br />
A situação mais freqüente se apresenta quan<strong>do</strong> os PSs (isotímbricos ou não)<br />
se articulam simultaneamente. Os primeiro 14 segun<strong>do</strong>s da Boemian Rhapsody <strong>do</strong><br />
Queen, a secção A da música Flagolet <strong>do</strong> grupo Oregon, o Ach wie flüchtig, ach wienichtig,<br />
BWV 26 <strong>de</strong> J. S. Bach e os primeiros 12 compassos da “Gran<strong>de</strong> porta <strong>de</strong><br />
Kiev” <strong>de</strong> Quadros <strong>de</strong> uma exposição <strong>de</strong> M. Mussorgsky são exemplos <strong>de</strong> textura <strong>de</strong><br />
blocos sonoros em diferentes contextos: tonal-livre6 (Queen), atonal (Oregon),<br />
tonal-contrapontístico (Bach), tonal-modal (Mussorgsky).7 Outras situações texturais<br />
<strong>de</strong> integração, como no caso <strong>de</strong> tramas, movimento <strong>de</strong> linhas integradas ou massas<br />
sonoras, envolvem PSs caracterizan<strong>do</strong> movimentos horizontais simultâneos, sem<br />
que nenhum <strong>de</strong>les seja a priori hierarquiza<strong>do</strong> perceptivamente.8<br />
Quan<strong>do</strong> os PSs manifestam-se como hierarquicamente iguais, embora seja perceptivamente<br />
clara a diversida<strong>de</strong> material ou <strong>de</strong> comportamento, temos um tipo <strong>de</strong> textura<br />
on<strong>de</strong> os PSs estão vincula<strong>do</strong>s pelo critério <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência. O começo <strong>do</strong>
supracita<strong>do</strong> moteto <strong>de</strong> C. Gesual<strong>do</strong>, a secção B da música Flagolet <strong>do</strong> grupo Oregon,<br />
os compassos 52 a 65 da Grosse Fugue op. 133 <strong>de</strong> L. van Beethoven são exemplos <strong>de</strong><br />
in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> PSs em música modal (Gesual<strong>do</strong>), atonal (Oregon) e tonal (Beethoven).<br />
Assim chegamos a i<strong>de</strong>ntificar três critérios <strong>de</strong> relacionamento entre PSs que servirão<br />
como eixo <strong>do</strong> nosso trabalho sobre texturas: (1) o <strong>de</strong> integração (Cint), (2) o <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência<br />
(Cind) e (3) o <strong>de</strong> subordinação (Csub).<br />
Basea<strong>do</strong>s nesta idéia <strong>de</strong> critérios <strong>de</strong> relacionamentos, po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>senvolver uma tipologia<br />
<strong>de</strong> texturas básicas e uma <strong>de</strong> texturas <strong>de</strong>rivadas que consi<strong>de</strong>ram: critério <strong>de</strong><br />
relacionamentos entre PSs e hierarquias entre eles. Apresentam-se, nas tabelas seguintes,<br />
os tipos básicos e <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s <strong>de</strong> texturas e sua correspon<strong>de</strong>nte exemplificação<br />
em músicas existentes, além <strong>de</strong> uma referência à terminologia tradicional.9<br />
Tabela 1.1 — Texturas básicas<br />
Critério <strong>de</strong><br />
relacionamento<br />
Definição:<br />
Tipo textural<br />
Figura-fun<strong>do</strong><br />
Terminologia<br />
tradicional<br />
Melodia acompanhada/<br />
Textura homofônica<br />
Subordinação (Csub)<br />
Textura homofônica<br />
Figura-fun<strong>do</strong><br />
por variações simultâneas<br />
ou por tratamento<br />
heterofônico<br />
Integração (Cint) Blocos sonoros Homorritmia/textura<br />
acordal<br />
In<strong>de</strong>pendência<br />
(Cind)<br />
Exemplos<br />
Yesterday – The Beatles<br />
Lachen und Wienen, <strong>de</strong> F.<br />
Schubert<br />
Esh Dany Lik (Shaby Marroquí),<br />
<strong>de</strong> Douglas Felis<br />
Secção A <strong>de</strong> Flagolet, Oregon.<br />
Prelúdio no. 4 para violão, <strong>de</strong><br />
H. Villa Lobos<br />
Trama Quarteto no. 1 <strong>de</strong> K.<br />
Pen<strong>de</strong>recki<br />
(3:14 a 3:39 min.)<br />
Massa sonora Micropolifonia Atmospheres, <strong>de</strong> G. Ligeti<br />
Linhas integradas Textura polifônica<br />
Linhas<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />
Camadas<br />
superpostas<br />
Contraponto/Textura<br />
polifônica<br />
A Nightingale Sang in Berkeley<br />
Square na versão <strong>de</strong> Manhattan<br />
Transfer.(0:00 a 0:49 min.)<br />
Because, <strong>de</strong> Lennon e MccCartney,<br />
na versão <strong>do</strong> remix LOVE,<br />
<strong>de</strong> G. Martin<br />
Gioite voi col canto <strong>de</strong> Carlo<br />
Gesual<strong>do</strong> (como cita<strong>do</strong> anteriormente)<br />
– Coro, <strong>de</strong> L. Berio<br />
Gruppen, <strong>de</strong> K. Stockhausen.<br />
Canto esquimó,<br />
segun<strong>do</strong> J. J. Nattiez.10<br />
Chamamos texturas <strong>de</strong>rivadas a aquelas que são variações <strong>de</strong> alguma textura básica<br />
ou que combinam mais <strong>de</strong> um critério <strong>de</strong> relacionamento.<br />
77
78<br />
Definição:<br />
Tipo textural<br />
Bloco-linha Arpejos<br />
Linhas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />
na organização, mas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
nos materiais.<br />
Linha multidimensional<br />
ou heterogênea<br />
Pontilhismo<br />
homogêneo<br />
Pontilhismo heterogêneo<br />
Tabela 1.2 — Texturas <strong>de</strong>rivadas<br />
Combinações <strong>de</strong> texturas<br />
Freqüentemente nos encontramos com situações texturais mais complexas <strong>do</strong> que<br />
os tipos <strong>de</strong>scritos até o momento. Esta complexida<strong>de</strong> é dada por <strong>do</strong>is motivos:<br />
Superposição <strong>de</strong> texturas básicas<br />
Mistura <strong>de</strong> texturas /<br />
texturas homogêneas<br />
Definição tradicional Critério <strong>de</strong><br />
relacionamento<br />
O arpejo tem gênese <strong>de</strong> bloco<br />
sonoro, mas ele se encontra <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra<strong>do</strong><br />
no tempo.<br />
Po<strong>de</strong>m ser ressonantes ou não.11<br />
Heterofonia Superposição mais ou menos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
<strong>do</strong>s mesmos materiais<br />
(in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
ação ou comportamento e integração<br />
por similitu<strong>de</strong> <strong>do</strong>s materiais)<br />
Klangfarben-melodie,<br />
melodia <strong>de</strong> timbres, polifonia<br />
obliqua<br />
“Nuvens” <strong>de</strong> sons pontuais.<br />
Combinação entre os<br />
<strong>do</strong>is últimos<br />
Linha que perceptivamente se<br />
<strong>de</strong>sloca entre planos <strong>de</strong> diferentes<br />
características materiais<br />
Tipo <strong>de</strong> trama esparsa e irregular,<br />
com pouca ou nenhuma varieda<strong>de</strong><br />
tímbrica<br />
As linhas se estabelecem entre<br />
dimensões sonoras ou PSs diferentes.<br />
Exemplos<br />
Prelúdio no. 1 <strong>do</strong> Cravo bem<br />
Tempera<strong>do</strong> <strong>de</strong> J. S. Bach<br />
Música <strong>de</strong> jivaros (Ecua<strong>do</strong>r)<br />
como no CD Voices of the world,<br />
faixa 2.<br />
Five Pieces for Orchestra (Op.<br />
16) <strong>de</strong> A. Schoenberg<br />
Five Pieces for orchestra, op. 10<br />
<strong>de</strong> A. Webern.<br />
Mo<strong>de</strong> <strong>de</strong> valeurs et d’intensités <strong>de</strong><br />
O. Messiaen<br />
Variations for piano, op. 27 <strong>de</strong> A.<br />
Webern<br />
Tone twilight zone, <strong>de</strong> Cornelius.<br />
Textura cumulativa — Superposição progressiva <strong>de</strong> PSs. Bolero, <strong>de</strong> M. Ravel<br />
Birinites nigths, <strong>de</strong> Beat dada<br />
(2:10 a 3:41 min.)<br />
As texturas superpostas po<strong>de</strong>m ser analisadas como<br />
a superposição <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> um tipo básico, <strong>de</strong> mais<br />
<strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>, ou a superposição <strong>de</strong> básicos<br />
e <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s.<br />
É freqüente nos encontramos com misturas <strong>de</strong> texturas<br />
que não obe<strong>de</strong>cem a algum tipo <strong>de</strong> textura <strong>de</strong>termina<strong>do</strong><br />
ou que apresentam características <strong>de</strong><br />
mudanças permanentes <strong>de</strong> textura que não permitem<br />
estabelecer algum tipo <strong>de</strong> padronização e conseqüentemente<br />
uma <strong>de</strong>scrição sistemática e<br />
orgânica.12 Chamaremos estas situações texturais<br />
<strong>de</strong> texturas mistas ou heterogêneas.<br />
4. Mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> organização da matéria sonora:<br />
O comportamento da matéria sonora e sua organização na variável tempo.<br />
Quan<strong>do</strong> uma situação textural se apresenta à nossa percepção como <strong>de</strong>finida, clara,
estável, reconhecível como uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> durante um perío<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>rável<br />
<strong>de</strong> tempo será chamada <strong>de</strong> Unida<strong>de</strong> Textural (<strong>do</strong>ravante UT). A primeira seção <strong>do</strong><br />
segun<strong>do</strong> movimento da Sonata no. 2 <strong>de</strong> L. V. Beethoven se apresenta como uma<br />
UT uniforme, já na primeira secção <strong>do</strong> primeiro mov. da sonata op. 53 (Waldstein)<br />
é possível reconhecer quatro UTs sucessivas diferenciadas.<br />
Quanto ao comportamento no tempo das texturas po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar duas categorias:<br />
• Unida<strong>de</strong>s texturais estáveis (<strong>do</strong>ravante UTe);<br />
• Unida<strong>de</strong>s texturais dinâmicas (<strong>do</strong>ravante UTd).<br />
As UTe são unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> que mantém sua conformação <strong>de</strong> materiais e sua<br />
organização.<br />
As UTd são aquelas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> que, por meio da transformação <strong>do</strong>s materiais<br />
ou <strong>do</strong>s processos organizacionais, conduzem a uma constituição textural diferente.<br />
Wishart (1996) propõe uma classificação semelhante a nossa: (1) sistemas estruturalmente<br />
estáveis; e (2) sistemas estruturalmente instáveis. Os primeiros <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s<br />
como secções com “pequenos <strong>de</strong>svios das condições iniciais que conduzem a pequenos<br />
<strong>de</strong>svios no final (outcome) da secção”; e os segun<strong>do</strong>s como possuin<strong>do</strong> “pequenos<br />
<strong>de</strong>svios das condições iniciais que conduzem a finais <strong>de</strong> secção<br />
completamente diferentes”. Não encontramos em Wishart referência alguma a sistemas<br />
que possuam pequenos ou gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>svios que retornam à configuração original.<br />
Para nossa classificação utilizaremos a acepção <strong>de</strong> UTd <strong>de</strong> características cíclicas.<br />
Relação das UTs com processos formaliza<strong>do</strong>res<br />
A relação permanência/mudança em relação a texturas é um fator importantíssimo<br />
na estruturação formal <strong>de</strong> uma peça musical, e a <strong>de</strong>codificação <strong>de</strong>stes comportamentos<br />
é chave para nosso trabalho e função primordial da ferramenta <strong>de</strong> análise textural<br />
aqui criada.<br />
Freqüentemente unida<strong>de</strong>s formais como secções, temas ou partes <strong>de</strong> músicas possuem<br />
uma ou mais UTs. Algumas peças como o coral Ach wie flüchtig, ach wienichtig,<br />
BWV 26 <strong>de</strong> J. S. Bach, Yesterday, o prelúdio Op. 28 No. 1 <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>ric Chopin ou<br />
“Catacombae” <strong>de</strong> Quadros <strong>de</strong> uma exposição <strong>de</strong> M. Mussorgky são constituídas por<br />
um único tipo <strong>de</strong> UT.<br />
Músicas como Flagolet <strong>do</strong> grupo Oregon tem duas UT diferentes. A primeira parte<br />
(secção A) correspon<strong>de</strong> ao tipo textural <strong>de</strong> blocos sonoros como classificada anteriormente,<br />
enquanto a segunda parte (B) respon<strong>de</strong> ao critério <strong>de</strong> linhas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes.<br />
O retorno ao conceito <strong>de</strong> blocos sonoros em 3:58 minutos indica uma<br />
recorrência textural e a <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> uma estrutura formal basea<strong>do</strong> no critério<br />
da análise textural tripartita: A-B-A.13<br />
79
80<br />
É possível estabelecer um critério formaliza<strong>do</strong>r basea<strong>do</strong> no uso das texturas em obras<br />
<strong>de</strong> maiores dimensões. “A gran<strong>de</strong> porta <strong>de</strong> Kiev” da citada obra <strong>de</strong> Mussorgky, Close<br />
to the edge <strong>do</strong> grupo Yes ou Tubular Bells <strong>de</strong> Mike Oldfield servem como exemplos<br />
<strong>de</strong> obras nas quais cada nova UF apresenta um tipo <strong>de</strong> textura diferente ou uma variação<br />
em algum parâmetro das UTs originais que caracteriza a mudança <strong>de</strong> uma<br />
secção a outra. A obra <strong>de</strong> M. Oldfield tem como particularida<strong>de</strong> formal ser uma<br />
peça em duas partes (com duração aproximada <strong>de</strong> 45 minutos) que não apresenta,<br />
em nenhum momento, qualquer tipo <strong>de</strong> recorrência, nem <strong>de</strong> materiais nem <strong>de</strong> organização,<br />
sen<strong>do</strong> assim uma obra com continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> UTs diferentes, estáveis ou<br />
dinâmicas, que se configuram em unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, se transformam ou mudam<br />
abruptamente, porém nunca se repetem.<br />
Discussão<br />
O estu<strong>do</strong> das texturas oferece um vasto campo <strong>de</strong> pesquisa, tanto na relação texturaforma<br />
— consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a variável <strong>de</strong> evolução temporal para a compreensão e formalização<br />
<strong>de</strong> uma obra musical e suas implicações significantes para o ouvinte — ,<br />
quanto no estu<strong>do</strong> da relação complexida<strong>de</strong>-simplicida<strong>de</strong> e suas conseqüências perceptivas.<br />
UTs com maior quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> PSs, maior quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> critérios <strong>de</strong> relacionamento<br />
simultâneos, ou com quantida<strong>de</strong>s ou critérios que mudam<br />
percepti velmente em curtos perío<strong>do</strong>s <strong>de</strong> tempo oferecem maior dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
apreensão que UTs com menor quantida<strong>de</strong> ou menor variação <strong>de</strong> PSs e critérios <strong>de</strong><br />
relacionamento. Esta relação complexida<strong>de</strong>-simplicida<strong>de</strong> configura-se como um elemento<br />
importante na relação perceptiva <strong>de</strong> tensão-distensão (relaxamento) no plano<br />
formal <strong>de</strong> uma obra. O Bolero <strong>de</strong> M. Ravel é um exemplo <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> crescente<br />
a través <strong>do</strong> aumento quantitativo da textura (conjuntamente com outros parâmetros<br />
– dimensões). A Grosse Fugue op. 133 <strong>de</strong> Beethoven se apresenta como um claro<br />
exemplo da varieda<strong>de</strong> complexida<strong>de</strong>-simplicida<strong>de</strong> em relação a critérios formaliza<strong>do</strong>res,<br />
toda vez que esta mudança quantitativa e qualitativa produz uma resultante<br />
perceptiva <strong>de</strong> altos e baixos <strong>de</strong> tensão que conduz nossa atenção ao longo da peça.<br />
Temperley (2001) afirma que “padrões irregulares produzem texturas irregulares em<br />
vários níveis.” Po<strong>de</strong>-se inferir então que a complexida<strong>de</strong> interna <strong>de</strong> um trecho musical<br />
terá conseqüências em níveis formaliza<strong>do</strong>res superiores, quer dizer, que os elementos<br />
constitutivos <strong>de</strong> um trecho musical transferem suas características individuais a níveis<br />
<strong>de</strong> estruturação formal superiores. Trechos com PSs complexos resultam em<br />
texturas perceptivamente complexas.<br />
A relação permanência-mudança é um fator fundamental para interpretarmos a<br />
forma musical. Quan<strong>do</strong> se percebe alguma mudança na textura, esta mudança se<br />
manifesta como um elemento significante que modifica a relação <strong>do</strong> trecho com o<br />
seu contexto to<strong>do</strong>, <strong>de</strong> maneira sistêmica. Uma unida<strong>de</strong> formal e <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> ressalta<br />
suas características quan<strong>do</strong> confrontada a outra <strong>de</strong> diferentes características.
A forma se estabelece assim como resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> confronto das características <strong>de</strong> cada<br />
parte, geran<strong>do</strong> assim uma relação estrutural que se constrói a traves da memória.<br />
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
Este trabalho sugere alguns princípios analíticos basea<strong>do</strong>s na idéia <strong>de</strong> correntes auditivas<br />
por timbre. Estas correntes constitutivas <strong>do</strong> fluxo sonoro comportam-se<br />
como planos sonoros que, num contexto polifônico, se interrelacionam por integração,<br />
subordinação e in<strong>de</strong>pendência. Estes critérios surgem da combinação das características<br />
tipo-morfológicas da matéria e <strong>do</strong>s mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> organização a que estão<br />
submetidas, mas são estruturadas pelo nosso sistema cognitivo <strong>de</strong> maneira <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rmos<br />
interpretá-las para lhes atribuir senti<strong>do</strong> e se constituírem em elementos significantes.<br />
Assim, a análise texturas surge como resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s critérios <strong>de</strong><br />
relacionamento entre PSs permitin<strong>do</strong> estudar construções sonoras que não se ajustam<br />
aos mo<strong>de</strong>los tradicionais, geran<strong>do</strong> uma tipologia dinâmica e aberta, porém completa<br />
e consistente que funciona como uma ferramenta analítica bastante precisa<br />
para o estu<strong>do</strong> da evolução temporal da matéria sonora, interpretada como a forma<br />
musical.<br />
1 Denominaremos Unida<strong>de</strong>s Texturais (UT) a trechos mais ou menos estáveis on<strong>de</strong> se aprecia<br />
uma conformação textural <strong>de</strong>finida estável ou um processo em andamento, orgânico e funcional<br />
<strong>de</strong> transformação da uma textura dada.<br />
2 Stream no original representa uma noção psicoacústica que se refere a padrões e objetos sonoros<br />
que são sucessivamente agrupa<strong>do</strong>s numa única unida<strong>de</strong> perceptiva.<br />
3 Miller (1956, apud Bigand, 2001) consi<strong>de</strong>ra sete o numero <strong>de</strong> segun<strong>do</strong>s, com uma variabilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> mais ou menos 2 segun<strong>do</strong>s. Fraisse (1974, apud Bigand ibid) acrescenta que este limiar<br />
<strong>de</strong> tempo po<strong>de</strong> ser extendi<strong>do</strong> se os elementos são organiza<strong>do</strong>s em chunks ou sub-grupos.<br />
4 Melodias extensas que superam os 5 segun<strong>do</strong>s como as <strong>do</strong> Bolero <strong>de</strong> M. Ravel ou The mad<br />
hatter rhapsody <strong>de</strong> Chick Corea oferecem dificulda<strong>de</strong>s para a memorização e reprodução.<br />
5 Isto parece à primeira vista contraditório, como observa<strong>do</strong> anteriormente, porém <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong><br />
das circunstancias po<strong>de</strong> ser que um ou outro critério, indistintamente, justifiquem a<br />
priorida<strong>de</strong> perceptiva. Por exemplo: num contexto <strong>de</strong> informação redundante um elemento<br />
novo se <strong>de</strong>staca como objeto hierarquiza<strong>do</strong>, como o tema das cordas na Rhapsody in blue <strong>de</strong><br />
G. Gershwin, e, contrariamente, numa situação <strong>de</strong> muita informação diversificada e/ou nova<br />
um elemento conheci<strong>do</strong> po<strong>de</strong> chamar a atenção por ser uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> com informação<br />
extra (lei da experiência anterior), como na recapitulação <strong>do</strong>s temas numa sonata <strong>do</strong><br />
perío<strong>do</strong> neoclássico.<br />
6 Chamaremos <strong>de</strong> tonal-livre ao uso não estrito <strong>de</strong> algumas regras <strong>do</strong> sistema Harmônico tradicional<br />
no tratamento vertical das alturas que existe na música popular <strong>de</strong> origem europeu<br />
(como construção <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s por superposição <strong>de</strong> intervalos <strong>de</strong> terças, uso <strong>de</strong> fórmulas ca<strong>de</strong>nciais,<br />
entre outros).<br />
7 É necessário fazer algumas consi<strong>de</strong>rações sobre a idéia <strong>de</strong> hierarquias nestes exemplos. Os<br />
81
82<br />
exemplos <strong>de</strong> Queen e Oregon apresentam claramente uma igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> hierarquias entre<br />
to<strong>do</strong>s os PSs. Já nos exemplos <strong>de</strong> Bach e Mussorgsky é clara a existência <strong>de</strong> um plano mais<br />
hierarquiza<strong>do</strong> à nossa percepção: o da voz superior. Existem duas maneiras <strong>de</strong> interpretar<br />
isto: histórica e biologicamente. Historicamente é possível justificar <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a que toda a música<br />
a partir aproximadamente <strong>de</strong> 1600 nasce sobre a idéia tradicional <strong>de</strong> textura homófona,<br />
on<strong>de</strong> uma figura é estruturalmente mais importante que o resto, portanto a voz superior (no<br />
caso particular e freqüentemente em gran<strong>de</strong> parte da música tradicional ou da pratica comum)<br />
<strong>de</strong>staca-se por uma necessida<strong>de</strong> cultural <strong>de</strong> inserção no meio histórico: toda música <strong>de</strong>ste perío<strong>do</strong><br />
tem uma estrutura melódica com Hier1 “obrigatória”. Sloboda (2008) explica que numa<br />
situação textural como a que estamos estudan<strong>do</strong> (o caso <strong>de</strong> existir uma suposta semelhança<br />
<strong>de</strong> materiais e comportamento ou igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> e quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> informação entre<br />
os PSs) a linha superior aparece como mais saliente, seguida pela linha mais grave e por último<br />
as intermediarias. A explicação <strong>do</strong> autor nos sugere que na voz superior há menos mascaramento<br />
que nas outras vozes (pag. 226).<br />
8 Serve aqui a consi<strong>de</strong>ração feita na nota <strong>de</strong> rodapé anterior <strong>de</strong> que a música da prática comum<br />
requer, por questões sócio-culturais e estilísticas, uma linha melódica hierarquizada. A música<br />
<strong>do</strong>s séculos X<strong>VI</strong>I a XIX é uma “luta” <strong>de</strong> forças horizontais e verticais com <strong>de</strong>staque para<br />
uma(s) linha(s) diferenciada(s) como figura(s).<br />
9 Serão usadas neste trabalho indistintamente a terminologia tradicional e a terminologia específica<br />
proposta quan<strong>do</strong> necessário, já que não existe interesse em substituir uma pela outra.<br />
10 No canto esquimó acompanha<strong>do</strong> por tambor relata<strong>do</strong> por Nattiez (1984), a batida não é<br />
isócrona, e se se gravar o canto mais <strong>de</strong> uma vez não se obtêm as mesmas batidas.<br />
11 Um arpejo ressonante é aquele no qual po<strong>de</strong> ser sustentada mais <strong>de</strong> uma nota simultânea,<br />
como um piano ou um órgão, enquanto não ressonantes são aqueles que cada nota se articula<br />
quan<strong>do</strong> termina a anterior, crian<strong>do</strong> a sensação <strong>de</strong> uma única linha.<br />
12 Muitas vezes os compositores/produtores/arranja<strong>do</strong>res não consi<strong>de</strong>ram a textura como<br />
um elemento estrutura<strong>do</strong>r <strong>do</strong> discurso sonoro que possa ser planeja<strong>do</strong> ou organiza<strong>do</strong>. As texturas<br />
resultantes <strong>de</strong>sses procedimentos possuem características aleatórias, instáveis ou <strong>de</strong>sarticuladas,<br />
sem julgamento <strong>de</strong> valor <strong>de</strong> nossa parte.<br />
13 Observa-se que este tipo <strong>de</strong> estruturação formal tem estreita relação com a relação texturaforma<br />
nas aberturas francesas <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> barroco e em particular as das suítes orquestrais <strong>de</strong><br />
J. S. Bach.<br />
Referências<br />
Belkin, Alan. Una Guía Práctica <strong>de</strong> Composición Musical, http://www.musique.umontreal.ca/<br />
personnel/Belkin/bk/in<strong>de</strong>x.html<br />
Bigand, Emanuel. 2001. Contributions of musical research on human auditory cognition, in<br />
Stephen McAdams e Emmanuel Bigand (Ed.), Thinking in sound: the cognitive psychology<br />
of human auditio , p. 231-273. Lon<strong>do</strong>n: Oxford University Press.<br />
Bregman, Albert. 2002. The auditory scene, in Daniel Levitin (Ed.) Foundations of cognitive<br />
psychology, p. 212-248. Lon<strong>do</strong>n: The MIT Press.<br />
Chion, Michael. Gui<strong>de</strong> to Sound Objects, http://www.scribd.com/<strong>do</strong>c/19239704/<br />
Chion-Michel-Gui<strong>de</strong>-to-Sound-Objects
Cooper, Grosvenor e Meyer, Leonard. 1971. The Rythmic Structure of Music. Lon<strong>do</strong>n: The<br />
University of Chicago Press.<br />
Kokoras, Panayiotis A. “Towards a Holophonic Musical Texture”. JMM – The Journal of<br />
Music and Meaning 4 (Winter, 2007), in http://www.musicandmeaning.net/issues/<br />
showArticle.php?artID=4.5<br />
Krumhansl, Carol, “Rhythm and pitch in music cognition”. Psychological Bulletin 126, no. 1,<br />
2000.<br />
Levitin, Daniel. 2007. Uma paixão humana. O cérebro e a música. Lisboa: Editorial Bizancio.<br />
Nattiez, Jean-Jacques. 1984. “Rítmica/métrica” in Enciclopédia Einaudi, Vol. 3, <strong>Artes</strong> –<br />
Tonal/atonal, p. 298-330. Porto: Imprensa Nacional – Casa da moeda.<br />
Schaeffer, Pierre. 1988. Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong> los objetos musicales. Madrid: Alianza editorial.<br />
Sloboda, John. 2008. A mente musical. Londrina: EDUEL.<br />
Temperley, David. 2001. The Cognition of Basic Musical Structures. Lon<strong>do</strong>n: The MIT Press.<br />
Wishart, Trevor. 1996. On Sonic Art. Amsterdam: Harwoord Aca<strong>de</strong>mic publishers.<br />
Discografia<br />
An<strong>de</strong>rson J., e Howe, S., “Close to the edge” in Yes, Close to the edge, UK, Atlantic Records,<br />
1972, 7567-81532-2<br />
Corea, Chick. “The mad hatter rhapsody”, in Chick Corea, The Mad Hatter, USA, 1993,<br />
Polygram, 519799<br />
Domínio público, “Esh Dany Lik (Shaby Marroquí)”, in Douglas Felis, Rilha, Argentina, Halawa<br />
produções, 34196.<br />
Domínio publico, “Choeur <strong>de</strong> femmes”, in Voices of the world (coletânea), Le chant Du mon<strong>de</strong>,<br />
CMX 3741010.12<br />
Falcon, J., “Birinites Nigths”, in Beat dada, Broken dance, Brasil, In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, 2002, S/n.<br />
Gesual<strong>do</strong>, C. “Gioite voi col canto”, in The consort of Musicke dir. Anthony Rooley, Gesual<strong>do</strong>,<br />
quinto libro <strong>de</strong>i madrigali, USA, Decca Records, 1994, 410.128-2<br />
Lennon J., e McCartney, P., “Yesterday”, in The Beatles, Help, UK, Parlophone, 1965, 46439<br />
Maschwitz, Manning, Strachey, “A Nightingale Sang in Berkeley Square”, in The Manhattan<br />
Transfer, Mecca for mo<strong>de</strong>rns, Atlantic Records, 1990, Sd-16026-2<br />
Moore G., “Flaogolet”, in Oregon, Violin, USA, Universe, 1978, UV 040<br />
Oldfield, M., “Tubular Bells”, in Mike Oldfield, Tubular Bells, UK, Virgin Records, 1973,<br />
786007 2.<br />
Omayada, K., “Tone twiligth zone”, in Conelius, Point, Japan, Polys, 2001, 6000<br />
Page J., Plant R., e Bonham J. , “Kashmir”, in Led Zeppelin, Physical Graffiti, UK, Swan song,<br />
1974, SS-200-2.<br />
Young A., Young, M. , Thun<strong>de</strong>rstruck AC/DC, in The razors edge, USA, Atco Records, 1990,<br />
91413-2.<br />
83
84<br />
Estu<strong>do</strong> sobre possibilida<strong>de</strong>s da concepção neurocientífica<br />
da percepção rítmica na análise <strong>de</strong> estruturas musicais<br />
Pedro Paulo Kohler Bon<strong>de</strong>san <strong>do</strong>s Santos<br />
ppsantos@usp.br<br />
Departamento <strong>de</strong> Música da ECA, USP – Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />
Resumo<br />
Estu<strong>do</strong> comparativo em progresso que visa examinar possíveis ambiguida<strong>de</strong>s entre a percepção<br />
<strong>do</strong> ritmo musical <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da neurociência e estruturas utilizadas intencionalmente<br />
na construção musical por compositores e arranja<strong>do</strong>res, explicitadas em<br />
partituras e gravações. Com base no conceito neurocientífico <strong>de</strong> beat induction, associa<strong>do</strong><br />
a partituras e gravações, apresenta um estu<strong>do</strong> da compreensão <strong>do</strong> pulso através da percepção.<br />
Na conclusão, <strong>de</strong>monstra a viabilida<strong>de</strong> da aplicação <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> regras <strong>de</strong><br />
preferência na <strong>de</strong>dução <strong>do</strong> beat musical.<br />
Palavras-chave<br />
Percepção musical; cognição ; beat induction; neurociência; percepção rítmica<br />
Introdução<br />
O estu<strong>do</strong> da percepção <strong>do</strong> ritmo musical é parte <strong>de</strong> um corpus <strong>de</strong> pesquisa que <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
o século XIX, com os trabalhos pioneiros <strong>de</strong> Helmholtz, vem cada vez mais se apresentan<strong>do</strong><br />
como uma área interdisciplinar, recorren<strong>do</strong> a outras áreas <strong>do</strong> conhecimento<br />
para a construção <strong>de</strong> um perfil da percepção humana <strong>do</strong>s sons. A tentativa<br />
<strong>de</strong> se explicar as sensações subjetivas <strong>de</strong> consonância e dissonância, por exemplo,<br />
moveu parte da pesquisa sobre a psicologia <strong>do</strong> som, que recorreu não somente a fatores<br />
genéricos cognitivos, mas também aos mecanismos sensórios auditivos, ten<strong>do</strong><br />
reuni<strong>do</strong> fatores culturais presentes na percepção. Nesse contexto, à medida que são<br />
estudadas relações entre questões da recepção <strong>do</strong> fenômeno sonoro e as proprieda<strong>de</strong>s<br />
físicas <strong>do</strong>s sons, foi surgin<strong>do</strong> a <strong>de</strong>nominação psicoacústica (Parncutt 1989: 19).<br />
Outra importante referência utilizada é a psicologia. Nesse campo, <strong>de</strong>stacamos a<br />
orientação <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> percepção das alturas <strong>do</strong>s sons na musica oci<strong>de</strong>ntal por<br />
princípios da Gestalt, em que os mesmos princípios gestálticos anteriormente aplica<strong>do</strong>s<br />
à percepção visual (princípios <strong>de</strong> agrupamento: proximida<strong>de</strong>, similarida<strong>de</strong>,<br />
good continuation e common fate) po<strong>de</strong>m ser analogamente volta<strong>do</strong>s à percepção<br />
auditiva (Shepard, 1999: 32-34).<br />
A busca por mo<strong>de</strong>los computacionais <strong>de</strong> reconhecimento sonoro levou ao estu<strong>do</strong><br />
da percepção auditiva humana também na questão da rítmica musical, objeto <strong>de</strong><br />
nosso estu<strong>do</strong>. Havia a convicção <strong>de</strong> que a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconhecer e sincronizar ritmos<br />
seria uma capacida<strong>de</strong> exclusiva <strong>do</strong>s seres humanos, sujeita a uma seleção natural<br />
exercida pela cultura, inclusive através da ativida<strong>de</strong> musical. Até que neurocientistas
ealizaram experiências <strong>de</strong>monstran<strong>do</strong> existir esta habilida<strong>de</strong> presente também em<br />
animais (Patel 2008). Assim, constatou-se que haveria algo maior na percepção relaciona<strong>do</strong><br />
ao reconhecimento e à sincronização <strong>de</strong> ritmos.<br />
A percepção <strong>do</strong> ritmo musical<br />
Quan<strong>do</strong> se fala em ritmo, a palavra refere-se ao tempo <strong>de</strong> espera entre a ocorrência<br />
<strong>de</strong> um fenômeno e sua respectiva repetição. Em termos musicais, falamos não somente<br />
da variação <strong>de</strong> eventos sonoros no tempo, mas também da mínima unida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> tempo (implícita ou explícita) <strong>de</strong> on<strong>de</strong> esses eventos sonoros também po<strong>de</strong>m ser<br />
múltiplos <strong>de</strong> alguma maneira.<br />
A essa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar e sincronizar movimentos rítmicos com o pulso <strong>de</strong><br />
um trecho musical vem sen<strong>do</strong> fortaleci<strong>do</strong> o uso da expressão beat induction1 que<br />
significa a indução da percepção métrica <strong>do</strong> ritmo, com seus tempos acentua<strong>do</strong>s característicos<br />
(Desain & Honing 1999). Apesar <strong>de</strong> ser uma ferramenta cognitiva fundamental<br />
para a música, o conceito relaciona<strong>do</strong> à expressão vem sen<strong>do</strong> mais<br />
estuda<strong>do</strong> por sua aplicação em mo<strong>de</strong>los computacionais <strong>de</strong> reconhecimento <strong>de</strong><br />
ritmo <strong>do</strong> que por sua utilização no campo musical efetivamente.<br />
Neurocientistas <strong>de</strong> diversas tendências da área, chegaram a um consenso sobre seis<br />
fatores (Temperley & Bartlette 2002), que orientam o processo <strong>de</strong> beat induction.<br />
Estes fatores aten<strong>de</strong>m a um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> regras <strong>de</strong> preferência:<br />
• Preferência por beats que coinci<strong>de</strong>m com ataques <strong>de</strong> notas;<br />
• Preferência por alinhar beats com as notas mais longas (para evi<strong>de</strong>ncia psicológica<br />
<strong>de</strong>ssa afirmação, ver Povel & Essens, 1985);<br />
• Preferência pela regularida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s beats;<br />
• “Agrupamento”: tendência a consi<strong>de</strong>rar o beat forte no início <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong><br />
notas que formam um grupo ou uma frase (Povel & Essens, 1985);<br />
• Harmonia: tendência a associar beats com os pontos <strong>de</strong> mudança na harmonia<br />
(Temperley, 2001);<br />
• Paralelismo: termo usa<strong>do</strong> para <strong>de</strong>screver o <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> notas que se<br />
repetem. Em música, po<strong>de</strong> se referir a um arpejo ou a um ostinato, por exemplo<br />
(ou riff, seu equivalente na linguagem da música pop).<br />
Toman<strong>do</strong> esses fatores <strong>de</strong> preferência como um mo<strong>de</strong>lo para a <strong>de</strong>terminação da indução<br />
<strong>do</strong> beat, chegamos ao propósito <strong>de</strong> analisar a percepção <strong>do</strong> relacionamento<br />
entre a rítmica <strong>de</strong> superfície e o pulso <strong>de</strong> um trecho musical, comparan<strong>do</strong>-a posteriormente<br />
à expressão da intenção <strong>do</strong> compositor ou arranja<strong>do</strong>r, traduzida materialmente<br />
na partitura ou na gravação.<br />
Nesse contexto, a perspectiva da análise musical a partir <strong>do</strong> acréscimo <strong>do</strong> conceito<br />
beat induction se altera na medida em que o foco ten<strong>de</strong> a se concentrar na instância<br />
85
86<br />
da recepção, ou seja, na percepção <strong>do</strong> ouvinte.<br />
Além da análise <strong>de</strong> estruturas rítmicas percebidas, comparadas às suas respectivas<br />
partituras, preten<strong>de</strong>mos confrontar gravações <strong>de</strong> versões da mesma música para estilos<br />
diferentes. Enten<strong>de</strong>mos que o processo <strong>de</strong> transposição <strong>de</strong> estilo musical, comumente<br />
utiliza<strong>do</strong> na música popular, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar preferências <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m<br />
estética, po<strong>de</strong> revelar também, em alguns casos, diferentes mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> percepção <strong>do</strong><br />
ritmo.<br />
Os trechos musicais pertencem ao grupo da música instrumental da tradição oci<strong>de</strong>ntal<br />
<strong>de</strong> natureza tonal e a canção popular brasileira. A escolha <strong>de</strong>sses grupos se<br />
<strong>de</strong>ve ao fato <strong>de</strong> representarem um repertório <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> conhecimento público, ou<br />
seja, consi<strong>de</strong>ramos que se trata <strong>do</strong> material mais exposto ao fenômeno da recepção<br />
que preten<strong>de</strong>mos estudar.<br />
Análises <strong>de</strong> gravações comparadas a partituras<br />
Preten<strong>de</strong>mos analisar alguns trechos musicais, reescreven<strong>do</strong>-os ritmicamente e comparan<strong>do</strong>-os<br />
com as respectivas partituras que os originaram.<br />
Seguin<strong>do</strong> a estratégia <strong>de</strong> aplicar o mo<strong>de</strong>lo das regras <strong>de</strong> preferência, esperamos encontrar<br />
indícios da razão da aparente ambiguida<strong>de</strong> surgida da comparação entre o<br />
mo<strong>do</strong> como percebemos o ritmo <strong>do</strong>s compassos iniciais <strong>do</strong> primeiro movimento da<br />
Sinfonia nº 5, op. 67, em dó menor, <strong>de</strong> Beethoven (Figura 1.1) e a maneira utilizada<br />
pelo compositor na estruturação <strong>de</strong> seu pensamento musical.<br />
Figura 1.1 — Beethoven, Sinfonia nº 5, op. 67 em Dó menor:<br />
Allegro con brio (comp. 1-5).<br />
Sabemos, pela partitura, que o compositor explicitou sua construção musical <strong>de</strong><br />
mo<strong>do</strong> binário. Porém, não é incomum percebermos a articulação rítmica <strong>do</strong> motivo<br />
principal como quatro notas em uma estrutura ternária com repouso na quarta nota.<br />
E essa percepção nos leva a conjeturar a respeito <strong>de</strong> um caráter ambíguo entre a emissão<br />
e a recepção da idéia rítmica proposta. Na abordagem <strong>de</strong>ssa suposição, baseamos<br />
nossa investigação, a partir das questões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m interpretativa e aplican<strong>do</strong> as seis<br />
regras <strong>de</strong> preferência mencionadas anteriormente.<br />
Questões interpretativas<br />
Gunther Schuller (1997: 122) analisou cerca <strong>de</strong> noventa gravações da Quinta Sinfonia<br />
e encontrou apenas nove maestros que regeram <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a transmitir a percepção<br />
<strong>do</strong> ritmo como ele foi escrito. Tal pesquisa <strong>de</strong>monstra que em noventa por
cento das gravações o caráter ambíguo <strong>do</strong>s primeiros compassos foi valoriza<strong>do</strong> por<br />
maestros como Toscanini, Furtwängler, Abba<strong>do</strong>, Ashkenazy, Bernstein, Karajan e<br />
Böhm, entre outros. Suas respectivas performances ainda mantinham a duvida em<br />
relação à figura <strong>de</strong> três notas <strong>do</strong> primeiro compasso representar auditivamente um<br />
gesto não acentua<strong>do</strong> (anacruse) ou uma figura mais calcada no tempo forte. Estariam<br />
eles interpretan<strong>do</strong> equivocadamente a partitura <strong>de</strong> Beethoven?<br />
Veremos que alguns fatores <strong>de</strong>correntes da própria escrita <strong>do</strong> compositor reforçam<br />
a ambiguida<strong>de</strong> contida na interpretação e na recepção <strong>do</strong> trecho <strong>de</strong> cinco compassos<br />
em questão.<br />
Em primeiro lugar, o andamento extremamente rápi<strong>do</strong> (mínima = 108), faz com<br />
que cada beat se encontre conti<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um único compasso, praticamente obrigan<strong>do</strong><br />
a regência em “um” (Schuller, 1997 : 110). Em segun<strong>do</strong> lugar, a própria escrita<br />
dificulta a perfeita articulação da anacruse <strong>do</strong> motivo que inicia o primeiro<br />
movimento da obra e em seguida o apoio em uma nota longa com fermata (Figura<br />
1.2).<br />
Figura 1.2 — Beethoven, Sinfonia nº 5, op. 67 em Dó menor:<br />
Allegro con brio (comp. 1-10): gra<strong>de</strong> orquestral.<br />
Do ponto <strong>de</strong> vista da interpretação, a solução apontada por Schuller seria a ligeira<br />
acentuação da segunda nota <strong>do</strong> motivo. É uma solução aparentemente simples, <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>do</strong>s preceitos da teoria musical tradicional, on<strong>de</strong> as cabeças <strong>de</strong> tempo são ligeiramente<br />
mais acentuadas e os tempos impares também, nas estruturas rítmicas<br />
binárias ou quaternárias.<br />
Entretanto, esta atitu<strong>de</strong> encontra difícil realização frente a outros fatores relativos<br />
ao trecho, como o andamento extremamente rápi<strong>do</strong> e o apoio quase que instantâneo<br />
em uma nota longa com fermata.<br />
Existem alguns aspectos a serem consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s:<br />
87
88<br />
A cristalização <strong>de</strong> uma interpretação consi<strong>de</strong>rada importante em um perío<strong>do</strong>, passa<br />
a ser referência. Então se por um la<strong>do</strong> o gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> interpretações disponíveis<br />
mo<strong>de</strong>rnamente em gravações cristalizaram a realização ternária <strong>do</strong> motivo inicial,<br />
fazen<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta prática uma referência, por outro la<strong>do</strong> po<strong>de</strong>ríamos supor também que<br />
Beethoven tinha consciência da ambiguida<strong>de</strong> rítmica contida em sua proposição <strong>de</strong><br />
escrita.<br />
O próprio <strong>de</strong>senvolvimento motívico <strong>de</strong>sta Sinfonia <strong>de</strong>monstra uma transformação<br />
da célula rítmica colocada explicitamente em compasso ternário no terceiro movimento<br />
a partir <strong>do</strong> compasso 19 (Figura 1.3).<br />
Figura 1.3 — Tema <strong>do</strong> 3º movimento Allegro – Quinta Sinfonia <strong>de</strong> Beethoven –<br />
Op.67<br />
Tal fato, propõe um leitura da ambiguida<strong>de</strong> <strong>do</strong> motivo original <strong>de</strong>sta Sinfonia, uma<br />
vez que o compositor retoma uma idéia inicial e incorpora a nova possibilida<strong>de</strong> rítmica.<br />
Reforçan<strong>do</strong> outro caráter possível <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seu discurso gran<strong>de</strong>mente influencia<strong>do</strong><br />
pelas idéias da retórica setecentista.<br />
Retórica esta que ao organizar as maneiras <strong>de</strong> convencer o interlocutor, estava profundamente<br />
preocupada com os efeitos da recepção das idéias sobre o público.<br />
Como sabemos, estas preocupações são fundamentais para o pensamento musical<br />
setecentista, que pensa a linguagem musical segun<strong>do</strong> a gramática (correção e clareza<br />
<strong>do</strong> discurso) e a retórica (efeito persuasivo <strong>do</strong> discurso junto ao ouvinte).<br />
Do ponto <strong>de</strong> vista das regras <strong>de</strong> preferência, esta estrutura – a figura <strong>de</strong> três notas –<br />
ten<strong>de</strong> a induzir um tempo forte na cabeça da primeira nota (regra 1) e a nota longa<br />
ten<strong>de</strong> a induzir outro beat (regra 2). E pela regra 4 (agrupamento) temos mais um<br />
reforço na percepção <strong>do</strong> beat sobre a primeira das nota <strong>de</strong> figura inicial <strong>de</strong> três notas<br />
(Figura 1.4).<br />
ou<br />
Figura 1.4 — Duas hipóteses para os primeiros cinco compassos.<br />
A estes indícios somam-se a falta <strong>de</strong> um referencial representan<strong>do</strong> o silêncio na cabeça<br />
<strong>do</strong> primeiro tempo e o apoio nas fermatas <strong>do</strong>s compassos 2 e 5.
Análises comparadas <strong>de</strong> gravações<br />
Outra vertente <strong>de</strong> nosso trabalho, também aplican<strong>do</strong> o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> regra <strong>de</strong> preferência,<br />
consiste em um estu<strong>do</strong> comparativo <strong>de</strong> versões da mesma canção, que representem<br />
a transposição <strong>de</strong> fronteiras culturais e / ou étnicas. Para tanto, tomamos<br />
como exemplo a gravação original <strong>de</strong> Caetano Veloso da canção Beleza Pura, realizada<br />
em 1979, comparada à versão da mesma canção em gravação da Banda Skank,<br />
<strong>de</strong> 2008.<br />
À primeira vista, a comparação revela um fenômeno muito comum na canção popular:<br />
a chamada “transposição <strong>de</strong> estilos”.2<br />
Temos então uma gravação realizada com a chancela <strong>do</strong> próprio autor em 1979 e<br />
outra “transposta” para um estilo pop, bastante diverso em relação ao primeiro.<br />
Em princípio, o procedimento não é novo e vem sen<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong> pelo menos <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
que a tradição da musica oci<strong>de</strong>ntal registra a passagem <strong>do</strong> renascimento <strong>do</strong> “cinquecento”<br />
italiano para o perío<strong>do</strong> Barroco como a era da consciência <strong>do</strong> estilo na musica<br />
(Bukofzer, 1947 : 4). O tempo em que os compositores começaram a escrever musica<br />
à maneira da prima ou seconda prattica, submeten<strong>do</strong> melodias por exemplo, à maneira<br />
<strong>de</strong>terminada pela música eclesiástica ou ao estilo consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno (da<br />
melodia acompanhada), utilizan<strong>do</strong> seus respectivos procedimentos próprios <strong>de</strong> harmonia,<br />
ritmo e instrumentação.<br />
Em nossa visão, a transposição <strong>de</strong> estilo não constitui um procedimento meramente<br />
técnico, mas revela a formação <strong>de</strong> um estilo <strong>de</strong> recepção auditiva, ou seja, conjeturamos<br />
que a recepção auditiva <strong>do</strong> repertório seja mo<strong>de</strong>lada por um jogo entre duas<br />
percepções distintas : a percepção <strong>do</strong> musicólogo e a percepção natural <strong>do</strong> ouvinte<br />
(Nattiez 1990: 154). O compositor enquanto musicólogo <strong>de</strong>tém o conhecimento<br />
<strong>de</strong> procedimentos e técnicas, ainda assim estaria sujeito à sua própria percepção natural<br />
<strong>de</strong> ouvinte. Assim o procedimento revela uma “cópia” alterada pelo senso estético<br />
e cultural <strong>de</strong> quem copia.<br />
Seguin<strong>do</strong> esse raciocínio e aplican<strong>do</strong> o mo<strong>de</strong>lo das regras <strong>de</strong> preferência, nosso objetivo<br />
é analisar a maneira como as concepções rítmicas estão colocadas, nos <strong>do</strong>is<br />
arranjos:<br />
1. na concepção original <strong>do</strong> compositor<br />
2. na concepção <strong>do</strong>s intérpretes<br />
A neurociência prevê, ainda, que “nossa percepção é moldada por estímulos extrínsecos<br />
e interpretação intrínseca, assim a experiência da percepção <strong>do</strong> ritmo, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />
da sua interpretação métrica, on<strong>de</strong> cada um ouve o beat” (Iversen 2009: 58). Nesse<br />
senti<strong>do</strong>, a percepção envolve uma dimensão étnica. (Drake & Heni 2003). Sobre<br />
esse último aspecto, po<strong>de</strong>mos afirmar que há consi<strong>de</strong>rável diferença <strong>de</strong> interpretação<br />
métrica na comparação entre as duas concepções da mesma canção.<br />
89
90<br />
Melodicamente existe importante diferença na sua articulação <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> beat <strong>de</strong><br />
cada versão. Enquanto na versão original <strong>de</strong> Caetano Veloso a melodia principal inicia<br />
junto com o beat da seção rítmica com o agogô e o tambor rumpi (atabaque) e<br />
terminan<strong>do</strong> a primeira frase em tempo fraco (off-beat) com a nota ré (Figura 1.5<br />
compasso 15), a versão da Banda SKANK posiciona a mesma frase inician<strong>do</strong> em offbeat<br />
e terminan<strong>do</strong> no beat <strong>do</strong> compasso seguinte (Figura 1.6 compasso 9-10).<br />
A diferença entre a colocação rítmica <strong>de</strong> uma e <strong>de</strong> outra melodia representa uma<br />
mudança significativa na acentuação da letra cantada em relação aos outros instrumentos<br />
<strong>do</strong> arranjo. Em relação ao ritmo harmônico (articulação das mudanças <strong>do</strong>s<br />
acor<strong>de</strong>s que acompanham a melodia), a versão <strong>de</strong> Caetano Veloso antecipa a mudança<br />
para o acor<strong>de</strong> <strong>de</strong> ré menor que acompanha o último ré da frase inicial (última<br />
colcheia <strong>do</strong> compasso 15). Já na outra versão, a mudança para o acor<strong>de</strong> <strong>de</strong> ré menor<br />
acontece no inicio <strong>do</strong> compasso seguinte em tempo forte, ou no beat. Como ocorre<br />
tradicionalmente no rock e em gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong> repertório da música popular.<br />
Figura 1.5 — Caetano Veloso, Beleza Pura (comp. 15-18),<br />
transcrição parcial <strong>do</strong> arranjo original.<br />
Figura 1.6 — Beleza Pura, versão SKANK (comp. 9-13),<br />
transcrição <strong>de</strong> melodia e bateria.<br />
Nesse último quesito, Beleza Pura apresenta também uma “ base harmônica<br />
simples em estrutura circular (sequencializada em DÓ / LÁm / RÉm / SOL7),<br />
com <strong>de</strong>staque para os acentos rítmicos no contratempo.” (Tatit 1996: 301)<br />
A estes acentos rítmicos no contratempo, correspon<strong>de</strong> a função ritmo-harmônica<br />
<strong>de</strong>sempenhada pelo violão em figura que representa a alteração rítmica da mesma<br />
estrutura circular presente na introdução <strong>de</strong> Brejeiro <strong>de</strong> Ernesto Nazareth composto<br />
em 1893.
Na figura 1.7 a articulação <strong>do</strong> violão é a mesma nas duas músicas, porém em Beleza<br />
Pura ela aparece adiantada em uma colcheia fazen<strong>do</strong> com que na nova linha <strong>de</strong><br />
acompanhamento <strong>do</strong> instrumento, os acor<strong>de</strong>s e a nota fundamental <strong>do</strong> baixo caiam<br />
em off-beat, ou seja fora da acentuação natural <strong>do</strong> compasso.<br />
Figura 1.7 — transcrição das linhas <strong>de</strong> violão <strong>de</strong> Brejeiro e Beleza Pura<br />
A nova configuração faz com que o elemento acompanha<strong>do</strong>r <strong>de</strong>ste arranjo, mu<strong>de</strong><br />
radicalmente seu caráter em relação ao outro composto por Nazareth. Este elemento<br />
também aten<strong>de</strong> parcialmente à regra <strong>de</strong> preferência 6 (paralelismo), por se tratar <strong>de</strong><br />
uma espécie <strong>de</strong> ostinato. Apresenta ainda caráter ambíguo, posto que posiciona a<br />
fundamental <strong>do</strong> acor<strong>de</strong> sempre em antecipação aos tempos 1 e 3 consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s fortes<br />
no compasso.<br />
Conclusão<br />
Pu<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>monstrar que algumas das possibilida<strong>de</strong>s da aplcação <strong>do</strong> conceito<br />
neurocientífico <strong>de</strong> beat induction na análise <strong>de</strong> algumas estruturas musicais é<br />
bastante válida na medida que <strong>de</strong>snuda algumas ambiguida<strong>de</strong>s presentes na percepção<br />
<strong>do</strong> ritmo musical.<br />
Esperamos encontrar mais ambiguida<strong>de</strong>s no material rítmico da obra <strong>de</strong> Beethoven.<br />
A diferença intercultural ou étnica surgida da comparação entre versões diferentes<br />
<strong>de</strong> uma mesma canção ainda carece <strong>de</strong> aprofundamento, falta ainda esclarecer os<br />
elementos étnicos presentes na concepção da gravação <strong>de</strong> Caetano Veloso, mas<br />
aponta para a eficácia <strong>do</strong> procedimento e no nosso entendimento, abre boas perspectivas<br />
para próximas análises.<br />
1 A não tradução da expressão beat induction se <strong>de</strong>ve ao fato da noção <strong>de</strong> beat estar relacionada<br />
ao metro, medida <strong>do</strong> número <strong>de</strong> pulsos que ocorre <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma recorrência <strong>de</strong> acentos mais<br />
ou menos regulares (Cooper & Meyer 1960, 4). O pulso representa mais uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
medida temporal mínima enquanto o beat, a acentuação <strong>de</strong>sses pulsos <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> compasso.<br />
2 Denominamos transposição <strong>de</strong> estilo o procedimento em que uma canção popular é adaptada<br />
a outro contexto musical. Em nosso caso, a canção foi concebida originalmente sobre<br />
padrões harmônicos e rítmicos próprios da cultura afro-baiana e <strong>do</strong>s seus músicos, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong><br />
posteriormente adaptada a procedimentos próprios da cultura pop e <strong>do</strong> rock da juventu<strong>de</strong><br />
brasileira <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XXI.<br />
91
92<br />
Referências<br />
Bukofzer, M.F. 1947. Music in the Baroque Era. New York: Norton.<br />
Cooper, G. W. & Meyer, L. B. 1960. The Rhythmic Structure of Music. Chicago: University<br />
of Chicago Press.<br />
Drake, C. & Ben El Heni, J. 2003. Synchronizing with Music: Intercultural Differences. Annals<br />
of the New York Aca<strong>de</strong>my of Sciences 999, 429–37<br />
Desain, P.W.M., & Honing, H.J. 1999. Computational mo<strong>de</strong>ls of beat induction: The rulebased<br />
approach. Journal of New Music Research 28 (1), 29-42.<br />
Iversen J R., Repp B. H., e Patel, A.D. 2009. Top-Down Control of Rhythm Perception Modulates<br />
Early Auditory Responses. The Neurosciences and Music III — Disor<strong>de</strong>rs and Plasticity:<br />
Ann. N.Y. Acad. Sci. 1169, 58–73.<br />
Lerdahl, Fred & Jacken<strong>do</strong>ff Ray. 1983. A generative theory of tonal music. Cambridge: MIT<br />
Press.<br />
Parncutt, R. 1989. Harmony: A Psychoacoustical approach. Berlin: Srpinger-Verlag.<br />
Patel, Aniruddh. 2008. Music, Language and the Brain. Oxford: Oxford University Press.<br />
Patel, A.D., Iversen, J.R., Bregman, M.R., Schulz, I. & Schulz, C. 2008. “Investigating the<br />
human-specificity of synchronization to music”. In M. Adachi et al. (Eds.), Proceedings<br />
of the 10th Intl. Conf. on Music Perception and Cognition, August 2008, Sapporo, Japan.<br />
A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>: Causal Productions).<br />
Povel, D. & Essens, P. 1985. Perception of Temporal Patterns. Music Perception 2, nº4, 411-<br />
440<br />
Shepard, R. 1999. “Cognitive Psychology and Music”. In Perry R. Cook (Ed.), Music, cognition,<br />
and computerized sound: an introduction to psychoacoustics. Cambridge, MA: MIT<br />
Press, 21-35.<br />
Shepard, R. 1999. “Stream segregation and ambiguity in audition”. In Perry R. Cook (Ed.),<br />
Music, cognition, and computerized sound: an introduction to psychoacoustics. Cambridge,<br />
MA: MIT Press, 117-127.<br />
Schuller, Gunther. 1997. The Complete Conductor. Oxford: Oxford University Press.<br />
Tatit, Luiz. 1996. O cancionista: composição <strong>de</strong> canções no Brasil. São Paulo: Edusp.<br />
Temperley, David e Christopher Bartlette. 2002. “Parallelism as a Factor in Metrical Analysis”,<br />
Music Perception 20, nº 2 (Winter): 117-149.
O ouvi<strong>do</strong> absoluto: prevalência e características em duas<br />
universida<strong>de</strong>s brasileiras<br />
Patricia Vanzella<br />
pvanzella@yahoo.com<br />
Departamento <strong>de</strong> Música, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília<br />
Mariana Benassi-Werke<br />
marianawerke@yahoo.com.br<br />
Departamento <strong>de</strong> Psicobiologia – Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> São Paulo<br />
Nayana G. Germano<br />
nayanager@hotmail.com<br />
Departamento <strong>de</strong> Música, Universida<strong>de</strong> Estadual Paulista<br />
Maria Gabriela M. Oliveira<br />
mgabi@psicobio.epm.br<br />
Departamento <strong>de</strong> Psicobiologia – Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> São Paulo<br />
Resumo<br />
Este estu<strong>do</strong> investigou, através <strong>do</strong> uso <strong>de</strong> questionários, a prevalência <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto<br />
entre 263 estudantes <strong>de</strong> música universitários <strong>de</strong> duas diferentes regiões brasileiras (130 da<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília – UnB e 133 da Universida<strong>de</strong> Estadual Paulista – UNESP). Além<br />
disso, investigou: particularida<strong>de</strong>s da percepção auditiva entre aqueles que <strong>de</strong>clararam ser<br />
porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto (com relação à percepção <strong>de</strong> diferentes timbres); a relação<br />
entre ouvi<strong>do</strong> absoluto e ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> início <strong>do</strong> treinamento musical; o tipo <strong>de</strong> treinamento<br />
musical recebi<strong>do</strong> por porta<strong>do</strong>res e não porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong><br />
da notação musical e <strong>de</strong> solfejo; a presença <strong>de</strong>sse traço cognitivo em membros<br />
da família <strong>do</strong>s estudantes que <strong>de</strong>clararam possuir ouvi<strong>do</strong> absoluto. Os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s<br />
em cada uma das universida<strong>de</strong>s foram compara<strong>do</strong>s e não diferiram estatisticamente. A<br />
prevalência encontrada na amostra total foi <strong>de</strong> 7,22% (8,27% na UNESP e 6,15% na UnB).<br />
Foram observadas variações significativas na habilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s estudantes em i<strong>de</strong>ntificar e<br />
produzir alturas musicais, especialmente com relação à acurácia em diferentes timbres. Em<br />
ambas universida<strong>de</strong>s a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> início <strong>do</strong> treinamento musical no grupo <strong>de</strong> porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong><br />
ouvi<strong>do</strong> absoluto revelou-se significativamente inferior à ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> início <strong>de</strong> não porta<strong>do</strong>res.<br />
Enquanto os porta<strong>do</strong>res iniciaram o treinamento musical por volta <strong>do</strong>s 7 anos, os não porta<strong>do</strong>res<br />
iniciaram por volta <strong>do</strong>s 11 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Nas duas instituições pesquisadas, não<br />
foi possível estabelecer nenhum tipo <strong>de</strong> relação entre a aquisição <strong>de</strong>sse traço cognitivo<br />
e o tipo <strong>de</strong> treinamento recebi<strong>do</strong> durante o aprendiza<strong>do</strong> da leitura musical e <strong>do</strong> solfejo.<br />
Não houve, igualmente, diferença no número relata<strong>do</strong> <strong>de</strong> familiares com ouvi<strong>do</strong> absoluto<br />
entre os grupos <strong>de</strong> estudantes com e sem ouvi<strong>do</strong> absoluto. Nossos resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> prevalência<br />
<strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto são semelhantes a resulta<strong>do</strong>s relata<strong>do</strong>s na literatura norte-americana.<br />
O presente estu<strong>do</strong> também confirma investigações anteriores que mostram que a<br />
prevalência <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto é maior entre aqueles que iniciaram o treinamento musical<br />
até os 7 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.<br />
93
94<br />
Introdução<br />
O ouvi<strong>do</strong> absoluto é uma habilida<strong>de</strong> cognitiva rara e intrigante na percepção auditiva.<br />
A literatura geralmente <strong>de</strong>screve o porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto como sen<strong>do</strong> um indivíduo<br />
capaz <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar, através <strong>de</strong> rótulos (dó, ré, mi, etc), qualquer altura musical<br />
sem a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma referência externa prévia para comparação. Entre<br />
músicos, a prevalência <strong>de</strong>sse traço cognitivo varia entre 5 e 50% (Wellek, 1963;<br />
Chouard e Sposetti, 1991), sen<strong>do</strong> que os maiores índices encontram-se entre estudantes<br />
<strong>de</strong> música asiáticos (Gregersen et al., 1999; Deutsch et al., 2006).<br />
Há evidências <strong>de</strong> que o ouvi<strong>do</strong> absoluto se <strong>de</strong>senvolve em tenra infância, durante<br />
um perío<strong>do</strong> crítico para sua aquisição (Ward, 1999). Músicos que começam o treinamento<br />
musical antes <strong>do</strong>s seis anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> têm maior propensão a manifestar<br />
esse traço cognitivo (Sergeant, 1969; Takeuchi e Hulse, 1993). A idéia <strong>de</strong> que a aquisição<br />
<strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto aconteça apenas durante um estágio específico <strong>de</strong> amadurecimento<br />
é corroborada pelos altos índices <strong>de</strong> incidência <strong>de</strong> casos <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong><br />
absoluto adquiri<strong>do</strong>s mais tardiamente por indivíduos cujo <strong>de</strong>senvolvimento mental<br />
ocorre mais lentamente, como autistas (Brown et al., 2003) ou indivíduos acometi<strong>do</strong>s<br />
pela Síndrome <strong>de</strong> Williams (Lenhoff et al., 2001).<br />
Essa habilida<strong>de</strong>, contu<strong>do</strong>, po<strong>de</strong> variar entre seus porta<strong>do</strong>res. Alguns estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong>screvem<br />
diferenças significativas entre indivíduos com ouvi<strong>do</strong> absoluto na maneira <strong>de</strong><br />
perceber alturas musicais tanto no que se refere à sensibilida<strong>de</strong> à diferentes timbres<br />
e registros como no grau <strong>de</strong> precisão na i<strong>de</strong>ntificação e produção <strong>de</strong> diferentes alturas<br />
(Bachem, 1937; Takeuchi & Hulse, 1993). Enquanto alguns porta<strong>do</strong>res são capazes<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar, sem referência externa, qualquer altura em qualquer timbre e registro,<br />
outros conseguem nomear tons somente em timbres e/ou registros específicos. Enquanto<br />
uns são absolutamente precisos, outros cometem eventuais erros <strong>de</strong> semitom<br />
ou <strong>de</strong> oitava (Bachem, 1937). Além disso, quan<strong>do</strong> solicita<strong>do</strong>s a cantar uma <strong>de</strong>terminada<br />
altura musical, nem to<strong>do</strong>s os sujeitos que conseguem i<strong>de</strong>ntificar alturas musicais<br />
<strong>de</strong> forma absoluta são capazes <strong>de</strong> produzi-las vocalmente (Vanzella et al.,<br />
2008).<br />
Se, por um la<strong>do</strong>, sabe-se que a experiência musical precoce é fundamental para a<br />
aquisição <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto, por outro, no entanto, nem to<strong>do</strong>s os músicos que iniciam<br />
ce<strong>do</strong> o treinamento musical chegam efetivamente a <strong>de</strong>senvolvê-lo. Uma possível<br />
explicação para esse fato seria a inexistência, nesses indivíduos, <strong>de</strong> algum fator<br />
genético facilita<strong>do</strong>r para a aquisição <strong>do</strong> traço. Há relatos na literatura sobre uma<br />
concentração <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto entre membros <strong>de</strong> uma mesma família. Esses estu<strong>do</strong>s<br />
sugerem a existência <strong>de</strong> um componente genético necessário para a transmissão<br />
<strong>de</strong>ssa habilida<strong>de</strong> (Profita & Bid<strong>de</strong>r, 1988). Um grupo <strong>de</strong> pesquisa<strong>do</strong>res da<br />
Universida<strong>de</strong> da Califórnia vem se <strong>de</strong>dican<strong>do</strong> intensivamente, há mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos,<br />
ao estu<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssa hipótese com vistas a i<strong>de</strong>ntificar o gene ou <strong>do</strong> grupo <strong>de</strong> genes en-
volvi<strong>do</strong>s na transmissão <strong>de</strong>ssa estranha habilida<strong>de</strong> cognitiva (Athos et al., 2007;<br />
Theusch et al., 2009).<br />
Objetivos<br />
O presente estu<strong>do</strong> buscou (1) investigar a prevalência <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto entre estudantes<br />
universitários <strong>de</strong> música <strong>de</strong> duas diferentes regiões brasileiras (Su<strong>de</strong>ste e<br />
Centro Oeste); (2) verificar a existência <strong>de</strong> particularida<strong>de</strong>s da percepção auditiva<br />
entre os alunos que <strong>de</strong>clararam ser porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto (com relação à<br />
percepção <strong>de</strong> diferentes timbres e registros, bem como ao tempo <strong>de</strong> reação e à precisão<br />
na i<strong>de</strong>ntificação e produção <strong>de</strong> tons); (3) verificar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se estabelecer<br />
uma relação entre ouvi<strong>do</strong> absoluto e ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> início <strong>do</strong> treinamento musical;<br />
(4) investigar se o tipo <strong>de</strong> treinamento musical recebi<strong>do</strong> por porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong><br />
absoluto quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong> da notação musical e <strong>de</strong> solfejo teve algum impacto<br />
na aquisição <strong>de</strong>ssa característica; (5) verificar a presença <strong>de</strong>sse traço cognitivo em<br />
membros da família <strong>do</strong>s estudantes que <strong>de</strong>clararam possuir ouvi<strong>do</strong> absoluto; (6)<br />
comparar os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s nas duas universida<strong>de</strong>s pesquisadas para verificar a<br />
existência ou não <strong>de</strong> diferenças regionais.<br />
Participantes e Méto<strong>do</strong><br />
Participaram <strong>de</strong>sta investigação 263 alunos regularmente matricula<strong>do</strong>s nos cursos<br />
<strong>de</strong> graduação em música da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília (n=130) e da Universida<strong>de</strong> Estatudal<br />
Paulista (n=133). Cada um <strong>do</strong>s 263 alunos-voluntários, após consentimento<br />
livre e esclareci<strong>do</strong>, respon<strong>de</strong>u a um questionário, conten<strong>do</strong> perguntas tanto<br />
objetivas (estilo múltipla-escolha) como abertas (permitin<strong>do</strong> respostas <strong>de</strong>scritivonarrativas),<br />
sobre formação musical, histórico musical familiar e características pessoais<br />
da percepção auditiva.<br />
Os questionários foram aplica<strong>do</strong>s durante os anos letivos <strong>de</strong> 2007 (na UnB) e 2008<br />
(na UNESP), em horários solicita<strong>do</strong>s previamente aos professores das disciplinas<br />
coletivas oferecidas naqueles anos.<br />
O projeto <strong>de</strong>sta pesquisa foi aprova<strong>do</strong> pelo Comitê <strong>de</strong> Ética em Pesquisa da Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> São Paulo – Escola Paulista <strong>de</strong> Medicina (UNIFESP – EPM)<br />
e pelas Chefias <strong>do</strong>s Departamentos <strong>de</strong> Música da UnB e da UNESP.<br />
Resulta<strong>do</strong>s<br />
8,27% <strong>do</strong>s alunos da Unesp e 6,15% <strong>do</strong>s alunos da UnB matricula<strong>do</strong>s nos cursos <strong>de</strong><br />
graduação em música <strong>de</strong>clararam ter ouvi<strong>do</strong> absoluto. Estatisticamente, não houve<br />
diferença entre as duas universida<strong>de</strong>s (x2 = 0.65, p > 0.05). Soman<strong>do</strong>-se os resulta<strong>do</strong>s,<br />
a prevalência na amostra total foi <strong>de</strong> 7,22%.<br />
95
96<br />
Em ambas instituições os porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto reportaram variações significativas<br />
em suas habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> emitir e i<strong>de</strong>ntificar notas musicais. Cerca somente<br />
<strong>de</strong> um terço <strong>do</strong>s estudantes com ouvi<strong>do</strong> absoluto <strong>de</strong>clarou não ter nenhum tipo <strong>de</strong><br />
limitação em sua habilida<strong>de</strong>. Os <strong>de</strong>mais reportaram limitações relativas a timbre, registro<br />
e produção vocal.<br />
Tanto na UnB como na UNESP, a ida<strong>de</strong> mediana <strong>de</strong> início <strong>do</strong> treinamento musical<br />
entre os alunos com ouvi<strong>do</strong> absoluto revelou-se menor (7.18 ± 2.61) <strong>do</strong> que a ida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> início <strong>de</strong> não porta<strong>do</strong>res (11.55 ± 4.02) (F=21,18; p0,05).<br />
Não foi possível estabelecer uma relação entre o tipo <strong>de</strong> treinamento musical com<br />
relação aos aprendiza<strong>do</strong>s <strong>de</strong> leitura musical e <strong>de</strong> solfejo e a aquisição <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto.<br />
Tanto na UnB como na UNESP, a maior parte <strong>do</strong>s estudantes com e sem<br />
ouvi<strong>do</strong> absoluto utilizou os mesmos méto<strong>do</strong>s para o aprendiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> solfejo (dó fixo)<br />
e <strong>de</strong> leitura musical (escreven<strong>do</strong> o nome das notas próximo às mesma nas pauta).<br />
Em nenhuma das duas universida<strong>de</strong>s houve diferença no número <strong>de</strong> familiares com<br />
ouvi<strong>do</strong> absoluto entre os grupo <strong>de</strong> estudantes com e sem ouvi<strong>do</strong> absoluto.<br />
Discussão e conclusões<br />
O resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> prevalência <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto entre estudantes <strong>de</strong> música universitários<br />
obti<strong>do</strong> nesta investigação é semelhante ao resulta<strong>do</strong> encontra<strong>do</strong> por investigação<br />
realizada por Gregersen et al., em 1999, nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Os resulta<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> atual estu<strong>do</strong> po<strong>de</strong>m ser compara<strong>do</strong>s aos resulta<strong>do</strong>s da pesquisa norteamericana<br />
uma vez que ambos a<strong>do</strong>taram parâmetros equivalentes na investigação: os sujeitos<br />
estuda<strong>do</strong>s foram estudantes <strong>de</strong> música <strong>de</strong> universida<strong>de</strong>s e a meto<strong>do</strong>logia selecionada<br />
para fazer o levantamento da prevalência <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto foi a utilização <strong>de</strong> questionários.<br />
Os números encontra<strong>do</strong>s pela pesquisa norteamericana foram os seguintes:<br />
<strong>de</strong>ntre 1.996 estudantes <strong>de</strong> música <strong>de</strong> diferentes universida<strong>de</strong>s americanas, 146<br />
eram porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto – proporção que correspon<strong>de</strong> a 7,3% <strong>do</strong>s investiga<strong>do</strong>s.<br />
Nosso estu<strong>do</strong>, semelhantemente, encontrou um índice <strong>de</strong> 7,22% <strong>de</strong> porta<strong>do</strong>res<br />
<strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto entre estudantes <strong>de</strong> música universitários recruta<strong>do</strong>s em<br />
duas universida<strong>de</strong>s brasileiras <strong>de</strong> regiões distintas <strong>do</strong> país. Seria interessante ampliar<br />
essa investigação para outras áreas geográficas para observar se esses resulta<strong>do</strong>s ten<strong>de</strong>m<br />
ou não a se repetir e para verificar possíveis particularida<strong>de</strong>s no ensino e na prática<br />
musical regionais que eventualmente po<strong>de</strong>riam contribuir para uma maior<br />
prevalência <strong>de</strong> indivíduos com ouvi<strong>do</strong> absoluto numa <strong>de</strong>terminada região.<br />
Nosso trabalho também confirmou investigações anteriores que mostraram que a<br />
prevalência <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto é maior entre aqueles que iniciaram o treinamento<br />
musical em tenra infância. Uma investigação conduzida por Sergeant (1969) constatou<br />
que 87,5% <strong>do</strong>s músicos que iniciaram o treinamento musical por volta <strong>do</strong>s 5,6<br />
anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> eram porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto, enquanto entre aqueles que co-
meçaram o treinamento após os 9 anos nenhum apresentava esse traço cognitivo.<br />
Outros estu<strong>do</strong>s também confirmam essa tendência (Miyazaki, 1988a, 1988b; Takeuchi,<br />
1989; Bachem, 1940, 1955; Gregersen et al., 2000; Costa-Giomi et al., 2001;<br />
Chin, 2003).<br />
Os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s na presente investigação também corroboram da<strong>do</strong>s da literatura<br />
que <strong>de</strong>screvem diferenças significativas entre porta<strong>do</strong>res <strong>do</strong> traço cognitivo<br />
em questão. Alguns estu<strong>do</strong>s mostram que mesmo entre sujeitos com ouvi<strong>do</strong> absoluto<br />
po<strong>de</strong> haver variações substanciais tanto na extensão da sensibilida<strong>de</strong> a timbres e registros<br />
como no grau <strong>de</strong> precisão e consistência na i<strong>de</strong>ntificação e produção <strong>de</strong> tons<br />
(Bachem, 1937; Takeuchi e Hulse, 1993). Em nosso estu<strong>do</strong>, apenas cerca <strong>de</strong> um<br />
terço <strong>do</strong>s estudantes com ouvi<strong>do</strong> absoluto <strong>de</strong>clarou não ter nenhum tipo <strong>de</strong> limitação<br />
em sua habilida<strong>de</strong>. Os <strong>de</strong>mais estudantes reportaram limitações especialmente<br />
relativas à percepção e i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> alturas em diferentes timbres (alguns timbres<br />
específicos foram cita<strong>do</strong>s com mais frequência como sen<strong>do</strong> mais difíceis, tais como<br />
aqueles emiti<strong>do</strong>s pela voz humana ou por fontes eletrônicas). Investigações mais<br />
aprofundadas sobre essas variações perceptivas são <strong>de</strong>sejáveis, uma vez que po<strong>de</strong>riam<br />
contribuir para um melhor entendimento <strong>de</strong> como o cérebro percebe e processa alturas<br />
geradas por diferentes fontes sonoras.<br />
Apesar <strong>de</strong> Gregersen et al. (2000) terem relata<strong>do</strong> que estudantes norteamericanos<br />
que usaram solfejo dó-móvel tinham maior probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apresentar ouvi<strong>do</strong> absoluto,<br />
não pu<strong>de</strong>mos observar no presente estu<strong>do</strong> nenhuma relação entre o tipo <strong>de</strong><br />
treinamento <strong>de</strong> solfejo e a presença da habilida<strong>de</strong> em questão. Aparentemente, <strong>de</strong><br />
acor<strong>do</strong> com nossos resulta<strong>do</strong>s, um tipo específico <strong>de</strong> treinamento musical não é suficiente<br />
para garantir a aquisição <strong>de</strong>ssa habilida<strong>de</strong>. É possível simplesmente que os<br />
participantes com treinamento em dó-móvel da investigação <strong>de</strong> Gregersen et al. tenham<br />
ti<strong>do</strong> um treinamento mais intensivo ou mais precoce <strong>do</strong> que os participantes<br />
com treinamento em dó-fixo. Resumidamente, se o treinamento com um ou outro<br />
sistema <strong>de</strong> solfejo tem algum impacto no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto permanece<br />
uma questão aberta.<br />
Embora alguns estu<strong>do</strong>s relatem a existência <strong>de</strong> uma concentração <strong>de</strong> porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong><br />
ouvi<strong>do</strong> absoluto em <strong>de</strong>terminadas familias (Baharloo et al., 1998, 2000; Gregersen<br />
et al., 2000), não verificamos em nosso estu<strong>do</strong> diferenças significativas entre grupos<br />
<strong>de</strong> porta<strong>do</strong>res e não-porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> absoluto no que se refere ao número <strong>de</strong><br />
familiares com ouvi<strong>do</strong> absoluto.<br />
UnB e UNESP apresentaram resulta<strong>do</strong>s semelhantes em to<strong>do</strong>s os tópicos analisa<strong>do</strong>s.<br />
Não foi possível, portanto, i<strong>de</strong>ntificar nenhuma particularida<strong>de</strong> institucional ou regional<br />
no que se refere ã prevalência e às caracteristicas especificas <strong>do</strong>s alunos com<br />
ouvi<strong>do</strong> absoluto.<br />
97
98<br />
Referências<br />
Athos, E. Z., Levinson, B., Kistler, A., Zemansky, J., Bostrom, A., Freimer, N., & Gitschier, J.<br />
(2007). Dichotomy and perceptual distortions in absolute pitch ability. Proceedings of<br />
the National Aca<strong>de</strong>my of Sciences USA 104:14795-14800.<br />
Baharloo, S., Johnston, P.A., Service, S.K., Gitschier, J., & Freimer, N.B. (1998). Absolute<br />
pitch: An approach for i<strong>de</strong>ntification of genetic and nongenetic components. American<br />
Journal of Human Genetics 62:224-231.<br />
Baharloo, S., Service, S.K., Risch, N., Gitschier, J., & Freimer, N.B (2000). Familial aggregation<br />
of absolute pitch. American Journal of Human Genetics 67:755–758, 2000.<br />
Bachem, A. (1937). Various types of absolute pitch. Journal of the Acoustical Society of America<br />
9:146-151.<br />
Bachem, A. (1940). The genesis of absolute pitch. Journal of the Acoustical Society of America<br />
11:434-439.<br />
Bachem, A. (1955). Absolute pitch. Journal of the American Acoustical Society of America<br />
27:1180-1185.<br />
Brown, W.A., Cammuso, K., Sachs, H., Winklosky, B., Mullane, J., Bernier, R., Svenson, S.,<br />
Arin, D., Rosen-Sheidley, B., & Folstein, S.E. (2003). Autism-related language, personality,<br />
and cognition in people with absolute pitch: Results of a preliminary study. Journal<br />
Autism Dev. Disord. 33:163-167.<br />
Chin, C.S. (2003). The <strong>de</strong>velopment of absolute pitch: A theory concerning the roles of<br />
music training at an early <strong>de</strong>velopmental age and individual cognitive style. Psychology<br />
of Music 31:155-171.<br />
Chouard, C.H., Sposetti, R. (1991). Environmental and electrophysiological study of absolute<br />
pitch. Acta Otolaryngol. 111:225-230.<br />
Costa-Giomi, E., Gilmour, R., Sid<strong>de</strong>ll, J., & Lefebvre, E. (2001). Absolute pitch, early music<br />
training and spatial abilities. Annals New York Aca<strong>de</strong>my of Sciences 930:394-396.<br />
Deutsch, D., Henthorn, T., Marvin, E., & Xu, H.-S. (2006). Absolute pitch among American<br />
and Chinese conservatory stu<strong>de</strong>nts: Prevalence differences, and evi<strong>de</strong>nce for a speechrelated<br />
critical period (L). Journal of the Acoustical Society of America 119:719-722.<br />
Gregersen, P.K., Kowalsky, E., Kohn, N. & Marvin, E.W. (1999). Absolute pitch: Prevalence,<br />
ethnic variation, and estimation of the genetic component. American Journal of Human<br />
Genetics 65:911–913.<br />
Gregersen, P.K., Kowalsky, E., Kohn, N., & Marvin, E.W. (2000). Early childhood music<br />
education and predisposition to absolute pitch: Teasing apart genes and environment.<br />
American Journal of Medical Genetics 98:280-282.<br />
Lenhoff, H.M., Perales, O., & Hickok, G. (2001). Absolute pitch in Williams Syndrome.<br />
Music Perception 18:491-503.<br />
Miyazaki, K. (1988a). Musical pitch i<strong>de</strong>ntification by absolute pitch possessors. Perception<br />
& Psychophysics 44:501-512.<br />
Miyazaki, K. (1988b). Zettai onkan koyusha no ontei no chikatu [Perception of musical intervals<br />
by absolute pitch possessors] (Report no. H-88-61). Hearing Science Research Society,<br />
Tokyo, Japan.<br />
Profita, J. & Bid<strong>de</strong>r G. (1988). Perfect pitch. American Journal of Medical Genetics 29:763-<br />
771.
Sergeant, D. (1969). Experimental investigation of absolute pitch. Journal of Research in<br />
Music Education 17: 135-143.<br />
Takeuchi, A.H. (1989). Absolute pitch and response time: The processes of absolute pitch<br />
i<strong>de</strong>ntification. Unpublished master’s thesis, Johns Hopkins University, Baltimore, MD.<br />
Takeuchi, A.H. & Hulse, S.H. (1993). Absolute pitch. Psychological Bulletin 113(2):345-361.<br />
Theusch, E., Basu, A., & Gitschier, J. (2009). Genome-wi<strong>de</strong> study of families with absolute<br />
pitch reveals likage to 8q24.21 and locus heterogeneity. The American Journal of Human<br />
Genetics 85(1):112-119.<br />
Vanzella, P., Benassi-Werke, M., & Oliveira, M.G.M. (2008). Incidência e categorização <strong>de</strong><br />
ouvi<strong>do</strong> absoluto em estudantes <strong>de</strong> música da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília. Trabalho apresenta<strong>do</strong><br />
no IV <strong>SIMCAM</strong>, Maio 2008, em São Paulo, Brasil.<br />
Ward, W.D. (1999). Absolute pitch. In: The Psychology of Music, ed. Diana Deutsch, 265-<br />
298. San Diego: Aca<strong>de</strong>mic Press.<br />
Wellek, A. (1963). Musikpsychologte und Musikdsthetik: Grundriss <strong>de</strong>r systematischen Musikwissenschaft.<br />
Frankfurt: Aka<strong>de</strong>nuscher Verlag.<br />
99
100<br />
Dos colori<strong>do</strong>s sonoros na música oci<strong>de</strong>ntal<br />
proporciona<strong>do</strong>s pelos diferentes semitons<br />
Edmun<strong>do</strong> Hora<br />
ephora@iar.unicamp.br<br />
IA – UNICAMP<br />
Resumo<br />
Um <strong>do</strong>s aspectos significativos para a expressão na música oci<strong>de</strong>ntal refere-se à qualida<strong>de</strong><br />
das “cores” nas diferentes tonalida<strong>de</strong>s. Des<strong>de</strong> a sua sedimentação por volta <strong>do</strong> século<br />
X<strong>VI</strong>, o “novo” campo tonal passou a <strong>de</strong>finir características particulares aos repertórios e<br />
aos sons, impulsionan<strong>do</strong> os compositores nas escolhas <strong>de</strong> suas obras. Assim, a escolha da<br />
tonalida<strong>de</strong> foi um <strong>do</strong>s pontos relevantes para a composição musical. Ainda que o sistema<br />
igual <strong>de</strong> temperamento musical tenha si<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong> já há muitos séculos atrás, po<strong>de</strong>mos<br />
afirmar que, sua utilização prática somente se fixou como padrão em tempos mo<strong>de</strong>rnos<br />
(séc. XX). Dividir a oitava em semitons iguais (1/12 da coma Pitagórica ou 1200 cents) tornou<br />
possível a modulação pela utilização da enarmonia, mas, como o próprio nome <strong>do</strong> temperamento<br />
sugere, igualou as características próprias <strong>de</strong> cada tonalida<strong>de</strong>, ao tempo em<br />
que reduziu para duas, as possibilida<strong>de</strong>s modais, padronizan<strong>do</strong> em <strong>do</strong>is os mo<strong>do</strong>s (Maior<br />
e menor).<br />
Palavras-chave<br />
Semitom; colori<strong>do</strong>s sonoros; afeto musical; Musicalische Temperatur; Das Wohltemperirte<br />
Clavier.<br />
Introdução<br />
Em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século X<strong>VI</strong>I, autores <strong>de</strong> diversas regiões européias, propuseram diferentes<br />
soluções <strong>de</strong> temperamentos1 – hoje conhecidas como “<strong>de</strong>siguais” – buscan<strong>do</strong><br />
se aproximar ao máximo das purezas intervalares2, ocasionan<strong>do</strong> em seguida<br />
o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> tópico: Características das Tonalida<strong>de</strong>s3. Largamente utiliza<strong>do</strong>,<br />
o tema incentivou diferentes teóricos <strong>do</strong> século X<strong>VI</strong>II e <strong>de</strong> boa parte <strong>do</strong> século<br />
XIX com <strong>de</strong>staque para Louis Hector Berlioz (1803-1869) com o seu Grand traité<br />
d’instrumentation et d’orchestration mo<strong>de</strong>rnes publica<strong>do</strong> em Paris (1843/44?).<br />
Por outro la<strong>do</strong>, as <strong>do</strong>ze notas <strong>do</strong> tecla<strong>do</strong> tradicional (brancas para os intervalos<br />
diatônicos e, pretas para os cromáticos – ou vice-versa em alguns tecla<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>s séculos X<strong>VI</strong>I e X<strong>VI</strong>II), simbolizaram importantes “conceitos” na teoria musical<br />
<strong>do</strong>s perío<strong>do</strong>s Renascentista e Barroco4. Importante notar que, como exemplo, as<br />
notas Sol e Sol #, não eram vistas como notas diferentes, como alguns acreditam hoje<br />
em dia, mas como cores diferentes <strong>de</strong> uma mesma nota, ao contrário <strong>de</strong> suas equivalentes<br />
enarmônicas: Sol # e Lá b, que eram notas diferentes uma da outra.
Fig. 1— Página título <strong>do</strong> Musicalische Temperatur <strong>de</strong> Andreas Werckmeister.<br />
Fonte: Utrecht: The Diapason Press 1983 TTL 1<br />
Em seu Musicalische Temperatur <strong>de</strong> 1691, Andreas Werckmeister (1645-1706) propôs<br />
diferentes possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sistemas <strong>de</strong> afinação <strong>de</strong>sigual. Ele os nomeou com<br />
algarismos romanos e, a proposta com número III, é a atualmente mais conhecida<br />
por suas qualida<strong>de</strong>s práticas <strong>de</strong> utilização, como também pela facilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua realização.<br />
Nele, quatro quintas ascen<strong>de</strong>ntes são estreitadas. Às três primeiras quintas<br />
estreitadas: Dó-Sol, Sol-Ré, Ré-Lá, seguem-se duas quintas puras: Lá-Mi e Mi-Si, e<br />
a próxima quinta: Si-Fá #, recebe o mesmo estreitamento que as três iniciais, compon<strong>do</strong><br />
assim, o número total das quatro estreitadas. Todas as <strong>de</strong>mais outras serão<br />
puras, fechan<strong>do</strong> o círculo <strong>de</strong> quintas. Este sistema prático <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como<br />
“Bem tempera<strong>do</strong>”, uma vez que possibilita a utilização <strong>de</strong> todas as vinte e quatro to-<br />
101
102<br />
nalida<strong>de</strong>s. Embora seu centro tonal esteja em Dó, quanto mais longínquo estiverem<br />
as tonalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>le, mais característico serão sua cores tonais, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> as qualida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> suas terças maiores, que vão se abrin<strong>do</strong> até seu ponto máximo, a terça Pitagórica.<br />
Bach, certamente, utilizou em algum momento este sistema, pois sabe-se que em<br />
sua biblioteca particular havia um exemplar <strong>do</strong> Musicalische Temperatur <strong>de</strong> Werckmeister.<br />
A figura a seguir traz a página título da obra publicada em Quedlemburg, mencionan<strong>do</strong><br />
diferentes instrumentos <strong>de</strong> tecla<strong>do</strong>.<br />
Uma afinação com intervalos puros consonantes, não po<strong>de</strong> ser realizada, uma vez<br />
que a pureza <strong>de</strong> alguns intervalos resultará sempre na impureza <strong>de</strong> outros. Nos instrumentos<br />
<strong>de</strong> tecla<strong>do</strong> este problema <strong>de</strong>ve ser resolvi<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma a se temperar, ao<br />
menos alguns <strong>do</strong>s intervalos consonantes. Werckmeister afirmou: “Portanto, um<br />
temperamento na afinação musical é um pequeno <strong>de</strong>svio da perfeição <strong>de</strong> sua razão<br />
musical, no qual a conexão das progressões toma lugar corretamente e a escuta é satisfeita”<br />
. 5<br />
Na <strong>de</strong>finição para o Semitom no verbete <strong>do</strong> Dictionnaire <strong>de</strong> Musique <strong>de</strong> Jean-Jacques<br />
Rousseau (Paris, 1768, p. 427) lemos:<br />
SEMI-TOM. s.m. É o menor <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os intervalos admiti<strong>do</strong>s na Música mo<strong>de</strong>rna;<br />
ele, mais ou menos, vale a meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> um tom. Existem diversas espécies <strong>de</strong> Semitons.<br />
Na prática musical, nós distinguimos <strong>do</strong>is. O Semitom maior e o semitom<br />
menor. (. . .) O Semitom maior é a diferença entre a Terça maior e a Quarta, como<br />
mi e fá. A sua razão é <strong>de</strong> 15 à 16, e ele forma o menor <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os intervalos diatônicos.<br />
O Semitom menor é a diferença entre a terça maior com a terça menor;<br />
ele se encontra sobre o mesmo grau por um Susteni<strong>do</strong> ou por um Bemol. Ele<br />
forme um intervalo Cromático, e sua razão é <strong>de</strong> 24 a 25.<br />
Os diagramas a seguir, ilustram as composições <strong>do</strong>s diferentes semitons. No primeiro<br />
sua direção pelo senti<strong>do</strong> anti-horário compon<strong>do</strong> o semitom diatônico.<br />
Fig. 2 — Diagrama ilustrativo para a construção <strong>do</strong> semitom diatônico.
Este é o semitom encontra<strong>do</strong> nas escalas diatônicas: as duas notas sempre têm nomes<br />
diferentes, por exemplo: Si-Dó, Mi-Fá, etc.<br />
Aqui, o semitom cromático tem sua composição pela direção <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> horário.<br />
Fig. 3 — Diagrama ilustrativo para a construção <strong>do</strong> semitom cromático.<br />
Este semitom cromático não é encontra<strong>do</strong> nas escalas diatônicas: as duas notas têm<br />
sempre o mesmo nome, por exemplo: Fá-Fá #.<br />
Sobre as controvérsias pela aceitação <strong>do</strong> temperamento Igual no século X<strong>VI</strong>I, Patrizio<br />
Barbieri em seu artigo Il Temperamento equabile nel perio<strong>do</strong> Frescobaldiano<br />
apresenta uma carta <strong>de</strong> Giambattista Doni (c.1593-1647) a Marin Mersene (1588-<br />
1648)6, contrária à atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Girolamo Frescobaldi (1583-1643) pela introdução<br />
<strong>do</strong> temperamento Igual em Roma. Assim lemos:<br />
[. . .] Esteve aqui um velho, o qual – <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter vivi<strong>do</strong> a maior parte <strong>de</strong> sua vida<br />
na Calábria e Sicilia, estabeleceu-se em Roma – procurou introduzir, como invenção<br />
bela e nova, a igualda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s semitons no cravo, e encontrou alguns <strong>de</strong><br />
nossos músicos (tantos são os ignorantes) que lhe <strong>de</strong>u crença. Porém, ao final, reconhecen<strong>do</strong><br />
a imperfeição <strong>de</strong>sta afinação e não queren<strong>do</strong> que os bons cantores<br />
cantassem acompanha<strong>do</strong>s por tais instrumentos (como eu tinha previsto), a<br />
aban<strong>do</strong>nou e tu<strong>do</strong> terminou em ane<strong>do</strong>ta. A isto contribuiu ainda o vosso livro<br />
francês, porque eu fiz ver ao Mons. Card. Barberini o que o senhor disse <strong>de</strong> um<br />
chama<strong>do</strong> Sig. Gallé – que tinha tenta<strong>do</strong> introduzir a mesma coisa, mas sem sucesso,<br />
uma vez que os vossos músicos não concordaram com a ru<strong>de</strong>za <strong>de</strong> suas terças<br />
e a pequenez <strong>do</strong> semitom diatônico na parte <strong>do</strong> soprano da cadência fá, mi,<br />
fá.7<br />
Dessa forma, fica evi<strong>de</strong>nte que diferentes opiniões se contrapuseram e que o sistema<br />
Igual – aceito hoje em dia como padrão – já tinha os seus admira<strong>do</strong>res antes mesmo<br />
da fixação <strong>do</strong> conceito tonal para a produção musical no mun<strong>do</strong> oci<strong>de</strong>ntal.<br />
No entanto, o que iremos perceber é que há, em diferentes perío<strong>do</strong>s da história, uma<br />
sistemática busca pela emissão intervalar mais próxima possível <strong>de</strong> suas purezas. Uma<br />
tentativa ilusória, visto que, é impossível se afinar to<strong>do</strong>s os intervalos puros no padrão<br />
103
104<br />
escalar. Portanto, a utilização <strong>de</strong> qualquer temperamento se fará necessária, em<br />
acor<strong>do</strong> a estética da obra em questão.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, um fato comum e bem difundi<strong>do</strong> entre os músicos nos dias <strong>de</strong> hoje,<br />
é <strong>de</strong> que a expressão Bem Temperada refere-se a um tipo ‘igual’ <strong>de</strong> afinação divulga<strong>do</strong><br />
musicalmente por J. S. BACH através da sua coleção <strong>de</strong> Prelúdios e Fugas intitulada<br />
Das Wohltemperirte Clavier (O Cravo Bem Tempera<strong>do</strong>?) <strong>de</strong> 1722. Uma inverda<strong>de</strong>,<br />
na medida em que, embora ele provavelmente a conhecesse, não fez qualquer menção<br />
a este sistema em seus poucos escritos sobreviventes.<br />
Fig. 4 — O frontispício autógrafo <strong>de</strong> Bach com o arabesco<br />
para o “Cravo Bem Tempera<strong>do</strong>”.<br />
Fonte: Ed. Facsimilar.
Recentemente, Bradley Lehmann (2004), <strong>de</strong>cifrou o arabesco relaciona<strong>do</strong> ao autor,<br />
revelan<strong>do</strong> ao mun<strong>do</strong> um novo esquema <strong>de</strong> afinação, totalmente contrário àquele até<br />
então aceito, qual seja, o da afinação Igual (a divisão da oitava em 12 partes iguais).<br />
Lehmann <strong>de</strong>codifica os diferentes tipos <strong>de</strong> laços simples, duplos e triplos, correspon<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-os<br />
aos graus <strong>de</strong> estreitamento das quintas para a composição <strong>do</strong> sistema<br />
<strong>de</strong> afinação. Por se tratar <strong>de</strong> diferentes tipos <strong>de</strong> laços, enten<strong>de</strong>-se assim uma proposta<br />
“<strong>de</strong>sigual” para o temperamento Bachiano.<br />
O nosso exemplo musical ilustrativo refere-se a Variatio 25 a 2 Clav. uma das variações<br />
contidas na IV (Quarta parte) <strong>do</strong> Clavier Übung <strong>de</strong> J.S.Bach (1685-1750),<br />
BWV 988, que tem seu título: “Exercício para o tecla<strong>do</strong> compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> uma Ária<br />
e diferentes variações para um cravo com <strong>do</strong>is manuais. Composto para o proveito<br />
<strong>do</strong>s ama<strong>do</strong>res, para a recreação <strong>de</strong> seu espírito, por Johann Sebastian Bach, etc.”.<br />
Fig. 5 — Adagio. Variatio 25 a 2 Clav. J. S. Bach. Compassos 1 a 3.<br />
Fonte: Ed. Facsimilar<br />
Com bases nas informações históricas a proposta <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>monstração é:<br />
a) tornar audível, a criação <strong>do</strong>s semitons: maior e menor;<br />
b) perceber sua aplicação na expressivida<strong>de</strong> musical (por meio da utilização <strong>do</strong><br />
cravo – instrumento propício a essas variações <strong>de</strong> afinação), evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> suas<br />
nuances dinâmicas no repertório cravístico o Adagio <strong>de</strong> J. S. Bach, com seus cromatismos<br />
característicos;<br />
c) contrapor esses “novos semitons” ao semitom <strong>do</strong> temperamento igual, muito<br />
conheci<strong>do</strong> na prática atual, e o recém <strong>de</strong>scoberto temperamento Bachiano i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong><br />
por Bradley Lehmann (2004), com base no Diagrama <strong>do</strong> Das Wohl -<br />
temperirte Clavier (1722).<br />
A título <strong>de</strong> lembrança mencionamos: o tom diatônico tem 203.90 cents (no temperamento<br />
igual 200 para o tom) e o semitom diatônico apenas 90.22 cents. (ou e 100<br />
cents para o semitom). Portanto, uma proporção totalmente diferente da que estamos<br />
acostuma<strong>do</strong>s a ouvir nos dias <strong>de</strong> hoje.<br />
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
A experiência auditiva, única, proporcionada pelos diferentes tamanhos <strong>do</strong>s semi-<br />
105
106<br />
tons enfatiza os colori<strong>do</strong>s sonoros e os afetos musicais. Os diferentes sistemas <strong>de</strong>siguais<br />
<strong>de</strong> afinação para os instrumentos <strong>de</strong> tecla<strong>do</strong> tiveram seus apogeus durante to<strong>do</strong><br />
o século X<strong>VI</strong>II, projetan<strong>do</strong>-se em gran<strong>de</strong> parte no século XIX. Autores <strong>de</strong> diferentes<br />
regiões européias contribuíram sobremaneira para a expressivida<strong>de</strong> das obras musicais,<br />
ainda que o sistema igual <strong>de</strong> afinação tenha ti<strong>do</strong> caminho paralelo aos “<strong>de</strong>siguais”,<br />
dividin<strong>do</strong> a preferência <strong>de</strong> alguns teóricos visionários. Embora controverti<strong>do</strong>, o tema<br />
necessita ser mais revisita<strong>do</strong> e difundi<strong>do</strong> – uma vez que, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> as suas possibilida<strong>de</strong>s<br />
enarmônicas – comumente se confun<strong>de</strong> sistema “Bem tempera<strong>do</strong>” com o sistema<br />
Igual, a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> como o padrão no século XX.<br />
1 Temperar foi uma iniciativa <strong>de</strong>liberada <strong>do</strong>s estudiosos da época na esperança <strong>de</strong> encontrar<br />
soluções “toleráveis” à não possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> emissão perfeita <strong>do</strong>s intervalos no mun<strong>do</strong> tonal.<br />
Maiores <strong>de</strong>talhes ver: “O porquê <strong>do</strong> Temperamento” In: As obras <strong>de</strong> Froberger no contexto <strong>do</strong><br />
Temperamento Mesotônico. Edmun<strong>do</strong> Pacheco Hora. TESE (Doutora<strong>do</strong> em Música). Instituto<br />
<strong>de</strong> <strong>Artes</strong>. Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas. 2004.<br />
2 Um intervalo é a relação entre <strong>do</strong>is sons quanto à sua freqüência.<br />
3 Menciono aqui o trabalho significativo <strong>de</strong> Rita Steblin. A History of Key Characteristics in<br />
the 18th and Early 19th Centuries. UMI Research Press (1983).<br />
iv O arranjo formal para o padrão <strong>do</strong> tecla<strong>do</strong> musical com base na escala <strong>de</strong> Dó, por exemplo,<br />
remete-se ao século XV (o Órgão <strong>de</strong> Nicholas Farber, construí<strong>do</strong> em 1361 e remo<strong>de</strong>la<strong>do</strong> em<br />
1495). O <strong>de</strong>senho típico para o tecla<strong>do</strong> tem sua primeira ilustração proposta por M. Praetorius<br />
no Syntagma Musicum (1619). Note-se que a tecla alterada para a nota Si b aparece como<br />
parte da transposição <strong>do</strong> Hexacor<strong>de</strong> transposto a partir <strong>do</strong> Fá.<br />
5 Darum ist die Temperatur in <strong>de</strong>r Musicalische Stimmung, ein kleiner Abschnitt von <strong>de</strong>r<br />
Vollkommenheit <strong>de</strong>r musicalische proportionen, wodurch die Zusammenbindung <strong>de</strong>r progressen<br />
füglich geschieht und das Gehör vergnügt wird.<br />
6 Mersenne, Marin. Harmonie universelle, contenant la théorie et la pratique <strong>de</strong> la musique.<br />
Paris, 1636.<br />
vii [. . .] Il y a eu icy um vieillard, lequel, après avoir <strong>de</strong>meuré la pluspart <strong>de</strong> sa vie en Calabre<br />
et en Sicile , s’estant retiré à Rome, a tasché d’y introduire, comme une belle et nouvelle invention,<br />
l’esgalité <strong>de</strong>s semitons en l’espinette et a trouvé quelqu’un <strong>de</strong> nos Musiciens (tant<br />
sont ils ignorants) qui luy ont adjosté foy. Mais en fin recognissant l’imperfection <strong>de</strong> ceste<br />
accord et ne voulant les bons chantres chanter <strong>de</strong>ssus ces instrumens (comme j’avois predict)<br />
l’ont aban<strong>do</strong>nné, et tout s’est tourné en rissé. A cela a contribué encores vostre livres françois,<br />
car j’ay faict voir à Monseig.r le Card.l Barberin ce que vous dite d’un nommé le Sieur Gallé<br />
qui avoit cherché d’introduire la mesme chose, mais sans fruict , pource que n’a point agrée<br />
à voz Musiciens la ru<strong>de</strong>sse <strong>de</strong> ces tierces et la petitesse du semiton aux ca<strong>de</strong>nces du superius fa,<br />
mi, fa.<br />
Referências Bibliográficas<br />
Barbieri, Patrizio (1986) Il Temperamento equabile nel perio<strong>do</strong> Frescobaldiano. Firenze: Leo<br />
S. Olschki Editore.
Berlioz, Hector (1843). Grand traité d’instrumentation et d’orchestration mo<strong>de</strong>rnes. Paris: Ed.<br />
Schonenberger.<br />
Hora, Edmun<strong>do</strong> Pacheco (2004) As obras <strong>de</strong> Froberger no contexto <strong>do</strong> Temperamento Mesotônico.<br />
Tese (Doutora<strong>do</strong> em Música). Instituto <strong>de</strong> <strong>Artes</strong>. Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong><br />
Campinas. 2005.<br />
Lehmann, Bradley (2004). Johann Sebastian Bach’s tuning. Disponível em: http://larips.com<br />
Acesso em: 27 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2010.<br />
Mersenne, Marin (1636) Harmonie universelle, contenant la théorie et la pratique <strong>de</strong> la musique,<br />
Paris: Sebastian Cramoisy, Reedição CNRS 1975 (1975-6).<br />
Rousseau, Jean (1768). Dictionnaire <strong>de</strong> Musique. Paris: Ed. Facsimilar.<br />
Steblin, Rita (1983). A History of Key Characteristics in the 18th and Early 19th Centuries.<br />
UMI Research Press.<br />
Werckmeister, Andreas. (1691). Musicalische Temperatur. Quedlemburg. [Theo<strong>do</strong>ri Philippi<br />
Calvisii]. (Reedição The Diapason Press 1983 (R.Rasch).<br />
107
108<br />
Música e <strong>Cognição</strong>: a percepção musical <strong>do</strong> ritmo<br />
em crianças entre 3 e 7 anos numa perspectiva piagetiana<br />
Resumo<br />
Filipe <strong>de</strong> Matos Rocha<br />
filipiano@hotmail.com<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
O presente trabalho discute o tema Música e <strong>Cognição</strong>, no que diz respeito aos aspectos<br />
<strong>de</strong> percepção musical <strong>do</strong> ritmo e suas implicações no processo <strong>de</strong> ensino e aprendizagem<br />
numa perspectiva piagetiana, com crianças entre 3 e 7 anos. Com base em minha experiência<br />
pessoal no ensino <strong>de</strong> ritmo para crianças nessa faixa etária, abor<strong>do</strong> na primeira<br />
parte <strong>do</strong> texto algumas características cognitivas <strong>do</strong> pensamento pré-operatório apresentadas<br />
por Piaget, e na segunda parte estabeleço um paralelo entre as quatro condições<br />
necessárias para a fundamentação <strong>de</strong> uma teoria cognitiva musical, <strong>de</strong>fendidas por Beyer<br />
(1988), e o ensino <strong>do</strong> ritmo da maneira como propomos. O méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> pesquisa utiliza<strong>do</strong><br />
foi um levantamento teórico sobre os estu<strong>do</strong>s piagetianos e uma aplicação <strong>de</strong>sses conhecimentos<br />
na analise <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento musical no que se refere à percepção <strong>do</strong><br />
ritmo. Tive como objetivo geral expor alguns aspectos cognitivos da teoria piagetiana envolvi<strong>do</strong>s<br />
no processamento <strong>do</strong> ritmo em crianças entre 3 e 7 anos e, consi<strong>de</strong>rar algumas<br />
condições para uma possível fundamentação da teoria cognitiva em música. Por meio<br />
<strong>de</strong>sta fundamentação teórica coloco à prova minha meto<strong>do</strong>logia <strong>do</strong> ensino <strong>de</strong> ritmo à<br />
crianças nessa faixa <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, o que me leva a concluir se esta maneira <strong>de</strong> ensinar é cognitivamente<br />
viável ou não.<br />
A percepção musical <strong>do</strong> ritmo em crianças entre 3 e 7 anos<br />
A mais primitiva <strong>de</strong> todas as percepções sensoriais humanas é a auditiva. Experiências<br />
mostram que no vente materno o bebê já é capaz <strong>de</strong> ouvir os sons que o cercam,<br />
e ao nascer ele já adquiriu a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconhecer a voz da mãe. Neste senti<strong>do</strong>,<br />
a percepção auditiva encontra-se em vantagem em relação às outras percepções sensoriais.<br />
(Beyer, 1988, p. 70)<br />
Piaget propõe quatro estágios no <strong>de</strong>senvolvimento cognitivo humano: Perío<strong>do</strong> Sensório-motor<br />
(0 a 2 anos), Perío<strong>do</strong> Pré-operatório (2 a 7 anos), Perío<strong>do</strong> Operacionalconcreto<br />
(7 a 11, 12 anos) e Perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> Operações-formais (12 anos em diante).<br />
No perío<strong>do</strong> em questão, pré-operatório, aprimora-se cada vez mais a percepção. E é<br />
nessa fase que o individuo se torna apto a captar mais profundamente as proprieda<strong>de</strong>s<br />
das qualida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> som, pois já foram <strong>de</strong>senvolvidas estruturas <strong>de</strong> pensamentos<br />
que são capazes <strong>de</strong> exercer essa função mais apuradamente (Beyer, 1988, p. 71).
Percepção <strong>do</strong> Ritmo Musical no Perío<strong>do</strong> Pré-Operatório<br />
Com base em minha experiência pessoal no ensino <strong>de</strong> ritmo para crianças entre 3 a<br />
7 anos, abordarei algumas das características cognitivas <strong>do</strong> pensamento pré-operatório<br />
apresentadas por Piaget.<br />
Característica Concreta <strong>do</strong> Pensamento<br />
A manipulação <strong>do</strong>s símbolos é a gran<strong>de</strong> conquista <strong>de</strong>ste perío<strong>do</strong> e, em se tratan<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> ritmo, os símbolos trabalha<strong>do</strong>s aqui são o “curto” e o “longo”, que como <strong>do</strong>is “esquemas<br />
simbólicos” representam experiências sensório-motoras já internalizadas.<br />
Nessa fase a criança possui a capacida<strong>de</strong> intelectual <strong>de</strong> representar um significa<strong>do</strong>r<br />
(o som) por um significa<strong>do</strong> (conceito <strong>de</strong> curto e longo). E esses símbolos, que representam<br />
a duração <strong>do</strong> som, são representa<strong>do</strong>s da seguinte maneira: _ _ _ _ _<br />
(curto) e _______________ (longo).<br />
Irreversibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Pensamento<br />
Em relação à irreversibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> pensamento, a noção <strong>de</strong> proporção ainda não foi<br />
construída nessa faixa etária. A duração é mais subjetiva e por comparação. Nessa<br />
ida<strong>de</strong>, a criança não consegue retroce<strong>de</strong>r seu pensamento ao ponto <strong>de</strong> origem. É<br />
possível que uma criança possa enten<strong>de</strong>r que se ligarmos <strong>do</strong>is sons curtos criaremos<br />
um longo, mas fazer o caminho inverso (um longo menos um curto é igual a um<br />
curto) está fora <strong>de</strong> sua capacida<strong>de</strong> cognitiva.<br />
Egocentrismo <strong>do</strong> Pensamento<br />
A criança, aqui, ainda não é capaz <strong>de</strong> “ver” (ou “perceber”) <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> um<br />
outro, ela freqüentemente fala usan<strong>do</strong> termos que tem referências idiossincráticas e<br />
usa associações algumas vezes não relacionadas com nenhuma estrutura lógica discernível.<br />
Por exemplo, uma criança ao se referir a um som longo diz: “É como o som<br />
da campanhinha!”, enquanto, a um som curto diz: “É como o som <strong>do</strong> relógio <strong>de</strong>sperta<strong>do</strong>”.<br />
Essas frases refletem as experiências <strong>de</strong>la que po<strong>de</strong>m ser diferentes das experiências<br />
<strong>de</strong> outra criança.<br />
Em sen<strong>do</strong> a duração subjetiva, como já foi cita<strong>do</strong>, é bom, também, que o padrão <strong>de</strong><br />
“certo” e “erra<strong>do</strong>” não seja rígi<strong>do</strong>.<br />
Centralização<br />
É importante trabalhar com as qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> som separadamente, pois nessa faixa<br />
<strong>de</strong> ida<strong>de</strong> a criança centra sua atenção num pormenor <strong>de</strong> um acontecimento e ainda<br />
não tem a flexibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviar sua atenção para outro aspecto <strong>de</strong> uma situação.<br />
E aos poucos, quan<strong>do</strong> a criança for adquirin<strong>do</strong> a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>scentralização, será<br />
possível unir duração, altura, intensida<strong>de</strong> e timbre, num mesmo exercício.<br />
109
110<br />
Quatro condições para uma teoria cognitiva<br />
Em paralelo com as quatro condições necessárias para a fundamentação <strong>de</strong> uma teoria<br />
cognitiva musical, <strong>de</strong>fendidas por Beyer (1988), po<strong>de</strong>mos verificar se o ensino<br />
<strong>de</strong> ritmo da maneira como propomos aqui possui respal<strong>do</strong>.<br />
Primeira Condição<br />
“A ontogênese musical [<strong>de</strong>ve ser] paralela à filogênese musical” (Beyer, 1988, p. 62),<br />
ou seja, o <strong>de</strong>senvolvimento musical <strong>do</strong> sujeito <strong>de</strong>ve reeditar a história musical da civilização<br />
(Beyer, 1988).<br />
No aspecto filogenético po<strong>de</strong>mos ver que, historicamente, as primeiras figuras que<br />
simbolizavam o ritmo se chamavam Longa e Breve. Isso se coloca em paralelo com<br />
a ontogênese ao vermos que uma criança primeiro produz sons que po<strong>de</strong>m ser longos<br />
ou curtos antes <strong>de</strong> adquirir a fala.<br />
Segunda Condição<br />
O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>ve ser gradativo como produto da interação entre a ação <strong>do</strong><br />
sujeito e a sua carga hereditária. (Beyer, 1988, p. 65).<br />
Po<strong>de</strong>mos ver que existem crianças que possuem gran<strong>de</strong> facilida<strong>de</strong> para perceber e<br />
reproduzir ritmos. Essa facilida<strong>de</strong> inata associada ao estu<strong>do</strong> potencializará essa habilida<strong>de</strong>.<br />
O que essas crianças executam ritmicamente será relaciona<strong>do</strong> posteriormente<br />
ao conhecimento da articulação que <strong>de</strong>mora mais ou menos, abrin<strong>do</strong><br />
caminho, assim, para uma maneira <strong>de</strong> pensar mais formal e complexa.<br />
Terceira Condição<br />
Deve ser dada “ênfase para os processos intelectuais em oposição a uma ênfase sobre<br />
o afetivo” (Beyer, 1988, p. 66). Nesse senti<strong>do</strong>, é necessário que os processos intelectuais<br />
utiliza<strong>do</strong>s na música sejam <strong>de</strong>scobertos e consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s, para que uma teoria<br />
cognitiva se efetive (Beyer, 1988).<br />
Ao trabalhar com sons longos e curtos, o foco principal é a capacida<strong>de</strong> intelectual<br />
da criança <strong>de</strong> processar essa informação. O fator afetivo é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>, mas <strong>de</strong>ve-se<br />
cuidar para que não haja uma hipervalorização <strong>de</strong>sse aspecto. Para mantermos algum<br />
equilíbrio entre o aspecto afetivo e o intelectual po<strong>de</strong>mos utilizar, entre outros, recursos<br />
como sons onomatopaicos <strong>de</strong> eventos <strong>do</strong> dia-a-dia da criança. Por exemplo:<br />
“o som da moto”, “o som <strong>do</strong> avião”, “o som <strong>de</strong> animais”, etc.<br />
Quarta Condição<br />
Esther Beyer consi<strong>de</strong>ra “a existência <strong>de</strong> estágios sucessivos e gradativos em complexida<strong>de</strong>”<br />
(Beyer, 1988, p. 67), que se enquadram na última condição necessária, segun<strong>do</strong><br />
ela, para a fundamentação <strong>de</strong> uma teoria cognitiva em música.
Toman<strong>do</strong> por base essa perspectiva e minha experiência <strong>de</strong> ensino, proponho os seguintes<br />
estágios da aprendizagem perceptiva <strong>do</strong> ritmo:<br />
Tabela 1.1 — Estágios sucessivos e gradativos <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> da aprendizagem<br />
perceptiva <strong>do</strong> ritmo<br />
Notação Não-Convencional<br />
(traços)<br />
Notação Convencional<br />
(figuras <strong>de</strong> notas)<br />
Duração subjetiva:<br />
Duração objetiva (pulsos):<br />
Duração objetiva (pulsos):<br />
Duração objetiva (divisão e<br />
subdivisão <strong>do</strong>s pulsos):<br />
1. Sons curtos e longos<br />
2. Sons curtos, longos e muito longos<br />
3. Sons curtos – um pulso; longos –<br />
<strong>do</strong>is pulsos e; muito longos – quatro<br />
pulsos<br />
4. Sons curtos – um pulso; longos –<br />
<strong>do</strong>is pulsos e; muito longos –<br />
quatro pulsos<br />
5. Semínima, Mínima, Mínima<br />
pontuada e Semibreve.<br />
6. Duas colcheias, três colcheias e<br />
quatro semicolcheias.<br />
7. Síncopes, Contratempos e<br />
Quiálteras<br />
Por meio <strong>de</strong>sta fundamentação teórica coloquei à prova minha meto<strong>do</strong>logia <strong>do</strong> ensino<br />
<strong>de</strong> ritmo à crianças entre 3 e 7 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, o que me leva a concluir que esta<br />
maneira <strong>de</strong> ensinar é cognitivamente viável.<br />
Esse foi o primeiro passo para um estu<strong>do</strong> crítico mais profun<strong>do</strong> sobre minha própria<br />
maneira <strong>de</strong> fazer educação musical. Esse é um campo intensamente vasto e seria pretensão<br />
ter a intenção <strong>de</strong> esgotar o assunto nesta pesquisa. Trabalhos futuros po<strong>de</strong>m<br />
contemplar uma abordagem cognitiva da percepção da altura, intensida<strong>de</strong> e timbre.<br />
Bem como além <strong>do</strong> aspecto perceptivo da cognição, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> mencionar<br />
os aspectos <strong>de</strong> produção e execução musical que representam outra vertente<br />
cognitiva importante a ser explorada em futuras pesquisas.<br />
Referências<br />
Beyer, Esther S. W. A abordagem cognitiva em música: uma crítica ao ensino da música a<br />
partir da teoria <strong>de</strong> Piaget. (1988). Dissertação (Mestra<strong>do</strong> em Educação). Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul.<br />
Phillips, John Lawrence. Subperío<strong>do</strong> pré-operacional (2-7 anos). In: ———. Perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> Operações<br />
concretas (2-11 anos) – Origens <strong>do</strong> intelecto: a teoria <strong>de</strong> Piaget. São Paulo. Editora<br />
Nacional, Editora da USP, 1971, p.57-73.<br />
Rappaport, Clara Regina. Mo<strong>de</strong>lo Piagetiano. In: Rappaport, C. R.; Fiori, W. da R. e Davis,<br />
Cláudia. Teoria <strong>do</strong> Desenvolvimento, Conceitos Fundamentais. São Paulo, EPU, 1981, p.<br />
51-75.<br />
111
112<br />
Resumo<br />
a mente e a produção das artes musicais<br />
A valorização <strong>de</strong> parâmetros musicais na preparação<br />
<strong>de</strong> uma obra romântica por estudantes <strong>de</strong> piano<br />
Cristina Capparelli Gerling<br />
cgerling@ufrgs.br<br />
Regina A. Teixeira <strong>do</strong>s Santos<br />
jhsreg@adufrgs.ufrgs.br<br />
Catarina Dominici<br />
catarina@catarina<strong>do</strong>menici.com<br />
Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Música – UFRGS<br />
O objetivo <strong>do</strong> presente trabalho foi investigar a correlação entre parâmetros <strong>de</strong> acuida<strong>de</strong><br />
e <strong>de</strong> expressão musical a partir da avaliação quantitativa por árbitros e a valorização<br />
<strong>de</strong>sses parâmetros por estudantes na preparação <strong>de</strong> uma obra pouco conhecida <strong>do</strong> perío<strong>do</strong><br />
romântico (Anhang <strong>do</strong> Op. 12 <strong>de</strong> R. Schumann). Em <strong>de</strong>lineamento semi-experimental<br />
(N=8), a preparação da peça foi monitorada em três etapas: (i) Registro e entrevista<br />
sobre a preparação em um intervalo <strong>de</strong> 9 semanas. (ii) Avaliação da execução <strong>do</strong>s estudantes<br />
registrada em ví<strong>de</strong>o por três árbitros (professores <strong>de</strong> piano), utilizan<strong>do</strong> os seguintes<br />
parâmetros: contorno, articulação, andamento, timing, dinâmica, gestos, coerência<br />
global. e (iii) Prática suplementar da obra por duas semanas com o registro <strong>de</strong> duas performances<br />
e atribuição da hierarquia <strong>do</strong>s parâmetros na preparação <strong>de</strong>sta peça. Os da<strong>do</strong>s<br />
foram trata<strong>do</strong>s por méto<strong>do</strong>s estatísticos: análise <strong>de</strong> correlação, análise <strong>de</strong> agrupamentos<br />
(clusters) e escalonamento multidimensional (MDS).<br />
Introdução<br />
Um <strong>do</strong>s aspectos mais relevantes na performance musical é a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> executar<br />
<strong>de</strong> forma expressiva (vi<strong>de</strong>, por exemplo, Juslin e Laukka, 2004; Laukka, 2004;<br />
Lindström et al. 2003), <strong>de</strong> maneira a comover os ouvintes. Uma performance expressiva<br />
é talvez aquilo que comumente faz com que pessoas prefiram um intérprete<br />
ao invés <strong>de</strong> outro. A maioria <strong>do</strong>s intérpretes e ouvintes <strong>de</strong>fine a expressão<br />
musical em termos <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> emoções (vi<strong>de</strong>, por exemplo, Lindström et<br />
al., 2003; Laukka 2004). Assim, o <strong>do</strong>mínio a habilida<strong>de</strong> da expressão emocional<br />
em música é uma meta importante para o intérprete. Dada a importância da expressão<br />
na performance musical, é razoável esperar que professores <strong>de</strong>votem um<br />
tempo consi<strong>de</strong>rável no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>ssa habilida<strong>de</strong>. Contu<strong>do</strong>, ao contrário,<br />
a literatura <strong>de</strong> educação musical tem evi<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong> que a expressão vem sen<strong>do</strong> ne-
gligenciada (veja, por exemplo, Tait, 1992), provavelmente por ser freqüentemente<br />
consi<strong>de</strong>rada como uma habilida<strong>de</strong> que reflita talento, e portanto, não po<strong>de</strong> ser<br />
aprendida (Sloboda, 1996), ou porque o conhecimento da expressão é na maioria<br />
das vezes tácito, e portanto, difícil <strong>de</strong> ser verbaliza<strong>do</strong> em palavras (Hoffren, 1964).<br />
Em estu<strong>do</strong>s anteriores, investigamos meios <strong>de</strong> sensibilização e conscientização <strong>de</strong><br />
estudantes <strong>de</strong> piano quanto à importância da intencionalida<strong>de</strong> expressiva na preparação<br />
<strong>de</strong> uma dada obra musical por alunos <strong>de</strong> bacharela<strong>do</strong>, mestra<strong>do</strong> e <strong>do</strong>utora<strong>do</strong><br />
em música (Gerling e Santos, 2007, Gerling et al. 2008a, 2008b, 2009a, 2009b;<br />
2009c). No <strong>de</strong>correr <strong>de</strong>sta fase da pesquisa na qual os alunos receberam uma obra<br />
pouco conhecida <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> romântico (Anhang, obra <strong>de</strong>scartada das Peças Fantásticas<br />
Op. 12 <strong>de</strong> R. Schumann) tornou-se evi<strong>de</strong>nte que a atribuição <strong>de</strong> emoção ou<br />
caráter, tanto na prática quanto em execuções, não parece ser valorizada. Em extensão<br />
e aprofundamento a esse estu<strong>do</strong>, investigamos a correlação entre parâmetros<br />
<strong>de</strong> acuida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> expressão musical a partir da avaliação quantitativa por árbitros e<br />
a valorização <strong>de</strong>sses parâmetros por estudantes na preparação <strong>de</strong> uma obra. Os parâmetros<br />
consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s foram acuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura, contorno (frase), articulação, andamento,<br />
timing, dinâmica, gestos, textura e coerência global.<br />
Meto<strong>do</strong>logia<br />
As coletas foram realizadas no Laboratório <strong>de</strong> Execução Musical (UFRGS). Os alunos<br />
(N=8) não receberam instrução <strong>de</strong> seus professores nem informação sobre a<br />
obra em si. Foi-lhes apenas forneci<strong>do</strong> o significa<strong>do</strong> das expressões Feurigst (fogoso/ar<strong>de</strong>nte)<br />
e Rascher (mais veloz) contidas na partitura. A preparação da peça<br />
foi monitorada em três fases: (i) Registro e entrevista <strong>de</strong> três execuções em um intervalo<br />
<strong>de</strong> 9 semanas; (ii) avaliação da execução <strong>do</strong>s estudantes registrada em ví<strong>de</strong>o<br />
por três árbitros (professores <strong>de</strong> piano) e (iii) prática suplementar da obra por duas<br />
semanas com o registro <strong>de</strong> duas performances e atribuição da hierarquia <strong>do</strong>s parâmetros<br />
na preparação <strong>de</strong>sta peça. Os da<strong>do</strong>s foram trata<strong>do</strong>s por méto<strong>do</strong>s estatísticos:<br />
análise <strong>de</strong> correlação, análise <strong>de</strong> agrupamentos (clusters) e escalonamento<br />
multidimensional (MDS).<br />
Os critérios <strong>de</strong> avaliação <strong>do</strong> produto <strong>de</strong> execução musical, para nossas pesquisas,<br />
são compreendi<strong>do</strong>s como:<br />
contorno (das frases): grau <strong>de</strong> coerência sobre o direcionamento das linhas melódicas,<br />
ten<strong>do</strong> em vista características <strong>do</strong> padrão sonoro global, resultante em<br />
termos <strong>de</strong> sua inclinação, seu <strong>de</strong>svio e reciprocida<strong>de</strong> (contorno em arco, ondulante,<br />
em <strong>de</strong>graus, <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte, por exemplo);<br />
articulação: grau <strong>de</strong> coerência sobre expressão <strong>de</strong> indicações <strong>de</strong> articulação explícitas<br />
na obra (legato, staccato, portato, por exemplo). A função da articulação é<br />
conectar ou separar notas isoladas ou em grupos, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> o conteú<strong>do</strong> inte-<br />
113
114<br />
lectual da linha melódica inviolável, mas <strong>de</strong>terminan<strong>do</strong> sua expressão;<br />
andamento: grau <strong>de</strong> velocida<strong>de</strong> relativa <strong>do</strong>s eventos (usualmente medida em número<br />
<strong>de</strong> batidas por minuto), cujos pulsos são sucedi<strong>do</strong>s repetidamente;<br />
timing: manipulação da velocida<strong>de</strong> relativa entre os eventos nas <strong>de</strong> estruturas temporais,<br />
manten<strong>do</strong> as proporções da subdivisão métrica e com finalida<strong>de</strong> expressiva;<br />
dinâmica: referin<strong>do</strong>-se a três princípios: (i) mudanças graduais <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong><br />
para indicar padrões <strong>de</strong> tempo forte e tempo fraco assim com a direção <strong>do</strong> movimento<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s agrupamentos; (ii) contraste para articular fronteiras entre<br />
agrupamentos; (iii) <strong>de</strong>marcação <strong>de</strong> eventos estruturais significativos, (acentos<br />
métricos, picos melódicos, mudanças harmônicas, entre outros) (Clarke,<br />
1989);<br />
coerência global: expressão global da peça quanto ao relacionamento entre eventos<br />
musicais.<br />
Resulta<strong>do</strong>s e Discussões<br />
A Figura 1 representa o grau médio atribuí<strong>do</strong> pelos árbitros a cada estudante (A-<br />
F) para a performance <strong>do</strong> Anhang <strong>de</strong> Schumann, segun<strong>do</strong> sete parâmetros investiga<strong>do</strong>s.<br />
Figura 1. Grau médio atribuí<strong>do</strong> aos diversos parâmetros <strong>de</strong> execução musical para<br />
7 estudantes <strong>de</strong> música. A, B e C: graduan<strong>do</strong>s <strong>de</strong> 1º semestre. D: graduan<strong>do</strong> <strong>de</strong> 6º<br />
semestre. E: graduan<strong>do</strong> <strong>de</strong> 7º semestre. F: Mestranda.
Os da<strong>do</strong>s da Figura 1 revelam ampla dispersão <strong>de</strong> graus atribuí<strong>do</strong>s ao mesmo estudante,<br />
sugerin<strong>do</strong> a valorização relativa <strong>de</strong> certos parâmetros em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> outros.<br />
Os valores <strong>de</strong> correção <strong>de</strong> Pearson obti<strong>do</strong>s para os escores <strong>do</strong>s parâmetros<br />
musicais avalia<strong>do</strong>s variou entre 0,009 e 0,893. No presente caso, to<strong>do</strong>s os valores obti<strong>do</strong>s<br />
são positivos (o que significa uma relação diretamente proporcional), com<br />
exceção da relação entre gestos e dinâmica (0,009) que foi muito próxima <strong>de</strong> zero,<br />
sugerin<strong>do</strong> ausência <strong>de</strong> correlação. A relação forte encontrada encontra-se entre as<br />
notas atribuídas a contorno e coerência (r = 0,893). Correlações fortes foram também<br />
observa<strong>do</strong>s pelas relações entre contorno-andamento (0,712), contorno-timing<br />
(0,719), andamento-timing (0,725), andamento-coerência global (0,765),<br />
timing-coerência global (0,779).<br />
Uma outra maneira <strong>de</strong> analisar a relação entre os parâmetros é através da análise <strong>de</strong><br />
agrupamentos (clusters), que apresenta um escalonamento entre os parâmetros em<br />
estrutura hierárquica. A Figura 2 ilustra o <strong>de</strong>ndrograma resultante da avaliação <strong>do</strong>s<br />
árbitros, referente a parâmetros investiga<strong>do</strong>s na performance <strong>do</strong> Anhang <strong>de</strong> Schumann.<br />
Figura 2. Dendrograma por análise <strong>de</strong> clusters <strong>do</strong>s parâmetros musicais avalia<strong>do</strong>s<br />
por três árbitros na performance <strong>do</strong> Anhang <strong>do</strong> Op. 12 <strong>de</strong> Schumann por estudantes<br />
<strong>de</strong> piano (N = 6).<br />
Esse <strong>de</strong>ndrograma sugere haver muito pouca proximida<strong>de</strong> entre a maioria <strong>do</strong>s parâmetros<br />
avalia<strong>do</strong>s. Entretanto, esses da<strong>do</strong>s confirmam a proximida<strong>de</strong> entre contorno<br />
e coerência global.<br />
De posse <strong>de</strong>sses da<strong>do</strong>s, questionamos aos participantes a hierarquia entre os parâmetros<br />
durante a preparação. Este questionamento resultou em coerência entre<br />
valor atribuí<strong>do</strong> e grau médio atingin<strong>do</strong>. A Figura 3 exemplifica a relação da hierarquia<br />
entre os parâmetros segun<strong>do</strong> a perspectiva <strong>de</strong> um estudante <strong>de</strong> graduação (1º<br />
semestre) e as respectivas notas <strong>do</strong>s árbitros.<br />
115
116<br />
Figura 3. Relação entre a hierarquia <strong>do</strong>s parâmetros musicais <strong>do</strong> estudante A e o<br />
grau médio atingi<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> avaliação <strong>de</strong> árbitros.<br />
De acor<strong>do</strong> com a Figura 3, existe tendência <strong>de</strong>crescente entre a nota atribuída pelo<br />
árbitro e a or<strong>de</strong>m relativa <strong>de</strong> relevância atribuída pelo estudante em cada parâmetro.<br />
Na justificativa, a estudante mencionou:<br />
“Parece-me que coerência global envolve to<strong>do</strong>s os outros critérios. Timing e contorno<br />
ajudam a justificar a escolha <strong>de</strong> andamento, dinâmica e articulação. Então,<br />
eu acho que esses <strong>do</strong>is últimos são também importantes. O andamento é uma<br />
ferramenta para a execução, não a finalida<strong>de</strong> em si. Quantas vezes a mesma peça<br />
é executada em andamentos totalmente diferentes, mas é bonita igual? (estudante<br />
<strong>de</strong> graduação C, 1º semestre).”<br />
Em continuida<strong>de</strong> ao tratamento <strong>de</strong>sses da<strong>do</strong>s, foi utiliza<strong>do</strong> o escalonamento multidimensional<br />
(MDS), que é um méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> estatística inferencial exploratória, um<br />
conjunto <strong>de</strong> procedimentos que utiliza, na elaboração <strong>de</strong> uma representação espacial<br />
da estrutura <strong>de</strong> relação, medidas <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> entre os parâmetros (vi<strong>de</strong> por<br />
exemplo, Hair et al., 2009; Silva et al., 2009). O MDS é tradicionalmente feito através<br />
<strong>de</strong> da<strong>do</strong>s <strong>de</strong> similarida<strong>de</strong> (ou dissimilarida<strong>de</strong>) que indicam, através <strong>de</strong> medidas<br />
numéricas ou por or<strong>de</strong>nação, o quanto são próximos ou percebi<strong>do</strong>s como semelhantes<br />
os objetos (estímulos) em estu<strong>do</strong>.<br />
Este méto<strong>do</strong> permite obter o mapa perceptual. Os da<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s escores <strong>do</strong>s três árbitros,<br />
referentes à performance <strong>do</strong> Anhang <strong>do</strong> Op. 12 <strong>de</strong> Schumann, foram submeti<strong>do</strong>s<br />
a esse méto<strong>do</strong> porque, nesse ponto da investigação, nossas inferências<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m mais da percepção <strong>do</strong>s árbitros <strong>do</strong> que <strong>de</strong> hipóteses prévias. Assim, o caráter<br />
Feurigst (ar<strong>de</strong>nte) foi analisa<strong>do</strong> por MDS, conforme representação na Figura
4.<br />
Realização<br />
Figura 4. Mapa percentual <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s parâmetros musicais avalia<strong>do</strong>s<br />
na performance <strong>do</strong> Anhang <strong>do</strong> Op. 12 <strong>de</strong> Schumann.<br />
Nesse tipo <strong>de</strong> técnica estatística multivariada exploratória, a interpretação das dimensões<br />
fica a cargo <strong>do</strong> pesquisa<strong>do</strong>r. A distribuição obtida por essa técnica, no tocante<br />
à dimensão da or<strong>de</strong>nada, revela três grupos <strong>de</strong> parâmetros com<br />
distanciamento próximo: (i) Feurigst, dinâmica e articulação; (ii) andamento, timing<br />
e gestos; (iii) coerência e contorno. O conjunto <strong>de</strong>sses três grupos levou-nos<br />
a sugerir que a or<strong>de</strong>nada (eixo Y) representa uma dimensão vinculada à comunicação/percepção<br />
da expressão. Com relação à dimensão da abscissa (eixo X), observa-se<br />
a proximida<strong>de</strong> entre caráter Feurigst e andamento ou dinâmica e contorno,<br />
provavelmente revelan<strong>do</strong> uma dimensão que busca <strong>de</strong>screver o grau <strong>de</strong> realização<br />
na performance.<br />
Na Figura 4, os parâmetros ‘coerência global’ e ‘contorno’ foram os mais salientes<br />
para os estudantes. Conforme estu<strong>do</strong>s anteriores (Gerling et al., 2009), apesar <strong>do</strong><br />
potencial <strong>de</strong> expressivida<strong>de</strong>, coerência global parece ser um parâmetro bem assimila<strong>do</strong><br />
e menos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> nível <strong>de</strong> expertise musical. Aparentemente, para<br />
esse grupo investiga<strong>do</strong>, a coerência global está mais próxima <strong>do</strong> contorno <strong>do</strong> que os<br />
<strong>de</strong>mais parâmetros, ou seja, o conjunto <strong>de</strong> alunos valorizou o <strong>de</strong>lineamento <strong>de</strong> cada<br />
uma das frases mais <strong>do</strong> que o contexto <strong>de</strong> sua execução.<br />
Consi<strong>de</strong>rações Finais<br />
Os estudantes aceitaram o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> preparar uma peça, sem auxílio <strong>do</strong> professor.<br />
O contorno das frases parece estar bem assimila<strong>do</strong> por esse grupo <strong>de</strong> estudantes,<br />
117
118<br />
mostran<strong>do</strong> ser menos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> nível <strong>de</strong> expertise. Contu<strong>do</strong>, a maioria <strong>de</strong> estudantes<br />
teve um mo<strong>de</strong>sto grau <strong>de</strong> sucesso, uma vez que a gran<strong>de</strong> maioria <strong>do</strong>s graus<br />
atribuí<strong>do</strong>s pelos árbitros ficou numa faixa <strong>de</strong> 4 a 7. Uma das razões <strong>de</strong>sse resulta<strong>do</strong><br />
parece ser o pouco cuida<strong>do</strong> com a leitura <strong>de</strong> uma peça, e a tendência <strong>de</strong> relativa <strong>de</strong>pendência<br />
<strong>de</strong> sugestões externas (professor) para avançar o aprofundamento da<br />
compreensão musical. Esse grupo <strong>de</strong> estudantes parece ainda muito restrito à resolução<br />
<strong>de</strong> aspectos técnicos ao longo da preparação. Além disso, poucos foram<br />
aqueles que buscaram informações complementares durante a preparação da peça.<br />
Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que o contorno parece ser um indício <strong>de</strong> coerência global, esses estudantes<br />
acabam não perceben<strong>do</strong> a importância da <strong>de</strong>liberada manipulação <strong>de</strong> aspectos<br />
musicais <strong>de</strong> natureza expressiva (andamento, timing, articulação e dinâmica,<br />
por exemplo) ao refinarem suas concepções visan<strong>do</strong> a coerência global <strong>de</strong> obra em<br />
preparação.<br />
Agra<strong>de</strong>cimentos<br />
C.C. Gerling e R.A.T. <strong>do</strong>s Santos agra<strong>de</strong>cem ao CNPq pelas bolsas PQ e Pós-Doutora<strong>do</strong>,<br />
respectivamente.<br />
Referências<br />
Barbetta, P. A. (2006). Estatística aplicada às ciências sociais. 6ed. Florianópolis: Editora<br />
UFSC.<br />
Clarke, E.F. (1989). The perception of expressive timing in music. Psychological Research<br />
51, n. 1, pp. 2-9.<br />
Gerling, C.C., Dos Santos, R.A.T. (2007). Inten<strong>de</strong>d versus perceived emotion. In: A. Williamon,<br />
D. Coimbra (Eds) Proceedings of the international symposium on performance<br />
science (pp. 233-238). Utrecht: AEC.<br />
Gerling, C.C., Dos Santos, R.A.T., Domenici, C. (2008a). Reflexões sobre interpretações<br />
musicais <strong>de</strong> estudantes <strong>de</strong> piano e a comunicação <strong>de</strong> emoções. Música Hodie 8, pp. 11-<br />
25.<br />
———. (2008b). As intenções e percepções da emoção nas interpretações musicais <strong>de</strong> um<br />
prelúdio <strong>de</strong> J.S. Bach In: Beatriz Raposo <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros, Marcos Nogueira (Org.) <strong>Cognição</strong><br />
Musical: Aspectos multidisciplinares (pp. 28-34), São Paulo: Paulistana.<br />
———. (2009a). Communicating emotion in piano performance. In A. Williamon, S. Pretty,<br />
R. Buck (Eds.). Proceedings of the International symposium on performance science (pp.<br />
451-456). Utrecht: AEC.<br />
———. (2009b). A comunicação das intenções interpretativas no repertório musical <strong>de</strong> estudantes<br />
<strong>de</strong> piano. <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> V <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais, Goiânia, pp. 51-<br />
61.<br />
———. (2009c) Communicating emotion in piano performance. Auckland, New Zealand.<br />
In: A. Williamon, S. Pretty, R. Buch (Eds) Proceedings of the international symposium on<br />
performance science (pp. 451-456). Auckland: AEC.<br />
Hair, J.; Black, W.C.; Babin, B.B.; An<strong>de</strong>rson, R.E.; Tatham, R.L (2009). Análise multivariada<br />
<strong>de</strong> da<strong>do</strong>s, 6ed. Porto Alegre: Bookman.
Hoffen, J. (1964). A test of musical expression. Council for Research in Music Education, 2,<br />
32-35.<br />
Juslin P. N., Laukka, P. (2004). Expression, perception, and induction of musicalemotions:<br />
A review and a questionnaire study of everyday listening. Journal of New Music Research<br />
33, 217-238.<br />
Laukka, P. (2004). Instrumental teachers’ views on expressivity: A report from music conservatoires.<br />
Music Education Research 6, 45-56.<br />
Lindström, E. (2003). The contribution of immanent and performed accents on emotional<br />
expression in short tone sequences. Journal of New Music Research 32, 269-280.<br />
Sloboda, J. A. (1996). The acquisition of musical performance expertise: Deconstructing<br />
the ‘talent’ account of individual differences in musical expressivity. In K. A. Ericsson<br />
(Ed.), The road to excellence (pp. 107-126). Mahwah, NJ: Erlbaum.<br />
Tait, M. (1992). Teaching strategies and styles. In R. Cowell (Ed.), Handbook of research on<br />
music teaching and learning (pp. 525-534). New York: Schirmer.<br />
119
120<br />
Resumo<br />
Atribuição <strong>de</strong> Causalida<strong>de</strong> na Performance Musical<br />
Ana Francisca Schnei<strong>de</strong>r<br />
francisca.schnei<strong>de</strong>r@gmail.com<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul<br />
Este trabalho relata uma pesquisa <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong> em andamento <strong>de</strong>senvolvida no âmbito<br />
<strong>do</strong> Grupo <strong>de</strong> Pesquisa Formação e Atuação <strong>de</strong> Profissionais em Música (FAPROM), sob<br />
a orientação da Prof. Dra. Liane Hentschke. A pesquisa investiga as causas atribuídas por<br />
bacharelan<strong>do</strong>s em música para situações consi<strong>de</strong>radas <strong>de</strong> sucesso e fracasso em performance<br />
musical pública. Objetiva assim i<strong>de</strong>ntificar as causas para tais situações e analisá-las<br />
<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as variáveis <strong>de</strong>mográficas: ida<strong>de</strong>, sexo, instrumento musical,<br />
universida<strong>de</strong> e semestre <strong>do</strong> curso. De acor<strong>do</strong> com a teoria da atribuição <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong><br />
buscar causas para explicar ações é natural <strong>do</strong> ser humano e essa busca <strong>de</strong> respostas se<br />
dá principalmente quan<strong>do</strong> a situação vivida era consi<strong>de</strong>rada importante, ou o resulta<strong>do</strong><br />
foi inespera<strong>do</strong>. Buscan<strong>do</strong> enten<strong>de</strong>r estas causas, há mais <strong>de</strong> cinco décadas, teóricos vem<br />
<strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> estu<strong>do</strong>s com um enfoque na percepção <strong>do</strong> indivíduo sobre suas ações.<br />
Um exemplo é a Teoria da Atribuição <strong>de</strong> Causalida<strong>de</strong> que explica o fim <strong>do</strong> processo motivacional<br />
e preten<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r as percepções <strong>do</strong> indivíduo e as suas concepções sobre<br />
as causas para o sucesso ou o fracasso. Seguin<strong>do</strong> esta linha <strong>de</strong> pensamento, <strong>de</strong>ntro da<br />
psicologia social cognitiva, Weiner se <strong>de</strong>staca como o principal autor que <strong>de</strong>senvolveu<br />
e a expandiu a teoria. A teoria da atribuição <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong> observa uma seqüência causal<br />
aon<strong>de</strong> a partir <strong>de</strong> um resulta<strong>do</strong> (<strong>de</strong> sucesso ou <strong>de</strong> fracasso) o indivíduo busca uma<br />
causa, gera um sentimento positivo ou negativo em relação a ela, que interfere na maneira<br />
como a pessoa age frente a uma nova situação. A pesquisa utiliza o méto<strong>do</strong> survey<br />
cuja amostra consiste em alunos <strong>de</strong> bacharela<strong>do</strong> em instrumento, que estão<br />
matricula<strong>do</strong>s a partir <strong>do</strong> terceiro semestre <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> música <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> Sul. Para a coleta <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s, foi <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> um questionário a partir da adaptação<br />
<strong>de</strong> outros <strong>do</strong>is, já valida<strong>do</strong>s nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e em Portugal. Após o termino da coleta<br />
<strong>de</strong> da<strong>do</strong>s, estes serão analisa<strong>do</strong>s através <strong>de</strong> cálculos estatísticos bem como a literatura<br />
existente nas áreas da motivação em música, educação musical e práticas interpretativas.<br />
Atribuição <strong>de</strong> Causalida<strong>de</strong>: aspectos introdutórios<br />
Atribuir causas é um tendência humana, sejam para o sucesso ou fracasso. Em nosso<br />
cotidiano buscamos causas para todas as situações em que vivemos, pois estas atribuições<br />
dizem respeito às interpretações individuais <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> evento.<br />
Estas crenças individuais sobre as causas <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas situações segun<strong>do</strong> Weiner<br />
(1991) influenciam a motivação.<br />
Segun<strong>do</strong> Bzuneck (2001, p.9) a motivação po<strong>de</strong> ser entendida como fator ou como<br />
um processo. Para este trabalho a motivação será abordada como um processo, seguin<strong>do</strong><br />
as pesquisas mais recentes da área que a<strong>do</strong>tam uma perspectiva social cog-
nitiva da motivação e dão <strong>de</strong>staque para os pensamentos, crenças e percepções individuais<br />
<strong>de</strong>ste processo (Boruchovitch e Martini, 2004). Assim, sabemos que “o<br />
processo motivacional dá início, dirige e integra o comportamento, sen<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s<br />
principais <strong>de</strong>terminantes <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como uma pessoa se comporta.” (Boruchovitch<br />
e Martini, 2004, p.13).<br />
Este processo po<strong>de</strong> ser entendi<strong>do</strong> como uma seqüência motivacional que po<strong>de</strong> ser<br />
explicada por diversas teorias da motivação, como, por exemplo, a teoria <strong>de</strong> metas,<br />
auto-eficácia e expectativa-valor. A teoria que explica o fim da seqüência motivacional<br />
é a teoria da Atribuição <strong>de</strong> Causalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>senvolvida por Hei<strong>de</strong>r em 1944<br />
e ten<strong>do</strong> como principal teórico Bernard Weiner (1985, 2004). A intenção <strong>de</strong>sta<br />
teoria é mostrar como as situações <strong>de</strong> sucesso e fracasso são interpretadas pelo sujeito<br />
da ação. Caben<strong>do</strong> ao próprio sujeito julgar se foi uma situação <strong>de</strong> sucesso ou<br />
fracasso.<br />
A teoria da Atribuição <strong>de</strong> Causalida<strong>de</strong> “integra o pensamento, o sentimento e a<br />
ação” (Boruchovitch e Martini, 2004, p.32) e para explicar resulta<strong>do</strong>s já obti<strong>do</strong>s<br />
segue uma seqüência causal <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o esquema a seguir:<br />
Observamos assim que o primeiro passo para o entendimento das atribuições <strong>de</strong><br />
causalida<strong>de</strong> é i<strong>de</strong>ntificar a orientação motivacional. Esta orientação é entendida<br />
como a localização da motivação, que po<strong>de</strong> ser interna ao sujeito, chamada <strong>de</strong> motivação<br />
intrínseca ou externa ao sujeito, chamada <strong>de</strong> motivação extrínseca.<br />
A motivação intrínseca, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com Guimarães (2001), “refere-se à escolha e<br />
realização <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada ativida<strong>de</strong> por sua própria causa, por esta ser interessante,<br />
atraente ou, <strong>de</strong> alguma forma, gera<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> satisfação” (Guimarães, 2001, p.37). Esta<br />
orientação mostra que a motivação está no sujeito, sen<strong>do</strong> uma propensão inata e natural<br />
<strong>do</strong>s indivíduos. Assim, se os alunos estão interessa<strong>do</strong>s no seu próprio processo,<br />
a aprendizagem po<strong>de</strong> ser facilitada e a satisfação é maior. Já a motivação extrínseca<br />
é aquela que vem <strong>de</strong> fora <strong>do</strong> sujeito, está fora <strong>do</strong> seu controle e po<strong>de</strong> ser representada<br />
por prêmios e elogios <strong>do</strong>s pais e professores. Esta orientação se apresenta<br />
quan<strong>do</strong> o sujeito realiza a tarefa para obter recompensas externas, visan<strong>do</strong> o reconhecimento<br />
social (Guimarães, 2001).<br />
Weiner (2004), ao revisar a Teoria da Atribuição <strong>de</strong> Causalida<strong>de</strong>, percebe que a<br />
diversida<strong>de</strong> cultural, assim como as influências <strong>do</strong> meio são fundamentais para as<br />
121
122<br />
atribuições causais. O autor em suas pesquisas observa que resulta<strong>do</strong>s semelhantes<br />
são interpreta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> maneira diferente <strong>de</strong>pen<strong>do</strong> <strong>do</strong> contexto social em que o sujeito<br />
está inseri<strong>do</strong> e <strong>de</strong> sua trajetória <strong>de</strong> vida. Assim, coloca a localização da motivação<br />
como principal fator para a compreensão das causas atribuídas a situações consi<strong>de</strong>radas<br />
<strong>de</strong> sucesso ou <strong>de</strong> fracasso, separan<strong>do</strong> a teoria em duas perspectivas: Intrapessoal<br />
e Interpessoal.<br />
Na perspectiva atribucional Intrapessoal o sujeito é visto como um cientista que<br />
busca enten<strong>de</strong>r suas ações e seu meio para agir <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com seu conhecimento. O<br />
sujeito da ação consi<strong>de</strong>ra apenas o seu sentimento em relação a seqüência causal<br />
que é iniciada por um resulta<strong>do</strong> e traz na atribuição as concepções <strong>do</strong> indivíduo<br />
sobre sucesso ou fracasso e sua experiências prévias. Dentro <strong>de</strong>sta perspectiva cada<br />
causa atribuída, observan<strong>do</strong> as suas dimensões, apresenta “conseqüências psicológicas,<br />
sen<strong>do</strong> relacionadas tanto para a expectativa quanto para a afetivida<strong>de</strong>” (Weiner,<br />
1985, p. 566).<br />
Já na perspectiva atribucional Interpessoal, o resulta<strong>do</strong> que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia a seqüência<br />
causal é analisa<strong>do</strong> e interpreta<strong>do</strong> por outras pessoas como professores, familiares<br />
ou pares que observam a ação. Estas pessoas fazem um julgamento <strong>de</strong> valor e<br />
consi<strong>de</strong>ram o sujeito responsável ou não pelo sucesso ou fracasso em <strong>de</strong>terminada<br />
situação.<br />
As causas atribuídas pelos alunos são muitas e não são estáticas, po<strong>de</strong>m mudar <strong>de</strong><br />
acor<strong>do</strong> com o amadurecimento e a própria situação. Mas, segun<strong>do</strong> as pesquisas <strong>de</strong><br />
Weiner (1985) e Martini (1999), algumas causas são mais freqüentes. São elas: inteligência,<br />
esforço/falta <strong>de</strong> esforço, dificulda<strong>de</strong> da tarefa, sorte, influência <strong>do</strong> professor,<br />
influência <strong>de</strong> outras pessoas e cansaço.<br />
Na área da educação musical, algumas pesquisas vêm sen<strong>do</strong> realizadas utilizan<strong>do</strong> a<br />
motivação e suas teorias como referencial teórico (Pizzato, 2009; Vilela, 2009; Cavalcanti,<br />
2009). Mas alguns espaços <strong>de</strong> ensino ainda são pouco aborda<strong>do</strong>s, como o<br />
ensino superior <strong>de</strong> instrumento musical.<br />
O ensino superior <strong>de</strong> instrumento no Brasil acontece em universida<strong>de</strong>s públicas e<br />
privadas em todas as regiões <strong>do</strong> país e visa formar Bacharéis em Música, para atuarem<br />
em diversos espaços sócio-culturais. A formação <strong>do</strong> bacharelan<strong>do</strong> em música<br />
é heterogênea, mudan<strong>do</strong> <strong>de</strong> instituição para instituição. As pesquisas nesta área<br />
mostram que se cultiva uma visão distorcida <strong>de</strong>ste estudante, como relata Schroe<strong>de</strong>r<br />
(2004) que<br />
numa visão que po<strong>de</strong>ríamos qualificar <strong>de</strong> “senso comum”, os músicos (e os artistas<br />
<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> geral) têm si<strong>do</strong> freqüentemente trata<strong>do</strong>s como seres humanos<br />
especiais, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s naturalmente <strong>de</strong> um atributo – <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> genericamente como<br />
“<strong>do</strong>m” ou “talento” – que os diferencia da maioria das pessoas comuns. Essa visão<br />
um tanto quanto estereotipada, contu<strong>do</strong>, não é exclusiva, como se po<strong>de</strong>ria pensar,<br />
<strong>de</strong> pessoas que estão fora <strong>do</strong> campo musical ( os chama<strong>do</strong>s “leigos” em mú-
sica). Ao contrário, é no próprio campo que as idéias mitifica<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> músico<br />
vêm sen<strong>do</strong> reforçadas a to<strong>do</strong> momento, seja através da crítica especializada, <strong>do</strong>s<br />
próprios músicos ou mesmo <strong>de</strong> muitos educa<strong>do</strong>res (nesse caso, sobretu<strong>do</strong> pela<br />
a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> procedimentos pedagógicos fundamenta<strong>do</strong>s em <strong>de</strong>terminadas perspectivas<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento musical) (Schroe<strong>de</strong>r, 2004, p.109).<br />
Assim, ao optar em seguir a carreira <strong>de</strong> músico profissional, o estudante tem que<br />
constantemente lidar com a imagem <strong>de</strong> genialida<strong>de</strong> que é colocada sobre ele e muitas<br />
vezes mantê-la para não interferir na sua imagem <strong>de</strong> auto-eficaz. Este misticismo<br />
sobre a carreira <strong>do</strong> músico profissional acarreta uma pressão em sempre obter performances<br />
musicais consi<strong>de</strong>radas <strong>de</strong> sucesso. O sucesso em performance musical<br />
não é somente aquela em que o músico não erra notas, mas principalmente aquela<br />
aceita pelos seus pares, que observam estilo, andamento, dinâmica, etc.<br />
Com isso, a performance musical pública se torna uma situação importantíssima<br />
para a formação <strong>do</strong> músico profissional, pois é neste momento em que ele se avalia<br />
e é avalia<strong>do</strong> por outros. Cabe ao estudante, neste momento, se preparar para diversos<br />
resulta<strong>do</strong>s e observar as causas que o levaram ao sucesso ou ao fracasso na<br />
apresentação musical.<br />
As pesquisas que utilizam a Teoria da Atribuição <strong>de</strong> Causalida<strong>de</strong> nos dão as causas<br />
para as situações <strong>de</strong> sucesso e fracasso. Entretanto, nos mostram com isso a visão das<br />
crenças <strong>do</strong>s estudantes, que seriam as suas concepções <strong>de</strong> sucesso e fracasso sobre um<br />
<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> evento, assim como o quanto ele está envolvi<strong>do</strong> com o seu processo<br />
<strong>de</strong> aprendizagem. Legette (2002) afirma que uma das maiores contribuições da<br />
Teoria é mostrar que a motivação é influenciada pelas crenças individuais sobre o<br />
sucesso e o fracasso em ativida<strong>de</strong>s. As pesquisas da área mostram que as causas atribuídas<br />
pelos sujeitos a estas situações <strong>de</strong> sucesso ou fracasso influenciam as expectativas<br />
para as próximas ativida<strong>de</strong>s.<br />
Desta maneira, se faz necessário pesquisas que revelem as atribuições causais <strong>do</strong>s<br />
bacharelan<strong>do</strong>s em música sobre situações consi<strong>de</strong>radas <strong>de</strong> sucesso e fracasso em<br />
apresentações musicais públicas, revelan<strong>do</strong> assim as suas concepções.<br />
Na área da música, o interesse em enten<strong>de</strong>r o que leva os alunos a estudarem música,<br />
suas metas, suas crenças e concepções, assim como o quanto se sentem aptos a<br />
realizar ativida<strong>de</strong>s musicais, fez com que diversos pesquisa<strong>do</strong>res realizassem pesquisas<br />
em diferentes contextos <strong>de</strong> ensino e aprendizagem <strong>de</strong> música.<br />
Nos últimos anos algumas pesquisas na área da educação musical foram realizadas<br />
utilizan<strong>do</strong> teorias da motivação (Hentschke et al., 2009; Cavalcanti, 2009; Pizzato,<br />
2009; Vilela, 2009; Cereser, 2009; Araújo; Pickler, 2008; Papageorgi; Hallam;<br />
Welch, 2007; Fredrickson, 2007; Schivitsa, 2007; Mcpherson; Mccormick, 2006;<br />
Mcpherson; Mccormick, 2000).<br />
A performance <strong>de</strong>ntro da perspectiva motivacional po<strong>de</strong> ser vista <strong>de</strong> diferentes maneiras,<br />
seja analisan<strong>do</strong> as metas individuais <strong>do</strong>s instrumentistas e metas <strong>de</strong> bandas<br />
123
124<br />
<strong>de</strong> alunos ou a ansieda<strong>de</strong> gerada por exames e performances públicas. As pesquisas<br />
também buscam enten<strong>de</strong>r o papel <strong>do</strong> professor <strong>de</strong> música na motivação <strong>do</strong>s alunos.<br />
Utilizan<strong>do</strong> a teoria da Atribuição <strong>de</strong> Causalida<strong>de</strong>, Austin e Vispoel (1992) investigaram<br />
as respostas <strong>de</strong> crianças <strong>de</strong> 5-8 anos frente a situações hipotéticas <strong>de</strong> sucesso<br />
e fracasso em música. Essas crianças <strong>de</strong>monstraram melhores resulta<strong>do</strong>s<br />
quan<strong>do</strong> recebiam um feedback <strong>do</strong>s professores com novas estratégias <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
que quan<strong>do</strong> recebiam um feedback <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>.<br />
McPherson (2004, p.229) diz que:<br />
a atribuição <strong>de</strong> esforço para o sucesso é melhor relaciona<strong>do</strong> com o auto-conceito<br />
musical; estudantes que apresentam um baixo conceito em relação a música<br />
ten<strong>de</strong>m a não atribuir o resulta<strong>do</strong> ao esforço enquanto os que apresentam<br />
um auto-conceito mo<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> ou alto o atribuem.<br />
Outra pesquisa foi realizada (Austin & Vispoel, 1998) com o objetivo <strong>de</strong> investigar<br />
as atribuições <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a<strong>do</strong>lescentes para situações <strong>de</strong> sucesso e fracasso<br />
na aula <strong>de</strong> música. Nesta pesquisa participaram 153 alunos <strong>de</strong> 12-13 anos <strong>de</strong> uma<br />
escola nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, que respon<strong>de</strong>ram que as causas para seu sucesso, em<br />
or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> importância, são: influência <strong>do</strong> professor, influência <strong>do</strong>s pares, influência<br />
da família, sorte, habilida<strong>de</strong>, metacognição, persistência, esforço, estratégia, interesse<br />
e dificulda<strong>de</strong> da tarefa. Já as causas para seu fracasso, em or<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />
importância, são: influência da família, habilida<strong>de</strong>, sorte, persistência, estratégia,<br />
dificulda<strong>de</strong> da tarefa, influência <strong>do</strong>s pares, metacognição, interesse, influência <strong>do</strong><br />
professor e esforço.<br />
Esta pesquisa traz da<strong>do</strong>s não tradicionais para as pesquisas <strong>de</strong> atribuição <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong>,<br />
colocan<strong>do</strong> causas como, por exemplo, influência da família em evidência,<br />
da<strong>do</strong>s estes que sugerem um aprofundamento em outras pesquisas.<br />
O ensino superior é aborda<strong>do</strong> em pesquisas que utilizam a perspectiva atribucional.<br />
Legette (2002) investiga os licencian<strong>do</strong>s em música e conclui que as principais causas<br />
atribuídas para o sucesso e o fracasso em música são a habilida<strong>de</strong> e o esforço. As<br />
atribuições <strong>de</strong> instrumentistas e <strong>de</strong> vocalistas são diferentes, mas ainda não se tem<br />
da<strong>do</strong>s suficientes para análises mais aprofundadas. Hewitt (2004) realizou uma pesquisa<br />
com bacharelan<strong>do</strong>s em música sobre suas atribuições e auto-percepções em<br />
performances musicais solo. Observou que a avaliação <strong>de</strong>stas performances por<br />
professores é <strong>de</strong> fundamental importância, pois os alunos tem um feedback <strong>de</strong> seu<br />
<strong>de</strong>sempenho.<br />
Méto<strong>do</strong><br />
Esta pesquisa será quantitativa, com caráter <strong>de</strong>scritivo e exploratório. Por se tratar<br />
se uma pesquisa que estu<strong>de</strong> o comportamento <strong>de</strong> seres humanos, o projeto seguirá<br />
as orientações Éticas próprias <strong>de</strong> pesquisa com seres humanos. Para isso os alunos<br />
<strong>de</strong>verão assinar o termo <strong>de</strong> Consentimento Informa<strong>do</strong>.
Para a realização <strong>de</strong>ste projeto, o méto<strong>do</strong> escolhi<strong>do</strong> foi o Survey por ter a característica<br />
e o objetivo <strong>de</strong>: <strong>de</strong>screver, explicar e explorar certa amostra (Babbie, 1999).<br />
Este méto<strong>do</strong> vem ao encontro <strong>do</strong> meu objetivo <strong>de</strong> pesquisa que preten<strong>de</strong> investigar<br />
as atribuições <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong> assim como <strong>de</strong>screvê-las. O Survey é um méto<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> pesquisa quantitativa que traz três pré-requisitos: especificação exata <strong>do</strong> objetivo<br />
da pesquisa, a população alvo e os meios disponíveis para a realização (Cohen<br />
& Manion, 2007).<br />
A escolha <strong>de</strong>ste méto<strong>do</strong> se dá por aten<strong>de</strong>r a este pré-requisitos e por me proporcionar<br />
maior abrangência na coleta <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s, uma vez que será realiza<strong>do</strong> um censo<br />
com estudantes <strong>de</strong> diferentes instituições <strong>de</strong> ensino superior da região Sul <strong>do</strong> Brasil.<br />
Para este estu<strong>do</strong>, será selecionada uma amostra não probabilística <strong>de</strong> 150 alunos <strong>de</strong><br />
ambos os sexos, <strong>do</strong>s cursos <strong>de</strong> bacharela<strong>do</strong> em instrumento ou canto <strong>de</strong> universida<strong>de</strong>s<br />
<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, que estejam matricula<strong>do</strong>s a partir <strong>do</strong> terceiro<br />
semestre <strong>de</strong> curso.<br />
A escolha por alunos <strong>do</strong> curso <strong>de</strong> bacharela<strong>do</strong> se fez por ser este um momento <strong>de</strong><br />
formação profissional e <strong>de</strong> muitas escolhas e pesquisas mostram que por estarem na<br />
fase adulta tem maior discernimento <strong>de</strong> causa, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> atribuir mais corretamente<br />
<strong>do</strong> que uma criança ou um a<strong>do</strong>lescente. (Martini, 1997)<br />
Para esta pesquisa será utiliza<strong>do</strong> um questionário auto-administra<strong>do</strong>. Esta técnica<br />
me permitirá a coleta <strong>de</strong> informações, pois possibilita conhecer as causas e orientações<br />
motivacionais <strong>do</strong> aluno. A escolha <strong>de</strong> um questionário surge da possibilida<strong>de</strong><br />
que esta técnica permite <strong>de</strong> coletar as informações com rapi<strong>de</strong>z e com respostas diretas.<br />
O questionário a ser utiliza<strong>do</strong> será a adaptação <strong>de</strong> <strong>do</strong>is outros questionários já valida<strong>do</strong>s<br />
em Portugal (Sousa; Rosa<strong>do</strong>; Cabrita, 2008) e nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s (Austin;<br />
Vispoel, 1998). O primeiro analisa da<strong>do</strong>s <strong>de</strong>mográficos, da<strong>do</strong>s da situação em que<br />
o sujeito será remeti<strong>do</strong> ao respon<strong>de</strong>r o questionário e <strong>do</strong>ze perguntas que analisam<br />
as três dimensões da causa. O segun<strong>do</strong> analisa as atribuições <strong>de</strong> causa: habilida<strong>de</strong>,<br />
esforço, persistência, estratégia, interesse, sorte, dificulda<strong>de</strong> da tarefa,<br />
influencia <strong>do</strong> professor, influencia da família e influencia <strong>do</strong>s pares.<br />
O questionário está dividi<strong>do</strong> em três partes, a primeira referente aos da<strong>do</strong>s <strong>de</strong>mográficos<br />
e informações sobre a trajetória musical <strong>do</strong> bacharelan<strong>do</strong>. A segunda referente<br />
a uma situação <strong>de</strong> sucesso em performance musical pública solo e a terceira<br />
em relação a uma situação <strong>de</strong> fracasso em performance musical pública solo.<br />
Foi realiza<strong>do</strong> um Estu<strong>do</strong> Piloto, com o objetivo <strong>de</strong> testar o questionário a ser utiliza<strong>do</strong><br />
na pesquisa. Participaram <strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong> 19 bacharelan<strong>do</strong>s <strong>de</strong> instrumento ou<br />
canto, matricula<strong>do</strong>s a partir <strong>do</strong> terceiro semestre <strong>do</strong> curso. Após a coleta, os da<strong>do</strong>s<br />
foram submeti<strong>do</strong>s a uma análise estatística <strong>de</strong>scritiva, que comprovou a valida<strong>de</strong> e<br />
a<strong>de</strong>quabilida<strong>de</strong> das questões.<br />
125
126<br />
No momento, a pesquisa está em fase <strong>de</strong> coleta, obe<strong>de</strong>cen<strong>do</strong> a seguinte or<strong>de</strong>m: contato<br />
com as universida<strong>de</strong>s; contato com os alunos; procedimentos éticos e aplicação<br />
<strong>do</strong>s questionários.<br />
Após o termino da coleta <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s, estes serão analisa<strong>do</strong>s através <strong>de</strong> cálculos estatísticos<br />
bem como a literatura existente nas áreas da motivação em música, educação<br />
musical e práticas interpretativas.<br />
Referências<br />
Araújo, Rosane Car<strong>do</strong>so, Pickler, L. 2008. Motivação e o esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> fluxo na execução musical:<br />
um estu<strong>do</strong> com alunos <strong>de</strong> graduação em música. In: <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> Encontro Anual da<br />
Associação Brasileira <strong>de</strong> Educação Musical 17, São Paulo, 2008, São Paulo, SP: Abem.<br />
Austin, James R. & Vispoel, Walter P. 1992. Motivation after failure in school music performance<br />
classes: The facilitative efforts of strategy attribution. Bulletin of the Council<br />
for Research in Music Education 111, 1-23.<br />
Austin, James R. & Vispoel, Walter P. 1998. How American A<strong>do</strong>lescents Interpret Sucess<br />
and Failure in Classroom Music: Relationships among Attributional Beliefs, Self-Concept<br />
and Achievement. Psychology of Music 26, 26- 45.<br />
Babbie, Earl. 1999. Méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Pesquisa <strong>de</strong> Survey. Belo Horizonte: Editora UFMG.<br />
Bzuneck, José Aloyseo. 2001. A motivação <strong>do</strong> Aluno: Aspectos Introdutórios. In. E. Boruchovitch<br />
& A. Bzuneck (Orgs). A motivação <strong>do</strong> aluno. Contribuições da psicologia comtemporânea.<br />
Petrópolis: Vozes, 9-36.<br />
Boruchovitch, Evely & Martini, Mirela Lopez. 2004. A teoria da atribuição <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong>:<br />
contribuições para a formação e atuação <strong>de</strong> educa<strong>do</strong>res. Campinas: Editora Alínea.<br />
Cavalcanti, Célia Regina Pires. 2009. Auto-regulação e prática instrumental: um estu<strong>do</strong><br />
sobre as crenças <strong>de</strong> auto-eficácia <strong>de</strong> músicos instrumentistas. 2009. Dissertação (Mestra<strong>do</strong><br />
em Música) – Setor <strong>de</strong> Ciências Humanas, Letras e <strong>Artes</strong>, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />
<strong>do</strong> Paraná.<br />
Cereser, Cristina. 2009. A escala <strong>de</strong> autoeficácia <strong>do</strong> professor <strong>de</strong> música. In: Anales <strong>de</strong>l Encuentro<br />
Regional Latinoamericano <strong>de</strong> la Internatinal Society of Music Education, 7, Buenos<br />
Aires. Buenos Aires: Isme.<br />
Cohen, Louis, Manion, Lawrence & Morrison, Keith. 2007.j Research Methods in Education<br />
6 ed.. New York: Routledge<br />
Fredrickson, William E. 2007. Perceptions of college-level music performance majors teaching<br />
applied music lessons to young stu<strong>de</strong>nts. International Journal of Music Education<br />
25(1), 72-81.<br />
Guimarães, Suely Édi Rufini. 2001. Motivação intrínseca, extrínseca e o uso <strong>de</strong> recompensas<br />
em sala <strong>de</strong> aula. In. E. Boruchovitch & A. Bzuneck (Orgs). A motivação <strong>do</strong> aluno.<br />
Contribuições da psicologia comtemporânea. Petrópolis: Vozes, 37-5.<br />
Hentschke, Liane, Santos, Regina Antunes Teixeira <strong>do</strong>s, Pizzato, Miriam, Vilela, Cassiana<br />
Zamith, Cereser, Cristina. .2009. Motivação para Apren<strong>de</strong>r Música em espaçoes escolares<br />
e não-escolares. ETD – Educação Temática Digital, Campinas 10, n. esp. ( out<br />
2009), 85-104.<br />
Hewitt, Allan. 2004. Stu<strong>de</strong>nts’ Attributions of Sources of Influence on Self-Perception in
Solo Performance in Music. Research Studies in Music Education 1, n.22, 42-58.<br />
Legette, Roy M. 2002. Pre-Service Teachers’Beliefs about the Causes of Sucess and Failure<br />
in Music. Update: Applications Of Research in Music Education 21, 22.<br />
Martini, Mirela Lopez. Atribuições <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong>, crenças gerais e orientações motivacionais<br />
<strong>de</strong> crianças brasileiras. Campinas, 1999. Dissertação (Mestra<strong>do</strong>). Universida<strong>de</strong> Estadual<br />
<strong>de</strong> Campinas.<br />
McPherson , Gary E. 2004. The Child as Musician. Oxford: Oxford University Press.<br />
McPherson , Gary E, McCormick, John. 2006. Self-efficacy and music performance. Psychology<br />
of Music 34, n.1, 322-336.<br />
McPherson, Gary E, McCormick, John. 2000. The contribution of Motivational Factors<br />
to Instrumental Performance in a Music Examination. Research Studies in Music Education<br />
15, n.1, 31-39.<br />
Papageorgi, Ioulia; Hallam, Susan; Welch, Graham F. 2007. A conceptual framework for un<strong>de</strong>rstanding<br />
musical performance anxiety. Research Studies in Music Education 28, 83-<br />
107.<br />
Pizzato, Miriam Suzana. Motivação em apren<strong>de</strong>r música na escola: um estu<strong>do</strong> sobre o interesse.<br />
2009. Dissertação (Mestra<strong>do</strong> em Música) Instituto <strong>de</strong> <strong>Artes</strong>, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />
<strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, Porto Alegre, 2009.<br />
Schivitsa, Veronica O. 2007. The influence of parents, teachers, peers and other factors on<br />
stu<strong>de</strong>nts’motivation in music. Research Studies in Music Education 29, n.1,55-68.<br />
Schroe<strong>de</strong>r, Sílvia Cor<strong>de</strong>iro Massif. 2004. O músico: <strong>de</strong>sconstruin<strong>do</strong> mitos. Revista da ABEM,<br />
10 (mar. 2004), 109-118.<br />
Sousa, Paulo Malico; Rosa<strong>do</strong>, António Boleto; Cabrita, Túlia Maia. 2008. Análise das atribuições<br />
causais <strong>do</strong> sucesso e <strong>do</strong> insucesso na competição, em função <strong>do</strong> nível competitivo<br />
<strong>do</strong>s futebolistas portugueses. Psicologia: Reflexão e Crítica 21, n.2.<br />
Vilela, Cassiana Zamith. 2009. Motivação para apren<strong>de</strong>r música: o valor atribuí<strong>do</strong> à aula <strong>de</strong><br />
música no currículo escolar e em diferentes contextos. 2009. Dissertação (Mestra<strong>do</strong> em<br />
Música) Instituto <strong>de</strong> <strong>Artes</strong>, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, Porto Alegre.<br />
Weiner , Bernard. 1991. Metaphors in motivation ans attribution. American Psychologist<br />
46, n.9, 921-930.<br />
Weiner, Bernard. 1985. An Attributional Theory of Achievement Motivation and Emotion.<br />
Psychological Review 92, n. 4, 548-573.<br />
Weiner, Bernard. 2004. Attribution Theory Revised: transforming Cultural Plurality into<br />
Theoretical Unity. In: Dennis M. McInerney and Shawn Van Etten (Ed.), Big Theories<br />
4.<br />
127
128<br />
A influência <strong>do</strong> espaçamento entre notas nas relações<br />
<strong>de</strong> consonância e dissonância<br />
Orlan<strong>do</strong> Scarpa Neto<br />
orlan<strong>do</strong>scarpa@gmail.com<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Paraná<br />
1. Resumo<br />
Em sua obra The Craft of Musical Composition, Paul Hin<strong>de</strong>mith expõe parte <strong>de</strong> seu sistema<br />
<strong>de</strong> composição. Hin<strong>de</strong>mith <strong>de</strong>dica boa parte <strong>de</strong> seu livro à harmonia e à análise <strong>do</strong>s<br />
intervalos musicais, e cria um sistema sintetiza<strong>do</strong> em uma tabela para analisar o grau <strong>de</strong><br />
dissonância <strong>de</strong> um acor<strong>de</strong> qualquer. Nesta tabela, Hin<strong>de</strong>mith cria 6 grupos, cada um com<br />
<strong>do</strong>is ou três sub-grupos, or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s por grau <strong>de</strong> dissonância. Com esta tabela seria possível,<br />
teoricamente, analisar qualquer acor<strong>de</strong> basea<strong>do</strong> no número <strong>de</strong> intervalos dissonantes<br />
<strong>do</strong> mesmo. Hin<strong>de</strong>mith não leva em consi<strong>de</strong>ração o espaçamento entre as notas<br />
<strong>do</strong> acor<strong>de</strong>, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com sua tabela uma segunda dó3-dó# 3 teria o mesmo valor <strong>de</strong> uma<br />
segunda dó 3-dó# 7. Porém, o espaçamento entre as notas muda consi<strong>de</strong>ravelmente a<br />
dissonância ou consonância <strong>de</strong> um intervalo, uma oitava dó2-dó7 soa ligeiramente mais<br />
dissonante, <strong>do</strong> que uma segunda dó2-dó# 7 . Muitos compositores já se utilizaram <strong>de</strong>sta<br />
proprieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> espaçamento suas obras, alguns exemplos são Prokofiev, nos primeiros<br />
compassos <strong>de</strong> Aleksandr Nevskij, e Ligeti, no segun<strong>do</strong> e quinto movimento <strong>de</strong> Musica Ricercata.<br />
Em ambos os exemplos, intervalos <strong>de</strong> oitava soam quase dissonantes <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao<br />
gran<strong>de</strong> espaçamento entre as notas.<br />
O objetivo <strong>de</strong>ste trabalho é analisar <strong>de</strong> que maneira o espaçamento interfere na consonância<br />
ou dissonância <strong>de</strong> intervalos e investigar como a articulação <strong>do</strong> espaçamento<br />
po<strong>de</strong> complementar o sistema <strong>do</strong> Hin<strong>de</strong>mith. Primeiramente foram <strong>de</strong>talha<strong>do</strong>s alguns aspectos<br />
da teoria <strong>de</strong> Hin<strong>de</strong>mith, que po<strong>de</strong>riam ser complementa<strong>do</strong>s com o uso <strong>do</strong> espaçamento.<br />
Em seguida, foram aborda<strong>do</strong>s alguns conceitos da discussão da psicoacústica<br />
a respeito das relações <strong>de</strong> dissonância e consonância. Foi visto <strong>de</strong> que maneira idéias<br />
<strong>do</strong>s autores David Huron, Alexandre Torres, Richard Parncutt e Hans Strasburger ajudam<br />
a explicar a influência <strong>do</strong> espaçamento em relações <strong>de</strong> consonância/dissonância. Em<br />
seguida, foi discuti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que maneira as relações <strong>de</strong> consonância e dissonância foram interpretadas<br />
ao longo da história. A última parte <strong>de</strong>ste trabalho advém da própria composição<br />
musical. Foram utilizadas análises <strong>de</strong> compositores que usaram o espaçamento<br />
em suas obras (Ligeti, Dallapiccola e Prokofiev) que tem a articulação <strong>do</strong> espaçamento<br />
como um elemento central. Por último, foi discuti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que maneira a discussão da psicoacústica<br />
e da composição musical se aplicam ao sistema <strong>de</strong> Hin<strong>de</strong>mith no que diz respeito<br />
à articulação <strong>do</strong> espaçamento.<br />
Introdução<br />
Em sua obra The Craft of Musical Composition,1 Hin<strong>de</strong>mith expõe parte <strong>de</strong> seu sistema<br />
<strong>de</strong> composição. Dedica boa parte <strong>de</strong> seu livro à harmonia e à análise <strong>do</strong>s intervalos<br />
musicais. Para Hin<strong>de</strong>mith, existe uma hierarquia natural <strong>do</strong>s intervalos, e
“o valor <strong>de</strong> um intervalo musical é <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> pelo agrupamento <strong>de</strong> seu som resultante”2.<br />
Quan<strong>do</strong> tocamos duas notas musicais em qualquer instrumento, sons<br />
adicionais são gera<strong>do</strong>s. Uma categoria <strong>de</strong>ste sons adicionais são os sons da séria harmônica,<br />
a outra são os chama<strong>do</strong>s sons resultantes3. Segun<strong>do</strong> Hin<strong>de</strong>mith “a freqüência<br />
<strong>do</strong> som resultante é sempre igual a diferença entre as freqüências<br />
diretamente produzidas pelos sons <strong>do</strong> intervalo”4 Os sons resultantes são sons reais,<br />
sujeitos as mesmas leis acústicas que sons convencionais, portanto produzem seus<br />
próprios sons resultantes chama<strong>do</strong>s <strong>de</strong> sons resultantes <strong>de</strong> segunda or<strong>de</strong>m. Teoricamente,<br />
existem sons resultantes <strong>de</strong> terceira or<strong>de</strong>m, quarta or<strong>de</strong>m, quinta or<strong>de</strong>m,<br />
etc., porém estes sons vão fican<strong>do</strong> cada vez mais fracos e, na prática, não se percebe<br />
sons resultantes acima <strong>do</strong>s <strong>de</strong> segunda or<strong>de</strong>m. Hin<strong>de</strong>mith conclui que, <strong>de</strong>pois da oitava,<br />
a quinta justa é o intervalo que tem uma relação mais estável ou <strong>de</strong> maior valor<br />
com seu som resultante. Os intervalos que se seguem são, em or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> maior valor:<br />
quarta justa, terça maior, sexta menor, terça menor, sexta maior, segunda maior, sétima<br />
menor, segunda menor, sétima menor. O trítono é diferente <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os outros<br />
intervalos, e só po<strong>de</strong> ser analisa<strong>do</strong> conforme o contexto em que aparece.<br />
Hin<strong>de</strong>mith não é muito claro em relação a o que maior ou menor valor significaria<br />
exatamente, dan<strong>do</strong> a enten<strong>de</strong>r que o valor <strong>de</strong> um intervalo se relaciona com sua<br />
estabilida<strong>de</strong>, consonância e relação com a série harmônica. Hin<strong>de</strong>mith também<br />
cria uma tabela5 <strong>de</strong> análise <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s, que teoricamente seria capaz <strong>de</strong> classificar<br />
qualquer acor<strong>de</strong> em termos <strong>de</strong> dissonância. O autor divi<strong>de</strong> os acor<strong>de</strong>s em acor<strong>de</strong>s<br />
com e sem trítono, e cria seis grupos (numera<strong>do</strong>s com algarismos romanos) <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s.<br />
Os acor<strong>de</strong>s com números pares (II, IV e <strong>VI</strong>) são os que contém trítono, e os ímpares<br />
(I, II e V), os sem trítono. Quanto maior o número <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>, mais dissonante<br />
ele é.<br />
Estes grupos são: I – acor<strong>de</strong>s sem segundas ou sétimas; II – acor<strong>de</strong>s com trítono,<br />
sem segundas menores ou sétimas maiores; III – acor<strong>de</strong>s com segundas e/ou sétimas;<br />
IV – acor<strong>de</strong>s com trítono, com segundas menores e/ou sétimas maiores; V –<br />
acor<strong>de</strong>s in<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s; <strong>VI</strong> – acor<strong>de</strong>s in<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s com pre<strong>do</strong>minância <strong>do</strong> trítono.<br />
Cada um <strong>de</strong>stes grupos (com exceção <strong>do</strong>s grupos V e <strong>VI</strong>) possui 2 ou 3 subgrupos.<br />
Mais será dito sobre os grupos e subgrupos adiante.<br />
Hin<strong>de</strong>mith não leva em consi<strong>de</strong>ração o espaçamento entre as notas <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />
acor<strong>do</strong> com sua tabela uma segunda dó3- dó# 3 teria o mesmo valor <strong>de</strong> uma segunda<br />
dó3-dó# 7.6 Porém, o espaçamento entre notas muda consi<strong>de</strong>ravelmente a dissonância<br />
ou consonância <strong>de</strong> um intervalo; uma oitava dó2-dó7 soa ligeiramente mais<br />
dissonante <strong>do</strong> que uma segunda dó2-dó# 7. O próprio Hin<strong>de</strong>mith, apesar <strong>de</strong> não<br />
levar isto em consi<strong>de</strong>ração em boa parte <strong>de</strong> seu livro, reconhece o fenômeno:<br />
“Os intervalos no qual as notas estão separadas por distâncias tão gran<strong>de</strong>s que<br />
parecem ser transposições <strong>de</strong> oitava <strong>de</strong> quintas, quartas, etc., apresentam disposições<br />
<strong>de</strong> sons resultantes mais infelizes <strong>do</strong> que seus protótipos. […] Até mesmo<br />
129
130<br />
a oitava, que está acima e além <strong>de</strong> qualquer discussão <strong>de</strong> valores intervalares,<br />
per<strong>de</strong> boa parte <strong>de</strong> seu valor quan<strong>do</strong> aparece na forma 1:4 que, como sua estrutura<br />
<strong>de</strong> sons resultantes confirma, mal se compara à quinta justa em termos <strong>de</strong><br />
clareza. Na forma 1:8 […] é ainda mais fraca, e na forma 1:16 o intervalo se torna<br />
completamente dissonante”7<br />
Hin<strong>de</strong>mith afirma ainda que quanto mais instável for o intervalo mais rapidamente<br />
ele per<strong>de</strong>ria o seu valor à medida que o espaçamento aumentasse. Apesar <strong>de</strong> reconhecer<br />
que o espaçamento influencia na relação consonância/dissonância <strong>de</strong> um intervalo<br />
ou acor<strong>de</strong>, Hin<strong>de</strong>mith afirma que espaçamentos tão gran<strong>de</strong>s acontecem<br />
com pouca freqüência e po<strong>de</strong>m-se “tratar os intervalos espaça<strong>do</strong>s exatamente como<br />
seus protótipos. Isto é o suficiente para as necessida<strong>de</strong>s práticas da composição musical”8.<br />
No entanto, quem <strong>de</strong>termina a freqüência em que estes intervalos espaça<strong>do</strong>s<br />
ocorre é o próprio compositor, pois as necessida<strong>de</strong>s práticas da composição não<br />
são fixas.<br />
Muitos compositores já se utilizaram <strong>de</strong>sta proprieda<strong>de</strong> para dar forma suas obras,<br />
alguns exemplos são Prokofiev, nos primeiros compassos <strong>de</strong> Aleksandr Nevskij, e<br />
Ligeti, no primeiro e segun<strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> Musica Ricercata. Em ambos, intervalos<br />
<strong>de</strong> oitava soam quase dissonantes <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao gran<strong>de</strong> espaçamento entre as notas.<br />
Como já foi dito, o próprio Hin<strong>de</strong>mith em The Craft of Musical Composition reconhece<br />
que intervalos consonantes ficam dissonantes caso o espaçamento entre<br />
as notas seja muito gran<strong>de</strong>. Na mesma obra, Hin<strong>de</strong>mith aborda vários aspectos das<br />
relações <strong>de</strong> consonância e dissonância. Uma das idéias fundamentais <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong><br />
Hin<strong>de</strong>mith é a <strong>de</strong> que intervalos possuem uma nota fundamental9. Isto acontece<br />
porque, segun<strong>do</strong> o autor, os sons resultantes <strong>de</strong> alguns intervalos reforçam uma <strong>de</strong><br />
suas notas, seja em uníssono ou uma oitava abaixo. Na oitava, os sons resultantes,<br />
por serem mais graves, reforçam a nota inferior <strong>do</strong> intervalo, Hin<strong>de</strong>mith então consi<strong>de</strong>ra<br />
a nota inferior da oitava a fundamental. Na quinta justa, a fundamental é<br />
também a nota inferior, assim como na terça maior. Na sexta menor e na quarta<br />
justa, a fundamental é a nota superior <strong>do</strong> intervalo. Os intervalos <strong>de</strong> terça menor e<br />
sexta maior não produzem nenhum som resultante que reforcem qualquer uma <strong>de</strong><br />
suas notas por oitava ou uníssono: os sons resultantes <strong>de</strong> primeira or<strong>de</strong>m produzi<strong>do</strong>s<br />
na terça menor tem uma relação <strong>de</strong> quinta justa duas oitavas abaixo com a nota<br />
mais aguda <strong>do</strong> intervalo, e na sexta maior uma relação <strong>de</strong> quinta justa com a nota<br />
mais grave <strong>do</strong> intervalo, sen<strong>do</strong> o som resultante a nota grave da quinta. Os intervalos<br />
forma<strong>do</strong>s pelos sons resultantes <strong>de</strong> segunda or<strong>de</strong>m são os mesmos em ambos<br />
os casos, só que uma oitava acima. Hin<strong>de</strong>mith argumenta que é mais vantajoso tratar<br />
os intervalos <strong>de</strong> terça menor e sexta maior como tratamos os <strong>de</strong> terça maior e<br />
sexta menor, e que isto se torna um problema apenas quan<strong>do</strong> estamos escreven<strong>do</strong><br />
música a duas vozes. Algo pareci<strong>do</strong> ocorre com as segundas e sétimas: “não faz diferença<br />
quais das notas consi<strong>de</strong>ramos a fundamental. Os sons resultantes não apontam<br />
para conclusões <strong>de</strong>finitivas”10. Hin<strong>de</strong>mith consi<strong>de</strong>ra a nota superior como a
fundamental das segundas e a nota inferior como fundamental das sétimas. O que<br />
leva ele a estas conclusões são motivos históricos, já que nossos ouvi<strong>do</strong>s estão acostuma<strong>do</strong>s<br />
com a nota superior das sétimas resolven<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma ascen<strong>de</strong>nte na tônica,<br />
assim como a nota inferior das segundas. O curioso é que Hin<strong>de</strong>mith, mesmo<br />
usan<strong>do</strong> argumentos da acústica para justificar a existência das fundamentais em intervalos,<br />
sempre usa como prova final a história da música e a nossa própria escuta.<br />
Para Hin<strong>de</strong>mith, assim como intervalos possuem fundamentais, to<strong>do</strong> acor<strong>de</strong> possui<br />
uma fundamental. A fundamental <strong>do</strong> acor<strong>de</strong> no sistema <strong>de</strong> Hin<strong>de</strong>mith não tem<br />
nenhuma relação direta com a fundamental <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s no sistema <strong>de</strong> Rameau. Segun<strong>do</strong><br />
o autor:<br />
“Se há uma quinta justa no acor<strong>de</strong>, então a sua nota inferior é a fundamental <strong>do</strong><br />
acor<strong>de</strong>. Assim como a nota inferior <strong>de</strong> uma terça ou sétima (na ausência <strong>de</strong> qualquer<br />
intervalo melhor) é a fundamental <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>. De forma oposta, se uma<br />
quarta, sexta ou segunda for o melhor intervalo <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>, então a sua nota superior<br />
é a fundamental <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>.”11<br />
Hin<strong>de</strong>mith afirma que, <strong>de</strong> maneira geral, o espaçamento entre as notas <strong>do</strong> intervalo<br />
que possui a fundamental não interfere em nada.12 Em casos <strong>de</strong> espaçamento extremo,<br />
em que os intervalos a princípio consonantes se tornam dissonantes, o autor<br />
sugere “levar em consi<strong>de</strong>ração as influências melódicas . . . ao invés <strong>de</strong> se basear inteiramente<br />
nas analises harmônicas.”13 O autor também afirma que o espaçamento<br />
geral <strong>de</strong> um acor<strong>de</strong> po<strong>de</strong> influenciar na sua tensão14, e que esta influência é mais<br />
presente em acor<strong>de</strong>s com muitas notas. Acor<strong>de</strong>s mais simples, com tensão mo<strong>de</strong>rada,<br />
não per<strong>de</strong>m a sua essência quan<strong>do</strong> suas notas são espaçadas. Já acor<strong>de</strong>s mais<br />
complexos per<strong>de</strong>m suas particularida<strong>de</strong>s.<br />
Curiosamente, Hin<strong>de</strong>mith não comenta nada sobre a influência <strong>do</strong> espaçamento<br />
em sua tabela <strong>de</strong> análise <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s. Diether <strong>de</strong> la Motte, em sua obra Harmonia,15<br />
afirma que apesar <strong>de</strong> Hin<strong>de</strong>mith não abordar a questão em seu trabalho teórico, o<br />
seu trabalho enquanto compositor explora mudanças no espaçamento. Para o autor,<br />
as variações <strong>de</strong> tensão <strong>do</strong> ponto culminante <strong>de</strong> Versuchung <strong>de</strong>s heiligen Antonius<br />
(<strong>de</strong> Mathis <strong>de</strong>r Maler) são em gran<strong>de</strong> parte geradas por variações no espaçamento.16<br />
No campo da psicoacústica não foi encontra<strong>do</strong> nada que trate especificamente da<br />
influência <strong>do</strong> espaçamento na consonância/dissonância <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s, porém as discussões<br />
sobre fusão tonal, rugosida<strong>de</strong> e dissonância sensorial tratam indiretamente <strong>do</strong><br />
assunto. Mais será dito sobre estes conceitos adiante.<br />
Os diferentes conceitos <strong>de</strong> consonância e dissonância<br />
Para conseguir enten<strong>de</strong>r como o espaçamento entre notas influência as relações <strong>de</strong><br />
consonância e dissonância, primeiramente é preciso <strong>de</strong>finir o que se enten<strong>de</strong> por<br />
estes conceitos. Panteleimon Vassilakis sintetiza bem ambos:<br />
131
132<br />
“Dissonância e consonância são conceitos multidimensionais que <strong>de</strong>screvem os<br />
níveis <strong>de</strong> agradabilida<strong>de</strong>/irritabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um som, ou o grau no qual um som se<br />
relaciona com outros em um contexto musical maior. O fator <strong>de</strong>terminante<br />
para a presença <strong>de</strong> dissonância/consonância é a presença/ausência <strong>de</strong> rugosida<strong>de</strong>,<br />
respectivamente . . . Dentro da tradição da música oci<strong>de</strong>ntal, a presença <strong>de</strong> rugosida<strong>de</strong><br />
equivale a dissonância sensorial ou acústica.”17<br />
O termo rugosida<strong>de</strong>18 foi cria<strong>do</strong> por Hermann Helmholtz, e se refere a uma certa<br />
aspereza presente em sons dissonantes. O termo, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com Alexandre Porres,<br />
faz uma analogia com “a sensação tátil, e diz respeito a percepção <strong>de</strong> pequenas irregularida<strong>de</strong>s<br />
no som”19. Um som livre <strong>de</strong> rugosida<strong>de</strong> é, na música oci<strong>de</strong>ntal, quase<br />
sempre consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um som consonante. Fisicamente, a rugosida<strong>de</strong> é flutuação <strong>de</strong><br />
amplitu<strong>de</strong>, e a taxa <strong>de</strong> flutuação <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> entre <strong>do</strong>is sons é dada pela diferença<br />
em Hertz entre eles. Taxas abaixo <strong>de</strong> 20Hz produzem variações <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> lentas,<br />
percebidas como batimentos, e “flutuações mais rápidas são responsáveis pela<br />
sensação <strong>de</strong> rugosida<strong>de</strong>, e ocorrem para uma diferença em freqüência entre 20Hz<br />
e um valor que varia <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o registro da escuta”.20 Estas flutuações rápidas<br />
estão presentes em sons dissonantes não só entre as freqüências das notas fundamentais,<br />
mas também entre os harmônicos. Quan<strong>do</strong> o espaço entre as freqüências<br />
é gran<strong>de</strong> o suficiente para não ocorrem flutuações <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> ou quan<strong>do</strong> os harmônicos<br />
entre <strong>do</strong>is sons coinci<strong>de</strong>m, temos a consonância sensorial. A presença <strong>de</strong><br />
rugosida<strong>de</strong> implica em dissonância sensorial, mas a dissonância sensorial não é a<br />
única forma <strong>de</strong> dissonância. De acor<strong>do</strong> com James Tenney, dissonância e consonância<br />
significaram pelo menos cinco coisas diferentes ao longo da história da música<br />
oci<strong>de</strong>ntal.21 O autor chama essas diferentes percepções <strong>de</strong> consonância e<br />
dissonância <strong>de</strong> Conceito <strong>de</strong> Dissonância e Consonância 1, 2, 3, 4 e 522 (ou CDC-1,<br />
2, . . .).<br />
O CDC-1 diz respeito à dissonância/consonância monofônica ou melódica, sons<br />
consonantes são aqueles que são afináveis melodicamente por possuírem uma conexão<br />
ou relação forte23. O conceito vem da Grécia antiga, porém ecos <strong>de</strong>le estão<br />
presentes nas harmonias <strong>do</strong> século X<strong>VI</strong>II, nos saltos <strong>de</strong> quarta e quinta justa <strong>do</strong><br />
baixo e até nas idéias <strong>de</strong> Hin<strong>de</strong>mith quan<strong>do</strong> ele afirma que as oitavas, quartas e<br />
quintas são intervalos que possuem mais valor que os outros.24 Richard Parncutt<br />
e Hans Strasburger25 também remetem ao CDC-1 quan<strong>do</strong> dizem que os acor<strong>de</strong>s<br />
criam relações entre si <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a similarida<strong>de</strong>s entre alturas26 <strong>de</strong> ambos. Para os autores,<br />
existem outras duas formas <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s criarem relações entre si: a proximida<strong>de</strong><br />
das fundamentais <strong>do</strong>s acor<strong>de</strong>s no ciclo das quintas e os <strong>do</strong>is acor<strong>de</strong>s<br />
pertencerem a uma mesma tonalida<strong>de</strong> historicamente <strong>de</strong>finida. Segun<strong>do</strong> os autores,<br />
o problema da primeira hipótese é que, muitas vezes, acor<strong>de</strong>s que têm uma relação<br />
forte entre si têm fundamentais bastante ambíguas, e o problema da segunda<br />
é que ela não explica relações entre acor<strong>de</strong>s em um contexto atonal e/ou extremamente<br />
cromático. A terceira forma seria a da similarida<strong>de</strong> entre alturas: percebemos
os acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ré menor e dó maior como harmonicamente relaciona<strong>do</strong>s pelo fato<br />
<strong>de</strong> possuírem harmônicos em comum. Os acor<strong>de</strong>s não possuem notas em comum<br />
(dó-mi-sol e ré-fá-lá), mas possuem vários harmônicos em comum: mi é o terceiro<br />
e sol o sétimo harmônico <strong>de</strong> lá. Adiante, o acor<strong>de</strong> <strong>de</strong> ré menor não tem apenas as<br />
notas ré-lá-fá, mas também a nota sol “que tem como terceiro harmônico ré, sétimo<br />
harmônico fá e nono harmônico lá”27. A aplicabilida<strong>de</strong> da hipótese <strong>do</strong>s autores<br />
na composição musical é discutível, mas o objetivo aqui é <strong>de</strong>monstrar que eles<br />
pensam em progressões harmônicas em termos <strong>de</strong> similarida<strong>de</strong> entre notas, o que<br />
seria uma extensão <strong>do</strong> CDC-1 <strong>do</strong> âmbito da melodia para o âmbito da harmonia.<br />
CDC-2 diz respeito ao aspecto sonoro <strong>de</strong> día<strong>de</strong>s, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> qualquer contexto<br />
musical. A diferenciação entre dissonância melódica e intervalar começa a<br />
surgir por volta <strong>do</strong> século XI, época em que Gui<strong>do</strong> d’Arezzo faz uma separação<br />
entre día<strong>de</strong>s que são consonantes por soarem suaves e como apenas um som (CDC-<br />
2) e intervalos melódicos com notas com uma certa afinida<strong>de</strong> entre si (CDC-1).28<br />
No século XX, a discussão que mais remete ao CDC-2 é a <strong>de</strong> fusão tonal. O conceito<br />
<strong>de</strong> fusão tonal foi <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> pelo psicólogo alemão Carl Stumpf e, segun<strong>do</strong><br />
Torres, Stumpf “liga a sensação <strong>de</strong> consonância com a sensação <strong>de</strong> ouvintes perceberem<br />
<strong>do</strong>is tons como uma entida<strong>de</strong> única”.29 O trabalho <strong>de</strong> Stumpf se provou ineficiente<br />
para explicar o fenômeno <strong>de</strong> consonância musical em sua totalida<strong>de</strong> como<br />
pretendia o autor, mas “seu trabalho foi explora<strong>do</strong> no século XX em estu<strong>do</strong>s que<br />
consi<strong>de</strong>ram a fusão tonal como um fenômeno psicoacústico/cognitivo”.30 Um <strong>do</strong>s<br />
autores que trata a fusão tonal como fenômeno cognitivo é David Huron, que<br />
afirma que Johann Sebastian Bach preferia intervalos “na proporção inversa ao grau<br />
que promovem dissonância sensorial e na proporção inversa ao grau que promovem<br />
fusão tonal . . . Bach queria produzir sons ‘suaves’ sem o risco <strong>de</strong> soarem ‘como um<br />
só’ ”.31 Para o autor, Bach evitava intervalos que ten<strong>de</strong>m a ter mais fusão tonal com<br />
o objetivo <strong>de</strong> manter a in<strong>de</strong>pendência entre as vozes.<br />
Com o surgimento da polifonia renascentista o CDC-2 se tornou ineficiente para<br />
servir como base às novas práticas. Surge então o CDC-3, que é basea<strong>do</strong> na clareza<br />
melódica e textural das vozes em um contexto contrapontístico. A quarta justa<br />
passa a ser consi<strong>de</strong>rada ora consonante ora dissonante, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>do</strong> contexto<br />
em que aparece, e surge o conceito <strong>de</strong> consonância perfeita (quintas e oitavas) e<br />
consonância imperfeita (terças e sextas). É importante acentuar que a idéia <strong>de</strong> que<br />
a consonância/dissonância <strong>de</strong> um intervalo varia <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o contexto é algo<br />
que surge com o CDC-3.32<br />
Posteriormente, com a ascensão da harmonia <strong>de</strong> Rameau, no fim <strong>do</strong> século X<strong>VI</strong>II,<br />
surge o CDC-4. A idéia <strong>de</strong> consonância e dissonância é estendida, e aparece a noção<br />
<strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s e notas dissonantes. To<strong>do</strong> acor<strong>de</strong> passa então a possuir uma fundamental,<br />
que po<strong>de</strong> ser rastreada <strong>de</strong>codifican<strong>do</strong> as notas em sobreposições <strong>de</strong> terças: o acor<strong>de</strong><br />
dó-mi-lá, que antes era consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um acor<strong>de</strong> <strong>de</strong> dó com terça e sexta, passa a ser<br />
133
134<br />
consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um acor<strong>de</strong> <strong>de</strong> lá menor na primeira inversão (com a terça no baixo). Se<br />
este acor<strong>de</strong> tivesse uma sétima menor sol, a nota sol seria consi<strong>de</strong>rada a nota dissonante<br />
<strong>do</strong> acor<strong>de</strong>. E os acor<strong>de</strong>s também passam a ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s como mais ou<br />
menos consonantes/dissonantes, e a consonância/dissonância a ser associada com<br />
estabilida<strong>de</strong> (sem a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resolução) e instabilida<strong>de</strong> (tendência a movimento,<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resolução).33<br />
É apenas no século XX, com o CDC-5, que surge o termo rugosida<strong>de</strong>. No CDC-5<br />
um intervalo dissonante é aquele que possui uma certa rugosida<strong>de</strong>, e à medida que<br />
um intervalo qualquer fica menos rugoso (ou mais suave), ele fica mais consonante.34<br />
O surgimento <strong>do</strong> CDC-5 não <strong>de</strong>scarta os outros CDCs e as várias concepções<br />
sobre o assunto se acumulam ao invés <strong>de</strong> se anularem. Diversos autores se<br />
utilizam <strong>de</strong> vários CDCs em um mesmo trabalho, o que evi<strong>de</strong>ncia que as discussões<br />
sobre consonância/dissonância são, antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, semânticas. Apesar <strong>do</strong> CDC-5<br />
ser o mais recente, nem sempre na música contemporânea a dissonância sensorial<br />
é tratada como a única forma <strong>de</strong> dissonância. Um exemplo <strong>de</strong> compositor que incorpora<br />
vários conceitos <strong>de</strong> dissonância em sua produção é Maurício Dottori, que<br />
em sua sonata para piano trata o espaçamento entre notas como o fator <strong>de</strong>terminante<br />
da consonância ou dissonância <strong>de</strong> um intervalo qualquer.35<br />
Quan<strong>do</strong> analisamos as dissonâncias que surgem com o aumento <strong>do</strong> espaçamento é<br />
preciso enten<strong>de</strong>r qual a natureza <strong>de</strong>las. A hipótese inicial era que, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao espaçamento<br />
muito gran<strong>de</strong> entre as fundamentais, havia pouca ou nenhuma coincidência<br />
<strong>de</strong> harmônicos, que isso acarretava em um aumento na rugosida<strong>de</strong>. Esta<br />
explicação é reforçada pelas hipóteses <strong>de</strong> Valentina Dal<strong>de</strong>gan.36 Para ela, uma oitava<br />
dó2-dó6 soa estanha ou áspera porque temos um reforço muito gran<strong>de</strong> nos harmônicos<br />
superiores <strong>de</strong> dó2. A hipótese <strong>de</strong> Dal<strong>de</strong>gan ajuda também a explicar a falta <strong>de</strong><br />
aspereza <strong>de</strong> segundas espaçadas. Para a autora, quan<strong>do</strong> reforçamos os harmônicos<br />
superiores <strong>de</strong> dó por uma segunda espaçada, temos o alinhamento <strong>do</strong>s primeiros<br />
harmônicos da nota aguda com os harmônicos acima <strong>do</strong> 9º da nota grave, o que<br />
ajuda a amenizar a aspereza.<br />
O espaçamento em Ligeti e Prokofiev<br />
O segun<strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> Musica Ricercata <strong>de</strong> Ligeti (figura 1)37 se baseia inteiramente<br />
no fenômeno <strong>de</strong>scrito acima, e o compositor se utiliza <strong>do</strong> espaçamento para<br />
criar oitavas dissonantes durante quase to<strong>do</strong> o movimento. O movimento, que dura<br />
aproximadamente três minutos e meio, começa com o tema composto apenas pelas<br />
notas mi #4 e fá #4. No quinto compasso o tema é apresenta<strong>do</strong>, mas agora com as oitavas<br />
<strong>do</strong>bradas da seguinte maneira: mi #5 e mi #6 são toca<strong>do</strong>s simultaneamente<br />
com mi#1 e mi#2, o mesmo acontece com a nota fá #. O compositor consegue criar<br />
uma textura dissonante utilizan<strong>do</strong> apenas oitavas, que soam estranhos <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao espaçamento.
O primeiro movimento <strong>de</strong> Musica Ricercata (figura 2) contém apenas duas notas:<br />
lá e ré. O ré aparece apenas nos 4 últimos compassos, e o restante <strong>do</strong> movimento<br />
tem apenas lá em diferentes oitavas. Ligeti se utiliza <strong>de</strong> variações no espaçamento<br />
e dinâmica para criar a flutuação harmônica <strong>do</strong> movimento, e isto fica mais evi<strong>de</strong>nte<br />
nos últimos nove compassos, em que Ligeti cria uma harmonia dissonante<br />
juntan<strong>do</strong> a oitava lá -1-lá1 com lá6-lá7. As quatro notas são tocadas cada vez mais<br />
rápidas até que resolvem em um salto <strong>de</strong> quarta justa para a oitava ré4-ré5. O salto<br />
<strong>de</strong> quarta justa faz com que percebemos as oitavas dissonantes como <strong>do</strong>minantes<br />
da oitava ré4-ré5.<br />
Figura 1 — compassos 1 a 6 <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> Musica Ricercata<br />
Figura 2 – compassos finais <strong>do</strong> primeiro movimento <strong>de</strong> Musica Ricercata<br />
135
136<br />
Nos primeiros compassos <strong>de</strong> Aleksandr Nevskij (figura 3)38 temos mais uma vez oitavas<br />
dissonantes. O tema é introduzi<strong>do</strong> pela ma<strong>de</strong>iras, metais e cordas, e o reforço<br />
harmônico e falta <strong>de</strong> coincidência entre harmônicos gera<strong>do</strong>s pelo espaçamento<br />
entre as notas é tão gran<strong>de</strong> que gera uma textura dissonante. O trecho foi composto<br />
como trilha sonora <strong>do</strong> filme <strong>de</strong> mesmo nome e aparece logo na primeira cena, que<br />
mostra a Rússia medieval sob o jugo mongol.<br />
As consonâncias imperfeitas (terças, quartas e sextas) sofrem mais ou menos as<br />
mesma transformações que as perfeitas quan<strong>do</strong> são espaçadas. A fusão tonal <strong>de</strong>stes<br />
intervalos é menor que a das oitavas e quintas, e com espaçamentos <strong>de</strong> duas ou três<br />
oitavas ele já começam a ser percebi<strong>do</strong>s como dissonantes. As segundas e sétimas são<br />
intervalos que apresentam gran<strong>de</strong> dissonância sensorial, e o que mais chama atenção<br />
neles é alta rugosida<strong>de</strong> e a ausência <strong>de</strong> fusão tonal. Quan<strong>do</strong> espaçamos segundas<br />
(menores ou maiores) <strong>de</strong> uma oitava, a flutuação <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> causa<strong>do</strong> pela<br />
diferença <strong>de</strong> freqüência das fundamentais <strong>de</strong>saparece, e temos a flutuação apenas<br />
nos harmônicos. Quan<strong>do</strong> as espaçamos <strong>de</strong> duas oitavas, a rugosida<strong>de</strong> é ainda menor,<br />
e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> aproximadamente quatro oitavas, as flutuações <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> estão presentes<br />
apenas na relação entre a fundamental da nota superior <strong>do</strong> intervalo e os<br />
harmônicos superiores da nota inferior. Nestas condições, percebemos as segundas<br />
como quase consonantes. O estranhamento causa<strong>do</strong> pelas oitavas espaçadas, sem<br />
alinhamento <strong>de</strong> harmônicos é maior que o causa<strong>do</strong> por segundas sem flutuação <strong>de</strong><br />
amplitu<strong>de</strong>, e faz com que as segundas sejam percebidas como menos dissonantes<br />
que oitavas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ambos os intervalos estejam bastante espaça<strong>do</strong>s. As sétimas,<br />
por serem inversões das segundas, se transformam da mesma maneira com o aumento<br />
<strong>do</strong> espaçamento. O trítono, por soar consonante em contextos dissonantes<br />
e dissonante em contextos consonantes, tem uma relação diferente com o espaçamento.<br />
O trítono per<strong>de</strong> parte <strong>do</strong> seu impacto quan<strong>do</strong> espaça<strong>do</strong>, mas a natureza<br />
<strong>de</strong>ste impacto e o quão espaça<strong>do</strong> ele precisa estar <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m completamente <strong>do</strong><br />
contexto em que aparece.<br />
A tabela <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Hin<strong>de</strong>mith<br />
Uma vez <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> o que se enten<strong>de</strong> por consonância e dissonância, e as particularida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> cada intervalo espaça<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>mos ver como a tabela <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Hin<strong>de</strong>mith<br />
po<strong>de</strong> ser estendida. Relembran<strong>do</strong>, os acor<strong>de</strong>s são dividi<strong>do</strong>s em acor<strong>de</strong>s sem<br />
trítono (grupo A) e acor<strong>de</strong>s com trítono (grupo B). No grupo A temos os sub-grupos<br />
I, III e V; no B os sub-grupos II, IV e <strong>VI</strong>. Quanto maior o número <strong>do</strong> grupo <strong>de</strong><br />
um acor<strong>de</strong> qualquer, maior a dissonância <strong>de</strong>ste acor<strong>de</strong>. O grupo I é forma<strong>do</strong> por<br />
acor<strong>de</strong>s sem sétimas ou segundas, e é dividi<strong>do</strong> em <strong>do</strong>is subgrupos. I1 contém as tría<strong>de</strong>s<br />
maiores e menores, e I2 os acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong> terça e sexta e quarta e sexta39. Estes acor<strong>de</strong>s<br />
têm um caráter altamente conclusivo40. A nomenclatura <strong>do</strong>s grupos é <strong>de</strong> acor<strong>do</strong><br />
com seu valor ou consonância, e para Hin<strong>de</strong>mith o sub-grupo I-1 é mais conso-
Figura 3 — primeiros compassos <strong>de</strong> Aleksandr Nevskij.<br />
Versão reduzida a partir <strong>do</strong> original.<br />
nante e conclusivo que o I-2. Isto não é necessariamente verda<strong>de</strong>. Se analisarmos os<br />
acor<strong>de</strong>s dó4-mi4-sol4 e dó4-mi4-lá4, o primeiro é percebi<strong>do</strong> como ligeiramente mais<br />
consonante pelo fato <strong>de</strong> uma fusão tonal um pouco mais presente. Porém, uma vez<br />
espaçada a quinta justa dó-sol <strong>do</strong> primeiro acor<strong>de</strong>, esta fusão tonal em parte <strong>de</strong>saparece,<br />
igualan<strong>do</strong> o ao acor<strong>de</strong> <strong>do</strong> grupo I2. De maneira geral, quanto menos espaçadas<br />
as notas <strong>de</strong> uma acor<strong>de</strong> <strong>do</strong> grupo 1, mais consonante ele vai ser41. Entre <strong>do</strong>is<br />
acor<strong>de</strong>s igualmente espaça<strong>do</strong>s, as tría<strong>de</strong>s perfeitas ten<strong>de</strong>m a ser um pouco mais conclusivas<br />
que os acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong> quarta e sexta e terça e sexta.<br />
O grupo II da tabela é forma<strong>do</strong> por acor<strong>de</strong>s sem segundas menores, sétimas maiores<br />
e com trítono. É dividi<strong>do</strong> em 4 sub-grupos, II-a contém acor<strong>de</strong>s com sétimas menores<br />
e sem segundas maiores, II-b é composto por acor<strong>de</strong>s com segundas maiores<br />
e/ou sétima menores e é subdivi<strong>do</strong> em mais três grupos. II-b1 contém acor<strong>de</strong>s em<br />
que a fundamental e o baixo são idênticos, II-b2 contém acor<strong>de</strong>s em que a fundamental<br />
fica acima <strong>do</strong> baixo, e II-b3 contem acor<strong>de</strong>s com mais <strong>de</strong> um trítono. Exemplos<br />
<strong>de</strong> cada um <strong>do</strong>s acor<strong>de</strong>s se encontram na tabela original <strong>de</strong> Hin<strong>de</strong>mith,<br />
traduzida e anexada no fim <strong>de</strong>ste trabalho. Os acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ste grupo são menos estáveis<br />
que os <strong>do</strong> grupo I. A diferença entre os acor<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s subgrupos II-b2 e II-b3 é mínima,<br />
e mais uma vez <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> mais <strong>do</strong> espaçamento entre as notas <strong>do</strong> que na<br />
posição da fundamental.<br />
137
138<br />
O grupo III é forma<strong>do</strong> por acor<strong>de</strong>s com segundas e/ou sétimas, sem trítono. É subdivi<strong>do</strong><br />
em III1 e III2, sen<strong>do</strong> que em III-1 o baixo e a fundamental são idênticos e em<br />
III2 a fundamental fica acima <strong>do</strong> baixo. Para Hin<strong>de</strong>mith estes acor<strong>de</strong>s são ásperos,<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da melodia e difíceis <strong>de</strong> conectar com outros acor<strong>de</strong>s42. Quan<strong>do</strong> igualmente<br />
espaça<strong>do</strong>s, os acor<strong>de</strong>s <strong>do</strong> subgrupo III2 tem estas características mais ressaltadas<br />
que os <strong>do</strong> subgrupo III2. Uma vez que aumentamos o espaçamento entre as<br />
notas, a dissonância das sétimas e segundas é amenizada, e um acor<strong>de</strong> espaça<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
subgrupo III2 soa menos áspero que um acor<strong>de</strong> não espaça<strong>do</strong> <strong>do</strong> subgrupo III1.<br />
O grupo IV é forma<strong>do</strong> por acor<strong>de</strong>s com qualquer número <strong>de</strong> sétimas maiores, segundas<br />
menores e trítonos, e é novamente subdividi<strong>do</strong> em IV1 (fundamental e<br />
baixo idênticos) e IV2 (fundamental acima <strong>do</strong> baixo). Segun<strong>do</strong> Hin<strong>de</strong>mith, este<br />
acor<strong>de</strong>s são altamente colori<strong>do</strong>s e expressivos, e quan<strong>do</strong> possuem um menor número<br />
<strong>de</strong> notas são mais estáveis e se tornam mais fáceis <strong>de</strong> enca<strong>de</strong>ar com outros<br />
acor<strong>de</strong>s43. Além <strong>de</strong> diminuir o número <strong>de</strong> notas, outra maneira <strong>de</strong> <strong>do</strong>mar estes acor<strong>de</strong>s<br />
seria espaçar as notas dissonantes presentes e aproximar as consonantes, aumentan<strong>do</strong><br />
a fusão tonal e diminuin<strong>do</strong> a rugosida<strong>de</strong>. As relações entre IV1 e IV2 se<br />
modificam com o espaçamento da mesma maneira que os acor<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s grupos III1<br />
e III2.<br />
Por último temos os acor<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s grupos V e <strong>VI</strong>. Estes grupos são forma<strong>do</strong>s por<br />
acor<strong>de</strong>s com sobreposições <strong>de</strong> intervalos iguais. O grupo V contém acor<strong>de</strong>s sem trítono,<br />
e fazem parte <strong>de</strong>ste grupo acor<strong>de</strong>s com duas terças maiores sobrepostas (e<br />
conseqüentemente uma quinta aumentada) sem nenhum <strong>do</strong>bramento (p. ex dómi-sol#)<br />
e acor<strong>de</strong>s com duas quartas sobrepostas sem nenhum <strong>do</strong>bramento (p. ex.<br />
dó-fá-si b), com apenas a nota superior da quarta inferior <strong>do</strong>brada (p. ex. dó2-fá3-fá4si<br />
b4), ou com a nota mais aguda <strong>do</strong>brada acima ou mais grave abaixo (p. ex. dó2dó3-fá3-si<br />
b3 e dó2-fá2-si b2-si b3). Apesar <strong>do</strong> primeiro acor<strong>de</strong> conter uma sexta menor<br />
(quinta aumentada) a fundamental não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>finida, segun<strong>do</strong> Hin<strong>de</strong>mith,<br />
pelo fato das notas da sexta menor estarem presentes em to<strong>do</strong>s os intervalos <strong>do</strong><br />
acor<strong>de</strong>; o mesmo acontece com as quartas justas <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> acor<strong>de</strong>.44 O grupo <strong>VI</strong><br />
contém acor<strong>de</strong>s in<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s com o trítono pre<strong>do</strong>minante, e os únicos acor<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>ste grupo são os formadas por sobreposições <strong>de</strong> duas ou mais terças menores e,<br />
usan<strong>do</strong> a terminologia da harmonia tradicional, suas possíveis inversões. Dada a<br />
natureza incerta <strong>do</strong>s acor<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s grupos V e <strong>VI</strong>, é difícil generalizar como o aumento<br />
<strong>do</strong> espaçamento os altera. Dobran<strong>do</strong> as quartas no extremo agu<strong>do</strong> e ou extremo<br />
grave nos acor<strong>de</strong>s <strong>do</strong> grupo V conseguimos <strong>de</strong>ixá-lo comparativamente mais<br />
dissonante, e espaçan<strong>do</strong> as terças <strong>do</strong>s acor<strong>de</strong>s <strong>do</strong> grupo <strong>VI</strong> conseguimos o mesmo<br />
efeito.<br />
Outro elemento fundamental <strong>do</strong> pensamento harmônico <strong>de</strong> Hin<strong>de</strong>mith é a relação<br />
entre as vozes extremas. Segun<strong>do</strong> o autor, para que a música fique clara e inteligível<br />
“os contornos <strong>de</strong> sua moldura a duas vozes precisam ser limpos e planeja<strong>do</strong>s
<strong>de</strong> forma convincente”.45 O autor ressalta que as vozes extremas são completamente<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes das outras notas <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>, e a influência das vozes internas na vozes<br />
extremas é tão sutil que po<strong>de</strong> ser comparada a influência <strong>do</strong> “baço ou fíga<strong>do</strong> na aparência<br />
externa <strong>de</strong> um homem”. O autor sugere que o compositor planeje bem os intervalos<br />
forma<strong>do</strong>s pelas vozes extremas, e que como regra geral po<strong>de</strong>-se afirmar que<br />
terças e sextas são intervalos <strong>do</strong>ces e agradáveis, mas usa<strong>do</strong>s em excesso soam entediantes.<br />
Já as segundas e sétimas “dão força e tensão para a escrita a duas vozes, mas<br />
o uso contínuo torna a escuta maçante e insensível aos charmes mais sutis <strong>do</strong>s intervalos<br />
mais satisfatórios”.46 O espaçamento entre as vozes extremas <strong>de</strong> um acor<strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong> ofuscar as dissonâncias das vozes extremas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que cautelosamente planeja<strong>do</strong>.<br />
Nos primeiros compassos <strong>de</strong> Quartina (figura 4, último movimento <strong>de</strong> Qua<strong>de</strong>rno<br />
Musicale di Annalibera)47, temos um exemplo <strong>de</strong>ste procedimento. No<br />
compasso 5 temos um acor<strong>de</strong> que tem como fundamental fá#, no último tempo <strong>do</strong><br />
compasso temos o adiantamento <strong>de</strong> mi1, que é a fundamental <strong>do</strong> acor<strong>de</strong> da harmonia<br />
seguinte. No compasso 6, temos um fá# 6 no contratempo <strong>do</strong> primeiro<br />
tempo, que age como um retar<strong>do</strong>, e soa um tanto dissonante. A dissonância <strong>de</strong>ste<br />
retar<strong>do</strong> seria consi<strong>de</strong>ravelmente maior caso ele fosse duas oitavas abaixo, mas o espaçamento<br />
dilui um pouco a tensão. O retar<strong>do</strong> é resolvi<strong>do</strong> em si5, e só quan<strong>do</strong> da<br />
resolução percebemos a real dissonância da harmonia anterior.<br />
Figura 4 — compassos 1 à 9 <strong>de</strong> Quartina.<br />
Hin<strong>de</strong>mith chama <strong>de</strong> Flutuação Harmônica48 as variações <strong>de</strong> dissonância, tensão e<br />
cor causadas pelas progressões <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong> diferentes grupos <strong>de</strong> sua tabela. Para<br />
<strong>de</strong>screver a flutuação harmônica, o autor faz uma analogia com um tijolo sen<strong>do</strong><br />
empurra<strong>do</strong>. O tijolo po<strong>de</strong> ser empurra<strong>do</strong> <strong>de</strong> tal maneira que o la<strong>do</strong> em contato<br />
139
140<br />
com a superfície se mantém o mesmo durante to<strong>do</strong> o movimento, ou ele po<strong>de</strong> ser<br />
empurra<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma abrupta <strong>de</strong> forma que o la<strong>do</strong> que encosta na superfície está<br />
constantemente varian<strong>do</strong>. O segun<strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> movimento “correspon<strong>de</strong> a mudanças<br />
na gravida<strong>de</strong> harmônica”.49<br />
Para o autor, é impossível ter-se algum tipo <strong>de</strong> flutuação harmônica com acor<strong>de</strong>s <strong>do</strong><br />
mesmo grupo. Porém, mudanças no espaçamento, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que um tanto extremas,<br />
conseguem causar forte flutuação harmônica, e servir como intermédio para<br />
transições que seriam abruptas, como <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s <strong>do</strong> grupo III a acor<strong>de</strong>s <strong>do</strong> grupo<br />
<strong>VI</strong>. Hin<strong>de</strong>mith não cria muitas regras ou procedimentos padrões para a flutuação<br />
harmônica, e este é um <strong>do</strong>s poucos assuntos que o autor evita fazer generalizações.<br />
Uma das poucas generalizações que faz com mais convicção é que “os acor<strong>de</strong>s in<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>s grupos V e <strong>VI</strong> introduzem um elemento <strong>de</strong> incerteza . . . a introdução<br />
<strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s in<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s é como um passo em direção à lama ou areia<br />
movediça”.50<br />
Uma maneira um pouco mais segura <strong>de</strong> se realizar progressões com acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong>stes<br />
grupos é aproximan<strong>do</strong> os intervalos que possuem mais fusão tonal e espaçan<strong>do</strong> os<br />
intervalos mais dissonantes. No primeiro movimento <strong>de</strong> Musica Ricercata temos<br />
um exemplo <strong>de</strong> flutuação harmônica através <strong>de</strong> mudanças no espaçamento, e nos<br />
compassos 5 e 6 <strong>de</strong> Quartina temos um exemplo claro <strong>do</strong> espaçamento amenizan<strong>do</strong><br />
o que seria, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o sistema <strong>de</strong> Hin<strong>de</strong>mith, uma flutuação harmônica <strong>de</strong>sajeitada.<br />
Além da flutuação harmônica, existem mais três aspectos <strong>do</strong> pensamento harmônico<br />
<strong>de</strong> Hin<strong>de</strong>mith que po<strong>de</strong>m ser altera<strong>do</strong>s com o espaçamento: as progressões<br />
das fundamentais, acor<strong>de</strong>s arpeja<strong>do</strong>s e centros tonais. Hin<strong>de</strong>mith afirma que em<br />
progressões harmônicas <strong>de</strong>ve-se sempre estar atento aos intervalos forma<strong>do</strong>s pelas<br />
fundamentais <strong>do</strong>s acor<strong>de</strong>s,51 e que quan<strong>do</strong> as fundamentais progri<strong>de</strong>m em intervalos<br />
<strong>de</strong> quinta ou quarta justa, elas são mais valiosas52 (termo <strong>do</strong> autor) que progressões<br />
<strong>de</strong> sétima53. O trítono, por ser um intervalo que tem uma presença<br />
facilmente i<strong>de</strong>ntificável, ten<strong>de</strong> a criar tensão quan<strong>do</strong> usa<strong>do</strong> em progressões <strong>de</strong> fundamentais.<br />
Espaçan<strong>do</strong> as fundamentais <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s diferentes conseguimos amenizar<br />
as características específicas <strong>de</strong> cada intervalo.<br />
Os centros tonais e acor<strong>de</strong>s arpeja<strong>do</strong>s estão bastante relaciona<strong>do</strong>s. Quan<strong>do</strong> escutamos<br />
as notas dó-mi-sol sen<strong>do</strong> tocadas sucessivamente, passamos a escutar esta seqüência<br />
<strong>de</strong> notas como harmonia, e a nota dó como sen<strong>do</strong> o cento tonal, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao<br />
dó ser a fundamental da quinta justa dó-sol.54 Em alguns casos, como no baixo <strong>de</strong><br />
Alberti, o acor<strong>de</strong> forma<strong>do</strong> e seu centro tonal são óbvios, mas em outros as relações<br />
entres as notas não são tão claras. Hin<strong>de</strong>mith sugere várias maneiras <strong>de</strong> se criar centro<br />
tonais. Uma <strong>de</strong>las é crian<strong>do</strong> acor<strong>de</strong>s quebra<strong>do</strong>s nas progressões das fundamentais,<br />
e quanto mais consonante for o acor<strong>de</strong> cria<strong>do</strong> pelas fundamentais, menos<br />
ambíguo será o centro tonal. Outra maneira é resolver progressões <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s com
trítono (grupo B) em acor<strong>de</strong>s sem trítono (grupo A), fazen<strong>do</strong> com que a fundamental<br />
<strong>do</strong> acor<strong>de</strong> <strong>do</strong> grupo A seja o centro tonal55. Variações no espaçamento po<strong>de</strong>riam<br />
ser usadas para enfraquecer a força tonal <strong>do</strong>s acor<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s grupos I. Também<br />
po<strong>de</strong>m ser usadas para <strong>de</strong>ixar o trítono, intervalo que segun<strong>do</strong> Hin<strong>de</strong>mith quase<br />
sempre requer algum tipo <strong>de</strong> resolução, menos presente. As discussões sobre centros<br />
tonais e acor<strong>de</strong>s arpeja<strong>do</strong>s têm pouco utilida<strong>de</strong> no âmbito teórico, e as maneiras<br />
que o espaçamento po<strong>de</strong>ria complementar estes conceitos só po<strong>de</strong>m ser<br />
<strong>de</strong>scobertas através da prática da composição musical.<br />
I. Sem segundas ou sétimas<br />
& w<br />
bw<br />
&<br />
w<br />
b b w<br />
n n w<br />
& w w<br />
w<br />
&<br />
w<br />
b<br />
b<br />
& w w<br />
w<br />
w<br />
w<br />
b<br />
n<br />
w<br />
w w<br />
w<br />
w<br />
w w<br />
nw<br />
&<br />
w<br />
# w<br />
b<br />
A — Acor<strong>de</strong>s sem Trítono B — Acor<strong>de</strong>s com Trítono<br />
1. Fundamental coinci<strong>de</strong> com o baixo<br />
2. Fundamental acima <strong>do</strong> baixo<br />
b<br />
w<br />
w w<br />
b<br />
w<br />
n<br />
www<br />
b<br />
b<br />
w<br />
w<br />
bw<br />
w b<br />
b<br />
w<br />
ww<br />
w<br />
w<br />
w<br />
nww<br />
w b w w<br />
w bb w bww<br />
w ww ww<br />
# ww<br />
nw<br />
ww<br />
w<br />
ww<br />
b<br />
w<br />
ww<br />
w w<br />
w b b w<br />
ww<br />
b w b<br />
ww nb<br />
w bwwnw w w ww<br />
w ww<br />
b<br />
bw<br />
n<br />
nw<br />
ww<br />
w w<br />
bww<br />
w<br />
II. Sem segundas menores ou sétimas maiores — o trítono subordina<strong>do</strong><br />
a. Com uma sétima menor apenas (sem segunda maior) — Fundamental coinci<strong>de</strong> com o baixo<br />
& w b w<br />
b<br />
b. Conten<strong>do</strong> segundas maiores ou sétimas menores ou ambas — Fundamental coinci<strong>de</strong> com o baixo<br />
1. Fundamental coinci<strong>de</strong> com o baixo<br />
&<br />
w<br />
b w b w<br />
w b www<br />
w b b b w<br />
w n w # ww<br />
# www<br />
w<br />
2. Fundamental acima <strong>do</strong> baixo<br />
& bbw<br />
w<br />
bbb<br />
w w<br />
w bn<br />
ww<br />
3. Conten<strong>do</strong> mais <strong>de</strong> um trítono<br />
& # # w<br />
ww<br />
# b<br />
www<br />
# # w ww<br />
w # # # ww<br />
w<br />
w<br />
& bb bbw<br />
w w<br />
# w<br />
w nb w ww<br />
# b w ww<br />
bw ww w<br />
# ww w<br />
Figura 5 — a tabela <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s; original em Paul Hin<strong>de</strong>mith, The Craft of Musical<br />
Composition (Londres: Schott, 1945), 224. Tradução <strong>de</strong> Maurício Dottori.<br />
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
Alguns autores, apesar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s importantes para as discussões sobre consonância<br />
e dissonância no século XX, foram <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> la<strong>do</strong>. Este autores não<br />
foram aborda<strong>do</strong>s por discutirem os conceitos <strong>de</strong> dissonância e consonância, na<br />
maior parte das vezes, fora <strong>de</strong> qualquer contexto musical. O principal <strong>de</strong>stes é Hermann<br />
Helmholtz, um <strong>do</strong>s funda<strong>do</strong>res <strong>do</strong> CDC-5. E sua obra On the Sensation of<br />
Tone, ele inaugurou as discussões sobre dissonância sensorial e rugosida<strong>de</strong> ao afirmar<br />
que a dissonância máxima <strong>de</strong> um intervalo surge quan<strong>do</strong> temos uma diferença<br />
<strong>de</strong> 40 Hz entre as fundamentais56. Reiner Plomp e Wilhelm Levelt ampliaram as<br />
discussões sobre rugosida<strong>de</strong> ao afirmar que, como a banda crítica tem tamanhos diferentes<br />
conforme a tessitura, a diferença mínima e máxima (em hertz) entre fundamentais<br />
necessária para que haja dissonância sensorial não é fixa. Os autores<br />
afirmam que a dissonância sensorial máxima ocorre quan<strong>do</strong> intervalos estão sepa-<br />
bw<br />
# w<br />
w<br />
& w n<br />
b<br />
b ww bbw w ww<br />
# w<br />
# nw<br />
w<br />
ww<br />
bb<br />
nww<br />
w<br />
&<br />
w<br />
b b w<br />
n b<br />
bn<br />
ww<br />
w<br />
w<br />
bbn<br />
w<br />
bn<br />
w<br />
ww w<br />
w<br />
w<br />
# ww<br />
w<br />
# w<br />
ww<br />
# w<br />
ww<br />
# w<br />
www<br />
#<br />
# n<br />
w<br />
bb<br />
n<br />
w<br />
bbww ww<br />
# w ww<br />
b w<br />
ww<br />
w<br />
b bb<br />
III. Conten<strong>do</strong> segundas ou sétimas ou ambas IV. Conten<strong>do</strong> segundas menores ou sétimas maiores ou ambas — um ou mais trítonos subordina<strong>do</strong>s<br />
1. Fundamental coinci<strong>de</strong> com o baixo<br />
1. Fundamental coinci<strong>de</strong> com o baixo<br />
2. Fundamental acima <strong>do</strong> baixo<br />
2. Fundamental acima <strong>do</strong> baixo<br />
V. In<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> <strong>VI</strong>. In<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>. O trítono pre<strong>do</strong>minan<strong>do</strong><br />
141
142<br />
ra<strong>do</strong>s por ¼ <strong>de</strong> banda crítica57, que correspon<strong>de</strong> à 30-40Hz apenas na região entre<br />
500Hz e 1000Hz58.<br />
Os motivos que levam as dissonâncias a serem percebidas como consonantes (e<br />
vice-versa) estão diretamente relaciona<strong>do</strong>s com as discussões sobre rugosida<strong>de</strong>,<br />
fusão tonal e sons resultantes, e este trabalho <strong>de</strong>monstrou exatamente quais relações<br />
são estas. A tabela <strong>de</strong> Hin<strong>de</strong>mith fica ainda mais completa quan<strong>do</strong> a relacionamos<br />
com as diversas discussões sobre dissonância e espaçamento, assim como outros fatores<br />
<strong>de</strong> seu pensamento harmônico.<br />
Um trabalho que discute os aspectos teóricos da composição musical só po<strong>de</strong> ser<br />
comprova<strong>do</strong> uma vez que pelo menos parte <strong>do</strong> conhecimento produzi<strong>do</strong> seja aplica<strong>do</strong>,<br />
por este motivo uma peça para flauta, clarinete, piano, viola e contrabaixo foi<br />
escrita com base nas idéias apresentadas. Este trabalho acaba sen<strong>do</strong> um pouco incompleto<br />
por não abordar em <strong>de</strong>talhes a composição, para isso seria necessário<br />
outro artigo. No entanto, a parte publicada têm a sua importância como um trabalho<br />
teórico <strong>de</strong> pré-composição e revisão bibliográfica.<br />
1 Paul Hin<strong>de</strong>mith, The Craft of Musical Composition (Londres: Schott, 1945).<br />
2 Hin<strong>de</strong>mith, 74. “. . . the value of a harmonic interval is <strong>de</strong>termined by the grouping of its<br />
combination tone”.<br />
3 No original, combination tones.<br />
4 Hin<strong>de</strong>mith, 61. “The Frequency of the combination tone is always equal to the difference<br />
between the frequencies of the directly produced tones of the interval”.<br />
5 A tabela, traduzida por Maurício Dottori, está anexada no fim <strong>do</strong> trabalho.<br />
6 Neste trabalho o dó4 (261,626 Hz) é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> o dó central.<br />
7 I<strong>de</strong>m, 73. “Those intervals whose tones are separated by such great distances that they seem<br />
to be octave transpositions of fifths, fourths, etc., present much less happy dispositions of<br />
combination tones than their prototypes [ . . .] Even the octave, which stands above and beyond<br />
all calculation of interval values, loses so much of its value when it appears in the form<br />
1:4 that, as its combination-tone structure shows, it is hardly equal to the fifth in clarity. In<br />
the form 1:8 . . . it is still less strong, and in the form 1:16 the composite becomes completely<br />
dissonant.”. .<br />
8 I<strong>de</strong>m, 75. “. . . handle the spread intervals exactly like their close prototypes. This is quite<br />
sufficient for the practical purposes of composition.”<br />
9 I<strong>de</strong>m, 68-72.<br />
10 I<strong>de</strong>m, 79. “. . . it makes no difference which of the tones we take as the root. The combination<br />
tones <strong>do</strong> not point to <strong>de</strong>finitive conclusions”.<br />
11 I<strong>de</strong>m, 97. “If there is a fifth in the chord, then the lower tone of the fifth is the root of the<br />
chord. Similarly, the lower tone of a third of a seventh (in the absence of any better interval)<br />
is the root of the chord. Conversely, if a fourth, or a sixth, or a second is the best interval<br />
of the chord, then its upper tone is the root of the chord.”<br />
12 I<strong>de</strong>m.
13 I<strong>de</strong>m, 98. “take melodic influences . . . into account, rather than to rely exclusively upon<br />
harmonic analyses.”<br />
14 I<strong>de</strong>m, 100.<br />
15 Diether <strong>de</strong> la Motte, Armonía. Trad. Luis Romano Haces (Barcelona: I<strong>de</strong>a Books, 1998),<br />
276.<br />
16 I<strong>de</strong>m.<br />
17 Panteleimon Nestor Vassilakis, “Perceptual and Physical Properties of Amplitu<strong>de</strong> Fluctuation<br />
and their Musical Significance” (tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>, Universida<strong>de</strong> da Califórnia,<br />
2001), 271-272. “Consonance and dissonance are multidimensional concepts <strong>de</strong>scribing<br />
the <strong>de</strong>gree of pleasantness/annoyance of a sound, or the <strong>de</strong>gree to which a sound fits to other<br />
sounds within a larger musical context. The primary acoustical cue <strong>de</strong>termining consonance/dissonance<br />
is the absence/presence of roughness respectively . . . Within the Western<br />
musical tradition, the presence of roughness is equivalent to acoustic or sensory<br />
dissonance”.<br />
18 Em inglês roughness, às vezes também traduzi<strong>do</strong> como aspereza.<br />
19 Alexandre Torres Porres, “Processos <strong>de</strong> Composição Microtonal por meio <strong>do</strong> Mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />
Dissonância Sensorial” (dissertação <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong>, Campinas: Unicamp, 2005), 29.<br />
20 I<strong>de</strong>m, 30. 21 Tenney, 4.<br />
22 Do inglês Consonance and Dissonance Concept.<br />
23 Em inglês relatedness. 24 Tenney, 16.<br />
25 Richard Parncutt e Hans Strasburger, “Applying Psychoacoustics in Composition: Harmonic<br />
Progressions of Non-harmonic Sonorities” Perspectives of New Music, 32, No 2<br />
(1994): 88-129.<br />
26 Em inglês pitch relatedness. 27 Parncutt e Strasburger, 95.<br />
28 Tenney, 18-20. 29 Porres, 49.<br />
30 I<strong>de</strong>m.<br />
31 David Huron, Tone and Voice: A Derivation of the Rules of Voice-Leading from Perceptual<br />
Principles, Music Perception, 19, No2 (2001):1-64, 21. “. . . in inverse proportion to<br />
the <strong>de</strong>gree to which they promote sensory dissonance and in inverse proportion to the <strong>de</strong>gree<br />
to which they promote tonal fusion . . . Bach was eager to produce a sound that is<br />
‘smooth’ without the danger of it sounding ‘as one’.”<br />
32 Tenney, 39-44. 33 I<strong>de</strong>m, 65-56.<br />
34 I<strong>de</strong>m, 87.<br />
35 Maurício Dottoti, Sonate für Pianoforte, 2006.<br />
36 Valentina Dal<strong>de</strong>gan, comunicação oral, 30 <strong>de</strong> julho, 2009.<br />
37 György Ligeti, Musica Ricercata (Londres: Schott), 1995.<br />
38 Sergei Prokofiev, “Alexan<strong>de</strong>r Nevsky” in Four Orchestral Works, ed. Lewis Roth (Nova<br />
Iorque: Dover Publications, 1974), 281-444.<br />
39 Hin<strong>de</strong>mith afirma que não existem inversões <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s, pois um acor<strong>de</strong> é completamente<br />
altera<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> seus intervalos, baixo e fundamental são modifica<strong>do</strong>s. Logo, o autor não<br />
consi<strong>de</strong>ra os acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong> terça e sexta (p. ex. mi-sol-dó), e quarta e sexta (p. ex. sol-dó-mi),<br />
143
144<br />
como inversões <strong>de</strong> uma tría<strong>de</strong> perfeita qualquer (p. ex. dó-mi-sol).<br />
40 Hin<strong>de</strong>mith, 104.<br />
41 Uma exceção a regra é quan<strong>do</strong> temos um acor<strong>de</strong> com muitas notas, em que a nota mais<br />
grave e a mais aguda <strong>do</strong> acor<strong>de</strong> estão bastante espaçadas, entre as duas existem muitas outras<br />
notas.<br />
42 Hin<strong>de</strong>mith, 103. 43 I<strong>de</strong>m.<br />
44 I<strong>de</strong>m, 104.<br />
45 I<strong>de</strong>m, 114. “. . . to sound clear and intelligible, the contours of its two-voice framework<br />
must be cleanly <strong>de</strong>signed and cogently organized”.<br />
46 I<strong>de</strong>m. “. . . add strength and tension to two-part writing; yet their continuous use would<br />
dull the ear and make it insensible to the subtler charms of the more satisfactory intervals”.<br />
47 Luigi Dallapiccola, Qua<strong>de</strong>rno Musicale di Annalibera (Milão: Suvini Zebroni, 1953).<br />
48 No inglês Harmonic Fluctuation. 49 I<strong>de</strong>m, 115. “. . . shift of harmonic gravity”.<br />
50 I<strong>de</strong>m, 119. “. . . the in<strong>de</strong>terminate chords of groups V and <strong>VI</strong> introduce an element of uncertainty<br />
into harmonic <strong>de</strong>velopments . . . the introduction of the in<strong>de</strong>terminate chords is<br />
like a step into mud or quicksand”.<br />
51 I<strong>de</strong>m, 121-123<br />
52 Valioso neste contexto se refere mais à clareza das progressões <strong>do</strong> que ao valor musical.<br />
53 I<strong>de</strong>m. 54 I<strong>de</strong>m, 132.<br />
55 I<strong>de</strong>m, 132-136.<br />
56 Hermann L. F. Helmholtz, On the Sensation of Tone, trad. Alexandre J. Ellis (Londres:<br />
Longman’s, Green and Co., 1895), 171.<br />
57 Reiner Plomp e Wilhelm Levelt, “Tonal Consonance and Critical Bandwidth”, Journal<br />
of the Acoustical Society of America (1965): 560.<br />
58 Uma tabela completa com os diferentes tamanhos da banda crítica está disponível em<br />
Porres, 33.<br />
Referências<br />
Hin<strong>de</strong>mith, Paul. The Craft of Musical Composition. Londres: Schott, 1945.<br />
Huron, David. Tone and Voice: A Derivation of the Rules of Voice-Leading from Perceptual<br />
Principles, Music Perception, 19, No2 (2001):1-64,Hermann L. F. Helmholtz. On<br />
the Sensation of Tone, trad. Alexandre J. Ellis. Londres: Longman’s, Green and Co., 1895.<br />
Motte, Diether De la. Armonía. Trad. Luis Romano Haces. Barcelona: I<strong>de</strong>a Books, 1998.<br />
Parncutt, Richard e Hans Strasburger. “Applying Psychoacoustics in Composition: Harmonic<br />
Progressions of Nonharmonic Sonorities”. Perspectives of New Music, 32, No 2<br />
(1994): 88-129.<br />
Plomp, Reiner e Wilhelm Levelt, “Tonal Consonance and Critical Bandwidth”. Journal of<br />
the Acoustical Society of America (1965): 548-560.<br />
Tenney, James. A History of “Consonance” and “Dissonance”. Nova Iorque: Excelsior Music,<br />
1998.
Torres Porres, Alexandre. “Processos <strong>de</strong> Composição Microtonal por meio <strong>do</strong> Mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />
Dissonância Sensorial”. Dissertação <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong>, Campinas: Unicamp, 2005.<br />
Vassilakis, Panteleimon Nestor. “Perceptual and Physical Properties of Amplitu<strong>de</strong> Fluctuation<br />
and their Musical Significance. Tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>, Universida<strong>de</strong> da Califórnia,<br />
2001.<br />
Partituras:<br />
Dallapiccola, Luigi. Qua<strong>de</strong>rno Musicale di Annalibera. Milão: Suvini Zebroni, 1953.<br />
Ligeti, György. Musica Ricercata. Londres: Schott., 1995.<br />
Prokofiev, Sergei. “Alexan<strong>de</strong>r Nevsky”. In Four Orchestral Works, Lewis Roth (ed.), 281-<br />
444. Nova Iorque: Dover Publications, 1974.<br />
145
146<br />
Coor<strong>de</strong>nação motora e simplificação <strong>do</strong> movimento.<br />
Uma estratégia técnico-cognitiva para otimizar a ação pianística<br />
Resumo<br />
Maria Bernar<strong>de</strong>te Castelan Póvoas<br />
bernar<strong>de</strong>tecastelan@gmail.com<br />
Alexandro Andra<strong>de</strong><br />
d2aa@u<strong>de</strong>sc.br<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> Santa Catarina<br />
Este ensaio trata <strong>de</strong> parte da pesquisa “ação pianística e coor<strong>de</strong>nação motora – relações<br />
interdisciplinares” que consi<strong>de</strong>ra o movimento corporal o ato motor como o elemento<br />
meio que possibilita a realização músico-instrumental. Situações técnico-musicais em que<br />
são necessários <strong>de</strong>slocamentos <strong>de</strong> média e longa distância ocorrem com frequência na<br />
ação pianística. Partin<strong>do</strong>-se da premissa <strong>de</strong> que <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s movimentos complexos<br />
po<strong>de</strong>m ser simplifica<strong>do</strong>s em sua concepção inicial, propõe-se, como estratégia técnicocognitiva<br />
<strong>de</strong> otimização da ação pianística a ser utilizada durante a prática, a simplificação<br />
<strong>do</strong> movimento por redução <strong>de</strong> distâncias (SMRD) entre eventos musicais aplicada<br />
em correspondência com os ciclos <strong>de</strong> movimento (Póvoas, 1999; 2002) como recurso<br />
técnico-pianístico <strong>de</strong> flexibilização corporal. São objetivos <strong>de</strong>ste trabalho: 1. investigar a<br />
coor<strong>de</strong>nação motora relacionada a correção, duração e eficiência <strong>do</strong> movimento pianístico;<br />
2. <strong>de</strong>screver e analisar as relações teóricas e aplicadas entre situações <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho<br />
músico-instrumental e o recurso SMRD. O méto<strong>do</strong> é interdisciplinar, revisan<strong>do</strong><br />
a literatura sobre técnica pianística, neuromotricida<strong>de</strong>, psicomotricida<strong>de</strong>, aprendizagem e<br />
controle motor, psicologia <strong>do</strong> esporte e biomecânica, subáreas da ciência <strong>do</strong> movimento<br />
humano. Um estu<strong>do</strong> empírico, <strong>de</strong> abordagem qualitativa e quantitativa com pianistas jovens<br />
e experientes ocorrerá, utilizan<strong>do</strong> análise qualitativa <strong>de</strong> imagem e quantificação <strong>do</strong>s<br />
movimentos realiza<strong>do</strong>s através <strong>de</strong> técnicas biomecânicas e vi<strong>de</strong>ográficas. Os estu<strong>do</strong>s e<br />
análises iniciais permitem antecipar que há benefícios para o <strong>de</strong>sempenho global <strong>do</strong> pianista<br />
durante a prática instrumental quan<strong>do</strong>: a) movimentos utiliza<strong>do</strong>s são previamente planeja<strong>do</strong>s<br />
em função <strong>do</strong> texto musical; b) ocorre orientação técnica voltada à otimização<br />
da coor<strong>de</strong>nação motora através <strong>do</strong> seu aprimoramento. As conexões resultantes <strong>do</strong> diálogo<br />
interáreas constituem-se num campo <strong>de</strong> investigação aberto para a área da teoria<br />
e prática interpretativa em música.<br />
Palavras-chave<br />
Ação pianística; técnica; cognição; simplificação <strong>do</strong> movimento; <strong>de</strong>sempenho motor;<br />
controle motor e aprendizagem.<br />
Apresentação<br />
A pesquisa “ação pianística e coor<strong>de</strong>nação motora – relações interdisciplinares” e<br />
seus <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos tiveram sua origem no pressuposto <strong>de</strong> Garhammert (1991:<br />
183) <strong>de</strong> que o <strong>de</strong>sempenho humano é “a expressão <strong>de</strong> vários componentes <strong>de</strong>no-
mina<strong>do</strong>s fatores <strong>do</strong> <strong>de</strong>sempenho”, que são inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. A coor<strong>de</strong>nação motora<br />
é um <strong>de</strong>sses fatores e intervêm diretamente na ação pianística, cuja operacionalização<br />
ocorre por meio <strong>do</strong> movimento corporal, uma ação físico-motora.<br />
Neste trabalho, parte da referida pesquisa, trata-se sobre a simplificação <strong>do</strong> movimento<br />
por redução <strong>de</strong> distâncias (SMRD) entre eventos musicais (notas no senti<strong>do</strong><br />
vertical) e sua aplicação como estratégia técnica musical na prática pianística <strong>de</strong> situações<br />
musicais específicas. Propõe-se utilizá-la como estratégia auxiliar <strong>do</strong>s ciclos<br />
<strong>do</strong> movimento (Póvoas 1999, 2006). Os objetivos concentram-se na investigação<br />
teórica sobre o fator <strong>do</strong> <strong>de</strong>sempenho coor<strong>de</strong>nação motora, relacionada a correção,<br />
duração e eficiência <strong>de</strong> movimentos, na realização <strong>de</strong> conexões teórico-práticas<br />
entre aspectos relaciona<strong>do</strong>s à SMRD nos ciclos <strong>de</strong> movimento e sua aplicação na<br />
ação pianística.<br />
Contexto<br />
O contexto teórico refere-se a abordagens da área pianística e <strong>de</strong> áreas que tratam<br />
<strong>do</strong> movimento humano em pressupostos que nos permitem estabelecer conexões<br />
entre a ação pianística e a coor<strong>de</strong>nação motora, com vistas à proposta <strong>de</strong> que movimentos<br />
complexos po<strong>de</strong>m, em sua concepção inicial, ser simplifica<strong>do</strong>s.<br />
Dentro <strong>de</strong> uma concepção espacial <strong>de</strong> organização <strong>de</strong> movimentos ao piano, postula-se<br />
que possam ser otimiza<strong>do</strong>s se levarmos em conta a ocorrência <strong>de</strong> padrões, o<br />
nível <strong>de</strong> regularida<strong>de</strong> entre eles (Bayle 1985; Fink 1995), a velocida<strong>de</strong> prevista, a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> agregar o um maior número <strong>de</strong> eventos por intervalo <strong>de</strong> tempo<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> conjuntos <strong>de</strong> movimentos enca<strong>de</strong>a<strong>do</strong>s em ciclos e que a realização sonora<br />
<strong>de</strong> eventos ocorre na continuida<strong>de</strong> <strong>do</strong> texto musical durante a execução instrumental.<br />
(Deppe, in Kochevitsky 1967; Matthay 1912, 1985; Fink 1995, 1997).<br />
Nesse contexto, aplica-se investigação por estratégias <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> para uma prática<br />
pianística mais saudável. Na área <strong>do</strong> controle motor, a simplificação <strong>do</strong> movimento<br />
é tratada como um tipo <strong>de</strong> prática parcial no treinamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas habilida<strong>de</strong>s,<br />
para que a dificulda<strong>de</strong> em algum aspecto da tarefa-alvo seja reduzida.<br />
(Schmidt & Wrisberg 2001).<br />
A redução <strong>do</strong> tempo <strong>de</strong> um movimento e a certeza <strong>de</strong> realizá-lo minimizan<strong>do</strong> o<br />
gasto <strong>de</strong> energia são qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> proficiência motora <strong>de</strong>terminantes para o seu<br />
sucesso (Schmidt & Wrisberg 2001). Atos voluntários transforma<strong>do</strong>s em automatismos<br />
são reflexos <strong>de</strong> hábitos adquiri<strong>do</strong>s, produto final da aprendizagem motora.<br />
“Do ponto <strong>de</strong> vista da execução instrumental, a aquisição e posterior reorganização<br />
<strong>do</strong>s hábitos” (Kaplan 1987: 45) estão na base da construção da técnica. A individualização<br />
<strong>de</strong> movimentos discretos e sua posterior reorganização constituem-se<br />
em hábitos motores essenciais à execução <strong>de</strong> movimentos complexos. Esse tipo <strong>de</strong><br />
treinamento é eficaz porque simplifica conceitos intelectuais e a coor<strong>de</strong>nação motora.<br />
(Knapp 1989; Magill 2000; Schmidt & Wrisberg 2001).<br />
147
148<br />
Na base da estrutura <strong>do</strong> recurso ciclo estão os pressupostos <strong>de</strong> que a ação pianística<br />
se caracteriza como uma ação essencialmente dinâmica e que os movimentos são<br />
propulsiona<strong>do</strong>s em <strong>de</strong>slocamentos constantes na extensão <strong>do</strong> tecla<strong>do</strong> (Ortmann<br />
1912; Fink 1995). Assim sen<strong>do</strong>, “o impulso, que é um fenômeno mecânico e uma<br />
das fases componentes <strong>do</strong> movimento, se estabelece como o elemento <strong>de</strong> ação que<br />
prece<strong>de</strong>, integra e po<strong>de</strong> auxiliar na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> gestos na ação pianística. (Jaëll 1897;<br />
Matthay 1912; Kochevitsky 1967)”. (Póvoas 2006: 665).<br />
Um ciclo correspon<strong>de</strong> a um gesto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu impulso inicial (I) até o início <strong>de</strong> outro<br />
e po<strong>de</strong> agregar um ou mais eventos musicais. Como recurso técnico <strong>de</strong> flexibilização,<br />
a trajetória <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong>ve ser operacionalizada mais no senti<strong>do</strong> parabólico<br />
<strong>do</strong> que retilíneo. A eficiência motora po<strong>de</strong> ser otimizada “por meio da regulação<br />
(controle) da força <strong>de</strong> impulso (. . .), <strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> trajetória <strong>do</strong>s segmentos (relação impulso-movimento)<br />
e <strong>do</strong> impacto (tipo <strong>de</strong> ataque ou toque)”. (Póvoas: 666, 2006).<br />
A objetivida<strong>de</strong> <strong>do</strong> movimento diminui o somatório <strong>de</strong> distâncias percorridas, o que<br />
significa carga <strong>de</strong> trabalho e <strong>de</strong>sgaste físico-muscular menores. (Wilson 1988; Tatz<br />
1990; Perrot apud Rasch 1991; Fink 1995; Meinke 1998). Se a realização <strong>do</strong> <strong>de</strong>sign<br />
requer acentuação inicial e intensida<strong>de</strong> em <strong>de</strong>crescen<strong>do</strong>, a execução <strong>de</strong>ve iniciar <strong>de</strong><br />
uma posição mais baixa <strong>do</strong>s segmentos, a partir <strong>de</strong> um apoio no tecla<strong>do</strong> (impulso<br />
inicial). O movimento <strong>de</strong>ve seguir no senti<strong>do</strong> ascen<strong>de</strong>nte, auxilian<strong>do</strong> a diminuir o<br />
peso sobre o tecla<strong>do</strong> e a realizar o efeito sonoro a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>, conforme as setas (linhas)<br />
mostradas na Figura 1a (côncava) e 1b (convexa).<br />
1a<br />
1b<br />
Figuras 1a e 1b — Setas para movimentos com percurso<br />
ascen<strong>de</strong>nte,<br />
a: côncava e b: convexa.<br />
Para a realização <strong>de</strong> escrita musical inversa à anterior, é aconselhável iniciar a execução<br />
<strong>de</strong> uma posição mais alta <strong>do</strong>s segmentos, para abaixá-los na medida em que<br />
a sonorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve aumentar. Nesse caso, o senti<strong>do</strong> das linhas que orientam os segmentos<br />
segue a trajetória conforme mostra<strong>do</strong> na Figura 2a e 2b.<br />
2a<br />
2b<br />
Figuras 2a e 2b — Setas para movimentos com<br />
percurso <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte,<br />
a: côncava e b: convexa.
Questões técnico-musicais é que <strong>de</strong>terminam o número <strong>de</strong> eventos inclusos em<br />
cada ciclo e seu <strong>de</strong>lineamento na continuida<strong>de</strong> <strong>do</strong> texto musical. Na prática pianística<br />
há situações <strong>de</strong> execução instrumental em que são necessários <strong>de</strong>slocamentos<br />
<strong>do</strong>s segmentos <strong>de</strong> curta, média e longa distância. Os ciclos aplicam-se à realização <strong>de</strong><br />
eventos nas três situações e a prática da SMRD serve, sobretu<strong>do</strong>, para otimizar a execução<br />
<strong>de</strong> seqüências <strong>de</strong> eventos afasta<strong>do</strong>s entre si, auxilian<strong>do</strong> na <strong>de</strong>finição da trajetória<br />
<strong>do</strong> movimento.<br />
Méto<strong>do</strong><br />
Experimento biomecânico <strong>de</strong>verá ser realiza<strong>do</strong>, com a aquisição <strong>de</strong> imagens <strong>de</strong> movimentos<br />
realiza<strong>do</strong>s por pianistas (sujeitos) durante a execução <strong>de</strong> trecho musical<br />
seleciona<strong>do</strong>, análise <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s e comparação <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s entre <strong>do</strong>is grupos:<br />
experimental (GE) e controle (GC). Como méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> análise utilizar-se-á a<br />
cinemetria que conta com software para captação <strong>de</strong> imagens e posterior análise <strong>de</strong><br />
da<strong>do</strong>s biomecânicos, fornece resulta<strong>do</strong>s matemáticos e permite acompanhar a trajetória<br />
<strong>de</strong> movimentos nas coor<strong>de</strong>nadas x, y e z. O experimento será realiza<strong>do</strong> no Laboratório<br />
<strong>de</strong> Biomecânica <strong>do</strong> Centro <strong>de</strong> Educação Física, CEFID-UDESC.<br />
A População <strong>de</strong> sujeitos (Ss) será <strong>de</strong> alunos <strong>do</strong>s cursos <strong>de</strong> Bacharela<strong>do</strong> em Instrumento-Piano<br />
e Pós-Graduação <strong>do</strong> CEART/UDESC. To<strong>do</strong>s <strong>de</strong>verão assinar termo<br />
<strong>de</strong> consentimento permitin<strong>do</strong> o uso das imagens e resulta<strong>do</strong>s em pesquisa científica.<br />
O protocolo experimental seguirá o seguinte roteiro: entrega <strong>de</strong> cópia da partitura<br />
<strong>do</strong> Étu<strong>de</strong> XII <strong>de</strong> Debussy, Pour les Accords; orientação inicial em data comum<br />
para os grupos: rotina <strong>de</strong> 15 a 20 minutos <strong>de</strong> treinamento diário <strong>do</strong> prelúdio, com<br />
<strong>de</strong>staque aos trechos analisa<strong>do</strong>s e andamento final entre 63 e 66 a semínima; o GE<br />
será orienta<strong>do</strong> pelo grupo <strong>de</strong> pesquisa em oito sessões <strong>de</strong> 40 minutos em média,<br />
para o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> trecho musical seleciona<strong>do</strong> que será executa<strong>do</strong> durante o procedimento<br />
experimental; o GC será instruí<strong>do</strong> a trabalhar utilizan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> seus próprios<br />
critérios, com possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> orientação.<br />
Em cada sessão o GE <strong>de</strong>verá seguir uma rotina <strong>de</strong> <strong>de</strong>z minutos para praticar exercícios<br />
respiratórios, <strong>de</strong> alongamento (membros superiores) e <strong>de</strong> consciência corporal<br />
(tensão-relaxamento) com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver uma consciência <strong>do</strong><br />
relaxamento e tensão muscular relativos; cinco minutos para discussão sobre a prática<br />
relacionada à proposta; vinte minutos para treinamento <strong>de</strong> um trecho musical<br />
conforme mo<strong>de</strong>lo seguinte (Figura 3). A Figura 3 ilustra um <strong>do</strong>s trechos <strong>do</strong> cita<strong>do</strong><br />
estu<strong>do</strong>, compassos [1]-[5], on<strong>de</strong> se aplica o recurso SMRD entre eventos1 com o objetivo<br />
<strong>de</strong> dar mais comodida<strong>de</strong> que os <strong>de</strong>slocamentos para realizá-los, sempre observan<strong>do</strong><br />
os <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong> articulações e com menor dispêndio <strong>de</strong> energia física.<br />
Assim como em muitas outras obras, no caso <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> em <strong>de</strong>staque as figurações<br />
musicais são repetidas, razão pela qual é necessário planejar e utilizar procedimen-<br />
149
150<br />
tos que objetivem a sua realização, antecipan<strong>do</strong> novos progressos e com direta influência<br />
na segurança <strong>do</strong> executante. Como uma das etapas na construção da primeira<br />
parte <strong>do</strong> estu<strong>do</strong>, para a construção <strong>de</strong> um ciclo mais funcional as distâncias<br />
po<strong>de</strong>m ser reduzidas com a execução da(s) oitava(s) na mesma altura <strong>do</strong>(s)<br />
acor<strong>de</strong>(s) ou suprimin<strong>do</strong>-se a nota superior da oitava (m.d.) e inferior (m.e.). A segunda<br />
colcheia, nota Lá da pauta inferior, po<strong>de</strong> ser executada com o terceiro <strong>de</strong><strong>do</strong>;<br />
da pauta superior com o quinto e, em uma segunda etapa, ambas com o primeiro<br />
<strong>de</strong><strong>do</strong>.<br />
Figura 4 — Mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> redução <strong>do</strong> movimento por supressão <strong>de</strong> oitavas.<br />
Ciclos <strong>de</strong> movimento. Étu<strong>de</strong> XII, “Pour Les Accords”, compassos [1]-[3].<br />
Fonte, Debussy, 1972, p.25.<br />
Na figura seguinte o Lá da linha para a mão esquerda encontra-se em oitava, ainda<br />
aproximada. Nesse caso, já há maior <strong>de</strong>slocamento para a executá-la.<br />
Figura 5 — Mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> redução <strong>do</strong> movimento por supressão <strong>de</strong> oitavas.<br />
Ciclos <strong>de</strong> movimento. Étu<strong>de</strong> XII, “Pour Les Accords”, compassos [1]-[3].<br />
Fonte, Debussy, 1972, p.25.<br />
Tal procedimento viabiliza a realização <strong>de</strong> movimentos com maior plasticida<strong>de</strong> e<br />
<strong>de</strong> maneira mais natural. Tais gestos simplifica<strong>do</strong>s pela aproximação entre eventos<br />
permitem alcançar maior velocida<strong>de</strong> no enca<strong>de</strong>amento <strong>do</strong>s <strong>de</strong>slocamentos nos ângulos<br />
X, Y e Z e estabelecer relações espaciais que facilitam a posterior execução<br />
<strong>do</strong>s eventos na altura em que estão escritos originalmente. As reduções permitem<br />
estabelecer referenciais para a projeção <strong>de</strong> movimentos ao realizar eventos distantes<br />
entre si.
Resulta<strong>do</strong>s Preliminares<br />
Um experimento foi realiza<strong>do</strong> em condições equivalentes ao que ora propomos<br />
neste trabalho. A Figura seguinte (2) ilustra o trecho musical utiliza<strong>do</strong> no experimento<br />
que contou com a participação <strong>de</strong> <strong>de</strong>z sujeitos dividi<strong>do</strong>s em <strong>do</strong>is grupos <strong>de</strong><br />
cinco, GE e GC. Para planejar os ciclos, foi aplica<strong>do</strong> o SMRD por supressão da oitava<br />
superior, conforme Figura 4 (mo<strong>de</strong>lo 1a). Neste ensaio foram levanta<strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s<br />
das imagens obtidas <strong>do</strong>s movimentos realiza<strong>do</strong>s pelos sujeitos durante a execução<br />
pianística <strong>do</strong>s compassos [15]-[17] <strong>do</strong> Prelúdio 18 <strong>de</strong> Chopin. A realização das<br />
quatro colcheias inicia a partir <strong>de</strong> um movimento <strong>de</strong> baixo para cima, ou seja, segue<br />
no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> um <strong>de</strong>slocamento <strong>do</strong>s segmentos no senti<strong>do</strong> côncavo para cima e<br />
para a direita, executan<strong>do</strong>-se os <strong>do</strong>is acor<strong>de</strong>s, segui<strong>do</strong> por outro movimento ou<br />
queda para baixo em direção à oitava acentuada (acento >). Do apoio nas colcheias<br />
dá-se um novo impulso e <strong>do</strong> aproveitamento <strong>de</strong>ste vai ser executa<strong>do</strong> o próximo<br />
acor<strong>de</strong> em stacatto (.), seguin<strong>do</strong>-se um novo ciclo.<br />
Figura 6: Ciclos <strong>de</strong> movimento – SMRD - supressão <strong>de</strong> oitavas (mo<strong>de</strong>lo 1a).<br />
Fonte: Chopin (1996, p.37). Prelúdio 18 (compassos [15]-[17]).<br />
Em uma primeira etapa <strong>do</strong> treinamento as colcheias, correspon<strong>de</strong>ntes às oitavas <strong>de</strong><br />
cada grupo <strong>de</strong> duas, pu<strong>de</strong>ram ser tocadas sem <strong>de</strong>slocamento das mãos e, numa segunda<br />
etapa, com o primeiro <strong>de</strong><strong>do</strong> da mão direita e quarto ou quinto da esquerda.<br />
Na figura seguinte mostra-se o trecho musical completo e gráfico das trajetórias <strong>do</strong><br />
punho e metacarpo direitos <strong>de</strong> sujeito <strong>do</strong> GE, eixo x, em correspondência com a<br />
execução <strong>do</strong> trecho musical. Os eventos <strong>de</strong>vem ser realiza<strong>do</strong>s evitan<strong>do</strong>-se um excessivo<br />
movimento <strong>do</strong> punho para baixo quan<strong>do</strong> da execução <strong>do</strong>s acor<strong>de</strong>s. Procedimento<br />
contrário <strong>de</strong>ve causar um maior dispêndio <strong>de</strong> energia, pois aumenta a<br />
trajetória e diminui a velocida<strong>de</strong> <strong>do</strong> movimento.<br />
151
152<br />
Figura 7 — Ciclos <strong>de</strong> movimento e gráfico <strong>de</strong> trajetórias: punho e metacarpo direitos<br />
<strong>de</strong> sujeito <strong>do</strong> GE, eixo x, (mo<strong>de</strong>lo 1b). Fonte: Chopin (1996, p.37).<br />
Prelúdio 18 (compassos [15]-[17]).<br />
Se operacionaliza<strong>do</strong>s <strong>de</strong> forma contínua e evitan<strong>do</strong>-se um movimento <strong>de</strong> punho<br />
para baixo na execução <strong>do</strong>s acor<strong>de</strong>s em stacatto, os ciclos possibilitam realizar cada<br />
<strong>do</strong>is eventos em uma única inflexão (seta). Tal organização permite <strong>de</strong>senvolver<br />
maior velocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> execução <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à otimização da trajetória <strong>do</strong>s movimentos.<br />
Os da<strong>do</strong>s adquiri<strong>do</strong>s na cinemetria foram trabalha<strong>do</strong>s por sistemas <strong>de</strong> digitalização<br />
e processamento computacional. A velocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> execução varia entre os sujeitos<br />
e, por essa razão, uma parte <strong>do</strong>s gráficos foi normaliza<strong>do</strong> no tempo. Os sinais <strong>do</strong> sistema<br />
Peak foram converti<strong>do</strong>s para os programas MatLab (versão 5.3) e Origin (versão<br />
6.0), usa<strong>do</strong>s para <strong>de</strong>senvolver rotinas que permitem a análise <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s e a<br />
construção <strong>de</strong> gráficos para visualizá-los.<br />
Assim como na Figura 7, nos gráficos cada sujeito é representa<strong>do</strong> por uma cor. Os<br />
gráficos seguintes mostram as trajetórias percorridas pelo III Metacarpo da mão<br />
direita durante a execução <strong>do</strong> trecho musical (Figura 7). O primeiro gráfico (Figura<br />
8) refere-se ao GC e o segun<strong>do</strong> (Figura 9) ao GE. Os gráficos aqui apresenta<strong>do</strong>s<br />
não foram normaliza<strong>do</strong>s no tempo.
Figura 8 — Gráfico - Trajetória <strong>do</strong>s sujeitos <strong>do</strong> GC na curva X,<br />
III Metacarpo da mão direita.<br />
Figura 9 — Gráfico - Trajetória <strong>do</strong>s sujeitos <strong>do</strong> GE na curva X, III Metacarpo da<br />
mão direita.<br />
Uma comparação entre os gráficos permite dizer que o GC realizou mais interrupções<br />
<strong>de</strong> movimentos, sobretu<strong>do</strong> ao final <strong>do</strong> trecho musical quan<strong>do</strong> os gestos<br />
para a direita e para a esquerda são bastante interrompi<strong>do</strong>s. O GE manteve maior<br />
continuida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s movimentos. O aproveitamento <strong>do</strong> impulso po<strong>de</strong> melhorar o<br />
<strong>de</strong>sempenho da execução <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aumentar a velocida<strong>de</strong> durante<br />
os <strong>de</strong>slocamentos. É possível observar que a trajetória <strong>do</strong> GE foi mais homogênea,<br />
po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> significar um percurso no eixo X (extensão <strong>do</strong> tecla<strong>do</strong>) mais objetivo e<br />
econômico. O gráfico <strong>do</strong> GC apresenta maiores oscilações, que po<strong>de</strong>m significar<br />
ação menos econômica <strong>do</strong> movimento.<br />
No Quadro 1, as médias por segmento e por grupo: na primeira coluna os segmentos;<br />
nas três seguintes, as médias <strong>do</strong> GC nas coor<strong>de</strong>nadas x, y e z; e nas <strong>de</strong>mais<br />
colunas estão <strong>de</strong>scritas as médias das trajetórias percorridas pelo GE. Os resulta<strong>do</strong>s<br />
quantitativos indicam um <strong>de</strong>sempenho <strong>do</strong> GE mais eficiente, com menores valores<br />
nas médias <strong>do</strong>s eixos e segmentos, com significativa diferença nas trajetórias<br />
em seu favor.<br />
153
154<br />
Quadro 1 —Médias por segmento e por grupo (GC e CE) nas coor<strong>de</strong>nadas x, y e z.<br />
Ensaio 2<br />
Conclusões Parciais<br />
Os argumentos teóricos aqui levanta<strong>do</strong>s, bem como as correlações empíricas realizadas,<br />
permitem antecipar que movimentos utiliza<strong>do</strong>s durante a prática pianística<br />
quan<strong>do</strong> previamente planeja<strong>do</strong>s em função <strong>do</strong> texto musical, po<strong>de</strong>m beneficiar o<br />
<strong>de</strong>sempenho global <strong>do</strong> pianista. A consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> aspectos inerentes à coor<strong>de</strong>nação,<br />
aliada à aplicação da SMRD e em conexão com os ciclos na prática instrumental,<br />
em suas fases <strong>de</strong> treinamento e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho, po<strong>de</strong> melhorar a eficiência das<br />
habilida<strong>de</strong>s técnico-musicais, benefician<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sempenho global <strong>do</strong> pianista.<br />
A pesquisa, formulação e aplicação <strong>de</strong> recursos técnicos em situações específicas <strong>de</strong><br />
execução auxiliam no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> estratégias <strong>de</strong> treinamento e ampliam<br />
as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> melhoria no <strong>de</strong>senvolvimento técnico e musical <strong>do</strong> pianista. O<br />
recurso SMRD é uma estratégia que po<strong>de</strong> auxiliar o sistema nervoso central a criar<br />
referências através da aproximação entre eventos originalmente distantes entre si.<br />
Os mo<strong>de</strong>los apresenta<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>m servir para realizar situações técnico-musicais<br />
equivalentes ou, a partir <strong>de</strong>les, organizar novas propostas.<br />
Os resulta<strong>do</strong>s têm permiti<strong>do</strong> também avaliar aspectos interdisciplinares relaciona<strong>do</strong>s<br />
ao controle, aproveitamento e aprimoramento <strong>de</strong> movimentos, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
torná-los mais objetivos. Po<strong>de</strong>rão ainda contribuir para maior atenção, consciência<br />
e eficiência da execução, melhor rendimento <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> em termos <strong>de</strong> tempo,<br />
com menor <strong>de</strong>sgaste físico-muscular e aumento <strong>do</strong> índice <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho. Para as<br />
práticas interpretativas em música, o diálogo interáreas e as conexões <strong>de</strong>le resultantes<br />
constituem-se em música num amplo campo <strong>de</strong> investigação.<br />
1 Cada evento correspon<strong>de</strong> a um ou mais sons no senti<strong>do</strong> vertical.<br />
Referências<br />
Baily, J. 1985. Music Structure and Human Movement in P. Howell, I. Cross, and R. West<br />
(eds), Musical Structure and Cognition, 237-58. Lon<strong>do</strong>n: Aca<strong>de</strong>mic Press.<br />
Chopin, F. 1996. Prélu<strong>de</strong>s. Munich: Henle Verlag.<br />
Fink, S. 1995. Mastering piano technique. A gui<strong>de</strong> for stu<strong>de</strong>nts, teachers, and Performance.<br />
Oregon: Ama<strong>de</strong>us Press.
———. 1997. Can You Teach Musicality? Piano & Keyboard 186: 139-34.<br />
Garhammer, J. 1991.) Princípios <strong>de</strong> treinamento e <strong>de</strong>senvolvimento, in P. J. Rasch (Ed),<br />
Cinesiologia e anatomia aplicada, 183-88 . Rio <strong>de</strong> Janeiro: Guanabara Koogan.<br />
Jaëll, M. 1897. Le Mechanisme du Toucher. Paris: Armand Colin.<br />
Jones, L. 1998. Manual Dexterit, in K. J. Connolly (ed) The Psychobiology of the Hand, 47-<br />
62. Lon<strong>do</strong>n: Mac Keith Press, 276 pp.<br />
Kaplan, J. A. 1987. Teoria da Aprendizagem Pianística. Porto Alegre: Movimento.<br />
Knapp, B. 1989. Desporto e motricida<strong>de</strong>. São Paulo: Compendium, 1989.<br />
Kochevitsky, G. 1967. The Art of Piano Playing. A Cientific Approach. New York: Summy-<br />
Birchard.<br />
Matthay, Tobias. 1985. The visible and invisible in Pianoforte Technique. Lon<strong>do</strong>n: Oxford:<br />
University Press, 10ª. ed.<br />
———. 1912. Musical Interpretation. Its Laws and Principles, and their Applications. Boston:<br />
Music Company.<br />
Maggil, R. A. 2000. Aprendizagem Motora: conceitos e aplicações. Tradução <strong>de</strong> Aracy Men<strong>de</strong>s<br />
da Costa. São Paulo: Edgard Blücher.<br />
Meinke, W. 1998. ‘Risks and realities of musical performance’, Med Probl Perform Art 13,<br />
56-60, June.<br />
Ortmann, O. 1929. The Physiological Mechanics of Piano Technique. Lon<strong>do</strong>n: Kegan Paul.<br />
Póvoas, M. B. C. 1999. Princípio da relação e regulação <strong>do</strong> impulso-movimento: possíveis relações<br />
com a otimização da ação pianística. Tese (Doutora<strong>do</strong> em Música). Instituto <strong>de</strong><br />
<strong>Artes</strong>, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul.<br />
______. 2006. Ciclos <strong>de</strong> movimento – um recurso técnico-estratégico interdisciplinar <strong>de</strong> organização<br />
<strong>do</strong> movimento na ação pianística. In: <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> X<strong>VI</strong> Encontro da Associação<br />
Nacional <strong>de</strong> Pesquisa e Pós-Graduação em Música- ANPPOM. Brasília: UFB, 665-70.<br />
Schmidt, R. & Wrisberg, C. A. (2001) Aprendizagem e performance motora: uma abordagem<br />
<strong>de</strong> aprendizagem baseada no problema. Porto Alegre: Artmed Editora. Trad. Ricar<strong>do</strong><br />
Petersen [et al], 2ª Ed.<br />
Tatz, S. 1990. Unwanted Physical Tension, The Piano Quarterly 152: 62-64.<br />
Wilson, F. R. 1988. Teaching hands, treating hands. The Piano Quarterly 141: 34-41.<br />
155
156<br />
Padrões <strong>de</strong> pensamento:<br />
aplicação da Técnica Alexan<strong>de</strong>r à execução musical<br />
Yara Quercia Vieira<br />
yvieira@smail.ufsm.br<br />
Departamento <strong>de</strong> Música, Centro <strong>de</strong> <strong>Artes</strong> e Letras<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Maria<br />
Resumo<br />
A Técnica Alexan<strong>de</strong>r é consi<strong>de</strong>rada auxiliar na busca <strong>de</strong> procedimentos eficientes <strong>do</strong><br />
uso <strong>do</strong> corpo em campos liga<strong>do</strong>s à execução musical. Diversos artigos foram escritos<br />
por professores da Técnica que trabalharam com músicos ou por profissionais da música<br />
que buscaram auxílio na Técnica. Gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong>s artigos encontra<strong>do</strong>s na literatura<br />
trata <strong>de</strong> relatos <strong>de</strong> experiências individuais. Apesar <strong>de</strong> serem <strong>de</strong> algum interesse, o leitor<br />
não consegue extrair <strong>de</strong>stes relatos aplicações úteis ao seu <strong>de</strong>sempenho. Estes artigos<br />
concentram-se em relatar a sensação física liberta<strong>do</strong>ra que é imediatamente vivida por<br />
músicos em seu primeiro contato com a Técnica Alexan<strong>de</strong>r. Além disto, esta experiência<br />
estaria vinculada à assistência <strong>de</strong> um professor treina<strong>do</strong> na Técnica. Ben-Or (1987)<br />
afirma que focalizar a atuação da Técnica Alexan<strong>de</strong>r na sensação <strong>de</strong> leveza e facilida<strong>de</strong><br />
na execução é uma maneira simplista <strong>de</strong> ver o uso da Técnica aplicada à execução musical.<br />
Seu artigo traz à luz princípios da Técnica Alexan<strong>de</strong>r que possibilitam a aplicação<br />
<strong>de</strong> disciplina mental que leva a uma melhor execução. Jones (1967) <strong>de</strong>staca que a Técnica<br />
Alexan<strong>de</strong>r trata principalmente da não divisão <strong>de</strong> mente e corpo assim como <strong>de</strong><br />
corpo e ambiente. Ressalta o hábito entre músicos <strong>de</strong> automatizar a execução, alienan<strong>do</strong><br />
a mente da tarefa, o que tornaria a interpretação estereotipada e inconsciente,<br />
portanto incapaz <strong>de</strong> mudar. Afirma, ainda, que o melhor esta<strong>do</strong> para a execução musical<br />
é “alerta e <strong>de</strong>sperto”. Neste esta<strong>do</strong> a percepção e a propriocepção acontecem simultaneamente.<br />
Segun<strong>do</strong> Jones, a ferramenta para atingir este esta<strong>do</strong> seria a Técnica<br />
Alexan<strong>de</strong>r. Com base nestes autores, concluímos que o uso da Técnica como motiva<strong>do</strong>ra<br />
<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> consciência plena da ativida<strong>de</strong> musical (e não apenas seus benefícios<br />
físicos) seria a melhor maneira <strong>de</strong> aplicá-la à execução musical.<br />
Introdução<br />
A Técnica Alexan<strong>de</strong>r tem sua popularida<strong>de</strong> associada à idéia <strong>de</strong> eficiência e conforto<br />
na execução <strong>de</strong> qualquer tarefa física. Em áreas em que o aprimoramento requer<br />
<strong>de</strong>dicação intensa e <strong>de</strong>manda psicomotora, como na área da execução musical,<br />
a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> otimizar procedimentos é imensamente atraente. Se consi<strong>de</strong>rarmos<br />
a enorme competição e a busca pelo aumento <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>sempenho<br />
<strong>do</strong>s artistas, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhar intensamente sem danos físicos se torna<br />
fator <strong>de</strong>terminante <strong>de</strong> sobrevivência.<br />
No campo da execução musical, o interesse pela Técnica Alexan<strong>de</strong>r e suas possibilida<strong>de</strong>s<br />
po<strong>de</strong> ser verifica<strong>do</strong> pelo número <strong>de</strong> artigos disponíveis que tratam da apli-
cação da Técnica Alexan<strong>de</strong>r à performance musical. A revista “Direction”, especializada<br />
em técnica Alexan<strong>de</strong>r, publicou em setembro <strong>de</strong> 1991 um número inteiro<br />
<strong>de</strong>dica<strong>do</strong> aos músicos. Em 1992 foi publica<strong>do</strong> pela N.A.S.T.A.T. (Associação<br />
Norte-Americana <strong>de</strong> Professores <strong>de</strong> Técnica Alexan<strong>de</strong>r) um índice comenta<strong>do</strong> intitula<strong>do</strong><br />
From Stage Fright to Seat Hight que cobre o perío<strong>do</strong> entre 1907 e 1992 e<br />
apresenta textos sobre Técnica Alexan<strong>de</strong>r associada à prática da música. Atualmente<br />
diversos artigos encontram-se disponíveis em páginas especializadas na internet<br />
(no site www.alexan<strong>de</strong>rtechnique.com/musicians.htm encontram-se 43<br />
artigos).<br />
Gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong>s artigos encontra<strong>do</strong>s na literatura trata <strong>de</strong> relatos <strong>de</strong> experiências<br />
individuais. Quem escreve são músicos que dão seu testemunho <strong>do</strong>s benefícios senti<strong>do</strong>s<br />
após uma série <strong>de</strong> sessões com professores <strong>de</strong> Técnica Alexan<strong>de</strong>r, ou são professores<br />
relatan<strong>do</strong> seu trabalho com músicos.<br />
Poucos artigos se <strong>de</strong>stacam por irem além <strong>do</strong>s benefícios físicos advin<strong>do</strong>s da aplicação<br />
da Técnica Alexan<strong>de</strong>r à execução musical. O conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong>sses artigos po<strong>de</strong> ser<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valia para os músicos executantes, uma vez que encoraja a aplicação da<br />
Técnica Alexan<strong>de</strong>r em diversos aspectos da preparação da execução musical. O objetivo<br />
<strong>de</strong>sta revisão é trazer à luz o conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong>sses artigos que, apesar <strong>de</strong> não serem<br />
recentes, permanecem singulares em <strong>de</strong>monstrar como a Técnica Alexan<strong>de</strong>r po<strong>de</strong><br />
ser útil à construção da performance musical <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> profun<strong>do</strong> e eficaz.<br />
Princípios da Técnica Alexan<strong>de</strong>r<br />
A técnica Alexan<strong>de</strong>r propõe que o uso equilibra<strong>do</strong> e coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpo se dá<br />
por meio <strong>de</strong> busca consciente e ativa. A ativida<strong>de</strong> mental envolvida nessa busca tem<br />
duas etapas: 1. Inibição e 2. Direção. Pressupõe-se a existência <strong>de</strong> conjunto <strong>de</strong> reflexos<br />
inato aos vertebra<strong>do</strong>s que se nomeou Controle Primário.<br />
Inibição<br />
O conceito <strong>de</strong> Inibição na Técnica Alexan<strong>de</strong>r trata da eliminação da resposta estereotipada<br />
a qualquer estímulo. Consi<strong>de</strong>remos o estímulo <strong>de</strong> pegar uma garrafa <strong>de</strong><br />
água na gela<strong>de</strong>ira. Se ela está mais vazia ou mais cheia <strong>do</strong> que imaginamos, o movimento<br />
dimensiona<strong>do</strong> a priori será ineficiente para cumprir a tarefa. A Inibição<br />
seria a contenção da resposta automatizada ao estímulo; seria parar a intenção <strong>de</strong><br />
utilizar aquela força projetada para levantar a garrafa <strong>de</strong> água antes que aquela intenção<br />
<strong>de</strong>flagre a ação muscular.<br />
Direção<br />
O conceito <strong>de</strong> Direção na Técnica Alexan<strong>de</strong>r trata da opção <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r ao estímulo<br />
com uso <strong>do</strong> corpo alterada por uma idéia: a <strong>de</strong> que não se <strong>de</strong>ve interferir na<br />
157
158<br />
relação da cabeça com o tronco ao executar qualquer tarefa. Voltemos à garrafa <strong>de</strong><br />
água na gela<strong>de</strong>ira. Depois <strong>de</strong> inibir a resposta automatizada, posso optar por levantar<br />
a garrafa <strong>de</strong> água sem interferir na relação da cabeça com o tronco enquanto<br />
executo a tarefa. Essa experiência quase sempre causa espanto quan<strong>do</strong> é executada<br />
pela primeira vez: o uso <strong>do</strong> corpo é completamente diferente <strong>do</strong> habitual.<br />
Controle primário<br />
Controle Primário é o conjunto <strong>de</strong> reflexos envolvi<strong>do</strong>s na habilida<strong>de</strong> neuromuscular<br />
<strong>do</strong> ser humano <strong>de</strong> se manter ereto. Teóricos da Técnica Alexan<strong>de</strong>r acreditam<br />
que esse conjunto <strong>de</strong> reflexos que regem a relação da cabeça com o tronco é inato<br />
aos vertebra<strong>do</strong>s, e existe em resposta à força <strong>de</strong> gravida<strong>de</strong>. Esse conjunto <strong>de</strong> reflexos<br />
aparentemente tem influência na coor<strong>de</strong>nação periférica <strong>do</strong>s membros (braços e<br />
pernas). Teóricos da Técnica Alexan<strong>de</strong>r preconizam que interferir na relação da<br />
cabeça com o tronco prejudica a atuação <strong>do</strong> Controle Primário, o que prejudicaria<br />
em conseqüência o <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> qualquer ativida<strong>de</strong> motora consciente.<br />
Técnica Alexan<strong>de</strong>r e conforto na execução instrumental<br />
O estu<strong>do</strong> da técnica instrumental em música nunca <strong>de</strong>ve ser aborda<strong>do</strong> por meio<br />
<strong>de</strong> procedimentos mecânicos e impensa<strong>do</strong>s. Apesar <strong>de</strong> isso parecer óbvio, pensar<br />
assim po<strong>de</strong> não ser suficiente para garantir o melhor uso <strong>do</strong> corpo. Muitos músicos<br />
instrumentistas se frustram quan<strong>do</strong> percebem que estão sen<strong>do</strong> vitimas <strong>do</strong> mau uso,<br />
algumas vezes tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais, quan<strong>do</strong> já se instalou alguma lesão.<br />
A Técnica Alexan<strong>de</strong>r oferece uma disciplina mental que propõe o controle consciente<br />
<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os aspectos envolvi<strong>do</strong>s na ativida<strong>de</strong>, o que leva a um melhor <strong>de</strong>sempenho<br />
físico. O conforto fisico é uma consequência positiva e bem-vinda <strong>de</strong>ssa<br />
disciplina mental.<br />
Reconsi<strong>de</strong>rar a técnica instrumental sob a luz da Técnica Alexan<strong>de</strong>r significa reeducar<br />
movimentos específicos aplican<strong>do</strong> a atenção consciente. Ao reeducá-los, movimentos<br />
<strong>de</strong> mão e braços acontecem, no contexto da execução instrumental, com<br />
esforço apropria<strong>do</strong>. O excesso <strong>de</strong> tensão em qualquer articulação, principalmente<br />
entre cabeça e tronco, po<strong>de</strong> interferir na <strong>de</strong>senvoltura <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o corpo. Por meio <strong>de</strong><br />
processo gradual, eliminan<strong>do</strong> os procedimentos mecânicos e estereotipa<strong>do</strong>s a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s<br />
por tantos instrumentistas, fica cada vez mais claro que a atenção consciente<br />
empregada na Técnica Alexan<strong>de</strong>r oferece recursos apropria<strong>do</strong>s para a <strong>de</strong>senvoltura<br />
da execução instrumental (Vieira 1996).<br />
O resulta<strong>do</strong> imediato da aplicação da Técnica Alexan<strong>de</strong>r à execução instrumental<br />
é uma ruptura no ciclo vicioso <strong>de</strong> tensão. É uma experiência po<strong>de</strong>rosa e inesperada:<br />
a pessoa sente a ausência da resposta muscular associada ao excessivo e inapropria<strong>do</strong><br />
uso <strong>de</strong> força para tocar o instrumento. Um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> confusão e surpresa se segue,
à medida que a pessoa percebe que o tocar po<strong>de</strong> ser associa<strong>do</strong> a uma sensação <strong>de</strong><br />
pouco esforço. A coor<strong>de</strong>nação melhora, passagens que eram difíceis se tornam mais<br />
fáceis, como se elas tocassem por si. A qualida<strong>de</strong> sonora melhora e a expressivida<strong>de</strong><br />
sai natural e espontaneamente (Vieira 1996). Nesse ponto, o instrumentista passa<br />
a acreditar que tocar o instrumento é possível sem ter <strong>de</strong> se exercitar <strong>de</strong> maneira<br />
mecânica. “Como é possível que uma peça musical, ou uma passagem nela, seja difícil<br />
para uns e fácil para outros. . . Na realida<strong>de</strong>, a peça não é nem difícil nem fácil,<br />
mas se torna um ou outro <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>de</strong> como o instrumentista a percebe” (Ben-<br />
Or 1987). Dessa forma, a importância recai sobre a percepção <strong>do</strong> texto musical,<br />
mais <strong>do</strong> que a ativida<strong>de</strong> física envolvida em realizar esse texto.<br />
Não se quer dizer com isso que a coor<strong>de</strong>nação específica necessária para tocar uma<br />
obra musical viria sem a prática <strong>de</strong> repetições. A coor<strong>de</strong>nação precisa ser <strong>de</strong>senvolvida.<br />
O estu<strong>do</strong> no senti<strong>do</strong> tradicional não po<strong>de</strong> ser dispensa<strong>do</strong>. No entanto, os efeitos<br />
da repetição insensata po<strong>de</strong>m ser minimiza<strong>do</strong>s com a aplicação da atenção<br />
consciente que resulta <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong> da Técnica Alexan<strong>de</strong>r, o que será trata<strong>do</strong> a<br />
seguir.<br />
Essência e subproduto<br />
Nelly Ben-Or, pianista internacional, professora <strong>de</strong> piano <strong>do</strong> Guildhall School of<br />
Music em Londres e professora <strong>de</strong> Técnica Alexan<strong>de</strong>r, escreve, em artigo <strong>de</strong> 1987<br />
intitula<strong>do</strong> The Alexan<strong>de</strong>r Technique in Preparation and Performance of Music, que<br />
o alívio físico é freqüentemente consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> o principal benefício da Técnica Alexan<strong>de</strong>r.<br />
A importância <strong>do</strong> processo mental consciente que <strong>de</strong>fine a melhoria física<br />
po<strong>de</strong> passar <strong>de</strong>spercebida ou ser minimizada. “Quan<strong>do</strong> isso acontece, a Técnica<br />
Alexan<strong>de</strong>r permanece limitada pela idéia <strong>de</strong> que causa melhoras posturais, o que é,<br />
<strong>de</strong> fato, o motivo da sua popularida<strong>de</strong>” (Ben-Or 1987). Segun<strong>do</strong> Ben-Or, “isso seria<br />
tomar o subproduto pela essência”, e causa mais um equívoco, “o <strong>de</strong> que a Técnica<br />
Alexan<strong>de</strong>r seria uma espécie <strong>de</strong> tratamento, e não um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho, aplicável<br />
a to<strong>do</strong> o processo <strong>de</strong> preparação para a performance” (Ben-Or 1987). Para Ben-Or,<br />
a essência da Técnica Alexan<strong>de</strong>r é a inibição e a direção.<br />
Ainda segun<strong>do</strong> Ben-Or, a gran<strong>de</strong> contribuição da técnica Alexan<strong>de</strong>r para o músico<br />
executante seria a utilização <strong>de</strong> atenção consciente e assim como uma clareza <strong>de</strong><br />
percepção. “Estes seriam também os fatores mais importantes na preparação da execução<br />
musical. Eles são os melhores meios para adquirir uma técnica <strong>de</strong> execução<br />
criativa: a técnica com a qual a intenção musical se manifesta instantaneamente em<br />
som, e se apóia na atenção e direção conscientes” (Ben-Or 1987).<br />
Para ilustrar, Ben-Or toma como exemplo aspectos da execução pianística, como a<br />
obtenção <strong>de</strong> velocida<strong>de</strong> em um trecho musical, e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que os procedimentos<br />
comumente utiliza<strong>do</strong>s para ganhar velocida<strong>de</strong> em passagens, tais como intermináveis<br />
repetições e variações rítmicas, reduzem a tarefa a um <strong>de</strong>safio unicamente para<br />
159
160<br />
o corpo. O aspecto mental da velocida<strong>de</strong> fica negligencia<strong>do</strong>. No entanto, enquanto<br />
o material musical não está mentalmente na velocida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejada, qualquer esforço<br />
físico será um <strong>de</strong>sperdício <strong>de</strong> energia. Ben-Or ressalta que, enquanto o corpo tem<br />
limitações, tal como tamanho <strong>de</strong> mão, ou comprimento <strong>de</strong> <strong>de</strong><strong>do</strong>s, a mente não tem<br />
limite.<br />
A clareza na percepção <strong>do</strong> texto musical e a realização mental <strong>de</strong>sse texto seriam a<br />
tradução da essência da Técnica Alexan<strong>de</strong>r aplicada à performance. A eficiência na<br />
realização física da execução musical se torna o bem-vin<strong>do</strong> subproduto <strong>do</strong> processo<br />
mental.<br />
Padrões <strong>de</strong> pensamento<br />
“A Técnica Alexan<strong>de</strong>r po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> auxilio para o músico por aliviar tensões<br />
corporais <strong>de</strong>snecessárias e levar a uma coor<strong>de</strong>nação melhorada. Mas acima<br />
<strong>de</strong> tu<strong>do</strong> [a Técnica Alexan<strong>de</strong>r] <strong>de</strong>ve mostrar [ao músico] como os PADRÕES DE<br />
PENSAMENTO em música precisam ser muda<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>s habituais para novos [padrões<br />
<strong>de</strong> pensamento]” (Ben-Or 1987, grifo original da citação).<br />
Automatismo e criativida<strong>de</strong><br />
Frank Pierce Jones, que por 25 anos conduziu pesquisas sobre a Técnica Alexan<strong>de</strong>r,<br />
escreveu, em seu artigo The Organization of Awareness, <strong>de</strong> 1967, que estar alerta aos<br />
eventos <strong>do</strong> momento não é um objetivo comum das pessoas. Há quem se sinta mais<br />
à vonta<strong>de</strong> quan<strong>do</strong> é capaz <strong>de</strong> fazer automaticamente as ativida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> dia a dia, tais<br />
como dirigir para o trabalho. Assim, a pessoa po<strong>de</strong> pensar em coisas mais úteis, ou<br />
mais interessantes. Quan<strong>do</strong> uma ativida<strong>de</strong> está treinada à exaustão, a mente po<strong>de</strong><br />
abstrair da tarefa, que ainda será cumprida a contento.<br />
Embora aparentemente isso seja uma vantagem, este tipo <strong>de</strong> treinamento engessa<br />
a ativida<strong>de</strong>, que se repete sem variações, e só funciona se não for mudada. A automatização<br />
na performance musical e sua conseqüente alienação mental certamente<br />
tolhe a interpretação. Jones consi<strong>de</strong>ra que o automatismo é responsável por performances<br />
musicais inconscientes e estereotipadas.<br />
Consciência e atenção<br />
Jones propõe um méto<strong>do</strong> para organizar a atenção consciente <strong>de</strong> forma que não<br />
haja tal prejuízo. Para isso, Jones utiliza os termos consciência (awareness) e atenção<br />
(attention). Segun<strong>do</strong> ele, consciência é uma “condição em que a pessoa está<br />
<strong>de</strong>sperta e alerta ao que quer que esteja acontecen<strong>do</strong>, sem se concentrar em nada em<br />
particular” (Jones, 1967). Atenção é um esta<strong>do</strong> em que o foco se fecha em um aspecto<br />
particular, e po<strong>de</strong> ser comparada a um spot <strong>de</strong> luz no palco.<br />
A concentração é um conceito bastante valoriza<strong>do</strong>. Estar concentra<strong>do</strong> equivale a
dar toda a atenção ao que acontece sob o spot <strong>de</strong> luz. Qualquer outra coisa passa a<br />
ser ignorada. Pela proposta <strong>de</strong> Jones, quan<strong>do</strong> estamos envolvi<strong>do</strong>s em uma ativida<strong>de</strong>,<br />
<strong>de</strong>vemos ampliar o foco da atenção. Aquele spot <strong>de</strong> luz continua brilhante, mas o<br />
resto <strong>do</strong> palco não está completamente às escuras, e sim levemente ilumina<strong>do</strong>.<br />
161 161<br />
Percepção e Propriocepção<br />
Jones escreve que o organismo é freqüentemente subdividi<strong>do</strong> em partes e categorias:<br />
corpo e mente, os cinco senti<strong>do</strong>s, sistemas (vascular, digestivo, nervoso, etc.).<br />
Essas divisões são úteis para fins <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>, mas quan<strong>do</strong> se trata <strong>de</strong> comportamento<br />
humano, é comum reforçar-se que o corpo funciona como uma unida<strong>de</strong>.<br />
“Há uma divisão, no entanto, que é raramente questionada: a divisão entre ser e ambiente.<br />
É comumente aceito que a atenção <strong>de</strong>ve ser dirigida ou para fora, para o ambiente,<br />
ou para <strong>de</strong>ntro, para si mesmo” (Jones 1967). Jones se utiliza da<br />
terminologia <strong>de</strong> Gibson (apud Jones 1967), que emprega percepção para a atenção<br />
dirigida ao ambiente e propriocepção para a atenção dirigida para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si<br />
mesmo. Percepção e propriocepção parecem incompatíveis ou exclu<strong>de</strong>ntes.<br />
Quan<strong>do</strong> estamos absorvi<strong>do</strong>s em uma ativida<strong>de</strong>, per<strong>de</strong>mos a noção <strong>do</strong> uso <strong>de</strong> nosso<br />
corpo — isso é tão evi<strong>de</strong>nte quan<strong>do</strong> utilizamos o computa<strong>do</strong>r. Inversamente, se<br />
queremos dar atenção ao nosso esta<strong>do</strong> físico, procuramos excluir o mun<strong>do</strong> exterior,<br />
até mesmo fechan<strong>do</strong> os olhos, para sentirmos melhor o nosso corpo.<br />
Jones <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> uma abordagem unitária, contestan<strong>do</strong> a separação entre ser e ambiente,<br />
e a conseqüente atuação exclu<strong>de</strong>nte nas capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> percepção e propriocepção.<br />
O cérebro humano tem a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> processar informações sobre o<br />
ambiente ao mesmo tempo em que obtém da<strong>do</strong>s sensoriais sobre posição, tônus<br />
muscular e movimentos da cabeça, tronco e membros. Trata-se <strong>de</strong> incorporar os<br />
da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> feedback proprioceptivo aos da<strong>do</strong>s da ativida<strong>de</strong>, como se clareássemos o<br />
palco com uma luz tênue, suficiente para se perceber os contornos importantes,<br />
sem per<strong>de</strong>r o brilho <strong>do</strong> spot <strong>de</strong> luz, que abarcaria o centro da ação.<br />
No palco<br />
Ulfried Tölle, músico, ex-primeira trompa da Orquestra Sinfônica <strong>de</strong> Zurique e<br />
ex-professor <strong>de</strong> Técnica Alexan<strong>de</strong>r da Musikhochschule em Stuttgart, escreveu um<br />
artigo intitula<strong>do</strong> Stage Fright. Neste artigo, Tölle aborda a aplicação da Técnica<br />
Alexan<strong>de</strong>r no contexto <strong>de</strong> minimizar os sintomas <strong>do</strong> que se costuma chamar me<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> palco. Sen<strong>do</strong> professor <strong>de</strong> Técnica Alexan<strong>de</strong>r, Tölle trata da relação da cabeça<br />
com o corpo, esta<strong>do</strong>s da mente e hábitos, aspectos geralmente associa<strong>do</strong>s à prática<br />
da Técnica. No entanto, ao ler o texto <strong>de</strong>paramos com idéias singulares e surpreen<strong>de</strong>ntes,<br />
tais como escolha, controle e responsabilida<strong>de</strong>.<br />
Ao abordar sua experiência com os sintomas <strong>do</strong> me<strong>do</strong> <strong>de</strong> palco, Tölle apresenta
162<br />
um relato <strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> padrões <strong>de</strong> pensamento contraproducentes que estariam<br />
diminuin<strong>do</strong> a sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atuar, e das estratégias que elaborou para minimizar<br />
as conseqüências negativas que aqueles padrões <strong>de</strong> pensamento<br />
proporcionam. Tölle comenta que, no palco, no momento da performance, <strong>de</strong>sperdiçava<br />
gran<strong>de</strong> energia <strong>de</strong>sejan<strong>do</strong> estar em outro lugar. Além disso, ele <strong>de</strong>sejava<br />
estar no controle da situação. Esses <strong>de</strong>sejos não podiam ser satisfeitos. Então a atitu<strong>de</strong><br />
a tomar, segun<strong>do</strong> Tölle, seria escolher estar on<strong>de</strong> se está, e escolher estar fora<br />
<strong>de</strong> controle. Com essa escolha, assume-se a responsabilida<strong>de</strong> sobre os hábitos causa<strong>do</strong>res<br />
<strong>do</strong>s sintomas, e toman<strong>do</strong> essa simples atitu<strong>de</strong> cessa a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reagir<br />
a esses sintomas. Há uma mudança <strong>de</strong> opção <strong>de</strong> comportamento, <strong>de</strong> reação para<br />
ação. A partir <strong>de</strong>ssa mudança, Tölle opta por entrar no palco, afinar a trompa, ouvir<br />
a orquestra em preparação para sua próxima entrada e tocar ativamente.<br />
Estar completamente ciente (aware) <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se está (no palco), e <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> em que<br />
se está (fora <strong>de</strong> controle) implica em manter percepção e propriocepção atuan<strong>do</strong><br />
concomitantemente da maneira sugerida por Jones (1967) e <strong>de</strong>scrita anteriormente<br />
neste trabalho. Tölle afirma que a Técnica Alexan<strong>de</strong>r “é um méto<strong>do</strong> brilhante para<br />
entrar no <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> agora. Através da união [da mente] com o corpo no presente<br />
momento obtém-se a consciência <strong>de</strong> fisicamente estar lá, agora” (Tölle 1991).<br />
O professor da Técnica Alexan<strong>de</strong>r<br />
O professor <strong>de</strong> técnica Alexan<strong>de</strong>r esclarece seu aluno sobre Inibição e da Direção,<br />
e com isso po<strong>de</strong> guiar mudanças no padrão <strong>de</strong> pensamento <strong>de</strong> seu aluno. No entanto,<br />
o aluno músico precisa, ele mesmo, fazer a conexão <strong>do</strong>s princípios da Técnica<br />
Alexan<strong>de</strong>r com as “<strong>de</strong>mandas <strong>do</strong> instrumento e da música” (Ben-Or 1987). Ao<br />
propor esta idéia, Ben-Or encoraja o aluno a tomar posse <strong>do</strong> seu aprendiza<strong>do</strong> e aplicar<br />
os princípios da Técnica além <strong>do</strong> auxilio <strong>do</strong> professor.<br />
A rigor, a Técnica Alexan<strong>de</strong>r po<strong>de</strong>ria ser aprendida sem professor. F. M. Alexan<strong>de</strong>r,<br />
cria<strong>do</strong>r da Técnica, não tinha um professor para auxiliá-lo. F. M. Alexan<strong>de</strong>r levou<br />
muitos anos para <strong>do</strong>minar a técnica. O papel <strong>do</strong> professor é facilitar o processo, que,<br />
sem professor, seria muito <strong>de</strong>mora<strong>do</strong>. Em contrapartida, relatos <strong>de</strong> pessoas que<br />
têm uma longa história com a Técnica, dão conta <strong>de</strong> que, mesmo com auxílio <strong>de</strong><br />
professores, o aprendiza<strong>do</strong> é longo e a cada dia é um recomeço. Ben-Or, com 27<br />
anos <strong>de</strong> experiência, afirma que a ilusão <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r tu<strong>do</strong> sobre a Técnica Alexan<strong>de</strong>r<br />
está <strong>de</strong>finitivamente afastada. A Técnica Alexan<strong>de</strong>r é um experimento para<br />
toda a vida.<br />
Conclusão<br />
Com base no exposto acima, concluímos que a contribuição mais relevante da Técnica<br />
Alexan<strong>de</strong>r para a execução musical é a atenção consciente que motiva a cons-<br />
162
ciência plena em ativida<strong>de</strong>. Nas etapas da construção da interpretação musical, a<br />
atenção consciente estrutura o treinamento mental a partir da compreensão <strong>do</strong><br />
texto musical. No momento da performance, a atenção consciente situa o músico<br />
no momento presente e livre para exercer sua criativida<strong>de</strong>. Utilizan<strong>do</strong> a atenção<br />
consciente, a mente se mantém em contato com esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> corpo, apesar <strong>de</strong> o foco<br />
da atenção estar volta<strong>do</strong> para a ativida<strong>de</strong> musical. A mente permanece constantemente<br />
avalian<strong>do</strong> a atuação física, no <strong>de</strong>correr <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> ou <strong>do</strong> <strong>de</strong>sempenho artístico,<br />
e ao mesmo tempo em conexão com o mun<strong>do</strong> exterior.<br />
A Técnica Alexan<strong>de</strong>r po<strong>de</strong> trazer questionamentos profun<strong>do</strong>s a respeito <strong>de</strong> padrões<br />
<strong>de</strong> pensamento <strong>de</strong>strutivos. Sua atuação po<strong>de</strong> proporcionar mudanças em<br />
campos <strong>do</strong> comportamento e <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> psicológico. A atitu<strong>de</strong> mental <strong>de</strong> optar pela<br />
experiência representa assumir a responsabilida<strong>de</strong> sobre a experiência, sobre o próprio<br />
aprendiza<strong>do</strong> e sobre si mesmo.<br />
Apesar <strong>de</strong> os benefícios físicos serem os responsáveis pela popularida<strong>de</strong> da Técnica<br />
Alexan<strong>de</strong>r, a essência da Técnica está nos padrões <strong>de</strong> pensamento envolvi<strong>do</strong>s no<br />
procedimento. A integração <strong>do</strong> corpo e mente, assim como a simultaneida<strong>de</strong> da<br />
percepção e propriocepção permitem um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> atenção consciente e clareza <strong>de</strong><br />
percepção, que propiciam uma performance espontânea e criativa.<br />
Bibliografia<br />
Ben-Or N. 1987. The Alexan<strong>de</strong>r Technique in the preparation and performance of music.<br />
Alexan<strong>de</strong>r Memorial Lecture, panfleto disponibiliza<strong>do</strong> pela S.T.A.T. Books.<br />
Jones, Frank P. 1967. The organization of Awareness: a technique for musicians. Acessa<strong>do</strong> em<br />
14/04/2010. Disponível em www.alexan<strong>de</strong>rtechnique.com/musicians.htm.<br />
Tölle U. 1991. Stage Fright. Direction: A journal on the Alexan<strong>de</strong>r Technique: Music and<br />
Musicians (1-6): 320-322.<br />
Vieira YQ. 1996. Principles of Alexan<strong>de</strong>r Technique as applied to selected aspects of violin<br />
performance. DMA Essay University of Iowa.<br />
163
164<br />
Diretrizes para a Elaboração <strong>de</strong> Dedilha<strong>do</strong>s<br />
na Performance Violonística<br />
Cristiano Sousa <strong>do</strong>s Santos<br />
cristiano.sousa.santos@gmail.com<br />
PPGMUS/Escola Música, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia<br />
Resumo<br />
Este artigo propõe diretrizes gerais e específicas para a elaboração <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s em<br />
violão e é um recorte <strong>de</strong> uma pesquisa <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong> já finalizada que estu<strong>do</strong>u o processo<br />
<strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s na Aquarelle para violão solo, composta por Sérgio Assad<br />
(1988). Analisamos e comparamos as digitações <strong>de</strong> mão esquerda elaboradas pelo próprio<br />
compositor da peça com nossas propostas <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s; e utilizamos as gravações<br />
<strong>de</strong> Eduar<strong>do</strong> Isaac e Aliéksey Vianna como parâmetros para a comparação <strong>de</strong> mudança<br />
<strong>de</strong> timbres nos <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mão direita. As ferramentas utilizadas para a análise e elaboração<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s em mão esquerda foram: a noção <strong>de</strong> posição e o conceito <strong>de</strong><br />
alcance natural; transla<strong>do</strong>, com <strong>de</strong><strong>do</strong> guia e salto livre; apresentações, longitudinal e transversal;<br />
distensão e contração; e o conceito <strong>de</strong> ponto <strong>de</strong> apoio, que consi<strong>de</strong>ramos ser a<br />
peça fundamental <strong>do</strong> processo digitatório <strong>de</strong> mão esquerda utiliza<strong>do</strong> neste estu<strong>do</strong>. Já as<br />
ferramentas utilizadas em mão direita foram: noção <strong>de</strong> posição e conceito <strong>de</strong> alcance<br />
natural, apresentação, transla<strong>do</strong> e salto livre, abertura e contração, mudanças <strong>de</strong> timbre.<br />
As diretrizes gerais para a elaboração <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s foram: a) a “viabilização da execução<br />
musical”; b) a “interpretação musical”. As diretrizes específicas <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mão<br />
esquerda foram: a) a “<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> posição”; b) a “<strong>de</strong>finição <strong>do</strong>s pontos <strong>de</strong> apoio”; c) “alteração<br />
da posição e <strong>do</strong> âmbito <strong>de</strong> alcance da mão esquerda”. Já as diretrizes específicas<br />
<strong>de</strong> mão direita foram: a) “<strong>de</strong>finição <strong>do</strong> posicionamento em senti<strong>do</strong> longitudinal ou<br />
transversal”; b) a “alteração da posição e <strong>do</strong> âmbito <strong>de</strong> alcance da mão direita”; c) finalmente,<br />
“escolha <strong>de</strong> recursos <strong>de</strong> mudança <strong>de</strong> timbre”. Esta pesquisa contribui para o <strong>de</strong>bate<br />
na área ao apresentar uma maneira sistemática <strong>de</strong> produzir <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s no violão.<br />
Introdução<br />
A digitação é uma sub-área da técnica violonística. Ela é, ainda, uma ferramenta<br />
fundamental tanto para tornar uma peça musical “executável” quanto para sua interpretação<br />
musical. O Harvard Dictionary of Music (Apel, 1982, p. 315) <strong>de</strong>fine<br />
digitação como sen<strong>do</strong> “o uso metódico <strong>do</strong>s <strong>de</strong><strong>do</strong>s na execução instrumental”. Por<br />
tal conceito, a digitação seria o setor da técnica responsável pela utilização criteriosa<br />
<strong>do</strong>s <strong>de</strong><strong>do</strong>s para a performance. Sen<strong>do</strong> assim, ela não aborda apenas a simples<br />
indicação digital em <strong>de</strong>terminada passagem, mas também a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua utilização.<br />
Vislumbrada <strong>de</strong>sta forma, a elaboração <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s po<strong>de</strong> ser tratada <strong>de</strong><br />
maneira ainda mais complexa, exigin<strong>do</strong> que o violonista pon<strong>de</strong>re sobre o resulta<strong>do</strong><br />
sonoro <strong>de</strong> seu uso e sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> viabilizar a performance <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada peça<br />
musical. A execução <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> trecho musical po<strong>de</strong> ser realizada, tanto em
mão direita quanto em mão esquerda, <strong>de</strong> diversas formas. Há a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se<br />
tocar uma nota <strong>de</strong> mesma freqüência em diversas posições <strong>do</strong> braço <strong>do</strong> instrumento,<br />
com diversos tipos <strong>de</strong> ataques <strong>de</strong> mão direita. Isto faz <strong>do</strong>s <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s em violão,<br />
uma peça chave para a interpretação musical. Carlevaro (1966, p. 3) observa que<br />
“no violão não se concebe uma execução correta sem uma correta digitação”. Concordamos<br />
em parte com esta sentença. Acreditamos que a digitação é o meio <strong>de</strong> se<br />
atingir <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> objetivo musical. Estes são muitos e diversos, por isso, são muitas<br />
e diversas as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s. Assim, não haveria apenas “uma correta<br />
digitação”. Na execução violonística, uma mesma passagem po<strong>de</strong> ser realizada<br />
<strong>de</strong> diferentes maneiras. Assim, a digitação po<strong>de</strong> variar <strong>de</strong> um instrumentista a outro,<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>do</strong>s diferentes pontos <strong>de</strong> vista sobre a questão. Ainda sobre a afirmação<br />
<strong>de</strong> Carlevaro, uma digitação <strong>de</strong>sconexa, que não formule <strong>de</strong> maneira coerente<br />
as conexões entre as passagens, obviamente tornaria a execução ao violão uma tarefa<br />
árdua <strong>de</strong> realização. Não raro, observamos tanto alunos quanto intérpretes <strong>de</strong>dicarem<br />
o tempo <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> para a prática repetitiva <strong>de</strong> trechos isola<strong>do</strong>s.<br />
Acreditamos que o exame e elaboração <strong>de</strong> digitação apropriada para tais trechos <strong>de</strong><br />
dificulda<strong>de</strong> possam otimizar a resolução <strong>do</strong> problema.<br />
Infelizmente, poucas publicações <strong>de</strong>dicam atenção focalizada à digitação. Isso reflete<br />
uma falta <strong>de</strong> preocupação com o tema. Por causa da escassez <strong>de</strong> bibliografia<br />
que apresente uma teoria técnica especificamente voltada à produção <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s,<br />
os violonistas recorrem às performances gravadas, em ví<strong>de</strong>os ou áudios, e à análise<br />
<strong>de</strong> partituras que contenham digitação. Há também a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se<br />
adquirir conhecimentos <strong>de</strong> procedimentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s através <strong>de</strong> aulas com violonistas<br />
mais experientes, tanto periodicamente quanto nos conheci<strong>do</strong>s masterclasses.<br />
Entretanto, talvez seja justamente a prática da oralida<strong>de</strong>, tanto no ensino<br />
quanto na prática violonística, que venha comprometen<strong>do</strong> a pesquisa e o registro<br />
<strong>de</strong>ste conhecimento em violão.<br />
Meto<strong>do</strong>logia<br />
Para nos ajudar a enten<strong>de</strong>r o processo <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s, escolhemos estudar<br />
a Suíte Aquarelle <strong>de</strong> Sérgio Assad, composta em 1988. Analisamos e comparamos<br />
a digitação <strong>de</strong> mão esquerda elaborada pelo compositor (Assad, 1992) com<br />
digitações alternativas elaboradas por nós. A mão direita não foi informada pelo<br />
compositor na edição, por isso, comparamos duas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> digitações nossas.<br />
O objetivo era o <strong>de</strong> apresentar diretrizes para a formulação <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s e enten<strong>de</strong>r<br />
um possível processo <strong>de</strong> elaboração.<br />
Procedimentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mão esquerda<br />
Mostramos, na tabela a seguir, os termos <strong>de</strong> mão esquerda e suas abreviações (sempre<br />
em letras maiúsculas, para diferenciar das abreviações <strong>de</strong> mão direita, em mi-<br />
165
166<br />
núsculas). Apresentamos a discussão sobre seu funcionamento em seguida.<br />
Tabela 1.1 — Abreviações <strong>do</strong>s termos <strong>de</strong> mão esquerda<br />
utiliza<strong>do</strong>s nos nossos exemplos.<br />
POS Posição<br />
APL Apresentação Longitudinal<br />
APT Apresentação Transversal<br />
PA Ponto <strong>de</strong> Apoio<br />
PAM Ponto <strong>de</strong> Apoio Manti<strong>do</strong><br />
PAA Ponto <strong>de</strong> Apoio Antecipa<strong>do</strong><br />
GA De<strong>do</strong> Guia Ativo<br />
GSI De<strong>do</strong> Guia Semi-inativo<br />
AB Abertura<br />
CON Contração<br />
SL Salto Livre<br />
De acor<strong>do</strong> com Carlevaro (1979, p. 94), posição “é a colocação da mão esquerda<br />
com relação às divisões ou espaços que existem no braço <strong>do</strong> instrumento”. A consciência<br />
<strong>do</strong> posicionamento no violão é fundamental para seleção apropriada <strong>do</strong> recurso<br />
a ser utiliza<strong>do</strong> para o transla<strong>do</strong>, além <strong>de</strong> ser indispensável para se estruturar<br />
a performance na memória com maior segurança. Para que se possa achar a posição<br />
on<strong>de</strong> a mão esquerda se encontra em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> trecho, <strong>de</strong>ve-se levar em conta<br />
a noção <strong>de</strong> “alcance natural”. Os <strong>de</strong><strong>do</strong>s possuem uma distância “natural” <strong>de</strong> um semitom<br />
entre si. Por exemplo, na corda Å, a distância <strong>do</strong> <strong>de</strong><strong>do</strong> 1 (posiciona<strong>do</strong> na<br />
nota Lá) para o <strong>de</strong><strong>do</strong> 2 (posiciona<strong>do</strong> na nota Lá #) seria consi<strong>de</strong>rada natural, o<br />
mesmo seria aplica<strong>do</strong> aos <strong>de</strong><strong>do</strong>s 3 e 4 consecutivamente. Segun<strong>do</strong> Carlevaro (1987),<br />
a mão esquerda, no seu alcance natural, não extrapola o âmbito <strong>de</strong> quatro casas (um<br />
tom e meio). Qualquer alteração <strong>de</strong>ste conceito implicaria na realização <strong>de</strong> distensão<br />
ou contração. Em nossos exemplos a posição <strong>de</strong> mão esquerda é encontrada<br />
consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> sempre o posicionamento <strong>do</strong> <strong>de</strong><strong>do</strong> 1.<br />
Os violonistas possuem duas maneiras <strong>de</strong> modificar o âmbito <strong>de</strong> alcance natural <strong>de</strong><br />
mão esquerda: a abertura (ou distensão) e a contração. A abertura implica em uma<br />
ampliação da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alcance da mão esquerda. Já a contração é a redução<br />
<strong>de</strong>sse alcance.<br />
O transla<strong>do</strong> significa a mudança <strong>de</strong> uma posição à outra. Este termo é muitas vezes<br />
vincula<strong>do</strong> às gran<strong>de</strong>s distâncias. Entretanto, aqui, qualquer mudança <strong>de</strong> posição<br />
será tratada por transla<strong>do</strong>. Tais mudanças <strong>de</strong>vem ser pensadas com cuida<strong>do</strong> para
que não prejudiquem o argumento musical. Muitas vezes é necessária a mudança<br />
<strong>de</strong> posição no meio <strong>de</strong> uma frase e, para que ela não tenha uma ruptura em seu frasea<strong>do</strong>,<br />
é preciso que o executante faça escolhas satisfatórias para realizar essa troca.<br />
Os recursos comumente utiliza<strong>do</strong>s para facilitar a execução <strong>do</strong> transla<strong>do</strong> são: a utilização<br />
<strong>de</strong> corda solta e o uso <strong>de</strong> <strong>de</strong><strong>do</strong>-guia. Ainda sobre os transla<strong>do</strong>s, é comum o<br />
uso <strong>do</strong> termo “salto”, on<strong>de</strong> o violonista retira a mão das cordas colocan<strong>do</strong>-a na nova<br />
posição. Esta ação resulta em <strong>de</strong>sprendimento <strong>de</strong> energia que, por sua repetição,<br />
po<strong>de</strong> causar fadiga muscular. Sua utilização po<strong>de</strong> ser arriscada pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
reposicionar a mão no braço <strong>do</strong> instrumento, por isso, alguns instrumentistas dão<br />
atenção especial ao seu estu<strong>do</strong>. O salto implica necessariamente em transla<strong>do</strong>, entretanto,<br />
o transla<strong>do</strong> não requer obrigatoriamente um salto. Dessa forma, preferimos<br />
o termo salto livre para <strong>de</strong>signar o transla<strong>do</strong> sem nenhum meio que facilite a<br />
ligação entre as posições. Apresentação <strong>de</strong> mão esquerda po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>finida como “a<br />
maneira na qual os <strong>de</strong><strong>do</strong>s são coloca<strong>do</strong>s em relação ao braço <strong>do</strong> instrumento como<br />
resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma ação <strong>de</strong>terminada <strong>do</strong> complexo motor mão-braço” (Carlevaro,<br />
1979, p. 77). No violão o conceito <strong>de</strong> apresentações é útil para a <strong>de</strong>cisão no processo<br />
<strong>de</strong> digitação. Tal importância se <strong>de</strong>ve ao fato <strong>de</strong> que cada tipo <strong>de</strong> apresentação favorece<br />
<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> posicionamento <strong>do</strong>s <strong>de</strong><strong>do</strong>s. As apresentações po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>is tipos6: longitudinal ou transversal. Temos a apresentação longitudinal quan<strong>do</strong><br />
os <strong>de</strong><strong>do</strong>s estão em direção paralela às cordas. Se colocarmos cada <strong>de</strong><strong>do</strong> em uma casa<br />
consecutivamente (posição natural), teremos um exemplo <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> apresentação.<br />
Já a apresentação transversal é obtida quan<strong>do</strong> pelo menos <strong>do</strong>is <strong>de</strong><strong>do</strong>s estão situa<strong>do</strong>s<br />
em cordas diferentes e em uma mesma casa. O ponto <strong>de</strong> apoio na mão<br />
esquerda é o uso sistemático da pressão exercida pelos <strong>de</strong><strong>do</strong>s. O violonista, ao executar<br />
<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> trecho, escolhe o <strong>de</strong><strong>do</strong> que servirá <strong>de</strong> apoio para que os <strong>de</strong>mais<br />
se movimentem com maior flexibilida<strong>de</strong>. Dessa forma, o <strong>de</strong><strong>do</strong> apoia<strong>do</strong> recebe maior<br />
pressão que os <strong>de</strong>mais. Para um melhor entendimento <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> ponto <strong>de</strong><br />
apoio<br />
na mão esquerda, partiremos da relação <strong>de</strong> forças exercidas entre os <strong>de</strong><strong>do</strong>s da mão<br />
esquerda (polegar, 1, 2, 3 e 4). O procedimento realiza<strong>do</strong> pelo polegar, exercen<strong>do</strong><br />
uma pressão no braço <strong>do</strong> violão, e pelos <strong>de</strong>mais <strong>de</strong><strong>do</strong>s da mão esquerda, exercen<strong>do</strong><br />
por sua vez uma pressão contrária, gera o equilíbrio necessário à performance violonística.<br />
No entanto, o uso ina<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> da pressão nos <strong>de</strong><strong>do</strong>s po<strong>de</strong> gerar <strong>de</strong>sconforto<br />
ao executante. Assim, o violonista <strong>de</strong>ve escolher um ponto <strong>de</strong> apoio, caso<br />
contrário, há a tendência <strong>de</strong> exercer pressão indiscriminada no braço <strong>do</strong> instrumento,<br />
causan<strong>do</strong> cansaço e <strong>do</strong>res. Em to<strong>do</strong> momento da execução existe a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> estabelecer um ponto <strong>de</strong> apoio e são muitas as formas <strong>de</strong> utilização <strong>de</strong>ste<br />
recurso, que sempre <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rão <strong>do</strong> contexto e da individualida<strong>de</strong> <strong>do</strong> instrumentista.<br />
167
168<br />
Procedimentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mão direita<br />
A mão direita é a mão responsável pela produção, emissão, <strong>do</strong> som ao violão. Entretanto,<br />
ela é, muitas vezes, ignorada tanto nas edições <strong>de</strong> partituras quanto nas publicações<br />
que discutem o tema digitação. A falta <strong>de</strong> sistematização <strong>do</strong>s<br />
procedimentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mão direita po<strong>de</strong> levar o instrumentista a dificulda<strong>de</strong>s<br />
na execução musical (Brouwer e Paolini, 1992). A mão direita também sofre<br />
influência <strong>de</strong> fatores fisiológicos individuais, tal como ocorre com a mão esquerda.<br />
Assim, o formato das unhas bem como a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada <strong>de</strong><strong>do</strong> contribuem para<br />
a escolha <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s. Mostramos na tabela abaixo os termos <strong>de</strong> mão direita, e<br />
suas abreviações, que foram utiliza<strong>do</strong>s em nossos exemplos. A discussão sobre seu<br />
funcionamento virá em seguida. Atentamos para o fato <strong>de</strong> que, para evitar possíveis<br />
confusões com os termos em comum com a mão esquerda, foram coloca<strong>do</strong>s em<br />
letra minúscula.<br />
Tabela 1.1 — Abreviações <strong>do</strong>s termos <strong>de</strong> mão direita<br />
utiliza<strong>do</strong>s nos nossos exemplos.<br />
pos Posição<br />
apt Apresentação transversal<br />
apl Apresentação longitudinal<br />
ab Abertura<br />
con Contração<br />
ap Toque com apoio<br />
Sl Salto livre<br />
Tal como a mão esquerda, para a mão direita também é importante a noção <strong>de</strong> posicionamento<br />
para que os transla<strong>do</strong>s sejam realiza<strong>do</strong>s <strong>de</strong> maneira consciente. Iremos<br />
consi<strong>de</strong>rar “posição natural” apenas a relação entre os <strong>de</strong><strong>do</strong>s i (indica<strong>do</strong>r), m<br />
(médio) e a (anelar), já que o p (polegar) possui uma especificida<strong>de</strong> anatômica. O<br />
polegar é capaz <strong>de</strong> movimentar-se com maior in<strong>de</strong>pendência que os <strong>de</strong>mais <strong>de</strong><strong>do</strong>s.<br />
Assim, a mão direita estará em posição natural quan<strong>do</strong> os <strong>de</strong><strong>do</strong>s i, m e a estiverem<br />
posiciona<strong>do</strong>s em cordas consecutivas. No senti<strong>do</strong> transversal, com exceção <strong>do</strong> polegar,<br />
que po<strong>de</strong> trabalhar <strong>de</strong> forma mais livre e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, os <strong>de</strong>mais <strong>de</strong><strong>do</strong>s (i, m,<br />
a) obe<strong>de</strong>cem uma or<strong>de</strong>m conjunta. Dessa forma, cada <strong>de</strong><strong>do</strong> está pronto para tocar<br />
uma corda consecutivamente. Se o <strong>de</strong><strong>do</strong> i está sobre a corda Sol (É), a posição “natural”<br />
<strong>do</strong> <strong>de</strong><strong>do</strong> m será na corda Si (Ç) e o <strong>de</strong><strong>do</strong> a será sobre a corda Mi (Å). Já no<br />
senti<strong>do</strong> longitudinal, a posição aceita como natural é a próxima a região da boca,<br />
antes <strong>do</strong> cavalete.<br />
Assim, po<strong>de</strong>mos mapear quatro posições básicas no senti<strong>do</strong> transversal (inician<strong>do</strong><br />
da corda Å até a corda Ü). A ampliação <strong>do</strong> âmbito <strong>de</strong> alcance natural da mão direita<br />
será realizada mediante a utilização <strong>de</strong> transla<strong>do</strong>s transversais e aberturas.<br />
A mão direita po<strong>de</strong> transladar em <strong>do</strong>is senti<strong>do</strong>s, o longitudinal e o transversal. No
primeiro caso, a mudança é realizada com o intuito puramente interpretativo: o <strong>de</strong><br />
obter diferença timbrística através <strong>de</strong> toques em diferentes regiões <strong>do</strong> violão. Já o<br />
transla<strong>do</strong> transversal é realiza<strong>do</strong>, <strong>de</strong> maneira geral, por uma necessida<strong>de</strong> técnica <strong>de</strong><br />
se tocar as notas pressionadas em diferentes cordas pela mão esquerda.<br />
Distinguimos <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> apresentação na mão direita: longitudinal e transversal.<br />
A primeira nos dá um ângulo <strong>de</strong> 45° em relação às cordas e obe<strong>de</strong>ce a colocação<br />
“natural” <strong>do</strong> braço diante das cordas. Já para realizar a apresentação longitudinal, ou<br />
perpendicular, <strong>de</strong>vemos flexionar o punho fazen<strong>do</strong> com que a mão tenha um ângulo<br />
em torno <strong>de</strong> 90° em relação às cordas. A apresentação transversal será tomada<br />
como padrão em nossa execução, enquanto que a apresentação longitudinal será<br />
a<strong>do</strong>tada apenas em casos excepcionais.<br />
Similarmente à mão esquerda, há uma abertura na mão direita quan<strong>do</strong> o âmbito <strong>de</strong><br />
alcance natural, que é <strong>de</strong> uma corda, entre os <strong>de</strong><strong>do</strong>s i, m e a, é eleva<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> esse<br />
alcance é reduzi<strong>do</strong>, chamaremos <strong>de</strong> contração.<br />
São muitas as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> se obter variações <strong>de</strong> timbre através da mão direita.<br />
A escolha <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s <strong>de</strong><strong>do</strong>s por suas características específicas, po<strong>de</strong> proporcionar,<br />
além <strong>de</strong> conforto na execução, diferença na sonorida<strong>de</strong>. A utilização da digitação<br />
i-m para a realização <strong>de</strong> escalas po<strong>de</strong> promover gran<strong>de</strong> velocida<strong>de</strong> em sua<br />
execução (apesar <strong>de</strong> que po<strong>de</strong> ser rui<strong>do</strong>sa nos bordões por causa <strong>do</strong> atrito das unhas),<br />
possibilitar o emprego <strong>de</strong> apoio em ambos os <strong>de</strong><strong>do</strong>s (i e m), além <strong>de</strong> proporcionar<br />
um caráter “incisivo” ao trecho executa<strong>do</strong>. David Russell (Contreras, 1998, p. 45)<br />
nos dá uma outra opção: “para escalas rápidas nos bordões é muito boa digitação (<br />
sic) p-i ”. Tal indicação po<strong>de</strong> ser muito útil para evitar os ruí<strong>do</strong>s ocasiona<strong>do</strong>s pelo<br />
atrito das unhas nas cordas, além <strong>de</strong> proporcionar um timbre diferente por causa<br />
<strong>do</strong> uso <strong>do</strong> <strong>de</strong><strong>do</strong> p que tem uma sonorida<strong>de</strong> mais “pesada” que o <strong>de</strong><strong>do</strong> i. Ainda, o uso<br />
<strong>de</strong> p-i (ou p-m, similarmente) em escalas, po<strong>de</strong> ser útil tecnicamente: em um trecho<br />
on<strong>de</strong> a escala é finalizada com um acor<strong>de</strong> plaquê, ganha-se agilida<strong>de</strong> tocan<strong>do</strong> a última<br />
nota da escala com o p e as notas <strong>do</strong> acor<strong>de</strong> com os <strong>de</strong><strong>do</strong>s restantes (i-m-a).<br />
Há ainda a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se digitar i-a. O violonista <strong>de</strong>ve, obviamente, examinar<br />
a aplicabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stes procedimentos em cada caso.<br />
As diferenças timbrísticas entre corda presa e corda solta, bem como entre cordas<br />
diferentes, po<strong>de</strong>m ser compensadas através <strong>de</strong> mudança <strong>de</strong> posição da mão direita<br />
em senti<strong>do</strong> longitudinal. Este recurso é amplamente utiliza<strong>do</strong> pelos violonistas profissionais<br />
que muitas vezes não condicionam a digitação <strong>de</strong> mão esquerda à qualida<strong>de</strong><br />
timbrística das cordas. Com isso é comum em interpretações que o violonista<br />
use cordas diferentes, inclusive cordas presas e soltas, na condução <strong>de</strong> uma linha<br />
melódica.<br />
Além da mudança <strong>de</strong> timbre por uso <strong>de</strong> cordas diferentes na digitação <strong>de</strong> mão esquerda<br />
e por mudança <strong>de</strong> posicionamento da mão direita, há também a possibili-<br />
169
170<br />
da<strong>de</strong> da utilização <strong>de</strong> diferentes tipos <strong>de</strong> toques pela mão direita. Os maiores representantes<br />
<strong>de</strong>sse artifício são a utilização <strong>de</strong> toques com ou sem apoio. Noad<br />
(1999, p. 24) usa o termo toque apoia<strong>do</strong> “quan<strong>do</strong> o <strong>de</strong><strong>do</strong> <strong>de</strong> mão direita completa<br />
seu movimento <strong>de</strong>scansan<strong>do</strong> sobre a corda adjacente inferior”. O toque apoia<strong>do</strong><br />
produz um som <strong>de</strong> natureza mais “cheia”, com uma projeção maior que o toque<br />
sem apoio e a nota apoiada é fatalmente enfatizada. Já o toque sem apoio redunda<br />
em um som <strong>de</strong> curto alcance, entretanto, esse toque é mais rápi<strong>do</strong> e po<strong>de</strong> ser usa<strong>do</strong><br />
para dar dinamismo a uma <strong>de</strong>terminada passagem.<br />
Das diretrizes gerais<br />
Tomamos como ponto <strong>de</strong> partida o artigo <strong>de</strong> Daniel Wolff (2001) que é <strong>de</strong>dica<strong>do</strong><br />
exclusivamente à formulação da digitação violonística. Este autor elencou quatro<br />
fatores <strong>do</strong>s quais a elaboração da digitação <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria: dificulda<strong>de</strong> técnica, características<br />
individuais (anatomia das mãos, nível técnico, sonorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> instrumento),<br />
estilo da obra e interpretação (frasea<strong>do</strong>, articulação, timbre, etc.).<br />
Os fatores “dificulda<strong>de</strong> técnica” e “características individuais” propostos por ele<br />
po<strong>de</strong>m ser agrupa<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> sua proximida<strong>de</strong>. Enten<strong>de</strong>mos que ambos os itens<br />
menciona<strong>do</strong>s fazem parte <strong>de</strong> uma categoria maior, já que servem para tornar a performance<br />
viável no nível técnico-motor. Através <strong>do</strong>s exemplos compara<strong>do</strong>s entre<br />
as digitações <strong>de</strong> mão esquerda estabelecidas pelo compositor e as nossas propostas,<br />
vimos que em muitos casos, a dificulda<strong>de</strong> técnica pô<strong>de</strong> ser superada (pelo menos em<br />
favor <strong>de</strong> nossas “características individuais”). Já o fator “estilo da obra” será faculta<strong>do</strong><br />
a cada intérprete, já que este tem autonomia para a realização <strong>de</strong> sua interpretação.<br />
Por isso, os fatores “estilo da obra” e “interpretação” sugeri<strong>do</strong>s por Wolff<br />
serão agrupa<strong>do</strong>s em um só. Portanto, a digitação prescin<strong>de</strong>, em nossa concepção,<br />
<strong>de</strong> <strong>do</strong>is fatores essenciais: a) O primeiro critério é a “viabilização da execução musical”,<br />
ou seja, a digitação <strong>de</strong>ve proporcionar uma performance segura e sem esforço,<br />
para que o discurso musical não tenha seu fluxo comprometi<strong>do</strong>. Aqui, os fatores <strong>de</strong><br />
“dificulda<strong>de</strong> técnica” encontra<strong>do</strong>s em <strong>de</strong>terminada peça <strong>de</strong>vem ser submeti<strong>do</strong>s às<br />
“características individuais” (anatomia das mãos e sonorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> instrumento1).<br />
Note que eliminamos o item “nível técnico” menciona<strong>do</strong> por Wolff, pois enten<strong>de</strong>mos<br />
que a elaboração <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s é o meio <strong>de</strong> se alcançar o “nível técnico” necessário<br />
para realizar a performance <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada peça. Portanto, tal<br />
característica individual não po<strong>de</strong> servir <strong>de</strong> parâmetro limita<strong>do</strong>r para a elaboração<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s. Mesmo o instrumentista <strong>de</strong>stituí<strong>do</strong> <strong>de</strong> maiores agilida<strong>de</strong>s motoras<br />
ou mesmo, <strong>de</strong> resistência muscular, po<strong>de</strong> alcançar uma performance satisfatória<br />
por meio <strong>de</strong> uma elaboração <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s a<strong>de</strong>quada à sua realida<strong>de</strong> técnica.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, a anatomia das mãos po<strong>de</strong> interferir <strong>de</strong> maneira positiva ou negativa<br />
para a formulação da digitação. Obviamente, uma mão gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong> obter<br />
maior facilida<strong>de</strong> na execução <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s tipos <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s, como os que
possuem aberturas, mas talvez encontre dificulda<strong>de</strong> em realizar <strong>de</strong>terminadas contrações.<br />
Daí que o violonista <strong>de</strong>ve estar ciente <strong>de</strong> sua especificida<strong>de</strong> anatômica para<br />
escolher <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s que otimizem suas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> performance; b) O outro<br />
critério é a “interpretação musical”, ou seja, a preocupação com o seu resulta<strong>do</strong> sonoro.<br />
As escolhas <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s <strong>de</strong>vem ser tomadas para alcançar <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> fim<br />
auditivo. A digitação é, portanto, uma ferramenta (ou sub-ferramenta, já que a digitação<br />
é parte <strong>do</strong> aparato técnico disponível ao violonista) que po<strong>de</strong> ser utilizada<br />
<strong>de</strong> diferentes maneiras, em uma mesma peça e em uma mesma performance2. Agrupamos<br />
os fatores “estilo da obra” e “interpretação” em um só. De acor<strong>do</strong> com Ab<strong>do</strong><br />
(2000) há três correntes <strong>de</strong> interpretação musical: a reevoca<strong>do</strong>ra, a “concilia<strong>do</strong>ra” e<br />
a <strong>de</strong>sconstrucionista. A primeira, estabelece que o instrumentista <strong>de</strong>ve “reevocar”<br />
a idéia original <strong>do</strong> compositor através da performance historicamente embasada e<br />
execução das indicações apresentadas na partitura. A segunda corrente admite a<br />
pessoa <strong>do</strong> intérprete enquanto agente criativo e consi<strong>de</strong>ra-o co-autor ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
compositor. Já a corrente <strong>de</strong>sconstrucionista aban<strong>do</strong>na o conceito autoral e estabelece<br />
que o intérprete é o principal sujeito <strong>de</strong> sua ativida<strong>de</strong>. Acreditamos que ao<br />
intérprete é faculta<strong>do</strong> o direito <strong>de</strong> escolha entre as correntes apresentadas. Desta<br />
forma, sua digitação irá obe<strong>de</strong>cer suas inclinações interpretativas promoven<strong>do</strong> a<br />
varieda<strong>de</strong> entre diversas performances musicais.<br />
Assim, observamos que os <strong>do</strong>is critérios apresenta<strong>do</strong>s acima <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong> maneira dialética, pois a “interpretação musical” i<strong>de</strong>alizada pelo instrumentista<br />
carece <strong>de</strong> um aparato técnico a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> para sua viabilização. E, por outro<br />
la<strong>do</strong>, a “viabilização da execução musical” advém <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s fundamentos<br />
ou metas <strong>de</strong> “interpretação musical”. Entretanto, as possibilida<strong>de</strong>s técnicas parecem<br />
ser finitas e restritivas se comparadas às possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interpretação musical.<br />
Não é raro nos <strong>de</strong>pararmos com poucas opções <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s para a execução<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> trecho e nenhuma <strong>de</strong>las correspon<strong>de</strong>r aos nossos i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> interpretação<br />
musical.<br />
Diretrizes específicas <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s: mão esquerda<br />
As diretrizes utilizadas para a análise e produção das digitações <strong>de</strong> mão esquerda<br />
na peça Aquarelle foram:<br />
Primeira, a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> posição através da escolha <strong>do</strong> <strong>de</strong><strong>do</strong> que <strong>de</strong>verá tocar <strong>de</strong>terminada<br />
nota. A relação <strong>de</strong>ste <strong>de</strong><strong>do</strong> com o alcance natural <strong>do</strong> <strong>de</strong><strong>do</strong> 1 indicará a<br />
posição. Dessa forma, o <strong>de</strong><strong>do</strong> 1 é quem <strong>de</strong>fine o posicionamento da mão esquerda,<br />
mesmo que não participe <strong>do</strong> trecho em questão.<br />
Segunda, a <strong>de</strong>finição <strong>do</strong>s pontos <strong>de</strong> apoio. Eles darão estabilida<strong>de</strong> tanto para a execução<br />
<strong>de</strong> uma passagem que mantém o mesmo âmbito natural e uma mesma posição,<br />
quanto possibilitará “apoio” para o aumento ou diminuição <strong>de</strong>ste âmbito ou<br />
171
172<br />
à realização <strong>de</strong> transla<strong>do</strong>s. Mesmo quan<strong>do</strong> a mão esquerda permanece em uma<br />
mesma posição, e com o âmbito natural <strong>de</strong> alcance, há a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se estabelecer<br />
pontos <strong>de</strong> apoio, pelo fato <strong>de</strong> que ele permite estabilida<strong>de</strong> na execução, <strong>de</strong>tém<br />
sobre si a maior carga <strong>de</strong> força, o que possibilita maior agilida<strong>de</strong> aos <strong>de</strong>mais <strong>de</strong><strong>do</strong>s<br />
e permite com que a força seja empregada <strong>de</strong> maneira otimizada. Assim, os pontos<br />
<strong>de</strong> apoio estão, <strong>de</strong> maneira geral, em notas <strong>de</strong> maior duração.<br />
Terceira, a alteração da posição e <strong>do</strong> âmbito <strong>de</strong> alcance da mão esquerda é orientada<br />
<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os seguintes procedimentos: transla<strong>do</strong>s (com o uso <strong>de</strong> <strong>de</strong><strong>do</strong>s-guia<br />
que são pontos <strong>de</strong> apoio), aberturas e contrações (com o auxílio <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> apoio<br />
e apresentação apropriada). Observamos que a mão esquerda em alcance natural<br />
gasta menos energia na execução musical, além <strong>de</strong> possibilitar o frasea<strong>do</strong> mais fluí<strong>do</strong>.<br />
Por isso, a formulação <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s apresentada em nosso estu<strong>do</strong> privilegiou a<br />
mão esquerda em âmbito natural.<br />
Diretrizes específicas <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s: mão direita<br />
As diretrizes utilizadas para a análise e produção das digitações <strong>de</strong> mão direita na<br />
peça Aquarelle foram baseadas nas mesmas diretrizes <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mão esquerda,<br />
com as <strong>de</strong>vidas especificida<strong>de</strong>s:<br />
A primeira é a <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> posicionamento em senti<strong>do</strong> longitudinal ou transversal.<br />
O posicionamento longitudinal diz respeito a fatores estritamente interpretativos,<br />
enquanto que o posicionamento transversal obe<strong>de</strong>ce questões técnicas – a<br />
<strong>de</strong>finição das notas pressionadas pela mão esquerda ditarão o posicionamento em<br />
senti<strong>do</strong> transversal <strong>de</strong> mão direita. O <strong>de</strong><strong>do</strong> a orienta o posicionamento da mão direita,<br />
sempre com relação ao âmbito natural <strong>de</strong> alcance (como na mão esquerda), e<br />
esta posição ocorre <strong>de</strong> maneira alheia ao <strong>de</strong><strong>do</strong> p, que se movimenta <strong>de</strong> maneira in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte.<br />
Dessa forma, a mão direita se movimenta <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> 4 posições possíveis<br />
(pos 1, pos 2, pos 3 e pos 4). Observamos que a importância em se estabelecer<br />
as posições, bem como transla<strong>do</strong>s e mudanças <strong>de</strong> âmbitos <strong>de</strong> alcance em mão direita<br />
é similar àquela da mão esquerda. O frasea<strong>do</strong> <strong>de</strong>seja<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve orientar esses procedimentos.<br />
Obviamente, um frasea<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong> com <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s em âmbito natural<br />
po<strong>de</strong> ser mais cômo<strong>do</strong> e “fluí<strong>do</strong>” em sua execução que um <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> repleto <strong>de</strong><br />
transla<strong>do</strong>s.<br />
A segunda diretriz diz respeito à ampliação <strong>do</strong> âmbito <strong>de</strong> alcance e mudança <strong>de</strong> posição.<br />
Além da possibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> uso <strong>de</strong> aberturas e contrações, e saltos livres, é possível<br />
realizar transla<strong>do</strong>s por meio <strong>de</strong> mudança <strong>de</strong> apresentação. O único artifício<br />
encontra<strong>do</strong> para facilitar o transla<strong>do</strong> entre as posições em mão direita foi a utilização<br />
<strong>do</strong> polegar. Enquanto o polegar executa uma nota, os <strong>de</strong>mais <strong>de</strong><strong>do</strong>s mudam <strong>de</strong><br />
posição. Este procedimento é similar a utilização <strong>de</strong> corda solta para a realização<br />
<strong>do</strong> transla<strong>do</strong>, e serve para evitar lacunas auditivas na execução <strong>do</strong> transla<strong>do</strong>. Infe-
lizmente, não encontramos um procedimento similar aos <strong>de</strong><strong>do</strong>s-guia na mão esquerda<br />
para os transla<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mão direita.<br />
Finalmente, <strong>de</strong>ve-se escolher, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o contexto musical e as orientações interpretativas<br />
<strong>de</strong> cada intérprete, os momentos <strong>de</strong> realizar os transla<strong>do</strong>s longitudinais,<br />
toques com apoio ou sem apoio e mudanças <strong>de</strong> apresentação (que mudam o<br />
ângulo <strong>de</strong> ataque nas cordas).<br />
Aplicação<br />
A alteração realizada na digitação <strong>de</strong> mão esquerda <strong>do</strong> compasso 10, que exclui o uso<br />
da pestana, se <strong>de</strong>u por <strong>do</strong>is motivos: o primeiro foi o <strong>de</strong> manter o legatto na voz superior<br />
– o uso da pestana interromperia o som na passagem da nota Ré, <strong>de</strong><strong>do</strong> 4,<br />
para a nota Sol, <strong>de</strong><strong>do</strong> 3; o segun<strong>do</strong> motivo foi a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se manter a homogeneida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> timbre na voz intermediária (compare as duas figuras).<br />
Figura 1 — Valseana, cc. 9 e 10, <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> da edição.<br />
Figura 2 — Valseana, cc. 9 e 10, <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> nosso.<br />
Analisan<strong>do</strong> duas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mão direita elaboradas por nós, é<br />
possível ver como diferentes escolhas po<strong>de</strong>m refletir diretamente a condução <strong>do</strong><br />
frasea<strong>do</strong>. Na figura 3, observamos que é possível executar to<strong>do</strong> o trecho entre os<br />
compassos 26 e 30 utilizan<strong>do</strong> o p na melodia no baixo, sem realizar nenhum transla<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> mão direita. Entretanto, notamos que este procedimento causa um atraso<br />
na execução <strong>de</strong>sta melodia no bordão. Outra opção <strong>de</strong> digitação seria realizar a melodia<br />
no bordão com o p e o i. Apesar <strong>de</strong>sta digitação ser teoricamente mais difícil,<br />
por apresentar transla<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mão direita, ela beneficia a execução da melodia no<br />
173
174<br />
bordão, já que, ela será tocada alternadamente pelos referi<strong>do</strong>s <strong>de</strong><strong>do</strong>s.<br />
Figura 3 — Valseana, cc. 26 a 30. Digitação <strong>de</strong> mão direita sem mudança <strong>de</strong> posição.<br />
Figura 4 — Valseana, cc. 26 a 30. Digitação <strong>de</strong> mão direita<br />
com mudança <strong>de</strong> posição.<br />
Conclusão<br />
Reiteramos que o instrumentista, mesmo na elaboração <strong>de</strong> questões técnicas <strong>de</strong>
execução, parte <strong>de</strong> orientações individuais para o exercício <strong>de</strong> sua ativida<strong>de</strong>. Ao trabalharmos<br />
com uma peça musical complexa e composta por um violonista conceitua<strong>do</strong>,<br />
Sérgio Assad, <strong>de</strong>monstramos que cada intérprete apresenta formas distintas<br />
<strong>de</strong> trabalho. O instrumentista, ao posicionar-se <strong>de</strong> maneira aberta, po<strong>de</strong> utilizar<br />
suas ferramentas – timbre, dinâmica, tempo, articulação e técnica instrumental –<br />
<strong>de</strong> forma a proporcionar uma obra interpretativa sempre nova.<br />
Acreditamos que os gráficos utiliza<strong>do</strong>s neste estu<strong>do</strong> aproximam-se ao que <strong>de</strong> fato<br />
acontece no momento da performance. A partitura, mesmo que <strong>do</strong>tada das tradicionais<br />
indicações numéricas <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>ixa, sob muitas maneiras, a <strong>de</strong>sejar<br />
na representação <strong>do</strong> que realmente acontece na ativida<strong>de</strong> instrumental. Alguém<br />
po<strong>de</strong>ria argumentar que é tarefa <strong>do</strong> instrumentista a criação <strong>do</strong>s <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s e que,<br />
por isso, a notação <strong>de</strong>va apresentar-se <strong>de</strong> maneira limitada, ou mesmo inexistente.<br />
Entretanto, a ausência <strong>de</strong> publicações especializadas que discutam os problemas <strong>de</strong><br />
digitação, bem como a carência <strong>de</strong> partituras que tragam comentários sobre as escolhas<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s presentes em edições <strong>de</strong> partituras, contribuem para obscurecer<br />
as pesquisas em execução ao violão, além <strong>de</strong> não difundir o conhecimento. O<br />
investiga<strong>do</strong>r não tem outro meio <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r os procedimentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s a<br />
não ser através <strong>de</strong> análises <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>os e das indicações numéricas, nem sempre contidas<br />
nas edições. Dessa forma, o aspirante a instrumentista encontra dificulda<strong>de</strong>s<br />
na execução ao instrumento. Por isso, a partitura isenta <strong>de</strong> indicações <strong>de</strong> digitação<br />
serve apenas àquele indivíduo já <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s conhecimentos digitatórios necessários<br />
à execução ao instrumento. Portanto, é preciso que novas pesquisas sejam efetuadas<br />
no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> proporcionar o aperfeiçoamento da notação existente. Nesse senti<strong>do</strong>,<br />
acreditamos ter contribuí<strong>do</strong> para o enriquecimento da literatura através não<br />
só da criação <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> nomenclaturas, que po<strong>de</strong>m ser enriquecidas e<br />
adaptadas, mas também da sua representação gráfica que po<strong>de</strong> servir <strong>de</strong> apoio à execução,<br />
tanto para a análise <strong>de</strong> partituras, quanto como “guias para performance”.<br />
Uma prática comum no meio musical violonístico, mais precisamente entre peças<br />
criadas por compositores não violonistas, é a colocação na edição da partitura <strong>do</strong>s<br />
créditos <strong>do</strong> violonista que criou a digitação. Um exemplo <strong>de</strong>ssa prática po<strong>de</strong> ser<br />
visto nas várias edições <strong>de</strong> músicas comissionadas por Andrés Segóvia e Juliam<br />
Bream. Uma conseqüência disso é a cópia <strong>de</strong>liberada <strong>de</strong> tais digitações sem a análise<br />
crítica <strong>de</strong> seu funcionamento e conveniência. Por isso, esta pesquisa serve <strong>de</strong><br />
exemplo para o fato <strong>de</strong> que, mesmo quan<strong>do</strong> o compositor é um exímio violonista<br />
– como o é o caso <strong>de</strong> Sérgio Assad – não está <strong>de</strong>scartada a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se examinar,<br />
questionar e reelaborar a digitação, dinâmica, timbre, ou articulação. Dessa<br />
forma, recomendamos a busca <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s alternativos.<br />
Finalmente, em resposta à questão <strong>do</strong> nosso estu<strong>do</strong> – como ocorre o processo <strong>de</strong><br />
criação <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s ao violão? – po<strong>de</strong>mos afirmar que o violonista parte <strong>de</strong> diretrizes<br />
<strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s que são regidas por <strong>do</strong>is fatores: a “viabilização<br />
175
176<br />
da execução musical” e a “interpretação musical” que atuam <strong>de</strong> forma dialética;<br />
essas diretrizes são confrontadas com uma <strong>de</strong>manda musical (em nosso caso, a suíte<br />
Aquarelle); cada mão possui um aparato <strong>de</strong> ferramentas que <strong>de</strong>vem ser utilizadas <strong>de</strong><br />
maneira inter-relacionada; as diretrizes <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s para a mão esquerda<br />
são o estabelecimento <strong>de</strong> posicionamento, <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> ponto <strong>de</strong> apoio, e alteração<br />
<strong>de</strong> âmbito <strong>de</strong> alcance e posição; já as diretrizes <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s<br />
para a mão direita são a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> posição, a alteração <strong>de</strong> âmbito e posição, e utilização<br />
<strong>do</strong>s recursos <strong>de</strong> mudanças <strong>de</strong> timbre.<br />
1 Po<strong>de</strong>mos substituir “sonorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> instrumento” por “características físicas <strong>do</strong> instrumento”.<br />
Assim, levaríamos em conta não só a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu som emiti<strong>do</strong>, mas também, as<br />
limitações apresentadas por seu corpo físico, tais como, tamanho <strong>do</strong>s trastes, distância das<br />
cordas em relação ao braço, tensão das cordas, etc.<br />
2 O violonista espanhol Andrés Segóvia é um exemplo <strong>de</strong> violonista que utilizava digitações<br />
diferentes para um mesmo trecho.<br />
Referências<br />
Ab<strong>do</strong>, Sandra Neves. 2000. Execução/Interpretação musical: uma abordagem filosófica. Per<br />
Musi 1, p. 16-24.<br />
Apel, Willi. 1982. In: Harvard Dictionary of Music. 2º ed. Massachusets: The Belknap Press<br />
of Harvard University Press, p. 315-316.<br />
Brouwer, Leo; Paolo Paolini. 1992. Scale per chitarra: meto<strong>do</strong>logia <strong>de</strong>llo studio. Milão: Ricordi.<br />
Carlevaro, Abel. 1966. Serie didactica para guitarra: cua<strong>de</strong>rno 1, escalas diatonicas. Buenos<br />
Aires: Barry.<br />
———. 1979. Escuela <strong>de</strong> la guitarra: exposición <strong>de</strong> la teoria instrumental. Bueno Aires: Barry<br />
Editorial.<br />
———. 1987. Abel Carlevaro guitar masterclass. Technique, analysis and interpretation of:<br />
the guitar works of Villa-Lobos, 5 prelu<strong>de</strong>s [1940] and choros nº1 [1920] vol.II. Reino<br />
Uni<strong>do</strong>: Chanterelle.<br />
Contreras, Antonio <strong>de</strong>. 1998. La técnica <strong>de</strong> David Russell en 165 consejos. Sevilha: Cua<strong>de</strong>rnos<br />
Abolays.<br />
Noad, Fre<strong>de</strong>rick M. 1999. Solo guitar playing , book II. New York: Schirmer Books.<br />
Wolff, Daniel. 2001. Como digitar uma obra para violão. Violão Intercâmbio, São Paulo, n.<br />
46, p. 15-17.
O Processo Criativo da Composição Musical:<br />
Uma Visão Sistêmica e Evolutiva<br />
Felipe Kirst Adami<br />
felipekadami@gmail.com<br />
Departamento <strong>de</strong> Música<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul<br />
Resumo<br />
Este artigo aborda a composição musical enquanto processo, em uma visão sistêmica que<br />
leva em consi<strong>de</strong>ração não só os processos <strong>de</strong> geração da obra até a obtenção <strong>do</strong> suporte<br />
físico (como a partitura ou arquivo <strong>de</strong> música eletrônica), mas também processos<br />
<strong>de</strong> difusão: a execução, a apreensão, pelo público e pelo próprio compositor, e a teorização,<br />
assim como o retorno <strong>do</strong> conhecimento gera<strong>do</strong> em um novo ciclo composicional<br />
ou no próprio ciclo criativo da composição apresentada. Uma compreensão mais<br />
ampla <strong>do</strong> processo criativo da composição <strong>de</strong>ve levar em conta que existem diferentes<br />
elementos envolvi<strong>do</strong>s – cognitivos, perceptivos, técnicos e estéticos – forman<strong>do</strong> sistemas<br />
em diferentes níveis, interliga<strong>do</strong>s em um macrossistema que forma um ciclo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
contínuo. Serão aborda<strong>do</strong>s, portanto, <strong>de</strong> forma complementar, estu<strong>do</strong>s<br />
área da psicologia, da psicologia da música, e da composição musical levan<strong>do</strong> em conta<br />
elementos como motivação, inspiração, concepções e a utilização <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> processo<br />
criativo por psicólogos e compositores. Conclui-se que existem ciclos criativos<br />
contínuos que lançam o processo composicional em diferentes níveis, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o processo<br />
<strong>de</strong> criação da obra em si até os processos que o integram ao ambiente que o cerca e<br />
que o realimentam, levan<strong>do</strong> o processo a um novo ciclo, em um <strong>de</strong>senvolvimento contínuo.<br />
Dentro <strong>de</strong>stes ciclos, existem estruturas fixas, como a teoria <strong>do</strong>s estágios <strong>de</strong> Wallas,<br />
mas também existem estruturas em transformação, pelas novas concepções estéticas<br />
e novos conhecimentos técnicos adquiri<strong>do</strong>s pelo compositor em sua interação com o<br />
ambiente.<br />
Introdução<br />
A literatura sobre composição musical é constituída em gran<strong>de</strong> parte por livros gera<strong>do</strong>s<br />
a partir <strong>de</strong> um conhecimento retrospectivo, a partir da análise e estu<strong>do</strong> histórico,<br />
centran<strong>do</strong>-se no conteú<strong>do</strong> e na estrutura da composição. Existem, no<br />
entanto, relatos <strong>de</strong> experiências <strong>de</strong> compositores sobre suas concepções estéticas e<br />
seus processos composicionais, eventualmente abrangen<strong>do</strong> o processo <strong>de</strong> criação<br />
em si, trata<strong>do</strong> pela maioria <strong>do</strong>s compositores intuitivamente e através <strong>de</strong> conhecimento<br />
empírico e auto-analítico. Segun<strong>do</strong> Sloboda, existe “um vasto corpo <strong>de</strong> escritos<br />
publica<strong>do</strong>s sobre as composições musicais <strong>de</strong> maior realce em nossa cultura<br />
artística, mas a maior parte <strong>de</strong>les tratam <strong>do</strong> produto final da composição, e não da<br />
composição enquanto processo.” (Sloboda, 2008, p. 135). É nesta composição musical<br />
enquanto processo que estará centra<strong>do</strong> este artigo1, levan<strong>do</strong> em consi<strong>de</strong>ração<br />
177
178<br />
tanto teorias <strong>de</strong>senvolvidas na área da psicologia e psicologia da música, quanto<br />
pontos <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> compositores.<br />
O processo criativo da composição musical inclui to<strong>do</strong>s os procedimentos <strong>de</strong> ação<br />
<strong>do</strong> ato da criação musical, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a motivação até a obtenção <strong>do</strong> produto final, mas<br />
vai além, pois se seguem processos “externos” ao ato <strong>de</strong> compor. Traldi e Manzolli<br />
(2008) apresentam uma visão sistêmica da criação musical que integra também o<br />
intérprete e o ouvinte. De acor<strong>do</strong> com a função <strong>de</strong> cada integrante, classifica<strong>do</strong>s<br />
como agentes, os autores classificam os sistemas como abertos, media<strong>do</strong>s ou fecha<strong>do</strong>s.<br />
Os sistemas fecha<strong>do</strong>s são aqueles em que “a partitura representa um processo<br />
dinâmico <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> a priori”. O compositor tem as funções <strong>de</strong> observa<strong>do</strong>r, i<strong>de</strong>aliza<strong>do</strong>r<br />
e articula<strong>do</strong>r, o intérprete <strong>de</strong> observa<strong>do</strong>r e media<strong>do</strong>r, e o especta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> observa<strong>do</strong>r.<br />
Os sistemas media<strong>do</strong>s são aqueles on<strong>de</strong> o compositor dá margem ao<br />
intérprete para “atuar também como agente articula<strong>do</strong>r” (como na improvisação).<br />
Nos sistemas interativos, o especta<strong>do</strong>r também assume os papéis <strong>de</strong> articula<strong>do</strong>r e<br />
media<strong>do</strong>r, como o intérprete, que está “atrela<strong>do</strong> aos <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos dinâmicos<br />
produzi<strong>do</strong>s pela ação <strong>do</strong> especta<strong>do</strong>r” (p. 166). Os autores consi<strong>de</strong>ram que a música<br />
funciona como um sistema sonoro auto-organiza<strong>do</strong>, estan<strong>do</strong> caracterizadas as<br />
“relações sistêmicas auto-organizadas” nos momentos <strong>de</strong> articulação. Nele “o agente<br />
i<strong>de</strong>aliza<strong>do</strong>r ao imaginar o sistema não consegue <strong>do</strong>mínio completo sobre ele, mas<br />
‘<strong>de</strong>ci<strong>de</strong>’, orienta, impulsiona e controla a auto-transformação <strong>do</strong> organismo rumo<br />
a um nível <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> superior.” (p. 167).<br />
Po<strong>de</strong>-se dizer então que o processo composicional não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> exclusivamente <strong>do</strong><br />
compositor. Estão presentes também outras etapas, que correspon<strong>de</strong>m à execução,<br />
e a apreensão, seja esta por parte <strong>do</strong> compositor, <strong>do</strong> intérprete ou <strong>do</strong> especta<strong>do</strong>r.<br />
Po<strong>de</strong>-se ainda acrescentar que, após a apreensão da obra, por meio da fruição artística<br />
ou analítica, seja possível uma etapa <strong>de</strong> teorização. A partir da apreensão e/ou<br />
teorização, o compositor obtém um retorno sobre sua obra, e a informação apreendida<br />
passa a fazer parte então <strong>de</strong> um novo ciclo. Este retorno da obra terá interferi<strong>do</strong><br />
nas composições futuras <strong>do</strong> compositor, e talvez sobre a própria composição<br />
em questão.<br />
A <strong>de</strong>finição clássica <strong>de</strong> Bertalanffy (1973, p. 63-64), em que sistemas fecha<strong>do</strong>s são<br />
consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s “isola<strong>do</strong>s <strong>de</strong> seu ambiente”, enquanto um sistema aberto é aquele em<br />
que existe “um contínuo fluxo <strong>de</strong> entrada e <strong>de</strong> saída” e que “conserva-se mediante<br />
a construção e a <strong>de</strong>composição <strong>de</strong> componentes”, permite classificar a música, sob<br />
certos aspectos, como um sistema fecha<strong>do</strong>, pois, conforme Meyer (1956, p. vii),<br />
“não utiliza sinais lingüísticos” e “não emprega sinais ou símbolos referentes ao<br />
mun<strong>do</strong> não-musical <strong>do</strong>s objetos”, mas também como um sistema aberto, pois existe<br />
comunicação com o meio através <strong>de</strong> “significa<strong>do</strong>s emocionais, estéticos e intelectuais”<br />
(id.). Chaves (2008), ao comparar <strong>do</strong>is diferentes manuscritos <strong>do</strong> “Trio 1953”<br />
<strong>de</strong> Arman<strong>do</strong> Albuquerque, um data<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1953 e outro data<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1975, conclui<br />
que a “recomposição no texto musical <strong>do</strong> manuscrito <strong>de</strong> 1975 (. . .) <strong>de</strong>nota a rea-
ertura <strong>do</strong> processo criativo numa obra aparentemente encerrada e leva o Trio<br />
1953 para uma nova conformação interna, alteran<strong>do</strong> radicalmente sua fisionomia<br />
externa” (p. 211-212). Ven<strong>do</strong> por este ponto <strong>de</strong> vista, po<strong>de</strong>-se consi<strong>de</strong>rar a música<br />
classificada como sistema fecha<strong>do</strong> por Traldi e Manzolli (2008) também como um<br />
sistema aberto, já que permite transformações a posteriori, inclusive após a morte <strong>do</strong><br />
compositor, como ocorre na orquestração pontilhista <strong>de</strong> Webern (1935) para o<br />
Ricercare a seis, da Oferenda Musical <strong>de</strong> J. S. Bach, que po<strong>de</strong> ser quase classificada<br />
como uma nova obra. É claro que neste caso, o agente da transformação seria outro<br />
que não o compositor da obra, mas o ciclo criativo da obra continuaria.<br />
1. As etapas <strong>do</strong> processo criativo em composição musical:<br />
<strong>do</strong> to<strong>do</strong> às partes<br />
O processo <strong>de</strong> criação da composição po<strong>de</strong> ser dividi<strong>do</strong> em duas etapas principais:<br />
a geração, ou seja, os processos criativos intrínsecos ao compositor; e a difusão, os<br />
processos extrínsecos ao compositor, que po<strong>de</strong> ser subdividida em execução, teorização<br />
e apreensão. O suporte físico da composição aparece como um elo <strong>de</strong> ligação<br />
entre as etapas, já que é o resulta<strong>do</strong> final <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> geração, bem como o ponto<br />
<strong>de</strong> partida para a difusão. Sen<strong>do</strong> o processo composicional entendi<strong>do</strong> sistemicamente,<br />
apesar <strong>de</strong> seguir certa cronologia temporal, estas etapas <strong>de</strong>vem ser pensadas<br />
não linearmente, mas em constante interação. O esquema a seguir (fig. 1) resume<br />
o processo <strong>de</strong> criação em composição.<br />
Figura 1 – O processo criativo da composição musical: geração e difusão.<br />
A geração da composição consiste nos processos restritos ao compositor, embora<br />
tenha influência <strong>de</strong> fatores externos vivencia<strong>do</strong>s por ele, como audições <strong>de</strong> outras<br />
músicas ou experiências vividas no seu cotidiano. Depen<strong>de</strong> principalmente <strong>do</strong>s referenciais<br />
estéticos adquiri<strong>do</strong>s ao longo <strong>de</strong> sua formação, da experimentação feita<br />
durante o perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> composição e da relação <strong>do</strong> compositor com a própria obra,<br />
em uma espécie <strong>de</strong> diálogo entre cria<strong>do</strong>r e criação, que tem um fluxo contínuo em<br />
que o compositor cria uma idéia musical forman<strong>do</strong> aos poucos a obra, enquanto a<br />
obra em geração retorna ao compositor se reestruturan<strong>do</strong> em sua mente e freqüentemente<br />
geran<strong>do</strong> novas idéias em um ciclo <strong>de</strong> retroalimentação. O produto resultante<br />
é o suporte físico que permite a execução da obra – a partitura, arquivo <strong>de</strong><br />
música eletrônica, gravação ou equivalente – e serve como intermediário entre os<br />
processos <strong>de</strong> geração e difusão.<br />
179
180<br />
Na fase <strong>de</strong> difusão, ocorre a execução da obra, na qual se dá a interação entre composição,<br />
intérprete e público. Neste momento o compositor recebe o retorno sobre<br />
sua obra, julgan<strong>do</strong> os resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> seu trabalho a partir <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> obti<strong>do</strong> pela<br />
execução e da recepção <strong>do</strong> público, que sempre trará algum impacto sobre o compositor,<br />
mesmo quan<strong>do</strong> este não tem necessariamente a pretensão <strong>de</strong> obter aceitação.<br />
A próxima etapa, que não ocorre necessariamente em to<strong>do</strong>s os processos <strong>de</strong><br />
difusão, consiste na teorização sobre os processos, técnicas e materiais utiliza<strong>do</strong>s na<br />
obra, num conjunto <strong>de</strong> obras ou <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> grupo <strong>de</strong> compositores.<br />
A etapa final <strong>do</strong> processo consiste na apreensão que, na verda<strong>de</strong>, está inserida<br />
em todas as etapas. O compositor sempre está apreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o que está crian<strong>do</strong>, mas<br />
no final <strong>do</strong> processo, ele tem condições <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r o processo como um to<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>,<br />
como afirma Villar (1974, p. 269), <strong>de</strong>scobrir “elementos estéticos que haviam<br />
passa<strong>do</strong>s <strong>de</strong>spercebi<strong>do</strong>s no ato cria<strong>do</strong>r”, e to<strong>do</strong> o conhecimento gera<strong>do</strong> neste<br />
percurso retornará ao compositor para o início <strong>de</strong> um novo ciclo criativo, bem<br />
como influenciará o seu meio, pelo que foi apresenta<strong>do</strong>, numa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações contínuas.<br />
O próprio material teórico gera<strong>do</strong> servirá como suporte para suas idéias e<br />
para as idéias <strong>de</strong> outros compositores, os quais por sua vez, gerarão novos elementos<br />
a serem acrescenta<strong>do</strong>s aos já existentes. Freqüentemente, a própria obra que já<br />
estaria concluída, volta a sofrer alterações a partir <strong>de</strong>ste momento <strong>de</strong> apreensão, o<br />
que po<strong>de</strong> explicar as diferentes versões existentes <strong>de</strong> uma mesma obra musical.<br />
Existem processos psicológicos relaciona<strong>do</strong>s às diferentes etapas mencionadas: a<br />
emoção e os processos criativos, perceptivos e cognitivos (fig. 2). A emoção seria um<br />
momento <strong>de</strong> inspiração, algum sentimento ou algum fato que estimule a criativida<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> compositor. Villar comenta, quanto ao processo criativo artístico em geral,<br />
sobre um “esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> ânimo especial”, que po<strong>de</strong> ser amplia<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> existe alguma<br />
motivação maior (1974, p. 279). A esta etapa, segue-se o processo criativo em si, a<br />
transformação da idéia abstrata em música, o que implica obviamente na existência<br />
<strong>de</strong> processos perceptivos, já que o compositor necessita perceber os elementos<br />
musicais para transformá-los no suporte para a execução da obra. Os processos perceptivos<br />
também fazem parte da execução da obra por um intérprete, bem como da<br />
assimilação por parte <strong>do</strong> público. Os processos cognitivos são inerentes aos perceptivos,<br />
já que tu<strong>do</strong> o que é percebi<strong>do</strong> po<strong>de</strong>rá ser assimila<strong>do</strong> e transforma<strong>do</strong> em conhecimento,<br />
e se tornam ainda mais importantes no momento em que se faz uma<br />
teorização sobre o que foi cria<strong>do</strong> ou uma análise <strong>do</strong> produto composicional, o que<br />
po<strong>de</strong> ser feito pelo próprio compositor ou por outros teóricos, mas que retorna<br />
então ao compositor, ou a outros compositores fechan<strong>do</strong> o ciclo (e ao mesmo<br />
tempo inician<strong>do</strong> um novo ciclo). É importante frisar que, novamente, os processos<br />
estão presentes em todas as etapas, ao mesmo tempo, embora em cada momento<br />
um <strong>do</strong>s processos se <strong>de</strong>staque.
Figura 2 – processos psicológicos envolvi<strong>do</strong>s no processo criativo da composição<br />
O pensamento <strong>do</strong> processo criativo por etapas po<strong>de</strong> ser associa<strong>do</strong>, no campo da<br />
psicologia, à teoria <strong>do</strong>s estágios <strong>de</strong> Wallas (1926). Esta teoria tem si<strong>do</strong> uma das mais<br />
aceitas no campo da psicologia da criativida<strong>de</strong>. Nela, o processo criativo está dividi<strong>do</strong><br />
em preparação, incubação, iluminação e verificação. Na preparação, se investiga<br />
o problema <strong>de</strong> diferentes maneiras, como através <strong>de</strong> pesquisa, leituras e<br />
conversas. A fase seguinte, incubação, ocorre quan<strong>do</strong> o problema está lança<strong>do</strong>, mas<br />
permanece sem solução, o indivíduo sabe que algo está operan<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si tentan<strong>do</strong><br />
resolvê-lo. Esta fase caracteriza-se como um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> tensão psíquica (Villar,<br />
1974, p. 276) e, durante este perío<strong>do</strong>, o inconsciente estaria trabalhan<strong>do</strong> na<br />
resolução <strong>do</strong> problema. Quan<strong>do</strong> se obtém a resolução <strong>do</strong> problema, a etapa <strong>de</strong> iluminação<br />
foi atingida. Nesta etapa, a solução <strong>do</strong> problema foi resolvida pelo inconsciente<br />
apresentan<strong>do</strong>-se a nós “<strong>de</strong> maneira súbita e inesperada, como um raio em<br />
uma noite serena” (Villar (1974, p. 278). Nem sempre esta solução se apresenta <strong>de</strong><br />
forma nítida, sen<strong>do</strong> normalmente uma espécie <strong>de</strong> esboço <strong>de</strong> forma e conteú<strong>do</strong>. A<br />
verificação é a fase em que o indivíduo dá forma ao produto <strong>de</strong> sua iluminação. O<br />
produto será verifica<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> seus cânones estéticos, “mas não só estéticos,<br />
como éticos, políticos, religiosos, etc.”, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser rechaça<strong>do</strong> ou admiti<strong>do</strong> e, no segun<strong>do</strong><br />
caso, coloca<strong>do</strong> em prática. É importante ressaltar que estas quatro fases formam<br />
um ciclo que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia novos ciclos criativos, pois a solução <strong>de</strong> um<br />
problema origina um ou vários novos problemas a serem resolvi<strong>do</strong>s.<br />
Alguns compositores também divi<strong>de</strong>m o processo criativo em etapas. Koellreutter<br />
(1985) o divi<strong>de</strong> em quatro etapas: conscientização da idéia, concepção formal, escolha<br />
<strong>do</strong> repertório <strong>do</strong>s signos musicais e estruturação, ainda como pré-composição.<br />
Estas quatro etapas, no entanto, não mostram o processo como um to<strong>do</strong>, que<br />
aparece no fluxograma a seguir (fig. 3).<br />
O gráfico <strong>de</strong> Koellreutter po<strong>de</strong> ser pensa<strong>do</strong> como complementar ao apresenta<strong>do</strong> no<br />
início <strong>de</strong>sta seção: vem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> extramusical, passa pelo processo criativo <strong>do</strong><br />
compositor e retorna ao mun<strong>do</strong> extramusical, enquanto o outro parte <strong>do</strong> compositor,<br />
passa ao mun<strong>do</strong> extramusical e retorna ao compositor.<br />
Para Reynolds (2002), o processo <strong>de</strong> composição também ocorre em diferentes etapas.<br />
Segun<strong>do</strong> ele,<br />
uma obra musical é realizada gradualmente ao longo <strong>do</strong> tempo, <strong>de</strong> maneira que,<br />
sem dúvida, varia para cada compositor: parte <strong>de</strong>scoberta, parte construção e,<br />
até mesmo, parte artimanha.(. . .). Mas, na maioria <strong>do</strong>s casos existe um necessário<br />
(embora <strong>de</strong> forma alguma uniforme) estagiamento envolvi<strong>do</strong> no processo<br />
<strong>de</strong> completar uma composição musical (2002, p. 4).<br />
181
182<br />
Figura 3 – O processo criativo conforme Koellreutter (1985).<br />
O primeiro estágio seria o reconhecimento <strong>de</strong> uma intenção expressiva a ser utilizada<br />
na peça, que uma vez <strong>de</strong>finida, leva a três importantes questões: qual formato<br />
global se apropria à obra; quais os materiais apropria<strong>do</strong>s; e quais os processo <strong>de</strong> elaboração<br />
serão melhores para trabalhar com os materiais em direção a forma em<br />
larga escala. A forma global da composição seria, ao mesmo tempo, o ponto <strong>de</strong> partida<br />
e <strong>de</strong> chegada <strong>do</strong> processo composicional, pois o compositor enten<strong>de</strong> que antes<br />
<strong>de</strong> começar a manusear os materiais, <strong>de</strong>ve ter uma boa idéia <strong>do</strong> <strong>de</strong>senho formal para<br />
o qual a obra <strong>de</strong>ve evoluir. A partir <strong>do</strong> que Reynolds chama <strong>de</strong> impetus e da “intenção<br />
expressiva” que ele gera, o compositor cria verda<strong>de</strong>iros <strong>de</strong>senhos formais na<br />
elaboração da estrutura da obra, num processo gradual <strong>de</strong> transformação da imagem<br />
inicial <strong>do</strong> impetus em direção à estrutura e <strong>de</strong>pois aos materiais sonoros. Este méto<strong>do</strong><br />
po<strong>de</strong> ser observa<strong>do</strong> nos esboços da Sinfonia Mythos, inspirada nas pedras Futami<br />
Ga Ura, <strong>do</strong> Litoral Japonês (fig. 4 a 7).
Figura 4 – Foto das Ilhas Gêmeas japonesas e primeiro<br />
esboço estrutural da sinfonia2.<br />
Figura 5 – Esboço estrutural inserin<strong>do</strong> proporções <strong>de</strong> seções a partir <strong>de</strong> logaritmos.<br />
Figura 6 – Esboço estrutural <strong>do</strong> primeiro movimento, com maior <strong>de</strong>talhamento<br />
das proporções entre seções e materiais musicais.<br />
183
184<br />
Figura 7 – Detalhamento da primeira seção, incluin<strong>do</strong> proporções e <strong>de</strong>senhos<br />
gráficos <strong>do</strong>s gestos musicais, já preven<strong>do</strong> a orquestração.<br />
Os diferentes esboços gráficos da estrutura da Sinfonia Mitos mostram como a composição<br />
é gradualmente visualizada pelo compositor, e em como o processo se direciona<br />
da macro para a microestrutura. O passo seguinte é o momento em que a<br />
estrutura é preenchida pela notação musical retornan<strong>do</strong> da microestrutura à macroestrutura<br />
para preencher o to<strong>do</strong>.<br />
No caso <strong>de</strong> Reynolds, não existe um número <strong>de</strong> estágios fixo, como na teoria <strong>do</strong>s estágios<br />
<strong>de</strong> Wallas. Provavelmente os estágios <strong>de</strong> Wallas se repetem em cada um <strong>do</strong>s<br />
estágios <strong>do</strong> processo criativo <strong>de</strong> Reynolds.<br />
2. Motivação e inspiração<br />
Koellreutter e Reynolds incluem elementos <strong>de</strong> motivação para a composição da<br />
obra como parte importante <strong>do</strong> processo criativo, a qual po<strong>de</strong> ser relacionada à inspiração.<br />
Koellreutter se refere a esta motivação como o mun<strong>do</strong> extramusical, ou<br />
campo das idéias e Reynolds como o impetus. Segun<strong>do</strong> Reynolds, o impetus é “a essência<br />
concentrada, radiante, da qual o to<strong>do</strong> po<strong>de</strong> jorrar e para a qual, uma vez iniciada<br />
a composição, o to<strong>do</strong> em evolução é continuamente feito responsivo, ou<br />
mesmo responsável”. O impetus guia “a coerência <strong>do</strong> to<strong>do</strong> e simultâneamente dirige<br />
a integrida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s <strong>de</strong>talhes que se acumulam” (Reynolds, 2002, p. 8). Este seria então<br />
um <strong>do</strong>s pontos <strong>de</strong> partida para o processo criativo, o qual se expan<strong>de</strong> através <strong>de</strong> diferentes<br />
etapas, como também se propõe em algumas abordagens psicológicas.<br />
Segun<strong>do</strong> Deci e Ryan (2000, p. 69), “motivação diz respeito à energia, direção, persistência<br />
e equifinalida<strong>de</strong> – to<strong>do</strong>s aspectos <strong>de</strong> ativação e intenção” e tem si<strong>do</strong> “um
problema central e perene no campo da psicologia”, mas talvez o mais importante<br />
sejam suas consequências: “motivação produz”.<br />
Em sua Teoria da Auto<strong>de</strong>terminação, estes autores classificam a motivação em duas<br />
categorias principais: motivação intrínseca e motivação extrínseca. A motivação<br />
intrínseca é consi<strong>de</strong>rada a mais forte, e segun<strong>do</strong> eles, “talvez nenhum fenômeno<br />
simples reflita o potencial positivo da natureza humana como a motivação intrínseca,<br />
a tendência inerente <strong>de</strong> procurar novida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>safios, <strong>de</strong> ampliar e exercitar<br />
as próprias capacida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> explorar e apren<strong>de</strong>r” (Ryan e Deci, 2000, p. 70). Esta<br />
motivação é consi<strong>de</strong>rada inata, mas po<strong>de</strong> ser intensificada ou diminuída por diferentes<br />
fatores ambientais. Os principais fatores i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>s pelos autores são competência,<br />
autonomia e relacionamento. O indivíduo <strong>de</strong>ve ter a sensação <strong>de</strong> ter<br />
competência e autonomia para que tenha sua motivação intrínseca estimulada, mas<br />
a sensação <strong>de</strong> estar liga<strong>do</strong> a um contexto <strong>de</strong> relações na socieda<strong>de</strong> também colabora<br />
(Ryan e Deci, 2000, p. 70-71). Em compensação alguns fatores externos, como a<br />
“pressão social para fazer ativida<strong>de</strong>s que não são interessantes e para assumir uma<br />
varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> novas responsabilida<strong>de</strong>s”, po<strong>de</strong>m diminuir este tipo <strong>de</strong> motivação,<br />
principalmente por minar o sentimento <strong>de</strong> autonomia. Estes fatores são caracteriza<strong>do</strong>s<br />
como motivação extrínseca e se referem “à performance <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong><br />
para obter um resulta<strong>do</strong> separável, portanto, contrasta com a motivação intrínseca,<br />
a qual se refere a fazer uma ativida<strong>de</strong> pela satisfação inerente da ativida<strong>de</strong> em si”<br />
(Ryan e Deci, 2000, p. 71). No entanto, nem sempre a motivação extrínseca é consi<strong>de</strong>rada<br />
negativa. Deci e Ryan criaram um continuum <strong>de</strong> diferentes tipos <strong>de</strong> motivação,<br />
in<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a amotivação, passan<strong>do</strong> por diferentes tipos <strong>de</strong> motivação<br />
extrínseca, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o estilo regulatório, até chegar na motivação intrínseca<br />
(fig. 8). O tipo <strong>de</strong> motivação mais próximo da intrínseca é o das “regulações integradas”,<br />
no qual “as regulações i<strong>de</strong>ntificadas são completamente assimiladas ao ego,<br />
o que significa que elas foram avaliadas e levadas à congruência com outros valores<br />
pessoais” (Ryan e Deci, 2000, p. 73).<br />
Figura 8 – Continuum <strong>de</strong> auto<strong>de</strong>terminação (fonte: RYAN e DECI, 2000, p. 72).<br />
185
186<br />
Alguns tipos <strong>de</strong> motivação extrínseca na composição musical são: compor com o<br />
objetivo <strong>de</strong> ganhar um concurso por uma premiação (regulação externa) ou em<br />
busca <strong>de</strong> prestígio (regulação introjetada); utilização <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada técnica<br />
ou estrutura com objetivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento técnico pessoal (regulação i<strong>de</strong>ntificada);<br />
a utilização <strong>de</strong> uma concepção estética nortea<strong>do</strong>ra para a composição (regulação<br />
integrada).<br />
No livro Muse that sings (McCutchan, 1999), os relatos <strong>do</strong>s compositores nos dão<br />
uma excelente visão <strong>do</strong> quão pessoal é o pensamento <strong>do</strong>s compositores sobre seu<br />
processo criativo, e como a motivação po<strong>de</strong> diferir entre eles. Algumas passagens <strong>do</strong><br />
livro foram selecionadas para <strong>de</strong>monstrar tal varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensamentos:<br />
Corigliano: Eu o<strong>de</strong>io ter <strong>de</strong> me confrontar com minhas improprieda<strong>de</strong>s. Quan<strong>do</strong><br />
começo uma peça e ainda não fiz minhas <strong>de</strong>cisões, tu<strong>do</strong> que eu estou tentan<strong>do</strong><br />
fazer parece ruim (. . .) Eu realmente o<strong>de</strong>io compor. Eu amo ter composto.<br />
Quan<strong>do</strong> uma peça está perto <strong>do</strong> fim, eu me sinto bem, porque eu construí esta<br />
coisa, e eu posso ver isto. Mas até ver isto, eu não sei se eu po<strong>de</strong>rei construir<br />
qualquer coisa novamente. (p. 35).<br />
Bolcom: Eu não sei como eu componho – eu somente faço isto. (p. 24).<br />
John Adams: o ato <strong>de</strong> compor tornou-se associa<strong>do</strong> em minha mente com meu <strong>de</strong>senvolvimento<br />
como ser humano (. . .). Eu sinto que, se eu fico por um perío<strong>do</strong><br />
significativo sem compor, <strong>de</strong> alguma forma eu perdi algo irrecuperável. Para<br />
mim, o trabalho criativo é um espelho <strong>de</strong> minha evolução espiritual. . . (p. 64).<br />
Corigliano parece centrar a sua motivação na obtenção <strong>do</strong> produto final da composição,<br />
não obten<strong>do</strong> satisfação até que este produto seja alcança<strong>do</strong>, o que parece<br />
diminuir sua motivação intrínseca no processo <strong>de</strong> composição. Contrastan<strong>do</strong>, para<br />
Bolcom o processo parece ocorrer naturalmente, caracterizan<strong>do</strong> uma total interiorização<br />
da motivação. John Adams manifesta a existência <strong>de</strong> regulações integradas,<br />
neste caso, a idéia da associação <strong>do</strong> processo composicional com o seu<br />
<strong>de</strong>senvolvimento espiritual.<br />
A motivação po<strong>de</strong> ser associada também à inspiração. O livro Music and Inspiration<br />
(Harvey, 1999) está centra<strong>do</strong> especialmente no papel da inspiração envolvida<br />
no processo composicional. Justamente a <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> que é a inspiração é algo que<br />
é <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> <strong>de</strong> la<strong>do</strong> pela maioria <strong>do</strong>s compositores, talvez por ser uma experiência<br />
“difícil <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver, embora relativamente fácil <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar” (Harvey, 1999, p. x).<br />
Uma resposta mais genérica é dada já na introdução <strong>do</strong> livro: “inspiração po<strong>de</strong> ser<br />
<strong>de</strong>finida como aquilo que causa, provoca, força o artista a criar – é o catalisa<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />
processo criativo”. Mas o autor adverte que esta resposta não tem a “verda<strong>de</strong> completa”,<br />
pois “exclui um elemento essencial para qualquer <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> inspiração: o<br />
elemento <strong>de</strong> mistério” (p. ix). Este tipo <strong>de</strong> inspiração é repentina e “chega misteriosamente”<br />
– é “a qualida<strong>de</strong> impredizível que marca a genuína inspiração <strong>do</strong> compositor”<br />
e que cria soluções que “parecem inicialmente não relacionadas ao seu
entorno”, “mas que traz uma solução satisfatória aos problemas previamente experiencia<strong>do</strong>s”<br />
(p. xiv) e po<strong>de</strong> ser associada ao inconsciente. Harvey afirma que “a maioria<br />
<strong>do</strong>s compositores tem admiti<strong>do</strong> que requerem a ajuda da inspiração inconsciente<br />
para completar uma obra para sua satisfação pessoal” (1999, p. 8) e que a “inspiração<br />
é freqüentemente resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma colaboração entre a mente inconsciente e<br />
a mente consciente” (1999, p. 4).<br />
3. Do to<strong>do</strong> às partes e das partes para o to<strong>do</strong>:<br />
inconsciente, intuição e intelecto<br />
O inconsciente é, portanto, uma importante ferramenta no processo composicional,<br />
responsável por essa inspiração e motivação inconsciente, e também por manter<br />
uma unida<strong>de</strong> na continuida<strong>de</strong> das obras <strong>do</strong> compositor, já que a iluminação <strong>do</strong><br />
artista “já está <strong>de</strong> certa forma canalizada a partir <strong>do</strong>s estratos mais superficiais <strong>do</strong> inconsciente”<br />
e não lhe ocorre senão o que mais se encaixa em “suas preferências estéticas”<br />
(Villar, 1974, p. 282).<br />
Arnheim apresenta idéia semelhante ao afirmar que “a cognição estabelece uma<br />
distinção entre as metas <strong>de</strong>sejáveis e as hostis, e enfoca aquilo que é relevante em termos<br />
vitais. Ela escolhe o que é importante, e assim reestrutura a imagem a serviço<br />
das necessida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> perceptor”. (1989, p. 18). Segun<strong>do</strong> o autor, liga<strong>do</strong> à psicologia<br />
da Gestalt, a intuição seria a responsável pela seleção <strong>de</strong> aspectos importantes <strong>do</strong><br />
to<strong>do</strong>, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com objetivos individuais, ou “forças <strong>de</strong>terminantes, cognitivas<br />
tanto como motivacionais” (id.), e por sua reestruturação <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a necessida<strong>de</strong>.<br />
A psicologia da Gestalt se torna altamente relevante aqui, pois tem si<strong>do</strong> um campo<br />
freqüentemente utiliza<strong>do</strong> na área <strong>de</strong> criação artística. Na visão gestaltista,<br />
a criativida<strong>de</strong> é vista como a procura <strong>de</strong> uma solução para uma gestalt, ou forma<br />
incompleta. O indivíduo criativo perceberia o problema como um to<strong>do</strong>, as forças<br />
e tensões <strong>de</strong>ntro da dinâmica <strong>do</strong> problema, e tentaria achar a solução mais<br />
elegante para restaurar a harmonia <strong>do</strong> to<strong>do</strong> (Wechsler, 1998, p. 29).<br />
O processo criativo viria <strong>de</strong> um impulso inato para obter uma gestalt completa e o<br />
indivíduo criativo estaria sempre buscan<strong>do</strong> soluções para as falhas <strong>de</strong> uma gestalt incompleta<br />
através da analise <strong>de</strong> suas relações internas (como segregação, unificação<br />
ou centralização). A solução <strong>do</strong> problema vem como um insight (Wechsler, 1998,<br />
p. 29-30). Existe aqui uma relação clara entre a teoria <strong>do</strong>s estágios e a Gestalt, pois<br />
este insight se aproxima muito <strong>do</strong> estágio da iluminação e, como na teoria <strong>do</strong>s estágios,<br />
é resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> resolução <strong>de</strong> problemas que, como se <strong>de</strong>duz<br />
da afirmação <strong>de</strong> Arnheim, está condicionada ao conhecimento e à motivação <strong>do</strong><br />
artista. Assim, o que o autor chama <strong>de</strong> intuição, permite que o artista tenha uma<br />
idéia global da obra <strong>de</strong> arte que criou ou está crian<strong>do</strong>, perceben<strong>do</strong> a inter-relação e<br />
187
188<br />
o equilíbrio entre as partes que a constituem e mol<strong>de</strong> a obra <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seus paradigmas<br />
estéticos, sem que seja necessário tomar consciência <strong>de</strong>les sempre que <strong>de</strong>seje<br />
criar. No entanto, existe certa limitação no pensamento intuitivo: cada elemento<br />
<strong>de</strong> uma situação po<strong>de</strong> “parecer diferente cada vez que surge num contexto diferente”,<br />
tornan<strong>do</strong> a generalização, que é um “suporte fundamental da cognição”, “difícil<br />
ou até mesmo impossível” (Arnheim, 1989, p. 18). É neste ponto entra em<br />
ação o intelecto.<br />
O intelecto preenche a função da classificação <strong>de</strong> elementos, agrupan<strong>do</strong> as variações<br />
“sob uma <strong>de</strong>nominação comum”. Assim po<strong>de</strong>mos “reconhecer o que foi percebi<strong>do</strong><br />
no passa<strong>do</strong>” e “aplicar ao presente o que apren<strong>de</strong>mos antes”. Para que isto se torne<br />
possível, o pensamento racional isola os elementos importantes <strong>do</strong> to<strong>do</strong>, e lhes dá<br />
“a estabilida<strong>de</strong> que permite a sua persistência através das mudanças calei<strong>do</strong>scópicas<br />
<strong>do</strong> ambiente” (Arnheim, 1989, p. 18-19). Porém o intelecto só po<strong>de</strong> lidar com os<br />
elementos que constituem um to<strong>do</strong> linearmente, como num cálculo <strong>de</strong> matemática.<br />
Na composição musical, é muito importante este processo <strong>de</strong> subdivisão, pois é ele<br />
que torna possível colocar em prática uma idéia musical obtida intuitivamente.<br />
É comum um compositor criar, intuitivamente, uma imagem mental <strong>do</strong> to<strong>do</strong> que<br />
será gradualmente transformada no produto artístico. Ferneyhough diz que a idéia<br />
inicial para uma peça, po<strong>de</strong> variar <strong>de</strong> peça para peça, mas que geralmente ele<br />
ten<strong>de</strong> a perceber uma massa, uma quase tangível massa escultural ou esculpida,<br />
em algum tipo <strong>de</strong> espaço imagina<strong>do</strong>, (. . .) Po<strong>de</strong> ser uma massa <strong>de</strong> cores instrumentais<br />
indiferenciadas, po<strong>de</strong> ser um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> registro, po<strong>de</strong> ser algum tipo<br />
<strong>de</strong> transformação <strong>de</strong> um tipo ou esta<strong>do</strong> em outro, <strong>de</strong> alguma forma congela<strong>do</strong><br />
em uma experiência momentânea. (Ferneyhough, 1995, p. 260).<br />
Sloboda, a partir <strong>de</strong> relatos pessoais <strong>de</strong> Mozart, Beethoven, Richard Strauss e Roger<br />
Sessions conclui que existem <strong>do</strong>is estágios <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seus processos composicionais:<br />
a “inspiração”3, na qual uma idéia ou tema aflora à consciência em forma <strong>de</strong><br />
esqueleto, e a “execução”, “durante a qual a idéia é submetida a uma série <strong>de</strong> processos<br />
mais conscientes e <strong>de</strong>libera<strong>do</strong>s <strong>de</strong> extensão e transformação”. Estes processos<br />
fazem parte <strong>de</strong> um repertório <strong>de</strong> recursos composicionais adquiri<strong>do</strong>s pelo<br />
compositor. O estágio <strong>de</strong> inspiração po<strong>de</strong> ser compara<strong>do</strong> então ao pensamento intuitivo<br />
<strong>de</strong> Arnheim, e o <strong>de</strong> “execução” ao pensamento intelectual. O “esqueleto” ou<br />
“massa escultural” obti<strong>do</strong> intuitivamente <strong>de</strong>ve passar por processos intelectuais para<br />
tornar possível a geração <strong>do</strong> suporte físico da composição.<br />
Voltan<strong>do</strong> ao processo composicional <strong>de</strong> Reynolds, po<strong>de</strong>mos dizer que o compositor,<br />
ao criar cada novo gráfico, resolveu um problema composicional, que consistia<br />
em preencher o gráfico anterior. Cada espaço preenchi<strong>do</strong> no gráfico foi obti<strong>do</strong> através<br />
<strong>de</strong> procedimentos intelectuais, mas a sua adaptação e enquadramento em relação<br />
ao to<strong>do</strong> foram condiciona<strong>do</strong>s à sua percepção intuitiva da relação entre as partes.<br />
Ou seja, a cada passo <strong>do</strong> processo, a intuição mantém a imagem <strong>do</strong> to<strong>do</strong> como re-
gula<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s procedimentos <strong>do</strong> intelecto, fazen<strong>do</strong> com que se vá continuamente <strong>do</strong><br />
to<strong>do</strong> às partes e das partes ao to<strong>do</strong>.<br />
4. O processo criativo em evolução<br />
Na composição <strong>de</strong> uma obra, o processo criativo ocorre em diferentes etapas e estas<br />
etapas ocorrem também em diferentes níveis <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> ciclo criativo <strong>de</strong> uma obra,<br />
como se observa, por exemplo, no caso relata<strong>do</strong> <strong>de</strong> Reynolds. Po<strong>de</strong>mos ampliar<br />
ainda este processo ao ciclo criativo completo, incluin<strong>do</strong> as etapas <strong>de</strong> geração e difusão<br />
e o <strong>de</strong>senvolvimento histórico <strong>do</strong> compositor.<br />
Conforme Manzolli, na composição o “<strong>de</strong>senvolvimento estrutural está vincula<strong>do</strong><br />
a uma estratégia <strong>de</strong> escolha, que é contextualizada <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> próprio escopo da<br />
obra, e é <strong>de</strong>rivada da experiência sonora, musical e cultural <strong>do</strong> compositor”. Ao começar<br />
a obra “seus elementos estruturais começam a tomar forma. A composição<br />
sofre influências ambientais, que fazem com que cada processo criativo seja único”.<br />
Esta história única, no entanto, está interligada ao <strong>de</strong>senvolvimento histórico <strong>do</strong><br />
compositor, já que “entre o <strong>do</strong>mínio sonoro e a estratégia <strong>de</strong> escolha encontram-se<br />
os méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> estruturação musical e este conhecimento faz parte da bagagem teórica<br />
e/ou prática <strong>do</strong> compositor” (1997, p. 2).<br />
A idéia <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento vital <strong>do</strong> processo criativo foi incluída, no campo da<br />
psicologia, pela “teoria <strong>do</strong>s sistemas emergentes” <strong>de</strong> Gruber, que nasceu <strong>de</strong> uma<br />
pesquisa <strong>do</strong> autor sobre a personalida<strong>de</strong> criativa <strong>de</strong> Darwin (Gruber, 1980). Segun<strong>do</strong><br />
esta teoria, o processo criativo <strong>de</strong>ve ser analisa<strong>do</strong> através <strong>de</strong> sua evolução e<br />
transformações ao longo da história, ou <strong>de</strong> um perío<strong>do</strong> significativo <strong>de</strong> tempo, <strong>do</strong><br />
indivíduo, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> tomadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões erradas e falsos começos, bem como<br />
o surgimento <strong>de</strong> novos objetivos (que resultam nos sistemas emergentes). Isto nos<br />
leva <strong>de</strong> novo à importância <strong>do</strong> material <strong>de</strong>scarta<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma obra acabada, e traz a<br />
idéia <strong>de</strong> evolução contínua <strong>do</strong> processo criativo ao longo da vida <strong>do</strong> compositor,<br />
adquirida pela transformação <strong>de</strong> sua personalida<strong>de</strong> e aquisição <strong>de</strong> conhecimentos<br />
através da interação com o ambiente.<br />
5. Teorias unificadas<br />
Webster (1989) criou um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> pensamento criativo em música envolven<strong>do</strong>,<br />
além <strong>de</strong> elementos <strong>de</strong> teorias já discutidas aqui, a presença <strong>do</strong>s pensamentos convergente<br />
e divergente da teoria cognitiva <strong>de</strong>senvolvida a partir <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Guilford4.<br />
Nesta teoria, a criativida<strong>de</strong> é normalmente atribuída ao pensamento<br />
divergente, no qual existe uma formulação <strong>de</strong> várias alternativas para a solução <strong>de</strong><br />
um problema. No pensamento convergente ocorre uma formulação <strong>de</strong> conclusões<br />
lógicas a partir das informações e a procura da melhor resposta para o problema<br />
(Wechsler, 1998). Segun<strong>do</strong> Wechsler, existe uma tendência atual <strong>de</strong> criarem-se es-<br />
189
190<br />
tratégias unin<strong>do</strong> os <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> pensamento para se obter a melhor solução para<br />
um problema, propon<strong>do</strong> a utilização <strong>do</strong> pensamento divergente, exploran<strong>do</strong> novas<br />
possibilida<strong>de</strong>s e procuran<strong>do</strong> múltiplas respostas e <strong>de</strong>pois o pensamento convergente,<br />
que ajuda a avaliar qual <strong>de</strong>ssas possibilida<strong>de</strong>s é a mais eficaz, ou mais a<strong>de</strong>quada<br />
à situação. A tensão entre os <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> pensamento levam à avaliação “<strong>do</strong>s<br />
pensamentos verbal e funcional basea<strong>do</strong>s nos conceitos <strong>de</strong> fluência, flexibilida<strong>de</strong>,<br />
elaboração e originalida<strong>de</strong>” (Webster, 1989, p. 42). O diagrama cria<strong>do</strong> por Webster<br />
(fig. 9) mostra como diferentes teorias sobre o processo criativo são complementares<br />
e formam um “processo dinâmico <strong>de</strong> alternância entre pensamentos<br />
divergente e convergente, moven<strong>do</strong>-se em estágios ao longo <strong>do</strong> tempo, possibilitadas<br />
por certas habilida<strong>de</strong>s (tanto inatas como aprendidas) e por certas condições, e<br />
resultan<strong>do</strong> em um produto final” (Webster, 1989, p. 66).<br />
Figura 9 – Mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> processo criativo segun<strong>do</strong> Webster (1989, p. 67)<br />
Um estu<strong>do</strong> importante que também sintetiza diferentes teorias da psicologia foi<br />
feito por Collins (2005). O autor pesquisou o processo criativo em um compositor<br />
ao longo <strong>de</strong> três anos, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> materiais utiliza<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>scarta<strong>do</strong>s, além <strong>de</strong>
elatos regulares <strong>do</strong> compositor nas diferentes etapas da composição, constatan<strong>do</strong><br />
a presença <strong>do</strong>s procedimentos da teoria da Gestalt em complementarida<strong>de</strong> com a<br />
teoria <strong>do</strong>s estágios. Também constata que, no processo “em larga escala” existe uma<br />
“proliferação e ramificação <strong>de</strong> problemas e subseqüentes soluções” (p. 211), <strong>de</strong>ntro<br />
da perspectiva <strong>do</strong>s sistemas emergentes <strong>de</strong> Gruber.<br />
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
O processo criativo da composição musical consiste em uma complexa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> elementos,<br />
envolven<strong>do</strong> aspectos técnicos musicais e aspectos psicológicos e sociais. Enquanto<br />
algumas teorias aceitas da área da psicologia analisam o processo criativo<br />
i<strong>de</strong>ntifican<strong>do</strong> estruturas fixas <strong>de</strong> ações ou procedimentos padroniza<strong>do</strong>s, como a<br />
teoria <strong>do</strong>s estágios ou a teoria da Gestalt, os compositores ten<strong>de</strong>m a consi<strong>de</strong>rar aspectos<br />
mais pessoais <strong>do</strong> processo. Os aspectos fixos po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s mecanismos<br />
mentais padroniza<strong>do</strong>s que se nutrem <strong>de</strong> elementos adquiri<strong>do</strong>s ao longo <strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento vital <strong>do</strong> compositor, o que permite a evolução <strong>do</strong> processo criativo<br />
pessoal. Na área da composição esses elementos estão associa<strong>do</strong>s ao conhecimento<br />
teórico e às concepções estéticas individuais <strong>do</strong> compositor, que estão<br />
mudan<strong>do</strong> freqüentemente ao longo <strong>de</strong> sua vida.<br />
Existem muitos trabalhos que levam em consi<strong>de</strong>ração apenas o perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> criação<br />
<strong>de</strong> uma obra, porém o processo se esten<strong>de</strong> além disso, consistin<strong>do</strong> <strong>de</strong> ciclos em diferentes<br />
níveis, incluin<strong>do</strong> não só a geração da obra, mas também o processo <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>a<strong>do</strong><br />
após sua difusão, o qual permite uma continuida<strong>de</strong>, através da troca entre<br />
o compositor e o seu meio. O processo criativo da composição a nível macroscópico<br />
é, portanto, um sistema aberto, que permite uma constante mudança ao longo <strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> compositor e, porque não, no <strong>de</strong>senvolvimento histórico da<br />
música.<br />
1 O artigo consiste <strong>de</strong> parte <strong>de</strong> meu projeto <strong>de</strong> pesquisa no <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> em composição da<br />
UFRGS, sob orientação <strong>de</strong> Celso L. Chaves, no qual esta questão é aprofundada.<br />
2 Figuras extraídas <strong>de</strong> Reynolds (2002), p. 17-25.<br />
3 O termo inspiração utiliza<strong>do</strong> aqui por Sloboda já inclui a presença <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>finição estrutural<br />
incipiente, e novamente existe uma classificação em estágios.<br />
4 Guilford (1967) propôs o estu<strong>do</strong> da mente humana em três dimensões, as operações envolvidas<br />
no ato <strong>de</strong> pensar (incluin<strong>do</strong> os pensamentos convergente e divergente), o conteú<strong>do</strong><br />
sobre o qual se pensa, e os produtos resultantes <strong>de</strong>ste processo.<br />
Arnheim, Ru<strong>do</strong>lf. Intuição e Intelecto na Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989.<br />
Bertalanffy, Ludwig von. Teoria geral <strong>do</strong>s sistemas. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1975.<br />
Referências<br />
191
192<br />
Chaves, C. G. L.. Crítica genética e composição musical: o trio 1953 <strong>de</strong> Arman<strong>do</strong> Albuquerque.<br />
In: Norton Du<strong>de</strong>que (Org.), <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> pesquisa em música, SIM-<br />
PEMUS, 5, 2008, Curitiba. Curitiba: De<strong>Artes</strong> – UFPR, 2008, p.210-213.<br />
Disponível em http://www.artes.ufpr.br/música/simpemus5_arquivos/<br />
anais%20<strong>do</strong>%20SIMPEMUS5%20anaes.html. Acesso em: 15 set. 2009.<br />
Bach, J.S. Fuga (ricercata) a 6 voci – N° 2 aus <strong>de</strong>m Musikalichen Opfer. Orquestrada por A.<br />
Webern (1935). Partitura. Universal, 1935.<br />
Collins, David. A synthesis process mo<strong>de</strong>l of creative thinking in music composition. Psychology<br />
of Music 33, p. 193-216, 2005.<br />
Ferneyhough, Brian. Interview with Richard Toop (1983). In: Boros, James; Toop, Richard<br />
(ed.). Brian Ferneyhough: Collected writings. Amsterdam: Harwood Aca<strong>de</strong>mic Publishers,<br />
1995, p. 250-289.<br />
Gruber, H.E . Darwin on Man: A Psychological Study of Scientific Creativity. Chicago: University<br />
of Chicago Press, 1980.<br />
Harvey, Jonathan. Music and inspiration. Lon<strong>do</strong>n ; New York: Faber and Faber, 1999.<br />
Koellretter, H. J. Introdução à estética e á composição musical contemporânea. Porto Alegre:<br />
Movimento, 1985.<br />
Manzolli, J. Criativida<strong>de</strong> Sonora e Auto-organização. Campinas: NICS (Núcleo Interdisciplinar<br />
<strong>de</strong> Comunicação Sonora, 1997. Disponível em http://www.nics.unicamp.br/<br />
acervo/arquivos/02.97.v1_criativid.pdf Acessa<strong>do</strong> em 20 nov. 2009.<br />
McCutchan, Ann. The muse that sings: composers speak about the creative process. Cary: Oxford<br />
University Press, inc., 1999.<br />
Meyer, Leonard B. Emotion and meaning in music. Chicago: The University of Chicago<br />
Press, 1956.<br />
Reynolds, Roger. Form and method: composing music. New York: Routledge, 2002.<br />
Ryan, R. M.; Deci, E. L. Self-<strong>de</strong>termination theory and the facilitation of intrinsic motivation,<br />
social <strong>de</strong>velopment, and well-being. American Psychologist 55 (January 2000), p.<br />
68-78.<br />
Sloboda, John A. A mente musical: a psicologia cognitiva da música. Londrina: Editora da<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Londrina, 2008.<br />
Traldi, César A.; Manzolli, Jônatas. Reflexões sobre sistemas sonoros e autoorganização. In:<br />
Norton Du<strong>de</strong>que (Org.), <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> pesquisa em música, SIMPEMUS, 5,<br />
2008, Curitiba. Curitiba: De<strong>Artes</strong> – UFPR, 2008, p. 165-168. Disponível em<br />
http://www.artes.ufpr.br/música/simpemus5_arquivos/anais%20<strong>do</strong>%20<br />
SIMPEMUS5%20anaes.html. Acessa<strong>do</strong> em 10 julho <strong>de</strong> 2009.<br />
Villar, Alfonso Alvarez. Psicologia <strong>de</strong>l arte. Madrid: Biblioteca Nueva, 1974.<br />
Wallas, G. The art of thought. New York: Harcourt Brace, 1926.<br />
Webster, Peter R. Creative thinking in music: the assessment question. In: Suncoast music<br />
education forum, 1989, p. 40-74.<br />
Wechsler, Solange Múglia. Criativida<strong>de</strong>: <strong>de</strong>scobrin<strong>do</strong> e encorajan<strong>do</strong>. Campinas: Psy, 1998.
O instrumentista e sua obra metamórfica:<br />
por um paradigma aberto para a performance musical<br />
Cristiano Sousa <strong>do</strong>s Santos<br />
cristiano.sousa.santos@gmail.com<br />
PPGMUS/Escola <strong>de</strong> Música, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia<br />
Resumo<br />
Este artigo aborda a natureza da produção <strong>do</strong>s performers, bem como seus possíveis<br />
<strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos. Os instrumentistas que interpretam obras alheias, principalmente os<br />
classifica<strong>do</strong>s como eruditos, confrontam-se com a seguinte questão ao <strong>de</strong>parar-se com<br />
a partitura: até que ponto é permiti<strong>do</strong> criar sobre um texto musical? A questão que aparenta<br />
ser trivial revela-se muitas vezes polêmica. Infelizmente, a idéia <strong>de</strong> que o instrumentista<br />
é um meio que liga a vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> compositor até o público ainda perdura na<br />
manifestação musical erudita. A legitimação <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> intérprete, a premiação em<br />
concursos <strong>de</strong> música, as pesquisas musicológicas, enfim, várias situações referentes a<br />
essa ativida<strong>de</strong> são fundadas em pressupostos aceitos, por vezes, acriticamente. É preocupante<br />
que o pensamento <strong>de</strong> que o intérprete está a serviço da partitura – ou <strong>do</strong> compositor,<br />
ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada prática musical legitimada por pesquisas ou modismos – seja<br />
reproduzi<strong>do</strong> no ensino <strong>de</strong> música. Como resulta<strong>do</strong>, temos, inevitavelmente, uma padronização<br />
da interpretação musical. Assim, neste trabalho discutimos a natureza da ativida<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> instrumentista e propomos um direcionamento possível, embora muitas vezes ignora<strong>do</strong><br />
na prática. Partin<strong>do</strong> da idéia <strong>de</strong> que a informação estética é primordialmente psíquica,<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>mos que a sua realização <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da percepção que seu leitor-executor, o instrumentista,<br />
faz <strong>de</strong>la. Ele toma tal informação estética, registrada em partitura, composta<br />
por si ou por outrem, como a matéria-prima <strong>de</strong> sua ativida<strong>de</strong>, fazen<strong>do</strong> uso <strong>de</strong> ferramentas<br />
para compor sua interpretação. Como produto <strong>de</strong>sse processo, temos a obra <strong>do</strong><br />
instrumentista. Este produto po<strong>de</strong> ser <strong>do</strong> tipo acaba<strong>do</strong> e <strong>de</strong>finitivo, ou tomar um caráter<br />
metamórfico. Segun<strong>do</strong> Umberto Eco, há <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> abertura em uma obra <strong>de</strong> arte. No<br />
primeiro tipo, a obra foi concluída por seu autor e mostra-se formada à disposição <strong>de</strong> diversas<br />
fruições. O segun<strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> abertura <strong>de</strong>scrito por Eco, a obra em movimento, difere-se<br />
por possuir sua forma aberta, inacabada, mutável. Os instrumentistas raramente<br />
utilizam este paradigma, que po<strong>de</strong> ser renova<strong>do</strong>r e instigante, principalmente para o público,<br />
que po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong> uma performance nova (mesmo que da mesma peça) a<br />
cada apresentação.<br />
Introdução<br />
É acalora<strong>do</strong> o <strong>de</strong>bate sobre o papel que o instrumentista <strong>de</strong>ve ocupar na manifestação<br />
musical. Teorias não faltam entre os partidários <strong>de</strong> cada ponto <strong>de</strong> vista, sejam<br />
eles reacionários e tradicionais, ou vanguardistas liberais. Os primeiros <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m<br />
que as intenções <strong>do</strong> autor <strong>de</strong>vem ser preservadas com fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> no ato da performance.<br />
Já as teorias “liberais” apontam para a individualida<strong>de</strong> <strong>do</strong> instrumentista<br />
193
194<br />
no ato da interpretação. Entretanto, esta discussão parece estar restrita a <strong>de</strong>termina<strong>do</strong><br />
gueto intelectual, o da Estética. Mesmo a Performance Musical, área diretamente<br />
interessada no assunto, parece estar apartada <strong>de</strong>sta discussão. Se<br />
visualizarmos a área <strong>de</strong> Educação Musical, mais especificamente, veremos que os<br />
seus agentes participam passivamente <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> ensino e aprendizagem ao utilizar<br />
um mesmo e velho mo<strong>de</strong>lo. Este mo<strong>de</strong>lo foi importa<strong>do</strong> <strong>de</strong> outro contexto, o<br />
Europeu, e tem si<strong>do</strong> aceito sem maiores questionamentos na aca<strong>de</strong>mia, ignoran<strong>do</strong><br />
a individualida<strong>de</strong> daquele que apren<strong>de</strong> e a realida<strong>de</strong> merca<strong>do</strong>lógica para a qual este<br />
mo<strong>de</strong>lo prepara.<br />
O paradigma da obra acabada é utiliza<strong>do</strong> comumente pelos instrumentistas tanto<br />
em apresentações como no ensino. O seu processo consiste basicamente no ensaio<br />
sistemático <strong>de</strong> sua peça até <strong>do</strong>minar sua execução a ponto <strong>de</strong> que possa reproduzir<br />
sempre da mesma forma, tal qual foi planeja<strong>do</strong> previamente. Temos, então, uma<br />
obra finalizada, concluída. Assim, a cada nova performance em público, as peças soarão<br />
iguais. Esse mo<strong>de</strong>lo tem como prejuízo a conseqüente monotonia causada ao<br />
público, já que, não haverá novida<strong>de</strong>s significativas nos próximos recitais realiza<strong>do</strong>s<br />
por aquele instrumentista. Por isso, na era das novas mídias, estabelecidas tanto<br />
pelos CDs, quanto pela acessibilida<strong>de</strong> da internet, o instrumentista que executa<br />
suas peças sempre <strong>de</strong> maneira acabada, po<strong>de</strong> ser vítima <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinteresse.<br />
Portanto, a necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s professores <strong>de</strong> instrumento repensarem suas práticas <strong>de</strong><br />
ensino, bem como os próprios instrumentistas, se justifica ao confrontarmos a realida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho com o tipo <strong>de</strong> formação oferecida nas instituições <strong>de</strong><br />
ensino, além da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se formar instrumentistas capazes <strong>de</strong> se auto-renovarem,<br />
instrumentistas metamórficos.<br />
Sobre a ativida<strong>de</strong> <strong>do</strong> instrumentista<br />
Copland i<strong>de</strong>ntifica três fatores distintos e mutuamente complementares naquilo<br />
que ele chama <strong>de</strong> “fato musical” (Copland 1974, 158): o compositor, o intérprete<br />
e o ouvinte. Entretanto, sua visão coloca o acontecimento musical em uma relação<br />
<strong>de</strong> inter<strong>de</strong>pendência, on<strong>de</strong> o processo criativo é <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> pelo compositor, media<strong>do</strong><br />
pelo instrumentista e tem seu fim no ouvinte. Encontramos em Mario <strong>de</strong><br />
Andra<strong>de</strong> (Andra<strong>de</strong> 1995, 55) uma proposição mais abrangente e flexível <strong>do</strong> acontecimento<br />
musical, on<strong>de</strong> o autor encara a obra como entida<strong>de</strong> distinta e relativiza<br />
a <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> cada um <strong>do</strong>s componentes:<br />
“Po<strong>de</strong>-se dizer que a manifestação musical é uma fusão <strong>de</strong> quatro entida<strong>de</strong>s distintas:<br />
o cria<strong>do</strong>r, a obra-<strong>de</strong>-arte, o intérprete e o ouvinte. As três entida<strong>de</strong>s subjetivas<br />
<strong>de</strong>sta enumeração po<strong>de</strong>m muitas vezes serem (sic) fundidas umas nas<br />
outras, o cria<strong>do</strong>r ser ao mesmo tempo intérprete e o intérprete ser ao mesmo<br />
tempo ouvinte. Isso não impe<strong>de</strong> que sejam entida<strong>de</strong>s perfeitamente distintas,<br />
igualmente importantes.”
Ten<strong>do</strong> situa<strong>do</strong> a ativida<strong>de</strong> <strong>do</strong> instrumentista no quadro geral da música tradicional<br />
no Oci<strong>de</strong>nte, passemos agora a refletir a ativida<strong>de</strong> em si mesma. O ofício <strong>do</strong> instrumentista<br />
é constituí<strong>do</strong> <strong>de</strong> quatro partes: a “matéria-prima”, uma composição<br />
criada por si mesmo ou alheia, on<strong>de</strong> será realiza<strong>do</strong> o seu trabalho <strong>de</strong> interpretação;<br />
suas “ferramentas” (timbre, dinâmica, articulação, frasea<strong>do</strong>, tempo e técnica instrumental)<br />
que serão operadas sobre a matéria-prima; sua “filosofia <strong>de</strong> atuação”,<br />
que são os pressupostos que guiarão a utilização das ferramentas sobre a matériaprima,<br />
ou seja, seu mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> interpretação; e, finalmente, a “obra interpretativa”,<br />
produto final <strong>de</strong>ste ofício, sua performance musical.<br />
Po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar no campo <strong>de</strong> atuação profissional duas categorias <strong>de</strong> instrumentista,<br />
consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>, como critério <strong>de</strong> classificação, a natureza da matéria-prima<br />
trabalhada. Assim, essas categorias seriam: a <strong>do</strong>s instrumentistas intérpretes, ou seja,<br />
aqueles que não produzem suas matérias-primas, mas coletam-nas através <strong>de</strong> leitura<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> texto, seja ele em forma <strong>de</strong> partitura (o méto<strong>do</strong> mais comum<br />
no meio acadêmico), tablatura, cifras ou <strong>de</strong> percepção auditiva; o outro tipo é o<br />
instrumentista compositor, que cria sua própria matéria-prima, além <strong>de</strong> interpretála.<br />
Po<strong>de</strong>r-se-ia argumentar ainda, que os instrumentistas <strong>de</strong> música étnica constituem<br />
em outro tipo <strong>de</strong> intérprete. Entretanto, seguin<strong>do</strong> nosso critério <strong>de</strong><br />
classificação, basea<strong>do</strong> na natureza da matéria-prima utilizada, esses instrumentistas<br />
se enquadrariam em uma das categorias listadas acima, já que ou compõem sua matéria-prima<br />
ou pegam-na <strong>de</strong> outrem, como <strong>do</strong> imaginário popular, por exemplo.<br />
Da natureza da obra <strong>de</strong> arte: materialida<strong>de</strong> e virtualida<strong>de</strong><br />
A obra <strong>de</strong> arte existe noutro âmbito que não seja o material? A questão que preten<strong>de</strong>mos<br />
levantar se refere à natureza daquilo que freqüentemente atribuímos o<br />
status <strong>de</strong> obra <strong>de</strong> arte. O neo-i<strong>de</strong>alista Bene<strong>de</strong>tto Croce (apud Ab<strong>do</strong> 2000, 17) acredita<br />
que sim, a obra <strong>de</strong> arte existe noutra dimensão que não aquela captada objetivamente<br />
por nossos senti<strong>do</strong>s. O autor italiano <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a obra <strong>de</strong> arte em si<br />
mesma, é <strong>de</strong> natureza psíquica, sen<strong>do</strong> restrita, em um primeiro momento, apenas<br />
ao seu autor. Dessa forma, o objeto que experimentamos enquanto obra – como,<br />
por exemplo, um quadro, uma escultura, uma performance musical, uma fotografia<br />
– seria uma realização material daquilo que foi concebi<strong>do</strong> na consciência <strong>de</strong> seu<br />
cria<strong>do</strong>r:<br />
“Como se sabe, Croce <strong>de</strong>fine a arte como ‘síntese <strong>de</strong> sentimento e imagem’, criação<br />
cuja essência se esgota na integrida<strong>de</strong> <strong>do</strong> espírito e que, assim sen<strong>do</strong>, nada<br />
tem <strong>de</strong> corpóreo ou físico. Não que o conhecimento filosófico ignore a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> exteriorização em um corpo físico, mas consi<strong>de</strong>ra-a como uma etapa secundária<br />
em relação ao momento produtivo, importante apenas para fixar e<br />
comunicar o que, <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, ficaria restrito à memória <strong>do</strong> autor.”<br />
Dessa forma, aquilo que apreciamos é o resulta<strong>do</strong> final <strong>de</strong> algo que existia previa-<br />
195
196<br />
mente na mente <strong>do</strong> artista. Max Bense (apud Campos 1977, 135) chega ao mesmo<br />
ponto e <strong>de</strong>nomina<br />
“[. . .] o signo ‘ser imperfeito’, e avança então a tese da correalida<strong>de</strong> da informação<br />
estética, da obra <strong>de</strong> arte. Esta é correal pois sua realida<strong>de</strong> é referida a outra<br />
realida<strong>de</strong> que lhe serve <strong>de</strong> suporte. É o que Bense chama <strong>de</strong> extensão ou materialida<strong>de</strong><br />
da informação estética.”<br />
Por esse prisma, a obra <strong>de</strong> arte, ou a informação estética, vale-se <strong>de</strong> um corpo material,<br />
um ser representante. A obra <strong>de</strong> arte, como fato espiritual, <strong>de</strong>ve ter uma manifestação<br />
material e extensional para ser percebida como tal. Igor Stravinsky<br />
(Stravinsky 1996, 111) toma posicionamento a esse respeito e filia-se ao grupo que<br />
consi<strong>de</strong>ra a música como um fenômeno existente, também, na mente das pessoas:<br />
“é necessário distinguir <strong>do</strong>is momentos, ou melhor, <strong>do</strong>is esta<strong>do</strong>s da música: música<br />
potencial e música real. Ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> fixada no papel ou retida na memória, a música<br />
já existe mesmo antes <strong>de</strong> sua performance efetiva [. . .]”.<br />
A idéia <strong>de</strong> que a obra <strong>de</strong> arte seja algo referente, a priori, à mente, sen<strong>do</strong> o objeto material<br />
resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um processo a posteriori, suscitou uma tese discutível quanto à<br />
interpretação da obra artística. A tese <strong>de</strong> “reevocação” <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> original <strong>do</strong><br />
autor foi o que resultou da idéia <strong>de</strong> “psiquez estética”. O próprio Croce (Croce<br />
apud Ab<strong>do</strong>, 2000, 17) foi <strong>de</strong>fensor da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> a essa idéia autoral, que seria a própria<br />
obra artística. Assim, o instrumentista – executor <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada peça<br />
musical alheia – <strong>de</strong>veria prover uma performance impessoal e calcada na pesquisa<br />
hitórico-estilística, para que a idéia autoral, que seria a própria obra, pu<strong>de</strong>sse ser<br />
vislumbrada. Essa tese coloca o compositor como componente fundamental no<br />
processo artístico, levan<strong>do</strong> intérpretes e <strong>de</strong>mais frui<strong>do</strong>res1 a uma busca da idéia original,<br />
<strong>do</strong> senti<strong>do</strong> e visão “verda<strong>de</strong>iros” da obra. Entretanto, tal pensamento causa<br />
limitações quanto à maneira pela qual se dá o processo artístico como um to<strong>do</strong>. Na<br />
relação compositor-obra-frui<strong>do</strong>r, a redução <strong>do</strong> campo interpretativo, causada pela<br />
idéia <strong>de</strong> reevocação <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> original i<strong>de</strong>aliza<strong>do</strong> pelo compositor, conduz, na manifestação<br />
musical, o primeiro a uma posição privilegiada e o último, o instrumentista,<br />
a condição alienante. Preten<strong>de</strong>mos, portanto, como primeira meta, contestar<br />
a referida tese, ten<strong>do</strong> ainda como base, entretanto, a teoria <strong>de</strong> co-realida<strong>de</strong> da informação<br />
estética. Seria, assim, váli<strong>do</strong> afirmar que a obra <strong>de</strong> arte existe mesmo que<br />
não seja manifestada exteriormente?<br />
Para tratarmos <strong>de</strong>ssa questão parece ser útil o mo<strong>do</strong> como Marcos Nogueira (Nogueira<br />
1999, 57) toma o conceito <strong>de</strong> texto: “[. . .] existem diversas manifestações<br />
textuais: um poema, uma fotografia, uma escultura, uma peça musical é um texto”.<br />
Tal acepção possui preceitos <strong>de</strong> cunho semiótico, <strong>do</strong>n<strong>de</strong> “texto” é um signo mais ou<br />
menos complexo, integra<strong>do</strong> por sua vez por outros signos. Admite-se, portanto,<br />
que tanto partitura como a execução sonora <strong>de</strong> uma peça musical sejam textos –<br />
mesmo que tenham características diferentes. Visto <strong>de</strong>ssa forma, a obra <strong>de</strong> arte,
mesmo que não aconteça comunicativamente por meio <strong>de</strong> execução, isto é, ainda<br />
sob a forma mental, existe e acontece. Portanto, “[. . .] texto tem origem no verbo<br />
‘tecer’, é um ‘teci<strong>do</strong> <strong>de</strong> signos resultante daquelas relações estabelecidas por seu leitor-autor<br />
com as realida<strong>de</strong>s, no ato da ‘leitura original’, ou seja, aquela que tem lugar<br />
no ato mesmo da criação.” (Nogueira 1999, 57). Por esse prisma mesmo o autor<br />
no momento em que concebe a obra, ou mesmo após esse momento, é também um<br />
leitor <strong>de</strong>la. Assim, a obra artística é um fenômeno <strong>de</strong> cunho psíquico e que exerce<br />
sua materialida<strong>de</strong>, como forma <strong>de</strong> comunicação, através <strong>de</strong> uma exteriorização. Finalmente,<br />
em ambos os contextos, interior e exterior, a obra <strong>de</strong> arte é texto, passível<br />
<strong>de</strong> leitura tanto no ato genitor quanto nos <strong>de</strong>mais momentos.<br />
Da percepção da obra <strong>de</strong> arte: a composição interpretativa<br />
Ten<strong>do</strong> em vista que a obra <strong>de</strong> arte possui seu lugar, antes <strong>de</strong> qualquer outro, na<br />
mente, mesmo para seu autor e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ser exteriorizada, <strong>de</strong>vemos passar agora a<br />
uma importante questão: o que é a interpretação <strong>de</strong> uma obra <strong>de</strong> arte? Muito se<br />
tem discuti<strong>do</strong> sobre esse assunto, portanto são várias as tentativas <strong>de</strong> explicá-lo. Algumas<br />
<strong>de</strong>ssas são <strong>de</strong> teor conserva<strong>do</strong>r, buscan<strong>do</strong> sempre a manutenção <strong>do</strong> status<br />
privilegia<strong>do</strong> <strong>do</strong> autor e da obra sobre intérpretes (instrumentistas) e <strong>de</strong>mais frui<strong>do</strong>res<br />
(ouvintes), outras tentam a conciliação, argumentan<strong>do</strong> que tanto autor como<br />
intérprete são autor e co-autor, respectivamente, da obra e que <strong>de</strong>vem trabalhar em<br />
comunhão. Há ainda, outra corrente, que nega a presença <strong>do</strong> autor e atribui valor<br />
<strong>de</strong>masia<strong>do</strong> sobre o intérprete. Portanto, procuraremos mostrar os argumentos principais<br />
<strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>ssas correntes.<br />
A primeira corrente, aquela que atribui a primazia da obra <strong>de</strong> arte ao compositor<br />
primeiro, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> o papel <strong>do</strong> intérprete a um segun<strong>do</strong> plano, e colocan<strong>do</strong> o frui<strong>do</strong>r<br />
– público em geral– a um terceiro plano, é uma visão ainda em voga, tanto nos<br />
conservatórios, quanto nos centros <strong>de</strong> pesquisa em música.2 Tal i<strong>de</strong>ologia, conhecida<br />
como “reevocação” – pelo fato <strong>de</strong> que <strong>de</strong>riva da idéia <strong>de</strong> “espiritualismo estético”<br />
<strong>de</strong> Bene<strong>de</strong>tto Croce – prega que a função <strong>do</strong> intérprete é a <strong>de</strong> resgatar e<br />
transmitir a idéia primeira <strong>do</strong> compositor. Seu fim primeiro é o <strong>de</strong> “reevocar” fielmente<br />
o significa<strong>do</strong> original através <strong>de</strong> “[. . .] uma execução tão impessoal e objetiva<br />
quanto possível, respaldada no exame da partitura e na investigação<br />
histórico-estilística.” (Croce apud Ab<strong>do</strong> 2000, 17). Tal ponto <strong>de</strong> vista, que ainda<br />
impregna a ativida<strong>de</strong> musical, é responsável por uma série <strong>de</strong> problemas relaciona<strong>do</strong>s<br />
à relação entre os participantes <strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong>. Além disso, a admissão <strong>de</strong>le significa<br />
um cerceamento da ativida<strong>de</strong> <strong>do</strong> instrumentista cujo papel acaba por<br />
tornar-se diminuí<strong>do</strong>, secundário, quan<strong>do</strong> não <strong>de</strong>snecessário. Isso se dá porque o<br />
instrumentista passa a ser mero meio <strong>de</strong> comunicação da idéia <strong>do</strong> autor primeiro<br />
para o público. O performer, enquanto veículo difusor, não tem outro procedimento<br />
senão o técnico-motor, já que o fazer artístico <strong>de</strong> forma geral está sob o <strong>do</strong>-<br />
197
198<br />
mínio <strong>de</strong> outro indivíduo, o compositor. Nesse senti<strong>do</strong>, aparecem premonições<br />
quanto a sorte da classe instrumentista que, com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gravação da performance<br />
e, principalmente, com o uso <strong>de</strong> meios eletrônicos para a produção sonora<br />
– esses oriun<strong>do</strong>s principalmente das pesquisas <strong>de</strong> música eletrônica – passaram a ter<br />
sua importância questionada: “Em tese a precisão <strong>do</strong> intérprete para que a manifestação<br />
musical se realize torna a música a mais precária e a mais prejudicada <strong>de</strong><br />
todas as artes e como conseqüência <strong>de</strong>ste pensamento o intérprete <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>saparecer.”<br />
(Andra<strong>de</strong> 1995, 62). Walter Benjamin (1975) observa que com o advento<br />
<strong>do</strong> aparato <strong>de</strong> reprodução, como a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gravação e comercialização <strong>de</strong><br />
uma performance, tornou-se necessária uma nova visão das artes. Desta maneira, o<br />
instrumentista tem <strong>de</strong> se reafirmar enquanto agente artístico para que não tenha<br />
como única função a comunicação <strong>de</strong> uma idéia alheia. Mesmo esta função é, muitas<br />
vezes, recusada por compositores que encontram nos recursos eletrônicos hodiernos<br />
uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> satisfazer seus anseios criativos sem a preocupação <strong>de</strong><br />
vê-los “traí<strong>do</strong>s” no momento da performance.<br />
Dessa forma, resta ao instrumentista <strong>de</strong>dicar-se ao aparta técnico. Assim, a mais<br />
nova forma <strong>de</strong> fetichismo na música é o culto à apresentação perfeita, aquela que<br />
serve como mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> excelência. As apresentações fora <strong>do</strong> paradigma exigi<strong>do</strong> são<br />
<strong>de</strong>scartadas como produtos impróprios para o consumo (A<strong>do</strong>rno 2005, 86):<br />
“O i<strong>de</strong>al oficial da interpretação, que pre<strong>do</strong>mina em toda parte na esteira <strong>do</strong> trabalho<br />
extraordinário <strong>de</strong> Toscanini, ajuda a sancionar um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> coisas que –<br />
para usar uma expressão <strong>de</strong> Eduard Steuermann – po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>nominar “barbárie<br />
da perfeição”. [. . .] Reina aqui uma disciplina férrea. Precisamente férrea. O<br />
novo fetiche, neste caso, é o aparato como tal, imponente e brilhante, que funciona<br />
sem falha e sem lacunas, no qual todas as rodas engrenam umas nas outras<br />
com tanta perfeição e exatidão que já não resta a mínima fenda para a captação<br />
<strong>do</strong> senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> to<strong>do</strong>. A interpretação perfeita e sem <strong>de</strong>feito, característica <strong>do</strong><br />
novo estilo, conserva a obra a expensas <strong>do</strong> preço da sua coisificação <strong>de</strong>finitiva.<br />
Apresenta-a como algo já pronto e acaba<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras notas; a execução<br />
soa exatamente como se fosse sua própria gravação no disco. A dinâmica é <strong>de</strong> tal<br />
forma predisposta e pré-fabricada, que não <strong>de</strong>ixa espaço algum para tensões.”<br />
Já a segunda corrente, que <strong>de</strong>nominamos conciliatória, procura fundir a importância<br />
tanto <strong>do</strong> compositor quanto <strong>do</strong> intérprete, através <strong>do</strong> argumento <strong>de</strong> que o<br />
papel <strong>do</strong> instrumentista seria o <strong>de</strong> “traduzir” a obra <strong>de</strong> arte proposta. Dessa forma,<br />
admitir-se-ia, então, a subjetivida<strong>de</strong> <strong>do</strong> executante ante a obra <strong>de</strong> outra pessoa, fazen<strong>do</strong><br />
com que uma nova obra seja criada numa espécie <strong>de</strong> co-autoria com o compositor<br />
primeiro Marília Laboissière (2007, 16):<br />
“Defen<strong>de</strong>mos aqui o conceito <strong>de</strong> interpretação musical como ativida<strong>de</strong> recria<strong>do</strong>ra,<br />
na medida em que a música – arte da produção, performance e recepção<br />
individuais, arte subordinada a diferentes fatores sociais, i<strong>de</strong>ológicos, estéticos,<br />
históricos e outros – caracteriza-se pela impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconstruir sua origem<br />
legítima, ou seja, qualquer outra imagem <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong>.”
Finalmente, a terceira corrente, <strong>de</strong>nominada “<strong>de</strong>sconstrucionista”, radical <strong>do</strong> la<strong>do</strong><br />
oposto à primeira corrente vista anteriormente, não admite qualquer conciliação<br />
entre autor e instrumentista. Tal ponto <strong>de</strong> vista coloca ênfase sobre o <strong>de</strong>stinatário<br />
da comunicação, assim, é o instrumentista quem cria o senti<strong>do</strong> e não o compositor<br />
primeiro. Partin<strong>do</strong> da idéia <strong>de</strong> que toda obra <strong>de</strong> arte é um texto a ser li<strong>do</strong>, buscaremos<br />
suporte na fenomenologia para argumentar que a informação artística tem fatalmente<br />
seu senti<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong> por seu frui<strong>do</strong>r. Husserl (Galeffi 2000) coloca o<br />
indivíduo, e sua consciência, como agente principal <strong>do</strong> ato cognoscente. Assim, é<br />
o frui<strong>do</strong>r quem dá senti<strong>do</strong> àquilo que é percebi<strong>do</strong> por ele. Nogueira (1999, 76) recorre<br />
a Berlo para chamar atenção para o fato <strong>de</strong> que quem dá o senti<strong>do</strong> às coisas é<br />
o receptor – ou intérprete – “o senti<strong>do</strong> não se encontra nas palavras, na materialida<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>s traços <strong>do</strong> papel ou nos sons da fala: não se encontra na mensagem e sim<br />
no receptor. Se os senti<strong>do</strong>s estivessem nos objetos ou coisas (como as palavras), qualquer<br />
pessoa compreen<strong>de</strong>ria qualquer código”. Dessa forma, mesmo o autor primeiro,<br />
ao criar seu texto, forma nessa primeira leitura a sua visão, a interpretação <strong>de</strong><br />
como tal objeto <strong>de</strong>ve ser. Queremos dizer que tal percepção é forjada por seu leitorcompositor,<br />
mas que não é algo da obra em si. A obra, como preten<strong>de</strong>m alguns<br />
compositores, não carrega em anexo sua interpretação, mas necessita que alguém a<br />
componha. Daí temos que a notação <strong>do</strong>s elementos interpretativos, nada mais é<br />
<strong>do</strong> que a interpretação <strong>de</strong>sse compositor grafada. Compositores <strong>do</strong> século XX como<br />
Stravinsky, que indicou instruções <strong>de</strong> interpretação com <strong>de</strong>talhamento incomum,<br />
e Stockhausen, que serializou cada aspecto da interpretação, não pretendiam conce<strong>de</strong>r<br />
espaço à criação <strong>do</strong> instrumentista. Entretanto, ao se apresentar a outrem, a<br />
obra adquirirá fatalmente nova interpretação.<br />
Da composição interpretativa: a obra em movimento<br />
Umberto Eco (1971) explica o que seria a abertura na obra <strong>de</strong> arte. Segun<strong>do</strong> ele,<br />
toda obra <strong>de</strong> arte possui, em maior ou menor grau, um teor <strong>de</strong> abertura a apreciação<br />
<strong>do</strong> frui<strong>do</strong>r. Dessa forma, são várias as visões que uma pessoa po<strong>de</strong> ter <strong>do</strong> mesmo<br />
objeto artístico. Por exemplo, diversas pessoas têm, ao ouvir uma sinfonia <strong>de</strong> Beethoven<br />
em um mesmo auditório, reações e entendimentos diferentes daquela mesma<br />
obra, fruída naquele mesmo momento (Eco 1971, 63):<br />
“[. . .] num nível mais amplo (como gênero da espécie em ‘obra em movimento’)<br />
existem aquelas obras que, já completadas fisicamente, permanecem contu<strong>do</strong><br />
‘abertas’ a uma germinação contínua <strong>de</strong> relações internas que o frui<strong>do</strong>r <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>scobrir<br />
e escolher no ato <strong>de</strong> percepção da totalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s estímulos.”<br />
O tipo <strong>de</strong> abertura aqui avaliada é o que po<strong>de</strong>mos chamar <strong>de</strong> primeiro grau. Nesse<br />
caso, a obra foi concluída por seu autor e mostra-se formada à disposição <strong>de</strong> diversas<br />
fruições. No caso que preten<strong>de</strong>mos aqui tratar em especial, a composição <strong>de</strong><br />
uma execução instrumental, tal <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> abertura não exaure todas as possibilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> seu acontecimento.<br />
199
200<br />
Basea<strong>do</strong> em exemplos <strong>de</strong> diversas manifestações artísticas <strong>de</strong> cunho inacaba<strong>do</strong>, tais<br />
como obras <strong>de</strong> Berio, Stockhausen e Boulez, Eco chama atenção para outro tipo<br />
<strong>de</strong> abertura, mais radical <strong>do</strong> que o anteriormente aqui menciona<strong>do</strong>. Trata-se da<br />
obra em movimento. Esta se difere da outra por possuir sua forma aberta, inacabada,<br />
ou, melhor dizen<strong>do</strong>, mutável. Portanto, levan<strong>do</strong> em consi<strong>de</strong>ração que o instrumentista<br />
é um indivíduo cria<strong>do</strong>r, e não um mero meio <strong>de</strong> comunicação das idéias<br />
<strong>de</strong> outro artista, e que o resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua relação com a obra <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> primordialmente<br />
<strong>de</strong> seu entendimento, não haveria razão para que o instrumentista realizasse<br />
uma execução musical sempre da mesma maneira. Ele po<strong>de</strong>ria, a cada execução,<br />
apresentar uma configuração musical completamente diferente. Encontramos<br />
como exemplo o violonista Eliot Fisk (Apro 2000, 44):<br />
“Há <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> artistas: um <strong>de</strong>les pinta a Mona Lisa em sua casa, vai à palco e<br />
mostra a tela acabada para o público. Eu até gostaria <strong>de</strong> ser este tipo <strong>de</strong> artista,<br />
mas estou con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> ao temperamento daquele outro tipo: o que vai ao palco<br />
com uma tela em branco e a pinta na frente <strong>do</strong> público. Para mim, este tipo <strong>de</strong><br />
corda-bamba é o que caracteriza uma apresentação ao vivo.”<br />
Consi<strong>de</strong>rações Finais<br />
Po<strong>de</strong>mos, portanto, visualizar o trabalho <strong>do</strong> instrumentista através <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong><br />
vista mais abrangente. Gostaríamos <strong>de</strong> frisar que a essa ativida<strong>de</strong> constitui imprescindível<br />
uma orientação estética. Por <strong>de</strong>trás <strong>do</strong> fazer <strong>do</strong> intérprete há sempre tais<br />
orientações, sejam elas conscientes ou não, sejam elas produtos <strong>de</strong> uma tradição<br />
imposta ou complacentemente aceita. Ele, tal qual o compositor <strong>de</strong> peças, ou o escritor,<br />
ou escultor, possui seu processo produtivo próprio. Compositores como<br />
Stravinsky e Schönberg, ao prescrever em suas partituras todas as nuances <strong>de</strong> dinâmica,<br />
andamento, frasea<strong>do</strong>, ritmo e expressão, reduzem a função <strong>do</strong> instrumentista<br />
a <strong>de</strong> uma máquina, como foi aponta<strong>do</strong> por Dart (2002, 67). Vale lembrar que foi<br />
prática comum, nos primeiros séculos da música Oci<strong>de</strong>ntal, a improvisação <strong>do</strong> instrumentista<br />
sobre as obras executadas. Tal prática foi paulatinamente aban<strong>do</strong>nada,<br />
até chegarmos ao momento <strong>de</strong> execução exata da partitura. É preciso repensar a<br />
ativida<strong>de</strong> <strong>do</strong> instrumentista para que este não fique restrito a mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong>terministas.<br />
Dessa forma, acreditamos que tanto ensino quanto prática musical serão enriqueci<strong>do</strong>s<br />
com a valorização e ampliação <strong>do</strong> universo criativo <strong>do</strong> intérprete.<br />
1 To<strong>do</strong> indivíduo, <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> geral, que contempla uma obra <strong>de</strong> arte po<strong>de</strong> ser ti<strong>do</strong> como<br />
frui<strong>do</strong>r.<br />
2 Graziela Bortz (2007, 85), em seu artigo Três aspectos da cognição na performance musical<br />
faz referência à situação <strong>do</strong> instrumentista atual: “ [. . .] os instrumentos <strong>de</strong> formação erudita<br />
<strong>do</strong> século XXI, especialmente os orquestrais, cuja educação <strong>de</strong>ixou no passa<strong>do</strong> (exceto
em escolas que mantêm a tradição da chamada música antiga) quase toda a tradição da improvisação<br />
e se <strong>de</strong>bruçou veementemente sobre a ‘correta’ interpretação da partitura, estudam<br />
escalas com exclusivo propósito técnico, repertório e trechos orquestrais <strong>de</strong> <strong>do</strong>is<br />
compassos repetidamente.”<br />
Referências<br />
Ab<strong>do</strong>, Sandra Neves. 2000. Execução/Interpretação musical: uma abordagem filosófica. Per<br />
Musi 1, 16-24.<br />
A<strong>do</strong>rno, Theo<strong>do</strong>r W. 2005. O fetichismo na música e a regressão da audição. In A<strong>do</strong>rno –<br />
vida e obra, 65-108. São Paulo: Editora Nova Cultural.<br />
Andra<strong>de</strong>, Mário <strong>de</strong>. 1995. Introdução à estética musical. Estabelecimento <strong>do</strong> texto, introdução<br />
e notas <strong>de</strong> Flávia Camargo Toni. São Paulo: Editora Hucitec.<br />
Apro, Flávio. 2000. Eliot Fisk: manten<strong>do</strong> o lega<strong>do</strong> <strong>de</strong> Segóvia. Cover Guitar 66, 43-46.<br />
Benjamin, Walter. 1975. A obra <strong>de</strong> arte na época <strong>de</strong> suas técnicas <strong>de</strong> reprodução. In Os Pensa<strong>do</strong>res,<br />
XL<strong>VI</strong>II: textos escolhi<strong>do</strong>s, 9-34. São Paulo: Abril Cultural.<br />
Bortz, Graziela. 2007. “Três aspectos da cognição na performance musical.” <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> III<br />
<strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais, maio 21-25, em Salva<strong>do</strong>r, Brasil.<br />
Campos, Harol<strong>do</strong> <strong>de</strong>. 1977. A arte no horizonte <strong>do</strong> provável e outros ensaios. São Paulo: Editora<br />
Perspectiva.<br />
Copland, Aaron. 1974. Como ouvir (e enten<strong>de</strong>r) música. Rio <strong>de</strong> janeiro: Editora Artenova.<br />
Galeffi, Dante Augusto. 2000. O que é isto — a fenomenologia <strong>de</strong> Husserl? I<strong>de</strong>ação 5, 13-36.<br />
Dart, Thurston. 2002. Interpretação da música. São Paulo: Martins Fontes.<br />
Eco, Umberto. 1971. Obra Aberta: forma e in<strong>de</strong>terminação nas poéticas contemporâneas. São<br />
Paulo: Perspectiva.<br />
Laboissière, Marília. 2007. Interpretação musical: a dimensão recria<strong>do</strong>ra da “comunicação”<br />
poética. São Paulo: Annablume.<br />
Nogueira, Marcos. 1999. Condições <strong>de</strong> interpretação musical. Debates 3, 57-80.<br />
Stravinsky, Igor. 1996. Poética musical (em 6 lições). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Ed.<br />
201
202<br />
Sem Fronteiras: Implicações da Performance<br />
no Ensino e Aprendizagem da Música Popular<br />
Juliana Rocha <strong>de</strong> Faria Silva<br />
julianasilv@gmail.com<br />
Escola <strong>de</strong> Música <strong>de</strong> Brasília<br />
Departamento <strong>de</strong> Música, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília<br />
Maria Cristina Cascelli <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong> Carvalho<br />
criscarvalho@abor<strong>do</strong>.com.br<br />
Departamento <strong>de</strong> Música, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília<br />
Resumo<br />
Este trabalho apresenta o relato parcial <strong>de</strong> uma pesquisa <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong> cujo objetivo é investigar<br />
como os professores sistematizam, organizam e justificam os conhecimentos e<br />
habilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> piano popular em suas práticas <strong>do</strong>centes. A meto<strong>do</strong>logia a<strong>do</strong>tada foi o estu<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> caso cuja unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> caso são os professores <strong>de</strong> piano popular <strong>do</strong> Núcleo <strong>de</strong><br />
Música Popular <strong>do</strong> Centro <strong>de</strong> Educação Profissional – Escola <strong>de</strong> Música <strong>de</strong> Brasília<br />
(CEP/EMB). As questões da pesquisa preten<strong>de</strong>m discutir quais as habilida<strong>de</strong>s e conhecimentos<br />
musicais os professores <strong>de</strong> piano popular consi<strong>de</strong>ram relevantes para a formação<br />
<strong>de</strong> músicos populares; em que situações estes conhecimentos e habilida<strong>de</strong>s são<br />
trabalha<strong>do</strong>s na sala <strong>de</strong> aula; que procedimentos <strong>de</strong> ensino e aprendizagem os professores<br />
utilizam para ensiná-los e por que; qual é a fonte social <strong>de</strong>stes procedimentos; que<br />
conhecimentos e habilida<strong>de</strong>s da performance e da experiências profissional como músico<br />
popular são mobiliza<strong>do</strong>s na sala <strong>de</strong> aula. Para respon<strong>de</strong>r tais questões foi realiza<strong>do</strong><br />
um estu<strong>do</strong> piloto com um professor <strong>de</strong> contrabaixo <strong>do</strong> Núcleo <strong>de</strong> Música Popular <strong>do</strong><br />
CEP/EMB, com o intuito <strong>de</strong> verificar a pertinência <strong>de</strong>ssas questões como a meto<strong>do</strong>logia<br />
da pesquisa,. Neste artigo apresentamos um recorte da análise <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> piloto em que<br />
se <strong>de</strong>stacam as habilida<strong>de</strong>s e conhecimentos da performance em música popular, o seu<br />
processo <strong>de</strong> aprendizagem e a forma como são mobiliza<strong>do</strong>s na sala <strong>de</strong> aula, ou seja,<br />
como o performer organiza e sistematiza a sua práxis para ensinar. O <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>do</strong> ensino e aprendizagem em música popular é relevante para a discussão sobre os estu<strong>do</strong>s<br />
a performance em música, uma vez que, no âmbito da cognição, as pesquisas têm<br />
aborda<strong>do</strong>, principalmente temátivas relacionadas com a questões conceituais da perfomance,<br />
a revisão da literatura, a análise estilística e técnica, os procedimentos <strong>de</strong> interpretação<br />
<strong>do</strong> repertório e os aspectos corporais, psicológicos e neurológicos <strong>do</strong> performer<br />
volta<strong>do</strong>s para a música erudita (Ray, 2007). Para fundamentar este trabalho, os da<strong>do</strong>s<br />
foram discuti<strong>do</strong>s sob a perspectiva teórica <strong>de</strong> Green (2001) que trata das práticas informais<br />
<strong>de</strong> aprendizagem <strong>do</strong>s músicos populares; <strong>de</strong> Couto (2008) que aborda a prática<br />
pedagógica <strong>do</strong>s professores <strong>de</strong> piano popular e <strong>de</strong> Maranesi (2007) e Faour (2006) que<br />
discutem a transcrição “<strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>” e seus usos pedagógicos. A análise <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s apontou<br />
para o emprego <strong>de</strong> diferentes conhecimentos informais utiliza<strong>do</strong>s pelos músicos populares<br />
no âmbito <strong>de</strong> suas aprendizagens no ensino <strong>do</strong> instrumento e da música popular.
Introdução<br />
No Brasil, as pesquisas sobre performance na área da cognição, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> geral, visam<br />
compreen<strong>de</strong>r como o performer apren<strong>de</strong> e interpreta seu repertório, as suas emoções<br />
no momento da performance, o preparo <strong>do</strong> recital, o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> suas habilida<strong>de</strong>s<br />
e os procedimentos utiliza<strong>do</strong>s para apren<strong>de</strong>r. Alguns trabalhos que tratam<br />
<strong>do</strong> piano, por exemplo, as temáticas <strong>de</strong>stacam o estu<strong>do</strong> da música erudita européia<br />
e nacional e a maneira como os performers apren<strong>de</strong>m, executam e interpretam seu<br />
repertório <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong>: a comunicação da expressivida<strong>de</strong> e da emoção na execução<br />
(Gerling; Santos, 2007); a análise <strong>do</strong> rubato em diferentes gravações <strong>de</strong> uma mesma<br />
obra (Gerling, 2007); os efeitos <strong>de</strong> exercícios corporais na preparação para o recital<br />
(Oliveira, 2007); conhecimentos musicais envolvi<strong>do</strong>s na preparação <strong>de</strong> repertório<br />
em curso <strong>de</strong> graduação <strong>de</strong> piano (Santos; Hentschke, 2007); a ação pianística,<br />
coor<strong>de</strong>nação motora e <strong>de</strong>sempenho técnico (Póvoas et. all, 2007).<br />
Na análise <strong>de</strong> alguns trabalhos sobre a performance e seu ensino e aprendizagem<br />
apresenta<strong>do</strong>s nos <strong>Simpósio</strong>s <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicas (<strong>SIMCAM</strong>), percebemos<br />
que a performance da música popular não tem si<strong>do</strong> contemplada como objeto<br />
<strong>de</strong> estu<strong>do</strong> da cognição musical. Sob essa perspectiva este artigo preten<strong>de</strong> discutir<br />
como as características da performance na música popular, em seus aspectos interpretativos,<br />
perceptivos e analíticos, são organiza<strong>do</strong>s e sistematiza<strong>do</strong>s como procedimentos<br />
<strong>de</strong> ensino e mobiliza<strong>do</strong>s na aula <strong>de</strong> instrumento popular. Essa discussão<br />
faz parte <strong>de</strong> uma dissertação <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong> cujo objetivo é compreen<strong>de</strong>r como os<br />
professores <strong>de</strong> piano popular <strong>do</strong> Núcleo <strong>de</strong> Música Popular <strong>do</strong> Centro <strong>de</strong> Educação<br />
Profissional – Escola <strong>de</strong> Música <strong>de</strong> Brasília (CEP/EMB) sistematizam, organizam<br />
e justificam os conhecimentos e habilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> piano popular em suas<br />
práticas <strong>do</strong>centes. A pesquisa empregou o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caso como opção meto<strong>do</strong>lógica<br />
na qual a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> é o Núcleo <strong>de</strong> Música Popular <strong>do</strong> CEP/EMB. Os instrumentos<br />
<strong>de</strong> coleta <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s foram a entrevista semi-estruturada e a observação<br />
não-participante. O roteiro <strong>de</strong> entrevista teve como pontos principais<br />
conhecer a formação <strong>do</strong> entrevista<strong>do</strong> como músico e como professor, as concepções<br />
sobre o perfil <strong>do</strong> aluno <strong>de</strong> música popular e as características das suas aulas <strong>de</strong> contrabaixo.<br />
A análise <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s foi qualitativa e procurou revelar categorias <strong>de</strong> análise<br />
que permitissem compreen<strong>de</strong>r a formação musical e <strong>do</strong>cente, bem comoos<br />
procedimentos <strong>de</strong> ensino da música popular. Foi realizada uma primeira entrevista<br />
para levantar informações sobre a formação musical e <strong>do</strong>cente <strong>do</strong> professor, a sua<br />
atuação profissional e as suas aulas <strong>de</strong> instrumento; em seguida foi realizada a observação<br />
<strong>de</strong> aulas e, para finalizar foi feita uma segunda entrevista para aprofundar<br />
informações e esclarecer dúvidas, observações e conclusões sobre a temática investigada.<br />
Neste artigo apresentamos uma análise parcial <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> piloto que revelou os conhecimentos<br />
e habilida<strong>de</strong>s o professor mobiliza <strong>de</strong> sua prática como músico para<br />
203
204<br />
ensinar o contrabaixo popular. Enten<strong>de</strong>mos que trabalhos <strong>de</strong>ssa natureza são relevantes<br />
para se discutir processos <strong>de</strong> ensino e aprendizagem da música bem como as<br />
maneiras que performer organiza a sua práxis para ensinar. O artigo apresenta a seguinte<br />
estrutura: estu<strong>do</strong>s sobre os conhecimentos e habilida<strong>de</strong>s na performance em<br />
música popular e a análise <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> piloto.<br />
Performance em música popular – conhecimentos<br />
e habilida<strong>de</strong>s<br />
De mo<strong>do</strong> geral, tradicionalmente, os estu<strong>do</strong>s na área <strong>de</strong> música têm enfatiza<strong>do</strong> a<br />
pesquisa e a sistematização <strong>do</strong> ensino e a aprendizagem <strong>do</strong> repertório erudito. Segun<strong>do</strong><br />
Green (2001), na tradição formal <strong>de</strong> ensino há o pre<strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> alguns princípios<br />
fundamentais, valores e objetivos compartilha<strong>do</strong>s pelos professores no ensino<br />
e aprendizagem <strong>do</strong> instrumento na música erudita. Essa prática <strong>do</strong>cente enfatiza o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento rigoroso da técnica e sua aplicação minuciosa e sensível na interpretação<br />
<strong>de</strong> um limita<strong>do</strong> repertório <strong>de</strong> peças. A expectativa <strong>do</strong>s professores <strong>de</strong> música<br />
está centrada no estu<strong>do</strong> regular <strong>do</strong> instrumento com o pre<strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> um<br />
regime <strong>de</strong> ensino e prática em que há um balanço entre os exercícios técnicos – escalas,<br />
arpejos ou estu<strong>do</strong>s – e as peças musicais. Neste tipo <strong>de</strong> ensino, os professores<br />
po<strong>de</strong>m abordar conteú<strong>do</strong>s musicais gerais como forma musical, história da música,<br />
teoria, <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> instrumento e <strong>do</strong> seu repertório, porém, o foco central<br />
é o avanço técnico, a expressivida<strong>de</strong> e o repertório <strong>do</strong> instrumento em si (Green,<br />
2001).<br />
Os estu<strong>do</strong>s e as pesquisas que tratam da música popular e os seus processos <strong>de</strong> ensino<br />
e aprendizagem são recentes e ainda escassos apesar <strong>de</strong> existirem, no Brasil, há<br />
mais <strong>de</strong> 20 anos cursos técnicos, <strong>de</strong> graduação e <strong>de</strong> pós-graduação como, por exemplo,<br />
os cursos ofereci<strong>do</strong>s pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Campinas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1989 e o curso <strong>de</strong><br />
piano popular <strong>do</strong> CEP/EMB existente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1990. A ausência <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s na música<br />
popular e o crescente <strong>de</strong>sinteresse <strong>do</strong>s jovens pela aprendizagem da música erudita<br />
mobilizaram Green (2001) a questionar os processos <strong>de</strong> ensino e aprendizagem<br />
da música erudita e a estudar como os músicos populares apren<strong>de</strong>m. A pesquisa<strong>do</strong>ra<br />
buscou sistematizar e organizar procedimentos <strong>de</strong> aprendizagem, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s<br />
como parte das práticas informais <strong>do</strong>s músicos populares. Embora algumas práticas<br />
<strong>de</strong> aprendizagem <strong>do</strong> campo informal possam ser i<strong>de</strong>ntificadas também no ensino<br />
formal da música erudita,<br />
Green (2001) afirma que há diferenças significativas entre o formal e o informal<br />
para o ensino e aprendizagem da música no que diz respeito ao contexto que os envolvem<br />
e as atitu<strong>de</strong>s e os valores que os acompanham. Ao <strong>de</strong>talhar essas diferenças<br />
entre o ensino formal e as práticas informais <strong>de</strong> aprendizagem <strong>do</strong>s músicos populares,<br />
Green (2005), <strong>de</strong>stacou cinco categorias emergentes em sua pesquisa com
músicos <strong>de</strong> bandas <strong>de</strong> rock da Inglaterra. De acor<strong>do</strong> com o relato <strong>de</strong>sses músicos,<br />
suas aprendizagens ocorreram:<br />
1. por meio da escolha da música, em geral a música escolhida para estu<strong>do</strong> ou<br />
objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> é a música <strong>de</strong>les ou com a qual eles se i<strong>de</strong>ntificam e estão familiariza<strong>do</strong>s;<br />
2. pela cópia <strong>de</strong> gravações <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> sem a orientação <strong>de</strong> um professor ou a presença<br />
<strong>de</strong> uma partitura com notação tradicional ou <strong>de</strong> melodia e cifras;<br />
3. <strong>de</strong> maneira muitas vezes autodidata;<br />
4. pela aprendizagem em grupo, entre os amigos no ensaio <strong>de</strong> uma banda, por<br />
exemplo,envolven<strong>do</strong> a discussão, a atenção, a escuta e a imitação entre os<br />
pares;<br />
5. pela assimilação <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s e conhecimentos às vezes <strong>de</strong> forma inconsciente,<br />
que irão caracterizar uma performance pessoal.<br />
Os processos <strong>de</strong> aprendizagem musical informal têm também <strong>de</strong>perta<strong>do</strong> o interesse<br />
<strong>de</strong> pesquisa<strong>do</strong>res brasileiros. Nesse senti<strong>do</strong>, os estu<strong>do</strong>s brasileiros têm encontra<strong>do</strong><br />
resulta<strong>do</strong>s muito semelhantes aos <strong>de</strong> Green (2001). Corrêa (2009) ao<br />
investigar os procedimentos <strong>de</strong> aprendizagem informais e extra-escolares <strong>de</strong> jovens<br />
i<strong>de</strong>ntificou que seus processos <strong>de</strong> autoaprendizagem no violão envolviam o “tirar<br />
música” <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> ou por imitação; a experimentação <strong>de</strong> cifras encontradas na Internet<br />
ou nas “revistinhas”; a prática <strong>de</strong> partes da música para memorizá-la e a troca<br />
<strong>de</strong> idéias com amigos ou pessoas próximas que tocam violão. Nos estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Marques<br />
(2006), as aprendizagens extra-escolares são incentivadas pelos pais, pelo merca<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> trabalho, pela vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber mais sobre o seu instrumento e pelo prazer<br />
<strong>de</strong> tocar em grupo. As maneiras como os jovens investiga<strong>do</strong>s aprendiam música incluiu<br />
a observação <strong>de</strong> outros músicos, a experimentação <strong>de</strong> copiar e/ou imitar os<br />
seus “í<strong>do</strong>los” e as pesquisas <strong>de</strong> estilos e <strong>de</strong> formações e/ou grupos que envolviam o<br />
seu instrumento e os <strong>de</strong> músicos da atualida<strong>de</strong>.<br />
Com relação à prática <strong>do</strong>cente em música popular, o trabalho <strong>de</strong> Couto (2008) investigou<br />
a prática pedagógica <strong>do</strong>s professores <strong>de</strong> piano popular <strong>de</strong>ntro das escolas<br />
formais <strong>de</strong> música e <strong>de</strong> que forma os seus procedimentos <strong>de</strong> ensino se relacionavam<br />
às práticas informais <strong>de</strong> aprendizagem <strong>do</strong>s músicos populares. Os resulta<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
seu trabalho revelaram que, embora os professores <strong>de</strong>monstrassem ter conhecimento<br />
sobre a importância das práticas <strong>de</strong> aprendizagem informal para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>do</strong> trabalho com o repertório popular, nem to<strong>do</strong>s as utilizavam nas suas<br />
aulas e que alguns professores ainda mantinham um pensamento atrela<strong>do</strong> aos mol<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> aula tradicional <strong>de</strong> piano.<br />
Dentre as habilida<strong>de</strong>s e procedimentos <strong>de</strong> aprendizagem <strong>do</strong> músico popular se <strong>de</strong>stacam<br />
os estu<strong>do</strong>s relaciona<strong>do</strong>s à transcrição <strong>de</strong> partituras “<strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>”. Para Maranesi<br />
(2007) e Faour (2006), a transcrição não <strong>de</strong>ve ser um fim em si mesma, mas um<br />
205
206<br />
treinamento para que o aluno <strong>de</strong>senvolva mais tar<strong>de</strong> o seu próprio estilo musical.<br />
Para Maranesi (2007), esse procedimento é utiliza<strong>do</strong> na performance da música popular<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que surgiram as primeiras instituições <strong>de</strong> ensino e no estu<strong>do</strong> da improvisação<br />
tonal que utiliza como fonte as transcrições <strong>de</strong> solos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s<br />
expoentes da música popular. Os benefícios da transcrição para a aprendizagem <strong>do</strong><br />
repertório popular vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o entendimento das tradições da música oral até o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento das habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> criação e <strong>de</strong> improvisação, além <strong>de</strong> ampliar a<br />
produção <strong>de</strong> partituras <strong>de</strong> música popular. Segun<strong>do</strong> Maranesi,<br />
“a transcrição figura em estu<strong>do</strong>s etnomusicológicos mo<strong>de</strong>rnos como um <strong>do</strong>s principais<br />
meios analíticos para a compreensão da música <strong>de</strong> tradição oral e também<br />
constitui uma das bases importantes no ensino da música popular na<br />
contemporaneida<strong>de</strong>. As transcrições, especialmente em forma <strong>de</strong> melodia cifrada,<br />
constituem um material tradicionalmente utiliza<strong>do</strong> no aprendiza<strong>do</strong> e na<br />
prática performática usa<strong>do</strong> no dia a dia <strong>de</strong> músicos populares para o treinamento<br />
da criativida<strong>de</strong> e o exercício <strong>do</strong> improviso” (Maranesi, 2007, p. 2; 57).<br />
Os estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Faour (2006) <strong>de</strong>stacam também a transcrição como uma ferramenta<br />
pedagógica para a análise e execução <strong>do</strong> repertório da música popular. Para ela, além<br />
<strong>de</strong> prover material didático-pedagógico, a transcrição tem o objetivo <strong>de</strong> prover subsídios<br />
ao intérprete para capacitá-lo a traduzir as idéias <strong>do</strong> compositor. A importância<br />
<strong>de</strong> se estudar e transcrever os acompanhamentos, por exemplo, <strong>de</strong>ve-se ao<br />
fato <strong>de</strong> que a prática da execução da música popular está baseada na transmissão<br />
oral ou na imitação e, os símbolos tradicionais da notação musical não são suficientes<br />
para a interpretação <strong>do</strong> repertório <strong>de</strong>sse instrumento. Gomes (2008) <strong>de</strong>staca<br />
ainda a transcrição como uma das habilida<strong>de</strong>s requeridas <strong>do</strong> instrumentista que<br />
executa o repertório popular porque ela possibilita a aquisição <strong>de</strong> vocabulário musical<br />
próprio para interpretar estilos e subestilos da música popular.<br />
Os estu<strong>do</strong>s apresenta<strong>do</strong>s <strong>de</strong>stacam a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolver um equilíbrio<br />
entre os conhecimentos teóricos e técnicos da performance com a aquisição <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s<br />
e conhecimentos musicais informais música popular. Dentre esses conhecimentos<br />
e habilida<strong>de</strong>s se <strong>de</strong>stacam o “tirar <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>”, a imporvisação, a leitura<br />
<strong>de</strong> diferentes grafias musicais, a autoaprendizagem e a aprendizagem entre os pares.<br />
O músico e o professor Paul<br />
Paul é músico popular que toca contrabaixo elétrico e acústico. Ele tem 40 anos e<br />
a sua formação musical começou com aulas particulares no baixo elétrico e <strong>de</strong>pois<br />
no baixo acústico. A sua formação acadêmica compreen<strong>de</strong> a Licenciatura em Música<br />
e especialização e mestra<strong>do</strong> em jazz no exterior. É professor <strong>de</strong> contrabaixo elétrico<br />
<strong>do</strong> CEP/EMB <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2003. A sua formação musical e sua prática <strong>do</strong>cente<br />
envolveram: 1) a sua aprendizagem musical; 2) a influência <strong>do</strong>s parentes e amigos;<br />
3) a complementarieda<strong>de</strong> entre aprendizagens formais e informais da música; 4) a
aquisição <strong>do</strong> vocabulário e <strong>do</strong>s clichês e a incorporação <strong>do</strong>s estilos musicais; 5) a<br />
sua formação <strong>do</strong>cente; 6) as concepções sobre o papel <strong>do</strong> professor; 7) o “ser músico”<br />
popular; 8) a aprendizagem <strong>do</strong> repertório popular e; 9) os procedimentos <strong>de</strong><br />
ensino e aprendizagem da música popular.<br />
1. A complementarieda<strong>de</strong> das formações<br />
entre a aprendizagem formal e informal<br />
As aprendizagens formais <strong>de</strong> Paul foram consi<strong>de</strong>radas aquelas ligadas ao aprendiza<strong>do</strong><br />
da música erudita como a leitura <strong>de</strong> partituras, o <strong>do</strong>mínio técnico <strong>do</strong> instrumento<br />
e o conhecimento sobre harmonia. Na vivência musical <strong>de</strong> Paul, as práticas<br />
formais <strong>de</strong> aprendizagem musical que ele adquiriu nas suas aulas formais <strong>de</strong> contrabaixo<br />
acútisco – leitura <strong>de</strong> partitura, <strong>do</strong>mínio técnico, harmonia - se fundiram<br />
às aprendizagens informais fora da escola. O <strong>do</strong>mínio técnico se refere principalmente<br />
ao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> manejo <strong>do</strong> arco que contribuiram<br />
para a afinação e a sonorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> instrumento. Com relação aos conhecimentos <strong>de</strong><br />
harmonia, Paul <strong>de</strong>staca a importância <strong>do</strong> conhecimento <strong>de</strong> condução <strong>de</strong> vozes e os<br />
seus benefícios para a performance da música popular: o pensamento harmônico<br />
horizontal e o vertical. O pensamento ou enca<strong>de</strong>amento vertical, ou seja, o raciocínio<br />
<strong>do</strong>s acor<strong>de</strong>s em blocos é o que normalmente os músicos populares usam para<br />
analisar, elaborar e perceber a harmonia. Já o pensamento horizontal é mais utiliza<strong>do</strong><br />
no repertório erudito, pois envolve a percepção da linha melódica e <strong>do</strong> contraponto.<br />
“A música erudita trabalha as duas coisas: a condução <strong>de</strong> vozes tem a parte vertical<br />
que é aquela on<strong>de</strong> o acor<strong>de</strong> é forma<strong>do</strong> naquele momento, mas tem a parte<br />
horizontal que são aquelas vozes que vão se contraponto e como elas vão crian<strong>do</strong><br />
as harmonias [. . .] Isso [a condução <strong>de</strong> vozes] na música popular, você não tem<br />
tantos instrumentos, você tem ali um trio clássico: baixo, piano e bateria. Claro<br />
que tem a condução <strong>do</strong> baixo e <strong>do</strong> piano. Mas a gente não trabalha com essa<br />
coisa da condução <strong>de</strong> vozes que a música erudita tem o tempo inteiro. A gente<br />
pensa mais verticalmente, naquele bloco <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s que vão se movimentan<strong>do</strong>.<br />
Claro que tem enca<strong>de</strong>amentos e uma série <strong>de</strong> coisas, mas é bem menos” (EPP, p.<br />
4).<br />
Para Paul, o pensamento horizontal serve como base para o aprendiza<strong>do</strong> da música<br />
popular porque enriquece a elaboração <strong>do</strong>s acor<strong>de</strong>s e a construção das melodias<br />
nos diversos instrumentos <strong>do</strong> grupo popular. Outro aspecto que complementa a<br />
formação musical <strong>do</strong> performer, na opinião <strong>de</strong> Paul, é a influência <strong>de</strong> músicos populares<br />
e eruditos. Segun<strong>do</strong> ele, ouvir e tocar repertórios varia<strong>do</strong>s enriquece e expan<strong>de</strong><br />
o vocabulário musical para quem quer atuar na esfera popular porque o<br />
músico adquire e absorve os “clichês” <strong>de</strong>stes <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s.<br />
207
208<br />
2. O “ser músico” popular e ensinar a “ser músico popular”<br />
Na experiência <strong>de</strong> Paul, ser músico popular é conhecer e executar diferentes estilos,<br />
improvisar, adquirir a técnica e o <strong>do</strong>mínio no instrumento, leitura <strong>de</strong> partituras em<br />
notação tradicional e <strong>de</strong> cifras, tirar músicas “<strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>”, transcrever solos <strong>de</strong> outros<br />
performers e <strong>de</strong> outros instrumentos. Estes conhecimentos e habilida<strong>de</strong>s são imprescindíveis<br />
para o músico popular se inserir no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho.<br />
Paul relata que adquiriu o conhecimento <strong>de</strong> diferentes estilos musicais por meio<br />
da prática profissional, ouvin<strong>do</strong> gravações e apren<strong>de</strong>n<strong>do</strong> com outros músicos. As<br />
suas experiências profissionais como músico popular possibilitou a sua participação<br />
em muitos shows, acompanhan<strong>do</strong> cantores e atuan<strong>do</strong> em diferentes formações instrumentais<br />
com diferentes músicos. Além <strong>de</strong> ampliar o seu repertório, Paul incorporou<br />
muitos estilos em sua prática. A maneira como os ritmos e estilos foram<br />
incorpora<strong>do</strong>s e mobiliza<strong>do</strong>s na performance é explica<strong>do</strong> por Paul:<br />
“(. . .) quan<strong>do</strong> eu vou tocar jazz, eu não sou só aquele músico <strong>de</strong> jazz, sou aquele<br />
que também toca blues, que também toca samba, pop – eu a<strong>do</strong>ro música pop –<br />
que também toca Beatles. Então eu incorporo um pouco isso. Eu acho que também<br />
é um pouco. Não é que agora eu liguei o botão e sou o Paul jazzista, agora<br />
eu liguei outro botão e sou o Paul pop, o Paul . . . Não! Você leva os mun<strong>do</strong>s,<br />
uma coisa puxa a outra, eu não vou conseguir tirar isso <strong>de</strong> mim. Isso está associa<strong>do</strong>,<br />
está incorpora<strong>do</strong>. A gente incorpora estes estilos e usa da melhor maneira<br />
possível. Eu sempre vou levar contribuições <strong>de</strong> coisas que eu her<strong>de</strong>i <strong>do</strong> rock para<br />
o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> jazz e vice-versa para o mun<strong>do</strong> da música brasileira” (EPP, p. 11).<br />
Segun<strong>do</strong> os da<strong>do</strong>s coleta<strong>do</strong>s, o merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho da música popular é amplo e<br />
ten<strong>de</strong> a crescer. Dentre as ativida<strong>de</strong>s musicais <strong>do</strong> músico popular se incluem: trabalhar<br />
em um estúdio <strong>de</strong> gravação, acompanhar cantores, ser band lea<strong>de</strong>r. Paul consi<strong>de</strong>ra<br />
que o aluno <strong>de</strong>ve vivenciar diversos estilos na aula para aprimorar este<br />
conhecimento na prática, bem como se inserir no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho. Em suas palavras:<br />
“[. . .] você tem <strong>de</strong> dar uma gama <strong>de</strong> estilos para o aluno, seja música nor<strong>de</strong>stina,<br />
forró, frevo, maracatu, afoxé, seja música ligada mais para o sul e o su<strong>de</strong>ste que<br />
é samba, bossa nova, pago<strong>de</strong> tradicional. (. . .) a gente acaba abrangen<strong>do</strong> tu<strong>do</strong><br />
isso: uma gama <strong>de</strong> estilos que é para <strong>de</strong>ixar o aluno pelo menos conhece<strong>do</strong>r,<br />
ainda que seja pouco conhecimento, mas ele já vai saber, ele terá noção daquele<br />
mun<strong>do</strong>, saber o que é um maracatu, saber o que é uma bossa, a diferença da bossa<br />
e um samba, <strong>de</strong> um samba-canção e uma bossa. Só para ter uma noção. Para o<br />
aluno também ter acesso a isso, muitas vezes passa uma vida musical que ele até<br />
nunca vai tocar <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> estilo, po<strong>de</strong> ser que ele passe e nunca venha a tocar<br />
o maracatu na vida <strong>de</strong>le inteira. Pelo menos se aparecer essa necessida<strong>de</strong> ele já se<br />
confrontou com isso aqui” (EPP – p. 6).<br />
Além <strong>de</strong> conhecer uma diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estilos musicais e executá-los, a improvisação<br />
no estilo também é consi<strong>de</strong>rada uma competência significativa para o músico<br />
popular. Para Green (2001), a improvisação juntamente com a criação está con-
tida na composição. Paul também consi<strong>de</strong>ra que o conceito <strong>de</strong> improvisação aproxima-se<br />
da composição, ou seja, é uma composição em tempo real. Quanto aos procedimentos<br />
<strong>de</strong> ensino realiza<strong>do</strong>s por Paul para trabalhar a improvisação na sala <strong>de</strong><br />
aula, se <strong>de</strong>staca a escrita musical tradicional das idéias musicais. O professor justifica<br />
sua ação pedagógica pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhar a sistematização das idéias<br />
musicais no improviso, pois os alunos nesta fase <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> têm dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> executar<br />
no instrumento as idéias musicais ao mesmo tempo em que as formula em sua<br />
mente, daí a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sistematizar e escrever para <strong>de</strong>senvolver a “construção<br />
melódica”. Paralelamente, Paul trabalha técnicas <strong>de</strong> composição como o motivo, o<br />
contraste <strong>de</strong> motivo, o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> motivo, a modulação, a pergunta e resposta<br />
e materiais sonoros usa<strong>do</strong>s para improvisar como escalas, as escalas bebops, os<br />
arpejos, a sucessão <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s. As ativida<strong>de</strong>s em sala <strong>de</strong> aula, por exemplo, po<strong>de</strong>m<br />
ser estruturadas da seguinte forma: criação <strong>de</strong> motivos melódicos, seu <strong>de</strong>senvolvimento,<br />
expansão e contraste segui<strong>do</strong>s <strong>de</strong> exercícios técnicos <strong>de</strong> improvisação como<br />
análise harmônica, função e substituição <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s, uso <strong>de</strong> escalas para cada acor<strong>de</strong><br />
e centro tonal. Observa-se nos procedimentos didáticos <strong>de</strong> Paul a preocupação em<br />
trabalhar a técnica instrumental aplicada ao contexto musical sen<strong>do</strong> o treinamento<br />
das escalas não um fim em si mesmo, mas um estu<strong>do</strong> consciente melódico e harmônico<br />
realiza<strong>do</strong> concomitante ao estu<strong>do</strong> das “levadas” que caracterizam os diferentes<br />
estilos musicais. Ele justifica sua ação da seguinte forma:<br />
“[. . .] fazer a escala com a divisão <strong>de</strong> samba já que eu estou com dificulda<strong>de</strong> em<br />
fazer o samba, ele está com dificulda<strong>de</strong>, então faz a escala com samba. [. . .] Ou<br />
se for baião, a divisão que vai fazer. [. . .] E assim vai, e isso para qualquer estilo<br />
e na minha aula eu sempre procuro juntar as duas coisas, a prática com a parte<br />
técnica e teoria” (EPP, p. 12).<br />
O ensino e aprendizagem <strong>de</strong> um instrumento <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> geral e especificamente na<br />
música popular exigem o <strong>do</strong>mínio técnico e expressivo <strong>do</strong> instrumento para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s musicais como compor em tempo real, executar uma<br />
“levada” rítmica ou melódica e improvisar. Paul explica que se o pensamento estiver<br />
somente nas notas, na divisão rítmica ou no <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> não será possível improvisar,<br />
nem fazer uma “levada” ou explorar a sonorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> instrumento. A técnica<br />
precisa ser <strong>de</strong>senvolvida para que o músico “não pense” em to<strong>do</strong>s esses aspectos enquanto<br />
está tocan<strong>do</strong>, mas execute expressivamente e musicalmente a música.<br />
Com relação ao <strong>do</strong>mínio da grafia musical, Green (2001) afirma que os músicos<br />
populares em estágios inicias <strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong>senvolvem o conhecimento sobre<br />
vários tipos <strong>de</strong> notação – partituras convencionais, tablatura <strong>de</strong> violão, notação <strong>de</strong><br />
bateria e símbolos <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s. Em suas práticas musicais, a grafia está relacionada<br />
com as práticas aurais e é utilizada mais como suplemento <strong>do</strong> que como fonte primária<br />
<strong>de</strong> aprendizagem Em sua atuação <strong>do</strong>cente e musical Paul concebe a grafia<br />
musical da mesma forma. Assim, ele, trabalha a leitura musical associada à sua audição<br />
em gravação:<br />
209
210<br />
“Porque a gravação, às vezes a gente só coloca o papel entre aspas. Coloca o papel<br />
e ele acha que a música vem dali. Não, é só uma facilida<strong>de</strong> pra ele, já tem todas<br />
as notas escritas e os acor<strong>de</strong>s, mas ele tem que enten<strong>de</strong>r o contexto to<strong>do</strong> e o que<br />
dá o contexto to<strong>do</strong> é a gravação. Daí você vê to<strong>do</strong>s os instrumentos interagin<strong>do</strong><br />
ali na gravação, como a melodia tá sen<strong>do</strong> tocada em relação com os outros, como<br />
o improviso está sen<strong>do</strong>, no caso, vesti<strong>do</strong> pelos outros músicos” (EPP, p. 24).<br />
A ênfase dada à compreensão <strong>do</strong> “contexto to<strong>do</strong>”, como explica Paul, é observada<br />
em suas aulas. Durante a pesquisa, em uma das observações realizadas Paul utilizou<br />
a audição <strong>de</strong> gravações <strong>do</strong> repertório a ser aprendi<strong>do</strong> para que o aluno apreen<strong>de</strong>sse<br />
o ritmo escrito na partitura. Em alguns momentos da aula observada, as<br />
dúvidas e dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> compreensão da leitura musical eram sanadas também<br />
com <strong>de</strong>monstrações musicais realizadas pelo próprio professor.<br />
As ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura musical também são trabalhadas para <strong>de</strong>senvolver a memorização<br />
musical. Paul relata que utiliza melodias cifradas para auxiliar o aluno a<br />
memorizar a forma e/ou as sessões da música e as progressões harmônicas. O <strong>do</strong>mínio<br />
<strong>do</strong> texto musical contribui para a performance consciente, permitin<strong>do</strong> liberda<strong>de</strong><br />
e confiança para acompanhar, transpor e improvisar. Os conhecimentos<br />
harmônicos relaciona<strong>do</strong>s com a grafia musical são aborda<strong>do</strong>s juntamente com prática<br />
para <strong>de</strong>senvolver conhecimentos e habilida<strong>de</strong>s que são necessários para a improvisação<br />
e para a transposição em outros tons. Para Paul o conhecimento<br />
harmônico na música popular é fundamental para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> outras<br />
habilida<strong>de</strong>s e conhecimentos musicais.<br />
“Duas coisas, primeiro você visualizan<strong>do</strong> o grau, você muito mais <strong>do</strong> que saber<br />
que nota você tá usan<strong>do</strong>. Você por saber o grau, você já sabe a nota, tá implícito<br />
isso. Mas você já tá saben<strong>do</strong> a função daquela nota no acor<strong>de</strong>, quan<strong>do</strong> você pensa<br />
em grau, você não tá pensan<strong>do</strong> que tá tocan<strong>do</strong> um Do, não, to tocan<strong>do</strong> . . . Se o<br />
acor<strong>de</strong> no caso for um La menor, você tá tocan<strong>do</strong> a terça <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>, então é<br />
muito mais, é um conhecimento além da nota em si. Você não tá. . . você tá enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong><br />
o que tá acontecen<strong>do</strong> na harmonia e melodia, por isso que eu gosto <strong>de</strong><br />
pensar em graus porque você cria consciência daquela nota. [. . .] Agora você já<br />
tá nesse contexto. Pensan<strong>do</strong> já que ela é a terça <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>. Isso pra qualquer<br />
coisa e no caso da música popular às vezes a gente vai se <strong>de</strong>parar com momentos<br />
que a música vai ser tocada em outra tonalida<strong>de</strong> [. . .] como essa música que<br />
a gente tava tocan<strong>do</strong> na aula anterior [Samba <strong>de</strong> Orly]. Aí a cantora fala “não<br />
esse tom pra mim Do Maior é muito alto tem que ser La Maior”. Então você tem<br />
que transpor na hora. “Não esse tom aqui, Lá também não ficou bom, vamos pra<br />
um outro, vamos pra Fa, né”, aí vai pra Fa. Ou seja, você pensan<strong>do</strong> em graus, eu<br />
já sei o que tá acontecen<strong>do</strong>. Do no primeiro grau, vou pra 4ª aumentada fazen<strong>do</strong><br />
II, V pro III, vou pro <strong>VI</strong>, aí caio II, V pro IV grau aí IV grau menor né, III, <strong>VI</strong>,<br />
II, II, V, I. Então eu penso em grau, fica fácil pra eu transpor, eu não tenho mais<br />
que pensar: “vai pro Do eu agora fui pra La Maior, <strong>do</strong> La eu vou pro Re susteni<strong>do</strong>”<br />
não, eu já tenho isso em graus que me dá tu<strong>do</strong> isso” (EPP, p. 25-26).<br />
O conhecimento teórico na música popular não <strong>de</strong>svaloriza o “tirar <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>”,
habilida<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rada essencial para o músico popular. “Tirar <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>” significa<br />
reproduzir uma música enquanto a escuta, memorizar uma música e reproduzi-la,<br />
reproduzir estilos musicais suas “levadas” e idiomas estilísticos. A reprodução aural<br />
envolve um nível <strong>de</strong> compreensão musical que, muitas vezes a partitura não transmite.<br />
Além disso, em muitas situações <strong>de</strong> performance não há partituras, fican<strong>do</strong> a<br />
aprendizagem restrita a reprodução e imitação aural e visual Nesse senti<strong>do</strong>, Paul incentiva<br />
seus alunos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os níveis básicos a ouvir varia<strong>do</strong>s repertórios e performances<br />
com o intuito <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r por meio da audição, da imitação e da transcrição.<br />
O trabalho <strong>de</strong> transcrição musical é realiza<strong>do</strong> inicialmente a partir da transcrição<br />
<strong>do</strong> baixo <strong>de</strong> uma música da preferência <strong>do</strong>s alunos. O processo <strong>de</strong> ouvir e transcrever<br />
visa <strong>de</strong>spertar o interesse pela transcrição, consi<strong>de</strong>rada habilida<strong>de</strong> relevante para<br />
a formação <strong>do</strong> músico popular. Quan<strong>do</strong> alguns alunos se sentem inseguros e com<br />
dificulda<strong>de</strong>s para encontrar a nota ou o ritmo e escrevê-los corretamente na partitura,<br />
Paul acompanha os exercícios <strong>do</strong>s alunos na aula comentan<strong>do</strong> e acrescentan<strong>do</strong><br />
à aprendizagem aural os conhecimentos teóricos:<br />
“(. . .) a gente vê “olha essa nota aqui tá errada, vamos ver aqui, vamos ver que<br />
acor<strong>de</strong> que é aqui, vamos tentar <strong>de</strong>scobrir” (. . .) <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início eu já tento colocar<br />
coisa da questão da harmonia na linha <strong>de</strong> baixo pra eles terem uma noção:<br />
“olha, é um acor<strong>de</strong> maior, que terça que ele tá usan<strong>do</strong> aí”, “é maior também”, “há,<br />
legal”. “E quinta, o que ele tá usan<strong>do</strong> mais aí, que graus ele tá usan<strong>do</strong> e se está<br />
nesse acor<strong>de</strong>” (EPP - p. 16).<br />
Para Paul, o procedimento <strong>de</strong> tirar “<strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>” <strong>de</strong>ve estar integra<strong>do</strong> à teoria, o que<br />
permite que o aluno não reproduza simplesmente, mas que ele <strong>de</strong>scubra auditivamente,<br />
tenha consciência e seja autônomo:<br />
“Não só reproduzir, ele faz a coisa muito mecanicamente às vezes no dia-a-dia e<br />
se você começa a perguntar para o aluno: “o que você tá usan<strong>do</strong>, ou então no caso,<br />
o que ele tá usan<strong>do</strong> na gravação”? E o aluno <strong>de</strong>scobre por si mesmo, não fui eu<br />
que falei. Ele tocou e <strong>de</strong>scobriu só que ele não teve consciência daquilo, ele tirou<br />
<strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>. Aí quan<strong>do</strong> ele começa a fazer as três coisas: consegue tirar <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>,<br />
consegue executar e consegue enten<strong>de</strong>r o que tá fazen<strong>do</strong>; aí é maravilhoso, aí ele<br />
sai daqui, ele sai realiza<strong>do</strong> mais <strong>do</strong> que eu” (EPP – p. 16).<br />
A transcrição nas aulas <strong>de</strong> Paul também envolve “tirar” os solos <strong>de</strong> outros instrumentos<br />
musicais. Segun<strong>do</strong> o professor, esta prática fez parte da sua formação e ele<br />
a <strong>de</strong>senvolve com os seus alunos. A transcrição <strong>de</strong> um solo <strong>de</strong> saxofone, por exemplo,<br />
inclui o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> frasea<strong>do</strong>, <strong>de</strong> respiração e <strong>de</strong> articulação, conteú<strong>do</strong>s importantes<br />
para <strong>de</strong>senvolver as habilida<strong>de</strong>s expressivas e interpretativas. A experiência<br />
da transcrição inclui ainda “tirar” melodias em outros instrumentos, o que é mais<br />
complexo, pois envolve a transferência da melodia original para o contrabaixo elétrico.<br />
O objetivo principal das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> transcrição não é o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
da escrita, mas <strong>de</strong>senvolver a expressão <strong>do</strong> aluno.<br />
“É uma coisa que é vital para o ensino da música popular, é a parte <strong>de</strong> percepção<br />
211
212<br />
e tirar <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>, e a ente não se atém muito pelo menos aqui, eu falo muito<br />
para os alunos “olha não me interessam as notas, interessa como vocês vão tocar<br />
essas notas, eu quero exatamente. . . a respiração, eu quero o frasea<strong>do</strong>, eu quero<br />
a ligadura da nota como ele tocou”. Então eu to muito mais interessa<strong>do</strong> na expressão,<br />
na expressivida<strong>de</strong> da frase <strong>do</strong> que as notas certas que você vai tocar na<br />
transcrição” (EPP – p. 17-18).<br />
Conclusão<br />
Neste breve relato, nota-se que a perspectiva <strong>de</strong>sse músico sobre a performance o<br />
ensino e aprendizagem da música popular está estreitamente interliga<strong>do</strong> à sua própria<br />
experiência como performer. De certo mo<strong>do</strong>, as conclusões <strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong> contradizem<br />
os resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Green (2001) e <strong>de</strong> Couto (2008) que afirmam que os<br />
músicos populares em uma situação <strong>de</strong> ensino não valorizam as suas práticas informais<br />
<strong>de</strong> aprendizagem. Por um la<strong>do</strong>, a concepção <strong>de</strong> música popular que nasce<br />
<strong>do</strong>s professores <strong>do</strong> CEP/EMB é direcionada para merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho e voltada<br />
para a formação <strong>do</strong> aluno para aten<strong>de</strong>r à <strong>de</strong>manda <strong>de</strong>ste merca<strong>do</strong>. Por outro la<strong>do</strong>,<br />
Paul consi<strong>de</strong>ra as suas experiências <strong>de</strong> autoaprendizagem no ensino <strong>do</strong> instrumento<br />
nas suas aulas <strong>de</strong> música. Essas experiências envolvem a prática, o tirar “<strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>”<br />
e a transcrição. Para ele formar o performance em música popular é passar para o<br />
aluno as habilida<strong>de</strong>s e os conhecimentos que foram importantes na sua própria formação<br />
como músico. Percebemos o quanto a auto-perceção, a auto-estima e a autoconsciência<br />
das habilida<strong>de</strong>s performáticas que o professor vê em si mesmo<br />
modifica a maneira como ele concebe, estrutura e modifica a sua prática <strong>do</strong>cente.<br />
Quan<strong>do</strong> o músico se valoriza enquanto<br />
performer provavelmente será um professor que trabalhará motiva<strong>do</strong> e procurará<br />
<strong>de</strong>senvolver no seu aluno o prazer e a motivação <strong>do</strong> fazer musical. Sugerimos que<br />
os estu<strong>do</strong>s no campo da cognição contemplem a performance na música popular e<br />
o ensino e aprendizagem da música popular.<br />
Referências Bibliográficas<br />
Couto, Ana Carolina Nunes. 2008. Ações pedagógicas <strong>do</strong> professor <strong>de</strong> piano popular: um<br />
estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caso. Dissertação (Mestra<strong>do</strong>) – Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais, Belo<br />
Horizonte.<br />
Corrêa, Marcos K. 2009. Discutin<strong>do</strong> a autoaprendizagem musical. In Jussamara Souza<br />
(Org.) Apren<strong>de</strong>r e ensinar música no cotidiano. Porto Alegre: Ed. Sulinas.<br />
Faour, Paula. 2006. Acompanhamento pianístico em Bossa Nova: análise rítmica em duas<br />
performances <strong>de</strong> João Donato e Cesar Camargo Mariano. Dissertação (Mestra<strong>do</strong>) –<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
Gerling, Cristina C.; Santos, Regina A. T. A comunicação da expressão na execução musical<br />
ao piano. In: <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais, 3. Salva<strong>do</strong>r. p. 147-153.
Gerling, Fredi Vieira. Valsa <strong>de</strong> esquina n° 2, um estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> tempo. In: <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais, 3, 2007, Salva<strong>do</strong>r. Salva<strong>do</strong>r. p. 154-158.<br />
Gomes, Rafael Tomazoni. 2008. Piano solo no samba-choro: algumas possibilida<strong>de</strong>s a partir<br />
<strong>de</strong> duas performances <strong>de</strong> Cesar Camargo Mariano. Monografia (graduação) – Universida<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> Santa Catarina, Florianópolis.<br />
Green, Lucy. 2001. How Popular Musicians Learn: a way ahead for music education. Lon<strong>do</strong>n:<br />
Ashgate.<br />
———. 2005. Meaning, autonomy, and authenticity in the music classroom. Lon<strong>do</strong>n: University<br />
of Lon<strong>do</strong>n Ed.<br />
Marques, Alice F. A. 2006. Processos <strong>de</strong> aprendizagem musicais paralelos à aula <strong>de</strong> instrumento:<br />
três estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> caso. Dissertação (mestra<strong>do</strong> em educação musical) – Universida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Brasília, Brasília.<br />
Maranesi, Elenice. 2007. O piano popular <strong>de</strong> Cesar Camargo Mariano: a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> um<br />
processo <strong>de</strong> transcrição. Dissertação (mestra<strong>do</strong> em artes) - Escola <strong>de</strong> música e <strong>Artes</strong> Cênicas<br />
da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Goiás, Goiânia.<br />
Oliveira, Alda. 2007. O efeito <strong>de</strong> exercícios corporais como esquentamento e preparação<br />
para recital <strong>de</strong> piano. In: <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais, 3. Salva<strong>do</strong>r. p.<br />
159-164.<br />
Póvoas, Maria B. C. et. al. 2007. Inter-relações entre o fator <strong>do</strong> <strong>de</strong>sempenho, coor<strong>de</strong>nação<br />
motora e a ação pianística. In: In: <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais, 3. Salva<strong>do</strong>r.<br />
p. 625-632.<br />
Ray, Sônia. 2005. Por que um performer <strong>de</strong>ve pesquisar cognição musical? In: <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> <strong>Simpósio</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais, 3. Salva<strong>do</strong>r. p. 88-93.<br />
Santos, R. A. T. e Hentsche, Liane. 2007. Conhecimentos musicais envolvi<strong>do</strong>s na preparação<br />
<strong>de</strong> repertório pianístico <strong>de</strong> três bacharelan<strong>do</strong>s sob a ótica da matriz <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s<br />
cognitivas em música <strong>de</strong> Davidson e Scripp. In: <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong><br />
Musicais, 3. Salva<strong>do</strong>r. p. 305-311.<br />
213
214<br />
Investigação e auto-regulação<br />
na preparação <strong>de</strong> uma obra pianística<br />
Regina Antunes Teixeira <strong>do</strong>s Santos<br />
jhsreg@adufrgs.ufrgs.br<br />
Cristina Capparelli Gerling<br />
cgerling@ufrgs.br<br />
Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Música – UFRGS<br />
Resumo<br />
A preparação <strong>do</strong> Ponteio no. 22 (Triste) <strong>de</strong> Guarnieri foi preparada por estudantes <strong>de</strong><br />
graduação e pós-graduação em piano (N = 15), sem auxílio <strong>de</strong> seu professor <strong>de</strong> instrumento.<br />
A preparação foi monitorada através <strong>de</strong> registros <strong>de</strong> performances e <strong>de</strong> entrevistas<br />
sobre a preparação ao longo <strong>de</strong> 16 semanas. Os resulta<strong>do</strong>s foram analisa<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />
forma a extrair indícios <strong>de</strong> procedimentos <strong>de</strong> investigação e <strong>de</strong> auto-regulação, que<br />
foram parametriza<strong>do</strong>s e avalia<strong>do</strong>s por <strong>do</strong>is árbitros. Os resulta<strong>do</strong>s sugerem que para esse<br />
grupo, a maioria <strong>do</strong>s estudantes mais auto-regula que investiga com vistas a um aprofundamento<br />
da obra. Ao longo da preparação, observa-se também que a maioria <strong>do</strong>s<br />
estudantes incrementa a taxa <strong>de</strong> auto-regulação em <strong>de</strong>trimento aos procedimentos <strong>de</strong><br />
investigação.<br />
Introdução<br />
A literatura em psicologia educacional e <strong>de</strong> educação musical tem emprega<strong>do</strong> o<br />
construto <strong>de</strong> auto-regulação para referir aos esforços sistemáticos para direcionar<br />
pensamentos, sentimentos e ações na realização <strong>de</strong> certo objetivo direciona<strong>do</strong> por<br />
metas (Schunk, 1995; Zimmerman, 2000; McPherson, Zimmerman, 2002, 2008;<br />
Gollwitzer, Gawrilow e Oettingen, 2010).<br />
Especificamente, a literatura <strong>de</strong> educação musical tem relata<strong>do</strong> estratégias <strong>de</strong> autoregulação<br />
usadas por estudantes <strong>de</strong> música em diferentes contextos <strong>de</strong> aprendizagem,<br />
revelan<strong>do</strong> vários aspectos relaciona<strong>do</strong>s à forma como eles apren<strong>de</strong>m ou<br />
<strong>do</strong>minam a aprendizagem <strong>de</strong> uma nova peça (vi<strong>de</strong>, por exemplo, Nielsen, 2001;<br />
Hallam, 2001; McPherson e Renwick, 2001; Austin e Berg (2006); Leon-Guerrero<br />
2008; Bartolome, 2009). Por exemplo, Hallam (2001) entrevistou músicos<br />
profissionais e estudantes em relação a sua prática instrumental e concluiu que estudantes<br />
são capazes <strong>de</strong> usar processos auto-regulatórios, incluin<strong>do</strong> planejamento,<br />
monitoramento e estratégias <strong>de</strong> avaliação durante a prática. Contu<strong>do</strong>, resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />
McPherson e Renwick (2001) e Austin e Berg (2006) sugerem que processos autoregulatórios<br />
são emprega<strong>do</strong>s em maior e menor grau na prática <strong>de</strong> estudantes, indican<strong>do</strong><br />
que alguns estudantes ten<strong>de</strong>m a seguir uma prática com rotina não efetiva.<br />
Em trabalhos anteriores, após estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> casos envolven<strong>do</strong> estudantes <strong>de</strong> piano, foi
possível <strong>de</strong>monstrar que a mobilização <strong>de</strong> conhecimentos musicais na preparação<br />
<strong>de</strong> repertório instrumental (piano) ocorre por meio <strong>de</strong> uma dinâmica cíclica <strong>de</strong><br />
movimentos intencionais <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s <strong>de</strong> disposições experienciais <strong>de</strong> investigação<br />
e <strong>de</strong> auto-regulação (Santos 2007). Assim, o construto <strong>de</strong> investigação foi adiciona<strong>do</strong><br />
àquele <strong>de</strong> auto-regulação para complementar a compreensão sobre o<br />
processo da preparação (Santos, 2007; Santos e Hentschke, 2009). Conduta ou<br />
disposição à investigação sob essa perspectiva envolve formas <strong>de</strong> pensamento indutivo<br />
e <strong>de</strong>dutivo, e abarca postura <strong>de</strong>liberada <strong>de</strong> busca <strong>de</strong> meios e recursos externos<br />
para aprofundar a compreensão e o conhecimento <strong>de</strong> uma peça em preparação.<br />
A dinâmica cíclica da mobilização <strong>de</strong> conhecimentos musicais compreen<strong>de</strong> etapas<br />
<strong>de</strong> organização, gerenciamento e supervisão que, nos casos investiga<strong>do</strong>s, mostraram-se<br />
ser qualitativamente diferencia<strong>do</strong>s quanto ao equilíbrio atingi<strong>do</strong> entre ações<br />
aprendidas e ativida<strong>de</strong>s criativas.<br />
Figura 1 — Ciclo <strong>de</strong> disposições experienciais <strong>de</strong> investigação e auto-regulação<br />
(organização, gerenciamento e supervisão) para produção musical final na<br />
preparação (Santos, 2007).<br />
Em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong>ssa proposta, um estudante mais avança<strong>do</strong> e, com uma leitura e<br />
compreensão musical mais apurada, <strong>de</strong>veria percorrer esses (sub-)ciclos <strong>de</strong> investigação<br />
e auto-regulação <strong>de</strong> forma mais eficiente e veloz que um iniciante. Nessa hipótese,<br />
o <strong>de</strong>slocamento cíclico se realizaria mais rapidamente ainda que, em um<br />
número maior <strong>de</strong> vezes. Assim, em extensão ao mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> mobilização <strong>de</strong> conhecimentos<br />
musicais (Santos, 2007), surgiu-nos alguns questionamentos. Como<br />
ocorre a dinâmica cíclica da preparação <strong>de</strong> um repertório pianístico em termos <strong>de</strong><br />
produção musical qualitativamente diferenciada? Qual é o grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência<br />
entre o nível <strong>de</strong> expertise <strong>do</strong>s estudantes <strong>de</strong> piano?<br />
O objetivo geral <strong>de</strong>ssa pesquisa foi investigar a dinâmica cíclica da prática em termos<br />
<strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong> procedimentos <strong>de</strong> auto-regulação e investigação na preparação<br />
<strong>do</strong> repertório inseri<strong>do</strong> na tradição da música clássica oci<strong>de</strong>ntal.<br />
215
216<br />
Meto<strong>do</strong>logia<br />
Em um <strong>de</strong>lineamento semi-experimental, estudantes <strong>de</strong> graduação e pós-graduação<br />
em piano (N = 15) participantes <strong>do</strong> Laboratório <strong>de</strong> Execução Musical (UFRGS)<br />
receberam uma peça curta (Ponteio no. 22 <strong>de</strong> Guarnieri) para preparem ao longo<br />
<strong>de</strong> 16 semanas, sem auxílio <strong>de</strong> seu professor <strong>de</strong> piano. A coleta se <strong>de</strong>senvolveu em<br />
3 etapas, conforme representação no Esquema 1.<br />
Esquema 1 — Representação da meto<strong>do</strong>logia <strong>de</strong> coleta <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s.<br />
De acor<strong>do</strong> com o Esquema 1, os da<strong>do</strong>s foram coleta<strong>do</strong>s ao longo <strong>de</strong> 16 semanas,<br />
e em três etapas. A primeira foi <strong>de</strong>stinada à coleta sobre a preparação. Nesta<br />
etapa foram realiza<strong>do</strong>s três encontros individuais, on<strong>de</strong> ocorreram as entrevistas<br />
sobre a preparação (entrevistas semi-estruturada e registro <strong>de</strong> performance). O roteiro<br />
para as entrevistas contemplou: tempo <strong>de</strong> prática, problemática enfrentada,<br />
características <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> (organização (?), planejamento(?), auto-monitoramento<br />
(?)), estratégias <strong>de</strong> prática e <strong>de</strong> performance, (possíveis) hipóteses/idéias para avançar<br />
a preparação. Em uma segunda etapa, ocorreu a entrevista <strong>de</strong> estimulação <strong>de</strong><br />
recordação, on<strong>de</strong> os estudantes escutaram seus respectivos registros e escolheram o<br />
melhor <strong>de</strong>les. Na terceira etapa ocorreu a apreciação pelos próprios estudantes <strong>de</strong><br />
seus produtos em registro em áudio e áudio-vi<strong>de</strong>o.<br />
As entrevistas foram transcritas e os da<strong>do</strong>s categoriza<strong>do</strong>s. Em algumas situações,<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> da natureza <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s, tratamentos estatísticos (correlação, escalonamento<br />
multidimensional e análise <strong>de</strong> clusters) foram utiliza<strong>do</strong>s. Para a presente comunicação<br />
serão discuti<strong>do</strong>s apenas os da<strong>do</strong>s das duas primeiras etapas.
Resulta<strong>do</strong>s e Discussão<br />
A sistematização <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s das entrevistas permitiu categorizá-los em termos <strong>de</strong>:<br />
(i) <strong>de</strong>cisões básicas (escolha <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>, <strong>de</strong>limitações <strong>de</strong> frases, por exemplo), (ii)<br />
<strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> expressão (andamento, dinâmica, timing, por exemplo), (iii) monitoramento<br />
sobre prática (iii) metas para a prática/ problemática <strong>de</strong> performance, (iv)<br />
especulação intencional sobre estrutura musical. A Tabela 1 apresenta exemplos<br />
sobre a categorização <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s.<br />
Tabela 1 — Indícios <strong>de</strong> investigação e auto-regulação, interpretadas a partir <strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong>poimentos <strong>do</strong>s estudantes.<br />
Indícios <strong>de</strong> Auto-regulação<br />
Indícios <strong>de</strong> Investigação<br />
Manipulação <strong>de</strong> estratégias básicas Decisões sobre:<br />
• Dedilha<strong>do</strong>/divises <strong>de</strong> mãos<br />
• Estruturas rítmicas<br />
• Delimitação <strong>de</strong> frases<br />
• Precisão <strong>do</strong> controle motor<br />
Manipulação <strong>de</strong> estratégias expressivas Decisões sobre:<br />
• Andamento e timing<br />
• Dinâmica: intensida<strong>de</strong> e sonorida<strong>de</strong><br />
• Direcionamento das frases (contorno)<br />
Monitoramento sobre a problemática Sem foco<br />
Dificulda<strong>de</strong>s em colocação <strong>de</strong> problemas<br />
Ficar íntimo da partitura<br />
Metas claras para continuar a prática<br />
Realização <strong>de</strong> diário<br />
Especulação intencional sobre estrutura musical Análise da estrutura musical em nível básico<br />
(estrutura rítmica)<br />
Análise da estrutura musical em nível básico<br />
(melodia)<br />
Análise da estrutura musical em nível básico<br />
(harmonia)<br />
Exploração/ hipótese sobre as implicações<br />
das indicações <strong>de</strong> dinâmica<br />
Implicações <strong>do</strong> direcionamento das frases<br />
(contorno) e a exploração <strong>do</strong> fluxo <strong>do</strong>s<br />
eventos (timing)<br />
Manipulação <strong>de</strong> recursos em áudio<br />
Reflexões sobre o senti<strong>do</strong> e caráter da palavra<br />
“triste”<br />
Reflexões sobre textos publica<strong>do</strong>s discutin<strong>do</strong><br />
os Ponteios <strong>de</strong> Guarnieri<br />
No presente grupo investiga<strong>do</strong>, cerca <strong>de</strong> 50% <strong>do</strong>s estudantes <strong>de</strong>monstrou possuir<br />
mais procedimentos <strong>de</strong> auto-regulação <strong>do</strong> que <strong>de</strong> investigação, contra 25% que<br />
apresentou comportamento inverso. Apenas 25% da amostra <strong>de</strong>monstraram um<br />
balanço entre investigação e auto-regulação. A relação entre esses <strong>do</strong>is aspectos po<strong>de</strong><br />
ser acompanhada ao longo das três etapas <strong>de</strong> coleta. A Figura 2 apresenta esses resulta<strong>do</strong>s<br />
expressos em termos <strong>do</strong>s valores atribuí<strong>do</strong>s à razão auto-regulação/inves-<br />
217
218<br />
tigação. Na legenda abaixo, as letras U e G, referem-se, respectivamente a graduan<strong>do</strong><br />
e pós-graduan<strong>do</strong>. O número correspon<strong>de</strong> ao ano em que se encontra. No caso <strong>de</strong><br />
mais <strong>de</strong> um estudante na mesma condição, esses foram diferencia<strong>do</strong>s pelas letras<br />
minúsculas a, b e c. Assim, por exemplo, U2c representa um estudante <strong>de</strong> graduação,<br />
que se encontra no segun<strong>do</strong> ano e correspon<strong>de</strong> ao terceiro estudante, nesse<br />
mesmo nível acadêmico.<br />
(a)<br />
(b)<br />
(c)<br />
Figura 2 — Taxa entre os valores atribuí<strong>do</strong>s às condutas <strong>de</strong> auto-regulação e<br />
investigação: (a) alunos cuja capacida<strong>de</strong> auto-regula<strong>do</strong>ra cresce durante a<br />
preparação; (b) estudantes cuja capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> investigação aumenta durante a<br />
preparação e (c) estudantes cujos procedimentos <strong>de</strong> auto-regulação e <strong>de</strong><br />
investigação são mantidas <strong>de</strong> forma equilibrada durante a preparação.
Com base nas entrevistas e nas performances (avaliadas por <strong>do</strong>is árbitros), os estudantes<br />
foram avalia<strong>do</strong>s em uma escala <strong>de</strong> 0 a 5, para ambos as modalida<strong>de</strong>s:<br />
(i) investigação: <strong>de</strong> (0) – ausente a (5) – aquisição conceptual <strong>de</strong> recursos interpretativos.<br />
(ii) auto-regulação: <strong>de</strong> (0) – ausente a (5) – ajuste <strong>de</strong>libera<strong>do</strong> <strong>de</strong> recursos expressivos<br />
<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os resulta<strong>do</strong>s da performance.<br />
De acor<strong>do</strong> com a Figura 2, diferentes parâmetros po<strong>de</strong>m ser extraí<strong>do</strong>s da população<br />
investigada. A maioria <strong>do</strong>s estudantes ten<strong>de</strong> a empregar mais procedimentos <strong>de</strong><br />
auto-regulação ao longo <strong>de</strong> sua preparação (a). Em um número menor <strong>de</strong> estudantes,<br />
a investigação cresce com o passar <strong>do</strong> tempo (observe que o <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>r, investigação<br />
cresce com o tempo, e portanto, a razão – or<strong>de</strong>nada – <strong>de</strong>cresce). Apenas<br />
<strong>do</strong>is estudantes dispuserem <strong>de</strong> um equilíbrio praticamente constante entre esses<br />
<strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> procedimentos ao longo <strong>de</strong> toda a preparação. Cabe salientar que a categorização<br />
da população investigada nesses três grupos mostrou ser in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
<strong>do</strong> nível <strong>de</strong> expertise (graduação ou pós-graduação).<br />
Consi<strong>de</strong>rações Finais<br />
A coleta <strong>de</strong> uma população relativamente maior <strong>de</strong> estudantes permitiu apontar<br />
aspectos complementares a serem pon<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s na revisão <strong>do</strong> ciclo da preparação<br />
proposto inicialmente por Santos (2007). As disposições experienciais <strong>de</strong> investigação<br />
que alavancam a preparação são, na maioria <strong>do</strong>s casos, <strong>de</strong> natureza tácita: estratégias<br />
e formas <strong>de</strong> pensamento musicais parecem surgir mais <strong>de</strong> incursões no<br />
instrumento <strong>do</strong> que a partir <strong>de</strong> um recuo sobre o fenômeno da preparação e <strong>do</strong>s<br />
eventos musicais conti<strong>do</strong>s na obra. Por outro la<strong>do</strong>, a análise das entrevistas e a observação<br />
<strong>do</strong>s produtos da preparação apontam como fator relevante o sentimento<br />
<strong>de</strong> competência para a realização, que por sua vez afeta tanto o nível da conduta <strong>de</strong><br />
investigação (ousar a hipotetizar), como o nível <strong>de</strong> engajamento para uma conduta<br />
auto-regulada frente a um produto parcial.<br />
A eficiência na aproximação inicial (<strong>de</strong>codificação em nível básico) foi satisfatória<br />
para quase to<strong>do</strong>s (13 <strong>de</strong>ntre os 15 participantes), mas qualitativamente distinta em<br />
função <strong>do</strong> nível <strong>de</strong> expertise <strong>do</strong>s estudantes. O percurso persegui<strong>do</strong>, após a etapa<br />
preliminar <strong>de</strong> aproximação, é múltiplo, e parece <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r das peculiarida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
cada participante, em função <strong>de</strong> fatores tais como: disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tempo para<br />
estu<strong>do</strong>, familiarida<strong>de</strong> e afinida<strong>de</strong> com a obra, entre outros. Finalmente, <strong>de</strong> uma<br />
forma geral, evi<strong>de</strong>ncia-se o sentimento <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> auxílio externo (conselhos<br />
<strong>do</strong> professor) para avançar a perspectiva sobre a preparação.<br />
Os da<strong>do</strong>s revelaram que a maioria <strong>do</strong>s estudantes mais auto-regulam <strong>do</strong> que investigam<br />
em suas práticas. A complexida<strong>de</strong> da realização parece exigir mais ajuste sobre<br />
produtos atingi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que investigação em senti<strong>do</strong> heurístico. Na amostra obser-<br />
219
220<br />
vada, a investigação restringiu-se ao nível da experiência sensível, ou seja, o nível <strong>de</strong><br />
expertise <strong>do</strong> aluno.<br />
Agra<strong>de</strong>cimentos<br />
R.A.T. <strong>do</strong>s Santos e C.C. Gerling agra<strong>de</strong>cem ao CNPq pelas bolsas Pós-Doutora<strong>do</strong> e PQ,<br />
respectivamente.<br />
Referências<br />
Austin, J.R., Berg, M.H. 2006. Exploring music practice among sixth-gra<strong>de</strong> band and orchestra<br />
stu<strong>de</strong>nts. Psychology of music 34, 535-558.<br />
Bartolome S.J. 2009. Naturally emerging self-regulated practice behaviors among highly successful<br />
beginning recor<strong>de</strong>r stu<strong>de</strong>nts. Research Studies in Music Education 31, 37-51.<br />
Gollwitzer, P.M., Gawrilow C, Oettingen G. 2010. The power of planning: self-control by<br />
effective goal-striving. In R.R. Hassin, K.N. Ochsener, Y. Trope (Eds.) Self Control in<br />
Society, Mind, and Brain, p. 3-26. New York: Oxford University Press.<br />
Leon-Guerrero A. 2008. Self-regulation strategies used by stu<strong>de</strong>nt musicians during music<br />
practice. Music Education Research 10, 91-106.<br />
McPherson G.E.; J.M. Renwick. 2001. A longitudinal study of self-regulation in children´s<br />
musical practice. Music Education Research 3, 169-186.<br />
McPherson G.E.; B.J. Zimmerman. 2002. Self-regulation of musical learning: A social cognitive<br />
perspective. In R. Colwell, C. Richardson (Eds.). The new handbook of research on<br />
music teaching and learning, p. 327-347. New York: Oxford University Press.<br />
Nielsen S. 2001. Self-regulating learning strategies in instrumental music practice. Music<br />
Education Research 3, 156-157.<br />
Santos, R.A.T. 2007. Mobilização <strong>de</strong> conhecimentos musicais na preparação <strong>do</strong> repertório<br />
pianístico ao longo da formação acadêmica: três estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> caso. Porto Alegre: UFRGS,<br />
2007 (Tese, Doutora<strong>do</strong> em Música).<br />
Santos, R.A.T.; L. Hentschke. (2009) The piano repertoire preparation: A research method<br />
as a potential tool for reflective instrumental practice. In A. Williamon, S. Pretty,<br />
R. Buch (Eds.) Proceedings of the international symposium on performance science, p. 261-<br />
266. Auckland: AEC.<br />
Schunk, D.H. (1995). Self-efficacy and education and instruction. In J.E. Maddux (Ed.)<br />
Self-efficacy, adaptation and adjustment: Theory, research, and application (pp. 281-291).<br />
Zimmerman, B.J. 2000. Attaining self-regulation: A social cognitive perspective. In M. Boekarts,<br />
P.R. Printrich, and M. Zeidner (Eds.). Handbook of self-regulation. San Diego:<br />
Aca<strong>de</strong>mic Press.<br />
Zimmerman, B.J. 2008. Investigating self-regulaton and motivation: Historical background,<br />
metho<strong>do</strong>logical <strong>de</strong>velopments, and future prospects. American Educational Research<br />
Journal 45, pp. 166-183.
Abstract<br />
Cogito ergo jazz: improvisational transformations<br />
in Joe Hen<strong>de</strong>rson’s “No Me Esqueça”<br />
Mtafiti Imara<br />
mimara@csusm.edu<br />
California State University San Marcos<br />
If improvisation is at the heart of jazz performance, and the ability to improvise is an indication<br />
of cognitive processes, then jazz performance is a measure of the embodiment<br />
of thinking. Arguably, the major distinguishing factor between composition and improvisation<br />
is “the pre-existence of a large set of formal constraints which comprise a ‘blueprint’<br />
or ‘skeleton’ for the improvisation.”1 Given the relatively fixed parameters of the<br />
great jazz saxophonist Joe Hen<strong>de</strong>rson’s composition “No Me Esqueça”2; in what ways<br />
would young musicians (ages 18-24) align themselves with, and subsequently <strong>de</strong>viate from,<br />
the melody while responding to relatively fixed rhythmic and harmonic accompaniment<br />
upon which the original melody is based? What <strong>do</strong>es this “subsequent” <strong>de</strong>velopment entail<br />
cognitively? Several cognitive components are at play in this experiment such as memory,<br />
attention and the perception of patterns/sequences. If we assume that there are<br />
basically three categories of response, i.e. imitation/repetition, silence, and variation (within<br />
a musical form predicated upon a call and response paradigm) - as well as three basic<br />
types of melodic contour, i.e. arc, inverted arc, and stationary, then what <strong>de</strong>gree of coherence<br />
to the melodic contour can be measured over time in these “solos”3?<br />
Introduction<br />
This shameless appropriation of Descartes’ already flawed statement serves two<br />
functions. The first thing is its catchiness; not unlike heralding <strong>de</strong>vices used by<br />
many jazz performers who “quote” a well-known melody or execute a “lick” from<br />
an equally well-known pre<strong>de</strong>cessor. The intent is to get you, the rea<strong>de</strong>r or listener,<br />
to pay attention; take notice of what is to follow. The second, and most important<br />
function of this title is to suggest a <strong>de</strong>construction of its common associations4 and<br />
have the rea<strong>de</strong>r (re) consi<strong>de</strong>r possible new meanings and associations, especially as<br />
juxtaposed with the notion of improvisation. Joe Hen<strong>de</strong>rson’s composition, which<br />
has become a jazz standard, actually has two titles – both in Portuguese. No Me<br />
Esqueça translates “<strong>do</strong>n’t’ forget me”, while the more common reference to the<br />
same composition Recorda Me translates as “remember me”. Deciphering the subtle<br />
differences in meaning of these titles is not within the scope of this paper, but<br />
it is in<strong>de</strong>ed these very subtleties that point to one of the most challenging issues in<br />
cognitive science, i.e. un<strong>de</strong>rstanding the nature of memory. The basic argument<br />
here is that musical memory (as well as attention and expectation) is cultivated by<br />
juxtaposing the original (prototype) with the new, and that improvisational trans-<br />
221
222<br />
formations are the result an embodied process that necessitates a social milieu. Improvisation,<br />
although a formidable study within music/cognitive science, presents<br />
a metho<strong>do</strong>logical in-road or a means to challenge this narrative of Cartesian dualism.<br />
This process will entail: 1) mapping (or comparing) the individual stu<strong>de</strong>nt’s<br />
improvisation against the melody to reveal the level of coherence; 2) mapping the<br />
stu<strong>de</strong>nts’ transcription with herself to reveal transformations; and 3) comparing all<br />
the stu<strong>de</strong>nts’ transcriptions against each other to reveal ten<strong>de</strong>ncies (if any).<br />
Improvisation<br />
The ability to improvise is not only <strong>de</strong>termined by how well a performer remembers,<br />
but the storehouse of learning experiences she has actively engaged in and (re)<br />
constructed. Improvisation is a progressive, yet coherent, set of musical behaviors<br />
or actions taken in or<strong>de</strong>r to achieve the particular end of making new music in real<br />
time. The quality and <strong>de</strong>gree of improvisation in a given musical performance may<br />
vary from artist to artist, and from culture to culture as the paradigms and parameters<br />
upon which the musical style are based also vary, [but] “there is always a mo<strong>de</strong>l<br />
that <strong>de</strong>termines the scope within which a musician acts” (Ran<strong>de</strong>l 1986: 393). This<br />
mo<strong>de</strong>l may consist of elements internal to the music, e.g. harmonic structure,<br />
melody, and rhythmic patterns. It may also be ma<strong>de</strong> up of elements and organizing<br />
principals <strong>de</strong>termined by group and collective behaviors, e.g. the social-cultural<br />
dynamics of an In<strong>do</strong>nesian gamelan or Dixieland jazz ensemble. In either case, the<br />
mo<strong>de</strong>l serves both as a basis of reference and a point of <strong>de</strong>parture for improvisation.<br />
The act of musical improvisation occurs in many, if not all, of the world’s musics.<br />
For example: Indian classical music – Hindustani and Carnatic - dating back to<br />
the 5th century utilizes the raga-tala as the chief organizing principles for extempore<br />
transformations. Within Arabic-Persian music cultures many of the traditional<br />
forms are structured around the “maqam phenomenon” (Touma 1996). The<br />
use of diminutions in Western art music beginning with the Ars nova of the 14th<br />
century, mark an important performance practice that reached its apex during the<br />
baroque period (1600-1750), then a precipitous <strong>de</strong>cline at the dawn of the 20th<br />
century. Most, if not all, Afro-Cuban son-based musics utilize the clave as the central<br />
organizing principle [Example 1].<br />
Example 1 — Rhythm Patterns, No me esqueça, M. Imara
All of these mo<strong>de</strong>ls, systems, and/or procedures are <strong>de</strong>rived from generations of<br />
practice and observation, which suggests that there is a dialectic and tension that<br />
characterizes the process of mo<strong>de</strong>ling. The philosopher and statesman Kwame<br />
Nkrumah summed up this dialectic process in the statement, “Theory without<br />
practice is empty. Practice without theory is blind” (Nkrumah 1970:78). In addition<br />
to other cultural imperatives and historical exigencies that necessitate this coupling<br />
of thought (theory) and practice - such as survival and human progress on a<br />
collective level - there also seems to be an inherent drive in each individual for novelty<br />
or newness. In his discussion of neophilia5, Geoffrey Miller states: [it] “is so intense<br />
that it drives a substantial proportion of the global economy, particularly the<br />
television, film, publishing, news, fashion, travel, pornography, scientific research,<br />
psychoactive drug, and music industries” (Wallin 2001: 345). He suggests that<br />
music functions as a “creativity indicator”, or a means by which humans strive to<br />
form and maintain relationships with sustained interest and attraction. He also<br />
states that this indicator “could be tested by seeing whether the capacity for musical<br />
improvisation and innovation correlates significantly with intelligence and creativity<br />
according to standard psychological measures” (Wallin 2001: 346).<br />
Codifying and <strong>do</strong>cumenting the mo<strong>de</strong>l in the form of the musical score has its varied<br />
theoretical and practical purposes, but according to Derek Bailey “there is [also]<br />
something central to the spirit of voluntary improvisation which is opposed to the<br />
aims and contradicts the i<strong>de</strong>a of <strong>do</strong>cumentation” (Bailey 1992:ix). In other words,<br />
there is a human need to improvise.<br />
The essence of jazz performance<br />
Jazz is an established genre with a range of mo<strong>de</strong>led performance practices making<br />
up its 100-year (recording) history. One need only examine performers on one instrument<br />
- the tenor saxophone - to discern the diversity of approach from Lester<br />
Young and Pixinguinha (1930’s and 40’s); to John Coltrane and Sonny Rollins<br />
(1950’ and 60’s); to Joe Hen<strong>de</strong>rson and Hermeto Pascoal (1970’s and 80’s); and finally<br />
to Leo Gan<strong>de</strong>lman and Branford Marsalis (1990’s to the present) to note<br />
both improvisational divergence and aesthetic coherence. The tenor saxophone<br />
can thusly be consi<strong>de</strong>red: 1) an artifact that commonly in<strong>de</strong>xes a musical form; 2)<br />
a broad set of performance practices or languages <strong>de</strong>rivative of its practitioners; 3)<br />
a medium for artistic standards <strong>de</strong>rived from a <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>dly closed community; and<br />
4) an icon that captures the imagination of listeners while cultivating specific meaning<br />
and a particular attitu<strong>de</strong> toward life itself. The thread that connects the aforementioned<br />
artists with otherwise disparate voices is more than the horn however.<br />
It is improvisation.<br />
223
224<br />
Analogous to speech/language<br />
There have been many analogies drawn between music and speech, including between<br />
improvisation and “spontaneous speech” (e.g. Deutsch 1982; Sloboda 1985;<br />
Pressing 1988). Speech can be viewed as a mo<strong>de</strong>l for music as grammatical paradigm,<br />
and the laying out or situating of various forms of a word (e.g. conjugating a<br />
verb, <strong>de</strong>constructing sentences and parts of speech). If we consi<strong>de</strong>r, for example,<br />
reading a given text as analogous to an imitative ren<strong>de</strong>ring of a specific melody,<br />
then the analogy holds. [Figure 1] But most rea<strong>de</strong>rs, as with musical artists, “are<br />
more concerned with maintaining coherence6 than with reproducing faithfully what<br />
has been read” (De Beaugran<strong>de</strong> 1981:291). This is especially true in one-to-one<br />
conversation where gestures also contribute to meaning. Improvisation, like extemporaneous<br />
speech may involve tangential <strong>de</strong>viations, some of which may enrich<br />
the conversation, while some of what is played (or spoken) may actually diverge<br />
from what is inten<strong>de</strong>d or <strong>de</strong>sired. In this sense, an extensive musical vocabulary<br />
may be either a source of clarity or at the other extreme, obfuscation. As with<br />
speech, syntax and meaning are as much a reflection of skill as it is a will or intention<br />
to communicate (Hallam 2008:25). If the focus upon the anatomy and technique<br />
of the music is not in the service of communication, then what <strong>do</strong> we have<br />
left? Cecil Taylor commenting on John Coltrane’s playing once said: “His tone is<br />
beautiful because it is functional. In other words, it is always involved in saying<br />
something. You can’t separate the means that a man uses to say something from<br />
what he ultimately says. Technique is not separated from its content in a great artist”<br />
(Taylor 1959).<br />
Figure 1 — Analogy between Language and Music<br />
Language Music<br />
Reading Reading<br />
Writing Composing<br />
Extemporaneous speech Improvising<br />
Improvisation compared/contrasted with composition<br />
Improvisation as compared and contrasted with composition is an equally revealing,<br />
important, yet incomplete analogy. Here we have a mo<strong>de</strong>ling of archetype<br />
(composition) and prototype (improvisation). These notions are often used synonymously,<br />
but there are subtle and important differences. An archetype is a perfect<br />
and immutable form that we can approach but never duplicate. A prototype<br />
is a mo<strong>de</strong>l of prece<strong>de</strong>nt that can be refined and used as a point of <strong>de</strong>parture. When<br />
we base our aesthetic upon the archetype, we invariably fall short, but the beauty<br />
(for some) may be in the faithful ren<strong>de</strong>ring. An aesthetic sensibility aligned with
prototypes, on the other hand, tends to celebrate the striving and revelation of singular<br />
human voices. In other words, “the aesthetics of imperfection is humanistic”<br />
(Hamilton 2007).<br />
But there is a dialectic, and potentially symbiotic relationship between composing<br />
and improvising as well, as Bailey suggests: “There is scarcely a single field in music<br />
that has remained unaffected by improvisation, scarcely a single musical technique<br />
or form of composition that did not originate in improvisatory practice or was not<br />
essentially influenced by it. The whole history of music is accompanied by manifestations<br />
of the drive to improvise” (Bailey 1992:x). I would add that composition<br />
(the archetype) also informs improvisatory performance practice. For example,<br />
reading the score for its graphic content, and realizing the sonic possibilities of permutations<br />
of melodic shapes is a common practice amongst advanced players. [Example<br />
2]<br />
Example 2 — Permutations, No me esqueça.<br />
Different cultures value improvisation differently. Within Western art music history<br />
improvisation was arguably valued more in earlier periods (e.g. the Baroque<br />
1600-1750) and less so in subsequent periods as the written composition (and individual<br />
composer) rose in importance and cultural value. This transition in value<br />
was also influenced by political-economic factors as well (Attali 1992). Ironically,<br />
it is within a <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>dly western society (the United States) that an art form (jazz)<br />
<strong>de</strong>veloped that would celebrate “the aesthetics of imperfection”. Too often this <strong>de</strong>velopment<br />
has been oversimplified and characterized as a ‘melding of European<br />
harmonies with African rhythms’.<br />
From the New York Sun, in 1917:<br />
“Jazz music is the <strong>de</strong>lirium tremens of syncopation. It is strict rhythm with out<br />
melody . . . the music of contemporary savages taunts us with a lost art of<br />
rhythm. . .for jazz is based on the savage musician’s won<strong>de</strong>rful gift for progressive<br />
retarding and acceleration gui<strong>de</strong>d by a sense of swing”.<br />
225
226<br />
Or from the Times-Picayune, in 1918:<br />
“There is first the great assembly hall of melody – where most of us [whites] take<br />
our seats. . . in the house there is however, another apartment, properly speaking,<br />
<strong>do</strong>wn in the basement, a kind of servants’ hall of rhythm.”<br />
These writers were obviously shortsighted, if not outright racist, inferring and<br />
“mo<strong>de</strong>ling” a complex of cultural relationships and correspon<strong>de</strong>nces of i<strong>de</strong>ntity [Figure<br />
2].<br />
Figure 2<br />
European African<br />
Melody/harmony Rhythm<br />
Composition Improvisation<br />
Literacy Orality<br />
The Mind The Body<br />
Unfortunately, many of these essentialist notions continue to exist in the current<br />
century. But they are being challenged and ma<strong>de</strong> impotent by re<strong>de</strong>fining not only<br />
what constitutes elemental aspects of music (such as melody and rhythm), but the<br />
integral role of the body in cognitive processes (e.g. Iyer 2002; Joy & Sherry 2003;<br />
Hallam 2008; Kraus 2008). The body or one’s physicality is not something to be<br />
construed as either subordinate or greater than the mind. Where, after all, <strong>do</strong>es the<br />
brain resi<strong>de</strong>? Moreover, the further assertion that certain of the world’s people’s<br />
have a natural affinity for, or propensity to express specific musical elements – in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<br />
of any enculturation process, is problematic.<br />
In assessing the general state of improvisational research Richard Ashley observes<br />
that: “The complex relationship of the human body’s ability to real-time musicmaking<br />
has rarely been explored” (Hallam, Cross & Thaut 2009: 414). Part of the<br />
difficulty in approaching this research is in <strong>de</strong>veloping metho<strong>do</strong>logies that will help<br />
<strong>do</strong>cument and assess this process, including (but not limited to) interviews, musician<br />
testimonies, and the study of transcriptions. These challenges are similar to<br />
those faced by the performer herself. She must, “make use of the implicit knowledge<br />
of musical structure possessed by listeners in or<strong>de</strong>r to make their in-the-moment<br />
compositions coherent and stylistically appropriate” (Hallam, Cross & Thaut 2009:<br />
414). An un<strong>de</strong>rstanding of structure is not sufficient however, unless by “un<strong>de</strong>rstanding”<br />
one means having the ability to rearticulate or translate musical knowledge<br />
in real time, as Ashley suggests: “The knowledge one uses should be enco<strong>de</strong>d<br />
in procedural (know-how-to) rather than <strong>de</strong>clarative (know about) form” (Hallam,<br />
Cross & Thaut 2009: 415). In regard to integrating pattern in jazz performance<br />
V.J. Iyer has examined the cognitive processes of real time consi<strong>de</strong>rations of<br />
coordinating performance with other musicians, often in the range of 40 milliseconds<br />
or less. (Iyer 2002) His work, amongst other things, strongly suggests the need<br />
to establish research metho<strong>do</strong>logies that involve an assessment of collective music
making. Coherence in musical improvisation is therefore, not only when a performer<br />
aligns their playing with, and/or <strong>de</strong>viates from a given melody, harmonic<br />
structure and rhythmic feel of a given composition; but when she <strong>do</strong>es so creating<br />
logic that is consistent with the group.<br />
Coherence in linguistics is what makes a text semantically meaningful. Robert <strong>de</strong><br />
Beaugran<strong>de</strong> <strong>de</strong>fines coherence in his discussion of textuality, or music as text: “It is<br />
the principal that connectivity should obtain among the un<strong>de</strong>rlying concepts and<br />
relations” (De Beaugran<strong>de</strong> 1981:296). Moreover, it reflects a “continuity of senses”<br />
(Luo 2003). Although a player may not play all of the right notes, “pointing to” or<br />
being referential can, according to Ian Cross, create meaning. (Hallam, Cross &<br />
Thaut 2009:25) Roland Wiggins also un<strong>de</strong>rscores the difficult, yet importance of<br />
coherence by noting it is a “historic” moment when a musician successfully merges<br />
or “connects” the kinesthetic, semantic and syntactical aspects of music. (Lateef<br />
1981: preface) [Figure 3]<br />
Figure 3<br />
Kinesthetic Physical/body relationship to instrument<br />
Semantic Emotional content, meaning, personal conviction, cultural context<br />
Syntax Or<strong>de</strong>ring, analysis, synthesis - signification<br />
Formal Music Constraints<br />
One of the ten<strong>de</strong>ncies of the culture of aca<strong>de</strong>mia is to seek universals or archetypes.<br />
In our quest for universals, specifically a theory of improvisation, we should simultaneously<br />
consi<strong>de</strong>r juxtaposing the local and the global. This is not problematic<br />
if we consi<strong>de</strong>r the possibility of the co-existence of mo<strong>de</strong>ls that <strong>de</strong>termine, if not<br />
strongly influence, the real time performance outcomes with idiomatic or culturally<br />
<strong>de</strong>termined preferences. We must not confuse the pedagogical need and socioeconomic<br />
propensity for classification with the biological and psychological<br />
imperatives that are revealed and become illustrated by way of experimentation.<br />
For example, the constraints within the (local) idiom of jazz may at once comply<br />
with a range of acceptable aesthetic preferences (like the differences between<br />
Coltrane and Kenny G), yet fit into what Gjerdingen calls “a topology of five<br />
higher-level musical constraints” (Jones 1992:227).<br />
Figure 4 — Gjerdingen’s Topology7<br />
• A preference for filling in melodic gaps<br />
• A preference for continuing melodic lines<br />
• A preference for an arch-like melodic contour<br />
• A preference for pitch variety<br />
• A (weak) preference for the important pitches in each modal scale<br />
227
228<br />
Informal Cultural Constraints - aesthetics<br />
Why <strong>do</strong> we like and choose to listen to the music we <strong>do</strong>? From the perspective of<br />
the improviser: why <strong>do</strong> we choose to play a certain way? Or <strong>do</strong> we play what we prefer<br />
to hear? Preferences are the choosing, or giving advantage to one thing over another,<br />
yet they are broadly speaking, short-term commitments, i.e. “the music,<br />
whether a style or piece, that people like and choose to listen to at any given moment<br />
and over time” (Price 1986). Taste, on the other hand, is a relatively stable<br />
valuing. Here we move into the <strong>do</strong>main of aesthetics, especially consi<strong>de</strong>ring the<br />
guiding principles <strong>de</strong>rived from a given historically <strong>de</strong>finable “jazz” community or<br />
“the local”. In his discussion of a dialectic and continuum between composition and<br />
improvisation, Andy Hamilton notes, “the aesthetics of imperfection finds virtues<br />
in improvisation which transcend the errors in form and execution” (Hamilton<br />
2007:196). Both the challenge and cultural constraints for jazz musicians are to<br />
find solace and motivation in the process of music making, while being viable within<br />
broa<strong>de</strong>r “global” communities that value the end product.<br />
Coherence:<br />
consi<strong>de</strong>ring the formal and informal constraints<br />
Coherence, and I would argue effectiveness, is proportional to the repertoire of procedures<br />
or options a musician has un<strong>de</strong>r her control. Some of these procedures are<br />
- as stated above - formalized constraints of the music, while other restrictions are<br />
external, i.e. aesthetics. Within the formal <strong>do</strong>main: “It is clearly not enough for an<br />
improviser to know his or her performance must be structured. The improviser<br />
must have rapid access to a large and well-organized body of knowledge” (Deutsch<br />
1982: 484). If we assume that all musical structures are <strong>de</strong>termined by a tonal-spatial<br />
factor and a rhythmic-temporal factor, then we must not privilege one over another.<br />
Within the informal <strong>do</strong>main, “control” may be marked by an awareness and<br />
access to culturally specific languages or musical vernaculars. In certain music’s (e.g.<br />
maqam performance) pitch organization may <strong>do</strong>minate. In others (e.g. hip hop)<br />
rhythmic preferences and its subsequent attention, may reign supreme. But what<br />
happens when rap - a western musical <strong>de</strong>rivative - “inva<strong>de</strong>s” or influences musics of<br />
the Middle East?8<br />
Not only is there a need to re-attend, but also assume that other aspects of cognition<br />
(e.g. expectation and discrimination) are also potentially confoun<strong>de</strong>d. The<br />
ability of the improviser to produce a <strong>de</strong>sired or inten<strong>de</strong>d result (i.e. efficacy) within<br />
this new cultural context is largely <strong>de</strong>termined by her control of both the formal<br />
and informal <strong>do</strong>mains of constraints. In their discussion of musical preferences Lamont<br />
and Greasley state that: “motivations for music listening are context-<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt”<br />
(Hallam, Cross & Thaut 2009:164). This must also be true of improvisers,
if we assume that “culture should not be treated as a variable but rather as the<br />
medium through which all real-life experiences are mediated” (Hallam, Cross &<br />
Thaut 2009:165-6).<br />
Musical cognition of an improviser involves a consistency of attention, cohesion in<br />
establishing expectation, and a clarity of discrimination within a framework of formal<br />
and informal constraints. The free<strong>do</strong>m of improvising actually means playing<br />
FREEly within, and because of, a DOMain. It is precisely this <strong>do</strong>main (i.e. the constraints)<br />
that provi<strong>de</strong>s the point of <strong>de</strong>parture and frame of reference for meaning<br />
and “intentionality”, especially in a group context (Hallam, Cross & Thaut 2009:<br />
24-25). As the bassists Chuck Israel reflects:<br />
“People never un<strong>de</strong>rstood how arranged Bill Evan’s music really was. Sure, it was<br />
free and improvised. But the reason we could be so free is that we already knew<br />
the beginning, the middle, and the ending.” (Berliner 1994: 289)<br />
Cognitive processes as ‘call and response’<br />
Several cognitive components are at play in the experiment that is improvisation.<br />
How <strong>do</strong>es one simultaneously “pay attention” to a bass line, a chord played by the<br />
pianist, or one’s own sound and intonation? How <strong>do</strong>es one concentrate on the<br />
patterns being played on the ri<strong>de</strong> cymbal? What is involved in processing and executing<br />
ii-V-I patterns? Can I remember the form simply by audiation9? It is a<br />
daunting task for the young musician who is just learning the basic properties of<br />
their instruments. Moreover, this coinci<strong>de</strong>s with learning to feel comfortable in a<br />
group setting while being charged to invent anew. They are being asked to “take a<br />
risk”, to <strong>do</strong> something that seems antithetical to just “reading the lines and <strong>do</strong>ts”.<br />
According to the researcher Csikszentmihalyi: “such risk-taking ventures transform<br />
individuals through. . .a flow experience, <strong>de</strong>fined as a pleasurable somatic state<br />
induced by focused attention on an intense activity” (Joy and Sherry 2003:260).<br />
“Cognitive ability” is thus acquired, in part, by not only juxtaposing the old/known<br />
with the new/unknown, but also by a performative response to the “call” of a specific<br />
musical milieu. Embodied (cognition) thinking, the acquisition of knowledge<br />
through the senses, or through physical activity, is not a linear process however.<br />
When a jazz musician utters, “I hear you” or when one member of a group uses another<br />
performers’ “lick” as a point of <strong>de</strong>parture and thematic <strong>de</strong>velopment, there<br />
is cyclical intentionality. There is the potential for shared thinking or social cognition,<br />
i.e. a conversation based on a ‘call and response’ trope. Embodiment can thus<br />
be viewed at the cognitive level, as well as the phenomenological level. It is the<br />
kinesthetic experience of musiking. According to Joy and Sherry (2003) [it is] “sensorimotor<br />
and other bodily oriented inference mechanisms [that] inform their<br />
processes of abstract thought and reasoning”. Jazz performance is evi<strong>de</strong>nce, if not<br />
a measure, of the embodiment of thinking because thought processes are linked to<br />
229
230<br />
movement and a sensual acuity of the present moment. Although this experiment<br />
only “points to” the linkages, it is supportive of other research that un<strong>de</strong>rscores the<br />
importance of a laboratory that studies group dynamics of improvisation.<br />
Example 3 — Joe Hen<strong>de</strong>rson, No me esqueça.<br />
No Me Esqueça<br />
There exist “a large set of formal constraints which comprise a ‘blueprint’ or ‘skeleton’<br />
for improvisation; some <strong>de</strong>termined by “common practice” [and hence global]<br />
and some <strong>de</strong>termined by individual [or local] artists (Sloboda 1985:13). No Me<br />
Esqueça is exemplary of formal constraints. It is a jazz standard that has been<br />
recor<strong>de</strong>d no fewer than 70 times by various artists. The “experiment” is to <strong>de</strong>termine<br />
in what ways would young musicians (ages 18-24) align themselves with, and<br />
subsequently <strong>de</strong>viate from, the melody while responding to relatively fixed rhythmic<br />
and harmonic accompaniment upon which this melody is based. Harmonically,<br />
No Me Esqueça [Example 3] presents a series of ii-V-I patterns in a <strong>de</strong>scending<br />
sequence, after eight measures of modal harmony on A Dorian and C Dorian:<br />
Cm7-F7-Bbma7 / Bbm7-Eb7-Abma7 / Abm7-Db7-Gbma7 / Gm7-C7-Fma7. It<br />
then culminates in an E7#9 chord (split third). The melodic contour largely consists<br />
of arc and inverted arc structures, with a tessitura of a tenth [C0 to Eb1].
Contexto histórico<br />
Jazz and other musics of the African Diaspora exhibit what Olly Wilson refers to<br />
as “six ten<strong>de</strong>ncies” (Floyd 1985:262). Amongst them:<br />
“There is a ten<strong>de</strong>ncy to create musical forms in which antiphonal or call-andresponse<br />
musical structures abound. These antiphonal structures frequently<br />
exist simultaneously on a number of architectonic levels.”<br />
This notion is also articulated in the work of Anthony Braxton (1985) who suggests<br />
that there is a cognitive “feedback loop” predicated upon reflexive performance<br />
practice, i.e. constructing mo<strong>de</strong>ls based upon self-referential terms. Jazz, like other<br />
musics of the African Diaspora10, are musics born of a particular historical specificity,<br />
i.e. Within historically <strong>de</strong>finable communities and “cultures” (Becker 2004).<br />
Jazz, like other world musics, began as a local expression. It has flourished and become<br />
a vehicle to/for many musicians across space-time (as mentioned above).<br />
Questions of essentialism not withstanding, “call and response”, although profoundly<br />
articulated as paradigmatic of African Diaspora music cultures, has remained<br />
a central organizing principle wherever “jazz” is performed. Any<br />
metho<strong>do</strong>logy used in examining the nature of jazz/improvisation should therefore<br />
consi<strong>de</strong>r “the importance of studying cognition as the interaction of a person [the<br />
performer] with a milieu” (Becker 2004:6).<br />
For Joe Hen<strong>de</strong>rson (1937-2001) the harmonic rhythm was not the only constraint<br />
or parameter employed in his playing. For example, the melodic contour played as<br />
a real sequence was a common <strong>de</strong>vice he employed to generate both variety and cohesiveness<br />
in a piece. This was <strong>do</strong>ne not only in response to the internal logic of<br />
the harmony, but always as a response to the sonic exigencies presented by the<br />
rhythm section. According to the bassist Rufus Reid, he would “take all kinds of liberties<br />
in his solo. He’d take things outsi<strong>de</strong>, playing notes from chords superimposed<br />
on the original chords of the piece” [but] “no matter the direction in which<br />
he stretches it, nor how far, Hen<strong>de</strong>rson never allows it to break, but returns it always<br />
to form” (Berliner 1994:226).<br />
Metho<strong>do</strong>logy<br />
The composition was taught by: <strong>de</strong>monstration, sheet music, directed listening of<br />
recordings, and an analysis of the harmonic rhythm. This information was presented<br />
in the following manner:<br />
• Teach the scale-chord theory specific to the composition [Example 4]<br />
• Teach the basic rhythm patterns: 2:3 clave, cascara, timbao, pulse [Example 1]<br />
• Have stu<strong>de</strong>nts [at minimum] <strong>de</strong>monstrate the memorization of the melody,<br />
harmonic rhythm, and basic rhythm [percussion] patterns<br />
231
232<br />
• Have stu<strong>de</strong>nts perform [in rehearsal] improvisations of two choruses once each<br />
week<br />
• Record stu<strong>de</strong>nt “improvisations” over 6 week period<br />
• Transcribe stu<strong>de</strong>nt performances.<br />
Example 4 — J. Hen<strong>de</strong>rson, No me esqueça, scale-chord.<br />
Figure 5 — Comparisons.<br />
Original melody Individual stu<strong>de</strong>nt improvised melody<br />
Individual stu<strong>de</strong>nt improvised melody (initial<br />
performance)<br />
Individual stu<strong>de</strong>nt melody (performances over<br />
time)<br />
Analysis<br />
Individual stu<strong>de</strong>nt improvised melody (performances<br />
over time)<br />
Aggregate of group performances<br />
The transcriptions reflected a movement from fragmented melodies to typical<br />
melodic constructions, i.e. arch, inverted-arch, and static lines – all of which adhered<br />
to, or are found in No Me Esqueça. Initially the improvised melodies ten<strong>de</strong>d<br />
toward a static type with relatively low tessitura; range of a 3rd to a 4th<br />
below/above the original melody pitch. But there was also a propensity toward ascending<br />
lines rather than <strong>de</strong>scending after initiating a phrase. The phrases11 of the<br />
composition were four measures. Stu<strong>de</strong>nt phrases were generally short (less than<br />
two measures) compared to the original melody, especially when traversing the ii-<br />
V sequences (Ex.1. m.9-16). These preliminary results suggest a propensity toward<br />
arc-like melodic structures, i.e. a preference for an arch-like melodic contour<br />
(Jeppeson 1935). The conscientious and controlled use of embellishing tones12 and<br />
ornaments is an indication of coherence. However, the stu<strong>de</strong>nt-performers rarely<br />
employed “dramatic <strong>de</strong>vices” such as: trills, shakes, mor<strong>de</strong>nts, or even purposeful<br />
use of silences (Baker 1988:12-19). Stu<strong>de</strong>nts became more comfortable with the<br />
process as the semester progressed. Their willingness to “go first”, or be recor<strong>de</strong>d
more than once in a session grew with the process. They began to talk about and <strong>de</strong>velop<br />
strategies for “soloing” on/over certain harmonies using more of the rhythms<br />
played by the percussion section. The reflective aspect of critiquing themselves performing<br />
has proven useful as they begin to note: 1) what they were “pointing to” or<br />
trying to reach, hence know specifically what they need to practice; and 2) how<br />
their sound may differ from their peers, but contains its own logic – and can thus<br />
be appreciated accordingly.<br />
Conclusions<br />
At minimum, my stu<strong>de</strong>nts have come to realize that being a “jazz” musician is not<br />
as easy as common perception and popular narratives may project. They sense now,<br />
as Derek Bailey has suggested, “that there is no musical activity which requires<br />
greater skill and <strong>de</strong>votion, preparation, training and commitment” (Bailey 1992:x).<br />
They ma<strong>de</strong> many comparisons with being an athlete, as well as statements regarding<br />
specific physical challenges to executing rapid passages (<strong>de</strong>xterity); slow passages/phrases<br />
across the bar (breath control), and the need to simultaneously hear<br />
one’s self and others, i.e. concentration. The ability to improvise and the concordant<br />
cognition are not unlike a good basketball or soccer player, who practices both<br />
individual technique and set group plays ad infinitum. She is then exposed to real<br />
game situations where she cannot afford to “think” outsi<strong>de</strong> of time constraints, but<br />
must “see” and “feel” a play unfold. The exigencies of the moment allow for an expression<br />
of relevant technique that has been thoughtfully, if not unconsciously,<br />
embodied (as in the Latin, incorporare). The question remains as to whether there<br />
are musical ten<strong>de</strong>ncies generated in these early stages of improvising that can inform<br />
the learning process. Are their ten<strong>de</strong>ncies that are only expressed within a<br />
group context? A much larger sample must be taken, and over a longer period of observation.<br />
Perhaps it is an obvious point that the more one practices, e.g. scales, arpeggios, and<br />
other melodic patterns – the better one will play. Embodiment infers that the performer<br />
has internalized the scale, the chord, or the pattern, i.e. ‘remembered’ them<br />
in her body. But this is no guarantee of proficiency or efficacy as an improviser. This,<br />
of course, would be analogous to someone memorizing subject-specific vocabulary<br />
with the expectation of giving extempore speeches on that given subject. This may<br />
be the case of a necessary, but insufficient condition of preparation. A sufficient<br />
condition would inclu<strong>de</strong> intentionality, or a purpose for constructing a mo<strong>de</strong>l or<br />
an image. According to Fela Sowan<strong>de</strong>: “Imagination really means the ability to give<br />
birth to images” (Cole 1976: 186). Although there are noticeable tensions, anxiety,<br />
and resistance to improvising, even in the “safe” environment of the classroom, it<br />
is in fact, this type of musical milieu that helps cultivate a sense of or<strong>de</strong>r, syntax,<br />
and a raison d’être for our imagination. Part of the challenge for educators and mu-<br />
233
234<br />
sicians is to <strong>de</strong>construct and replace “common associations” that are practiced or<br />
learned in one space-time (the practice room) in favor of the new sonic environment.<br />
Jazz performance is evi<strong>de</strong>nce of the ten<strong>de</strong>ncy, effort, and striving for coherency<br />
and efficacy within a group (or social) context. Much to my <strong>de</strong>light, my<br />
stu<strong>de</strong>nts are forming a music community as a result of, and part of this reflexive<br />
process. Their “aesthetic sensibilities” are tending toward a realization of their “singular<br />
human voices” by way of hearing them expressed in a group. This marks an<br />
important cognitive transformation.<br />
For these young learners, there was in<strong>de</strong>ed a ten<strong>de</strong>ncy toward alignment with the<br />
original melody, [while] for mature performers, like the great Joe Hen<strong>de</strong>rson13,<br />
there was a propensity to not <strong>de</strong>viate from the constraints of the composition, but<br />
to elaborate upon the musical conversation based upon lived experience, i.e. form<br />
a greater coherence. This ontological notion may be analogous to the history and<br />
evolution of jazz-improvisational performance practice itself; from an early New<br />
Orleans’ emphasis on melodic variations and polyphonic interplay, as exemplified<br />
in the saxophonist Sidney Bechet – to the <strong>de</strong>nser structures and imaginings of John<br />
Coltrane, that arguably embodied the “language” of all of his pre<strong>de</strong>cessors. One of<br />
my composition professors once said, “Music is mankind’s greatest accomplishment.<br />
It’s an untranslatable language, a world in itself.” 14 I respectfully disagree<br />
with my mentor and offer up the aforementioned reasons. This also prompts me to<br />
re-imagine Descartes’ famous statement to read: “I am, and this is confirmed by a<br />
milieu, and that’s how and why I am able to think”.<br />
1 Sloboda, John A. (1985) The Musical Mind: The Cognitive Psychology of Music. Oxford:<br />
Claren<strong>do</strong>n Press, p. 13<br />
2 Portuguese trans. “Don’t forget me”. Also known as Recorda me = “Remember me”<br />
3 Improvisation within jazz traditions is often referred to inaccurately by this term. The phenomenon<br />
of creating melodic variations in real time is more related to group/collective dynamics.<br />
4 “Cogito ergo sum” (I think, therefore I am) forms the basis of a <strong>do</strong>minant narrative within<br />
Western philosophical thought that assumes a separation between mind-body, as well<br />
as situates the “mind” as primary.<br />
5 An acute interest in novelty and variety.<br />
6 In the sense of clarity, unity, forming a whole image (vs. a focus on disparate parts).<br />
7 Gjerdingen’s work is an assessment of a range of other researchers in this area, including:<br />
Jeppesen 1935, Meyer 1989, and Dahlhaus 1990.<br />
8 Consi<strong>de</strong>r for example, the very popular Ceza (Bilgin Özçalkan) the Turkish rapper.<br />
http://www.myspace.com/ceza<br />
9 The process of mentally hearing and comprehending music, even when no physical sound<br />
is present.
10 The African Diaspora, especially in the Americas has produced many forms that may inclu<strong>de</strong><br />
some <strong>de</strong>gree of improvisation: e.g. samba (Brazil), son (Cuba), blues (U.S.), rara<br />
(Haiti), reggae (Jamaica), and calypso (Trinidad).<br />
11 A melodic unit typically, four to eight measures long, which expresses a complete musical<br />
thought<br />
12 Pitch(s) that serve as a connection between or a <strong>de</strong>coration of the more important pitches<br />
of a melodic line, e.g. types inclu<strong>de</strong>: passing, escape, anticipation, retardation, suspensions.<br />
13 I was fortunate to have studied privately with Mr. Hen<strong>de</strong>rson from 1979-1981.<br />
14 David Sheinfeld. http://www.creativefilms.com/Sheinfeld/David_Sheinfeld/<br />
Biography.html<br />
Bibliography<br />
Attali, Jacque (1992) Noise: The Political Economy of Music. Minneapolis: University of<br />
Minnesota Press.<br />
Baker, David. (1983) Jazz Improvisation: A Comprehensive Method for All Musicians. Van<br />
Nuys, CA: Alfred Publishing, 12-19.<br />
Bailey, Derek. (1992) Improvisation: Its Nature and Practice in Music. New York: Da Capo<br />
Press.<br />
Becker, Judith (2004) Deep Listeners: Music, Emotion, and Trancing. Bloomington, IN: Indiana<br />
University Press, 3-7.<br />
Berliner, Paul F. (1994) Thinking in Jazz: The Infinite Art of Improvisation. Chicago: University<br />
of Chicago Press.<br />
Braxton, Anthony (1985) Tri-Axium Writings, 3 vols. Oakland, CA: Synthesis Music.<br />
Cole, Bill (1976) John Coltrane. New York: Da Capo Press.<br />
De Beaugran<strong>de</strong>, Robert (1981) “Design Criteria for Process Mo<strong>de</strong>ls of Reading” [in] Reading<br />
Research Quarterly 16, No. 2, 261-315.<br />
Deutsch, Diana, Ed. (1982) The Psychology of Music. New York: Aca<strong>de</strong>mic Press Inc, HBJ.<br />
Fiske, Harold E. (1993) Music Cognition and Aesthetic Attitu<strong>de</strong>s. Studies in the History<br />
and Interpretation of Music, Vol.1. Lewiston, NY: Edwin Mellen Press.<br />
Floyd, Samuel A. (1995) The Power of Black Music: Interpreting Its History from Africa to the<br />
United States. New York: Oxford University Press.<br />
Hallam, Susan, Ian Cross and Michael Thaut (2009) The Oxford Handbook of Music Psychology.<br />
Oxford: Oxford University Press.<br />
Hamilton, Andy (2007) Aesthetics & Music. New York: Continuum.<br />
Iyer, Vijay (2002) “Embodied Mind, Situated Cognition, and Expressive Microtiming in<br />
African-American Music” [in] Music Perception, 19, No. 3, 387-414.<br />
Jones, Mari Riess & Susan Holleran, Eds. (1992) Cognitive Basis of Musical Communication.<br />
Hyattsville, MD: American Psychological Association.<br />
Joy, Annamma & John F. Sherry, Jr. (2003) Speaking of Art as Embodied Imagination: A<br />
Multisensory Approach to Un<strong>de</strong>rstanding Aesthetic Experience. The Journal of Consumer<br />
Research 30, No. 2. 259-282. Chicago: University of Chicago Press.<br />
235
236<br />
Lateef, Yusef A. (1981) Repository of Scales and Melodic Patterns. Amherst, MA: Fana Music.<br />
Luo, Xuanmin (2003) “A Textual-Cognitive Mo<strong>de</strong>l for Translation”, Perspectives: Studies<br />
in Translatology 11, 1, 73-79.<br />
Nkrumah, Kwame. (1970) Consciencism: Philosophy and the I<strong>de</strong>ology for Decolonization.<br />
New York: Monthly Review Press, P.78.<br />
Patel, Aniruddh D. (2008) Music, Language, and the Brain. Oxford: Oxford University<br />
Press, 303-304.<br />
Pressing, J. (1988) “Improvisation: Methods and Mo<strong>de</strong>ls”. [In] John Sloboda, ed. Generative<br />
Processes in Music, 129-178. Claren<strong>do</strong>n: Oxford.<br />
Price, HE (1986) “A Proposed Glossary for use in affective response” Journal of Research in<br />
Music Education 34, 151-159.<br />
Ran<strong>de</strong>l, Don Michael, Ed. (1986) The New Harvard Dictionary of Music. Cambridge, MA:<br />
Belknap Press of Harvard University Press.<br />
Sloboda, John A. (1985) The Musical Mind: The Cognitive Psychology of Music. Oxford:<br />
Claren<strong>do</strong>n Press.<br />
Taylor, Cecil (1959) “John Coltrane” [in] Jazz Review, p.34.<br />
Touma, Habib Hassan. (1996) The Music of the Arabs. Portland, Oregon: Ama<strong>de</strong>us Press.<br />
Walker, Margaret F. (2000) Movement and Metaphor: Towards an Embodied Theory of<br />
Music Cognition and Hermeneutics” [in] Bulletin of the Council for Research in Music<br />
Education, No.145.<br />
Wallin, Nils L., Bjorn Merker, and Steven Brown, Eds. (2001) The Origins of Music. Cambridge,<br />
MA: The MIT Press.15<br />
Walser, Robert (1999) Keeping Time: Reading in Jazz History. New York: Oxford University<br />
Press.
A linguagem <strong>de</strong> sinais para improvisação Soundpaiting:<br />
sinalizan<strong>do</strong> uma nova ferramenta para a formação musical<br />
Bruno Coimbra Faria<br />
brunocfaria@gmail.com<br />
Departamento <strong>de</strong> <strong>Artes</strong> e Design<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora<br />
Resumo<br />
Este trabalho apresenta em caráter introdutório o que é a linguagem <strong>de</strong> sinais para improvisação,<br />
Soundpainting, seus mecanismos básicos <strong>de</strong> funcionamento, e aponta possibilida<strong>de</strong>s<br />
para o uso da mesma como ferramenta para formação musical,<br />
acompanhan<strong>do</strong>, portanto, as discussões que abordam o papel da criativida<strong>de</strong> no processo<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> músico. O surgimento e <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sta linguagem<br />
se <strong>de</strong>u majoritariamente na área da performance, especialmente através <strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong><br />
profissionais liga<strong>do</strong>s ao jazz, e apenas recentemente a mesma passou a integrar a agenda<br />
<strong>de</strong> práticas e reflexões <strong>do</strong> meio acadêmico. Dentre as várias formas possíveis <strong>de</strong> se explorar<br />
a linguagem Soundpainting, focamos nossa atenção no uso da mesma como uma<br />
ferramenta para promover o <strong>de</strong>senvolvimento musical através da criação e acreditamos<br />
que assim po<strong>de</strong>mos propiciar aos estudantes experiências que não seriam possíveis através<br />
<strong>de</strong> meios tradicionais. Relataremos brevemente nossa experiência com o uso da<br />
mesma com alunos <strong>do</strong> curso <strong>de</strong> bacharela<strong>do</strong> em música da Univerisda<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Juiz<br />
<strong>de</strong> Fora.<br />
Palavras Chave<br />
Soundpainting, improvisação, formação musical.<br />
O surgimento da linguagem Soundpainting<br />
Em meio à efervescência cultural (e experimental) da segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século<br />
XX, surge nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s da América a linguagem <strong>de</strong> sinais para improvisação,<br />
Soundpainting, criada pelo compositor e saxofonista Walter Thompson (b.1952).<br />
Os primeiros sinais foram por ele elabora<strong>do</strong>s na década <strong>de</strong> 1970, em Woodstock,<br />
para estruturar seções <strong>de</strong> improvisos em composições <strong>de</strong> sua autoria (Thompson<br />
2009: 77). O trabalho <strong>de</strong> Thompson resulta da confluência <strong>de</strong> várias correntes criativas<br />
com as quais teve contato: inicialmente, no âmbito familiar, Thompson foi<br />
influencia<strong>do</strong> pela arte e pelos processos criativos <strong>de</strong> seu pai, Ron Thompson, pintor<br />
participante <strong>do</strong> movimento expressionista abstrato li<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> por Jackson Pollock<br />
(1912-1956); posteriormente, Thompson sofre influência direta <strong>do</strong><br />
compositor Anthony Braxton (b.1945), com quem estu<strong>do</strong>u composição e saxofone<br />
por sete anos; outras influências foram compositores com os quais Thompson<br />
teve contato através <strong>de</strong> workshops promovi<strong>do</strong>s pela<br />
237
238<br />
Creative Music School, fundada em Woodstock por Ornette Coleman (b.1930),<br />
como por exemplo, John Cage (1912-1992), Ed Blackwell (1929-1992), Carlos<br />
Santana (b.1947), Carla Bley (b.1936), Don Cherry (1936-1995) e outros. Os anos<br />
<strong>de</strong> formação com o Sr. Braxton, cujo trabalho é marca<strong>do</strong> por uma pluralida<strong>de</strong> criativa<br />
e pela resistência à rotulações, foram significativos para a ampliação <strong>do</strong>s horizontes<br />
<strong>de</strong> Thompson que consi<strong>de</strong>ra a linguagem Soundpainting como diretamente<br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> percursos musicais que vinham sen<strong>do</strong> traça<strong>do</strong>s por Charlie Parker<br />
(1920-1955), Miles Davis (1926-1991), Ornette Coleman e Anthony Braxton.<br />
Além das influências que Thompson sofreu, ele aponta sua frustração com o free<br />
jazz e com os rumos que tomavam as seções <strong>de</strong> improvisação em suas composições<br />
como motivos que o levaram à <strong>de</strong>senvolver esta linguagem <strong>de</strong> sinais, exploran<strong>do</strong> os<br />
sinais como uma tentativa <strong>de</strong> estruturar os momentos <strong>de</strong> improvisação <strong>de</strong> suas peças<br />
<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o que havia planeja<strong>do</strong> previamente e registra<strong>do</strong> em partituras<br />
(Thompson 2009: 77; Duby 2006: 6-3). Para Duby, “<strong>de</strong>veria ser evi<strong>de</strong>nte que a natureza<br />
[da linguagem] Soundpainting é <strong>de</strong> interrogar algumas das pretensões e fronteiras<br />
<strong>de</strong> gênero <strong>do</strong> jazz, assim com da música experimental”. (Duby 2006: 6-4, grifo<br />
meu)<br />
A natureza questiona<strong>do</strong>ra que Duby i<strong>de</strong>ntifica na linguagem Soundpainting resulta<br />
não só <strong>do</strong> contexto no qual esta surgiu e das motivações <strong>de</strong> Thompson para<br />
cria-la, mas também da maneira como suas engrenagens a colocam em funcionamento,<br />
relativizan<strong>do</strong> as fronteiras que <strong>de</strong>marcam os papéis <strong>do</strong> intérprete, <strong>do</strong> compositor<br />
e <strong>do</strong> regente. Duby consi<strong>de</strong>ra que a linguagem Soundpainting “po<strong>de</strong> ser<br />
vista como um tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconstrução das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r da música sinfônica <strong>do</strong><br />
século XIX” (Duby 2006: 1-11). Em Soundpainting não cabe ao performer apenas<br />
interpretar uma linha musical previamente elaborada por um compositor e conduzida<br />
por um regente, mas sim criar sua própria linha a partir da interpretação<br />
que faz <strong>do</strong>s gestos indica<strong>do</strong>s pelo soundpainter/compositor; quanto à este último,<br />
não cabe a ele dirigir a performance <strong>de</strong> uma peça pré-composta, mas sim criar uma<br />
nova peça <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com sua interpretação das respostas sonoras improvisadas pelo<br />
grupo para cada gesto ou grupos <strong>de</strong> gestos indica<strong>do</strong>s no <strong>de</strong>correr da composição.<br />
Na experiência com a linguagem Soundpainting, performer (s) e soundpainter (s)<br />
interagem, perceben<strong>do</strong>, crian<strong>do</strong> e interpretan<strong>do</strong> simultaneamente. Operformer é<br />
intérprete <strong>de</strong> sua própria voz e, através da improvisação, i<strong>de</strong>ntifica possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
expressão ao mesmo tempo que percebe necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprimoramento e <strong>de</strong>senvolvimento<br />
musical. Já o soundpainter, indivíduo que frente ao grupo dá forma à<br />
composição através <strong>do</strong>s sinais, é um compositor que manuseia o material improvisa<strong>do</strong><br />
pelo grupo <strong>de</strong> performers, <strong>de</strong>finin<strong>do</strong> os rumos da obra a partir da colaboração<br />
criativa com o conjunto, improvisan<strong>do</strong> e, por oras, assumin<strong>do</strong> também um papel<br />
similar ao <strong>de</strong> um regente ao estabelecer alterações <strong>de</strong> tempo, dinâmica e intenções.<br />
Em Soundpainting, portanto, a criação está no espaço entre o gesto e aquilo que o
gesto não impõe, sugere. As fronteiras que <strong>de</strong>limitam os papéis <strong>do</strong> intérprete, compositor<br />
e regente na música <strong>de</strong> concerto são questionadas e, em Soundpainting, se<br />
tornam assim elásticas, vazadas, transpassadas em um campo que não se fecha no gênero,<br />
mas que se abre na experiência <strong>de</strong> atravessar o momento pelas vias da performance<br />
criativa.<br />
Soundpainting e suas engrenagens<br />
Apesar <strong>de</strong> ter si<strong>do</strong> direcionada inicialmente apenas para a música, a linguagem<br />
Soundpainting, hoje, é multidisciplinar e seu vocabulário supera 1000 gestos<br />
(Thompson 2009: 77). Estes gestos estão codifica<strong>do</strong>s e organiza<strong>do</strong>s em categorias<br />
e funcionam através <strong>de</strong> uma sintaxe própria. As categorias i<strong>de</strong>ntificam os gestos<br />
como Sculpting-Escultores e <strong>de</strong> Function-Função, e a sintaxe organiza os sinais que<br />
indicam quem <strong>de</strong>ve tocar - Who (indica<strong>do</strong>res), que tipo <strong>de</strong> material explorar - What<br />
(<strong>de</strong> conteú<strong>do</strong>), <strong>de</strong> que forma fazê-lo - How (modifica<strong>do</strong>res), quan<strong>do</strong> iniciar ou parar<br />
- When (<strong>de</strong> início ou fim), além <strong>do</strong>s gestos (parâmetros que afetam<br />
gestos) e (trechos <strong>de</strong> material previamente ensaia<strong>do</strong>)<br />
(Thompson 2006). Dentro <strong>de</strong>sta estrutura, estudantes e profissionais da música,<br />
dança, teatro e artes visuais improvisam a partir da interpretação <strong>do</strong>s sinais que lhes<br />
são apresenta<strong>do</strong>s pela figura <strong>do</strong> soundpainter.<br />
O ambiente gestual da linguagem Soundpainting gera uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> sonorida<strong>de</strong>s<br />
que resultam <strong>do</strong>s parâmetros sonoros atribuí<strong>do</strong>s a cada sinal, sen<strong>do</strong> que o grau<br />
<strong>de</strong> especificida<strong>de</strong> <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> sonoro é varia<strong>do</strong>. Há, por exemplo, os gestos (ex. fig. 1) que geram notas longas em alturas que variam <strong>de</strong><br />
acor<strong>do</strong> com a posição em que o soundpainter preparou o gesto; outros que produzem<br />
sonorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> caráter mais aleatório, como o gesto <br />
(ex. fig. 2), cuja improvisação será baseada em grupos <strong>de</strong> notas <strong>de</strong> caráter<br />
pre<strong>do</strong>minantemente curto em alturas variadas da tessitura <strong>do</strong> instrumento; outros<br />
como o (ex. fig. 3) que estabelece a improvisação<br />
<strong>de</strong> padrões rítmico-melódicos; além <strong>de</strong> gestos como <br />
que, quan<strong>do</strong> utiliza<strong>do</strong>s sem nenhum gesto adicional, geram resulta<strong>do</strong>s inespera<strong>do</strong>s,<br />
pois fica a critério <strong>do</strong> performer qual conteú<strong>do</strong> explorar quan<strong>do</strong> o gesto o torna<br />
ativo no momento da performance. Cabe ao performer saber explorar <strong>de</strong> forma variada<br />
cada parâmetro sonoro embuti<strong>do</strong> em cada gesto e, ao soundpainter cabe saber<br />
lidar com as sonorida<strong>de</strong>s apresentadas pelo grupo, avaliar o material que soa a cada<br />
momento da composição e <strong>de</strong>finir os rumos da mesma exploran<strong>do</strong> os diferentes<br />
graus <strong>de</strong> especificida<strong>de</strong> inerentes a cada gesto.<br />
239
240<br />
Figura 1 — <br />
Figura 2 — <br />
Figura 3 — <br />
Seguin<strong>do</strong> a sintaxe da linguagem, é preciso sinalizar respectivamente quem participará<br />
da performance, que conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve ser explora<strong>do</strong> naquele momento da<br />
composição, como abordar aquele conteú<strong>do</strong> (em que dinâmica/tempo) – este gesto<br />
po<strong>de</strong> ser utiliza<strong>do</strong> ou não pelo soundpainter, e quan<strong>do</strong>/<strong>de</strong> que forma começar.
Como exemplo, temos abaixo figuras (1 à 6) <strong>do</strong>s gestos utiliza<strong>do</strong>s na frase , (altura média), , .<br />
1. Whole group. 2. Long tone. 3. Long Tone (2).<br />
1. Volume fa<strong>de</strong>r. 2. Play. 3. Play (2).<br />
(Todas as imagens tiveram sua reprodução autorizada por Walter Thompson)<br />
A linguagem Soundpainting não utiliza, portanto, a notação musical tradicional e<br />
explora majoritariamente a improvisação baseada em parâmetros sonoros isola<strong>do</strong>s,<br />
embora seja possível também utilizar outros tipos <strong>de</strong> improvisações. Estes <strong>do</strong>is aspectos<br />
são pontos importantes para que habilida<strong>de</strong>s musicais possam ser trabalhadas<br />
na prática <strong>de</strong> conjunto, muitas vezes <strong>de</strong> forma lúdica, sem a interferência <strong>de</strong><br />
me<strong>do</strong>s e tensões, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da área <strong>de</strong> atuação <strong>do</strong> músico e <strong>do</strong> estágio<br />
técnico-musical em que se encontra. Para Marc Duby, a prática <strong>de</strong> Soundpainting<br />
cria “um ambiente musical, <strong>de</strong> alguma forma, menos ameaça<strong>do</strong>r <strong>do</strong> que o <strong>de</strong> uma<br />
orquestra” (Duby 2006: 1-20) no qual crianças ou músicos não habitua<strong>do</strong>s à leitura<br />
<strong>de</strong> partituras po<strong>de</strong>m participar. Da mesma forma, como não se trata <strong>de</strong> uma improvisação<br />
idiomática como no jazz, por exemplo, músicos eruditos também<br />
po<strong>de</strong>m improvisar sem <strong>de</strong>sconforto. Swanwick aponta situações comuns nas quais<br />
“um improvisa<strong>do</strong>r talentoso a quem se pe<strong>de</strong> para tocar música grafada e composta<br />
por outra pessoa po<strong>de</strong> sentir-se constrangi<strong>do</strong> ou sob pressão, incapaz <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolver as idéias musicais livremente. Nessa situação, as oportunida<strong>de</strong>s para<br />
funcionar <strong>de</strong> uma maneira musical com entendimento po<strong>de</strong>m ser diminuídas<br />
em vez <strong>de</strong> expandidas, pelo menos inicialmente. De igual mo<strong>do</strong>, um executante<br />
fluente e sensível po<strong>de</strong> se sentir perdi<strong>do</strong> se for solicita<strong>do</strong> a compor ou improvi-<br />
241
242<br />
sar, e po<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar um nível no qual a compreensão musical não seja revelada<br />
nem ampliada”. (Swanwick 2003: 95)<br />
A partir da linguagem Soundpainting cria-se, então, um ambiente que ameniza estes<br />
<strong>de</strong>sconfortos gera<strong>do</strong>s pelo contato com um meio <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>, <strong>de</strong>sconfortos muitas<br />
vezes potencializa<strong>do</strong>s pelo fator “erro”, que se torna um elemento bloquea<strong>do</strong>r.<br />
Para Thompson, “um <strong>do</strong>s aspectos mais importantes <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> Soundpainting<br />
é se acostumar com a filosofia Soundpainting que diz ‘Não existe tal coisa<br />
como um ‘erro’” (Thompson 2009: 82). O erro em Soundpainting é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong><br />
como um elemento que acarretará uma “oportunida<strong>de</strong> para nova exploração”<br />
(i<strong>de</strong>m). Para Nachmanovitch, “os erros e aci<strong>de</strong>ntes po<strong>de</strong>m ser grãos <strong>de</strong> areia que se<br />
transformarão em pérolas; eles nos oferecem oportunida<strong>de</strong>s imprevistas, são em si<br />
mesmos fontes frescas <strong>de</strong> inspiração. Apren<strong>de</strong>mos a consi<strong>de</strong>rar nossos obstáculos<br />
como ornamentos, oportunida<strong>de</strong>s a serem aproveitadas e exploradas” (Nachmanovitch<br />
1993:87).<br />
Soundpainting como ferramenta para formação<br />
As três características básicas da linguagem Soundpainting (não utilizar notação<br />
musical tradicional, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhar a improvisação a partir <strong>de</strong> parâmetros<br />
musicais outros que não relações harmônico-escalares e consi<strong>de</strong>rar o erro<br />
como um elemento importante para o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento musical), nos<br />
levam a consi<strong>de</strong>rá-la uma ferramenta apropriada pedagogicamente para ser utilizada<br />
com músicos que não tiveram um contato prévio consistente e contínuo com<br />
a improvisação e, sen<strong>do</strong> assim, acreditamos ser possível criar um quadro diferente<br />
daquele i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> por Swanwick, permitin<strong>do</strong> que a “compreensão musical” seja<br />
“revelada” e “ampliada”. Através da improvisação estruturada e coletiva promovida<br />
por esta linguagem, propomos que cada aluno busque complementar, transformar<br />
e confirmar os saberes que estão em construção nas aulas <strong>de</strong> instrumento e <strong>de</strong>mais<br />
disciplinas oferecidas no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> um curso <strong>de</strong> música. Segun<strong>do</strong> Costa, esta importante<br />
parcela <strong>do</strong> processo formativo que acontece através da improvisação, “se<br />
caracteriza pela transformação <strong>de</strong> estruturas, ou formação <strong>de</strong> novas relações estruturais,<br />
<strong>de</strong> fragmentos já assimila<strong>do</strong>s anteriormente, crian<strong>do</strong> um mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> novas relações<br />
a partir <strong>de</strong> elementos já conheci<strong>do</strong>s que ro<strong>de</strong>iam o sujeito, surgin<strong>do</strong> daí uma<br />
nova reconstituição <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s” (Costa 2005: 367).<br />
Nas ativida<strong>de</strong>s já realizadas com alunos <strong>do</strong> bacharela<strong>do</strong> em música da Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora, propomos que os mesmos vivenciem esta experiência<br />
Soundpainting sob duas perspectivas: enquanto performer, improvisan<strong>do</strong> como<br />
membro <strong>de</strong> um grupo, e enquanto soundpainter, estruturan<strong>do</strong> e compon<strong>do</strong> em<br />
tempo real a partir <strong>de</strong> sua percepção das improvisações <strong>do</strong> grupo. Dessa forma, percursos<br />
diferentes se abrem para que o aluno <strong>de</strong>s(cubra) (Ama<strong>do</strong>r e Fonseca 2009:<br />
32) maneiras <strong>de</strong> se expressar e se aprimorar. Seja na atuação como performer ou
soundpainter, a aproximação com a metáfora cartográfica na idéia <strong>de</strong> traçar um percurso<br />
e neste encontrar respostas nos posiciona como acompanha<strong>do</strong>res “<strong>de</strong> processos<br />
em curso”, neste caso a improvisação, que nos convoca para “um exercício<br />
cognitivo peculiar [. . .] que requer uma cognição muito mais capaz <strong>de</strong> inventar [improvisar]<br />
o mun<strong>do</strong>, [. . .] invenção que somente se torna viável pelo encontro fecun<strong>do</strong><br />
entre pesquisa<strong>do</strong>r [músico] e campo [<strong>de</strong>] pesquisa [performanceimprovisação-soundpainting],<br />
pelo qual o material a pesquisar passa a ser produzi<strong>do</strong><br />
e não coleta<strong>do</strong>.” (Ama<strong>do</strong>r e Fonseca 2009: 31, grifo meu) Na percepção e interação<br />
com o ambiente sonoro gera<strong>do</strong> em ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Soundpainting o<br />
músico-pesquisa<strong>do</strong>r se posiciona “como aquele que vê [ouve] seu campo <strong>de</strong> pesquisa<br />
<strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> mo<strong>do</strong> e lugar em que ele se vê compeli<strong>do</strong> a pensar e a ver<br />
[e, neste caso também, agir] diferentemente, no momento mesmo em que o que é<br />
visto [ouvi<strong>do</strong>] e pensa<strong>do</strong> se oferece ao seu olhar [ouvir]” (i<strong>de</strong>m).<br />
Para a situação em que o aluno atua como performer, buscamos organizar frases <strong>de</strong><br />
Soundpainting que explorem diferentes aspectos musicais e dificulda<strong>de</strong>s particulares<br />
<strong>de</strong> cada instrumento e acompanhamos o <strong>de</strong>senvolvimento das respostas improvisadas,<br />
a adaptabilida<strong>de</strong> e comunicabilida<strong>de</strong> entre os membros <strong>do</strong> grupo e a<br />
sonorida<strong>de</strong> geral. Para a situação na qual o aluno atua como soundpainter, buscamos<br />
perceber como o mesmo se relaciona com as sonorida<strong>de</strong>s improvisadas pelo grupo,<br />
<strong>de</strong>limitamos, como exercício, quais e quantos gestos <strong>de</strong>vem ser utiliza<strong>do</strong>s nas composições<br />
e avaliamos as <strong>de</strong>cisões que este faz para estabelecer o andar da composição.<br />
Outro exercício utiliza<strong>do</strong> é uma espécie <strong>de</strong> dita<strong>do</strong> <strong>de</strong> Soundpainting,<br />
<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> pelo soundpainter Vincent Le Quang, professor <strong>do</strong> Conservatório <strong>de</strong><br />
Paris, no qual uma frase é apresentada ao aluno que, após ouvi-la, tenta reproduzila<br />
enquanto soundpainter, utilizan<strong>do</strong> os gestos correspon<strong>de</strong>ntes às sonorida<strong>de</strong>s cantadas,<br />
trabalhan<strong>do</strong> assim sua percepção.<br />
Dada a história da linguagem Soundpainting que surgiu, foi <strong>de</strong>senvolvida e explorada<br />
pre<strong>do</strong>minantemente na área da performance e, uma vez que a natureza <strong>de</strong>sta<br />
linguagem flexibiliza os papéis e a atuação <strong>de</strong> instrumentistas, compositores, regentes,<br />
obscurecen<strong>do</strong> a linha divisória entre composição, performance e improvisação,<br />
torna-se necessário adaptar ou criar méto<strong>do</strong>s para observar e investigar os<br />
processos gera<strong>do</strong>s por esta prática musical enquanto ferramenta <strong>de</strong> formação. Uma<br />
base que utilizamos para avaliar e compreen<strong>de</strong>r o trabalho em <strong>de</strong>senvolvimento na<br />
UFJF com a linguagem Soundpainting, provem <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> investigação propostos<br />
por Sloboda (2008) e aponta<strong>do</strong>s por Fogaça (2009: 382):<br />
1.“Exame da história <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada composição, conforme os manuscritos<br />
<strong>do</strong> compositor.”<br />
2. “Análise daquilo que os compositores dizem a respeito <strong>de</strong> seus próprios méto<strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong> composição.”<br />
3. “A observação ‘ao vivo’ <strong>do</strong>s compositores durante sessões <strong>de</strong> composição.”<br />
243
244<br />
4. “Observação e <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> execuções improvisadas: o compositor é o executor,<br />
que produz um enuncia<strong>do</strong> musical sem nenhuma premeditação em contexto<br />
público.”<br />
No adaptação para o contexto Soundpainting tratamos estes pontos da seguinte<br />
forma:<br />
1. Exame <strong>do</strong> planejamento das composições <strong>do</strong>s alunos/soundpainters, conforme<br />
os rascunhos que fazem <strong>de</strong> combinações <strong>de</strong> sinais da linguagem Soundpainting.<br />
2. Análise daquilo que os alunos/soundpainters dizem a respeito <strong>de</strong> seus próprios<br />
méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> composição e <strong>de</strong> performance – das escolhas quanto à organização<br />
<strong>do</strong>s sinais no momento <strong>de</strong> elaboração <strong>do</strong>s rascunhos e as adaptações necessárias<br />
e/ou possíveis no momento da realização da composição.<br />
3. Observação ‘ao vivo’ da atuação <strong>do</strong>s alunos/soundpainters e performers.<br />
4. Observação e <strong>de</strong>scrição das performances, das realizações da composição: o<br />
soundpainter e o performer são executores, que em contexto público produzem<br />
um enuncia<strong>do</strong> musical com ou sem alguma premeditação e que, no caso<br />
<strong>de</strong> ter havi<strong>do</strong> uma premeditação, adapta suas escolhas no <strong>de</strong>correr da composição.<br />
A partir <strong>de</strong>stas ativida<strong>de</strong>s buscamos explorar a linguagem <strong>de</strong> sinais Soundpainting<br />
como uma ferramenta para a formação musical, unin<strong>do</strong> à variada prática musical<br />
que <strong>de</strong>la resulta reflexões sobre o ensino e aprendizagem <strong>de</strong> música.<br />
Conclusão<br />
A linguagem <strong>de</strong> sinais para improvisação Soundpainting surgiu e foi explorada majoritariamente<br />
na área da performance, mais precisamente na performance ligada<br />
ao jazz, e, por isso, a pesquisa com esta linguagem no meio acadêmico se encontra<br />
ainda em fase inicial. Observan<strong>do</strong> o conjunto <strong>de</strong> práticas possíveis <strong>de</strong> serem realizadas<br />
com a mesma, notamos que o exercício da improvisação estruturada proposto<br />
com Soundpainting possibilita mudanças <strong>de</strong> perspectivas que po<strong>de</strong>m trazer benefícios<br />
para a formação musical <strong>do</strong> indivíduo. O aluno <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser apenas um instrumentista<br />
que cumpre com sua agenda <strong>de</strong> exercícios e com um repertório <strong>de</strong> peças<br />
compostas por compositores <strong>de</strong> diversas épocas e passa a ser também um cria<strong>do</strong>r,<br />
capaz <strong>de</strong> ouvir, pensar e lidar com a música <strong>de</strong> outras formas. Com essa experiência,<br />
esperamos contribuir para que os processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento musical sejam<br />
mais amplos e diversifica<strong>do</strong>s, que ofereçam ao aluno outros meios para expressar sua<br />
musicalida<strong>de</strong>.<br />
Referências Bibliográficas<br />
Ama<strong>do</strong>r, Fernanda & Fonseca, Tânia Mara Galli. 2009. Da intuição como méto<strong>do</strong> filosófico<br />
à cartografia como méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> pesquisa – consi<strong>de</strong>rações sobre o exercício cognitivo
<strong>do</strong> cartógrafo. Arquivos Brasileiros <strong>de</strong> Psicologia 61, n.1.<br />
Costa, Kristiane Costa e. O processo cognitivo e a criativida<strong>de</strong>. In: <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> 1º <strong>Simpósio</strong> Internacional<br />
<strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais. Curitiba, 2005.<br />
Duby, Marc. 2006. Soundpainting as a system for the collaborative creation of music in performance.<br />
Tese (Doctor of Philosophy in the Department of Music) – Pretoria: University<br />
of Pretoria.<br />
Fogaça, Vilma <strong>de</strong> O. S. 2009. Criativida<strong>de</strong> e Educação Musical: <strong>do</strong> problema à pesquisa e<br />
ação. In: <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> V <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais – Internacional. Goiânia.<br />
Nachmanovitch, Stephen. 1993. Ser Criativo – o Po<strong>de</strong>r da Improvisação na Vida e na Arte.<br />
Tradução <strong>de</strong> Eliana Rocha. São Paulo: Summus.<br />
Thompson, Walter. 2006. Soundpainting The Art of Live Composing Workbook I. Walter<br />
Thompson.<br />
———. Soundpainting – The Art of Live Composition. An Introduction to Soundpainting<br />
by Walter Thompson. Revista Eufonía, Espanha, n. 047 – Julio, Agosto, Septiembre<br />
2009.<br />
Sarath, Edward W. Improvisation for Global Musicianship. Music Educators Journal 80, no.<br />
2 (Sep., 1993): 23-26.<br />
Swanwick, Keith. Ensinan<strong>do</strong> Música Musicalmente. Tradução <strong>de</strong> Alda Oliveira e Cristina<br />
Tourinho. São Paulo: Mo<strong>de</strong>rna, 2003.<br />
245
246<br />
O papel <strong>do</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> na expressivida<strong>de</strong> cravística: aspectos<br />
cognitivos no ensino e preparação para a performance<br />
Nivia Gasparini Zumpano<br />
niviazum@hotmail.com<br />
Edmun<strong>do</strong> Pacheco Hora<br />
ephora@iar.unicamp.br<br />
UNICAMP/Campinas<br />
Resumo<br />
O presente trabalho trata <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caso com cravistas e investiga as vantagens<br />
<strong>de</strong> uma abordagem simultânea <strong>do</strong>s aspectos técnicos e expressivos, especialmente no<br />
tratamento <strong>do</strong>s <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s, e sua relação com aspectos cognitivos. O estu<strong>do</strong> foi realiza<strong>do</strong><br />
a partir da observação das aulas e sessões <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> três alunos <strong>de</strong> graduação <strong>do</strong> Departamento<br />
<strong>de</strong> Música <strong>do</strong> IA/UNICAMP, nas disciplinas <strong>de</strong> Cravo e Instrumento Complementar,<br />
durante o segun<strong>do</strong> semestre <strong>de</strong> 2009. Observou-se que os alunos costumam<br />
priorizar os aspectos técnicos e a <strong>de</strong>codificação <strong>do</strong>s elementos da partitura escrita, muitas<br />
vezes negligencian<strong>do</strong> as questões expressivas em sua abordagem inicial <strong>do</strong> repertório.<br />
Tais resulta<strong>do</strong>s, embora obti<strong>do</strong>s em caráter preliminar e com número reduzi<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
alunos, estão em consonância com pesquisas realizadas no contexto <strong>do</strong> ensino <strong>de</strong> tecla<strong>do</strong>s<br />
(especialmente o piano), e ressaltam a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma maior reflexão sobre<br />
o assunto por parte <strong>do</strong>s professores <strong>de</strong>sta área. Assim, este trabalho estrutura-se da seguinte<br />
maneira: inicialmente, é apresentada uma abordagem <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> expressivida<strong>de</strong><br />
musical ressaltan<strong>do</strong> seu caráter transitivo; na seção seguinte, passa-se às indicações<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> no trata<strong>do</strong> <strong>de</strong> Carl Phillip Emanuel Bach e a forma como este autor aborda<br />
a relação entre este fator e a expressivida<strong>de</strong>, para então serem analisadas duas <strong>de</strong> suas<br />
indicações; em seguida, apresenta-se uma discussão sobre as vantagens da abordagem<br />
simultânea <strong>do</strong>s aspectos técnicos e expressivos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro contato <strong>do</strong>s estudantes<br />
com o repertório, e sua relação com aspectos cognitivos. Por fim, são comenta<strong>do</strong>s<br />
os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s no estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caso com os alunos cravistas e apresentadas as consi<strong>de</strong>rações<br />
finais. Este trabalho constitui parte <strong>de</strong> uma pesquisa <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>, em andamento,<br />
em que se preten<strong>de</strong> realizar um estu<strong>do</strong> sobre as diferentes abordagens da<br />
expressivida<strong>de</strong> musical, aplican<strong>do</strong>-as aos contextos <strong>do</strong> ensino e preparação para a performance<br />
cravística. A pesquisa é financiada pela Capes.<br />
Palavras-chave<br />
Expressivida<strong>de</strong> Musical e <strong>Cognição</strong>; Cravo; Dedilha<strong>do</strong>s em Teclas; Ensino <strong>de</strong> tecla<strong>do</strong>s.<br />
Introdução<br />
Em música, o termo expressivida<strong>de</strong> geralmente é utiliza<strong>do</strong> para <strong>de</strong>signar os elementos<br />
<strong>de</strong> uma execução relaciona<strong>do</strong>s às respostas pessoais ou subjetivas <strong>do</strong>s ouvintes,<br />
as quais po<strong>de</strong>m variar entre diferentes interpretações <strong>de</strong> uma mesma peça
(Baker, N. K. & Scruton, R., 1980, p.326). Estes elementos da execução normalmente<br />
relacionam-se à dinâmica e ao frasea<strong>do</strong>. Se, por exemplo, um professor <strong>de</strong> instrumento<br />
aconselha seu aluno a tocar <strong>de</strong> forma mais expressiva, normalmente o<br />
aluno focalizará sua atenção em aspectos como a articulação, o andamento, o frasea<strong>do</strong><br />
e a dinâmica, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a obter o resulta<strong>do</strong> sonoro a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> para transmitir<br />
a emoção ou idéia pretendida. Neste contexto, a expressivida<strong>de</strong> está relacionada à<br />
execução musical ou performance.<br />
Na área da crítica musical, entretanto, o termo expressivida<strong>de</strong> apresenta senti<strong>do</strong><br />
diverso; neste caso, costuma-se afirmar que a própria peça expressa uma emoção ou<br />
idéia. Mas o que significa dizer que uma composição é expressiva <strong>de</strong> certos esta<strong>do</strong>s<br />
mentais? Este é um problema que tem provoca<strong>do</strong> constantes <strong>de</strong>bates na filosofia e<br />
estética contemporâneas.<br />
Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que a peça musical po<strong>de</strong> ser expressiva por si própria, parece natural<br />
perguntar: o que ela expressa? Revela-se, então, o caráter transitivo direto da expressivida<strong>de</strong><br />
musical: ser expressiva equivale a expressar algo. Contu<strong>do</strong>, no exemplo<br />
anterior <strong>do</strong> professor <strong>de</strong> instrumento, a questão é abordada por uma perspectiva diferente,<br />
<strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong> intérprete, o qual po<strong>de</strong>ria se perguntar: o que <strong>de</strong>sejo<br />
expressar para os ouvintes? Aqui, revela-se o caráter transitivo direto e indireto da<br />
expressivida<strong>de</strong>: expressar algo para alguém.<br />
Portanto, <strong>de</strong>stacam-se <strong>do</strong>is aspectos da expressivida<strong>de</strong> musical: o transitivo direto<br />
(TD), consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a peça composta, e o transitivo direto e indireto (TDI), que se<br />
refere à execução ou performance (Baker, N. K. & Scruton, R., 1980, p.327). Neste<br />
trabalho será aborda<strong>do</strong> apenas o aspecto relaciona<strong>do</strong> à execução, ten<strong>do</strong> em vista o<br />
objetivo <strong>de</strong> apresentar um estu<strong>do</strong> sobre alguns <strong>do</strong>s elementos liga<strong>do</strong>s ao ensino e à<br />
performance cravística.<br />
Numa execução musical, normalmente as metas a serem alcançadas são a superação<br />
das dificulda<strong>de</strong>s técnicas e a conquista <strong>de</strong> níveis <strong>de</strong> excelência em termos <strong>de</strong> sonorida<strong>de</strong><br />
e expressão. Observa-se, porém, que durante a preparação <strong>do</strong> repertório geralmente<br />
estes parâmetros são aborda<strong>do</strong>s <strong>de</strong> forma apartada, principalmente pelos<br />
alunos <strong>de</strong> instrumento. Não é raro encontrarmos estudantes que, na fase inicial <strong>de</strong><br />
leitura e estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> repertório, <strong>de</strong>dicam-se primeiramente à resolução <strong>do</strong>s problemas<br />
técnicos, ocupan<strong>do</strong>-se das questões expressivas somente em momento posterior.<br />
Estu<strong>do</strong>s recentes (Gerling, C. C., 2009, p.51) têm <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> que a<br />
preocupação com a emoção a ser comunicada não costuma ser priorizada pelos estudantes<br />
<strong>de</strong> música em geral.<br />
A princípio, esta abordagem centrada na superação das dificulda<strong>de</strong>s técnicas po<strong>de</strong><br />
parecer eficiente, pois sugere um certo grau <strong>de</strong> controle das etapas <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>; porém,<br />
em alguns casos, tal meto<strong>do</strong>logia po<strong>de</strong>rá resultar em problemas <strong>de</strong> difícil resolução<br />
(Jorgensen, H., 2004, p.89). Cuidar <strong>do</strong>s aspectos expressivos somente nos estágios<br />
mais avança<strong>do</strong>s da preparação <strong>do</strong> repertório po<strong>de</strong> levar à <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> que algumas<br />
247
248<br />
escolhas feitas inicialmente não favorecem o caráter expressivo que se <strong>de</strong>seja imprimir<br />
ao trecho. Neste caso, po<strong>de</strong>rão ser necessárias alterações substanciais em elementos<br />
como, por exemplo, o <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>. Entretanto, nos estágios mais avança<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> estu<strong>do</strong> o intérprete provavelmente encontrará dificulda<strong>de</strong> para incorporar tais<br />
modificações, uma vez que <strong>de</strong>verá primeiramente <strong>de</strong>sapren<strong>de</strong>r o que havia automatiza<strong>do</strong><br />
para, <strong>de</strong>pois, reapren<strong>de</strong>r o trecho <strong>de</strong> forma a transmitir a idéia ou emoção<br />
musical pretendida.<br />
Assim, o presente trabalho procura trazer algumas consi<strong>de</strong>rações sobre as vantagens<br />
<strong>de</strong> uma abordagem simultânea <strong>do</strong>s elementos técnicos e das intenções expressivas<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a primeira leitura <strong>do</strong> repertório, no caso particular <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s no cravo, e os aspectos cognitivos relaciona<strong>do</strong>s a este tipo <strong>de</strong> abordagem.<br />
Como texto central para a reflexão foi utiliza<strong>do</strong> o trata<strong>do</strong> <strong>de</strong> Carl Phillip Emanuel<br />
Bach (1753, tradução <strong>de</strong> W. J. Mitchell, 1949) em seu capítulo <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> aos<br />
<strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s. Preten<strong>de</strong>-se investigar a maneira como este autor trata a relação <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>-expressivida<strong>de</strong><br />
e, com isso, obter elementos que possam auxiliar uma análise<br />
das vantagens <strong>de</strong> uma abordagem simultânea <strong>de</strong>stes fatores na prática e no ensino<br />
cravísticos. São comenta<strong>do</strong>s, ainda, os resulta<strong>do</strong>s da observação <strong>do</strong>s três alunos <strong>de</strong><br />
cravo, cujas aulas e sessões <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> foram analisadas durante o segun<strong>do</strong> semestre<br />
<strong>de</strong> 2009, no Departamento <strong>de</strong> Música <strong>do</strong> IA/UNICAMP.<br />
As indicações <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> no trata<strong>do</strong> <strong>de</strong> C. P. E. Bach<br />
O trata<strong>do</strong> Versuch über die wahre Art das Clavier zu spielen – Ensaio sobre a maneira<br />
correta <strong>de</strong> tocar tecla<strong>do</strong>s – constitui-se <strong>de</strong> duas partes: a primeira, editada originalmente<br />
em 1753, possui uma introdução e três capítulos (1. Dedilha<strong>do</strong>s; 2.<br />
Ornamentos e 3. Performance); na segunda parte, editada pela primeira vez em<br />
1762, o autor apresenta uma introdução e quatro capítulos (1. Intervalos e cifras;<br />
2. Baixo cifra<strong>do</strong>; 3. Acompanhamento e 4. Improvisação). Na presente pesquisa<br />
foi utilizada uma reimpressão da edição em língua inglesa <strong>de</strong> William J. Mitchell, <strong>de</strong><br />
1949.<br />
Inicialmente, observa-se que o título original <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> não traz nenhuma menção<br />
específica a um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> instrumento ao qual seria aplica<strong>do</strong>. Isso permite consi<strong>de</strong>rar<br />
que as indicações <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> po<strong>de</strong>m ser utilizadas <strong>de</strong> forma ampla para os<br />
diversos tipos <strong>de</strong> tecla<strong>do</strong>, como o cravo, o clavicórdio e, também, o fortepiano, to<strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong> uso corrente no perío<strong>do</strong> em que foi publica<strong>do</strong> o trata<strong>do</strong>.<br />
No início <strong>do</strong> capítulo referente aos <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s, o autor afirma que geralmente existe<br />
apenas um bom sistema <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> para cada trecho musical, embora algumas<br />
passagens permitam a utilização <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s alternativos; encontra-se, também,<br />
a indicação <strong>de</strong> que nada po<strong>de</strong> ser expresso por meio <strong>de</strong> um <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> incorreto<br />
(Bach, C. P. E., 1753/1949, p.41). Na mesma seção, há referências sobre a impor-
tância <strong>do</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> para uma boa performance. Verificam-se, assim, as primeiras<br />
observações <strong>do</strong> autor no que diz respeito à relação entre expressão e <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>.<br />
C. P. E. Bach faz, também, uma comparação entre o <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> utiliza<strong>do</strong> na época<br />
anterior a seu pai (mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século X<strong>VI</strong>I) e em sua época (mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século<br />
X<strong>VI</strong>II). No sistema antigo, os polegares eram emprega<strong>do</strong>s somente quan<strong>do</strong> os trechos<br />
continham intervalos que assim o exigissem; porém, já no início <strong>do</strong> século<br />
X<strong>VI</strong>II, em razão das gradativas mudanças no gosto musical, cresceu a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> conceber-se um <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> mais compreensivo, amplian<strong>do</strong>-se o uso <strong>do</strong> polegar.<br />
Em diversos momentos <strong>do</strong> texto, fica evi<strong>de</strong>nte a preocupação <strong>do</strong> autor com a questão<br />
<strong>do</strong> relaxamento muscular das mãos. Numa <strong>de</strong>stas passagens, afirma que os <strong>de</strong><strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong>vem estar curva<strong>do</strong>s e os músculos relaxa<strong>do</strong>s ao tocar, pois a tensão ou dureza dificulta<br />
o movimento (Bach, C. P. E., 1753/1949, p.43).<br />
O autor aconselha, também, que sejam evita<strong>do</strong>s movimentos e gestos <strong>de</strong>snecessários;<br />
atento a isso, o instrumentista será capaz <strong>de</strong> tocar as passagens mais difíceis <strong>de</strong><br />
forma que o movimento <strong>de</strong> suas mãos seja quase imperceptível. Conseqüentemente,<br />
o trecho soará como se não houvesse nenhum obstáculo. Observa-se, nesta passagem,<br />
o <strong>de</strong>staque da<strong>do</strong> à relação entre o gesto e a sonorida<strong>de</strong> obtida, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-se<br />
supor que as questões expressivas constituem um pano <strong>de</strong> fun<strong>do</strong> para o discurso<br />
apresenta<strong>do</strong> no trata<strong>do</strong>.<br />
Referin<strong>do</strong>-se à prática diária no instrumento, o autor relembra que através <strong>do</strong> estu<strong>do</strong><br />
diligente a execução se tornará mecânica e que, a partir <strong>de</strong>ste estágio, a atenção<br />
po<strong>de</strong>rá se voltar totalmente para a expressão (Bach, C. P. E., 1753/1949, p.44).<br />
Nota-se, portanto, que se na etapa final <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> a atenção po<strong>de</strong> se voltar totalmente<br />
para a expressão, então antes <strong>de</strong>ssa etapa pelo menos uma parte da atenção<br />
já estaria ocupada com isso, enquanto a outra estaria cuidan<strong>do</strong> <strong>de</strong> outros aspectos,<br />
como as dificulda<strong>de</strong>s técnicas, por exemplo. Portanto, conclui-se que mesmo nas<br />
etapas iniciais <strong>do</strong> estu<strong>do</strong>, uma parte da atenção já <strong>de</strong>ve estar voltada para as questões<br />
expressivas.<br />
Após estas observações iniciais, o autor passa a apresentar sua escola <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s.<br />
Cabe ressaltar que o tema é <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma gradativa e didática, fican<strong>do</strong><br />
claro o objetivo <strong>de</strong> avançar nos tópicos <strong>de</strong> maneira que as dificulda<strong>de</strong>s aumentem<br />
progressivamente.<br />
Primeiramente, o autor esclarece o sistema <strong>de</strong> numeração a ser utiliza<strong>do</strong> no trata<strong>do</strong><br />
(polegar como 1º e <strong>de</strong><strong>do</strong> mínimo como 5º). A partir <strong>de</strong> então, apresenta uma regra<br />
geral: as teclas alteradas raramente serão tocadas com o 5º <strong>de</strong><strong>do</strong>, e somente quan<strong>do</strong><br />
necessário com o polegar (Bach, C. P. E., 1753/1949, p.45). Neste ponto, observase<br />
que o autor apresenta uma regra geral, mas não existe qualquer proibição com relação<br />
ao uso <strong>do</strong>s <strong>de</strong><strong>do</strong>s menciona<strong>do</strong>s nas teclas alteradas, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong>-se apenas evitar<br />
esse tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>, se possível.<br />
249
250<br />
Na seqüência, são apresentadas as duas principais formas <strong>de</strong> possibilitar que gran<strong>de</strong>s<br />
extensões <strong>do</strong> tecla<strong>do</strong> sejam percorridas: 1. a passagem <strong>do</strong> polegar; 2. o cruzamento<br />
<strong>do</strong>s <strong>de</strong><strong>do</strong>s. O autor adverte, ainda, que alguns movimentos <strong>de</strong>vem ser<br />
evita<strong>do</strong>s, pois resultam em tensão excessiva.<br />
Continuan<strong>do</strong> suas indicações, o autor sugere que um bom treinamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong><br />
seria a prática <strong>de</strong> escalas e, a partir daí, passa a <strong>de</strong>screver todas as tonalida<strong>de</strong>s<br />
com os <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s apropria<strong>do</strong>s, alguns <strong>de</strong> uso corrente e outros alternativos. É curioso<br />
notar que nas tonalida<strong>de</strong>s sem aci<strong>de</strong>ntes (e também com poucos aci<strong>de</strong>ntes)<br />
como, por exemplo, Do Maior e la menor, os <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s antigos sejam apresenta<strong>do</strong>s<br />
como preferenciais. Todavia, C. P. E. Bach também apresenta outras opções e<br />
em momento algum proíbe o uso <strong>do</strong>s <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>rnos. Nota-se, ainda, que à<br />
medida que os aci<strong>de</strong>ntes aumentam, as opções <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> diminuem, ou seja, nas<br />
tonalida<strong>de</strong>s mais aci<strong>de</strong>ntadas somente há um <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> bom (Bach,<br />
C. P. E., 1753/1949, p.58).<br />
Ao concluir a apresentação das escalas, o autor explica que as passagens <strong>do</strong> polegar<br />
e os cruzamentos <strong>de</strong>vem ser aplica<strong>do</strong>s <strong>de</strong> forma que as notas envolvidas possam<br />
fluir suavemente. Destaca-se, aqui, sua preocupação com a regularida<strong>de</strong> <strong>do</strong> toque e<br />
a sonorida<strong>de</strong>, mesmo num estu<strong>do</strong> que po<strong>de</strong> parecer puramente técnico, como o<br />
das escalas.<br />
Percebe-se no discurso, ainda, um caráter <strong>de</strong> aconselhamento, não haven<strong>do</strong> imposições<br />
<strong>de</strong> regras consi<strong>de</strong>radas absolutas. Isto po<strong>de</strong> ser verifica<strong>do</strong> em diversas passagens<br />
como, por exemplo, quan<strong>do</strong> o autor menciona que se o instrumentista achar<br />
mais confortável utilizar um <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> diferente daquele que recomenda, po<strong>de</strong>rá<br />
fazê-lo sem problema, contanto que o conforto não seja apenas imaginário (Bach,<br />
C. P. E., 1753/1949, p.59). Esta observação sobre a questão <strong>do</strong> “conforto imaginário”<br />
po<strong>de</strong> levar-nos a uma reflexão sobre nossa atitu<strong>de</strong> como intérpretes, se costumamos<br />
nos analisar durante os estu<strong>do</strong>s, se estamos abertos a novas abordagens, etc.<br />
Aqui, po<strong>de</strong>-se consi<strong>de</strong>rar que já neste trata<strong>do</strong> <strong>do</strong> século X<strong>VI</strong>II está presente a noção<br />
acerca da importância <strong>do</strong> aspecto metacognitivo no estu<strong>do</strong> e preparação <strong>do</strong> repertório.<br />
Isto permite traçar, neste ponto, um paralelo entre as indicações <strong>do</strong> autor e<br />
as pesquisas atuais sobre expressivida<strong>de</strong> na performance (Jorgensen, H., 2004, pp.97-<br />
98).<br />
Depois <strong>de</strong> apresentar os <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s para todas as escalas, o autor passa a recomendálos<br />
para diversas situações musicais. Analisan<strong>do</strong> pequenas seqüências melódicas, o<br />
autor afirma que as notas repetidas <strong>de</strong>vem ser tocadas alternan<strong>do</strong>-se os <strong>de</strong><strong>do</strong>s, o que<br />
proporciona um melhor resulta<strong>do</strong> sonoro. Para ele, a utilização <strong>do</strong> mesmo <strong>de</strong><strong>do</strong><br />
em notas repetidas causa um <strong>de</strong>sligamento excessivo. Esta observação exemplifica<br />
e <strong>de</strong>staca a importância da escolha <strong>do</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> para a obtenção da sonorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejada<br />
num <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> trecho.<br />
A abordagem <strong>do</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> para os intervalos harmônicos e melódicos também é
feita <strong>de</strong> forma gradativa no trata<strong>do</strong>, começan<strong>do</strong> pelos intervalos com notas mais<br />
próximas (terças), e passan<strong>do</strong> pelos <strong>de</strong>mais até chegar à oitava.<br />
O autor discute, também, os possíveis <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s para acor<strong>de</strong>s com três notas, organizan<strong>do</strong><br />
sua exposição <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os tipos <strong>de</strong> intervalos que constituem os<br />
acor<strong>de</strong>s. Assim, primeiramente apresenta os acor<strong>de</strong>s que contêm intervalos <strong>de</strong> 3ª e<br />
4ª, <strong>de</strong>pois acor<strong>de</strong>s com intervalos <strong>de</strong> 5ª e, em seguida, aqueles com intervalos <strong>de</strong> 6ª,<br />
7ª e oitava. Destaca-se, novamente, a organização didática <strong>do</strong> texto, buscan<strong>do</strong> facilitar<br />
a compreensão por parte <strong>do</strong> leitor.<br />
Após tratar <strong>do</strong>s acor<strong>de</strong>s com três notas, são expostos os <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s para os acor<strong>de</strong>s<br />
com quatro notas e, da mesma forma que antes, organiza-se a seqüência segun<strong>do</strong> os<br />
intervalos conti<strong>do</strong>s nestes acor<strong>de</strong>s. Neste trecho, a preocupação central <strong>do</strong> autor<br />
se volta para o conforto das mãos; assim, se necessário, po<strong>de</strong>rá ser utiliza<strong>do</strong> o polegar<br />
ou o 5º <strong>de</strong><strong>do</strong> nas teclas alteradas, <strong>de</strong> forma a evitar uma tensão excessiva. Notase,<br />
portanto, que as regras anteriormente sugeridas são flexíveis, prevalecen<strong>do</strong> a<br />
questão <strong>do</strong> conforto e <strong>do</strong> relaxamento.<br />
Na parte final <strong>do</strong> capítulo, o autor relaciona o grau <strong>de</strong> clareza da execução com a<br />
uniformida<strong>de</strong> <strong>do</strong> toque, e afirma que não se po<strong>de</strong> esperar o mesmo resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
um <strong>de</strong><strong>do</strong> fraco e <strong>de</strong> um mais forte (Bach, C. P. E., 1753/1949, p.69). Deste trecho,<br />
po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>duzir que uma execução clara, nos instrumentos <strong>de</strong> tecla<strong>do</strong>, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da<br />
coor<strong>de</strong>nação <strong>do</strong>s movimentos e <strong>do</strong> controle da força nos <strong>de</strong><strong>do</strong>s; utilizar <strong>de</strong><strong>do</strong>s mais<br />
frágeis em notas <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque seria, segun<strong>do</strong> esse apontamento, ina<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>. Assim,<br />
ressalta-se que a escolha <strong>do</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve levar em consi<strong>de</strong>ração, entre outros fatores,<br />
as intenções expressivas pretendidas para o trecho.<br />
Com relação ao ensino <strong>de</strong> tecla<strong>do</strong>s, o autor afirma que existem duas maneiras ina<strong>de</strong>quadas<br />
<strong>de</strong> abordar os <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s: a primeira seria aquela totalmente baseada nos<br />
costumes antigos, proibin<strong>do</strong> a utilização <strong>do</strong> polegar, pois nesse caso haveria um<br />
rigor excessivo; a segunda seria o ensino completamente livre, sem diretrizes nem<br />
princípios, pois nesse caso haveria excesso <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> (Bach, C. P. E., 1753/1949,<br />
p.70). Revela-se, portanto, um posicionamento intermediário por parte <strong>do</strong> autor<br />
com relação ao ensino <strong>do</strong>s <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s, procuran<strong>do</strong> evitar extremismos.<br />
Por fim, po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>stacar uma última observação a respeito da técnica e sua influência<br />
na expressão. Segun<strong>do</strong> o autor, o cruzamento necessário das mãos em algumas<br />
passagens não seria apenas motiva<strong>do</strong> pela facilida<strong>de</strong> que proporciona à<br />
execução das mesmas, mas principalmente porque sem esse recurso a expressivida<strong>de</strong><br />
das linhas po<strong>de</strong>ria ficar prejudicada (Bach, C. P. E., 1753/1949, p.78). Aqui,<br />
observa-se que o autor menciona explicitamente a relação entre um elemento que,<br />
à primeira vista, po<strong>de</strong> parecer puramente técnico, com o resulta<strong>do</strong> expressivo que<br />
se preten<strong>de</strong> obter.<br />
251
252<br />
A abordagem da relação <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>-expressivida<strong>de</strong><br />
no trata<strong>do</strong><br />
Na seção anterior foram apresentadas algumas indicações <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> relacionan<strong>do</strong><br />
o <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> aos propósitos expressivos. Nesta seção, serão <strong>de</strong>stacadas duas <strong>de</strong>stas<br />
indicações para fins <strong>de</strong> uma análise mais prolongada.<br />
Primeiramente, <strong>de</strong>staca-se o trecho em que o autor afirma que numa etapa avançada<br />
<strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s a atenção <strong>do</strong> intérprete po<strong>de</strong>rá ser dirigida totalmente para as questões<br />
expressivas. Como já observa<strong>do</strong> anteriormente, não há no capítulo estuda<strong>do</strong> nenhuma<br />
referência ao aprendiza<strong>do</strong> <strong>do</strong>s <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s com finalida<strong>de</strong> apenas técnica;<br />
ao contrário, o autor <strong>de</strong>ixa claro que a escolha <strong>de</strong>ve sempre ser pensada em termos<br />
<strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> sonoro e expressivo que se preten<strong>de</strong> obter. Segun<strong>do</strong> seus ensinamentos,<br />
no estágio inicial <strong>de</strong> preparação da peça apenas uma parte da atenção po<strong>de</strong>rá<br />
estar voltada para as questões expressivas, pois ainda não foram superadas as dificulda<strong>de</strong>s<br />
técnicas e nem automatiza<strong>do</strong>s os movimentos necessários à execução. O<br />
trabalho cognitivo <strong>do</strong> instrumentista estaria, portanto, dividi<strong>do</strong> entre estas tarefas.<br />
Assim, somente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> alcançar a automatização <strong>do</strong>s movimentos, a atenção <strong>do</strong><br />
intérprete po<strong>de</strong>rá se voltar completamente para os aspectos expressivos. Concluise,<br />
portanto, que mesmo nos estágios iniciais <strong>de</strong> leitura e preparação <strong>do</strong> repertório,<br />
é aconselhável pensar não somente na resolução <strong>do</strong>s problemas técnicos, mas também<br />
em que medida as escolhas para resolvê-los po<strong>de</strong>rão influenciar no resulta<strong>do</strong><br />
expressivo final pretendi<strong>do</strong>.<br />
Segun<strong>do</strong> Schott, H. (2002), além <strong>de</strong> preparar a mão para mover-se <strong>de</strong> uma posição<br />
à outra no tecla<strong>do</strong>, o <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> tem outro papel fundamental, que seria o <strong>de</strong> ajudar<br />
o cravista a encontrar a inflexão apropriada da linha melódica, influencian<strong>do</strong> a articulação<br />
e o frasea<strong>do</strong>. Para este autor, o <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> correto nunca <strong>de</strong>ve ser resulta<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> puro acaso, mas produto <strong>de</strong> uma reflexão aprofundada. O autor adverte,<br />
ainda, que nenhum <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve ser escolhi<strong>do</strong> por motivo <strong>de</strong> conveniência, mas<br />
sim por se ajustar melhor para a realização <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> objetivo musical.<br />
Ou seja, o <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve estar a serviço da expressivida<strong>de</strong>.<br />
De acor<strong>do</strong> com pesquisas <strong>de</strong>dicadas à performance musical (Jorgensen, H., 2004 e<br />
1998), as intenções expressivas para uma peça <strong>de</strong>vem fazer parte da estratégia <strong>de</strong><br />
estu<strong>do</strong> e, apesar <strong>de</strong> existirem diferentes abordagens sobre a questão, uma escolha<br />
prévia <strong>do</strong> que se preten<strong>de</strong> expressar na execução po<strong>de</strong> tornar o estu<strong>do</strong> mais eficiente.<br />
Isto permite traçar, portanto, um paralelo entre as indicações contidas no trata<strong>do</strong><br />
e nas pesquisas atuais voltadas para os aspectos cognitivos da execução instrumental,<br />
no que se refere à abordagem inicial das questões expressivas no estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s tecla<strong>do</strong>s.<br />
Como segunda indicação <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> a ser analisada, <strong>de</strong>staca-se a regra geral que <strong>de</strong>saconselha<br />
a utilização <strong>do</strong> 1º e 5º <strong>de</strong><strong>do</strong>s em teclas alteradas. Embora seja apresentada
como uma regra, na verda<strong>de</strong> ela própria contém uma ressalva, pois o autor menciona<br />
que tais notas raramente serão tocadas com estes <strong>de</strong><strong>do</strong>s, somente quan<strong>do</strong> for<br />
necessário. Assim, quan<strong>do</strong> uma peça exigir a utilização <strong>de</strong>stes <strong>de</strong><strong>do</strong>s em teclas alteradas<br />
com certa freqüência, a regra será <strong>de</strong>srespeitada diversas vezes. Fica clara, portanto,<br />
a flexibilida<strong>de</strong> com que o autor aborda a questão. Embora indique qual seria<br />
o <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> preferível em diversas situações musicais, não há nenhuma proibição<br />
explícita. Certamente, haverá ocasiões em que um único <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> se mostrará a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>;<br />
mas, em geral, não haven<strong>do</strong> prejuízo para o resulta<strong>do</strong> sonoro e expressivo, a<br />
escolha <strong>do</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> po<strong>de</strong> ser realizada <strong>de</strong> maneira flexível.<br />
Segun<strong>do</strong> Kroll, M. (2004), a escolha <strong>do</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> é um <strong>do</strong>s elementos estruturais<br />
da técnica tecladística, ten<strong>do</strong> impacto direto na interpretação da peça. Este autor<br />
recomenda, ainda, que os intérpretes não <strong>de</strong>vem ser obsessivos com relação à a<strong>do</strong>ção<br />
<strong>de</strong> um <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> autêntico, nos mol<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s antigos,<br />
pois o principal fator que <strong>de</strong>ve direcionar a escolha é a sonorida<strong>de</strong> produzida. Para<br />
Kroll, se o efeito expressivo for consegui<strong>do</strong> por outro caminho, não há obrigatorieda<strong>de</strong><br />
alguma em utilizar-se este ou aquele sistema <strong>de</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s. Observa-se, portanto,<br />
que o princípio da flexibilida<strong>de</strong> das regras permanece presente nas<br />
publicações atuais sobre o tema.<br />
O <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> como recurso expressivo no estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caso:<br />
ensino <strong>do</strong>s tecla<strong>do</strong>s e aspectos cognitivos<br />
Com base nas consi<strong>de</strong>rações apresentadas, po<strong>de</strong>-se afirmar que a a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> uma<br />
abordagem simultânea <strong>de</strong> questões técnicas como o <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> e das intenções expressivas<br />
é <strong>de</strong> fundamental importância para uma boa execução musical, além <strong>de</strong> facilitar<br />
a comunicação das emoções numa performance. Certamente, a maioria <strong>do</strong>s<br />
intérpretes utiliza este tipo <strong>de</strong> abordagem em seu cotidiano como musicistas, <strong>de</strong><br />
forma consciente ou não. No presente estu<strong>do</strong>, entretanto, procurou-se salientar<br />
sua importância não somente na preparação <strong>do</strong> repertório pelos instrumentistas<br />
profissionais, mas também no contexto <strong>do</strong> ensino e aprendiza<strong>do</strong> <strong>do</strong>s instrumentos<br />
<strong>de</strong> tecla<strong>do</strong>, especialmente o cravo.<br />
Com o objetivo <strong>de</strong> levantar informações preliminares sobre a forma como tal abordagem<br />
tem si<strong>do</strong> aplicada no aprendiza<strong>do</strong> <strong>do</strong> instrumento, foram observa<strong>do</strong>s três<br />
alunos <strong>do</strong> curso <strong>de</strong> graduação em música da Unicamp, durante as aulas e sessões <strong>de</strong><br />
estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> cravo1. Durante a observação, os alunos foram alerta<strong>do</strong>s sobre a intenção<br />
<strong>de</strong> realizar-se uma pesquisa sobre o ensino <strong>do</strong> instrumento e o méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> estu<strong>do</strong><br />
a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> por eles, não sen<strong>do</strong> feita qualquer referência sobre a questão interpretativa/expressiva.<br />
No final <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> os alunos foram questiona<strong>do</strong>s, informalmente,<br />
sobre seus propósitos com relação ao instrumento, seus objetivos relaciona<strong>do</strong>s à<br />
performance das peças estudadas, a maneira como <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m a respeito <strong>do</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong><br />
253
254<br />
e o que pensam sobre o aspecto interpretativo e <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> emoções.<br />
A partir <strong>de</strong>stas observações, foi possível constatar que há uma preocupação inicial<br />
<strong>do</strong>s estudantes em tocar corretamente as notas, no andamento consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> correto,<br />
e que a escolha <strong>do</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> volta-se principalmente para a questão da conveniência<br />
e <strong>do</strong> conforto das mãos, raramente sen<strong>do</strong> associada ao aspecto expressivo.<br />
No estágio inicial <strong>de</strong> leitura <strong>do</strong> repertório, os elementos expressivos são, <strong>de</strong> certa<br />
forma, negligencia<strong>do</strong>s. Isso acontece, muitas vezes, mesmo <strong>de</strong>pois <strong>do</strong>s professores<br />
<strong>de</strong>monstrarem a importância <strong>do</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> e sua influência no resulta<strong>do</strong> sonoro<br />
final.<br />
Durante as observações foi constata<strong>do</strong> ainda que, em diversas ocasiões, o <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong><br />
utiliza<strong>do</strong> nas primeiras leituras ocorre ao acaso. Houve situações, também, em que<br />
mesmo após o aluno refletir sobre a melhor escolha para o <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> e anotá-lo na<br />
partitura, durante execuções posteriores a escolha não foi mantida e o <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> foi<br />
conduzi<strong>do</strong> aleatoriamente.<br />
Os resulta<strong>do</strong>s das observações, embora obti<strong>do</strong>s em caráter preliminar e com número<br />
reduzi<strong>do</strong> <strong>de</strong> participantes, estão em concordância com da<strong>do</strong>s encontra<strong>do</strong>s<br />
em pesquisas recentes sobre a abordagem das questões interpretativas no ensino<br />
instrumental (Gerling, 2009 e Karlsson, 2008), as quais concluíram que o ensino<br />
tem si<strong>do</strong> focaliza<strong>do</strong> geralmente na técnica e na <strong>de</strong>codificação da partitura escrita,<br />
haven<strong>do</strong> uma falta <strong>de</strong> metas claras com relação ao <strong>de</strong>senvolvimento da comunicação<br />
e expressão das emoções. Ainda <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com essas pesquisas, a preocupação<br />
com a expressão das emoções em música não parece fazer parte da prática diária da<br />
maior parte <strong>do</strong>s estudantes <strong>de</strong> instrumento.<br />
Numa tentativa <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r as razões que po<strong>de</strong>riam contribuir para este cenário,<br />
os estudantes foram questiona<strong>do</strong>s informalmente sobre suas perspectivas<br />
com relação ao instrumento, seus objetivos frente à preparação <strong>do</strong> repertório e a<br />
forma como pensam a respeito <strong>do</strong> aspecto interpretativo. Foi constata<strong>do</strong>, entre os<br />
motivos menciona<strong>do</strong>s pelos estudantes, que há um <strong>de</strong>staque principalmente para<br />
a falta <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong> no tratamento da expressivida<strong>de</strong> por parte <strong>do</strong>s professores,<br />
para a valorização <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> escrito na partitura, e que sua meta principal frente<br />
ao repertório é a <strong>de</strong> tocá-lo corretamente (notas/alturas, articulação e andamento).<br />
Com isso, a expressivida<strong>de</strong>/interpretação é consi<strong>de</strong>rada como algo não obrigatório<br />
num primeiro momento. Curioso notar que, apesar <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os alunos referiremse<br />
à articulação, este fator é percebi<strong>do</strong> mais como um aspecto obrigatório da técnica<br />
cravística, e sua associação com a questão interpretativa não se dá logo <strong>de</strong> início.<br />
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
Ten<strong>do</strong> em vista as questões discutidas anteriormente, percebe-se que uma abordagem<br />
simultânea <strong>do</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> e das intenções expressivas é fundamental tanto na
preparação <strong>do</strong> repertório para uma performance, como também no estu<strong>do</strong> e aprendiza<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s tecla<strong>do</strong>s. Tal abordagem po<strong>de</strong> evitar que correções e alterações sejam<br />
necessárias num estágio avança<strong>do</strong> <strong>de</strong> preparação das peças, poupan<strong>do</strong> tempo e esforço<br />
por parte <strong>de</strong> instrumentistas e estudantes.<br />
Sen<strong>do</strong> assim, as <strong>de</strong>cisões acerca <strong>do</strong> <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>radas como mais<br />
um recurso expressivo para os instrumentos <strong>de</strong> tecla<strong>do</strong>, sobretu<strong>do</strong> para o cravo,<br />
uma vez que auxiliam o instrumentista a obter a articulação, a inflexão e o frasea<strong>do</strong><br />
a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s.<br />
Pelas observações realizadas no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong>sta pesquisa e nos <strong>de</strong>mais trabalhos realiza<strong>do</strong>s<br />
sobre o tema, foi possível constatar que os estudantes costumam trabalhar<br />
os aspectos expressivos somente num momento em que o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> repertório esteja<br />
bem avança<strong>do</strong>, ou então simplesmente se esquecem <strong>de</strong>sse aspecto, focalizan<strong>do</strong><br />
a atenção apenas na <strong>de</strong>codificação da partitura e menosprezan<strong>do</strong> a questão expressiva<br />
e <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> emoções.<br />
Um ponto a ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> é que, especificamente no caso <strong>do</strong> cravo, as respostas<br />
obtidas <strong>do</strong>s participantes po<strong>de</strong>m ter alguma relação com as características <strong>do</strong> repertório/partituras<br />
que os mesmos costumam estudar, uma vez que as peças normalmente<br />
não trazem indicações explícitas sobre articulação, dinâmica, frasea<strong>do</strong>,<br />
andamento, etc, diferentemente <strong>do</strong> que ocorre nas edições para piano. Este fator<br />
po<strong>de</strong>, <strong>de</strong> certa forma, contribuir para que a associação entre os aspectos da leitura<br />
inicial e a expressivida<strong>de</strong> sejam pouco relaciona<strong>do</strong>s pelos estudantes, principalmente<br />
<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à importância dada àquilo que está escrito. Curioso notar, entretanto, que<br />
nas <strong>de</strong>mais pesquisas citadas (Gerling, 2009 e Karlsson, 2008) os resulta<strong>do</strong>s foram<br />
obti<strong>do</strong>s a partir da observação <strong>de</strong> alunos <strong>de</strong> piano, viola e violão, cujo repertório<br />
costuma apresentar indicações exaustivas com relação à dinâmica, frasea<strong>do</strong>, andamento,<br />
etc, e ainda assim a expressivida<strong>de</strong> permanece, quan<strong>do</strong> muito, em segun<strong>do</strong><br />
plano na abordagem <strong>do</strong>s estudantes.<br />
Embora os da<strong>do</strong>s preliminares obti<strong>do</strong>s neste trabalho sejam insuficientes para fornecer<br />
resulta<strong>do</strong>s conclusivos sobre a questão, em parte <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao número reduzi<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> alunos observa<strong>do</strong>s até o momento, mostraram-se em consonância com pesquisas<br />
mais amplas já realizadas sobre o assunto. Desta forma, torna-se evi<strong>de</strong>nte a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> uma maior reflexão sobre as questões aqui levantadas, principalmente<br />
por parte <strong>do</strong>s educa<strong>do</strong>res musicais liga<strong>do</strong>s ao ensino <strong>do</strong>s tecla<strong>do</strong>s, a fim <strong>de</strong> que possam<br />
ser esclarecidas as dúvidas que porventura existam com relação ao tema e discutidas<br />
possíveis formas <strong>de</strong> conquistar a atenção <strong>do</strong>s estudantes que ainda não<br />
estejam familiariza<strong>do</strong>s com a abordagem simultânea da técnica e da expressão, nem<br />
convenci<strong>do</strong>s <strong>de</strong> suas vantagens.<br />
1 Os três alunos foram acompanha<strong>do</strong>s semanalmente.Ten<strong>do</strong> em vista o caráter preliminar<br />
255
256<br />
<strong>de</strong>sta observação, as aulas e sessões <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> não foram gravadas ou filmadas, a fim <strong>de</strong> evitar<br />
qualquer alteração comportamental por parte <strong>do</strong>s estudantes.<br />
Referências<br />
Bach, C.P.E. ([1753]/1949). Versuch über die wahre Art das Clavier zu spielen . Trad. William<br />
J. Mitchell, Essay on the true art of playing keyboard instruments. New York: Norton.<br />
Baker, Nancy K. & Scruton, Roger. (1980). Expression. In: Stanley Sadie (Ed.), The New<br />
Grove Dictionary of Music and Musicians. Lon<strong>do</strong>n: Macmillan, v.6, p.325-332.<br />
Gerling, Cristina C. et al.(2009). A comunicação das intenções interpretativas no repertório<br />
musical <strong>de</strong> estudantes <strong>de</strong> piano. In: Maurício Dottori (Ed.), <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> V <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais. Goiânia: UFG.<br />
Jorgensen, H. (2004). Strategies for Individual Practice. In: Williamon, A. (Ed.) Musical<br />
Excellence: Strategies and Techniques to Enhance Performance. Lon<strong>do</strong>n: Oxford University<br />
Press, pp.85-103.<br />
Jorgensen, H. (1998). Is Practice Planned? Oslo: Norwegian Aca<strong>de</strong>my of Music.<br />
Karlsson, J. & Juslin, P. (2008). Music expression: an observational study of instrumental<br />
teaching. Psychology of Music 36, p.309-334.<br />
Kroll, Mark.(2004). Playing the Harpsichord Expressively. Maryland: Scarecrow Press Inc.<br />
Schott, Howard. (2002). Playing the Harpsichord. New York: Dover.
artes musicais, lingüística, semiótica e cognição<br />
Resumo<br />
Musilinguagem: a música na fala e a fala na música<br />
Patrícia Pe<strong>de</strong>riva<br />
patped@fe.unb.br<br />
Elizabeth Tunes<br />
bethtunes@gmail.com<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília<br />
Este artigo trata da relação entre linguagem falada e música. Essa relação é aqui <strong>de</strong>nominada<br />
como sistema musilinguístico. Analisa-se, primeiramente como ambas, em sua<br />
forma natural, na filogênese, são uma e a mesma expressão. Na comunicação animal e<br />
primitiva, expressão musical e “fala” (po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser aqui entendida como vocalizações ou,<br />
ainda, como sonorizações) são um só e o mesmo processo, o que não significa que os<br />
animais possuam a proprieda<strong>de</strong> da fala, mas tão somente a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sonorizações<br />
<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as sua anatomia. O seu papel, nesse contexto, é <strong>de</strong> expressão <strong>de</strong> esta<strong>do</strong>s<br />
afetivos. A expressão musical, em seu estágio elementar, é igualmente o veículo comunicativo<br />
<strong>de</strong> expressão das emoções. Isso está presente e se afirma no percurso<br />
filogenético. A fala seria (Bannam, 2006) um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> comunicação serial em que os indivíduos<br />
se revezam na troca <strong>de</strong> representações com proprieda<strong>de</strong>s recursivas. O ato <strong>de</strong><br />
cantar permitiria, igualmente, o compartilhamento <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> simultânea entre seres<br />
humanos e que, como canto grupal, po<strong>de</strong> ter <strong>de</strong>sempenha<strong>do</strong> importante papel na natureza<br />
pré-lingüística da comunicação humana. Na evolução da comunicação vocal humana,<br />
estariam presentes os seguintes elementos: <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um sistema<br />
auditivo; postura ereta, que implica a natureza da laringe humana e as capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
ressonância <strong>do</strong> aparelho vocal; <strong>de</strong>senvolvimento da respiração voluntária, neotenia <strong>do</strong><br />
crânio adulto, mandíbula inferior e queixo ortognátos; dimensões da nasofaringe, processamento<br />
cerebral para percepção e produção musical; <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> centros<br />
específicos para a fala e funções relacionadas ao canto; lateralida<strong>de</strong> e integração <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s;<br />
<strong>de</strong>ntição onívora; <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong>s tubos <strong>de</strong> Eustáquio e sinus. O processamento<br />
musical possui um papel fundante em relação à fala. Na altura, duração e a<br />
capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> variar timbres seriam parâmetros <strong>de</strong> uma comunicação potencialmente<br />
significativa presentes na fala e no canto, o que não seria uma simples coincidência. Na<br />
história cultural <strong>do</strong> homem, música (expressão musical) e linguagem falada são organizadas<br />
em pólos opostos <strong>de</strong> um mesmo espectro mas, que, todavia, conservam aspectos<br />
comuns. Brown (2001), Geissman (2001) e Mithen (2006) também auxiliam nessa<br />
discussão. Na fala e na música, os níveis significacionais são governa<strong>do</strong>s por diferentes<br />
tipos <strong>de</strong> sintaxes <strong>de</strong> sistemas, ou seja, diferentes combinações frasais, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser diferenciadas<br />
mais por sua ênfase <strong>do</strong> que por sua espécie, que são representadas por meio<br />
<strong>de</strong> sua localização em um espectro. As diferentes interpretações <strong>do</strong>s padrões sonoros<br />
<strong>de</strong> comunicação são representadas pelos pólos <strong>de</strong>sse espectro. Cada sistema permite a<br />
257
258<br />
criação <strong>de</strong> novas formas significacionais. Enquanto a linguagem falada enfatiza o referencial<br />
significacional <strong>do</strong> som, a música enfatiza o seu significa<strong>do</strong> emotivo, a marca registrada<br />
da música. A meto<strong>do</strong>logia utilizada é a análise genética <strong>de</strong> Vigotski. Conclui-se<br />
que a linguagem falada é um sistema referencial <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, importante para a sobrevivência<br />
na cultura, enquanto a música organiza-se para ser o pólo referencial da particularida<strong>de</strong><br />
das emoções humanas (aspecto que se constitui nos diversos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> enformar<br />
as diferentes músicas) função também vital para a sobrevivência d homem em socieda<strong>de</strong>.<br />
Palavras-chave<br />
Musilinguagem, história-cultural, <strong>de</strong>senvolvimento psicológico<br />
Introdução<br />
A expressão musical e a fala possuem um papel fundante no <strong>de</strong>senvolvimento humano<br />
e na compreensão da musicalida<strong>de</strong> humana. Antes da história cultural, na filogênese,<br />
ou história natural <strong>do</strong> homem, a expressão sonora, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser entendida<br />
aqui como expressão musical, e a fala eram o mesmo fenômeno <strong>de</strong> expressão comunicativa.<br />
Mas, a história cultural está sujeita a novas leis, para além das leis biológicas.<br />
Na cultura, ambos os planos, biológico e cultural, influenciam-se e<br />
modificam-se constante e mutuamente, o que significa que, nela, o homem continua<br />
também se <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> (Vygotsky, 1996). Entretanto, é um novo tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
que acontece no homem cultural, o que requer uma compreensão<br />
das leis histórico-culturais.<br />
Luria (1991) <strong>de</strong>staca em seu estu<strong>do</strong> sobre a ativida<strong>de</strong> consciente <strong>do</strong> homem e suas raízes<br />
histórico-culturais, em concordância com Vygotsky (1996), que uma das condições,<br />
além <strong>do</strong> surgimento <strong>do</strong> trabalho e da ferramenta, condição que leva à<br />
formação da ativida<strong>de</strong> consciente <strong>de</strong> estrutura complexa <strong>do</strong> homem é o surgimento<br />
da linguagem. Luria (1991) <strong>de</strong>fine-a como “um sistema <strong>de</strong> códigos por meio <strong>do</strong>s<br />
quais são <strong>de</strong>signa<strong>do</strong>s objetos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> exterior, suas ações, qualida<strong>de</strong>, relações entre<br />
eles, etc.” (Luria, 1991, p. 78, itálicos <strong>do</strong> autor). A palavra ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>signa, por exemplo,<br />
um tipo <strong>de</strong> móvel que serve para assento. Dormir e correr <strong>de</strong>signam ações.<br />
Sobre e juntamente <strong>de</strong>signam relações diferentes entre objetos. Unidas em frases, as<br />
palavras conservam informações, permitin<strong>do</strong> a transmissão da experiência acumulada<br />
por gerações a outras pessoas. Os animais possuem apenas meios <strong>de</strong> expressão<br />
<strong>de</strong> seus esta<strong>do</strong>s, que são percebi<strong>do</strong>s por outros animais, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ou não exercerem<br />
influência neles. É somente no homem que surge essa linguagem que <strong>de</strong>signa coisas<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> exterior, que permite generalizações e que distingue ações e qualida<strong>de</strong>s.<br />
Assim, as condições <strong>de</strong> surgimento da linguagem <strong>de</strong>vem ser buscadas e<br />
compreendidas nas condições sociais <strong>do</strong> trabalho, cujo surgimento remonta ao perío<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> passagem da história natural à história da cultura humana.<br />
É na forma grupal <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> prática <strong>do</strong> homem, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com Luria (1991),
que surge nele a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transmissão <strong>de</strong> informações a outras pessoas e que<br />
não po<strong>de</strong> restringir-se à expressão <strong>de</strong> esta<strong>do</strong>s subjetivos. Deve, <strong>de</strong> outra forma, referir-se<br />
a objetos da ativida<strong>de</strong> conjunta. “[. . .] os primeiros sons que <strong>de</strong>signam objetos<br />
surgiram no processo <strong>do</strong> trabalho conjunto” (Luria, 1991, p. 79). Os sons<br />
começavam a indicar alguns objetos, mas não existiam autonomamente. Estavam<br />
embrenha<strong>do</strong>s na ativida<strong>de</strong> prática. Gestos e entonações expressivas os acompanhavam.<br />
Seu significa<strong>do</strong> só podia ser interpreta<strong>do</strong> conhecen<strong>do</strong>-se a situação em<br />
que eles surgiam. Po<strong>de</strong>r-se-ia chamá-los <strong>de</strong> protovocábulos. Os atos e gestos eram<br />
mais <strong>de</strong>terminantes na ativida<strong>de</strong>, constituin<strong>do</strong> os elementos <strong>de</strong> uma linguagem<br />
ativa. Só mais tar<strong>de</strong> os sons iriam possuir papel igualmente <strong>de</strong>terminante que propiciariam<br />
a base da linguagem <strong>de</strong> sons. A separação entre ação prática e sons só<br />
aconteceu <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muitos milênios, quan<strong>do</strong> apareceram as primeiras palavras autônomas<br />
que <strong>de</strong>signavam objetos e, posteriormente, ações e qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> objetos.<br />
Surge, então, a língua, como sistema <strong>de</strong> códigos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes.<br />
Três mudanças essenciais na ativida<strong>de</strong> consciente <strong>do</strong> homem acontecem com a linguagem.<br />
Ela permite a discriminação <strong>de</strong> objetos, a direção da atenção para eles e a<br />
sua conservação na memória. Isso possibilita lidar com as coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> exterior,<br />
mesmo que elas estejam ausentes. A linguagem permite a conservação da informação<br />
recebida <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> externo, duplican<strong>do</strong> o universo perceptível e crian<strong>do</strong><br />
um campo <strong>de</strong> imagens interiores. O surgimento <strong>de</strong>sse mun<strong>do</strong> interior <strong>de</strong> imagens<br />
po<strong>de</strong> ser utiliza<strong>do</strong> pelo homem em sua ativida<strong>de</strong>. A abstração e generalização das<br />
coisas também é outra significante contribuição da linguagem à formação da consciência.<br />
As palavras <strong>de</strong> uma língua indicam e abstraem as proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>las, relacionan<strong>do</strong><br />
as coisas perceptíveis em dadas categorias. Com as relações e abstrações<br />
possibilitadas pela linguagem, ela se torna, para além <strong>de</strong> um meio <strong>de</strong> comunicação,<br />
o veículo mais importante <strong>do</strong> pensamento, asseguran<strong>do</strong> a transição <strong>do</strong> sensorial<br />
para o racional no que diz respeito à representação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Ela é também o meio<br />
<strong>de</strong> transmissão <strong>de</strong> informações que cria uma fonte <strong>de</strong> evolução <strong>do</strong>s processos psíquicos<br />
e permite ao homem a assimilação da experiência. “Com o surgimento da linguagem<br />
surge no homem um tipo inteiramente novo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento psíquico<br />
<strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong> <strong>do</strong>s animais, e que a linguagem é realmente o meio mais importante <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento da consciência” (Luria, 1991, p. 81, itálico <strong>do</strong> autor).<br />
Novas leis <strong>de</strong> percepção são criadas e reorganizadas pela linguagem. A percepção<br />
aprofunda-se, relacionan<strong>do</strong>-se com a discriminação <strong>do</strong>s indícios essenciais <strong>do</strong> objeto.<br />
A linguagem modifica os processos <strong>de</strong> atenção <strong>do</strong> homem e cria condições<br />
para ele dirigir arbitrariamente a sua atenção. Ela modifica também os processos<br />
<strong>de</strong> memória, possibilitan<strong>do</strong> uma ativida<strong>de</strong> mnemônica consciente. O <strong>de</strong>sligar-se<br />
que possibilita também cria condições para o surgimento da imaginação, que, por<br />
sua vez é base para o ato criativo como forma complexa <strong>de</strong> abstração e <strong>de</strong> generalização.<br />
O surgimento da linguagem eleva os processos psíquicos a um novo nível e<br />
259
260<br />
reorganiza também a vivência emocional. Forma vivências e longos esta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> espírito<br />
que, não se limitan<strong>do</strong> às reações afetivas imediatas, não se separam <strong>do</strong> pensamento.<br />
Formas <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> consciente po<strong>de</strong>m também surgir por meio <strong>de</strong> regras<br />
estabelecidas com o auxílio da linguagem. Em síntese, os processos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong><br />
consciente <strong>do</strong> homem são imensamente plásticos e dirigíveis. Como bem afirmou<br />
Leontiev (2004), cada indivíduo apren<strong>de</strong> a ser um homem pela apropriação da<br />
cultura.<br />
A Musilinguagem<br />
Após uma longa etapa evolutiva, em que não havia uma separação entre som musical<br />
e som fala<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> ambos si<strong>do</strong> uma só coisa, uma musilinguagem, como <strong>de</strong>nomina<br />
Brown (2001), inicia-se na cultura uma nova etapa <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>do</strong> comportamento humano, ou seja, a separação entre expressão da musicalida<strong>de</strong><br />
e fala. Essa separação <strong>de</strong>manda características estruturais próprias bem como o aparecimento<br />
<strong>de</strong> novas funções para esses processos. Brown (2001) afirma que existem<br />
<strong>do</strong>is níveis <strong>de</strong> funcionamento, tanto na música, quanto na fala, que seriam o<br />
nível fonológico (unida<strong>de</strong>s sonoras, por exemplo, P, T. etc.) e o nível significacional<br />
(senti<strong>do</strong>). Ambos <strong>de</strong>rivam <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> frases, que envolve uma<br />
discreta unida<strong>de</strong> que combina sintaxe (processo combinatório das frases) e frase<br />
expressiva (que utilizaria graves e agu<strong>do</strong>s e enfatizaria <strong>de</strong>terminadas partes da palavra<br />
com a intenção <strong>de</strong> chamar a atenção para ela). O nível fonológico seria o nível<br />
acústico (mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> propagação <strong>do</strong> som), que é governa<strong>do</strong> por um tipo <strong>de</strong> sintaxe<br />
fonológica na unida<strong>de</strong> entre alturas sonoras (grave e agu<strong>do</strong>) e fonemas (unida<strong>de</strong>s<br />
sonoras). Em uma unida<strong>de</strong> funcional, combinam-se os morfemas (unida<strong>de</strong>s gramaticais,<br />
por exemplo, in), que nutrem o nível significacional <strong>de</strong> cada um <strong>do</strong>s sistemas.<br />
Na fala e na música, os níveis significacionais são governa<strong>do</strong>s por diferentes tipos<br />
<strong>de</strong> sintaxes <strong>de</strong> sistemas, ou seja, diferentes combinações frasais, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser diferenciadas<br />
mais por sua ênfase <strong>do</strong> que por sua espécie, que são representadas por<br />
meio <strong>de</strong> sua localização em um espectro. As diferentes interpretações <strong>do</strong>s padrões<br />
sonoros <strong>de</strong> comunicação são representadas pelos pólos <strong>de</strong>sse espectro. Cada sistema<br />
permite a criação <strong>de</strong> novas formas significacionais. Enquanto a linguagem falada<br />
enfatiza o referencial significacional <strong>do</strong> som, a música enfatiza o seu significa<strong>do</strong><br />
emotivo. Um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> funções ocupa uma posição intermediária nesse espectro,<br />
incorporan<strong>do</strong> o referencial da linguagem falada e a função <strong>do</strong> som emocional<br />
presente na música. Uma canção verbal possuiria uma função intermediária,<br />
motivo pelo qual, segun<strong>do</strong> o autor, ela tem ocupa<strong>do</strong> uma posição central na expressão<br />
humana ao longo <strong>do</strong> tempo (Brown, 2001). A seguir, apresentar-se-á o mo<strong>de</strong>lo<br />
<strong>de</strong> espectro proposto por Brown (2001) em que se po<strong>de</strong> observar em um pólo<br />
o mo<strong>de</strong>lo acústico musical, enfatizan<strong>do</strong> o significa<strong>do</strong> emotivo <strong>do</strong> som e, no outro,
a linguagem, <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong> o seu significa<strong>do</strong> referencial. O centro <strong>do</strong> espectro é ocupa<strong>do</strong><br />
pela canção verbal, que é o ponto <strong>de</strong> encontro entre música e linguagem.<br />
Fonte: Brown (2001, p. 275)<br />
Figura 1 – Níveis <strong>de</strong> funcionamento da música e da linguagem<br />
No processo <strong>de</strong> separação entre música e linguagem, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com Brown (2001),<br />
ambas enfatizariam tipos singulares <strong>de</strong> interpretação e comunicação <strong>de</strong> padrões sonoros.<br />
A linguagem falada contém um sistema semântico <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>s (senti<strong>do</strong><br />
e aplicação das palavras). Inserida em uma gramática, ela <strong>de</strong>senvolve uma espécie <strong>de</strong><br />
sintaxe (processo combinatório das frases) capaz <strong>de</strong> especificar as relações entre sujeito<br />
e objeto em uma frase. Isso envolve organização hierárquica e recursiva. A música,<br />
por sua vez, leva à formação <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>s acústicos. A dimensão acústica e o<br />
repertório <strong>de</strong> alturas (grave e agu<strong>do</strong>) se expandiram e, em sua gramática própria,<br />
complexida<strong>de</strong> e hierarquia semântica, transformaram-se em um sistema que tem<br />
por base a combinação <strong>de</strong> padrões <strong>de</strong> alturas. Isso possibilitou a criação <strong>de</strong> diversos<br />
tipos e formas polifônicas (várias vozes e melodias), bem como a combinação <strong>de</strong><br />
timbres complexos (qualida<strong>de</strong>s das fontes sonoras, por exemplo, som/timbre <strong>do</strong><br />
metal ou som/timbre da ma<strong>de</strong>ira). A proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> combinação <strong>de</strong> alturas possibilitou<br />
a emergência <strong>de</strong> diversas fórmulas categóricas para a expressão <strong>de</strong> esta<strong>do</strong>s<br />
emocionais. Também levou às várias formas <strong>de</strong> emoção sonora, que foram e são<br />
utilizadas na criação musical coerente e em um significa<strong>do</strong> emotivo nas frases musicais.<br />
No aspecto rítmico, a música assumiu a característica <strong>de</strong> organizar o tempo<br />
em pulsos regulares (duração <strong>do</strong> som), o que i<strong>de</strong>ntificaria a cultura oci<strong>de</strong>ntal na<br />
261
262<br />
busca por sua sincronicida<strong>de</strong>. A capacida<strong>de</strong> humana <strong>de</strong> manutenção <strong>de</strong> uma pulsação<br />
rítmica e <strong>de</strong> externar batidas está na base da função métrica <strong>do</strong> pulso (batida<br />
regular), o que permitiu, na estrutura musical, a hierarquização rítmica em dimensões<br />
horizontais e verticais, incluin<strong>do</strong> também a polirritmia.<br />
A diferenciação evolucionária levou música e linguagem a interagirem em outro<br />
plano, crian<strong>do</strong> novas funções que envolvem ambos os sistemas. Exemplo disso é o<br />
metro na poesia e a canção verbal que refletem a evolução <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is sistemas <strong>de</strong> mo<strong>do</strong><br />
interativo (Brown, 2001). A música envolve uma <strong>de</strong>licada capacida<strong>de</strong> lingüística<br />
assim como a linguagem, a capacida<strong>de</strong> musical. Esse sistema musilinguístico tornou-se<br />
o referencial emotivo da vocalização humana. Seus níveis diferencia<strong>do</strong>s levaram<br />
à maturação <strong>do</strong> sistema lingüístico e <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo acústico musical. Apesar<br />
disso, transformadas na cultura, ambas continuaram manten<strong>do</strong> um vínculo musilinguístico.<br />
O aspecto emocional <strong>de</strong>las é constituí<strong>do</strong> pelo uso <strong>de</strong> níveis tonais e contornos<br />
<strong>de</strong> altura na comunicação referencial. Também se constituem<br />
musilinguisticamente pelo <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> frases significacionais que foram<br />
geradas por regras combinatórias e elementos frasais que possuem níveis <strong>de</strong> modulação<br />
e que contém regras contextualizadas para modulações expressivas, bem como<br />
intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão. No nível semântico, o sistema musilinguístico é um instrumento<br />
referencial sofistica<strong>do</strong> <strong>de</strong> comunicação emotiva que gera <strong>do</strong>is níveis <strong>de</strong><br />
significa<strong>do</strong>. O primeiro, na relação <strong>de</strong> elementos justapostos, um nível local, e o segun<strong>do</strong>,<br />
em um nível global, um contorno total <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>s associa<strong>do</strong>s. A diferenciação<br />
entre ambas, música e fala, ocorre <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à elaboração <strong>do</strong>s sons, ou como<br />
um significa<strong>do</strong> referencial ou como significa<strong>do</strong> emocional. Diferem em sua ênfase<br />
mais que em sua espécie. A linguagem tem por base e propõe o estabelecimento da<br />
relação entre o ator e sua ação, enquanto a sintaxe musical tem por base a combinação<br />
<strong>de</strong> alturas e a relação <strong>de</strong> sons emocionais (Brown, 2001).<br />
Palavras finais<br />
A ativida<strong>de</strong> musical é característica da convivência humana em grupos e cria condições<br />
<strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> promover i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, coor<strong>de</strong>nação, ação, cognição e expressão<br />
emocional, além da cooperação, coor<strong>de</strong>nação e coesão. Envolveu, nas<br />
primeiras tribos humanas, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com Brown (2001), a participação <strong>do</strong> grupo<br />
social, bem como <strong>de</strong> indivíduos <strong>de</strong> ambos os sexos e <strong>de</strong> todas as ida<strong>de</strong>s. O fazer grupal<br />
é característica principal da ativida<strong>de</strong> musical e reflete as regras <strong>de</strong>sse grupo e<br />
seus mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> organização. Por isso, musicalida<strong>de</strong> e ativida<strong>de</strong> musical também tiveram<br />
um importante papel na evolução e na sobrevivência humana. Como estrutura<br />
musical, a combinação <strong>de</strong> alturas e a organização rítmica fazem parte <strong>de</strong>ssa<br />
história. Enquanto a fala <strong>de</strong>manda a alternância entre falantes, a música promove<br />
a manifestação simultânea <strong>de</strong> diferentes pessoas por meio <strong>de</strong> seu aspecto estrutural<br />
<strong>de</strong> combinação simultânea <strong>de</strong> sons e ritmos, capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvida na história na-
tural <strong>do</strong> homem. Em sua dimensão vertical, ela possibilita a cooperação <strong>de</strong> grupos<br />
em performances comuns, bem como a harmonização interpessoal. O ritmo musical,<br />
por sua vez, po<strong>de</strong> promover a coor<strong>de</strong>nação grupal e cooperação no trabalho.<br />
Exemplo disso são os cantos <strong>de</strong> trabalho encontra<strong>do</strong>s em todas as partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
e que são utiliza<strong>do</strong>s com o fim <strong>de</strong> organização da ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produção conjunta.<br />
Ao ser transforma<strong>do</strong> na cultura em uma diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas e em novas estruturas<br />
e funções, a ativida<strong>de</strong> musical transforma também as estruturas e possibilida<strong>de</strong>s<br />
na expressão sonora, por meio <strong>de</strong> contágio <strong>de</strong> esta<strong>do</strong>s afetivos, assumin<strong>do</strong> na<br />
cultura um novo significa<strong>do</strong> psicológico. A emoção continua presente no estágio da<br />
musicalida<strong>de</strong> na cultura. Porém, trata-se <strong>de</strong> uma musicalida<strong>de</strong> que, apesar <strong>de</strong> sua<br />
universalida<strong>de</strong>, que possui por base o fator biológico, nesse momento da história<br />
cultural <strong>do</strong> homem, assume formas diferenciadas e se concretiza na música como<br />
ferramenta das emoções. Esse é o principal papel da expressão musical em termos<br />
psicológicos e que <strong>de</strong>manda cada vez mais a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> novas pesquisas neste<br />
âmbito.<br />
Referências<br />
Brown, Steven; Merker, Björn; Wallin, Nil (2001). An introduction to evolutionary biomusicology.<br />
In: The origins of music. Lon<strong>do</strong>n: MIT press, pp. 3-24.<br />
Leontiev, Alex (2004). O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> psiquismo. São Paulo: Centauro.<br />
Luria, Alexan<strong>de</strong>r. Romanovich (1991) Curso <strong>de</strong> psicologia geral. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização<br />
Brasileira, vol. 1, 2ª. ed.<br />
Vygotski, Lev. Semionovich; Luria, Alexan<strong>de</strong>r. Romanovich (1996). Estu<strong>do</strong>s sobre a história<br />
<strong>do</strong> comportamento: o macaco, o primitivo e a criança. Porto Alegre: <strong>Artes</strong> médicas.<br />
263
264<br />
O conceito peirceano <strong>de</strong> Interpretante como fundamento<br />
para a compreensão <strong>do</strong> campo da interpretação musical<br />
Marcus Straubel Wolff<br />
m_swolff@hotmail.com<br />
Escola Superior <strong>de</strong> Música, Universida<strong>de</strong> Candi<strong>do</strong> Men<strong>de</strong>s-NF, RJ<br />
Resumo<br />
A contribuição da semiótica <strong>de</strong> base peirceana para o campo chama<strong>do</strong> pelo semioticista<br />
J. L. Martinez <strong>de</strong> interpretação musical possibilita uma superação <strong>do</strong> positivismo e <strong>de</strong> sua<br />
<strong>de</strong>fesa da neutralida<strong>de</strong> <strong>do</strong> intérprete, sem cair no subjetivismo total, uma vez que o estu<strong>do</strong><br />
da semiose musical, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a teoria geral <strong>do</strong>s signos, revela que sua realida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> necessariamente <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como se dá o processo <strong>de</strong> semiose (ação <strong>do</strong>s<br />
signos) na mente <strong>do</strong> intérprete, mas também que este <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> das ações <strong>do</strong>s signos e<br />
seus objetos.<br />
Nesta concepção, a interpretação <strong>de</strong> um signo musical é vista como o campo <strong>de</strong> estu<strong>do</strong><br />
da ação <strong>do</strong>s signos musicais em relação a seus interpretantes, envolven<strong>do</strong> primeiramente<br />
a percepção e a cognição, mas também outros subcampos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse, tais como a<br />
performance, a chamada “inteligência musical” (análise, crítica, ensino, teorização) e a<br />
composição, já que to<strong>do</strong>s esses subcampos dizem respeito ao terceiro elemento da semiose,<br />
o Interpretante.<br />
Neste artigo procura-se esclarecer primeiramente o conceito peirceano <strong>de</strong> interpretante,<br />
para a partir <strong>de</strong>le <strong>de</strong>monstrar-se como ocorre esse processo <strong>de</strong> interpretação, que num<br />
senti<strong>do</strong> peirceano implica a ação <strong>do</strong> signo musical numa mente existente ou potencial,<br />
individual ou coletiva. Por outro la<strong>do</strong>, estabelecen<strong>do</strong>-se uma ponte com as ciências<br />
sociais, a história e a sociologia, procura-se <strong>de</strong>monstrar também como essa interpretação<br />
musical não po<strong>de</strong>ria ser vista como uma instância única <strong>do</strong> intérprete, sen<strong>do</strong> <strong>de</strong> fato<br />
um elo numa teia on<strong>de</strong> signos estão entrelaça<strong>do</strong>s e geram novos signos num processo<br />
contínuo que gera significa<strong>do</strong>s, sejam eles puramente musicais ou não.<br />
O Conceito Peirceano <strong>de</strong> Interpretante<br />
Ao longo da imensa obra <strong>de</strong> Charles Peirce (1839-1914) po<strong>de</strong>m-se encontrar diversas<br />
<strong>de</strong>finições <strong>do</strong> termo interpretante. Tal conceito, como é sabi<strong>do</strong>, refere-se ao<br />
terceiro elemento da tría<strong>de</strong> estabelecida pelo filósofo americano, referin<strong>do</strong>-se à relação<br />
que o signo estabelece com o objeto que representa. Assim, se numa <strong>de</strong> suas<br />
<strong>de</strong>finições <strong>do</strong> signo, o autor afirmou que é aquilo que, sob certo aspecto, representa<br />
um objeto para alguém, por outro la<strong>do</strong> este signo criará na mente <strong>de</strong>sse intérprete<br />
um signo equivalente a ele mesmo ou vai gerar, como o autor estabeleceu posteriormente,<br />
um efeito <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> nessa mente, que foi viso também como um<br />
signo mais <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que o primeiro. Então, na terminologia da semiótica<br />
peirceana, este segun<strong>do</strong> signo, cria<strong>do</strong> na mente <strong>do</strong> intérprete recebe o nome <strong>de</strong> interpretante,<br />
enquanto a coisa representada é chamada <strong>de</strong> objeto.
Mas, como se dá o processo <strong>de</strong> interpretação? Ou, colocan<strong>do</strong>-se em termos peirceanos,<br />
como ocorre este processo <strong>de</strong> semiose no qual os signos atuam numa mente?<br />
Em primeiro lugar, é preciso observar que o interpretante é algo que resulta tanto<br />
da ação <strong>do</strong> signo quanto da <strong>do</strong> objeto, o qual geralmente é compreendi<strong>do</strong> como<br />
um fenômeno ou evento concreto e i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> J. Teixeira Coelho Netto,<br />
é o objeto <strong>do</strong> signo que “<strong>de</strong>termina uma base ou Primeiro (o signo) através <strong>do</strong> qual<br />
se chega a um terceiro (o interpretante)” (1999:67). O objeto, que na semiótica<br />
peirceana ocupa um lugar mais importante <strong>do</strong> que em outras correntes semióticas,<br />
aqui é visto como aquele que dirige a interpretação para sua materialida<strong>de</strong> específica.<br />
Por isso, o interpretante será fruto <strong>de</strong>ssa dialética entre o signo e seu objeto.<br />
O mo<strong>do</strong> como signo e objeto interagem <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a gerar um interpretante po<strong>de</strong> ser<br />
melhor compreendi<strong>do</strong> através <strong>de</strong> alguns exemplos toma<strong>do</strong>s <strong>de</strong> nossa vivencia no<br />
campo da música. Assim, quan<strong>do</strong> um estudante <strong>de</strong> música escuta uma obra pela<br />
primeira vez, sem possuir referencias anteriores da mesma, e tenta <strong>de</strong>scobrir, através<br />
da escuta atenta das qualida<strong>de</strong>s acústicas da obra executada, o estilo musical no<br />
qual se insere a mesma, dá início a um processo <strong>de</strong> semiose no qual <strong>de</strong>verá consi<strong>de</strong>rar<br />
tanto as características <strong>do</strong> objeto representa<strong>do</strong> (o estilo) quanto as <strong>do</strong> signo<br />
(a obra) para que possa chegar a uma conclusão acerca <strong>de</strong>la (o interpretante).<br />
A teoria peirceana admite uma divisão bipartida <strong>do</strong> objeto, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-se falar num<br />
objeto conti<strong>do</strong> no signo (isto é, o objeto tal como o signo o representa, que no exemplo<br />
acima seria o estilo tal como representa<strong>do</strong> e con<strong>de</strong>nsa<strong>do</strong> numa obra específica)<br />
e num objeto tal como é, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> qualquer aspecto seu mais particular (no<br />
caso anterior, o estilo em si, como toda a sua abrangência) que só po<strong>de</strong>ria ser revela<strong>do</strong><br />
por meio <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> mais aprofunda<strong>do</strong> e amplia<strong>do</strong>. Observan<strong>do</strong> tal distinção<br />
entre os tipos <strong>de</strong> objetos, o primeiro (aquilo que se supunha ser o objeto)<br />
recebe a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> objeto imediato, ao passo que o objeto dinâmico seria<br />
uma representação real <strong>do</strong> objeto, tal como um estu<strong>do</strong> musicológico e histórico<br />
mais aprofunda<strong>do</strong> po<strong>de</strong>ria revelar.<br />
Essa distinção entre os <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> objetos tornou-se necessária na medida em que<br />
se observou que o objeto imediato po<strong>de</strong>ria levar a um interpretante equivoca<strong>do</strong><br />
que se afastaria daquilo que realmente é. J. T. Coelho Netto, ao analisar tal distinção<br />
entre os objetos chega a levantar a questão acerca da possibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> processo<br />
<strong>de</strong> semiose po<strong>de</strong>r ou não dar origem a um conhecimento “capaz <strong>de</strong> revelar a realida<strong>de</strong><br />
sobre esse objeto” (1999:69). Seria possível, então, alguém afastar-se <strong>de</strong> seu<br />
próprio processo <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> significações para comparar a noção subjetiva que<br />
possui <strong>do</strong> objeto com o objeto real ou dinâmico, ou seja, como aquilo que o objeto<br />
real e objetivamente é?<br />
Para respon<strong>de</strong>r a essa questão, que traz consigo o problema da existência <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong><br />
exterior ao homem, isto é, <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> objetiva, é preciso compreen<strong>de</strong>r<br />
que Peirce segue a filosofia <strong>do</strong> pragmatismo que não é uma corrente <strong>de</strong> pensamento<br />
265
266<br />
positivista nem tampouco <strong>de</strong>terminista, como alguns autores a compreen<strong>de</strong>ram<br />
equivocadamente. Para o pragmatismo, o universo é verda<strong>de</strong>iro ou real apenas na<br />
medida em que po<strong>de</strong> ser conheci<strong>do</strong> e modifica<strong>do</strong> pela atuação humana.<br />
De acor<strong>do</strong> com Milton Singer (1984), Peirce não exclui o sujeito empírico <strong>de</strong> sua<br />
<strong>do</strong>utrina, mas, ao mesmo tempo, evita uma concepção i<strong>de</strong>alista <strong>do</strong> “self”. Localizan<strong>do</strong><br />
a existência e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> ego empírico no próprio processo <strong>de</strong><br />
comunicação, externo e interno (ou seja, consigo próprio), lançou as bases para<br />
uma teoria social da linguagem, da mente e <strong>do</strong> “self” (o interacionismo simbólico),<br />
que foi <strong>de</strong>senvolvida <strong>de</strong> diferentes formas por William James, J. Dewey, G. H. Mead,<br />
C. H. Cooley, Jean Piaget e Charles Morris.<br />
Embora esse <strong>de</strong>senvolvimento posterior da semiótica conduza a uma visão mais<br />
restrita <strong>do</strong> próprio conceito <strong>de</strong> interpretante, ele tem por base algumas colocações<br />
e questões levantadas pelo próprio Peirce acerca da inter-relação entre os conceitos<br />
e os hábitos, através <strong>do</strong>s quais se manifestam:<br />
“O mais perfeito relato <strong>de</strong> um conceito que as palavras po<strong>de</strong>m realizar consistirá<br />
numa <strong>de</strong>scrição <strong>do</strong> hábito que se espera que tal conceito produza. Mas como<br />
po<strong>de</strong>, <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, um hábito ser <strong>de</strong>scrito senão através <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>scrição <strong>do</strong><br />
tipo <strong>de</strong> ação que surge com a especificação das condições e <strong>do</strong> motivo?”<br />
Esta formulação particular da máxima pragmática, como observa Morris, coinci<strong>de</strong><br />
com a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Peirce <strong>do</strong> interpretante final <strong>de</strong> conceitos intelectuais e acerca<br />
da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se chegar a um conhecimento <strong>de</strong>finitivo da realida<strong>de</strong>. Para que<br />
se compreenda como o autor chega a tal conclusão é preciso consi<strong>de</strong>rar que o processo<br />
<strong>de</strong> semiose (<strong>de</strong> geração <strong>do</strong>s signos numa mente) é um processo transforma<strong>do</strong>r<br />
<strong>do</strong>s fenômenos existentes no universo real da experiência, na medida em que as interpretações<br />
sucessivas po<strong>de</strong>m levar a uma fusão entre o objeto imediato e o objeto<br />
dinâmico <strong>do</strong> signo. No ex.anterior, isso ocorreria quan<strong>do</strong> o estudante <strong>de</strong> música,<br />
incorporan<strong>do</strong> outras informações (outros signos) acerca <strong>do</strong> estilo musical po<strong>de</strong>ria<br />
chegar a uma visão mais apurada (novos interpretantes) acerca das características<br />
estilísticas contidas naquela obra particular que analisou.<br />
Em outras palavras, há aqui uma afirmação da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se chegar a um conhecimento<br />
ilimita<strong>do</strong> e <strong>de</strong>finitivo, ou seja, a uma “interpretação final”, o que afasta<br />
a semiótica peirceana <strong>do</strong> subjetivismo <strong>de</strong> outras correntes que ten<strong>de</strong>ram a se afastar<br />
da questão <strong>do</strong> objeto e da realida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s fenômenos, compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o processo<br />
<strong>de</strong> significação como um processo apenas interno ao signo e completamente subjetivo.<br />
Nesta concepção, a semiose é um processo dinâmico em que um signo esforça-se por<br />
representar, ao menos em parte, um objeto que po<strong>de</strong> ser visto, num certo senti<strong>do</strong>,<br />
como causa ou <strong>de</strong>terminante <strong>do</strong> signo. Mas a tría<strong>de</strong> teria fica<strong>do</strong> incompleta se<br />
Peirce não tivesse <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> o conceito <strong>de</strong> interpretante, nem tivesse observa<strong>do</strong><br />
que este correlato “por ter si<strong>do</strong> cria<strong>do</strong> pelo signo, foi também cria<strong>do</strong> <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> me-
diato e relativo pelo objeto <strong>do</strong> signo”, como salientou Coelho Netto (1999: 70).<br />
Geralmente o interpretante é compreendi<strong>do</strong> como um conceito ou imagem mental<br />
gerada pela ação <strong>do</strong>s signos, mas Peirce observou a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> separar também<br />
três tipos <strong>de</strong> interpretantes – os imediatos, os dinâmicos e os finais. De mo<strong>do</strong><br />
semelhante àquele em que distinguiu os diferentes tipos <strong>de</strong> objetos, observou a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> distinguir o interpretante imediato, ou seja, “o interpretante representa<strong>do</strong><br />
ou significa<strong>do</strong> no signo, <strong>do</strong> interpretante dinâmico, ou efeito produzi<strong>do</strong> na<br />
mente pelo signo. (CP 8.343). Segun<strong>do</strong> J. L. Martinez (1997), o interpretante imediato<br />
constitui-se das variadas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interpretação enquanto o interpretante<br />
dinâmico consiste na interpretação a qual se chega após um processo que<br />
consi<strong>de</strong>rou todas as possibilida<strong>de</strong>s e escolheu uma <strong>de</strong>las. Mas, retoman<strong>do</strong>-se o ex.<br />
anterior po<strong>de</strong>-se melhor compreen<strong>de</strong>r o que seria o interpretante final. Quan<strong>do</strong> o<br />
estudante escuta uma obra pela primeira vez, por um tempo limita<strong>do</strong>, po<strong>de</strong> abrir<br />
um leque <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interpretação, ao consi<strong>de</strong>rar a realida<strong>de</strong> da obra, suas<br />
características acústicas e o processo <strong>de</strong> semiose. Mas ao chegar a um certo estágio<br />
<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração <strong>do</strong> signo e <strong>de</strong> seu objeto, ten<strong>de</strong>rá a <strong>de</strong>cidir qual a melhor interpretação<br />
após uma consi<strong>de</strong>ração mais aprofundada <strong>do</strong> assunto.<br />
No campo da música, mais <strong>do</strong> que no <strong>do</strong>s signos verbais, a ação <strong>do</strong>s signos po<strong>de</strong> caminhar<br />
por diversas vias.1 A semiótica peirceana, talvez por não ter como base o<br />
mo<strong>de</strong>lo lingüístico, reconhece a existência e a importância <strong>do</strong>s interpretantes emocionais<br />
e energéticos, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s lógicos (geralmente privilegia<strong>do</strong>s na semiologia<br />
que partiu <strong>de</strong> Saussure e estabeleceu uma relação diádica mais restrita entre significante<br />
e significa<strong>do</strong>). Cumpre esclarecer que os interpretantes imediatos emocionais<br />
seriam as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sentimentos geradas pelos signos,<br />
enquanto os interpretantes energéticos seriam as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ações ou movimentos<br />
que po<strong>de</strong>riam ser realiza<strong>do</strong>s pelo intérprete e suscita<strong>do</strong>s pelas qualida<strong>de</strong>s<br />
<strong>do</strong> signo ou <strong>do</strong> objeto. Já os interpretantes lógicos seriam os possíveis pensamentos<br />
(ou outros signos mentais) gera<strong>do</strong>s a partir da atuação dialética <strong>do</strong> signo e <strong>do</strong> objeto.<br />
Ao serem realizadas, essas possibilida<strong>de</strong>s conduzem à formação <strong>de</strong> interpretantes<br />
dinâmicos (emocionais, energéticos ou lógicos).<br />
Neste senti<strong>do</strong>, é possível afirmar que um ouvinte po<strong>de</strong> interpretar dinamicamente<br />
um signo musical <strong>de</strong> diferentes mo<strong>do</strong>s. Ao interpretá-lo como pura qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
sentimento estará geran<strong>do</strong> um interpretante emocional, mas se o signo gerar uma<br />
ação psicossomática ou um movimento corporal teremos um interpretante energético;<br />
mas se o efeito causa<strong>do</strong> pelo signo-objeto for uma construção intelectual<br />
(seja ela uma análise harmônica, melódica, rítmica ou estética <strong>de</strong> uma obra) teremos<br />
um interpretante lógico.<br />
O estu<strong>do</strong> da ação <strong>do</strong>s signos no campo da música é algo tão amplo que o compositor<br />
e semioticista J. L. Martinez <strong>de</strong>finiu três campos <strong>de</strong> investigação, ao estruturar<br />
sua semiótica da música segun<strong>do</strong> a semiótica peirceana (1997). Partin<strong>do</strong> da con-<br />
267
268<br />
cepção da ação <strong>do</strong> signo como processo triádico, Martinez dividiu os estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />
significação musical em três áreas: a da semiose musical intrínseca, a da referencia<br />
musical e aquela que chamou <strong>de</strong> “interpretação musical”, termo que compreen<strong>de</strong>u<br />
num senti<strong>do</strong> muito amplo, abrangen<strong>do</strong> as subáreas da percepção, da execução (ou<br />
performance) e a da “inteligência musical” (incluin<strong>do</strong> aí a análise, a crítica, o ensino,<br />
a teoria, a semiótica da música e a composição). Cumpre esclarecer que tal divisão<br />
baseia-se na própria lógica da semiose, que por sua vez reflete as categorias universais<br />
<strong>de</strong> Peirce (primeirida<strong>de</strong>, secundida<strong>de</strong> e terceirida<strong>de</strong>). Portanto, o campo da semiose<br />
musical intrínseca trata <strong>do</strong> signo como uma primeirida<strong>de</strong>, isto é, em sua<br />
relação mais próxima com a realida<strong>de</strong>, na qual se torna uma qualida<strong>de</strong> (que no caso<br />
<strong>do</strong>s signos musicais seriam os parâmetros <strong>do</strong> som). Assim sen<strong>do</strong>, neste campo se<br />
lida com a significação musical interna, as qualida<strong>de</strong>s musicais e, portanto, neste<br />
nível relativo à primeira tricotomia (o signo visto em relação a ele mesmo), os objetos<br />
dinâmicos seriam sempre <strong>de</strong> natureza acústica.<br />
Já o segun<strong>do</strong> campo <strong>de</strong> investigação, o da referencia musical, lida com a segunda<br />
tricotomia (a relação <strong>do</strong>s signos com seus objetos), ou seja, com as diferentes formas<br />
<strong>de</strong> representação, estudan<strong>do</strong>-se como um signo se refere a seu objeto e também<br />
as relações possíveis entre os objetos imediatos e dinâmicos e os possíveis<br />
objetos dinâmicos (acústicos e não-acústicos) representa<strong>do</strong>s pelos signos musicais<br />
em seus diferentes mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> ser (classifica<strong>do</strong>s como ícones, índices ou símbolos).<br />
Mas será no terceiro campo <strong>de</strong> investigação, o da chamada interpretação musical.<br />
Que se irá analisar o signo musical em relação a seus interpretantes (terceira tricotomia),<br />
tratan<strong>do</strong>-se da ação <strong>do</strong>s signos numa mente. Aqui as questões básicas dizem<br />
respeito à natureza <strong>do</strong> interpretante musical (se emocional, energética ou lógica), à<br />
atuação <strong>do</strong> signo e <strong>do</strong> objeto sobre a mente <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a gerar diferentes tipos <strong>de</strong> interpretantes<br />
(imediatos, dinâmicos ou finais).<br />
Na terminologia <strong>de</strong> Lady Welby, explicitada por Coelho Netto (1999), o interpretante<br />
imediato correspon<strong>de</strong> ao que ela chamou <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, ou seja, ao efeito<br />
total que o signo produziu sem qualquer reflexão prévia, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong><br />
também como sen<strong>do</strong> a interpretabilida<strong>de</strong> peculiar <strong>do</strong> signo. O significa<strong>do</strong> ou interpretante<br />
dinâmico, já seria “o efeito diretamente produzi<strong>do</strong> no intérprete pelo<br />
signo” (1999: 72), isto é, aquilo que é realmente experimenta<strong>do</strong> em cada ato <strong>de</strong> interpretação;<br />
enquanto a significação seria “o efeito produzi<strong>do</strong> pelo signo sobre o<br />
intérprete” (i<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m) em condições que permitiriam ao signo exercitar seu<br />
efeito total. Dito <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, a significação seria, tal como compreen<strong>de</strong>u Coelho<br />
Netto, o resulta<strong>do</strong> interpretativo (ou o interpretante final) a que se está <strong>de</strong>stina<strong>do</strong><br />
a chegar se o signo e o objeto receberem uma consi<strong>de</strong>ração aprofundada.<br />
Transpon<strong>do</strong>-se a classificação <strong>do</strong>s interpretantes para o campo da música, é preciso<br />
consi<strong>de</strong>rar que, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à especificida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s signos musicais, a compreensão <strong>do</strong> processo<br />
dialógico que ocorre numa mente individual ou numa coletivida<strong>de</strong> (por exem-
plo, na mente coletiva que reúne os fans <strong>de</strong> um cantor famoso) <strong>de</strong>ve estar atenta ao<br />
fato <strong>de</strong> que os três campos <strong>de</strong> análise estão, na realida<strong>de</strong>, conti<strong>do</strong>s uns nos outros<br />
<strong>de</strong> forma que o terceiro (a interpretação) contém o segun<strong>do</strong> (a referencia musical)<br />
que, por sua vez, contém o primeiro (da semiose musical intrínseca), na medida em<br />
que o interpretante resulta da relação entre sujeito e objeto e que tal relação apóiase<br />
sobre as qualida<strong>de</strong>s intrínsecas <strong>do</strong> signo musical. Assim, o interpretante (especialmente<br />
o interpretante final, isto é, a significação) é resultante da natureza <strong>do</strong>s<br />
signos e daquilo que representam (seus objetos) num sistema musical e cultural<br />
mais amplo, que po<strong>de</strong> ser visto semioticamente como uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> significações.<br />
Evitan<strong>do</strong> por um la<strong>do</strong> o paradigma cartesiano e por outro o subjetivismo contemporâneo,<br />
a semiótica aplicada <strong>de</strong> matriz peirceana possibilita que se estabeleça uma<br />
ponte com as ciências sociais e os estu<strong>do</strong>s culturais, como perceberam Thomas Turino<br />
e Milton Singer, já que compreen<strong>de</strong> que o signo musical (seja ele uma partitura<br />
ou mesmo um instrumento musical) não está isola<strong>do</strong>, mas inseri<strong>do</strong> na re<strong>de</strong> semiótica<br />
mais ampla <strong>do</strong>s signos que compõem uma cultura ou certa tradição cultural.<br />
Sen<strong>do</strong> assim, uma <strong>de</strong>terminada interpretação <strong>de</strong> uma partitura, consi<strong>de</strong>rada por<br />
certa comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> intérpretes como sen<strong>do</strong> a melhor, po<strong>de</strong> ter si<strong>do</strong> causada por<br />
uma transmissão <strong>do</strong>s signos interpretativos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o próprio compositor da obra ou<br />
<strong>de</strong> alguém muito próximo <strong>de</strong>le. Mas a essas relações históricas po<strong>de</strong>riam se somar<br />
preferências individuais ou algum acontecimento específico ocorri<strong>do</strong> ao acaso que<br />
interferiu, a partir <strong>de</strong> certo momento, no mo<strong>do</strong> como a obra passou a ser interpretada.<br />
Haveria, então, uma interpretação mais correta <strong>de</strong> uma obra? As opiniões neste<br />
campo, mesmo entre os semioticistas, parecem divergir. Martinez, ao contrário <strong>de</strong><br />
Coelho Netto, não compreen<strong>de</strong> o interpretante final como sen<strong>do</strong> o mais correto ou<br />
mais verda<strong>de</strong>iro, preferin<strong>do</strong> vê-lo como sen<strong>do</strong> uma tendência <strong>do</strong> signo <strong>de</strong> crescer<br />
ou expandir-se, como sen<strong>do</strong> sua teleologia, toman<strong>do</strong> como exemplo fenômenos <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> magnitu<strong>de</strong>, como “a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que a multiplicida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s fenômenos<br />
musicais existentes, todas as músicas <strong>de</strong> todas as culturas, estivesse simultaneamente<br />
revelan<strong>do</strong>-se e convergin<strong>do</strong> num futuro que nunca virá” (1997: 78). Assim, afastase<br />
da visão positivista e cartesiana, já que para o pragmatismo só se po<strong>de</strong> conhecer<br />
o que se passa <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> “self” a partir <strong>de</strong> suas manifestações externas (seus atos e<br />
realizações) que po<strong>de</strong>m ser verificadas empiricamente. Segun<strong>do</strong> Peirce (apud Singer<br />
1984),<br />
“Primeiro vemos as coisas azuis e vermelhas. É uma <strong>de</strong>scoberta quan<strong>do</strong> vemos<br />
que o olho tem algo a ver com as cores e é uma <strong>de</strong>scoberta ainda mais recôndita<br />
quan<strong>do</strong> percebemos que existe um ego atrás <strong>do</strong> olho, a quem tais qualida<strong>de</strong>s<br />
pertencem”.<br />
1 É bom lembrar que as qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sentimento são as bases da escuta musical, sobretu<strong>do</strong><br />
269
270<br />
para ouvintes leigos, sem formação intelectual nesse campo. T. Turino (1999) acrescenta<br />
também que o po<strong>de</strong>r da música <strong>de</strong> criar respostas emocionais e materializar i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s pessoais<br />
e sociais baseia-se no fato <strong>de</strong> que os signos musicais são menos mediatiza<strong>do</strong>s, atuan<strong>do</strong><br />
num nível mais físico e emocional <strong>do</strong> que os signos verbais.<br />
Referências:<br />
Martinez, José Luiz (1997). Semiosis in Hindustani Music. Imatra: International Semiotics<br />
Institute.<br />
Coelho Netto, J. Teixeira (1999). Semiótica, Informação e Comunicação. São Paulo: Perspectiva.<br />
Peirce, Charles S. (2000). Semiótica. São Paulo: Perspectiva.<br />
Singer, Milton (1984). Man’s Glassy Essence: explorations in semiotic anthropology. Bloomington:<br />
Indiana University Press.<br />
Turino, Thomas (1988). Signs of Imagination, I<strong>de</strong>ntity and Experience – a Peircean semiotic<br />
theory for music. Urbana-Champaign: University of Illinois.
Representação e Socieda<strong>de</strong><br />
Indioney Rodrigues<br />
indioney@gmail.com<br />
Departamento <strong>de</strong> <strong>Artes</strong>, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Paraná<br />
Goldsmiths College, University of Lon<strong>do</strong>n<br />
Resumo<br />
Nomear é um processo composto, realiza<strong>do</strong> através da criação e adaptação <strong>de</strong> sinais e<br />
símbolos inteligíveis (perceptíveis). Esse processo, fundamentalmente motiva<strong>do</strong> pela necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> comunicar experiências, permite que indivíduos socialmente relaciona<strong>do</strong>s<br />
compartilhem um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> entendimento da realida<strong>de</strong>. A criação e adaptação <strong>de</strong> sinais<br />
e símbolos são especialmente influenciadas por <strong>de</strong>mandas sociais que motivam a evi<strong>de</strong>nciação<br />
<strong>de</strong> aspectos da realida<strong>de</strong> que po<strong>de</strong>m ser coletivamente compartilha<strong>do</strong>s,<br />
compon<strong>do</strong> sistemas sociais <strong>de</strong> referências reflexivos. Nomes são mensagens. Comportam<br />
idéias que, se por um la<strong>do</strong> po<strong>de</strong>m ser conhecidas individualmente, por outro la<strong>do</strong> não<br />
existem isoladamente, trazen<strong>do</strong> consigo valores e costumes, filosofias e cosmogonias,<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Esse processo po<strong>de</strong>, no entanto, eventualmente implicar o esforço <strong>de</strong> revelar<br />
aspectos inefáveis da experiência individual, ou mesmo o esforço <strong>de</strong> proteger a revelação<br />
<strong>de</strong>ssa inefabilida<strong>de</strong>. Nomear o indizível, seja no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> insight revela<strong>do</strong>r ou<br />
<strong>do</strong> mistério protetor, aparenta ser uma ocupação comum ao artista e ao shaman. Contrastan<strong>do</strong><br />
com o questionamento ilumina<strong>do</strong>r da metafísica, artes e ritos aparentam dividir<br />
um gosto similar pelo obscurantismo <strong>do</strong> mito, da ilusão, da metáfora, o gosto pelo<br />
encantamento e pela poesia.<br />
Inefabilida<strong>de</strong><br />
O mun<strong>do</strong> significa através da i<strong>de</strong>alização e nominação <strong>de</strong> suas partes.1 Nominar,<br />
nesse caso, implica um processo <strong>de</strong> criação e adaptação <strong>de</strong> sinais e símbolos2 suficientemente<br />
precisos, permeáveis e comunica<strong>do</strong>res. Precisos no senti<strong>do</strong> da potencialida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>finição da idéia ou aspectos da idéia. Permeáveis no senti<strong>do</strong> da<br />
potencialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> revelação <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>finição, da sua perceptibilida<strong>de</strong>.3 E comunica<strong>do</strong>res<br />
no senti<strong>do</strong> da potencialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão da <strong>de</strong>finição da idéia segun<strong>do</strong> sua<br />
revelação. Quan<strong>do</strong> um nome suficientemente <strong>de</strong>fine e viabiliza a comunicação <strong>de</strong><br />
uma idéia, ele a transforma num bem social, disponibilizan<strong>do</strong> sua influência, intercâmbio<br />
e transformação. Dessa maneira, mais <strong>do</strong> que objetivamente significar<br />
através da nominação <strong>de</strong> suas partes, o mun<strong>do</strong> indiretamente significa segun<strong>do</strong> um<br />
processo <strong>de</strong> socialização das idéias <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> disponibilizadas por sua nominação.<br />
Assim, por necessida<strong>de</strong>, há tantas realida<strong>de</strong>s distintas quanto socieda<strong>de</strong>s. Esse processo,<br />
fundamentalmente guia<strong>do</strong> pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compartilhar experiências,<br />
possibilita a indivíduos socialmente relaciona<strong>do</strong>s dividirem um mesmo entendimento<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>: aquilo que é senti<strong>do</strong> ou imagina<strong>do</strong>, recorda<strong>do</strong> ou <strong>de</strong>seja<strong>do</strong>, suas<br />
271
272<br />
qualida<strong>de</strong>s, cores e sabores, peso e profundida<strong>de</strong>, sua ativida<strong>de</strong> ou passivida<strong>de</strong>, suas<br />
formas, lugares, tempos e motivos.<br />
Cada nome po<strong>de</strong> ser interpreta<strong>do</strong> como uma mensagem social e, conseqüentemente,<br />
cultural. A criação e adaptação <strong>de</strong> sinais e símbolos aparentam ser sempre<br />
cercada por <strong>de</strong>mandas sociais e culturais que salientam aspectos da realida<strong>de</strong> que<br />
po<strong>de</strong>m ou <strong>de</strong>vem ser compartilha<strong>do</strong>s coletivamente, compon<strong>do</strong> sistemas reflexivos<br />
<strong>de</strong> referencias. Nomes certamente encerram idéias individuais, visões individuais<br />
moldadas por experiências individuais, mas idéias, visões e experiências que<br />
quan<strong>do</strong> nomeadas extrapolam a esfera <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio individual, pois cada nome<br />
herda e projeta a socieda<strong>de</strong> que o engendra, carregan<strong>do</strong> seus valores e costumes, filosofias<br />
e cosmogonias, sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Esse processo po<strong>de</strong>, no entanto, eventualmente<br />
implicar o esforço <strong>de</strong> revelar aspectos inefáveis da experiência individual, ou<br />
mesmo o esforço <strong>de</strong> proteger a revelação <strong>de</strong>ssa inefabilida<strong>de</strong>. Nomear o indizível,<br />
seja no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> insight revela<strong>do</strong>r ou <strong>do</strong> mistério protetor, aparenta ser uma ocupação<br />
comum ao artista e ao shaman. Contrastan<strong>do</strong> com o questionamento ilumina<strong>do</strong>r<br />
da metafísica, artes e ritos aparentam dividir um gosto similar pelo<br />
obscurantismo <strong>do</strong> mito, da ilusão, da metáfora, o gosto pelo encantamento e pela<br />
poesia.<br />
O rito da inefabilida<strong>de</strong>, <strong>do</strong>s aspectos indizíveis <strong>do</strong> viver, da experiência individual,<br />
tem um importante papel na caracterização e diferenciação <strong>de</strong> contextos sociais.<br />
Grupos <strong>de</strong> indivíduos caracterizam-se por seus meios rituais preferi<strong>do</strong>s: alguns irão<br />
evocar a respiração das florestas, outros o trabalho divinatório <strong>de</strong> espíritos, outros<br />
ainda irão cantar lendas sobre <strong>de</strong>uses estelares ou irão preferir meditar e ouvir. A importância<br />
<strong>do</strong> rito na caracterização social talvez se <strong>de</strong>va ao fato <strong>de</strong> que ele compreen<strong>de</strong><br />
uma representação dramática que, se não propriamente e precisamente<br />
comunica uma idéia, antes anuncia a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma idéia, opon<strong>do</strong>-se ao processo<br />
<strong>de</strong> nominação no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua temporalida<strong>de</strong>.<br />
Se o anuncia<strong>do</strong> não po<strong>de</strong> efetivamente significar uma parte objetiva da realida<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> contexto social, algo <strong>de</strong>le po<strong>de</strong>rá ao menos ser indistintamente prova<strong>do</strong> através<br />
<strong>de</strong> sua ritualização, a qual <strong>de</strong>verá ser suficientemente aberta a ponto <strong>de</strong> potencialmente<br />
contemplar a totalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s indivíduos socialmente relaciona<strong>do</strong>s. De fato, a<br />
própria escolha individual <strong>do</strong> rito é <strong>de</strong>finida socialmente, pois ele é uma forma <strong>de</strong><br />
encontro na qual o indivíduo compartilha com seu grupo uma mesma espécie <strong>de</strong>anunciação,<br />
uma mesma via <strong>de</strong> acesso ao indizível e inefável.<br />
Entre as artes, a música se oferece, ela mesma, como um rito. Ela oferece vias singulares<br />
<strong>de</strong> acesso ao indizível e inefável. A significação e simbolização pretendidas<br />
num enuncia<strong>do</strong> musical, são, em si, qualitativamente diferentes <strong>de</strong> qualquer outro<br />
processo <strong>de</strong> nominação, e somente po<strong>de</strong>m ser projetadas e recebidas por meios musicais.<br />
Numa outra perspectiva, a musica é também o resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma escolha coletiva.<br />
Indivíduos aglomeram-se em torno <strong>de</strong> estilos e compositores específicos, <strong>de</strong>
novas e antigas composições e intérpretes preferi<strong>do</strong>s. Diferentes indivíduos são <strong>de</strong><br />
alguma maneira igualmente toca<strong>do</strong>s por um mesmo enuncia<strong>do</strong> musical. Qual seria<br />
a razão da escolha individual e coletiva pela mesma mensagem musical? O que seria<br />
efetivamente comunica<strong>do</strong> em tal mensagem se inefável, e como?<br />
Po<strong>de</strong>-se argumentar se a comunicação pretendida pelas artes em geral, mesmo no<br />
caso da intenção <strong>de</strong> se comunicar algo indizível, po<strong>de</strong>ria mesmo ser mediada pela<br />
criação e manipulação <strong>de</strong> sinais e símbolos, estan<strong>do</strong> ela <strong>de</strong>scomprometida com as<br />
noções <strong>de</strong> precisão e permeabilida<strong>de</strong>. Como seria possível comunicar algo senão<br />
por intermédio <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s precisos? No entanto, a comunicação realizada no <strong>do</strong>mínio<br />
artístico, ao contrário <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>terminada por sinais e símbolos objetivamente<br />
referenciáveis por indivíduos socialmente relaciona<strong>do</strong>s, po<strong>de</strong> ser vista como<br />
primordialmente caracterizada pela busca por processos criativos e adaptativos,<br />
entre um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> opções socialmente significativas, que possam ajudar<br />
a atenuar tal <strong>de</strong>terminação, multiplican<strong>do</strong> suas possíveis interpretações. A gran<strong>de</strong><br />
poesia é talvez aquela que, usan<strong>do</strong> sinais e símbolos simples e compreensíveis, atinge<br />
a universalida<strong>de</strong>, não tanto pela precisão <strong>de</strong> suas idéias, ou equilíbrio e beleza <strong>de</strong><br />
seu ritmo, mas especialmente <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a seu potencial <strong>de</strong> alcance, por sua i<strong>de</strong>al in<strong>de</strong>terminação.<br />
A potência <strong>de</strong> qualquer metáfora po<strong>de</strong> ser medida por seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> e inconseqüência, sua elusivida<strong>de</strong> e reticência.<br />
Meaning<br />
Entre as artes, a música naturalmente oferece uma gran<strong>de</strong> elusivida<strong>de</strong>. Incontáveis<br />
pensa<strong>do</strong>res, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os helenos e antes, têm busca<strong>do</strong> compreen<strong>de</strong>r esse princípio elusivo,<br />
a <strong>de</strong>speito <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r comunicativo da música e sua importância na esfera individual<br />
e social, questionan<strong>do</strong> principalmente a respeito <strong>do</strong> real significa<strong>do</strong> da<br />
música em tais esferas. Po<strong>de</strong>ríamos propor um caminho sugerin<strong>do</strong> que encontramos<br />
potencialmente na música a pura poesia, a pura reticentida<strong>de</strong>, sen<strong>do</strong> a música<br />
uma abertura ao indizível, ou, ao menos, um caminho singular para a expressão e<br />
compartilhamento <strong>de</strong> paradigmas e complexida<strong>de</strong>s indizíveis que moldam e são<br />
uma parte importante <strong>de</strong> nossa humanida<strong>de</strong>. Mas a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> seu engajamento<br />
simplista, tal proposição estaria longe <strong>de</strong> ser suficiente. Nossa responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve<br />
ainda repousar na mesma curiosida<strong>de</strong> a respeito <strong>do</strong>s motivos e significa<strong>do</strong>s, mas<br />
significa<strong>do</strong>s que talvez possam e <strong>de</strong>vam ser investiga<strong>do</strong>s e aborda<strong>do</strong>s <strong>de</strong> maneira sutilmente<br />
diferente.<br />
Tenho proposto que o processo <strong>de</strong> nominação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> é composto por duas etapas<br />
complementares, não necessariamente mutuamente implicadas. Por um la<strong>do</strong>,<br />
uma etapa criativa, na qual o indivíduo buscaria projetar – ou introjetar – novos sinais<br />
e símbolos em vocabulários sígneos ou simbólicos reais ou potenciais, compartilha<strong>do</strong>s<br />
ou i<strong>de</strong>almente compartilha<strong>do</strong>s por <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> grupo social. Por outro<br />
la<strong>do</strong>, por uma etapa adaptativa, na qual o indivíduo buscaria assimilar sinais e sím-<br />
273
274<br />
bolos socialmente e culturalmente herda<strong>do</strong>s, que po<strong>de</strong>riam ou não ser reinterpreta<strong>do</strong>s,<br />
renova<strong>do</strong>s e novamente socialmente compartilha<strong>do</strong>s. Nesta concepção, o<br />
processo individual <strong>de</strong> nominação é essencialmente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>, ou ao menos<br />
fortemente influencia<strong>do</strong> por, uma espécie <strong>de</strong> economia <strong>de</strong> sinais e símbolos praticada<br />
entre indivíduos socialmente relaciona<strong>do</strong>s. O social, e o cultural, seriam o meio<br />
para a troca franca <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>s.<br />
Semelhantemente, grupos <strong>de</strong> indivíduos socialmente i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>s criariam (concordam)<br />
e adaptariam (conformam) vocabulários <strong>de</strong> sinais e símbolos específicos,<br />
projetan<strong>do</strong>-os sobre seus atores, compon<strong>do</strong> simultaneamente um amplo cenário<br />
cultural. Tais vocabulários conteriam, primariamente, os códigos morais e éticos<br />
que, por um la<strong>do</strong>, ajudam a <strong>de</strong>limitar as estruturas e hierarquias sociais e, por outro,<br />
a caracterizar e discriminar globalmente a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural. No nível puramente<br />
social, a criação e adaptação <strong>de</strong> sinais e símbolos seria amplamente influenciadas<br />
por aspectos políticos e tecnológicos significativos, entre eles o próprio tipo <strong>de</strong> estratificação<br />
social, a organização <strong>do</strong>s meios produtivos, a distribuição da riqueza ou<br />
o acesso ao conhecimento.<br />
Esta visão encontra suporte nas idéias <strong>de</strong> Noam Chomsky4, que propõe que o pensamento<br />
seria estrutura<strong>do</strong> a posteriori, através <strong>de</strong> etapas lingüísticas diferenciadas.<br />
Chomsky sugere que o pensamento seria gradualmente formaliza<strong>do</strong>, primeiramente<br />
segun<strong>do</strong> constantes gramaticais <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m mais geral e mais abrangente, e,<br />
conseqüentemente, segun<strong>do</strong> constantes sintáticas e fonêmicas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m mais específica,<br />
hierarquicamente até sua forma lingüista final resultante. A linguagem que<br />
usamos para comunicar nosso entendimento da realida<strong>de</strong> seria construída sobre e<br />
a partir <strong>do</strong> pensamento puro.<br />
Assimilan<strong>do</strong> e interpretan<strong>do</strong> as idéias <strong>de</strong> Chomsky segun<strong>do</strong> uma abordagem sociológica,<br />
po<strong>de</strong>-se dizer que o pensamento, em sua projeção social, além <strong>de</strong> ser gradualmente<br />
estrutura<strong>do</strong> lingüisticamente, é também continuamente mo<strong>de</strong>la<strong>do</strong>,<br />
individualmente e coletivamente, por tais etapas criativas e adaptativas constitutivas<br />
<strong>do</strong> processo <strong>de</strong> nominação, sen<strong>do</strong> individualmente mo<strong>de</strong>la<strong>do</strong> no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
ser (ou não ser) socialmente incorpora<strong>do</strong> e significativo, e, <strong>de</strong> maneira reflexiva e<br />
complementar, também sen<strong>do</strong> socialmente mo<strong>de</strong>la<strong>do</strong> no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> compor (ou<br />
não compor) uma linguagem compartilhada. De acor<strong>do</strong> com esta interpretação,<br />
tais etapas criativas e adaptativas, individuais e coletivas, teriam, respectivamente,<br />
uma forte influência na geração das constantes gramaticais e sintáticas forma<strong>do</strong>ras<br />
da estrutura da linguagem expressiva <strong>do</strong> pensamento puro.<br />
Assim, em potência, a gramática como conceito e processo estrutura<strong>do</strong>r resultaria<br />
principalmente <strong>de</strong> tais etapas criativas orientadas, ou até mesmo regradas, socialmente<br />
e culturalmente. Em potência, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que qualquer gramática seria<br />
fundamentalmente uma interface social, mesmo no caso <strong>de</strong> uma gramática musical.<br />
É importante salientar, especialmente consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o <strong>do</strong>mínio artístico, que o
emprego, aqui contextualiza<strong>do</strong>, <strong>do</strong> termo gramática não sugere uma categoria lingüística<br />
específica, mas somente um nível criativo genérico no qual, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com<br />
Chomsky, o pensamento puro ou original seria primeiramente mo<strong>de</strong>la<strong>do</strong>. No caso<br />
das linguagens naturais, o pensamento aparenta ser realmente estrutura<strong>do</strong> por categorias<br />
lingüísticas especificas, compartilhadas por um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> grupo social,<br />
especialmente porque, nesse contexto, significar o pensamento coletivamente é algo<br />
naturalmente <strong>de</strong>seja<strong>do</strong>. Mas, nas artes, e especialmente na música, tais categorias<br />
lingüísticas específicas não se mostram igualmente úteis e <strong>de</strong>sejáveis, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>se<br />
que as artes seriam primariamente <strong>de</strong>dicadas à comunicação <strong>de</strong> inefabilida<strong>de</strong>s.<br />
Em resumo, propõe-se que a gramática, como conceito e processo estrutura<strong>do</strong>r,<br />
seria <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m mais abrangente, compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> artes e linguagens naturais sob<br />
uma mesma hierarquia. Propõe-se que linguagens naturais e linguagens artísticas<br />
compartilham o mesmo espaço estrutura<strong>do</strong>r no interior da gramática, como uma<br />
alternativa à tendência <strong>de</strong> buscar-se adaptar e constranger a amplitu<strong>de</strong> da linguagem<br />
artística, naturalmente propensa à in<strong>de</strong>terminação da poesia, aos padrões e categorias<br />
lingüísticas <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> das línguas naturais. O pensamento certamente<br />
po<strong>de</strong> ser estrutura<strong>do</strong>, mo<strong>de</strong>la<strong>do</strong> e projeta<strong>do</strong> por, e através <strong>de</strong>, um número<br />
preciso <strong>de</strong> categorias, tais como substância, qualida<strong>de</strong>, ação, posição, duração, etc.,<br />
tal como normalmente ocorre quan<strong>do</strong> buscamos comunicar o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> pensamento.<br />
Mas o pensamento também aparenta ser estrutura<strong>do</strong>, mo<strong>de</strong>la<strong>do</strong> e projeta<strong>do</strong><br />
por, e através <strong>de</strong>, outras maneiras, tais como a razão lógica matemática, da qual<br />
po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>duzir o senso <strong>de</strong> proporção tão caro às artes em geral; ou as ações e reações<br />
instintivas comunicadas durante a experiência direta das relações humanas,<br />
das coisas e das idéias, algumas vezes tão relevantes psicologicamente e base para<br />
importantes respostas emocionais; ou a emoção ela mesma, e além a intuição <strong>de</strong><br />
algo in<strong>de</strong>finível e indizível encontra<strong>do</strong> nos enuncia<strong>do</strong>s artísticos.<br />
Muito embora apresentem similarida<strong>de</strong>s, uma absoluta correlação entre as linguagens<br />
naturais e as linguagens artísticas aparenta ser fundamentalmente contraditória.<br />
Tais similarida<strong>de</strong>s, no entanto, po<strong>de</strong>m ser entendidas como uma<br />
conseqüência <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> que tanto as linguagens naturais quanto as artísticas ocupem<br />
e compartilhem <strong>do</strong> mesmo nível criativo estrutura<strong>do</strong>r <strong>do</strong> pensamento, realizan<strong>do</strong><br />
trocas <strong>de</strong> processos mo<strong>de</strong>la<strong>do</strong>res. O gesto musical pensa<strong>do</strong> ou ouvi<strong>do</strong> po<strong>de</strong><br />
aparentar ocupar a mesma posição que um nome<br />
ou uma preposição ocupam em uma sentença, mas não exatamente porque tal gesto<br />
po<strong>de</strong> em si comunicar a mesma idéia que tais categorias lingüísticas comunicariam.<br />
Tal impressão aparenta ser <strong>de</strong>rivada simplesmente <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> que as linguagens potenciais,<br />
através das quais o pensamento se disponibiliza, incluin<strong>do</strong>-se aqui tanto a<br />
linguagem artística quanto a natural, são igualitariamente disponíveis na esfera gramatical,<br />
igualitariamente no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que tais linguagens representariam, tão somente,<br />
diferentes qualida<strong>de</strong>s da mesma função intelectual primal.<br />
275
276<br />
Por outro la<strong>do</strong>, em potência, a sintaxe, como conceito e processo estrutura<strong>do</strong>r, po<strong>de</strong><br />
também ser entendida segun<strong>do</strong> aspectos sociais e culturais <strong>de</strong>terminantes, muito<br />
embora aparente por sua vez ser relacionada a processos adaptativos. A comunicação<br />
<strong>do</strong> pensamento seria dificultada na ausência <strong>de</strong> um ato criativo primordial, cuja<br />
resultante seria sua gramatização. No entanto, o ato criativo seria igualmente dificulta<strong>do</strong><br />
na ausência da percepção das forças contrastantes instaladas entre vocabulários<br />
<strong>de</strong> sinais e símbolos e a realida<strong>de</strong> por eles referenciada. Tais forças aparentam<br />
ser primordialmente manipuladas pela maneira através da qual elas são ou não são<br />
relacionadas em termos <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>. Um sinal natural ou convencional, uma palavra<br />
falada ou escrita, sua inflexão e posição numa frase, um simples <strong>de</strong>senho ou<br />
uma sofisticada escultura, uma peça musical, a maneira, tempo e lugar em que ela é<br />
apresentada ou interpretada, etc., significam e comunicam mensagens diretas: um<br />
trovão é um trovão, um sorriso é um sorriso, esta [palavra] é uma palavra, e assim<br />
uma pintura é uma pintura, e uma peça <strong>de</strong> música é uma peça <strong>de</strong> música. Há em tais<br />
exemplos uma objetivida<strong>de</strong> essencial, um po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> significa<strong>do</strong> fundamental, eles<br />
são exatamente aquilo que nos permite percebê-los, individualmente e coletivamente.<br />
Quan<strong>do</strong>, por contraste, sinais ou símbolos são percebi<strong>do</strong>s na sua intenção<br />
<strong>de</strong> significar outra coisa, quan<strong>do</strong> no <strong>do</strong>mínio da metáfora, eles, bem como seus respectivos<br />
significa<strong>do</strong>s objetivos, trocam naturezas. A palavra [Guernica] po<strong>de</strong> significar<br />
uma pintura, e esta pintura um sentimento <strong>de</strong> tragédia, e tal sentimento a<br />
recordação <strong>de</strong> todas as tragédias, da sua amargura, e a amargura em si mesma a recordação<br />
da canção triste, da solidão ou compaixão, <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> celebração, e tal<br />
<strong>de</strong>sejo a lembrança <strong>do</strong> amigo, <strong>do</strong> sorriso, <strong>do</strong> contentamento [. . .]<br />
A sintaxe, composta por to<strong>do</strong>s os sinais e símbolos potenciais que constituem um<br />
<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> vocabulário, bem como seus elementos internos fundamentais, suas<br />
variações fonéticas e formais, é assim interpretada como a conseqüente etapa da<br />
mo<strong>de</strong>lação <strong>do</strong> pensamento já gramaticiza<strong>do</strong>, <strong>do</strong> pensamento gramatical, o qual, ao<br />
contrário <strong>de</strong> ser socialmente e criativamente projeta<strong>do</strong>, receberia agora as <strong>de</strong>terminantes<br />
sociais <strong>de</strong>limita<strong>do</strong>ras, sen<strong>do</strong> socialmente adapta<strong>do</strong> e prepara<strong>do</strong> para ser<br />
amplamente aceito e entendi<strong>do</strong>. No caso <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio artístico, no entanto, a sintaxe,<br />
como conceito e processo estruturante, po<strong>de</strong> ser vista como uma busca por<br />
forças contrastantes, sen<strong>do</strong> qualitativamente <strong>de</strong>terminada por uma espécie <strong>de</strong> abertura<br />
e reticenticida<strong>de</strong>, por uma essencial in<strong>de</strong>terminação, necessária à <strong>de</strong>sejada pluralida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> interpretações da obra <strong>de</strong> arte. A sintaxe artística seria uma matéria<br />
menos <strong>de</strong>nsa <strong>do</strong> que aquela contemplada nas linguagens naturais. No <strong>do</strong>mínio artístico,<br />
a sintaxe <strong>de</strong>veria ser medida no seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> exponencialmente apresentar<br />
e representar outros significa<strong>do</strong>s, no seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>svio, <strong>de</strong> multiplicação, e assim,<br />
em seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> anunciação, em sua elusivida<strong>de</strong>.<br />
Assim como nas linguagens naturais, a sintaxe artística seria uma matéria socialmente<br />
regulada. De fato, não raramente é possível observa-se a sugestão e, em mui-
tos casos, a própria imposição <strong>de</strong> vocabulários artísticos sobre seus atores. Vocabulários<br />
estes que, não raramente, são origina<strong>do</strong>s ou mesmo fundamenta<strong>do</strong>s em<br />
mitos e lendas socialmente significativas, no que se faz notar mais uma vez a interseção<br />
das artes e <strong>do</strong>s ritos.<br />
Um simples círculo, por exemplo, po<strong>de</strong> encerrar um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>s<br />
singulares <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>do</strong> contexto social a que ele se aplica. Ele po<strong>de</strong> representar<br />
inclusão, totalida<strong>de</strong>, perfeição, centricida<strong>de</strong>, foco, unida<strong>de</strong>, iniciação, conclusão,<br />
etc., e, como se faz facilmente notar, também po<strong>de</strong> encerrar uma quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outros<br />
<strong>de</strong>rivativos conceituais implícitos e relativos à uma classe <strong>de</strong> pensamento específica,<br />
como por exemplo o pensamento temporal que po<strong>de</strong> referir o círculo como<br />
um símbolo das idéias <strong>de</strong> infinitu<strong>de</strong>, ciclo, revolução ou mobilida<strong>de</strong>.<br />
Não seria por <strong>de</strong>mais controverso sugerir que socieda<strong>de</strong>s inteiras ten<strong>de</strong>m a orientar<br />
seus atores em termos <strong>do</strong>s potenciais significa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s vocabulários<br />
<strong>de</strong> sinais e símbolos, e tal coor<strong>de</strong>nação aparenta ser igualmente válida tanto no<br />
caso das linguagens naturais quanto nas artísticas. Parte <strong>de</strong>sta interpretação baseiase<br />
na idéia da existência <strong>de</strong> classes <strong>de</strong> pensamento, significan<strong>do</strong> que o pensamento<br />
em si nunca seria qualitativamente neutro, mas sim orienta<strong>do</strong> à natureza <strong>do</strong> seu<br />
objeto, diferin<strong>do</strong> conforme difere a realida<strong>de</strong> e em coor<strong>de</strong>nação com a sintaxe socialmente<br />
disponível para representar tal objeto. No caso <strong>do</strong> pensamento temporal,<br />
a idéia <strong>de</strong> tempo ela mesma seria socialmente mo<strong>de</strong>lada <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com<br />
<strong>de</strong>terminantes simbólicas presentes nos vocabulários socialmente disponíveis, <strong>de</strong><br />
acor<strong>do</strong> com uma sintaxe <strong>do</strong> tempo.<br />
Neste caso, sen<strong>do</strong> socialmente mo<strong>de</strong>la<strong>do</strong>, o pensamento temporal seria segura e<br />
objetivamente comunica<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> um conjunto preciso <strong>de</strong> sinais e símbolos temporais<br />
compartilha<strong>do</strong>s pelo grupo social. Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se então a expressão artística<br />
<strong>de</strong>sse mesmo pensamento, a sintaxe artística <strong>do</strong> tempo <strong>de</strong>ve diferir no senti<strong>do</strong><br />
que ela é <strong>de</strong>sejada em sua potência <strong>de</strong> reticenticida<strong>de</strong>. O discurso sobre o tempo<br />
po<strong>de</strong> usar diferentes terminologias. Ele po<strong>de</strong> ser estritamente lógico e basear-se na<br />
observação da natureza material, na física. Ele po<strong>de</strong> fundamentar-se na psicologia,<br />
na fenomenologia ou metafísica. Mas ele também po<strong>de</strong> ser poético. Como diferentes<br />
socieda<strong>de</strong>s possuem seus próprios mo<strong>de</strong>los poéticos <strong>do</strong> tempo, assim po<strong>de</strong>mos<br />
encontrar uma quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> diferentes representações <strong>do</strong> tempo, e, por<br />
necessida<strong>de</strong>, diferentes representações musicais <strong>do</strong> tempo.<br />
Em to<strong>do</strong> caso, o senti<strong>do</strong>, o significa<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssa e <strong>de</strong> qualquer outra representação artística,<br />
musical ou não, aparenta confundir-se com sua função anuncia<strong>do</strong>ra, com sua<br />
natureza processual in<strong>de</strong>terminada. Ao longo <strong>de</strong>ste artigo levantaram-se questões<br />
naturalmente controversas relativas a classes <strong>de</strong> pensamento, gramáticas e sintaxes<br />
artísticas, vocabulários sígneos e simbólicos, criativida<strong>de</strong> e adaptabilida<strong>de</strong>, socieda<strong>de</strong><br />
e cultura, num intuito positivamente argumentativo e alternativo. Percebe-se<br />
agora que a nominação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> é uma entre muitas outras razões <strong>do</strong> nomear.<br />
277
278<br />
Que atribuir um nome é também uma construção, uma interferência. Que o representar<br />
traz em si uma irrealida<strong>de</strong>, que representar é também dar nome ao inexistente.<br />
Percebe-se agora um equilíbrio entre a representação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e a<br />
representação <strong>de</strong> algo que se realiza através das diferentes concepções culturais e sociais<br />
da realida<strong>de</strong>. Percebe-se nesse algo indizível, que se busca ser representa<strong>do</strong>, um<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> nominação, não <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, mas <strong>do</strong>s fundamentos <strong>de</strong> nossa humanida<strong>de</strong>.<br />
1 Mitchell, W. 1995, “Representation”, in F Lentricchia & T McLaughlin (eds), Critical<br />
Terms for Literary Study, 2nd edn, University of Chicago Press, Chicago.<br />
2 Um sinal é uma entida<strong>de</strong> que significa uma outra entida<strong>de</strong>. Sinais po<strong>de</strong>m ser naturais, estabelecen<strong>do</strong><br />
uma relação causal com a entida<strong>de</strong> significada (como no caso <strong>do</strong> raio e o trovão),<br />
ou convencionais, estabelecen<strong>do</strong> um acor<strong>do</strong> <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> entre significante e significa<strong>do</strong> (como<br />
no caso <strong>do</strong> ponto final e o fim da sentença). Símbolos por sua vez contrastam com sinais<br />
pois <strong>de</strong>notam diretamente a coisa significada (como no caso da ban<strong>de</strong>ira e da pátria). Há<br />
coisas que são somente coisas e não são sinais. Há coisas que são também sinais <strong>de</strong> outras<br />
coisas. Há coisas que são sempre sinais (como as linguagens e outros símbolos não verbais, tais<br />
como as cerimônias e ritos).<br />
3 Sinais são perceptíveis principalmente através da audição e visão, mas po<strong>de</strong>m ser também<br />
percebi<strong>do</strong>s através da gustação, olfato, tato, e sensos <strong>de</strong> equilíbrio, direção, aceleração, calor,<br />
movimento e <strong>do</strong>r.<br />
4 Noam Chomsky (1957). Syntactic Structures. The Hague: Mouton.
Interações entre Ritmo Lingüístico e Ritmo Musical no<br />
Contexto da Canção<br />
Cássio Andra<strong>de</strong> Santos<br />
cassio.santos@usp.br<br />
Beatriz Raposo <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros<br />
biarm@usp.br<br />
Departamento <strong>de</strong> Letras Clássicas e Vernáculas<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />
Resumo<br />
Teorias <strong>de</strong> percepção e produção da fala, atreladas a pesquisas cognitivas influenciaram<br />
na questão <strong>do</strong> ritmo nas línguas, questionan<strong>do</strong> a dicotomia proposta por Lloyd James<br />
(1941) e Abercrombie (1967) (Stress-timed e Syllable-timed). A Teoria Motora da Percepção<br />
da Fala (Lieberman & Mattingly, 1985) e a Fonologia Articulatória (Browman & Goldstein,<br />
1986) observam o sinal acústico da fala para respon<strong>de</strong>r a perguntas fonológicas,<br />
toman<strong>do</strong> o gesto, o movimento, como sua unida<strong>de</strong> lingüística. Cummins (2009), toman<strong>do</strong><br />
a fala como movimento, afirma que o ritmo nela presente é um or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r temporal tal<br />
os presentes na dança ou no caminhar. Buscan<strong>do</strong> observar a realização <strong>do</strong> ritmo lingüístico<br />
na fala, resolvemos nos ater a fala-cantada e observar como a estrutura musical<br />
influencia sua realização.<br />
Introdução<br />
Os sons da fala são um interessante objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> lingüístico também quan<strong>do</strong><br />
inseri<strong>do</strong>s no contexto da canção. O trato vocal precisa se adaptar a realização <strong>de</strong>ssa<br />
fala então cantada, o que resulta, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> principalmente a estrutura melódica, num<br />
som não mais como aquele da fala stricto senso (não cantada) (Me<strong>de</strong>iros, 2002).<br />
A estrutura rítmica da canção também se mescla com a da fala <strong>de</strong> forma a também<br />
interferir nessa. Mais <strong>do</strong> que isso, passa a formar, junto com ela, uma única coisa, um<br />
terceiro objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>, que já não é mais simplesmente “língua” ou simplesmente<br />
“música”. Desenvolvemos um estu<strong>do</strong> ten<strong>do</strong> a fala cantada como objeto, buscan<strong>do</strong><br />
observar aspectos liga<strong>do</strong>s a sua realização rítmica. Baseamos-nos no conceito <strong>de</strong><br />
ritmo apresenta<strong>do</strong> por Cummins (2009), para quem ritmo é aquilo que possibilita<br />
o entrosamento entre <strong>do</strong>is oscila<strong>do</strong>res.<br />
O presente trabalho apresenta um estu<strong>do</strong> piloto, no qual analisamos a duração <strong>de</strong><br />
unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>nominadas <strong>de</strong> grupo inter-perceptual-center (GIPC) (Barbosa 1994,<br />
2000), unida<strong>de</strong>s que se iniciam nos momentos da fala em que o ouvinte se ancora<br />
para perceber o ritmo. Buscamos observar, na variação da duração <strong>de</strong>ssas unida<strong>de</strong>s,<br />
a diferença da realização <strong>do</strong> acoplamento da fala-cantada <strong>de</strong> um sujeito cantan<strong>do</strong><br />
279
280<br />
ora em conjunto com um metrônomo e ora com a gravação original <strong>de</strong> duas canções<br />
<strong>do</strong> repertório popular brasileiro, uma construída com ritmo sincopa<strong>do</strong> e outra<br />
com ritmo não sincopa<strong>do</strong>.<br />
O ritmo lingüístico como oscila<strong>do</strong>res acopla<strong>do</strong>s<br />
Buscan<strong>do</strong> uma <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> ritmo que não fosse apenas aplicada às línguas, mas aos<br />
fenômenos naturais como um to<strong>do</strong>, Cummins (2009) apresenta idéias baseadas no<br />
comportamento humano e seus movimentos. Para o autor, ritmo é um fenômeno<br />
“onipresente” em toda a natureza e <strong>de</strong> central importância para diversas ativida<strong>de</strong>s<br />
humanas.<br />
Em suas idéias principais, Cummins (2009) afirma que, como há ritmo em tu<strong>do</strong> o<br />
que fazemos, há ritmo também na fala. Para o autor, ritmo é um mecanismo coor<strong>de</strong>nativo<br />
responsável por gerar estabilida<strong>de</strong> numa organização temporal <strong>do</strong> comportamento<br />
<strong>de</strong> indivíduos. Ele não é proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um sinal acústico ou <strong>de</strong> um<br />
estímulo visual, mas “an affordance for movement” , interligan<strong>do</strong> ações e estímulos.<br />
Em uma pista <strong>de</strong> dança on<strong>de</strong> indivíduos carregavam consigo fones <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> liga<strong>do</strong>s<br />
a um <strong>de</strong> <strong>do</strong>is DJ’s presentes, Cummins percebeu que os movimentos <strong>de</strong> dança<br />
<strong>do</strong>s que ouviam o DJ “X” eram semelhantes entre si e que os movimentos <strong>do</strong>s que<br />
ouviam o DJ “Y” eram também pareci<strong>do</strong>s entre si, como se o ritmo agisse como<br />
“cola que organiza cada um <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is grupos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma unida<strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nada”<br />
(Cummins, 2009, p. 1).<br />
O artigo escrito pelo autor apresenta um título curioso: “Rhythm as an affordace for<br />
the entrainment of movement”. Traduzir para o português tal título não é tarefa tão<br />
fácil quanto parece. O próprio autor afirma que affordance e entrainment não são<br />
termos muito comuns, inclusive a foneticistas. Assim, explican<strong>do</strong> o conceito <strong>de</strong> tais<br />
palavras, Cummins apresenta seu ponto <strong>de</strong> vista sobre a noção <strong>de</strong> ritmo.<br />
Affordance e Entrainment<br />
Usan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Chemero (2003), affordances são as relações entre as habilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> um organismo e as características <strong>de</strong> seu meio. Seguin<strong>do</strong> o exemplo da<strong>do</strong><br />
por Cummins, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um copo ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> “agarrável” resi<strong>de</strong> na relação<br />
entre o copo e a ação que possibilita ao “agarra<strong>do</strong>r”, agarrá-lo; ou seja, não se<br />
trata <strong>de</strong> uma característica nem <strong>do</strong> copo e nem <strong>de</strong> quem, ou o que, agarra tal copo,<br />
mas sim da relação existente entre eles. Assim, affordance representa essa idéia <strong>de</strong><br />
“tornar possível”, baseada na relação existente entre <strong>do</strong>is sistemas distintos.<br />
Entrainment, por sua vez, po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> como a relação entre <strong>do</strong>is sistemas oscilatórios,<br />
até que seus perío<strong>do</strong>s <strong>de</strong> oscilação entrem em fase, tornan<strong>do</strong>-se relativos<br />
um ao outro. Usan<strong>do</strong> <strong>do</strong>is pêndulos <strong>de</strong> exemplo, o resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um entrainment
seria o alinhamento <strong>de</strong> suas fases. Esse alinhamento po<strong>de</strong> se dar no momento relativo<br />
à meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> ciclo <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s pêndulos (one half cycle difference), ou seja, quan<strong>do</strong><br />
um pêndulo está no meio <strong>de</strong> seu ciclo, o outro está (re)inician<strong>do</strong> o seu; ou os <strong>do</strong>is<br />
pêndulos po<strong>de</strong>m estar relaciona<strong>do</strong>s <strong>de</strong> forma que seus ciclos se iniciem no mesmo<br />
momento (zero phase difference).<br />
Cummins ressalta ainda que entre sistemas que estejam com gran<strong>de</strong>s diferenças <strong>de</strong><br />
freqüência (muito <strong>de</strong>fasa<strong>do</strong>s) po<strong>de</strong> haver também uma coor<strong>de</strong>nação relativa, como<br />
<strong>de</strong>screveu von Holst (Kelso, 1995), pois há tensão entre a estrutura dinâmica intrínseca<br />
<strong>de</strong> cada um <strong>do</strong>s sistemas e aquilo que os torna liga<strong>do</strong>s um ao outro.<br />
Pensan<strong>do</strong> em ritmo como “an affordance for the entrainment of movement”, Cummins<br />
(2009) nos lembra, por exemplo, da sincronia <strong>do</strong>s músicos <strong>de</strong> uma orquestra,<br />
<strong>de</strong> um ban<strong>do</strong> <strong>de</strong> búfalos ou <strong>de</strong> um cardume <strong>de</strong> peixes, em que entrainments são evi<strong>de</strong>ntes,<br />
mesmo não haven<strong>do</strong> periodicida<strong>de</strong>. Cita-se ainda um estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Patel et al.<br />
(2008), no qual se <strong>de</strong>monstrou que cacatuas são capazes <strong>de</strong> se movimentarem ritmicamente<br />
a partir das batidas subjacentes <strong>de</strong> uma peça musical. Com essas afirmações,<br />
o autor busca provar que o ritmo é uma forma ou um meio com a qual se<br />
po<strong>de</strong> obter sincronia <strong>do</strong>s movimentos entre <strong>do</strong>is sistemas distintos.<br />
Assim, se imaginarmos a fala como um movimento, po<strong>de</strong>mos também afirmar que<br />
o ritmo nela presente é um meio <strong>de</strong> se obter sincronia. Cummins (2002, 2003) observou<br />
que os sujeitos /falantes conseguiam obter sincronia (assincronias médias<br />
<strong>de</strong> 40 ms eram consi<strong>de</strong>radas normais) com outros sujeitos /falantes no ato <strong>de</strong> dizer<br />
um texto. A partir <strong>de</strong>sse experimento, o autor afirma que uma das interpretações<br />
possíveis para tal fenômeno é enxergar a fala <strong>de</strong> cada um <strong>do</strong>s sujeitos como um sistema<br />
autônomo, que serve como estímulo externo capaz <strong>de</strong> modular a produção endógena<br />
da fala <strong>do</strong>s outros falantes.<br />
Fala como movimento<br />
Cummins (2009) parte <strong>do</strong> pressuposto <strong>de</strong> que a fala é um movimento. Tal afirmação<br />
é também um <strong>do</strong>s pilares da Fonologia Articulatória (FAR), baseada numa teoria<br />
chamada <strong>de</strong> Dinâmica <strong>de</strong> Tarefa, proposta por Kelso, Saltzman e Tuller (1986)<br />
e Kugler e Turvey (1987). A Fonologia Articulatória toma como unida<strong>de</strong> fonético-fonológica<br />
o chama<strong>do</strong> gesto articulatório que segun<strong>do</strong> Albano (2001) é “uma<br />
oscilação abstrata que especifica constrições no trato vocal e induz os movimentos<br />
<strong>do</strong>s articula<strong>do</strong>res (p. 52)”.<br />
Soman<strong>do</strong> as afirmações <strong>de</strong> Cummins (2009) ao proposto pela Fonologia Articulatória,<br />
po<strong>de</strong>-se pensar em ritmo como uma maneira <strong>de</strong> sincronizar os articula<strong>do</strong>res<br />
<strong>do</strong> trato vocal na produção da fala.<br />
Barbosa (2001) afirma ainda que:<br />
“o contínuo da chamada implementação fonética, a articulação, se dá quan<strong>do</strong> da<br />
281
282<br />
enunciação, pela interação que ocorre entre as pautas gestuais e um sistema duplamente<br />
oscilatório, o rítmico, que <strong>de</strong>fine uma gra<strong>de</strong> em torno da qual se associam<br />
gestos segmentais e gestos prosódicos em geral. Tal sistema é aqui<br />
consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> paralinguístico e comum a outros movimentos corpóreos oscilatórios<br />
(braços e pernas no andar, no correr, no remar). (p. 31).<br />
O ritmo na música<br />
Na música, o ritmo se dá através da relação temporal entre uma nota e outra, levan<strong>do</strong>-se<br />
em conta a diferença <strong>de</strong> acento, intensida<strong>de</strong> e duração <strong>de</strong>ssas notas. Para<br />
se enten<strong>de</strong>r bem o conceito <strong>de</strong> ritmo, faz-se necessário também enten<strong>de</strong>r os conceitos<br />
<strong>de</strong> pulso, metro e acento. Cooper & Meyer (1960) apresentam <strong>de</strong> forma clara<br />
essas <strong>de</strong>finições.<br />
Para eles, um pulso é um estímulo sonoro <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma série regular <strong>de</strong> tempo.<br />
Assim, cada uma das batidas <strong>de</strong> um relógio ou <strong>de</strong> um metrônomo é um pulso. Por<br />
estarem organiza<strong>do</strong>s em intervalos regulares <strong>de</strong> tempo, esses pulsos, mesmo <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> cessa<strong>do</strong>s, ten<strong>de</strong>m a causar expectativa na mente e na musculatura daqueles que<br />
os ouvem. Metro é a medida da regularida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s acentos em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s pulsos,<br />
ou seja, o metro diz com que regularida<strong>de</strong> aparecem pulsos acentua<strong>do</strong>s.<br />
Três fatores influenciam para <strong>de</strong>terminar se um pulso é ou não acentua<strong>do</strong>: a intensida<strong>de</strong><br />
com que esse pulso é toca<strong>do</strong>, a duração <strong>de</strong>sse pulso e a sua localização<br />
(mais grave ou mais agu<strong>do</strong>). Pulsos acentua<strong>do</strong>s ten<strong>de</strong>m a ter maior duração e maior<br />
intensida<strong>de</strong> em relação aos pulsos não acentua<strong>do</strong>s. Quan<strong>do</strong> um pulso está inseri<strong>do</strong><br />
num contexto métrico ele é chama<strong>do</strong> <strong>de</strong> batida (beat) e caso seja acentua<strong>do</strong> recebe<br />
o adjetivo “forte” em oposição às batidas “fracas”, as não acentuadas. Embora o<br />
metro tenda a ser regular, irregularida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m ocorrer sem <strong>de</strong>struir a sensação <strong>de</strong><br />
organização métrica, pois essas irregularida<strong>de</strong>s ten<strong>de</strong>m a ser temporárias.<br />
Finalmente, ritmo é <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> pelos autores como sen<strong>do</strong> o mo<strong>do</strong> como uma ou mais<br />
batidas fracas são agrupadas em relação a uma batida forte. Tais autores afirmam<br />
serem cinco os ritmos básicos: o iambo, o anapesto, o troqueu, o datílico e o anfíbraco.<br />
Curioso notar que eles usam termos usa<strong>do</strong>s pela métrica poética clássica. Tal<br />
fato se explica com o argumento <strong>de</strong> que na Grécia Antiga, local e época on<strong>de</strong> surgiram<br />
os primórdios das teorias musicais empregadas hoje no oci<strong>de</strong>nte, a música<br />
era usada exclusivamente como acompanhamento para poesias. Assim, os metros<br />
e ritmos musicais receberam o mesmo nome <strong>de</strong> metros poéticos.<br />
O iâmbico é forma<strong>do</strong> por uma batida fraca seguida <strong>de</strong> uma forte. O anapesto, <strong>de</strong><br />
duas fracas seguidas <strong>de</strong> uma forte. O ritmo troqueu consiste <strong>de</strong> uma batida forte seguida<br />
<strong>de</strong> uma fraca. O datílico, <strong>de</strong> uma forte seguida <strong>de</strong> duas fracas e o anfíbraco <strong>de</strong><br />
uma fraca, uma forte e outra fraca. Comparan<strong>do</strong> essas estruturas com as métricas<br />
musicais usadas hoje em dia po<strong>de</strong>mos assemelhar o troqueu a um compasso 2/4,<br />
que é forma<strong>do</strong> por uma batida acentuada seguida <strong>de</strong> outra não acentuada; e o da-
tílico com o 3/4, que é forma<strong>do</strong> por uma batida acentuada seguida <strong>de</strong> duas não<br />
acentuadas.<br />
Discutin<strong>do</strong> sobre acento, Cooper & Meyer (1960) afirmam que é impossível <strong>de</strong>finir-lo<br />
em parâmetros quantitativos, pois se trata <strong>de</strong> um conceito relacional, ou seja,<br />
para os autores só existem notas acentuadas se existirem notas não-acentuadas. A<br />
diferença entre elas resi<strong>de</strong> no fato <strong>de</strong> que a batida acentuada, entorno das quais se<br />
agrupam batidas átonas, ser o foco principal no <strong>de</strong>senvolvimento rítmico <strong>de</strong> uma<br />
peça.<br />
Na música oci<strong>de</strong>ntal, principalmente <strong>de</strong>pois da era romântica, tornou-se comum<br />
entre os compositores o uso <strong>de</strong> compassos cujo acento sempre caísse em sua primeira<br />
nota. Para Copland, um compasso po<strong>de</strong> ter a segunda ou a terceira batida<br />
acentuada, ao invés da primeira, como é comumente usa<strong>do</strong> hoje em. Muitos <strong>do</strong>s<br />
ritmos que se originaram <strong>de</strong> ritmos africanos não são possíveis <strong>de</strong> serem nota<strong>do</strong>s seguin<strong>do</strong>-se<br />
tal critério, pois as notas acentuadas nem sempre estão na primeira nota<br />
<strong>do</strong> compasso. Esse <strong>de</strong>slocamento <strong>do</strong> acento é chama<strong>do</strong> <strong>de</strong> síncope na teoria musical<br />
oci<strong>de</strong>ntal. Muitos ritmos ti<strong>do</strong>s como “populares”, como o jazz, o samba, a bossanova,<br />
o reggae, entre outros, são sincopa<strong>do</strong>s, ou seja, possuem <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong><br />
acento na sua estrutura rítmica básica.<br />
Meto<strong>do</strong>logia<br />
No universo da canção, ou seja, da fala cantada em geral, seja ela acompanhada <strong>de</strong><br />
instrumentos ou não, encontramos canções compostas segun<strong>do</strong> critérios <strong>de</strong> células<br />
rítmicas sincopadas e canções compostas segun<strong>do</strong> critérios rítmicos <strong>de</strong> células<br />
não-sincopadas. São exemplos <strong>de</strong>stas células, as encontradas no rock, na valsa, na<br />
marcha, no blues; sen<strong>do</strong> as <strong>do</strong> samba1, a da bossa-nova, as <strong>do</strong> jazz2, <strong>do</strong> reggae, <strong>do</strong><br />
forró, exemplos <strong>de</strong> células <strong>de</strong> ritmos sincopa<strong>do</strong>s, ou seja, com seus acentos <strong>de</strong>sloca<strong>do</strong>s.<br />
Desenvolvemos um experimento, sob a forma <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> piloto, buscan<strong>do</strong> observar<br />
a realização da fala cantada em <strong>do</strong>is universos: o das canções cujo ritmo é sincopa<strong>do</strong><br />
e o das canções cujo ritmo não é sincopa<strong>do</strong>. Esse experimento é parte <strong>de</strong><br />
dissertação <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong> que observa justamente as características rítmicas da fala<br />
cantada. Nesse estu<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvemos um experimento que observa a fala cantada<br />
realizada por <strong>do</strong>is sujeitos e tomamos a fala <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>les como um oscila<strong>do</strong>r.<br />
Corpus<br />
Para compor o corpus escolhemos duas canções, uma <strong>de</strong>las construída com a célula<br />
rítmica <strong>do</strong> rock, ou seja, não-sincopada; e a outra com a célula rítmica da bossanova,<br />
célula esta construída com <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> acento. São elas Gita (rock), <strong>de</strong><br />
Raul Seixas, e Corcova<strong>do</strong> (bossa-nova), <strong>de</strong> Tom Jobim. Como principais critérios<br />
283
284<br />
para a composição <strong>de</strong>sse corpus, tomamos aqueles que se relacionam à estrutura rítmica<br />
da música, o que justifica nossa divisão acima proposta: ‘sincopadas’ e ‘não-sincopadas’.<br />
Atentamos-nos também a certas características <strong>do</strong>s compositores e <strong>do</strong>s<br />
intérpretes das canções. Assim, as canções <strong>de</strong>viam ser compostas e interpretadas<br />
por brasileiros, falantes <strong>do</strong> português brasileiro como primeira língua. Julgamos<br />
ainda ser necessário escolher composições <strong>de</strong> épocas históricas próximas, o que nos<br />
fez <strong>de</strong>cidir por canções compostas na segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XX, século <strong>de</strong> consolidação<br />
da canção popular no Brasil (Tatit, 2004). Ressaltamos, ainda, que as canções<br />
são <strong>do</strong> repertório popular, gênero em que o português realiza<strong>do</strong> pelo cantor se<br />
aproxima mais <strong>do</strong> português fala<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> compara<strong>do</strong> ao erudito, pois neste último<br />
movimentos como abaixamento <strong>do</strong> maxilar, menor avultamento da língua,<br />
exigências da técnica erudita, acabam por tornar o som produzi<strong>do</strong> um tanto quanto<br />
distantes daquele da fala stricto senso (Me<strong>de</strong>iros, 2002); o que argumenta a favor da<br />
escolha <strong>de</strong> canções <strong>do</strong> repertório popular.<br />
Segmentamos a fala cantada realizada pelo sujeito em Grupos-inter-perceptual-center<br />
(GIPC) e comparamos os sessenta primeiros, nomean<strong>do</strong>-os <strong>de</strong> GIPC 1 (as v),<br />
GIPC 2 (ez), GIPC 3 (es v), GIPC 4 (oc)3 e assim por diante. Fizemos o mesmo<br />
com a canção Corcova<strong>do</strong>. Utilizamos somente os sessenta primeiros apenas por<br />
motivo <strong>de</strong> recorte. Julgamos não ser necessário, já que se trata <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> piloto,<br />
medir a canção em toda sua extensão. Recortamos, ainda, para obter a mesma quantida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> GIPCs em todas as condições. Usan<strong>do</strong> as duas canções obteríamos diferentes<br />
quantida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s, já que a canção Gita é mais longa que Corcova<strong>do</strong>.<br />
Sujeito<br />
Um falante <strong>do</strong> Português Brasileiro cantou as canções acima citadas ora tentan<strong>do</strong><br />
cantar junto ao metrônomo ora junto à gravação original da respectiva canção.<br />
Tanto o metrônomo quanto as gravações originais foram dispostas ao sujeito via<br />
fone <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> estéreo. O sujeito, brasileiro, é aluno <strong>do</strong> curso <strong>de</strong> pós-graduação <strong>do</strong><br />
curso <strong>de</strong> Letras da USP. Na área musical atua como músico prático, com oito anos<br />
<strong>de</strong> experiência como vocalista, violonista e baixista em bandas <strong>de</strong> rock, samba e<br />
MPB. No canto erudito, o sujeito é classifica<strong>do</strong> como tenor, a mais aguda das vozes<br />
masculinas, assim como Raul Seixas e também João Gilberto, intérpretes das canções<br />
que usamos. Frisamos isso para lembrar que assim o sujeito não teve dificulda<strong>de</strong><br />
em acompanhar as alturas das notas cantadas pelo cancionista nos<br />
oscila<strong>do</strong>res-guias.<br />
Protocolo experimental<br />
Dispusemos então o sujeito em uma cabine isolada <strong>do</strong> Estúdio Multimeios <strong>do</strong> Centro<br />
<strong>de</strong> Computação Eletrônica da USP, com um microfone Shure SM58, <strong>de</strong> capi-
tação dinâmica, e um fone <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> Philips, mo<strong>de</strong>lo SBCHP460. Utilizou-se o<br />
software Soundforge Sony para captação e digitalização <strong>do</strong> som.<br />
O sujeito <strong>de</strong>veria cantar então as canções seguin<strong>do</strong> as seguintes condições:<br />
Condição Com cancionista4. Nela o sujeito foi instruí<strong>do</strong> a cantar a canção ao<br />
mesmo tempo em que ouvia a gravação original da canção, buscan<strong>do</strong> acompanhá-la,<br />
ou seja, buscan<strong>do</strong> estar em fase com ela. Como usamos duas canções<br />
nesse estu<strong>do</strong>, subdividimos essa condição em duas: Com cancionista-Gita,<br />
quan<strong>do</strong> o sujeito <strong>de</strong>veria cantar junto com Raul Seixas, ou seja, com a gravação<br />
original da canção Gita; e Com cancionista-Corcova<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> o sujeito <strong>de</strong>veria<br />
cantar junto com João Gilberto interpretan<strong>do</strong> Corcova<strong>do</strong>. As cópias das<br />
canções originais foram obtidas diretamente <strong>de</strong> álbum original em formato<br />
Compact Disc (CD) e transmitidas via fone <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> ao sujeito. Dispusemos<br />
ainda ao sujeito cópia da letra das canções. Como ambas as gravações não se<br />
iniciam diretamente com canto, mas com introdução instrumental, no caso <strong>de</strong><br />
Corcova<strong>do</strong>, e introdução com instrumentos musicais e texto fala<strong>do</strong> em Gita, o<br />
sujeito tinha um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>, justamente o <strong>de</strong>ssa introdução, para se<br />
ajustar ao andamento da gravação, o ‘oscila<strong>do</strong>r-guia’, já que terminada a introdução,<br />
o sujeito <strong>de</strong>veria obrigatoriamente começar a cantar, assim como na gravação<br />
<strong>do</strong> CD.<br />
Condição Com metrônomo: nessa tarefa, o sujeito <strong>de</strong>via cantar a canção ao mesmo<br />
tempo em que tinha disposto, também via fone <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>s, um metrônomo,<br />
este com andamento ajusta<strong>do</strong> o mais próximo daquele da gravação contida no<br />
álbum original. Para Gita ajustamos o metrônomo em mo<strong>de</strong>rato (especificamente<br />
em 110 batidas por minuto (bpm)), e para Corcova<strong>do</strong> em andante (100<br />
bpm). Sub-<strong>de</strong>nominamos também essa condição em com metrônomo-Gita, em<br />
que o sujeito <strong>de</strong>veria cantar Gita e em com metrônomo-Corcova<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>veria<br />
cantar Corcova<strong>do</strong>, dispon<strong>do</strong> ao sujeito as respectivas partituras das canções.<br />
Cada condição (com metrônomo-Gita, com metrônomo-Corcova<strong>do</strong>, com cancionista-Gita<br />
e com cancionista-Corcova<strong>do</strong>) foi repetida três vezes e chamamos <strong>de</strong><br />
“tomada” cada uma das vezes.<br />
Em ambas as condições <strong>de</strong>nominamos o sujeito <strong>de</strong> ‘oscila<strong>do</strong>r-sujeito’ e <strong>de</strong> ‘oscila<strong>do</strong>r-guia’<br />
o que a ele foi disposto via fone <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>s: o metrônomo ou a interpretação<br />
original <strong>do</strong>s álbuns.<br />
Na condição com metrônomo observamos a realização da fala cantada como um oscila<strong>do</strong>r<br />
que se guia por outro oscila<strong>do</strong>r, <strong>de</strong> andamento fixo. Já na condição com cancionista,<br />
o sujeito <strong>de</strong>via buscar cantar com um oscila<strong>do</strong>r composto por uma gravação<br />
da interpretação da canção, cujo andamento não é fixo. Movimentos <strong>de</strong> interpretação,<br />
como rallentan<strong>do</strong> e acceleran<strong>do</strong>, tornam o andamento da canção varia<strong>do</strong>, o<br />
que po<strong>de</strong> vir a dificultar a tarefa <strong>de</strong> entrosamento a ser realizada pelo sujeito. O metrônomo,<br />
mo<strong>de</strong>lo D’accord, foi <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> pela D’accord Music Software.<br />
Além <strong>de</strong>sse fato, os oscila<strong>do</strong>res-guias da condição com cancionista são constituí<strong>do</strong>s<br />
285
286<br />
por vários oscila<strong>do</strong>res, e não apenas um, pois cada instrumento presente na gravação<br />
(baixo, bateria, trompete, por exemplo) po<strong>de</strong> ser visto com um oscila<strong>do</strong>r.<br />
As gravações originais usadas foram “Gita”, <strong>de</strong> Raul Seixas e Paulo Coelho, interpretada<br />
por Raul Seixas e banda no álbum Gita (1974) para a condição com cancionista-Gita;<br />
e Corcova<strong>do</strong>, <strong>de</strong> Tom Jobim, interpretada por João Gilberto e banda<br />
no álbum “O Amor, o Sorriso e a Flor” (1960), para a condição com cancionista-<br />
Corcova<strong>do</strong>. Na condição com metrônomo-Gita usou-se partitura <strong>de</strong> Chediak (2004)<br />
e na condição com metrônomo-Corcova<strong>do</strong>, <strong>de</strong> Chediak (1990).<br />
Lembramos que o processo popular <strong>de</strong> composição é em certos pontos diferente <strong>do</strong><br />
processo erudito. Tradicionalmente, o processo <strong>de</strong> composição e <strong>de</strong> divulgação <strong>de</strong><br />
obras eruditas é sempre atrela<strong>do</strong> à partitura. Já a canção popular brasileira, em geral,<br />
não recebe notação musical no momento <strong>de</strong> usa composição, e acaba sen<strong>do</strong> transmitida<br />
oralmente, por exemplo, através <strong>de</strong> violão, pan<strong>de</strong>iro e voz. As canções por<br />
nós utilizadas foram compostas, transmitidas e publicadas sem partitura, através<br />
<strong>de</strong> gravações, e divulgadas através <strong>de</strong> transmissões <strong>de</strong> rádio e televisão principalmente<br />
e da venda <strong>de</strong> álbuns em LP, K-7 ou CD. O evento das partituras <strong>de</strong> Chediak<br />
<strong>de</strong>ve ser entendi<strong>do</strong> como um processo posterior ao da criação e divulgação das<br />
obras populares. O cancionista Raul Seixas, por exemplo, nunca chegou a ver a partitura<br />
que aqui utilizamos, pois a elaboração <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>u-se já <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> falecimento<br />
<strong>do</strong> artista.<br />
Segmentação <strong>do</strong> corpus: P-Center e GIPC<br />
O conceito <strong>de</strong> perceptual-certer ( p-center) foi apresenta<strong>do</strong> por Morton, Marcus &<br />
Frankish (1976). Trata-se <strong>de</strong> um conceito psico-acústico referente ao ponto no<br />
sinal acústico da fala em que o ouvinte se ancora para perceber a regularida<strong>de</strong> sonora<br />
<strong>de</strong>sta. Esse ponto está localiza<strong>do</strong> no onset das vogais pronunciadas. A <strong>de</strong>finição da<br />
localização <strong>do</strong> p-center argumenta ainda a favor da idéia <strong>de</strong> que a produção da fala<br />
se dá através da superposição <strong>de</strong> <strong>do</strong>is mecanismos <strong>de</strong> certa forma in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes: a<br />
produção contínua <strong>de</strong> vogais e a produção intermitente <strong>de</strong> consoantes. (Fowler,<br />
1983).<br />
A distância entre o onset <strong>de</strong> duas vogais consecutivas foi chamada <strong>de</strong> GIPC (grupo<br />
inter-perceptual-centeres) por Barbosa & Bailly (1994). Observou-se que tais unida<strong>de</strong>s<br />
são as que melhor caracterizam o ritmo em português brasileiro (Barbosa,<br />
1996). Assim, segmentamos o corpus em GIPCs. No sintagma “um cantinho”,<br />
por exemplo, tem-se um GIPC entre os on-sets <strong>de</strong> /u/ e o <strong>de</strong> /a/, ou seja, tem-se um<br />
GIPC forma<strong>do</strong> pelos fones /um k/. O /a/ pertence já ao GIPC seguinte: /ant/.
u m k ã<br />
Figura 1 — GIPC /um k/ (entre cursores), <strong>de</strong> “um cantinho um violão”<br />
Tivemos, no entanto, que adaptar essa unida<strong>de</strong> ao contexto da canção. Processos <strong>de</strong><br />
ditongação, freqüentes também na fala comum, como em “por queéque eu sou tão<br />
cala<strong>do</strong>” colocam duas vogais, e portanto <strong>do</strong>is on-sets <strong>de</strong> vogal, realiza<strong>do</strong>s na mesma<br />
nota na melodia da voz. Nesses casos tomamos o ditongo como um único GIPC, já<br />
que uma das vogais passa assim a ser uma semivogal.<br />
p o r k i E k i ew s o w<br />
Fig. 2 — GIPC /i E k/ (entre cursores) <strong>de</strong> “por que é que eu sou”<br />
Hipótese<br />
Hipotetizamos que haveria menor acoplamento entre os oscila<strong>do</strong>res em questão<br />
nas condições cuja canção utilizada fosse sincopada, ou seja, nessas condições esperávamos<br />
maior variação da duração (em milissegun<strong>do</strong>s) <strong>do</strong>s GIPCs.<br />
Levantamos ainda a hipótese <strong>de</strong> que o uso <strong>de</strong> metrônomo nas condições com metrônomo-Gita<br />
e com metrônomo-Corcova<strong>do</strong> tornaria a fala cantada mais “quadradinha”<br />
quan<strong>do</strong> comparada à respectiva realização guiada pelo cancionista.<br />
287
288<br />
Medidas<br />
Medimos a duração <strong>do</strong>s GIPC’s usan<strong>do</strong> o software “Praat 5.1.17”. Excluímos da<br />
comparação consoantes <strong>de</strong> início <strong>de</strong> palavra antecedidas <strong>de</strong> pausa/ silêncio, já que<br />
elas não formam um GIPC. As vogais seguintes a essas consoantes foram incluídas,<br />
já que fazem parte <strong>do</strong> GIPC seguinte. Excluímos também da comparação ondas<br />
com intensida<strong>de</strong> menor que 30 dB. O valor <strong>do</strong>s GIPCs po<strong>de</strong> ser visto no anexo I.<br />
Extraímos a média das durações das três realizações <strong>de</strong> cada GIPC e em seguida obtivemos<br />
o <strong>de</strong>svio padrão <strong>de</strong>ssas médias. No valor <strong>do</strong> <strong>de</strong>svio padrão observamos o<br />
quanto variou a duração <strong>de</strong>ssas unida<strong>de</strong>s em cada uma das condições, ou seja, o<br />
quanto o sujeito variou na duração <strong>de</strong> cada segmento <strong>de</strong> sua fala cantada. De cada<br />
condição, extraímos o <strong>de</strong>svio padrão médio, ou seja, obtivemos quatro valores, um<br />
<strong>de</strong> cada condição.<br />
Resulta<strong>do</strong>s<br />
Nas gravações cuja canção era sincopada, os valores <strong>de</strong> <strong>de</strong>svio padrão são significativamente<br />
superiores quan<strong>do</strong> compara<strong>do</strong>s aos valores encontra<strong>do</strong>s nas condições<br />
com a canção não sincopada, indican<strong>do</strong> assim maior variação da duração das unida<strong>de</strong>s<br />
daquela condição. Enquanto nas condições com a canção Gita (não sincopada)<br />
o maior valor <strong>de</strong> <strong>de</strong>svio padrão encontra<strong>do</strong> foi inferior a 60 mili-segun<strong>do</strong>s,<br />
têm-se <strong>de</strong>svios superiores a 100 ms, chegan<strong>do</strong>-se a 238 ms nas condições com a canção<br />
Corcova<strong>do</strong>.<br />
Nos gráficos abaixo po<strong>de</strong> ver o valor <strong>do</strong> <strong>de</strong>svio padrão <strong>de</strong> cada GIPC. No eixo “x”<br />
tem-se distribuí<strong>do</strong>s os GIPCs, ou seja, o “1” representa o “GIPC 1”, o “2” o “GIPC<br />
2” e assim por diante. No eixo “y”tem-se a duração <strong>de</strong>sses GIPCs em milissegun<strong>do</strong>s.
No GIPC 51 das condições com a canção Corcova<strong>do</strong>, constituí<strong>do</strong> pelos fonemas<br />
/or k/ <strong>do</strong> trecho “o re<strong>de</strong>ntor que lin<strong>do</strong>”,<br />
po<strong>de</strong>-se ver um alto valor <strong>de</strong> <strong>de</strong>svio padrão. Na condição Com cancionista-Corcova<strong>do</strong><br />
po<strong>de</strong>-se ver o valor <strong>de</strong> 234 ms como <strong>de</strong>svio padrão da referida unida<strong>de</strong>. Tal<br />
GIPC correspon<strong>de</strong> na partitura a uma colcheia <strong>de</strong> início <strong>de</strong> compasso. Por <strong>de</strong>finição<br />
musical são as primeiras notas <strong>de</strong> cada compasso sempre acentuadas, como já<br />
explicamos anteriormente. Por ser uma bossa-nova porém, em alguns momentos a<br />
canção apresenta <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> acentos, ou seja, tais primeiras notas são realizadas<br />
sem acento. O GIPC em questão ocupa justamente essa posição: a primeira<br />
nota <strong>de</strong> um compasso e ten<strong>de</strong> a ser, portanto, uma nota acentuada. Por tratar-se <strong>de</strong><br />
uma canção sincopada, no entanto, tal nota po<strong>de</strong> ser realizada sem acentuação. A<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> essa nota ser ou não acentuada justifica, assim, a gran<strong>de</strong> variação na<br />
duração <strong>do</strong> GIPC correspon<strong>de</strong>nte a ela, já que a duração é um <strong>do</strong>s principais traços<br />
que <strong>de</strong>finem acento, tanto <strong>de</strong> uma nota (musicalmente falan<strong>do</strong>) quanto <strong>de</strong> uma<br />
sílaba5 (linguisticamente falan<strong>do</strong>).<br />
Ainda na condição com metrônomo-Corcova<strong>do</strong> po<strong>de</strong>-se ver gran<strong>de</strong> variação também<br />
na duração <strong>do</strong> GIPC 1 (um cantinho), que não correspon<strong>de</strong> a uma nota acentuada,<br />
mas é o primeiro GIPC da canção. O <strong>de</strong>svio padrão encontra<strong>do</strong> é <strong>de</strong> 232 ms.<br />
Na fala stricto senso as sílabas <strong>de</strong> início <strong>de</strong> frase ten<strong>de</strong>m a ser acentuadas pelo falante.<br />
Assim, po<strong>de</strong>-se justificar a gran<strong>de</strong> variação da duração <strong>de</strong>sse primeiro GIPC também<br />
pela possibilida<strong>de</strong> ou não <strong>de</strong> acentuação, pois ele ten<strong>de</strong> a ser musicalmente<br />
não acentua<strong>do</strong>, mas fonologicamente ten<strong>de</strong> a receber acento, por ser inicio <strong>de</strong> frase.<br />
Observa-se ainda que nas condições com a canção sincopada, a variação <strong>do</strong>s valores<br />
<strong>do</strong>s <strong>de</strong>svios padrões é maior que nas condições com a canção não sincopada.<br />
Além <strong>de</strong> se po<strong>de</strong>r ver o quanto variou cada repetição <strong>do</strong>s GIPCs, po<strong>de</strong>-se também<br />
através <strong>do</strong>s gráficos observar que nas condições com a canção sincopada, os valores<br />
<strong>do</strong>s <strong>de</strong>svios padrões variam, por exemplo, <strong>de</strong> 238 ms (GIPC 21) a 1 (GIPC 8) (na<br />
condição com metrônomo Corcova<strong>do</strong>), ou seja, os pontos no gráfico se distribuem <strong>de</strong><br />
forma menos retilínea quan<strong>do</strong> compara<strong>do</strong>s aos <strong>do</strong>s gráficos da condições nas quais<br />
utilizou-se canção não sincopada. Isso resulta nos maiores valores <strong>do</strong> <strong>de</strong>svio padrão<br />
médio nas condições com canção sincopada, como se vê em seguida:<br />
Tabela 1 — Desvio-padrão médio.<br />
Condição Desvio padrão médio<br />
Com metrônomo-Gita 15,58 ms<br />
Com cancionista-Gita 19,60 ms<br />
Com metrônomo-Corcova<strong>do</strong> 50,96 ms<br />
Com cancionista-Corcova<strong>do</strong> 34,76 ms<br />
289
290<br />
Conclusão<br />
Os valores acima menciona<strong>do</strong>s afirmam que se obteve maior variação <strong>de</strong> duração <strong>de</strong><br />
GIPC’s na condição com metrônomo-Corcova<strong>do</strong> e menor variação na condição com<br />
metrônomo-Gita. Nas condições com a canção Gita o menor <strong>de</strong>svio padrão médio<br />
é a da condição com metrônomo-Gita.<br />
De início tínhamos <strong>de</strong> fato isso como hipótese, pois criamos que o uso <strong>de</strong> partitura<br />
e metrônomo ten<strong>de</strong>ria a tornar as interpretações <strong>do</strong> sujeito mais ‘quadradas’, com<br />
menor variação, o que argumenta a favor <strong>de</strong> maior entrosamento com o oscila<strong>do</strong>r<br />
guia. Diante <strong>do</strong> encontra<strong>do</strong> nas condições com a canção Corcova<strong>do</strong> nos questionamos,<br />
no entanto, a respeito da influência <strong>do</strong> metrônomo, pois no entrosamento<br />
com essa canção, o oscila<strong>do</strong>r-guia mais eficiente foi aquele em que usamos a gravação<br />
<strong>do</strong> cancionista e não o metrônomo. Acreditamos que a diferença se <strong>de</strong>ve justo<br />
ao fato <strong>de</strong> a canção ser sincopada, ou seja, permitir variação na realização <strong>do</strong> acento.<br />
Esperávamos maior variação na condição com cancionista-Corcova<strong>do</strong>, cren<strong>do</strong> que o<br />
uso <strong>do</strong> metrônomo e da partitura na condição<br />
com metrônomo-Corcova<strong>do</strong> tornasse as interpretações <strong>do</strong> sujeito mais “quadradas”.<br />
Pelo observa<strong>do</strong>, no entanto, concluímos que o uso <strong>de</strong> partitura e metrônomo dificultou<br />
o exercício <strong>de</strong> entrosamento. Acreditamos que isso se <strong>de</strong>va a <strong>do</strong>is fatores: 1)<br />
as batidas <strong>do</strong> metrônomo são sempre iguais em intensida<strong>de</strong> e freqüência (pitch), o<br />
que torna o metrônomo um oscila<strong>do</strong>r-guia sem referência a não ser por marcar o<br />
andamento. A gravação da canção é um oscila<strong>do</strong>r-guia mais eficiente, pois a fala<br />
cantada facilita o exercício <strong>de</strong> entrosamento, já que o sujeito se utiliza antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong><br />
da voz <strong>do</strong> intérprete para se guiar. A presença ainda <strong>do</strong> violão, que se ouve claramente<br />
na gravação, marca a batida tão característica da bossa-nova, o que também<br />
facilita a tarefa <strong>de</strong> entrosamento, já que a batida tem contida em si o ritmo básico<br />
que “puxa” a canção.<br />
1 O samba-enre<strong>do</strong> tem sua célula rítmica diferente da célula <strong>do</strong> samba-canção, que é diferente<br />
da <strong>do</strong> samba <strong>de</strong> parti<strong>do</strong>-alto.<br />
2 Cada especificida<strong>de</strong> <strong>do</strong> jazz e construída em cima <strong>de</strong> uma célula rítmica. Assim o Ragtime<br />
tem uma célula diferente da que dá base ao Dixiland, que é diferente da usada no Cool Jazz,<br />
etc. . .<br />
3 “às vezes você me pergunta (. . .)”: início da canção Gita.<br />
4 cancionista: termo que se atribui a Tatit (1996) e que <strong>de</strong>signa o compositor-intérprete da<br />
canção popular brasileira.<br />
5 No nosso caso, GIPC.
Bibliografia<br />
Abercrombie, D. 1967. Elementals of General Phonetics. Edimburgo: Edinburgh University<br />
Press.<br />
Albano, E. C. 2001. O Gesto e suas bordas: esboço <strong>de</strong> fonologia acústico-articulatória <strong>do</strong> português<br />
brasileiro. Campinas-SP: Merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> Letras, ALB São Paulo: FAPESP,<br />
Barbosa, P. A. 1994. Caractérisation et génération automatique <strong>de</strong> la structuration rythmique<br />
du français. Tese (Doutora<strong>do</strong>) – Institut National Polytechnique, Grenoble, França.<br />
Barbosa, P. A. 1996. At least two macrorhythmic units are necessary for mo<strong>de</strong>ling Brazilian<br />
Portuguese duration: emphasis on segmental duration generation. Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s<br />
Lingüísticos 31, 33-53.<br />
Barbosa, P. A. 2000. “Syllable-Timing in brazilian portuguese: uma crítica a Roy Major”<br />
D.E.L.T.A. 16, n.º 2, 369-402.<br />
Barbosa, P. A. 2001. É possível integrar o discreto e o contínuo em um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> produção<br />
da fala? Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Lingüísticos 40, 29-38.<br />
Browman, C. P.; Goldstein, L. M. 1996. Towards na articulatory phonology. Phonology<br />
Yearbook 3, 219-252<br />
Chediak, A. 1990. Songbook Tom Jobim Vol. III. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Lumiar.<br />
Chediak, J. (Ed.). 2004. As 101 melhores canções <strong>do</strong> século XX. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Lumiar.<br />
Chemero, A. 2003. An outline of a theory of affordances. Ecological Psychology,<br />
15(2):181–195.<br />
Cooper, G. & Meyer L. B. 1960. The Rhythmic Struture of Music. Chicago: The University<br />
of Chicago Press.<br />
Copland, A. 1974. Como ouvir e enten<strong>de</strong>r a música. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Artenova.<br />
Cummins, F. 2002. On synchronous speech. Acoustic Research Letters Online 3(1), 7–11.<br />
——— . 2003. Practice and performance in speech produced synchronously. Journal of Phonetics,<br />
31(2):139–148.<br />
——— . 2009. Rhythm as an affordance for the entrainment of movement.<br />
Ferris, J. 2003. Music: the art of listening. New York: McGraw-Hill.<br />
Kelso, J. A. S. 1995. Dynamic Patterns. MIT Press: Cambridge, MA.<br />
Liberman & Mattingly. 1985. The motor theory of speech perception revised.<br />
Tatit, L. (1996) O cancionista: composição <strong>de</strong> canções no Brasil São Paulo: Edusp,<br />
——— . 2004. O Século da canção. Cotia: Ateliê Editorial.<br />
291
292<br />
Aspectos prosódicos <strong>de</strong> quatro emoções na voz falada<br />
Aline Mara <strong>de</strong> Oliveira<br />
alinem@usp.br<br />
Departamento <strong>de</strong> Lingüística, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />
Beatriz Raposo <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros<br />
beatrizrap@gmail.com<br />
Departamento <strong>de</strong> Letras Clássicas e Vernáculas Letras<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />
Resumo<br />
Existem componentes na fala que não se limitam aos segmentos vocálicos ou consonantais,<br />
e por não serem segmentais, são estuda<strong>do</strong>s no campo da prosódia. Tais componentes<br />
são chama<strong>do</strong>s <strong>de</strong> suprassegmentos e representam diversos fenômenos<br />
acústicos da fala, como altura, intensida<strong>de</strong>, duração, pausa, velocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fala, acento e<br />
ritmo. Scherer (1984, 2001) propôs uma teoria que relaciona as variações fisiológicas <strong>do</strong><br />
trato vocal e o comportamento acústico no tocante às emoções humanas. A fim <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r<br />
melhor os parâmetros acústicos envolvi<strong>do</strong>s na prosódia da emoção, realizou-se<br />
um estu<strong>do</strong> basea<strong>do</strong> no comportamento da curva da frequência fundamental (F0 ) ao<br />
longo <strong>de</strong> um texto li<strong>do</strong> e interpreta<strong>do</strong> por três atrizes brasileiras (com experiência profissional<br />
entre 20 a 30 anos). O texto <strong>de</strong> Vaz (1983), composto por 126 palavras já foi utiliza<strong>do</strong><br />
em outros trabalhos como no <strong>de</strong> Figueire<strong>do</strong> (1993). As emoções interpretadas pelas<br />
atrizes foram as emoções consi<strong>de</strong>radas básicas pela literatura emotiva: a alegria, a tristeza,<br />
a raiva e o me<strong>do</strong> (Ekman, 1999). As médias da F0 da alegria são significativamente<br />
maiores que da tristeza, para to<strong>do</strong>s os sujeitos. A fala alegre tem a tendência <strong>de</strong> variação<br />
<strong>de</strong> F0 numa faixa <strong>de</strong> frequência mais agudas que a tristeza. O estu<strong>do</strong> <strong>de</strong>monstrou<br />
que o comportamento da F0 contribuiu para a diferenciação acústica das emoções estudadas.<br />
A análise <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s foi feita à luz da prosódia da fala preten<strong>de</strong> contribuir como<br />
ponto <strong>de</strong> referência para estu<strong>do</strong>s da prosódia emocional da fala cantada.<br />
Introdução<br />
A <strong>de</strong>finição e a classificação das emoções humanas são bastante controversas na literatura.<br />
A teoria discreta das emoções, proposta por Ekman (1999), <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a existência<br />
<strong>de</strong> algumas emoções “básicas”, ligadas aos problemas da vida, como a raiva,<br />
que correspon<strong>de</strong>ria a situações <strong>de</strong> competição, o me<strong>do</strong>, que estaria liga<strong>do</strong> ao perigo,<br />
a alegria, que envolveria a cooperação, e a perda, que <strong>de</strong>spertaria a tristeza (Power<br />
e Dalgleish, 1997 apud Laukka 2001).<br />
Como não é objetivo <strong>de</strong>ste trabalho aprofundar possíveis <strong>de</strong>finições <strong>de</strong> emoção, já<br />
propostas, ou não, na literatura, julgamos suficiente a classificação das emoções<br />
ditas básicas para justificarmos a escolha, para esse estu<strong>do</strong>, das emoções acima<br />
mencionadas.
É importante saber que existem componentes na fala que não se limitam aos segmentos<br />
vocálicos ou consonantais, e por não serem segmentais, são estuda<strong>do</strong>s no<br />
campo da prosódia. Tais componentes são chama<strong>do</strong>s <strong>de</strong> suprassegmentos e representam<br />
diversos fenômenos acústicos da fala, como altura, intensida<strong>de</strong>, duração,<br />
pausa, velocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fala, acento e ritmo; estão associa<strong>do</strong>s aos estu<strong>do</strong>s das emoções<br />
humanas.<br />
Os estu<strong>do</strong>s acerca da fala emotiva mostram que existem relações entre as emoções<br />
e a frequência fundamental (<strong>do</strong>ravante, F0). Por exemplo, nas situações <strong>de</strong> me<strong>do</strong>,<br />
F0 ten<strong>de</strong> a ser mais baixa com relação à fala neutra1, em oposição às situações <strong>de</strong><br />
alegria, que geralmente apresenta F0 alta (Banse e Scherer, 1996).<br />
Além <strong>do</strong>s aspectos acústicos, as emoções também possuem outros componentes<br />
como a experiência subjetiva ou a sensação, a resposta neurofisiológica (no sistema<br />
nervoso central e autônomo) e a expressão motora (na face, na voz e nos gestos)<br />
(Banse & Scherer, 1996).<br />
Dessa forma, Scherer (1984, 2001) propõe uma teoria que relaciona as variações<br />
fisiológicas <strong>do</strong> trato vocal e o comportamento acústico no tocante às emoções humanas.<br />
No caso da raiva, por exemplo, ocorre o aumento da tensão na musculatura<br />
laríngea acompanhada <strong>do</strong> crescimento da pressão <strong>do</strong> ar subglotal (Laukka, 2004,<br />
apud Spencer, 1857), o que altera a produção <strong>do</strong> som.<br />
O que <strong>de</strong>termina as variações vocais que acompanham as emoções são as modificações<br />
fisiológicas que, por sua vez, induzem a alterações nos sistemas <strong>de</strong> produção<br />
vocal. A alteração <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sses componentes produz alterações no outro componente.<br />
Por exemplo, numa situação em que se exige um padrão respiratório maior,<br />
aumenta a necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> suporte <strong>de</strong> oxigênio, que vai afetar a expressão facial<br />
(forma da boca) e a expressão vocal (alterações na pressão subglotal), bem como<br />
um número <strong>de</strong> parâmetros fisiológicos periféricos (Correia, 2007).<br />
Além disso, as emoções são acompanhadas por várias respostas adaptativas <strong>do</strong> sistema<br />
nervoso autônomo e somático (Johnstone e Scherer, 2000). Essas respostas<br />
proporcionam modificações no funcionamento parcial ou total <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> produção<br />
<strong>de</strong> fala, como na respiração, na vibração das pregas vocais e na articulação.<br />
Os principais sinais acústicos analisa<strong>do</strong>s para a expressão vocal das emoções são: o<br />
contorno da frequência fundamental (que reflete a frequência da vibração das pregas<br />
vocais), a energia acústica presente na voz (amplitu<strong>de</strong> e intensida<strong>de</strong> vocal); a<br />
distribuição da energia no espectro <strong>de</strong> frequência (especialmente a energia envolven<strong>do</strong><br />
as regiões <strong>de</strong> alta e <strong>de</strong> baixa frequência, afetan<strong>do</strong> a percepção da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
voz ou <strong>do</strong> timbre); a localização <strong>do</strong>s formantes (F1, F2, relaciona<strong>do</strong>s com a percepção<br />
da articulação) e uma varieda<strong>de</strong> temporal <strong>do</strong>s fenômenos, incluin<strong>do</strong> duração e<br />
pausas (Banse e Scherer, 1996; Gustafson-Capková, 2001).Assim como na fala, na<br />
voz cantada também a relação entre as emoções expressas e os sinais acústicos também<br />
é estudada. A fala cantada gera um sinal acústico, que reflete seu esta<strong>do</strong> emo-<br />
293
294<br />
cional e produz efeitos perceptivos nos ouvintes e, muitas vezes, simboliza noções<br />
abstratas da emoção (Sherer, 1995).<br />
Morozov (1996) estu<strong>do</strong>u os principais componentes acústicos <strong>do</strong> canto e i<strong>de</strong>ntificou<br />
alguns parâmetros importantes, como o tempo, o ritmo, a dinâmica, a duração<br />
das sílabas e das micropausas, as características <strong>do</strong> vibrato, a afinação, a dicção, a<br />
pronúncia e o timbre. O autor observou que ao manipular o timbre da macro-estrutura,<br />
modifica-se a amplitu<strong>de</strong> e a frequência <strong>do</strong>s formantes, já na micro-estrutura<br />
ocorrem alterações nos harmônicos. Com isso, as frequências <strong>do</strong> formante <strong>do</strong> cantor<br />
sobem quan<strong>do</strong> nas emoções como a alegria ou a raiva, e <strong>de</strong>scem, quan<strong>do</strong> as emoções<br />
são a tristeza ou o me<strong>do</strong>. Ele ainda i<strong>de</strong>ntificou modificações na extensão <strong>do</strong><br />
vibrato e <strong>do</strong> timbre da voz para algumas emoções.<br />
Embora o presente estu<strong>do</strong> não trate especificamente da fala cantada e a emoção<br />
que esta po<strong>de</strong> veicular no canto, servirá, certamente, <strong>de</strong> apoio a estu<strong>do</strong>s volta<strong>do</strong>s<br />
para aspectos emocionais liga<strong>do</strong>s à acústica <strong>do</strong> canto. Em Me<strong>de</strong>iros (a sair) escolhas<br />
<strong>de</strong> alocação <strong>de</strong> alturas na melodia da canção foram comparadas a contornos entoacionais<br />
próprios da fala, revelan<strong>do</strong> que a composição cancional é o lugar <strong>de</strong> entendimento<br />
perfeito entre aspectos musicais e lingüísticos, no qual alternam-se<br />
pre<strong>do</strong>minâncias das restrições <strong>de</strong> um sobre outro.<br />
Objetivos <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> sobre a fala emotiva<br />
A fim <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r melhor os parâmetros acústicos envolvi<strong>do</strong>s na prosódia da emoção,<br />
realizou-se um estu<strong>do</strong> basea<strong>do</strong> no comportamento da F0, portanto trata-se <strong>de</strong><br />
um estu<strong>do</strong> fonético acústico, ten<strong>do</strong> como objeto um texto li<strong>do</strong> e interpreta<strong>do</strong> por<br />
três atrizes brasileiras.<br />
As emoções-alvo <strong>de</strong>ste trabalho são a alegria, a raiva, o me<strong>do</strong> e a tristeza, pois são,<br />
como já vimos, as emoções consi<strong>de</strong>radas “básicas” na literatura. O estu<strong>do</strong> da F0<br />
nas emoções da voz falada po<strong>de</strong> fornecer subsídios para os estu<strong>do</strong>s que tem como<br />
objeto a fala cantada.<br />
Para Damásio (2003), as emoções básicas como o me<strong>do</strong>, a raiva, a surpresa, a tristeza,<br />
a felicida<strong>de</strong> ou a aversão/repugnância são caracterizadas por uma programação<br />
inata, ao passo, que existem emoções mais complexas, reconhecidas como emoções<br />
sociais, por exemplo, a simpatia, o embaraço, a vergonha, a culpa, o orgulho, a inveja,<br />
a gratidão, a admiração e o <strong>de</strong>sprezo.<br />
Méto<strong>do</strong><br />
1. Corpus<br />
O estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> comportamento da F0 ao longo <strong>de</strong> um texto possibilita um <strong>do</strong>s aspectos<br />
prosódicos das emoções. O corpus proposto foi um texto <strong>de</strong> Vaz (1983) (ver
Anexo 1), composto por 126 palavras, e já utiliza<strong>do</strong> em outros trabalhos como no<br />
<strong>de</strong> Figueire<strong>do</strong> (1993). O texto possui estilo científico e o mais ári<strong>do</strong> possível, a fim<br />
<strong>de</strong> evitar emoções implícitas.<br />
A fim <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r melhor o contorno entoacional das emoções nesse texto, foi<br />
necessário selecionar frases que constituíssem uma unida<strong>de</strong> linguística. Para isso,<br />
utilizou-se a proposta <strong>de</strong> Nespor e Vogel (1986), que organiza os constituintes prosódicos<br />
<strong>de</strong> uma maneira hierárquica.<br />
A hierarquia <strong>do</strong>s constituintes prosódicos abrange <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sílaba (o constituinte<br />
prosódico basilar) até o enuncia<strong>do</strong> fonológico (o constituinte prosódico mais<br />
amplo), categoriza<strong>do</strong> numa hierarquia crescente: a sílaba; o pé métrico; a palavra fonológica;<br />
o grupo clítico; a frase (ou sintagma) fonológica; a frase (ou sintagma) entoacional<br />
e o enuncia<strong>do</strong> fonológico. Os constituintes mais baixos (a sílaba e o pé)<br />
estruturam as informações fonológicas, os constituintes mais altos da palavra fonológica<br />
até o enuncia<strong>do</strong> fonológico estruturam-se com as informações fonológicas<br />
e com outros planos linguísticos.<br />
Para analisar as curvas entoacionais, o constituinte que trata especificamente <strong>de</strong>sse<br />
<strong>do</strong>mínio é a frase entoacional. Frase entoacional (I) é uma constituinte importante<br />
no estu<strong>do</strong> da prosódia <strong>do</strong>s enuncia<strong>do</strong>s. Nespor e Vogel (1986) <strong>de</strong>finem essa constituinte<br />
prosódica como:<br />
A regra básica <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> frase entoacional fundamenta-se na noção <strong>de</strong> que<br />
a frase entoacional é o <strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> um contorno <strong>de</strong> entoação e que os fins <strong>de</strong><br />
frases entonacionais coinci<strong>de</strong>m com posições em que pausas po<strong>de</strong>m ser introduzidas<br />
(1986)<br />
O respal<strong>do</strong> teórico permitiu que as frases fossem segmentadas, respeitan<strong>do</strong> os limites<br />
fonológicos e sintáticos, visto que a teoria possibilita a interação entre os aspectos<br />
fonológicos e os aspectos <strong>de</strong> outros subsistemas gramaticais como o<br />
morfológico, o sintático e o semântico.<br />
Dentre as frases entoacionais <strong>do</strong> texto, as escolhidas para esse trabalho foram:<br />
Sentença 1: As células <strong>do</strong> sangue que fabricam anticorpos, são individualizadas.<br />
Sentença 2: As células <strong>do</strong> fíga<strong>do</strong> são provavelmente iguais entre si.<br />
Sentença 3: Este conjunto constitui um clone linfocitário.<br />
A primeira frase está localizada no início, a segunda está no meio e a terceira está no<br />
final <strong>do</strong> texto. A escolha das frases consi<strong>de</strong>rou tanto a localização das mesmas,<br />
quanto a classificação sugerida por Nespor e Vogel (1986) das frases entoacionais.<br />
É sabi<strong>do</strong> que a localização <strong>de</strong> um da<strong>do</strong> constituinte numa frase tem a tendência <strong>de</strong><br />
receber F0 maior ou menor. Um exemplo disso é a frase afirmativa, que ten<strong>de</strong> a iniciar-se<br />
com F0 alto e terminar com F0 baixo (melodia <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte). No caso <strong>do</strong><br />
texto li<strong>do</strong> pelas atrizes, apesar <strong>de</strong> ele representar uma unida<strong>de</strong> lingüística maior que<br />
a sentença, hipotetizou-se que, por ser li<strong>do</strong> sem interrupção, po<strong>de</strong>ria trazer características<br />
entoacionais da frase afirmativa, produzin<strong>do</strong> um contorno <strong>de</strong> tendência<br />
295
296<br />
sempre <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte, ainda que houvesse variações em algumas localida<strong>de</strong>s. Assim,<br />
escolheram-se três frases distribuídas ao longo <strong>do</strong> texto e não apenas as iniciais ou<br />
finais, já que fazer as medidas <strong>de</strong> todas as sílabas <strong>do</strong> texto completo seria um trabalho<br />
por <strong>de</strong>mais <strong>de</strong>mora<strong>do</strong>.<br />
2. Sujeitos<br />
Os sujeitos da pesquisa foram três atrizes brasileiras (com experiência profissional<br />
entre 20 a 30 anos), que leram o texto, interpretan<strong>do</strong> as emoções solicitadas anteriormente.<br />
As emoções estudadas foram as consi<strong>de</strong>radas básicas pela literatura: a<br />
alegria, a tristeza, a raiva e o me<strong>do</strong>. As atrizes interpretaram cinco repetições para<br />
cada emoção, totalizan<strong>do</strong> 60 repetições. Além disso, todas as atrizes leram o corpus<br />
<strong>de</strong> maneira neutra.<br />
As análises iniciais das gravações <strong>do</strong>s sujeitos já mostraram que existem diferenças<br />
intra-sujeitos importantes para serem consi<strong>de</strong>radas. Por essas razões, as atrizes serão<br />
analisadas individualmente a fim <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar diferenças e semelhanças entre si.<br />
3. Análises <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s<br />
Para extrair os valores da F0, foi utiliza<strong>do</strong> o programa livre Praat 5.1.23 e scripts<br />
correlaciona<strong>do</strong>s. Nessa etapa, as sentenças foram segmentadas para unida<strong>de</strong>s ainda<br />
menores (sílabas) e i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> o valor <strong>de</strong> F0 para cada unida<strong>de</strong>.<br />
Inicialmente, os da<strong>do</strong>s foram submeti<strong>do</strong>s à estatística <strong>de</strong>scritiva e ao Teste-t proporciona<strong>do</strong>s<br />
pelo programa Excel 2007. No futuro, esses da<strong>do</strong>s serão analisa<strong>do</strong>s<br />
pelo programa estatístico R.<br />
Figura 1— Refere-se à média da F0 das cinco repetições da primeira frase falada pelo<br />
sujeito 2.
Resulta<strong>do</strong>s<br />
As atrizes foram estudadas caso a caso e em seguida, foram levantadas as diferenças<br />
e semelhanças encontradas. Nesse estu<strong>do</strong>, foram analisadas as emoções alegria,<br />
raiva, me<strong>do</strong> e tristeza. As gravações da fala neutra foram <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>radas.<br />
Na Figura 1.1, po<strong>de</strong>mos observar o comportamento da F0 a longo termo, ao longo<br />
da segunda sentença, comparan<strong>do</strong> as emoções alegria, raiva, me<strong>do</strong> e tristeza entre<br />
si.<br />
Ao visualizar a figura 1.1, nota-se que o me<strong>do</strong> apresenta valores <strong>de</strong> F0 consi<strong>de</strong>ravelmente<br />
mais altos (235 e 153 Hertz (Hz)) que as <strong>de</strong>mais emoções. Já a tristeza tem<br />
valores mais baixos <strong>de</strong> F0, varian<strong>do</strong> entre 204 e 118 Hz.<br />
Os parâmetros <strong>de</strong> F0 para a alegria e para a raiva, visualmente, parecem estar próximos,<br />
no entanto, houve diferença significativa no que se refere à variação <strong>de</strong> F0. Na<br />
fala alegre, a variação <strong>de</strong> F0 (entre o mínimo e o máximo) foi em torno <strong>de</strong> 82 Hz, enquanto<br />
que na fala irritada variou entre 222 Hz.<br />
Tabela 1 — Estatística <strong>de</strong>scritiva <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os sujeitos da pesquisa, referentes à<br />
segunda sentença <strong>do</strong> corpus, na emoção alegria.<br />
ALEGRIA<br />
Sujeito 1 Sujeito 2 Sujeito 3<br />
Média 214 237 246<br />
Desvio padrão 46 58 63<br />
Máximo 307 422 451<br />
Mínimo 125 139 159<br />
Coeficiente <strong>de</strong> variação 22 24 25<br />
Tabela 2 — Estatística <strong>de</strong>scritiva <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os sujeitos da pesquisa, referentes à<br />
segunda sentença <strong>do</strong> corpus, na emoção tristeza.<br />
TRISTEZA<br />
Sujeito 1 Sujeito 2 Sujeito 3<br />
Média 137 172 182<br />
Desvio padrão 49 24 32<br />
Máximo 239 211 248<br />
Mínimo 90 78 91<br />
Coeficiente <strong>de</strong> variação 36 14 18<br />
297
298<br />
Além disso, os valores máximos <strong>de</strong> F0 são consi<strong>de</strong>ravelmente maiores na alegria, em<br />
contrapartida com os valores mínimos <strong>de</strong> F0 que são mais baixos. Assim, a fala alegre<br />
tem a tendência <strong>de</strong> variação <strong>de</strong> F0 numa faixa <strong>de</strong> frequência mais agudas que a<br />
tristeza.<br />
Tabela 3 — Médias, <strong>de</strong> todas as repetições, <strong>do</strong>s valores da F0 para as emoções alegria<br />
e tristeza e o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Teste-t.<br />
As médias da alegria são consi<strong>de</strong>ravelmente maiores que aquelas da tristeza. O sujeito<br />
1 e o sujeito 2 apresentam valores próximos na média da alegria, porém os valores<br />
da tristeza entre os <strong>do</strong>is sujeitos estão bastante diferentes: uma diferença <strong>de</strong> 49<br />
Hz. Observa-se também que o sujeito 2 varia apenas 29 Hz entre a emoção alegria<br />
e tristeza. Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o valor <strong>de</strong> α igual a 0.05, nota-se que temos diferenças estatísticas<br />
entre as emoções alegria e tristeza. Os resulta<strong>do</strong>s da tabela 3 corroboram<br />
os resulta<strong>do</strong>s das tabelas anteriores.<br />
Na figura 2, po<strong>de</strong>mos visualizar melhor o comportamento da F0 nas duas emoções,<br />
alegria e tristeza, produzida pelas três atrizes.<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Alegria Tristeza S<br />
Sujeito 1 222 123 0<br />
Sujeito 2 188 159 0<br />
Sujeito 3 227 172 0<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Figura 2 — Média das cinco repetições da F0 da primeira frase falada pelos três sujeitos,<br />
interpretan<strong>do</strong> as emoções alegria e tristeza.<br />
No caso da raiva e <strong>do</strong> me<strong>do</strong>, o sujeito 1 apresenta as médias da F0 semelhantes para<br />
ambas as emoções e nas três sentenças analisadas (por volta <strong>de</strong> 200 Hz). No entanto,<br />
a variação <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> mostrou-se diferente nessas emoções: a variação<br />
entre o mínimo e o máximo da F0 foi <strong>de</strong> 285 Hz, 238 Hz, 246 Hz (para a primeira,
segunda e terceira sentença), respectivamente. Já no me<strong>do</strong>, a variação foi <strong>de</strong> 475 Hz,<br />
512 Hz e 385 Hz.<br />
As médias da F0 <strong>do</strong>s sujeitos 2 e 3 também foram semelhantes para as duas emoções.<br />
No entanto, no sujeito 3, a variação entre o mínimo e o máximo da F0, está em<br />
torno <strong>de</strong> 348 Hz, 237 Hz, 299 Hz na raiva. Já no me<strong>do</strong>, as amplitu<strong>de</strong>s estão por<br />
volta <strong>de</strong> 159 Hz, 86 Hz e 133 Hz (na primeira, na segunda e na terceira frase, respectivamente).<br />
Conclusões<br />
As análises <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s mostraram que a F0 contribui para a diferenciação acústica<br />
das emoções estudadas. As análises <strong>do</strong> contorno <strong>de</strong> F0 mostram-se eficientes para a<br />
diferenciação das emoções e para i<strong>de</strong>ntificarmos alguns fenômenos peculiares <strong>de</strong><br />
certas emoções, como foi o caso da raiva.<br />
Para a diferenciação das emoções me<strong>do</strong> e raiva, é necessário verificar se outros parâmetros<br />
acústicos, como a duração, são eficientes para diferenciá-las das <strong>de</strong>mais<br />
emoções.<br />
1 Nessa pesquisa, a<strong>do</strong>tamos o termo “neutro” para <strong>de</strong>signar a leitura convencional, sem a solicitação<br />
prévia da interpretação emotiva. No entanto, não <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>mos que a leitura neutra<br />
necessariamente não apresente resquícios emotivos.<br />
Referências<br />
Banse, R., & Scherer, K. R. (1996). Acoustic profiles in vocal emotion expression. Journal of<br />
Personality and Social Psychology 70(3), 614-636.<br />
Correia, P.C.G. (2007) Sob o signo das emoções: expressões faciais e prosódia em indivíduos<br />
com perturbação vocal. Dissertação <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong>. Instituto <strong>de</strong> Ciências da Saú<strong>de</strong><br />
da Universida<strong>de</strong> Católica Portuguesa.<br />
Figueire<strong>do</strong>, R.M (1993) A eficácia <strong>de</strong> medidas extraídas <strong>do</strong> espectro <strong>de</strong> longo termo para a<br />
i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> falantes. Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Lingüísticos 25, 129-160.<br />
Gustafson-Capková, S. (2001). Emotions in speech: Tagset and Acoustic Correlates. Term<br />
paper in Speech Technology 1, Swedish National Graduate School of Language Technology<br />
(GSLT). Stockholm University. Department of Linguistics.<br />
Laukka, P. (2004). Vocal Expression of Emotion: Discrete Emotion and Dimensional Accounts.<br />
Dissertation of Acta Universitatis Upsaliensis, Swe<strong>de</strong>n.<br />
Me<strong>de</strong>iros, B. Raposo (2009) Pistas <strong>de</strong> competência cancional na entoação da canção. <strong>Cognição</strong><br />
& <strong>Artes</strong> Musicais/Cognition & Musical Arts, 4 (1), 5-11.<br />
Morozov, V. (1996). Emotional expressiveness of the singing voice: The role of macrostructural<br />
and microstructural modifications of spectra. Logopedics Phoniatrics Vocology<br />
21: 49-58.<br />
299
300<br />
Scherer, K. R. (1984). On the nature and function of emotion: A component process approach.<br />
In K. R. Scherer & P. Ekman (Eds.), Approaches to emotion, pp. 293-317. Hillsdale,<br />
NJ: Erlbaum.<br />
Scherer, K. R. (1995). How Emotion is Expressed in Speech and Singing. Proceedings of the<br />
XIIIth International Congress of Phonetic Sciences, Stockholm, Swe<strong>de</strong>n, 3, 90-96.<br />
Scherer, K. R. (2001). Appraisal consi<strong>de</strong>red as a process of multi-level sequential checking.<br />
In K. R. Scherer, A. Schorr, & T. Johnstone (Eds.). Appraisal processes in emotion: Theory,<br />
Methods, Research, 92-120. New York and Oxford: Oxford University Press.<br />
Vaz, N. M. (1983) Idéias para uma nova imunologia. In: Ciência Hoje II, ( 7), 33.<br />
Texto I (extraí<strong>do</strong> <strong>de</strong> VAZ, 1983, pág. 33, item 2):<br />
Anexo<br />
A reativida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s linfócitos, as células <strong>do</strong> sangue que fabricam anticorpos, são<br />
individualizadas. Em cada organismo, as células <strong>do</strong> fíga<strong>do</strong> são provavelmente<br />
iguais entre si, as da pele também, mas os linfócitos são diferentes uns <strong>do</strong> outros.<br />
Cada um difere <strong>do</strong> seguinte por possuir na membrana diferentes receptores,<br />
moléculas que garantem a a<strong>de</strong>rência a certas estruturas (ou a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
fixar certas substâncias). Assim, o linfócito seguinte a<strong>de</strong>re às estruturas diferentes.<br />
Para ser mais exato, as diferenças existem entre clones <strong>de</strong> linfócitos. Quan<strong>do</strong><br />
um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> linfócito se multiplica e gera duas, quatro, oito milhares <strong>de</strong> cópias<br />
idênticas, este conjunto constitui um clone linfocitário. Dentro <strong>de</strong> um<br />
mesmo clone, os linfócitos são iguais: têm os mesmos receptores <strong>de</strong> membrana,<br />
a<strong>de</strong>rem às mesmas coisas, participam das mesmas interações.
Palavras Chaves<br />
Alça fonológica; teste <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong>; melodias.<br />
Memória <strong>de</strong> Curto Prazo para Melodias:<br />
Efeito das Diferentes Escalas Musicais<br />
Benassi-Werke, M. E.<br />
Departamento <strong>de</strong> Psicobiologia – Unifesp<br />
Queiroz, M.<br />
Instituto <strong>de</strong> Matemática e Estatística - USP<br />
Germano, N. G.<br />
Instituto <strong>de</strong> <strong>Artes</strong> - UNESP<br />
Oliveira, M. G. M.<br />
Departamento <strong>de</strong> Psicobiologia – Unifesp<br />
Introdução<br />
O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> memória operacional assume a existência <strong>de</strong> quatro componentes relaciona<strong>do</strong>s:<br />
executivo central, alça fonológica, esboço vísuo-espacial e buffer episódico<br />
(Bad<strong>de</strong>ley, 2000). Tais componentes seriam responsáveis pelo armazenamento<br />
e manipulação da informação necessária para ativida<strong>de</strong>s cognitivas. A alça fonológica<br />
está relacionada ao armazenamento <strong>de</strong> itens verbais e acústicos na memória <strong>de</strong><br />
curto prazo (MCP) (Bad<strong>de</strong>ley, 2007). Alguns estu<strong>do</strong>s indicam que a recordação<br />
<strong>de</strong> curto prazo <strong>de</strong> itens verbais é influenciada por conteú<strong>do</strong>s semânticos pré-armazena<strong>do</strong>s<br />
na memória <strong>de</strong> longo prazo (MLP). Com base nos estu<strong>do</strong>s sobre familiarida<strong>de</strong><br />
com o idioma (Thorn & Gathercole, 1999), po<strong>de</strong>-se sugerir que a alça<br />
fonológica é mais eficaz na manutenção <strong>de</strong> representações <strong>de</strong> palavras <strong>de</strong> idiomas<br />
familiares <strong>do</strong> que <strong>de</strong> idiomas não-familiares. Assim, é possível que a MCP para tons<br />
também seja influenciada pela familiarida<strong>de</strong>, isto é, por contextos musicais pré-estabeleci<strong>do</strong>s<br />
na MLP.<br />
Objetivo<br />
Verificar o perfil <strong>de</strong> armazenamento/manipulação <strong>de</strong> seqüências <strong>de</strong> tons através <strong>de</strong><br />
testes <strong>de</strong> memória construí<strong>do</strong>s à semelhança <strong>do</strong> Digit Span Test na or<strong>de</strong>m direta<br />
(OD) e na or<strong>de</strong>m inversa (OI), comparan<strong>do</strong> tal perfil ao perfil <strong>de</strong> armazenamento/manipulação<br />
<strong>de</strong> material verbal. Utilizan<strong>do</strong>-se o teste <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> melódica<br />
(“Tone span test”) construí<strong>do</strong> com base na escala diatônica (mais familiar) e<br />
301
302<br />
cromática (menos familiar), po<strong>de</strong>ríamos verificar se o mesmo padrão que ocorre<br />
na recordação <strong>de</strong> dígitos (mais familiar) e pseu<strong>do</strong>palavras (menos familiar) ocorre<br />
também nos testes com estas duas escalas. Se a amplitu<strong>de</strong> na OD <strong>do</strong> teste na escala<br />
diatônica for maior que na cromática, mas se mantiver baixa na OI, po<strong>de</strong>-se sugerir<br />
que a manipulação <strong>de</strong> seqüências melódicas na memória operacional acontece<br />
<strong>de</strong> forma diferente da manipulação verbal.<br />
Materiais e Méto<strong>do</strong>s<br />
Dez sujeitos foram submeti<strong>do</strong>s a testes <strong>de</strong> MCP para dígitos, pseu<strong>do</strong>palavas e tons.<br />
Foi utiliza<strong>do</strong> o Digit Span Test padroniza<strong>do</strong> para o Português (WAIS-III). A partir<br />
<strong>de</strong>ste teste, foi cria<strong>do</strong> um teste <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> pseu<strong>do</strong>palavras. As pseu<strong>do</strong>palavras<br />
foram criadas a partir <strong>de</strong> mudanças <strong>de</strong> algumas letras que compõem os números<br />
e, então, cada dígito <strong>do</strong> Digit Span Test foi substituí<strong>do</strong> pela sua pseu<strong>do</strong>palavra correspon<strong>de</strong>nte.<br />
Foram construí<strong>do</strong>s 2 testes <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> tons à semelhança <strong>do</strong> Digit Span Test,<br />
sen<strong>do</strong> um <strong>de</strong>les com base na escala cromática (utilizan<strong>do</strong>-se 12 notas e a primeira<br />
nota da oitava seguinte) e o outro com base na escala diatônica (utilizan<strong>do</strong>-se 7<br />
notas e a primeira nota da oitava seguinte). O teste na escala cromática foi <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra<strong>do</strong><br />
em 2 testes. Em um <strong>de</strong>les, as sequencias <strong>de</strong> tons tinham intervalos <strong>de</strong>, no máximo,<br />
uma terça; no outro, as sequencias tinham intervalos livres. O mesmo foi<br />
feito para o teste na escala diatônica.<br />
Assim, foram construí<strong>do</strong>s 4 testes <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> tons:<br />
1) Escala diatônica, intervalos até <strong>de</strong> uma terça (Teste 7_3);<br />
2) Escala diatônica, intervalos livres (Teste 7_X);<br />
3) Escala cromática, intervalos até <strong>de</strong> uma terça (Teste 7_3);<br />
4) Escala cromática, intervalos livres (Teste 7_X).<br />
A idéia da construção <strong>de</strong>stes 4 testes é criar uma gradação <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>, basean<strong>do</strong>se<br />
na hipótese <strong>de</strong> a escala diatônica ser mais familiar <strong>do</strong> que a cromática e, portanto,os<br />
tons construí<strong>do</strong>s com base nela seriam mais fáceis <strong>de</strong> serem recorda<strong>do</strong>s.<br />
Além disso, intervalos mais próximos são mais comuns e, portanto, <strong>de</strong>vem ser mais<br />
fáceis <strong>de</strong> serem recorda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que intervalos mais distantes.<br />
Posteriormente, foi atribuí<strong>do</strong> um dígito para cada tom utiliza<strong>do</strong> nos testes e, assim,<br />
4 testes <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> dígitos, parea<strong>do</strong>s aos testes <strong>de</strong> tons, foram construí<strong>do</strong>s.<br />
Os sujeitos foram submeti<strong>do</strong>s a um teste <strong>de</strong> afinação e, em seguida, foram aplica<strong>do</strong>s<br />
os testes <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> dígitos WAIS-III, <strong>de</strong> pseu<strong>do</strong>palavras e <strong>de</strong> tons e dígitos<br />
análogos na OD e na OI. Em to<strong>do</strong>s os testes, seqüências crescentes <strong>de</strong> itens foram<br />
apresentadas auditivamente. Ao final <strong>de</strong> cada seqüência, o sujeito <strong>de</strong>veria repeti-la<br />
na OD ou OI, conforme avisa<strong>do</strong> antes <strong>do</strong> teste. A amplitu<strong>de</strong> (span) <strong>de</strong> cada teste<br />
foi o total <strong>de</strong> itens conti<strong>do</strong>s na seqüência máxima repetida corretamente.
Resulta<strong>do</strong>s e Discussão<br />
Na OD, a recordação foi maior para dígitos <strong>do</strong> que para tons nos quatro tipos <strong>de</strong><br />
testes (p
304<br />
Conclusões<br />
1) Em geral, o perfil <strong>de</strong> recordação tonal é similar ao perfil <strong>de</strong> recordação verbal,<br />
mas o número <strong>de</strong> itens lembra<strong>do</strong>s é menor.<br />
2) O número <strong>de</strong> itens recorda<strong>do</strong>s no teste <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> melódica 7_3 é maior <strong>do</strong><br />
que nos outros testes <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong>.<br />
3) A recordação da OI é mais difícil em testes <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> melódica (mostra<strong>do</strong><br />
pelo Índice).<br />
Supomos que o cérebro humano é capaz <strong>de</strong> manipular vários tipos <strong>de</strong> materiais melódicos,<br />
mas, aparentemente, não é capaz <strong>de</strong> inverter materiais melódicos como é<br />
capaz <strong>de</strong> inverter materiais verbais. Po<strong>de</strong>-se sugerir, conforme hipótese inicial, que<br />
a manipulação <strong>de</strong> seqüências melódicas na memória operacional se dá <strong>de</strong> forma diferente<br />
da manipulação <strong>de</strong> material verbal.<br />
Referências Bibliográficas<br />
Bad<strong>de</strong>ley, A. D. (2000). The episodic buffer: A new component of working memory? Trends<br />
in Cognitive Sciences 4(11), pp. 417-423.<br />
Bad<strong>de</strong>ley, A. D. (2007). Working memory, thought and action. Oxford: Oxford University<br />
Press.<br />
Bad<strong>de</strong>ley, A. D. & Hitch, G. (1974). Working memory. In G. H. Bower (Ed.), The Psychology<br />
of Learning and Motivation 8, 47-90.<br />
Thorn, A. S. C. & Gathercole, S. E. (1999). Language-specific knowledge and short-term memory<br />
in bilingual and non-biligual children. The Quarterly Journal of Experimental Psychology<br />
52A(2), pp. 303-324.
Mario <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e o Prazer Musical<br />
Luciana Barongeno<br />
lubarongeno@usp.br<br />
Escola <strong>de</strong> Comunicações e <strong>Artes</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />
Resumo<br />
Em 1933, Oneyda Alvarenga (1911-1984) escreve A linguagem musical 1 como trabalho <strong>de</strong><br />
conclusão <strong>do</strong> Curso <strong>de</strong> História da Música no Conservatório Dramático e Musical <strong>de</strong><br />
São Paulo. Orientada por Mario <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> (1893-1945), que escolhe o tema, seleciona<br />
a bibliografia e orienta o plano <strong>de</strong> trabalho, esta primeira versão é ampliada até 1935 e<br />
concluída em 1944. Os manuscritos que <strong>do</strong>cumentam o processo <strong>de</strong> criação incluem os<br />
resumos, as notas e as três versões <strong>de</strong> Oneyda Alvarenga, bem como as notas marginais<br />
<strong>de</strong> Mario <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, presentes nas diferentes versões <strong>de</strong> A linguagem musical e nos<br />
livros <strong>de</strong> sua biblioteca. Este conjunto <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos, inédito, guarda matrizes <strong>de</strong> conceitos<br />
musicológicos formula<strong>do</strong>s na obra <strong>do</strong> mestre e na <strong>de</strong> sua discípula.<br />
Este trabalho, que nasce da reflexão parcial sobre A linguagem musical - nosso atual objeto<br />
<strong>de</strong> estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> - tem como objetivo mostrar que, para Mario <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
e Oneyda Alvarenga, o intercâmbio <strong>de</strong> conceitos específicos às <strong>Artes</strong> e às Ciências serve<br />
<strong>de</strong> eixo na investigação <strong>do</strong> problema da estética musical. A questão da dinamogenia, reiteradamente<br />
abordada pelos autores, é tomada como um exemplo clássico <strong>de</strong>ssa interação.<br />
“A arte precisa agradar primeiro aos senti<strong>do</strong>s e ao corpo”. A afirmação <strong>de</strong> Oneyda Alvarenga,<br />
apresentada na primeira parte <strong>do</strong> capítulo “Prazer Musical”, <strong>de</strong>riva, entre<br />
outros, da leitura <strong>de</strong> Psychologie <strong>de</strong> l´art 2 e <strong>de</strong> Esquisse d´une philosophie <strong>de</strong> l´art 3,<br />
mas é sobretu<strong>do</strong> em La musique et la vie intérieure4 que a musicóloga encontra a explicação<br />
fisiológica <strong>do</strong> fenômeno musical. A sensação sonora, dizem Bourguès e<br />
Denéréaz, cria dinamogenias, isto é, um <strong>de</strong>senvolvimento e um gasto <strong>de</strong> forças físicas,<br />
responsáveis pelo prazer musical. Na medida em que este processo coinci<strong>de</strong><br />
com um evento motor e com um evento afetivo, os autores concluem que o “grito”<br />
po<strong>de</strong> ser toma<strong>do</strong> como gesto germinal <strong>de</strong> toda música.<br />
Conceito impregna<strong>do</strong> pelas teorias evolucionistas <strong>do</strong> século XIX, o gesto vocal é<br />
uma das idéias fundamentais <strong>do</strong> pensamento musical <strong>de</strong> Mario <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>. No<br />
ensaio A escrava que não é Isaura, por exemplo, o teórico apresenta sua concepção<br />
mo<strong>de</strong>rnista <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> criação artística a partir da reconstrução crítica e expressiva<br />
<strong>do</strong> grito primitivo.5 Enten<strong>de</strong> que o caráter da expressivida<strong>de</strong> da música se<br />
<strong>de</strong>ve justamente ao fato <strong>de</strong> se manifestar como mimese da sensação expressa pelo<br />
gesto6, idéia que repercute diretamente no conceito <strong>de</strong> Música Pura: “a música que<br />
não se basean<strong>do</strong> diretamente em elementos <strong>de</strong>scritivos, quer objetivos, quer psicológicos,<br />
tira <strong>do</strong>s elementos exclusivamente dinamogênicos (Ritmo, Melodia, Har-<br />
305
306<br />
monia) a sua única razão <strong>de</strong> ser arte o ser bela”.7<br />
Não é possível, por ora, rastrear a trajetória das concepções estéticas <strong>de</strong> Mario <strong>de</strong><br />
Andra<strong>de</strong>. No entanto, é possível ressaltar a importância que a “concepção genética”<br />
da criação artística imprime no pensamento <strong>do</strong> pesquisa<strong>do</strong>r. A idéia da reconstrução<br />
<strong>do</strong> gesto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a manifestação “simples” até a “complexa”, converge Ciência e<br />
Arte na pesquisa estética <strong>de</strong> seus contemporâneos. Em L´Esprit Nouveau8, periódico<br />
da vanguarda francesa, enten<strong>de</strong> que o méto<strong>do</strong> genético nada mais é <strong>do</strong> que a<br />
apropriação das teorias evolucionistas aplicadas às artes, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r ainda<br />
a importância das disciplinas auxiliares, como a fisiologia e a psicologia, no estu<strong>do</strong><br />
da estética experimental.<br />
Introdução à estética musical, livro cuja escrita revela a sintonia <strong>de</strong> Mario <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
com o “espírito novo”, tem na questão da dinamogenia a fundamentação <strong>do</strong><br />
fenômeno fisiológico da música. Indiscutivelmente a<strong>de</strong>pto das teorias evolucionistas<br />
– com ou sem conhecimento <strong>de</strong> causa - o musicólogo discute o processo <strong>de</strong><br />
criação artística a partir da “evolução” expressiva <strong>do</strong> gesto vocal, sensação sonora<br />
que associa ao prazer musical. Textos basilares <strong>do</strong> autor são estrutura<strong>do</strong>s sobre o<br />
mesmo eixo <strong>de</strong> argumentação, <strong>de</strong>ntre eles, Os compositores e a língua nacional 9, on<strong>de</strong><br />
o discurso evolucionista pavimenta as propostas <strong>do</strong> teórico travestidas pelas concepções<br />
<strong>do</strong> “recitativo brasileiro”.<br />
Ciente da complexida<strong>de</strong> <strong>do</strong> tema, Mario <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> indica a Oneyda Alvarenga<br />
pontos essenciais a serem estuda<strong>do</strong>s em cada capítulo <strong>de</strong> A linguagem musical. A<br />
correspondência entre ambos sinaliza o papel da biblioteca <strong>do</strong> professor, seara on<strong>de</strong><br />
se encontram cravadas as matrizes <strong>do</strong>s conceitos que a aluna apresenta em sua tese.<br />
O exame apura<strong>do</strong> das leituras que compõem a bibliografia <strong>do</strong> livro inédito <strong>de</strong><br />
Oneyda Alvarenga, bem como <strong>do</strong>s manuscritos inscritos pelo musicólogo à margem<br />
<strong>do</strong>s textos sugere que as bases intelectuais que subjazem suas reflexões estéticas remontam<br />
ao <strong>de</strong>bate sobre a natureza humana da linguagem. Além <strong>de</strong> rota para a<br />
elucidação <strong>do</strong> fenômeno musical, a estética fisiológica <strong>de</strong>ve ser entendida como eco<br />
da tradição iniciada pela Musicologia no século XIX, quan<strong>do</strong> disciplinas <strong>de</strong> diferentes<br />
áreas <strong>do</strong> conhecimento se uniam em nome da Ciência da Música.10 Este é o<br />
cenário que serve <strong>de</strong> condição crítica ao teórico e experimenta<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Mo<strong>de</strong>rnismo<br />
brasileiro.<br />
1 Alvarenga, Oneyda. A linguagem musical. Série Manuscritos <strong>de</strong> Outros Autores, Arquivo<br />
Mario <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, IEB/USP.<br />
2 Delacroix, Henri. Psychologie <strong>de</strong> l´art. Paris: Félix Alcan, 1927.<br />
3 De Bruyne, Edgar. Esquisse d´une philosophie <strong>de</strong> l´art. Trad. Léon Breckx. Bruxelas: Albert<br />
Dewit, 1930.<br />
4 Bourguès, Lucien; Denéréaz, Alexan<strong>de</strong>r. La musique et la vie intérieure. Essai d´une histoire<br />
psychologique <strong>de</strong> l´art musical. Paris: Félix Alcan; Lausanne: Georges Bri<strong>de</strong>l, 1921.
5 Andra<strong>de</strong>, Mario <strong>de</strong>. A escrava que não é Isaura (1925). In: ———. Obra imatura. Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro: Agir, 2009, p. 235-236.<br />
6 I<strong>de</strong>m. Introdução à estética musical. Prefácio <strong>de</strong> Gilda <strong>de</strong> Mello e Souza. Estabelecimento<br />
<strong>do</strong> texto, introdução e notas <strong>de</strong> Flávia Camargo Toni. São Paulo: Hucitec, 1995, p. 37.<br />
7 I<strong>de</strong>m. Pequena história da música (1942). 9. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987, p. 105.<br />
8 Basch, Victor. L´esthetique nouvelle et la science <strong>de</strong> l´art: lettre au directeur <strong>de</strong> L´Esprit<br />
Nouveau. L´esprit Nouveau, Paris: Éditions <strong>de</strong> L´Esprit Nouveau, n. 1, 1921, p. 5-12 e n. 2,<br />
1921, p. 119-130.<br />
9 Andra<strong>de</strong>, Mario <strong>de</strong>. Os compositores e a língua nacional (1937). In: ———. Aspectos da música<br />
brasileira. Belo Horizonte; Rio <strong>de</strong> Janeiro: Villa Rica, 1991, p. 32-94 (Obras Completas,<br />
11)<br />
10 Sobre o assunto ver: Brain, Robert Michel. The pulse of mo<strong>de</strong>rnism: experimental physiology<br />
and aesthetic avant-gar<strong>de</strong>s circa 1900. Studies in History and Philosophy of Science<br />
39, 2008, p. 393-417 e Rehding, Alexan<strong>de</strong>r. The quest for the origins of music in Germany<br />
circa 1900. Journal of the American Musicological Society 53, n. 2, p. 345-385, Summer 2000.<br />
307
308<br />
tecnologia, artes musicais e a mente<br />
Desenvolvimento <strong>do</strong> processos composicionais<br />
eletroacústicos a partir da relação entre live-electronics<br />
e re<strong>de</strong>s neurais artificiais<br />
Resumo<br />
Rael Bertarelli Gimenes Toffolo<br />
rbgtoffolo@uem.br<br />
Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Maringá — UEM<br />
Este artigo <strong>de</strong>screve a pesquisa <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> em andamento <strong>do</strong> autor, que tem como<br />
proposta investigar formas <strong>de</strong> relacionar as re<strong>de</strong>s neurais artificiais com a música eletroacústica<br />
<strong>do</strong> tipo live-electronics. Inicialmente, apresentaremos conceitos básicos que<br />
se relacionam com a questão, como o conceito <strong>de</strong> música interativa, criativida<strong>de</strong> e autoregulação,<br />
propostos por (Rowe, 1993, 2001), (Paine, 2002) e (Di Scipio, 2003). Para tais autores,<br />
o live-electronics po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como um tipo <strong>de</strong> arte interativa, mais<br />
especificamente como música interativa, porém para Rowe, Paine e Di Scipio, o conceito<br />
<strong>de</strong> interativida<strong>de</strong> é mais amplo <strong>do</strong> que o que vem fundamentan<strong>do</strong> gran<strong>de</strong> parte da prática<br />
<strong>do</strong> live-electronics. Tais autores propõem mo<strong>de</strong>los diferencia<strong>do</strong>s para o live-electronics<br />
<strong>de</strong> forma que tal tipo <strong>de</strong> obra possa realmente ser consi<strong>de</strong>rada como arte<br />
interativa. Para os autores, a interativida<strong>de</strong> é caracterizada pela habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>do</strong>is agentes<br />
“criativos” estabelecerem um processo comunicativo, enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> aqui criativida<strong>de</strong><br />
como capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> auto-regulação que ocorre durante o processo comunicativo. A<br />
maioria <strong>do</strong>s processos composicionais típicos <strong>do</strong> live-electronics são somente “reativos”,<br />
ou seja, processos computacionais (top-<strong>do</strong>wn) pré-programa<strong>do</strong>s pelo compositor que<br />
reagem <strong>de</strong> forma “não-criativa” aos inputs-sonoros cria<strong>do</strong>s por um músico. Sen<strong>do</strong> assim,<br />
apresentaremos <strong>do</strong>is mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> obras <strong>do</strong> tipo live-electronics propostos por (Paine,<br />
2002) e (Di Scipio, 2003) que preten<strong>de</strong>m superar essa visão (top-<strong>do</strong>wn) e que são inspira<strong>do</strong>s<br />
na mo<strong>de</strong>lagem Orientada a Objetos e nos estu<strong>do</strong>s sobre Algorítmos Genéticos<br />
respectivamente. Expandiremos a discussão propon<strong>do</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> live-electronics<br />
que utilize Re<strong>de</strong>s Neurais Artificiais com arquitetura apoiada nos estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s<br />
por (Hawkins and George, 2006). A escolha <strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo é justificada pela facilida<strong>de</strong> que<br />
tal re<strong>de</strong> tem em lidar com classificação <strong>de</strong> padrões temporais, característica essencial para<br />
o processamento <strong>de</strong> áudio. Finalizaremos com a discussão sobre formas <strong>de</strong> obter comportamentos<br />
tipo-morfologicamente orienta<strong>do</strong>s da re<strong>de</strong> neural, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a teoria<br />
<strong>de</strong> (Schaeffer, 1966).<br />
Introdução<br />
As técnicas <strong>de</strong> live-electronics têm se consolida<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong>s últimos anos no<br />
campo da composição eletroacústica. A parte da discussão entre vertentes que
apoiam a música eletroacústica pura em <strong>de</strong>trimento das propostas <strong>de</strong> interação e<br />
processamento <strong>de</strong> sinal <strong>de</strong> áudio em tempo-real, ou vice-versa1 o live-electronics tem<br />
si<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como uma interessante ferramenta para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong><br />
novas formas <strong>de</strong> relacionar a escritura instrumental com a eletroacústica. De forma<br />
muito resumida, po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar que o live-electronics propicia algumas técnicas<br />
diferenciadas como: o processamento em tempo real <strong>do</strong> som proveniente <strong>do</strong><br />
instrumento com inúmeros tipos <strong>de</strong> bancos <strong>de</strong> filtros; <strong>de</strong>tecção <strong>de</strong> pontos da partitura<br />
virtual reliza<strong>do</strong>s por processos <strong>de</strong> trigger2 utiliza<strong>do</strong>s para o disparo <strong>de</strong> trechos<br />
eletroacústicos pré-elabora<strong>do</strong>s pelos compositores e processos <strong>de</strong> interação<br />
que utilizam trechos eletroacústicos gera<strong>do</strong>s ora estocásticamente, ora ran<strong>do</strong>micamente<br />
ou por procedimentos <strong>de</strong> inteligência artificial. Este último que nos interessa<br />
discutir neste trabalho.<br />
Autores como (Rowe, 1993, 2001), (Paine, 2002), (Di Scipio, 2003), têm discuti<strong>do</strong><br />
e apresenta<strong>do</strong> diferentes formas <strong>de</strong> utilização <strong>de</strong> sistemas “inteligentes” em<br />
composições <strong>do</strong> tipo live-electronics. A premissa inicial <strong>de</strong>sses autores para justificar<br />
o uso <strong>de</strong> tais sistemas é a que concebe o live-electronics como um processo <strong>de</strong><br />
interação entre homem e máquina. A interação é <strong>de</strong>finida por tais autores <strong>de</strong> diversas<br />
formas, mas Paine e Di Scipio compartilham a idéia <strong>de</strong> que ambos os participantes<br />
<strong>do</strong> processo, homem e máquina, têm que ter atitu<strong>de</strong>s “criativas”. Afirmam<br />
que a maioria <strong>do</strong>s processos <strong>de</strong> live-electronics falham nesse senti<strong>do</strong>, já que o plano<br />
computacional não é concebi<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma que este manifeste atitu<strong>de</strong>s cognitivamente<br />
“inteligentes”3. O que nos interessa aqui não é a crítica, mas sim a possibilida<strong>de</strong><br />
que se abre para a busca <strong>de</strong> novas poéticas para a música eletroacústica.<br />
Live-electronics<br />
O <strong>de</strong>senvolvimento da tecnologia computacional, bem como seu barateamento,<br />
têm propicia<strong>do</strong> uma ampla gama <strong>de</strong> novas experiências em diversas áreas <strong>do</strong> conhecimento<br />
musical inclusive para a composição musical. Com o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>do</strong>s processa<strong>do</strong>res, hoje é possível lidar com o áudio digital, que envolve uma gran<strong>de</strong><br />
quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> informação, com equipamentos relativamente baratos e acessíveis.<br />
Dentro <strong>de</strong>sse panorama, o processamento <strong>de</strong> sinal <strong>de</strong> áudio em tempo-real, ampliou<br />
as possibilida<strong>de</strong>s composicionais para um tipo <strong>de</strong> composição comumente<br />
chama<strong>do</strong> <strong>de</strong> live-electronics. Prova <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>senvolvimento centra-se na superação<br />
<strong>de</strong> parte da crítica realizada por Risset (1999). Neste artigo, Risset ao discutir <strong>de</strong>talhes<br />
composicionais <strong>de</strong> sua obra Duet for one pianist age, segun<strong>do</strong> suas próprias palavras,<br />
como “advoga<strong>do</strong> <strong>do</strong> diabo” (Risset, 1999) ao consi<strong>de</strong>rar as limitações da<br />
tecnologia para a produção <strong>de</strong> live-electronics e apresentar uma <strong>de</strong>fesa à sobrevivência<br />
das obras <strong>de</strong> “tape fixo”. O autor ressalta cinco pontos principais que po<strong>de</strong>mos<br />
sintetizar em:<br />
309
310<br />
a) qualquer sistema digital consegue se ater à apenas um nível limita<strong>do</strong> <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> som real;<br />
b) sistemas em tempo real são mais limita<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que os softwares <strong>de</strong> síntese;<br />
c) os procedimentos em tempo real não são a solução para as dificulda<strong>de</strong>s em <strong>do</strong>minar<br />
as complexas técnicas <strong>de</strong> síntese;<br />
d) os sistemas em tempo real são efêmeros <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao rápi<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento da<br />
tecnologia;<br />
e) música para tape também precisa ser interpretada, portanto não está morta.<br />
Concordan<strong>do</strong> com muitas das críticas assertivas <strong>de</strong> Risset, principalmente as que se<br />
centram no campo estético, po<strong>de</strong>mos ressaltar que a primeira e a segunda encontram-se<br />
superadas pelo <strong>de</strong>senvolvimento da tecnologia que ele próprio aponta. Dez<br />
anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua crítica, po<strong>de</strong>mos afirmar que as linguagens <strong>de</strong> programação para<br />
processamento <strong>de</strong> áudio digital encontram-se tão <strong>de</strong>senvolvidas e eficientes que<br />
permitem que se atue em quantos níveis <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> processamento <strong>de</strong><br />
áudio for necessário, bem como têm tanta flexibilida<strong>de</strong> para síntese quanto qualquer<br />
software para síntese sonora em tempo diferi<strong>do</strong>. Processos <strong>de</strong> análise <strong>de</strong> Fourier<br />
e re-síntese sonora, que há alguns anos levavam horas para serem processa<strong>do</strong>s,<br />
são hoje realizadas em tempo-real por linguagens como o PureData e SuperColli<strong>de</strong>r.<br />
Linguagens como o Csound, que tem uma ampla história <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
a partir das primeiras experiências <strong>de</strong> Max Matthews com o programa Music I <strong>de</strong><br />
1957, passou para a sua versão real-time incluin<strong>do</strong> todas as flexibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sintese<br />
e processamento que a versão em tempo diferi<strong>do</strong> possui.<br />
Dentro <strong>de</strong>sse panorama, o live-electronics tem ganha<strong>do</strong> força <strong>de</strong>ntre os compositores<br />
que vislumbram novas formas <strong>de</strong> relacionar a escritura instrumental com a eletroacústica.<br />
Autores como (Menezes, 1999, 2002), (Paine, 2002), (Di Scipio, 2003)<br />
e (Rowe, 1993, 2001), para citar apenas alguns, têm discuti<strong>do</strong> as diversas formas<br />
<strong>de</strong> interação entre a escritura instrumental e a eletroacústica. Rowe (1993), por<br />
exemplo, <strong>de</strong>fine os sistemas musicais interativos como aqueles nos quais o comportamento<br />
se modifica em resposta a eventos musicais, porém Paine (2002) apresenta<br />
uma contribuição interessante no que se refere aos conceitos <strong>de</strong> interação e<br />
interativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> universo <strong>do</strong> live-electronics, amplian<strong>do</strong> a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong><br />
Rowe.<br />
Paine afirma que os termos interação ou interativida<strong>de</strong> têm si<strong>do</strong> utiliza<strong>do</strong>s <strong>de</strong> forma<br />
abusiva por inúmeros autores, já que a maioria <strong>do</strong>s sistemas são na verda<strong>de</strong> reativos<br />
e não interativos, por falharem em aspectos cognitivos (Paine, 2002). Enten<strong>de</strong> “cognitivo”<br />
como a capacida<strong>de</strong> que os participantes <strong>de</strong> um processo comunicativo têm<br />
para modificar suas estratégias <strong>de</strong> ação. Sua crítica parte da metáfora <strong>do</strong> “mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />
conversação humana” on<strong>de</strong> <strong>do</strong>is indivíduos que conversam <strong>de</strong>senvolvem uma relação<br />
contínua <strong>de</strong> “mão-dupla” em que ocorre a troca <strong>de</strong> informações e auto-regu-
lação <strong>de</strong> seus comportamentos. Se sistemas <strong>de</strong> processamento <strong>de</strong> sinal <strong>de</strong> áudio são<br />
construi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> forma a não se modificarem estruturalmente mas somente reagirem<br />
aos inputs sonoros, Paine afirma que não po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s como sistemas<br />
musicais interativos:<br />
This process of interaction is extremely dynamic, with each of the parties constantly<br />
monitoring the responses of the other and using their interpretation of<br />
the other parties’ input to make alterations to their own respons strategy, picking<br />
up points of personal interest, expanding points of common interest, and<br />
negating poins of contention. (Paine, 2002, p. 297)<br />
À parte <strong>de</strong> tais críticas terem ou não valida<strong>de</strong> estética, ou muitas vezes parecerem<br />
<strong>de</strong>masiadamente rígidas por não consi<strong>de</strong>rarem que sistemas musicais que realizam<br />
processamento <strong>de</strong> sinal sem ser interativos po<strong>de</strong>m ser utiliza<strong>do</strong>s para produzir gran<strong>de</strong>s<br />
obras musicais, vale ressaltar que a proposição <strong>de</strong> tal discussão po<strong>de</strong> contribuir<br />
para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> interessantes investigações no campo da composição e<br />
da cognição musical. Ao <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> seu texto, Paine sugere o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Programação<br />
Orientada a Objetos como paradigma para a elaboração <strong>de</strong> sistemas musicais<br />
interativos.<br />
1. Dois mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> interação apoia<strong>do</strong>s em processos “inteligentes”<br />
Paine consi<strong>de</strong>ra que para a obtenção <strong>de</strong> novas maneiras <strong>de</strong> interação entre instrumento<br />
e máquina, os mo<strong>de</strong>los tradicionais apoia<strong>do</strong>s na dupla cartesiana frequência<br />
versus tempo não são eficientes para <strong>de</strong>senvolver processos <strong>de</strong> interação<br />
dinâmicos. Sen<strong>do</strong> assim, parte <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> Dynamic Morphology <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s<br />
por Wishart e a facilida<strong>de</strong> que tal mo<strong>de</strong>lo tem em ser implementa<strong>do</strong> utilizan<strong>do</strong> a<br />
arquitetura computacional Orientada a Objetos, tanto para as camadas <strong>de</strong> “analise”<br />
<strong>do</strong>s inputs sonoros, como da geração <strong>de</strong> som nas camadas <strong>de</strong> saida <strong>do</strong> sistema computacional.<br />
A programação Orientada à Objetos ou a Mo<strong>de</strong>lagem Orientada à Objetos caracteriza-se<br />
pela tentativa <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lar computacionalmente objetos com características<br />
e formas <strong>de</strong> funcionamento específicos que atuam <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as interações<br />
realizadas pelos objetos e pelo usuário. A programação não é mais um fluxo linear<br />
e contínuo <strong>de</strong> passos a ser executa<strong>do</strong> pelo computa<strong>do</strong>r, mas sim conjuntos (classes)<br />
<strong>de</strong> objetos com características específicas que interagem entre si a partir das<br />
operações realizadas pelo usuário (enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> aqui usuário como uma entida<strong>de</strong><br />
abstrata que po<strong>de</strong> ser inclusive um outro programa). Os objetos são cria<strong>do</strong>s pelo<br />
programa<strong>do</strong>r, que <strong>de</strong>fine suas características <strong>de</strong> funcionamento e formas <strong>de</strong> relacionamento<br />
com outros objetos, e durante o tempo <strong>de</strong> execução <strong>do</strong> programa<br />
po<strong>de</strong>m entrar em operação (serem instancia<strong>do</strong>s), serem elimina<strong>do</strong>s ou serem modifica<strong>do</strong>s<br />
por outros objetos ou por ações <strong>do</strong> usuário <strong>de</strong> forma totalmente dinâmica.<br />
Paine sugere então tal mo<strong>de</strong>lo para implementar um sistema interativo que<br />
311
312<br />
consi<strong>de</strong>re os inputs sonoros, o gestual humano e as modificações acústicas ocorridas<br />
no espaço em um looping-causal <strong>de</strong> interações mutuas on<strong>de</strong> as classes <strong>de</strong> objetos<br />
se modificam <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os inputs <strong>do</strong> ambiente <strong>de</strong> forma não reativa, mas<br />
ativa (com classes <strong>de</strong> objetos modifican<strong>do</strong>-se mutuamente), como proposta <strong>de</strong> aplicação<br />
<strong>do</strong>s conceitos <strong>de</strong> orientação à objetos à obras <strong>do</strong> tipo live-electronics.<br />
Por outro la<strong>do</strong> Di Scipio (2003) sugere um outro mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> sistema interativo<br />
apoian<strong>do</strong>-se em conceitos advin<strong>do</strong>s da Ciência Cognitiva Dinâmica. Tal área caracteriza-se<br />
por estu<strong>do</strong>s que abarcam o entendimento <strong>de</strong> como os processos cognitivos<br />
e a inteligência se relacionam com a biologia; estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> algorítimos genéticos<br />
e suas aplicações; psicologia ecológica; sistemas auto-organiza<strong>do</strong>s, sistemas emergentes,<br />
entre outras.4<br />
Di Scipio <strong>de</strong>screve em seu artigo o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um sistema interativo que<br />
<strong>de</strong>nominou por Audible Eco-Systemic Interface Project, resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> suas experiências<br />
durante a residência composicional no CCMIX (Centre <strong>de</strong> Création Musicale<br />
“Iannis Xenakis”) em 2002. Tal projeto caracteriza-se pela confecção <strong>de</strong> um<br />
sistema interativo que atua apoia<strong>do</strong> em um algorítimo genético conecta<strong>do</strong> à um<br />
gera<strong>do</strong>r <strong>de</strong> som e à um conjunto <strong>de</strong> receptores <strong>de</strong> som (microfones) em um ambiente<br />
específico. Quan<strong>do</strong> o ambiente é perturba<strong>do</strong> acusticamente, ou seja, quan<strong>do</strong><br />
algum som é produzi<strong>do</strong> nesse ambiente ele é capta<strong>do</strong> e interfere no comportamento<br />
das “unida<strong>de</strong>s genéticas” que se modificam por regras simples <strong>de</strong> funcionamento.<br />
Tais regras geram comportamentos caóticos que se auto-organizam em novos padrões<br />
<strong>de</strong> comportamento geran<strong>do</strong> novos sons, produzi<strong>do</strong>s a partir <strong>do</strong> comportamento<br />
das unida<strong>de</strong>s genéticas e sintetiza<strong>do</strong>s pelo gera<strong>do</strong>r <strong>de</strong> som, visan<strong>do</strong> equilibrar<br />
o meio acústico em que o sistema está imerso.<br />
Re<strong>de</strong>s neurais artificiais aplicadas ao live-electronics<br />
Os <strong>do</strong>is procedimentos <strong>de</strong>scritos acima po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s como tentativas <strong>de</strong><br />
produzir obras <strong>do</strong> tipo live-electronics que incluam processos ditos “inteligentes”,<br />
ora por ambientes construi<strong>do</strong>s com o paradigma da Mo<strong>de</strong>lagem Orientada a Objetos<br />
ou por sistemas emergentes auto-organiza<strong>do</strong>s que simulam comportamentos<br />
<strong>de</strong> auto-regulação <strong>de</strong> eco-sistemas. Paralelamente a esses procedimentos, a utilização<br />
<strong>de</strong> re<strong>de</strong>s neurais aplicadas ao campo musical tem cresci<strong>do</strong> nos últimos anos.<br />
Geralmente po<strong>de</strong>mos classificar as re<strong>de</strong>s neurais como classes <strong>de</strong> algorítmos que<br />
po<strong>de</strong>m “apren<strong>de</strong>r”, classificar ou reconhecer relações que acontecem entre sua camada<br />
<strong>de</strong> entrada e <strong>de</strong> saída. São estruturas esquemáticas mo<strong>de</strong>ladas a partir <strong>do</strong> comportamento<br />
<strong>do</strong>s neurônios biológicos (Rowe, 2001). As re<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m ter<br />
aprendiza<strong>do</strong> supervisiona<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> o programa<strong>do</strong>r interfere durante o processo<br />
<strong>de</strong> aprendizagem, corrigin<strong>do</strong> possíveis <strong>de</strong>svios <strong>de</strong> classificação que po<strong>de</strong>m ocorrer<br />
na re<strong>de</strong>; e não supervisiona<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> o próprio processo <strong>de</strong> funcionamento da re<strong>de</strong>
usca encontrar melhores soluções para os processos <strong>de</strong> classificação que ela <strong>de</strong>ve<br />
realizar. O segun<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> pelos computólogos e cientístas cognitivos<br />
como o que melhor se aproxima das capacida<strong>de</strong>s cognitivas humanas (Kröse<br />
and Van <strong>de</strong>r Smagt, 1996).<br />
Já é notoria a capacida<strong>de</strong> que as re<strong>de</strong>s neurais têm em <strong>de</strong>tectar padrões em meio a<br />
fluxos <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s. No campo da música, re<strong>de</strong>s neurais têm si<strong>do</strong> utilizadas <strong>de</strong> forma<br />
satisfatória para a análise musical, <strong>de</strong>tecção <strong>de</strong> frequências, reconhecimento <strong>de</strong> timbres<br />
instrumentais, entre outras aplicações5. Alguns compositores têm utiliza<strong>do</strong><br />
re<strong>de</strong>s neurais para a <strong>de</strong>teção <strong>de</strong> padrões gestuais <strong>de</strong> bailarinos que são utiliza<strong>do</strong>s<br />
para a sintese e processamento em tempo real <strong>de</strong> áudio em obras eletroacústicas interativas.<br />
Porém, são raros os exemplos <strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s neurais em obras <strong>do</strong><br />
tipo live-electronics on<strong>de</strong> as re<strong>de</strong>s atuem interagin<strong>do</strong> diretamente sobre o áudio. Um<br />
motivo para tal ausência centra-se no fato <strong>de</strong> que até poucos anos não era possível<br />
que re<strong>de</strong>s neurais trabalhassem com áudio em tempo real <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> informação que caracteriza um arquivo ou stream <strong>de</strong> áudio digital. A maioria<br />
<strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> re<strong>de</strong> neural necessitava trabalhar com informação reduzida a<br />
níveis muito básicos para que pu<strong>de</strong>sse realizar o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>tecção e classificação<br />
<strong>de</strong> padrões <strong>de</strong> áudio. Os processos <strong>de</strong> redução <strong>de</strong> informação não eram eficientes<br />
para lidar com o áudio digital <strong>de</strong> forma que a camada <strong>de</strong> saída da re<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse gerar<br />
um áudio com qualida<strong>de</strong> musicalmente viável. Em 2006 <strong>do</strong>is pesquisa<strong>do</strong>res <strong>de</strong>senvolveram<br />
um novo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> re<strong>de</strong> neural, não supervisionada, que trabalha com<br />
informações em fluxos temporais <strong>de</strong>nominada Hierarchical Temporal Memory<br />
Maps (HTM) (Hawkins and George, 2006). Tal mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> re<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser efetivo<br />
para a aplicação em obras <strong>do</strong> tipo live-electronics que se configurem como sistemas<br />
musicais interativos.<br />
A proposta básica aqui se centra na idéia <strong>de</strong> utilizar uma Re<strong>de</strong> Neural Artificial não<br />
supervisionada para criar um sistema realmente interativo <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as proposições<br />
<strong>de</strong> Paine e Di Scipio.<br />
A HTM caracteriza-se por uma mo<strong>de</strong>lagem neuronal que se estrutura em camadas<br />
hierarquicamente organizadas. A primeira camada é formada por certo número <strong>de</strong><br />
neurônios artificiais que recebem a informação e são ativadas ou não <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com<br />
configurações <strong>de</strong> ativação <strong>de</strong>terminadas pelo mo<strong>de</strong>lo. Tal camada é ligada em uma<br />
camada superior com número reduzi<strong>do</strong> <strong>de</strong> neurônios que são ativa<strong>do</strong>s se os neurônios<br />
da camada inferior formarem algum tipo <strong>de</strong> padrão ou não. Essa segunda<br />
camada é ligada em uma terceira camada superior também com quantida<strong>de</strong> menor<br />
<strong>de</strong> neurônios que atuam da mesma forma e assim por diante até que se chega a uma<br />
camada final que representa o padrão geral forma<strong>do</strong> em todas as camadas anteriores.<br />
Tal arquitetura é interessante para realizar classificações <strong>de</strong> informações que<br />
são <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>do</strong> tempo. Isso porque a camada inicial é exposta ao padrão <strong>de</strong> entrada<br />
sequencialmente, on<strong>de</strong> cada porção da informação codificada passa por toda<br />
313
314<br />
a camada <strong>de</strong> entrada e assim sucessivamente. Tal procedimento propicial a <strong>de</strong>tecção<br />
<strong>de</strong> padrões temporais pelas camadas superiores que são hierarquisadas em cada<br />
uma das camadas até que a última camada seja ativada ou não para aquele padrão<br />
global que se construiu não-supervisionadamente em cada uma das camadas.<br />
A partir <strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> re<strong>de</strong> neural preten<strong>de</strong>mos investigar suas formas <strong>de</strong> atuação<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> situações musicais, especificamente na interação em tempo real entre<br />
músicos e sistema computacional. Tal mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> re<strong>de</strong> neural po<strong>de</strong> ser treina<strong>do</strong> anteriormente<br />
ou não. Acreditamos que resulta<strong>do</strong>s diferencia<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>m ser obti<strong>do</strong>s<br />
a partir <strong>de</strong>ssas duas situações. A hipótese central é a <strong>de</strong> que se uma re<strong>de</strong> neural for<br />
treinada anteriormente com conjuntos <strong>de</strong> objetos sonoros específicos, po<strong>de</strong>remos<br />
verificar como a re<strong>de</strong> “reagirá” ativamente a partir da situação <strong>de</strong> interação com o<br />
músico. Sen<strong>do</strong> assim, acreditamos que se treinarmos a re<strong>de</strong> neural com eventos sonoros<br />
<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a tipo-morfologia <strong>de</strong>scrita por Schaeffer (1966) po<strong>de</strong>remos verificar<br />
se a re<strong>de</strong> neural conseguirá i<strong>de</strong>ntificar semelhanças tipo-morfológicas a partir<br />
<strong>de</strong> objetos sonoros diferentes <strong>do</strong>s quais a re<strong>de</strong> foi exposta durante a fase <strong>de</strong> treinamento<br />
ou se a re<strong>de</strong> atuará <strong>de</strong> forma diferente disso. Tal investigação po<strong>de</strong> ser interessante<br />
no que tange a produzir comportamentos dinâmicos <strong>de</strong> interação no<br />
campo <strong>do</strong> live-electronics mas que superem a usual sensação que se tem <strong>de</strong> processos<br />
interativos que soam <strong>de</strong> forma “aleatória”. Tais resulta<strong>do</strong>s geralmente obti<strong>do</strong>s<br />
por processos <strong>de</strong> processamento <strong>de</strong> áudio em tempo real não costumam ser muito<br />
efetivos quan<strong>do</strong> se busca investigar formas <strong>de</strong> estruturar o discurso musical principalmente<br />
no universo da Música Eletroacústica. Smalley aponta para o cuida<strong>do</strong><br />
que <strong>de</strong>vemos ter ao consi<strong>de</strong>rar critérios <strong>de</strong> organização nesse universo:<br />
Se os fundamentos naturais da percepção auditiva são ignora<strong>do</strong>s na composição<br />
<strong>de</strong> morfologias, nos processos estruturais e na articulação <strong>de</strong> estruturas espaciais<br />
o ouvinte po<strong>de</strong> instintivamente <strong>de</strong>tectar uma <strong>de</strong>ficiência musical. A<br />
evolução <strong>do</strong> espectro e mudanças dinâmicas entretanto trabalham com tolerâncias<br />
naturalmente <strong>de</strong>terminadas pela experiência auditiva. O trabalho imaginativo<br />
com tais tolerâncias encontra-se no coração das habilida<strong>de</strong>s e<br />
julgamentos composicionais e a falha em apreciar sua importância crucial, freqüentemente<br />
justifica a pobre aceitação <strong>de</strong> obras eletroacústicas. (Smalley, 1986,<br />
p. 68)<br />
Ainda, critérios <strong>de</strong> recorrência, redundância, como aponta<strong>do</strong> por inúmeros autores,<br />
(veja Meyer, 1956), são ferramentas cruciais para o estabelecimento <strong>de</strong> conexões<br />
perceptuais por parte <strong>do</strong> ouvinte e que por sua vez são características centrais para<br />
a obtenção <strong>de</strong> conexão significativa entre ouvinte e obra.<br />
Sen<strong>do</strong> assim, os passos futuros <strong>de</strong>ssa pesquisa centram-se na implementação <strong>de</strong> um<br />
sistema <strong>de</strong> interação em tempo real a partir <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s neurais artificiais; investigação<br />
<strong>do</strong>s tipos <strong>de</strong> comportamento que a re<strong>de</strong> neural <strong>de</strong>senvolverá na interação com instrumentistas<br />
sem treinamento prévio. Posteriormente, preten<strong>de</strong>mos criar um<br />
banco <strong>de</strong> amostras <strong>de</strong> objetos sonoros organiza<strong>do</strong>s <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a tipo-morfolo-
gia <strong>de</strong> Schaeffer para então realizar o treinamento da re<strong>de</strong> neural com tal banco <strong>de</strong><br />
amostras. Por fim, preten<strong>de</strong>mos verificar qual o tipo <strong>de</strong> comportamento que a re<strong>de</strong><br />
neural <strong>de</strong>monstrará na interação com instrumentistas após o treinamento e comparar<br />
os resulta<strong>do</strong>s com os obti<strong>do</strong>s anteriormente.<br />
É evi<strong>de</strong>nte que não temos a intenção ingênua <strong>de</strong> criar um compositor virtual ou<br />
mesmo dar soluções para questões ontológicas ou epistemológicas no ambito <strong>do</strong><br />
conhecimento musical ou criação musical, mas o que nos interessa é propor uma solução<br />
às criticas apontadas por Paine e Di Scipio no que se refere a processos interativos<br />
no campo <strong>do</strong> live-electronics. Também preten<strong>de</strong>mos oferecer um mo<strong>de</strong>lo<br />
<strong>de</strong> interação homem x máquina, para usar os termos <strong>de</strong> Rowe, que fuja da simples<br />
“aleatorieda<strong>de</strong>” ao ser tipo-morfologicamente (auto-)orientada.<br />
1 Para uma visão interessante sobre o assunto, confira (Dias, 2006).<br />
2 Processos presentes na maioria das aplicações ou linguagens <strong>de</strong> processamento <strong>de</strong> áudio<br />
em tempo real como Max/MSP, PureData ou SuperColli<strong>de</strong>r.<br />
3 Tal afirmação <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rada com cautela já que muitas vezes soam preconceituosa<br />
<strong>de</strong>mais por indiretamente colocar em xeque inúmeras obras <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s compositores.<br />
4 Para uma visão panorâmica sobre a Ciência Cognitiva Dinâmica ver (Varela et al., 2003).<br />
Sobre Psicologia Ecológica ver (Gibson, 1966, 1979) e (Michaels and Carello, 1981). Sobre<br />
auto-organização ver (Ashby, 1962) e sobre emergentismo ver (Emmeche, 1994).<br />
5 Para algumas aplicações já implementadas ver (Rowe, 2001).<br />
Agra<strong>de</strong>cimentos<br />
Gostariamos <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>çer ao Instituto <strong>de</strong> <strong>Artes</strong> da Unesp on<strong>de</strong> a pesquisa esta sen<strong>do</strong> realizada,<br />
bem como ao Laboratório <strong>de</strong> Pesquisa e Produção Sonora da Universida<strong>de</strong> Estadual<br />
<strong>de</strong> Maringá (LAPPSO/UEM) on<strong>de</strong> as implementações, testes e <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> equipamento são realiza<strong>do</strong>s.<br />
Referências<br />
Ashby, W. R. (1962). Principles of the self-organising systems. In H. Von Foerster and G. W.<br />
Zopf Jr. (Eds.), Principles of self-organisation, pp. 255–278. Oxford: Pergamon.<br />
Di Scipio, A. (2003). ‘sound is the interface’: from interactive to ecosystemic signal processing.<br />
Organised Sound 8 (3), 269–277.<br />
Dias, H. P. G. (2006). A “querela <strong>do</strong>s tempos”: Um estu<strong>do</strong> sobre as divergências estéticas na<br />
música eletroacústica mista. Master’s thesis, Instituto <strong>de</strong> <strong>Artes</strong> da Unesp, São Paulo.<br />
Emmeche, C. (1994). The Gar<strong>de</strong>n in the Machine: The Emerging Science of Artificial Life.<br />
Princeton: Princeton Unversity Press.<br />
Gibson, J. J. (1966). The Senses Consi<strong>de</strong>red as Perceptual Systems. Hillsdate: Houghton Mifflin<br />
Company.<br />
Gibson, J. J. (1979). Ecological Approach to Visual Perception. Hillsdate: Lawrence Erlbaum<br />
Associates Publishers.<br />
315
316<br />
Hawkins, J. and D. George (2006). Hierarchical temporal memory: concepts, theory and terminology.<br />
Numenta Inc., 1–20.<br />
Kröse, B. and P. Van <strong>de</strong>r Smagt (1996). An introduction to Neural Networks. Amsterdam:<br />
The University of Amsterdam.<br />
Menezes, F. (1999). Atualida<strong>de</strong> Estética da Música eletroacústica. São Paulo: Fundação Editora<br />
UNESP.<br />
Menezes, F. (2002). For a morphology of interaction. Organised Sound 7(3), 305–311.<br />
Meyer, L. B. (1956). Emotion and Meaning in Music. Chicago: Chicago University Press.<br />
Michaels, C. F. and C. Carello (1981). Direct Perception. Englewood Cliffs: Prentice-Hall<br />
Inc.<br />
Paine, G. (2002). Interactivity, where to from here? Organised Sound 7 (3), 295–304.<br />
Risset, J.-C. (1999). Composing in real-time? Contemporary Music Review 18 (3), 31–39.<br />
Rowe, R. (1993). Interactive Music Systems. Massachusetts: The MIT Press.<br />
Rowe, R. (2001). Machine Musicianship. Massachusetts: The MIT Press.<br />
Schaeffer, P. (1966). Traité <strong>de</strong>s Objets Musicaux. Paris: Éditions du Seuil.<br />
Smalley, D. (1986). Spectro-morphology and structuring processes. In S. Emmerson (Ed.),<br />
The language of Electroacoustic Music, pp. 61–93. New York: Harwood aca<strong>de</strong>mic publishers.<br />
Varela, F., E. Thompson, and E. Rosch (2003). A mente Incorporada. Porto Alegre: Artmed.
Som, sinal, movimento:<br />
novas modalida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> fazer/pensar música<br />
Guilherme Bertissolo<br />
guilhermebertissolo@gmail.com<br />
Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Música<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia<br />
Resumo<br />
Esse artigo trata <strong>de</strong> duas abordagens para a interação entre computa<strong>do</strong>r e intérprete humano<br />
no ato <strong>de</strong> se fazer música. Ao se valer <strong>de</strong> <strong>do</strong>is exemplos <strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong>ssas<br />
abordagens em obras recentes e das <strong>de</strong>terminantes possibilitadas por estas experiências,<br />
esse artigo propõe discutir como o ciclo da inter-subjetivida<strong>de</strong> (que tradicionalmente<br />
contempla compositor-intérprete-ouvinte) po<strong>de</strong> ser quebra<strong>do</strong> ou pelo menos modifica<strong>do</strong><br />
ao se interferir diretamente no objeto sonoro (a partir <strong>de</strong> sensores coloca<strong>do</strong>s em intérpretes,<br />
bailarinos ou qualquer outro sujeito pertencente ao contexto da obra) ou tornan<strong>do</strong><br />
o computa<strong>do</strong>r um executante em conjunto com um instrumentista (no caso <strong>do</strong><br />
processamento por software através <strong>de</strong> microfones). A relação inter-subjetiva <strong>de</strong> criação<br />
<strong>de</strong> uma performance musical, estabelecida entre compositor e intérprete (on<strong>de</strong> muitas<br />
indicações são claramente subjetivas) passa a incluir um objeto estranho, incapaz <strong>de</strong><br />
reconhecer/possuir subjetivida<strong>de</strong>.<br />
À guisa <strong>de</strong> introdução e uma <strong>de</strong>limitação <strong>do</strong> escopo<br />
O século XX viu eclodir uma série <strong>de</strong> tecnologias que <strong>de</strong>slocaram continuamente<br />
os paradigmas da teoria, da educação, da composição e, por conseguinte, da interpretação<br />
musicais. Des<strong>de</strong> os anseios <strong>do</strong>s futuristas pelos i<strong>do</strong>s <strong>de</strong> 1913 e suas parafernálias<br />
mo<strong>de</strong>rnas, até o advento <strong>do</strong>s primeiros instrumentos eletrônicos e a gran<strong>de</strong><br />
virada paradigmática p¡ropiciada pela disseminação e utilização em massa <strong>do</strong>s computa<strong>do</strong>res<br />
pessoais, vemos uma constante modificação nos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> se pensar e<br />
fazer música no seio da criação contemporânea. A música eletroacústica1 consoli<strong>do</strong>u-se<br />
como uma prática profícua e fundamental <strong>do</strong> métier <strong>do</strong> compositor, sen<strong>do</strong><br />
uma importante ferramenta para a composição musical hodierna. Outros exemplos<br />
da influência uso <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r nas práticas musicais são os avanços provenientes<br />
<strong>de</strong> alguns recortes, tal como recursos da “musicologia computacional”<br />
(computational musicology), que utiliza bases <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s musicais para análises <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> repertórios em dimensões sobre-humanas para aplicação em teoria e composição<br />
musicais; e a análise espectral, que permite a geração <strong>de</strong> material musical<br />
para a composição, seja para instrumentos acústicos, seja para meios eletroacústicos.<br />
Ao se pensar/fazer música com o computa<strong>do</strong>r, <strong>de</strong>paramo-nos com um conceito<br />
317
318<br />
amplamente aplica<strong>do</strong> em áreas distintas <strong>do</strong> saber, tais como engenharias, ciência<br />
da computação, entre outras, a saber, o tempo real. Uma <strong>de</strong>finição suficientemente<br />
satisfatória para o nosso escopo é a <strong>de</strong> Dodge e Jersey:<br />
“When the calculation rate equals the sampling rate, a computer synthesizer is<br />
said to operate in ‘real time’. Without real-time operation, a computer music<br />
system cannot be used for live performance. For the musician, real-time operation<br />
is preferable because it drastically reduces the amount of time between instructing<br />
the computer and hearing the results (feedback time)” (Dodge; Jerse<br />
1997, p. 70)2<br />
Nesse senti<strong>do</strong>, a relação entre computa<strong>do</strong>r e intérprete humano é realizada no ato<br />
<strong>do</strong> fazer música, culminan<strong>do</strong> em uma série <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminantes que trataremos a seguir,<br />
oportunamente. Destaquemos que, <strong>de</strong>ntre as inúmeras possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> se<br />
abordar essa relação entre computa<strong>do</strong>r e o ser humano no ato <strong>de</strong> se fazer música (ou<br />
seja, em tempo real), pelo menos duas <strong>de</strong>las emergem com consi<strong>de</strong>ráveis genealogias<br />
e inferem, ao nosso ver, em questões cruciais nos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> fazer e pensar musicais.<br />
Uma <strong>de</strong>las trata <strong>do</strong> movimento aplica<strong>do</strong> à música através <strong>de</strong> sensores e a<br />
outra trata <strong>do</strong> som como sinal, capta<strong>do</strong> através <strong>de</strong> microfones no ato da execução.<br />
Buscamos com esse artigo traçar uma quadro a partir <strong>de</strong>ssas (pelo menos) duas<br />
abordagens possíveis, intentan<strong>do</strong> ao fim relatar as problemáticas e <strong>de</strong>terminantes<br />
oriundas da quebra <strong>do</strong> ciclo <strong>de</strong> intersubjetivida<strong>de</strong> opera<strong>do</strong> na inserção da máquina<br />
no seio da criação musical contemporânea em <strong>do</strong>is casos <strong>de</strong> obras compostas pelo<br />
autor.<br />
O ciclo <strong>de</strong> intersubjetivida<strong>de</strong> presente em uma obra musical <strong>de</strong> extração <strong>de</strong> concerto<br />
po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> em pelo menos três instâncias: a <strong>do</strong> compositor, a <strong>do</strong> intérprete<br />
e a <strong>do</strong> ouvinte. No ato <strong>de</strong> se fazer música, essas três instâncias estão<br />
diretamente envolvidas e diversos processos <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> conceitual ocorrem<br />
para levar a cabo o contexto poético da obra musical. Vejamos um pouco sobre a solidarieda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> conceitos, como <strong>de</strong>scrita por Sousa Santos:<br />
“A solidarieda<strong>de</strong> [<strong>de</strong> conceitos] é o conhecimento obti<strong>do</strong> no processo, sempre<br />
inacaba<strong>do</strong>, <strong>de</strong> nos tornarmos capazes <strong>de</strong> reciprocida<strong>de</strong> através da construção e<br />
<strong>do</strong> reconhecimento da intersubjectivida<strong>de</strong>. […] É um campo simbólico em que<br />
se <strong>de</strong>senvolvem territorialida<strong>de</strong>s e temporalida<strong>de</strong>s específicas que nos permitem<br />
conceber o nosso próximo numa teia intersubjectiva <strong>de</strong> reciprocida<strong>de</strong>s. […] A<br />
nova subjectivida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> menos da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>do</strong> que da reciprocida<strong>de</strong>”<br />
(Santos 2000, p. 81).<br />
Em uma obra musical, diversas indicações são estritamente subjetivas e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m<br />
<strong>de</strong>ssa relação <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> e intersubjetivida<strong>de</strong>. O <strong>do</strong>mínio das intensida<strong>de</strong>s talvez<br />
seja o aspecto musical que sofra o maior impacto nesse contexto. Quantos F<br />
po<strong>de</strong>m existir em diferentes interpretações? E quantos p? Outras indicações <strong>de</strong> caráter<br />
e expressão também <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da subjetivida<strong>de</strong> <strong>do</strong> intérprete, tais como, para<br />
citar apenas um exemplo, um fff tutta la forza.
Destarte, ao inserirmos o computa<strong>do</strong>r no ato <strong>de</strong> fazer música (tempo real), estamos<br />
lidan<strong>do</strong> com um elemento que não é porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>. Não posso instruir<br />
o computa<strong>do</strong>r com da<strong>do</strong>s que não sejam estritamente quantificáveis sob a égi<strong>de</strong><br />
matemática. Nessa questão resi<strong>de</strong> a maior problemática da interação: as mesmas<br />
indicações que são dadas ao intérprete e tão eficazes nos contextos composicionais,<br />
não po<strong>de</strong>m ser dadas nos mesmos termos para a máquina. Nesse <strong>do</strong>mínio, o reconhecimento<br />
<strong>de</strong> padrões métricos, por exemplo, é um aspecto <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>,<br />
já que o fenômeno temporal na música é extremamente complexo e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
<strong>de</strong> muitas variáveis3 .<br />
Preten<strong>de</strong>mos com esse artigo, a partir <strong>de</strong> duas abordagens para interação, discutir<br />
o impacto da quebra <strong>de</strong>sse ciclo <strong>de</strong> intersubjetivida<strong>de</strong> oriunda da inserção <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r<br />
no ato <strong>de</strong> se fazer música. Ressaltemos que não faz parte <strong>do</strong> escopo as especificida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> implementação, problemáticas <strong>de</strong> código, questões relacionadas<br />
ao software ou à plataforma, mas sim a preocupação com as relações consequentes<br />
<strong>de</strong>sse processo no ciclo da composição.<br />
Duas Abordagens para a Interação Humano/Computa<strong>do</strong>r<br />
Esse é o Som, por Sinal<br />
Uma das possíveis abordagens para a interação opera tratan<strong>do</strong> o som como sinal,<br />
através <strong>de</strong> microfones. Destarte, o som é trata<strong>do</strong> enquanto fenômeno físico, conforme<br />
as condições da acústica musical, onda sonora manifesta como sinal discreto,<br />
passível <strong>de</strong> ser trata<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> suas frequências, seus parciais, sua intensida<strong>de</strong>,<br />
sua numeração midi (Henrique 2002). Permite-se <strong>de</strong>ssa maneira o processamento <strong>do</strong><br />
som em tempo real sob diversos aspectos.<br />
Essa abordagem representa talvez a prática mais comum <strong>de</strong>ssa que conhecemos hoje<br />
genericamente como Música Interativa (Interactive Music). Esse fazer é possibilita<strong>do</strong><br />
pelo reconhecimento <strong>de</strong> padrões em software4 (alturas, amplitu<strong>de</strong>s, score-follower),<br />
culminan<strong>do</strong> em uma consi<strong>de</strong>rável expansão <strong>do</strong>s potenciais instrumentais e<br />
<strong>do</strong>s materiais musicais. Algumas estratégias são específicas <strong>de</strong>ssa prática, e carregam<br />
consigo suas <strong>de</strong>terminantes. Como po<strong>de</strong>mos ler em Winkler:<br />
“Compositional strategies for interactive works differ from strategies for other<br />
compositions in that they are always governed by the relationship between humans<br />
and computers. Will the computer part imitate the performer or will it<br />
have its own distinct character? […] the human/computer relationship is a central<br />
theme of the work; musical concepts and paradigms of interaction go hand<br />
in hand. Free<strong>do</strong>m and control, pre<strong>de</strong>termined or improvisational, communication<br />
and response, participation and adaptation – these are the issues that<br />
drive interactive compositions and create the inevitable drama that unfolds by<br />
the very nature of the technology itself” (Winkler 2001, p. 260).5<br />
319
320<br />
Essas estratégias <strong>de</strong>vem ocorrer <strong>de</strong> maneira que o computa<strong>do</strong>r seja instruí<strong>do</strong> a reagir<br />
conforme os mo<strong>do</strong>s cita<strong>do</strong>s por Winkler e muitos outros, crian<strong>do</strong> um campo infinito<br />
<strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> relação em contextos poéticos. A gran<strong>de</strong> questão é<br />
justamente a instrução. As principais instruções possíveis dizem respeito às frequências<br />
(ou números MIDI) <strong>do</strong>s sons capta<strong>do</strong>s (em um processo <strong>de</strong> reconhecimento<br />
e seleção), limiares <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> em uma <strong>de</strong>terminada passagem (que dizer<br />
respeito ao âmbito da dinâmica musical no ato da interpretação) e a ferramenta <strong>do</strong><br />
score-follower (que insere uma partitura, geralmente em formato MIDI, sobre a qual<br />
o programa irá realizar comparações e disparar eventos em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s pontos<br />
pré-estabeleci<strong>do</strong>s). Cada uma das ferramentas permite um menor ou maior grau<br />
<strong>de</strong> rigor e <strong>de</strong>terminação.<br />
As metáforas <strong>de</strong> movimento e o movimento na música<br />
Não há música sem movimento. Música e movimento estiveram intrinsecamente<br />
relacionadas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> tempos remotos. O movimento é um elemento sem o qual a<br />
música não po<strong>de</strong> existir.6 Em alguns contextos música e movimento não serão categorias<br />
conceituais distintas; citemos como um exemplo a capoeira e outras manifestações<br />
culturais não-oci<strong>de</strong>ntais, que não tratam música e movimento como<br />
categorias conceitais in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. Mesmo a noção relacionada com a comumente<br />
nomeada “música pura” (ou “música absoluta”), na esperança iluminista <strong>de</strong> uma<br />
música <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> contexto, sofre hoje uma crítica irrefutável (Chua 1999).7<br />
A abordagem da música como movimento nos remete a um campo <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> na<br />
teoria musical <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> um século, conheci<strong>do</strong> hoje como energética. A energética<br />
trata das qualida<strong>de</strong>s dinâmicas da música, propon<strong>do</strong> a interpretação simbólica<br />
como alternativa ao formalismo, reivindican<strong>do</strong> a necessida<strong>de</strong> da teoria da intersubjetivida<strong>de</strong>.<br />
O teórico mais representativo e talvez mais conheci<strong>do</strong> seja ernst<br />
kurth, que reivindicava um tipo <strong>de</strong> energia psicológica (psíquica) para a música. A<br />
energética, em linhas gerais, trata noção <strong>de</strong> movimento em música a partir das forças<br />
que caracterizam o fenômeno musical (Rothfarb 2002).<br />
Uma busca sistemática po<strong>de</strong> ser realizada conceitualmente no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> se moldar<br />
o discurso e/ou apreen<strong>de</strong>r como a mente humana processa o sinal musical, ambas<br />
<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> tradicional (não necessariamente com o uso <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r). O contexto<br />
no qual a energética se insere (início <strong>do</strong> século XX) não dispunha <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r,<br />
mas nem por isso <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> aplicar as noções <strong>de</strong> movimento em música em obras<br />
instrumentais <strong>do</strong> século XIX.<br />
Durante minha pesquisa <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong>, que culminou na dissertação po(i)ética <strong>do</strong><br />
movimento: a análise laban <strong>de</strong> movimento como propulsora <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s composicionais<br />
(Bertissolo 2009a), busquei a criação <strong>de</strong> uma obra que estivesse no limite<br />
entre as práticas <strong>de</strong> música e <strong>de</strong> dança (questionan<strong>do</strong> as fronteiras entre som e mo-
vimento)8. Para isso lançamos mão <strong>do</strong> sistema laban/bartenieff 9 para realizarmos<br />
uma série <strong>de</strong> processos <strong>de</strong> criação e notação <strong>do</strong> movimento em relação direta com<br />
a realida<strong>de</strong> poética da obra musical. Atualmente temos busca<strong>do</strong>, na pesquisa em<br />
nível <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> na universida<strong>de</strong> fe<strong>de</strong>ral da bahia, a investigação entre categorias<br />
conceitais genéricas entre som e movimento no contexto da capoeira (on<strong>de</strong> música<br />
e movimento não são conceitualmente distintas).<br />
Entretanto, com o advento e a atual disseminação e pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aplicabilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>do</strong>s sensores <strong>de</strong> movimento, a noção <strong>de</strong> movimento em música foi implodida, extrapolan<strong>do</strong><br />
as modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> se perceber e, acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, <strong>de</strong> se produzir a música.<br />
Esse cenário nos coloca diante <strong>de</strong> um campo prolífico e sem prece<strong>de</strong>ntes na história<br />
<strong>do</strong> fazer e pensar a música. O movimento mapea<strong>do</strong> com um acelerômetro (como<br />
o controle Ninten<strong>do</strong> Wii, por exemplo, facilmente encontra<strong>do</strong> no merca<strong>do</strong>), possibilita<br />
a interação e a produção musical partin<strong>do</strong> diretamente <strong>do</strong> movimento, sem<br />
a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> filtros metafóricos conceituais. Uma abordagem sobre<br />
os sensores, suas aplicabilida<strong>de</strong>s e potencialida<strong>de</strong>s foi realizada por Wan<strong>de</strong>rley<br />
(2006), on<strong>de</strong> encontramos relatadas uma série <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimentos recentes nesse<br />
senti<strong>do</strong>.<br />
Po<strong>de</strong>mos, a partir daí, lançar mão <strong>de</strong> um leque amplamente diversifica<strong>do</strong> <strong>de</strong> ferramentas<br />
que po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>slocar a prática musical e possibilitar novas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
criação e interpretação musicais. Como po<strong>de</strong>mos observar no trecho capítulo intitula<strong>do</strong><br />
Making Music through movement, <strong>de</strong> Winkler:<br />
“Does human movement have constraints similar to those of musical instruments,<br />
which might suggest something akin to idiomatic expression? Is there a<br />
distinct character to the movement of the hands? What is finger music? What<br />
is running music? What is the sound of one hand clapping? These questions<br />
may be answered by allowing the physicality of movement to impact material<br />
and processes. These relationships may be established by viewing the body and<br />
space as musical instruments, free from the associations of acustic instruments”<br />
(Winkler 2001, p. 319).10<br />
São inimagináveis os efeitos que o mapeamento <strong>do</strong> movimento po<strong>de</strong> causar na prática<br />
musical e na composição <strong>de</strong> obras interativas. Os da<strong>do</strong>s <strong>de</strong> qualquer movimento<br />
po<strong>de</strong>m ser mapea<strong>do</strong>s nas três dimensões (vertical, horizontal e sagital) a partir da<br />
sua aceleração, retornan<strong>do</strong> parâmetros numéricos proporcionais à aceleração da<br />
gravida<strong>de</strong>. Assim, qualquer movimento po<strong>de</strong> ser mapea<strong>do</strong> e po<strong>de</strong>, por conseguinte,<br />
ser propulsor <strong>de</strong> contextos poéticos ou permitir a análise <strong>de</strong> uma interpretação sob<br />
a égi<strong>de</strong> <strong>do</strong>s movimentos.<br />
As <strong>de</strong>terminantes <strong>de</strong>sses contextos aplica<strong>do</strong>s em <strong>do</strong>is casos<br />
O sinal e o Músico: Devir<br />
A obra Devir, para violão e eletrônica em tempo raro op. 18,11 foi composta em<br />
321
322<br />
2007 e estreada no mesmo ano por cristiano sousa (violão) e o compositor (computa<strong>do</strong>r).<br />
Nessa obra, usamos computa<strong>do</strong>r operan<strong>do</strong> em tempo real através da captação<br />
<strong>do</strong> som <strong>do</strong> instrumento por um microfone (na primeira das abordagens<br />
tratadas anteriormente).<br />
A interação entre músico e computa<strong>do</strong>r nessa obra ocorre tanto pelo reconhecimento<br />
<strong>de</strong> notas (através da seleção <strong>de</strong> números midi), quanto pelo reconhecimento<br />
<strong>de</strong> ataques e intensida<strong>de</strong>s. Logo nos primeiros compassos da partitura (figura 1)<br />
vemos a indicação das caixas <strong>de</strong> disparos (bangs), realiza<strong>do</strong>s pelo reconhecimento<br />
<strong>do</strong> ataque <strong>do</strong>s acor<strong>de</strong>s pelo intérprete. Esses ataques <strong>do</strong> intérprete disparam sons<br />
pré-processa<strong>do</strong>s, capta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> violão e processa<strong>do</strong>s em estúdio previamente, sortea<strong>do</strong>s<br />
em tempo real (<strong>de</strong> maneira que cada interpretação é única). 12 Logo no compasso<br />
5, vemos um disparo <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r em uma nota: o fá susteni<strong>do</strong> 4. Como<br />
essa nota ainda não havia apareci<strong>do</strong> antes, basta um simples reconhecimento da<br />
frequência para o eventual disparo <strong>do</strong>s sons conforme o sorteio já <strong>de</strong>scrito.<br />
Aqui nos <strong>de</strong>paramos com um problema, que diz respeito justamente ao reconhecimento<br />
da frequência pelo computa<strong>do</strong>r no caso <strong>de</strong> notas que não estão aparecen<strong>do</strong><br />
pela primeira vez na partitura13. To<strong>do</strong> ataque <strong>de</strong> um som dispen<strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong><br />
quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> energia e é, a um só tempo, um momento mais instável <strong>de</strong> um som<br />
e o maior responsável pelo reconhecimento <strong>do</strong> seu timbre (Henrique 2002). Com<br />
isso, na medida em que fosse necessário o reconhecimento <strong>de</strong> uma nota quan<strong>do</strong> da<br />
sua terceira aparição, por exemplo, é necessário instruir o computa<strong>do</strong>r em relação<br />
a <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar a porção <strong>de</strong> energia dispendida no ataque <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada nota<br />
no contexto instrumental (senão, a cada ataque o computa<strong>do</strong>r reconhecerá uma<br />
<strong>de</strong>zena <strong>de</strong> notas diferentes). Mudanças <strong>de</strong> variação <strong>de</strong> ataque, nuances expressivas<br />
e outras <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m interpretativas também precisam ser levadas em conta,<br />
<strong>de</strong> maneira que é necessária uma tomada <strong>de</strong> consciência da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> previsão<br />
<strong>do</strong> contexto interpretativo e sua eventual correção a instrução computacional<br />
(mais uma vez: o computa<strong>do</strong>r não possui subjetivida<strong>de</strong>).<br />
Mesmo lançan<strong>do</strong> mão <strong>de</strong> uma música escrita, essas problemáticas não po<strong>de</strong>m ser<br />
negligenciadas no ato <strong>de</strong> se fazer música. Imagine-se qual o impacto disso na interação<br />
no caso <strong>de</strong> obras mais abertas, em caráter improvisatório. Como aliar as indicações<br />
<strong>do</strong>s intérpretes com as intruções <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r?<br />
Processos perceptivos como esse são apenas a superfície <strong>de</strong> uma problemática que<br />
está no cerne da questão na relação computa<strong>do</strong>r/humano. A percepção é um fenômeno<br />
complexo e necessário para o entendimento musical, sem o qual o ato <strong>de</strong><br />
se fazer música não po<strong>de</strong> acontecer. É preciso estar atento para não reduzir a condição<br />
interpretativa em uma obra interativa para os termos computacionais, sob<br />
pena <strong>de</strong> se estar negligencian<strong>do</strong> um aspecto fundamental da experiência musical.
Figura 1 — Devir partitura: trecho inicial<br />
Figura 2 — Devir puredata patch 1<br />
Na seção central da obra, usamos um tipo <strong>de</strong> processo em que o reconhecimento<br />
das notas é ao mesmo tempo controle (instrução) e material para o processamento<br />
em tempo real (objeto sonoro a ser processa<strong>do</strong>). Aquilo que é toca<strong>do</strong> é reconheci<strong>do</strong>,<br />
grava<strong>do</strong> e, logo após, dispara<strong>do</strong>, partin<strong>do</strong> unicamente <strong>do</strong> reconhecimento <strong>do</strong><br />
sinal.<br />
Nesse senti<strong>do</strong>, partimos da contraposição entre as noções <strong>de</strong> tempo. Escrevemos<br />
uma partitura com indicações <strong>de</strong> tempo musical (figura 3) e realizamos instruções<br />
para o computa<strong>do</strong>r em tempo cronométrico (figura 4). O choque entre as realida-<br />
323
324<br />
<strong>de</strong>s temporais ontologicamente distintas e os <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong>sse<br />
processo geram uma dialética <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> interesse musical. A impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alinhamento<br />
entre o “tempo <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r” e <strong>do</strong> “tempo <strong>do</strong> músico” gera um contexto<br />
musical <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> interesse, justamente pelo contraste gera<strong>do</strong> ao se sobrepôr<br />
concepções/noções tão diversas <strong>do</strong> fenômeno temporal em música.<br />
Figura 3 — Devir partitura: seção central<br />
Nesse caso, o que é toca<strong>do</strong> pelo músico influencia o que será grava<strong>do</strong> e dispara<strong>do</strong><br />
pelo computa<strong>do</strong>r, ao mesmo tempo em que é influencia<strong>do</strong> pela sua resposta,<br />
crian<strong>do</strong> um a<strong>de</strong>nsamento gradual da textura. Aqui, há uma potencialização da capacida<strong>de</strong><br />
interpretativa, a partir da extrapolação das estratégias <strong>de</strong> interação operada<br />
pelo alinhamento entre o controle e o material, oriun<strong>do</strong>s <strong>de</strong> uma única fonte sonora.<br />
O movimento como propulsor <strong>de</strong> uma textura sonora:<br />
e-PORMUNDOS AFETO<br />
O espetáculo <strong>de</strong> dança telemática e-PORMUNDOS AFETO14 foi estrea<strong>do</strong> em Fortaleza,<br />
Natal e Barcelona ao mesmo tempo, transforma<strong>do</strong> em palco único e transmiti<strong>do</strong><br />
via web no dia 06 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2009. A direção cênica ficou por conta <strong>de</strong><br />
Ivani Santana (Brasil) e Konic Thr (Barcelona). A música para esse espetáculo foi<br />
gerada por mim em tempo real, a partir <strong>de</strong> microfones (conforme abordagem suprecitada),<br />
através <strong>de</strong> um acelerômetro (o Ninten<strong>do</strong> Wii) <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> software PureData.
Figura 4 — Devir puredata patch 2<br />
Foi acopla<strong>do</strong> um <strong>de</strong>sses sensores em uma bailarina, <strong>de</strong> maneira que sua movimentação<br />
<strong>de</strong>sse vazão a uma série <strong>de</strong> processos musicais em tempo real. Essa abordagem<br />
permite mapear os movimentos em nas três dimensões, retornan<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s<br />
discretos.<br />
Na segunda cena <strong>do</strong> espetáculo, utilizamos a aceleração em cada uma das dimensões<br />
para o sorteio <strong>de</strong> classes <strong>de</strong> samples e sons pré-grava<strong>do</strong>s. Cada dimensão agrupou<br />
uma família <strong>de</strong> sons a serem sortea<strong>do</strong>s em tempo real conforme o <strong>de</strong>slocamento da<br />
bailarina em cada uma das dimensões e com que intensida<strong>de</strong> ele ocorria.<br />
Aqui, usamos o computa<strong>do</strong>r em consonância direta com o movimento corporal da<br />
bailarina, <strong>de</strong> maneira mais literal. Em outras partes da obra usamos processos menos<br />
literais para geração <strong>de</strong> material musical (como por exemplo, para <strong>de</strong>terminar a<br />
banda <strong>de</strong> filtragem em um sintetiza<strong>do</strong>r subtrativo). A interpretação musical <strong>do</strong>s<br />
movimentos da bailarina foi transformada da<strong>do</strong>s e posteriormente usada para o<br />
sorteio realização <strong>de</strong> uma textura a partir <strong>de</strong> três vias <strong>de</strong> sorteio. A bailarina não<br />
possuía qualquer instrução musical prévia, tampouco um treinamento musical na<br />
acepção tradicional <strong>do</strong> termo. Até que ponto as noções musicais (prévias) da bai-<br />
325
326<br />
Figura 5 — e-PORMUNDOS AFETO<br />
larina po<strong>de</strong>m filtrar os da<strong>do</strong>s <strong>de</strong> maneira nortear o fenômeno sonoro? Existe a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> se pensar em termos conceitualmente musicais em uma prática como<br />
essa? Quais são as conseqüências disso na prática musical ou na exploração <strong>de</strong>ssa ferramenta<br />
em uma obra instrumental? É importante o reconhecimento por parte <strong>do</strong><br />
intérprete <strong>do</strong>s mecanismos estritamente musicais mobiliza<strong>do</strong>s no ato da perfomance?<br />
Quais são esses mecanismos?<br />
Muitas <strong>de</strong>ssas perguntas ainda não foram respondidas, da<strong>do</strong> o pouco tempo transcorri<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o advento <strong>de</strong>ssa abordagem. O que po<strong>de</strong>mos certamente afirmar é<br />
que o mapeamento <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> um músico/intérprete e a utilização <strong>de</strong>sses<br />
da<strong>do</strong>s em tempo real para controle, e geração <strong>de</strong> material se configura como um<br />
elemento que propõe novas modalida<strong>de</strong>s para o fazer musical e, consequentemente,<br />
o pensar a música. Música que não se manifesta necessariamente em termos<br />
musicais.
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
A partir das experiências musicas realizadas tanto no âmbito da música instrumental,<br />
quanto no âmbito da música interativa, percebemos a necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ciclo<br />
<strong>de</strong> intersubjetivida<strong>de</strong> presente no ato <strong>de</strong> se fazer música. Esse ciclo está no centro<br />
<strong>de</strong> uma prática que remonta a tempos muito longínquos e permite contextos poéticos<br />
musicais enormemente sofistica<strong>do</strong>s.<br />
Não nos parece um bom caminho que haja uma inclinação das noções mobilizadas<br />
no ato <strong>de</strong> se fazer música em direção ao contexto <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r. Este, por conta<br />
da sua natureza, não possui subjetivida<strong>de</strong> e não é capaz <strong>de</strong> dar vazão a uma parte<br />
fundamental no fenômeno sonoro.<br />
Mostraram-se necessárias as estratégias para a efetivação da relação intersubjetiva<br />
na prática composicional, <strong>de</strong> maneira específica. Nesse senti<strong>do</strong>, precisamos avançar<br />
em direção à potencialização das modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interação, mas sem per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista<br />
a complexa teia <strong>de</strong> processos cognitivos mobiliza<strong>do</strong>s no ato <strong>de</strong> se fazer e pensar a<br />
música.<br />
1 Por música eletroacústica estamos aqui nos referin<strong>do</strong> a várias práticas que são genericamente<br />
nominadas por esse “guarda-chuva” conceitual. Práticas como a da Música Concreta<br />
(Musique Concrète), Música Eletrônica (Elektronische Musik), Música Acusmática, Música<br />
Interativa, Eletrônica ao vivo (Live Electronics), ví<strong>de</strong>o-arte, bem como diversas outras manifestações<br />
são referidas nessa plêia<strong>de</strong>.<br />
2 “Quan<strong>do</strong> a taxa <strong>de</strong> cálculo é igual à taxa <strong>de</strong> amostragem, diz-se que um sintetiza<strong>do</strong>r computacional<br />
opera em tempo-real. Sem uma operação em tempo real, um sistema <strong>de</strong> computação<br />
musical não po<strong>de</strong> ser usa<strong>do</strong> para uma performance ao vivo. Para o músico, a operação<br />
em tempo-real é preferível porque ela reduz drasticamente a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tempo entre a<br />
instrução <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r e a audição <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s (tempo <strong>de</strong> feedback)” (Dodge; Jerse<br />
1997, p. 7 – tradução nossa).<br />
3 Mesmo sen<strong>do</strong> um aspecto bastante difícil <strong>de</strong> abstrair, inferir e em até certo ponto negligencia<strong>do</strong><br />
na teoria da música, a teoria <strong>do</strong> ritmo tem recebi<strong>do</strong> uma série <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimentos<br />
bastante consistentes nos últimos anos (principalmente a partir da década <strong>de</strong> 1980). Uma<br />
genealogia bastante perspicaz po<strong>de</strong> ser observada nos artigos <strong>de</strong> Caplin (2002) e Lon<strong>do</strong>n<br />
(2002), que tratam respectivamente das teorias nos séculos X<strong>VI</strong>II/XIX e <strong>do</strong> séc. XX. Destaquemos<br />
os importantes avanços como os <strong>de</strong> Kramer (1988) no tratamento <strong>do</strong> que ele<br />
chama “música anti-arquitetônica” e as suas noções <strong>de</strong> linearida<strong>de</strong> e não-linearida<strong>de</strong>, bastante<br />
aplicáveis no <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> tempo musical em diversos contextos; e a noção <strong>de</strong> “projeção<br />
<strong>do</strong> tempo” em Hasty (1997), para quem métrica é ritmo e essas noções não po<strong>de</strong>m ser<br />
tratadas senão imbricadas.<br />
4 De um mo<strong>do</strong> geral estamos nos referin<strong>do</strong> ao software Pure Data (PD), um ambiente <strong>de</strong><br />
programação sônica orientada ao objeto. Esse software é livre, em código aberto e multiplataforma.<br />
Foi <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> por Miller Puckette e sua <strong>do</strong>cumentação, bem como informações,<br />
instruções <strong>de</strong> instalação e comunida<strong>de</strong> estão disponíveis em http://puredata.info/<br />
327
328<br />
5 “Estratégias composicionais para obras interativas diferem das estratégias <strong>de</strong> outras composições<br />
já que elas são governadas pela relação entre humanos e computa<strong>do</strong>res. A parte <strong>do</strong><br />
computa<strong>do</strong>r imitará o intérprete ou terá seu próprio caráter distinto? A relação<br />
humano/computa<strong>do</strong>r é um tema central da obra; conceitos musicais e paradigmas <strong>de</strong> interação<br />
andam <strong>de</strong> mãos dadas. Liberda<strong>de</strong> e controle, pre<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> e improvisatório, comunicação<br />
e resposta, participação e adaptação — estas são as questões que norteiam<br />
composições interativas e criam o inevitável drama que se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra pela natureza da tecnologia<br />
em si mesma (Winkler, 2001, p. 260 – tradução nossa).<br />
6 Em um nível bastante elementar, basta que pensemos no movimento das ondas sonoras.<br />
Obviamente, esse fenômeno acústico é processa<strong>do</strong> pelo ouvinte <strong>de</strong> maneira diversa da estudada<br />
na acústica. Essa preocupação com a natureza física <strong>do</strong> som e sua relação com o aparato<br />
<strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong> humano é estudada pela acústica musical (cf. Henrique 2002), e, mais recentemente,<br />
pela psicoacústica (cf. Perry 2001).<br />
7 Em seu livro, Daniel Chua opera uma crítica bastante sagaz da noção <strong>de</strong> “música pura” ou<br />
“música absoluta”, a partir <strong>de</strong> uma genealogia <strong>do</strong> conceito e uma <strong>de</strong>sconstrução bastante lúcida.<br />
Para maiores informações cf. Chua (1999).<br />
8Trata-se da obra Noite (2008), para uma bailarina, sexteto misto, eletrônica e projeção <strong>de</strong><br />
ví<strong>de</strong>o. Para maiores informações cf. Bertissolo (2009a) ou http://guilhermebertissolo.<br />
wordpress.com/<br />
9 Para uma abordagem sucinta sobre o assunto roga-se ao leitor que procure o artigo Sistema<br />
Laban/Bartenieff e música: possíveis interfaces (Bertissolo 2009b), publica<strong>do</strong> nos anais <strong>do</strong><br />
XIX Congresso da ANPPOM <strong>de</strong> 2009, disponível em http://www.<strong>anppom</strong>.com.br/<br />
anais.php.<br />
10 “O movimento humano tem limitações semelhantes às <strong>de</strong> instrumentos musicais, isso<br />
po<strong>de</strong>ria sugerir algo semelhante a expressão idiomática? Existe um caráter distinto para o<br />
movimento das mãos? O que é um <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> em música? O que é a música em execução? O<br />
que é o som <strong>de</strong> uma mão baten<strong>do</strong> palmas? Estas perguntas po<strong>de</strong>m ser respondidas permitin<strong>do</strong><br />
a fisicalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> movimento impactar sobre materiais e processos [musicais]. Essas relações<br />
po<strong>de</strong>m ser estabelecidas através da visão <strong>do</strong> corpo e <strong>do</strong> espaço como instrumentos<br />
musicais, livre das associações com os instrumentos acústicos” (Winkler 2001. p. 319 – tradução<br />
nossa).<br />
11 Tanto a partitura completa quanto uma gravação <strong>de</strong> Devir po<strong>de</strong>m ser acessadas em<br />
http://guilhermebertissolo.wordpress.com/<br />
12 Não cabe no escopo <strong>de</strong>sse artigo esmiuçar os méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> síntese sonora, tampouco as especificida<strong>de</strong>s<br />
<strong>do</strong> processamento em tempo real. Para maiores <strong>de</strong>talhes cf. Winkler (2001) e<br />
Dodge; Jerse (1997).<br />
13 Ao lançar mão <strong>do</strong> reconhecimento <strong>de</strong> notas e não <strong>de</strong> um score-follower preten<strong>de</strong>-se um<br />
contexto poético e interpretativo mais aberto no ato da execução. Seria perfeitamente possível<br />
a instrução <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r através <strong>de</strong> uma partitura, entretanto, isso afetaria a relação<br />
intersubjetiva empreendida nas indicações <strong>de</strong>ssa partitura. Note na figura 1 a passagem é escrita<br />
Senza tempo. Nesse caso, é impossível instruir o computa<strong>do</strong>r no contexto da variabilida<strong>de</strong><br />
das interpretações possíveis e bem-vindas no contexto poético da obra.<br />
14 Tanto uma resenha quanto um trecho <strong>do</strong> espetáculo po<strong>de</strong>m ser assisti<strong>do</strong>s em<br />
http://tvver<strong>de</strong>smares.com.br/bomdiaceara/tecnologia-em-espetaculo-<strong>de</strong>-danca/
Referências<br />
Bertissolo, G. a. Po(i)ética em Movimento: a Análise Laban <strong>de</strong> Movimento como propulsora<br />
<strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s composicionais. Dissertação <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong> em Música. Salva<strong>do</strong>r: Fe<strong>de</strong>ral<br />
da Bahia.<br />
Bertissolo, G. 2009b. “Sistema Laban/Bartenieff e música: possíveis interfaces.” In: <strong>Anais</strong><br />
<strong>do</strong> XIX Congresso da ANPPOM. Curitiba: Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Paraná.<br />
ISSN/ISBN: 19835981.<br />
Caplin, W. 2002. “Theories of musical rhythm in the eighteenth and nineteenth centuries.”<br />
In Christensen, Thomas (Ed.), The Cambridge history of Western music theory, p.<br />
657–694. Cambridge: Cambridge University Press.<br />
Chua, D. 1999. Absolute music and the construction of meaning. Cambridge: Cambrig<strong>de</strong> University<br />
Press.<br />
Dodge, C.; Jerse T. 1997. Computer music. 2 ed. New York: Schirmer Books.<br />
Hasty, C.. 1997. Meter as rhythm. New York: Oxford University Press.<br />
Henrique, L. 2002. Acústica musical. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.<br />
Kramer, J. 1988. The Time of Music. New York: Schirmer Books.<br />
Lon<strong>do</strong>n, J. 2002. “Rhythm in twentienth-century theory.”In Christensen, Thomas (Ed.),<br />
The Cambridge history of Western music theory, p. 695–725. Cambridge: Cambridge<br />
University Press.<br />
Perry, C. (Org). 2001. Music, cognition, and computerized sound: an introduction to psychoacoustics.<br />
Cambridge/Lon<strong>do</strong>n: The MIT Press.<br />
Rothfarb, L. 2002. “Energetics”. In Christensen, Thomas (Ed.), The Cambridge history of<br />
Western music theory, p. 927-812. Cambridge: Cambridge University Press.<br />
Santos, B. 2007. A crítica da razão in<strong>do</strong>lente. Volume 1. São Paulo: Cortez.<br />
Wan<strong>de</strong>rley, M. 2006. “Instrumentos musicais digitais.” In Em busca da mente musical: ensaios<br />
sobre os processos cognitivos em música, Ilari, Beatriz (Ed.), p. 163–188. Curitiba:<br />
Ed. UFPR.<br />
Winkler, T. 2001. Composing interactive music: techniques and i<strong>de</strong>as using Max. Cambrige/Lon<strong>do</strong>n:<br />
The MIT Press.<br />
329
330<br />
A Ontomemética e a Evolução Musical<br />
Marcelo Gimenes<br />
mgimenes@gmail.com<br />
Núcleo Interdisciplinar <strong>de</strong> Comunicação Sonora<br />
Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas<br />
Resumo<br />
Os mecanismos <strong>de</strong> interação e <strong>de</strong> influência sociais <strong>de</strong>sempenham um papel importante<br />
na aquisição e no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> conhecimento musical <strong>do</strong>s seres humanos. De um<br />
la<strong>do</strong>, as pessoas nascem com <strong>de</strong>terminadas características biológicas — os sistemas perceptivos<br />
e cognitivos — que permitem a aquisição <strong>do</strong> conhecimento. De outro, as interações<br />
sociais fazem com que certos traços culturais sejam transmiti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> um indivíduo<br />
para outro, <strong>de</strong> um lugar a outro.<br />
Este artigo apresenta o Mo<strong>de</strong>lo Ontomemético <strong>de</strong> Evolução Musical (Ontomemetical<br />
Mo<strong>de</strong>l of Music Evolution — OMME), proposto durante minhas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong><br />
na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Plymouth (Reino Uni<strong>do</strong>) que se baseia nas noções <strong>de</strong> ontogênese e<br />
<strong>de</strong> memética. O OMME estabelece normas para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> sistemas computacionais<br />
interativos musicais com o intuito <strong>de</strong> explorar a evolução da música ten<strong>do</strong><br />
como referência a transmissão <strong>de</strong> memes musicais e, conseqüentemente, as faculda<strong>de</strong>s<br />
perceptivas e cognitivas <strong>do</strong>s seres humanos.<br />
A fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar as potencialida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> OMME, <strong>do</strong>is sistemas computacionais são<br />
apresenta<strong>do</strong>s, o Gera<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Memes Rítmicos (RGeme — Rhythmic Meme Generator) e<br />
os Ambientes Musicais Interativos (iMe — Interactive Musical Environments).<br />
Introdução<br />
O Mo<strong>de</strong>lo Ontomemético <strong>de</strong> Evolução Musical (Ontomemetical Mo<strong>de</strong>l of Music<br />
Evolution — OMME) é um novo mo<strong>de</strong>lo para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> sistemas interativos<br />
musicais que se inspira em princípios <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s da ontogenia e da memética<br />
(Gimenes, 2009). O interesse por esta investigação origina-se da noção <strong>de</strong> que<br />
os mecanismos <strong>de</strong> interação e influência sociais possuem um papel relevante para<br />
a aquisição e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> conhecimento musical <strong>do</strong>s seres humanos.<br />
De um la<strong>do</strong>, as pessoas nascem com <strong>de</strong>terminadas características biológicas — os<br />
sistemas perceptivos e cognitivos — que permitem a aquisição <strong>do</strong> conhecimento.<br />
De outro, as interações sociais fazem com que certos traços culturais sejam transmiti<strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong> um indivíduo para outro, <strong>de</strong> um lugar a outro. Esses fatores favorecem<br />
o aparecimento e a disseminação <strong>do</strong>s mais varia<strong>do</strong>s estilos musicais. De tempos em<br />
tempos novos estilos surgem, alguns são bem sucedi<strong>do</strong>s e sobrevivem mais <strong>do</strong> que<br />
outros. To<strong>do</strong>s esses fenômenos po<strong>de</strong>m ser facilmente observa<strong>do</strong>s na música que,<br />
além <strong>de</strong> organização sonora, vem a ser uma expressão da inteligência, um comportamento<br />
tipicamente humano e culturalmente condiciona<strong>do</strong>. Não é por outra
azão que, segun<strong>do</strong> Sny<strong>de</strong>r (2000), a estrutura da memória humana condicionaria<br />
a estrutura da música.<br />
A palavra “ontomemético”, que dá nome ao OMME, compõe-se <strong>do</strong> afixo onto, <strong>de</strong><br />
ontogênese e <strong>do</strong> prefixo “memético”, que se refere à teoria memética (Dawkins,<br />
1989). Onto vem <strong>do</strong> grego e significa “ser”; genesis, também <strong>do</strong> grego, significa “origem”.<br />
Ontogênese (ou ontogenia), o primeiro elemento central <strong>do</strong> OMME, referese,<br />
portanto, ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento das características físicas ou<br />
comportamentais <strong>de</strong> um indivíduo, das suas origens até a fase adulta. Por extensão,<br />
ontogenia musical po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong>finida como o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento musical<br />
<strong>de</strong> um indivíduo. Segun<strong>do</strong> Welch (2000), a música resultaria da ação combinada<br />
<strong>de</strong> fatores como o potencial neuropsicobiológico <strong>de</strong> um indivíduo e o meio<br />
sócio cultural em que ele vive. Em outras palavras, tanto a carga genética quanto as<br />
experiências pessoais <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong> nós contribuiria para a formação da nossa<br />
“visão <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> musical”.<br />
O segun<strong>do</strong> elemento central <strong>do</strong> OMME, a memética, é uma abordagem para o estu<strong>do</strong><br />
da evolução cultural que se baseia na noção <strong>de</strong> meme. Memes seriam unida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> transmissão cultural <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que genes são unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> informação<br />
biológica; e po<strong>de</strong>riam ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s como “estruturas biológicas vivas” uma vez<br />
que existiriam sob a forma <strong>de</strong> configurações neuronais no cérebro. Além disso, os<br />
memes teriam o potencial <strong>de</strong> se <strong>de</strong>slocar <strong>de</strong> um cérebro para outro através <strong>de</strong> substratos<br />
externos como partituras, ondas sonoras e gravações (Jan, 2000; Jan, 2007)<br />
através <strong>de</strong> processos <strong>de</strong> imitação. A moda e as canções são exemplos <strong>de</strong> memes<br />
(Dawkins, 1989).<br />
No campo musical, a compreensão <strong>do</strong> conceito <strong>do</strong> meme requer a segmentação <strong>do</strong><br />
fluxo sonoro em unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> informação musical, ou “memes musicais”, os quais<br />
estão na base da transmissão memética. A evolução musical ocorreria por causa das<br />
diferenças existentes entre os memes que são copia<strong>do</strong>s e aqueles que são replica<strong>do</strong>s.<br />
Lenta e gradualmente essas diferenças (mutações meméticas) seriam responsáveis<br />
pelas alterações <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> dialeto musical (Dawkins, 1989). Em certos<br />
momentos históricos, essas mutações seriam tão importantes que levariam ao surgimento<br />
<strong>de</strong> novas regras <strong>de</strong> organização musical.<br />
O Mo<strong>de</strong>lo Ontomemético<br />
O OMME introduz um conjunto <strong>de</strong> normas para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> sistemas<br />
que tenham por objetivo o estu<strong>do</strong> da evolução <strong>do</strong> conhecimento (ou da ontogênese)<br />
musical levan<strong>do</strong> em conta os conceitos forneci<strong>do</strong>s pela teoria memética. Os<br />
objetivos gerais que o OMME propõe atingir são os seguintes:<br />
1) Contribuir para a compreensão <strong>de</strong> fenômenos naturais, tais como a percepção<br />
e a cognição humanas, através da mo<strong>de</strong>lagem computacional,<br />
331
332<br />
2) Contribuir para a construção da “musicalida<strong>de</strong> das máquinas” (machine musicianship)<br />
e a interação entre máquinas e seres humanos, e<br />
3) Fornecer ferramentas computacionais para a musicologia principalmente centrada<br />
em mo<strong>de</strong>los teóricos que estudam a evolução cultural.<br />
A fim <strong>de</strong> alcançar esses objetivos, o OMME <strong>de</strong>fine que sistemas computacionais<br />
musicais <strong>de</strong>vem cumprir as três condições gerais a seguir enumeradas:<br />
Condição 1: “Sistemas basea<strong>do</strong>s no OMME são sistemas interativos”. O termo<br />
interativida<strong>de</strong> é usa<strong>do</strong> em diferentes contextos com diferentes significa<strong>do</strong>s. No<br />
escopo <strong>do</strong> OMME, contu<strong>do</strong>, interativida<strong>de</strong> tem um significa<strong>do</strong> específico: “Sistemas<br />
interativos musicais são sistemas computacionais que, através da troca <strong>de</strong><br />
informações musicais, têm a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perceber o ambiente, analisar e praticar<br />
ações <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a alterar os esta<strong>do</strong>s <strong>de</strong>sse ambiente assim como o seus próprios<br />
esta<strong>do</strong>s” (Gimenes, 2009). Decorre <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>finição o fato <strong>de</strong> que sistemas<br />
basea<strong>do</strong>s no OMME <strong>de</strong>vem incluir mecanismos para (i) o intercâmbio <strong>de</strong> informações<br />
musicais entre o sistema e o ambiente, (ii) a simulação <strong>de</strong> mecanismos<br />
<strong>de</strong> percepção, <strong>de</strong> análise e <strong>de</strong> ação e (iii) a alteração <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> sistema<br />
bem como <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ambiente.<br />
Condição 2: “Sistemas basea<strong>do</strong>s no OMME consi<strong>de</strong>ram a música como uma expressão<br />
das faculda<strong>de</strong>s humanas”. Sistemas basea<strong>do</strong>s no OMME <strong>de</strong>vem explorar<br />
mo<strong>de</strong>los teóricos e/ou empíricos das faculda<strong>de</strong>s perceptivas e cognitivas<br />
humanas porque (i) a música é uma expressão <strong>de</strong>ssas faculda<strong>de</strong>s e (ii) a base da<br />
transmissão memética resi<strong>de</strong> na existência <strong>de</strong>ssas faculda<strong>de</strong>s.<br />
Condição 3: “Sistemas basea<strong>do</strong>s no OMME <strong>de</strong>vem implementar mecanismos para<br />
avaliar a evolução musical”. Um <strong>do</strong>s objetivos <strong>do</strong> OMME refere-se à contribuição<br />
que os sistemas nele basea<strong>do</strong>s <strong>de</strong>vem dar para a pesquisa musicológica<br />
e a construção <strong>de</strong> uma ontogenia musical. Esses sistemas <strong>de</strong>vem, portanto, implementar<br />
mecanismos que permitam a avaliação <strong>de</strong> diferentes aspectos da evolução<br />
musical.<br />
Em vista das condições anteriormente mencionadas, o OMME é brevemente <strong>de</strong>fini<strong>do</strong><br />
na seguinte expressão: “O Mo<strong>de</strong>lo Ontomemético <strong>de</strong> Evolução Musical é<br />
um mo<strong>de</strong>lo computacional para a criação <strong>de</strong> sistemas interativos que consi<strong>de</strong>ram<br />
a música como uma expressão das faculda<strong>de</strong>s humanas e implementam mo<strong>de</strong>los<br />
criativos para a exploração e compreensão da evolução musical”.<br />
A fim <strong>de</strong> validar e <strong>de</strong>monstrar as potencialida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> OMME foram implementa<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>is sistemas computacionais, o Gera<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Memes Rítmicos (RGeme —<br />
Rhythmic Meme Generator) e os Ambientes Musicais Interativos (iMe — Interactive<br />
Musical Environments), a seguir <strong>de</strong>scritos.<br />
O Gera<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Memes Rítmicos (RGeme)<br />
O RGeme foi a primeira implementação <strong>de</strong> um sistema computacional basea<strong>do</strong><br />
nas especificações <strong>do</strong> OMME. Nele, agentes <strong>de</strong> software interagem entre si e com
o ambiente, perceben<strong>do</strong> a existência <strong>de</strong> música, analisan<strong>do</strong> os objetivos a eles propostos<br />
e agin<strong>do</strong> <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com esses objetivos. Os agentes simulam aspectos das faculda<strong>de</strong>s<br />
perceptivas e cognitivas humanas uma vez que segmentam o fluxo musical<br />
e possuem sua própria representação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> (memória), na qual guardam<br />
memes rítmicos, e que é transformada através da execução <strong>de</strong> diferentes ativida<strong>de</strong>s<br />
musicais. As transformações pelas quais passam os agentes são registradas <strong>de</strong> forma<br />
a possibilitar a observação <strong>do</strong> aparecimento e evolução <strong>do</strong>s seus estilos musicais.<br />
To<strong>do</strong>s os agentes têm a mesma estrutura interna (percepção e memória) e a capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> realizar três tipos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s (tarefas) musicais: escutar, praticar e compor<br />
música (seqüências rítmicas). Na memória, também chamada <strong>de</strong> “matriz <strong>de</strong><br />
estilo”, são armazena<strong>do</strong>s os memes rítmicos que, em última instância, constituem<br />
o conhecimento musical <strong>do</strong>s agentes. A Figura 1 mostra um exemplo <strong>de</strong> meme<br />
rítmico.<br />
11101000<br />
Figura 1 — Um meme rítmico (representação musical e binária).<br />
O RGeme funciona através <strong>do</strong> projeto e execução <strong>de</strong> simulações ten<strong>do</strong> em vista<br />
uma <strong>de</strong>terminada preocupação musicológica e da análise da evolução da memória<br />
<strong>do</strong>s agentes. Esta evolução resulta das interações que eles praticam com as músicas<br />
disponíveis no sistema. O projeto <strong>de</strong> uma simulação envolve a <strong>de</strong>finição <strong>do</strong>s seguintes<br />
elementos:<br />
a) Número <strong>de</strong> agentes que vão interagir.<br />
b) Uma “matriz <strong>de</strong> objetivos” para cada um <strong>do</strong>s agentes, i.e., as tarefas que cada<br />
agente irá executar durante a simulação.<br />
c) Uma “matriz <strong>de</strong> avaliação” para cada um <strong>do</strong>s agentes, i.e., um conjunto <strong>de</strong> regras<br />
(nome <strong>do</strong> compositor e/ou ano da composição) que os agentes usam para<br />
escolher <strong>de</strong>ntre as música disponíveis para interação. A matriz <strong>de</strong> objetivos e a<br />
matriz <strong>de</strong> avaliação predizem a ontogenia musical <strong>do</strong>s agentes.<br />
Iniciada a simulação, o sistema envia seqüencialmente um conta<strong>do</strong>r (ciclo) para<br />
cada um <strong>do</strong>s agentes. Este conta<strong>do</strong>r representa o ciclo temporal em que os agentes<br />
se encontram. Uma vez recebi<strong>do</strong> o conta<strong>do</strong>r, o agente executa as tarefas <strong>de</strong>signadas<br />
para aquele ciclo, escolhen<strong>do</strong> a música com a qual irá interagir segun<strong>do</strong> os critérios<br />
<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s em sua matriz <strong>de</strong> avaliação. O material inicial com o qual os agentes irão<br />
interagir é forneci<strong>do</strong> ao sistema na forma <strong>de</strong> arquivos MIDI.<br />
O resulta<strong>do</strong> das interações é que a memória <strong>de</strong> cada um <strong>do</strong>s agentes é constantemente<br />
transformada. A Tabela 1 mostra um instantâneo <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>ssas memórias<br />
em que cada linha contém os memes que foram percebi<strong>do</strong>s pelo agente além <strong>de</strong> outras<br />
informações como as “datas” ou ciclos (inicial — “dFL”, final — “dLL”) em que<br />
os memes foram percebi<strong>do</strong>s, o número <strong>de</strong> vezes (“nL”) que o meme foi percebi<strong>do</strong><br />
e o peso (“w”) <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>les.<br />
333
334<br />
Ao final <strong>de</strong> cada tarefa, o peso (“w”) <strong>de</strong> cada um <strong>do</strong>s memes é reforça<strong>do</strong> <strong>de</strong> acor<strong>do</strong><br />
a similarida<strong>de</strong> entre os memes presentes na memória e aqueles com que os agentes<br />
estão interagin<strong>do</strong> em um da<strong>do</strong> momento. Na medida em que os agentes interagem<br />
com as músicas e, conseqüentemente, com os memes rítmicos, alguns <strong>de</strong>sses memes<br />
são reforça<strong>do</strong>s enquanto que outros são enfraqueci<strong>do</strong>s. A evolução <strong>do</strong> conhecimento<br />
musical <strong>do</strong>s agentes é monitorada através da análise <strong>de</strong>ssas transformações.<br />
Sucessivamente, ao final da interação com cada uma das músicas, o RGeme registra<br />
um instantâneo da memória <strong>do</strong>s agentes <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que se possa analisar passo a<br />
passo a importância <strong>de</strong>ssas interações para a evolução <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong> e, conseqüentemente,<br />
<strong>do</strong> estilo musical <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>les.<br />
# Meme dFL dLL nL w<br />
1 01010110 1 1 2 1.026<br />
2 01011000 1 1 2 1.017<br />
3 11010000 1 1 2 1.021<br />
4 00100010 1 1 2 1.013<br />
5 01110111 1 1 4 1.025<br />
6 11011101 1 1 6 1.022<br />
7 10010111 1 1 6 1.023<br />
8 10010101 1 1 4 1.019<br />
9 11110111 1 1 15 1.014<br />
10 10001000 1 1 1 1.000<br />
... ... ... ... ... ...<br />
Tabela 1 — Extrato <strong>de</strong> uma Matriz <strong>de</strong> Estilo.<br />
(Meme = representação rítimica, dFL = data da primeira audição,<br />
dLL = data da última audição, nL = número <strong>de</strong> audições, W = peso)<br />
Figura 2 — Exemplo <strong>de</strong> uma composição rítmica gerada pelo RGeme.<br />
Os agentes também são capazes <strong>de</strong> gerar novas composições com base nos memes<br />
armazena<strong>do</strong>s em sua memória, para o que utilizam as informações mostradas na<br />
Tabela 1 acima, em especial o peso (coluna “W”) <strong>de</strong> cada um <strong>do</strong>s memes. As composições<br />
<strong>do</strong>s agentes são particularmente importantes porque permitem que o conhecimento<br />
adquiri<strong>do</strong> por um <strong>de</strong>les possa ser transmiti<strong>do</strong> aos <strong>de</strong>mais em uma<br />
mesma simulação. A Figura 2 acima mostra um exemplo <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>ssas composições.<br />
Durante o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> RGeme foram realizadas inúmeras simulações e,
em (Gimenes, 2009) algumas <strong>de</strong>las são <strong>de</strong>scritas em <strong>de</strong>talhe. A título <strong>de</strong> exemplificação,<br />
as próximas figuras mostram alguns gráficos que foram gera<strong>do</strong>s a partir <strong>de</strong><br />
uma <strong>de</strong>ssas simulações em que um agente interagiu com grupos diferentes <strong>de</strong> composições<br />
<strong>de</strong> Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga e Jacob <strong>do</strong> Ban<strong>do</strong>lim. A Figura<br />
3 mostra o número <strong>de</strong> vezes (eixo ‘y’) que um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> agente interagiu durante<br />
toda a simulação com os 20 memes inicialmente aprendi<strong>do</strong>s. O eixo ‘x’ mostra<br />
a representação binária <strong>do</strong>s memes rítmicos.<br />
Figura 3 — Número <strong>de</strong> interações para os 20 primeiros memes.<br />
A Figura 4 a seguir mostra o número <strong>de</strong> memes aprendi<strong>do</strong>s durante toda a simulação.<br />
O eixo ‘x’ mostra a seqüência <strong>de</strong> ciclos da simulação, que durou um total <strong>de</strong> 100<br />
ciclos, e o eixo ‘y’ mostra o número <strong>de</strong> memes aprendi<strong>do</strong>s até um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> ciclo.<br />
O agente foi instruí<strong>do</strong> na matriz <strong>de</strong> avaliação a escolher músicas <strong>de</strong> compositores<br />
distintos em três diferentes fases da simulação. O gráfico da Figura 4 mostra este<br />
fato, on<strong>de</strong> o agente apren<strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> número <strong>de</strong> memes que é crescente<br />
no início <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>ssas fases e posteriormente estabiliza<strong>do</strong>.<br />
Figura 4 — Número <strong>de</strong> memes aprendi<strong>do</strong>s durante a simulação.<br />
Finalmente, a Figura 5 mostra a evolução da curva <strong>de</strong> importância <strong>de</strong> uma seleção<br />
<strong>de</strong> memes que o agente apren<strong>de</strong>u durante a simulação. O eixo ‘x’ mostra a seqüência<br />
<strong>de</strong> ciclos da simulação e o eixo ‘y’ o peso relativo (“w”) <strong>do</strong>s memes. A Tabela 2<br />
335
336<br />
— mostra os <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong> cada um <strong>do</strong>s memes exibi<strong>do</strong>s na Figura 5 ao final da simulação.<br />
Figura 5 — Curva <strong>de</strong> importância <strong>do</strong>s memes (seleção).<br />
# Meme dFL dLL nL w<br />
3 11111111 1 100 862 3.753<br />
6 11111010 1 91 100 2.543<br />
9 01111111 2 100 318 2.982<br />
23 00100010 3 57 14 1.013<br />
29 10111111 13 95 51 2.297<br />
39 11011000 35 98 69 1.970<br />
Tabela 2 — Descrição <strong>do</strong>s memes da Figura 5.<br />
(Meme = representação rítimica, dFL = data da primeira audição,<br />
dLL = data da última audição, nL = número <strong>de</strong> audições, W = peso)<br />
A fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar a evolução da importância <strong>do</strong>s memes, a Figura 5 e a Tabela<br />
2 — <strong>de</strong>vem ser lidas conjuntamente. Por exemplo, o agente interagiu com os memes<br />
3 e 6 na primeira interação (DFL = 1), que se originaram da música Lua Branca, <strong>de</strong><br />
Chiquinha Gonzaga. O meme 9 aparece na segunda interação (música Gaúcha,<br />
mesma compositora), o meme 23 na terceira (música Annita, i<strong>de</strong>m), o meme 29 na<br />
13a. (música Atraente, i<strong>de</strong>m) e o meme 39 na 35a (música Tenebroso, <strong>de</strong> Nazaré).<br />
Embora o meme 23 tenha si<strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong> pela primeira vez no 3o. ciclo, a sua importância<br />
relativa em comparação aos <strong>de</strong>mais nunca foi muito elevada. Por outro la<strong>do</strong>,<br />
embora o agente tenha interagi<strong>do</strong> com o meme 39 no 35o. ciclo, no final da<br />
simulação este meme foi mais importante <strong>do</strong> que o 23o., com o qual o agente<br />
interagiu pela primeira vez no 3o. ciclo. O meme 6 é relativamente importante na<br />
música <strong>de</strong> Chiquinha Gonzaga, mas a sua importância foi menos significativa após<br />
o agente ter começa<strong>do</strong> a interagir com a música <strong>de</strong> Ernesto Nazaré. Por este motivo,<br />
no final da simulação, o meme 9 foi mais importante <strong>do</strong> que o meme 6. Finalmente,<br />
os memes 3 e 9 tiveram um <strong>de</strong>sempenho comparável e estável durante toda a<br />
simulação.
Ao final <strong>de</strong> uma simulação, é possível, com base nos pesos relativos <strong>de</strong> cada um <strong>do</strong>s<br />
memes presentes na memória <strong>do</strong> agente, <strong>de</strong>terminar quais <strong>de</strong>les são mais importantes<br />
(“vence<strong>do</strong>res”) que os outros. A Tabela 3 — abaixo mostra os <strong>de</strong>z memes<br />
mais importantes ao final da mesma simulação utilizada nos exemplos acima.<br />
# Meme dFL dLL nL w<br />
3<br />
11<br />
9<br />
17<br />
6<br />
8<br />
10<br />
19<br />
38<br />
7<br />
1 100 862 3.753<br />
2 98 431 3.111<br />
2 100 318 2.982<br />
2 92 18 2.577<br />
1 91 100 2.543<br />
1 100 240 2.482<br />
2 98 191 2.422<br />
3 94 225 2.402<br />
35 98 161 2.381<br />
1 99 149 2.329<br />
Tabela 3 — Memes vence<strong>do</strong>res<br />
(Meme = representação rítimica, dFL = data da primeira audição,<br />
dLL = data da última audição, nL = número <strong>de</strong> audições, W = peso)<br />
Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se que o RGeme foi a primeira implementação <strong>de</strong> um sistema segun<strong>do</strong><br />
as normas <strong>do</strong> OMME, algumas das suas características foram intencionalmente<br />
simplificadas. Este é o caso, por exemplo, <strong>do</strong> material musical (apenas ritmos<br />
monofônicos) e da segmentação (critério <strong>de</strong> comprimento fixo, i.e., um segmento<br />
por compasso). Além disso, o RGeme implementa um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> criação musical<br />
que não leva em consi<strong>de</strong>ração a continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um meme para outro. Por causa<br />
<strong>de</strong>ssas limitações e consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> as lições aprendidas com esse sistema, posteriormente<br />
implementei um segun<strong>do</strong> sistema chama<strong>do</strong> <strong>de</strong> Ambientes Musicais Interativos<br />
(iMe — Interactive Musical Environments), brevemente apresenta<strong>do</strong> na<br />
próxima seção.<br />
Os Ambientes Musicais Interativos (iMe)<br />
O sistema iMe é bem mais complexo que o RGeme embora guar<strong>de</strong> com este diversas<br />
semelhanças. Ambos são sistemas interativos musicais basea<strong>do</strong>s nas condições<br />
<strong>do</strong> OMME e possuem a mesma espinha <strong>do</strong>rsal: agentes executam ativida<strong>de</strong>s inspiradas<br />
no mun<strong>do</strong> real e se comunicam entre si e com o mun<strong>do</strong> exterior. O resulta<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>sta comunicação é que a memória <strong>do</strong>s agentes é constantemente alterada e, con-<br />
337
338<br />
seqüentemente, seus estilos musicais evoluem. Contu<strong>do</strong>, um número consi<strong>de</strong>rável<br />
<strong>de</strong> características distingue esses <strong>do</strong>is sistemas, entre as quais estão a representação<br />
musical, o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> segmentação e o fato <strong>de</strong> que o sistema iMe foi especialmente<br />
concebi<strong>do</strong> para abordar a interativida<strong>de</strong> sob um ponto <strong>de</strong> vista improvisacional em<br />
que os agentes executam tarefas em tempo real (ouvir, executar, praticar, improvisar-solo<br />
e improvisar-grupo) além <strong>de</strong> tarefas em tempo não real (ler e compor).<br />
O sistema iMe utiliza o protocolo <strong>de</strong> comunicação MIDI para a troca <strong>de</strong> mensagens<br />
entre os agentes e entre estes e o mun<strong>do</strong> exterior, a partir <strong>do</strong> qual os agentes extraem<br />
a representação musical simbólica necessária para as interações. Esta representação<br />
possui paralelos com os mo<strong>de</strong>los perceptivos e cognitivos humanos, ou<br />
seja, com a forma como os sons são capta<strong>do</strong>s pelos ouvi<strong>do</strong>s, processa<strong>do</strong>s e armazena<strong>do</strong>s<br />
pela memória (Sny<strong>de</strong>r, 2000). Uma série <strong>de</strong> filtros equipam os “ouvi<strong>do</strong>s” <strong>do</strong>s<br />
agentes e são responsáveis pela extração <strong>de</strong> características particulares <strong>do</strong> fluxo sonoro,<br />
tais como o aumento e/ou a diminuição da freqüência sonora (direção da<br />
melodia) ou a <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> musical (número simultâneo <strong>de</strong> notas). Os agentes percebem<br />
as mudanças <strong>do</strong> fluxo <strong>de</strong> som entre <strong>do</strong>is momentos consecutivos no tempo<br />
e extraem “informações sensoriais” a partir <strong>de</strong>les. A Figura 6 mostra um exemplo em<br />
notação musical tradicional e a correspon<strong>de</strong>nte representação com base em filtros<br />
sensoriais. Para fins <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstração, neste caso são usa<strong>do</strong>s somente 3 filtros (direção<br />
melódica, saltos melódicos e intervalos <strong>de</strong> tempo da melodia).<br />
1 2 3 4 5 6 7 8<br />
direção melódica 0 1 1 1 1 -1 -1 -1<br />
saltos melódicos 0 2 2 1 2 2 1 2<br />
intervalos <strong>de</strong> tempo da melodia 120 120 120 120 120 120 120 120<br />
Figura 6 — Representação musical com base em filtros sensoriais.<br />
Na versão atual <strong>do</strong> sistema iMe, a autonomia <strong>do</strong>s agentes foi limitada <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que<br />
eles executam as tarefas (matriz <strong>de</strong> objetivos) previamente <strong>de</strong>terminadas pelo usuário<br />
bem como escolhem as músicas segun<strong>do</strong> critérios também fixa<strong>do</strong>s por este.<br />
Sen<strong>do</strong> assim, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que no RGeme, ao projetar uma nova simulação, o<br />
usuário <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>terminar um número <strong>de</strong> agentes (pelo menos um) e atribuir um<br />
número <strong>de</strong> tarefas (pelo menos uma) para cada um <strong>de</strong>les. Haven<strong>do</strong> tarefas que envolvam<br />
a escolha <strong>de</strong> músicas para interação, os agentes também <strong>de</strong>vem ser instruí<strong>do</strong>s<br />
com os critérios (nome <strong>do</strong> compositor, gênero, ano <strong>de</strong> composição) para essa<br />
escolha (matriz <strong>de</strong> avaliação). Os objetivos e a matriz <strong>de</strong> avaliação constituem uma<br />
espécie <strong>de</strong> esboço <strong>do</strong> que virá a ser o mapa <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento estilístico <strong>do</strong>s<br />
agentes.
Figura 7 — Extração <strong>de</strong> características musicais e segmentação.<br />
Ao interagir com uma <strong>de</strong>terminada música, os agentes percebem o fluxo <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s<br />
musical e o <strong>de</strong>compõem em informações sensoriais básicas (e.g. direção da melodia)<br />
em tempo real, o que resulta em uma série <strong>de</strong> fluxos <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s paralelos, posteriormente<br />
utiliza<strong>do</strong>s para segmentação, armazenamento na memória e <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> estilo.<br />
Esse mecanismo é ilustra<strong>do</strong> na Figura 7.<br />
A segmentação implementada no iMe inspira-se em princípios da psicologia Gestalt<br />
e em mo<strong>de</strong>los mais recentes <strong>do</strong> sistema cognitivo humano (Sny<strong>de</strong>r, 2000). Em<br />
linhas gerais, a fim <strong>de</strong> implementar esses princípios, o algoritmo <strong>de</strong> segmentação<br />
simula o fenômeno da habituação, ou seja, da<strong>do</strong> que um sinal permanece estável<br />
durante algum tempo, o seu interesse (atenção) <strong>de</strong>cai. Desse mo<strong>do</strong>, acompanhan<strong>do</strong>se<br />
o comportamento <strong>do</strong>s fluxos <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s paralelos anteriormente menciona<strong>do</strong>s, é<br />
possível se obter indica<strong>do</strong>res para a segmentação. Enquanto os agentes percebem o<br />
fluxo sonoro, a repetição <strong>do</strong> mesmo sinal resulta em uma falta <strong>de</strong> interesse enquanto<br />
que uma mudança <strong>de</strong> comportamento no sinal, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um certo número <strong>de</strong> repetições,<br />
chama a atenção <strong>de</strong>les. Cada segmento constitui um meme musical que,<br />
por sua vez, se compõe <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> “substrings” originário <strong>do</strong> fluxo sonoro<br />
original.<br />
A memória <strong>do</strong>s agentes é composta <strong>de</strong> uma Memória <strong>de</strong> Curto Prazo e <strong>de</strong> uma Memória<br />
<strong>de</strong> Longo Prazo. A primeira armazena os últimos ‘n’ memes percebi<strong>do</strong>s pelo<br />
agente, on<strong>de</strong> ‘n’ é <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> a priori pelo usuário. A segunda armazena cada um <strong>do</strong>s<br />
substrings menciona<strong>do</strong>s acima em áreas específicas <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os filtros sensoriais.<br />
Todas as substrings possuem ponteiros que apontam para as <strong>de</strong>mais substrings<br />
<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que são estabelecidas conexões entre elas e que são reforçadas <strong>de</strong> acor<strong>do</strong><br />
com as músicas com as quais os agentes interagem. Quanto mais freqüentes são<br />
essas conexões, maior é o peso atribuí<strong>do</strong> a elas na memória <strong>do</strong>s agentes. Inversamente,<br />
se <strong>de</strong>terminadas conexões não ocorrem nas músicas com as quais os agentes<br />
interagiram mais recentemente, elas são enfraquecidas, o que equivale a dizer<br />
que elas começam a ser esquecidas.<br />
339
340<br />
Finalmente, os agentes são também capazes <strong>de</strong> criar novas músicas através das tarefas<br />
compor, improvisar-solo e improvisar-grupo. O mo<strong>de</strong>lo criativo usa<strong>do</strong> nessas<br />
três tarefas é, na realida<strong>de</strong>, muito semelhante e <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> mais improvisacional<br />
<strong>do</strong> que composicional da<strong>do</strong> que, uma vez gera<strong>do</strong> um novo meme musical,<br />
o agente não po<strong>de</strong> “mudar <strong>de</strong> idéia” e gerar um outro em seu lugar. O usuário <strong>do</strong><br />
sistema <strong>de</strong>ve programar previamente uma seqüência <strong>de</strong> condições (e.g. escalas, acor<strong>de</strong>s,<br />
etc.) em um espaço chama<strong>do</strong> <strong>de</strong> “Mapa Composicional e <strong>de</strong> Performance”<br />
(MCP) que o agente irá seguir enquanto estiver crian<strong>do</strong> uma nova música. No momento<br />
da criação, o agente gera novos memes recombinan<strong>do</strong> as substrings que estão<br />
armazenadas na sua memória, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os pesos das diversas conexões mencionadas<br />
anteriormente. Uma vez gera<strong>do</strong>, o novo meme é em seguida adapta<strong>do</strong> ao<br />
MCP. Novos memes musicais são gera<strong>do</strong>s até que todas as condições <strong>do</strong> MCP<br />
sejam satisfeitas. Esse processo é ilustra<strong>do</strong> na Figura 8 abaixo:<br />
Figura 8 — O processo <strong>de</strong> geração e adaptação <strong>do</strong>s memes.<br />
Em (Gimenes, 2009) são <strong>de</strong>scritas com <strong>de</strong>talhe algumas das possibilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong><br />
OMME implementadas pelo sistema iMe tanto na área <strong>de</strong> musicologia quanto na<br />
<strong>de</strong> criação musical. Com relação à primeira, a configuração inicial <strong>do</strong> sistema (número<br />
<strong>de</strong> agentes, base <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s musical, tarefas, etc.) é que permitirá o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas<br />
questões. É possível, por exemplo que, em um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> cenário, um<br />
agente ouça uma peça e um outro agente ouça uma outra peça. Ao final da simulação,<br />
a diferença <strong>do</strong> conhecimento musical <strong>do</strong>s agentes irá correspon<strong>de</strong>r à diferença<br />
<strong>do</strong>s estilos musicais entre as peças. Para isso é necessária uma medida <strong>de</strong> similarida<strong>de</strong><br />
entre as memórias <strong>do</strong>s agentes, a qual também é <strong>de</strong>scrita em <strong>de</strong>talhe na Tese.<br />
Uma outra possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> análise po<strong>de</strong>ria ser a comparação da memória <strong>de</strong> <strong>do</strong>is<br />
agentes após um ter ouvi<strong>do</strong> músicas compostas por um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> compositor e<br />
o outro agente ter ouvi<strong>do</strong> músicas <strong>de</strong> um outro compositor. O gráfico exibi<strong>do</strong> na<br />
Figura 9 abaixo ilustra este caso. Nesta experiência foram usa<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is conjuntos<br />
distintos <strong>de</strong> músicas, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> as Invenções a duas vozes <strong>de</strong> J. S. Bach e, <strong>de</strong> outro,<br />
um conjunto <strong>de</strong> 10 peças pertencentes ao gênero ragtime. O gráfico mostra que a<br />
diferença entre as memórias <strong>do</strong>s agentes <strong>de</strong>cresce à medida em que a simulação evolui<br />
mas essa diferença é estabilizada em torno <strong>do</strong> valor 16.5, o que representaria a
diferença numérica em termos <strong>de</strong> estilo entre os <strong>do</strong>is conjuntos <strong>de</strong> peças.<br />
Figura 9 — Diferenças <strong>de</strong> estilo entre <strong>do</strong>is agentes<br />
(grupos diferentes <strong>de</strong> peças musicais).<br />
Uma outra área na qual o sistema iMe tem gran<strong>de</strong> potencial é o da criativida<strong>de</strong> musical<br />
visan<strong>do</strong> a explorar, mais especificamente, o segun<strong>do</strong> objetivo <strong>do</strong> OMME, i.e.,<br />
contribuir para a construção da “musicalida<strong>de</strong> das máquinas” e a interação entre<br />
máquinas e seres humanos. Uma performance pública foi preparada durante o Peninsula<br />
Arts Contemporary Music Festival em fevereiro <strong>de</strong> 2008 na Universida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Plymouth, Reino Uni<strong>do</strong>.<br />
Uma simulação foi especialmente projetada para esta performance em que um<br />
agente <strong>de</strong>veria executar duas tarefas: a leitura <strong>de</strong> uma música e uma improvisaçãogrupo<br />
<strong>de</strong> outra. No início da simulação, a memória <strong>do</strong> agente estava vazia e, durante<br />
a primeira tarefa (leitura), o agente leu um arquivo MIDI conten<strong>do</strong> apenas a<br />
melodia da música Stella by Starlight, <strong>de</strong> Victor Young. Neste momento, a memória<br />
<strong>do</strong> agente passou a conter o material inicial que ele iria utilizar na segunda tarefa.<br />
Um MPC (mapa composicional e <strong>de</strong> performance) havia si<strong>do</strong> previamente<br />
prepara<strong>do</strong> com a seqüência harmônica da mesma peça musical e, durante a segunda<br />
tarefa (improvisação-grupo), o agente e eu improvisamos com base nele. Iniciada a<br />
improvisação, o agente começou a ouvir as idéias musicais que eu tocava, transforman<strong>do</strong>,<br />
conseqüentemente, a sua memória. As novas idéias musicais aprendidas<br />
pelo agente passaram então a compor a sua própria improvisação. Uma <strong>de</strong>scrição<br />
passo a passo <strong>de</strong>ssa performance po<strong>de</strong> ser lida em (Gimenes, 2009) e sua íntegra assistida<br />
em http://www.computermusiclab.com/.<br />
Conclusão<br />
Este artigo apresentou sucintamente o Mo<strong>de</strong>lo Ontomemético <strong>de</strong> Evolução Musical<br />
(OMME), um novo paradigma para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> sistemas computacionais<br />
interativos musicais que se funda nas noções <strong>de</strong> ontogênese e <strong>de</strong> memética,<br />
proposto durante o meu Doutora<strong>do</strong> na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Plymouth (Reino Uni<strong>do</strong>).<br />
Os sistemas basea<strong>do</strong>s neste mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>vem (i) ser sistemas interativos, (ii) consi<strong>de</strong>-<br />
341
342<br />
rar a música como uma expressão das faculda<strong>de</strong>s humanas, e (iii) implementar mecanismos<br />
para a análise da evolução musical. Essas condições visam a (i) contribuir<br />
para a compreensão <strong>de</strong> fenômenos naturais, tais como a percepção e cognição humanas,<br />
através da mo<strong>de</strong>lagem computacional, (ii) contribuir para a construção da<br />
“musicalida<strong>de</strong> das máquinas” e a interação entre máquinas e seres humanos, e (iii)<br />
fornecer ferramentas computacionais para a musicologia principalmente centrada<br />
em mo<strong>de</strong>los teóricos que estu<strong>de</strong>m a evolução cultural.<br />
A fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar as potencialida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> OMME, foram <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s os sistemas<br />
Gera<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Memes Rítmicos (RGeme – Rhythmic Meme Generator) e Ambientes<br />
Musicais Interativos (iMe – Interactive Musical Environments). Ambos são<br />
sistemas interativos musicais em que agentes musicais interagem com o ambiente<br />
e entre si, possuem módulos perceptivos e cognitivos e são capazes <strong>de</strong> evoluir a partir<br />
da execução <strong>de</strong> tarefas musicais. No RGeme os agentes executam tarefas em<br />
tempo não real (ouvir, praticar e compor música), enquanto que no iMe, além <strong>de</strong>stas<br />
os agentes também executam tarefas em tempo real (ouvir, executar, improvisar-solo<br />
e improvisar-grupo).<br />
Os estu<strong>do</strong>s apresenta<strong>do</strong>s neste artigo estão sen<strong>do</strong> atualmente aprofunda<strong>do</strong>s no Núcleo<br />
Interdisciplinar <strong>de</strong> Comunicação Sonora (NICS/Unicamp), no escopo da<br />
minha pesquisa <strong>de</strong> Pós Doutora<strong>do</strong> com o apoio financeiro da Fundação <strong>de</strong> Amparo<br />
à Pesquisa <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Paulo (FAPESP). Um novo sistema interativo<br />
musical está sen<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> com o intuito <strong>de</strong> estudar a emergência e evolução<br />
<strong>de</strong> estilos musicais em um ambiente essencialmente autônomo. Esta pesquisa se insere<br />
no contexto <strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>los que exploram a Vida Artificial (“Artificial Life”), os<br />
quais procuram replicar fenômenos biológicos através <strong>de</strong> simulações em computa<strong>do</strong>r<br />
(Miranda, 2003) e abordam conceitos como, por exemplo, a origem <strong>do</strong>s organismos<br />
vivos, comportamento emergente e auto-organização e po<strong>de</strong>m ajudar na<br />
compreensão da gênese e evolução musicais (Atlan, 1979).<br />
Referências<br />
Atlan, H. (1979) Entre le cristal et la fumee: Essai sur lorganisation du vivant, Paris.<br />
Dawkins, R. (1989) The Selfish Gene. Oxford, Oxford University Press.<br />
Gimenes, M. (2009) An Approach of Machine Development of Musical Ontogeny. School<br />
of Computing, Communications and Electronics. Plymouth, UK, University of Plymouth.<br />
Jan, S. (2000) Replicating sonorities: towards a memetics of music. Journal of Memetics 4.<br />
Jan, S. (2007) The Memetics of Music. A New-Darwinian View of Musical Structure and Culture.<br />
Al<strong>de</strong>rshot, UK: Ashgate Publishing Limited.<br />
Miranda, E. (2003) On the evolution of music in a society of self-taught digital creatures. Digital<br />
Creativity 14, 29-42.<br />
Sny<strong>de</strong>r, B. (2000) Music and Memory: An Introduction. Cambridge, MA, MIT Press.<br />
Welch, G. F. (2000) The Ontogenesis of Musical Behaviour: A Sociological Perspective. Research<br />
Studies in Music Education 14, 1-13.
Análise Particional: uma Mediação<br />
entre Composição Musical e a Teoria das Partições<br />
Pauxy Gentil-Nunes<br />
pauxygnunes@gmail.com<br />
Departamento <strong>de</strong> Composição - EM-UFRJ<br />
Resumo<br />
A Análise Particional é proposta como abordagem original da composição e análise musicais,<br />
constituída a partir da aproximação entre a teoria das partições <strong>de</strong> inteiros, <strong>de</strong> Leonhard<br />
Euler (1748) e a análise textural <strong>de</strong> Wallace Berry (1976). A teoria das partições é<br />
uma área da teoria aditiva <strong>do</strong>s números, que trata da representação <strong>de</strong> números inteiros<br />
como somas <strong>de</strong> outros números inteiros. Uma partição <strong>de</strong> um número inteiro não-negativo<br />
n é uma representação <strong>de</strong> n como uma soma <strong>de</strong> números inteiros positivos, chama<strong>do</strong>s<br />
soman<strong>do</strong>s ou partes da partição, sen<strong>do</strong> irrelevante a or<strong>de</strong>m <strong>do</strong>s soman<strong>do</strong>s. O<br />
número cinco, por exemplo, tem sete partições - ou seja, sete maneiras com que po<strong>de</strong><br />
ser representa<strong>do</strong> pela soma <strong>de</strong> outros números inteiros. A análise textural <strong>de</strong> Berry propõe<br />
a representação das relações <strong>de</strong> congruência rítmica entre as partes <strong>de</strong> uma textura<br />
musical, através <strong>de</strong> números empilha<strong>do</strong>s, que representam tanto sua diversida<strong>de</strong><br />
quanto sua espessura. Desta forma, Berry preconiza o controle numérico das diferenciações<br />
texturais <strong>do</strong> discurso musical. A mediação entre as duas teorias, que constitui a<br />
análise particional, é feita através da análise da estrutura interna das representações numéricas<br />
<strong>de</strong> Berry, que são consi<strong>de</strong>radas homólogas às partições. Toma o ponto <strong>de</strong> vista<br />
pragmático (Wittgenstein), on<strong>de</strong> são consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s os atores individuais (instrumentistas,<br />
<strong>de</strong><strong>do</strong>s, fontes sonoras) e suas relações funcionais com os seus pares. Através da diferenciação<br />
<strong>de</strong>stas relações em congruentes e não-congruentes (<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com critérios<br />
pré-<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s), extrai <strong>de</strong> cada ‘partição’ <strong>do</strong>is índices (índices <strong>de</strong> aglomeração e <strong>de</strong> dispersão<br />
– a,d), que formam um par <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nadas correspon<strong>de</strong>nte e único. A partir <strong>do</strong>s<br />
índices, são obtidas representações gráficas <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s dinâmicos <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> uma<br />
peça ou trecho musical, tanto na forma <strong>de</strong> um espaço <strong>de</strong> fase (particiograma), quanto<br />
na forma <strong>de</strong> gráfico linear (in<strong>de</strong>xograma). Os contornos forma<strong>do</strong>s pelas trajetórias no particiograma<br />
fornecem mapeamentos exaustivos <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> trecho musical;<br />
e o movimento <strong>do</strong>s índices (a,d) no in<strong>de</strong>xograma permitem a segmentação e análise<br />
<strong>do</strong> trecho a partir <strong>de</strong> recorrências <strong>do</strong>s contornos, chamadas <strong>de</strong> ‘bolhas’. Cinco categorias<br />
são estabelecidas para classificação das progressões entre partições: redimensionamento,<br />
revariância, transferência, concorrência e reglomeração. A partir <strong>de</strong>las, a tipologia<br />
<strong>do</strong>s discursos particionais é viabilizada.<br />
Neste trabalho, foram apreciadas três aplicações da análise particional, correspon<strong>de</strong>ntes<br />
a três critérios <strong>de</strong> filtragem das relações binárias: particionamento rítmico, linear e <strong>de</strong><br />
eventos. Cada aplicação parte <strong>de</strong> teorias analíticas importantes, <strong>de</strong>senvolvidas durante<br />
o século passa<strong>do</strong> (Berry 1976, Schenker 1935 e Cage 1955). A partir <strong>de</strong>las, foram analisadas<br />
pequenas peças <strong>de</strong> alguns autores <strong>de</strong> música <strong>de</strong> concerto (Beethoven, Schöenberg,<br />
Webern, Bach, o Autor, Ferneyhough), com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> verificar a pertinência analítica<br />
da teoria, através da comparação com outros tipos <strong>de</strong> análise. As análises contaram<br />
343
344<br />
com a ajuda <strong>de</strong> ferramentas computacionais, programadas pelo autor (PARSEMAT), que<br />
auxiliaram na leitura das partituras, através <strong>de</strong> arquivos MIDI, e na confecção <strong>do</strong>s gráficos,<br />
a partir <strong>do</strong>s quais se faz a leitura <strong>do</strong> discurso particional. O programa funciona também<br />
como mo<strong>de</strong>lagem <strong>do</strong>s algoritmos envolvi<strong>do</strong>s na tradução da linguagem musical<br />
para a linguagem matemática.<br />
Introdução<br />
A Análise Particional (Gentil-Nunes 2009) é proposta como abordagem original<br />
da composição e análise musicais, constituída a partir da aproximação entre a teoria<br />
das partições <strong>de</strong> inteiros, <strong>de</strong> Leonhard Euler (1748) e corpos teóricos <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s<br />
durante o século XX (inicialmente, Berry 1976; e posteriormente, Schenker<br />
1935 e Cage 1942, 1955 e 1961).<br />
A formulação da teoria das partições foi uma conquista <strong>do</strong> matemático suíço Leonhard<br />
Euler (Andrews 1984, p. xv). A teoria das partições trata das “seqüências finitas<br />
<strong>de</strong> inteiros positivos cuja soma é n”. Segun<strong>do</strong> Andrews, “toda vez que uma<br />
divisão <strong>de</strong> algum objeto em sub-objetos é realizada, a palavra partição provavelmente<br />
aparecerá” (id. ibid.).<br />
Consi<strong>de</strong>rada <strong>de</strong>sta forma, a teoria das partições trata <strong>de</strong> uma das ativida<strong>de</strong>s mais importantes<br />
para o ser humano: a contagem, que representa as relações sociais, fundada<br />
na divisão <strong>de</strong> bens (vasos, cabras, dólares – ver Gentil-Nunes 2006a).<br />
O uso das partições é cotidiano e constitui, juntamente com a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contar,<br />
um fato social inerente às socieda<strong>de</strong>s complexas (ibid.) Os números, muitas<br />
vezes consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s como abstrações <strong>de</strong>svinculadas das formas <strong>de</strong> vida concreta, são<br />
<strong>de</strong> fato, são <strong>de</strong> fato representações literais (e, ao mesmo tempo, media<strong>do</strong>res) das relações<br />
humanas.<br />
Da mesma forma, no trabalho <strong>do</strong> compositor inseri<strong>do</strong> nesta mesma socieda<strong>de</strong>, seu<br />
uso, consciente ou não, é ostensivo. A música, como outras ativida<strong>de</strong>s humanas,<br />
precisa ter suas etapas <strong>de</strong> produção coor<strong>de</strong>nadas para viabilizar sua realização. É<br />
uma ativida<strong>de</strong>, em gran<strong>de</strong> parte, coletiva, e traz marcas, em seu processamento, das<br />
várias relações que se estabelecem entre seus agentes (pessoas, instrumentos, palavras,<br />
<strong>de</strong><strong>do</strong>s), muitas <strong>de</strong>las codificadas através <strong>de</strong> números.<br />
Um olhar pragmático é necessário para enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> forma mais objetiva como essas<br />
relações são imbricadas no trabalho <strong>de</strong> criação. Afinal, faz parte <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong><br />
compositor a escolha sobre a distribuição e funcionamento das configurações <strong>de</strong><br />
produção. Conseqüentemente, das partes e das ações que se <strong>de</strong>flagrarão a partir<br />
<strong>de</strong>las. Tarefa prece<strong>de</strong>nte a outras, que, gran<strong>de</strong> parte das vezes, são cobertas pelas<br />
técnicas tradicionais <strong>de</strong> composição (ou <strong>de</strong> arranjo), tais como as relações motívicas,<br />
melódicas, tímbricas e formais.<br />
Estas dinâmicas <strong>de</strong> produção, realizadas a partir da focalização <strong>do</strong> trabalho criativo
em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s parâmetros ou habilida<strong>de</strong>s, são chamadas neste trabalho <strong>de</strong> ‘jogos<br />
criativos’. Técnicas usadas na pedagogia da composição (como o contraponto ou a<br />
harmonia) são incluídas nesta categoria. A aplicação da teoria das partições à prática<br />
da composição po<strong>de</strong> ser uma fonte <strong>de</strong> infindáveis e novos jogos criativos, foca<strong>do</strong>s<br />
em parâmetros <strong>de</strong> produção que até agora foram <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong>s a cargo da intuição<br />
<strong>do</strong> compositor.<br />
Olhar pragmaticamente significa restringir a observação ao compositor e sua relação<br />
com a partitura. Sem, portanto, consi<strong>de</strong>rar a questão <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> sonoro e a escuta<br />
(estesis), que muitas vezes po<strong>de</strong> ter uma relação indireta, ou até nenhuma, com<br />
as práticas <strong>de</strong> produção (poiesis), como bem assinala Nattiez (2005, p. 241-248).<br />
Significa, além disso, olhar o compositor como um encena<strong>do</strong>r, um diretor <strong>de</strong> atores<br />
(sejam eles instrumentos, instrumentistas, entida<strong>de</strong>s sonoras, motivos, timbres)<br />
que interagem, estabelecen<strong>do</strong> alianças e confrontos, e compon<strong>do</strong> assim um enre<strong>do</strong>,<br />
uma trama.<br />
Ao seguir os passos <strong>de</strong> Euler – músico e matemático – o que é coloca<strong>do</strong> não é uma<br />
perspectiva i<strong>de</strong>alista <strong>de</strong> busca <strong>de</strong> padrões musicais abstratos, ocultos ou imanentes,<br />
ou mesmo estéticos e sonoros, mas uma visão pragmática <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong> compositor.<br />
Compositor que escolhe e que, em suas escolhas, gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>las numéricas,<br />
acaba por <strong>de</strong>senvolver uma prática que se relaciona diretamente com o resulta<strong>do</strong> sonoro,<br />
sem, no entanto, com ele se confundir.<br />
Ao se colocar nesta posição, a Análise Particional preten<strong>de</strong> cumprir alguns objetivos:<br />
• Construir uma taxonomia exaustiva <strong>do</strong> campo das partições, bem como um<br />
espaço topologicamente organiza<strong>do</strong> das relações entre elas, que permite atribuir<br />
a cada partição uma localização, e conferir significa<strong>do</strong>, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os critérios<br />
utiliza<strong>do</strong>s para a <strong>de</strong>finição <strong>do</strong>s particionamentos;<br />
• Dar margem a novos jogos criativos, que estimulem a manipulação consciente<br />
<strong>de</strong> parâmetros que estão, no momento, a cargo da intuição <strong>do</strong> compositor, sem,<br />
no entanto, abrir mão da mesma;<br />
• Oferecer ferramentas para a análise <strong>de</strong> peças em que abordagens anteriores possam<br />
não ter si<strong>do</strong> bem sucedidas; alguns exemplos são forneci<strong>do</strong>s em Gentil-<br />
Nunes 2009;<br />
• Possibilitar a criação <strong>de</strong> tipologias, que po<strong>de</strong>m ser aplicadas ao campo da arquivologia,<br />
no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>limitar campos <strong>de</strong> atuação e <strong>de</strong> gêneros <strong>de</strong> particionamento,<br />
<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o tipo <strong>de</strong> tratamento da<strong>do</strong> às progressões<br />
particionais (foi visto, por exemplo, que o discurso tradicional <strong>de</strong> música <strong>de</strong><br />
concerto prioriza um tipo <strong>de</strong> particionamento, enquanto escolas mais mo<strong>de</strong>rnas,<br />
como a <strong>de</strong> Darmstadt, priorizam outros tipos).<br />
345
346<br />
A teoria das partições<br />
Uma partição <strong>de</strong> um número inteiro não-negativo n é uma representação <strong>de</strong> n<br />
como uma soma <strong>de</strong> números inteiros positivos, chama<strong>do</strong>s soman<strong>do</strong>s ou partes da<br />
partição, sen<strong>do</strong> irrelevante a or<strong>de</strong>m <strong>do</strong>s soman<strong>do</strong>s. O número cinco, por exemplo,<br />
tem sete partições - ou seja, sete maneiras com que po<strong>de</strong> ser representa<strong>do</strong> pela soma<br />
<strong>de</strong> outros números inteiros, o que caracteriza a função p(n). No exemplo cita<strong>do</strong>,<br />
p(5) = 7, uma vez que o conjunto das partições <strong>de</strong> cinco é {5, 4+1, 3+2, 3+1+1,<br />
2+2+1, 2+1+1+1, 1+1+1+1+1}, conjunto com sete elementos. Esse conjunto é representa<strong>do</strong><br />
abreviadamente por {5, 41, 32, 312, 221, 213, 15}, on<strong>de</strong> na base estão representadas<br />
as partes, e nos índices sua multiplicida<strong>de</strong>.<br />
O cálculo da função p(n), ainda que se constitua apenas a partir da aparentemente<br />
simplória adição <strong>de</strong> termos inteiros e positivos, apresenta gran<strong>de</strong> complexida<strong>de</strong>. A<br />
fórmula <strong>de</strong> cálculo direto foi construída e aperfeiçoada por matemáticos diversos<br />
(Hardy e Ramanujan, 1918; Ra<strong>de</strong>macher 1937, 1943 e 1973) e envolve uma série<br />
<strong>de</strong> elementos complexos, tais como a função Delta <strong>de</strong> Kronecker, a soma <strong>de</strong> De<strong>de</strong>kind,<br />
a função piso <strong>de</strong> Hardy, π e raízes complexas da unida<strong>de</strong>, em combinação<br />
não-trivial (ver Andrews 1976, p. 69, 70 e 72; Weisstein 2010a, b e c; Gentil-Nunes<br />
2009, p. 10).<br />
A representação das partições através <strong>de</strong> gráficos é uma importante ferramenta na<br />
<strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> seus corolários. Dentre elas, <strong>de</strong>stacam-se os diagramas <strong>de</strong> Ferrers<br />
ou diagramas <strong>de</strong> Young, que apresentam as partes por pontos ou quadra<strong>do</strong>s distribuí<strong>do</strong>s<br />
no plano <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o seu tamanho (dimensão horizontal) e sua multiplicida<strong>de</strong><br />
(dimensão vertical).<br />
O reticula<strong>do</strong> <strong>de</strong> Young é a representação <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os diagramas <strong>de</strong> Young, or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s<br />
por relações <strong>de</strong> inclusão. Neste tipo <strong>de</strong> relação, cada bloco prece<strong>de</strong> e se liga<br />
àquele em que po<strong>de</strong> ser graficamente conti<strong>do</strong>, com a aresta superior esquerda coinci<strong>de</strong>nte.<br />
Constitui uma taxonomia exaustiva <strong>de</strong> todas as partições <strong>de</strong> 1 até n, e neste<br />
senti<strong>do</strong> correspon<strong>de</strong> a um importante conceito da análise particional, chama<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
conjunto-léxico – lex(n). Por exemplo, lex(4)= {1, 12, 2, 13, 21, 3, 14, 212, 22, 13, 4}.<br />
O número <strong>de</strong> elementos <strong>do</strong> conjunto-léxico <strong>de</strong> n constitui a soma-léxico <strong>de</strong> n. No<br />
exemplo a soma-léxico <strong>de</strong> 4 é igual a 11, ou seja, Slex(4) = 11.<br />
A análise textural <strong>de</strong> Berry<br />
Em seu trabalho sobre textura (1976, p. 184-199), Wallace Berry propõe a diferenciação<br />
entre o componente sonoro bruto, toma<strong>do</strong> apenas como quantida<strong>de</strong>, e<br />
o que ele chama <strong>de</strong> ‘componente real’, resulta<strong>do</strong> das interações entre os componentes<br />
sonoros e, portanto, já <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> algumas qualida<strong>de</strong>s, como, por exemplo,<br />
<strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> e graus internos <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência/inter<strong>de</strong>pendência.
Figura 1 – Reticula<strong>do</strong> <strong>de</strong> Young restrito às partições para n ≤ 4<br />
(Andrews e Eriksson 2004, p. 108).<br />
Aos componentes reais Berry atribui números, que recebem uma representação<br />
empilhada, caracterizan<strong>do</strong> o número <strong>de</strong> elementos e sua ‘espessura’.<br />
Figura 2 – Milhaud – A peine si Le coeur vous a consi<strong>de</strong>rées, images et figures,<br />
excerto: componentes reais (Berry 1976, p. 187-188).<br />
O movimento <strong>do</strong>s componentes sonoros, sua súbita aparição ou <strong>de</strong>saparecimento,<br />
assim como suas coincidências e contraposições, vão formar o que Berry chama <strong>de</strong><br />
‘progressões e recessões texturais’, que irão se dividir, por sua vez, e <strong>de</strong> maneira esperada,<br />
em curvas quantitativas e qualitativas, respectivamente.<br />
Uma das principais virtu<strong>de</strong>s da análise <strong>de</strong> Berry é a <strong>de</strong>monstração da viabilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> sistematização <strong>do</strong> pensamento textural em nível mais objetivo <strong>do</strong> que o corrente<br />
na pedagogia da composição.<br />
Ainda assim, Berry <strong>de</strong>ixa em aberto algumas questões, relativas à maneira como organiza<br />
seu trabalho. Sua opção pelo compasso como unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> referência <strong>de</strong> observação<br />
é relativamente arbitrária e não é justificada no texto. Além disso, Berry<br />
admite: ‘estamos <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> la<strong>do</strong> algumas diferenciações menores no intervalo <strong>de</strong><br />
movimento, em nível mais superficial’. Berry refere-se a pequenas inflexões que pre-<br />
347
348<br />
cisam ser ignoradas para manter-se a lógica <strong>de</strong> comparação por compasso. Outras<br />
questões <strong>de</strong>ixadas em suspenso são a observação qualitativa das relações entre as diversas<br />
configurações texturais e a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua enumeração exaustiva.<br />
Uma crítica mais <strong>de</strong>talhada, visan<strong>do</strong> esgotar aspectos rítmicos, melódicos e intervalares<br />
<strong>do</strong> exemplo, bem como a abordagem da questão da unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> referência<br />
para comparação das vozes é feita por Gentil-Nunes (2006b). Além disso, a Análise<br />
Particional preten<strong>de</strong> apresentar um ponto <strong>de</strong> partida para enten<strong>de</strong>r algumas<br />
questões <strong>de</strong>ixadas em aberto por Berry.<br />
Análise Particional<br />
A mediação entre as duas teorias (teoria das partições e análise textural <strong>de</strong> Berry),<br />
que constitui a análise particional, é feita através da análise da estrutura interna das<br />
representações numéricas <strong>de</strong> Berry, que são consi<strong>de</strong>radas homólogas às partições.<br />
Toma o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong>riva<strong>do</strong> da virada lingüístico-pragmática (Wittgenstein<br />
1952 e 1956), a partir <strong>do</strong> qual são consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s os atores individuais (instrumentistas,<br />
<strong>de</strong><strong>do</strong>s, fontes sonoras) e suas relações funcionais com os seus pares, <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s<br />
chama<strong>do</strong>s ‘jogos criativos’.<br />
Estas relações são chamadas <strong>de</strong> relações binárias. Em uma escrita a quatro partes,<br />
há, a cada momento, seis relações binárias em andamento. Para cada <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>-número<br />
n, o número <strong>de</strong> relações binárias correspon<strong>de</strong>nte é a combinação <strong>de</strong> n <strong>do</strong>is a<br />
<strong>do</strong>is, operação tomada da análise combinatória (Tucker 1995, p. 181). É o que<br />
acontece no ensino <strong>do</strong> contraponto, por exemplo, on<strong>de</strong> a contextualização <strong>do</strong> discurso<br />
está ligada à consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s intervalos, como quintas e oitavas<br />
paralelas. Para encontrar estes intervalos, observam-se as diversas interações<br />
entre partes – no caso <strong>de</strong> um coro misto a quatro partes (SATB), on<strong>de</strong> são consi<strong>de</strong>radas<br />
então as relações TB, AB, SB, ST e AS (seis relações).<br />
As relações binárias, por si mesmas, são apenas um índice da complexida<strong>de</strong> relacional<br />
crescente, obtida no incremento da <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>-número. Por outro la<strong>do</strong>,<br />
quan<strong>do</strong> Berry <strong>de</strong>fine suas configurações texturais, ele está, similarmente às práticas<br />
<strong>de</strong> contraponto e da harmonia, comparan<strong>do</strong> as várias partes vocais. O filtro utiliza<strong>do</strong>,<br />
que é a combinação entre congruência rítmica e direções <strong>de</strong> movimento, é o<br />
que permite com que o autor agrupe ou diferencie os componentes reais.<br />
Em configurações texturais sucessivas, os componentes estarão, a cada momento,<br />
atualizan<strong>do</strong> suas relações. Assim como as configurações texturais formam curvas<br />
quantitativas e qualitativas, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com Berry, as relações binárias também vão<br />
se ajustan<strong>do</strong>, crian<strong>do</strong> assim um movimento autônomo.<br />
Para cada partição há uma disposição <strong>de</strong> relações binárias específica. Seguin<strong>do</strong>-se<br />
um critério <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> (que no caso <strong>de</strong> Berry, repita-se, é a congruência rítmica<br />
<strong>do</strong>s pontos <strong>de</strong> tempo), as relações são divididas necessariamente em congruentes ou<br />
não congruentes. Através <strong>de</strong>sta diferenciação extraem-se <strong>de</strong> cada ‘partição’ <strong>do</strong>is ín-
dices (índices <strong>de</strong> aglomeração e <strong>de</strong> dispersão – a,d ), que formam um par <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nadas<br />
correspon<strong>de</strong>nte e único.<br />
Particiograma<br />
Uma vez que as partições são finitas e conhecidas como entida<strong>de</strong>s matemáticas, e<br />
sen<strong>do</strong> possível atribuir a cada uma <strong>de</strong>las um par <strong>de</strong> índices que se referem ao seu<br />
grau <strong>de</strong> aglomeração e dispersão internas, torna-se conveniente a plotagem das partições<br />
em um gráfico bidimensional. Constitui-se assim um particiograma, que funciona<br />
como uma topologia <strong>do</strong> campo das partições, uma taxonomia exaustiva das<br />
possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> n e constitui também um espaço <strong>de</strong> fase, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> representar<br />
um ‘conjunto <strong>de</strong> elementos condiciona<strong>do</strong>s por variáveis in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e que evoluem<br />
no tempo’ (Bergé et Al., 1994, p. 91).<br />
Figura 3 – Particiograma para n ≤ 9 (Gentil-Nunes e Carvalho 2003, p. 48 – ver<br />
Anexo 11). Gráfico gera<strong>do</strong> pelo programa PARSEMAT (Gentil-Nunes 2004).<br />
O particiograma também é uma representação <strong>do</strong> conjunto-léxico <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong><br />
número – ou seja, apresenta o repertório <strong>de</strong> possíveis configurações texturais<br />
para uma <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>-número (totais e parciais).<br />
O particiograma também é um tipo <strong>de</strong> reticula<strong>do</strong> <strong>de</strong> Young, posiciona<strong>do</strong> inclina-<br />
349
350<br />
damente, com seu la<strong>do</strong> diagonal direito paralelo ao eixo das abscissas. No entanto,<br />
algumas diferenças importantes são notadas. No particiograma, as partições têm<br />
uma organização geográfica precisa. As distâncias entre elas são significantes e quantificadas,<br />
o que não acontece no reticula<strong>do</strong> <strong>de</strong> Young. Po<strong>de</strong>-se mensurar a diferença,<br />
no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> relacional, entre duas partições, pelo intervalo métrico<br />
entre as duas. Por exemplo, existe uma proximida<strong>de</strong> maior entre as partições [27]<br />
e [127] <strong>do</strong> que existe entre as partições [36] e [127], apesar <strong>de</strong> haver uma vizinhança<br />
simples e simétrica entre as três no reticula<strong>do</strong> <strong>de</strong> Young.<br />
O gráfico herda da função p(n) a estruturação fractal, e assim não se coaduna graficamente<br />
com progressões exponenciais, ainda que apresente um certo nível <strong>de</strong><br />
previsibilida<strong>de</strong>. Além disso, a distribuição das partições é bastante <strong>de</strong>sequilibrada,<br />
com um pre<strong>do</strong>mínio notável <strong>de</strong> partições mais dispersas, próximas ao eixo das coor<strong>de</strong>nadas.<br />
A plotagem <strong>de</strong> valores extraí<strong>do</strong>s <strong>de</strong> excerto musicais, referentes aos índices <strong>de</strong> aglomeração<br />
e dispersão, <strong>de</strong>finem trajetórias no particiograma, que correspon<strong>de</strong> à apresentação<br />
sucessiva das partições. A forma <strong>de</strong>stas trajetórias constitui gestos que<br />
po<strong>de</strong>m ser reconheci<strong>do</strong>s por seu contorno. Alguns <strong>de</strong>les po<strong>de</strong>m ser reconheci<strong>do</strong>s,<br />
como o estilo fugato ou a estruturação responsorial (ver Gentil-Nunes 2009, p. 41-<br />
43).<br />
Para o entendimento <strong>de</strong>stes movimentos, é necessário estabelecer a diferenciação<br />
entre ‘grau conjunto’ e ‘salto’, <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> particiograma. Como o particiograma está<br />
organiza<strong>do</strong> homologamente ao reticula<strong>do</strong> <strong>de</strong> Young, que é um conjunto parcialmente<br />
or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>, é possível fazer leituras a partir <strong>de</strong> or<strong>de</strong>ns parciais embutidas na<br />
estrutura <strong>do</strong> particiograma e <strong>de</strong>finir conjunções e disjunções <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com estas<br />
or<strong>de</strong>ns. Outra maneira <strong>de</strong> extrair or<strong>de</strong>ns parciais é através <strong>do</strong>s próprios índices, ou<br />
seja, usan<strong>do</strong> a organização interna das partições, representada pelos pares (a, d),<br />
para encontrar conjunções e disjunções.<br />
Progressões particionais<br />
Cinco or<strong>de</strong>ns parciais são observadas para classificação das progressões entre partições:<br />
Redimensionamento (m) – refere-se às operações on<strong>de</strong> existe mudança da dimensão<br />
horizontal (no diagrama <strong>de</strong> Young), ou simultaneamente horizontal e<br />
vertical. Em termos <strong>de</strong> ação, este movimento correspon<strong>de</strong> a um comportamento<br />
unilateral. Enquanto um elemento se afila ou se a<strong>de</strong>nsa, os outros permanecem<br />
inertes.<br />
Revariância (v) – refere-se a operações on<strong>de</strong> existe a modificação da dimensão<br />
vertical. É um comportamento unilateral, como o redimensionamento. Desta<br />
vez, enquanto um elemento novo surge ou um elemento unitário já existente
<strong>de</strong>saparece, os outros permanecem inertes.<br />
Transferência (t) – <strong>de</strong>fine-se quan<strong>do</strong> existe uma modificação complementar e<br />
combinada das dimensões horizontal e vertical. Isso significa a formação <strong>de</strong><br />
uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> colaboração entre atores, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> manter a constância da<br />
<strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>-número. Quan<strong>do</strong> uma parte se afila outras surgem para compensar<br />
a perda <strong>de</strong> <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>; e vice-versa, quan<strong>do</strong> surge uma nova parte, outras se afilam.<br />
Esta é a relação que pre<strong>do</strong>mina nos discursos particionais tradicionais.<br />
Concorrência (c) – constitui-se por um movimento paralelo ou similar (na<br />
mesma direção) <strong>de</strong> ambas as dimensões; ou seja, um movimento combina<strong>do</strong><br />
das dimensões horizontal e vertical. A relação entre atores também é coor<strong>de</strong>nada,<br />
mas no senti<strong>do</strong> da competição entre atores. Quan<strong>do</strong> um se afila, outros<br />
se afilam também e outros <strong>de</strong>saparecem; quan<strong>do</strong> um se a<strong>de</strong>nsa, outros surgem,<br />
também a<strong>de</strong>nsa<strong>do</strong>s. A relação <strong>de</strong> concorrência provoca maiores contrastes e é<br />
a que pre<strong>do</strong>mina no estilo Darmstadt.<br />
Reglomeração (r) – <strong>de</strong>fine-se não pelo movimento <strong>do</strong>s atores, mas <strong>do</strong>s índices: o<br />
índice <strong>de</strong> dispersão fica fixo, enquanto o índice <strong>de</strong> aglomeração é articula<strong>do</strong>.<br />
Ou seja, as relações contrapostas passam <strong>de</strong> um esta<strong>do</strong> mais distribuí<strong>do</strong> entre<br />
atores, para um esta<strong>do</strong> mais concentra<strong>do</strong> em poucos atores, através <strong>do</strong> espessamento<br />
<strong>de</strong> uma das partes.<br />
A simetria <strong>do</strong> arranjo entre as funções <strong>de</strong> redimensionamento, revariância e transferência<br />
é evi<strong>de</strong>nciada quan<strong>do</strong> elas aparecem concomitantemente em um reticula<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> Young enriqueci<strong>do</strong> com a indicação <strong>do</strong>s pares <strong>de</strong> índices (a, d).<br />
Figura 4 – Reticula<strong>do</strong> <strong>de</strong> Young para as partições com <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>-número ≤ 6 e explicitamento<br />
das or<strong>de</strong>ns parciais circunscritas. Em cada caixa são indicadas as partições<br />
e o par correspon<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> índices <strong>de</strong> aglomeração e dispersão. Concepção<br />
original <strong>do</strong> presente autor.<br />
A caracterização <strong>de</strong>stes movimentos proporciona uma medida da ‘distância’ entre<br />
partições, <strong>de</strong>finida pela trajetória mínima, ou seja, aquela com menor número <strong>de</strong><br />
351
352<br />
movimentos, necessária para chegar <strong>de</strong> um ponto a outro. Por exemplo, <strong>de</strong> [1] para<br />
[13], há <strong>do</strong>is movimentos <strong>de</strong> redimensionamento e um <strong>de</strong> revariância – representa<strong>do</strong>s<br />
por [m2v1], a mesma distância que existe entre [3] e [24], e que constitui também<br />
uma relação <strong>de</strong> concorrência, na medida em que ambos os índices crescem na<br />
mesma direção; <strong>de</strong> [14] para [4], há uma relação múltipla <strong>de</strong> transferência, ou seja,<br />
[t4]; já <strong>de</strong> [14] para [4], há duas revariâncias negativas e uma transferência negativa<br />
– ou seja, [v -2t -1]. Estes <strong>do</strong>is últimos exemplos não constituem relações <strong>de</strong> concorrência,<br />
uma vez que os comportamentos <strong>do</strong>s índices são diferencia<strong>do</strong>s (um sobe e<br />
outro <strong>de</strong>sce).<br />
A representação <strong>de</strong> distâncias entre partições permite o tratamento intervalar. Ou<br />
seja, a aplicação <strong>de</strong> qualquer tipo <strong>de</strong> operação <strong>de</strong> transposição, inversão, retrogradação,<br />
serialização ou outras técnicas <strong>de</strong> manipulação composicional. A característica<br />
parcialmente or<strong>de</strong>nada <strong>do</strong> espaço <strong>de</strong> partições torna estas operações mais<br />
flexíveis e com resulta<strong>do</strong>s menos previsíveis que suas contrapartidas tradicionais.<br />
O que se po<strong>de</strong> constituir em gran<strong>de</strong> vantagem no processo criativo, uma vez que<br />
uma mesma estrutura <strong>de</strong> progressões po<strong>de</strong> gerar progressões reais diversas, e, no entanto,<br />
com características semelhantes. Note-se, além disso, que as operações são comutativas,<br />
ou seja, ainda que a distância seja medida por trajetórias distintas (por<br />
exemplo, < 1 2 3 13> ou ), o resulta<strong>do</strong> da medida será o mesmo (no caso,<br />
[a2d]).<br />
In<strong>de</strong>xograma<br />
As trajetórias <strong>do</strong> particiograma acabam por explicitar o inventário <strong>de</strong> todas as partições<br />
utilizadas em uma <strong>de</strong>terminada obra ou excerto, contra o conjunto-léxico<br />
referente à maior <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>-número encontrada. No entanto, a visualização da<br />
progressão dinâmica <strong>do</strong>s índices no tempo fica obscurecida pelos cruzamentos, que<br />
eventualmente são engendra<strong>do</strong>s pelas trajetórias no particiograma.<br />
O in<strong>de</strong>xograma é uma forma <strong>de</strong> representar essa evolução <strong>do</strong>s índices <strong>de</strong> aglomeração<br />
e dispersão, plotan<strong>do</strong>-os contra o eixo temporal. Uma vez que ambos os índices<br />
são sempre positivos, foram arranja<strong>do</strong>s em uma representação espelhada, on<strong>de</strong><br />
a aglomeração é plotada negativamente. Assim, a distância entre os pontos <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s<br />
pelos índices passa a ser também uma medida visual da <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>-número.<br />
O objetivo o in<strong>de</strong>xograma é bem diferente <strong>do</strong> particiograma. O in<strong>de</strong>xograma <strong>de</strong>staca<br />
os movimentos <strong>do</strong>s índices no tempo e tem, portanto, homologia com a partitura.<br />
Permite, assim, a comparação com o texto musical <strong>de</strong> forma mais direta, ao<br />
mesmo tempo em que traz informações novas em relação às partições, que o particiograma<br />
não mostra claramente, como, por exemplo, suas durações.<br />
O <strong>de</strong>senho forma<strong>do</strong> pelos índices enseja a formação <strong>de</strong> áreas poligonais fechadas,<br />
que têm início e término em partições pequenas (preferencialmente a partição [1],<br />
on<strong>de</strong> ambos os índices são zera<strong>do</strong>s), e que são chamadas, na Análise Particional, <strong>de</strong><br />
bolhas.
Figura 5 – Elementos <strong>do</strong> in<strong>de</strong>xograma: 1) legenda abreviada para os índices <strong>de</strong><br />
aglomeração e dispersão; 2) representação abreviada das partições; 3) bolhas;<br />
4) indicação <strong>do</strong>s pontos <strong>de</strong> ataque; 5) pontos <strong>de</strong> tempo (beats). Gráfico gera<strong>do</strong><br />
pelo programa PARSEMAT (Gentil-Nunes 2004).<br />
O contorno das bolhas constrói padrões que po<strong>de</strong>m ser usa<strong>do</strong>s como critérios <strong>de</strong><br />
segmentação, constituin<strong>do</strong> assim uma ferramenta <strong>de</strong> análise musical.<br />
Uma mediação<br />
O trabalho ‘Análise particional: uma mediação entre composição musical e a teoria das<br />
partições’ foi <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong> em 2009, como tese <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong> em Linguagem e Estruturação<br />
Musical, pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro – UNIRIO.<br />
Neste trabalho, foram apreciadas três aplicações da análise particional, correspon<strong>de</strong>ntes<br />
a três critérios <strong>de</strong> filtragem das relações binárias: particionamento rítmico, linear<br />
e <strong>de</strong> eventos. Cada aplicação parte <strong>de</strong> teorias analíticas importantes,<br />
<strong>de</strong>senvolvidas durante o século XX (Berry 1976, Schenker 1935 e Cage 1955). A<br />
partir <strong>de</strong>las, foram analisadas pequenas peças <strong>de</strong> autores <strong>de</strong> música <strong>de</strong> concerto<br />
(Beethoven, Schöenberg, Webern, Bach, Gentil-Nunes, Ferneyhough), com a finalida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> verificar a pertinência analítica da teoria, através da comparação com<br />
outros tipos <strong>de</strong> análise.<br />
As análises contaram com a ajuda <strong>de</strong> ferramentas computacionais, programadas<br />
pelo autor (PARSEMAT), que auxiliaram na leitura das partituras, através <strong>de</strong> arquivos<br />
MIDI, e na confecção <strong>do</strong>s gráficos, a partir <strong>do</strong>s quais se faz a leitura <strong>do</strong> discurso<br />
particional. O programa funciona também como mo<strong>de</strong>lagem <strong>do</strong>s algoritmos envolvi<strong>do</strong>s<br />
na tradução da linguagem musical para a linguagem matemática.<br />
Referências Bibliográficas<br />
Andrews, George. The theory of partitions. Cambridge: Cambridge University, 1984.<br />
Bergé, Paul. Dos ritmos ao caos. Tradução <strong>de</strong> Roberto Leal Ferreira. São Paulo: UNESP, 1994.<br />
353
354<br />
Berry, Wallace. Structural functions in music. New York: Dover, 1976.<br />
Cage, John. For more new sounds. In: R. Kostelanetz. John cage: an anthology. New York:<br />
Da Capo, 1942 p. 66.<br />
Cage, John. Experimental music. The Score and I. M. A. Magazine. 1955.<br />
Cage, John. Silence: lectures and writings. Middletown: Wesleyan University Press, 1961.<br />
Euler, Leonhard. Introduction to Analysis of the Infinite. New York: Springer-Verlag, 1748.<br />
Gentil-Nunes, Pauxy. Funções sociais <strong>do</strong>s números e composição <strong>de</strong> música <strong>de</strong> concerto. Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro: UNIRIO, 2006a.<br />
Gentil-Nunes, Pauxy. Parsemas e o méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> Fux. In: Revista Pesquisa e Música. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
Conservatório Brasileiro <strong>de</strong> Música, 2006b v. 1, p. 38-47.<br />
Gentil-Nunes, Pauxy. Análise particional: uma mediação entre composição musical e a teoria<br />
das partições. Tese (Doutora<strong>do</strong> em Música). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação<br />
em Música, Centro <strong>de</strong> Letras e <strong>Artes</strong>, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, 2009.<br />
Gentil-Nunes, Pauxy e Carvalho, Alexandre. Densida<strong>de</strong> e linearida<strong>de</strong> na configuração <strong>de</strong><br />
texturas musicais. <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> IV Colóquio <strong>de</strong> Pesquisa <strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação da<br />
Escola <strong>de</strong> Música da UFRJ. Rio <strong>de</strong> Janeiro: UFRJ, 2003.<br />
Hardy, Godfrey Harold e Ramanujan, Srinivasa. Asymptotic formulae in combinatory analysis.<br />
Proceedings of Lon<strong>do</strong>n Mathematical Society. 17, p. 75 - 115. Oxford University,<br />
1918.<br />
Krumhansl, Carol. Effects of musical context on similarity and expectancy. Systematische<br />
musikwessenschaft, p. 211-250, 1995.<br />
Ra<strong>de</strong>macher, Hans. On the partition function p(n). Proceedings of Lon<strong>do</strong>n Mathematical<br />
Society 43, p. 241 - 254. Oxford University, 1937.<br />
Ra<strong>de</strong>macher, Hans. On the expansion of the partition function in a series. Annals of Mathematics<br />
44, p. 416 - 422. Princeton. Princeton University, 1943.<br />
Ra<strong>de</strong>macher, Hans. Topics in analytic number theory. Berlin: Springer, 1973.<br />
Schenker, Heinrich. Free composition. New York: Longman, 1935 / 1979.<br />
Tucker, R. Applied combinatorics. New York: Wiley, 1995.<br />
Weisstein, Eric W. Partition function p. Wolfram. 2010a. Obti<strong>do</strong> em 26/02/2010, <strong>de</strong><br />
http://mathworld.wolfram.com/PartitionFunctionP.html<br />
Weisstein, Eric W. Kronecker Delta. Wolfram. 2010b. Obti<strong>do</strong> em 26/02/2010, <strong>de</strong><br />
http://mathworld.wolfram.com/KroneckerDelta.html<br />
Weisstein, Eric W. De<strong>de</strong>kind Sum. Wolfram. 2010c. Obti<strong>do</strong> em 26/02/2010, <strong>de</strong><br />
http://mathworld.wolfram.com/De<strong>de</strong>kindSum.html<br />
Wittgenstein, Ludwig. Investigações filosóficas. Petrópolis: Vozes, 1952/1994<br />
Wittgenstein, Ludwig. Remarks on the foundations of mathematics. Oxford: Basil Blackwell,<br />
1956/2001<br />
Referências a Software<br />
Gentil-Nunes, Pauxy. PARSEMAT - Parseme Toolbox Software Package. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
Pauxy Gentil-Nunes. 2004. Disponível em http://sites.google.com/site/<br />
pauxygentilnunes/parsemat
PARSEMAT: uma ferramenta para a Análise Particional<br />
Pauxy Gentil-Nunes<br />
Departamento <strong>de</strong> Composição - EM-UFRJ<br />
O PARSEMAT – PARSEME TOOLBOX Software Package (Gentil-Nunes 2004) é<br />
um conjunto <strong>de</strong> scripts e funções para MATLAB, programa<strong>do</strong> pelo presente autor<br />
com a função específica <strong>de</strong> realizar operações e confeccionar gráficos para a Análise<br />
Particional (Gentil-Nunes 2009). Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong> um arquivo MIDI, forneci<strong>do</strong> pelo<br />
usuário, o programa faz a conversão para uma matriz e, a partir daí, oferece análises<br />
e gráficos específicos à teoria.<br />
Na <strong>de</strong>monstração, preten<strong>de</strong>-se apresentar animações em Powerpoint e Flash, com<br />
explanação breve <strong>do</strong> que trata a Análise Particional, <strong>do</strong>s tipos <strong>de</strong> gráficos gera<strong>do</strong>s<br />
pela ferramenta PARSEMAT, com trechos <strong>de</strong> áudio <strong>de</strong> peças analisadas, acompanhadas<br />
<strong>do</strong>s gráficos correspon<strong>de</strong>ntes gera<strong>do</strong>s pelo programa, ilustran<strong>do</strong> assim a<br />
aplicação musical da análise em questão.<br />
A Análise Particional (Gentil-Nunes 2009) é proposta como abordagem original<br />
da composição e análise musicais, constituída a partir da aproximação entre a teoria<br />
das partições <strong>de</strong> inteiros, <strong>de</strong> Leonhard Euler (1748) e corpos teóricos <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s<br />
durante o século XX (toman<strong>do</strong> como referência principal o trabalho <strong>de</strong> Berry<br />
1976; e com aplicações posteriores a Schenker 1935 e Cage 1942, 1955 e 1961).<br />
Como é uma interface conceitual, possibilita a interação com outros corpos teóricos,<br />
ainda não enseja<strong>do</strong>s.<br />
O objetivo principal da Análise Particional é o fomento <strong>de</strong> novos jogos criativos, e<br />
<strong>de</strong> novas ferramentas <strong>de</strong> controle e avaliação (análise) para o compositor <strong>de</strong> música<br />
<strong>de</strong> concerto ou qualquer outro gênero que se utilize <strong>de</strong> registros escritos como meio<br />
<strong>de</strong> transmissão.<br />
A teoria das partições é uma área da teoria aditiva <strong>do</strong>s números, que trata da representação<br />
<strong>de</strong> números inteiros como somas <strong>de</strong> outros números inteiros. Uma<br />
partição <strong>de</strong> um número inteiro não-negativo n é uma representação <strong>de</strong> n como uma<br />
soma <strong>de</strong> números inteiros positivos, chama<strong>do</strong>s soman<strong>do</strong>s ou partes da partição,<br />
sen<strong>do</strong> irrelevante a or<strong>de</strong>m <strong>do</strong>s soman<strong>do</strong>s. O número cinco, por exemplo, tem sete<br />
partições - ou seja, sete maneiras com que po<strong>de</strong> ser representa<strong>do</strong> pela soma <strong>de</strong> outros<br />
números inteiros.<br />
A interface entre a teoria matemática e as teorias composicionais ou analíticas, que<br />
constitui a Análise Particional, é alcançada através da análise da estrutura interna<br />
das representações numéricas <strong>de</strong> Berry, que são consi<strong>de</strong>radas homólogas às partições.<br />
Toma como referência o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong>riva<strong>do</strong> da virada ligüístico-pragmática<br />
<strong>do</strong> “Segun<strong>do</strong> Wittgenstein”, a partir <strong>do</strong> qual são consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s os atores individuais<br />
(instrumentistas, <strong>de</strong><strong>do</strong>s, fontes sonoras) e suas relações funcionais com os seus pares,<br />
355
356<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s ‘jogos criativos’. Através da diferenciação <strong>de</strong>stas relações em<br />
congruentes e não-congruentes (<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com critérios pré-<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s pelas teorias<br />
composicionais ou analíticas, que funcionam, assim, como referências conceituais),<br />
extrai <strong>de</strong> cada ‘partição’ <strong>do</strong>is índices (índices <strong>de</strong> aglomeração e <strong>de</strong> dispersão<br />
– a,d), que formam um par <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nadas correspon<strong>de</strong>nte e único.<br />
A partir <strong>do</strong>s índices, são obtidas representações gráficas <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s dinâmicos <strong>do</strong><br />
sistema <strong>de</strong> uma peça ou trecho musical, tanto na forma <strong>de</strong> um espaço <strong>de</strong> fase (particiograma),<br />
quanto na forma <strong>de</strong> gráfico linear (in<strong>de</strong>xograma). Os contornos forma<strong>do</strong>s<br />
pelas trajetórias no particiograma fornecem mapeamentos exaustivos <strong>do</strong>s<br />
esta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> trecho musical; e o movimento <strong>do</strong>s índices (a,d) no in<strong>de</strong>xograma<br />
permitem a segmentação e análise <strong>do</strong> trecho a partir <strong>de</strong> recorrências <strong>do</strong>s<br />
contornos, chamadas <strong>de</strong> ‘bolhas’.<br />
Cinco categorias são estabelecidas para classificação das progressões entre partições:<br />
redimensionamento, revariância, transferência, concorrência e reglomeração.<br />
A partir <strong>de</strong>las, a tipologia <strong>do</strong>s discursos particionais é viabilizada.<br />
Em Gentil-Nunes (2009), foram apreciadas três aplicações da análise particional,<br />
correspon<strong>de</strong>ntes a três critérios <strong>de</strong> filtragem das relações binárias: particionamento<br />
rítmico, linear e <strong>de</strong> eventos. Cada aplicação parte <strong>de</strong> teorias analíticas importantes,<br />
<strong>de</strong>senvolvidas durante o século passa<strong>do</strong> (Berry 1976, Schenker 1935 e Cage 1955).<br />
A partir <strong>de</strong>las, foram analisadas pequenas peças <strong>de</strong> alguns autores <strong>de</strong> música <strong>de</strong> concerto<br />
(Beethoven, Schöenberg, Webern, Bach, Gentil-Nunes, Ferneyhough), com<br />
a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> verificar a pertinência analítica da teoria, através da comparação com<br />
outros tipos <strong>de</strong> análise. O trabalho foi <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong> em 2009, como tese <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong><br />
em Linguagem e Estruturação Musical, pela UNIRIO.<br />
MATLAB (www.mathworks.com) é um ambiente <strong>de</strong> programação volta<strong>do</strong> para aplicações<br />
matemáticas e científicas. Sua principal característica é a linguagem <strong>de</strong>senvolvida<br />
especificamente para o trabalho com matrizes. As unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> construção<br />
<strong>do</strong>s programas são as funções e scripts. A principal diferença entre eles é que as funções,<br />
na maior parte das vezes, recebem e retornam variáveis, enquanto que os<br />
scripts apenas cumprem seqüências <strong>de</strong> coman<strong>do</strong>s. As funções e scripts agrupam-se<br />
em pacotes chama<strong>do</strong>s <strong>de</strong> toolboxes (caixas <strong>de</strong> ferramentas). O próprio MATLAB<br />
funciona como toolbox, propon<strong>do</strong> funções primitivas básicas, a partir das quais o<br />
ambiente é constituí<strong>do</strong>.<br />
Uma vez que o acréscimo <strong>de</strong> uma toolbox agrega novas possibilida<strong>de</strong>s ao ambiente,<br />
a modularida<strong>de</strong> <strong>do</strong> sistema é garantida. O PARSEMAT, por exemplo, utiliza algumas<br />
funções da MIDI TOOLBOX (Eerola e Toiviainen 2004c), construída para ler e manipular<br />
arquivos MIDI. Várias das funções da MIDI TOOLBOX são baseadas em trabalhos<br />
recentes <strong>de</strong> importante pesquisa<strong>do</strong>res na área <strong>de</strong> teoria e cognição musicais<br />
(Lerdahl 1983, Thompson 1994, Krumhansl 1995, Repp 1994, entre outros – ver<br />
Eerola e Toiviainen 2004a e 2004b).
Os gráficos gera<strong>do</strong>s por PARSEMAT apresentam informações diversas sobre o arquivo<br />
MIDI e divi<strong>de</strong>m-se em <strong>do</strong>is tipos.<br />
In<strong>de</strong>xogramas – on<strong>de</strong> os vetores referentes aos índices <strong>de</strong> aglomeração e dispersão<br />
apresentam-se representa<strong>do</strong>s por linhas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, em áreas distintas<br />
<strong>do</strong> gráfico, plota<strong>do</strong>s contra o eixo horizontal, que representa o tempo. In<strong>de</strong>xograma<br />
traça linhas retas entre as junções, o que explicita visualmente, através<br />
<strong>do</strong>s contornos das linhas, as recorrências ou semelhanças entre progressões.<br />
Particiograma – atemporal, representa o inventário das partições encontradas na<br />
tabela <strong>de</strong> partições topologicamente arranjadas <strong>de</strong> forma a explicitar suas relações<br />
<strong>de</strong> parentesco ou proximida<strong>de</strong>. No particiograma, as partições são apresentadas<br />
em <strong>de</strong>staque, contra um fun<strong>do</strong> composto pelo conjunto-léxico<br />
referente à maior <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>-número encontrada no arquivo.<br />
O particiograma, por outro la<strong>do</strong>, além das partições encontradas na tabela <strong>de</strong> partições,<br />
apresenta o conjunto-léxico como fun<strong>do</strong>, com finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contextualização.<br />
A listagem <strong>do</strong> conjunto-léxico é fornecida pela função lexset.<br />
As partições encontradas na tabela são apresentadas, tanto no particiograma como<br />
no in<strong>de</strong>xograma, em sua forma abreviada, ou seja, com as partes representadas por<br />
algarismos e suas multiplicida<strong>de</strong>s por índices. A formatação <strong>de</strong>sejada é produzida<br />
pela função traduz, que transforma os vetores numéricos referentes às partições em<br />
códigos LaTeX.<br />
357
358<br />
o <strong>de</strong>senvolvimento paralelo da mente<br />
e das artes musicais<br />
Apofenia Musical e Emoção Extrínseca em Música<br />
Bernar<strong>do</strong> Pellon <strong>de</strong> Lima Pichin<br />
bernar<strong>do</strong>pellon@yahoo.com.br<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
Resumo<br />
O presente trabalho mostra resumidamente alguns resulta<strong>do</strong>s parciais <strong>de</strong> uma pesquisa<br />
extensa sobre a relação entre música e emoção. É apresenta<strong>do</strong> o termo Apofenia Musical,<br />
que foi a solução conceitual para explicar essa relação que norteou a pesquisa. O<br />
termo é i<strong>de</strong>al Apofenia Musical, pois o ouvinte faz conexões com outras instâncias <strong>de</strong>vi<strong>do</strong><br />
a alguma semelhança, saben<strong>do</strong> da irrealida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas associações. Ou seja, saben<strong>do</strong><br />
que a música não é uma emoção ou qualquer coisa a qual seja associada. Depois disso<br />
é apresenta<strong>do</strong> o conceito <strong>de</strong> Emoção Extrínseca em música, que é quan<strong>do</strong> o ouvinte associa<br />
a música às emoções específicas. Neste tipo <strong>de</strong> pesquisa costuma-se associar elementos<br />
da música presentes na composição e na performance com emoções específicas.<br />
Para direcionar o estu<strong>do</strong> foram selecionadas cinco emoções básicas: alegria, tristeza, ira,<br />
amor / ternura e me<strong>do</strong>. Em um primeiro estágio através <strong>de</strong> uma análise multidimensional<br />
essas emoções básicas são dispostas em um gráfico cartesiano cujas duas dimensões são<br />
valência (positiva e negativa) e intensida<strong>de</strong> (alta ou baixa). Em um segun<strong>do</strong> momento as<br />
emoções básicas são relacionadas em forma <strong>de</strong> tabela com os elementos da estrutura<br />
musical que costumam estarem relaciona<strong>do</strong>s à estas. Ao comparar o resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ssas<br />
duas etapas foi possível mostrar que os elementos da estrutura musical associa<strong>do</strong>s à<br />
cada emoção também corroboram com a idéia <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> e valência. Em seguida, é<br />
discuti<strong>do</strong> como é necessária a combinação <strong>de</strong> alguns fatores musicais para que tornem<br />
possível uma associação <strong>de</strong> uma música com emoção. É nota<strong>do</strong> que essa associação não<br />
é uma regra, e que ouvintes po<strong>de</strong>m discordar nas associações ou não fazer nenhuma. O<br />
que a pesquisa propõe são algumas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> associações entre elementos da estrutura<br />
musical e as emoções.<br />
Apofenia Musical<br />
No processo mental da abstração, as idéias são separadas <strong>do</strong>s objetos. Através <strong>de</strong>sta,<br />
é possível imaginar um resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> questões ou ações sem a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />
processo material. Ser abstrata é uma característica marcante da música, pois, salvo<br />
exceções, não existem correlações diretas entre a arte musical e os objetos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
afora; sen<strong>do</strong> esta talvez a mais abstrata das artes. Não é possível no universo sonoro<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> afora ter uma experiência <strong>de</strong> escuta musical a não ser no contato com a<br />
música. “A <strong>do</strong>utrina que a música é ou <strong>de</strong>veria ser um sistema ‘abstrato’ <strong>de</strong> relacio-
namento estabeleci<strong>do</strong> em um conjunto <strong>de</strong> equações assombrou a estética musical<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre.” (Sparshott, 1980, p.122). Um acor<strong>de</strong>, uma melodia, um ritmo, não<br />
significam nada além <strong>de</strong>les mesmos. Se escutarmos um trecho musical (sem relação<br />
com letra, imagem ou qualquer outro elemento extramusical), não po<strong>de</strong>remos<br />
dizer com precisão o que este significa, simboliza, representa ou comunica. Não<br />
com o tipo <strong>de</strong> precisão <strong>de</strong> uma palavra ou frase.<br />
“Se, confessadamente, a música, na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ‘linguagem in<strong>de</strong>terminada’, não<br />
consegue traduzir conceitos, então a conclusão <strong>de</strong> que ela tampouco po<strong>de</strong> expressar<br />
sentimentos <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s não é psicologicamente irrefutável? O que<br />
torna os sentimentos <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s é justamente seu núcleo conceitual. (Hanslick,<br />
1989, p. 34).”<br />
Sen<strong>do</strong> a música incapaz <strong>de</strong> comunicar conceitos, por conseqüência também é incapaz<br />
<strong>de</strong> comunicar uma emoção. Contu<strong>do</strong>, é notório que existe uma relação forte<br />
da música com as emoções. Então, como é possível explicar como se dá essa relação?<br />
É da natureza <strong>do</strong> ser humano buscar sempre o entendimento <strong>do</strong> que vivencia, não<br />
aceitan<strong>do</strong> presenciar freqüentemente algo que não compreen<strong>de</strong>. Com isso, na escuta<br />
musical é comum que ocorram processos cognitivos associan<strong>do</strong> os eventos musicais<br />
com o que é vivencia<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong>. É durante esses processos cognitivos que<br />
ocorre a relação entre música e emoção. Nestes processos entram em jogo as experiências<br />
anteriores <strong>do</strong> ouvinte com outras músicas, seus gostos, a situação na qual<br />
está escutan<strong>do</strong> a música, se esta é uma música conhecida ou novida<strong>de</strong>, se possui<br />
uma sonorida<strong>de</strong> conhecida ou nova, só para citar alguns <strong>do</strong>s muitos fatores.<br />
Para <strong>de</strong>nominar esse processo feito pelo ouvinte para dar senti<strong>do</strong> à abstração na<br />
música, a pesquisa chegou ao termo “apofenia”, que satisfez a <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> uma nomenclatura<br />
que ilustrasse o processo em que o ouvinte atribui qualida<strong>de</strong>s emocionais<br />
à música.<br />
Para Leon Petchkovsky, apofenia (apophenia) usualmente é consi<strong>de</strong>rada uma “percepção<br />
espontânea <strong>de</strong> conexão e significa<strong>do</strong> <strong>de</strong> um fenômeno sem relação.” (Petchkovsky,<br />
acessa<strong>do</strong> em 2009, p.5). Originalmente o termo foi usa<strong>do</strong> por Klaus Conrad<br />
(1958), em um estu<strong>do</strong> psicopatológico sobre esquizofrenia.<br />
“Inicialmente a vivência/experiência específica da ‘interpretação anormal da<br />
consciência’, ou para a vivência/experiência <strong>do</strong> ‘estabelecimento <strong>de</strong> relação sem<br />
motivo’, é chamada atualmente <strong>de</strong> percepção fantasiosa, representação <strong>de</strong>lirante,<br />
entre outras, e introduzimos a <strong>de</strong>signação ‘apofenia’, com o objetivo <strong>de</strong> ter a<br />
mão uma expressão prática e claramente <strong>de</strong>finida <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> vivência/experiência.”1<br />
(Conrad, 1958, p.46).<br />
O termo é amplamente usa<strong>do</strong> em estu<strong>do</strong>s psicopatológicos, principalmente em<br />
casos <strong>de</strong> esquizofrenia, como também em estu<strong>do</strong>s sobre aparições para-normais, assombrações<br />
e coisas <strong>do</strong> gênero, além <strong>de</strong> atualmente ser aplica<strong>do</strong> em estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mídias<br />
digitais, principalmente gráficas e ligadas à internet. Contu<strong>do</strong>, a apofenia é<br />
359
360<br />
comum em esta<strong>do</strong>s normais, presente no dia-a-dia, e muitas vezes está relacionada<br />
com criativida<strong>de</strong> e com a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontrar senti<strong>do</strong>. “Uma ampla extensão <strong>de</strong><br />
experiências normativas <strong>de</strong> vida (mágoa, trauma, amor e paixão, quase-morte, transferência<br />
psicótica, mas também inspirações criativas e artísticas, momentos <strong>de</strong> numinosida<strong>de</strong><br />
etc.) vêm com um intrínseco elemento apofênico.” (Petchkovsky,<br />
acessa<strong>do</strong> em 2009, p.6).<br />
Um tipo muito comum <strong>de</strong> apofenia é a parei<strong>do</strong>lia. O termo vem <strong>do</strong> grego para (ao<br />
la<strong>do</strong>) + ei<strong>do</strong>s (figura). Um fenômeno que a maioria das pessoas já vivenciou e provavelmente<br />
vivencia com freqüência. São as famosas figuras que achamos ver nas nuvens,<br />
ou em objetos como rosto em um carro ou relógio, figuras formadas por<br />
manchas na ma<strong>de</strong>ira, ou até as interpretações feitas a partir das pranchas <strong>de</strong><br />
Rorschach.<br />
“Esse fenômeno consiste numa imagem (fantástica e extrojetada) criada intencionalmente<br />
a partir <strong>de</strong> percepções reais <strong>de</strong> elementos sensoriais incompletos ou<br />
imprecisos. Por exemplo: ver figuras humanas, cenas, animais, objetos, etc., em<br />
nuvens, em manchas ou relevos <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>s, no fogo, na Lua, etc.; ou ‘ouvir’ sons<br />
musicais com base em ruí<strong>do</strong>s monótonos. Nesses casos, o objeto real passa para<br />
um segun<strong>do</strong> plano.” (Cheniaux, 2002, p.31).<br />
Assim como a apofenia, “a parei<strong>do</strong>lia não é patológica; ocorre em pessoas consi<strong>de</strong>radas<br />
normais. Trata-se <strong>de</strong> um fenômeno bastante relaciona<strong>do</strong> à ativida<strong>de</strong> imaginativa.”<br />
(ibi<strong>de</strong>m). Alguns classificam esse fenômeno como um tipo <strong>de</strong> ilusão, mas<br />
po<strong>de</strong> ser diferencia<strong>do</strong> das <strong>de</strong>mais ilusões “pelo fato <strong>de</strong> o indivíduo estar to<strong>do</strong> o<br />
tempo consciente da irrealida<strong>de</strong> da imagem e <strong>de</strong> sua influência sobre esta.” (ibi<strong>de</strong>m).<br />
Sen<strong>do</strong> que o indivíduo po<strong>de</strong> voluntariamente influenciar a imagem interpretativa<br />
criada. Como coloca<strong>do</strong> por Kivy (1989), “é um fato psicológico difícil<br />
que nós ten<strong>de</strong>mos a ‘animar’ o que nós percebemos. Amarre um pedaço <strong>de</strong> pano ao<br />
re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> cabo <strong>de</strong> uma colher <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira e uma criança irá aceitar esta como um<br />
boneco; mais direto ao ponto, você irá vê-la como uma figura humana.” (Kivy, 1989,<br />
p.57). Apesar <strong>de</strong> Kivy não utilizar o termo, é justamente esse o fenômeno da parei<strong>do</strong>lia.<br />
Percebo que é característica <strong>do</strong> ser humano, <strong>de</strong> uma forma geral, fazer conexões,<br />
encontrar novos senti<strong>do</strong>s, animar o que é percebi<strong>do</strong>. “Parece que nós somos fortemente<br />
direciona<strong>do</strong>s a buscar senti<strong>do</strong>; fazer conexões.” (Petchkovsky, acessa<strong>do</strong> em<br />
2009, p.7). É uma maneira <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r o mun<strong>do</strong> e vivenciá-lo fazen<strong>do</strong> intercâmbios<br />
<strong>do</strong>s seus conhecimentos e das experiências vividas, produzin<strong>do</strong> novos conhecimentos<br />
a partir <strong>de</strong>ssas associações. Por isso, proponho que o termo apofenia<br />
musical se encaixa perfeitamente como uma proposta que ilustre como acontece a<br />
relação entre música e emoção. Essa relação acontece a partir da vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> ouvinte<br />
<strong>de</strong> dar senti<strong>do</strong> a um fenômeno tão abstrato como a escuta musical costuma<br />
ser, e, a partir disto, busca encontrar em outras instâncias conhecidas ao longo da
vida características que aju<strong>de</strong>m a dar senti<strong>do</strong> para a música.<br />
“Música po<strong>de</strong> ser semelhante a outras coisas além das expressões humanas. Mas<br />
assim como nós vemos a face no círculo, e a forma humana na colher <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira,<br />
nós ouvimos o gesto e a fala na música, e não outra coisa. Eu não sugiro,<br />
obviamente, que isto é um fenômeno inteiramente consciente, ou autoconsciente.<br />
Ao contrário, este é suficientemente natural para acontecer na maior<br />
parte sem ser nota<strong>do</strong>. (Kivy, 1989, p.58).”<br />
Este argumento <strong>de</strong> Kivy mostra como a apofenia é exatamente uma possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>screver o processo cognitivo que permite a relação entre música e emoção. Este<br />
termo não só se mostra o mais apropria<strong>do</strong> porque ilustra exatamente o funcionamento<br />
<strong>de</strong>ssa relação, como também o faz sem ter a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criar um paralelo<br />
com outras instâncias que não têm relação nem com música, nem com emoção,<br />
como linguagem, simbolismo, fenômenos visuais, entre outros. Com isso, o termo<br />
apofenia musical foi a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> para ilustrar a relação feita pelos ouvintes entre música<br />
e emoção.<br />
Na parei<strong>do</strong>lia, assim como na apofenia, a interpretação não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> somente da<br />
vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> indivíduo, mas os elementos conti<strong>do</strong>s no que é aprecia<strong>do</strong> é que vão dar<br />
subsídios para a interpretação, e que vão <strong>de</strong>limitar o quão clara é esta. Vejamos as<br />
figuras abaixo:<br />
Figura 1. Foto da superfície <strong>de</strong> marte<br />
Esta primeira é uma foto tirada <strong>de</strong> marte, cuja forma formada pelos relevos e buracos<br />
lembram muito uma face. É muito difícil que uma pessoa não veja uma face, tamanha<br />
é a semelhança que essas formas possuem com uma.<br />
361
362<br />
Figura 2. Foto <strong>de</strong> uma nuvem<br />
Já a segunda figura é uma nuvem e seu formato não é tão claro, po<strong>de</strong> parecer várias<br />
coisas. Se consi<strong>de</strong>rarmos que parece um animal e que a cabeça <strong>de</strong>ste está na esquerda,<br />
este po<strong>de</strong> ser uma rena, um vea<strong>do</strong> ou até um cavalo ou cachorro. Já se consi<strong>de</strong>rássemos<br />
que a cabeça está no canto inferior direito, este po<strong>de</strong> ser um crocodilo, por<br />
exemplo. Também uma pessoa po<strong>de</strong> não associar essa figura a nada, não notar nenhuma<br />
semelhança com algo que conheça. Contu<strong>do</strong>, jamais alguém po<strong>de</strong>ria dizer<br />
que esta segunda figura é uma bola, pois o seu formato não possibilita essa associação,<br />
que é bem distinta da forma circular <strong>de</strong> uma bola.<br />
De mesma or<strong>de</strong>m é a relação entre música e emoção. Existem músicas em que é<br />
muito claro a que emoção po<strong>de</strong> ser associada, e essa opinião é compartilhada pela<br />
maioria <strong>do</strong>s ouvintes; outras músicas vão proporcionar associações diferentes. Outras<br />
ainda não vão possibilitar aos ouvintes, ou à parte <strong>de</strong>les, associações a uma emoção,<br />
porque a combinação <strong>de</strong> fatores musicais não permite uma associação clara.<br />
Contu<strong>do</strong>, algumas associações são incoerentes, pois os fatores pertencentes à música<br />
não são capazes <strong>de</strong> proporcionar uma interpretação com <strong>de</strong>terminada emoção,<br />
ten<strong>do</strong> em vista não apresentarem nenhuma semelhança com esta. Com isso, a associação<br />
da música com emoção não é meramente fruto da vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> ouvinte. A<br />
música <strong>de</strong>ve conter uma combinação <strong>de</strong> fatores musicais que possibilite a associação<br />
com uma ou mais emoções, e quanto mais clara for essa combinação, mais pessoas<br />
vão fazer a mesma associação.<br />
A Emoção Extrínseca<br />
A emoção extrínseca ocorre quan<strong>do</strong> o ouvinte associa a música com emoções específicas,<br />
po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> traçar uma relação clara entre esta e as emoções sentidas e viven-
ciadas na vida. A principal questão no estu<strong>do</strong> da emoção extrínseca está em <strong>de</strong>scobrir<br />
quais elementos po<strong>de</strong>m estar associa<strong>do</strong>s a quais emoções.<br />
“Gran<strong>de</strong> parte das pesquisas empíricas esteve focada na expressão emocional com<br />
a intenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir, por um la<strong>do</strong>, qual emoção po<strong>de</strong> ser seguramente expressa<br />
na música e, por outro la<strong>do</strong>, quais fatores na música contribuem para perceber<br />
a expressão emocional. O último se refere a fatores na estrutura da<br />
composição musical representada na notação musical, como tempo, volume, altura,<br />
mo<strong>do</strong>, melodia, ritmo, harmonia e várias proprieda<strong>de</strong>s formais. (Gabrielsson;<br />
Lindström, 2001, p.223).”<br />
A<strong>de</strong>mais, além <strong>do</strong>s fatores da estrutura musical que estão presentes na composição,<br />
outros fatores também significativos estão conti<strong>do</strong>s na performance musical e possibilitam<br />
o reconhecimento <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s emocionais na música. O que é importante<br />
é somente a associação feita, pelo ouvinte, entre essa música e uma ou mais<br />
emoções, ou seja, o que ela significa para ele, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> também compositores<br />
e intérpretes ouvintes da música composta e tocada. Mesmo que não exista concordância<br />
entre compositores, intérpretes e ouvintes, o importante é a relação <strong>de</strong><br />
cada um com a música em questão.<br />
Ao entrar em contato com o produto sonoro produzi<strong>do</strong> pela junção <strong>do</strong>s elementos<br />
da composição e da performance, o ouvinte traça um paralelo entre to<strong>do</strong>s os<br />
elementos escuta<strong>do</strong>s e uma ou mais emoções que já vivenciou em sua vida. É a relação<br />
<strong>do</strong> ouvinte com a música que vai <strong>de</strong>terminar como este vai interpretar a música<br />
escutada e que paralelo ele vai traçar a partir <strong>de</strong> sua escuta. Não existe um<br />
méto<strong>do</strong> infalível que garanta que qualquer ouvinte vai associar uma música a uma<br />
emoção. E é importante ter a consciência <strong>de</strong> que a relação da música com a emoção<br />
que nos interessa especialmente, no presente trabalho, acontece no ouvinte, e não<br />
na música ou na intenção <strong>de</strong> compositores ou intérpretes. Porém, é possível que<br />
cada uma das emoções encontradas na música esteja habitualmente associada a <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s<br />
fatores da estrutura musical.<br />
1. Emoções básicas em música<br />
Para <strong>de</strong>limitar o objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> foram selecionadas “cinco emoções (alegria, tristeza,<br />
ira, amor / ternura e me<strong>do</strong>) que fora estudadas extensivamente. Essas emoções<br />
representam um ponto natural <strong>de</strong> partida já que são vista como emoções típicas<br />
por pessoas leigas e foram postuladas como as tão faladas ‘emoções básicas’ por cientistas.”<br />
(Juslin, 2001, p.314-5). A seleção <strong>de</strong>ssas emoções é provi<strong>de</strong>ncial, pois são as<br />
mais comumente associadas à música tanto por leigos quanto por compositores.<br />
“As mesmas emoções também ocorrem (algumas mais <strong>do</strong> que as outras) nas marcações<br />
<strong>de</strong> expressão <strong>de</strong> partituras musicais (e.g. festoso, <strong>do</strong>lente, furioso, timoroso, teneramente).”<br />
(Juslin, 2001, p.315). Alguns alegam que da interseção entre elas po<strong>de</strong><br />
surgir outras emoções em música, ou seja, que emoções mais complexas po<strong>de</strong>m sur-<br />
363
364<br />
gir da combinação <strong>de</strong> emoções básicas. “É interessante especular que emoções ‘secundárias’<br />
ou ‘complexas’ possivelmente foram <strong>de</strong>senvolvidas <strong>de</strong>ssas expressões.<br />
Muitos pesquisa<strong>do</strong>res da emoção acreditam que essas emoções são ‘misturas’ <strong>de</strong><br />
emoções básicas.” (ibid, p.316).<br />
Essas emoções básicas muitas vezes são apresentadas em uma abordagem multidimensional,<br />
ilustrada em um gráfico cartesiano que possui usualmente duas dimensões,<br />
em que cada eixo representa o nível <strong>de</strong> uma característica sen<strong>do</strong> a mais comum<br />
valência (positivo e negativo) e ativida<strong>de</strong> (alta ativida<strong>de</strong> e baixa ativida<strong>de</strong>). Cada<br />
uma <strong>de</strong>stas emoções é distribuída <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a gradação que possui <strong>de</strong> cada<br />
uma <strong>de</strong>ssas características. Segue abaixo um gráfico basea<strong>do</strong> em um apresenta<strong>do</strong><br />
em (Juslin, 2001, p.315).<br />
Valência Negativa<br />
Me<strong>do</strong><br />
Ira<br />
Tristeza<br />
Alta Ativida<strong>de</strong><br />
Baixa Ativida<strong>de</strong><br />
Alegria<br />
Amor<br />
Valência Positiva<br />
Figura 3. Abordagem multidimensional das emoções<br />
A posição <strong>de</strong> cada emoção não está proporcionalmente distribuída nos eixos, e nem<br />
possui valores absolutos. É uma organização meramente ilustrativa, e a função <strong>do</strong><br />
gráfico é mostrar como essas emoções são distintas entre si <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os níveis<br />
<strong>de</strong> valência e ativida<strong>de</strong>. De caso em caso, uma emoção po<strong>de</strong> apresentar pequenas diferenças<br />
nos níveis <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> e valência. O mais importante é estar no quadrante<br />
correto. Por exemplo, alegria ter alta ativida<strong>de</strong> e valência positiva, tristeza ter baixa<br />
ativida<strong>de</strong> e valência negativa e assim por diante.<br />
Para ampliar a discussão abaixo apresento a tabela em anexo relacionan<strong>do</strong> os mais<br />
diversos fatores da composição e performance musical com as eleitas emoções básicas.<br />
Para tal, foram usa<strong>do</strong>s três textos: Juslin (2001), Gabrielsson e Lindström
(2001) e Bunt e Pavlicevic (2001), e ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> cada fator serão colocadas as duas<br />
primeiras letras <strong>do</strong> sobrenome <strong>do</strong> primeiro (ou único) autor <strong>do</strong> texto <strong>de</strong> referência,<br />
no caso (Ju), (Ga) e (Bu) respectivamente. Esses autores tiveram contato com uma<br />
vasta bibliografia para propor essa relação entre fatores e emoções, mas como esta<br />
pesquisa não teve contato com essa bibliografia, será mencionada apenas a referência<br />
direta. Em alguns casos, foram leva<strong>do</strong>s em conta alguns nomes que po<strong>de</strong>m ser<br />
consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s sinônimos <strong>de</strong>ssas emoções básicas como, por exemplo, melancolia<br />
para tristeza, ternura para amor, entre outros. A emoção extrínseca provavelmente<br />
acontece em diferentes culturas, mas os resulta<strong>do</strong>s abaixo apresentam por vezes características<br />
próprias da música oci<strong>de</strong>ntal, pois está é a única viável <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>, neste<br />
trabalho, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à maior familiarida<strong>de</strong> com a mesma.<br />
A escolha <strong>do</strong>s parâmetros ativida<strong>de</strong> e valência a<strong>do</strong>tada pela abordagem multifuncional<br />
em algumas pesquisas não é por acaso. Po<strong>de</strong>mos perceber que a maioria <strong>do</strong>s<br />
fatores apresenta<strong>do</strong>s po<strong>de</strong> ser enquadrada em algum <strong>de</strong>sses parâmetros. Ativida<strong>de</strong><br />
esta relacionada a volume, dinâmica, tempo e altura. Alta ativida<strong>de</strong> está relacionada<br />
com volume alto, ou, em outras palavras, dinâmica forte, tempo rápi<strong>do</strong> e notas<br />
agudas. Em contrapartida, baixa ativida<strong>de</strong> está relacionada com volume baixo, ou,<br />
em outras palavras, dinâmica piano, tempo lento e notas graves. Quanto à valência,<br />
aparentemente, pelo menos na cultura oci<strong>de</strong>ntal, parece ter forte ligação com consonâncias<br />
e dissonâncias, e simplicida<strong>de</strong> ou complexida<strong>de</strong>. Valências positivas estão<br />
relacionadas sons consonantes, harmonia simples, melodia com escalas diatônicas,<br />
tonalida<strong>de</strong>, simplicida<strong>de</strong> rítmica e melódica. Valência negativa está relacionada com<br />
sons dissonantes, harmonia complexa, melodias com cromatismo, atonalida<strong>de</strong>,<br />
complexida<strong>de</strong> rítmica e melódica. Outros fatores, como timbre e articulações, estão<br />
mais liga<strong>do</strong>s diretamente a aspectos <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>ssas emoções básicas, e são<br />
menos genéricas.<br />
Esta tabela apresenta associações comuns feitas por ouvintes entre os fatores e emoções,<br />
e a junção <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>sses fatores já possibilita que ouvintes reconheçam semelhança<br />
da música com uma <strong>de</strong>ssas emoções. Contu<strong>do</strong>, apesar <strong>de</strong> possivelmente<br />
po<strong>de</strong>r esperar que uma quantida<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> ouvintes faça uma mesma associação<br />
não há garantias que to<strong>do</strong>s façam o mesmo juízo <strong>de</strong> uma música. O que se<br />
<strong>de</strong>ve ter em mente é que essa tabela não é uma regra. Não é necessário ter to<strong>do</strong>s<br />
esses elementos para configurar uma <strong>de</strong>ssas emoções, e muito menos apenas um<br />
elemento possibilitaria o reconhecimento <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>stas.<br />
É possível que ouvintes diferentes façam associações a emoções diferentes, que<br />
po<strong>de</strong>m ter a valência oposta, contu<strong>do</strong> geralmente são emoções com a mesma ativida<strong>de</strong>.<br />
Isso porque a ativida<strong>de</strong> é mais óbvia, e to<strong>do</strong>s conseguem perceber com precisão<br />
o tempo, dinâmica, volume ou região da melodia, por exemplo. A<strong>de</strong>mais, uma<br />
música po<strong>de</strong> mudar os fatores musicais ao longo <strong>de</strong>sta e com isso gerar uma associação<br />
com uma emoção diferente. Por fim, numa forma mais complexa <strong>de</strong> asso-<br />
365
366<br />
ciação da música com emoção, o ouvinte po<strong>de</strong> reconhecer semelhança na música<br />
com uma ou mais emoções simultaneamente, como por exemplo, alegria e amor,<br />
ou até emoções antagônicas como alegria e tristeza.<br />
O que se <strong>de</strong>ve ter em mente é que esses fatores não estão associa<strong>do</strong>s a essas emoções<br />
porque esse foi o resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> pesquisas em laboratório. Essas associações são feitas<br />
porque esses fatores apresentam características semelhantes ao comportamento,<br />
principalmente à fala, expressões faciais e corporais, sensações provocadas por hormônios<br />
como, por exemplo, adrenalina e en<strong>do</strong>rfina, batimentos cardíaco, dilatação<br />
da pupila, entre muitos outros, que to<strong>do</strong>s vivenciam ao sentir emoções. E para<br />
o entendimento disso não é preciso fazer pesquisa laboratorial ou bibliográfica, pesquisa<br />
<strong>de</strong> campo, ou estu<strong>do</strong>s teóricos <strong>de</strong> música. Para associar uma combinação <strong>de</strong><br />
fatores da estrutura musical a uma emoção ou produzir uma sonorida<strong>de</strong> expressiva<br />
<strong>de</strong> emoção, basta vivenciarmos emoções e termos contato periódico com a música.<br />
Juslin conta que “notoriamente, mesmo crianças (4-12 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>) parecem ser<br />
capazes <strong>de</strong> usar alguns <strong>de</strong>sses fatores para expressar emoção cantan<strong>do</strong>. Por exemplo,<br />
elas usam tempo rápi<strong>do</strong> e volume alto em expressões alegres, enquanto elas usam<br />
tempo lento e volume baixo em expressões tristes.” (Juslin, 2001, p. 316). Isso<br />
ocorre porque certos aspectos da nossa expressivida<strong>de</strong>, principalmente os liga<strong>do</strong>s a<br />
emoções, se assemelham a características musicais. Ou seja, o mo<strong>do</strong> com que indicamos<br />
para o resto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e para nós mesmos o que sentimos po<strong>de</strong> ser expresso<br />
<strong>de</strong> maneira semelhante pela música.<br />
“Quan<strong>do</strong> mães falam com suas crianças, por exemplo, se elas querem acalmá-las,<br />
elas reduzem a velocida<strong>de</strong> e intensida<strong>de</strong> da conversa e falam com contornos melódicos<br />
<strong>de</strong>crescen<strong>do</strong> lentamente. Se, por outro la<strong>do</strong>, mães querem expressar <strong>de</strong>saprovação<br />
a respeito <strong>de</strong> alguma ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sfavorável elas utilizam contornos<br />
curtos, abruptos e pareci<strong>do</strong>s com staccato.” (Juslin, 2001, p.323).<br />
Autores como Juslin e Kivy apontam semelhanças entre expressão vocal <strong>de</strong> emoções<br />
e expressão musical <strong>de</strong> emoções como as principais encarregadas por associações<br />
entre música e emoção. De fato, a expressão vocal das emoções é uma forte fornece<strong>do</strong>ra<br />
<strong>de</strong> fatores que possibilitam a existência da emoção extrínseca em música. Principalmente,<br />
a melodia e to<strong>do</strong>s os fatores que ela envolve, como articulação, escalas,<br />
direção, volume, alguns tipos <strong>de</strong> timbre que lembrem os vocais, ritmo e padrões rítmicos<br />
conti<strong>do</strong> nessa melodia, entre outros, po<strong>de</strong>m ter relação <strong>de</strong> como nos expressamos<br />
verbalmente. Contu<strong>do</strong>, outros fatores como harmonia, texturas, ritmos<br />
sobrepostos, alguns tipos <strong>de</strong> timbre, só para citar exemplos, não estão presentes na<br />
expressão emocional vocal, pois, normalmente, um indivíduo só emite um som<br />
vocal por vez. To<strong>do</strong> e qualquer elemento envolvi<strong>do</strong> na experiência emocional que<br />
possa traçar um paralelo com os fatores da estrutura musical po<strong>de</strong> proporcionar a<br />
associação da música com a emoção, e apesar <strong>de</strong> importante, a expressão vocal é só<br />
um aspecto <strong>do</strong>s vários possíveis, e não é suficiente para dar conta <strong>de</strong> todas as possibilida<strong>de</strong>s<br />
da emoção extrínseca em música.
A pesquisa sugeriu como uma alternativa eficiente para o méto<strong>do</strong> laboratorial estudar<br />
as mais diversas formas <strong>de</strong> expressões e sensações envolvidas no processo emocional,<br />
em diferentes emoções, e propor possibilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> uso <strong>de</strong> fatores da<br />
estrutura musical que possam se assemelhar às emoções. De certa maneira, isso é o<br />
que fazem, mesmo que inconscientemente, compositores (no ato da elaboração <strong>do</strong>s<br />
textos), intérpretes (ao executarem os textos) e ouvintes (ao interpretarem as “sonorida<strong>de</strong>s”<br />
resultantes). Esse tipo <strong>de</strong> abordagem é ainda pouco utiliza<strong>do</strong>, e possivelmente<br />
po<strong>de</strong> obter resulta<strong>do</strong>s mais eficientes <strong>do</strong> que o méto<strong>do</strong> laboratorial, por<br />
possuir semelhanças com o processo natural <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> pelo ser humano ao associar<br />
música e emoção. Ao longo da pesquisa foi feita uma análise comparativa<br />
entre aspectos característicos <strong>de</strong>ssas cinco emoções básicas e os fatores musicais<br />
apresenta<strong>do</strong>s na tabela para as respectivas emoções. Contu<strong>do</strong>, a apresentação <strong>de</strong>sses<br />
resulta<strong>do</strong>s extrapolaria o limite <strong>de</strong> espaço <strong>de</strong>sse trabalho, e por isso não será<br />
incluí<strong>do</strong>.<br />
Conclusão<br />
O ser humano ten<strong>de</strong> a tentar dar senti<strong>do</strong> ao que experiência no mun<strong>do</strong>, e muitas<br />
das vezes fazen<strong>do</strong> conexões entre experiências que possuem semelhanças. Devi<strong>do</strong><br />
ao caráter abstrato da música, esta é constantemente associada a outras experiências<br />
não musicais para dar maior senti<strong>do</strong> a escuta musical. E uma das associações mais<br />
famosas é com emoções. O termo Apofenia Musical se aplica perfeitamente para<br />
<strong>de</strong>screver essa conexão que habitualmente é feita entre música e emoção, ou qualquer<br />
outra experiência não-musical, por apresentar <strong>de</strong> forma sucinta um termo que<br />
engloba esse processo cognitivo sem o fazê-lo por intermédio <strong>de</strong> outra instância<br />
que não seja nem musical nem emocional. É necessária uma combinação entre fatores<br />
da estrutura musical para que aconteça uma associação entre música e uma<br />
emoção específica. Somente um fator normalmente é insuficiente para possibilitar<br />
uma associação. Existem músicas cuja associação com <strong>de</strong>terminada emoção é<br />
comum à maioria das pessoas, pois a combinação <strong>do</strong>s elementos da estrutura musical<br />
possibilita isso. Em outros casos, ouvintes po<strong>de</strong>m discordar quanta a associação.<br />
Contu<strong>do</strong>, existem associações com emoções inviáveis, por os elementos da<br />
estrutura musical não apresentarem semelhança com aspectos <strong>de</strong>ssa emoção. Através<br />
<strong>do</strong> estu<strong>do</strong> da emoção extrínseca em música é possível <strong>de</strong>scobrir como a combinação<br />
<strong>de</strong> elementos conti<strong>do</strong>s na composição e performance musical po<strong>de</strong> gerar uma<br />
associação entre música e emoções específicas, e prever possíveis relações entre elementos<br />
da estrutura musical e emoções. A seleção <strong>de</strong> emoções básicas foi importante<br />
para focar o estu<strong>do</strong> intensivamente. Através <strong>de</strong>sse estu<strong>do</strong> foi percebi<strong>do</strong> que é possível<br />
separar os elementos quanto a categorias <strong>de</strong> valência e ativida<strong>de</strong>, e que isso<br />
possibilita uma maior previsão <strong>de</strong> qual tipo <strong>de</strong> emoção a combinação <strong>do</strong>s elementos<br />
po<strong>de</strong> gerar uma associação. Esse estu<strong>do</strong>, e provavelmente nenhum outro, não<br />
367
368<br />
possibilita a criação <strong>de</strong> regras que garantam que <strong>de</strong>terminada combinação entre fatores<br />
da estrutura musical vai gerar necessariamente uma associação com <strong>de</strong>terminada<br />
emoção. Pessoas diferentes po<strong>de</strong>m associar a música a emoções diferentes, mas<br />
contu<strong>do</strong>, geralmente são emoções com a mesma ativida<strong>de</strong>. O que é possível é <strong>de</strong>limitar<br />
algumas possibilida<strong>de</strong>s e impossibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> associação. Uma boa estratégia<br />
<strong>de</strong> pesquisa alternativa, e talvez até mais eficiente, aos processos laboratoriais é tentar<br />
encontrar nos processos <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>a<strong>do</strong>s por <strong>de</strong>terminada emoção aspectos que<br />
possam possuir semelhança com elementos da estrutura musical. Pois é exatamente<br />
isso que os ouvintes fazem ao associar uma música a uma emoção.<br />
1 Tradução livre <strong>de</strong>: „Wir führten eigangs für das spezifische Erlebnis <strong>de</strong>s abnormen Be<strong>de</strong>utungs-bewuβtseins”<br />
bzw. das Erlebnis <strong>de</strong>r ,,Beziehungsetzung ohne Alaβ“, also für jene<br />
Erlebnisweisen, die gemeinhin auch als Wahnwahrnehmung, Wahnvorstellung usw. Bezeichnet<br />
wer<strong>de</strong>n, die Bezeichnung <strong>de</strong>r Apophänie ein, um einen handlichen und klar <strong>de</strong>finierten<br />
Ausdruck zur Verfügung zu haben für eine Erlebnisform.“<br />
Referências<br />
Bunt, Leslie; Pavlicevic, Mercédès. Music and emotion: perspectives from music therapy.<br />
In: Juslin, Patrick N.; Sloboda, A. John (Ed). Music and Emotion: theory and research.<br />
New York: Oxford University Press, 2001, p.181 -201.<br />
Cheniaux JR, Elie. Manual <strong>de</strong> Psicopatologia. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Guanabara Koogan<br />
S.A, 2002.<br />
Conrad, K. Die beginnen<strong>de</strong> Schizophrenie. Versuch einer Gestaltanalyse <strong>de</strong>s Wahn. Stuttgart:<br />
Thieme, 1958.<br />
Gabrielsson, Alf; Lindström, Erik. The Influence of Musical Structure on Emotional Expression.<br />
In: Juslin, Patrick N.; Sloboda, John A. (Ed). Music and Emotion: theory and<br />
research. New York: Oxford University Press, 2001, p.223-248.<br />
Hanslick, Eduard. Do belo musical: uma contribuição para a revisão da estética musical. Trad.<br />
Nicolino Simone Neto. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989.<br />
Juslin, Patrick N. Communicating Emotion in Music Performance: a review and theoretical<br />
framework. In: Juslin, Patrick N.; Sloboda, John A. (Ed). Music and Emotion: theory<br />
and research. New York: Oxford University Press, 2001, p.309-337.<br />
Kivy, Peter. Sound Sentiment. Phila<strong>de</strong>lphia: Temple University Press. 1989<br />
Petchkovsky, Leon. Some Preliminary Reflections on the Biological Substrate of Meaning-Making<br />
(A Work in Progress). Disponível em: http://www.anzsja.com.au. Acessa<strong>do</strong> em:<br />
17/03/09.<br />
Sparshott, F.E. Aesthetics of Music. In: Sadie, Stanley (Ed.). The New Grove Dictionary of<br />
Music and Musicians. Lon<strong>do</strong>n: Macmillan Publishers, 1980, vol.1, p.120-134.
Desenvolvimento <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s musicais<br />
e aquisição da leitura e escrita:<br />
estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> intervenção e correlação com crianças pequenas<br />
Caroline Bren<strong>de</strong>l Pacheco<br />
carolbren<strong>de</strong>l@gmail.com<br />
Departamento <strong>de</strong> Educação Musical,<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Paraíba<br />
Resumo<br />
Não é <strong>de</strong> hoje que pesquisa<strong>do</strong>res e professores vêem <strong>de</strong>baten<strong>do</strong> sobre os efeitos da música<br />
no <strong>de</strong>senvolvimento geral da criança. Por um la<strong>do</strong>, pesquisa<strong>do</strong>res buscam verificar<br />
a influência <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada exposição ou treinamento musical em outra área <strong>de</strong> conhecimento,<br />
amplian<strong>do</strong> assim o corpo <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s sobre as transferências <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s<br />
cognitivas. De outro la<strong>do</strong>, estudiosos procuram correlacionar a música, assim como as<br />
habilida<strong>de</strong>s envolvidas no fazer musical, a outras áreas <strong>de</strong> conhecimento. Ten<strong>do</strong> em vista<br />
tal interesse, o presente trabalho preten<strong>de</strong> revisar os estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> intervenção e correlação<br />
sobre o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s musicais e a aquisição da leitura e da escrita<br />
<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s com crianças pequenas <strong>de</strong> diferentes regiões <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. A revisão <strong>de</strong>sses<br />
trabalhos objetiva ampliar a discussão sobre o <strong>de</strong>senvolvimento musical infantil e a<br />
aquisição da leitura e escrita, a partir da análise <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s recentes das ciências cognitivas<br />
sobre o tema. Também serão apontadas implicações para futuros estu<strong>do</strong>s.<br />
Habilida<strong>de</strong>s Musicais e Aquisição da Leitura e Escrita:<br />
possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> diálogo<br />
A psicologia da música e os estu<strong>do</strong>s da cognição musical têm toma<strong>do</strong> o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
como uma <strong>de</strong> suas principais linhas <strong>de</strong> pesquisa. Segun<strong>do</strong> Levitin (no prelo<br />
cita<strong>do</strong> em Ilari 2009) estu<strong>do</strong>s sobre o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s musicais, da<br />
percepção e da memória musical, assim como <strong>de</strong> mudanças <strong>de</strong> comportamento e <strong>de</strong><br />
preferências musicais <strong>de</strong> bebês, crianças e a<strong>do</strong>lescentes estão entre as principais produções<br />
<strong>de</strong>stas áreas nos últimos anos. Todavia, é evi<strong>de</strong>nte que o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
musical é somente uma parte <strong>do</strong> amplo <strong>de</strong>senvolvimento infantil. Também por<br />
isso, há algum tempo estudiosos vêem tentan<strong>do</strong> localizar conexões entre o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
musical e o <strong>de</strong>senvolvimento geral das crianças e algumas <strong>de</strong>stas pesquisas<br />
versam sobre as transferências <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s cognitivas.<br />
Analisan<strong>do</strong> a resolução <strong>de</strong> problemas, Sternberg (2000) afirma que a transferência<br />
é um fenômeno amplo no qual o ser humano é capaz <strong>de</strong> ‘transportar’ conhecimentos<br />
ou habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma situação problemática para outra. Portanto, uma<br />
transferência po<strong>de</strong>ria ser positiva - quan<strong>do</strong> a resolução <strong>de</strong> um problema atual é auxiliada<br />
pela resolução <strong>de</strong> um problema anterior - ou negativa - quan<strong>do</strong> a resolução<br />
369
370<br />
<strong>de</strong> um problema anterior dificulta a resolução <strong>de</strong> um problema posterior.<br />
Alguns pesquisa<strong>do</strong>res elaboraram revisões sobre transferências envolven<strong>do</strong> a música.<br />
Ilari (2005) revisou estu<strong>do</strong>s sobre os efeitos das transferências cognitivas entre<br />
contextos levan<strong>do</strong> em consi<strong>de</strong>ração o aprendiza<strong>do</strong> musical e quatro áreas distintas:<br />
a inteligência, a matemática, a linguagem e a leitura. Costa-Giomi (2006) também<br />
resenhou diversos trabalhos, <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s a partir da década <strong>de</strong> 1970, que<br />
versaram sobre os efeitos <strong>do</strong> ensino musical no rendimento escolar, no <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s espaciais e verbais, na memória verbal, na relação entre música<br />
e leitura e em benefícios neurológicos. Segun<strong>do</strong> Costa-Giomi (2006), o<br />
‘benefício mais importante’ é a música na vida das crianças, porém a autora também<br />
ressaltou que a pesquisa que relaciona a música e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s<br />
é importante para compreen<strong>de</strong>rmos melhor o <strong>de</strong>senvolvimento infantil e<br />
suas possíveis implicações na educação musical, uma vez que tais conhecimentos<br />
po<strong>de</strong>m auxiliar na compreensão <strong>de</strong> como as crianças apren<strong>de</strong>m e se <strong>de</strong>senvolvem,<br />
em geral e musicalmente.<br />
A relação entre a música e o aprendiza<strong>do</strong> da leitura tem si<strong>do</strong> bastante abordada,<br />
uma vez que a análise <strong>de</strong> alguns estu<strong>do</strong>s sugere “que o aprendiza<strong>do</strong> musical po<strong>de</strong> ser<br />
útil para o <strong>de</strong>senvolvimento da leitura” (Ilari 2005, p.59). Dentre os diversos componentes<br />
envolvi<strong>do</strong>s no processo <strong>de</strong> aquisição da leitura e da escrita, a consciência<br />
fonológica tem si<strong>do</strong> uma área freqüentemente pesquisada quan<strong>do</strong> se buscam relações<br />
com a música. Além disso, a consciência fonológica foi consi<strong>de</strong>rada por muitos<br />
pesquisa<strong>do</strong>res como uma das gran<strong>de</strong>s conquistas da psicologia mo<strong>de</strong>rna (Bryant<br />
e Goswani 1987 cita<strong>do</strong>s em Car<strong>do</strong>so-Martins, 1996). Todavia, é importante ressaltar<br />
que a consciência fonológica compõe um mecanismo mais amplo conheci<strong>do</strong><br />
como habilida<strong>de</strong>s metalingüísticas. As habilida<strong>de</strong>s metalingüísticas envolvem: (1)<br />
a já referida consciência fonológica, que po<strong>de</strong> ser entendida como uma habilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> análise da linguagem oral a partir <strong>de</strong> suas diferentes unida<strong>de</strong>s sonoras; (2) a consciência<br />
lexical, que é compreendida como a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> segmentação da linguagem<br />
oral em palavras toman<strong>do</strong>-se a função semântica e a função sintático-relacional<br />
das palavras, e; (3) a consciência sintática, que por sua vez abrange a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
reflexão e manipulação da estrutura gramatical das sentenças (Maluf e Barrera 1997;<br />
Barrera e Maluf 2003). Enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o <strong>de</strong>senvolvimento da metalinguagem como<br />
um componente fundamental para o êxito da aquisição da leitura e da escrita (Car<strong>do</strong>so-Martins<br />
1995, Barreira 2003, Barreira e Maluf 2003, Guimarães 2003a, Guimarães<br />
2003b, Guimarães 2001) resta refletir sobre as motivações que unem, com<br />
certa freqüência, as habilida<strong>de</strong>s musicais e a consciência fonológica.<br />
A motivação <strong>de</strong> diversos estudiosos ao <strong>de</strong>linear estu<strong>do</strong>s sobre a música e a consciência<br />
fonológica parece ter uma explicação bastante simples, porém não menos<br />
complexa: a percepção auditiva é ponto chave para as duas áreas. Assim como a percepção<br />
musical é construto <strong>de</strong> nosso envolvimento com a música (Krumhansl
2006), a consciência fonológica, sen<strong>do</strong> habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> análise da linguagem oral, tão<br />
somente ocorre a partir da possibilida<strong>de</strong> perceptiva. Neste momento é importante<br />
salientar que tal análise abarca <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a percepção global <strong>de</strong> similarida<strong>de</strong>s fonológicas<br />
ou <strong>do</strong> tamanho das palavras, até a segmentação e manipulação <strong>de</strong> sílabas e fonemas<br />
(Maluf e Barreira 1997). A percepção <strong>de</strong> similarida<strong>de</strong>s, a segmentação e a<br />
manipulação sonora são algumas das habilida<strong>de</strong>s que po<strong>de</strong>m ser acessadas através<br />
da música e da análise da linguagem oral.<br />
Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> as possíveis interseções entre as áreas e a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s que<br />
vêem sen<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s toman<strong>do</strong> as música e a leitura, principalmente no que se<br />
refere ao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s musicais e da consciência fonológica, parece<br />
pertinente realizar uma revisão <strong>de</strong> seus principais e atuais trabalhos. Objetivan<strong>do</strong><br />
apresentar também as principais características meto<strong>do</strong>lógicas das pesquisas,<br />
na primeira parte serão revisa<strong>do</strong>s alguns estu<strong>do</strong>s que realizaram intervenções pedagógicas<br />
para discorrer sobre o tema; a segunda parte, por sua vez, apresenta estu<strong>do</strong>s<br />
que construíram um <strong>de</strong>sign correlacional para abordar possíveis relações<br />
entre as áreas, e; a última seção preten<strong>de</strong> traçar algumas implicações da análise <strong>de</strong>stes<br />
trabalhos para a área, bem como para futuros estu<strong>do</strong>s.<br />
Estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> intervenção pedagógica:<br />
a criança, a música e a leitura<br />
Os estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> intervenção pedagógica buscam respon<strong>de</strong>r suas questões a partir da<br />
análise <strong>de</strong> pré e pós-testes separa<strong>do</strong>s entre si por um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> intervenção pedagógica,<br />
assim seria possível verificar a influência <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada variável através <strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> seus participantes antes e após o perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> exposição às ativida<strong>de</strong>s<br />
propostas. As pesquisas aqui analisadas ofereceram aulas <strong>de</strong> música para crianças<br />
mexicanas, americanas e cana<strong>de</strong>nses a fim <strong>de</strong> encontrar possíveis relações entre a<br />
música e a aquisição da leitura e da escrita.<br />
Moyeda, Gómes e Flores (2006) verificaram se o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> vocabulário<br />
é influencia<strong>do</strong> pela prática <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s musicais em geral ou por ativida<strong>de</strong>s musicais<br />
específicas que estimulam a memória auditiva e a percepção rítmica, melódica<br />
e harmônica. Para tanto, propuseram uma intervenção pedagógica, que se <strong>de</strong>u através<br />
<strong>de</strong> aulas <strong>de</strong> educação musical, para um grupo <strong>de</strong> 30 crianças mexicanas em ida<strong>de</strong><br />
pré-escolar. As crianças foram divididas em <strong>do</strong>is grupos experimentais e um grupo<br />
controle. Cada grupo experimental participou <strong>de</strong> uma proposta meto<strong>do</strong>lógica diferenciada<br />
e realizou 20 sessões <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s musicais. No ‘Programa <strong>de</strong> intervenção<br />
educativo-musical para promover o vocabulário’ (experimental 1) cada<br />
encontro tinha um tópico central sobre o qual eram <strong>de</strong>senvolvidas diversas ativida<strong>de</strong>s<br />
musicais, com ênfase na (1) repetição <strong>de</strong> padrões rítmicos, (2) memorização<br />
<strong>de</strong> sequências <strong>de</strong> sons, (3) discriminação e elaboração <strong>de</strong> representações gráficas <strong>de</strong><br />
371
372<br />
timbres, ritmos e linhas melódicas; também foram <strong>de</strong>senvolvidas ativida<strong>de</strong>s musicais<br />
associadas a estímulos visuais e movimentos.<br />
Uma adaptação para a língua espanhola <strong>do</strong> Peabody Vocabulary Image Test foi aplicada<br />
com todas as crianças, antes e após a intervenção. No pré-teste os resulta<strong>do</strong>s<br />
foram homogêneos, entretanto, o grupo controle - que não foi envolvi<strong>do</strong> em ativida<strong>de</strong>s<br />
musicais - obteve escores ligeiramente mais altos que os outros <strong>do</strong>is grupos,<br />
porém essa diferença não foi apontada pelas autoras como significativa. Após a realização<br />
das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> educação musical to<strong>do</strong>s os grupos obtiveram escores mais<br />
altos, mas, somente o grupo experimental 1 apresentou diferenças estatísticas significativas<br />
em comparação aos <strong>de</strong>mais grupos no pós-teste. Segun<strong>do</strong> Moyeda et al.<br />
(2006) a análise <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong>monstrou que as ativida<strong>de</strong>s musicais ‘Ritmos, canções<br />
e jogos’ não influenciaram o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> vocabulário das crianças <strong>do</strong><br />
grupo experimental 2.<br />
Entretanto, algumas questões <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Moyeda et al. (2006) não ficaram esclarecidas.<br />
Entre elas estão, qual o motivo que levou as pesquisa<strong>do</strong>ras a atuarem, em<br />
sala <strong>de</strong> aula, somente no grupo experimental 1? No que consistiu a intervenção<br />
‘Ritmos, canções e jogos’? Por que foram <strong>de</strong>talhadas somente as ativida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> ‘Programa<br />
<strong>de</strong> intervenção educativo-musical para promover o vocabulário’? Respon<strong>de</strong>r<br />
a essas questões parece fundamental para analisar uma série <strong>de</strong> itens que, talvez,<br />
tenham contribuí<strong>do</strong> para os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s pelas pesquisa<strong>do</strong>ras.<br />
Em outro estu<strong>do</strong>, Gromko (2005) apontou a consciência fonêmica como o mecanismo<br />
capaz <strong>de</strong> explicar a relação entre o aprendiza<strong>do</strong> musical e as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
leitura. Uma hipótese <strong>de</strong> ‘transferência próxima’ foi estabelecida supon<strong>do</strong> que o<br />
fazer musical ativo e a associação <strong>do</strong> som à sua representação escrita po<strong>de</strong>m ajudar<br />
a <strong>de</strong>senvolver processos cognitivos similares àqueles necessários na segmentação da<br />
palavra em fonemas. O estu<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong> com 103 alunos <strong>de</strong> educação infantil <strong>de</strong><br />
duas escolas norte-americanas buscou verificar se a instrução musical po<strong>de</strong>ria aumentar<br />
o <strong>de</strong>senvolvimento da consciência fonêmica em crianças pequenas, principalmente,<br />
na fluência da segmentação fonêmica (Gromko 2005).<br />
As crianças foram divididas em grupo experimental (n=43), exposto a quatro meses<br />
se aulas semanais <strong>de</strong> música, e grupo controle (n=60) que não foi engaja<strong>do</strong> em nenhuma<br />
ativida<strong>de</strong>. Três aplicações <strong>do</strong> Dynamic Indicators of Basic Early Literacy<br />
Skills Test (sub-testes <strong>de</strong> fluência em: som inicial, nomeação <strong>de</strong> letras, segmentação<br />
fonêmica e nas palavras sem senti<strong>do</strong>) avaliaram os participantes em pré e póstestes<br />
(Gromko 2005).<br />
O grupo experimental obteve resulta<strong>do</strong>s mais baixos no pré-teste em relação ao<br />
grupo controle. Segun<strong>do</strong> a autora, questões sócio-econômicas po<strong>de</strong>m ter influencia<strong>do</strong><br />
esse resulta<strong>do</strong>, uma vez que crianças mais pobres não são necessariamente<br />
menos capazes, mas, po<strong>de</strong>m apresentar maior dificulda<strong>de</strong> assim que entram na escola<br />
(Gromko 2005). Esta conclusão levanta a questão sobre a necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> con-
trole das diferenças sócio-econômicas, ten<strong>do</strong> em vista que elas provavelmente influenciaram<br />
diretamente os resulta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> em questão. Nos pós-testes as<br />
crianças <strong>do</strong> grupo experimental obtiveram ganhos significativos somente no subteste<br />
<strong>de</strong> fluência na segmentação fonêmica, o que segun<strong>do</strong> a autora confirma a hipótese<br />
<strong>de</strong> ‘transferência próxima’, que por sua vez, supunha que o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
da percepção auditiva, através <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong> musical, traria ganhos ao <strong>de</strong>senvolvimento<br />
da consciência fonêmica das crianças pequenas. Segun<strong>do</strong> Gromko (2005),<br />
po<strong>de</strong>riam ser levantadas três possíveis explicações para esta transferência: (a) os resulta<strong>do</strong>s<br />
foram obti<strong>do</strong>s por diferenças meto<strong>do</strong>lógicas <strong>de</strong> ensino nas duas escolas;<br />
(b) o grupo experimental obteve escores baixos no pré-teste e este resulta<strong>do</strong> teria aumenta<strong>do</strong><br />
a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> melhoria nas testagens subsequentes; (c) o efeito Hawthorne,<br />
que atribui a melhora <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s ao aumento da atenção dada por um<br />
adulto às crianças, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> instrução. Entretanto, segun<strong>do</strong><br />
a própria autora, se essas explicações fossem válidas, as crianças <strong>do</strong> grupo experimental<br />
teriam obti<strong>do</strong> ganhos significativos em to<strong>do</strong>s os sub-testes e não somente no<br />
sub-teste <strong>de</strong> fluência na segmentação fonêmica (Gromko 2005).<br />
Uma dificulda<strong>de</strong> encontrada na análise <strong>de</strong>stes resulta<strong>do</strong>s diz respeito à possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> explicar os da<strong>do</strong>s por diferenças meto<strong>do</strong>lógicas empregadas pelas duas escolas<br />
participantes <strong>do</strong> estu<strong>do</strong>. Entretanto, este da<strong>do</strong> contradiz informações da<br />
própria autora, que sugere que os participantes <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> tiveram aproximadamente<br />
o mesmo tempo <strong>de</strong> instrução em leitura; o mesmo acesso a livros <strong>de</strong> gravuras,<br />
sen<strong>do</strong> igualmente estimuladas a iniciar a leitura <strong>de</strong> livros nas salas <strong>de</strong> aula, além<br />
<strong>de</strong> ouvir histórias em voz alta narradas pelas professoras; e <strong>de</strong> receberem instrução<br />
em leitura que enfatizava a fluência na nomeação <strong>de</strong> letras e sons iniciais. Tal questão,<br />
somada as colocações referentes à diferenças sócio-econômicas das crianças, explicita<br />
a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atenção no uso <strong>de</strong>stas informações, assim como alerta para<br />
a necessida<strong>de</strong> da resolução <strong>de</strong>stas situações em estu<strong>do</strong>s futuros.<br />
Crianças cana<strong>de</strong>nses francófonas também participaram <strong>de</strong> um interessante estu<strong>do</strong><br />
sobre o efeito <strong>de</strong> um programa <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong> música nas habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> consciência<br />
fonológica <strong>de</strong> crianças <strong>de</strong> cinco anos (Bolduc 2009). Cento e quatro alunos <strong>de</strong><br />
um centro <strong>de</strong> educação infantil, vin<strong>do</strong>s <strong>de</strong> seis diferentes classes <strong>de</strong> professoras generalistas,<br />
participaram <strong>de</strong> 15 semanas <strong>de</strong> aulas <strong>de</strong> música diárias com professores<br />
especialistas. As aulas <strong>do</strong> grupo experimental (n=51) foram conduzidas seguin<strong>do</strong><br />
uma adaptação, para crianças falantes <strong>de</strong> francês <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento típico, <strong>do</strong> programa<br />
para crianças com necessida<strong>de</strong>s especiais <strong>de</strong> Standley e Hughes (1997 cita<strong>do</strong><br />
em Bolduc 2009). O grupo <strong>de</strong> controle (n=53), por sua vez, participou <strong>de</strong> aulas <strong>de</strong><br />
música que seguiam as orientações <strong>do</strong> currículo <strong>do</strong> Ministério da Educação <strong>de</strong> Quebec<br />
(2001 cita<strong>do</strong> em Bolduc 2009).<br />
Os grupos foram avalia<strong>do</strong>s com pré e pós testes <strong>do</strong> Primary Measures of Music Audiation<br />
(Gor<strong>do</strong>n 1979 cita<strong>do</strong> em Bolduc 2009) e <strong>do</strong> Phonological Awareness Test<br />
373
374<br />
(Armand e Montesinos-Gelet 2001 cita<strong>do</strong> em Bolduc 2009). Os resulta<strong>do</strong>s indicaram<br />
que os <strong>do</strong>is currículos <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s auxiliaram no <strong>de</strong>senvolvimento da percepção<br />
melódica e rítmica <strong>do</strong>s pequenos, não haven<strong>do</strong> diferença significativa entre<br />
os resulta<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s grupos experimental e controle. No que tange a consciência fonológica,<br />
os alunos engaja<strong>do</strong>s na adaptação da proposta <strong>de</strong> Standley e Hughes obtiveram<br />
melhores resulta<strong>do</strong>s em relação ao grupo <strong>de</strong> controle. Tal resulta<strong>do</strong> era<br />
espera<strong>do</strong> uma vez que, segun<strong>do</strong> o autor, um <strong>do</strong>s objetivos <strong>de</strong>sta proposta é aumentar<br />
o interesse das crianças na leitura e escrita através <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s musicais.<br />
Os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s por Bolduc (2009) auxiliam na compreensão da importância<br />
da percepção auditiva e da consciência fonológica no <strong>de</strong>senvolvimento das habilida<strong>de</strong>s<br />
musicais e lingüísticas <strong>de</strong> crianças pequenas. Além disso, estu<strong>do</strong>s futuros<br />
po<strong>de</strong>riam seguir sugestões meto<strong>do</strong>lógicas traçadas pelo autor, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> assim contribuir<br />
inclusive com os estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> transferências cognitivas entre contextos. Todavia,<br />
é importante salientar, que as avaliações realizadas por Bolduc (2009)<br />
seguiram procedimentos diferencia<strong>do</strong>s. A avaliação das habilida<strong>de</strong>s musicais foi<br />
realizada em grupos (<strong>de</strong> três a oito alunos) durante as próprias aulas <strong>de</strong> música, enquanto<br />
a avaliação da consciência fonológica foi aferida individualmente, através <strong>de</strong><br />
uma ativida<strong>de</strong> realizada no computa<strong>do</strong>r. A presente observação é um ponto <strong>de</strong> importante<br />
reflexão, uma vez que combina elementos bastante diferencia<strong>do</strong>s e, é possível<br />
que tenha influencia<strong>do</strong> os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s.<br />
Música e leitura: estu<strong>do</strong>s correlacionais<br />
Os estu<strong>do</strong>s correlacionais permitem que as hipóteses sejam testadas a fim <strong>de</strong> verificar<br />
a existência <strong>de</strong> relações entre as variáveis propostas (Henriques et al.,<br />
2004/2005). Assim seria possível avaliar, por exemplo, as habilida<strong>de</strong>s musicais e <strong>de</strong><br />
consciência fonológica buscan<strong>do</strong> investigar a correlação existente entre as duas<br />
áreas analisadas. No caso <strong>de</strong> estabelecimento <strong>de</strong> correlações, é possível ainda enten<strong>de</strong>r<br />
qual o senti<strong>do</strong> e a extensão em que estas se estabelecem, no entanto, é importante<br />
frisar que este tipo <strong>de</strong> investigação não permite que sejam estabelecidas<br />
relações causais entre as variáveis estudadas (Henriques et al., 2004/2005; Berryman<br />
et al., 2002). Os estu<strong>do</strong>s correlacionais aqui revisa<strong>do</strong>s foram realiza<strong>do</strong>s com<br />
crianças pequenas turcas, americanas, brasileiras e cana<strong>de</strong>nses, falantes <strong>de</strong> inglês e<br />
francês.<br />
Anvari et al. (2002) realizou uma pesquisa com crianças <strong>de</strong> quatro e cinco anos<br />
com o objetivo <strong>de</strong> verificar se há correlações entre o processamento musical e a<br />
consciência fonológica, e <strong>de</strong> que mo<strong>do</strong> a consciência fonológica e as habilida<strong>de</strong>s<br />
musicais são encontradas no <strong>de</strong>senvolvimento da leitura das crianças. Cinqüenta<br />
crianças <strong>de</strong> quatro anos e 50 crianças <strong>de</strong> cinco anos matriculadas em creches ou escolas<br />
cana<strong>de</strong>nses foram submetidas a cinco sessões <strong>de</strong> testes individuais, que envolviam<br />
tarefas <strong>de</strong> consciência fonológica, leitura, vocabulário, música, duração da
memória auditiva, e matemática. Os pesquisa<strong>do</strong>res apontaram o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
da consciência fonológica como um facilita<strong>do</strong>r na aquisição da leitura, sugerin<strong>do</strong><br />
também uma ligação entre a leitura e as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> análise auditiva. Esta ligação<br />
seria possível, segun<strong>do</strong> Anvari et al. (2002), ten<strong>do</strong> em vista que as crianças que são<br />
hábeis na audição das categorias sonoras individuais <strong>de</strong> uma palavra também po<strong>de</strong>riam<br />
ter facilida<strong>de</strong> na associação <strong>de</strong>sses fonemas com sua representação escrita.<br />
Ainda segun<strong>do</strong> os autores, algumas habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> análise auditiva utilizadas na linguagem<br />
– como a combinação ou a segmentação <strong>de</strong> sons, por exemplo – são similares<br />
às habilida<strong>de</strong>s necessárias à percepção musical. Sen<strong>do</strong> assim, seria possível<br />
propor a hipótese <strong>de</strong> que as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> análise auditiva utilizadas na percepção<br />
musical po<strong>de</strong>m também estar associadas ao <strong>de</strong>senvolvimento da leitura (Anvari et<br />
al. 2002).<br />
Os pesquisa<strong>do</strong>res realizaram uma ampla análise <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s coleta<strong>do</strong>s e verificaram<br />
a existência <strong>de</strong> correlações significativa entre a música, a consciência fonológica e a<br />
leitura. Por meio da análise <strong>de</strong> regressão hierárquica foi possível apontar uma relação<br />
direta entre habilida<strong>de</strong>s musicais e leitura a partir <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s pelo<br />
grupo <strong>de</strong> crianças <strong>de</strong> quatro anos, mesmo quan<strong>do</strong> a variável da consciência fonológica<br />
foi removida. Todavia, no grupo <strong>de</strong> crianças <strong>de</strong> cinco anos, as questões rítmicas<br />
não apresentaram relevância significativa e por este motivo, foram apontadas<br />
relações entre a percepção melódica ou <strong>de</strong> alturas e a leitura. Também foram encontra<strong>do</strong>s<br />
indícios <strong>de</strong> que os processos auditivos necessários à percepção musical são<br />
encontra<strong>do</strong>s também nos processos auditivos necessários à consciência fonológica<br />
e à leitura. Os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s nos testes <strong>de</strong> vocabulário e habilida<strong>de</strong>s matemáticas<br />
não apresentaram correlação significativa com a música nem com a leitura.<br />
A conclusão mais relevante apontada por Anvari et al. (2002) foi a sugestão <strong>do</strong> uso<br />
<strong>do</strong>s mesmos mecanismos auditivos e/ou cognitivos na percepção musical e na consciência<br />
fonológica, mecanismos estes que parecem ser acessa<strong>do</strong>s in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<br />
no aprendiza<strong>do</strong> da leitura. Uma possível explicação para isto diz respeito à<br />
habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> segmentação, pois, a consciência fonológica requer <strong>do</strong> ouvinte a habilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> segmentar a fala em pequenos componentes sonoros e o reconhecimento<br />
<strong>de</strong>ssas categorias sonoras entre as variações <strong>de</strong> altura, tempo e contexto.<br />
Assim como a percepção musical também requer <strong>do</strong> ouvinte a habilida<strong>de</strong> para segmentar<br />
o ‘fluxo <strong>de</strong> alturas’ em unida<strong>de</strong>s menores relevantes e para reconhecer variações<br />
<strong>de</strong> altura, tempo e contexto (para outras informações ver Schön, Magne e<br />
Besson 2004; Magne, Schön e Besson 2006).<br />
Os estu<strong>do</strong>s sobre possíveis conexões entre as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> percepção musical e a<br />
consciência fonológica têm se torna<strong>do</strong> cada vez mais freqüentes, mas ao que tu<strong>do</strong><br />
indica Lamb e Gregory (1993 cita<strong>do</strong>s em Bolduc 2008) foram pioneiros nesta reflexão.<br />
Os pesquisa<strong>do</strong>res realizaram um estu<strong>do</strong> fazen<strong>do</strong> uso <strong>de</strong> <strong>do</strong>is testes <strong>de</strong> leitura,<br />
um teste <strong>de</strong> consciência fonológica, um teste original <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s musicais (per-<br />
375
376<br />
cepção melódica e reconhecimento <strong>de</strong> timbres) e uma tarefa <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s<br />
não-verbais. Esses testes foram aplica<strong>do</strong>s a 18 pré-escolares falantes <strong>de</strong> inglês.<br />
As crianças participantes que apresentaram os resulta<strong>do</strong>s mais altos na percepção<br />
melódica também <strong>de</strong>monstraram resulta<strong>do</strong>s eleva<strong>do</strong>s nos testes <strong>de</strong> leitura e consciência<br />
fonológica. Os autores concluíram que as crianças que alcançaram os mais<br />
altos escores na percepção melódica também foram bem sucedi<strong>do</strong>s na <strong>de</strong>codificação<br />
e manipulação <strong>de</strong> diferentes unida<strong>de</strong>s lingüísticas (como rimas, sílabas e fonemas),<br />
apresentan<strong>do</strong> maior facilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> que as crianças que tiveram um<br />
<strong>de</strong>sempenho menor nas tarefas <strong>de</strong> percepção melódica (Lamb e Gregory 1993 cita<strong>do</strong>s<br />
por Bolduc 2008).<br />
Seguin<strong>do</strong> caminhos semelhantes Peynircioglu et al. (2002) realizaram um teste <strong>de</strong><br />
aptidão musical para escolher os participantes <strong>de</strong> <strong>do</strong>is estu<strong>do</strong>s que investigaram<br />
possíveis correlações entre aptidão musical, consciência fonológica e habilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> pseu<strong>do</strong>palavras.<br />
No primeiro experimento 61 crianças turcas participaram <strong>de</strong> um teste <strong>de</strong> aptidão<br />
musical. Partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> teste <strong>de</strong> aptidão, os autores selecionaram 32<br />
crianças que apresentaram níveis alto ou baixo <strong>de</strong> aptidão musical para participarem<br />
da segunda etapa <strong>do</strong> estu<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> excluídas assim as crianças que obtiveram<br />
um nível médio <strong>de</strong> aptidão musical. As 32 crianças participantes <strong>do</strong> primeiro experimento<br />
realiza<strong>do</strong> por Peynircioglu et al. (2002) tinham ida<strong>de</strong> entre quatro e seis<br />
anos, falavam turco, estavam matriculadas em pré-escolas ou creches públicas e privadas<br />
<strong>de</strong> Istambul e não sabiam ler. Todas as crianças foram submetidas a testes <strong>de</strong><br />
consciência fonológica e i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> pseu<strong>do</strong>palavras que envolviam tarefas <strong>de</strong><br />
subtração <strong>de</strong> fonemas (iniciais e finais) <strong>de</strong> palavras e pseu<strong>do</strong>palavras, além <strong>do</strong> teste<br />
<strong>de</strong> aptidão musical que envolveu tarefas <strong>de</strong> percepção melódica e habilida<strong>de</strong>s rítmicas,<br />
que, por sua vez, incluíram também a subtração <strong>de</strong> notas iniciais e finais <strong>de</strong><br />
trechos melódicos extraí<strong>do</strong>s <strong>de</strong> canções familiares às crianças.<br />
Os resulta<strong>do</strong>s encontra<strong>do</strong>s levaram os autores a afirmar que os participantes que<br />
apresentaram altos escores <strong>de</strong> aptidão musical também alcançaram os escores mais<br />
eleva<strong>do</strong>s nos testes <strong>de</strong> consciência fonológica. Além disso, o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Peynircioglu<br />
et al. (2002) também contribuiu com informações sobre as características da língua<br />
das crianças, uma vez que os resulta<strong>do</strong>s apontaram para questões como a maior facilida<strong>de</strong><br />
na subtração <strong>de</strong> fonemas finais <strong>do</strong> que fonemas iniciais no turco, assim<br />
como a vantagem na manipulação <strong>de</strong> vogais frente às consoantes nos fonemas iniciais<br />
das palavras <strong>do</strong> léxico turco (Peynircioglu et al. 2002).<br />
O segun<strong>do</strong> experimento foi idêntico ao primeiro, entretanto foi realiza<strong>do</strong> com 40<br />
crianças com ida<strong>de</strong> entre três e seis anos, falantes <strong>de</strong> inglês, que estavam matriculadas<br />
em pré-escolas ou creches públicas e privadas da região <strong>de</strong> Washington DC nos<br />
EUA e que também não sabiam ler. Os mesmos testes foram aplica<strong>do</strong>s, entretanto<br />
Peynircioglu et al. (2002) inseriram novos excertos melódicos <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>s que
foram mistura<strong>do</strong>s aos excertos <strong>de</strong> canções familiares, bem como construíram pseu<strong>do</strong>palavras<br />
ten<strong>do</strong> em vista os sons das palavras em inglês.<br />
Ao analisar os da<strong>do</strong>s coleta<strong>do</strong>s para o segun<strong>do</strong> experimento, Peynircioglu et al.<br />
(2002) encontraram resulta<strong>do</strong>s idênticos àqueles encontra<strong>do</strong>s no primeiro experimento,<br />
ou seja, as crianças com melhores resulta<strong>do</strong>s no teste <strong>de</strong> aptidão musical<br />
também obtiveram resulta<strong>do</strong>s superiores em consciência fonológica e i<strong>de</strong>ntificação<br />
<strong>de</strong> pseu<strong>do</strong>palavras. Entretanto, os autores indicaram que as crianças falantes<br />
<strong>de</strong> inglês apresentaram maior facilida<strong>de</strong> para i<strong>de</strong>ntificar consoantes no início das palavras<br />
<strong>do</strong> que as crianças turcas (Peynircioglu et al. 2002). A diferença <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s<br />
encontra<strong>do</strong>s nos testes <strong>de</strong> crianças turcas e americanas é possivelmente<br />
explicada pelas diferenças entre os idiomas inglês e turco.<br />
Outro estu<strong>do</strong> sobre correlações entre a consciência fonológica e as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
percepção musical (melódicas e rítmicas) foi <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> por Bolduc e Montésinos-Gelet<br />
(2005 cita<strong>do</strong>s em Bolduc 2008) com 13 pré-escolares cana<strong>de</strong>nses <strong>de</strong> cinco<br />
anos, falantes <strong>do</strong> francês. Os pesquisa<strong>do</strong>res realizaram testes para avaliar as habilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> percepção musical e consciência fonológica <strong>do</strong>s participantes e encontraram<br />
correlações significativas entre as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> percepção melódica e as tarefas<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> rimas e sílabas. Todavia, não foram encontradas correlações significativas<br />
entre as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> percepção rítmica e percepção melódica, nem<br />
entre as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> percepção rítmica e consciência fonológica.<br />
A crítica feita por David et al. (2007) ao estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Anvari et al. (2002) po<strong>de</strong>ria ser<br />
estendida também ao estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Bolduc e Montésinos-Gelet (2005 cita<strong>do</strong> em Bolduc<br />
2008), ten<strong>do</strong> em vista que os autores criticaram a indicação <strong>de</strong> que o ritmo não<br />
tem correlação com as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura e consciência fonológica em crianças<br />
<strong>de</strong> cinco anos. Para David et al. (2007) o teste utiliza<strong>do</strong> por Anvari et al.(2002)<br />
priorizava a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> letras e não a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura <strong>de</strong> palavras.<br />
Questionan<strong>do</strong> os resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Anvari et al. (2002), um estu<strong>do</strong> longitudinal investigou<br />
como o ritmo po<strong>de</strong> predizer a leitura <strong>de</strong> crianças pequenas, além da consciência<br />
fonológica e a velocida<strong>de</strong>/rapi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> nomeação (David et al. 2007). A<br />
pesquisa foi <strong>de</strong>senvolvida com 53 crianças <strong>de</strong> três escolas diferentes da província<br />
<strong>de</strong> Ontário, Canadá, que possuíam condições sócio-econômicas similares. Por se<br />
tratar <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> longitudinal, as crianças respon<strong>de</strong>ram a testes <strong>de</strong> consciência<br />
fonológica, habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura e ritmo durante cinco anos consecutivos, sempre<br />
no outono, perío<strong>do</strong> que coinci<strong>de</strong> com início <strong>do</strong> ano letivo no Canadá. A primeira<br />
sessão <strong>de</strong> testes foi realizada quan<strong>do</strong> as crianças cursavam a primeira série.<br />
Para David et al. (2007) o ritmo é parte importante da linguagem e po<strong>de</strong> estar envolvi<strong>do</strong><br />
no <strong>de</strong>senvolvimento da leitura, ten<strong>do</strong> em vista que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o nascimento o<br />
ritmo auxilia na discriminação <strong>de</strong> línguas, no entendimento da segmentação da fala<br />
em palavras e na comunicação verbal com crianças pequenas, já que elas respon<strong>de</strong>m<br />
a uma espécie <strong>de</strong> ‘comunicação musical’ que é tanto melódica quanto rítmica.<br />
377
378<br />
Os testes realiza<strong>do</strong>s pelos participantes incluíram tarefas <strong>de</strong> velocida<strong>de</strong>/rapi<strong>de</strong>z <strong>de</strong><br />
nomeação, consciência fonológica, leitura e ritmo. Por meio <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s<br />
os autores sugeriram que o ritmo é um elemento importante no <strong>de</strong>senvolvimento<br />
da habilida<strong>de</strong> da leitura, consciência fonológica e velocida<strong>de</strong>/rapi<strong>de</strong>z <strong>de</strong><br />
nomeação não somente na primeira série, mas, em todas as séries subseqüentes. No<br />
entanto, quan<strong>do</strong> a variável da consciência fonológica foi removida, o ritmo permaneceu<br />
como influência positiva apenas no caso das crianças da quinta série e no<br />
teste <strong>de</strong> leitura, sub-teste <strong>de</strong> ataque da palavra. Quan<strong>do</strong> a variável <strong>de</strong> velocida<strong>de</strong>/rapi<strong>de</strong>z<br />
<strong>de</strong> nomeação foi controlada foi verifica<strong>do</strong> o po<strong>de</strong>r preditivo <strong>do</strong> ritmo em relação<br />
ao teste <strong>de</strong> leitura, ao sub-teste <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação da palavra na segunda e<br />
terceira séries e ao sub-teste <strong>de</strong> ataque da palavra na segunda, terceira e quinta séries.<br />
David et al. (2007) concluíram o estu<strong>do</strong> sugerin<strong>do</strong> uma relação inédita entre ritmo<br />
e leitura em uma amostra <strong>de</strong> leitores <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento típico, pois, parte da literatura<br />
traça esta relação, mas, geralmente em amostras <strong>de</strong> leitores com alguma dificulda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> aprendizagem. Os autores sugeriram que há evidências <strong>de</strong> que a<br />
correlação ritmo-leitura é mais significativa em crianças maiores, posto que os resulta<strong>do</strong>s<br />
mais importantes que <strong>de</strong>monstraram esta correlação na amostra pesquisada<br />
foram encontra<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> as crianças já estavam cursan<strong>do</strong> a quinta série. Os<br />
resulta<strong>do</strong>s mais significativos na relação ritmo-leitura apresenta<strong>do</strong>s pelas crianças<br />
maiores po<strong>de</strong>riam ser explica<strong>do</strong>s pelo aumento das dificulda<strong>de</strong>s na leitura, ten<strong>do</strong> em<br />
vista que, segun<strong>do</strong> David et al. (2007), as crianças mais novas só conseguem ler palavras<br />
mais simples, entretanto, as crianças mais velhas <strong>de</strong>vem ler palavras mais complexas,<br />
com maior variação <strong>de</strong> métrica e <strong>de</strong> entoação.<br />
Cabe aqui uma crítica a David et al. (2007) em relação à idéia que o ritmo po<strong>de</strong>ria<br />
predizer a leitura <strong>de</strong> maneira mais efetiva nas crianças maiores. Ora, se os autores<br />
criticaram os resulta<strong>do</strong>s encontra<strong>do</strong>s por Anvari et al. (2002) que não encontraram<br />
correlações entre o ritmo e as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura e consciência fonológica<br />
em crianças <strong>de</strong> cinco anos, resulta<strong>do</strong> também encontra<strong>do</strong> por Bolduc e Montésinos-<br />
Gelet (2005 cita<strong>do</strong> em Bolduc 2008), os autores <strong>de</strong>veriam ter encontra<strong>do</strong> tal correlação<br />
em sua pesquisa. Ten<strong>do</strong> em vista a conclusão <strong>de</strong> que o ritmo é um preditor<br />
mais efetivo da leitura quan<strong>do</strong> as crianças são maiores (quinta série, aproximadamente<br />
11 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>) e, também avalian<strong>do</strong> a faixa etária das crianças participantes<br />
<strong>do</strong> estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> David et al. (2007), que não eram pré-escolares <strong>de</strong> cinco anos,<br />
mas alunos da primeira série <strong>do</strong> ensino fundamental, parece que o argumento <strong>de</strong> crítica<br />
à Anvari et al. (2002) que sustenta a pesquisa <strong>de</strong> David et al. (2007) não é assim<br />
tão sóli<strong>do</strong>.<br />
Um estu<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong> com crianças brasileiras po<strong>de</strong> corroborar a sugestão <strong>de</strong> Anvari<br />
et al. (2002) e Bolduc e Montésinos-Gelet (2005 cita<strong>do</strong> em Bolduc 2008) quanto<br />
à ausência <strong>de</strong> correlação significativa entre o ritmo e a consciência fonológica. Pa-
checo (2009) <strong>de</strong>senvolveu um estu<strong>do</strong> com o objetivo <strong>de</strong> verificar se há correlação<br />
significativa entre as habilida<strong>de</strong>s musicais e a consciência fonológica em crianças<br />
pequenas, replican<strong>do</strong> parcialmente o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Anvari et al. (2002). Participaram<br />
da pesquisa 40 crianças <strong>de</strong> quatro e cinco anos da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Curitiba (PR), alunos<br />
<strong>de</strong> um centro municipal <strong>de</strong> educação infantil que não participavam <strong>de</strong> aulas regulares<br />
<strong>de</strong> música e tinham <strong>de</strong>senvolvimento típico. Duas sessões <strong>de</strong> testes individuais<br />
foram realizadas para avaliar o <strong>de</strong>senvolvimento das habilida<strong>de</strong>s musicais (tarefas<br />
<strong>de</strong> percepção e produção <strong>de</strong> materiais rítmicos e melódicos) e da consciência fonológica<br />
(tarefas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> rimas; i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> sílaba inicial, medial e<br />
final diferente; i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> sílaba, ataque e fonema inicial diferente; e síntese<br />
silábica e <strong>de</strong> ataque/rima).<br />
Os resulta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Pacheco (2009) sugerem a existência <strong>de</strong> correlação significativa<br />
entre as habilida<strong>de</strong>s musicais e a consciência fonológica das crianças brasileiras<br />
<strong>de</strong> quatro e cinco anos estudadas. As habilida<strong>de</strong>s musicais foram<br />
segmentadas nas sub-habilida<strong>de</strong>s percepção musical, produção rítmica e produção<br />
melódica e foram analisadas em relação à consciência fonológica e entre elas mesmas.<br />
Correlações significativas foram estabelecidas entre todas as variáveis musicais<br />
e a consciência fonológica, exceto entre a produção rítmica e a consciência<br />
fonológica, resulta<strong>do</strong> este que corrobora parte <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Anvari (2002) e<br />
Bolduc e Montésinos-Gelet (2005 cita<strong>do</strong> em Bolduc 2008).<br />
A correlação encontrada entre a consciência fonológica e as habilida<strong>de</strong>s musicais<br />
levou a autora a especular sobre a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> haver transferência cognitiva<br />
entre os <strong>do</strong>mínios da música e da linguagem. Apontan<strong>do</strong> assim que a correlação<br />
encontrada entre as habilida<strong>de</strong>s musicais e a consciência fonológica po<strong>de</strong> estar diretamente<br />
ligada a transferências cognitivas entre os <strong>do</strong>is <strong>do</strong>mínios. Isso faz senti<strong>do</strong><br />
se pensarmos que a música e a linguagem possuem algumas características em<br />
comum como organização temporal (McMullen e Saffran 2004), altura, ritmo, melodia<br />
e, em alguns casos, prosódia (Me<strong>de</strong>iros 2006).<br />
De maneira geral, o trabalho <strong>de</strong> Pacheco (2009) confirmou resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s<br />
anteriores (Anvari et al. 2002; Lamb & Gregory 1993; Bolduc 2008; David et al<br />
2007; Peynircioglu et al. 2002), isto é, a existência <strong>de</strong> correlação significativa entre<br />
a consciência fonológica e as habilida<strong>de</strong>s musicais. Todavia a tomada <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s totais<br />
relativos à percepção musical, sem seu <strong>de</strong>smembramento em percepção melódica<br />
e rítmica, além <strong>do</strong> tamanho da amostra são limitações da pesquisa que merecem<br />
ser levadas em consi<strong>de</strong>ração em estu<strong>do</strong>s futuros.<br />
Implicações e possibilida<strong>de</strong>s futuras<br />
A revisão proposta no presente trabalho objetivou, fundamentalmente, expor a comunida<strong>de</strong><br />
brasileira interessada nos estu<strong>do</strong>s da mente musical em contexto (Ilari<br />
379
380<br />
2009) alguns importantes estu<strong>do</strong>s realiza<strong>do</strong>s em diferentes regiões sobre o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
musical e a aquisição da leitura e escrita em crianças pequenas. É importante<br />
lembrar, que as crianças brasileiras ainda não receberam a atenção <strong>de</strong>vida<br />
no que diz respeito ao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s musicais. O mesmo não<br />
po<strong>de</strong> ser ti<strong>do</strong> sobre a aquisição da leitura e da escrita, uma vez que diversos estudiosos<br />
vêem trabalhan<strong>do</strong> sob esta temática há alguns anos (Car<strong>do</strong>so-Martins 1995,<br />
Barreira 2003, Barreira e Maluf 2003, Guimarães 2003a, Guimarães 2003b, Guimarães<br />
2001). Entretanto, a preocupação com as possíveis interseções entre as áreas<br />
ainda é pequena, seja para encontrar correlações e suas explicações, ou para investigar<br />
sobre as transferências <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s cognitivas entre contextos.<br />
Ten<strong>do</strong> em vista tais questões parece óbvio dizer que há muito ainda por fazer. As<br />
áreas da educação musical e da cognição em música ainda necessitam <strong>de</strong> alto investimento<br />
em pesquisa para que seja possível compreen<strong>de</strong>r o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong><br />
crianças brasileiras. Pensan<strong>do</strong> precisamente na música e na aquisição da leitura e da<br />
escrita, novos estu<strong>do</strong>s correlacionais, <strong>de</strong> intervenção pedagógica e, por quê não, toman<strong>do</strong><br />
o <strong>de</strong>senvolvimento longitudinalmente, po<strong>de</strong>rão verificar se os resulta<strong>do</strong>s<br />
obti<strong>do</strong>s com amostras <strong>de</strong> outras regiões também se aplicam as nossas crianças. Além<br />
disso, tais estu<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>rão fornecer exemplos culturalmente váli<strong>do</strong>s para alicerçar<br />
tanto nossas práticas musicais com as crianças, quanto nossa nova área que cresce<br />
e trabalha para divulgar os estu<strong>do</strong>s brasileiros sobre a mente musical e suas relações.<br />
Referências<br />
Anvari, Sima H. et al. 2002. Relations among musical skills, phonological processing, and<br />
early reading ability in preschool children. Journal of Experimental Child Psychology,<br />
83, 111-130.<br />
Barreira, Sylvia Domingos. 2003. Papel facilita<strong>do</strong>r das habilida<strong>de</strong>s metalingüísticas na aprendizagem<br />
da linguagem escrita. In Maria Regina Maluf (Org.), Metalinguagem e aquisição<br />
da escrita: contribuições da pesquisa para a prática da alfabetização, 65-90. São Paulo:<br />
Casa <strong>do</strong> Psicólogo.<br />
Barreira, Sylvia Domingos e Maluf, Maria Regina. 2003. Consciência metalingüística e alfabetização:<br />
um estu<strong>do</strong> com crianças da primeira série <strong>do</strong> ensino fundamental. Psicologia:<br />
Reflexão e Crítica 16 (3), 491-502.<br />
Berryman, Julia, Hargreaves, David, Herbert, Martin e Taylor, Ann. 2002. A Psicologia <strong>do</strong><br />
Desenvolvimento Humano. Lisboa: Instituto Piaget.<br />
Bolduc, Jonathan. 2008. The effects of Music Instruction on Emergent Literacy Capacities<br />
among Preschool Children: a Literature Review. Early Childhood Research & Practice,<br />
10(1), http://ecrp.uiuc.edu/v10n1/bolduc.html<br />
Bolduc, Jonathan. 2009. Effects of a music programme on kin<strong>de</strong>rgartners’phonological awareness<br />
skills. International Journal of Music Education 27(1), 37-47.<br />
Car<strong>do</strong>so-Martins, Claudia. 1996. Consciência fonológica & alfabetização. Petrópolis: Vozes.<br />
Car<strong>do</strong>so-Martins, Claudia. 1995. Sensitivity to rhymes, syllables, and phonemes in literacy<br />
acquisition in Portuguese. Reading Research Quarterly 30(4), 808-828.
Costa-Giomi, Eugenia. 2006. Beneficios cognitivos y académicos <strong>de</strong>l aprendizaje musical.<br />
In Beatriz Senoi Ilari (Org.), Em busca da mente musical: ensaios sobre os processos cognitivos<br />
em música - da percepção à produção, 401-428. Curitiba: Editora da UFPR.<br />
David, Dana et al. 2007. Rhythm and reading <strong>de</strong>velopment in school-age children: a longitudinal<br />
study. Journal of Research in Reading 30(2), 169-183.<br />
Gromko, Joyce Eastlund. 2005. The effect of music instruction on phonemic awareness in<br />
beginning rea<strong>de</strong>rs. Journal of Research in Music Education 53(3), 199-209.<br />
Guimarães, Sandra Regina Kirchner. 2003a. Dificulda<strong>de</strong>s no <strong>de</strong>senvolvimento da lectoescrita:<br />
o papel das habilida<strong>de</strong>s metalingüísticas. Psicologia: Teoria e Reflexão, 19(1), 33-<br />
45.<br />
Guimarães, Sandra Regina Kirchner. 2003b. O aperfeiçoamento da concepção alfabética <strong>de</strong><br />
escrita: relação entre consciência fonológica e representações ortográficas. In Maria Regina<br />
Maluf (Org.), Metalinguagem e aquisição da escrita: contribuições da pesquisa para<br />
a prática da alfabetização, 149-184. São Paulo: Casa <strong>do</strong> Psicólogo.<br />
Guimarães, Sandra Regina Kirchner. 2001. Dificulda<strong>de</strong>s na aquisição e aperfeiçoamento da<br />
leitura e da escrita: o papel da consciência fonológica e da consciência sintática. Tese <strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>utora<strong>do</strong>, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo.<br />
Henriques, Ana, Neves, Carla e Pesquita, Idália. 2004/2005. Estu<strong>do</strong>s correlacionais e estu<strong>do</strong>s<br />
causal-comparativos. http://www.educ.fc.ul.pt/<strong>do</strong>centes/ichagas/mi1/t1textoestcorrelacionais.pdf<br />
Ilari, Beatriz. 2005. A música e o <strong>de</strong>senvolvimento da mente no início da vida: investigação,<br />
fatos e mitos. In Maurício Dottori, Beatriz Ilari e Ro<strong>do</strong>lfo Coelho <strong>de</strong> Souza (Eds.) <strong>Anais</strong><br />
1º <strong>Simpósio</strong> Internacional <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais / Proceedings of the 1st International<br />
Symposium on Cognition and Musical Arts. Curitiba: De<strong>Artes</strong> - UFPR.<br />
Ilari, Beatriz. 2009. <strong>Cognição</strong> musical: origens, abordagens tradicionais, direções futuras. In<br />
Mentes em música. Org. Beatriz Ilari e Rosane Car<strong>do</strong>so <strong>de</strong> Araújo, 13-36. Curitiba:<br />
De<strong>Artes</strong> - UFPR.<br />
Krumhansl, Carol L. 2006. Ritmo e altura na cognição musical. In Em busca da mente musical:<br />
ensaios sobre os processos cognitivos em música - da percepção à produção. Org. Beatriz<br />
Senoi Ilari, 45-109. Curitiba: Editora da UFPR.<br />
Magne, Cyrille, Schön, Daniele e Besson, Mireille. 2006. Musician children <strong>de</strong>tect pitch violations<br />
in both music and language better than non musician children: behavioral and<br />
electrophysiological approaches. Journal of Cognitive Neuroscience 18(2), 199-211.<br />
Maluf, Maria Regina e Barrera, Sylvia Domingos. 1997. Consciência fonológica e linguagem<br />
escrita em pré-escolares. Psicologia: Reflexão e Crítica 10(1), 1-17.<br />
McMullen, Erin e Saffran, Jenny. 2004. Music and Language: A Developmental Comparison.<br />
Music Perception 21(3), 289-311.<br />
Me<strong>de</strong>iros, B. R. <strong>de</strong> (2006). Em busca <strong>do</strong> som perdi<strong>do</strong>: o que há entre a linguistica e a música?<br />
In Em busca da mente musical: ensaios sobre os processos cognitivos em música - da percepção<br />
à produção. Org. Beatriz Senoi Ilari, 189-227. Curitiba: Editora da UFPR.<br />
Moyeda, Iris Xóchiti Galicia, Gómez, Ixtlixóchitl Contreras e Flores, María Teresa Peña.<br />
2006. Implementing a musical program to promote preschool children’s vocabulary <strong>de</strong>velopment.<br />
Early Childhood Research & Practice 8(1). http://ecrp.uiuc.edu/v8n1/<br />
galicia.html<br />
Pacheco, Caroline Bren<strong>de</strong>l. 2009. Habilida<strong>de</strong>s musicais e consciência fonológica: um estu<strong>do</strong><br />
381
382<br />
correlacional com crianças <strong>de</strong> 4 e 5 anos <strong>de</strong> Curitiba. Dissertação <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong>, Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Paraná. http://www.artes.ufpr.br/mestra<strong>do</strong>/dissertacoes/2009/<br />
Disserta%E7%E3o%2BCAROLINE%2BPACHECO%2B%2B2009.pdf<br />
Peynircioglu, Zehra, Durgunoglu, Aydyn & Öney-Küseefoglu, Banu. 2002. Phonological<br />
awareness and musical aptitu<strong>de</strong>. Journal of Research in Reading 25(1), 68-80.<br />
Schön, Daniele, Magne, Cyrille e Besson, Mireille. 2004. The music of speech: music training<br />
facilitates pitch processing in both music and language. Psychophysiology 41, 341-<br />
349.<br />
Stenberg, Robert J. 2000. Resolução <strong>de</strong> problemas e criativida<strong>de</strong>. In Psicologia Cognitiva.<br />
Robert J. Stenberg. Porto Alegre: <strong>Artes</strong> Médicas.
A Experiência Incorporada: Corpo e <strong>Cognição</strong> Musical<br />
Resumo<br />
Wânia Mara Agostini Storolli<br />
waniastorolli@usp.br<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />
Este estu<strong>do</strong> propõe repensar o corpo a partir <strong>de</strong> teorias e investigações contemporâneas,<br />
especificamente provenientes das Ciências Cognitivas, e refletir sobre as possíveis<br />
consequências que estes conhecimentos po<strong>de</strong>m gerar para a prática musical, ten<strong>do</strong><br />
como subsídio pesquisa concluída sobre o papel <strong>do</strong> corpo na criação musical. Propõese<br />
rever noções que se tornaram usuais na nossa socieda<strong>de</strong>, e muitas vezes na prática<br />
musical, que são a <strong>de</strong> corpo “instrumento”, passível <strong>de</strong> ser treina<strong>do</strong> para se obter certos<br />
resulta<strong>do</strong>s, e a <strong>de</strong> “recipiente”, on<strong>de</strong> entram conhecimentos e informações a serem armazenadas<br />
e reproduzidas. Embora a prática musical dispense alguma atenção ao corpo,<br />
nem sempre se ultrapassa o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> treinamento realiza<strong>do</strong> com o objetivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver<br />
habilida<strong>de</strong>s para o <strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> um instrumento ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> código musical.<br />
Acredita-se porém que o corpo seja mais que mero instrumento para a prática<br />
musical. Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> inicialmente a concepção <strong>de</strong> separação corpo-mente, ainda presente<br />
em muitas instâncias da nossa cultura, examina-se o conceito <strong>de</strong> embodied mind<br />
(“mente incorporada”) apresenta<strong>do</strong> por Varela, Thompson e Rosch, assim como por Lakoff<br />
e Johnson, que surge como alternativa para os dualismos corpo-mente e interno<br />
versus externo. Com base neste conceito, no conhecimento <strong>de</strong> que os processos cognitivos<br />
organizam-se principalmente a partir <strong>do</strong> nosso sistema sensório-motor, examinase<br />
a relação entre movimento e cognição musical e i<strong>de</strong>ntifica-se a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
aprimoramento da consciência corporal para a prática musical, apontan<strong>do</strong>-se para a importância<br />
<strong>de</strong> processos <strong>de</strong> experimentação gera<strong>do</strong>s pela atuação <strong>do</strong> corpo. Conclui-se<br />
que o corpo não é “instrumento” a ser treina<strong>do</strong> para <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s fins, nem “recipiente”,<br />
on<strong>de</strong> são armazenadas informações, mas sim é o local e o agente <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> conhecimento,<br />
provocan<strong>do</strong> transformações nele e ao re<strong>do</strong>r a partir <strong>de</strong> sua atuação. Através<br />
<strong>de</strong> sua ação a experiência musical é gerada, passan<strong>do</strong> a fazer parte <strong>de</strong>le – a<br />
experiência incorporada.<br />
Palavras chave<br />
Movimento, experiência incorporada, prática musical<br />
Introdução: Da relação entre corpo e música<br />
A relação <strong>do</strong> corpo com a música remete-se provavelmente à própria gênese <strong>de</strong>sta,<br />
sen<strong>do</strong> anterior a códigos, sistemas e treinamentos. Não é difícil imaginar a manifestação<br />
musical sen<strong>do</strong> gerada pelo corpo através <strong>de</strong> sons e movimentos como parte<br />
integrante das primeiras performances e rituais humanos. Po<strong>de</strong>r gerar um processo<br />
criativo a partir <strong>de</strong> sua ação e transformar a si próprio em sons no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong>ste<br />
processo, parece ser uma possibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> corpo, indican<strong>do</strong> que ele, além <strong>de</strong> ser o<br />
383
384<br />
agente responsável pela realização musical, po<strong>de</strong> ser também o local <strong>do</strong> processo <strong>de</strong><br />
criação. Esta forma <strong>de</strong> atuação, entre inúmeras possibilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> corpo, revela não<br />
somente sua importância para a prática musical, mas também sua potencialida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
se <strong>de</strong>senvolver <strong>de</strong> uma forma criativa. A crença <strong>de</strong> que nele resi<strong>de</strong> uma potencialida<strong>de</strong><br />
maior, é uma das idéias que movem o presente estu<strong>do</strong>, <strong>de</strong>spertan<strong>do</strong> a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> se examinar melhor como o corpo funciona. Além disso, percepção e<br />
conhecimento musical também são processa<strong>do</strong>s no corpo e através <strong>de</strong>le, portanto<br />
conhecer como ele atua parece ser uma questão fundamental para o entendimento<br />
e prática da música.<br />
Falar <strong>do</strong> corpo implica em discutir primeiramente <strong>de</strong> que corpo se fala. O conceito<br />
<strong>de</strong> corpo, como são seus processos e sua forma <strong>de</strong> atuação são noções que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m<br />
<strong>do</strong> momento histórico. Ao rever estes conceitos e repensar como são os processos<br />
<strong>do</strong> corpo a partir <strong>de</strong> teorias e investigações contemporâneas, este estu<strong>do</strong> preten<strong>de</strong><br />
avaliar as possíveis consequências <strong>do</strong>s novos conhecimentos para a prática musical.<br />
Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> as concepções mais atuais, propõe também rever noções que ainda<br />
sobrevivem na prática musical, como por exemplo, a <strong>de</strong> corpo “instrumento”, que<br />
<strong>de</strong>ve ser treina<strong>do</strong> para atingir <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s, e a <strong>de</strong> corpo “recipiente”,<br />
questionan<strong>do</strong>-se a noção <strong>de</strong> que a mente opera como um aparato input-output,<br />
on<strong>de</strong> entram e são armazenadas informações para serem posteriormente reproduzidas.<br />
Além <strong>de</strong> fundamentar-se no conceito <strong>de</strong> embodied mind, este estu<strong>do</strong> examina questões<br />
que surgiram no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> uma pesquisa sobre a performance <strong>do</strong> corpo na<br />
criação musical. A experimentação prática, realizada como parte <strong>de</strong>sta pesquisa, investigou<br />
algumas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> criação com o corpo, envolven<strong>do</strong> especificamente<br />
movimento, respiração e canto, o que gerou diversas questões sobre a<br />
natureza <strong>do</strong> corpo e seu funcionamento no contexto da prática musical, que servem<br />
como subsídio para a reflexão aqui proposta.<br />
A investigação <strong>do</strong> corpo: reven<strong>do</strong> conceitos<br />
Investiga<strong>do</strong> exaustivamente em processos on<strong>de</strong> por vezes pesquisa estética e prática<br />
pedagógica se fun<strong>de</strong>m, o corpo ganha maior relevância como foco <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> sobretu<strong>do</strong><br />
a partir <strong>de</strong> mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XIX. Sem nunca ter <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar o<br />
interesse <strong>de</strong> artistas, filósofos e cientistas mesmo em perío<strong>do</strong>s anteriores a este, é<br />
durante o século XX que o entendimento sobre o corpo e seus processos passa por<br />
mudanças significativas. Numa tendência mais atual, o intercâmbio entre as diversas<br />
áreas <strong>de</strong> conhecimento tem gera<strong>do</strong> novas teorias e novos conceitos.<br />
No âmbito das investigações teóricas, a preocupação com o corpo conduz a uma revisão<br />
<strong>de</strong> teorias e concepções, que até então eram <strong>do</strong>minantes. Greiner observa que,<br />
principalmente a partir <strong>do</strong> século XX, passa a existir uma mudança sobre o enten-
dimento e os mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrição <strong>do</strong> corpo (Greiner 2005, 15). Uma quantia significativa<br />
<strong>de</strong> publicações passam a se <strong>de</strong>dicar ao assunto. Longe <strong>de</strong> soluções <strong>de</strong>finitivas,<br />
os trabalhos retomam e recolocam questões inevitáveis (Fleig 2000, 9).<br />
Sobretu<strong>do</strong> a partir das décadas <strong>de</strong> 80 e 90, a pesquisa que relaciona diversos campos<br />
<strong>de</strong> conhecimento estabelece-se como uma tendência, envolven<strong>do</strong> disciplinas<br />
distintas. As Ciências Cognitivas, a Neurociência, a Filosofia, a Teoria da Arte e a<br />
Semiótica, são exemplos <strong>de</strong> disciplinas, que passam a se ocupar <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpo,<br />
propon<strong>do</strong> concepções em consonância com as experimentações científicas contemporâneas.<br />
As novas teorias abrem caminhos e possibilida<strong>de</strong>s diferenciadas para<br />
o estu<strong>do</strong> das manifestações em que o corpo é um elemento fundamental. Entre elas,<br />
as ativida<strong>de</strong>s artísticas performáticas, como a música, po<strong>de</strong>m ser examinadas por<br />
um viés diferencia<strong>do</strong> <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as noções <strong>de</strong> corpo da atualida<strong>de</strong>.<br />
Embora longe da unanimida<strong>de</strong>, o processo <strong>de</strong> mudança teórica po<strong>de</strong> representar<br />
uma oportunida<strong>de</strong> para os que se <strong>de</strong>dicam à arte musical <strong>de</strong> rever idéias e práticas,<br />
já que as propostas, ao trazerem novas concepções <strong>do</strong> corpo, também auxiliam na<br />
compreensão <strong>do</strong> nosso processo cognitivo. A reflexão sobre os novos conceitos po<strong>de</strong><br />
ter como consequência alterações na meto<strong>do</strong>logia <strong>do</strong> ensino musical ou então constatar<br />
e validar sua a<strong>de</strong>quação.<br />
Muitos <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s contemporâneos concentram-se em perceber o corpo através<br />
<strong>de</strong> seu agir, <strong>de</strong> sua atuação no mun<strong>do</strong>, propon<strong>do</strong> alternativas para as dicotomias<br />
até então pre<strong>do</strong>minantes, tais como as clássicas divisões corpo-mente, razão-emoção,<br />
etc. Para compreen<strong>de</strong>rmos a importância da transformação que vem ocorren<strong>do</strong><br />
nos conceitos sobre o corpo e no entendimento <strong>de</strong> como ocorrem os processos cognitivos<br />
é interessante observar como estes conceitos eram até então. A idéia <strong>de</strong> que<br />
existe um mun<strong>do</strong> objetivo e uma Razão Universal in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das mentes e corpos<br />
<strong>do</strong>s seres humanos pre<strong>do</strong>minou durante séculos, constituin<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s fundamentos<br />
<strong>do</strong> pensamento oci<strong>de</strong>ntal tradicional, herança que ainda po<strong>de</strong> ser percebida<br />
na atualida<strong>de</strong>. Dessa forma, nessa tradição a Razão Humana foi por muito tempo<br />
consi<strong>de</strong>rada como um processo in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> corpo. Embora ten<strong>do</strong> lugar no<br />
cérebro, sua estrutura seria <strong>de</strong>finida pela Razão Universal e a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer<br />
uso <strong>de</strong>sta Razão Universal seria o que diferencia os seres humanos <strong>do</strong>s animais. Se<br />
a razão humana havia si<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>rada in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> corpo, significava então<br />
que era separada e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> todas as capacida<strong>de</strong>s corporais, tais como a percepção,<br />
o movimento <strong>do</strong> corpo, os sentimentos e as emoções.<br />
Segun<strong>do</strong> Ferracini, “apesar <strong>de</strong> esse pensamento <strong>de</strong> divisão retroce<strong>de</strong>r até os gregos,<br />
foi com Descartes, no século X<strong>VI</strong>, com seu cogito ergo sum que a divisão corpo e<br />
alma, e o <strong>de</strong>sprezo pelo corpo empírico, alcança uma base quase científica, numa separação<br />
radical” (Ferracini 2006, 113). Descartes buscava na verda<strong>de</strong> “um caminho<br />
fora da lógica aristotélica e da teologia católica que <strong>do</strong>minavam seu tempo”<br />
(Greiner e Katz 2001, 78), preten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> estabelecer uma aproximação entre a cog-<br />
385
386<br />
nição e as ciências matemáticas, consi<strong>de</strong>radas <strong>do</strong>mínios <strong>de</strong> precisão. Para Descartes,<br />
a cognição era apenas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>la mesma, existin<strong>do</strong> uma essência humana, que<br />
“se localiza na mente (ou alma, ou espírito) separada <strong>do</strong> corpo” (Greiner e Katz 2001,<br />
79). Sen<strong>do</strong> assim, existiam duas substâncias autônomas: a alma, se<strong>de</strong> <strong>do</strong> pensamento<br />
(res cogitans) e o corpo, o invólucro, que podia ser <strong>de</strong>scrito através <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los mecânicos<br />
(res extensa).<br />
Descartes cria um corpo mecanicista como substância outra em relação à alma,<br />
geran<strong>do</strong>, assim, toda uma concepção <strong>do</strong> corpo enquanto conjunto organiza<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> peças. Como consequência <strong>de</strong>sse pensamento, o corpo passa a ser uma natureza<br />
mecanizada que po<strong>de</strong> ser controlada, dissecada. De certa forma, percebemos<br />
ecos <strong>de</strong>ssa imagem-pensamento <strong>do</strong> corpo máquina até hoje em vários ramos <strong>do</strong><br />
conhecimento. (Ferracini 2006, 114)<br />
O conceito <strong>de</strong> separação entre corpo e mente, como observou Ferracini, faz-se ainda<br />
sentir nos dias atuais e marca não só os estu<strong>do</strong>s científicos, mas impregna outras<br />
instâncias da cultura. Quase não nos damos conta da enorme influência que este<br />
conceito exerce sobre nosso dia-a-dia, na educação ou nas artes. O corpo foi transforma<strong>do</strong><br />
em objeto e “suas verda<strong>de</strong>s passaram a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> ciências capazes <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>svendá-lo, enquanto a mente (res cogitans), apoiada no critério das idéias claras<br />
e distintas, apresentava-se como auto-evi<strong>de</strong>nte” (Greiner e Katz 2001, 80). Esta<br />
concepção, mesmo que refutada por alguns pensa<strong>do</strong>res, entre os quais, Baruch Espinosa<br />
(1632-1677) e Friedrich Nietzsche (1844-1900), representou um forte fundamento<br />
<strong>de</strong> toda a cultura oci<strong>de</strong>ntal. Apenas a partir <strong>do</strong> século XX este conceito<br />
começa a ser sistematicamente contesta<strong>do</strong> por outras propostas, tais como, por<br />
exemplo, pela fenomenologia <strong>de</strong> Edmund Husserl (1859-1938) e pelo filósofo<br />
Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) e sua concepção <strong>de</strong> corpo como estrutura física<br />
e vivida ao mesmo tempo, o que “significou um reconhecimento importante <strong>do</strong><br />
fluxo <strong>de</strong> infomação entre o interior e o exterior, entre informações biológicas e fenomenológicas,<br />
compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> que não se tratavam <strong>de</strong> aspectos opostos” (Greiner<br />
2005, 23).<br />
Falar sobre estu<strong>do</strong>s contemporâneos que apresentam novos conceitos sobre o corpo,<br />
é necessariamente realizar um recorte <strong>de</strong> um panorama mais amplo. As escolhas<br />
aqui realizadas refletem o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> se encontrar conceitos que evitem os dualismos<br />
e ao mesmo tempo revelem a importância <strong>do</strong> aspecto da atuação <strong>do</strong> ser humano,<br />
fundamental para a manifestação musical. Além <strong>de</strong> apresentar novos<br />
conceitos, as propostas originam-se a partir <strong>do</strong> trânsito entre diversas áreas <strong>de</strong> conhecimento,<br />
caracterizan<strong>do</strong>-se por ultrapassar as fronteiras entre as disciplinas envolvidas.<br />
As Ciências Cognitivas são um exemplo <strong>de</strong> área que apresenta um enfoque<br />
multidisciplinar. Com a intenção <strong>de</strong> estudar a mente e seu funcionamento surge na<br />
década <strong>de</strong> 50, abrangen<strong>do</strong> conhecimentos da Linguística, da Psicologia Cognitiva,<br />
da Neurociência, da Física, da Biologia e da Filosofia. Nas últimas décadas <strong>do</strong> século<br />
XX, pesquisas empíricas <strong>de</strong>senvolvidas nesta área científica passaram a contestar o
conceito <strong>de</strong> separação entre mente e corpo com base nas suas experimentações.<br />
Com o cruzamento <strong>de</strong> informações provenientes <strong>de</strong> diversas áreas <strong>do</strong> conhecimento,<br />
surge a noção <strong>de</strong> que não há limites absolutos entre o interno e o externo.<br />
Existin<strong>do</strong> uma relação permanente entre meio e corpo, ambos se ajustam constantemente,<br />
num fluxo <strong>de</strong> transformações e mudanças, sen<strong>do</strong> que os processos <strong>de</strong> conhecimento<br />
resultam <strong>de</strong>ssa interação e a cognição começa a ser vista como<br />
incorporada.<br />
A Mente Incorporada<br />
Uma proposta que revoluciona a concepção <strong>de</strong> corpo e cognição traz como fundamento<br />
o conceito <strong>de</strong> embodied mind,1 “mente incorporada”, apresenta<strong>do</strong> por Francisco<br />
Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch num estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1991,<br />
The embodied mind: cognitive science and human experience.2 A partir da interação<br />
entre Ciências Cognitivas e experiência humana, a obra promove um diálogo com<br />
as tradições budistas e a Filosofia. Ten<strong>do</strong> como inspiração inicial a filosofia <strong>de</strong> Merleau-Ponty,<br />
“um <strong>do</strong>s poucos cujo trabalho se comprometeu com uma exploração <strong>de</strong><br />
entre-<strong>de</strong>ux fundamental entre a ciência e a experiência, a experiência e o mun<strong>do</strong>”<br />
(Varela et al. 2003, 33), os autores procuram na tradição budista uma forma <strong>de</strong> examinar<br />
a experiência humana não apenas <strong>de</strong> forma reflexiva, mas que também inclua<br />
os aspectos vivi<strong>do</strong>s e imediatos. Neste trabalho questionam a noção <strong>de</strong> que a mente<br />
opera como um aparato input-output, afirman<strong>do</strong> que a mente não opera como um<br />
recipiente, mas como uma re<strong>de</strong> emergente e autônoma. Apresentam também a proposta<br />
<strong>de</strong> “ação incorporada”, que objetiva superar a questão <strong>do</strong> interno versus externo.<br />
O termo “incorporada” refere-se ao fato <strong>de</strong> que a cognição <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> das<br />
experiências <strong>do</strong> corpo a partir <strong>de</strong> suas capacida<strong>de</strong>s sensório-motoras, ocorren<strong>do</strong> no<br />
âmbito <strong>de</strong> “um contexto biológico, psicológico e cultural mais abrangente” (Varela<br />
et al. 2003, 177). O termo “ação” enfatiza os processos sensoriais e motores, já que,<br />
segun<strong>do</strong> os autores, a percepção e a ação são inseparáveis na cognição vivida.<br />
O conceito <strong>de</strong> “mente incorporada” também fundamenta o trabalho <strong>de</strong> George<br />
Lakoff e Mark Johnson, Philosophy in the flesh: The embodied Mind and its Challenge<br />
to Western Thought. Neste estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1999, os autores propõem um diálogo<br />
entre a Filosofia e as Ciências Cognitivas e contestam a concepção tradicional pre<strong>do</strong>minante<br />
no oci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> que existe uma razão “<strong>de</strong>sincorporada”, separada das<br />
habilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> corpo, tais como, percepção, movimento, sentimentos, emoções, etc.<br />
Para estes autores, o sistema conceitual <strong>do</strong>s seres humanos fundamenta-se em seu<br />
sistema sensório-motor. “Só po<strong>de</strong>mos formar conceitos através <strong>do</strong> corpo” (Lakoff<br />
e Johnson 1999, 555). Dessa forma a razão também é “incorporada”. Como, tanto<br />
os conceitos quanto a razão <strong>de</strong>rivam e fazem uso <strong>do</strong> sistema sensório-motor, a<br />
mente não po<strong>de</strong> ser separada nem in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> corpo. Conclui-se então que os<br />
processos cognitivos resultam da ação <strong>de</strong>ste corpo no mun<strong>do</strong>. Assim, a “cognição,<br />
longe <strong>de</strong> ser uma representação <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> pré-existente, seria o conjunto <strong>de</strong><br />
387
388<br />
um mun<strong>do</strong> e <strong>de</strong> uma mente a partir da história <strong>de</strong> diversas ações que caracterizariam<br />
um ser no mun<strong>do</strong>” (Greiner 2005, 35), daí a estreita inter<strong>de</strong>pendência entre conhecimento<br />
e experiência. Tu<strong>do</strong> se constrói a partir <strong>de</strong> nossa ação no mun<strong>do</strong> e<br />
“cada experiência é uma experiência incorporada” (Lakoff e Johnson 1999, 562).<br />
Com esta nova orientação científica compreen<strong>de</strong>-se que a cognição está totalmente<br />
interligada aos processos corporais, sen<strong>do</strong> o movimento <strong>do</strong> corpo concebi<strong>do</strong> como<br />
um <strong>do</strong>s fatores fundamentais para os processos mentais. Lakoff e Johnson salientam<br />
que “os mesmos mecanismos neurais e cognitivos que nos permitem perceber<br />
e mover são os que criam nossos sistemas conceituais e mo<strong>do</strong>s da razão” (Greiner<br />
2005, 45). Para Lakoff e Johnson “o nascimento <strong>do</strong> pensamento está sempre no<br />
movimento e no acionamento <strong>do</strong> nosso sistema sensório-motor”. E o neurocientista<br />
Ro<strong>do</strong>lfo Llinás vai mais além afirman<strong>do</strong> que até “o pensamento é um movimento<br />
interioriza<strong>do</strong>” e que “a mente é produto <strong>de</strong> diversos processos evolutivos<br />
que ocorrem no cérebro, mas apenas das criaturas que se movem” 3 (Greiner 2005,<br />
65). Ou seja, o movimento parece ser fundamental para a construção <strong>do</strong>s processos<br />
mentais e a mente um privilégio <strong>do</strong>s seres que se movem.<br />
O corpo em ação: nem instrumento, nem recipiente<br />
Os conceitos acima apresenta<strong>do</strong>s conduzem necessariamente a uma mudança <strong>de</strong><br />
postura em relação ao corpo e ao papel que este <strong>de</strong>sempenha no processo <strong>de</strong> aprendizagem.<br />
No caso da prática musical, o corpo não po<strong>de</strong> ser visto como mero instrumento,<br />
algo que po<strong>de</strong> ser treina<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma mecânica através <strong>de</strong> exercícios<br />
repetitivos. Tampouco po<strong>de</strong> ser visto como um recipiente. Segun<strong>do</strong> Greiner, o<br />
corpo “não é um lugar on<strong>de</strong> as informações que vêm <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> são processadas<br />
para serem <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>volvidas ao mun<strong>do</strong>”, ou seja, não “é um recipiente, mas sim<br />
aquilo que se apronta nesse processo co-evolutivo <strong>de</strong> trocas com o ambiente” (Greiner<br />
2005, 130). Nem instrumento, nem recipiente, o corpo estabelece-se enquanto<br />
um sistema complexo e múltiplo, em constante transformação. Esta informação<br />
gera como principal consequência para o ensino e a prática musical, a postura <strong>de</strong> não<br />
se fazer <strong>do</strong> corpo apenas um mecanismo para se atingir <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s.<br />
Ora, o corpo não po<strong>de</strong> ser nosso ‘instrumento’ ou ‘ferramenta’ <strong>de</strong> trabalho, pois<br />
quan<strong>do</strong> falamos em ‘instrumento’ ou ‘ferramenta’ subenten<strong>de</strong>mos sua manipulação<br />
por algo supostamente superior, ou mais a<strong>de</strong>stra<strong>do</strong>, ou mais treina<strong>do</strong>,<br />
que saiba manipular e usar esse instrumento. Acabamos incorporan<strong>do</strong> a dicotomia<br />
e a hierarquização no qual a mente controla o corpo, o usa como ferramenta<br />
<strong>de</strong> trabalho. Usan<strong>do</strong> o corpo como mera ferramenta, aprovamos e damos<br />
aval a essa dicotomia. (Ferracini 2006, 113)<br />
O conceito <strong>de</strong> “mente incorporada” compreen<strong>de</strong> o corpo como um sistema em permanente<br />
construção, sem separação nem hierarquia entre mente, espírito e corpo.<br />
A incorporação das informações <strong>do</strong> meio ambiente ocorre através <strong>de</strong> um processo
em que o corpo também se transforma. O corpo passa a ser compreendi<strong>do</strong> como o<br />
local e agente <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> conhecimento, provocan<strong>do</strong> transformações nele próprio<br />
e ao re<strong>do</strong>r a partir <strong>de</strong> sua atuação. A ação <strong>do</strong> corpo no mun<strong>do</strong> é, portanto, fundamental,<br />
pois é a forma como o transforma e como é por ele transforma<strong>do</strong>. Po<strong>de</strong>-se<br />
dizer portanto, que é através <strong>de</strong> sua ação que o corpo realiza processos <strong>de</strong> aprendizagem<br />
e <strong>de</strong>sta forma incorpora o conhecimento, ou seja, este passa a fazer parte <strong>do</strong><br />
corpo. Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> esta questão no âmbito <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> cognição musical, enten<strong>de</strong>-se<br />
que o ambiente para que este processo ocorra <strong>de</strong>ve ser instaura<strong>do</strong> pela própria<br />
ação <strong>do</strong> corpo. E a ação <strong>do</strong> corpo no mun<strong>do</strong> ocorre primordialmente através<br />
<strong>do</strong> movimento. Portanto, estimular práticas que privilegiem a ação <strong>do</strong> corpo e que<br />
trabalhem a partir <strong>do</strong> movimento parece ser uma atitu<strong>de</strong> a<strong>de</strong>quada para viabilizar<br />
o processo <strong>de</strong> cognição musical <strong>de</strong> uma forma criativa e que esteja em consonância<br />
com o conceito <strong>de</strong> “mente incorporada”.<br />
Movimento e <strong>Cognição</strong>: precursores na área artística<br />
O movimento tem ocupa<strong>do</strong> cientistas <strong>de</strong> diversas áreas nos dias atuais, chegan<strong>do</strong>se<br />
à conclusão, como colocam Greiner e Katz em A natureza cultural <strong>do</strong> corpo, <strong>de</strong><br />
que certas habilida<strong>de</strong>s motoras são inseparáveis <strong>de</strong> competências como as <strong>de</strong> raciocinar,<br />
<strong>de</strong> emocionar-se ou mesmo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver uma linguagem (Greiner e Katz<br />
2001, 85). Ele também é tema <strong>de</strong> investigação na área artística, merecen<strong>do</strong> atenção<br />
especial <strong>de</strong>s<strong>de</strong> mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XIX. Como o movimento passa a ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong><br />
fundamental para os processos cognitivos, compreen<strong>de</strong>r como ele se aloja no corpo<br />
e <strong>de</strong>scobrir como “se especializa a ponto <strong>de</strong> se transformar em representação teatral,<br />
gesto musical, dança, acrobacia, performance, música, ou seja, nas suas ações no<br />
mun<strong>do</strong> na forma <strong>de</strong> arte” (Greiner e Katz 2001, 94) parece ser <strong>de</strong> fundamental importância,<br />
especialmente para as práticas artísticas performáticas.<br />
O movimento, como tema <strong>de</strong> pesquisa, foi aborda<strong>do</strong> e investiga<strong>do</strong> em alguns trabalhos<br />
pioneiros na área artística. Um exemplo é o sistema <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> por François<br />
Delsarte (1811-1871), que investigou as relações entre movimento <strong>do</strong> corpo e<br />
esta<strong>do</strong>s internos, conectan<strong>do</strong> movimento e expressivida<strong>de</strong>. Especificamente na área<br />
musical, um <strong>do</strong>s pioneiros foi o compositor e pedagogo suiço Èmile-Jaques Dalcroze<br />
(1865-1950), que havia ti<strong>do</strong> aulas com Delsarte. Dalcroze investigou a importância<br />
<strong>do</strong> corpo no processo <strong>de</strong> musicalização e as relações entre movimento e<br />
percepção musical. A clareza da percepção intelectual seria, segun<strong>do</strong> Dalcroze, produto<br />
da perfeição <strong>do</strong>s meios físicos (Spector 1990, 117). Outro gran<strong>de</strong> pesquisa<strong>do</strong>r<br />
<strong>do</strong> movimento foi o bailarino e coreógrafo Ru<strong>do</strong>lf Laban (1879-1958). No seu trabalho<br />
sofreu influência tanto <strong>de</strong> François Delsarte como <strong>de</strong> Èmile Jaques-Dalcroze.<br />
Suas idéias são <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> relevância, especialmente porque <strong>de</strong>correm <strong>de</strong> uma investigação<br />
prática sistemática que procura i<strong>de</strong>ntificar como surgem os movimentos.<br />
Entre outras propostas, Laban <strong>de</strong>senvolve a integração entre dança, som e palavra<br />
389
390<br />
(Tanz-Ton-Wort). Na concepção <strong>de</strong> Laban, há o espaço em geral e aquele que circunda<br />
o corpo, que o envolve. Laban “construiu um sistema expressivo que provoca<br />
uma inversão: não é mais somente o espaço que contém o corpo e o <strong>de</strong>fine,<br />
mas também o corpo passa a construir e <strong>de</strong>finir o espaço” (Bonfitto 2002, 54).<br />
Sen<strong>do</strong> assim, no aspecto da relação entre corpo e meio o sistema <strong>de</strong> Laban parece<br />
estar em consonância com o conceito <strong>de</strong> um sistema integra<strong>do</strong>. A geração da ação<br />
resulta da relação entre corpo e espaço e o corpo é também um <strong>do</strong>s responsáveis<br />
por gerar esta ação. As idéias <strong>de</strong> Laban permanecem como fundamentos importantes<br />
para os processos criativos que envolvem o corpo e para as artes performáticas<br />
em geral. Outro trabalho precursor foi o <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> pela pedagoga musical<br />
Gertrud Grunow entre 1919 e 1924. Grunow estu<strong>do</strong>u a relações específicas entre<br />
som e movimento, <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> sua experimentação em conexão à sua ativida<strong>de</strong><br />
pedagógica na Escola Bauhaus, na Alemanha (Schoon 2006, 45).<br />
Estas pesquisas constituem-se em eventos precursores <strong>de</strong> futuras experimentações<br />
nas artes e especificamente na música. Elas <strong>de</strong>monstram a importância <strong>do</strong> corpo,<br />
<strong>de</strong> seu movimento, para os processos <strong>de</strong> criação artística, privilegian<strong>do</strong> a ação <strong>do</strong><br />
corpo como base para a construção <strong>de</strong> conhecimento, antece<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>de</strong> certa forma<br />
alguns conceitos teóricos da atualida<strong>de</strong>.<br />
Conclusões<br />
De um mo<strong>do</strong> geral, ao se trabalhar a partir <strong>do</strong> movimento, estimulan<strong>do</strong> a investigação<br />
da natureza <strong>de</strong>ste através <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> experimentação e improvisação,<br />
por exemplo, estimula-se também o conhecimento <strong>do</strong> corpo. A tendência é que<br />
haja um aprimoramento da percepção corporal, maior consciência <strong>do</strong>s processos<br />
corporais, o que é <strong>de</strong>sejável para toda prática artística performática e especificamente<br />
para a música. Ten<strong>do</strong> como centro da investigação o movimento, o indivíduo<br />
po<strong>de</strong> construir seu espaço <strong>de</strong> aprendizagem a partir <strong>de</strong> sua própria ação,<br />
incorporan<strong>do</strong> a experiência realizada, ou seja, o conhecimento. Lembre-se aqui que<br />
este resulta exatamente da interação entre corpo e meio. Trabalhar a partir <strong>do</strong> movimento<br />
e <strong>de</strong>senvolver a percepção corporal parecem ser princípios meto<strong>do</strong>lógicos<br />
a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong> se sabe que o nosso sistema sensório-motor é o responsável<br />
pelos processos cognitivos, uma das primeiras conclusões práticas que se po<strong>de</strong> tirar<br />
quan<strong>do</strong> se consi<strong>de</strong>ra a teoria apresentada.<br />
Os sons que po<strong>de</strong>mos produzir com o corpo, incluin<strong>do</strong> aqui a voz, também são<br />
movimentos. Investigar estes movimentos significa também explorar as diversas<br />
possibilida<strong>de</strong>s da voz. Os processos <strong>de</strong> experimentação, criação e improvisação são<br />
fundamentais, pois além <strong>de</strong> permitirem o conhecimento <strong>do</strong> som, inclusive antes<br />
<strong>de</strong> qualquer sistema ou código específico, ocorrem a partir da atuação <strong>do</strong> corpo.<br />
Estas estratégias têm ainda como vantagem o fato <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rem eventualmente se<br />
realizar como um processo coletivo, o que é enriquece<strong>do</strong>r por permitir uma cons-
tante interação entre os participantes.<br />
Os atos <strong>de</strong> criar e <strong>de</strong> improvisar estão na raiz <strong>do</strong> fazer musical e são fundamentais<br />
para o processo <strong>de</strong> cognição. Explorar a potencialida<strong>de</strong> da voz e <strong>do</strong> movimento são<br />
estratégias que permitem o conhecimento <strong>do</strong> corpo e o exercício da possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> criar. Os processos <strong>de</strong> experimentação fazem parte da própria história da música,<br />
um aspecto que foi retoma<strong>do</strong> principalmente a partir da segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século<br />
XX, estimula<strong>do</strong> pela atuação <strong>de</strong> compositores como John Cage, entre outros. Posteriormente,<br />
compositores-performers, tais como Meredith Monk, passam a explorar<br />
o movimento <strong>do</strong> corpo e sua relação com a improvisação vocal, em ações<br />
capazes <strong>de</strong> gerar suas criações e performances musicais. Ou seja, estas estratégias<br />
são pertinentes ao fazer musical e po<strong>de</strong>m também operar como formas que viabilizam<br />
o conhecimento musical, que po<strong>de</strong>m e <strong>de</strong>vem estar presentes no processo <strong>de</strong><br />
aprendizagem.<br />
A importância das experiências <strong>do</strong> corpo para os processos cognitivos gera como<br />
consequência a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> práticas que estejam em consonância com os conhecimentos<br />
atuais sobre o corpo. Conclui-se que o trabalho com o corpo é um requisito<br />
básico e <strong>de</strong>ve estar presente na situação <strong>do</strong> ensino e da prática musical.<br />
Também é importante pensar o corpo na sua potencialida<strong>de</strong> total, estimulan<strong>do</strong> sua<br />
ação, seus processos <strong>de</strong> interação com o entorno e sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gerar processos<br />
<strong>de</strong> criação. Se a percepção e a ação são inseparáveis na cognição vivida, como<br />
visto neste estu<strong>do</strong>, parece ser fundamental <strong>de</strong>senvolver méto<strong>do</strong>s para aprimorar a<br />
consciência corporal, formas <strong>de</strong> estimular o conhecimento <strong>do</strong> próprio corpo, a <strong>de</strong>scoberta<br />
da voz e <strong>do</strong> movimento, assim como suas potencialida<strong>de</strong>s criativas. Acima<br />
<strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, criar condições para uma vivência musical que se organize a partir <strong>de</strong> uma<br />
atuação criativa, possibilitan<strong>do</strong> assim a construção <strong>do</strong> conhecimento como uma<br />
experiência incorporada.<br />
1 De difícil tradução para o português, o termo tem apareci<strong>do</strong> como mente “encarnada”,“corporificada”<br />
ou “incorporada”. A<strong>do</strong>to aqui este último termo, utiliza<strong>do</strong> na tradução para o<br />
português, em 2003, da obra <strong>de</strong> Varela, Thompson e Rosch, The Embodied Mind: cognitive<br />
science and human experience.<br />
2 Greiner observa que em 1965 o neuropsiquiatra Warren McCulloch já havia publica<strong>do</strong><br />
Embodiments of Mind, embora com um enfoque diferente <strong>do</strong> <strong>de</strong> Varela, Thompson e Rosch<br />
(Greiner 2005, 35).<br />
3 Na verda<strong>de</strong> a preocupação com o movimento é bem antiga, já estan<strong>do</strong> presente em escritos<br />
<strong>de</strong> Platão e Aristóteles.Vale observar aqui a título <strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong> que Platão, por exemplo,<br />
“afirmava que to<strong>do</strong> corpo que tem uma fonte externa <strong>de</strong> movimento não tem alma, mas<br />
o corpo que <strong>de</strong>riva o seu movimento <strong>de</strong> uma fonte interna é anima<strong>do</strong>, ou seja, vivo” (Greiner<br />
2005, 57).<br />
391
392<br />
Referências Bibliográficas<br />
Bonfitto, Matteo. 2002. O Ator Compositor: as ações físicas como eixo: <strong>de</strong> Stanislávski a Barba.<br />
São Paulo: Perspectiva.<br />
Ferracini, Renato. 2005. Café com Queijo: Corpos em Criação. São Paulo: Hucitec.<br />
Fleig, Anne. 2000. “Körper-Inszenierungen”: Begriff, Geschichte, kulturelle Praxis. In Körper-Inszenierungen:<br />
Präsenz und kultureller Wan<strong>de</strong>l. Ed. Erika Fischer-Lichte e Anne<br />
Fleig, 7-17. Tübingen: Attempto.<br />
Greiner, Christine e Helena Katz. 2001. “A natureza cultural <strong>do</strong> corpo”. In Lições <strong>de</strong> Dança<br />
3. Org. Roberto Pereira e Silvia Soter, 77-102. Rio <strong>de</strong> Janeiro: UniverCida<strong>de</strong>.<br />
Greiner, Christine. 2005. O Corpo: pistas para estu<strong>do</strong>s indisciplinares.São Paulo:Annablume.<br />
Lakoff, Georg e Mark Johnson. 1999. Philosophy in the Flesh: the embodied mind and its challenge<br />
to western thought. New York: Basic Books.<br />
Schoon, Andi. 2006. Die Ordnung <strong>de</strong>r Klänge: Das Wechselspiel <strong>de</strong>r Künste vom Bauhaus<br />
zum Black Mountain College. Bielefeld: Transcript.<br />
Spector, Irwin. 1990. Rhythm and Life: The work of Emile Jaques-Dalcroze. Stuyvesant, NY:<br />
Pendragon Press.<br />
Varela, Francisco, Evan Thompson, Eleanor Rosch. 2003. A Mente Incorporada:Ciências<br />
Cognitivas e Experiência Humana. Porto Alegre: Artmed.
<strong>Cognição</strong> musical, especialização cerebral e o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento da in<strong>de</strong>pendência e coor<strong>de</strong>nação motoras<br />
Antenor Ferreira Corrêa<br />
antenorfc@unb.br<br />
Departamento <strong>de</strong> Música da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília (UnB)<br />
Resumo<br />
Neste ensaio <strong>de</strong>senvolve-se a hipótese da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se realizar tarefas coor<strong>de</strong>nadas<br />
entre os <strong>do</strong>is hemisférios cerebrais. Vale-se da junção entre <strong>do</strong>mínios das ciências<br />
cognitivas (especialmente a cognição musical e a matemática) como processo para a<br />
execução <strong>de</strong> tarefas com objetivo <strong>de</strong> lograr o <strong>de</strong>senvolvimento da coor<strong>de</strong>nação e in<strong>de</strong>pendência<br />
motoras em músicos e não músicos. Nesse meandro, o fazer musical atuará<br />
enquanto fornece<strong>do</strong>r da recompensa emocional, agin<strong>do</strong> como elemento motiva<strong>do</strong>r da<br />
aprendizagem. Este estu<strong>do</strong> encampa, também, aspectos da etnomusicologia, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> são<br />
extraídas estruturas rítmicas <strong>do</strong>s gêneros musicais tradicionais com intuito meto<strong>do</strong>lógico<br />
<strong>de</strong> viabilizar a transição <strong>de</strong> elementos conheci<strong>do</strong>s para aqueles ignora<strong>do</strong>s.<br />
Palavras-chave<br />
Ciências cognitivas, coor<strong>de</strong>nação motora, in<strong>de</strong>pendência motora.<br />
Introdução<br />
No presente ensaio objetiva-se <strong>de</strong>monstrar, à guisa <strong>de</strong> hipótese, maneiras <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
cerebral por meio <strong>de</strong> realização <strong>de</strong> exercícios coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s entre os<br />
membros <strong>do</strong> corpo, intermedia<strong>do</strong>s por estruturas rítmicas musicais, e operações<br />
matemáticas simples. Enten<strong>de</strong>-se que as ativida<strong>de</strong>s ora propostas <strong>de</strong>man<strong>de</strong>m a integração<br />
<strong>de</strong> ambos os hemisférios cerebrais durante a realização das referidas tarefas.<br />
Este estu<strong>do</strong> é, antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, uma proposta interdisciplinar, envolven<strong>do</strong> ciências<br />
cognitivas (especialmente aquelas <strong>de</strong>dicadas ao campo da cognição musical), aritmética<br />
e, em certo senti<strong>do</strong>, a etnomusicologia. Acredita-se que a associação entre etnomusicologia<br />
e cognição musical (ramo <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s cujos objetos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong><br />
geralmente não tem como prioritárias as preocupações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m etnomusicológicas)<br />
possa promover resulta<strong>do</strong>s frutíferos no que concerne ao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong><br />
habilida<strong>de</strong>s ligadas à psicomotricida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência e coor<strong>de</strong>nação motoras.<br />
Para tanto, a etnomusicologia atua como fornece<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> padrões rítmicos característicos<br />
<strong>de</strong> gêneros musicais populares, mais próximos da realida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s não-músicos<br />
ou <strong>de</strong> músicos não possui<strong>do</strong>res <strong>de</strong> instrução acadêmica formal. Espera-se, com<br />
isso, ancorar-se na meto<strong>do</strong>logia que visa atingir os objetivos propostos operan<strong>do</strong> por<br />
meio da transição gradual daquilo que é conheci<strong>do</strong> para o ainda <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>. Os<br />
aspectos liga<strong>do</strong>s às ciências cognitivas fundamentam-se, principalmente, no en-<br />
393
394<br />
tendimento da especialização cerebral, ou seja, na existência <strong>de</strong> <strong>do</strong>is hemisférios cerebrais<br />
possui<strong>do</strong>res <strong>de</strong> atributos diferenciais em acor<strong>do</strong> com as tarefas que executam,<br />
embora estejam sempre passíveis a reconfigurações neurais.<br />
Perseguin<strong>do</strong> esse objetivo parte-se, então, <strong>do</strong>s seguintes pressupostos:<br />
1. As ativida<strong>de</strong>s cognitivas po<strong>de</strong>m ser estimuladas por meio <strong>de</strong> recompensas emocionais.<br />
Envolve, portanto, o campo somático <strong>do</strong> processo epistemológico e<br />
cognitivo, no qual a lógica da aquisição e armazenagem <strong>de</strong> informações é mediada<br />
por componentes motivacionais (Cf: Roe<strong>de</strong>rer, 2002, p.262).<br />
2. Há a diferenciação no processamento <strong>de</strong> informações entre os <strong>do</strong>is hemisférios<br />
cerebrais, fican<strong>do</strong> cada um <strong>de</strong>sses hemisférios responsável por trabalhar<br />
distintos conteú<strong>do</strong>s; no entanto, esses processos estão permanentemente sujeitos<br />
a reconfigurações neurais. Assim, admite-se que processamentos <strong>de</strong> informações<br />
seqüenciais e ligadas a análises e cálculos em geral sejam realiza<strong>do</strong>s<br />
pelo hemisfério <strong>do</strong>minante (hemisfério esquer<strong>do</strong> na maior parte da população<br />
mundial, cerca <strong>de</strong> 97% das pessoas). O hemisfério menor, por sua vez, “se <strong>de</strong>finiu<br />
como mais adapta<strong>do</strong> à percepção das relações holísticas, globais e sintéticas”<br />
(Roe<strong>de</strong>rer, 2002, p.269).<br />
3. Os processos da tradição oral <strong>de</strong> aprendizagem musical (mais próprios da chamada<br />
música popular ou folclórica) po<strong>de</strong>m ser transporta<strong>do</strong>s para outros <strong>do</strong>mínios<br />
<strong>do</strong> conhecimento.<br />
Em posse <strong>de</strong>sses pressupostos, julgo possível executar tarefas (exercícios) que integrem<br />
música e cognição. O fazer musical, nesse meandro, fornecerá a recompensa<br />
emocional, agin<strong>do</strong>, então, como elemento motiva<strong>do</strong>r no processo <strong>de</strong> aprendizagem.<br />
Esses exercícios, embora se configurem como ativida<strong>de</strong>s musicais, visam a <strong>de</strong>senvolver<br />
a psicomotricida<strong>de</strong>, pois são direciona<strong>do</strong>s ao aperfeiçoamento da<br />
in<strong>de</strong>pendência e coor<strong>de</strong>nação motoras. A parte advinda da etnomusicologia referese<br />
ao uso <strong>de</strong> estruturas rítmicas características <strong>do</strong>s distintos gêneros musicais emprega<strong>do</strong>s.<br />
Há inúmeras possibilida<strong>de</strong>s, a seguir serão <strong>de</strong>monstradas algumas<br />
ativida<strong>de</strong>s valen<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> estruturas rítmicas extraídas <strong>do</strong>s gêneros musicais Ijexá e<br />
Rumba.<br />
Integração <strong>de</strong> <strong>do</strong>mínios<br />
Operações matemáticas são processadas pelo hemisfério <strong>do</strong>minante <strong>do</strong> cérebro.<br />
Assim, cálculos ou mesmo contagens <strong>de</strong> qualquer natureza são analisa<strong>do</strong>s nesse hemisfério.<br />
A percepção musical, por sua vez, é processada pelo hemisfério menor,<br />
por tratar-se <strong>de</strong> uma tarefa compreendida na sua gestalt, isso é, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> não segmenta<strong>do</strong>.<br />
Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssa fundamentação, po<strong>de</strong>r-se-ia indagar: o que aconteceria ao realizarse<br />
uma ativida<strong>de</strong> cujos estímulos sejam simultaneamente direciona<strong>do</strong>s aos <strong>do</strong>is hemisférios<br />
cerebrais? Logicamente, o cérebro estaria, ao mesmo tempo, trabalhan<strong>do</strong>
com funções analíticas fracionadas e integran<strong>do</strong>-as, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a reuni-las em um<br />
to<strong>do</strong> or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>. Um simples exercício <strong>de</strong>sse tipo seria contar uma seqüência numérica<br />
enquanto toca-se alguma coisa. Essas informações estariam, então, sen<strong>do</strong><br />
processadas simultaneamente nos <strong>do</strong>is hemisférios <strong>do</strong> cérebro. Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong>sse postula<strong>do</strong>,<br />
são apresenta<strong>do</strong>s, a seguir, alguns exercícios com intuito <strong>de</strong> trabalhar <strong>de</strong><br />
mo<strong>do</strong> integra<strong>do</strong> as operações processadas em cada hemisfério cerebral e ainda buscar<br />
um <strong>de</strong>senvolvimento sensório motor.<br />
Exercícios<br />
O Exercício 1 mostra um padrão rítmico usa<strong>do</strong> no Ijexá, gênero afro-brasileiro<br />
muito comum na Bahia. Associa<strong>do</strong> a esse padrão há duas propostas <strong>de</strong> contagens<br />
(a e b). Há idéia é realizar concomitantemente alguma das contagens enquanto se<br />
executa a estrutura rítmica (tocada com baqueta ou mesmo com palmas). O importante<br />
é manter o andamento e notar que a contagem proposta na letra b possui<br />
um número maior <strong>de</strong> elementos <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> mesmo espaço <strong>de</strong> tempo, que é regi<strong>do</strong><br />
pelo padrão rítmico. Para os afeitos à leitura musical, no quadro <strong>de</strong> n° 2 são mostradas<br />
as duas maneiras <strong>de</strong> contagem valen<strong>do</strong>-se da grafia usual na pauta musical.<br />
Assim, a contagem a correspon<strong>de</strong>rá à execução em semínimas e a contagem b será<br />
realizada em colcheias. Valen<strong>do</strong>-se <strong>de</strong>ssa mesma estrutura é possível aprofundar o<br />
esse trabalho <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência e coor<strong>de</strong>nação motora com o acréscimo <strong>de</strong> mais<br />
uma linha rítmica, que <strong>de</strong>verá ser executada por uma das mãos, fican<strong>do</strong> assim a<br />
outra mão responsável pela realização <strong>do</strong> outro padrão rítmico, como mostra<strong>do</strong> no<br />
Exercício 2.<br />
Exercício 1 — 1) proposta da execução conjunta <strong>de</strong> um padrão rítmico extraí<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
Ijexá e duas maneiras <strong>de</strong> contagem (a e b).<br />
2) estrutura resultante das contagens a e b transcritas para notação musical.<br />
A medida da organização temporal <strong>de</strong>sses padrões rítmicos é chamada em música<br />
<strong>de</strong> compasso. As estruturas rítmicas <strong>do</strong>s exercícios 1 e 2 enquadram-se em um único<br />
compasso <strong>de</strong> quatro tempos. É possível, todavia, trabalhar com organizações maiores<br />
conten<strong>do</strong> <strong>do</strong>is ou mais compassos. O Exercício 3 apresenta um padrão <strong>de</strong> ritmo<br />
extraí<strong>do</strong> da linha <strong>de</strong> clave da Rumba, cuja estrutura métrica é completada em <strong>do</strong>is<br />
compassos. Assim, há uma ligeira mudança na interpretação <strong>de</strong>sse padrão, mu-<br />
395
396<br />
dan<strong>do</strong> também as formas <strong>de</strong> contagens distribuídas ao longo <strong>de</strong>sse metro, que trará<br />
implicações no resulta<strong>do</strong> musical, mas não terá uma alteração drástica no tipo <strong>de</strong><br />
contagem proposta para os exercícios anteriores.<br />
Exercício 2 — proposta da execução conjunta <strong>de</strong> <strong>do</strong>is padrões rítmicos<br />
(mãos direita e esquerda) associa<strong>do</strong>s às duas maneiras <strong>de</strong> contagem (a e b).<br />
Exercício 3 — padrão rítmico extraí<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rumba associa<strong>do</strong> às duas maneiras <strong>de</strong><br />
contagem (a e b).<br />
Exercício 4 — padrões rítmicos <strong>de</strong> Ijexá e Rumba associa<strong>do</strong>s aos cálculos <strong>de</strong><br />
multiplicação por 2 e por 3.<br />
Valen<strong>do</strong>-se <strong>de</strong>ssas estruturas rítmicas apresentadas nos Exercícios 1 e 2, po<strong>de</strong>-se expandir<br />
o orbe <strong>de</strong>ssas tarefas agregan<strong>do</strong>-se operações aritméticas simples, como cálculos<br />
<strong>de</strong> adição e multiplicação, por exemplo. Das inúmeras possibilida<strong>de</strong>s,<br />
propõe-se, no Exercício 4, duas maneiras <strong>de</strong> execução <strong>de</strong>ssa tarefa. Os padrões rítmicos<br />
são semelhantes aos já utiliza<strong>do</strong>s (Ijexá e Rumba), porém a contagem é mo-
dificada <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a realizar multiplicação por 2 e por 3. Assim, ao mesmo tempo em<br />
que a estrutura rítmica é executada, <strong>de</strong>ve-se dizer o resulta<strong>do</strong> das operações sugeridas,<br />
sempre manten<strong>do</strong> o andamento.<br />
Logicamente, há também a possibilida<strong>de</strong> da realização <strong>de</strong> exercícios coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s,<br />
visan<strong>do</strong> a aspectos cognitivos <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a <strong>de</strong>senvolver a in<strong>de</strong>pendência e a coor<strong>de</strong>nação<br />
motora. Valen<strong>do</strong>-se da mesma estrutura <strong>de</strong> rumba, apresenta-se no Exercício<br />
5 o padrão rítmico da clave (a ser toca<strong>do</strong> com uma das mãos) associa<strong>do</strong> ao<br />
padrão da cáscara (a ser toca<strong>do</strong> com a outra mão), estrutura rítmica também presente<br />
em diversos gêneros musicais latino americanos, em especial na Salsa. Enfatize-se<br />
que as duas maneiras <strong>de</strong> contagem sempre <strong>de</strong>vem ser executadas,<br />
preferivelmente, alternadamente. Deve-se, também, realizar este exercício substituin<strong>do</strong>-se<br />
a contagem por algum cálculo, como multiplicação por 4, 5, 6 ou outro<br />
no qual o executante se ache confiante.<br />
Exercício 5 — padrões rítmicos <strong>de</strong> clave e cáscara associa<strong>do</strong>s às duas maneiras <strong>de</strong><br />
contagem (a e b).<br />
O nível <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses exercícios po<strong>de</strong>, logicamente, aumentar gradativamente,<br />
por exemplo, com o acréscimo <strong>de</strong> outras linhas rítmicas para serem executadas<br />
pelos pés. Porém, essas etapas <strong>de</strong>vem sempre ser coor<strong>de</strong>nadas com os <strong>do</strong>is<br />
tipos <strong>de</strong> contagem, sen<strong>do</strong> <strong>de</strong>sejada a realização ininterrupta <strong>do</strong>s exercícios alternan<strong>do</strong>-se<br />
as diferentes maneiras <strong>de</strong> contagem. O Exercício 6 mostra uma das possíveis<br />
organizações entre os quatro membros e os <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> contagens,<br />
novamente fazen<strong>do</strong> uso da estrutura rítmica <strong>do</strong> Ijexá.<br />
Ressalte-se que, embora esses exercícios tenham si<strong>do</strong> elabora<strong>do</strong>s a partir das estruturas<br />
musicais presentes nos respectivos gêneros tradicionais, a intenção não é fazer<br />
música. O objetivo é trabalhar e <strong>de</strong>senvolver aspectos cognitivos associa<strong>do</strong>s à in<strong>de</strong>pendência<br />
e coor<strong>de</strong>nação motoras. A função <strong>do</strong>s elementos musicais é fornecer<br />
um contexto conheci<strong>do</strong> àquele não inicia<strong>do</strong> que preten<strong>de</strong> executar os exercícios,<br />
<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a envolvê-lo <strong>de</strong> certa familiarida<strong>de</strong> ao praticar ativida<strong>de</strong>s. É até i<strong>de</strong>al que<br />
esses exercícios sejam realiza<strong>do</strong>s junto com gravações <strong>do</strong>s respectivos gêneros musicais,<br />
<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a propiciar um entendimento mais completo <strong>do</strong>s mesmos. Todavia,<br />
os não músicos <strong>de</strong>vem ter orientação <strong>de</strong> um professor que compreenda os<br />
aspectos musicais implícitos, posto que a proposta motriz é a integração <strong>do</strong>s hemisférios<br />
cerebrais na realização <strong>de</strong>ssas tarefas, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a coor<strong>de</strong>nar os processa-<br />
397
398<br />
mentos holístico e analítico (<strong>de</strong> segmentação).<br />
Exercício 6 — acréscimo <strong>de</strong> outras linhas rítmicas para serem executadas<br />
pelos quatro membros associa<strong>do</strong>s às duas maneiras <strong>de</strong> contagem (a e b).<br />
Consi<strong>de</strong>rações Finais<br />
Embora o entendimento da existência da divisão cerebral em <strong>do</strong>is hemisférios<br />
ainda não seja consenso entre neurologistas, a especialização cerebral tomada<br />
como fundamento e ponto <strong>de</strong> partida para as ativida<strong>de</strong>s aqui propostas não<br />
possui qualquer efeito prejudicial. Tentou-se postular um <strong>do</strong>s muitos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />
atuação interdisciplinar e <strong>de</strong> integração entre as ciências da cognição e outros <strong>do</strong>mínios<br />
<strong>do</strong> fazer musical, como a etnomusicologia.<br />
Durante seu surgimento a etnomusicologia valeu-se <strong>de</strong> nova abordagem meto<strong>do</strong>lógica<br />
para o estu<strong>do</strong> da música ‘na’ e ‘como’ cultura. Aproximou, via antropologia,<br />
a musicologia das ciências sociais, oferecen<strong>do</strong> para os pesquisa<strong>do</strong>res da música novos<br />
méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> investigação científica distintos das abordagens positivistas usadas até<br />
então. Nessa esteira, favoreceu também a expansão da criativida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s artistas, em<br />
especial <strong>do</strong>s compositores, que conheceram novos procedimentos e passaram a usufruir<br />
<strong>de</strong> um maior material sonoro a ser trata<strong>do</strong> composicionalmente.<br />
No seu estágio inicial, a etnomusicologia centrou-se em classificações e catalogações<br />
<strong>do</strong> repertório não oci<strong>de</strong>ntal. Atualmente, porém, já é mais que possível o uso<br />
conjunto <strong>de</strong>sses saberes entre as diferentes disciplinas. A educação musical beneficiar-se-ia<br />
<strong>de</strong>ssa união <strong>de</strong> aspectos étnicos como estratégias didáticas e pedagógicas,<br />
ao incorporar e levar para sala <strong>de</strong> aula os processos <strong>de</strong> aprendiza<strong>do</strong> musical oriun<strong>do</strong>s<br />
das tradições orais <strong>de</strong> transmissão <strong>de</strong> conhecimento. Imbuí<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssa idéia, nesse<br />
ensaio procurou-se especular sobre o intercâmbio entre etnomusicologia e ciências<br />
cognitivas. Os da<strong>do</strong>s coleta<strong>do</strong>s pela etnomusicologia referem-se ao uso <strong>de</strong> estruturas<br />
sonoras presentes nos distintos gêneros musicais, que indicam, inclusive, o grau<br />
<strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s gêneros musicais quan<strong>do</strong> compara<strong>do</strong>s a outros.11<br />
Não se enten<strong>de</strong> a complexida<strong>de</strong> sob o ponto <strong>de</strong> vista evolutivo-positivista, em que
adquire um estatuto valorativo, mas sim como um processo entrópico, obti<strong>do</strong> pelo<br />
aumento <strong>de</strong> elementos e/ou incremento <strong>do</strong>s aspectos envolvi<strong>do</strong>s no convívio sóciocultural.<br />
Po<strong>de</strong>-se enten<strong>de</strong>r o pulso como sen<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s elementos mais básicos da<br />
estruturação musical e quaisquer elaborações empreendidas sobre ele, implicam,<br />
conseqüentemente, no aumento da carga informativa e da complexida<strong>de</strong>. A esse<br />
respeito ver: Corrêa, 2004, p.231.. A hipótese <strong>de</strong> contribuição com a ciência da cognição<br />
advém <strong>do</strong> uso <strong>de</strong>ssas estruturas musicais como meio <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong> tarefas<br />
visan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>senvolvimentos no campo da psicomotricida<strong>de</strong> e da coor<strong>de</strong>nação e in<strong>de</strong>pendência<br />
motoras. Infinitas combinações <strong>de</strong> exercícios são possíveis, da<strong>do</strong> a<br />
gran<strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gêneros musicais existentes.<br />
Esta é uma pesquisa em estágio inicial, cujo próximo passo seria incorporar grupos<br />
referenciais e <strong>de</strong> amostragem <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a verificar o <strong>de</strong>senvolvimento das habilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>sses sujeitos após a realização das tarefas propostas. Seria também <strong>de</strong> eficácia<br />
conclusiva para os objetivos aqui persegui<strong>do</strong>s a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se contar com equipamento<br />
que permitisse o mapeamento por tomografia computa<strong>do</strong>rizada durante<br />
a realização das tarefas, indican<strong>do</strong> assim as áreas <strong>do</strong> cérebro envolvidas nessas operações.<br />
Com isso, acredita-se po<strong>de</strong>r oferecer, além da comprovação da hipótese aqui<br />
formulada, uma aplicação prática <strong>de</strong>sse estu<strong>do</strong> interdisciplinar em cognição musical.<br />
Referências bibliográficas<br />
Corrêa, Antenor Ferreira. Vem <strong>de</strong>baixo <strong>do</strong> barro <strong>do</strong> chão? In: <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> <strong>VI</strong> Fórum <strong>do</strong> Centro<br />
<strong>de</strong> Linguagem Musical. São Paulo, 2004, p. 226-232.<br />
Roe<strong>de</strong>rer, Juan. Introdução à Física e Psicofísica da Música. Tradução Alberto Luis da Cunha.<br />
São Paulo: Edusp, 1998.<br />
399
400<br />
Processos <strong>de</strong> criação musical e constituição <strong>do</strong> sujeito:<br />
objetivan<strong>do</strong> uma ética e estética na/da existência<br />
Patrícia Wazlawick<br />
patriciawazla@gmail.com<br />
Kátia Maheirie<br />
maheirie@gmail.com<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina<br />
Resumo<br />
Apresenta-se neste trabalho uma breve discussão acerca <strong>de</strong> aspectos obti<strong>do</strong>s em pesquisa<br />
<strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> na área da Psicologia, abordagem histórico-cultural, junto ao campo<br />
<strong>de</strong> investigação da música, acerca <strong>do</strong> tema da constituição <strong>do</strong> sujeito e ativida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra.<br />
Teve-se como sujeitos <strong>do</strong>is músicos violonistas compositores <strong>de</strong> música instrumental,<br />
integrantes <strong>de</strong> um duo. O objetivo principal foi investigar os processos <strong>de</strong> criação<br />
musical como ativida<strong>de</strong> media<strong>do</strong>ra na constituição <strong>do</strong> sujeito. A fundamentação teórica<br />
pauta-se nos aportes teóricos <strong>do</strong> psicólogo russo Lev Vygotski, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o materialismo<br />
histórico e dialético, e seus interlocutores, sobre processo <strong>de</strong> criação, ativida<strong>de</strong><br />
cria<strong>do</strong>ra e relação estética, e nos estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong> filósofo russo Mikhail Bakhtin a respeito da<br />
criação/produção estética, e da temática da ética/estética. A música é entendida como<br />
sen<strong>do</strong> uma linguagem afetivo-reflexiva (Maheirie, 2001), como trabalho acústico (Araújo,<br />
1994) e como ativida<strong>de</strong>/ação humana situada em contextos (Stige, 2002). O méto<strong>do</strong>, <strong>de</strong><br />
orientação qualitativa, esteve pauta<strong>do</strong> na configuração <strong>de</strong> histórias <strong>de</strong> vida /histórias <strong>de</strong><br />
relação com a música, sen<strong>do</strong> utilizadas entrevistas semi-estruturadas com roteiro nortea<strong>do</strong>r<br />
para a apreensão <strong>de</strong> informações, e trabalhou-se com análise <strong>do</strong> discurso segun<strong>do</strong><br />
Bakhtin (2006) e Amorin (2002). Foram realizadas observações <strong>de</strong> ensaios,<br />
momentos <strong>de</strong> criação, e concertos, registradas em diário <strong>de</strong> campo e audiovisual. Um <strong>do</strong>s<br />
aspectos centrais produzi<strong>do</strong>s como conhecimento e resulta<strong>do</strong> da investigação foi o <strong>de</strong><br />
que a música assim como seu(s) processo(s) <strong>de</strong> criação po<strong>de</strong>m ser concebi<strong>do</strong>s como<br />
uma construção dialógica entre as várias vozes musicais presentes na história <strong>de</strong> um sujeito<br />
entremeadas ao processo <strong>de</strong> criação da própria vida, culminan<strong>do</strong> em uma est(ética)<br />
<strong>de</strong> si. Existe um amálgama entre o processo <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> si como sujeito e <strong>de</strong> suas ativida<strong>de</strong>s<br />
cria<strong>do</strong>ras, objetivan<strong>do</strong> contemporaneamente músicas e sujeitos, on<strong>de</strong> os músicos<br />
são capazes <strong>de</strong> se (re)criarem na existência, inovan<strong>do</strong>, aprimoran<strong>do</strong> e qualifican<strong>do</strong><br />
continuamente em seus percursos <strong>de</strong> vida.<br />
Palavras-chave<br />
Processos <strong>de</strong> criação no fazer musical; constituição <strong>do</strong> sujeito; relação estética.<br />
Introdução e consi<strong>de</strong>rações meto<strong>do</strong>lógicas<br />
Como sujeitos histórico-sociais que se constituem na constante ação e relação em<br />
contexto, um contexto cultural mutifaceta<strong>do</strong>, temos contato com as músicas e os
sons <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito ce<strong>do</strong> em nossas vidas, das mais diversas maneiras. Po<strong>de</strong>mos dizer<br />
que somos também sujeitos musicais, sujeitos que compõem, em conjunto com a<br />
alterida<strong>de</strong>, histórias <strong>de</strong> relação com a música1.<br />
Alguns <strong>de</strong>stes sujeitos, no entanto, escolhem e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m, <strong>de</strong> algum mo<strong>do</strong>, trabalhar<br />
com a música como uma profissão, nas suas mais diversas roupagens. Neste fazer a<br />
música se torna também um trabalho acústico, como explica Samuel Araújo (1994)<br />
e Kátia Maheirie (2001, 2003): a música como uma ativida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra humana está<br />
relacionada/entremeada aos contextos específicos on<strong>de</strong> o fazer musical é encara<strong>do</strong><br />
e assume um caráter <strong>de</strong> trabalho humano, assim como qualquer outro trabalho.<br />
Como trabalho acústico a música está inserida em contextos <strong>de</strong> ação e <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>,<br />
<strong>do</strong> fazer humano, possui condições objetivas, datadas e situadas, com <strong>de</strong>terminadas<br />
possibilida<strong>de</strong>s para que os sujeitos possam produzi-la. Como trabalho acústico po<strong>de</strong>mos<br />
encontrar as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> músico instrumentista, intérprete, cantor, compositor,<br />
educa<strong>do</strong>r musical.<br />
Em nossa pesquisa <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>2, no Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Psicologia,<br />
linha <strong>de</strong> pesquisa “Constituição <strong>do</strong> sujeito, relações estéticas e processos <strong>de</strong> criação”, figuram<br />
<strong>do</strong>is músicos como sujeitos. Estes realizam as ativida<strong>de</strong>s musicais citadas<br />
acima, todas, porém, em uma <strong>de</strong>las, a composição – ou como chamaremos aqui<br />
também ‘criação musical’ – possui uma certa especificida<strong>de</strong>, forjada por eles. Na<br />
fundamentação teórica acerca da criação humana e <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> criação no fazer<br />
musical, fundamentamo-nos também em Ostrower (2008) e Sloboda (2008), e<br />
para discutir os aspectos da relação ética/estética na constituição <strong>do</strong> sujeito e da<br />
ativida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra/processos <strong>de</strong> criação, fundamentamo-nos nos trabalhos <strong>de</strong> Bakhtin<br />
(2003), Sobral (2005, 2009) e Zanella (2006). Apresentaremos alguns pontos<br />
fundamentais (porém, parciais) <strong>de</strong>sta relação musical, discutin<strong>do</strong>-a3.<br />
Ten<strong>do</strong> como fundamentação teórica os aportes científicos <strong>de</strong> Vygotski (1992, 1999,<br />
2001, 2003) e Bakhtin (1926, 2003, 2006), e seus interlocutores, e ao refletirmos<br />
sobre a ativida<strong>de</strong>/fazer musical enquanto ativida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra (Vygotski, 2003), arquitetada<br />
por sujeitos que se constroem em um processo <strong>de</strong> constituição sempre em<br />
relação com outros, o objetivo da pesquisa foi investigar os processos <strong>de</strong> criação no<br />
fazer musical como ativida<strong>de</strong> media<strong>do</strong>ra na constituição <strong>do</strong> sujeito.<br />
Na relação dialógica (Faraco, 2006) com os sujeitos <strong>de</strong> pesquisa fomos encontran<strong>do</strong><br />
as vozes das experiências, das histórias musicais, das composições anteriores, da formação<br />
musical <strong>de</strong>sses músicos, <strong>do</strong> que hoje eles escutam, <strong>do</strong> que apreciam, <strong>de</strong> quais<br />
são as suas referências musicais, <strong>de</strong> seus estu<strong>do</strong>s, <strong>do</strong> pensar e edificar a produção<br />
musical, enfim, uma dialogia <strong>de</strong> vozes <strong>de</strong> ontem e <strong>de</strong> hoje compon<strong>do</strong> o porvir. E,<br />
neste aspecto, como produção da pesquisa surge a tese <strong>de</strong> conceber “a música e seu<br />
processo <strong>de</strong> criação como uma construção dialógica entre as várias vozes musicais<br />
presentes na história <strong>de</strong> um sujeito entremeadas ao processo <strong>de</strong> criação da própria<br />
vida”. Esse processo <strong>de</strong> criação é um acontecimento on<strong>de</strong> as vozes se entrecruzam,<br />
é um espaço <strong>de</strong> dialogia e constituição <strong>do</strong> sujeito, existe um movimento <strong>de</strong> objeti-<br />
401
402<br />
vação-subjetivação engendra<strong>do</strong> no processo <strong>de</strong> criação musical, on<strong>de</strong> figura uma<br />
polifonia entre muitas vozes, para criar outras vozes: as músicas <strong>de</strong> um duo <strong>de</strong><br />
violões.<br />
Sen<strong>do</strong> assim, da análise das informações das entrevistas individuais realizadas com<br />
cada um <strong>do</strong>s músicos foram construídas as seguintes categorias: a) vozes <strong>do</strong>s próprios<br />
músicos sobre seu processo <strong>de</strong> criação no fazer musical: é possível falar sobre<br />
o(s) processo(s) <strong>de</strong> criação?; b) vozes <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is músicos que dialogam entre si para<br />
compor música: musicalida<strong>de</strong>s em diálogo / a dialogia entre musicalida<strong>de</strong>s; c) uma<br />
voz que se produz <strong>de</strong> uma síntese dialógica <strong>de</strong> duas e <strong>de</strong> muitas outras vozes: a(s) música(s)<br />
e os percursos musicais <strong>do</strong> duo; d) vozes que falam hoje em função <strong>de</strong> um<br />
<strong>de</strong>vir e <strong>de</strong> um porvir: projetos <strong>de</strong> futuro com a música. As informações também<br />
foram coletadas por meio <strong>de</strong> vi<strong>de</strong>ogravação, observações e diário <strong>de</strong> campo <strong>de</strong> ensaios,<br />
momentos <strong>de</strong> criação e concertos <strong>do</strong> duo. Para a análise das informações foi<br />
utiliza<strong>do</strong> o procedimento <strong>de</strong> análise <strong>do</strong> discurso em base a Bakhtin (2006) e Amorim<br />
(2002), ten<strong>do</strong> em vista a polifonia e a polissemia4 <strong>do</strong>s discursos.<br />
Sujeitos da pesquisa<br />
São sujeitos da pesquisa <strong>do</strong>is músicos instrumentistas, compositores, integrantes<br />
<strong>do</strong> duo <strong>de</strong> violões “Comtrasteduo”5. Ambos são também educa<strong>do</strong>res musicais, com<br />
aulas individuais e formação <strong>de</strong> bandas, em violão, guitarra e baixo. O trabalho com<br />
música seja na parte <strong>de</strong> composição, quanto educação musical são suas ativida<strong>de</strong>s<br />
principais.<br />
A proposta musical <strong>do</strong> duo é trabalhar com as particularida<strong>de</strong>s da formação musical<br />
<strong>de</strong> cada um, conforme sua formação musical6. Buscam atingir uma fusão <strong>de</strong> gêneros<br />
que passeiam, principalmente, pela música brasileira, da cultura popular, em<br />
entrecruzamentos possíveis com as músicas latina, espanhola, celta, jazz, e erudita.<br />
Outra característica é, como o próprio nome remete, o ‘contraste sonoro’ proporciona<strong>do</strong><br />
pelas afinações distintas <strong>de</strong> cada instrumento. Um violão é afina<strong>do</strong> à maneira<br />
tradicional enquanto o outro lança mão <strong>de</strong> uma afinação ‘aberta’, com<br />
uníssonos e oitavas em forma <strong>de</strong> ‘espelho’ D-A-E-E-A-D7. Esta afinação, formalizada<br />
por um <strong>do</strong>s integrantes <strong>do</strong> duo, é produto também <strong>de</strong> uma relação musical<br />
instrumental com a viola caipira e outras afinações abertas utilizadas na música galega<br />
<strong>do</strong> norte da Espanha, a Galícia.<br />
Breves aspectos <strong>de</strong> discussão<br />
A afinação ‘em espelho’8 no violão, objetivada por um <strong>do</strong>s integrantes <strong>do</strong> duo, acaba<br />
sen<strong>do</strong> uma especificida<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong> Comtrasteduo, uma vez que como o músico<br />
utiliza esta afinação em seu violão, o trabalho <strong>de</strong> parceria musical a inclui no<br />
mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> compor e no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> tocar, apresentar suas músicas. Portanto, um vio-
lão é afina<strong>do</strong> à maneira tradicional e o outro na afinação anteriormente citada, o que<br />
proporciona um ‘choque’ <strong>de</strong> sonorida<strong>de</strong>s, um ‘contraste’ sonoro.<br />
O contraste sonoro existe, há bem marcada uma diferença <strong>de</strong> sonorida<strong>de</strong> que faz<br />
este próprio contraste. Entre eles não existe um primeiro violão e um segun<strong>do</strong> violão.<br />
Eles <strong>de</strong>ixam a responsabilida<strong>de</strong> para o ouvinte, a escolha <strong>de</strong> selecionar ora um<br />
ora outro, ouvir mais um ou outro, em quem prestar atenção, entrar no meio da<br />
mistura sonora contrastante e vivenciar a música, enfim, ten<strong>do</strong> um como figura e<br />
outro como fun<strong>do</strong> e vice-versa imediatamente. Daí nasceu o nome <strong>do</strong> primeiro CD<br />
<strong>do</strong> duo, a proposta <strong>do</strong> contraste que encaminhou à Figura & Fun<strong>do</strong>.<br />
Ao ser pergunta<strong>do</strong> a respeito <strong>de</strong> que condições o violão <strong>do</strong> Marcio, possuin<strong>do</strong> outra<br />
afinação, sugere ao duo, na entrevista <strong>de</strong> pesquisa, Glauber respon<strong>de</strong>:<br />
“O Márcio fica muito mais à vonta<strong>de</strong> com esse violão, com essa afinação <strong>de</strong>le.<br />
Porque é como, são matrizes <strong>de</strong> pensamento, eu estou usan<strong>do</strong> aqui uma matriz,<br />
a língua portuguesa, mas não estou pensan<strong>do</strong> nela, ela já sai naturalmente. Toda<br />
a minha formação foi com a afinação tradicional, então qualquer coisa que eu<br />
quiser pensar musicalmente, eu penso através <strong>de</strong>ssa matriz, assim como eu não<br />
consigo pensar sem usar a língua portuguesa. Então ele, <strong>de</strong> tanto estudar esta<br />
afinação, a matriz <strong>de</strong>le é muito mais essa. Ele se sente muito mais a vonta<strong>de</strong> nisso.<br />
E como eu, há muito tempo já escuto ele tocar, é como se eu tivesse essa ‘matrizinha’<br />
também já instalada ali, enten<strong>de</strong>u? Então, eu consigo também pensar um<br />
pouco já na sonorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> violão <strong>de</strong>le. Eu sei que vai ter aquele grave, eu sei que<br />
vai ter aquele médio dana<strong>do</strong> que tem no violão <strong>de</strong>le, então a gente usa isso, ou<br />
seja, é, eu acho assim, a afinação ela existe, ela foi muito funcional pro duo. Mas<br />
po<strong>de</strong>ria ter si<strong>do</strong> outra também, assim como eu po<strong>de</strong>ria ter nasci<strong>do</strong> no Japão e<br />
estar falan<strong>do</strong> agora com você em japonês, as mesmas coisas”.<br />
A afinação tradicional <strong>do</strong> violão engendra-se como uma voz prática-técnica-<strong>de</strong> conhecimento<br />
e <strong>de</strong> materialida<strong>de</strong> <strong>do</strong> instrumento para se pensar e se fazer música, ao<br />
mesmo tempo aos <strong>do</strong>is músicos que a utilizam. No entanto, ao forjar uma afinação<br />
outra Marcio estabelece também a si mesmo, e ao duo, contemporaneamente, a<br />
forma <strong>de</strong> pensar e fazer música mediada pela materialida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta outra afinação,<br />
para ele mesmo, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> mais intenso, pois <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que começou a trabalhar com ela,<br />
não precisou mais ficar afinan<strong>do</strong> o violão ora nesta afinação ora na tradicional, pois<br />
seu violão ‘principal’ está oficialmente com esta afinação, e outro violão que possui<br />
está com a afinação tradicional. A nova afinação passou a ser encarnada no instrumento<br />
<strong>de</strong>sse músico, e o caracteriza.<br />
Glauber diz que toda a sua formação musical foi baseada na afinação tradicional<br />
<strong>do</strong> violão, assim também como para tocar guitarra e contrabaixo. Sua lógica, seu<br />
raciocínio musical pensa e se faz, se objetiva por meio <strong>de</strong>sta ‘linguagem’, por meio<br />
<strong>de</strong>sta materialida<strong>de</strong> sonora, que forja o pensamento e a compreensão, bem como a<br />
escuta e a percepção musical violonística, para ele. Ele diz que esta é sua matriz <strong>de</strong><br />
pensamento musical, que tem seu fundamento, por sua vez, no tonalismo.<br />
403
404<br />
Porém, como trabalha em parceria com Marcio no Comtrasteduo, como há algum<br />
tempo escuta ele tocar nesta afinação, é como se tivesse também parte <strong>de</strong>ste raciocínio<br />
musical, <strong>de</strong> pensamento musical apropriada nele mesmo. Em suas palavras: “. . .<br />
é como se eu tivesse essa ‘matrizinha’ também já instalada . . .” (Glauber). Porque na<br />
relação com o outro se constitui o sujeito musical que é, na relação <strong>de</strong> composição<br />
com o outro se constitui as formas <strong>de</strong> comporem que engendram e utilizam, e se<br />
constitui música <strong>do</strong> Comtrasteduo, como uma síntese também dialógica <strong>de</strong> <strong>do</strong>is<br />
raciocínios musicais: <strong>do</strong> violão afina<strong>do</strong> tradicionalmente e <strong>do</strong> violão afina<strong>do</strong> ‘em<br />
espelho’ – que implica disposição das cordas, posições <strong>de</strong> notas musicais, formas<br />
diferenciadas <strong>de</strong> fazer acor<strong>de</strong>s, tocar escalas, fazer baixos/bordões, sequências harmônicas,<br />
etc. Por isso Glauber pensa também, <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong>, por meio da sonorida<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> violão <strong>de</strong> Marcio, saben<strong>do</strong>, esperan<strong>do</strong> e escutan<strong>do</strong> já os graves que tem, e<br />
“. . . aquele médio dana<strong>do</strong> que tem no violão <strong>de</strong>le . . .”, e “. . . a gente usa isso”, nas músicas<br />
<strong>do</strong> duo, o que tem se <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> funcional para suas músicas.<br />
No entanto, ele <strong>de</strong>ixa claro e sinaliza<strong>do</strong>: “Mas po<strong>de</strong>ria ter si<strong>do</strong> outra [afinação]9 também,<br />
assim como eu po<strong>de</strong>ria ter nasci<strong>do</strong> no Japão e estar falan<strong>do</strong> agora com você em japonês,<br />
as mesmas coisas” (Glauber). Esta fala é fundamental, pois conota o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
que esta objetivida<strong>de</strong> é uma construção, ou seja, foi construída por um <strong>de</strong>les e é validada<br />
no duo, no acor<strong>do</strong> entre os <strong>do</strong>is, nas músicas <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is, e <strong>de</strong> um público, que<br />
a aceita, que a legitima, é um possível que está dan<strong>do</strong> resulta<strong>do</strong>s estéticos e musicais.<br />
Como po<strong>de</strong>ria não ser: assim como se ele tivesse nasci<strong>do</strong> no Japão e estar falan<strong>do</strong><br />
agora em japonês, ao invés <strong>de</strong> português, exatamente as mesmas coisas, com alguém<br />
que o enten<strong>de</strong>sse. Ou seja, muda-se a referência, muda-se a forma da mediação semiótica<br />
– porém, sempre semiótica – mudam-se os contextos, talvez outras culturas,<br />
outras histórias, outras materialida<strong>de</strong>s, contu<strong>do</strong> sempre sígnicas e sempre<br />
construídas sócio-historicamente. E também existiria, seria possível, apenas seria<br />
outra.<br />
A arte, portanto, também nos <strong>de</strong>safia a colocarmo-nos no movimento <strong>de</strong> sentirpensar-agir,<br />
no movimento <strong>de</strong> colocarmo-nos em pensamento, pensamentos estranhantes,<br />
para sermos produtores <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s que nos levem a outras posturas<br />
ético-estéticas (Sanchez Vázquez, 1999). Est(éticas). Martinez (2005), acerca da<br />
construção da significação musical, fundamenta<strong>do</strong> em temáticas da semiótica da<br />
música – <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com Peirce (apud Santaella, 1983; Sekeff, 1998) – nos brinda<br />
com a idéia <strong>de</strong> que “. . . da mesma forma como a eletricida<strong>de</strong> não resi<strong>de</strong> nos circuitos<br />
metálicos, o pensamento não está em nós, mas somos nós que estamos em pensamento”<br />
(p. 81). Estamos em pensamento e percepção justamente por estarmos em<br />
semiose, estarmos toma<strong>do</strong>s pela ação <strong>do</strong>s signos, que nos constitui e a qual constituímos,<br />
articulamos por toda esta infinita ca<strong>de</strong>ia inter-semiótica, que colocamos<br />
em movimento e que, simultaneamente, nos coloca em movimento. Para Bakhtin<br />
(2006):
. . . compreen<strong>de</strong>r um signo consiste em aproximar o signo apreendi<strong>do</strong> <strong>de</strong> outros<br />
signos já conheci<strong>do</strong>s; em outros termos, a compreensão é uma resposta a um<br />
signo por meio <strong>de</strong> outros signos. E essa ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> criativida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> compreensão<br />
i<strong>de</strong>ológicas, <strong>de</strong>slocan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> signo em signo para um novo signo, é única e contínua<br />
. . . (Bakhtin, 2006, p. 34).<br />
Ao construir e trabalhar com outra afinação musical no violão, em interface com a<br />
afinação tradicional, os músicos constroem outros senti<strong>do</strong>s para a própria afinação<br />
sonora <strong>do</strong> instrumento – que po<strong>de</strong>, então, ser recriada, outras formas são possíveis<br />
e po<strong>de</strong>m ser construídas e utilizadas, não existe uma única, absoluta – e outros senti<strong>do</strong>s<br />
para o compor, pois precisam romper muitas vezes com o instituí<strong>do</strong> musical<br />
e encontrar, forjar outros caminhos <strong>de</strong> resolução <strong>do</strong>s ‘nós’ e problemas musicais <strong>de</strong><br />
composição que se apresentam a eles, criativamente e signicamente.<br />
É um romper com o instituí<strong>do</strong>, não para superá-lo, mas para (re)construir, para ver<br />
que outras formas são possíveis, que se po<strong>de</strong> inovar em suas ativida<strong>de</strong>s – há tanto<br />
tempo instituídas . . . , assim como esta afinação tradicional <strong>do</strong> violão – e mostrar<br />
que to<strong>do</strong>s são sujeitos capazes <strong>de</strong> criar, em seus campos, em suas áreas <strong>de</strong> atuação,<br />
(re)crian<strong>do</strong> o sujeito, a si mesmo e o próprio fazer.<br />
Ao nos remetermos à criação cotidiana, diária, criação como ativida<strong>de</strong> própria <strong>do</strong><br />
ser humano, percebemos que, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com Vygotski (2003), e ilumina<strong>do</strong>s pelos<br />
discursos <strong>do</strong>s sujeitos <strong>de</strong> pesquisa que:<br />
. . . na vida cotidiana que nos ro<strong>de</strong>ia a cada dia existem todas as premissas necessárias<br />
para criar e tu<strong>do</strong> o que exce<strong>de</strong> <strong>do</strong> marco da rotina incluin<strong>do</strong> sequer uma<br />
mínima partícula <strong>de</strong> novida<strong>de</strong>, tem sua origem no processo cria<strong>do</strong>r <strong>do</strong> ser humano<br />
(Vygotski, 2003, p. 11).<br />
Porém, como sujeitos cria<strong>do</strong>res, precisamos estar abertos à possibilida<strong>de</strong> da criação,<br />
assumir e tecer, criar também uma postura cria<strong>do</strong>ra, já que em nós existe esta possibilida<strong>de</strong>,<br />
esta capacida<strong>de</strong>, humana que é, e precisamos levá-la adiante em nosso<br />
dia a dia, em nossa história, para criar outras possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> vida – que é o que o<br />
duo está também mostran<strong>do</strong> – se sairmos um pouco <strong>do</strong> campo da música e ampliarmos<br />
este movimento, esta cena para o to<strong>do</strong> da vida.<br />
Consi<strong>de</strong>rações Finais<br />
Nossa pesquisa <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>, a qual alguns aspectos foram brevemente aqui apresenta<strong>do</strong>s,<br />
aborda a temática <strong>de</strong> estudar os processos <strong>de</strong> criação como ativida<strong>de</strong> media<strong>do</strong>ra<br />
na constituição <strong>do</strong> sujeito, e <strong>de</strong>sta forma, “pensar a música e seu processo<br />
<strong>de</strong> criação como uma construção dialógica entre as várias vozes musicais presentes<br />
na história <strong>de</strong> um sujeito entremeadas ao processo <strong>de</strong> criação da própria vida”.<br />
As relações dialógicas são mais que relações <strong>de</strong> diálogo face a face. São relações <strong>de</strong><br />
senti<strong>do</strong> que se estabelecem em um eterno e contínuo diálogo entre sujeitos e enuncia<strong>do</strong>s<br />
(Bakhtin, 2003; Faraco, 2006), no movimento <strong>de</strong> respostas, réplicas e tré-<br />
405
406<br />
plicas, on<strong>de</strong> se dá a própria construção <strong>do</strong> conhecimento, da cultura, das significações,<br />
<strong>do</strong>s significa<strong>do</strong>s e senti<strong>do</strong>s (Vygotski, 1992), na trama das mediações semióticas<br />
e edifican<strong>do</strong> esta própria mediação semiótica.<br />
Em base a este movimento po<strong>de</strong>mos compreen<strong>de</strong>r a criação musical, num contínuo<br />
diálogo (re)cria<strong>do</strong> entre sonorida<strong>de</strong>s musicais, notas musicais, ritmos, melodias e<br />
harmonias junto a lógicas <strong>de</strong> pensamento – também musical – percepção, imaginação,<br />
estética, emoção, <strong>de</strong> músicos, sujeitos musicais em suas trajetórias <strong>de</strong> vida,<br />
num fazer artístico e cria<strong>do</strong>r. Para que, enfim? Para criar e recriar a si como sujeito,<br />
à relação <strong>de</strong> trabalho acústico, a composição musical em parceria, e finalmente,<br />
(re)criar a própria vida. Pois, no fazer artístico cria<strong>do</strong>r, na produção estética po<strong>de</strong>se<br />
engendrar um processo que constrói música, mas que, mais que isto, (re)inventa<br />
a própria vida na qualificação <strong>de</strong> uma estética da existência, ou seja, a música e o<br />
fazer musical transforman<strong>do</strong>-se também a ser ativida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra e (re)cria<strong>do</strong>ra da<br />
existência, não apenas para a<strong>do</strong>rnar a vida, mas para fazer <strong>de</strong>la palco <strong>de</strong> existências<br />
histórias realizadas que constroem efetivamente a vida em seus aspectos ético, estético<br />
e cognitivo, com êxito humano, sen<strong>do</strong> capazes <strong>de</strong> projetar novos cenários<br />
para a existência.<br />
1 Conforme pesquisa realizada no curso <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong>: Wazlawick, Patrícia. Quan<strong>do</strong> a música<br />
entra em ressonâncias com as emoções: significa<strong>do</strong>s e senti<strong>do</strong>s na narrativa <strong>de</strong> jovens estudantes<br />
<strong>de</strong> musicoterapia. 2004. Dissertação (Mestra<strong>do</strong> em Psicologia) – Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Paraná, Curitiba, 2004. Orientação da Profª Drª Denise <strong>de</strong> Camargo.<br />
2 Sob a orientação da Profª Drª Kátia Maheirie.<br />
3 A tese completa possui 250 páginas <strong>de</strong> construção teórica. Estas palavras, neste trabalho, são<br />
apenas uma pequena e breve apresentação <strong>do</strong> trabalho.<br />
4 Vi<strong>de</strong> Amorim (2002).<br />
5 Forma<strong>do</strong> por Marcio e Glauber.<br />
6 As informações sobre a formação musical e história <strong>de</strong> relação com a música, <strong>de</strong> ambos os<br />
músicos são aprofundadas na tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>.<br />
7 Os “mi” centrais são uníssonos. As notas “lá” são separadas por uma oitava (uma grave e<br />
outra mais aguda). E os “ré” são separa<strong>do</strong>s por duas oitavas (uma grave e outra mais aguda).<br />
8 Na tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> retomamos o percurso <strong>de</strong> construção <strong>de</strong>sta afinação. Por questão <strong>de</strong><br />
espaço no texto e escopo <strong>do</strong> trabalho, este tópico não será aprofunda<strong>do</strong> aqui.<br />
9 Inseri<strong>do</strong> pela autora.<br />
Referências<br />
Amorim, Marilia. Vozes e silêncio no texto <strong>de</strong> pesquisa em ciências humanas. Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong><br />
Pesquisa 116, p. 7-19, jul., 2002.<br />
Araújo, Samuel. Brega, samba, trabalho acústico: uma contribuição à etnomusicologia urbana.<br />
Trabalho apresenta<strong>do</strong> ao Seminário As culturas urbanas ao final <strong>do</strong> século XX, p. 1-<br />
14, Lisboa, 1994.
Bakhtin, Mikhail. Discurso na vida e discurso na arte. Sobre poética sociológica. Texto originalmente<br />
publica<strong>do</strong> em russo em 1926. In: Volochinov, Freudismo. Nova Iorque: Aca<strong>de</strong>mic<br />
Press. Tradução para o português <strong>de</strong> Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza.<br />
Bakhtin, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução <strong>do</strong> russo <strong>de</strong> Paulo Bezerra.<br />
4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.<br />
——— . (Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.<br />
Faraco, Carlos A. Linguagem e diálogo: as idéias lingüísticas <strong>do</strong> Círculo <strong>de</strong> Bakhtin. Curitiba:<br />
Criar Edições, 2006.<br />
Maheirie, Kátia. Processo <strong>de</strong> criação no fazer musical: uma objetivação da subjetivida<strong>de</strong>, a<br />
partir <strong>do</strong>s trabalhos <strong>de</strong> Sartre e Vygotsky. Psicologia em Estu<strong>do</strong> 8, n. 2, 147-153, Maringá,<br />
2003.<br />
Maheirie, Kátia. Sete mares numa ilha: a mediação <strong>do</strong> trabalho acústico na construção da<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> coletiva. 2001. Tese (Doutora<strong>do</strong> em Psicologia Social) – Pontifícia Universida<strong>de</strong><br />
Católica <strong>de</strong> São Paulo, São Paulo, 2001.<br />
Martinez, José Luiz. <strong>Cognição</strong>, pensamento e semiótica musical. In M. Dottori et al. (Ed.)<br />
<strong>Anais</strong> <strong>do</strong> 1º <strong>Simpósio</strong> Internacional <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais (SINCAM). Curitiba:<br />
De<strong>Artes</strong>-UFPR, 2005. p. 78-81.<br />
Ostrower, Fayga. Criativida<strong>de</strong> e processos <strong>de</strong> criação. 23. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.<br />
Sanchez Vázquez, A<strong>do</strong>lfo. Convite à estética. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.<br />
Santaella, Lucia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983.<br />
Sekeff, Maria <strong>de</strong> Lur<strong>de</strong>s. Música e semiótica. In: Tomás, L. (Org.). De sons e signos. Música,<br />
mídia e contemporaneida<strong>de</strong>. São Paulo: EDUC, 1998. p. 33-58.<br />
Sloboda, John A. A mente musical. A psicologia cognitiva da música. Londrina: EDUEL, 2008.<br />
Sobral, Adail. Ético e estético. Na vida, na arte e na pesquisa em ciências humanas. In: Brait,<br />
Beth. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2005. p. 103-121.<br />
Sobral, Adail. Estética da criação verbal. In: Brait, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia.<br />
São Paulo: Contexto, 2009. p. 167-187.<br />
Vygotski, Lev S. La imaginación y el arte en la infancia. 6. ed. Madrid: Ediciones Akal, 2003.<br />
(Publica<strong>do</strong> originalmente em 1930).<br />
——— . Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999.<br />
——— . Pensamiento y palabra. In: Vygotski, Lev. Obras Escogidas II. Madrid: Visor Distribuiciones,<br />
1992.<br />
——— . A educação estética. In: Vygotski, Lev S. Psicologia Pedagógica. São Paulo: Martins<br />
Fontes, 2001. p. 323-363.<br />
Wazlawick, Patrícia. Quan<strong>do</strong> a música entra em ressonâncias com as emoções: significa<strong>do</strong>s e<br />
senti<strong>do</strong>s na narrativa <strong>de</strong> jovens estudantes <strong>de</strong> musicoterapia. 2004. Dissertação (Mestra<strong>do</strong><br />
em Psicologia) – Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Paraná, Curitiba, 2004.<br />
Zanella, Andréa Vieira. Sobre olhos, olhares, e seu processo <strong>de</strong> (re)produção. In: Lenzi, Lucia<br />
Helena C.; Da Ros, Silvia Z.; Souza, Ana Maria A. <strong>de</strong>; Gonçalves, Marise M. (Orgs.).<br />
Imagem: intervenção e pesquisa. Florianópolis: Editora da UFSC, 2006. p. 139-150.<br />
407
408<br />
Musicalida<strong>de</strong> na Educação a Distância:<br />
Reflexões sobre os usos<br />
das Tecnologias <strong>de</strong> Informação e Comunicação<br />
Luciane Cuervo<br />
luciane.cuervo@ufrgs.br<br />
Departamento <strong>de</strong> Música, UFRGS<br />
Resumo<br />
De caráter ensaísta, este artigo aborda elementos da interação <strong>do</strong>cente-discente e o<br />
uso das TICs (Tecnologias <strong>de</strong> Informação e Comunicação) na formação <strong>de</strong> professores<br />
na modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ensino a distância <strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Licenciatura em Música (Prolicen-<br />
Mus) da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul (UFRGS). Apresenta reflexões sobre<br />
o <strong>de</strong>senvolvimento da musicalida<strong>de</strong>, articulan<strong>do</strong> essas idéias ao ambiente EaD. Compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong><br />
a musicalida<strong>de</strong> como uma característica humana, serão discuti<strong>do</strong>s temas interdisciplinares<br />
que envolvem autores da educação e educação musical, psicologia,<br />
neurociências e tecnologias em educação. A título <strong>de</strong> ilustração, serão apresenta<strong>do</strong>s relatos<br />
empíricos da atuação <strong>do</strong>cente da autora, os quais refletem a intenção <strong>de</strong> conhecer,<br />
interagir e contribuir no processo <strong>de</strong> ensino-aprendizagem <strong>do</strong>s “professores-alunos”<br />
<strong>do</strong> curso <strong>de</strong> licenciatura em música a distância da UFRGS - sen<strong>do</strong> este um programa<br />
que visa a qualificação <strong>de</strong> <strong>do</strong>centes que já atuam em sala <strong>de</strong> aula, mas não possuem legitimação<br />
legal (licenciatura).<br />
Palavras-chave<br />
Musicalida<strong>de</strong>; educação a distância; TICs.<br />
Introdução<br />
Este texto reflete sobre o <strong>de</strong>senvolvimento da musicalida<strong>de</strong> com apoio <strong>do</strong> ambiente<br />
virtual <strong>de</strong> aprendizagem (AVA) e das Tecnologias <strong>de</strong> Informação e Comunicação<br />
na formação <strong>de</strong> professores <strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Licenciatura em Música (Prolicen-<br />
Mus) da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul (UFRGS) e universida<strong>de</strong>s<br />
parceiras.<br />
O <strong>de</strong>senvolvimento musical será aborda<strong>do</strong> fundamentan<strong>do</strong>-se na concepção <strong>de</strong><br />
musicalida<strong>de</strong> como uma característica humana. Para fomentar a reflexão sobre esse<br />
tema, apresento uma discussão interdisciplinar entre autores da educação, educação<br />
musical, psicologia, neurociências e tecnologias em educação, <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong>-se<br />
Gembris (1997), Krüger (2006; 2007), Sloboda (2008) e Cuervo (2009).<br />
Existe uma necessida<strong>de</strong> latente <strong>de</strong> sistematização da abordagem pedagógico-musical<br />
na educação a distância, bem como estu<strong>do</strong>s que acompanhem o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>do</strong> aluno, buscan<strong>do</strong> compreen<strong>de</strong>r como se dá o processo <strong>de</strong><br />
ensino-aprendizagem, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> sua subjetivida<strong>de</strong> e complexida<strong>de</strong> intrínsecas,
em como as matizes que o compõe. Por Educação a Distância, enten<strong>de</strong>-se que esse<br />
“é o processo <strong>de</strong> ensino-aprendizagem, media<strong>do</strong> por algum recurso <strong>de</strong> comunicação,<br />
on<strong>de</strong> professores e alunos estão separa<strong>do</strong>s espacial e/ou temporalmente” (UFRGS,<br />
2007, p. 27).<br />
As Tecnologias <strong>de</strong> Informação e Comunicação – TICs vêm ao encontro da qualificação<br />
<strong>do</strong> processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento musical em ambientes virtuais <strong>de</strong> aprendizagem,<br />
pois enriquecem e favorecem a aprendizagem num mo<strong>de</strong>lo interativo <strong>de</strong><br />
trabalho. Este mo<strong>de</strong>lo também está em conformida<strong>de</strong> com a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sala <strong>de</strong><br />
aula encontrada por estes professores em formação e atuação, pois é bastante<br />
comum a escola pública brasileira possuir computa<strong>do</strong>r, mas ainda raras as instituições<br />
que possuam um acervo <strong>de</strong> instrumentos musicais. Para Krüger (2007, p. 98),<br />
o uso das TICs no ambiente escolar<br />
também ressalta a importância das interações entre professor e seus alunos e<br />
entre os próprios alunos. Mais <strong>do</strong> que nunca, está claro que o professor não será<br />
substituí<strong>do</strong> pelas tecnologias, e que ele é fundamental para, junto com o aluno,<br />
construir conhecimento.<br />
A partir da minha pesquisa <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong>1, a qual envolveu o estu<strong>do</strong> da musicalida<strong>de</strong><br />
humana, venho buscan<strong>do</strong> compreen<strong>de</strong>r o <strong>de</strong>senvolvimento musical <strong>do</strong>s alunos<br />
nas modalida<strong>de</strong>s presencial e a distância, me colocan<strong>do</strong> os seguintes<br />
questionamentos:<br />
• Que diferenças po<strong>de</strong>mos notar no processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento musical no ensino<br />
a distância e no presencial?<br />
• Como se dá o <strong>de</strong>senvolvimento da musicalida<strong>de</strong> na educação a distância?<br />
• Como as Tecnologias <strong>de</strong> Informação e Comunicação nos ambientes virtuais <strong>de</strong><br />
aprendizagem influenciam esse <strong>de</strong>senvolvimento?<br />
Conforme Sancho (apud Krüger, 2006), na educação, há muitas formas <strong>de</strong> utilização<br />
das TIC, como computa<strong>do</strong>res e ferramentas para EaD via Internet, ambientes<br />
para ví<strong>de</strong>o ou teleconferência, ambientes <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> virtual, etc., além <strong>de</strong> aparelhos<br />
eletrônicos como televisão, rádio, som, entre outros materiais.<br />
Para Tourinho e Braga (2006), por bastante tempo a interação presencial professor-aluno<br />
foi consi<strong>de</strong>rada essencial para o aprendiza<strong>do</strong> musical. Para esses autores,<br />
a Educação Musical a Distância utiliza meios impressos, mecânicos, eletrônicos e<br />
digitais, sen<strong>do</strong> os recursos telemáticos cada vez mais importantes nessa trajetória<br />
(Tourinho; Braga, 2006).<br />
Pensar o <strong>de</strong>senvolvimento da musicalida<strong>de</strong> na EaD significa transportar os estu<strong>do</strong>s<br />
e as pesquisas já realizadas para o ambiente virtual <strong>de</strong> ensino, mas não é só isso.<br />
A partir <strong>de</strong>sse contexto, vislumbrar formas <strong>de</strong> oportunizar o acesso <strong>do</strong> aluno a esse<br />
conhecimento e, mais <strong>de</strong>safia<strong>do</strong>r ainda, a essa prática, procuran<strong>do</strong> otimizar a utilização<br />
das ferramentas disponíveis.<br />
Morin (2009) acredita que as tecnologias interativas na educação a distância <strong>de</strong>s-<br />
409
410<br />
tacam o que <strong>de</strong>veria ser o núcleo <strong>de</strong> qualquer processo educativo: a interação e a<br />
interlocução entre os que estão envolvi<strong>do</strong>s nesse processo.<br />
Ao enten<strong>de</strong>r a musicalida<strong>de</strong> como natural ao ser humano, afirma-se a capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> to<strong>do</strong> indivíduo <strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolver musicalmente, processo que <strong>de</strong>ve ser contextualiza<strong>do</strong><br />
ao seu ambiente sociocultural, no que a EaD vem a ser mais um mecanismo<br />
potencializa<strong>do</strong>r das ações <strong>de</strong> registro, comunicação expressão.<br />
Reflexões sobre o conceito <strong>de</strong> musicalida<strong>de</strong><br />
O termo musicalida<strong>de</strong> vem sen<strong>do</strong> utiliza<strong>do</strong> cotidianamente no ensino, aprendizagem,<br />
execução e apreciação musical no Brasil. No entanto, consta-se a escassez <strong>de</strong><br />
publicações que abor<strong>de</strong>m esse tema, especialmente no contexto da Educação Musical<br />
brasileira, conforme verifiquei em minha pesquisa (Cuervo, 2009).<br />
Gembris (1997) analisou o conceito <strong>de</strong> musicalida<strong>de</strong> na interface histórica, i<strong>de</strong>ntifican<strong>do</strong><br />
três fases: a Fenomenológica, entre 1880 e 1910/1920, a qual consistia na<br />
ênfase na discriminação musical, na distinção entre a música boa da medíocre. A segunda<br />
fase, Psicométrica, com ocorrência a partir <strong>de</strong> 1920 e chegan<strong>do</strong> aos nossos<br />
dias, on<strong>de</strong> o principal objetivo é o <strong>de</strong> testar habilida<strong>de</strong>s musicais, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<br />
<strong>do</strong>s aspectos socioculturais <strong>do</strong> indivíduo. A terceira fase é <strong>de</strong>stacada como a<br />
<strong>de</strong> geração <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> musical, relacionada à habilida<strong>de</strong> musical <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r e<br />
transmitir o senti<strong>do</strong> da música que está sen<strong>do</strong> executada, ouvida ou criada. O autor<br />
fundamenta-se nos trabalhos <strong>de</strong> Sloboda (1997), Blacking (1997) e Stefani (2007),<br />
entre outros autores. Em afinida<strong>de</strong> com a terceira abordagem, este texto ensaístico<br />
buscará construir um referencial teórico que privilegie esse conceito <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> contexto<br />
sociocultural <strong>de</strong> atuação <strong>do</strong>cente, analisan<strong>do</strong> o direcionamento das pesquisas<br />
que mapeiam os indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong>sse conhecimento e consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a musicalida<strong>de</strong><br />
não como um <strong>do</strong>m ou um talento inato, mas um conhecimento que po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong><br />
e potencializa<strong>do</strong> na educação musical.<br />
A concepção contemporânea <strong>de</strong> musicalida<strong>de</strong>, também chamada habilida<strong>de</strong> ou<br />
competência musical, é <strong>de</strong>scrita como a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> geração <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong><br />
com Gembris (1997), Maffioletti (2001), Swanwick (2003) e Stefani (2007), “compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong><br />
o saber, o saber fazer e o saber comunicar” (Stefani, 2007, p.1). O uso<br />
<strong>do</strong> termo a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> para se referir à musicalida<strong>de</strong> é uma dificulda<strong>de</strong> também mencionada<br />
por Alda Oliveira, tradutora da obra <strong>de</strong> Swanwick (2003). Em nota <strong>de</strong> rodapé<br />
(p. 84), explica que não há palavras em nosso vocabulário que possuam o<br />
mesmo significa<strong>do</strong> atribuí<strong>do</strong> a musicality e musicianship, sen<strong>do</strong> a primeira ser relacionada<br />
a talento natural e a segunda a habilida<strong>de</strong> adquirida e sensibilida<strong>de</strong>.<br />
Pesquisa<strong>do</strong>res brasileiros também utilizaram distintos termos, como expressivida<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> discurso musical, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com França (2000) ou talento musical, para Figueire<strong>do</strong><br />
e Schmidt (2005; 2008).
Dessa forma, po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r que, tanto nas práticas vocais e instrumentais, criação<br />
ou apreciação musical, po<strong>de</strong>mos buscar a produção <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> esta<br />
uma fundamental característica da experiência musical ampla. Todas as pessoas<br />
possuem os mecanismos naturais <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento da musicalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> um contexto favorável em diversos aspectos, o qual englobaria um ambiente<br />
familiar e escolar propício, como também a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interagir em<br />
diversas modalida<strong>de</strong>s da experiência musical ao longo da vida (Cuervo, 2009).<br />
Alguns autores relacionam a capacida<strong>de</strong> para a música com a capacida<strong>de</strong> universal<br />
para a linguagem, como Ilari (2006), Sacks (2007) e Sloboda (2008). Para Sloboda<br />
(2008, p. 25), “dizer que a linguagem e a música são universais é dizer que os humanos<br />
têm uma capacida<strong>de</strong> geral <strong>de</strong> adquirir competências lingüísticas e musicais”.<br />
Se enten<strong>de</strong>mos a musicalida<strong>de</strong> como uma característica natural ao ser humano, a<br />
voz, acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, é o primeiro veículo <strong>de</strong> expressão e comunicação humana, constituin<strong>do</strong><br />
o princípio da linguagem. Para Wisnik (2007), a música po<strong>de</strong> ser o mo<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> presença <strong>do</strong> ser, “que tem sua se<strong>de</strong> privilegiada na voz, articulação máxima entre<br />
a palavra e a música”.<br />
Nessa direção, compreen<strong>de</strong>-se que to<strong>do</strong>s têm mecanismos necessários para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
musical, e, assim, <strong>de</strong>rrubam-se teorias que valorizam o talento <strong>de</strong><br />
poucos privilegia<strong>do</strong>s, aqueles que “merecem apren<strong>de</strong>r”. Lamentavelmente, ainda<br />
hoje se verifica em escolas, conservatórios e aulas particulares <strong>de</strong> música a concepção<br />
<strong>de</strong> que é necessário potencializar aqueles que já possuem o “<strong>do</strong>m da música”.<br />
Isso contradiz os princípios universais da educação humana, nos quais to<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>m<br />
apren<strong>de</strong>r e têm o direito <strong>de</strong> acesso ao saber e ao saber-fazer. Exatamente como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong><br />
Elliot (1998, p. 26), o qual afirma que “a musicalida<strong>de</strong> é a chave para experimentar<br />
os valores <strong>do</strong> fazer musical. [. . .] po<strong>de</strong> ser ensinada e aprendida”.<br />
Ilari (2006) afirma que há inúmeras evidências sugerin<strong>do</strong> que os bebês recém-nasci<strong>do</strong>s<br />
já estão predispostos a prestar atenção aos elementos musicais da fala e <strong>do</strong>s padrões<br />
sonoros, em conformida<strong>de</strong> com Barceló (2003), o qual sugere que a música<br />
é natural ao cotidiano da criança. Em concordância com esses trabalhos, Gembris<br />
(2006) afirma que a atitu<strong>de</strong> musical existe <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os estágios iniciais da vida humana<br />
e, talvez, semanas antes <strong>do</strong> nascimento.<br />
No perío<strong>do</strong> contemporâneo, no qual há intenso “bombar<strong>de</strong>io” <strong>de</strong> sons e ruí<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />
todas as formas, assim como os mais varia<strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> aparelhos <strong>de</strong> difusão sonora<br />
individuais e coletivos, a conscientização, a preservação e a emissão natural da<br />
voz <strong>de</strong>veriam constar como priorida<strong>de</strong>s no planejamento pedagógico-musical. Por<br />
outro la<strong>do</strong>, não é possível ignorar a imersão <strong>de</strong> crianças, a<strong>do</strong>lescentes, adultos e i<strong>do</strong>sos<br />
em uma gran<strong>de</strong> re<strong>de</strong> <strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> musical, os quais, influencia<strong>do</strong>s pela família,<br />
escola, rua e mídia, encontram suas vivências, valores e preferências musicais.<br />
Torres (2008, p. 7) argumenta que a ampla presença da música – difundida em aparelhos<br />
portáteis – torna-se a “Música que nos acompanha, que po<strong>de</strong> ser levada e<br />
compartilhada em diferentes espaços; a música em movimento”.<br />
411
412<br />
Musicalida<strong>de</strong> na Educação a Distância:<br />
exemplos <strong>de</strong> interação<br />
Ao iniciar minha preparação para atuação <strong>do</strong>cente na educação a distância, passei<br />
a estudar e refletir sobre as formas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento da musicalida<strong>de</strong> sem a presença<br />
física da relação professor-aluno, além <strong>de</strong> repensar as relações consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong><br />
a presença <strong>do</strong> tutor como media<strong>do</strong>r <strong>de</strong>sse processo. Em confluência com essa reflexão,<br />
Krüger (2007) acredita que seja possível consi<strong>de</strong>rar os três campos – <strong>do</strong>cência,<br />
música e EAD – como fomenta<strong>do</strong>res das relações interativas e colaborativas<br />
entre os <strong>do</strong>centes e seus alunos, e entre os próprios alunos.<br />
Ramal (2000) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que esses novos papéis exigirão “mudanças nos cursos <strong>de</strong><br />
formação <strong>do</strong>cente, abertura permanente ao novo, visão crítica na seleção <strong>de</strong> informações,<br />
sintonia com os <strong>de</strong>safios <strong>de</strong> cada momento e atenção constante aos processos<br />
educativos, tanto quanto aos resulta<strong>do</strong>s”. Pesquisa<strong>do</strong>res e educa<strong>do</strong>res como<br />
Ramal (2000), Behar (2009) e Franco (2009) enfatizam uma característica fundamental<br />
no aluno <strong>de</strong> EAD: a autonomia.<br />
O pensamento <strong>de</strong> Krüger (2007, p. 99) em relação à autonomia <strong>do</strong> aluno relaciona<br />
esse perfil ao seu conhecimento e experiência em EaD: “quanto maiores, mais autônomos<br />
po<strong>de</strong>rão ser não apenas nas questões técnicas, mas também nas pedagógicas,<br />
enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> qual é papel espera<strong>do</strong> <strong>de</strong>les, <strong>de</strong> seus colegas e <strong>do</strong> forma<strong>do</strong>r<br />
responsável”.<br />
Como exemplo <strong>de</strong>ssas práticas em EaD, me reporto agora às duas interdisciplinas2<br />
que ministro, “Educação Brasileira” e “Didática da Música”, as quais fazem parte<br />
<strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s “Tópicos em Educação”, que compõe o eixo pedagógico <strong>do</strong> curso.<br />
Também fazem parte da gra<strong>de</strong> curricular <strong>do</strong> curso os eixos <strong>de</strong> Estruturação Musical,<br />
Execução Musical, Formação Geral e Condução e Finalização. Por exigirem<br />
maior número <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s práticas, as interdisciplinas <strong>de</strong> execução e estruturação<br />
utilizam mecanismos distintos das pedagógicas, com maior necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> softwares<br />
e tecnologias <strong>de</strong> interação com o material musical. Mas apesar <strong>de</strong> maior<br />
espaço para ativida<strong>de</strong> teóricas e reflexivas nas pedagógicas, senti necessida<strong>de</strong> em<br />
propiciar práticas que exemplifiquem os conteú<strong>do</strong>s aborda<strong>do</strong>s, como o incentivo à<br />
apreciação musical e à criação musical.<br />
A plataforma <strong>de</strong> ensino utilizada no referi<strong>do</strong> curso é o “Moodle Institucional da<br />
UFRGS”, possuin<strong>do</strong> como principais recursos <strong>de</strong> ensino-aprendizagem o “questionário”,<br />
que apresenta inúmeras formatações, das mais tradicionais e fechadas,<br />
como verda<strong>de</strong>iro/falso e múltipla escolha, até opções mais abertas, como dissertativas,<br />
os espaços <strong>de</strong> diálogo assíncrono, como fóruns e síncronos, como chats (“batepapo”<br />
em tempo real), <strong>de</strong>ntre outros.<br />
Em uma ativida<strong>de</strong> semanal proposta foi solicita<strong>do</strong> que o aluno ouvisse o primeiro<br />
movimento (Allegro) da obra “La Primavera” <strong>de</strong> Vivaldi por meio <strong>de</strong> um link <strong>do</strong>
Youtube que incluía a imagem da partitura integral <strong>do</strong> movimento. Após a apreciação,<br />
ele <strong>de</strong>veria anotar suas impressões a respeito da apreensão <strong>de</strong> elementos musicais<br />
<strong>do</strong> repertório, como instrumentação, forma, gênero, caráter, andamento, etc.<br />
Essa ativida<strong>de</strong> foi proposta na unida<strong>de</strong> “Avaliação em Música”, na qual foi amplamente<br />
discuti<strong>do</strong> os critérios <strong>de</strong> avaliação em apreciação musical, sen<strong>do</strong> apresenta<strong>do</strong><br />
os níveis <strong>de</strong> avaliação encontra<strong>do</strong>s por Swanwick (2003).<br />
As tarefas entregues foram extremamente significativas para o entendimento <strong>de</strong><br />
concepções <strong>de</strong> música e competências necessárias ao educa<strong>do</strong>r musical, pois apesar<br />
da proposta da ativida<strong>de</strong> ser flexível (não era exigi<strong>do</strong> aprofundamento das informações<br />
relatadas como resulta<strong>do</strong> da apreciação), muitos alunos sentiam-se aquém<br />
das capacida<strong>de</strong>s para a realização da tarefa, com relatos como <strong>de</strong>ste aluno:<br />
“A principio foi uma experiência <strong>de</strong>safia<strong>do</strong>ra e preocupante, pois ainda tenho pouco<br />
discernimento para <strong>de</strong>finir instrumentos; ouvi a canção várias e várias vezes para<br />
tentar i<strong>de</strong>ntificar os instrumentos, mas confesso que já conhecia a obra” (Sujeito 1,<br />
EAD, ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apreciação musical, set.2009).<br />
Apesar <strong>do</strong> Sujeito 1 dizer-se preocupa<strong>do</strong> com a tarefa, achan<strong>do</strong> que não possivelmente<br />
não possuísse capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir os instrumentos, realizou procedimentos<br />
corretos para qualificação <strong>de</strong> seu processo <strong>de</strong> apreciação, ao buscar ouvir<br />
repetidas vezes, procuran<strong>do</strong> elementos musicais que pu<strong>de</strong>sse i<strong>de</strong>ntificar. Ao longo<br />
<strong>de</strong> seu relato da apreciação, ele consegue <strong>de</strong>finir corretamente os instrumentos e<br />
algumas das principais características estilísticas e estruturais da peça. Ou seja, ele<br />
tinha a bagagem <strong>de</strong> conhecimentos musicais necessários para realizar a tarefa e, apesar<br />
<strong>de</strong> uma hesitação inicial, teve êxito na ativida<strong>de</strong>.<br />
O Sujeito 2 expressa <strong>de</strong> forma criativa suas impressões e elabora um relato sobre a<br />
apreciação que inclui informações sobre instrumentação, ornamentação, tessitura,<br />
caráter, andamento e valor da música, como po<strong>de</strong> ser observa<strong>do</strong> nesse trecho <strong>de</strong> seu<br />
trabalho:<br />
“A música tem constantes mudanças, em que são emprega<strong>do</strong>s alguns artifícios técnicos,<br />
como o compositor imprimir um som característico da natureza, fazen<strong>do</strong>nos<br />
(nós ouvintes) percebermos a questão <strong>do</strong> tempo, <strong>do</strong> clima e imaginar a música,<br />
o que transcen<strong>de</strong> o ato <strong>de</strong> ouvir.” (Sujeito 2, EAD, ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apreciação musical,<br />
set.2009).<br />
De acor<strong>do</strong> com Gohn (2009), um programa <strong>de</strong> EaD que se propõe a trabalhar a<br />
apreciação musical <strong>de</strong>ve basear-se na tradição <strong>do</strong> estilo que é o objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>,<br />
“mas manten<strong>do</strong> aberta a criativida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ouvinte e construin<strong>do</strong> sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
julgamentos <strong>de</strong> valores”.<br />
No <strong>de</strong>bate <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s fóruns <strong>de</strong>ssa Unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ensino, foi recorrente o comentário<br />
<strong>de</strong> alunos que passaram a ver a avaliação em apreciação musical a partir <strong>de</strong> outros<br />
pontos <strong>de</strong> vistas, como mecanismos <strong>de</strong> acompanhamento <strong>do</strong> aluno, <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s, entre outros elementos, como consta no relato 3:<br />
413
414<br />
“A Avaliação em Apreciação Musical <strong>de</strong>senvolve a percepção, a sensibilida<strong>de</strong>, o senso<br />
crítico e analítico, amplian<strong>do</strong> os conhecimentos <strong>de</strong> forma significativa.<br />
Swanwick nos orientou oito critérios que estão <strong>de</strong>scritos no conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta unida<strong>de</strong>,<br />
vale a pena reler esta parte”. Sujeito 3. set. 2009.<br />
Por meio da ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apreciação musical na EaD, vislumbrei a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
conhecer mais a fun<strong>do</strong> o perfil musical <strong>do</strong>s alunos, registran<strong>do</strong> suas impressões, preferências<br />
implícitas ou explícitas em seus relatos, bem como promoven<strong>do</strong> o <strong>de</strong>bate<br />
acerca <strong>do</strong>s valores intrínsecos da música. Ficou clara, também, a heterogeneida<strong>de</strong><br />
das turmas, pois apesar <strong>de</strong> possuírem um pré-requisito comum a to<strong>do</strong>s – a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> qualificação <strong>de</strong> legitimação acadêmica para professores já atuantes – cada<br />
Pólo, cada trajetória individual, possui peculiarida<strong>de</strong>s distintas.<br />
A aprendizagem musical, porém, em essência é semelhante em qualquer ambiente,<br />
necessitan<strong>do</strong> <strong>de</strong> mudanças e adaptações meto<strong>do</strong>lógicas e tecnológicas <strong>de</strong> acor<strong>do</strong><br />
com o contexto, com distintas possibilida<strong>de</strong>s e necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interação. Para<br />
Swanwick (2008),<br />
A aprendizagem musical acontece através <strong>de</strong> um engajamento multifaceta<strong>do</strong>:<br />
solfejan<strong>do</strong>, pratican<strong>do</strong>, escutan<strong>do</strong> os outros, apresentan<strong>do</strong>-se, integran<strong>do</strong> ensaios<br />
e apresentações em público com um programa que também integre a improvisação.<br />
Precisamos também encontrar espaço para o engajamento intuitivo<br />
pessoal <strong>do</strong> aluno, um lugar on<strong>de</strong> to<strong>do</strong> o conhecimento comece e termine (Swanwick,<br />
2008, p. 2).<br />
França (2003) afirma que os eventos musicais são construções cognitivas e que o ensino<br />
<strong>de</strong> música <strong>de</strong>veria ter menos conteú<strong>do</strong>s e valorizar mais a expressivida<strong>de</strong>. Essa<br />
atitu<strong>de</strong> pressupõe que o professor dê espaço para as reflexões e manifestações <strong>do</strong><br />
seu aluno, procuran<strong>do</strong> orientá-lo sem cobrança quantitativa <strong>de</strong> tópicos a seguir, almejan<strong>do</strong><br />
a sua liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> criação e expressão, com respeito e sensibilida<strong>de</strong> ao seu<br />
ritmo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento.<br />
Apesar <strong>de</strong> sustentar que a aprendizagem musical ocorra da mesma forma, no senti<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r o <strong>de</strong>senvolvimento musical intimamente liga<strong>do</strong> ao <strong>de</strong>senvolvimento<br />
humano, enten<strong>do</strong> que a Educação Musical, mediada pela EaD, possui<br />
peculiarida<strong>de</strong>s que talvez permitam maior conhecimento e necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interação<br />
com recursos tecnológicos muitas vezes <strong>de</strong>spreza<strong>do</strong>s no ensino presencial.<br />
No entanto, <strong>de</strong>vemos estar atentos para que essas tecnologias não sejam meras<br />
transposições <strong>de</strong> exercícios convencionais, <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> ensino já satura<strong>do</strong> até<br />
mesmo no ambiente presencial. De acor<strong>do</strong> com Krüger (2006), esse é um <strong>do</strong>s aspectos<br />
mais critica<strong>do</strong>s em relação às novas TIC na educação. Para ela,<br />
Dessa forma não será utiliza<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o potencial <strong>de</strong> interação entre os usuários<br />
(alunos e professores) e entre estes e o conhecimento. Em resumo, apesar <strong>do</strong> potencial<br />
<strong>de</strong> enriquecimento, diversificação e estímulo em ativida<strong>de</strong>s convencionais,<br />
os diferenciais técnicos e educacionais intrínsecos das TIC po<strong>de</strong>m<br />
promover outras e novas abordagens pedagógicas, não precisan<strong>do</strong> ser abordadas
apenas como uma nova roupagem para um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> tema.<br />
Se no ensino presencial a entrega <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s semanais por parte <strong>do</strong>s alunos é motivo<br />
<strong>de</strong> preocupação <strong>do</strong> professor quanto à participação <strong>de</strong>stes, na EaD esse envolvimento<br />
é ainda mais representativo da interação <strong>do</strong>s alunos com as unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
ensino. A participação <strong>do</strong>s alunos das duas interdisciplinas em questão – “Educação<br />
Brasileira” e “Didática da Música”, aumentou em média 60% a partir <strong>do</strong> momento<br />
em que as assumi e passei a dar retorno das ativida<strong>de</strong>s realizadas, também<br />
conheci<strong>do</strong> no ambiente virtual como feedback.<br />
A avaliação em música, <strong>de</strong>bate tão fundamental quanto ao que se refere a conteú<strong>do</strong>s<br />
e meto<strong>do</strong>logias, torna-se ferramenta essencial <strong>de</strong> motivação e engajamento na<br />
Educação a Distância.<br />
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
Educação Musical em EaD é um assunto que <strong>de</strong>manda maior discussão nos <strong>de</strong>bates<br />
acadêmicos, necessitan<strong>do</strong> <strong>de</strong> pesquisas que busquem compreen<strong>de</strong>r como se dá<br />
o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento musical, num processo <strong>de</strong> avaliação permanente<br />
em busca <strong>de</strong> aperfeiçoamento meto<strong>do</strong>lógico. Importante registrar que o perfil <strong>de</strong> estudantes<br />
e profissionais envolvi<strong>do</strong>s com os cursos EaD em música vêm se modifican<strong>do</strong>,<br />
pois essa modalida<strong>de</strong> está conquistan<strong>do</strong> espaços em universida<strong>de</strong>s brasileiras<br />
consolidadas, as quais encontram-se em franco processo <strong>de</strong> qualificação e expansão.<br />
Apesar <strong>do</strong>s problemas enfrenta<strong>do</strong>s, na verda<strong>de</strong> presentes em qualquer modalida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> ensino, é necessário valorizar o que já foi alcança<strong>do</strong> através <strong>de</strong> intenso investimento<br />
<strong>de</strong> políticas públicas <strong>de</strong> qualificação e formação <strong>de</strong> profissionais já em ativida<strong>de</strong><br />
no País. O preconceito, o <strong>de</strong>sconhecimento perante os recursos tecnológicos<br />
e meto<strong>do</strong>lógicos, entre outros fatores, vêm sen<strong>do</strong> substituí<strong>do</strong>s pela credibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> realização <strong>de</strong> cursos qualifica<strong>do</strong>s, ampla pesquisa e produção <strong>de</strong> materiais didáticos<br />
específicos para EaD, bem como a <strong>de</strong>mocratização <strong>de</strong> acesso à formação acadêmica,<br />
corroboran<strong>do</strong>, assim, para a consolidação <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> graduação<br />
promovi<strong>do</strong>s pelas Ifes – Instituições Fe<strong>de</strong>rais <strong>de</strong> Ensino Superior.<br />
Especialmente no atual contexto da Educação Musical brasileira, influenciada <strong>de</strong><br />
forma relevante pela aprovação da Lei. 11.769 (2008) que traz a música para a Educação<br />
Básica no País, os cursos <strong>de</strong> qualificação oportuniza<strong>do</strong>s pela EaD contribuirão<br />
significativamente na formação <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>manda existente. De acor<strong>do</strong> com<br />
Figueire<strong>do</strong> (2010), é importante consi<strong>de</strong>rar que “a médio e longo prazo, novos licencia<strong>do</strong>s<br />
em música serão forma<strong>do</strong>s através <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> licenciatura ofereci<strong>do</strong>s<br />
na modalida<strong>de</strong> a distância”. Além <strong>de</strong>sse ponto positivo, o autor levanta também a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cursos EaD auxiliarem na formação e qualificação continuada <strong>de</strong><br />
professores em exercício, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser “uma excelente alternativa para a formação<br />
415
416<br />
continuada <strong>de</strong> professores, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que existem licencia<strong>do</strong>s atuan<strong>do</strong> nas escolas<br />
que necessitam atualizar permanentemente seus conhecimentos”.<br />
Portanto, o processo <strong>de</strong> aprendizagem media<strong>do</strong> pelo ambiente virtual <strong>de</strong> aprendizagem<br />
e os recursos tecnológicos que lhe são próprios trazem possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> qualificação<br />
em qualquer modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ensino, seja presencial, semi-presencial e a<br />
distância. Isso ocorre à medida que esses recursos estimulam o <strong>do</strong>cente a repensar<br />
suas práticas mediadas pelo ambiente virtual e pelas ferramentas tecnologias contemporâneas,<br />
assim como provoca o aluno a assumir seu papel curioso e investigativo,<br />
acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, como ser autônomo na construção <strong>do</strong> conhecimento musical.<br />
Então caberia provocar: Essas concepções <strong>de</strong> perfis <strong>do</strong>centes e discentes <strong>de</strong>veriam se restringir<br />
à formação e atuação na modalida<strong>de</strong> EaD?A partir das temáticas levantadas<br />
e discutidas neste artigo, po<strong>de</strong>mos inferir que a resposta a esta pergunta é clara.<br />
1 Mestra<strong>do</strong> <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong> no Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Educação/FACED/UFRGS,<br />
com o título “Musicalida<strong>de</strong> na Performance com a Flauta Doce” (2009), pesquisa financiada<br />
pelo CNPq.<br />
2 O conceito <strong>de</strong> Interdisciplina aborda o diálogo e as conexões entre <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> eixo.<br />
Referências<br />
Behar, Patrícia A. Mo<strong>de</strong>los Pedagógicos em Educação a Distância. Disponível em:<br />
http://www.nuted.edu.ufrgs.br/objetos/2007/arqueads/apoio/mo<strong>de</strong>lospedagogicos.pdf<br />
Acesso em: 2 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2009.<br />
Blacking, John. How Musical is man? Seattle e Londres: University of Washington Press,<br />
1976.<br />
———. Music, culture and experience. In: Blacking, John. Music, Culture and Experience:<br />
selected papers of John Blacking. Chicago: University of Chicago Press, 1995, p. 323-342.<br />
Brasil. Lei Fe<strong>de</strong>ral n. 11.769, <strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008. Estabelece a obrigatorieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> ensino<br />
<strong>de</strong> música nas escolas <strong>de</strong> educação básica. Diário Oficial [da República Fe<strong>de</strong>rativa<br />
<strong>do</strong> Brasil]. Brasília, DF, 2008.<br />
Cuervo, Luciane da Costa. Musicalida<strong>de</strong> na performance com a Flauta Doce. Porto Alegre,<br />
2009. 145 f. + Glossário + Anexos. Dissertação (Mestra<strong>do</strong> em Educação) – Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação, Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação<br />
em Educação, Porto Alegre, 2009.<br />
Cuervo, Luciane. Competências e habilida<strong>de</strong>s. Material não publica<strong>do</strong>, elabora<strong>do</strong> para o<br />
Curso <strong>de</strong> Prática Pedagógica em Educação a Distância: um enfoque didático-meto<strong>do</strong>lógico.<br />
Ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Extensão UFRGS, 2009.<br />
Educação Musical A Distância Da UAB-UFSCAR. Produção multimídia para o curso <strong>de</strong><br />
educação musical a distância: processo e produto. Disponível em:<br />
www.canone.com.br/<strong>do</strong>wnloads/admin/<strong>do</strong>wnloads/artigo.pdf Acesso em 15.jan.2009.<br />
Elliot, David J. Música, Educación y Valores Musicales. In: Gainza, V. H. (Org.). La Transformación<br />
<strong>de</strong> La Educación Musical a las puertas <strong>de</strong>l siglo XXI. Buenos Aires: Guadalupe,<br />
1998, p. 11-32.
Figueire<strong>do</strong>, Sérgio L. F.; Schmidt, L. Discutin<strong>do</strong> o talento musical. In: M. Dottori et al. (Ed.)<br />
<strong>Anais</strong> <strong>do</strong> <strong>Simpósio</strong> Internacional De <strong>Cognição</strong> E <strong>Artes</strong> Musicais, 1, 2005, Curitiba. Curitiba:<br />
UFPR, 2005, p. 385-392.<br />
Figueire<strong>do</strong>, Sérgio L. F.; Schmidt, L. Refletin<strong>do</strong> sobre o talento musical na perspectiva <strong>de</strong> sujeitos<br />
não-músicos. In: <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais, 4, 2008, São<br />
Paulo. São Paulo: USP, 2008, p. 423-429.<br />
Figueire<strong>do</strong>, Sérgio <strong>de</strong>. O processo <strong>de</strong> aprovação da Lei 11.769/2008 e a obrigatorieda<strong>de</strong> da<br />
música na Educação Básica. <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> XV ENDIPE – Encontro Nacional <strong>de</strong> Didática e<br />
Prática <strong>de</strong> Ensino – Convergências e tensões no campo da formação e <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong>cente,<br />
Belo Horizonte, 2010. Painel (CD).<br />
França, Cecília C. O som e a forma: <strong>do</strong> gesto ao valor. In: Hentschke, L.; Del Ben, L. (Org).<br />
Ensino <strong>de</strong> Música: propostas para pensar e agir em sala <strong>de</strong> aula. São Paulo: Mo<strong>de</strong>rna, 2003,<br />
p. 50-61.<br />
Gembris, Heiner. Historical Phases in the Definition of Musicality. Halle-Wittenberg-Alemanha:<br />
Martin Luther University, 1997. Psychomusicology 16. p. 17-22.<br />
Gohn, Daniel. Educação a Distância: Como <strong>de</strong>senvolver a apreciação musical? Disponível<br />
em: http://tv.ufrj.br/<strong>anppom</strong>/sessao12/daniel_gohn.pdf. Acesso em: 10.set.2009.<br />
Hallam, Susan. Musicality (Cap. 5). In: McPherson, Gary E. (Org.). The Child as Musician:<br />
A handbook of musical <strong>de</strong>velopment. Nova York: Oxford University Press, 2006. p.<br />
93-110.<br />
Ilari, Beatriz Senoi. Desenvolvimento cognitivo-musical no primeiro ano <strong>de</strong> vida. In: Ilari,<br />
Beatriz Senoi (Org.) Em Busca da Mente Musical: Ensaios sobre os processos cognitivos<br />
em música – da percepção à produção musical. Curitiba: UFPR, 2006. p. 271-302.<br />
Krüger, Susana Ester. Educação musical apoiada pelas novas Tecnologias <strong>de</strong> Informação e<br />
Comunicação (TIC): comunicação <strong>de</strong> pesquisas práticas e formação <strong>de</strong> <strong>do</strong>centes. Revista<br />
da ABEM 14, 75-89, Porto Alegre, mar. 2006.<br />
———. Relações interativas <strong>de</strong> <strong>do</strong>cência e mediações pedagógicas nas práticas <strong>de</strong> EaD em<br />
cursos <strong>de</strong> aperfeiçoamento <strong>de</strong> educação musical. Revista da ABEM 17, 97-107, Porto<br />
Alegre, set. 2007.<br />
Maffioletti, Leda <strong>de</strong> A. Musicalida<strong>de</strong> humana: Aquela que to<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>m ter. In: <strong>Anais</strong> <strong>do</strong><br />
Encontro Regional da Abem Sul, 4º, 2001, Santa Maria. Educação Musical hoje: Múltiplos<br />
Espaços. Novas <strong>de</strong>mandas profissionais. Santa Maria: UFSM, 2001. p. 53-63.<br />
Moran, Manuel. O que é educação a distância? Disponível em: . Acesso em: 2 <strong>de</strong> <strong>de</strong>z. 2009.<br />
Ramal, Andrea Cecilia. O professor <strong>do</strong> próximo milênio. In: Revistas Aulas e Cursos (UOL),<br />
In: http:/www.uol.com.br/aulasecursos, agosto <strong>de</strong> 2000.<br />
Sacks, Oliver. Alucinações Musicais: relatos sobre a música e o cérebro. São Paulo: Cia. Das<br />
Letras, 2007.<br />
Sloboda, John. A Mente Musical: A psicologia <strong>de</strong>finitiva da música. Trad. <strong>de</strong> Beatriz Ilari e Ro<strong>do</strong>lfo<br />
Ilari. Londrina: Editora da Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Londrina, 2008.<br />
Stefani, Gino (1987); Ulhôa, Martha (Trad.). Uma Teoria <strong>de</strong> Competência Musical. Música<br />
e Cultura. Revista On-Line <strong>de</strong> Etnomusicologia 2 – 2007. Disponível em:<br />
http://www.musicaecultura.ufba.br/numero_02/artigo_stefani_01.htm. Acesso em:<br />
22 maio. 2007.<br />
417
418<br />
Subtil, Maria José. Educação para a mídia – a emissão/recepção musical midiática e a realida<strong>de</strong><br />
escolar. Disponível em: http://www.comunic.ufsc.br/artigos/art_educacao.pdf<br />
Acesso em 14. jan. 2009.<br />
Swanwick, Keith. Ensinan<strong>do</strong> música musicalmente. Trad. Alda Oliveira e Cristina Tourinho.<br />
São Paulo: Mo<strong>de</strong>rna, 2003.<br />
——— . Ensino instrumental enquanto ensino <strong>de</strong> música. Trad. <strong>de</strong> Fausto Borém <strong>de</strong> Oliveira<br />
e Revisão <strong>de</strong> Maria Betânia Parizzi. Disponível em: Acesso em 09 <strong>de</strong>z. 2008.<br />
Torres, Maria Cecília <strong>de</strong> A. Entre rádios, Tvs, toca-discos, walkmans: lembranças musicais<br />
<strong>de</strong> alunas da Pedagogia. Revista UNIrevista 1, no. 2, abril 2006. Disponível em:<br />
Acesso em: 10 Ago.<br />
2008.<br />
Tourinho, Cristina; Braga, Paulo. “Era uma casa muito engraçada. . .”: reflexões sobre o planejamento<br />
<strong>do</strong> ensino instrumental a distância e a criação <strong>de</strong> cursos media<strong>do</strong>s por computa<strong>do</strong>r.<br />
In: X<strong>VI</strong> Congresso da Associação Nacional <strong>de</strong> Pesquisa e Pós-graduação em<br />
Música (ANPPOM). <strong>Anais</strong>. Brasília: ANPPOM, 2006.<br />
Wisnik, José Miguel. O Som e o Senti<strong>do</strong>: uma outra história das músicas. São Paulo: Cia. das<br />
Letras, 2007.
A Construção da Escala Natural no Tecla<strong>do</strong>:<br />
significan<strong>do</strong> sons e teclas<br />
Caroline Cao Ponso<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul<br />
Resumo<br />
Proponho neste artigo analisar uma experiência musical ocorrida com alunos <strong>de</strong> 1° ano<br />
<strong>do</strong> Ensino Fundamental. Neste relato trago reflexões como professora-pesquisa<strong>do</strong>ra, buscan<strong>do</strong><br />
respon<strong>de</strong>r a questão: Que tipos <strong>de</strong> inferências e relações fazem os alunos ao sistematizar<br />
o esquema sonoro/visual da escala natural no tecla<strong>do</strong>? Alguns termos, como<br />
‘inferência’ e ‘reversibilida<strong>de</strong>’ serão aprofunda<strong>do</strong>s uma vez oriun<strong>do</strong>s da teoria <strong>de</strong> Piaget,<br />
referencial teórico para o estu<strong>do</strong>. O objetivo da experiência é compreen<strong>de</strong>r junto aos<br />
alunos a organização sonora <strong>do</strong> tecla<strong>do</strong> naquele <strong>de</strong>senho necessário <strong>de</strong> teclas. A orientação<br />
meto<strong>do</strong>lógica na análise <strong>do</strong> experimento segue os princípios <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> clínico, no<br />
qual busco o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> compreensão <strong>do</strong>s alunos, observan<strong>do</strong> suas ações e questionan<strong>do</strong>os<br />
sobre como compreen<strong>de</strong>m a ativida<strong>de</strong> em curso. Significar um objeto é agir sobre ele<br />
<strong>de</strong> maneira que este apresente uma estrutura <strong>de</strong> significações comum a to<strong>do</strong>s os sujeitos<br />
em diferentes situações. Ao compreen<strong>de</strong>r a escala, enquanto forma, o sujeito irá<br />
compreendê-la no piano, no acor<strong>de</strong>on, na escaleta, ou outro instrumento com organização<br />
semelhante. A cada nova aprendizagem, a criança utiliza os esquemas já constituí<strong>do</strong>s<br />
anteriormente a fim <strong>de</strong> explorar características e novida<strong>de</strong>s cada vez mais<br />
complexas <strong>do</strong>s materiais propostos.<br />
Palavras-chave<br />
Construção musical, música na escola, inferência musical<br />
A compreensão <strong>do</strong> discurso musical pelas crianças na escola regular e sua operacionalização<br />
sempre foram motivos <strong>de</strong> pesquisas na área <strong>de</strong> Educação Musical. Ao<br />
ingressar na escola, a criança começa a formalizar alguns conhecimentos que já possuía<br />
<strong>de</strong> forma intuitiva: a escrita <strong>do</strong>s signos <strong>do</strong> alfabeto, os números, as formas geométricas,<br />
entre outros. Na aula <strong>de</strong> música o aluno traz consigo o conhecimento<br />
musical que é proveniente da paisagem sonora que constitui sua vida e rotina, conhecimento<br />
este, fundamental no trabalho com música em sala <strong>de</strong> aula.<br />
Acredito que seja necessário dar voz às crianças na investigação <strong>do</strong> que realmente<br />
pensam sobre o que é música. Qual a idéia <strong>de</strong> música para uma criança <strong>de</strong> seis anos?<br />
O que ela pensa sobre a aula <strong>de</strong> música semanal? Isto está relaciona<strong>do</strong> com o seu<br />
próprio saber intuitivo sobre música? Verificar <strong>de</strong> que mo<strong>do</strong> as operações <strong>de</strong> pensamento<br />
promovem a compreensão <strong>do</strong> discurso musical e em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong>sta<br />
operação <strong>de</strong> que forma o aluno transforma a música em ação inteligente, po<strong>de</strong> ser<br />
fundamental para justificar e argumentar a importância da construção <strong>do</strong> conhecimento<br />
musical na escola.<br />
419
420<br />
Proponho neste artigo analisar uma experiência ocorrida em uma turma <strong>de</strong> alunos<br />
na qual atuo como professora <strong>de</strong> música. Neste relato trago reflexões como professora-pesquisa<strong>do</strong>ra,<br />
buscan<strong>do</strong> através da filmagem da experiência, elementos para<br />
respon<strong>de</strong>r a questão: Que tipos <strong>de</strong> inferências fazem os alunos ao sistematizar o esquema<br />
sonoro/visual da escala musical natural no tecla<strong>do</strong>?<br />
Esta análise <strong>de</strong> uma prática realizada em sala <strong>de</strong> aula tem a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> verificar a<br />
consistência <strong>do</strong>s conhecimentos construí<strong>do</strong>s pelos alunos a respeito da escala musical.<br />
Preten<strong>de</strong> verificar se os estudantes estabelecem alguma relação entre a seqüência<br />
<strong>do</strong>s nomes das notas com a configuração espacial da escala na forma <strong>do</strong><br />
tecla<strong>do</strong>.<br />
Os termos utiliza<strong>do</strong>s neste artigo, tais como ‘inferências’ e ‘reversibilida<strong>de</strong>’ serão<br />
aprofunda<strong>do</strong>s uma vez oriun<strong>do</strong>s da teoria <strong>de</strong> Piaget, a Epistemologia Genética, que<br />
não oferece uma didática específica sobre como <strong>de</strong>senvolver a inteligência <strong>do</strong> aluno,<br />
mas nos mostra que cada fase <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento apresenta características e possibilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> crescimento e maturação <strong>de</strong> aquisições, sen<strong>do</strong> este o principal referencial<br />
teórico e base para o estu<strong>do</strong>. Sobre o termo ‘inferência’ Piaget apud Battro,<br />
nos diz:<br />
. . . há sempre inferência nas ações <strong>de</strong> um sujeito, quan<strong>do</strong>, em presença <strong>de</strong> elementos<br />
da<strong>do</strong>s fisicamente, o sujeito apela a elementos não fisicamente presentes<br />
para tirar <strong>de</strong>sta junção, entre os elementos fisicamente da<strong>do</strong>s e os elementos<br />
não presentes fisicamente, um conhecimento que não po<strong>de</strong>ria ser obti<strong>do</strong> só por<br />
meio <strong>do</strong>s primeiros. (Battro, 1978, p. 136)<br />
Ou seja, a inferência é um tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>dução ou indução que o sujeito retira <strong>do</strong> observável,<br />
algo que não está ali presente. No caso da escala musical, o objetivo é inferir<br />
que exista uma organização sonora naquele <strong>de</strong>senho necessário <strong>de</strong> teclas.<br />
Neste experimento a reversibilida<strong>de</strong> é o conceito mais importante na comprovação<br />
da ação <strong>do</strong> sujeito frente ao objeto escala musical. To<strong>do</strong> o experimento nos encaminha<br />
para o ponto em que os alunos percebem a escala como um to<strong>do</strong> maleável,<br />
que possui ida e possui volta, mas que essa volta não modifica o objeto, ele permanece<br />
o mesmo. “Esta reversibilida<strong>de</strong> que comporta um aspecto causal (<strong>de</strong>sse ponto<br />
<strong>de</strong> vista, caracteriza a própria existência <strong>de</strong> um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> equilíbrio), comporta também<br />
um aspecto implicativo ou lógico: uma operação reversível é uma operação<br />
que admite a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma inversa” (Battro 1978, p. 215) Ou seja, a escala<br />
musical natural, <strong>de</strong> uma oitava <strong>de</strong> extensão, seja ela dó-ré-mi-fá-sol-lá-si-dó, continua<br />
sen<strong>do</strong> a escala musical natural se o inverso for estabeleci<strong>do</strong> como em dó-si-lásol-fá-mi-ré-dó.<br />
A criança pré-operatória ainda não realiza o processo <strong>de</strong> reversibilida<strong>de</strong> em suas<br />
ações, e esta faixa-etária <strong>do</strong>s 6-7 anos, caracteriza-se pela passagem <strong>do</strong> pré-operatório<br />
ao operatório concreto, geralmente. No estádio pré-operatório o pensamento<br />
é intuitivo, a ativida<strong>de</strong> é simbólica, pré-conceitual. No entanto, a criança ainda não
ealiza operações reversíveis por não compreen<strong>de</strong>r a conservação <strong>do</strong>s conjuntos,<br />
uma vez que se <strong>de</strong>ixa levar pelas aparências sem relacionar fatos. No perío<strong>do</strong> operatório,<br />
já raciocina <strong>de</strong> forma coerente contanto que possa manipular objetos ou<br />
imaginar-se manipulan<strong>do</strong>. Aparecem noções <strong>de</strong> espaço, tempo, velocida<strong>de</strong>, peso,<br />
medida e perspectiva.<br />
A orientação meto<strong>do</strong>lógica na análise <strong>do</strong>s diálogos <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s em classe segue os<br />
princípios <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> clínico, no qual o professor-pesquisa<strong>do</strong>r busca uma hipótese<br />
sobre o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> compreensão <strong>do</strong>s alunos e procura testá-la questionan<strong>do</strong>-os sobre<br />
como eles compreen<strong>de</strong>m a ativida<strong>de</strong> em curso. Delval, sobre a estratégia <strong>do</strong> méto<strong>do</strong><br />
clínico, nos diz da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
[. . .] criar uma situação, mas agora <strong>de</strong>terminada pelo material que se oferece ao<br />
sujeito, e ver como se sai para explicar o que está ocorren<strong>do</strong> diante <strong>de</strong>le. O pressuposto<br />
é que a forma como o sujeito trata a realida<strong>de</strong> revela quais são as operações<br />
que ele é capaz <strong>de</strong> realizar. Se essas ações vão mudan<strong>do</strong> com a ida<strong>de</strong>, fica<br />
evi<strong>de</strong>nte que nisso há um progresso. (Delval, 2002, p.64)<br />
Sen<strong>do</strong> assim, a intervenção <strong>do</strong> experimenta<strong>do</strong>r <strong>de</strong>ve ser sistemática, elaborada e<br />
ativa, pois a resposta ou questionamento <strong>do</strong> sujeito no instante <strong>do</strong> experimento<br />
vem carrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> informações relevantes e <strong>de</strong>notam sua elaboração <strong>de</strong> pensamento.<br />
Ao experimenta<strong>do</strong>r cabe se questionar qual o significa<strong>do</strong> da conduta <strong>do</strong> sujeito e<br />
estar sensível ao que o sujeito está fazen<strong>do</strong>.<br />
A experiência foi filmada e fotografada, assim como os trabalhos <strong>de</strong> registro foram<br />
preserva<strong>do</strong>s para posterior análise.<br />
A experiência ocorreu no ano letivo <strong>de</strong> 2009, em uma turma <strong>de</strong> <strong>de</strong>zenove alunos<br />
com ida<strong>de</strong>s entre seis e sete anos, em uma escola municipal <strong>de</strong> Porto Alegre. Os alunos<br />
possuem <strong>do</strong>is perío<strong>do</strong>s <strong>de</strong> cinqüenta minutos <strong>de</strong> aula <strong>de</strong> música por semana,<br />
em uma sala específica para esta prática. A escola possui uma sala <strong>de</strong> música com<br />
<strong>do</strong>is tecla<strong>do</strong>s, três violões e uma diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> instrumentos <strong>de</strong> percussão. Neste<br />
ambiente ocorreu a ativida<strong>de</strong> aqui <strong>de</strong>scrita, com a duração <strong>de</strong> <strong>do</strong>is perío<strong>do</strong>s. O material<br />
utiliza<strong>do</strong> foi um tecla<strong>do</strong> eletrônico, folhas <strong>de</strong> papel ofício, tesoura e hidrocor.<br />
O experimento consistiu em construir um tecla<strong>do</strong> <strong>de</strong> papel, como o tecla<strong>do</strong> explora<strong>do</strong><br />
empiricamente por eles <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>do</strong> ano. Na aula em que realizamos a ativida<strong>de</strong>,<br />
sentamos em roda a fim <strong>de</strong> que to<strong>do</strong>s pu<strong>de</strong>ssem observar o material,<br />
manusea<strong>do</strong> por mim, primeiramente. O objetivo foi o <strong>de</strong> verificar se os alunos percebiam<br />
a or<strong>de</strong>m necessária <strong>de</strong> teclas brancas e teclas pretas a fim <strong>de</strong> que reproduzíssemos<br />
o tecla<strong>do</strong>.<br />
Comecei questionan<strong>do</strong> <strong>de</strong> que forma po<strong>de</strong>ríamos construir um tecla<strong>do</strong> utilizan<strong>do</strong><br />
folhas <strong>de</strong> papel ofício e canetinha preta. Os alunos sugeriram que cortássemos as folhas<br />
e pintássemos com a canetinha hidrocor as teclas pretas. Cortei uma folha <strong>de</strong><br />
ofício para formar oito teclas brancas e assim começar a montagem <strong>do</strong> nosso tecla<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> papel. Ao <strong>do</strong>brar a folha ao meio o aluno “JOE” falou que dali surgiria<br />
421
422<br />
‘<strong>do</strong>is pianos’, referin<strong>do</strong>-se ao número <strong>de</strong> teclas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> cortada a folha. No momento<br />
em que a folha foi novamente <strong>do</strong>brada, “MAU” disse ‘aí vai sair três’. No<br />
entanto, três alunos falaram que seriam quatro teclas. Seguran<strong>do</strong> a folha <strong>do</strong>brada<br />
questionei quem achava que seriam três e quem achava que seriam quatro teclas,<br />
ao passo que somente três alunos <strong>de</strong> <strong>de</strong>zenove acharam que seriam quatro teclas.<br />
Este episódio <strong>de</strong>monstrou que algumas crianças estavam inferin<strong>do</strong> elementos da<br />
experiência <strong>de</strong> forma diferenciada. O fato <strong>de</strong> estarem ven<strong>do</strong> o processo <strong>de</strong> <strong>do</strong>bra não<br />
significa ainda a conservação da quantida<strong>de</strong> que ali se ‘escon<strong>de</strong>’. Está implícito no<br />
<strong>do</strong>brar um esquema <strong>de</strong> multiplicação <strong>do</strong>s elementos, o que nem to<strong>do</strong>s conseguiram<br />
<strong>de</strong>duzir.<br />
Este fato me antecipou a idéia <strong>de</strong> que a turma como um to<strong>do</strong> precisaria visualizar<br />
o tecla<strong>do</strong> para construir o <strong>de</strong> papel, mas na construção em grupo, aqueles que recordavam<br />
as experiências práticas no instrumento, auxiliaram os outros na construção<br />
<strong>de</strong> teclas brancas e pretas.<br />
Após o recorte, disponho no centro da roda oito teclas brancas e pergunto quantas<br />
teclas pretas precisamos para formar o tecla<strong>do</strong>. Um aluno diz ‘oito pretas’, mas<br />
o aluno “JOE” comenta: ‘não, porque tem uma parte que tem duas teclas brancas’.<br />
Outro aluno comenta que ‘são duas e três pretas’, como ele recorda <strong>do</strong> tecla<strong>do</strong> verda<strong>de</strong>iro.<br />
Neste momento pergunto quem se lembra <strong>do</strong> nome das notas musicais.<br />
Depois <strong>de</strong> entoarem a escala ascen<strong>de</strong>nte pergunto à turma o que tem a ver esses<br />
nomes das notas com as teclas e ninguém respon<strong>de</strong>, o que <strong>de</strong>nota uma não relação<br />
entre o que eles cantam e o tecla<strong>do</strong> como organização <strong>de</strong>sses sons. Após construirmos<br />
o primeiro conjunto <strong>de</strong> duas e três pretas, ou seja, uma oitava, questiono o que<br />
virá a seguir e “<strong>VI</strong>C” respon<strong>de</strong> ‘quatro pretas’, como se as teclas pretas seguissem a<br />
or<strong>de</strong>m natural da numeração. No entanto, alguns alunos intervêm dizen<strong>do</strong> que<br />
após três teclas pretas retornam duas teclas pretas, o que implica conhecimento<br />
sobre a organização espacial <strong>do</strong> tecla<strong>do</strong>.<br />
Significar um objeto é agir sobre ele <strong>de</strong> maneira que este apresente uma estrutura<br />
<strong>de</strong> significações comum a to<strong>do</strong>s os sujeitos em diferentes situações. Ao compreen<strong>de</strong>r<br />
a escala, enquanto forma, o sujeito irá compreendê-la no piano, no tecla<strong>do</strong>, no<br />
acor<strong>de</strong>om, na escaleta, ou outro instrumento semelhante.<br />
Maffioletti analisa profundamente em sua tese as construções e reconstruções das<br />
idéias musicais das crianças na sala <strong>de</strong> aula. Sobre a escala, comenta:<br />
Embora comporte uma estrutura lógica na composição <strong>do</strong>s intervalos, a sua reprodução<br />
é facilitada pela familiarida<strong>de</strong> que caracteriza a cultura musical local.<br />
A construção da escala a partir <strong>de</strong> elementos isola<strong>do</strong>s ou soltos, no entanto,<br />
supõe a abstração e a retenção na memória da seqüência da escala padrão. (Maffioletti,<br />
2005, p. 269)<br />
As relações lógicas são conduzidas por uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> coerência que funciona<br />
como norma. Se essa coerência não estiver presente, a criança guia-se pela percep-
ção, sem nada inferir para além <strong>do</strong> que é perceptível. A necessida<strong>de</strong> lógica reorganiza<br />
as reflexões da criança, fazen<strong>do</strong>-a avançar para além das constatações empíricas.<br />
Na seqüência da ativida<strong>de</strong> coloco o tecla<strong>do</strong> no meio da roda para explorarmos e<br />
compararmos nosso tecla<strong>do</strong> <strong>de</strong> papel com o verda<strong>de</strong>iro. Muitas crianças tocam no<br />
tecla<strong>do</strong> como se estivessem ven<strong>do</strong>-o pela primeira vez e dizem ‘Olha! As duas e três<br />
pretas! É mesmo!’ A organização <strong>do</strong> tecla<strong>do</strong>, neste momento, parece compreendida,<br />
resta sistematizar os sons da escala naquele espaço. Quan<strong>do</strong> “MAU” <strong>de</strong>monstra<br />
com os <strong>de</strong><strong>do</strong>s a organização das teclas na direção agu<strong>do</strong>-grave, “LUC” lhe<br />
diz que ele está ao contrário, ao que pergunto: como assim ao contrário? ‘Está erra<strong>do</strong>,<br />
tem que começar <strong>de</strong> duas’, ou seja, <strong>do</strong> grave pro agu<strong>do</strong>, mas não sabem dizer<br />
o porquê. Acredito que neste momento, o fato <strong>de</strong> termos monta<strong>do</strong> o tecla<strong>do</strong> da direita<br />
para a esquerda, tenha influencia<strong>do</strong> o aluno a acreditar nesta or<strong>de</strong>m necessária,<br />
e muitas vezes ‘viciamos’ nossos alunos com senti<strong>do</strong>s e or<strong>de</strong>ns necessárias, por<br />
repetirmos sempre da mesma forma aquela ação, seja em música, ou em operações<br />
matemáticas ou jogos <strong>de</strong> regras.<br />
Após a exploração <strong>do</strong> tecla<strong>do</strong> pelos alunos, retornamos à sala <strong>de</strong> aula da turma e<br />
realizamos o trabalho <strong>de</strong> registrar a ativida<strong>de</strong> com <strong>de</strong>senhos. No <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> “JUL”<br />
e “MAR” o tecla<strong>do</strong> obe<strong>de</strong>ce a organização espacial correspon<strong>de</strong>nte, com duas e três<br />
teclas pretas intercaladas. No entanto, “JOE”, que muito falou durante a ativida<strong>de</strong>,<br />
não organizou seu tecla<strong>do</strong> da forma convencional, mas com o mesmo número <strong>de</strong><br />
teclas brancas e pretas. Ou seja, existem diversas formas <strong>de</strong> analisar a compreensão<br />
<strong>do</strong> aluno. Por vezes, aquele aluno que verbaliza menos, po<strong>de</strong> estar internamente<br />
elaboran<strong>do</strong> novas hipóteses, e outros que parecem se valer <strong>de</strong> certezas em relação ao<br />
que está sen<strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>, na hora <strong>de</strong> registrar não representam esta compreensão.<br />
Beyer, em um estu<strong>do</strong> com crianças na escola analisou diferentes maneiras <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
musical.<br />
O que é pouco menciona<strong>do</strong> na literatura são as múltiplas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> que<br />
um indivíduo possa se <strong>de</strong>senvolver musicalmente. Ficou bastante evi<strong>de</strong>nte por<br />
nosso estu<strong>do</strong> que os alunos, embora tivessem realiza<strong>do</strong> as mesmas ativida<strong>de</strong>s<br />
com a mesma professora, <strong>de</strong>monstraram diferentes maneiras <strong>de</strong> perceber os sons,<br />
sen<strong>do</strong> que alguns tendiam a absorver mais rapidamente a convenção a<strong>do</strong>tada<br />
para sons agu<strong>do</strong>s e graves, enquanto outros preferiam construir um eixo. [. . .]<br />
Estas possibilida<strong>de</strong>s múltiplas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento po<strong>de</strong>m ser influenciadas pelas<br />
múltiplas escutas que uma pessoa po<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver com relação a um objeto sonoro.<br />
(Beyer, 1995, p.66)<br />
Os caminhos percorri<strong>do</strong>s pelos sujeitos na interação com a música se diferem qualitativamente.<br />
As crianças quan<strong>do</strong> interagem com os sons carregam toda a sua história<br />
musical, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primeiros sons ouvi<strong>do</strong>s na vida intra-uterina até aquele<br />
instante <strong>de</strong> música que está sen<strong>do</strong> gravada no experimento. A música se constitui<br />
um objeto interessante ou não <strong>de</strong> interação diferentemente para cada sujeito. É ne-<br />
423
424<br />
cessário que se respeite o interesse <strong>de</strong> cada criança e se amplie o espectro <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s<br />
a fim <strong>de</strong> conquistar o interesse <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s.<br />
Sobre a cognição musical, Beyer diz que esta se relaciona principalmente ao momento<br />
central no processo <strong>de</strong> interação <strong>do</strong> sujeito com o meio, assim como o ato<br />
<strong>de</strong> pensar compreen<strong>de</strong> várias etapas no processo. Estas etapas vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a percepção,<br />
passan<strong>do</strong> pela organização mental <strong>do</strong> indivíduo, que chega a idéias que possibilitam<br />
uma expressão <strong>do</strong> material capta<strong>do</strong> e elabora<strong>do</strong>. No caso <strong>de</strong>sse experimento,<br />
as etapas <strong>de</strong> compreensão <strong>do</strong> tecla<strong>do</strong> e a elaboração e significação <strong>do</strong> mesmo compreen<strong>de</strong>m<br />
este processo.<br />
Segun<strong>do</strong> uma perspectiva piagetiana, a organização mental <strong>do</strong>s fenômenos externos<br />
ou internos relaciona-se à constante busca <strong>de</strong> equilíbrio entre os processos<br />
<strong>de</strong> assimilação e acomodação. Cada indivíduo, porém, imprime<br />
características peculiares em sua cognição, conforme interesses ou vicissida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> sua vida cotidiana. (Beyer, 1996, p. 10)<br />
O processo contínuo <strong>de</strong> assimilação e acomodação conduz o sujeito em direção ao<br />
centro <strong>de</strong> sua consciência. Este centro <strong>do</strong> sujeito é a consciência da subjetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
seu ser, enquanto que o centro <strong>do</strong> objeto é a consciência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> externo. Cada<br />
nova ação que carrega uma tomada <strong>de</strong> consciência provoca uma acomodação que<br />
modifica o sujeito. Por sua vez, a acomodação é o processo <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> um novo<br />
esquema ou a modificação <strong>de</strong> um esquema já existente em função das particularida<strong>de</strong>s<br />
<strong>do</strong> objeto a ser assimila<strong>do</strong>. To<strong>do</strong> o processo <strong>de</strong> busca, <strong>de</strong> crescimento e <strong>de</strong><br />
aprendizagem envolve esse movimento espiral <strong>de</strong> transformação.<br />
[. . .] a criança não é puramente passiva ou receptiva em sua assimilação das estruturas<br />
lingüísticas ou <strong>do</strong>s conhecimentos escolares, e se vê obrigada a reelaborar<br />
o que assimila: as etapas e os mecanismos <strong>de</strong>sta reconstrução, portanto,<br />
continuariam sen<strong>do</strong> um <strong>do</strong>cumento <strong>de</strong> capital importância para o estu<strong>do</strong> da<br />
formação das noções e das condições <strong>do</strong> conhecimento. (Piaget, 1974, p.33)<br />
Sen<strong>do</strong> assim, ao trabalhar com Música, precisamos estar atentos ao que mostram as<br />
ações <strong>do</strong>s sujeitos em contato com os materiais musicais.<br />
Perceber o aluno é estar atento a todas as manifestações <strong>de</strong> suas ações, quer sejam<br />
elas práticas, verbais, ou <strong>de</strong> registro. Ponso sugere que a avaliação em música se dê<br />
ao longo <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o processo <strong>de</strong> aprendizagem. Deve-se “acreditar nas possibilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> os alunos construírem suas próprias verda<strong>de</strong>s e valorizar suas manifestações<br />
e interesses. Cada dúvida, certeza, erro ou questionamento que ocorra no cotidiano<br />
<strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> pelos professores como impulsiona<strong>do</strong>r <strong>de</strong> novas<br />
questões” (Ponso, 2008, p.19).<br />
Concluin<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>mos dizer que os alunos verbalizaram o que visualizaram sem<br />
muita compreensão da função formal que cada elemento trazia consigo, quer seja<br />
o tecla<strong>do</strong>, a escala cantada, ou a organização das teclas. Para po<strong>de</strong>rmos falar em<br />
compreensão da escala musical, é preciso sentir as funções tonais no seu interior.
Compreen<strong>de</strong>r a escala é diferente <strong>de</strong> entoar, porque a criança po<strong>de</strong> reproduzir a escala<br />
como se fosse uma música qualquer. Os alunos não indiferenciam ‘forma’ e<br />
‘conteú<strong>do</strong>’, quan<strong>do</strong> não relacionam a escala cantada com o produto da nossa experiência,<br />
o tecla<strong>do</strong> <strong>de</strong> papel.<br />
Ao comparar o tecla<strong>do</strong> <strong>de</strong> papel com o tecla<strong>do</strong> eletrônico, os alunos o fizeram <strong>de</strong><br />
forma empírica, no entanto iniciaram um processo <strong>de</strong> significação daquele objeto,<br />
pois agregaram a ele conhecimentos novos. A cada ativida<strong>de</strong> com os nomes das<br />
notas, sons ouvi<strong>do</strong>s, canta<strong>do</strong>s e toca<strong>do</strong>s por eles, estas se constituem em experiências<br />
musicais que possibilitarão a formação <strong>de</strong> conceitos musicais mais tar<strong>de</strong>. No<br />
caso <strong>do</strong> conhecimento musical, se as experiências <strong>de</strong> aprendizagem forem significativas<br />
servirão <strong>de</strong> base a construções futuras.<br />
Referências<br />
Battro, Antonio M. Dicionário Terminológico <strong>de</strong> Jean Piaget. São Paulo: Pioneira, 1978.<br />
Maffioletti, Leda <strong>de</strong> Albuquerque. Diferenciações e Integrações: o conhecimento novo na<br />
composição musical infantil. 2005. 279 f. Tese (Doutora<strong>do</strong> em Educação) - FACED,<br />
UFRGS, Porto Alegre, 2005.<br />
Ponso, Caroline Cao. Música em Diálogo: Ações Interdisciplinares na Educação Infantil. Porto<br />
Alegre: Sulina, 2008.<br />
Beyer, Esther. Os múltiplos <strong>de</strong>senvolvimentos cognitivo-musicais e sua influência sobre a<br />
educação musical. Revista da ABEM 2, jun. 1995, p. 53-67.<br />
Beyer, Esther. Os múltiplos caminhos da cognição musical: algumas reflexões sobre seu <strong>de</strong>senvolvimento<br />
na primeira infância. Revista da ABEM 3, n. 3. Salva<strong>do</strong>r, 1996, p. 9-16.<br />
Beyer, Esther. A reprodução e a produção musical em crianças: uma perspectiva cognitiva. In:<br />
Beyer, Esther (Org.). Música: pesquisa e conhecimento. Porto Alegre: NEA/CPGMús/<br />
UFRGS, 1996. p.69-81.<br />
Ca<strong>de</strong>rnos Pedagógicos 09 – Secretaria Municipal <strong>de</strong> Educação/ Porto Alegre/RS. Porto<br />
Alegre: Dezembro, 1996.<br />
Delval, Juan. Introdução à prática <strong>do</strong> Méto<strong>do</strong> Clínico: <strong>de</strong>scobrin<strong>do</strong> o pensamento das crianças.<br />
Porto Alegre: Artmed, 2002.<br />
Piaget, Jean, W. E. Beth e W. Mays. Epistemologia Genética e Pesquisa Psicológica. Rio <strong>de</strong> janeiro.<br />
Freitas Bastos, 1974.<br />
425
426<br />
Aprendizagem cooperativa: a diversida<strong>de</strong> como recurso<br />
facilita<strong>do</strong>r na aprendizagem <strong>do</strong> instrumento<br />
Tais Dantas<br />
tais.dantas@hotmail.com<br />
Simone Braga<br />
ssmmbraga@hotmail.com<br />
Marcus Rocha<br />
violinmus@bol.com.br<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia<br />
Resumo<br />
O presente trabalho <strong>de</strong>screve o produto <strong>de</strong> duas experiências no campo da educação musical<br />
que verificaram a possibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> uso da meto<strong>do</strong>logia da aprendizagem cooperativa como<br />
recurso facilita<strong>do</strong>r da aprendizagem <strong>do</strong> instrumento musical realizada em grupo. Na primeira<br />
experiência apresentada, realizada no Centro Estadual <strong>de</strong> Educação Profissional em<br />
Produção e Design localiza<strong>do</strong> em Salva<strong>do</strong>r, foram aplicadas, em paralelo às aulas tutorias,<br />
aulas complementares <strong>de</strong> caráter coletivo em que foram observa<strong>do</strong>s o <strong>de</strong>senvolvimento da<br />
percepção auditiva, o ouvi<strong>do</strong> polifônico, o reforço <strong>de</strong> princípios técnicos musculares, a ampliação<br />
<strong>de</strong> repertório proporcionadas através da interação entre pares. Como resulta<strong>do</strong> foi<br />
possível verificar: aceitação e reconhecimento da importância <strong>do</strong> colega no processo <strong>de</strong><br />
aprendizagem <strong>do</strong> instrumento, maior entrosamento e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> grupo<br />
entre os alunos. A segunda experiência relatada, foi observada no Colégio Adventista <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r<br />
em duas turmas <strong>do</strong> Ensino Fundamental II, cujos alunos participam das aulas <strong>de</strong> instrumentos<br />
<strong>de</strong> cordas friccionadas como uma das opções <strong>de</strong> linguagem artística oferecida na<br />
disciplina <strong>Artes</strong>. Nesta experiência, <strong>de</strong>ntre outras ativida<strong>de</strong>s, a resolução <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s como<br />
a leitura <strong>de</strong> novos trechos musicais, estu<strong>do</strong> compartilha<strong>do</strong> <strong>de</strong> peças trabalhadas em sala <strong>de</strong><br />
aula e a criação musical foram realizadas sob a perspectiva da utilização da colaboração como<br />
estratégia <strong>de</strong> ensino e aprendizagem. Observan<strong>do</strong>-se que além <strong>de</strong> promover maior interação<br />
entre os alunos, proporcionou maior eficácia no aprendiza<strong>do</strong> <strong>do</strong> instrumento musical.<br />
Palavras-chave<br />
Aprendizagem cooperativa, cognição musical, ensino instrumental.<br />
Aprendiza<strong>do</strong> Cooperativo:<br />
um recurso facilita<strong>do</strong>r da aprendizagem<br />
Diante da diversida<strong>de</strong> natural existente em qualquer sala <strong>de</strong> aula a aprendizagem<br />
cooperativa tem se mostra<strong>do</strong> um mecanismo extremamente útil para a gestão da<br />
sala <strong>de</strong> aula (Monereo e Gisbert 2005, 09). “A aprendizagem cooperativa é uma<br />
meto<strong>do</strong>logia que transforma a heterogeneida<strong>de</strong>, isto é, as diferenças entre alunos –<br />
que, logicamente, encontramos em qualquer grupo – em um elemento positivo que
facilita o aprendiza<strong>do</strong>. Na verda<strong>de</strong>, os méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> aprendizagem cooperativa não<br />
tiram parti<strong>do</strong> apenas das diferenças entre os alunos, mas muitas vezes precisam<br />
<strong>de</strong>las. A diversida<strong>de</strong>, inclusive a <strong>de</strong> níveis <strong>de</strong> conhecimento – que tanto incomoda<br />
o ensino tradicional e homogeneiza<strong>do</strong>r – é vista como algo positivo que favorece o<br />
trabalho <strong>do</strong>cente” (Monereo e Gisbert 2005, 09-10). De acor<strong>do</strong> com os autores a<br />
aprendizagem cooperativa utiliza a heterogeneida<strong>de</strong>, ou seja, as diferenças entre<br />
alunos como um elemento facilita<strong>do</strong>r <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong>. Além da diversida<strong>de</strong>, os níveis<br />
<strong>de</strong> conhecimento também favorecem o trabalho <strong>do</strong>cente. Segun<strong>do</strong> Nakagawa<br />
(2007), o Dr. Spencer Kagan foi um <strong>do</strong>s primeiros a estudar e utilizar a aprendizagem<br />
cooperativa, <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> uma abordagem estrutural constituída <strong>de</strong> criação,<br />
análise e aplicação sistemática <strong>de</strong> aproximadamente duzentas estruturas. Estas estruturas<br />
são ativida<strong>de</strong>s aplicadas por meio da interação e po<strong>de</strong>m ser utilizadas em<br />
diversos momentos da aula, em diferentes séries e disciplinas, fazen<strong>do</strong> com que também<br />
se tornem a<strong>de</strong>quadas às aulas <strong>de</strong> música. Ao professor cabe a tarefa <strong>de</strong> escolher<br />
a mais a<strong>de</strong>quada para a situação <strong>de</strong> aula e integrá-la ao seu conteú<strong>do</strong>. A aprendizagem<br />
cooperativa visa a construção da responsabilida<strong>de</strong> individual, li<strong>de</strong>rança compartilhada,<br />
interação entre alunos e professor, responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> grupo,<br />
inter<strong>de</strong>pendência entre alunos e a auto-reflexão grupal, contribuin<strong>do</strong> para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>do</strong>s alunos.<br />
É natural que numa sala <strong>de</strong> aula a cooperação entre alunos ocorra, mesmo que não<br />
seja uma estratégia direcionada para a aquisição <strong>de</strong> conhecimento. Numa classe <strong>de</strong><br />
ensino coletivo <strong>de</strong> instrumentos, pó exemplo, isso po<strong>de</strong> ser observa<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> um<br />
aluno tenta ajudar o outro corrigin<strong>do</strong> notas, postura e afinação. Contu<strong>do</strong>, a aprendizagem<br />
cooperativa <strong>de</strong>ve ser pensada, direcionada e supervisionada pelo professor<br />
em momentos específicos, “como uma entre outras meto<strong>do</strong>logias, o corpo<br />
<strong>do</strong>cente <strong>de</strong>ve conhecê-la profundamente para utilizá-la <strong>de</strong> forma estratégica, isto é,<br />
em função <strong>do</strong>s objetivos que se propõe a trabalhar e das condições e necessida<strong>de</strong>s<br />
<strong>do</strong>s alunos” (Monereo e Gisbert 2005, 10). No ensino coletivo a aplicação da aprendizagem<br />
cooperativa é condicionada muitas vezes pelo tipo <strong>de</strong> dinâmica aplicada em<br />
sala <strong>de</strong> aula. Umas das formas <strong>de</strong> sua utilização, por exemplo, é a formação <strong>de</strong> pequenos<br />
grupos <strong>de</strong> alunos, on<strong>de</strong> a resolução <strong>de</strong> uma tarefa por um grupo <strong>de</strong> alunos<br />
é proposta pelo professor, como será exposto mais a diante na <strong>de</strong>scrição das experiências.<br />
Contu<strong>do</strong>, a prática educacional <strong>de</strong>monstra que a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r da forma como<br />
a aula é <strong>de</strong>senvolvida pelo professor este recurso fica bastante limita<strong>do</strong>. Muitas vezes<br />
o professor não assume o papel <strong>de</strong> media<strong>do</strong>r, colocan<strong>do</strong>-se à frente <strong>do</strong> grupo <strong>de</strong><br />
forma autoritária ao fornecer instruções e passar informações aos alunos, e a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r<br />
<strong>do</strong> grau em que os alunos estão envolvi<strong>do</strong>s e concentra<strong>do</strong>s, torna-se inviável a<br />
aplicação da aprendizagem colaborativa. “A implementação <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo cooperativo<br />
pressupõe a criação, análise e aplicação sistemática <strong>de</strong> estruturas ou formas<br />
<strong>de</strong> organização da sala <strong>de</strong> aula que favoreçam a interação social, não se restringin<strong>do</strong><br />
427
428<br />
assim, a uma simples disposição <strong>do</strong>s estudantes em grupo. Essas estruturas garantem<br />
um conjunto <strong>de</strong> procedimentos que promovem a interativida<strong>de</strong> entre os estudantes,<br />
permitin<strong>do</strong> que alcancem mais facilmente os objetivos propostos” (Kagan<br />
1990, apud, Meneses, Barbosa e Jófili, 2007, 52).<br />
Monereo e Gisbert chamam a atenção para o fato <strong>de</strong> que a utilização <strong>de</strong>ste recurso<br />
didático ganhou corpo com a reforma educacional, uma vez que até então a transmissão<br />
<strong>de</strong> conhecimento era pre<strong>do</strong>minantemente realizada através das interações<br />
professor-aluno. “A a<strong>do</strong>ção da concepção construtivista <strong>do</strong> ensino e da aprendizagem,<br />
em que se fundamenta o atual sistema educacional, provocou a consi<strong>de</strong>ração<br />
educativa das interações que ocorrem nas salas <strong>de</strong> aula entre alunos. Ao afirmar que<br />
o/a aluno/a constrói seu próprio conhecimento a partir <strong>de</strong> um processo interativo,<br />
no qual o papel <strong>do</strong>/a professor/a é mediar entre o/a aluno/a e os conteú<strong>do</strong>s, o construtivismo<br />
sugere a possibilida<strong>de</strong> em que, em <strong>de</strong>terminadas circunstâncias, os alunos<br />
possam ser protagonistas <strong>de</strong>sse papel media<strong>do</strong>r. Os alunos também apren<strong>de</strong>m<br />
uns com os outros” (Monereo e Gisbert 2005, 11).<br />
A transmissão <strong>de</strong> conhecimentos através da interação é proporcionada, muitas vezes,<br />
pela semelhança linguagem utilizada entre os estudantes, os alunos “falam a mesma<br />
língua”. E o que <strong>de</strong>termina o resulta<strong>do</strong> cognitivo po<strong>de</strong> ser simplesmente a forma<br />
como os alunos se comunicam, como transmitem a informação, como se interpretam<br />
e como explicam um ao outro. Alia<strong>do</strong> a estes fatores, <strong>de</strong>staca-se o fato <strong>de</strong> os<br />
alunos po<strong>de</strong>m estar operan<strong>do</strong> na mesma Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal –<br />
ZDP. Este conceito proposto por Vygotsky refere-se a uma zona entre o <strong>de</strong>sempenho<br />
real, ou seja, aquela em que o indivíduo é capaz <strong>de</strong> solucionar <strong>de</strong>termina<strong>do</strong><br />
problema sem auxilio <strong>de</strong> terceiros, e o <strong>de</strong>sempenho potencial alcança<strong>do</strong> através da<br />
intervenção <strong>de</strong> uma pessoa mais capacitada, <strong>de</strong>terminan<strong>do</strong> a mudança <strong>do</strong> nível <strong>de</strong><br />
conhecimento. Corroboran<strong>do</strong> essa idéia Woolfolk (2005, 57) afirma que “às vezes<br />
o melhor professor é outro aluno que acaba <strong>de</strong> resolver o problema, porque ele está<br />
operan<strong>do</strong> na mesma zona <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento proximal <strong>do</strong> aprendiz”.<br />
Po<strong>de</strong>-se observar, constantemente, que o nível <strong>de</strong> interação aluno-aluno é maior<br />
que entre aluno e professor, e se dá pelo fato <strong>de</strong> que os alunos se <strong>de</strong>sinibem mais<br />
entre si. Mas, usufruir da aprendizagem cooperativa não significa apenas <strong>de</strong>ixar que<br />
os alunos explorem essa interação. Ao professor cabe o papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar responsabilida<strong>de</strong>s<br />
e os papeis a serem <strong>de</strong>sempenha<strong>do</strong>s. Como exemplo, a cooperação<br />
entre pares, aplicada numa aula coletiva <strong>de</strong> instrumento <strong>de</strong> cordas, po<strong>de</strong> ser proporcionada<br />
na utilização <strong>de</strong> um repertório que permita a participação <strong>de</strong> alunos <strong>de</strong><br />
diversos níveis na mesma aula, e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> da dinâmica utilizada, o professor po<strong>de</strong>rá<br />
propor uma ativida<strong>de</strong> que contemple a cooperação, solicitan<strong>do</strong> que um aluno<br />
mais avança<strong>do</strong> auxilie outro aluno na execução <strong>de</strong> um trecho musical que esse já<br />
conheça e saiba como fazer, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> auxiliar no entendimento <strong>de</strong> ritmos, <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong>s,<br />
mudança <strong>de</strong> posição, e outros.
Outra proposta <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> musical que se apropria <strong>de</strong> maneira eficiente da cooperação<br />
é a criação (composição <strong>de</strong> trechos musicais). Esta ativida<strong>de</strong> pressupõe, em<br />
primeiro lugar, que os alunos tenham conhecimento suficiente para <strong>de</strong>senvolver a<br />
tarefa proposta e, a partir da divisão <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>s entre os alunos e através<br />
<strong>de</strong> um auxílio mútuo, é possível que a cooperação entre ambos proporcione resulta<strong>do</strong>s<br />
positivos na aquisição <strong>de</strong> conhecimentos. Algumas pesquisas têm <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong><br />
a eficácia da aprendizagem cooperativa nesse tipo <strong>de</strong> situação, a respeito <strong>de</strong><br />
John (2006) que <strong>de</strong>staca o papel fundamental da colaboração em experiências <strong>de</strong><br />
aprendizagem com ativida<strong>de</strong>s musicais <strong>de</strong> composição.<br />
Outras pesquisas sobre a aprendizagem cooperativa foram realizadas no campo da<br />
música, a respeito <strong>de</strong> Mac<strong>do</strong>nald, Miell e Mitchell (2002) investigaram os efeitos<br />
das relações <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> e <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> em ativida<strong>de</strong>s musicais realizadas <strong>de</strong> forma colaborativa.<br />
A relevância da cooperação foi verificada em muitos <strong>do</strong>s momentos<br />
<strong>de</strong>sta pesquisa quan<strong>do</strong> se pô<strong>de</strong> observar, na prática, nas aulas realizadas no Colégio<br />
Adventista <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r a aplicação <strong>de</strong>ste recurso durante as aulas <strong>de</strong> instrumentos<br />
cordas e no Centro Estadual <strong>de</strong> Educação Profissional em Produção e Design na<br />
disciplina Instrumento, que são expostas a seguir.<br />
Experiência 1<br />
A experiência foi <strong>de</strong>senvolvida no Centro Estadual <strong>de</strong> Educação Profissional em<br />
Produção e Design, localiza<strong>do</strong> em Salva<strong>do</strong>r. O centro oferece três cursos profissionais<br />
<strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s a a<strong>do</strong>lescentes e jovens: artes visuais, <strong>do</strong>cumentação musical e técnico<br />
em instrumento. A experiência, realizada no curso técnico na disciplina<br />
instrumento (tecla<strong>do</strong>), foi dirigida aos iniciantes na prática instrumental, sem ou<br />
com pouca experiência prévia <strong>do</strong> instrumento tecla<strong>do</strong>.<br />
As aulas, inicialmente, eram realizadas em caráter tutorial. Entretanto, verificou-se<br />
que alguns fatores dificultavam o seu <strong>de</strong>senvolvimento como a falta <strong>do</strong> instrumento<br />
para o treino <strong>do</strong>miciliar, por parte <strong>de</strong> alguns alunos, e a dificulda<strong>de</strong> inicial da aprendizagem<br />
<strong>do</strong> instrumento, por parte <strong>de</strong> outros. Todavia, o que mais comprometia o<br />
processo <strong>de</strong> ensino-aprendizagem foi i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>, pelos próprios alunos, como<br />
sen<strong>do</strong> a solidão. A ausência <strong>de</strong> espaços que promovessem a partilha <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s<br />
e troca <strong>de</strong> experiências, nesta fase inicial <strong>do</strong> ensino instrumental, foi intensificada<br />
pela matriz curricular em vigor. Em virtu<strong>de</strong> das mudanças administrativas e organizacionais<br />
<strong>do</strong> curso, foram necessárias algumas adaptações como a troca <strong>do</strong> nome<br />
da escola, a relaboração da proposta pedagógica, mudança <strong>do</strong> currículo e o acréscimo<br />
<strong>do</strong>s cursos artes visuais e <strong>do</strong>cumentação musical. Desta forma, as disciplinas<br />
canto coral e prática em conjunto, que oportunizavam o fazer musical coletivo,<br />
foram eliminadas. Consequentemente, a possibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s<br />
musicais através da prática coletiva, como percepção auditiva, ouvi<strong>do</strong> polifônico,<br />
contextualização <strong>de</strong> conteú<strong>do</strong>s teóricos musicais, foram dificultadas.<br />
Segun<strong>do</strong> a concepção filosófica-pedagógica <strong>de</strong> Swanwick (2003), tais habilida<strong>de</strong>s<br />
429
430<br />
<strong>de</strong>vem estar presentes na formação.<br />
De acor<strong>do</strong> com Swanwick (2003), o ensino musical <strong>de</strong>verá promover o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> experiências musicais variadas para oportunizar o contato musical em<br />
sua totalida<strong>de</strong>. O autor apresenta um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> C. (L). A. (S). P, traduzi<strong>do</strong><br />
pelas educa<strong>do</strong>ras Alda Oliveira e Liane Hentschke para T.E.C.L.A. No mo<strong>de</strong>lo<br />
as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> apreciação, composição e execução, são consi<strong>de</strong>radas centrais<br />
por promoverem o fazer musical, a ser consolida<strong>do</strong> pelas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> técnica e literatura.<br />
Assim, ouvir, tocar e criar, <strong>de</strong>vem ser <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s equilibradamente. Enquanto<br />
que o conhecimento <strong>do</strong> repertório, a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> estilo, forma,<br />
tonalida<strong>de</strong>, entre outros, <strong>de</strong>verão fundamentar as ativida<strong>de</strong>s anteriores, assim como<br />
a abordagem técnica na execução <strong>do</strong> instrumento.<br />
Esta concepção <strong>de</strong> formação musical reforça a necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento das<br />
habilida<strong>de</strong>s citadas anteriormente: percepção auditiva, ouvi<strong>do</strong> polifônico, contextualização<br />
<strong>de</strong> conteú<strong>do</strong>s teóricos musicais. Ao comparar com o mo<strong>de</strong>lo, a percepção<br />
auditiva e o ouvi<strong>do</strong> polifônico promoveria a apreciação e a contextualização <strong>de</strong><br />
conteú<strong>do</strong>s, representaria a literatura, complementos para a execução. Mas como<br />
<strong>de</strong>senvolvê-las na estrutura <strong>do</strong> curso?<br />
Além <strong>de</strong>sta lacuna quanto a formação musical, os espaços para promoção da interações<br />
entre os alunos não eram oportuniza<strong>do</strong>s. Apesar das disciplinas teóricas<br />
serem ministradas coletivamente, não havia condições temporais para a promoção<br />
da partilha das expectativas, anseios e dificulda<strong>de</strong>s referentes à prática instrumental<br />
entre os alunos. Com o objetivo <strong>de</strong> oportunizar experiências da prática em grupo,<br />
o <strong>de</strong>senvolvimento da percepção auditiva, o ouvi<strong>do</strong> polifônico, o reforço <strong>de</strong> princípios<br />
técnicos musculares, a ampliação <strong>de</strong> repertório e a interação entre pares,<br />
foram aplicadas, em paralelo às aulas tutorias, aulas complementares em caráter coletivo.<br />
Estes objetivos também po<strong>de</strong>m ser atingi<strong>do</strong>s em aulas coletivas individuais,<br />
todavia, a interação entre pares foi a ferramenta pedagógica utilizada nesta situação,<br />
para <strong>de</strong>spertar a motivação na iniciação musical.<br />
Para tanto, foi elabora<strong>do</strong> o Projeto Conjunto <strong>de</strong> Tecla<strong>do</strong>s, extensivo as aulas <strong>do</strong>s<br />
alunos <strong>do</strong> 1º ano A. Os recursos disponíveis para a realização foram tecla<strong>do</strong>s e fones<br />
<strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>s para a execução instrumental simultânea. Para alcançar os objetivos, cita<strong>do</strong>s<br />
acima, as aulas foram planejadas segun<strong>do</strong> princípios da aprendizagem cooperativa,<br />
com a freqüência quinzenal, às sextas-feiras das 12h às 13:30h. O horário<br />
foi estabeleci<strong>do</strong> pela disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tempo <strong>do</strong>s alunos participantes. Estes, por<br />
sua vez, após apresentação <strong>do</strong> projeto, foram convida<strong>do</strong>s a a<strong>de</strong>são a ativida<strong>de</strong>. Inicialmente,<br />
o projeto contou com a participação <strong>de</strong> 70% <strong>do</strong>s alunos, posteriormente<br />
a a<strong>de</strong>são foi <strong>de</strong> 80% <strong>do</strong>s alunos e no final, contava com a a<strong>de</strong>são <strong>de</strong> 90% <strong>do</strong>s alunos.<br />
Na culminância <strong>do</strong> projeto foi realizada uma aula pública para a comunida<strong>de</strong> escolar.<br />
O projeto centrou-se em arranjos para o instrumento tecla<strong>do</strong> e peças das aulas tutoriais,<br />
para proporcionar a participação <strong>de</strong> alunos em diferentes níveis. As peças ex-
traídas da aula tutorial apresentaram pouco grau <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong> para que to<strong>do</strong>s, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />
da habilida<strong>de</strong> técnica, pu<strong>de</strong>ssem executar. Por meio <strong>de</strong>sta execução,<br />
os pares serviram <strong>de</strong> referência para estabelecer troca <strong>de</strong> informações e experiências.<br />
Observar, comparar e verbalizar esta análise motivou o <strong>de</strong>senvolvimento da<br />
auto-avaliação <strong>do</strong>s alunos. Enquanto isso, nos arranjos para o conjunto as diferenças<br />
<strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s técnicas foram valorizadas. Todavia, a junção da parte <strong>de</strong> cada<br />
participante é que proporcionava a beleza <strong>do</strong> arranjo e a importância <strong>do</strong> fazer musical<br />
em grupo. Além <strong>de</strong>ste repertório foram aborda<strong>do</strong>s padrões <strong>de</strong> acompanhamento,<br />
escalas e exercícios técnicos para sanar dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>tectadas nas peças<br />
executadas, conforme <strong>de</strong>scrição das ativida<strong>de</strong>s abaixo:<br />
Desenvolvimento da percepção auditiva<br />
Foram propostas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> escuta entre os alunos através da apreciação da execução<br />
individualizada e em grupo. Nesta ativida<strong>de</strong> os recursos <strong>do</strong> tecla<strong>do</strong> foram explora<strong>do</strong>s<br />
para seleção <strong>de</strong> timbres, ritmo e padrões para acompanhamento. Neste<br />
processo <strong>de</strong> seleção promoveu-se a discussão acerca das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> utilização<br />
<strong>de</strong>stes recursos, sempre pauta<strong>do</strong>s no ouvir.<br />
Desenvolvimento <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong> polifônico<br />
Com o objetivo <strong>de</strong> complementar a ativida<strong>de</strong> anterior, os exercícios realiza<strong>do</strong>s em<br />
conjunto <strong>de</strong>stacaram o ouvir na produção coletiva. Foram abordadas a equalização<br />
da intensida<strong>de</strong> entre solo e o acompanhamento, a criação <strong>de</strong> frases melódicas para<br />
inserção no repertório e a execução <strong>de</strong> progressões harmônicas para acompanhar as<br />
melodias executadas.<br />
O reforço <strong>de</strong> princípios técnicos musculares<br />
Durante a realização <strong>do</strong> projeto, toda a execução dialogava com os aspectos técnicos<br />
musculares. É interessante reforçar que a observação e a contextualização <strong>de</strong><br />
tais informações foi realizada pela <strong>do</strong>cente e também pelos alunos.<br />
A ampliação <strong>de</strong> repertório<br />
A a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> uma única peça a ser executada individualmente, somada ao repertório<br />
para o grupo, contribuiu para a motivação em relação ao repertório. Através da<br />
motivação, os alunos trocavam peças extracurriculares entre si e esta troca permitiu<br />
a ampliação <strong>do</strong> repertório <strong>de</strong> cada participante.<br />
Resulta<strong>do</strong>s observa<strong>do</strong>s<br />
Em todas as ativida<strong>de</strong>s buscou-se <strong>de</strong>senvolver a troca e construção <strong>de</strong> conhecimentos<br />
musicais através da interação entre pares, e com esta estratégia a realização<br />
<strong>do</strong> projeto atingiu o objetivo proposto. Verificou-se maior <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong>s<br />
alunos acerca <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cunho técnico, articulação da execução com as-<br />
431
432<br />
pectos técnicos, ampliação <strong>do</strong> repertório <strong>de</strong> peças instrumentais, criação <strong>de</strong> espaço<br />
para a construção <strong>do</strong> conhecimento coletivamente, reforço <strong>do</strong> senso crítico quanto<br />
a execução musical e audição. A interação promoveu e oportunizou a construção<br />
coletiva <strong>de</strong> conhecimentos musicais estreitan<strong>do</strong> relacionamento entre pares, aniquilan<strong>do</strong><br />
com o fator solidão.<br />
Experiência 2<br />
Em uma aula <strong>de</strong> música dialógica, participativa, num ambiente coletivo é impossível<br />
um professor manter uma postura centraliza<strong>do</strong>ra em que <strong>de</strong>tém, em to<strong>do</strong>s os<br />
momentos, a atenção <strong>do</strong>s alunos voltada para si como se ele fosse o único possui<strong>do</strong>r<br />
<strong>do</strong> direito <strong>de</strong> ensinar, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> da colaboração <strong>do</strong>s participantes da aula.<br />
Uma aula é mais prazerosa, para os alunos e também para o professor, quan<strong>do</strong> existe<br />
a chance <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s participarem dan<strong>do</strong> contribuições que aju<strong>de</strong>m na compreensão<br />
<strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> e torne mais fácil a aquisição <strong>do</strong> conhecimento, influencian<strong>do</strong> no <strong>de</strong>senvolvimento<br />
positivo da aula, ou seja, que traga benefícios tanto para os alunos<br />
quanto para o professor.<br />
Foi com este pensamento <strong>de</strong> participação, contribuição e prazer que aconteceram<br />
as aulas <strong>de</strong> música com os alunos da 5ª série <strong>do</strong> ensino fundamental na Escola Adventista<br />
<strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r. Aulas coletivas <strong>de</strong> instrumentos <strong>de</strong> cordas são ofertadas aos<br />
alunos interessa<strong>do</strong>s em participar das aulas <strong>de</strong> música, e que seleciona<strong>do</strong>s por meio<br />
<strong>de</strong> uma avaliação, caso a procura seja maior que o número <strong>de</strong> vagas. Ao ingressarem,<br />
os alunos não participam da matéria <strong>Artes</strong> utilizan<strong>do</strong> o horário para as aulas <strong>de</strong><br />
Música. As aulas não eram voltadas inteiramente ao aprendiza<strong>do</strong> <strong>do</strong> instrumento,<br />
sobretu<strong>do</strong> objetivava o <strong>de</strong>senvolvimento musical integral <strong>do</strong>s alunos. O objetivo<br />
geral era propiciar o aprendiza<strong>do</strong> musical que favorecesse a apreciação, a criativida<strong>de</strong><br />
e a execução instrumental e especificamente alguns objetivos como vivência <strong>de</strong> elementos<br />
sonoros, percepção <strong>do</strong> corpo como produtor <strong>de</strong> som, interpretação <strong>de</strong> gráficos<br />
sonoros, execução <strong>de</strong> diferentes instrumentos musicais e materiais sonoros,<br />
entre outros.<br />
A carga horária semanal correspondia a quatro horas/aula distribuídas em <strong>do</strong>is encontros.<br />
No primeiro encontro semanal, com duas horas aula <strong>de</strong> 45 minutos cada,<br />
to<strong>do</strong> o grupo era envolvi<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> era trabalha<strong>do</strong> o conhecimento geral <strong>do</strong> instrumento,<br />
vivências, ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> composição, apreciação, percepção e a integração social.<br />
No segun<strong>do</strong> encontro, também com duas horas/aula, a turma era dividida em<br />
pequenos grupos <strong>de</strong> <strong>do</strong>is a quatro alunos, separa<strong>do</strong>s em ambientes diferentes, on<strong>de</strong>,<br />
além <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong> peculiar <strong>de</strong> cada instrumento, era proposta a resolução das<br />
seguintes ativida<strong>de</strong>s: leitura <strong>de</strong> novos trechos musicais, estu<strong>do</strong> compartilha<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
peças trabalhadas em sala <strong>de</strong> aula e a criação musical.<br />
No início das aulas, o acolhimento <strong>do</strong>s alunos era sempre marca<strong>do</strong> por uma ativida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> integração. Um <strong>do</strong>s objetivos era trazer a concentração <strong>do</strong>s alunos para o
ambiente da aula <strong>de</strong> música, dissipan<strong>do</strong> <strong>de</strong> suas mentes pensamentos <strong>de</strong> outros fazeres<br />
que viessem tirar sua atenção ou <strong>de</strong>ixá-los dispersos. Quan<strong>do</strong> os alunos entravam<br />
na sala já tinha uma música sen<strong>do</strong> tocada no aparelho <strong>de</strong> som, que na<br />
maioria das vezes seria usada na ativida<strong>de</strong> ou possuía elementos que seriam enfatiza<strong>do</strong>s<br />
no <strong>de</strong>correr da aula. As ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> integração eram realizadas nos encontros<br />
que envolviam to<strong>do</strong> o grupo e eram pensadas <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> os objetivos propostos<br />
para a aula.<br />
Como exemplo <strong>de</strong> uma das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> integração, os alunos eram dispostos em<br />
formato <strong>de</strong> círculo, <strong>de</strong> mãos dadas e ouvin<strong>do</strong> uma música, cirandavam para um<br />
la<strong>do</strong> e para o outro <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> a indicação <strong>do</strong> professor. Em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> momento<br />
dividiam-se em pares e continuavam a ciranda. Por várias vezes os pares eram <strong>de</strong>sfeitos<br />
e novos pares forma<strong>do</strong>s até que, finalmente, voltaram à formação inicial, com<br />
to<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mãos dadas. Era muito interessante observar que nessa ativida<strong>de</strong>, na formação<br />
<strong>de</strong> pares, com a velocida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s acontecimentos nenhum aluno queria ficar<br />
sozinho aceitan<strong>do</strong> <strong>de</strong> bom gra<strong>do</strong> o colega com quem formou par, sen<strong>do</strong> evitadas,<br />
assim, escolhas individuais. A realização <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s tinha como objetivo<br />
maior <strong>de</strong>senvolver a percepção <strong>do</strong>s alunos quanto à importância <strong>do</strong> outro no<br />
<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> tarefas compartilhadas, e consequentemente preparan<strong>do</strong>-os<br />
para ativida<strong>de</strong>s subseqüentes que envolvessem a cooperação.<br />
Vivência <strong>de</strong> Elementos Sonoros<br />
Essas ativida<strong>de</strong>s possuíam como propósito tornar o aluno competente para observar<br />
o som e distinguir seus atributos, comparan<strong>do</strong>, relacionan<strong>do</strong> e julgan<strong>do</strong> entre<br />
um e outro som e, por fim, elaborar conceitos individuais e coletivos sobre os aspectos<br />
sonoros. Nestas ativida<strong>de</strong>s era introduzida a leitura <strong>de</strong> gráficos e, posteriormente,<br />
feita a conexão com a escrita musical. Para sua realização os alunos ficavam<br />
em círculo, em pé ou senta<strong>do</strong>s, e eram usa<strong>do</strong>s instrumentos <strong>de</strong> percussão, objetos<br />
sonoros e o corpo.<br />
Numa <strong>de</strong>ssas vivências os alunos <strong>de</strong>veriam acompanhar gráficos <strong>de</strong> altura <strong>de</strong>senha<strong>do</strong>s<br />
na lousa, executan<strong>do</strong> com um agogô. Antes passaram pelo processo <strong>de</strong> conhecimento<br />
<strong>do</strong> instrumento e i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong>s sons retira<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is cones, som<br />
grave e agu<strong>do</strong>. Cantaram esses sons para que pu<strong>de</strong>ssem perceber melhor a diferença<br />
entre eles e assim se prepararam para a interpretação <strong>do</strong> gráfico com o instrumento.<br />
Foram apresenta<strong>do</strong>s vários gráficos e cada aluno interpretaria um. A ativida<strong>de</strong> começou<br />
e no seu <strong>de</strong>correr alguns alunos não conseguiam executar o gráfico. Ven<strong>do</strong><br />
esta dificulda<strong>de</strong>, alguns colegas manifestaram interesse em ajudá-los espontaneamente.<br />
Propon<strong>do</strong> a eles que observassem melhor como alguns estavam fazen<strong>do</strong>, e<br />
enquanto os colegas faziam davam-lhe explicações. Com a observação da execução<br />
e explicação <strong>do</strong>s colegas aqueles alunos que apresentaram dificulda<strong>de</strong>s na execução<br />
da tarefa conseguiram, por fim, compreen<strong>de</strong>r como era realizada a tarefa. Neste<br />
433
434<br />
caso, o professor, perceben<strong>do</strong> que os alunos com dificulda<strong>de</strong> não se colocaram contrários<br />
à colaboração <strong>do</strong>s colegas, <strong>de</strong>ixou que eles se enten<strong>de</strong>ssem, pois dali po<strong>de</strong>ria<br />
sair o precioso resulta<strong>do</strong> da cooperação.<br />
Criação Musical<br />
As ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> criação musical eram voltadas para a composição <strong>de</strong> ritmos e melodias,<br />
pelos próprios alunos, visan<strong>do</strong> colocar em prática conhecimentos musicais<br />
adquiri<strong>do</strong>s até aquele momento, levan<strong>do</strong>-os a se <strong>de</strong>parar com as dificulda<strong>de</strong>s da escrita<br />
e a superá-las através da busca <strong>de</strong> soluções e aplicação <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> estuda<strong>do</strong>.<br />
Para fazer com que o processo produtivo fosse acelera<strong>do</strong>, e os objetivos não se per<strong>de</strong>ssem<br />
no tempo, tolhen<strong>do</strong> a capacida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra por excesso <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s ou <strong>de</strong>longamento<br />
<strong>de</strong> prazos, as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> criação musical eram aplicadas em semanas<br />
em que as duas aulas fossem realizadas sem a interferência <strong>de</strong> feria<strong>do</strong>s ou outras<br />
programações da própria escola, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-se aproveitar os <strong>do</strong>is encontros semanais<br />
para realizar a ativida<strong>de</strong>s.<br />
Foi pedi<strong>do</strong> aos alunos que, cada um, compusesse uma melodia <strong>de</strong> oito compassos,<br />
dividida em duas frases <strong>de</strong> quatro compassos. Algumas regras <strong>de</strong>veriam ser seguidas<br />
para dar senti<strong>do</strong> à melodia e facilitar a composição: a primeira e a última nota das<br />
frases eram <strong>de</strong>finidas pelo professor; a tessitura <strong>de</strong>veria estar <strong>de</strong>ntro oitava conhecida<br />
por eles; somente <strong>de</strong>veria escrever, rítmico e melodicamente, o que conseguiria<br />
tocar. Nestas ativida<strong>de</strong>s era proporcionada aos alunos total liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong><br />
procedimento <strong>de</strong> criação, para que os mesmos se ajudassem. Assim, apesar <strong>do</strong> professor<br />
estar acompanhan<strong>do</strong> e tiran<strong>do</strong> as dúvidas, os alunos não ficavam sozinhos<br />
nos seus lugares, se agrupavam, dialogavam, viam o que o outro estava fazen<strong>do</strong>, tiravam<br />
dúvidas, consertavam o que estava diferente e se dispunham positivamente<br />
no intuito <strong>de</strong> ajudar. Na apresentação da ativida<strong>de</strong>, quan<strong>do</strong> cada um tocaria a sua<br />
composição, que durante o processo <strong>de</strong> criação foi sen<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvida com a colaboração<br />
entre alunos. Alguns se candidataram para serem os apresenta<strong>do</strong>res <strong>do</strong> programa<br />
e os <strong>de</strong>mais se colocaram como platéia motivan<strong>do</strong> os executantes,<br />
perceben<strong>do</strong> sua importante participação no processo <strong>de</strong> realização conjunta da ativida<strong>de</strong>.<br />
Como resulta<strong>do</strong>s foram observa<strong>do</strong>s uma aceleração na efetivação <strong>de</strong> resulta<strong>do</strong>s<br />
durante realização da tarefa, o envolvimento na resolução <strong>de</strong> problemas, a<br />
participação efetiva entre alunos no processo <strong>de</strong> criação, e o reconhecimento <strong>do</strong><br />
papel <strong>do</strong> outro no processo <strong>de</strong> aprendizagem.<br />
Estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> Instrumento<br />
O aprendiza<strong>do</strong> <strong>do</strong> instrumento era realiza<strong>do</strong> nos <strong>do</strong>is encontros semanais. No primeiro<br />
encontro o estu<strong>do</strong> abrangia um caráter geral, on<strong>de</strong> eram trabalha<strong>do</strong>s conjuntamente<br />
os quatro instrumentos forma<strong>do</strong>res da orquestra <strong>de</strong> cordas. No<br />
segun<strong>do</strong> encontro se buscava trabalhar as especificida<strong>de</strong>s técnicas <strong>do</strong>s instrumen-
tos, on<strong>de</strong> o grupo era separa<strong>do</strong> por naipe.<br />
Tanto em um como no outro encontro havia <strong>do</strong>is momentos. Um em que o professor<br />
atuava explican<strong>do</strong>, corrigin<strong>do</strong>, ensinan<strong>do</strong>, regen<strong>do</strong> e orientan<strong>do</strong> no que <strong>de</strong>veria<br />
ser feito e outro em que, presente ou não, <strong>de</strong>ixava os alunos interagirem e<br />
resolverem os problemas <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong> trocan<strong>do</strong> idéias, tocan<strong>do</strong> juntos, estudan<strong>do</strong><br />
as lições, as novas melodias, o trecho musical difícil, a arcada, o <strong>de</strong>dilha<strong>do</strong> e<br />
a afinação. Era neste segun<strong>do</strong> momento que a colaboração entre eles acontecia plenamente<br />
trazen<strong>do</strong> resulta<strong>do</strong>s favoráveis ao <strong>de</strong>senvolvimento musical.<br />
Refletin<strong>do</strong> sobre as ativida<strong>de</strong>s<br />
Em to<strong>do</strong>s os finais <strong>de</strong> aula fazia-se uma reflexão sobre os acontecimentos a ela relaciona<strong>do</strong>s.<br />
O diálogo era o meio usa<strong>do</strong> para que o aluno refletisse sobre esses acontecimentos<br />
e sobre suas ações, tanto para lembrar o que foi estuda<strong>do</strong> transmitin<strong>do</strong><br />
e o que tinha aprendi<strong>do</strong>, quanto para fazer avaliação <strong>do</strong> seu comportamento, da<br />
sua atuação nas ativida<strong>de</strong>s realizadas, da disciplina e <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>. Na reflexão<br />
cada um ficava saben<strong>do</strong> o que o outro pensava e podia verificar que as facilida<strong>de</strong>s<br />
e dificulda<strong>de</strong>s eram inerentes a to<strong>do</strong>s, com isso sentiam-se mais recíprocos e<br />
se auto-ajudavam visan<strong>do</strong> melhorar a aquisição <strong>de</strong> conhecimentos. A reflexão levava<br />
o aluno a perceber que ele era importante e que suas opiniões tinham valor, pois alguém<br />
queria escutá-lo e saber o que tinha a dizer, proporciona<strong>do</strong> mais segurança e<br />
proximida<strong>de</strong> com os colegas e com o professor.<br />
Consi<strong>de</strong>rações<br />
A educação musical, além proporcionar a criação <strong>de</strong> ambientes interdisciplinares<br />
contribuin<strong>do</strong> para a formação integral <strong>do</strong> indivíduo, representa um fator significativo<br />
no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> comportamento social A aprendizagem cooperativa<br />
é um recurso didático aplica<strong>do</strong> a um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> grupo <strong>de</strong> alunos que se une em<br />
torno da resolução <strong>de</strong> uma tarefa comum. A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reunir diversos alunos<br />
que apren<strong>de</strong>m um instrumento musical <strong>de</strong>ve ser aproveitada pelo professor para<br />
favorecer sua prática pedagógica, em vez <strong>de</strong> evitar que os alunos se comuniquem e<br />
interajam, <strong>de</strong>ve tirar proveito da situação <strong>de</strong> forma consciente e planejada, acarretan<strong>do</strong><br />
em importantes ganhos para a cognição musical.<br />
Dantas (2010) verificou através <strong>de</strong> uma pesquisa realizada com um grupo <strong>de</strong> professores<br />
e alunos <strong>do</strong> ensino coletivo que este recurso é muito pouco usa<strong>do</strong> pelos<br />
professores, e muitas vezes não é bem interpreta<strong>do</strong>, existe certa confusão em torno<br />
da <strong>de</strong>finição da aprendizagem cooperativa, muitas vezes o ato <strong>de</strong> cooperar acaba<br />
sen<strong>do</strong> confundi<strong>do</strong> como uma simples colaboração em sala <strong>de</strong> aula, como organizar<br />
a classe e não incomodar o colega, por exemplo. De acor<strong>do</strong> com a investigação realizada<br />
em sua pesquisa, existe uma gran<strong>de</strong> aceitação por parte <strong>do</strong>s alunos na aplicação<br />
<strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong> cooperativo durante as aulas <strong>de</strong> instrumento com a realização<br />
435
436<br />
<strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s musicais envolven<strong>do</strong> a cooperação e a colaboração. Destacan<strong>do</strong> em especial<br />
o seguinte fato: os alunos <strong>de</strong>monstram reconhecer a importância <strong>do</strong> outro no<br />
seu processo <strong>de</strong> aprendizagem.<br />
É preciso salientar que <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a sua importância, as pesquisas sobre aprendizagem<br />
cooperativa no âmbito <strong>do</strong> ensino <strong>de</strong> música ainda requerem maior aprofundamento.<br />
Através da abordagem da presença da aprendizagem cooperativa no ensino<br />
coletivo preten<strong>de</strong>u-se <strong>de</strong>stacar que este recurso po<strong>de</strong> ser utiliza<strong>do</strong> <strong>de</strong> maneira eficiente<br />
trazen<strong>do</strong> inúmeros benefícios para a aprendizagem musical, uma vez que o<br />
ensino coletivo proporciona a elaboração <strong>de</strong> estratégias para a colaboração e cooperação<br />
entre alunos que apren<strong>de</strong>m um instrumento musical. Estas estratégias po<strong>de</strong>rão<br />
beneficiar e influenciar outras modalida<strong>de</strong>s educacionais como aulas tutorias.<br />
A experiência apresentada neste artigo <strong>de</strong>staca que a utilização <strong>de</strong> ferramentas utilizadas<br />
nesta aprendizagem possibilita o <strong>de</strong>senvolvimento musical no instrumento.<br />
As atuais mudanças na socieda<strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rna indicam a necessida<strong>de</strong> da promoção<br />
da interação entre alunos. Desta forma, a a<strong>do</strong>ção <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo tutorial também <strong>de</strong>verá<br />
permitir espaços para interação e troca entre os alunos.<br />
Referências<br />
Dantas, Tais. 2010. Ensino coletivo <strong>de</strong> instrumentos musicais: motivação, auto-estima e interações<br />
na aprendizagem musical em grupo. Dissertação <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong>. Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral da Bahia, Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Música.<br />
J ohn, Patrícia A. S T. 2006. Finding and making meaning: young children as musical collaborators.<br />
Psychology of Music 34, p. 238-261. Disponível em: < http://pom.sagepub.com/cgi/content/abstract/34/2/238>.<br />
Acesso em: 22 <strong>de</strong> jun. <strong>de</strong> 2009.<br />
Joritz-Nakagawa, Jane. Spencer Kagan’s Cooperative Learning Structures. Disponível em:<br />
. Acesso em: 20 fev. 2010.<br />
Mc<strong>do</strong>nald, Raymond A. R.; Miell, Dorothy; Mitchell, Laura. 2002. An Investigation of<br />
Children’s Musical Collaborations: The Effect of Friendship and Age. Psychology of<br />
Music 30, p. 148-163. Disponível em: http://pom.sagepub.com/cgi/content/<br />
abstract/30/2/148. Acesso em: 22 <strong>de</strong> jun. <strong>de</strong> 2009.<br />
Menezes, Marília Gabriela; Barbosa, Rejane Martins Novais; Jófili, Zélia Maria Soares. 2007.<br />
Aprendizagem Cooperativa: o que pensam os estudantes? Linguagens, Educação e Socieda<strong>de</strong><br />
12, n. 17, p. 51-62, Teresina, jul./<strong>de</strong>z.<br />
Monereo, Carles; Gisbert, David Duran. 2005. Tramas: procedimentos para a aprendizagem<br />
cooperativa. Tradução: Cláudia Schilling. Porto Alegre: Artmed.<br />
Swanwick, K. Ensinan<strong>do</strong> música musicalmente. 2003. Trad.: Alda Oliveira e Cristina Tourinho.<br />
São Paulo: Mo<strong>de</strong>rna.<br />
Woolfolk, Anita E. 2000. Psicologia da educação. Porto Alegre: Artemed.
A motivação no processo <strong>de</strong> ensino e aprendizagem<br />
musical realiza<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> aulas coletivas:<br />
relato <strong>de</strong> pesquisa concluída<br />
Tais Dantas<br />
Tais.dantas@hotmail.com<br />
Pós-graduação em Música da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia<br />
Resumo<br />
O presente artigo apresenta os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s na pesquisa <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong> em Educação Musical,<br />
realizada na UFBA sob orientação <strong>do</strong> professor Dr. Luiz César Marques Magalhães.<br />
Esta pesquisa investigou, <strong>de</strong>ntre outros aspectos, os seguintes pontos relaciona<strong>do</strong>s à motivação<br />
nas aulas coletivas <strong>de</strong> instrumentos musicais: (1) a contribuição das aulas coletivas no<br />
<strong>de</strong>senvolvimento da motivação; (2) os fatores que influenciam a motivação; (3) as inter-relações<br />
aluno-aluno e aluno-professor e como estas interferem e estruturam a motivação nas<br />
aulas coletivas. A concepção meto<strong>do</strong>lógica <strong>de</strong>sta pesquisa, que po<strong>de</strong> ser classificada como<br />
exploratória, possibilitou o entendimento <strong>de</strong> diversos aspectos relativos à motivação nas aulas<br />
coletivas. O procedimento meto<strong>do</strong>lógico a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> foi o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caso, e envolveu professores<br />
<strong>do</strong> ensino coletivo e alunos <strong>do</strong> ensino fundamental <strong>do</strong> Colégio Adventista <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r,<br />
on<strong>de</strong> aulas coletivas <strong>de</strong> instrumentos <strong>de</strong> cordas são oferecidas como opção na disciplina <strong>Artes</strong>.<br />
Utilizou-se como instrumentos <strong>de</strong> coleta a entrevista espontânea para professores e a entrevista<br />
focada para os alunos. A pesquisa bibliográfica teve caráter interdisciplinar e apoiou-se<br />
em áreas que ofereceram suporte aos parâmetros investiga<strong>do</strong>s, particularmente: educação<br />
musical, psicologia da educação, psicologia social e a psicologia da música. A conclusão <strong>de</strong>sta<br />
pesquisa proporcionou o entendimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s aspectos presentes no ensino coletivo<br />
que contribuem para a motivação <strong>do</strong>s alunos no processo <strong>de</strong> aprendizagem, em especial:<br />
a referência <strong>do</strong> outro no estímulo para um maior empenho na resolução <strong>de</strong> tarefas; o<br />
planejamento e o olhar <strong>do</strong> professor sobre os diversos níveis <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho existentes na<br />
turma; a importância <strong>do</strong> convívio social como facilita<strong>do</strong>r <strong>do</strong> processo motivacional no estu<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> instrumento; e as articulações das motivações intrínseca e extrínseca no processo <strong>de</strong> aprendizagem.<br />
Palavras-chave<br />
Motivação, aprendizagem musical, aulas coletivas.<br />
Introdução<br />
Dar os primeiros passos na música a partir <strong>do</strong> ensino coletivo <strong>de</strong> instrumentos é<br />
extremamente motivante. Oliveira (2008, 01) acredita que o aprendiza<strong>do</strong> musical<br />
é mais agradável quan<strong>do</strong> feito em grupo, e as razões para isto encontram-se no fato<br />
<strong>de</strong> que o aluno compartilha suas dificulda<strong>de</strong>s com os colegas, o aluno se sente parte<br />
<strong>de</strong> uma orquestra, e a qualida<strong>de</strong> musical é maior quan<strong>do</strong> compara<strong>do</strong> ao estu<strong>do</strong> individual.<br />
Moraes (1997, 71) afirma que “a motivação e a interação social são os ele-<br />
437
438<br />
mentos aponta<strong>do</strong>s como os gran<strong>de</strong>s responsáveis pelo incremento <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong><br />
musical”.<br />
A motivação é <strong>de</strong>finida por Tapia e Fita (2006, 77) como “um conjunto <strong>de</strong> variáveis<br />
que ativam a conduta e a orientam em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> senti<strong>do</strong> para po<strong>de</strong>r alcançar<br />
um objetivo.” Segun<strong>do</strong> O’Neill e Mcpherson et al (2002, 31) “as teorias atuais<br />
vêem a motivação como uma parte integrante da aprendizagem que auxilia os alunos<br />
na aquisição da gama <strong>de</strong> comportamentos adaptativos que irá proporcionarlhes<br />
a melhor chance <strong>de</strong> alcançar seus próprios objetivos pessoais.”<br />
Diante da importância da motivação como fator <strong>de</strong>terminante da aprendizagem,<br />
este trabalho buscou verificar como se dão os processos motivacionais nas aulas coletivas<br />
<strong>de</strong> instrumentos musicais a parir <strong>de</strong> um olhar sobre a interação aluno-aluno<br />
e aluno-professor durante a aprendizagem.<br />
Um <strong>do</strong>s pontos aborda<strong>do</strong>s no trabalho foi a relação existente entre a interação no<br />
grupo e o <strong>de</strong>senvolvimento das motivações intrínseca e extrínseca. A motivação intrínseca<br />
é aquela que está ligada ao próprio <strong>de</strong>senvolvimento da tarefa, ou seja, “refere-se<br />
à escolha e realização <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada ativida<strong>de</strong> por sua própria causa, por<br />
esta ser interessante, atraente ou, <strong>de</strong> alguma forma gera<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> satisfação” (Guimarães<br />
2001, 37). O indivíduo sente-se motiva<strong>do</strong> para realizar uma <strong>de</strong>terminada<br />
tarefa e provoca a execução da mesma, pois a satisfação encontra-se no próprio processo<br />
<strong>de</strong> efetivação da tarefa.<br />
No campo educacional a motivação intrínseca representa importante papel no <strong>de</strong>sempenho<br />
escolar. Guimarães (2001, 37) afirma que “envolver-se em uma ativida<strong>de</strong><br />
por razões intrínsecas gera maior satisfação e há indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong> que esta facilita<br />
a aprendizagem e o <strong>de</strong>sempenho.” Ainda segun<strong>do</strong> a mesma autora (2001, 10) no<br />
contexto específico da sala <strong>de</strong> aula, as ativida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> aluno, para as quais o mesmo<br />
<strong>de</strong>ve estar motiva<strong>do</strong>, têm características diferenciadas <strong>de</strong> outras ativida<strong>de</strong>s humanas<br />
igualmente condicionadas à motivação.<br />
Uma das formas <strong>de</strong> se relacionar a motivação intrínseca ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> instrumento<br />
musical, encontra-se nos resulta<strong>do</strong>s espera<strong>do</strong>s a partir <strong>do</strong> esforço investi<strong>do</strong> tecnicamente<br />
no estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> instrumento. O que faz com que o aluno evolua gradualmente<br />
nas suas habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tocar e progrida no repertório estuda<strong>do</strong>. Toda vez<br />
que o aluno empenha-se durante os estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> música seu nível técnico ten<strong>de</strong> a<br />
evoluir, assim sen<strong>do</strong> ainda po<strong>de</strong>-se relacionar a motivação intrínseca aos resulta<strong>do</strong>s<br />
espera<strong>do</strong>s a partir <strong>do</strong> esforço investi<strong>do</strong> tecnicamente no estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> instrumento,<br />
que teria como conseqüência a evolução nas habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tocar e a progressão gradual<br />
no repertório estuda<strong>do</strong>.<br />
Contu<strong>do</strong>, a motivação não se constitui num fato ou instante isola<strong>do</strong> em si, mas sim<br />
em to<strong>do</strong> um processo que se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra em várias fases ou etapas. No início da tarefa,<br />
durante sua execução, e até a conclusão da mesma, “a motivação para alcançar um
objetivo distante articula-se com as motivações sucessivas para cada uma das etapas<br />
que po<strong>de</strong>m levar a ele, o que equivale a distinguir uma motivação orientan<strong>do</strong> a ativida<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> sujeito para tarefas imediatas <strong>de</strong> uma motivação orientada para objetivos<br />
mais distantes” (Foulin e Mouchon 2000, 94).<br />
Isso nos faz refletir sobre uma outra forma <strong>de</strong> motivação que está associada aos resulta<strong>do</strong>s<br />
que o empenho numa <strong>de</strong>terminada tarefa po<strong>de</strong> trazer: a motivação extrínseca.<br />
Quan<strong>do</strong> um indivíduo sente-se motiva<strong>do</strong> para a realização <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada<br />
tarefa, e a satisfação encontra-se nos resulta<strong>do</strong>s que a mesma po<strong>de</strong> trazer, dizemos<br />
que o indivíduo está motiva<strong>do</strong> extrinsecamente. A motivação extrínseca, em oposição<br />
à motivação intrínseca, não está ligada a execução <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada tarefa, mas<br />
sim aos resulta<strong>do</strong>s que esta po<strong>de</strong> proporcionar. Guimarães (2001, 46) <strong>de</strong>staca que<br />
“a motivação extrínseca tem si<strong>do</strong> <strong>de</strong>finida como a motivação para trabalhar em resposta<br />
a algo externo à tarefa ou ativida<strong>de</strong>, como para a obtenção <strong>de</strong> recompensas,<br />
materiais ou sociais, <strong>de</strong> reconhecimento, objetivan<strong>do</strong> aten<strong>de</strong>r aos coman<strong>do</strong>s ou<br />
pressões <strong>de</strong> outras pessoas ou para <strong>de</strong>monstrar competências ou habilida<strong>de</strong>.”<br />
No ensino coletivo <strong>de</strong> instrumento o aluno está motiva<strong>do</strong> intrinsecamente ou extrinsecamente?<br />
Se partirmos da proposição <strong>de</strong> que o aluno <strong>de</strong> música opta por um<br />
<strong>de</strong>sejo pessoal, po<strong>de</strong>mos afirmar que satisfação apresentada no processo <strong>de</strong> estu<strong>do</strong><br />
e execução <strong>do</strong> instrumento estaria diretamente ligada à motivação intrínseca, on<strong>de</strong><br />
o ato <strong>de</strong> executar o instrumento geraria prazer e satisfação no aluno. Por estar ligada<br />
a fatores externos, a motivação extrínseca também po<strong>de</strong> ser percebida no ensino<br />
coletivo através <strong>de</strong> alguns aspectos. Numa sala <strong>de</strong> aula <strong>de</strong> ensino em grupo além <strong>do</strong><br />
professor, que tem um importante papel na motivação <strong>do</strong> aluno, o estudante conta<br />
ainda com a presença <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais colegas. Desta forma po<strong>de</strong>-se afirmar que existe<br />
uma motivação extrínseca gerada pela convivência em grupo, o que estaria evi<strong>de</strong>nciada<br />
na busca pelo reconhecimento <strong>do</strong> grupo e na necessida<strong>de</strong> que o aluno tem<br />
em <strong>de</strong>monstrar que também é capaz <strong>de</strong> executar o instrumento <strong>de</strong> maneira satisfatória,<br />
e assim os alunos se sentiriam recompensa<strong>do</strong>s ao atingirem tais objetivos, ou<br />
seja, tais ações estariam ligadas à motivação extrínseca.<br />
A pesquisa <strong>de</strong> campo<br />
A coleta <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s foi realizada por meio <strong>de</strong> entrevistas com professores <strong>do</strong> ensino<br />
coletivo e alunos <strong>de</strong> duas turmas da 5ª série <strong>do</strong> ensino fundamental II <strong>do</strong> Colégio<br />
Adventista <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r que participam das aulas <strong>de</strong> instrumentos <strong>de</strong> cordas na disciplina<br />
<strong>Artes</strong>.<br />
A coleta <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s com os professores <strong>do</strong> ensino coletivo foi realizada por meio <strong>de</strong><br />
entrevistas espontâneas, cuja escolha se <strong>de</strong>u pelo fato <strong>de</strong> que as mesmas possibilitaram<br />
a obtenção <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s mais amplos a partir <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong>s professores.<br />
As questões foram elaboradas <strong>de</strong> maneira parcialmente estruturadas, ou seja, “guia-<br />
439
440<br />
das por relação <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> interesse que o entrevista<strong>do</strong>r vai exploran<strong>do</strong> ao longo<br />
<strong>de</strong> seu curso” (Gil 2008, 117). Como coloca Yin (2006, 117), a realização da entrevista<br />
espontânea nos permite tanto obter informações sobre o fato relaciona<strong>do</strong><br />
ao assunto, quanto obter a opinião <strong>do</strong>s entrevista<strong>do</strong>s sobre <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s eventos,<br />
e inclusive utilizar as interpretações apresentadas pelos respon<strong>de</strong>ntes como base<br />
para uma nova pesquisa. Fato este verifica<strong>do</strong> nesta pesquisa, on<strong>de</strong> a entrevista com<br />
os professores serviu como base para a investigação com os alunos. Este tipo <strong>de</strong> entrevista<br />
permitiu também maior flexibilida<strong>de</strong>, uma vez que se entrevistou professores<br />
<strong>de</strong> diferentes modalida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> ensino coletivo.<br />
Para a obtenção <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s junto aos alunos optou-se pela realização <strong>de</strong> entrevistas<br />
focadas, a partir <strong>de</strong> questões estruturadas, que segun<strong>do</strong> Yin (2006, 118) um <strong>do</strong>s<br />
propósitos <strong>de</strong>sta entrevista po<strong>de</strong> ser “simplesmente corroborar com certos fatos<br />
que você já acredita terem si<strong>do</strong> estabeleci<strong>do</strong>s (e não indagar sobre outros tópicos <strong>de</strong><br />
natureza mais ampla e espontânea)”, neste caso a entrevista com os alunos procurou<br />
verificar a pertinência <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s coleta<strong>do</strong>s tanto na literatura quanto na entrevista<br />
com os professores. Esta modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> entrevista também facilitou a coleta<br />
<strong>de</strong> da<strong>do</strong>s, proporcionan<strong>do</strong> simplicida<strong>de</strong> no entendimento das questões por parte<br />
<strong>do</strong>s pesquisa<strong>do</strong>s, bem como maior objetivida<strong>de</strong>, uma vez que as entrevistas foram<br />
realizadas nos poucos horários que os alunos tinham disponíveis, antes <strong>do</strong> início<br />
das aulas e nos intervalos entre as mesmas.<br />
A respeito da pesquisa realizada com os alunos <strong>do</strong> Colégio Adventista <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r,<br />
as aulas coletivas <strong>de</strong> instrumentos <strong>de</strong> cordas e sopros são oferecidas na disciplina<br />
<strong>Artes</strong> para aqueles alunos que optam por estudar música, como uma das linguagens<br />
artísticas proporcionadas pelo colégio. As turmas <strong>do</strong> ensino fundamental II são<br />
compostas em média por 35 alunos. Nas duas turmas escolhidas para participar <strong>do</strong><br />
estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caso, 21 alunos foram entrevista<strong>do</strong>s, correspon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ao número total<br />
<strong>de</strong> alunos que estudam instrumentos <strong>de</strong> cordas. Outras turmas da 6ª a 8ª série possuem<br />
alunos que freqüentam as aulas <strong>de</strong> instrumento <strong>de</strong> cordas, contu<strong>do</strong>, um <strong>do</strong>s<br />
motivos que levou a escolha das turmas da 5ª série foi a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alunos, pois,<br />
com o <strong>de</strong>correr <strong>do</strong>s anos, o número <strong>de</strong> alunos que fazem aula <strong>de</strong> música ten<strong>de</strong> a diminuir,<br />
uma vez que alguns alunos <strong>de</strong>ixam os cursos <strong>de</strong> música ou até mesmo a escola.<br />
Além disso, foi possível trabalhar os da<strong>do</strong>s sem a interferência <strong>de</strong> algumas<br />
variáveis, como: a diferença <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, o tempo <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> no instrumento e o <strong>de</strong>sempenho<br />
musical.<br />
Como primeiro passo da abordagem empírica a pesquisa buscou conhecer a opinião<br />
<strong>de</strong> professores <strong>do</strong> ensino coletivo <strong>de</strong> instrumentos musicais a respeito <strong>do</strong>s aspectos<br />
investiga<strong>do</strong>s. A participação <strong>de</strong> professores <strong>de</strong> diferentes áreas da prática <strong>de</strong> ensino<br />
coletivo, como cordas, sopro e piano, possibilitou maior abrangência <strong>do</strong>s aspectos<br />
investiga<strong>do</strong>s fornecen<strong>do</strong> um vasto material que, confronta<strong>do</strong> com a literatura, foi<br />
utiliza<strong>do</strong> para a construção da entrevista aplicada à turma <strong>de</strong> ensino coletivo.
A motivação no processo <strong>de</strong> ensino e aprendizagem musical<br />
Motivação: o que dizem os professores <strong>do</strong> ensino coletivo?<br />
Dentre outros aspectos investiga<strong>do</strong>s, a motivação obteve <strong>de</strong>staque sen<strong>do</strong> um fator<br />
enfatiza<strong>do</strong> pelos professores como o gran<strong>de</strong> diferencial existente nas aulas coletivas.<br />
Um ponto <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> por alguns professores diz respeito ao fato <strong>de</strong> que a aula realizada<br />
em grupo gera uma maior motivação nos alunos, principalmente porque o coletivo<br />
proporciona a observação, análise e comparações entre os mesmo. Como<br />
coloca Santos (2009) o ensino coletivo traz como contribuição relevante a possibilida<strong>de</strong><br />
da observação entre os alunos. Para a professora, o colega torna-se muitas<br />
vezes uma referência mais significativa para o outro, uma vez que o mesmo po<strong>de</strong> se<br />
espelhar e se sentir mais próximo <strong>de</strong> sua realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aprendizagem. Pois, para o<br />
aluno o professor toca bem, e ele assim o faz porque é o professor, que traz consigo<br />
uma imensa bagagem musical. Quan<strong>do</strong> um aluno observa que um colega toca bem,<br />
ele acredita que po<strong>de</strong> atingir aquele nível também. Santos (2009) afirma ainda que<br />
esse processo funciona como uma competição saudável, on<strong>de</strong> o aluno se esforça<br />
para alcançar o mesmo nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho <strong>do</strong> colega e segue acrescentan<strong>do</strong> que<br />
o processo <strong>de</strong> ensino e aprendizagem é muito enriquece<strong>do</strong>r, pois, geralmente as turmas<br />
são heterogêneas, e a diferença <strong>de</strong> níveis <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho acabam favorecen<strong>do</strong><br />
a aquisição <strong>de</strong> conhecimentos musicais.<br />
Em se tratan<strong>do</strong> da motivação na aula em grupo, Braga (2009) <strong>de</strong>staca que o fato <strong>de</strong><br />
os alunos estarem reuni<strong>do</strong>s em mesmo horário não é suficiente pra que se <strong>de</strong>senvolva<br />
a motivação, e <strong>de</strong>staca a figura <strong>do</strong> professor. Assim como o professor <strong>de</strong>ve<br />
estar atento às necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada aluno, a importância <strong>de</strong> uma atuação reflexiva<br />
revela-se no planejamento, momento em que o professor <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>dicar esforços para<br />
elaborar a estrutura da aula. Abordan<strong>do</strong> a importância <strong>do</strong> planejamento por parte<br />
<strong>do</strong> professor, Braga (2009) enfatiza que é preciso observar o <strong>de</strong>senvolvimento musical<br />
e social <strong>de</strong> cada aluno, e construir juntamente com os alunos toda uma estrutura<br />
para que a motivação surja com mais eficácia. Para a professora é imprescindível<br />
que o planejamento contemple as diferenças <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho existente entre os alunos,<br />
o repertório <strong>de</strong>ve privilegiar a participação integral <strong>do</strong>s alunos, para que to<strong>do</strong>s<br />
se sintam parte essencial <strong>do</strong> fazer musical.<br />
Mattos (2009) e Rocha (2009) compartilham a mesma opinião <strong>de</strong> que o convívio<br />
social é parte fundamental <strong>do</strong> processo motivacional durante a aprendizagem musical.<br />
Os professores fazem uma comparação entre a aula coletiva e a individual, e<br />
<strong>de</strong>stacam a vantagem da aula coletiva no que diz respeito à motivação, ao longo <strong>de</strong><br />
suas práticas os professores pu<strong>de</strong>ram observar que, além da própria motivação <strong>do</strong><br />
aluno e da motivação que o professor exerce sobre o mesmo, os alunos também motivam<br />
uns aos outros funcionan<strong>do</strong> como reforça<strong>do</strong>res positivos no processo <strong>de</strong><br />
aprendizagem.<br />
441
442<br />
A motivação nas aulas coletivas <strong>de</strong> Instrumento:<br />
o ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong>s alunos<br />
Na literatura consultada a respeito <strong>do</strong> ensino coletivo on<strong>de</strong> são ressalta<strong>do</strong>s os aspectos<br />
relaciona<strong>do</strong>s à motivação, um <strong>do</strong>s fatores motivacionais mais <strong>de</strong>staca<strong>do</strong>s, e<br />
que diz respeito à iniciação <strong>de</strong> instrumentos <strong>de</strong> corda com o ensino coletivo, é a sonorida<strong>de</strong>.<br />
Alguns autores afirmam que a sonorida<strong>de</strong> inicial <strong>do</strong>s alunos <strong>de</strong> instrumentos<br />
<strong>de</strong> cordas é pouco agradável, e que no grupo essa sonorida<strong>de</strong> ten<strong>de</strong> a ser<br />
mais aprazível. Como afirma Galin<strong>do</strong> (2000, 58) uma das razões que torna o ensino<br />
coletivo mais estimulante é que “o resulta<strong>do</strong> sonoro <strong>do</strong> grupo é bem melhor que o<br />
resulta<strong>do</strong> sonoro individual.” Essa falta <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> na sonorida<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ve, na<br />
maioria das vezes, à pressão ina<strong>de</strong>quada que o aluno provoca com o arco sobre as<br />
cordas, e acrescenta-se a este fator o início <strong>do</strong> uso da mão esquerda on<strong>de</strong> o aluno<br />
sente dificulda<strong>de</strong>s para afinar o instrumento.<br />
Mas afinal, o que torna as aulas em grupo mais motiva<strong>do</strong>ras? Para tentar respon<strong>de</strong>r<br />
este questionamento foi pergunta<strong>do</strong> aos alunos o que tornava a aula mais motiva<strong>do</strong>ra.<br />
As respostas foram organizadas em cinco categorias (ver quadro 01), e neste<br />
caso alguns alunos indicaram mais <strong>de</strong> uma alternativa, on<strong>de</strong> todas as respostas foram<br />
consi<strong>de</strong>radas, conforme se verifica no quadro abaixo:<br />
Quadro 01 – Fatores que tornam as aulas em grupo mais motiva<strong>do</strong>ras.<br />
Fatores que influenciam a motivação para a<br />
aprendizagem em grupo<br />
Número <strong>de</strong> indicações por parte <strong>do</strong>s alunos<br />
A convivência com os colegas 18<br />
A oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r em grupo 10<br />
Sentir-se parte <strong>de</strong> um conjunto musical 09<br />
A atuação e o estímulo <strong>do</strong> professor 09<br />
A sonorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> grupo 07<br />
Fonte: Dantas, Tais. Pesquisa <strong>de</strong> campo.<br />
A convivência com os colegas foi a resposta mais citada pelos alunos, como sen<strong>do</strong><br />
o fator que torna a aula mais motivante. A segunda resposta mais indicada pelos<br />
alunos foi a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r em grupo. Sentir-se parte <strong>de</strong> um conjunto<br />
musical e o estímulo <strong>do</strong> professor foram citadas <strong>de</strong> forma eqüitativa pelos alunos<br />
como o sen<strong>do</strong> o terceiro fator que mais gera satisfação nas aulas coletivas.<br />
Embora não se possa negar que o fato <strong>de</strong> que iniciar os estu<strong>do</strong>s em grupo contribui<br />
positivamente para o <strong>de</strong>senvolvimento da sonorida<strong>de</strong>, o ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong>s alunos<br />
diverge em parte das proposições da literatura específica no campo <strong>do</strong> ensino coletivo.<br />
A boa sonorida<strong>de</strong> foi um fator pouco indica<strong>do</strong> pelos entrevista<strong>do</strong>s. Contu<strong>do</strong>,
essalta-se que para muitos professores a falta <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> na sonorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> aluno<br />
iniciante se sobressaia mais em casos <strong>de</strong> alunos que têm aulas individuais, este fato<br />
muitas vezes é responsável pelo <strong>de</strong>sestímulo <strong>do</strong> aluno levan<strong>do</strong>-o, em alguns casos, a<br />
<strong>de</strong>sistir <strong>do</strong> instrumento, inclusive sabe-se que o índice <strong>de</strong> <strong>de</strong>sistência é bem menor<br />
quan<strong>do</strong> os alunos iniciam as aulas <strong>de</strong> instrumento <strong>de</strong> forma coletiva.<br />
Outro aspecto que gera maior motivação e que é <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> pelos autores no campo<br />
<strong>do</strong> ensino coletivo é o fato <strong>de</strong> que o aluno já se sente fazen<strong>do</strong> parte <strong>de</strong> um grupo, <strong>de</strong><br />
uma orquestra <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras aulas. Tocar em uma orquestra ou um conjunto<br />
musical é, para muitos, a concretização <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> praticar música, e o ensino coletivo<br />
proporciona esta experiência <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primeiros momentos da aprendizagem<br />
musical. Para esta turma <strong>de</strong> alunos sentir-se parte <strong>de</strong> um conjunto musical e a<br />
oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r em grupo são fatores relevantes, como foi indica<strong>do</strong> nas<br />
respostas.<br />
Porém o que mais chama a atenção neste estu<strong>do</strong> é que o fator evi<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong> como <strong>de</strong><br />
maior relevância para os processos motivacionais <strong>de</strong>ntro das aulas coletivas, <strong>de</strong>scrito<br />
pelos alunos, não diz respeito à prática musical. No <strong>de</strong>senvolvimento das relações<br />
interpessoais, o estu<strong>do</strong> da música realiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma coletiva representa um<br />
fator significativo no <strong>de</strong>senvolvimento da socialização <strong>do</strong> indivíduo, a educação<br />
musical oportuniza a criação <strong>de</strong> ambientes interdisciplinares contribuin<strong>do</strong> para a<br />
formação social <strong>do</strong> indivíduo. Em um estu<strong>do</strong> a respeito das relações existentes entre<br />
a música, o comportamento social e as relações interpessoais, Hilari (2006) concluiu<br />
que a música tem um papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque no <strong>de</strong>senvolvimento das relações entre<br />
os indivíduos. Embora o estu<strong>do</strong> tenha ti<strong>do</strong> como objetivo principal investigar o<br />
papel da música (em meio a outros fatores) em relacionamentos afetivos, o estu<strong>do</strong><br />
revelou que entre os usos distintos da música no contexto das relações interpessoais,<br />
a música exerce uma função <strong>de</strong> “facilita<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s que promovem a<br />
aproximação <strong>de</strong> indivíduos”, como fazer parte <strong>de</strong> um coral, um conjunto instrumental<br />
ou assistir a um concerto (Hilari 2006, 197).<br />
Em conjunto com estas verificações, procurou-se saber <strong>do</strong>s entrevista<strong>do</strong>s <strong>de</strong> que<br />
forma era mais motivante apren<strong>de</strong>r o instrumento musical. Dos 21 entrevista<strong>do</strong>s,<br />
18 afirmaram que apren<strong>de</strong>r o instrumento <strong>de</strong> forma coletiva gera uma maior motivação.<br />
Neste colégio funciona também o Conservatório Adventista <strong>de</strong> Música,<br />
on<strong>de</strong> os alunos têm a opção <strong>de</strong> estudar o instrumento a partir <strong>de</strong> aulas individuais.<br />
Por conta <strong>de</strong>stas ativida<strong>de</strong>s os alunos convivem constantemente com as duas modalida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> ensino musical: aulas coletivas e tutoriais.<br />
Procuran<strong>do</strong>-se verificar <strong>de</strong> que forma da motivação intrínseca ou extrínseca se estruturavam<br />
no estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> instrumento realiza<strong>do</strong> em grupo, foi pergunta<strong>do</strong> aos alunos<br />
o que os motivava a <strong>de</strong>dicar-se ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> instrumento. No quadro a seguir<br />
as respostas foram classificadas <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o significa<strong>do</strong> expresso pelos alunos,<br />
possibilitan<strong>do</strong> verificar <strong>de</strong> que forma a motivação intrínseca ou extrínseca estava<br />
443
444<br />
presente nos estu<strong>do</strong>s musicais, neste caso foram registradas todas as indicações <strong>do</strong>s<br />
alunos.<br />
Quadro 2 — Fatores que mais motivam os alunos a <strong>de</strong>dicar-se<br />
ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> instrumento.<br />
Fator motivacional indica<strong>do</strong> pelos alunos Número <strong>de</strong> indicações<br />
Tocar um instrumento por si só é motiva<strong>do</strong>r 02<br />
Os resulta<strong>do</strong>s alcança<strong>do</strong>s pelo estu<strong>do</strong> e evolução na técnica 13<br />
O reconhecimento <strong>do</strong> grupo das minhas capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> executar um<br />
instrumento<br />
09<br />
A busca pelo êxito e auto-valorização 13<br />
Fonte: Dantas, Tais. Pesquisa <strong>de</strong> campo.<br />
O estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> instrumento é motiva<strong>do</strong>r e prazeroso, on<strong>de</strong> o próprio ato <strong>de</strong> executar<br />
uma música gera satisfação, ou seja, “a participação na tarefa é a principal recompensa,<br />
não sen<strong>do</strong> necessárias pressões externas, internas ou prêmios pelo seu cumprimento”<br />
(Guimarães 2001, 37). Apenas <strong>do</strong>is <strong>do</strong>s entrevista<strong>do</strong>s afirmaram que o<br />
fato <strong>de</strong> tocar um instrumento por si só era o que mais os motivava a <strong>de</strong>dicar-se aos<br />
estu<strong>do</strong>s, neste caso a resposta inclinou-se para a motivação intrínseca on<strong>de</strong> a motivação<br />
encontra-se no próprio ato <strong>de</strong> executar uma tarefa.<br />
Treze indicações apontaram a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> evoluir na técnica e os resulta<strong>do</strong>s alcança<strong>do</strong>s<br />
pelos esforços no estu<strong>do</strong> como o fator que mais motiva o aluno a se <strong>de</strong>dicar<br />
nos estu<strong>do</strong>s musicais. Em relação à motivação intrínseca presente no processo <strong>de</strong><br />
aprendizagem, Tapia e Fita (2006, 78) afirmam que “a própria matéria <strong>de</strong> estu<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>sperta no indivíduo uma atração que o impulsiona a se aprofundar nela e a vencer<br />
os obstáculos que posam ir se apresentan<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> aprendizagem.”<br />
O aluno intrinsecamente motiva<strong>do</strong> “busca novos <strong>de</strong>safios após atingir<br />
<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s níveis <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong> e as falhas ocorridas na execução das ativida<strong>de</strong>s<br />
instigam a continuar tentan<strong>do</strong>” (Guimarães 2001, 38).<br />
A motivação extrínseca foi expressa nos seguintes fatores: o reconhecimento <strong>do</strong><br />
grupo das suas capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> executar um instrumento e a busca pelo êxito e autovalorização,<br />
indica<strong>do</strong>s nove vezes e treze vezes, respectivamente. Para Nunes e Silveira<br />
(2009, 162) o processo <strong>de</strong> motivação extrínseca “por parte <strong>do</strong> sujeito, po<strong>de</strong><br />
estar relaciona<strong>do</strong> com recompensas externas e sociais, necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconhecimento,<br />
resposta às <strong>de</strong>mandas e pressões externas, <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> obter sucesso, êxito,<br />
competências e habilida<strong>de</strong>s.” O reconhecimento <strong>do</strong> grupo e a busca pela auto-valorização<br />
po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> ainda como uma motivação “centrada na valorização<br />
social (motivação <strong>de</strong> afiliação). Satisfação efetiva que produz a aceitação <strong>do</strong>s<br />
outros, o aplauso ou aprovação <strong>de</strong> pessoas ou grupos sociais que o indivíduo consi<strong>de</strong>ra<br />
superiores a ele” (Tapia e Fita 2006, 79).
Algumas Consi<strong>de</strong>rações<br />
Através da análise <strong>do</strong>s discursos <strong>do</strong>s professores pô<strong>de</strong>-se verificar que o ensino coletivo<br />
proporciona um ambiente on<strong>de</strong> os alunos po<strong>de</strong>m se observar e fazer comparações<br />
em relação ao seu <strong>de</strong>sempenho no instrumento. O aluno vê no colega a<br />
imagem <strong>de</strong> uma pessoa que compartilha os mesmos objetivos, que sente as mesmas<br />
dificulda<strong>de</strong>s e que tem os mesmos anseios. Mesmo que a figura <strong>do</strong> professor seja<br />
uma referência para o <strong>de</strong>senvolvimento musical <strong>do</strong> aluno, o professor se encontra<br />
em um nível diferencia<strong>do</strong> <strong>de</strong> competência e, diferentemente, na representação <strong>do</strong><br />
aluno o colega reproduz uma possibilida<strong>de</strong> real <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e crescimento<br />
musical que, através das comparações e observações, constitui-se num fator a mais<br />
na motivação <strong>do</strong> aluno. Os alunos se observam a to<strong>do</strong> momento, e <strong>de</strong>sta forma vão<br />
construin<strong>do</strong> parte <strong>do</strong>s parâmetros necessário para verificar seu nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho.<br />
Na interpretação <strong>do</strong> aluno esse nível po<strong>de</strong> ser mais eleva<strong>do</strong> ou inferior ao <strong>do</strong>s colegas,<br />
contu<strong>do</strong> o fato <strong>de</strong> perceber que seu nível encontra-se abaixo <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais, isso<br />
não significa necessariamente que o aluno irá per<strong>de</strong>r a motivação para os estu<strong>do</strong>s.<br />
Foi possível verificar por meio <strong>de</strong>sta pesquisa que estas situações, muitas vezes,<br />
levam o aluno a se esforçar mais para atingir o mesmo nível, e superar as dificulda<strong>de</strong>s,<br />
isso funcionaria como uma espécie <strong>de</strong> competição saudável. Mas, a ocorrência<br />
<strong>de</strong>stas observações precisa ser vista e observada pelo professor com bastante cautela,<br />
uma vez que, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> da interpretação <strong>do</strong> aluno estas observações po<strong>de</strong>m<br />
ser convertidas numa falta <strong>de</strong> estímulo para os estu<strong>do</strong>s. Também basea<strong>do</strong> nesta heterogeneida<strong>de</strong>,<br />
outro fato <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> é a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> troca <strong>de</strong> saberes. A opinião<br />
<strong>do</strong>s professores é bastante clara quanto à possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aproveitar a<br />
heterogeneida<strong>de</strong> existente no ambiente proporciona<strong>do</strong> pelo ensino coletivo para favorecer<br />
a aquisição <strong>de</strong> conhecimentos musicais. Os alunos interagem e apren<strong>de</strong>m<br />
com o outro a to<strong>do</strong> instante, seja na observação, na troca <strong>de</strong> experiências ou na<br />
orientação aluno-aluno.<br />
No ensino coletivo diversos são os fatores que contribuem para a motivação <strong>do</strong><br />
aluno, como a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r em conjunto, o fato <strong>de</strong> sentir-se parte <strong>de</strong><br />
um grupo musical, a atuação e o estímulo <strong>do</strong> professor e a sonorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> grupo.<br />
Contu<strong>do</strong>, o fator que mais se <strong>de</strong>staca por contribuir para a motivação entre os alunos,<br />
segun<strong>do</strong> o ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong>s mesmos, é a convivência com os colegas, confirman<strong>do</strong><br />
a opinião <strong>de</strong> alguns professores entrevista<strong>do</strong>s. Mas, o fato <strong>de</strong> reunir um<br />
grupo <strong>de</strong> pessoas para ministrar aulas <strong>de</strong> instrumento não significa que vai haver interação<br />
social. Este fato foi <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> por alguns professores, que chamaram atenção<br />
para a atuação <strong>do</strong> professor como facilita<strong>do</strong>r <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento das relações<br />
sociais entre os alunos, atuan<strong>do</strong> como um media<strong>do</strong>r. Pois, como po<strong>de</strong> acontecer<br />
em qualquer sala <strong>de</strong> aula, alguns aspectos negativos po<strong>de</strong>m surgir durante as aulas<br />
coletivas e o professor <strong>de</strong>ve orientar os alunos no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolver um ambiente<br />
amistoso em sala <strong>de</strong> aula, caben<strong>do</strong> ao mesmo verificar se algum aluno está dis-<br />
445
446<br />
tante <strong>do</strong> grupo incentivan<strong>do</strong> seu entrosamento com os <strong>de</strong>mais colegas.<br />
A utilização <strong>do</strong> repertório <strong>de</strong> interesse <strong>do</strong>s alunos é <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> em pesquisas sobre<br />
o ensino <strong>de</strong> instrumentos como um fator que interfere diretamente na motivação<br />
<strong>do</strong>s alunos (Tourinho 1995, Silva e Braga 2009, Moura 2008). A construção <strong>do</strong><br />
conteú<strong>do</strong> e <strong>do</strong> repertório <strong>de</strong>vem estar contempla<strong>do</strong>s no planejamento das aulas,<br />
objetivan<strong>do</strong> aten<strong>de</strong>r às diferenças <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o repertório a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong><br />
ser utiliza<strong>do</strong> também como um <strong>do</strong>s recursos facilita<strong>do</strong>res <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> aprendizagem<br />
proporcionan<strong>do</strong> ganhos no que diz respeito à motivação <strong>do</strong>s alunos.<br />
Foi possível verificar como a motivação intrínseca e a extrínseca se articulam nas<br />
aulas coletivas. A motivação intrínseca é refletida no fato <strong>de</strong> que os alunos buscam<br />
estudar o instrumento por encontrarem motivação no próprio <strong>de</strong>sempenho da tarefa,<br />
e, como conseqüência, vão alcançan<strong>do</strong> bons resulta<strong>do</strong>s e evolução na técnica.<br />
O reconhecimento pelo grupo da capacida<strong>de</strong> individual <strong>do</strong> aluno <strong>de</strong> executar um<br />
instrumento, e a busca pelo êxito e auto-valorização evi<strong>de</strong>nciaram que no ensino coletivo<br />
há maior tendência para que os alunos se sintam motiva<strong>do</strong>s extrinsecamente.<br />
A presença <strong>de</strong> outros alunos influencia na busca <strong>de</strong> recompensas externas, como<br />
valorização social e reconhecimento por parte <strong>do</strong> grupo, incentivan<strong>do</strong> os alunos a<br />
buscarem o sucesso nos estu<strong>do</strong>s musicais.<br />
Os fatores aqui apresenta<strong>do</strong>s nos fazem conjeturar que as aulas coletivas expõem o<br />
aluno a inúmeros fatores, os quais não estão presentes nas aulas individuais, e que<br />
funcionam como reforça<strong>do</strong>res positivos <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s, contribuin<strong>do</strong> mais eficazmente<br />
para a motivação na aprendizagem.<br />
Referências<br />
Braga, Simone Marques. Entrevista cedida a Tais Dantas da Silva, em 09 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2009.<br />
Foulin, Jean-Noel e Mouchon, Serge. Psicologia da educação. Tradução Vanish Dresh. Porto<br />
Alegre: <strong>Artes</strong> Médicas Sul, 2000.<br />
Galin<strong>do</strong>, João Maurício. Instrumentos <strong>de</strong> arco e ensino coletivo: A construção <strong>de</strong> um méto<strong>do</strong>.<br />
2000. 180 p. Dissertação (Mestra<strong>do</strong>). Escola <strong>de</strong> Comunicação e <strong>Artes</strong>, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
São Paulo, São Paulo, 2000.<br />
Gil, Antonio Carlos. Como elaborar projetos <strong>de</strong> pesquisa. 6. Ed. São Paulo: Atlas, 2008.<br />
Guimarães, Sueli Édi Rufini. Motivação intrínseca, extrínseca e o uso <strong>de</strong> recompensas em sala<br />
<strong>de</strong> aula. In: Burochovitch, Evely; Bzuneck, José Aloyseo. (Orgs.) A motivação <strong>do</strong> aluno:<br />
contribuições da psicologia contemporânea. Petrópolis: Editora vozes, 2001. p. 37-57.<br />
Mattos, Emerson. Entrevista cedida a Tais Dantas da Silva, em 22 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2009.<br />
Moraes, Abel. Ensino Instrumental em grupo: uma introdução. Música Hoje 4, p. 70-78.<br />
Belo Horizonte, 1997.<br />
Moura, Risaelma <strong>de</strong> Jesus Arcanjo. Fatores que influenciam o <strong>de</strong>senvolvimento musical <strong>de</strong><br />
alunos da disciplina instrumento suplementar (violão). 2008. 152 p. Dissertação (Mestra<strong>do</strong>).<br />
Programa <strong>de</strong> Pós-graduação da Escola <strong>de</strong> Música da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da<br />
Bahia, Salva<strong>do</strong>r, 2008.
Nunes, Ana Ignez Belém Lima Nunes e Silveira, Rosemary <strong>do</strong> Nascimento. Psicologia da<br />
aprendizagem: processos, teorias e contextos. Brasília: Líber Livro, 2009.<br />
Oliveira, Enal<strong>do</strong>. O Ensino coletivo <strong>do</strong>s instrumentos <strong>de</strong> corda: Reflexão e prática. 1998.<br />
202 p. Dissertação (Mestra<strong>do</strong>). Escola <strong>de</strong> Comunicações e <strong>Artes</strong>, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São<br />
Paulo, São Paulo, 1998.<br />
———. Música nas escolas. PlanetaBandas. Disponível em: http://<br />
www.planetabandas.com.br/novo/in<strong>de</strong>x.php?option=com_content&view=<br />
article&id=52:saiba-um-pouco-mais&catid=1:latest-news&Itemid=60<br />
Acesso em: 22 <strong>de</strong> mar. <strong>de</strong> 2009.<br />
O’Neill, Susan A e MCPherson E. Gary. Motivation. In: Parncutt, Richard e MCPherson.<br />
Gary E. The science and psychology of music Performance: creative strategies for teaching<br />
and learning. New York: Oxford University Press, 2002.<br />
Rocha, Marcus Antonio Oliveira. Entrevista cedida a tais Dantas da Silva, em 05 <strong>de</strong> junho<br />
<strong>de</strong> 2009.<br />
Silva, Tais Dantas; Braga, Simone Marques. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social e motivação no <strong>de</strong>senvolvimento<br />
musical: relato <strong>de</strong> experiência. In: <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> Encontro Nacional da Associação Brasileira<br />
<strong>de</strong> Educação Musical, 18., 2009. Londrina, e 06 a 09 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2009, Curitiba:<br />
ABEM, 2009, p. 697-703.<br />
Tapia, Jesus Alonso e Fita, Enrique Cartula. A motivação em sala <strong>de</strong> aula: o que é e como se<br />
faz. São Paulo: Edições Loyola, 2006.<br />
Tourinho, Cristina. A motivação e o <strong>de</strong>sempenho escolar na aula <strong>de</strong> violão em grupo: Influência<br />
<strong>do</strong> repertório <strong>de</strong> interesse <strong>do</strong> aluno. 1995. Dissertação (Mestra<strong>do</strong>) ICTUS: Periódico<br />
<strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Música da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia,<br />
Salva<strong>do</strong>r. Ano 4, n.04, p.157-241, 2002.<br />
Yin, Robert K. Estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caso: planejamento e méto<strong>do</strong>s. Tradução: Daniel Grassi. 3. ed.<br />
Porto Alegre: Bookman, 2005.<br />
447
448<br />
Processos <strong>de</strong> ensinar & apren<strong>de</strong>r:<br />
música, cognição e formação profissional<br />
Patrícia Wazlawick<br />
patriciawazla@gmail.com<br />
Glauber Benetti Carvalho<br />
glauberbcarvalho@gmail.com<br />
AMF-Arte e Cultura; UFSC-Psicologia<br />
Viviane Elias Portela<br />
vieportela@gmail.com<br />
AMF-Arte e Cultura<br />
Resumo<br />
Com a Lei Nº 11.769, cada instituição <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong>verá ter em seu quadro <strong>do</strong>cente um<br />
profissional responsável que ministre aulas <strong>de</strong> música. Assim, é necessário aos professores<br />
generalistas uma capacitação na área musical. A música como campo <strong>de</strong> prática e<br />
<strong>de</strong> conhecimento possui importância na formação humana, pois <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> dialético age<br />
e permite o ser humano agir com as ativida<strong>de</strong>s musicais nas dimensões ética, estética e<br />
cognitiva da vida, uma vez que requer ação integrada entre pensamento, cognição, percepção,<br />
e estética. Ten<strong>do</strong> três aspectos como temáticas principais: lei, música e formação,<br />
este trabalho investiga a apropriação musical em processos <strong>de</strong> ensinar-apren<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />
professores da re<strong>de</strong> pública e particular que participam <strong>de</strong> um curso <strong>de</strong> formação profissional<br />
continuada em música. A fundamentação teórica baseia-se na psicologia histórico-cultural,<br />
principalmente com Vygotski e interlocutores. O objetivo <strong>do</strong> curso é<br />
capacitar os participantes para ministrarem aulas <strong>de</strong> música, visan<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolver e aprimorar<br />
seu conhecimento musical, para estarem aptos a trabalhar com formação musical.<br />
Os participantes têm no fazer musical uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formação e atuação<br />
profissional, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à capacitação e qualificação, aprimoramento e <strong>de</strong>senvolvimento<br />
como educa<strong>do</strong>r. Ao trabalhar com uma proposta <strong>de</strong> formação profissional continuada<br />
<strong>de</strong> educa<strong>do</strong>res musicais, que integra <strong>de</strong> forma sólida os aspectos da percepção, teoria e<br />
prática no próprio educa<strong>do</strong>r, ele po<strong>de</strong>rá trabalhar com proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecimento<br />
primeiramente em si mesmo e auxiliar seus alunos na formação musical. O processo <strong>de</strong><br />
ensinar-apren<strong>de</strong>r música, direciona<strong>do</strong> por este viés, po<strong>de</strong>rá contribuir, para a construção<br />
<strong>de</strong> uma compreensão da música como campo <strong>de</strong> conhecimento. Dessa forma, além <strong>de</strong><br />
refletir sobre o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> curso enquanto está em andamento, esta pesquisa<br />
investiga o processo <strong>de</strong> construção da concepção da música como campo <strong>de</strong> conhecimento.<br />
Entrevistas individuais com roteiro nortea<strong>do</strong>r estão sen<strong>do</strong> realizadas com os<br />
alunos participantes e serão apresenta<strong>do</strong>s os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s.<br />
Palavras-chave<br />
Formação continuada em música; cognição musical; processos <strong>de</strong> ensinar & apren<strong>de</strong>r.
Introdução<br />
Este trabalho relata a experiência <strong>de</strong>senvolvida até o presente momento com a realização<br />
<strong>do</strong> “Curso <strong>de</strong> Formação Profissional Continuada em Música”, que é um<br />
Curso <strong>de</strong> Extensão da Antonio Meneghetti Faculda<strong>de</strong> – AMF, instituição superior<br />
<strong>de</strong> ensino situada no Distrito Recanto Maestro, no município <strong>de</strong> São João <strong>do</strong> Polêsine-RS.<br />
Este curso teve início no dia 09 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2009, sen<strong>do</strong> ministra<strong>do</strong> e<br />
coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong> pelos professores Glauber Benetti Carvalho, Patrícia Wazlawick e Viviane<br />
Elias Portela.<br />
A realização <strong>de</strong>ste curso <strong>de</strong> formação continuada, pelos elementos e aspectos que<br />
aborda, é <strong>de</strong> fundamental importância no que tange à abertura <strong>de</strong> espaços que vislumbrem<br />
novos olhares <strong>de</strong>ntro da escolarização formal, pois além <strong>de</strong> suas ativida<strong>de</strong>s<br />
teórico-práticas na área da música, que contribuem para a formação <strong>do</strong><br />
educa<strong>do</strong>r musical, permite que o mesmo <strong>de</strong>senvolva novos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> visualizar e<br />
compreen<strong>de</strong>r a realida<strong>de</strong>, sempre polissêmica e multifacetada que se apresenta (Zanella<br />
et al., 2007).<br />
De acor<strong>do</strong> com a Lei Nº 11.769, <strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008, que dispõe sobre a obrigatorieda<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> ensino <strong>de</strong> música na educação básica no Brasil, cada instituição <strong>de</strong><br />
ensino <strong>de</strong>verá ter em seu quadro <strong>do</strong>cente um profissional responsável e que ministre<br />
essas aulas. Para tanto, é necessário aos professores generalistas (alunos <strong>do</strong> curso<br />
supracita<strong>do</strong>) – ten<strong>do</strong> em vista trabalharem os conteú<strong>do</strong>s <strong>de</strong> música (práticos e teóricos)<br />
com seus alunos – uma capacitação na área <strong>do</strong> ensino <strong>de</strong> música, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a<br />
expandir e ampliar sua formação continuada no conhecimento didático-pedagógico<br />
e musical. Portanto, em relação à implementação e objetivação das ativida<strong>de</strong>s musicais<br />
<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a obrigatorieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> ensino <strong>de</strong> música na educação básica <strong>do</strong><br />
Brasil, este curso inscreve-se em uma modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser uma forma <strong>de</strong> estratégia<br />
<strong>de</strong> capacitação/formação <strong>de</strong> <strong>do</strong>centes, pon<strong>do</strong> em foco a formação continuada <strong>de</strong><br />
professores generalistas e também professores que já são educa<strong>do</strong>res musicais.<br />
A música como campo <strong>de</strong> prática e campo <strong>de</strong> conhecimento possui extrema importância<br />
na formação humana em geral, pois <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> dialético age e permite o ser<br />
humano agir com as ativida<strong>de</strong>s musicais nas dimensões ética, estética e cognitiva<br />
da vida, uma vez que ela requer a ação humana integrada entre pensamento, cognição,<br />
percepção, e estética (Maheirie, 2001, 2003).<br />
Ten<strong>do</strong> três aspectos como temáticas principais: lei, música e formação, este trabalho<br />
investiga a apropriação musical em processos <strong>de</strong> ensinar-apren<strong>de</strong>r <strong>de</strong> professores<br />
da re<strong>de</strong> pública municipal, estadual e particular que participam <strong>de</strong> um curso <strong>de</strong><br />
formação profissional continuada em música, curso <strong>de</strong> extensão na área <strong>de</strong> Arte e<br />
Cultura, ofereci<strong>do</strong> pela Antonio Meneghetti Faculda<strong>de</strong>. Este curso tem por objetivo<br />
geral capacitar os participantes para ministrarem aulas <strong>de</strong> música (ensino <strong>de</strong><br />
música), visan<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolver e aprimorar o conhecimento musical <strong>do</strong>s mesmos,<br />
449
450<br />
para estarem aptos a trabalhar com a formação musical <strong>de</strong> seus alunos.<br />
O curso apresenta-se na modalida<strong>de</strong> teórico-prática-vivencial, as aulas são realizadas<br />
uma vez por semana, com carga horária total <strong>de</strong> 160h/a, ten<strong>do</strong> <strong>do</strong>is semestres<br />
letivos <strong>de</strong> duração. O curso teve início em julho <strong>de</strong> 2009 e finalizará seu primeiro<br />
módulo em junho <strong>de</strong> 2010. Várias disciplinas são trabalhadas com os alunos, <strong>de</strong>ntre<br />
elas:<br />
a) instrumentação musical – formação <strong>de</strong> repertório e performance (prática musical<br />
individual e <strong>de</strong> conjunto), com os instrumentos violão e flauta <strong>do</strong>ce;<br />
b) iniciação musical e musicalização infantil;<br />
c) teoria musical;<br />
d) leitura e escrita musical;<br />
e) percepção musical;<br />
f) aspectos da história da música;<br />
g) oficinas <strong>de</strong> tecnologia musical;<br />
h) aspectos da interface entre música, psicologia e educação musical.<br />
Os participantes <strong>do</strong> curso são professores <strong>de</strong> educação infantil, professores generalistas<br />
<strong>de</strong> ensino fundamental, professores <strong>do</strong> ensino médio, e educa<strong>do</strong>res musicais,<br />
seja <strong>de</strong> escolas públicas que escolas particulares da Região da Quarta Colônia <strong>de</strong><br />
Imigração Italiana no Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul. Estes participantes estão ten<strong>do</strong> no fazer<br />
musical uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formação e atuação profissional, uma vez que o curso<br />
permite capacitação e qualificação nesta área, aprimoramento e <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong><br />
seu potencial como educa<strong>do</strong>r, e torna-os aptos a mais uma competência no processo<br />
<strong>de</strong> ensinar-apren<strong>de</strong>r, ou seja, o trabalho com o ensino na área musical.<br />
Consi<strong>de</strong>ramos que, ao trabalhar com uma proposta <strong>de</strong> formação profissional continuada<br />
<strong>de</strong> educa<strong>do</strong>res musicais, que integra <strong>de</strong> forma sólida os aspectos (as dimensões)<br />
da percepção, teoria e prática no próprio educa<strong>do</strong>r, ele po<strong>de</strong>rá trabalhar<br />
com proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecimento primeiramente em si mesmo – em sua compreensão<br />
da música – e auxiliar seus alunos em um aprendiza<strong>do</strong> global <strong>de</strong> formação<br />
musical. O processo <strong>de</strong> ensinar-apren<strong>de</strong>r música, direciona<strong>do</strong> por este viés, po<strong>de</strong>rá<br />
contribuir, para a construção <strong>de</strong> uma concepção/compreensão da música como um<br />
campo <strong>de</strong> conhecimento. Dessa forma, além <strong>de</strong> refletir sobre o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>do</strong> curso enquanto o mesmo está em andamento, esta pesquisa investiga o processo<br />
<strong>de</strong> construção da concepção da música como campo <strong>de</strong> conhecimento. Entrevistas<br />
individuais com roteiro nortea<strong>do</strong>r estão sen<strong>do</strong> realizadas com os alunos participantes<br />
e serão apresenta<strong>do</strong>s os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s.<br />
Fundamentação teórica<br />
A música po<strong>de</strong> ser entendida como uma forma <strong>de</strong> linguagem. Linguagem, por sua
vez, compreendida como um sistema sígnico utiliza<strong>do</strong> para que duas ou mais ‘mentes’<br />
estabeleçam uma ação comum, ou seja, estabeleçam comunicação. Nessa trama<br />
<strong>de</strong> processos psicológicos a “percepção” se faz premissa ao fazer musical, ao mesmo<br />
tempo que se engendra nele e a partir <strong>de</strong>le (Maheirie, 2001, 2003).<br />
A percepção, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> geral, direciona e orienta o estar e o sentir humano no<br />
mun<strong>do</strong>. A percepção da linguagem musical atinge <strong>de</strong>s<strong>de</strong> uma simples qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
sentimento até aos altos níveis <strong>de</strong> cognição simbólica. A sua mensagem não diz respeito<br />
a nada que se encontra fora da música, ou seja, seus signos portam significa<strong>do</strong>s<br />
atrela<strong>do</strong>s à própria estrutura musical, articulan<strong>do</strong> pensamento, compreensão e<br />
cognição <strong>de</strong> forma intensa nesse processo, ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> sentimentos e emoções.<br />
Sen<strong>do</strong> assim, por meio <strong>do</strong>s processos <strong>de</strong> ensino e aprendizagem da música emerge<br />
e produz-se percepção, isto é, o aluno po<strong>de</strong> abrir-se a uma certa percepção <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>, da vida e <strong>de</strong> si mesmo, uma percepção à or<strong>de</strong>m das estruturas, que é, em última<br />
instância, percepção estética.<br />
Com essa nova forma <strong>de</strong> percepção é possível ao aluno ampliar sua consciência e<br />
criar novas vias <strong>de</strong> conhecimento – não somente aquele analítico e racional, mas um<br />
conhecimento gestáltico.<br />
Além disso, crianças, a<strong>do</strong>lescentes, jovens e adultos, no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> seu percurso <strong>de</strong><br />
vida, vivem situações concretas enquanto constituin<strong>do</strong>-se sujeitos, on<strong>de</strong> se dá a utilização<br />
viva da música, que se faz presente em seu cotidiano, seja a música <strong>de</strong> sua cultura,<br />
quanto outras musicalida<strong>de</strong>s que venham a conhecer. Essa utilização é pessoal<br />
e social ao mesmo tempo, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as implicações com a música em seus contextos<br />
locais <strong>de</strong> vida, on<strong>de</strong> se constroem significa<strong>do</strong>s e senti<strong>do</strong>s para a música, e<br />
on<strong>de</strong> as músicas se fazem constitutivas <strong>do</strong>s jovens enquanto sujeitos. Dessa forma,<br />
a música é parte integrante da construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sujeitos.<br />
A possibilida<strong>de</strong>, neste momento histórico no Brasil, da música existir em cada escola<br />
como parte integrante <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> ensino e aprendizagem <strong>do</strong>s alunos da<br />
educação básica, é um oferecimento a cada um <strong>do</strong>s alunos – assim como aos professores<br />
que ministrarão as aulas – <strong>de</strong> terem um efetivo acesso à educação musical,<br />
e <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> concreto a todas as questões que foram discutidas anteriormente nesse<br />
texto, e que dizem respeito à relação com a música. Neste senti<strong>do</strong>, esse processo se<br />
torna uma ferramenta <strong>de</strong> inclusão cultural e <strong>de</strong> cidadania, que <strong>de</strong>mocratiza o acesso<br />
à arte, e ajuda a fortalecer a cultura nacional, garantin<strong>do</strong> também a preservação das<br />
raízes culturais e da musicalida<strong>de</strong> brasileira.<br />
Cabe dizer ainda que – e isto é já sabi<strong>do</strong> - as ativida<strong>de</strong>s musicais permitem <strong>de</strong>senvolver<br />
habilida<strong>de</strong>s cognitivas, psicomotoras, emocionais, a memória, a linguagem, a<br />
autoestima, a autoexpressão, bem como a interação entre os sujeitos envolvi<strong>do</strong>s no<br />
fazer musical (Bruscia, 2000). É visível, portanto, que a música permite expandir o<br />
universo cultural e <strong>de</strong> conhecimentos, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> geral, <strong>do</strong>s alunos, proporcionan<strong>do</strong><br />
451
452<br />
<strong>de</strong>senvolver a compreensão da multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> manifestações artísticas e estéticas,<br />
e sua inter-relação com o <strong>de</strong>senvolvimento social e histórico <strong>de</strong> uma coletivida<strong>de</strong>.<br />
Nesse senti<strong>do</strong>, esse curso <strong>de</strong> formação profissional continuada em música possibilita<br />
aos professores um enriquecimento <strong>de</strong> seu próprio background <strong>de</strong> conhecimento,<br />
assim como amplia seu campo <strong>de</strong> trabalho e atuação profissional – no<br />
momento presente nas escolas on<strong>de</strong> ministram aulas, e como projeto e possibilida<strong>de</strong>s<br />
futuras <strong>de</strong> atuação. Pois, permite capacitação e qualificação profissional, aprimoramento<br />
e <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> seu potencial como educa<strong>do</strong>r, e torna-os aptos<br />
a mais uma competência no processo <strong>de</strong> ensinar-apren<strong>de</strong>r, ou seja, o trabalho com<br />
o ensino na área musical.<br />
A <strong>do</strong>cência, seja ela em qual área <strong>do</strong> conhecimento for, implica formação em vários<br />
aspectos, na medida em que ensinar exige bom senso, apreensão da realida<strong>de</strong>, respeito<br />
à autonomia <strong>do</strong> educan<strong>do</strong>, consciência <strong>do</strong> inacabamento, curiosida<strong>de</strong>, alegria,<br />
esperança (Freire, 1997), e várias outras condições que são forjadas na história<br />
<strong>de</strong> vida <strong>do</strong>s que à esta ativida<strong>de</strong> resolvem se <strong>de</strong>dicar. Segun<strong>do</strong> Zanella (2007):<br />
Estas ultrapassam em muito a formação meramente técnica, embora <strong>de</strong>sta não<br />
seja possível prescindir. Afinal, quem ensina na verda<strong>de</strong> ensina algo para alguém,<br />
sen<strong>do</strong> reconheci<strong>do</strong> por este outro enquanto autorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> saber na medida em<br />
que estabelece com o objeto <strong>de</strong> conhecimento uma relação <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong> (Zanella<br />
2007, 144).<br />
Portanto, na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> educa<strong>do</strong>r/professor é fundamental exercer ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
formação continuada ao longo da vida. Neste senti<strong>do</strong>, toman<strong>do</strong> como eixo o enfoque<br />
<strong>de</strong>ste curso – a formação musical – outro aspecto relevante que <strong>de</strong>sponta é a<br />
educação estética, veiculada por meio das ativida<strong>de</strong>s realizadas com os saberes e fazeres<br />
musicais, por exemplo.<br />
Percebemos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já que estes aspectos são fundamentais na educação e na formação<br />
humana, não para formar músicos em série (ou outros artistas), mas para mostrar<br />
que a educação estética (Vygotski, 2001), é parte indispensável da educação e<br />
da constituição <strong>do</strong>s sujeitos, uma vez que, segun<strong>do</strong> Vygotski (2004):<br />
Aqui resi<strong>de</strong> a chave para a tarefa mais importante da educação estética: introduzir<br />
a educação estética na própria vida. A arte transfigura a realida<strong>de</strong> não só nas construções<br />
da fantasia, mas também na elaboração real <strong>do</strong>s objetos e situações. A casa<br />
e o vestuário, a conversa e a leitura, e a maneira <strong>de</strong> andar, tu<strong>do</strong> isso po<strong>de</strong> servir igualmente<br />
como o mais nobre material para a elaboração estética. De coisa rara e fútil<br />
a beleza <strong>de</strong>ve transformar-se em uma exigência <strong>do</strong> cotidiano. . . (Vygotski 2004, 352).<br />
Importante dizer que a<strong>do</strong>tar uma perspectiva estética na educação não significa trabalharmos<br />
necessariamente para a formação <strong>de</strong> artistas; significa, antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>,<br />
construirmos uma educação que tenha a arte, ou mesmo as ativida<strong>de</strong>s expressivas<br />
<strong>de</strong> arte (as objetivações artísticas e cria<strong>do</strong>ras, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> geral), como aliadas na relação<br />
e no processo <strong>de</strong> ensinar & apren<strong>de</strong>r (Camargo e Bulgacov, 2007).
Enten<strong>de</strong>mos que, através da aproximação com as artes, a estética po<strong>de</strong> vir a ser<br />
um instrumento para a educação <strong>do</strong> sensível, levan<strong>do</strong>-nos a <strong>de</strong>scobrir formas<br />
até então inusitadas <strong>de</strong> perceber o mun<strong>do</strong>. Por meio da experiência estética o<br />
homem <strong>de</strong>senvolve a capacida<strong>de</strong> sensível, a percepção, construin<strong>do</strong> um olhar<br />
que o incentiva a perceber a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> diversos ângulos, <strong>de</strong> diversos aspectos<br />
(Camargo e Bulgacov, 2007, p. 187).<br />
A educação estética é, portanto, direcionada à emancipação e realização humana.<br />
Neste senti<strong>do</strong> a preocupação com a estética, porque propriamente mobiliza a criação.<br />
E, junto disso, “estética porque po<strong>de</strong> sensibilizar apropriações da realida<strong>de</strong> polifacetada,<br />
interpretan<strong>do</strong>-a em suas diferentes formas <strong>de</strong> apresentação sígnica.<br />
Estética porque supera o estésico alçan<strong>do</strong> pensares e fazeres a patamares on<strong>de</strong> se<br />
bricolam inovações” (Zanella, Maheirie, Costa et al., 2007, p. 13). Vygotski (2001)<br />
compreen<strong>de</strong> a ativida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra e as objetivações estéticas como constitutivas <strong>do</strong><br />
sujeito, um sujeito que é criativo, sensível e ativo, que por suas ativida<strong>de</strong>s se (re)cria<br />
nas condições materiais <strong>de</strong> existência, assim como po<strong>de</strong> (re)criar a própria existência<br />
por meio <strong>de</strong> seu agir.<br />
Portanto, para efetivar estas possibilida<strong>de</strong>s junto a alunos, possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> educação<br />
estética e aprendizagem musical, é importante que criemos espaços <strong>de</strong> formação<br />
continuada para professores e educa<strong>do</strong>res, nos quais eles, primeiramente,<br />
possam, ao trabalhar sobre si mesmos, (re)criarem suas ativida<strong>de</strong>s e práticas pedagógicas<br />
como <strong>do</strong>centes. Esta <strong>de</strong>manda e necessida<strong>de</strong> na atualida<strong>de</strong> se faz primordial,<br />
em qualquer instituição <strong>de</strong> ensino, seja ela que atenda bebês, crianças, a<strong>do</strong>lescentes,<br />
jovens e/ou adultos.<br />
Nos contextos <strong>de</strong> ensinar e apren<strong>de</strong>r, a figura e o trabalho <strong>de</strong>sempenha<strong>do</strong> pelo educa<strong>do</strong>r<br />
é fundamental para o processo <strong>de</strong> aprendizagem <strong>do</strong> educan<strong>do</strong> e para sua constituição<br />
como sujeito. Molon (2005)1 <strong>de</strong>staca que “o professor tem <strong>de</strong> ser um artista,<br />
que está lidan<strong>do</strong> com a matéria-prima específica, viva e inteligente que é o ser humano”.<br />
Pino (2005)2 diz que a aca<strong>de</strong>mia forma educa<strong>do</strong>res, mas não forma a criativida<strong>de</strong><br />
neles. Existem educa<strong>do</strong>res muito inventivos e pouco criativos, inventam tantas ativida<strong>de</strong>s<br />
que, muitas vezes, não levam a lugar nenhum, pois não <strong>de</strong>spertam significações<br />
nas crianças. Faz-se necessário educa<strong>do</strong>res que imaginem, que pensem, que<br />
articulem conexões entre to<strong>do</strong>s aqueles conhecimentos teóricos que tiveram durante<br />
suas formações acadêmicas e que também <strong>de</strong>senvolvam ativida<strong>de</strong>s cria<strong>do</strong>ras,<br />
que inovem e estendam isto a seus alunos. Aquilo que sabemos (conhecimento)<br />
<strong>de</strong>ve estar associa<strong>do</strong> ao nosso fazer e se integrar, <strong>de</strong> fato, a nossa possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser<br />
afeta<strong>do</strong>. Na medida em que este processo não se concretiza na práxis pedagógica, é<br />
fundamental uma formação continuada e um rever <strong>do</strong>s contextos da instituição<br />
escolar.<br />
Zanella, Maheirie, Da Ros, et al. (2007) relatam e discutem a partir da realização <strong>de</strong><br />
oficinas com professores(as) da re<strong>de</strong> pública, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Florianópolis-SC, uma<br />
453
454<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se trabalhar com ativida<strong>de</strong>s cria<strong>do</strong>ras, educação estética e constituição<br />
<strong>do</strong> sujeito em contextos <strong>de</strong> formação continuada. Suas pesquisas e intervenções<br />
basearam-se em oficinas “conduzidas através <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s que envolviam<br />
sensibilização e reflexão a partir <strong>de</strong> linguagens artísticas variadas” (p. 138). Fica evi<strong>de</strong>nte<br />
com a realização <strong>de</strong>stas oficinas que a abertura <strong>de</strong> espaços que vislumbram<br />
novos olhares é <strong>de</strong> fundamental importância, e aqui falamos <strong>de</strong> novos olhares no<br />
trabalho com a dimensão sensível e ativida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra a partir da arte, que permite<br />
aos educa<strong>do</strong>res(as) tornarem-se sensíveis a novos <strong>de</strong>vires em sua própria prática.<br />
Camargo e Bulgacov (2007) trazem os questionamentos:<br />
. . . Como formar leitores com professores não leitores? Como escutar as fantasias<br />
<strong>de</strong> crianças, a<strong>do</strong>lescentes e jovens se embotamos nosso próprio imaginário?<br />
Como estimular a criativida<strong>de</strong>, o raciocínio, a ousadia, se estamos toma<strong>do</strong>s pela<br />
apatia? Como <strong>de</strong>senvolver a sensibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> estudante se a nossa própria sensibilida<strong>de</strong><br />
é <strong>de</strong>scuidada? (Camargo e Bulgacov, 2007, p. 196).<br />
Segun<strong>do</strong> estas autoras, é necessário romper com este círculo vicioso que perpetua<br />
e justifica a reprodução e os imobilismo. O rompimento com estas formas <strong>de</strong> ser e<br />
agir é possível a partir <strong>do</strong> momento em que o professor começa a mudar sua atitu<strong>de</strong><br />
e sua postura diante <strong>de</strong> seus fazeres, quan<strong>do</strong> “. . .<strong>de</strong>stitui-se <strong>de</strong> sua posição <strong>de</strong><br />
autorida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>tém o saber e transforma o aluno em mero receptor <strong>do</strong> seu saber.<br />
Quan<strong>do</strong> o professor se coloca na relação <strong>do</strong> ensinar-apren<strong>de</strong>r aberto para o apren<strong>de</strong>r-ensinan<strong>do</strong><br />
ele po<strong>de</strong> romper com esta reprodução” (Camargo e Bulgacov, 2007,<br />
p. 196).<br />
Nos processos <strong>de</strong> ensinar & apren<strong>de</strong>r, sejam eles quais forem, professores e alunos<br />
<strong>de</strong>vem atuar conjuntamente na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> experimentar outras formas <strong>de</strong> relações<br />
em que o exercício da criativida<strong>de</strong>, da ativida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra, da criticida<strong>de</strong>, da<br />
cognição, da imaginação, percepção e dimensão afetiva tornem-se possíveis na vida<br />
<strong>de</strong> cada um. Pois todas estas capacida<strong>de</strong>s se constroem nas constantes trocas, relações<br />
e interações <strong>de</strong> sujeitos concretos, totais e humanos, em busca da realização<br />
humana como um to<strong>do</strong>.<br />
Meto<strong>do</strong>logia<br />
Objetivos<br />
Este curso tem por objetivo geral capacitar os participantes (professores) para ministrarem<br />
aulas <strong>de</strong> música (ensino <strong>de</strong> música), visan<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolver e aprimorar o<br />
conhecimento musical <strong>do</strong>s mesmos, para estarem aptos a trabalhar com a formação<br />
musical <strong>de</strong> seus alunos.<br />
Como objetivos específicos <strong>do</strong> curso, po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>stacar que a proposta está <strong>de</strong>stinada<br />
a:<br />
• Ensinar a prática <strong>de</strong> instrumentos musicais: violão e flauta <strong>do</strong>ce;<br />
• Proporcionar práticas musicais <strong>de</strong>
conjunto;<br />
• Instrumentalizar para o trabalho <strong>de</strong> Iniciação Musical e Musicalização Infantil;<br />
• Realizar ‘Oficina <strong>de</strong> Tecnologia da Música’ (recursos da informática utiliza<strong>do</strong>s<br />
para criação, manipulação, execução e reprodução musical);<br />
• Ministrar conteú<strong>do</strong>s concernentes à música (conforme <strong>de</strong>scritos abaixo – conteú<strong>do</strong><br />
programático) e suas relações com a prática musical.<br />
Desta forma, salientamos que os professores que participam <strong>de</strong>ste curso serão capacita<strong>do</strong>s<br />
na formação <strong>de</strong>stas competências e habilida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a objetivá-las em<br />
si mesmos, primeiramente, para po<strong>de</strong>rem gradualmente trabalhá-las junto a seus<br />
próprios alunos na prática cotidiana <strong>do</strong>s processos <strong>de</strong> ensinar & apren<strong>de</strong>r.<br />
Meto<strong>do</strong>logia – Coleta e análise das informações<br />
O trabalho aqui apresenta<strong>do</strong> vincula-se à pesquisa <strong>de</strong> avaliação <strong>do</strong> curso (em andamento)<br />
e à investigação que tem como foco verificar a apropriação musical em<br />
processos <strong>de</strong> ensinar-apren<strong>de</strong>r <strong>de</strong> professores da re<strong>de</strong> pública e particular que participam<br />
<strong>de</strong> um curso <strong>de</strong> formação profissional continuada em música. Para tanto,<br />
estão sen<strong>do</strong> realizadas observações e registro das ativida<strong>de</strong>s realizadas a cada aula<br />
ministrada no referi<strong>do</strong> curso, e <strong>de</strong>scritas também as formas <strong>de</strong> interação <strong>do</strong>s participantes<br />
nestas ativida<strong>de</strong>s, para acompanhamento <strong>de</strong> suas diversas formas <strong>de</strong> apropriação<br />
musical.<br />
Além da observação e diário <strong>de</strong> campo, estão sen<strong>do</strong> realizadas entrevistas individuais<br />
com roteiro nortea<strong>do</strong>r com cada um <strong>do</strong>s professores participantes <strong>do</strong> curso,<br />
sen<strong>do</strong> que, posteriormente serão transcritas e analisadas por meio <strong>de</strong> análise <strong>do</strong> discurso,<br />
toman<strong>do</strong> por base os trabalhos <strong>de</strong> Bakhtin (2006) e Amorim (2002), para a<br />
construção das categorias que serão resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> percurso teórico-empírico da investigação.<br />
Resulta<strong>do</strong>s e discussões até o momento<br />
Os professores participantes <strong>do</strong> curso são jovens e adultos, com faixa etária <strong>de</strong> 17 a<br />
45 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, que se apresentam estimula<strong>do</strong>s para o aprendiza<strong>do</strong> musical. Alguns<br />
já tinham conhecimento musical prévio, no que diz respeito a saber tocar um<br />
instrumento musical, mas a gran<strong>de</strong> maioria não – tinham porém, uma vonta<strong>de</strong> já<br />
há muito tempo na vida para apren<strong>de</strong>r música, que neste momento está se tornan<strong>do</strong><br />
realida<strong>de</strong>.<br />
A maioria <strong>do</strong>s alunos são professores da educação básica (ensino fundamental) <strong>de</strong><br />
escolas municipais, estaduais e particulares <strong>de</strong> municípios da Região da Quarta Colônia,<br />
e professores <strong>de</strong> música <strong>de</strong> escolas particulares da mesma região. Os <strong>de</strong>mais<br />
são profissionais <strong>de</strong> outras áreas <strong>de</strong> atuação ou estudantes, que também estão ten<strong>do</strong><br />
na música mais uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formação e atuação profissional.<br />
455
456<br />
É interessante acompanharmos a construção <strong>de</strong>ste espaço <strong>de</strong> trabalho e espaço <strong>de</strong><br />
formação a quem <strong>de</strong>ste curso participa, seja como professor, seja como aluno. É um<br />
espaço, certamente on<strong>de</strong> há um processo contínuo <strong>de</strong> ensinar & apren<strong>de</strong>r, que estimula<br />
à formação contínua, ao aprimoramento, qualificação, inovação e capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> criar/criativida<strong>de</strong> no fazer. Ao chegar ao terceiro mês <strong>de</strong> aula (outubro <strong>de</strong><br />
2009) o curso já começou a fazer multiplica<strong>do</strong>res, pois três <strong>do</strong>s educa<strong>do</strong>res que são<br />
alunos neste curso, e atuam como professores em uma escola estadual <strong>de</strong> Faxinal <strong>do</strong><br />
Soturno-RS, Brasil, criaram em sua escola o projeto “Música na Escola”, on<strong>de</strong> estão<br />
ministran<strong>do</strong> aulas <strong>de</strong> violão para aproximadamente 150 alunos da educação básica,<br />
que possuem <strong>de</strong> 10 a 16 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Estes professores estão aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a seis turmas<br />
<strong>de</strong> 27 alunos cada, para a aprendizagem <strong>do</strong> violão, e com o projeto que elaboraram<br />
receberam recursos <strong>do</strong> governo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul para a<br />
compra <strong>de</strong> <strong>do</strong>ze instrumentos/violões. Compuseram também um coral, e iniciarão<br />
aulas <strong>de</strong> flauta <strong>do</strong>ce também na escola. Estes professores já estão se tornan<strong>do</strong><br />
multiplica<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s saberes e fazeres musicais para seus alunos, no contexto escolar<br />
em que atuam.<br />
Como resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s pela realização <strong>de</strong>ste Curso <strong>de</strong> Formação Continuada,<br />
até o momento, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar a capacitação profissional <strong>do</strong>s professores participantes,<br />
no que tange aos conhecimentos teórico-práticos da música em instrumentação<br />
musical: violão e flauta <strong>do</strong>ce; teoria musical; leitura e escrita da música;<br />
percepção musical; história da música; interface entre psicologia, educação e música<br />
e tecnologia e música.<br />
Estes resulta<strong>do</strong>s são fruto da realização <strong>de</strong> uma ampla ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formação continuada<br />
– a formação ao longo da vida – que objetiva e já está forman<strong>do</strong> multiplica<strong>do</strong>res<br />
<strong>do</strong> conhecimento musical. Estes multiplica<strong>do</strong>res realizam também, por sua<br />
vez, um intercâmbio <strong>de</strong> informações e experiências entre escolas da região, através<br />
<strong>de</strong> suas interações <strong>de</strong> conhecimento e prática musical.<br />
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
A realização e os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s com o Curso <strong>de</strong> Formação Profissional Continuada<br />
em Música, conforme apresenta<strong>do</strong> neste trabalho, mesmo consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong><br />
que a pesquisa não está encerrada, ou seja, está em fases <strong>de</strong> andamento, até o momento<br />
<strong>de</strong>monstra que ações como esta são exemplos <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estratégia<br />
<strong>de</strong> capacitação/formação <strong>de</strong> <strong>do</strong>centes, pon<strong>do</strong> em foco a formação continuada <strong>de</strong><br />
professores generalistas e também professores que já são educa<strong>do</strong>res musicais, para<br />
a implementação e objetivação da lei que dispõe sobre a obrigatorieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> ensino<br />
<strong>de</strong> música no Brasil.<br />
Esta ação não <strong>de</strong>ve ser uma ação isolada, mas uma ação que possa também servir <strong>de</strong><br />
exemplo a <strong>de</strong>mais grupos <strong>de</strong> professores, instituições <strong>de</strong> ensino, à parceria entre escolas<br />
e faculda<strong>de</strong> e universida<strong>de</strong>s, ten<strong>do</strong> como objetivo diversas formas e soluções
<strong>de</strong> implementação da referida lei.<br />
Além disso, ao ser uma possibilida<strong>de</strong> prática <strong>de</strong> formação continuada para professores<br />
generalistas e educa<strong>do</strong>res musicais, para a capacitação e aprimoramento das<br />
competências e habilida<strong>de</strong>s na área <strong>de</strong> educação musical, a pesquisa irá trazer contribuições<br />
no que se refere à apropriação <strong>do</strong> conhecimento musical por professores<br />
e educa<strong>do</strong>res, <strong>de</strong> forma a constituírem-se multiplica<strong>do</strong>res <strong>de</strong>stes saberes e fazeres e<br />
atuarem em processos <strong>de</strong> ensinar & apren<strong>de</strong>r com seus alunos, em seus contextos<br />
escolares.<br />
1 Informação verbal <strong>de</strong> curso, a respeito das oficinas estéticas <strong>de</strong>senvolvidas junto <strong>de</strong> professores.<br />
Data: 11/03/2005, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina (UFSC).<br />
2 Informação verbal <strong>de</strong> curso, “As três instâncias <strong>do</strong> ser humano: o simbólico, o imaginário<br />
e o real”. Data: 11/03/2005, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina (UFSC).<br />
Referências<br />
Amorim, Marilia. Vozes e silêncio no texto <strong>de</strong> pesquisa em ciências humanas. Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong><br />
Pesquisa 116, p. 7-19, jul., 2002.<br />
Bakhtin, Mikhail; (Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec,<br />
2006.<br />
Bruscia, Kenneth E. Definin<strong>do</strong> musicoterapia. 2. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Enelivros, 2000.<br />
Camargo, Denise <strong>de</strong>; Bulgacov, Yara L. M. Por uma perspectiva estética e expressiva no cotidiano<br />
da escola. In: Zanella, Andréa V.; Maheirie, Kátia; Costa, Fabíola C. B.; San<strong>de</strong>r,<br />
Lucilene; Da Ros, Sílvia Z. (Orgs.). Educação estética e constituição <strong>do</strong> sujeito: reflexões em<br />
curso. Florianópolis: NUP/CED/UFC, 2007. p. 183-198.<br />
Freire, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, 1997.<br />
Maheirie, Kátia. Processo <strong>de</strong> criação no fazer musical: uma objetivação da subjetivida<strong>de</strong>, a<br />
partir <strong>do</strong>s trabalhos <strong>de</strong> Sartre e Vygotsky. In: Psicologia em Estu<strong>do</strong> 8, n. 02, p. 147-153,<br />
Maringá, 2003.<br />
Maheirie, Kátia. Sete mares numa ilha: a mediação <strong>do</strong> trabalho acústico na construção da<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> coletiva. Tese (Doutora<strong>do</strong> em Psicologia Social) – Pontifícia Universida<strong>de</strong><br />
Católica <strong>de</strong> São Paulo, São Paulo, 2001.<br />
Vygotski, Lev S. A educação estética. p. 323-363. In: Vygotski, Lev S. Psicologia pedagógica.<br />
São Paulo: Martins Fontes, 2001.<br />
Vygotski, Lev S. A psicologia e o mestre. p. 445-464. In: Vygotski, Lev S. Psicologia pedagógica.<br />
2. ed. São: Martins Fontes, 2004.<br />
Zanella, Andréa V.; Maheirie, Kátia; Costa, Fabíola C. B.; San<strong>de</strong>r, Lucilene; Da Ros, Sílvia<br />
Z. (Orgs.). Educação estética e constituição <strong>do</strong> sujeito: reflexões em curso. Florianópolis:<br />
NUP/CED/UFC, 2007.<br />
Zanella, Andréa Vieira. Sobre olhares, fios e rendas: reflexões sobre o processo <strong>de</strong> constituição<br />
<strong>de</strong> educa<strong>do</strong>res(as). In: Zanella, Andréa V.; Costa, Fabíola C. B.; Maheirie, Kátia;<br />
San<strong>de</strong>r, Lucilene; Da Ros, Sílvia Z. Educação estética e constituição <strong>do</strong> sujeito: reflexões<br />
em curso. Florianópolis: NUP/CED/UFSC, 2007. p. 143-154.<br />
457
458<br />
O Aprendiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> Música<br />
por Crianças com Necessida<strong>de</strong>s Educacionais Especiais<br />
Joana Malta Gomes<br />
joanamago@yahoo.com.br<br />
Mestranda <strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Música – UNIRIO<br />
Resumo<br />
Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o conceito <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s educacionais especiais como uma forma <strong>de</strong><br />
apontar a <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> alunos em função <strong>de</strong> um aprendiza<strong>do</strong> específico em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong><br />
contexto, o que seria uma necessida<strong>de</strong> educacional em música? Se a criança chega à escola<br />
portan<strong>do</strong> alguma <strong>de</strong>ficiência, seja ela <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m física, sensorial ou cognitiva, na<br />
atual proposta <strong>de</strong> educação inclusiva, a escola <strong>de</strong>ve se preparar para aten<strong>de</strong>r esta criança<br />
em todas as necessida<strong>de</strong>s que ela possa apresentar. Uma vez estabelecida à obrigatorieda<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> ensino <strong>de</strong> música na escola regular, o professor <strong>de</strong> música também <strong>de</strong>ve<br />
estar prepara<strong>do</strong> para o processo <strong>de</strong> inclusão <strong>de</strong> crianças com necessida<strong>de</strong>s educacionais<br />
na aula <strong>de</strong> música. Quais serão as dificulda<strong>de</strong>s em música que uma criança com <strong>de</strong>ficiência<br />
intelectual po<strong>de</strong> apresentar. Qual a potencialida<strong>de</strong> musical <strong>de</strong> uma criança<br />
<strong>de</strong>ficiente? Que papel a música po<strong>de</strong> representar no processo <strong>de</strong> inclusão <strong>de</strong>ssa criança<br />
como um to<strong>do</strong>? Estas são algumas questões apresentadas neste ensaio que procura não<br />
só refletir sobre a educação inclusiva em música, mas também sobre o próprio <strong>de</strong>senvolvimento<br />
musical humano, colocan<strong>do</strong> em evidência duas síndromes: o autismo e a<br />
síndrome <strong>de</strong> Williams como um para<strong>do</strong>xo para as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprendiza<strong>do</strong> e <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s musicais.<br />
Introdução<br />
Diante da atual proposta <strong>de</strong> Educação Inclusiva e da obrigatorieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> ensino <strong>de</strong><br />
música na escola regular, venho por meio <strong>de</strong>ste artigo, levantar algumas questões<br />
sobre o aprendiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> música por crianças pequenas com necessida<strong>de</strong>s educacionais<br />
especiais incluídas em aulas regulares <strong>de</strong> música na escola <strong>de</strong> educação infantil.<br />
Glat e Blanco (2009) <strong>de</strong>finem as necessida<strong>de</strong>s educacionais especiais como aquelas<br />
“apresentadas pelos alunos com diferenças qualitativas no <strong>de</strong>senvolvimento com<br />
origem nas <strong>de</strong>ficiências físicas, motoras, sensoriais, e/ ou cognitivas, distúrbios psicológicos<br />
e/ ou <strong>de</strong> comportamento (condutas típicas), e com altas habilida<strong>de</strong>s”<br />
(p.26). No contexto da Educação Inclusiva, em que todas as crianças <strong>de</strong>vem ser incluídas<br />
no ensino regular, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> “suas condições socioeconômicas, raciais,<br />
culturais ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento” (p. 16), o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> ensino e aprendiza<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>ste grupo heterogêneo <strong>de</strong> crianças com necessida<strong>de</strong>s educacionais especiais<br />
é necessário também no que diz respeito ao aprendiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> música. Como aponta<br />
Fernan<strong>de</strong>s (1998) diversos pesquisa<strong>do</strong>res da área <strong>de</strong> psicologia da música já vêm<br />
<strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> pesquisas sobre o <strong>de</strong>senvolvimento musical <strong>de</strong> crianças pequenas.
Entretanto não é evi<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong> nestas pesquisas o <strong>de</strong>senvolvimento musical <strong>de</strong> crianças<br />
com necessida<strong>de</strong>s especiais.<br />
O estu<strong>do</strong> da relação entre a música e crianças <strong>de</strong>ficientes ainda está mais voltada<br />
para o campo da musicoterapia, cuja abordagem não será contemplada neste ensaio,<br />
uma vez que a educação musical inclusiva e a musicoterapia divergem em um<br />
ponto principal: seus objetivos. Enquanto a musicoterapia usa a música como recurso<br />
terapêutico, seja na busca <strong>de</strong> satisfação, da saú<strong>de</strong> física, da adaptação social ou<br />
até mesmo da cura (Bruscia, 2000, cita<strong>do</strong> por Chagas, 2008, p. 46); a educação musical<br />
para crianças com necessida<strong>de</strong>s educacionais especiais visa o aprendiza<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
música por meio <strong>de</strong> uma transformação qualitativa a cerca <strong>do</strong> conhecimento em<br />
música como acredito ser o objetivo da educação musical <strong>de</strong> uma forma geral.<br />
Sacks (2007) em um estu<strong>do</strong> sobre a música e o cérebro faz referências às habilida<strong>de</strong>s<br />
musicais adquiridas por crianças com comprometimento <strong>do</strong> la<strong>do</strong> esquer<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
cérebro e que chegam a se tornar savants musicais. O autor também relata casos <strong>de</strong><br />
pessoas com síndrome <strong>de</strong> Willians consi<strong>de</strong>radas como hipermusicais, <strong>de</strong>ntre outras<br />
características, mas com <strong>de</strong>ficiências cognitivas. Estes exemplos mostram certa<br />
<strong>de</strong>sproporcionalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento musical em relação ao <strong>de</strong>senvolvimento<br />
cognitivo. Isto abre um caminho para o aprendiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> música na escola como ativida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância no processo <strong>de</strong> inclusão <strong>de</strong> criança com necessida<strong>de</strong>s<br />
educacionais especiais.<br />
É importante em um primeiro momento enten<strong>de</strong>r o que significa necessida<strong>de</strong> educacional<br />
especial. Como Glat e Blanco explicam,<br />
necessida<strong>de</strong> educacional especial não é uma característica homogênea fixa <strong>de</strong><br />
um grupo etiológico também supostamente homogêneo, e sim uma condição individual<br />
e específica; em outras palavras, é a <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> aluno<br />
em relação a uma aprendizagem no contexto em que é vivida. Dois alunos com o<br />
mesmo tipo e grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>ficiência po<strong>de</strong>m requisitar diferentes adaptações <strong>de</strong> recursos<br />
didáticos e meto<strong>do</strong>lógicos. Da mesma forma um aluno que não tenha<br />
qualquer <strong>de</strong>ficiência, po<strong>de</strong>, sob <strong>de</strong>terminadas circunstâncias, apresentar dificulda<strong>de</strong>s<br />
para aprendizagem escolar formal que <strong>de</strong>man<strong>de</strong>m apoio especializa<strong>do</strong><br />
(Glat e Blanco 2009, p. 26-27, grifos <strong>do</strong>s autores).<br />
Diante <strong>de</strong>ssas circunstâncias o processo <strong>de</strong> ensino e aprendizagem <strong>de</strong> música para<br />
as crianças que chegam à escola com necessida<strong>de</strong>s educacionais especiais <strong>de</strong>verá contar<br />
com uma avaliação particular <strong>de</strong>ssas necessida<strong>de</strong>s em relação ao aprendiza<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
música, pois como mostram os exemplos <strong>de</strong> Sacks (2007), não necessariamente a<br />
criança com <strong>de</strong>ficiência cognitiva apresentará dificulda<strong>de</strong>s neste aprendiza<strong>do</strong>. Esta<br />
situação também nos faz pensar que as crianças que mostram gran<strong>de</strong>s dificulda<strong>de</strong>s<br />
em se expressar musicalmente são aquelas que apresentam necessida<strong>de</strong>s educacionais<br />
especiais em música que, talvez passassem <strong>de</strong>sapercebidas, se não fossem submetidas<br />
ao ensino regular <strong>de</strong> música.<br />
459
460<br />
Entretanto, acredito que o <strong>de</strong>senvolvimento musical <strong>de</strong> cada criança é passível <strong>de</strong><br />
diagnóstico tanto das suas limitações quanto das potencialida<strong>de</strong>s, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o aprendiza<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> música contribuir para a inclusão <strong>do</strong> aluno com necessida<strong>de</strong>s especiais no<br />
contexto escolar e consequentemente para o seu <strong>de</strong>senvolvimento global.<br />
Desenvolvimento infantil<br />
e necessida<strong>de</strong>s educacionais especiais<br />
Henri Wallon, em sua tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> baseada em 214 observações <strong>de</strong> crianças<br />
internadas em instituições psiquiátricas <strong>de</strong>fendida no ano <strong>de</strong> 1925, contribui não<br />
apenas para uma maior compreensão <strong>do</strong> comportamento <strong>de</strong> crianças com diferentes<br />
distúrbios mentais, como também para o próprio entendimento <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
infantil, principalmente no que diz respeito ao <strong>de</strong>senvolvimento<br />
emocional e motor. Naquela época, crianças especiais eram internadas e não tinham<br />
oportunida<strong>de</strong> à educação, principalmente as que apresentavam distúrbios<br />
<strong>do</strong> comportamento. Mas a busca <strong>de</strong> Wallon não se limitou em compreen<strong>de</strong>r a<br />
criança turbulenta, mas em refletir sobre o próprio <strong>de</strong>senvolvimento infantil. Wallon<br />
explica no prefácio <strong>de</strong> seu livro A evolução psicológica da criança as mudanças<br />
ocorridas no campo da psicologia da criança, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da pesquisa e sua relação<br />
com a educação.<br />
Foram as necessida<strong>de</strong>s e a prática que primeiro fizeram perceber um <strong>de</strong>sacor<strong>do</strong><br />
fundamental entre realida<strong>de</strong> e os esquemas utiliza<strong>do</strong>s para explicar as operações<br />
psíquicas. Foram problemas pedagógicos que incitaram a buscar outros procedimentos<br />
para avaliar e utilizar as forças <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento psíquico da criança<br />
[. . .]. Por ter preconiza<strong>do</strong> o acor<strong>do</strong> entre a mais livre expressão <strong>de</strong> todas as energias<br />
em potência na criança e no meio, um educa<strong>do</strong>r filósofo como Dewey, embora<br />
não fosse propriamente psicólogo, abriu caminho, não só para inúmeros<br />
ensaios práticos <strong>de</strong> educação, mas também para estu<strong>do</strong>s sobre as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
ativida<strong>de</strong> na criança e sobre a influência que ela sofre <strong>do</strong>s meios em que se encontra<br />
(Wallon 2006, p.4).<br />
O que Wallon está queren<strong>do</strong> enfatizar é que a compreensão <strong>do</strong> comportamento<br />
infantil e, consequentemente, <strong>do</strong> seu <strong>de</strong>senvolvimento, partiu da prática, <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s<br />
reais <strong>de</strong> dar respostas coerentes que pu<strong>de</strong>ssem compreen<strong>de</strong>r a criança,<br />
não apenas na sua forma <strong>de</strong> agir, mas também <strong>de</strong> perceber e enten<strong>de</strong>r o meio em que<br />
vive. Problemas práticos principalmente em situações <strong>de</strong> aprendiza<strong>do</strong> propiciam a<br />
reflexão sobre a maneira <strong>de</strong> pensar e agir da criança. É claro que mais <strong>de</strong> sessenta<br />
anos <strong>de</strong>pois, tais idéias já estão bastante difundidas, não só na área da psicologia,<br />
como também na educação. Depois <strong>de</strong> Vigotski, Piaget, Gesell e o próprio Wallon,<br />
muito já se tem conheci<strong>do</strong> sobre o comportamento da criança pequena e seu <strong>de</strong>senvolvimento.<br />
Entretanto, apesar <strong>do</strong>s avanços na psicologia <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento infantil ou
mesmo nas neurociências, pouco ainda se sabe sobre o limite <strong>de</strong> aprendiza<strong>do</strong> e <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> crianças com diversas anomalias ou transtornos <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento.<br />
Glat, baseada na contribuição <strong>de</strong> Murray Sidman (1970), afirma que “em<br />
termos empíricos não existe até hoje méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> avaliação que possa dizer com precisão<br />
se uma criança ou adulto <strong>de</strong>ficiente está funcionan<strong>do</strong> ao seu máximo potencial<br />
(Glat 2006, p. 43)”.<br />
Quan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma criança ocorre <strong>de</strong> forma padrão, acredita-se<br />
ser possível estabelecer um prognóstico quanto à escolarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal criança; afinal<br />
<strong>de</strong> contas, to<strong>do</strong> sistema educacional é construí<strong>do</strong> acreditan<strong>do</strong> que as crianças correspon<strong>de</strong>rão<br />
a cada etapa estabelecida. Entretanto, quan<strong>do</strong> qualquer alteração aparece<br />
no curso <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>senvolvimento e a criança passa a apresentar um déficit, ou<br />
seja, uma <strong>de</strong>ficiência orgânica que se manifesta pela falta <strong>de</strong> alguma habilida<strong>de</strong> ou<br />
característica comum a maioria <strong>do</strong>s seres humanos, o prognóstico escolar fica pelo<br />
menos em suspenso. Por outro la<strong>do</strong>, são as diferenças no <strong>de</strong>senvolvimento da<br />
criança que po<strong>de</strong>m anunciar a presença <strong>de</strong> alguma patologia, e quanto mais ce<strong>do</strong> um<br />
diagnóstico é feito, mesmo sem prognóstico ainda, mais ce<strong>do</strong> é possível intervir e<br />
em alguns casos evitar conseqüências futuras, principalmente no que diz respeito<br />
aos distúrbios <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m motora (Willrich et al 2008).<br />
Os estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Wallon serviram justamente para compreen<strong>de</strong>r a relação entre o funcionamento<br />
da ativida<strong>de</strong> nervosa e da ativida<strong>de</strong> psíquica, como Tran Thong explica<br />
a partir da tese <strong>de</strong> Wallon:<br />
A ativida<strong>de</strong> nervosa é <strong>de</strong> natureza elétrica e química, mas a ela está ligada por natureza<br />
a ativida<strong>de</strong> psíquica, o que os progressos da neurologia e da psicologia<br />
não cessam <strong>de</strong> confirmar. As funções nervosas são funções <strong>do</strong> organismo, da<br />
mesma maneira como funções psíquicas e vegetativas. Mas não são imediatamente<br />
eficientes como estas duas últimas, que asseguram umas a vida interna<br />
<strong>do</strong> organismo e as outras suas relações com o mun<strong>do</strong> circundante (Tran Thong<br />
2007, p. 11).<br />
Acredito que o entendimento, ou mesmo a constatação <strong>de</strong> que até mesmo o psiquismo<br />
humano é <strong>de</strong> natureza orgânica é <strong>de</strong> suma importância, principalmente<br />
para enten<strong>de</strong>r a criança com necessida<strong>de</strong>s especiais, pois seu comportamento atípico<br />
não se justifica apenas em conseqüência <strong>do</strong> seu <strong>de</strong>senvolvimento psicológico como<br />
já se pensou anteriormente, mas sim pela “existência <strong>de</strong> disfunções orgânicas no<br />
sistema fisiológico <strong>de</strong>sses indivíduos (Fernan<strong>de</strong>s et al, 2009, p. 157)”. Entretanto,<br />
Wallon não só <strong>de</strong>staca a natureza orgânica <strong>de</strong> certas <strong>de</strong>ficiências que atingem o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
da personalida<strong>de</strong> da criança, mas também como tal <strong>de</strong>senvolvimento<br />
funcional acontece a partir da relação da criança com seu meio. Pereira<br />
explica:<br />
Na concepção genética, histórica ou biográfica da vida psíquica <strong>de</strong>fendida por<br />
Wallon, to<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>mínios funcionais, isto é, percepção, motricida<strong>de</strong>, ação, afetivida<strong>de</strong>,<br />
inteligência, caminham para se integrarem. O pólo biológico fornece<br />
461
462<br />
as condições <strong>de</strong> base neurológica para a vida mental, por sua vez, não consegue<br />
se <strong>de</strong>senvolver sem o meio sociocultural, ou seja, interpessoal e <strong>de</strong> valores, hábitos,<br />
tradições, técnica, conhecimentos, enfim, tu<strong>do</strong> que compõe a vida cultural<br />
das socieda<strong>de</strong>s, <strong>do</strong>s grupos humanos (Pereira 1995, p. 26).<br />
Portanto ao mesmo tempo em que po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r as alterações <strong>de</strong> comportamento<br />
da criança com <strong>de</strong>ficiência a partir <strong>de</strong> uma análise das disfunções orgânicas<br />
provocadas por <strong>de</strong>terminadas patologias, po<strong>de</strong>mos também consi<strong>de</strong>rar que tal <strong>de</strong>ficiência<br />
em si não é a condição para as necessida<strong>de</strong>s educacionais especiais, pois<br />
estas estão circunscritas à relação entre a criança e seu meio.<br />
Necessida<strong>de</strong>s educacionais especiais, portanto, são construídas socialmente, no<br />
ambiente <strong>de</strong> aprendizagem, não sen<strong>do</strong>, portanto, conseqüências inevitáveis da<br />
<strong>de</strong>ficiência ou <strong>do</strong> quadro orgânico apresenta<strong>do</strong> pelo indivíduo. [. . .] Isto não<br />
significa, certamente, negar que existam condições orgânicas que tornem o sujeito<br />
mais propenso a encontrar dificulda<strong>de</strong>s para apren<strong>de</strong>r. O aspecto que queremos<br />
reforçar é que uma necessida<strong>de</strong> educacional especial não se encontra na<br />
pessoa, não é uma característica intrínseca sua, mas sim um produto <strong>de</strong> sua interação<br />
com o contexto escolar on<strong>de</strong> a aprendizagem <strong>de</strong>verá se dar (Glat e<br />
Blanco 2009, p.28).<br />
Po<strong>de</strong>-se dizer que o confronto entre o comportamento padrão e o comportamento<br />
atípico é justamente o que coloca em evidência as necessida<strong>de</strong>s especiais <strong>do</strong>s alunos.<br />
Na área da medicina, o que é padrão serve como referência para o diagnóstico e<br />
para a busca <strong>de</strong> tratamento para a patologia que se apresenta, mas no âmbito social,<br />
um comportamento fora <strong>do</strong> padrão, isto é, fora das normas sociais, conduz à <strong>de</strong>preciação<br />
<strong>do</strong>s indivíduos porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> <strong>de</strong>ficiência. Como Glat explica,<br />
toda socieda<strong>de</strong> tem mecanismos <strong>de</strong> controle social para garantir que a maioria<br />
<strong>de</strong> seus membros se conforme com as normas estabelecidas. Aqueles que por características<br />
físicas ou comportamentais, não po<strong>de</strong>m se conformar, ou que violam<br />
as leis e normas sociais não são reconheci<strong>do</strong>s como membros efetivos <strong>do</strong><br />
corpo social, se tornan<strong>do</strong> indivíduos estigmatiza<strong>do</strong>s e marginaliza<strong>do</strong>s (Glat 2004,<br />
p. 22).<br />
Aqueles indivíduos que apresentam um comportamento fora da normalida<strong>de</strong>, por<br />
não se “conformarem” com os parâmetros sociais estabeleci<strong>do</strong>s para o comportamento<br />
<strong>de</strong> um indivíduo, são consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s como anormais. É esse tipo <strong>de</strong> classificação<br />
que promove o estigma <strong>de</strong> pessoas porta<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> <strong>de</strong>ficiências.<br />
Tem si<strong>do</strong> aponta<strong>do</strong> em diversas ocasiões que o estranho, o inespera<strong>do</strong>, o diferente,<br />
o excepcional, sempre chama a atenção e causa nas pessoas reações como<br />
curiosida<strong>de</strong>, espanto, surpresa, repulsão e até mesmo me<strong>do</strong>. Essas reações ocorrem<br />
porque tu<strong>do</strong> que é diferente, que não se encaixa nas nossas tipificações, que<br />
foge à norma – e é, portanto, anormal – ameaça a nossa frágil estabilida<strong>de</strong> social<br />
(Glat 1995, p. 25).<br />
No entanto, perceber as diferenças é inevitável. A to<strong>do</strong> o momento nos <strong>de</strong>paramos<br />
com pessoas e situações diferentes que colocam em cheque nossas condutas, e para
isso não é preciso ser “especial”. A criança por si só já é um ser diferente. O seu comportamento<br />
se diferencia <strong>do</strong> adulto justamente por ser criança e ainda não possuir<br />
o aparato biológico e psíquico <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> suficientemente para po<strong>de</strong>r compreen<strong>de</strong>r<br />
todas as regras sociais necessárias para convivência em grupo. Wallon faz<br />
críticas à maneira como o adulto percebe a criança sempre <strong>do</strong> seu ponto <strong>de</strong> vista.<br />
O egocentrismo <strong>do</strong> adulto po<strong>de</strong> enfim se manifestar por sua convicção <strong>de</strong> que<br />
toda evolução mental tem por fim inelutável seus próprios mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> sentir e <strong>de</strong><br />
pensar, os <strong>de</strong> seu meio e <strong>de</strong> sua época. Por outro la<strong>do</strong>, caso aconteça <strong>de</strong> ele reconhecer<br />
que os mo<strong>do</strong>s da criança são especificamente diferentes <strong>do</strong>s seus, não<br />
lhe resta outra alternativa senão consi<strong>de</strong>rá-los uma aberração (Wallon, 2006,<br />
11)<br />
A preocupação <strong>de</strong> Wallon se volta justamente para a maneira <strong>de</strong> olhar a criança.<br />
Como nós pais, professores, pesquisa<strong>do</strong>res, psicólogos, enfim, adultos olhamos a<br />
criança e o quanto não a julgamos por seus <strong>de</strong>svios que, <strong>do</strong> nosso ponto <strong>de</strong> vista,<br />
são ina<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s? Que pais não tiveram <strong>de</strong> lidar com a questão <strong>do</strong> limite da criança<br />
para não serem rotula<strong>do</strong>s no meio social por não terem o controle sobre o comportamento<br />
<strong>de</strong> seus filhos? Como seria uma sala <strong>de</strong> aula se toda criança só fizesse o<br />
que lhe convém, sem nenhuma regra ou limite para sustentabilida<strong>de</strong> da prática pedagógica?<br />
Qual o limite entre a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser criança e a sua a<strong>de</strong>quação ao meio<br />
em que vive?<br />
Todas essas questões, sem dúvida, ficam explícitas em um ambiente escolar e põem<br />
em cheque a prática pedagógica, principalmente se o grupo não se apresenta homogêneo,<br />
isto é, com crianças <strong>de</strong> uma mesma faixa etária, o mesmo nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
e aparências semelhantes (se é que isso é possível). Em um contexto<br />
escolar, on<strong>de</strong> as turmas são formadas por crianças <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>s, etnias, nível socioeconômico<br />
e condições físicas ou mentais diferentes, ou seja, um grupo heterogêneo,<br />
como é possível estabelecer os limites <strong>de</strong> conduta, expressão pessoal e <strong>de</strong>sempenho?<br />
O comportamento da criança com necessida<strong>de</strong>s especiais<br />
Entre as diversas patologias <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e conseqüentes <strong>de</strong>ficiências, as que<br />
mais <strong>de</strong>safiam a prática pedagógica são as que influenciam diretamente o comportamento<br />
das crianças. Para crianças com distúrbios <strong>do</strong> comportamento é dada a<br />
<strong>de</strong>signação <strong>de</strong> “condutas típicas” que se trata <strong>de</strong> “um conceito educacional e não um<br />
diagnóstico clínico” (Fernan<strong>de</strong>s et. al 2007,156). Crianças com condutas típicas<br />
<strong>de</strong>safiam a própria organização da dinâmica em sala <strong>de</strong> aula e a rotina escolar por<br />
apresentarem comportamentos ina<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s e fora das regras <strong>de</strong> convívio da comunida<strong>de</strong><br />
escolar.<br />
Essas crianças e a<strong>do</strong>lescentes manifestam um padrão <strong>de</strong> comportamento ou conduta<br />
muito peculiar, bastante diferencia<strong>do</strong> <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais alunos, que mostram<br />
conseqüências diretas em sua aprendizagem e relacionamento social. [. . .] As<br />
463
464<br />
crianças e jovens com condutas típicas geralmente tem dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> manter<br />
contato visual e po<strong>de</strong>m apresentar fobias [. . .] Sua característica mais marcante,<br />
porém, são comportamentos auto-estimulatórios (p. ex.: ficar balançan<strong>do</strong> o<br />
corpo, agitan<strong>do</strong> as mãos, etc) e autolesivos ou auto-agressivos (p. ex.: mor<strong>de</strong>r ou<br />
beliscar a si próprios, bater com a cabeça contra o chão ou pare<strong>de</strong>, etc. . .). (Fernan<strong>de</strong>s<br />
et. al 2007, 153-154).<br />
Uma vez incluídas em turmas regulares, todas as pessoas em contato com essas<br />
crianças terão que se adaptar à sua maneira diferente <strong>de</strong> ser. O professor terá que<br />
apren<strong>de</strong>r a lidar com a criança especial e com as reações das outras crianças diante<br />
das alterações <strong>de</strong> comportamento que a criança com condutas típicas possa apresentar.<br />
Trata-se <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> circunstâncias imprevisíveis tanto <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista<br />
da criança <strong>de</strong>ficiente como <strong>do</strong> resto <strong>do</strong> grupo.<br />
Como explicar para as outras crianças esta “liberda<strong>de</strong>” que a criança especial tem <strong>de</strong><br />
ficar alterada? Se a criança especial po<strong>de</strong>, por que as outras não? Sabemos que<br />
criança especial não po<strong>de</strong>, mas precisa, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a sua condição orgânica, reagir <strong>de</strong> tal<br />
forma. Sua alteração <strong>de</strong> comportamento faz parte da sua necessida<strong>de</strong> educacional especial,<br />
a forma como os outros irão lidar com ela é o que vai possibilitar sua inclusão<br />
ou não no contexto escolar. Afinal, é justamente no espaço social da escola que<br />
a criança po<strong>de</strong>rá apren<strong>de</strong>r a controlar seus impulsos e se adaptar ao meio social.<br />
Para as outras crianças da turma <strong>de</strong>verá haver uma orientação que justifique por<br />
que a criança especial “po<strong>de</strong>” se levantar, batucar ou se mexer incessantemente. Se<br />
nos voltarmos para o ambiente da aula <strong>de</strong> música, qual será o limite <strong>de</strong> movimentação<br />
<strong>de</strong> uma criança especial com esses automatismos ou impulsos motores? Como<br />
permitir a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão motora das crianças <strong>de</strong> uma forma geral sem comprometer<br />
o limite pessoal <strong>de</strong> cada um?<br />
O que procuro é chamar a atenção para o fato <strong>de</strong> que, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da aula <strong>de</strong><br />
música, principalmente para crianças pequenas, a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão motora<br />
da criança é imprescindível para o aprendiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> música. O único recurso que o<br />
professor tem para acompanhar o <strong>de</strong>senvolvimento musical <strong>de</strong> seus alunos é por<br />
meio <strong>de</strong> seu comportamento musical, que implica não somente no ato <strong>de</strong> cantar ou<br />
tocar um instrumento, mas em toda sua expressão motora, (ou seja, suas reações<br />
motoras ou movimentos suscita<strong>do</strong>s a partir <strong>do</strong> estimulo produzi<strong>do</strong> pelas ativida<strong>de</strong>s<br />
musicais em aula). Inibir a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> movimentação da criança em uma aula <strong>de</strong><br />
música é inibir sua expressão motora e consequentemente sua expressão musical.<br />
A experiência musical é vivenciada no corpo e é por meio <strong>do</strong> corpo, seja através das<br />
mãos que <strong>de</strong>dilham um instrumento <strong>de</strong> cordas ou percutem um tambor, <strong>do</strong> sopro,<br />
ou mesmo <strong>do</strong> canto; o que está em jogo são funções motoras associadas às perceptivas<br />
(Godinho 2006, 355-360). Dar limites ao comportamento <strong>de</strong> qualquer criança<br />
seja ela especial ou não, po<strong>de</strong>, <strong>de</strong> certa forma, limitar suas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> expressão<br />
musical.
De uma forma geral, na educação infantil é sempre impreciso o limite entre a liberda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> expressão motora da criança e a conduta a<strong>de</strong>quada. Isso fica mais <strong>de</strong>lica<strong>do</strong><br />
no caso das crianças que apresentam condutas típicas, pois o estímulo<br />
promovi<strong>do</strong> pela aula <strong>de</strong> música po<strong>de</strong> justamente <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar automatismos, estereotipias<br />
ou mesmo fobias. O que não quer dizer que o aprendiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> música seja<br />
ina<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> para crianças nessas condições. Na verda<strong>de</strong> o que vou mostrar aqui é<br />
justamente o contrário.<br />
O sucesso da inclusão está tanto na oportunida<strong>de</strong> <strong>do</strong> aluno especial <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r e<br />
se <strong>de</strong>senvolver como as <strong>de</strong>mais crianças, como no seu processo <strong>de</strong> socialização e<br />
aceitação no grupo. É claro que, uma vez que a criança especial está incluída, toda<br />
a comunida<strong>de</strong> escolar tem que aceitar seu comportamento e sua maneira <strong>de</strong> ser<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s limites <strong>de</strong> cada indivíduo. O problema é a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontrar justificativas<br />
para as possíveis liberda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conduta que criança especial precisa ter<br />
<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> justamente à sua necessida<strong>de</strong> especial. Dar oportunida<strong>de</strong> à criança especial<br />
<strong>de</strong> ser como é e se expressar da maneira que po<strong>de</strong> é abrir espaço para que todas as<br />
crianças tenham a mesma liberda<strong>de</strong> e a requisitem perante a escola. De outra forma,<br />
seria preciso justificar ou <strong>de</strong>sculpar o comportamento “não padrão” da criança especial<br />
como sen<strong>do</strong> “especial” voltan<strong>do</strong> assim à condição <strong>de</strong> estigma. Em uma escola<br />
<strong>de</strong> educação infantil, on<strong>de</strong> crianças pequenas estão justamente apren<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a<br />
perceber o outro e a reconhecê-lo e respeitá-lo pelas suas diferenças, como admitir<br />
a estigmatização da criança especial para justificar suas necessida<strong>de</strong>s?!<br />
Fica claro que no processo <strong>de</strong> inclusão <strong>de</strong> uma criança com necessida<strong>de</strong>s educacionais<br />
especiais não apenas esta criança precisará <strong>de</strong> adaptação ao meio escolar, mas<br />
também toda a escola e principalmente as crianças e professoras que lidam diretamente<br />
com ela terão que se adaptar a sua forma <strong>de</strong> ser (Glat e Blanco, 2009). Na verda<strong>de</strong>,<br />
acredito que seja preciso toda uma reformulação da dinâmica <strong>de</strong> aula para<br />
que as <strong>de</strong>ficiências da criança especial não sejam as únicas características a se <strong>de</strong>stacarem<br />
no convívio social.<br />
É nesse aspecto que coloco a aula <strong>de</strong> música como um ambiente propício para a socialização<br />
e valorização da criança especial. Além das potencialida<strong>de</strong>s musicais que<br />
tais crianças possam apresentar (como será visto mais adiante), a aula <strong>de</strong> música<br />
po<strong>de</strong> ser estruturada <strong>de</strong> forma a propiciar que não só a criança especial tenha a liberda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> expressão motora (mesmo que por meio <strong>de</strong> seus impulsos ou automatismos),<br />
mas também todas as crianças: como uma forma <strong>de</strong> se comunicar, cujo<br />
limite <strong>de</strong> expressão se encontra apenas no seu próprio corpo e no corpo <strong>do</strong> outro.<br />
De certa forma a aula <strong>de</strong> música na educação infantil po<strong>de</strong> ter também um efeito<br />
<strong>de</strong> catarse, assim como a própria prática musical enquanto arte o é (Vigotski 2004,<br />
340). Entretanto esta tarefa não é fácil.<br />
465
466<br />
Autismo e Síndrome <strong>de</strong> Willians:<br />
<strong>de</strong>safian<strong>do</strong> o entendimento <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento musical<br />
Acredito que o sucesso no processo <strong>de</strong> inclusão <strong>de</strong> crianças com alguma <strong>de</strong>ficiência,<br />
seja ela, física, mental ou sensorial, etc., <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da compreensão <strong>do</strong> professor<br />
acerca das características peculiares <strong>de</strong>ste aluno com necessida<strong>de</strong>s educacionais especiais.<br />
Na minha experiência enquanto professora <strong>de</strong> música <strong>de</strong> crianças e jovens<br />
com diversas <strong>de</strong>ficiências (que nem sempre se enquadravam em um diagnóstico fecha<strong>do</strong>)<br />
percebi que algo me escapava na compreensão que eu tinha <strong>de</strong>ssas pessoas.<br />
Por que certos alunos entravam na sala e ficavam <strong>de</strong> olhos fecha<strong>do</strong>s? Outros repetiam<br />
as mesmas palavras ou frases sem parar? Alguns não paravam quietos nem um<br />
segun<strong>do</strong>? E mais aqueles que apenas riam <strong>de</strong> qualquer coisa sem importância?<br />
Era uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comportamentos varia<strong>do</strong>s que me <strong>de</strong>safiavam como professora.<br />
Mas eu aceitei o <strong>de</strong>safio e aos poucos fui conhecen<strong>do</strong> a personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada<br />
aluno, suas características, ambições, suas habilida<strong>de</strong>s musicais, mas também suas limitações.<br />
Conhecer e apren<strong>de</strong>r sobre as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sses alunos tem si<strong>do</strong> uma<br />
busca incansável na tentativa <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r compreen<strong>de</strong>r seus comportamentos e aperfeiçoar<br />
minha prática pedagógica.<br />
Na busca <strong>de</strong> um referencial teórico sobre as potencialida<strong>de</strong>s musicais <strong>de</strong> crianças especiais<br />
me <strong>de</strong>parei com duas síndromes bastante intrigantes: o autismo e a síndrome<br />
<strong>de</strong> Williams. Minha intenção ao apresentar neste ensaio estas duas síndromes específicas<br />
se <strong>de</strong>ve em parte, pela contradição que elas apresentam entre si, mas principalmente,<br />
pela contradição entre <strong>de</strong>senvolvimento musical e intelectual,<br />
<strong>de</strong>safian<strong>do</strong> a nossa compreensão <strong>de</strong> como o cérebro processa a música. Outro motivo<br />
é que essas duas síndromes se enquadram no quadro <strong>de</strong> condutas típicas (Fernan<strong>de</strong>s<br />
et al 2009, 156).<br />
Sacks (1995) em seu livro Um antropólogo em Marte: sete histórias para<strong>do</strong>xais <strong>de</strong>screve<br />
fantásticas histórias <strong>de</strong> pessoas com autismo, entre outras. Em um <strong>do</strong>s capítulos<br />
<strong>de</strong>dica<strong>do</strong> aos prodígios ele relata casos <strong>de</strong> “savantismo” em música<br />
apresenta<strong>do</strong>s por pessoas autistas. O primeiro caso que ele apresenta é o <strong>de</strong> Tom<br />
<strong>de</strong>scrito em 1862, um cego que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequeno, dada a oportunida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>monstrou<br />
gran<strong>de</strong>s habilida<strong>de</strong>s musicais ao piano. Já o outro caso é o <strong>de</strong> um menino chama<strong>do</strong><br />
Stephen, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequeno apresentou notável talento para o <strong>de</strong>senho, pelo qual<br />
foi reconheci<strong>do</strong> inúmeras vezes por meio <strong>de</strong> exposições e publicações artísticas, mas<br />
sem nunca ter evi<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong> nenhum talento especial para música. Entretanto, em<br />
meio a sua a<strong>do</strong>lescência, ele apresentou subitamente imenso talento para interpretação<br />
e improvisação musical ao piano.<br />
No caso <strong>de</strong> Tom, apesar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> em sua época como “idiota ou imbecil”, as<br />
<strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> seu comportamento pelo médico francês E<strong>do</strong>uard Séguin, apontam<br />
para características <strong>do</strong> autismo que, como afirma Sacks, “só foi i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> nos
anos 40 <strong>de</strong>ste século, e não era uma palavra, nem mesmo um conceito, na década <strong>de</strong><br />
1860 (Sacks 1995, 200)”.<br />
O autismo foi <strong>de</strong>scrito quase que simultaneamente por Leo Kanner e Hans Asperger<br />
nos anos 40, mas o primeiro parecia vê-lo como um <strong>de</strong>sastre consuma<strong>do</strong>,<br />
enquanto o segun<strong>do</strong> achava que podia ter certos aspectos positivos e compensatórios<br />
– uma “originalida<strong>de</strong> particular <strong>de</strong> pensamento e experiência que po<strong>de</strong><br />
muito bem levar a conquistas excepcionais na vida adulta” (Sacks 1995, 253-<br />
254).<br />
Sacks comenta adiante que tais diferenças <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> vista entre os <strong>do</strong>is cientistas<br />
diziam respeito à particularida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s casos por eles estuda<strong>do</strong>s. O autismo po<strong>de</strong><br />
vir ou não associa<strong>do</strong> a um quadro <strong>de</strong> retardamento, o que influenciará mais ou<br />
menos negativamente no seu prognóstico. Entretanto, o retardamento (associa<strong>do</strong><br />
ao la<strong>do</strong> esquer<strong>do</strong> <strong>do</strong> cérebro) <strong>de</strong> certa forma propicia uma compensação <strong>do</strong> la<strong>do</strong> direito<br />
<strong>do</strong> cérebro e até mesmo “uma anômala <strong>do</strong>minância <strong>do</strong> hemisfério direito em<br />
vez da usual <strong>do</strong>minância <strong>do</strong> hemisfério esquer<strong>do</strong>” (Sacks 2007, 157) o que justificaria<br />
por que algumas pessoas com retar<strong>do</strong> mental po<strong>de</strong>m apresentar habilida<strong>de</strong>s savants.<br />
Sacks explica:<br />
Uma característica – na verda<strong>de</strong>, a característica <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>ra – das síndromes savant<br />
é a intensificação <strong>de</strong> certas capacida<strong>de</strong>s juntamente com uma <strong>de</strong>ficiência ou<br />
sub<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> outras. As capacida<strong>de</strong>s que são intensificadas nos savants<br />
são sempre <strong>de</strong> tipo concreto, ao passo que as <strong>de</strong>ficientes são abstratas e<br />
com freqüência lingüísticas. Muito já se especulou como po<strong>de</strong> ocorrer tal conjunção<br />
<strong>de</strong> forças e fraquezas (Sacks 2007, 156).<br />
Com a <strong>de</strong>scoberta <strong>do</strong> autismo, percebeu-se que “a maioria <strong>do</strong>s idiot savants eram na<br />
verda<strong>de</strong> autistas”. A incidência <strong>de</strong> “savantismo” entre os autistas “quase <strong>de</strong>z por<br />
cento – era praticamente duzentas vezes maior que na população <strong>de</strong> retarda<strong>do</strong>s e<br />
milhares <strong>de</strong> vezes maior que no resto <strong>do</strong>s homens”. Entre os talentos percebi<strong>do</strong>s<br />
nos savants autistas, estava os “musicais, mnemônicos, visuais e gráficos, <strong>de</strong> cálculo<br />
e assim por diante (Sacks 1995, 204-205)”. Diante <strong>de</strong>sses da<strong>do</strong>s não resta dúvida<br />
que habilida<strong>de</strong>s musicais po<strong>de</strong>m existir in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>do</strong> retar<strong>do</strong> mental que a<br />
criança possa apresentar. Entretanto não se sabe como exatamente a criança autista<br />
<strong>de</strong>senvolve tais habilida<strong>de</strong>s.<br />
O outro la<strong>do</strong> da prodigiosida<strong>de</strong> e da precocida<strong>de</strong>, a não-infantilida<strong>de</strong>, <strong>do</strong>s talentos<br />
savant é que eles não parecem se <strong>de</strong>senvolver como talentos normais. Já<br />
estão totalmente forma<strong>do</strong>s <strong>de</strong> saída. [. . .] Os talentos savant lembram <strong>de</strong> certa<br />
forma mecanismos prepara<strong>do</strong>s <strong>de</strong> antemão, predispostos e prontos para disparar<br />
(Sacks, 1995, p.234).<br />
Apesar <strong>de</strong> Sacks enfatizar que o os talentos savants parecem já vir prontos e que<br />
normalmente <strong>de</strong>spontam na tenra ida<strong>de</strong>, o caso <strong>do</strong> menino Stephen <strong>de</strong>scrito por ele<br />
mostra uma contradição, pois Stephen só foi <strong>de</strong>senvolver a habilida<strong>de</strong> musical aos<br />
<strong>de</strong>zenove anos, quan<strong>do</strong> teve o interesse e a oportunida<strong>de</strong>, como possivelmente impulsiona<strong>do</strong><br />
pela sua a<strong>do</strong>lescência.<br />
467
468<br />
Stephen tinha ouvi<strong>do</strong> absoluto e podia reproduzir instantaneamente acor<strong>de</strong>s<br />
complexos, tocar melodias <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ouvi-las pela primeira vez, mesmo que durassem<br />
vários minutos, e transpô-las com facilida<strong>de</strong> para outros tons. Tinha<br />
também capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> improvisação. Não se sabe por que os <strong>do</strong>ns <strong>de</strong> Stephen<br />
parecem ter surgi<strong>do</strong> relativamente tar<strong>de</strong>. É provável que ele tenha possuí<strong>do</strong> um<br />
gran<strong>de</strong> potencial musical <strong>de</strong>s<strong>de</strong> bem pequeno, mas, talvez por causa <strong>de</strong> sua passivida<strong>de</strong><br />
e da atenção que as pessoas prestavam aos seus talentos visuais, isso passou<br />
<strong>de</strong>sapercebi<strong>do</strong>. Talvez, também, a a<strong>do</strong>lescência tenha influencia<strong>do</strong>, pois<br />
nesta fase Stephen <strong>de</strong> súbito adquiriu fixação por Stevie Won<strong>de</strong>r e Tom Jones,<br />
e a<strong>do</strong>rava imitar os movimentos e maneirismos <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is artistas juntamente<br />
com sua música (Sacks 2007, 156).<br />
Quanto ao <strong>de</strong>senvolvimento musical <strong>de</strong> crianças autistas, só se po<strong>de</strong> saber por aqueles<br />
que tenham a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acompanhar e analisar o envolvimento da criança<br />
com a música ao longo <strong>de</strong> sua infância. Ao ler toda a história <strong>de</strong> Stephen <strong>de</strong>scrita<br />
por Sacks, fica claro que muito pouco é percebi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s seus interesses musicais (uma<br />
vez que sua habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhar já chamava toda a atenção). Para Stephen sempre<br />
foi da<strong>do</strong> papel e lápis, pois era somente isso que ele conseguia pronunciar<br />
quan<strong>do</strong> criança. Em várias passagens da narrativa <strong>de</strong> Sacks aparece o uso <strong>do</strong> walkman<br />
por Stephen e sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cantar as músicas <strong>de</strong> Rain Man, seu filme<br />
preferi<strong>do</strong>. Talvez tenha leva<strong>do</strong> <strong>de</strong>zenove anos para que Stephen pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>monstrar<br />
seus <strong>de</strong>sejos e interesses. Outra curiosida<strong>de</strong> é que, apesar <strong>do</strong> autismo, o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
geral <strong>de</strong> Stephen parece ter si<strong>do</strong> <strong>de</strong> certa forma normal, pelo menos no<br />
que diz respeito à a<strong>do</strong>lescência que po<strong>de</strong> ser percebida pelos outros por meio <strong>de</strong><br />
comportamentos típicos <strong>de</strong>ssa fase <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento humano assumi<strong>do</strong>s por<br />
Stephen, mesmo que talvez um pouco tardiamente (Sacks 1995, 239).<br />
Para a criança autista que tem profundas dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> comunicação, o estimulo<br />
ao aprendiza<strong>do</strong> e <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s, quaisquer que sejam elas, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />
das pessoas que a cercam. Esta condição nos leva <strong>de</strong> volta ao papel da educação<br />
escolar como <strong>de</strong> suma importância para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>ssas crianças,<br />
pois é no contato com outras crianças e no estimulo à comunicação e ao aprendiza<strong>do</strong><br />
que a criança autista po<strong>de</strong>rá superar as limitações impostas pela sua <strong>de</strong>ficiência.<br />
Stephen, apesar <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>ficiência, po<strong>de</strong> por meio <strong>de</strong> sua arte ter uma vida mais<br />
digna, mesmo que ainda não autônoma (Sacks 1995, 251).<br />
Se a criança autista tem como características principais a “<strong>de</strong>terioração da interação<br />
social com os outros, da comunicação verbal e não verbal e das ativida<strong>de</strong>s lúdicas”<br />
(Sacks, 1995, 254), o porta<strong>do</strong>r da síndrome <strong>de</strong> Williams se caracteriza justamente<br />
pelo contrário.<br />
A síndrome <strong>de</strong> Williams foi <strong>de</strong>scoberta em 1961 por J.C. P. Williams, e quase que<br />
simultaneamente e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte por J. Beuren et. al. É raríssima (uma para cada<br />
<strong>de</strong>z mil) e se caracteriza “por <strong>de</strong>feitos no coração e nos gran<strong>de</strong>s vasos, conformações<br />
faciais singulares e retardamento (Sacks, 2007, 307). Em 1964 Arnim e Engel, ci-
ta<strong>do</strong>s por Sacks, “observaram um perfil curiosamente <strong>de</strong>sigual <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s e incapacida<strong>de</strong>s”.<br />
Eles perceberam que apesar <strong>do</strong> “retardamento” que “sugere uma <strong>de</strong>ficiência<br />
intelectual geral e global, que prejudica a habilida<strong>de</strong> da linguagem<br />
juntamente com todas as outras capacida<strong>de</strong>s cognitivas (Sacks 2007, 307)”, tais<br />
crianças apresentavam um comportamento cordial e extremamente social, uma<br />
enorme capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicação e um surpreen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>senvolvimento da linguagem,<br />
além <strong>de</strong> “gran<strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong> para ler as emoções e o esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> espírito<br />
<strong>do</strong>s outros” (Sacks 2007, 308).<br />
No que diz respeito à música, as pessoas com síndrome <strong>de</strong> Willians parecem realmente<br />
impressionar; são tão envolvidas com música que os pais <strong>de</strong> uma criança<br />
com síndrome <strong>de</strong> Williams criou um acampamento <strong>de</strong> música on<strong>de</strong> pessoas porta<strong>do</strong>res<br />
<strong>de</strong>ssa síndrome pu<strong>de</strong>ssem se encontrar e fazer música, além da oportunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> também apren<strong>de</strong>rem música em aulas regulares no próprio acampamento<br />
(Sacks, 2007, 312). Sacks cita a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> Bellugui e Levitin em uma visita a um<br />
<strong>de</strong>sses acampamentos.<br />
Os indivíduos com síndrome <strong>de</strong> Williams mostravam um grau incomumente<br />
eleva<strong>do</strong> <strong>de</strong> envolvimento com a música. Esta parecia ser não só uma parte muito<br />
profunda e rica <strong>de</strong> sua vida, mas um elemento onipresente [. . .] Esse envolvimento<br />
com a música é incomum em populações normais. [. . .] Raramente encontramos<br />
esse tipo <strong>de</strong> imersão total, mesmo entre músicos profissionais (Sacks<br />
2007, 313-314).<br />
Bellugui e Levitin se <strong>de</strong>dicaram a enten<strong>de</strong>r o porquê <strong>de</strong> características tão contrastantes<br />
nos porta<strong>do</strong>res da síndrome <strong>de</strong> Williams. Eles examinaram o cérebro <strong>de</strong>sses<br />
indivíduos e chegaram à conclusão <strong>de</strong> que o funcionamento cerebral ocorre <strong>de</strong><br />
forma diferente das pessoas normais. Também <strong>de</strong>scobriram que “as pessoas com<br />
síndrome <strong>de</strong> William processavam a música <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> muito diferente”, compara<strong>do</strong><br />
a um grupo <strong>de</strong> pessoas normais e outro <strong>de</strong> músicos profissionais (Sacks 2007, 315).<br />
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
Diante <strong>de</strong> tais fatos, constata-se que ainda é difícil <strong>de</strong>finir com se dá o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
musical no ser humano. O que se sabe é que a música está presente na vida<br />
<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os indivíduos <strong>de</strong> qualquer cultura e é acessível até mesmo para os porta<strong>do</strong>res<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>ficiências mentais, como alguns casos ilustra<strong>do</strong>s aqui pu<strong>de</strong>ram mostrar.<br />
Eu nunca tive a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer <strong>de</strong> perto uma criança com síndrome <strong>de</strong><br />
Williams, em contraposição às crianças autistas. As contribuições <strong>de</strong> Oliver Sacks<br />
são sem dúvida importante para compreensão da mente e personalida<strong>de</strong> humana<br />
uma vez que ele faz questão <strong>de</strong> apresentar em seus estu<strong>do</strong>s sobre o cérebro a dimensão<br />
humana <strong>do</strong> ser. Sem falar nas contribuições que o autor oferece a nós pesquisa<strong>do</strong>res<br />
por compartilhar seus estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> caso e reflexões. Entretanto para po<strong>de</strong>r<br />
realmente compreen<strong>de</strong>r o processo <strong>de</strong> ensino aprendiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> música para crianças<br />
469
470<br />
com necessida<strong>de</strong>s educacionais especiais, principalmente na aula <strong>de</strong> música na escola<br />
regular, é preciso primeiro que estas crianças estejam incluídas na escola e que<br />
possa ser avalia<strong>do</strong> o processo <strong>de</strong> inclusão e <strong>de</strong>senvolvimento musical <strong>de</strong> forma longitudinal.<br />
É claro que o “savantismo” em música não é o objetivo pedagógico da aula <strong>de</strong> música<br />
ou da inclusão da criança <strong>de</strong>ficiente. Entretanto, conhecer as potencialida<strong>de</strong>s<br />
musicais <strong>do</strong> cérebro humano frente à diversida<strong>de</strong> nos coloca diante <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s<br />
educacionais que não po<strong>de</strong>m ser ignoradas. A obrigatorieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> ensino <strong>de</strong><br />
música na escola associada à proposta <strong>de</strong> educação inclusiva po<strong>de</strong>rá abrir caminho<br />
para a compreensão <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento humano não apenas pelas habilida<strong>de</strong>s intelectuais<br />
supervalorizadas (mas nem sempre acessíveis a to<strong>do</strong>s por diversos motivos),<br />
mas também por habilida<strong>de</strong>s diversificadas, ou melhor, pelas habilida<strong>de</strong>s que<br />
cada pessoa possui e po<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver.<br />
Referências Bibliográficas<br />
BRASIL. Proposta <strong>de</strong> Educação Inclusiva. Resolução CNE/ CEB No 2 <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong><br />
2001. http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/lress2_01.htm<br />
BRASIL. Obrigatorieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> ensino <strong>de</strong> música na educação básica. http://<br />
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11769.htm<br />
Chagas. Marly. Musicoterapia: <strong>de</strong>safios entre a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e a contemporaneida<strong>de</strong> – como sofrem<br />
os híbri<strong>do</strong>s e como se divertem. Marly Chagas, Rosa Pedro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Mauad<br />
X: Bapera, 2008.<br />
Fernan<strong>de</strong>s, José Nunes. Análise da didática da música em escolas públicas <strong>do</strong> município <strong>do</strong><br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro. Tese (Doutora<strong>do</strong> em Educação). P. 30-60. PPEd/Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação/UFRJ,<br />
1998.<br />
Fernan<strong>de</strong>s, E. M. et al. Alunos com condutas típicas e inclusão escolar: caminhos e possibilida<strong>de</strong>s.<br />
In: Glat, R. (org.) Educação Inclusiva: cultura e cotidiano escolar. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
7 Letras, 2009.<br />
Glat, Rosana. A integração social <strong>do</strong>s porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> <strong>de</strong>ficiências: uma reflexão. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
7 Letras, 2006.<br />
Glat, R. e Blanco, M. V. Educação Especial no contexto <strong>de</strong> uma Educação Inclusiva. In:<br />
Glat, R. (org.) Educação Inclusiva: cultura e cotidiano escolar. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras,<br />
2009.<br />
Godinho, José Carlos. O corpo na aprendizagem e na representação mental da música. In:<br />
Ilari, Beatriz S. (Org.) Em busca da mente musical. Ensaios sobre processos cognitivos em<br />
música – da percepção à produção. Curitiba: Editora da UFPR, 2006.<br />
Pereira, Dulce K. R. Inteligência Expressiva: a partir da teoria psicogenética <strong>de</strong> Henri Wallon.<br />
São Paulo: Summus, 1995.<br />
Sacks, Oliver. Um antropólogo em Marte: sete histórias para<strong>do</strong>xais. São Paulo: Companhia das<br />
Letras, 1995.<br />
Sacks, Oliver. Alucinações Musicais: relatos sobre a música e o cérebro. São Paulo: Companhia<br />
das Letras, 2007.
Tran Thong. 2007. “Prefácio” in Henri Wallon, A criança turbulenta: estu<strong>do</strong> sobre os retardamentos<br />
e as anomalias <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento motor e mental, pp. 9-39. Petrópolis, RJ:<br />
Vozes.<br />
Vigotski, Lev Semenovich. A educação estética. In: Vigotski, L. S. Psicologia pedagógica. Trad.<br />
Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2004.<br />
Wallon, Henri. A criança turbulenta: estu<strong>do</strong> sobre os retardamentos e as anomalias <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
motor e mental. Trad. Gentil Avelino Titton. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.<br />
Wallon, Henri. A evolução psicológica da criança. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins<br />
Fontes, 2007.<br />
Willrich, Aline; Azeve<strong>do</strong>, Camila. C.F; Fernan<strong>de</strong>s Juliana O. Desenvolvimento motor na infância:<br />
influência <strong>do</strong>s fatores <strong>de</strong> risco e programas <strong>de</strong> intervenção.In: Revista Neurociência,<br />
2008.<br />
471
472<br />
Educação Musical e Lu<strong>do</strong>poiese:<br />
vivencian<strong>do</strong> a aprendizagem musical<br />
Maristela <strong>de</strong> Oliveira Mosca<br />
maristelamosca@gmail.com<br />
Doutoranda em Educação<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Norte/UFRN<br />
Resumo<br />
Viver é conhecer! Conhecer é viver! Aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> a concepção dualista e linear reconhecemos<br />
a dinâmica circular <strong>do</strong> apren<strong>de</strong>r viven<strong>do</strong> e viver apren<strong>de</strong>n<strong>do</strong>. Este trabalho reflete<br />
sobre os processos <strong>de</strong> ensinar e apren<strong>de</strong>r música reconhecen<strong>do</strong> a natureza <strong>do</strong> ser<br />
apren<strong>de</strong>nte, que é biológica, psicológica, social, afetiva, cultural e espiritual – que não se<br />
fragmenta ao vivenciar os processos <strong>de</strong> ensinar e apren<strong>de</strong>r música. Para esta investigação<br />
reconhecemos a organização autopoiética como característica <strong>do</strong> ser vivo, pois<br />
existimos como animais em nossa corporalida<strong>de</strong> molecular, viven<strong>do</strong> como tal em nossos<br />
processos fisiológicos, em nossa auto-organização. Sen<strong>do</strong> sociais, vivemos e interagimos<br />
com o meio, e nesse fluir energético nossas mudanças estruturais se processam.<br />
Em nosso mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> viver vamos interagin<strong>do</strong> como o meio, com os outros seres, e apren<strong>de</strong>n<strong>do</strong><br />
a partir <strong>de</strong> nossas vivências – revelan<strong>do</strong> em nossa corporeida<strong>de</strong> nossos saberes.<br />
Procuramos neste momento <strong>de</strong>senhar uma partitura <strong>do</strong> fazer musical a partir das Teorias<br />
da Autopoiese, <strong>de</strong> Maturana e Varela; da Teoria <strong>do</strong> Fluxo, <strong>de</strong> Csikszentmihalyi; em<br />
consonância com os Pressupostos da Corporeida<strong>de</strong>. Em nossa investigação sobre os<br />
processos <strong>de</strong> ensinar e apren<strong>de</strong>r música nos envolvemos em vivências musicais, na autopoiese<br />
e esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> fluxo, apreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> música sentin<strong>do</strong>, brincan<strong>do</strong>, crian<strong>do</strong>, pensan<strong>do</strong><br />
e humanescen<strong>do</strong>. Compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a Lu<strong>do</strong>poiese como a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criar condições<br />
<strong>de</strong> autoprodução da alegria <strong>de</strong> viver, investigamos a aprendizagem musical pela vivência,<br />
pelo prazer em fazer, pela atitu<strong>de</strong> lúdica. Envolvi<strong>do</strong>s em uma Educação Musical<br />
que quebra os paradigmas <strong>de</strong> instrução, seleção e performance reconhecemos o educan<strong>do</strong><br />
como protagonista <strong>do</strong>s processos <strong>de</strong> ensinar e apren<strong>de</strong>r música, perceben<strong>do</strong>-o<br />
como o ser que se (re)cria a cada momento, que apren<strong>de</strong> no compartilhar, que vivencia<br />
a música no prazer. Assim, os Processos Lu<strong>do</strong>poiéticos se revelam no vivenciar a música,<br />
já que possibilitam a auto-organização <strong>do</strong> ser, pois ao vivenciar a música apren<strong>de</strong>, e<br />
apren<strong>de</strong> vivencian<strong>do</strong> a música.<br />
Palavras-Chave<br />
Educação Musical; Corporeida<strong>de</strong>; Autopoiese; Lu<strong>do</strong>poiese.<br />
Música é para viver!<br />
Linguagem <strong>do</strong> homem nas figuras dançantes, nos rituais e nas festas a música acompanha<br />
o percurso da história toman<strong>do</strong> forma nas gran<strong>de</strong>s civilizações e imprimin<strong>do</strong><br />
a marca <strong>do</strong>s povos fazen<strong>do</strong>-se presente em todas as culturas.<br />
Linguagem expressiva no cotidiano escolar encontra-se no palco das discussões com
a aprovação da Lei no 11.769, <strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008, alteran<strong>do</strong> a Lei no 9.394, <strong>de</strong><br />
20 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1996 – Lei <strong>de</strong> Diretrizes e Bases da Educação, para dispor sobre<br />
a obrigatorieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> Ensino <strong>de</strong> Música na Educação Básica (Brasil 2008). A Lei<br />
no 11.769 inclui a música como conteú<strong>do</strong> obrigatório <strong>do</strong> Ensino da Arte.<br />
Reconhecemos o valor da música na escola enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> que ela se justifica como<br />
componente curricular e não como estratégia <strong>de</strong> aprendizagem e que vai pouco a<br />
pouco (re)fazen<strong>do</strong> parte <strong>do</strong> cotidiano escolar. Granja (2006, 104) nos convida a<br />
refletir sobre o valor <strong>de</strong> nossas aprendências, já que “a música e as artes em geral são<br />
tão importantes na educação como a leitura, a escrita, a matemática. Sem isso, não<br />
há projeto <strong>de</strong> inserção da música na escola que se sustente a longo prazo”. Desta<br />
forma, compreen<strong>de</strong>mos os processos <strong>de</strong> fazer e apren<strong>de</strong>r a linguagem musical, que<br />
reconhece sua importância na formação <strong>do</strong> ser, em sua vida, na <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> novos<br />
fazeres.<br />
Enten<strong>de</strong>mos assim que Educação Musical é o processo socializa<strong>do</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
da musicalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ser, que valoriza os percursos <strong>de</strong> <strong>de</strong>leite em vivenciar a<br />
música, a construção musical e a performance na ludicida<strong>de</strong>, criativida<strong>de</strong> e sensibilida<strong>de</strong>.<br />
Tal processo educativo <strong>de</strong>ve ser pauta<strong>do</strong> em relações intrapessoais e interpessoais,<br />
quan<strong>do</strong>, a partir da interação entre indivíduos singulares se constrói as<br />
teias <strong>do</strong> conhecimento musical, crian<strong>do</strong> condições para que o ser se auto-organize<br />
e viva seu jeito <strong>de</strong> viver a música.<br />
Estan<strong>do</strong> a música em to<strong>do</strong> lugar, como po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>sfrutá-la sem entregar-se, sem<br />
partilhar, ou mesmo sem emocionar-se? Valorizan<strong>do</strong> a música enquanto arte, produção<br />
<strong>de</strong> conhecimento e linguagem expressiva enten<strong>de</strong>mos que seus conhecimentos<br />
se conectam com uma educação corporalizada, que tem como foco a<br />
formação <strong>do</strong> ser. Inspira<strong>do</strong>s por Assmann (1998), afirmamos que a educação é visceralmente<br />
corporal, e que nossos saberes se revelam em nossa corporeida<strong>de</strong>. Desta<br />
forma, é necessário que compreendamos o ser em sua inteireza, em suas dimensões<br />
individual, social, espiritual, planetária e cósmica.<br />
E por meio <strong>de</strong> nossa corporeida<strong>de</strong> nos expressamos musicalmente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro<br />
encontro com a vibração sonora, com o afago da melodia, com o <strong>de</strong>sfrute da dança,<br />
<strong>do</strong> canto, da execução instrumental. Em nossa corporeida<strong>de</strong> vivenciamos o lúdico<br />
na criação musical e no compartilhar <strong>do</strong> trabalho em grupo, em uma autoprodução<br />
vivida ao fazer música, fazer-se autor da música, vivencian<strong>do</strong> e apren<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a cada<br />
acor<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa gran<strong>de</strong> sinfonia que é a vida.<br />
Escolhemos a metáfora da Teia <strong>de</strong> Aranha como opera<strong>do</strong>r cognitivo, procuran<strong>do</strong><br />
assim configurar os “princípios nortea<strong>do</strong>res para nossas ações educativas e para a<br />
abordagem investigativa que toma a corporeida<strong>de</strong> como fonte gera<strong>do</strong>ra da humanescência”,<br />
como nos fala Cavalcanti em comentário posta<strong>do</strong> no blog da Corporeida<strong>de</strong><br />
em 1o <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2009.<br />
473
474<br />
Nesta teia temos três princípios centrais: o brincar, o criar e o sentir, e vivenciamos<br />
a Educação Musical na Escola com atitu<strong>de</strong> lúdica, promoven<strong>do</strong> em sala <strong>de</strong> aula o<br />
jogo <strong>de</strong> fazer música. Neste jogo nos <strong>de</strong>spimos da utilida<strong>de</strong> da música ou <strong>de</strong> seus benefícios<br />
para o educan<strong>do</strong>. Nossa prática musical é jogo, é <strong>de</strong>leite, é encantamento.<br />
Trabalhamos em grupo nos aproximan<strong>do</strong> das necessida<strong>de</strong>s coletivas e individuais,<br />
respeitan<strong>do</strong> os limites, construin<strong>do</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> aprendizagens que <strong>de</strong>ve antes <strong>de</strong><br />
tu<strong>do</strong> ser significativa – e nesta construção vemos a implicabilida<strong>de</strong> das relações, o<br />
movimento <strong>do</strong> grupo, os acoplamentos que ocorrem com a intervenção das ações,<br />
da energia que flui no ambiente, na cumplicida<strong>de</strong> que nasce a cada momento. Neste<br />
jogo <strong>de</strong> fazer música a distinção entre o jogo e a serieda<strong>de</strong> não existe, e brincar <strong>de</strong><br />
música se torna seriamente fazer música (Huizinga 2005).<br />
A sustentabilida<strong>de</strong> teórica em nossa Teia <strong>de</strong> Aranha é representada pelas bordas,<br />
nas dimensões histórica e vivencial da reflexivida<strong>de</strong> – neste fio condutor temos o<br />
princípio <strong>do</strong> pensar. Na natureza espiralada da teia vivenciamos a transdisciplinarida<strong>de</strong>,<br />
on<strong>de</strong> perpassam os raios que são constituí<strong>do</strong>s pelos diferentes campos <strong>do</strong> conhecimento<br />
para fazer emergir a humanescência. Neste processo <strong>de</strong> construção<br />
enten<strong>de</strong>mos o humanescer como a expansão da essência <strong>do</strong> ser no universo – sua conectivida<strong>de</strong><br />
com o outro, com o entorno, com sua autoformação.<br />
Assim, viver a música em sua plenitu<strong>de</strong> na escola a partir <strong>do</strong>s pressupostos da corporeida<strong>de</strong><br />
é promover condições para que os apren<strong>de</strong>ntes se auto organizem e vivam<br />
a música <strong>de</strong> maneira singular na coletivida<strong>de</strong>. É vivenciar o fazer musical na energia<br />
da música, na preparação <strong>do</strong> campo energético a ser compartilha<strong>do</strong> a cada dia,<br />
compon<strong>do</strong> os processos pedagógicos que trilham esses saberes. É <strong>de</strong>ixar-se brincar,<br />
criar e sentir.<br />
Nestes processos <strong>de</strong> ensinar e apren<strong>de</strong>r valorizamos os procedimentos, pois acreditamos<br />
que mais importante que os conteú<strong>do</strong>s da linguagem musical, a técnica<br />
instrumental ou vocal é o processo <strong>do</strong> apren<strong>de</strong>r, <strong>do</strong> vivenciar. Esse movimento é que<br />
perturba a organização <strong>do</strong> ser, tornan<strong>do</strong> possível sua aprendizagem. O educa<strong>do</strong>r<br />
também é responsável por esse movimento <strong>de</strong> escuta, <strong>de</strong> fala, <strong>de</strong> pensamento. Ele é<br />
quem instiga a curiosida<strong>de</strong>, que <strong>de</strong>safia, que mostra novos e surpreen<strong>de</strong>ntes caminhos.<br />
Neste movimento <strong>de</strong> exploração, <strong>de</strong> procura, <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso é que a aprendizagem<br />
acontece, que os conflitos são resolvi<strong>do</strong>s, que o conhecimento se constrói. Enquanto<br />
seres bio-psico-sócio-afetivo-cultural-espiritual nos movemos pela curiosida<strong>de</strong><br />
em saber, em realizar novos feitos, em encontrar novos caminhos. Para tanto<br />
nos valemos <strong>de</strong> nossas experiências e <strong>de</strong> nossos saberes, estabelecen<strong>do</strong> relações e especialmente<br />
compartilhan<strong>do</strong> <strong>de</strong>scobertas em nossa corporeida<strong>de</strong> – em um ato que<br />
é cognitivo, espiritual, corporal e social.<br />
Neste caminho a trilhar nos encontramos com a Teoria da Autopoiese, <strong>de</strong> Matu-
ana e Varela (1997), que cunharam o termo Autopoiese na <strong>de</strong>scrição da teia da vida,<br />
<strong>de</strong>signan<strong>do</strong> a capacida<strong>de</strong> <strong>do</strong> seres vivos <strong>de</strong> se autoproduzirem. A teoria mostra que<br />
o ser vivo é um sistema autopoiético, caracteriza<strong>do</strong> pela circularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas produções<br />
moleculares, já que as moléculas produzidas geram a partir <strong>de</strong> suas interações<br />
a mesma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> moléculas que as produziu. Enquanto sistema autônomo, os<br />
seres vivos estão constantemente se autoproduzin<strong>do</strong> e autorregulan<strong>do</strong> em suas interações<br />
como o meio, que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia mudanças <strong>de</strong>terminadas em sua própria estrutura.<br />
Assim, o “viver é a realização, sem interrupção, <strong>de</strong>ssa dinâmica em uma<br />
configuração <strong>de</strong> relações que se conserva em um contínuo fluxo molecular” (Maturana<br />
1997, 16).<br />
Encontramos o conhecimento nestas relações, neste ciclo autopoiético. Cren<strong>do</strong> em<br />
um corpo vivo, que como nos diz Demo (2006), não po<strong>de</strong> ser manipula<strong>do</strong> como<br />
uma máquina inerte, uma engrenagem em que <strong>de</strong>positamos sistemas, o conhecer se<br />
processa na coletivida<strong>de</strong>, nas interações, já que:<br />
A aprendizagem como um fenômeno <strong>de</strong> transformação <strong>do</strong> sistema nervoso associa<strong>do</strong><br />
a uma mudança condutual, que tem lugar sob manutenção da autopoiese,<br />
ocorre <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao contínuo acoplamento entre a fenomenologia esta<strong>do</strong>-<strong>de</strong>terminada<br />
<strong>do</strong> sistema nervoso e a fenomenologia esta<strong>do</strong>-<strong>de</strong>terminada <strong>do</strong> ambiente<br />
(Maturana e Varela 1997, 132).<br />
Ainda <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a teoria Autopoiética <strong>de</strong> Maturana e Varela po<strong>de</strong>mos observar<br />
o ser biológico, que se entrega inteiro em suas experienciações, com sua corporeida<strong>de</strong>.<br />
Todas as nossas ações são fundadas no sentir e fluímos <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com<br />
nossas emoções, com o vivi<strong>do</strong>, e <strong>de</strong> maneira ímpar apren<strong>de</strong>mos a partir <strong>de</strong>ssas interações,<br />
e vemos assim que o conhecimento não po<strong>de</strong> ser imposto <strong>de</strong> fora para<br />
<strong>de</strong>ntro, mas <strong>de</strong>ve ser vivencia<strong>do</strong>, em sua plenitu<strong>de</strong>, em sua corporeida<strong>de</strong>.<br />
Jogan<strong>do</strong> com a música, sem a pretensão <strong>de</strong> transformar estes momentos em produções<br />
ou virtuosismos, nos entregamos aos processos <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r música jogan<strong>do</strong><br />
com a música (Huizinga 2005). Nesses processos que envolvem a vivência musical<br />
nos encontramos constantemente em esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> fluxo. A Teoria <strong>do</strong> Fluxo, <strong>de</strong>senvolvida<br />
por Csikszentmihalyi (1992, 17) nos elucida sobre a experiência máxima,<br />
que o autor <strong>de</strong>fine como “aquele esta<strong>do</strong> no qual as pessoas estão <strong>de</strong> tal maneira mergulhadas<br />
em uma ativida<strong>de</strong> que nada mais parece ter importância”. Neste esta<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
fluir nos encontramos plenamente envolvi<strong>do</strong>s, e fazemos acontecer o momento,<br />
que mesmo com esforço e dificulda<strong>de</strong>s nos levam ao esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> fluxo.<br />
Ao fluirmos, ainda <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o autor, nossa consciência está organizada <strong>de</strong><br />
forma harmoniosa, e <strong>de</strong>sejamos continuar neste esta<strong>do</strong>, nos satisfazen<strong>do</strong> com o<br />
fazer. Esta entrega ao momento vivi<strong>do</strong> é construída pela ação da atenção ao realizar,<br />
quan<strong>do</strong> o ser investe esforço para atingir suas metas.<br />
O autor relaciona diretamente o esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> fluxo com a melhora <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
vida, e nos diz que <strong>de</strong>sfrutar música nos leva a experiências ótimas. Quan<strong>do</strong> ele nos<br />
475
476<br />
fala: “não é ouvir que melhora a vida e sim o escutar” (Csikszentmihalyi 1992, 161),<br />
po<strong>de</strong>mos ainda acrescentar que não é só o escutar que melhora a vida, mas sim vivenciar<br />
a música. Na vivência musical <strong>de</strong>spertamos nossos senti<strong>do</strong>s, não apenas escutan<strong>do</strong>,<br />
mas sim compartilhan<strong>do</strong> o fazer musical, no <strong>de</strong>sfrute em realizar, no<br />
<strong>de</strong>leite em apreciar.<br />
Assim, envolvi<strong>do</strong>s nas vivências musicais apreen<strong>de</strong>mos música brincan<strong>do</strong>, crian<strong>do</strong><br />
e sentin<strong>do</strong>. Estes processos, que se fazem vivência e aprendência musicais acontecem<br />
a partir <strong>de</strong> processos pedagógicos e tem uma característica especial. Tal característica<br />
é o Processo da Lu<strong>do</strong>poiese.<br />
A Lu<strong>do</strong>poiese se encontra na vivência, é fenômeno. A Lu<strong>do</strong>poiese é a capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> criar condições <strong>de</strong> autoprodução da alegria <strong>de</strong> viver. Tal conceito é pauta<strong>do</strong> na<br />
teoria da Autopoiese, pois o homem vive no conhecimento e conhece no viver – e<br />
a Lu<strong>do</strong>poiese enten<strong>de</strong> a ludicida<strong>de</strong> humana auto-organizada pelo sujeito.<br />
Etimologicamente, a palavra ludicida<strong>de</strong> tem sua raiz no latim lu<strong>do</strong> – que po<strong>de</strong> ser<br />
traduzida como brincar. Na inclusão <strong>do</strong>s jogos, brinque<strong>do</strong>s e estratégias é que vivenciamos<br />
ativida<strong>de</strong>s lúdicas. Para Luckesi (2005) o fenômeno da ludicida<strong>de</strong> “foca<br />
a experiência lúdica como uma experiência interna <strong>do</strong> sujeito que a vivencia” (Luckesi<br />
2005, 1), e nestes processos vivenciamos o fazer musical com espírito lúdico.<br />
Compreen<strong>de</strong>mos a Lu<strong>do</strong>poiese como fenômeno da autoprodução da alegria <strong>de</strong><br />
viver. Sen<strong>do</strong> um sistema vital e contínuo <strong>do</strong> ser humano acontece na interação <strong>do</strong><br />
sujeito com o meio, com o outro, com a qualida<strong>de</strong> lúdica <strong>de</strong> seus fazeres.<br />
Assim, comungamos com uma escola que valoriza a ludicida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ser, a entrega incondicional<br />
à aventura <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r, enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a ludicida<strong>de</strong> na escola não como<br />
ferramenta ou instrumento <strong>de</strong> incentivo na busca <strong>de</strong> novos elementos para o fazer<br />
escolar, mas sim <strong>de</strong> um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> plenitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> ser ao fazer, já que “não estamos falan<strong>do</strong>,<br />
em si, das ativida<strong>de</strong>s objetivas que po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>scritas sociológica e culturalmente<br />
como ativida<strong>de</strong> lúdica, como jogos ou coisa semelhante. Estamos, sim,<br />
falan<strong>do</strong> <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> interno <strong>do</strong> sujeito que vivencia a experiência lúdica” (Luckesi<br />
2005, 6). E nesta aventura lúdica as proprieda<strong>de</strong>s da Lu<strong>do</strong>poiese se revelam em nossos<br />
fazeres, em nossas reflexões, em nossa entrega.<br />
Autotelia – o envolvimento <strong>do</strong> ser<br />
Autotelia é a proprieda<strong>de</strong> da lu<strong>do</strong>poiese que a <strong>de</strong>fine como uma vivência que tem<br />
um fim em si mesmo, voltada para a própria subjetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada um, traduzin<strong>do</strong><br />
escolhas, <strong>de</strong>sejos que refletem autonomia e auto<strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> uma expressivida<strong>de</strong><br />
humana no tempo presente.<br />
Po<strong>de</strong>mos dizer que é a <strong>de</strong>scoberta da finalida<strong>de</strong> da ação, o fim em si mesmo, a implicabilida<strong>de</strong>,<br />
o envolvimento <strong>do</strong> ser. É a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estabelecer para e por si próprio<br />
o objetivo das suas ações. Encontrar no grupo e em cada um a finalida<strong>de</strong> da<br />
música, o objetivo <strong>de</strong> um resulta<strong>do</strong>.
Em nossas vivências musicaliza<strong>do</strong>ras nossos educan<strong>do</strong>s se vêem ro<strong>de</strong>a<strong>do</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>safios,<br />
e são encoraja<strong>do</strong>s a expandir seu campo <strong>de</strong> ação, no esforço individual e coletivo,<br />
atingin<strong>do</strong> assim o que <strong>de</strong>nominamos <strong>de</strong> “experiência máxima” ou “esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> fluxo”.<br />
Assim, para satisfazer-se em suas realizações, atingin<strong>do</strong> o esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> fluxo, <strong>de</strong>vemos<br />
perceber os elementos aponta<strong>do</strong>s por Csikszentmihalyi (1992), que nos elucidam<br />
o caminho para que uma vivência tenha um fim em si mesma, que seja gratificante<br />
e leve o educan<strong>do</strong> a experiência máxima.<br />
O autor nos fala a princípio que uma ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>safia<strong>do</strong>ra exige aptidão. Sabemos<br />
que quan<strong>do</strong> os passos propostos são muito gran<strong>de</strong>s, muitas vezes a frustração em<br />
não alcançá-los é <strong>de</strong>sestimulante, provocan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>sistência ou mesmo o <strong>de</strong>sânimo<br />
em persistir. Cabe ao educa<strong>do</strong>r então perceber quais <strong>de</strong>safios po<strong>de</strong> propor ao grupo<br />
ou ao indivíduo, saben<strong>do</strong> que, por exemplo: “uma música simples <strong>de</strong>mais para nossa<br />
capacida<strong>de</strong> auditiva se tornará tediosa, e uma música muito complexa, frustrante. A<br />
satisfação surge no limite entre o tédio e a ansieda<strong>de</strong>, quan<strong>do</strong> os <strong>de</strong>safios estão em<br />
equilíbrio com a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atuação da pessoa” (Csikszentmihalyi 1992, 84).<br />
Assim, vemos que para nos satisfazermos na vivência o esforço é váli<strong>do</strong> para que<br />
ultrapassemos barreiras, mas não tão difíceis que nos faça <strong>de</strong>sistir, quebran<strong>do</strong> o esta<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> fluxo. Neste esforço contínuo <strong>de</strong> superação, aprendizagem ou mesmo treinamento,<br />
a atenção se volta para o fazer, não haven<strong>do</strong> neste momento outra<br />
informação relevante que <strong>de</strong>sfaça o processo. O que Csikszentmihalyi (1992, 85)<br />
chama: “a fusão entre a ação e a consciência” é o envolvimento pleno no fazer, permitin<strong>do</strong><br />
que a participação <strong>do</strong> ser seja espontânea, quase automática. A este esta<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> concentração e envolvimento o autor chama <strong>de</strong> fluir.<br />
Este esta<strong>do</strong> só acontece porque nos encontramos concentra<strong>do</strong>s na ativida<strong>de</strong> presente.<br />
Este é outro elemento da satisfação elenca<strong>do</strong>s pelo autor. Ele nos fala que “as<br />
ativida<strong>de</strong>s satisfatórias exigem uma total concentração da atenção na ativida<strong>de</strong> presente,<br />
não <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> na mente nenhum espaço para informações irrelevantes”<br />
(Csikszentmihalyi 1992, 91).<br />
Exercer o controle nos leva a novas sensações, on<strong>de</strong> o corpo flui na vivência, sem que<br />
o entorno possa atrapalhar. Neste esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> perda <strong>de</strong> consciência o ser não encontra<br />
disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atenção para outros pensamentos irrelevantes. O que interessa<br />
é o realiza<strong>do</strong>, o momento.<br />
Assim, neste envolvimento pleno – a experiência máxima – per<strong>de</strong>mos a relação<br />
com o tempo, não contamos os minutos ou segun<strong>do</strong>s para que tu<strong>do</strong> termine. Encontramo-nos<br />
neste esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> atenção, absorto na vivência. Csikszentmihalyi (1992,<br />
102) diz: “uma das <strong>de</strong>scrições mais comuns da experiência máxima é que o tempo<br />
não parece mais transcorrer <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> costumeiro”, e nos fazemos envolvi<strong>do</strong>s neste<br />
momento, que se faz nele mesmo, uma experiência autotélica.<br />
477
478<br />
Autoterritorialida<strong>de</strong> – a segurança <strong>do</strong> ser<br />
Autoterritorialida<strong>de</strong> refere-se à proprieda<strong>de</strong> da ludicida<strong>de</strong> humana <strong>de</strong> ocorrer em<br />
espaço-tempo auto<strong>de</strong>limita<strong>do</strong>, constituin<strong>do</strong> assim o campo <strong>de</strong> jogo que propicia<br />
concretizar <strong>de</strong>sejos vivenciais <strong>de</strong> criação e expressão <strong>de</strong> si mesmo por si mesmo.<br />
Neste jogo o ser estabelece seus limites <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> espaço (Huizinga 2005), assim<br />
esta proprieda<strong>de</strong> se relaciona ao espaço-tempo <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> pelo ser, a segurança em<br />
ser acolhi<strong>do</strong> em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> território, a apropriação <strong>de</strong>sse espaço-tempo para sua<br />
autoformação.<br />
Em nossas vivências musicaliza<strong>do</strong>ras, que é o jogo <strong>de</strong> fazer música, nos <strong>de</strong>svencilhamos<br />
da produção, pois o foco não é o produto, mas sim a vivência. Acreditamos<br />
inspira<strong>do</strong>s por Caillois (1990, 9) que é a gratuida<strong>de</strong> <strong>do</strong> jogo <strong>de</strong> fazer música que<br />
nos inspira e nos permite a entrega, é uma “fantasia agradável”.<br />
Este é um espaço seguro, on<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>m se expressar livremente pela música,<br />
no jogo <strong>de</strong> combinar sons, na criativida<strong>de</strong>, na liberda<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra. Neste espaço fazemos<br />
nossas regras para o jogo a ser joga<strong>do</strong>, e construímos a estrutura da música.<br />
Nesta estrutura construída coletivamente vemos que o jogo <strong>de</strong> fazer música é o núcleo<br />
da criação, reafirman<strong>do</strong> Duvignaud (1997) que é na experiência <strong>do</strong> jogo que<br />
criamos, fazemos nossa festa, divagamos e po<strong>de</strong>mos sonhar com o adiante. Para que<br />
o jogo se estruture, <strong>de</strong>vemos assim <strong>de</strong>limitar nosso tempo-espaço, as regras a serem<br />
acolhidas pelo grupo, na cumplicida<strong>de</strong> <strong>do</strong> fazer coletivo.<br />
Autoconectivida<strong>de</strong> – a entrega <strong>do</strong> ser<br />
Autoconectivida<strong>de</strong> representa a proprieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> envolvimento e da implicabilida<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> ser consigo mesmo para po<strong>de</strong>r se conectar como personalida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra com os<br />
outros e com o mun<strong>do</strong>. Po<strong>de</strong>mos afirmar que é o sentir a música em sua plenitu<strong>de</strong>.<br />
Tal proprieda<strong>de</strong> se relaciona a consciência <strong>do</strong> <strong>de</strong>sfrute musical, da participação ativa,<br />
da entrega ao fazer. Para sentir a música e participar ativamente das vivências musicaliza<strong>do</strong>ras<br />
nossos educan<strong>do</strong>s são convida<strong>do</strong>s à brinca<strong>de</strong>ira musical.<br />
De acor<strong>do</strong> com Maturana e Ven<strong>de</strong>r-Zöller (2004), brincamos espontaneamente<br />
para aten<strong>de</strong>r ao nosso emocionar, e não pelas conseqüências <strong>do</strong> nosso brincar. Não<br />
brincamos <strong>de</strong> fazer música pelo resulta<strong>do</strong>, mas pelo envolvimento no vivi<strong>do</strong>, on<strong>de</strong><br />
oportunizamos que to<strong>do</strong>s se façam presentes em cada momento.<br />
Este brincar <strong>de</strong> música, com a música, na música é que nos move em ações musicaliza<strong>do</strong>ras<br />
já que nesses momentos nossos educan<strong>do</strong>s não são leva<strong>do</strong>s a se comportarem<br />
<strong>de</strong> maneira a se prepararem para futuras ações no futuro. De acor<strong>do</strong> ainda<br />
com Maturana e Ven<strong>de</strong>r-Zöller (2004, 231) o brincar musicaliza<strong>do</strong>r não prepara<br />
para nada, “é fazer o que se faz em total aceitação”.<br />
Neste universo da brinca<strong>de</strong>ira, po<strong>de</strong>mos observar a conectivida<strong>de</strong> com o entorno,
com o outro e consigo mesmo. Neste ambiente estamos imbrica<strong>do</strong>s material, cognitiva<br />
e energeticamente na brinca<strong>de</strong>ira <strong>do</strong> fazer música, <strong>de</strong> compor, <strong>de</strong> trabalhar<br />
na coletivida<strong>de</strong>.<br />
Po<strong>de</strong>mos chamar o brincar <strong>de</strong> processo autopoiético, já que em nossas ações musicaliza<strong>do</strong>ras<br />
nos envolvemos com o outro e com o entorno, provocan<strong>do</strong> perturbações<br />
em nossas estruturas, modifican<strong>do</strong> nossos fazeres, nos envolven<strong>do</strong> plenamente<br />
em nossas realizações. Apren<strong>de</strong>mos música pelo processo <strong>do</strong> viver e brincar na música,<br />
pela conectivida<strong>de</strong> com o ambiente, com o fazer musical.<br />
Autofruição – a satisfação <strong>do</strong> ser<br />
Autofruição significa o esta<strong>do</strong> vivencial <strong>de</strong> satisfação e alegria como meta a ser alcançada<br />
pelo sujeito na realização <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>sejos lu<strong>do</strong>poiéticos <strong>de</strong> expressão <strong>de</strong> si<br />
mesmo por si mesmo como vivência plena da alegria <strong>de</strong> viver.<br />
Na vivência musical, se relaciona ao <strong>de</strong>sejo pessoal, ao prazer. A entrega plena, no<br />
sentimento <strong>de</strong> prazer em estar envolvi<strong>do</strong> no processo, em fazer parte <strong>do</strong> grupo, em<br />
relacionar-se com o outro na música, pela música e para a música.<br />
Para Csikszentmihalyi (1992), a felicida<strong>de</strong> enquanto esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> espírito precisa ser<br />
preparada, cultivada e <strong>de</strong>fendida. Quan<strong>do</strong> controlamos nossa vivência interior nos<br />
permitin<strong>do</strong> fluir nos pequenos atos, nas aprendências e especialmente na convivência<br />
somos capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossas vidas. A felicida<strong>de</strong> não<br />
é um esta<strong>do</strong> eterno, mas conseguin<strong>do</strong> fluir em nossos fazeres ficamos mais próximos<br />
<strong>de</strong>la.<br />
Se nos envolvemos com o brincar, o criar e o sentir, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> compartilhar,<br />
<strong>de</strong> valorizar o momento vivi<strong>do</strong> em grupo. E somente com amor é que<br />
conseguimos compartilhar o momento vivi<strong>do</strong>.<br />
Autovalia – a música no ser<br />
Autovalia diz respeito à gratuida<strong>de</strong>, ao valor atribuí<strong>do</strong> pelo sujeito as suas escolhas<br />
lúdicas. É a própria subjetivida<strong>de</strong> humana responsável por <strong>de</strong>terminar o valor das<br />
vivências lúdicas para a criação e a recriação <strong>de</strong> si mesmo, para a sua alegria <strong>de</strong> viver.<br />
A ludicida<strong>de</strong> humana não se manifesta como valor <strong>de</strong> troca mercantiliza<strong>do</strong> pela<br />
cultura <strong>de</strong> consumo. O valor <strong>do</strong> usufruto <strong>do</strong> lúdico é um autovalor, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> ser <strong>de</strong>fini<strong>do</strong><br />
pelo próprio sujeito.<br />
Assim, na Educação Musical essa proprieda<strong>de</strong> se refere ao autovalor, a qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />
que vale para o ser, e não tem preço ou interesses. Po<strong>de</strong>mos também enten<strong>de</strong>r como<br />
a valorização <strong>do</strong> quanto vale educar para que o outro sinta que o processo vale para<br />
ele.<br />
Vivemos muitas vezes uma educação que não percebe os valores e se envolve apenas<br />
na cognição e na valorização <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> la<strong>do</strong> a formação <strong>do</strong><br />
479
480<br />
educan<strong>do</strong>, sua relação com o entorno, em uma proposta <strong>de</strong> viver dias melhores. A<br />
Educação Musical também é <strong>de</strong>svalorizada neste processo, não sen<strong>do</strong> acolhida<br />
como importante ciência a ser aprendida, e temos assim um componente curricular<br />
na escola que busca seu lugar enquanto linguagem a ser apreendida por to<strong>do</strong>s.<br />
Consi<strong>de</strong>rações<br />
Os Processos Lu<strong>do</strong>poiéticos são revela<strong>do</strong>s na corporeida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ser, em suas ações,<br />
em seus fazeres na música. O espírito lúdico – que move os homens e as culturas –<br />
penetra no ser em suas ações quan<strong>do</strong> nos permitimos enten<strong>de</strong>r a brinca<strong>de</strong>ira como<br />
vida, como a arte da vida.<br />
Desta forma, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>mos a ludicida<strong>de</strong> como fundamental no processo <strong>de</strong> produção<br />
<strong>de</strong> conhecimento, e comungamos com Cavalcanti e Sampaio (2008, 7) ao afirmarmos<br />
que “jogar é viver e viver é jogar. Joga-se com o corpo, com a alma e com o<br />
espírito”. E neste jogar viven<strong>do</strong> ludicamente a música apren<strong>de</strong>mos compartilhan<strong>do</strong><br />
nossas emoções e fazeres com o outro, em uma sintonia harmoniosa que irradia luminosida<strong>de</strong>,<br />
e <strong>de</strong> forma recursiva alimenta a própria fonte, e como nos dizem as<br />
autoras “ao mesmo tempo expan<strong>de</strong> essa luminosida<strong>de</strong> da alegria <strong>de</strong> viver para o seu<br />
entorno, para to<strong>do</strong>s os seres à sua volta”.<br />
E neste humanescer vivemos imbrica<strong>do</strong>s nestas relações energéticas com nossos<br />
educan<strong>do</strong>s, captan<strong>do</strong> com lentes sensíveis os momentos vivi<strong>do</strong>s, as <strong>de</strong>scobertas, o<br />
olhar, o <strong>de</strong>sejo, a angústia e o contentamento. Fazemos uma (re)leitura <strong>de</strong> nossa<br />
realida<strong>de</strong>, e se muitas vezes vemos o não palpável, é pela convivência, pelo conhecer<br />
que vemos cada sujeito enquanto um ser em formação, em contínuo processo<br />
<strong>de</strong> viver e conhecer.<br />
E por meio <strong>de</strong>ssas lentes po<strong>de</strong>mos afirmar que nossos objetivos são alcança<strong>do</strong>s na<br />
aprendência musical. Po<strong>de</strong>mos ratificar que nossos educan<strong>do</strong>s apreen<strong>de</strong>m música,<br />
reconhecem signos musicais, são capazes <strong>de</strong> executar música em grupo, e <strong>de</strong>monstram<br />
conhecimento sobre a história da música, estilos e estrutura musicais – vivem<br />
a música na Ludicida<strong>de</strong>.<br />
Vemos que o processo é muito mais importante que o <strong>de</strong>sempenho <strong>do</strong>s educan<strong>do</strong>s<br />
na apresentação ou performance. Nos encantamos com o fazer musical em seus<br />
movimentos e ro<strong>do</strong>pios e percebemos o discurso <strong>de</strong> nossos educan<strong>do</strong>s que se manifestam<br />
nas <strong>de</strong>scobertas que aten<strong>de</strong>m seus <strong>de</strong>sejos, interesses e necessida<strong>de</strong>s. Assim<br />
colaboramos para a formação <strong>do</strong> ser na educação, pois apren<strong>de</strong>r música é sentir a<br />
música, ter a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> brincar com a música, e (re)criá-la, on<strong>de</strong> o ser é protagonista<br />
<strong>do</strong> fazer musical. Padilha (2007, 48) nos diz que:<br />
Crianças que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> ce<strong>do</strong>, acumulam vivências musicais no seu ambiente familiar<br />
e escolar, têm maiores perspectivas <strong>de</strong> se tornarem pessoas mais sensíveis em<br />
relação à música e <strong>de</strong> atribuírem maior valor à presença da musicalida<strong>de</strong> em suas<br />
vidas, sejam quais forem as suas ativida<strong>de</strong>s profissionais futuras, com o que se tor-
nam também pessoas mais conectadas a outros “sons” <strong>de</strong> suas existências.<br />
E espalhan<strong>do</strong> os sons <strong>de</strong> uma existência mais musical e harmoniosa <strong>de</strong>sejamos que<br />
a Educação Musical revele o viver a música <strong>do</strong> ser, e que ele possa irradiar luminosida<strong>de</strong><br />
para o entorno, envolven<strong>do</strong> outros seres, a natureza, a socieda<strong>de</strong> e o planeta<br />
na ciranda da vida.<br />
Referências<br />
Assmann, Hugo. 1998. Reencantar a educação: rumo à socieda<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>nte. Petrópolis:<br />
Vozes.<br />
Brasil. Lei no 11.769, 18 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008. Brasília, 2008. Disponível em http://www.acaoeducativa.org.br/portal<br />
Acesso em: 08 <strong>de</strong>zembro 2008.<br />
——— . Lei <strong>de</strong> Diretrizes e Bases da Educação no 9394/96. Brasília, 1996. Disponível em<br />
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9394.htm Acesso em: 18 <strong>de</strong>zembro 2008.<br />
Caillois, Roger. 1990. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Trad. José Garcez Palha.<br />
Lisboa: Cotovia.<br />
Cavalcanti, Katia Brandão; Sampaio, Ana Tânia Lopes. 2008. Sandplay e transdisciplinarida<strong>de</strong>:<br />
a lu<strong>do</strong>poiese na autoformação humana. In: <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> III Congresso Internacional<br />
Transdisciplinarida<strong>de</strong>, Complexida<strong>de</strong> e Eco-formação. Brasília, Universida<strong>de</strong> Católica<br />
<strong>de</strong> Brasília, p.1-11.<br />
Corporeida<strong>de</strong> Blog. http://bacor-lu<strong>do</strong>poiese.blogspot.com<br />
Csikszentmihalyi, Mihaly. 1992. A psicologia da felicida<strong>de</strong>. Trad. Denise Maria Bolanho.<br />
São Paulo: Saraiva.<br />
Demo, Pedro. 2006. Ser professor é cuidar para que o aluno aprenda. 5.ed. Porto Alegre: Mediação.<br />
Duvignaud, Jean. 1997. El juego <strong>de</strong>l juego. Traducción <strong>de</strong> Jorge Ferreiro Santana. Bogotá,<br />
Colômbia: Fon<strong>do</strong> <strong>de</strong> Cultura Econômica LTDA, 1997.<br />
Granja, Carlos Eduar<strong>do</strong> <strong>de</strong> Souza Campos. 2006. Musicalizan<strong>do</strong> a escola: música, conhecimento<br />
e educação. São Paulo: Escrituras.<br />
Huizinga, Johan. 2005. Homo lu<strong>de</strong>ns: o jogo como elemento da cultura. Trad. João Paulo<br />
Monteiro. São Paulo: Perspectiva.<br />
Luckesi, Cipriano Carlos. 2009. Ludicida<strong>de</strong> e ativida<strong>de</strong>s lúdicas: uma abordagem a partir<br />
da experiência interna. Disponível em http://www.luckesi.com.br Acesso em: 14 janeiro<br />
2009.<br />
Maturana, Humberto e Varela, Francisco. 1997. De máquinas e seres vivos. Autopoiese: a organização<br />
<strong>do</strong> vivo. 3.ed. Trad. Juan Acuña Llorens. Porto Alegre: <strong>Artes</strong> Médicas.<br />
Maturana, Humberto e Ver<strong>de</strong>n-Zöller, Gerda. 2004. Amar e brincar: fundamentos esqueci<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> humano <strong>do</strong> patriarca<strong>do</strong> à <strong>de</strong>mocracia. Trad. Humberto Mariotti e Lia Diskin. São<br />
Paulo: Palas Athena.<br />
Maturana, Humberto. 1997. A ontologia da realida<strong>de</strong>. Cristina Magro, Miriam Graciano e<br />
Nelson Vaz (Org.). Belo Horizonte: UFMG.<br />
Padilha, Paulo Roberto. 2007. Educar em to<strong>do</strong>s os cantos: reflexões e canções por uma Educação<br />
Transcultural. São Paulo: Instituto Paulo Freire.<br />
481
482<br />
O Ensino <strong>de</strong> Música para Pessoas com Doença Mental:<br />
a <strong>de</strong>sconstrução da figura <strong>do</strong> louco<br />
e a construção <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> inclusão social<br />
Thelma Sy<strong>de</strong>nstricker Alvares<br />
tsydalvares@hotmail.com<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
Resumo<br />
Pesquisa qualitativa realizada na Escola <strong>de</strong> Música da UFRJ visan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> uma meto<strong>do</strong>logia <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong> música para pessoas com transtorno mental que participam<br />
<strong>do</strong> programa <strong>de</strong> hospital-dia <strong>do</strong> Instituto <strong>de</strong> Psiquiatria da UFRJ. Discussão da<br />
Reforma Psiquiátrica e <strong>de</strong> outros movimentos que impulsionam o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> políticas<br />
sociais que buscam a inclusão social e o acolhimento da diversida<strong>de</strong> humana. As<br />
principais questões que norteiam esta pesquisa são: 1. Como a Educação Musical po<strong>de</strong><br />
contribuir com o movimento da Reforma Psiquiátrica? 2. Quais mudanças o aprendiza<strong>do</strong><br />
musical traz para pessoas com <strong>do</strong>ença mental? 3. Como assegurar um ensino <strong>de</strong><br />
música para pessoas com <strong>do</strong>ença mental em que se enfatize a capacida<strong>de</strong> musical <strong>do</strong><br />
aluno e o indivíduo como um to<strong>do</strong> e não a <strong>do</strong>ença mental? 4. Seria o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong><br />
por Swanwick, TECLA, a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> para o ensino <strong>de</strong> música para pessoas com<br />
<strong>do</strong>ença mental? Quais mudanças, ou a<strong>de</strong>quações, se fazem (ou não) necessárias? As<br />
principais abordagens e procedimentos meto<strong>do</strong>lógicos a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s são: observação participante,<br />
registro das aulas (DVD), entrevistas semi-abertas. As principais concepções teóricas<br />
que norteiam essa interpretação são: a. estu<strong>do</strong> da motivação na aprendizagem<br />
musical como um campo importante <strong>de</strong> investigação que po<strong>de</strong>rá facilitar o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> uma meto<strong>do</strong>logia <strong>do</strong> ensino <strong>de</strong> música para pessoas com transtorno mental.<br />
b. As ativida<strong>de</strong>s criativas como meio facilita<strong>do</strong>r <strong>do</strong> processo ensino-aprendizagem e<br />
como meio integra<strong>do</strong>r das 3 funções (experiência sensória, saber intuitivo e saber lógico)<br />
referentes á aquisição <strong>de</strong> conhecimentos. c. A utilização <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo TECLA, <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong><br />
por Swanwick, como ponto inicial para planejamento e <strong>de</strong>senvolvimento das aulas <strong>de</strong><br />
música. d. Teoria <strong>de</strong> Paulo Freire em que a educação é vista como meio <strong>de</strong> transformação<br />
e <strong>de</strong> afirmação <strong>do</strong> homem no mun<strong>do</strong> e não <strong>de</strong> adaptação; o homem <strong>de</strong>ve ser o sujeito<br />
<strong>de</strong> sua educação e não objeto <strong>de</strong>la.<br />
Esta pesquisa qualitativa, realizada na Escola <strong>de</strong> Música da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong><br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro (UFRJ), tem por objetivo investigar uma meto<strong>do</strong>logia <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong><br />
música para pessoas com transtornos mentais que estão no programa <strong>de</strong> tratamento<br />
<strong>do</strong> hospital-dia <strong>do</strong> Instituto <strong>de</strong> Psiquiatria da UFRJ. A Escola <strong>de</strong> Música possui<br />
uma parceria com o Instituto <strong>de</strong> Psiquiatria na qual os alunos <strong>do</strong> curso <strong>de</strong> licenciatura<br />
e <strong>do</strong> mestra<strong>do</strong> em educação musical encontram um campo para prática pedagógica<br />
e pesquisa; as aulas vinculadas à pesquisa acontecem na Escola <strong>de</strong> Música<br />
O século XX e o início <strong>de</strong>ste século têm contribuí<strong>do</strong> favoravelmente para a criação
<strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> inclusão social <strong>de</strong> pessoas com necessida<strong>de</strong>s especiais. A Conferência<br />
<strong>de</strong> Salamanca (UNESCO, 1994), a Declaração <strong>de</strong> Caracas (BRASIL,<br />
2002), as Conferências Nacional <strong>de</strong> Educação e as Conferências Regional <strong>de</strong> Reforma<br />
<strong>do</strong>s Serviços <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental1 são exemplos <strong>de</strong>ste movimento que busca o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> políticas sociais mais <strong>de</strong>mocráticas. Percebe-se uma tendência<br />
em <strong>de</strong>senvolver estratégias e ações sociais que busquem uma articulação entre a<br />
educação, saú<strong>de</strong>, moradia, assistência social, <strong>de</strong>senvolvimento sustentável, economia<br />
solidária, trabalho e renda. Não po<strong>de</strong>mos pensar em uma educação inclusiva,<br />
sem garantir a inserção social <strong>de</strong>ste indivíduo com necessida<strong>de</strong>s especiais fora <strong>do</strong>s<br />
muros escolares. Não bastam leis que obriguem a aceitação <strong>de</strong> alunos com necessida<strong>de</strong>s<br />
educacionais especiais em escolas regulares. È preciso repensar, entre outras<br />
questões, a formação <strong>do</strong>s professores, a acessibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas com<br />
necessida<strong>de</strong>s especiais nos espaços urbanos e rurais, a inserção <strong>de</strong>stas pessoas no<br />
merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho e a articulação entre os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e a educação <strong>de</strong> mo<strong>do</strong><br />
que estes serviços possam garantir o <strong>de</strong>senvolvimento pleno <strong>do</strong> aluno com necessida<strong>de</strong>s<br />
especiais. Por exemplo, uma criança surda que seja atendida na fonoaudiologia<br />
em uma escola especializada, não obterá benefícios condizentes com o<br />
tratamento se não tiver aparelho auditivo que é forneci<strong>do</strong> pelos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.<br />
O movimento da Reforma Psiquiátrica inicia-se na década <strong>de</strong> 70 sen<strong>do</strong> muito influencia<strong>do</strong><br />
pelo psiquiatra italiano Franco Basaglia (1985). No Brasil a Dra. Nise<br />
da Silveira (Silveira, 1981; 1986; 1992) já iniciara na década <strong>de</strong> 50 um trabalho que<br />
<strong>de</strong>nunciava a violência <strong>do</strong> tratamento psiquiátrico como a lobotomia, o eletrochoque<br />
e o uso abusivo <strong>de</strong> neurolépticos. Ela propôs um mo<strong>de</strong>lo inova<strong>do</strong>r <strong>de</strong> tratamento<br />
dan<strong>do</strong> origem à Casa das Palmeiras e ao Museu <strong>do</strong> Inconsciente<br />
tornan<strong>do</strong>-se um ícone que impulsionou mudanças no tratamento psiquiátrico no<br />
Brasil.<br />
A partir <strong>do</strong> final da década <strong>de</strong> 80 e início da <strong>de</strong> 90, mudanças significativas começam<br />
a ocorrer no tratamento da pessoa com transtorno mental. Em 1990, o Brasil<br />
torna-se signatário da Declaração <strong>de</strong> Caracas (BRASIL, 2002) que propõe a reestruturação<br />
da assistência psiquiátrica intensifican<strong>do</strong> o movimento em Saú<strong>de</strong> Mental<br />
na América Latina e Caribe. Passam a entrar em vigor no país as primeiras<br />
normas fe<strong>de</strong>rais que regulamentam a implantação <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> atenção diária<br />
como os Centros <strong>de</strong> Atenção Psicossocial (CAP), hospitais-dia e <strong>de</strong>senvolvimento<br />
das primeiras normas para fiscalização e classificação <strong>do</strong>s hospitais psiquiátricos. A<br />
Lei 10.216, aprovada em 2001, por exemplo, redireciona a assistência em Saú<strong>de</strong><br />
Mental privilegian<strong>do</strong> o oferecimento <strong>de</strong> tratamento em serviços <strong>de</strong> base comunitária,<br />
dispon<strong>do</strong> sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais.<br />
Atualmente existem programas, serviços e auxílio <strong>do</strong> governo que buscam garantir<br />
o direito <strong>de</strong> cidadania da pessoa com transtorno mental. Entre estes po<strong>de</strong>mos<br />
citar2: Programa Nacional <strong>de</strong> Avaliação <strong>do</strong> Sistema Hospitalar/Psiquiatria<br />
483
484<br />
(PNASH/Psiquiatria), Programa Anual <strong>de</strong> Reestruturação da Assistência Hospitalar<br />
Psiquiátrica no SUS (PRH), Programa <strong>de</strong> Inclusão Social pelo Trabalho, Programa<br />
<strong>de</strong> Volta para Casa (visa à reabilitação psicossocial <strong>de</strong> pacientes que tenham<br />
permaneci<strong>do</strong> em internação psiquiátrica <strong>de</strong> longa duração), auxílio reabilitação psicossocial<br />
e os Serviços <strong>de</strong> Residência Terapêutica. No entanto, apesar <strong>de</strong>stas mudanças,<br />
o indivíduo com <strong>do</strong>ença mental continua enfrentan<strong>do</strong> obstáculos em seu<br />
processo <strong>de</strong> inserção social.<br />
Jean-Marc Raynaud na apresentação <strong>do</strong> livro <strong>de</strong> Jacques Lesage <strong>de</strong> La Haye (2007),<br />
A morte <strong>do</strong> manicômio, afirma:<br />
O louco já não faz mais parte da paisagem. Ele é (cada vez menos) confina<strong>do</strong><br />
em asilos. Semi-oculto em hospitais <strong>de</strong> dia, em apartamentos terapêuticos, em<br />
locais <strong>de</strong> vida institucionaliza<strong>do</strong>s. . . Vagueia-se incógnitos na vida <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os<br />
dias trajan<strong>do</strong> suas vastas camisas químicas <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os tipos. Ele não tem mais<br />
seu lugar entre nós. E ainda menos em nós. O louco, <strong>do</strong>ravante, é o OUTRO.<br />
O estrangeiro. Aquele a quem se <strong>de</strong>ve temer. Excluir. Ocultar. Encarcerar.<br />
Negar. No diapasão <strong>do</strong> <strong>de</strong>liquente, <strong>do</strong> jovem, <strong>do</strong> velho, <strong>do</strong> <strong>de</strong>ficiente, <strong>do</strong> <strong>de</strong>semprega<strong>do</strong><br />
(p. 10)<br />
A estrutura <strong>do</strong> manicômio além <strong>do</strong> <strong>de</strong>strato humano tornou-se também um ônus<br />
financeiro ao Esta<strong>do</strong>. Por exemplo, a não mais existente Colônia Juliano Moreira3<br />
chegou a abrigar cinco mil pacientes consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s irrecuperáveis. A indústria farmacêutica<br />
responsável pelos neurolépticos também é gera<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> capital. É<br />
fundamental refletir sobre os passos da Reforma Psiquiátrica, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> as questões<br />
econômicas, mas priorizan<strong>do</strong> e viabilizan<strong>do</strong> um tratamento humanitário. Segun<strong>do</strong><br />
La Haye (2007),<br />
É verda<strong>de</strong>, o hospital psiquiátrico <strong>de</strong>saparece por razões econômicas, quan<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> fato, essa evolução era necessária por motivos humanitários e conceitos teóricos.<br />
O hospital psiquiátrico <strong>de</strong>via ser aboli<strong>do</strong>, pois era um enclave totalitário<br />
evocan<strong>do</strong> os campos <strong>de</strong> concentração. Mais ainda, a atomização <strong>do</strong> hospital psiquiátrico<br />
em estruturas leves corre o risco <strong>de</strong> nada mudar em relação ao tratamento<br />
<strong>do</strong>s <strong>do</strong>entes mentais se seus princípios <strong>de</strong> funcionamento permanecerem<br />
os mesmos. (p. 199)<br />
Segun<strong>do</strong> Amarante (1995), os EUA são um exemplo <strong>do</strong> fracasso da Reforma Psiquiátrica<br />
porque o conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinstitucionalização se reduziu à mera medida <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sospitalização. A Reforma Psiquiátrica precisa atingir um escopo mais abrangente:<br />
Estamos falan<strong>do</strong> em <strong>de</strong>sinstitucionalização, que não significa apenas <strong>de</strong>sospitalização,<br />
mas <strong>de</strong>sconstrução. Isto é, superação <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo arcaico centra<strong>do</strong><br />
no conceito <strong>de</strong> <strong>do</strong>ença como falta e erro, centra<strong>do</strong> no tratamento da <strong>do</strong>ença<br />
como entida<strong>de</strong> abstrata. Desinstitucionalização significa tratar o sujeito em sua<br />
existência e em relação com suas condições concretas <strong>de</strong> vida. Isto significa não<br />
administrar-lhe apenas fármacos ou psicoterapias, mas construir possibilida<strong>de</strong>s.<br />
O tratamento <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser a exclusão em espaços <strong>de</strong> violência e mortificação
para tornar-se criação <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s concretas <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> a subjetivida<strong>de</strong>.<br />
O <strong>do</strong>ente, antes excluí<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s direitos e da cidadania, <strong>de</strong>ve tornar-se<br />
um sujeito, e não um objeto <strong>do</strong> saber psiquiátrico. (p.494)<br />
Acreditamos que a educação musical possa ser um caminho <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s<br />
para o indivíduo com transtorno mental. Segun<strong>do</strong> a Dra. Nise da Silveira<br />
(Horta, 2008), o foco <strong>do</strong> tratamento é o indivíduo como um to<strong>do</strong> e não a<br />
<strong>do</strong>ença.<br />
É fundamental valorizar o la<strong>do</strong> saudável <strong>do</strong> cliente, e não ficar procuran<strong>do</strong> sintomas<br />
para a<strong>do</strong>entá-lo cada vez mais. Ora, se você observa com <strong>de</strong>sprezo o<br />
<strong>do</strong>ente mental, só enxergará tristeza, miséria, <strong>de</strong>cadência. No entanto, se você for<br />
mais além e conseguir olhar o outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> ser, <strong>de</strong>scobrirá tesouros maravilhosos,<br />
incalculáveis. . . Como eu não sou boba nem nada, <strong>de</strong>cidi olhar o la<strong>do</strong><br />
mais rico. Foi exatamente <strong>de</strong>sta riqueza que nasceu o meu trabalho. (Horta,<br />
2008, p.96)<br />
Em 2005, o Ministério da Saú<strong>de</strong> publicou o <strong>do</strong>cumento, Reforma psiquiátrica e<br />
política <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental no Brasil, apresenta<strong>do</strong> à Conferência Regional <strong>de</strong> Reforma<br />
<strong>do</strong>s Serviços <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental: 15 anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Caracas (BRASIL, 2005). Neste<br />
<strong>do</strong>cumento, o Ministério menciona os Centros <strong>de</strong> Convivência e Cultura, iniciativa<br />
já existente em Campinas (SP) e Belo Horizonte (MG):<br />
É típico da dinâmica da Reforma Psiquiátrica o surgimento, em varia<strong>do</strong>s momentos<br />
e em diversas regiões, <strong>de</strong> experiências inova<strong>do</strong>ras e <strong>de</strong> novas tecnologias<br />
para respon<strong>de</strong>r ao <strong>de</strong>safio <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> e da inclusão social. Os Centros <strong>de</strong> Convivência<br />
e Cultura vem se <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong> como uma <strong>de</strong>stas experiências, e o Ministério<br />
da Saú<strong>de</strong> vem conduzin<strong>do</strong> um <strong>de</strong>bate em torno da viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
aprofundamento e expansão <strong>de</strong>ste dispositivo para to<strong>do</strong> o país. (Brasil, p. 36,<br />
2005)<br />
A contribuição <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s culturais e artísticas que possam trazer mudanças<br />
significativas para inclusão <strong>de</strong> pessoas com transtorno mental tem si<strong>do</strong> discutida.<br />
No Rio <strong>de</strong> Janeiro, realizou-se o encontro Loucos por Diversida<strong>de</strong><br />
(Amarante, 2008) na Fundação Oswal<strong>do</strong> Cruz no qual diversos projeto envolven<strong>do</strong><br />
as <strong>Artes</strong> com pacientes psiquiátricos foram apresenta<strong>do</strong>s. Acreditamos ser essencial<br />
a participação da Universida<strong>de</strong> neste processo <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> experiências inova<strong>do</strong>ras<br />
e produção <strong>de</strong> conhecimento que venham a contribuir com os propósitos da<br />
Reforma Psiquiátrica junto aos órgãos governamentais.<br />
A criação <strong>de</strong> um espaço para o ensino <strong>de</strong> música, propician<strong>do</strong> a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
participação <strong>de</strong>stes alunos na vida musical, cultural da cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
vem ao encontro <strong>do</strong>s objetivos encontra<strong>do</strong>s no movimento da Reforma Psiquiátrica.<br />
No Instituto <strong>de</strong> Psiquiatria, Vidal (Vidal, Azeve<strong>do</strong> & Lugão, 1998) relata o<br />
surgimento <strong>do</strong>s Cancioneiros <strong>do</strong> IPUB que surgiu da necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s pacientes <strong>de</strong><br />
expressarem suas composições. Desta iniciativa, surgiu o grupo, Cancioneiros <strong>do</strong><br />
IPUB, que hoje interage com a socieda<strong>de</strong>, em diversas cida<strong>de</strong>s brasileiras, através <strong>do</strong><br />
485
486<br />
projeto Loucos por Música que permite que bandas <strong>de</strong> pessoas com transtorno<br />
mental participem <strong>de</strong> shows <strong>de</strong> músicos renoma<strong>do</strong>s. É importante mencionar que<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a criação <strong>do</strong> grupo há 12 anos, nenhum <strong>de</strong> seus componentes voltou a ser interna<strong>do</strong>s.<br />
Segun<strong>do</strong> a Dra. Nise:<br />
A experiência <strong>de</strong>monstra que a volta <strong>do</strong> paciente à realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, em primeiro<br />
lugar, <strong>de</strong> um relacionamento confiante com alguém - relacionamento que<br />
se esten<strong>de</strong>rá, aos poucos, a contatos com outras pessoas e com o ambiente. O<br />
ambiente em que os clientes estão é, por si só, um importante agente terapêutico.<br />
(Horta, 2008, p.329)<br />
Acreditamos que o ambiente da sala <strong>de</strong> aula seja fundamental para o bom <strong>de</strong>sempenho<br />
<strong>do</strong> aluno e isto também está correlaciona<strong>do</strong> com uma meto<strong>do</strong>logia satisfatória.<br />
É objetivo <strong>de</strong> esta pesquisa investigar uma meto<strong>do</strong>logia <strong>do</strong> ensino da música<br />
que contribua para o processo ensino-aprendizagem <strong>de</strong> alunos com transtornos<br />
mentais. No Instituto <strong>de</strong> Psiquiatria temos relatos <strong>de</strong> alunos que iniciaram estu<strong>do</strong>s<br />
em escolas <strong>de</strong> música, mas não conseguiram se adaptar ao ensino e aban<strong>do</strong>naram<br />
o programa. É importante buscar uma meto<strong>do</strong>logia que não tenha como foco<br />
a <strong>do</strong>ença, mas que, ao mesmo tempo, trabalhe com possíveis dificulda<strong>de</strong>s (ou diferenças)<br />
<strong>de</strong> aprendizagem das pessoas com transtorno mental. Para isso, é necessário<br />
levar em conta os aspectos emocionais, fruto da exclusão social sofrida pela<br />
pessoa com transtorno mental, o uso <strong>de</strong> medicação psiquiátrica e as características<br />
apresentadas, por exemplo, em quadros <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão e esquizofrenia. “A esquizofrenia<br />
é uma <strong>do</strong>ença biológica e, como tal, envolve alterações cerebrais, tanto no<br />
nível celular como químico, acometen<strong>do</strong> diferentes funções cerebrais (Palmeira,<br />
Geral<strong>de</strong>s & Bezerra, p.5, 2009).<br />
Concordamos com a idéia <strong>de</strong> Freire (2001) <strong>de</strong> que o homem <strong>de</strong>ve ser o sujeito <strong>de</strong><br />
sua educação e não o objeto <strong>de</strong>la. Segun<strong>do</strong> o autor,<br />
Uma educação que preten<strong>de</strong>sse adaptar o homem estaria matan<strong>do</strong> suas possibilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> ação, transforman<strong>do</strong>-o em abelha. A educação <strong>de</strong>ve estimular a<br />
opção e afirmar o homem como homem. Adaptar é acomodar, não transformar.<br />
(p. 32)<br />
Neste momento histórico em que gran<strong>de</strong>s mudanças ocorrem no tratamento da<br />
pessoa com transtorno mental, é fundamental criar espaços sociais, culturais e artísticos<br />
on<strong>de</strong> as diversida<strong>de</strong>s humanas possam ser compartilhadas e respeitadas. Segun<strong>do</strong><br />
Bruner (1996), educação “é uma busca complexa <strong>de</strong> fazer a cultura servir ás<br />
necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seus membros, e fazer seus membros com seus meios <strong>de</strong> saber servirem<br />
às necessida<strong>de</strong>s da cultura.” (p.43)<br />
As principais questões que norteiam esta pesquisa são:<br />
1. Como a Educação Musical po<strong>de</strong> contribuir com o movimento da Reforma Psiquiátrica?<br />
2. Quais mudanças o aprendiza<strong>do</strong> musical traz para pessoas com <strong>do</strong>ença mental?
3. Como assegurar um ensino <strong>de</strong> música para pessoas com <strong>do</strong>ença mental em que<br />
se enfatize a capacida<strong>de</strong> musical <strong>do</strong> aluno e o indivíduo como um to<strong>do</strong> e não a<br />
<strong>do</strong>ença mental?<br />
4. Seria o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> por Swanwick (1999), TECLA, a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> para o<br />
ensino <strong>de</strong> música para pessoas com <strong>do</strong>ença mental? Quais mudanças, ou a<strong>de</strong>quações,<br />
se fazem (ou não) necessárias?<br />
A pesquisa parte <strong>de</strong> alguns pressupostos relativos à educação musical que norteiam<br />
o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> projeto. Swanwick (1994) acredita que exista uma relação dinâmica<br />
entre a intuição e a análise. Para o autor, o saber intuitivo é um mo<strong>do</strong> ativo<br />
<strong>de</strong> construção <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> e permite todas outras maneiras <strong>do</strong> saber. Segun<strong>do</strong> Swanwick,<br />
a experiência sensória está diretamente correlacionada ao saber intuitivo que<br />
é uma preparação para o pensamento lógico. “A relação não é entre funções contrastantes,<br />
mas entre fases prévias e subseqüentes para se chegar ao conhecimento.”<br />
(p.29). Nas aulas buscamos a experiência prática, envolven<strong>do</strong> a criação, improvisação<br />
como uma preparação para abordar a teoria musical. De acor<strong>do</strong> com Bréscia<br />
(2003), “a aprendizagem só ocorre plenamente quan<strong>do</strong> o aprendiz usa, transfere,<br />
aplica, cria, aprofunda, modifica, inova a partir <strong>do</strong> que apren<strong>de</strong>u.” (p.65)<br />
Muitos alunos que participam das ativida<strong>de</strong>s musicais <strong>do</strong> Instituto <strong>de</strong> Psiquiatria<br />
compõem canções sem ter conhecimento teórico <strong>de</strong> música. Acreditamos que os<br />
alunos tragam um conhecimento musical adquiri<strong>do</strong> em sua convivência social que<br />
<strong>de</strong>ve ser estimula<strong>do</strong> através <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> criação/ improvisação que envolvem<br />
também a experiência sensória. Segun<strong>do</strong> Santos (2009), “a idéia <strong>de</strong> construção <strong>de</strong><br />
conhecimento permite conceber a criativida<strong>de</strong> musical em termos epistêmicos,<br />
ten<strong>do</strong> em vista a perspectiva <strong>de</strong> construção e <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> conhecimento<br />
pessoal. “(p.99)<br />
O planejamento das aulas envolvem ativida<strong>de</strong>s em que as 3 funções (experiência<br />
sensória, saber intuitivo e saber lógico) <strong>de</strong>scritas por Swanwick (1994) sejam utilizadas.<br />
As ativida<strong>de</strong>s criativas, além <strong>de</strong> fazerem parte <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> aprendizagem,<br />
po<strong>de</strong>m ser um veículo <strong>de</strong> comunicação sobre as questões referentes ao transtorno<br />
mental. No trabalho <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> por Vidal (Vidal, Azeve<strong>do</strong> & Lugão, 1998), os<br />
pacientes <strong>do</strong> hospital criaram canções que falam sobre a experiência da <strong>do</strong>ença mental<br />
como também <strong>de</strong> temas que falam <strong>de</strong> amor, natureza, violência urbana, etc. Para<br />
Freire (2001), “Em to<strong>do</strong> homem existe um ímpeto cria<strong>do</strong>r. O ímpeto <strong>de</strong> criar nasce<br />
da inconclusão <strong>do</strong> homem. A educação é mais autêntica quanto mais <strong>de</strong>senvolve<br />
este ímpeto ontológico <strong>de</strong> criar.” (p.32)<br />
Em sala <strong>de</strong> aula, damos ênfase às ativida<strong>de</strong>s em grupo. Além <strong>do</strong>s benefícios na aprendizagem,<br />
acreditamos que seja fundamental para a criação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste<br />
grupo que está em um processo <strong>de</strong> inserção social. Apesar da reforma psiquiátrica<br />
ter trazi<strong>do</strong> novas perspectivas para pessoas com transtorno mental, estas pessoas<br />
ainda sofrem muitos preconceitos. È importante estimular o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong><br />
487
488<br />
uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> alunos <strong>de</strong> música e não <strong>de</strong> pacientes <strong>do</strong> Instituto<br />
<strong>de</strong> Psiquiatria. Segun<strong>do</strong> Bréscia (2003), “enquanto experiência social, uma ativida<strong>de</strong><br />
musical em grupo dá aos participantes a segurança <strong>de</strong> “pertencer”, que é geneticamente<br />
<strong>de</strong>rivada da antiga segurança <strong>de</strong> ser membro <strong>de</strong> uma família. ”(p.62)<br />
Além das ativida<strong>de</strong>s em sala <strong>de</strong> aula, também assistimos, pelo menos uma vez ao<br />
mês, uma apresentação musical em teatros e salas <strong>de</strong> concerto da cida<strong>de</strong> como meio<br />
<strong>de</strong> estimular o grupo a conhecer e participar da vida musical <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. A<br />
apreciação musical e o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> diferentes estilos musicais são fundamentais para<br />
o <strong>de</strong>senvolvimento musical <strong>do</strong> aluno e em nossas aulas procuramos fazer uma ponte<br />
entre os conteú<strong>do</strong>s estuda<strong>do</strong>s em aula com a escolha da apresentação musical <strong>do</strong><br />
mês.<br />
A pesquisa inclui o estu<strong>do</strong> das teorias sobre motivação que vem recentemente sen<strong>do</strong><br />
utilizadas em pesquisa em música. Segun<strong>do</strong> Araújo (2009),<br />
O estu<strong>do</strong> da motivação na aprendizagem musical representa um significativo<br />
campo <strong>de</strong> investigação, uma vez que, por meio <strong>de</strong> diferentes enfoques, po<strong>de</strong>-se<br />
obter resulta<strong>do</strong>s que auxiliem os educa<strong>do</strong>res a compreen<strong>de</strong>r o percurso da aprendizagem<br />
discente, revela<strong>do</strong>s por meio <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s sobre os aspectos <strong>do</strong> investimento<br />
pessoal <strong>do</strong>s sujeitos, o grau <strong>de</strong> envolvimento ativo <strong>de</strong>stes nas tarefas<br />
realizadas, a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal envolvimento e as conseqüências e resulta<strong>do</strong>s das<br />
ativida<strong>de</strong>s musicais na relação entre motivação intrínseca e extrínseca. (p. 117)<br />
Sloboda e Davidson (1996) afirmam que a percepção <strong>do</strong> próprio sucesso em música<br />
aumenta a motivação <strong>do</strong> aluno enquanto que a percepção <strong>do</strong> próprio fracasso<br />
é um fator <strong>de</strong> <strong>de</strong>smotivação. Os autores <strong>de</strong>screvem estu<strong>do</strong> sobre motivação no<br />
aprendiza<strong>do</strong> <strong>do</strong> instrumento em que as crianças que alcançavam um alto índice <strong>de</strong><br />
performance <strong>de</strong>screviam seu primeiro professor como uma pessoa amigável, simpática<br />
e um bom músico. Por outro la<strong>do</strong>, as crianças que aban<strong>do</strong>navam o estu<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> instrumento relatavam que o primeiro professor era uma pessoa <strong>de</strong>sagradável e<br />
péssimo músico. Na pesquisa a motivação extrínseca, por exemplo, o professor <strong>de</strong>ixava<br />
a criança subir na árvore antes da aula, estimulava o interesse da criança em estudar<br />
música o que levava ao surgimento, ou ao aumento, <strong>de</strong> uma motivação<br />
intrínseca em relação ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> instrumento. Segun<strong>do</strong> a teoria da auto<strong>de</strong>terminação,<br />
o ser humano nasce com propensões inatas para o aprendiza<strong>do</strong> e o ambiente<br />
po<strong>de</strong> fortalecer ou enfraquecer esta propensão. Na teoria da<br />
expectativa-valor, os elementos <strong>de</strong>terminantes <strong>do</strong> processo motivacional são “as<br />
crenças nas habilida<strong>de</strong>s, as expectativas <strong>de</strong> sucesso e os componentes subjetivos <strong>de</strong><br />
valoração da ativida<strong>de</strong> realizada.” (Araújo, p. 121, 2009). De acor<strong>do</strong> com a teoria<br />
<strong>do</strong> fluxo (Csikszentmihalyi, 1999) o indivíduo alcança o esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> fluxo quan<strong>do</strong> há<br />
equilíbrio entre os <strong>de</strong>safios propostos e as habilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> indivíduo. Quan<strong>do</strong> ele<br />
atinge este equilíbrio ele consegue obter uma energia psíquica totalmente focalizada<br />
e concentrada na ativida<strong>de</strong> em execução, além <strong>de</strong> obter prazer em enfrentar o<br />
<strong>de</strong>safio. Segun<strong>do</strong> a teoria da autoeficácia,
As crenças e a realida<strong>de</strong> nunca se encaixam perfeitamente, e os indivíduos são<br />
orienta<strong>do</strong>s por suas crenças quan<strong>do</strong> se envolvem com o mun<strong>do</strong>. Como conseqüência,<br />
as realizações das pessoas geralmente são mais bem previstas por suas<br />
crenças <strong>de</strong> autoeficácia <strong>do</strong> que por realizações anteriores, conhecimentos ou habilida<strong>de</strong>s<br />
(Pajares e Orlaz, 2008, p.102)<br />
Acreditamos que as teorias da motivação possam contribuir para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong>sta pesquisa e para elucidar caminhos facilita<strong>do</strong>res da inclusão social <strong>de</strong><br />
pessoas com transtorno mental.<br />
Abordagens e procedimentos meto<strong>do</strong>lógicos<br />
As principais abordagens e procedimentos meto<strong>do</strong>lógicos a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s na pesquisa são:<br />
1. a observação participante, através da qual a coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> projeto e os membros<br />
da pesquisa observarão as aulas semanais e interagem com o processo. Os<br />
membros da pesquisa são alunos <strong>do</strong> curso <strong>de</strong> Licenciatura em Música da Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro e <strong>do</strong> mestra<strong>do</strong> em educação musical envolvi<strong>do</strong>s<br />
com a área <strong>de</strong> educação musical especial e que estarão sob a supervisão<br />
da coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> projeto.<br />
Os critérios para inclusão são os seguintes: indicação <strong>de</strong> pacientes pela equipe<br />
<strong>do</strong> hospital-dia <strong>do</strong> Instituto <strong>de</strong> Psiquiatria da UFRJ e o interesse e a disponibilida<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>s pacientes em participar das aulas. Os critérios <strong>de</strong> exclusão são basea<strong>do</strong>s<br />
na avaliação da equipe <strong>do</strong> hospital-dia que indique que o paciente não<br />
esteja em condição <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r as aulas <strong>de</strong> música. Em caso <strong>de</strong> internação, o<br />
aluno ficará afasta<strong>do</strong> das aulas, retornan<strong>do</strong> ao programa quan<strong>do</strong> voltar ao hospital-dia<br />
e quan<strong>do</strong> indica<strong>do</strong> pela equipe <strong>do</strong> hospital.<br />
2. As aulas são filmadas e o registro das aulas é utiliza<strong>do</strong> unicamente com objetivos<br />
educacionais e <strong>de</strong> pesquisa.<br />
3. Reuniões periódicas com a equipe <strong>do</strong> Instituto <strong>de</strong> Psiquiatria a fim <strong>de</strong> discutir<br />
o andamento, avaliar os resulta<strong>do</strong>s e aprimorar o <strong>de</strong>senvolvimento das aulas <strong>de</strong><br />
música.<br />
4. Entrevistas semi-abertas com os alunos vin<strong>do</strong>s <strong>do</strong> hospital-dia. Os critérios<br />
para inclusão nas entrevistas serão: interesse e/ou disponibilida<strong>de</strong> para ser entrevista<strong>do</strong>(a).<br />
Os critérios <strong>de</strong> exclusão serão os seguintes: a falta <strong>de</strong> interesse<br />
e/ou disponibilida<strong>de</strong> para ser entrevista<strong>do</strong>(a).<br />
5. Interpretação <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s, a partir <strong>do</strong> referencial teórico a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>. As principais<br />
concepções que norteiam essa interpretação são:<br />
O estu<strong>do</strong> da motivação na aprendizagem musical como um campo importante <strong>de</strong><br />
investigação que po<strong>de</strong>rá facilitar o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma meto<strong>do</strong>logia <strong>do</strong> ensino<br />
<strong>de</strong> música para pessoas com transtorno mental.<br />
As ativida<strong>de</strong>s criativas como meio facilita<strong>do</strong>r <strong>do</strong> processo ensino-aprendizagem e<br />
como meio integra<strong>do</strong>r das 3 funções (experiência sensória, saber intuitivo e saber<br />
489
490<br />
lógico) referentes á aquisição <strong>de</strong> conhecimentos.<br />
A utilização <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo TECLA, <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> por Swanwick, como ponto inicial<br />
para planejamento e <strong>de</strong>senvolvimento das aulas <strong>de</strong> música.<br />
d. Teoria <strong>de</strong> Paulo Freire em que a educação é vista como meio <strong>de</strong> transformação<br />
e <strong>de</strong> afirmação <strong>do</strong> homem no mun<strong>do</strong> e não <strong>de</strong> adaptação; o homem <strong>de</strong>ve ser o sujeito<br />
<strong>de</strong> sua educação e não objeto <strong>de</strong>la.<br />
Conclusão<br />
O movimento da reforma psiquiátrica assim como outros movimentos que visam<br />
à inclusão social <strong>de</strong> indivíduos historicamente excluí<strong>do</strong>s em muros institucionais<br />
exigem mudanças sociais. É fundamental que a Universida<strong>de</strong> participe ativamente<br />
<strong>de</strong>ste processo através <strong>de</strong> projetos <strong>de</strong> extensão e <strong>de</strong> pesquisa que possam contribuir<br />
com a formação <strong>de</strong> profissionais e produção <strong>de</strong> conhecimento que estimulem o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática que acolha a diversida<strong>de</strong> humana.<br />
É intenção <strong>de</strong>sta pesquisa em processo inicial <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento participar <strong>de</strong>ste<br />
<strong>de</strong>safia<strong>do</strong>r processo <strong>de</strong> transformação social.<br />
1 Outras informações sobre estas conferências e <strong>do</strong>cumentos po<strong>de</strong>m ser obtidas no portal <strong>de</strong><br />
saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> Governo Fe<strong>de</strong>ral: www.sau<strong>de</strong>.gov.br<br />
2 Informações sobre estes programas po<strong>de</strong>m ser obtidas no portal <strong>do</strong> Governo<br />
www.sau<strong>de</strong>.gov.br<br />
3 Informações referentes à Colônia Juliano Moreira po<strong>de</strong>m ser obtida em<br />
www..ccs.sau<strong>de</strong>.gov.br/memória<br />
Referências<br />
Amarante, Paulo (Coord.) 2008. Loucos pela diversida<strong>de</strong>: da diversida<strong>de</strong> da loucura à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
da cultura. Relatório final. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Fundação Oswal<strong>do</strong> Cruz.<br />
Amarante, Paulo. 1995. Novos sujeitos, novos direitos: O <strong>de</strong>bate sobre a reforma psiquiátrica<br />
no Brasil. Cad. Saú<strong>de</strong> Pública, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 11(3): 491-494, jul/set.<br />
Araújo, Rosane Car<strong>do</strong>so <strong>de</strong>. 2009. Motivação e ensino <strong>de</strong> música. . In B. Ilari & R. C. Araújo<br />
(org). Mentes em música, p. 117-136, Curitiba: De<strong>Artes</strong>, UFPR.<br />
Basaglia, Franco. 1985. A Instituição negada: relato <strong>de</strong> um hospital psiquiátrico. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
Graal.<br />
Brasil. 2002. Sistema Único De Saú<strong>de</strong>. Conselho Nacional De Saú<strong>de</strong>. Comissão Organiza<strong>do</strong>ra<br />
da III CNSM. Relatório Final da III Conferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental. Brasília,<br />
11 a 15 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2001. Brasília: Conselho Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>/Ministério<br />
da Saú<strong>de</strong>.<br />
Brasil. 2010. Ministério da Educação. Construin<strong>do</strong> o sistema nacional articula<strong>do</strong> <strong>de</strong> educação:<br />
diretrizes e estratégias <strong>de</strong> ação. Documento-base. Conferência Nacional <strong>de</strong> Educação<br />
2010.
Brasil. 2005. Ministério da Saú<strong>de</strong>. Secretaria <strong>de</strong> Atenção à Saú<strong>de</strong>.DAPE. Coor<strong>de</strong>nação Geral<br />
<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental. Reforma psiquiátrica e política <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental no Brasil. Documento<br />
apresenta<strong>do</strong> à Conferência Regional <strong>de</strong> Reforma <strong>do</strong>s Serviços <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental: 15 anos<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Caracas. OPAS. Brasília, novembro <strong>de</strong> 2005.<br />
Bréscia, Vera Pessagno. 2003. Educação musical: bases psicológicas e ação preventiva. Campinas,<br />
SP: Átomo.<br />
Bruner, Jerome. 1996. The culture of education. Cambridge: Harvard University Press.<br />
Csikszenmihalyi, Mihaly. 1999. A <strong>de</strong>scoberta <strong>do</strong> fluxo: psicologia <strong>do</strong> envolvimento com a vida<br />
cotidiana. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco.<br />
Figueire<strong>do</strong>, Edson. 2009. A teoria da auto<strong>de</strong>terminação e motivação em música: uma adaptação<br />
<strong>do</strong> méto<strong>do</strong>. In: M. Dottori (Ed.), <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais,<br />
5. Goiânia: Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Goiás, p. 545-548.<br />
Freire, Paulo. 2001. Educação e mudança. 25 edição, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra.<br />
Horta, Bernar<strong>do</strong>. Carneiro. 2008. Nise: arqueóloga <strong>do</strong>s mares. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Aeroplano.<br />
La Haye, Jacques Lesage <strong>de</strong>. 2007. A morte <strong>do</strong> manicômio: história da antipsiquiatria. São<br />
Paulo: Imaginário: Editora da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Amazonas.<br />
Pajares, F. & Orlaz, F. 2008. Teoria social cognitiva e auto-eficácia: uma visão geral. In: A.<br />
Bandura, R. G. Azzi & S. Poly<strong>do</strong>ro (Orgs.). Teoria social cognitiva, p.97-114. Porto Alegre:<br />
Artmed.<br />
Palmeira, Leonar<strong>do</strong>, Geral<strong>de</strong>s, Maria Tereza & Bezerra, Ana Beatriz. 2009. Enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a esquizofrenia:<br />
como a família po<strong>de</strong> ajudar no tratamento. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Interciência.<br />
Santos, Regina Antunes <strong>do</strong>s. 2009. A perspectiva da criativida<strong>de</strong> nos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> conhecimento<br />
musica. In: B. Ilari & R. C. Araújo (org). Mentes em música, p. 99-116, Curitiba:<br />
De<strong>Artes</strong>, UFPR.<br />
Silveira, Nise. 1986. Casa das Palmeiras: a emoção <strong>de</strong> lidar. Uma experiência em psiquiatria.<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro: Alhambra.<br />
Silveira, Nise. 1992. O mun<strong>do</strong> das Imagens. São Paulo: Ática.<br />
Silveira, Nise. 1981. Imagens <strong>do</strong> inconsciente. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Alhambra.<br />
Sloboda, John & Davidson, Jane. 2000. The young performing musician . In I. Deliége & J.<br />
Sloboda. Musical Beginnings: origins and <strong>de</strong>velopment of musical competence, p. 171- 190,<br />
Oxford: University Press.<br />
Swanwick, Keith. 1988. Music, mind and education. New York: Routledge.<br />
Swanwick, Keith. 1994. Musical knowledge: intuition, analysis and music education. New<br />
York: Routledge.<br />
Swanwick, Keith. 1999. Teaching music musically. New York: Routledge.<br />
UNESCO. 1994. The Salamanca statement and framework for action on special needs education.<br />
Paris: UNESCO.<br />
Vidal, Vandre. Azeve<strong>do</strong>, Marcelo & Lugão, Simone. 1998. Songbook e CD Cancioneiros <strong>do</strong><br />
IPUB. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Fundação Universitária José Bonifácio/Instituto <strong>de</strong> Psiquiatria,<br />
UFRJ.<br />
491
492<br />
‘Musicalida<strong>de</strong> em Ação’<br />
e Processos Cognitivos na Musicoterapia<br />
Clara Márcia Piazzetta<br />
musicoterapia.atendimento@gmail.com<br />
Núcleo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s e Pesquisas Interdisciplinares em Musicoterapia<br />
Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Artes</strong> <strong>do</strong> Paraná<br />
Resumo<br />
Este texto tem resulta<strong>do</strong>s parciais <strong>do</strong> projeto <strong>de</strong> pesquisa bibliográfica Musicoterapia e<br />
Ciências Cognitivas: possíveis relações entre os processos <strong>de</strong> pensamento e os processos<br />
musicais aprova<strong>do</strong> pelo Comitê <strong>de</strong> Pesquisa da FAP/PR. Apresenta uma reflexão<br />
sobre os aspectos clínicos da música. Ambienta-se nos pensamentos sobre cognição<br />
que consi<strong>de</strong>ram a mente corporificada e fundamenta-se na Musicoterapia Músico-centrada.<br />
Também trás experiências musicais <strong>de</strong> trabalho clínico como exemplos. Musicalida<strong>de</strong><br />
em ação relaciona-se com a cognição <strong>de</strong> maneiras ainda pouco conhecidas na<br />
Musicoterapia, contu<strong>do</strong>, mostra-se como estratégia para uma melhor visibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s valores<br />
clínicos da música. A partir das reflexões, “musicalida<strong>de</strong> em ação” é um exercício<br />
cognitivo inseri<strong>do</strong> no trabalho clínico como uma estratégia <strong>de</strong> significar-fazen<strong>do</strong> ao se<br />
consi<strong>de</strong>rar as “qualida<strong>de</strong>s dinâmicas da nota”.<br />
Introdução<br />
Este artigo tem como base os estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> um processo musicoterapêutico <strong>de</strong> 83 sessões,<br />
já finaliza<strong>do</strong>. Conta assim com um termo <strong>de</strong> consentimento livre e esclareci<strong>do</strong><br />
para sua publicação. O foco <strong>do</strong> texto, contu<strong>do</strong>, não está na eficácia da<br />
musicoterapia, mas sim, na reflexão com as bases teóricas da Musicoterapia Musico-Centrada.<br />
Esta teoria integra expressão musical e processos cognitivos da<br />
mente corporificada pela fundamentação da análise musical na Teoria da Metáfora.<br />
A mente corporificada apresenta-se como uma visão da cognição que consi<strong>de</strong>ra não<br />
apenas a mente (raciocínio e processos intelectuais) para a construção <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong>,<br />
mas insere o corpo (os sentimentos, percepções e emoções) como forma<strong>do</strong>r<br />
<strong>de</strong>sse conhecimento.<br />
O recorte <strong>do</strong> trabalho clínico organiza-se em três etapas: ‘criação <strong>do</strong> vínculo’, ‘abertura<br />
às escutas internas’ e ‘lançar-se às possibilida<strong>de</strong>s’. Em cada etapa, a musicalida<strong>de</strong>,<br />
colocada em ação emerge como elemento chave para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong>s objetivos<br />
clínicos. Musicalida<strong>de</strong> é entendida como capacida<strong>de</strong> cognitiva, no âmbito da<br />
percepção auditiva e no âmbito <strong>do</strong> manuseio <strong>de</strong> instrumentos musicais. Assim, é<br />
inata e constitutiva <strong>de</strong> cada pessoa, não se resume a capacida<strong>de</strong>s e qualida<strong>de</strong>s para<br />
tocar um instrumento musical.
Os conceitos apresenta<strong>do</strong>s na abordagem Nor<strong>do</strong>ff & Robbins e uma revisão conceitual<br />
da música colocan<strong>do</strong>-a como uma ação humana, e não como um objeto à disposição,<br />
integra-se a esse sistema <strong>de</strong> conceitos e acabam por fundamentar uma re<strong>de</strong><br />
complexa <strong>de</strong> relações: homem, música, percepção sensorial, execução musical e relações<br />
humanas.<br />
Musicoterapia Músico-Centrada (MTMC)<br />
A teoria que embasa este artigo foi <strong>de</strong>scrita por Kenneth Aigen a partir <strong>do</strong>s escritos<br />
da Nor<strong>do</strong>ff – Robbins Music Therapy (NRMT) e <strong>do</strong> Gui<strong>de</strong>d Imagery and Music<br />
(GIM), ambas abordagens que têm a música como fator clínico primordial.<br />
Os conceitos apresenta<strong>do</strong>s por Aigen (2005) vêm <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s da música, uma vez<br />
que ela ocupa o lugar central nessa prática. A ênfase está assim nos processos musicais,<br />
estruturas, interações e experiências. Esta teoria é assim conseqüência <strong>de</strong> duas<br />
condições advindas da realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong> musicoterapia: 1) da aplicação simples<br />
da música por profissões ligadas à saú<strong>de</strong> adaptan<strong>do</strong>-a aos seus propósitos ao<br />
invés <strong>de</strong> uma aplicação da música por suas relações com o <strong>de</strong>senvolvimento humano,<br />
característicos <strong>do</strong> trabalho musico-centra<strong>do</strong>; 2) quan<strong>do</strong> o trabalho musicocentra<strong>do</strong><br />
baseia-se em trabalhos clínicos apresenta-se diante <strong>de</strong> <strong>do</strong>is <strong>de</strong>safios: o <strong>de</strong><br />
criar novas teorias e a implicação <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> à saú<strong>de</strong> humana engaja<strong>do</strong> com a música.<br />
Como o entendimento sobre música e musicoterapia é fundamental nessa teoria o<br />
autor relembra o pensamento <strong>de</strong> Bruscia (1987) sobre as duas formas <strong>de</strong> pensar a<br />
música na musicoterapia: música como terapia e música na terapia. O que as <strong>de</strong>fine<br />
é a forma como a música é tratada. Música como terapia, a música é o agente primordial,<br />
um meio <strong>de</strong> resposta para as mudanças terapêuticas <strong>do</strong> cliente. Aqui a ênfase<br />
está na relação <strong>do</strong> cliente diretamente com a música e o musicoterapeuta auxilia<br />
essa relação e intervém no âmbito interpessoal se necessário. Música na terapia, a<br />
música não é o agente primordial, mas ao contrário é usada para facilitar mudanças<br />
através da relação interpessoal, ou com outras modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tratamento.<br />
Os conceitos <strong>de</strong> Music Child e Condition Child presentes na NRMT são: o primeiro,<br />
uma organização das capacida<strong>de</strong>s receptivas, expressivas e cognitivas; e com<br />
o segun<strong>do</strong>, enten<strong>de</strong>m-se as potencialida<strong>de</strong>s reais <strong>de</strong> cada pessoa. O aspecto dinâmico<br />
<strong>de</strong>stes conceitos tem um papel importante para o alcance <strong>do</strong>s objetivos não<br />
musicais. Também outros conceitos <strong>de</strong>scritos no livro <strong>de</strong> Aigen (2005) dão suporte<br />
a esse fazer da música como terapia. Eles vêm da Filosofia da Música, da Educação<br />
Musical e da Teoria da Música.<br />
Aspectos da Filosofia da Música<br />
O aporte filosófico <strong>de</strong> base para esse enten<strong>de</strong>r a música como terapia está <strong>de</strong>scrito<br />
no Pensamento <strong>do</strong> filósofo da Música – Victor Zuckerkandl. Uma obra complexa<br />
493
494<br />
e extensa. Esse texto apresenta muito brevemente sua concepção <strong>de</strong> música por não<br />
ser o objeto <strong>de</strong>sse artigo. Assim, Música para ele é um fenômeno <strong>do</strong> ‘mun<strong>do</strong> externo’.<br />
Os sons musicais chegam aos ouvi<strong>do</strong>s por que estão no mun<strong>do</strong> ‘<strong>de</strong> fora’ e<br />
fazem senti<strong>do</strong> na escuta por possuírem algo para isso. Esse algo pertence ao mun<strong>do</strong><br />
da Música. Preocupa-se com o entendimento da música a partir <strong>de</strong>la mesma e, para<br />
tanto, consi<strong>de</strong>ra o fenômeno sonoro percebi<strong>do</strong> pela mente humana como música.<br />
O ouvinte enten<strong>de</strong> uma organização <strong>de</strong> sons como melodia porque esse fenômeno<br />
faz senti<strong>do</strong> para ele. O que existe na música capaz <strong>de</strong> gerar senti<strong>do</strong>s? Os contextos<br />
musicais (melodia) tornam-se forças ativas por que existe uma qualida<strong>de</strong> dinâmica<br />
em cada nota. A música, para Zuckerkandl, é uma arte viva por essas qualida<strong>de</strong>s das<br />
quais a musicalida<strong>de</strong> humana se ocupa para a composição musical.<br />
Aspectos da Educação Musical<br />
O campo da Educação Musical, através <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> David Elliot, repensa alguns<br />
aspectos <strong>do</strong> que seja música para as pessoas e revê os méto<strong>do</strong>s mais a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s ao<br />
aprendiza<strong>do</strong> da música. Uma revisão <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> Música tratan<strong>do</strong>-a como Musicing<br />
mostrou-se muito pertinente para a MTMC.<br />
Musicing: é o coração <strong>do</strong> pensamento musico-centra<strong>do</strong>. Este conceito envolve o<br />
fazer humano.<br />
Agir não é meramente mover ou exibir um comportamento. Agir é mover-se<br />
<strong>de</strong>liberadamente, com controle, com intenção e finalida<strong>de</strong> . . . Musicing no senti<strong>do</strong><br />
da performance musical é uma forma humana particular e intencional <strong>de</strong><br />
ação . . . tocar música é agir pensativamente e conscientemente (Elliot apud<br />
Aigen, 2005, p.65).<br />
No trabalho musicoterapêutico um conceito sobre música que envolva, ao mesmo<br />
tempo, os processos mentais (pensamento e cognição) e os processos musicais (o<br />
fazer da experiência musical) vem ao encontro <strong>do</strong>s objetivos propostos no cuida<strong>do</strong><br />
à saú<strong>de</strong> engaja<strong>do</strong> com a música.<br />
Musicing na musicoterapia po<strong>de</strong> ser compreendi<strong>do</strong> como “o único meio <strong>de</strong> conhecimento<br />
basea<strong>do</strong> em sua própria epistemologia não reduzida à linguagem verbal”<br />
(Aigen, 2005, p.67). Ans<strong>de</strong>ll & Pavlicevic (2004) tratam-no como<br />
“mu si ca lida<strong>de</strong> em ação”. Isso é significativo para esse artigo por que a música existe<br />
primeiramente como um meio para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> self.<br />
Aspectos da Teoria da Música – análise musical<br />
e processos cognitivos<br />
O entendimento da Musicoterapia envolve tanto o comportamento quanto os aspectos<br />
neurológicos envolvi<strong>do</strong>s nas ações humanas. Aigen (2005) encontra no trabalho<br />
sobre o funcionamento metafórico <strong>do</strong> pensamento, <strong>de</strong>scrito por Lakoff e
Johnson (1980), um apoio para integrar essas ações. A Teoria <strong>do</strong>s Schemas (Teoria<br />
da Metáfora), como é chamada, está em uso no campo da análise musical por<br />
teóricos da música, musicólogos e filósofos da música. Assim, mostra-se interessante<br />
também à Musicoterapia, pois é uma forma <strong>de</strong> análise <strong>do</strong> fenômeno sonoro<br />
musical levan<strong>do</strong> em consi<strong>de</strong>ração os processos <strong>de</strong> pensamento envolvi<strong>do</strong>s nas ações<br />
e entendimentos <strong>do</strong> fenômeno musical. Segun<strong>do</strong> Aigen (2005) envolver-se nesse<br />
conhecimento é encontrar argumentos para os valores inerentemente clínicos da experiência<br />
musical.<br />
A escuta musical compreendida por seus processos <strong>de</strong> pensamento metafóricos têm<br />
como exemplo a expressão música é movimento. De fato, ela leva ao movimento<br />
corporal, ela trabalha com diferentes velocida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> execução e diferentes possibilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> acentuações que induzem à dança; uma sequência <strong>de</strong> notas em intervalos<br />
conjuntos <strong>do</strong> grave para o agu<strong>do</strong> e vice versa é <strong>de</strong>scrita como o <strong>de</strong>slocamento <strong>do</strong><br />
som <strong>de</strong> baixo para cima e <strong>de</strong> cima para baixo (na cultura oci<strong>de</strong>ntal européia), como<br />
se as notas pu<strong>de</strong>ssem subir ou <strong>de</strong>scer. Contu<strong>do</strong>, nem na produção <strong>de</strong> ritmos e compassos<br />
nem nas escalas, algo na música se move. O entendimento <strong>de</strong>sses sons como<br />
movimento é obra <strong>do</strong> pensamento humano inerentemente metafórico e conceitual.<br />
A teoria <strong>do</strong>s Schemas tem por base a idéia que a maior parte <strong>do</strong> conhecimento humano<br />
apóia-se sobre uma série <strong>de</strong> schemas cognitivos. Esses têm origem, mais, nas<br />
experiências vividas pelas pessoas durante as interações com o mun<strong>do</strong> à sua volta, <strong>do</strong><br />
que, nas reflexões verbais sobre tais experiências. As formas <strong>de</strong> agir <strong>de</strong> cada pessoa<br />
estão diretamente ligadas aos schemas construí<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s durante o viver.<br />
As experiências musicais, <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong>, envolvem componentes cognitivos.<br />
Assim, as percepções usan<strong>do</strong> os esquemas <strong>de</strong> acima e em baixo, parte e to<strong>do</strong>, começo<br />
meio e fim, continente, centro e periferia, direção, em frente e atrás, força e ligação,<br />
estão em ação nas experiências <strong>de</strong>: dinâmicas musicais, solos sobre harmonias, harmonias<br />
circulares, baixos caminhantes, cadências perfeitas, enca<strong>de</strong>amentos <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s,<br />
exercícios <strong>de</strong> composição e outras. A compreensão <strong>do</strong> musicoterapeuta das<br />
possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Schemas envolvi<strong>do</strong>s nos processos cognitivos da escuta e <strong>do</strong> fazer<br />
musical favorecem a construção <strong>do</strong>s objetivos clínicos musicais. Contu<strong>do</strong> é um aspecto<br />
que merece estu<strong>do</strong>s para melhor compreensão <strong>de</strong> suas dinâmicas.<br />
Os recortes clínicos a seguir, são interessantes para ampliar essa reflexão.<br />
O Trabalho Clínico<br />
a) ‘ Criação <strong>de</strong> vínculo’<br />
O trabalho <strong>de</strong> musicoterapia propõe que se faça uma entrevista inicial seguida <strong>de</strong><br />
um reconhecimento <strong>do</strong> cliente. Sua musicalida<strong>de</strong>, suas potencialida<strong>de</strong>s, suas queixas,<br />
suas expectativas com o trabalho.<br />
495
496<br />
A criação <strong>do</strong> vínculo terapêutico é fundamental. Esse é construí<strong>do</strong> a cada sessão e<br />
a cada momento das interações sonoro, musicais, verbais e corporais compartilhadas.<br />
A relação terapêutica e suas particularida<strong>de</strong>s quanto à confiabilida<strong>de</strong>, preservação<br />
<strong>de</strong> acontecimentos da sessão e aceitabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> outro precisam ser<br />
entendidas e estruturadas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primeiros encontros. A integração <strong>do</strong> musicoterapeuta<br />
com o cliente no setting acontece <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> inter musical, inter e intra<br />
pessoal.<br />
O musicoterapeuta está atento a toda a forma <strong>de</strong> relação possível entre o cliente, a<br />
música e o setting. O exemplo a seguir (fig. 1), alto explicativo, traz os primeiros<br />
sons produzi<strong>do</strong>s em um processo clínico.<br />
Figura 1 — 1ª Interação Musical – xilofone e tambor <strong>de</strong> bambu<br />
Ainda nesse momento <strong>de</strong> reconhecimentos das interações musicais e pessoais é significativo<br />
observar as relações estabelecidas com os elementos da música: ritmo, melodia,<br />
timbre e harmonia. Em especial, no início <strong>de</strong>ste processo se propôs um<br />
trabalho <strong>de</strong> improvisação livre usan<strong>do</strong> um instrumento melódico pelo cliente, sobre<br />
uma base harmônica realizada pela musicoterapeuta. Essa experiência teve duração<br />
<strong>de</strong> alguns minutos e <strong>de</strong>senvolveu-se <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um campo <strong>de</strong> tonalida<strong>de</strong> maior. Contu<strong>do</strong>,<br />
as notas da flauta bem como o ambiente musical <strong>de</strong> música brasileira (cantigas<br />
<strong>de</strong> roda, cirandas, bossa nova, samba, e canções <strong>do</strong> can<strong>do</strong>mblé) familiares ao
cliente nortearam a produção musical. Esses acontecimentos sonoros da flauta levaram<br />
aos acontecimentos da harmonia ao tecla<strong>do</strong> e vice versa. O resulta<strong>do</strong> foi uma<br />
produção mais introspectiva, emotiva e movida com a flauta inician<strong>do</strong> em intervalo<br />
conjuntos <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte, manten<strong>do</strong> notas mais longas e com poucas ousadias em saltos<br />
<strong>de</strong> intervalos. Ao final os participantes estavam bastante envolvi<strong>do</strong>s e surpresos<br />
com o encontro musical. O cliente em especial relatou “eu imaginei algo feliz e veio<br />
isso”. Nesse encontro, não transcrito, a emoção esteve muito presente, seja pela surpresa<br />
<strong>de</strong> pessoas, aparentemente <strong>de</strong>sconhecidas tocarem <strong>de</strong> improviso, e construírem<br />
algo musical. Seja pelas sonorida<strong>de</strong>s vividas. Apenas a continuida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s<br />
trabalhos po<strong>de</strong>ria indicar o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>sse encontro. De início indicou que experiências<br />
rítmicas e melódicas seriam mais fluentes. A harmonia precisava esperar<br />
um pouco mais.<br />
Esta foi uma produção bem diferente da realizada com o xilofone que soava com<br />
uma energia impulsiona<strong>do</strong>ra e buscava notas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as mais graves ate as mais agudas<br />
exploran<strong>do</strong> o instrumento.<br />
Após algumas sessões <strong>de</strong> ‘pausas’, pela falta <strong>do</strong> cliente, os trabalhos seguiram <strong>de</strong><br />
mo<strong>do</strong> mais espaça<strong>do</strong>, pois assim como a música precisa <strong>de</strong> silêncios esse processo<br />
precisou <strong>de</strong> um tempo diferencia<strong>do</strong>. Um tempo e uma velocida<strong>de</strong> possíveis <strong>de</strong> se<br />
trabalhar. Na continuida<strong>de</strong> uma ‘ciranda’ (fig. 2) abria os encontros e ganhava letra<br />
nova sempre que cantada.<br />
Mi Che Che Che<br />
Re<br />
Dó # guei gue guei<br />
Si<br />
La ei com a mi turma cheguei<br />
Sol<br />
Fá # nhá<br />
Figura 2 — Ciranda <strong>de</strong> chegada<br />
Com as letras espontâneas acrescentadas a essa pequena canção, a escolha por investir<br />
no processo musicoterapêutico se consoli<strong>do</strong>u através das produções rítmicas<br />
com tambores <strong>de</strong> bambu e <strong>de</strong> plástico e movimentos corporais sugestivos nessa linguagem<br />
musical <strong>de</strong> cirandas. O passo seguinte mostrou-se como um amplo campo<br />
para escutas.<br />
b) ‘Abertura as escutas internas’<br />
Canções populares nortearam essa segunda etapa. Essa ampliação no repertório<br />
trouxe também o encontro com os sons <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s realiza<strong>do</strong>s ao violão pelo cliente.<br />
A primeira canção é também uma ciranda: ‘Perdi meu anel no mar’ (fig. 3).<br />
497
498<br />
Figura 3 — Perdi meu anel<br />
Nesta segunda etapa, o exercício <strong>de</strong> escuta levou a percepção da recorrência <strong>de</strong> intervalos<br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes para iniciar as melodias. Levou também a constatação que a<br />
canção <strong>de</strong> chegada na realida<strong>de</strong> começa com intervalos ascen<strong>de</strong>ntes (fig. 4), mas foi<br />
recriada e aceita com intervalos <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes<br />
Fá # che<br />
Mi guei<br />
Re<br />
Dó # gue<br />
Si<br />
La Che ei<br />
Figura 4 — escuta das notas reais da canção<br />
Estas percepções foram seguidas <strong>de</strong> outras canções e agora com acompanhamentos<br />
harmônicos. Essa escuta da harmonia foi muito significativa, pois confirmou as<br />
especificida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> momento como uma nova etapa. A canção ‘Para ver as meninas’<br />
<strong>de</strong> Paulinho da Viola chegou ao setting.<br />
Silêncio por favor Enquanto esqueço um pouco a <strong>do</strong>r no peito Não<br />
diga nada<br />
sobre meus <strong>de</strong>feitos Eu não me lembro mais quem me <strong>de</strong>ixou assim<br />
Hoje eu quero apenas Uma pausa <strong>de</strong> mil compassos Para ver as meninas<br />
E nada mais nos braços Só este amor assim <strong>de</strong>scontraí<strong>do</strong> Quem sabe <strong>de</strong><br />
tu<strong>do</strong> não fale Quem não sabe nada se cale Se for preciso eu repito Porque<br />
hoje eu vou fazer Ao meu jeito eu vou fazer Um samba sobre o infinito<br />
Porque hoje eu vou fazer Ao meu jeito eu vou fazer Um samba<br />
sobre o infinito<br />
A hamonia caminha no ambiente <strong>de</strong> Sol menor; tem início com a preparação da <strong>do</strong>minante<br />
para a tônica acompanhan<strong>do</strong> a melodia em terça maior <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte a partir<br />
da nota da <strong>do</strong>minante; passa pelo acor<strong>de</strong> homônimo apenas no terceiro verso:<br />
‘não diga nada sobre os meus <strong>de</strong>feitos’; o verso: ‘hoje eu quero apenas uma pausa <strong>de</strong><br />
mil compassos’ é executa<strong>do</strong> com uma fermata na palavra ‘apenas’, on<strong>de</strong> na harmonia<br />
aparece o acor<strong>de</strong> da relativa maior que resolve na sub<strong>do</strong>minante <strong>de</strong> Gm. O<br />
tempo <strong>de</strong>ssa fermata amplia a suspensão e as expectativas.<br />
A recriação <strong>de</strong>sta canção contribuiu para novas experiências <strong>de</strong> composição ins-
trumental (flauta e piano). Estas, contu<strong>do</strong>, foram <strong>de</strong> passagem para improvisações<br />
com instrumentos não conheci<strong>do</strong>s, como o próprio tecla<strong>do</strong>.<br />
Estas novas improvisações, ou, permissões para ‘brincar’ com algo tecnicamente<br />
<strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong> proporcionaram experiências <strong>de</strong> ousadia com os sons. Po<strong>de</strong>-se também<br />
dizer da ampliação <strong>de</strong> suas possibilida<strong>de</strong>s ao ponto <strong>de</strong> chegar à última tecla no<br />
agu<strong>do</strong> e retornar em um ‘glissan<strong>do</strong>’ com a ajuda da musicoterapeuta. Também explorou-se<br />
muito as dinâmicas <strong>de</strong> forte e fraco. Brincou-se com pianíssimos, sussurros,<br />
e também fortíssimos. Muito prazerosas essas experiências. O relato ao final:<br />
“aqui eu brinco, não me preocupo se está certo ou erra<strong>do</strong>, apenas faço o som que<br />
gosto. Na flauta me preocupo com muitas coisas, não posso errar”.<br />
O uso das dinâmicas repetiu-se em outras experiências <strong>de</strong> improvisação com diversos<br />
instrumentos. Essa ampliação alcançou a intenção <strong>de</strong> tocar livremente, buscan<strong>do</strong><br />
explorar o mais possível os instrumentos; sair <strong>de</strong> pulsos rítmicos pré<br />
<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s; viver a construção <strong>de</strong> músicas mais contemporâneas, <strong>de</strong>sconstruções<br />
e reconstruções.<br />
Com isso chegou-se a etapa seguinte. Aqui, três canções ressoaram: “Minha missão”,<br />
O Po<strong>de</strong>r da Criação” e “Sombra”.<br />
c) ‘Lançar-se às possibilida<strong>de</strong>s”<br />
Com a autoconfiança em ampliação a recriação das canções “minha missão” e “o<br />
po<strong>de</strong>r da criação” tornaram esse momento mais intenso. Elas foram cantadas cada<br />
uma algumas vezes e soavam como mantras repeti<strong>do</strong>s em esta<strong>do</strong> meditativo. Soavam<br />
como encontros profun<strong>do</strong>s. Encontros consigo mesmo. ‘Minha Missão’ <strong>de</strong><br />
João Nogueira e Paulo Pinheiro:<br />
Quan<strong>do</strong> eu canto É para aliviar meu pranto E o pranto <strong>de</strong> quem já<br />
Tanto sofreu Quan<strong>do</strong> eu canto Estou sentin<strong>do</strong> a luz <strong>de</strong> um santo<br />
Estou ajoelhan<strong>do</strong> Aos pés <strong>de</strong> Deus<br />
Canto para anunciar o dia Canto para amenizar a noite<br />
Canto pra <strong>de</strong>nunciar o açoite Canto também contra a tirania<br />
Canto porque numa melodia Acen<strong>do</strong> no coração <strong>do</strong> povo<br />
A esperança <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> novo E a luta para se viver em paz!<br />
Do po<strong>de</strong>r da criação Sou continuação E quero agra<strong>de</strong>cer<br />
Foi ouvida minha súplica Mensageiro sou da música O meu canto é uma<br />
missão Tem força <strong>de</strong> oração E eu cumpro o meu <strong>de</strong>ver<br />
Aos que vivem a chorar Eu vivo pra cantar E canto pra viver<br />
Quan<strong>do</strong> eu canto, a morte me percorre<br />
E eu solto um canto da garganta<br />
Que a cigarra quan<strong>do</strong> canta morre<br />
E a ma<strong>de</strong>ira quan<strong>do</strong> morre, canta!<br />
Esta canção está em Gm, na introdução escuta-se: Cm C# 0 Gm Eb7+ Am5-(7) D7<br />
499
500<br />
Gm7. Logo na primeira frase o enca<strong>de</strong>amento harmônico leva o ouvinte <strong>do</strong> ambiente<br />
<strong>de</strong> Gm para F7.<br />
Gm7 F7+ D#7 D7 Gm7 Cm D7<br />
Quan<strong>do</strong> eu canto, é para aliviar, Meu pranto E o pranto <strong>de</strong> quem já tanto sofreu<br />
Na melodia (trecho em negrito) o primeiro intervalo parte da nota da tônica na<br />
oitava <strong>de</strong> cima e segue por uma terça menor ascen<strong>de</strong>nte e <strong>de</strong>pois segunda menor<br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte. Uma melodia que, por começar com a nota da tônica no agu<strong>do</strong>, tenciona<br />
a primeira frase. João Nogueira interpreta esse início com notas rápidas. Clara<br />
Nunes já a faz com fermata em cada palavra. Na recriação no setting a canção apareceu<br />
com notas mais longas.<br />
Nestes primeiros versos e os seguintes até “aos pés <strong>de</strong> Deus” a harmonia mantém a<br />
suspensão com a <strong>do</strong>minante com sétima. A resolução vem com a segunda parte da<br />
canção:<br />
G6 C F7+ Bb7+<br />
Canto para anunciar o dia Canto para amenizar a noite<br />
D#7 G# 7+ D7 Dm5-(7) G7<br />
Canto pra <strong>de</strong>nunciar o açoite Canto também contra a tirania<br />
Os acor<strong>de</strong> maiores com sétima acompanham a melodia que brinca com notas mais<br />
rápidas e com saltos <strong>do</strong> grave para o agu<strong>do</strong> em cada verso (palavras em negrito são<br />
não agu<strong>do</strong>). Contu<strong>do</strong> levam a um movimento <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte da peça, pois cada verso<br />
começa mais grave que o anterior.<br />
Essa mudança <strong>de</strong> ambiente entre acor<strong>de</strong>s menores e maiores, ritmo melódico com<br />
notas mais longas seguidas <strong>de</strong> notas mais rápidas e em saltos maiores <strong>de</strong> intervalos<br />
ascen<strong>de</strong>ntes ao final das frases lembra um movimento <strong>de</strong> pêndulo. Um <strong>de</strong>slocar <strong>do</strong><br />
peso por la<strong>do</strong>s opostos sobre uma mesma base sem per<strong>de</strong>r o equilíbrio.<br />
Esse movimento ‘por opostos’ esteve muito presente nas experiências musicais <strong>de</strong>sse<br />
processo. Des<strong>de</strong> as primeiras notas ao xilofone (fig. 1) com movimentos alterna<strong>do</strong>s<br />
das mãos, passan<strong>do</strong> por evitar a sonorida<strong>de</strong> das harmonias por ‘receio’ aos acor<strong>de</strong>s<br />
menores, até se alcançar a escuta e execução <strong>de</strong>ssa harmonia. Com essa escuta<br />
foi possível estar efetivamente na re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações sonoras existentes na complexida<strong>de</strong><br />
da música. Esse exercício <strong>de</strong> cuidar das escolhas <strong>do</strong>s sons permitiu a escuta <strong>do</strong>s<br />
movimentos sempre in<strong>do</strong> <strong>de</strong> um pólo a outro. A conscientização que existe algo<br />
no ‘meio’; a construção vivida passo a passo da caminhada até outra extremida<strong>de</strong>,<br />
não apenas por saltos, foi experimentada nas experiências <strong>de</strong> composição musical.<br />
A canção “O po<strong>de</strong>r da criação” também <strong>de</strong> João Nogueira contempla esse momento<br />
por mais equilíbrio.<br />
Não, ninguém faz samba só porque prefere Força nenhuma no mun<strong>do</strong> interfere<br />
Sobre o po<strong>de</strong>r da criação Não, não precisa se estar nem feliz nem aflito Nem se
efugiar em lugar mais bonito Em busca da inspiração<br />
Não, ela é uma luz que chega <strong>de</strong> repente Com a rapi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> uma estrela ca<strong>de</strong>nte<br />
E acen<strong>de</strong> a mente e o coração É, faz pensar<br />
Que existe uma força maior que nos guia Que está no ar<br />
Vem no meio da noite ou no claro <strong>do</strong> dia Chega a nos angustiar<br />
E o poeta se <strong>de</strong>ixa levar por essa magia E um verso vem vin<strong>do</strong> e vem vin<strong>do</strong><br />
uma melodia E o povo começa a cantar! Lalaia, lalaia!<br />
Na introdução a cadência harmônica caminha da tônica à <strong>do</strong>minante utilizan<strong>do</strong><br />
como recurso um baixo caminhante em graus conjuntos Am, Am/G, F # 0,F 6/E,<br />
Am, E7. A melodia inicia-se com a tônica, porém no grave. Segue pela 5ª <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte<br />
e retorna a tônica. A palavra “não” é quase falada na primeira nota. Está no<br />
tempo forte e ocupa to<strong>do</strong> o compasso. Soa afirmativa e impositiva.<br />
Am G Am F<br />
Não, ninguém faz samba só porque prefere Força nenhuma no mun<strong>do</strong> interfere<br />
F#0 E7<br />
Sobre o po<strong>de</strong>r da criação<br />
O movimento <strong>de</strong>ssa canção é ascen<strong>de</strong>nte em seu to<strong>do</strong>. Os versos finais são o ponto<br />
mais forte e mais alto da canção. A palavra ‘melodia’ recebe um <strong>de</strong>staque <strong>de</strong> interpretação<br />
e é o ponto culminante da peça.<br />
Dm E7 Am C<br />
E o poeta se <strong>de</strong>ixa levar por essa magia E um verso vem vin<strong>do</strong> e vem vin<strong>do</strong><br />
F E7 Am F7 E7 Am<br />
uma melodia E o povo começa a cantar lá laia Lá lálaiá laiá, lálaiá.<br />
A construção harmônica não oferece <strong>do</strong>is ambientes (tonalida<strong>de</strong> e acor<strong>de</strong>s homônimos).<br />
Ao contrário to<strong>do</strong>s os sons convergem para os versos finais e para o que se<br />
cria: ‘uma melodia’. Estes versos contam que algo está vin<strong>do</strong> e o campo harmônico<br />
abre-se com a relativa maior, chega à sub<strong>do</strong>minante da relativa e retorna pela <strong>do</strong>minante<br />
para chegar à tônica.<br />
A letra da canção apresenta o processo <strong>de</strong> composição como uma entrega <strong>do</strong> poeta,<br />
um <strong>de</strong>ixar-se ‘levar por essa magia’. Contu<strong>do</strong> começa numa ambientação bem <strong>de</strong>limitada,<br />
uma negação: ‘não ninguém faz samba só por que prefere’ e conclui com<br />
o objetivo <strong>do</strong>s músicos sambistas alcança<strong>do</strong>. Os limites nas relações favorecem um<br />
campo <strong>de</strong> ação. Não adianta impor ao artista, não adianta lugares bonitos, precisase<br />
<strong>de</strong>ixar-se levar, mas sem per<strong>de</strong>r o objetivo: escutar uma melodia.<br />
No processo <strong>de</strong> alta uma canção escolhida pela musicoterapeuta compôs uma experiência<br />
<strong>de</strong> escuta musical. A obra ‘Sombra’ <strong>de</strong> Chico Saraiva e Paulo Tatit integrou<br />
esse processo musicoterapêutico pelos versos e por algumas características<br />
estéticas da obra. Os versos são:<br />
501
502<br />
Sim, perdi o senso E vi assombração Vi apenas sombra Sem ninguém<br />
Sombra num silêncio absoluto Sombra <strong>de</strong> algum vulto Do além Sim<br />
sobrou a sombra Em plena solidão Pálida lembrança De alguém<br />
Claro que o mistério Em si não dá pra ver Claro que o mistério É só<br />
pra crer Claro que o etéreo Ten<strong>de</strong> a <strong>de</strong>sfazer On<strong>de</strong> está você?<br />
Sim, foi quan<strong>do</strong> muito Uma consolação Ver somente a sombra Sem<br />
você Tu<strong>do</strong> parecia inseguro Não via futuro nem prazer<br />
Sombra não se alumbra com o dia Vive na penumbra, vive só<br />
Sombra não se lembra quan<strong>do</strong> escureceu<br />
Sombra é sempre noite sol a sol Sombra que <strong>de</strong>slumbra a sua<br />
<strong>do</strong>na Rouba a sua luz e <strong>de</strong>ixa o breu Nesse traço negro não tem<br />
mais você<br />
Que que aconteceu?<br />
Os aspectos estéticos: uma canção cujo arranjo compõe-se por voz, violão, percussão<br />
e oboé; um campo harmônico menor forma<strong>do</strong> também por empréstimos modais<br />
o que a torna bastante orgânica e inerente ao ambiente <strong>de</strong> musicas brasileiras<br />
recriadas no <strong>de</strong>correr <strong>do</strong> processo; a peça inicia sem introdução com voz e violão<br />
com suavida<strong>de</strong>; o acompanhamento arpeja<strong>do</strong> <strong>do</strong>s acor<strong>de</strong>s soa em uníssono com a<br />
voz, nas pausas da voz ouve-se os arpejos (fig. 5). Os acor<strong>de</strong>s da primeira frase soam<br />
Cm7(11), G7/B, B bm6, F(add9)/A.<br />
Figura 5 — início da canção<br />
As frases musicais são organizadas em quatro compassos, na continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa<br />
frase a rítmica <strong>do</strong> primeiro se mantém, contu<strong>do</strong> encerram com mínima. O oboé<br />
entra ao final da primeira vez inteira, no interlúdio com uma contra melodia, e na<br />
retomada da voz mantém algumas notas longas contrastan<strong>do</strong> ao ritmo melódico e<br />
colaboran<strong>do</strong> com o contexto <strong>de</strong> questionamentos sem respostas apresenta<strong>do</strong> com<br />
os versos e os finais <strong>de</strong> frases com notas suspensivas. A percussão entra no interlúdio<br />
e mantém-se <strong>de</strong> base com poucas sonorida<strong>de</strong>s. Usa <strong>de</strong> notas pontudas e toques<br />
rápi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> ataque e notas longas que também colaboram para o ambiente misterioso<br />
e enigmático da canção.<br />
Os versos partem <strong>de</strong> uma afirmação ‘sim’ com a nota da terça <strong>do</strong> acor<strong>de</strong> interpretada<br />
na oitava grave caminhan<strong>do</strong> para a sexta <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte. A harmonia segue por<br />
mais duas formas <strong>de</strong> enca<strong>de</strong>amentos. A letra da canção “claro que o mistério em si<br />
não dá pra ver . . .” mantém a rítmica e muda a forma, utilizam notas repetidas, intervalos<br />
cromáticos e é acompanhada pela parte 2 da harmonia (Fig. 6).
Figura 6 — ‘Sombra’ segunda parte<br />
A terceira e última parte da canção mantém a rítmica e a forma da segunda parte e<br />
a harmonia insiste nos baixos <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes por graus conjuntos (fig. 7).<br />
Figura 7 — ‘Sombra’ terceira e última parte<br />
A interpretação da canção intercala sons no grave com repetições em falcetes e com<br />
mais vozes. O final (em negrito) também é repeti<strong>do</strong> no agu<strong>do</strong>. Esse movimento enfatiza<br />
o relato <strong>de</strong> mudanças trazi<strong>do</strong>s nos versos bem como os questionamentos. O<br />
verso interrogativo final é repeti<strong>do</strong> três vezes manten<strong>do</strong> a suspensão complementada<br />
com os sons da percussão sumin<strong>do</strong> aos poucos (fig. 8). A pergunta final ao repetir-se<br />
amplia o intervalo entre as notas aumentan<strong>do</strong> o ênfase na questão (fig. 9).<br />
Figura 8 — ‘Sombra’ final Figura 9 — ‘Sombra’ último compasso<br />
Essa canção, estrutura e performance, reviveram algumas movimentações musicais<br />
vividas no processo. Trouxe os opostos, tanto nos versos como na orquestração e interpretação;<br />
trouxe os baixos caminhantes; trouxe a rítmica em semicolcheias; como<br />
as construções ao xilofone; trouxe o violão como um acompanha<strong>do</strong>r seguro para a<br />
voz ao repetir a melodia; está organizada em três partes com diferenças harmônicas<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> campo menor e suas amplas possibilida<strong>de</strong>s. Ao final a voz e o violão<br />
terminam juntos e a percussão segue como um eco, ou rastro. A suspensão está presente<br />
em toda a peça e as perguntas contribuem para as incertezas diante <strong>do</strong> novo.<br />
Musicalida<strong>de</strong> em ação e a cognição<br />
Algumas reflexões quanto à musicalida<strong>de</strong>: as interações musicais vividas nesse processo<br />
ocorreram sempre <strong>de</strong>ntro das possibilida<strong>de</strong>s e aspectos da musicalida<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />
cliente como as escolhas por intervalos <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes nos inícios das músicas e notas<br />
503
504<br />
mais longas em oposição às rítmicas movidas; o <strong>de</strong>senvolver <strong>de</strong>ssa musicalida<strong>de</strong> ao<br />
se trabalhar com voz e percussão em cirandas. As qualida<strong>de</strong>s dinâmicas das notas,<br />
‘um <strong>de</strong>sejo’ <strong>de</strong> complementar-se na(s) notas(s) seguintes, guiaram e foram guiadas<br />
por aspectos cognitivos.<br />
Algumas reflexões quanto aos aspectos cognitivos: os schemas cognitivos <strong>de</strong> centro<br />
e periferia e parte e to<strong>do</strong> estão em ação no movimento circular das cirandas e nos<br />
sons alterna<strong>do</strong>s das baquetas no xilofone (fig.1) ao manterem notas <strong>de</strong> base. Desse<br />
movimento circular e melódico próximo <strong>de</strong> acalantos escuta<strong>do</strong>s e vivi<strong>do</strong>s pelo<br />
cliente foi possível ampliar a escuta para si mesmo. Os schemas <strong>de</strong> em cima e embaixo<br />
foram coloca<strong>do</strong>s em ação nas dinâmicas interpretativas (piano e forte), nos<br />
baixos caminhantes e nos arranjos das músicas escutadas nos CDs.<br />
Dois objetivos clínicos foram alcança<strong>do</strong>s com esses movimentos: ajudar o cliente a<br />
tornar-se mais centra<strong>do</strong> (groun<strong>de</strong>d) e também alcançar maior orientação da realida<strong>de</strong>.<br />
Segun<strong>do</strong> Aigen (2005) ao trabalhar com groun<strong>de</strong>d e orientação o cliente está<br />
amplian<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> sua experiência <strong>de</strong> percepção espacial e projetan<strong>do</strong> essas qualida<strong>de</strong>s<br />
para sua própria vida para e suas relações sociais.<br />
Os schemas <strong>de</strong> força, direção, começo, meio e fim moveram e foram movi<strong>do</strong>s com a<br />
harmonia. Isso ampliou a percepção da realida<strong>de</strong> e das relações pessoais existentes.<br />
Na prática clínica estes schemas são componentes importantes <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
cognitivo e emocional particularmente os envolvi<strong>do</strong>s no auto-conhecimento, porque<br />
eles relatam a forma <strong>do</strong> corpo ver a si mesmo e o mo<strong>do</strong> que o corpo se percebe<br />
em relação ao movimento no espaço físico (Aigen, 2005).<br />
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
O trabalho musicoterapêutico consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> essa visão cognitiva, inerente a percepção<br />
e execução musical, oferece visibilida<strong>de</strong> às funções clínicas da música. Consi<strong>de</strong>rar<br />
as ‘qualida<strong>de</strong>s dinâmicas’ das notas, a Music child e a Condiction child <strong>do</strong><br />
cliente e <strong>de</strong>finir música como ação — Musicing formam uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> conceitos e<br />
dão suporte para discutir cognição e musicoterapia. Musicalida<strong>de</strong>s em ação e cognição<br />
estão completamente integradas no trabalho clínico. Estar aten<strong>do</strong> a esses aspectos<br />
estruturais da música interliga<strong>do</strong>s aos aspectos cognitivos <strong>do</strong> cliente é<br />
fundamental. Nessa dimensão terapeuta e cliente estão viven<strong>do</strong> experiências<br />
apreendidas pelo ‘significar fazen<strong>do</strong>’ distinto <strong>do</strong> ambiente <strong>de</strong> estímulos e respostas.<br />
‘Significar fazen<strong>do</strong>’ são espaços <strong>de</strong> cognição com experiências musicais. Musicalida<strong>de</strong><br />
em ação é um exercício <strong>de</strong> cognição. Contu<strong>do</strong>, as relações entre as ‘qualida<strong>de</strong>s<br />
dinâmicas’ e os Schemas carecem mais estu<strong>do</strong>s e reflexões.
Referências<br />
Aigen, Kenneth. 2005. Music Centere<strong>de</strong> Music Therapy .Gislum, NH: Barcelona Publishers.<br />
Ans<strong>de</strong>ll, Gary; Pavlicecic, Mercédès. 2004. Community Music Therapy: International initiatives.<br />
Lon<strong>do</strong>n and Phila<strong>de</strong>lphia: Jessica Kingsley publishers.<br />
Bruscia, Kennteh. 1987. Improvisational Mo<strong>de</strong>ls of Music Therapy. Springfield, IL: Charles<br />
C. Thomas Publishers.<br />
Lakoff, George; Johnson Mark. 1980. Metaphors we live by. Chicago & Lon<strong>do</strong>n: University<br />
of Chicago Press.<br />
Lee, Colin. 2003. The Architecture of Clinical Improvisation in Aesthetic Music Therapy. Gilsum,<br />
NH: Barcelona Publishers.<br />
Stige, Brynjulf. 2002. Culture-Centered Music Therapy. Gilsum, NH: Barcelona Publishers.<br />
Zuckerkandl, Victor. 1956. Sound and Symbol: Music and the external Word. Princeton,<br />
NJ:Princeton University Press.<br />
505
506<br />
Aplicação <strong>do</strong> Conceito <strong>de</strong> Emoção Extrínseca em Música<br />
Resumo<br />
Bernar<strong>do</strong> Pellon <strong>de</strong> Lima Pichin<br />
bernar<strong>do</strong>pellon@yahoo.com.br<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
O estu<strong>do</strong> da emoção extrínseca em música visa produzir um maior conhecimento sobre<br />
com é feita a associação entre música e emoções específicas. Normalmente esse tipo<br />
<strong>de</strong> pesquisa apresenta como resulta<strong>do</strong> um paralelo entre <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s elementos da<br />
estrutura musical e emoções específicas. A escuta musical é uma experiência abstrata e<br />
para produzir entendimento ao que se está escutan<strong>do</strong> muitas vezes é feito conexões<br />
com outras experiências conhecidas, sen<strong>do</strong> uma das mais comuns as emoções. O termo<br />
Apofenia Musical se a<strong>de</strong>quou perfeitamente como solução conceitual para explicar e <strong>de</strong>nominar<br />
esse procedimento. Para <strong>de</strong>limitar o objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> foram selecionadas cinco<br />
emoções básicas, sen<strong>do</strong> elas: alegria, tristeza, amor, raiva e me<strong>do</strong>. O presente trabalho<br />
analisou três músicas compostas a partir <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s em uma pesquisa anterior.<br />
O objetivo disso é testar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> analisar e compor músicas <strong>de</strong>limitan<strong>do</strong><br />
uma possível ou possíveis associações com emoções feitas na escuta <strong>de</strong>stas. Sonhan<strong>do</strong><br />
Acorda<strong>do</strong> é uma música que teve como intenção a associação com a emoção amor.<br />
Noite Urbana é uma música on<strong>de</strong> se teve a intenção e produzir uma sonorida<strong>de</strong> que produzisse<br />
uma associação a <strong>do</strong>is esta<strong>do</strong>s emocionais dicotômicos vivencia<strong>do</strong>s na noite <strong>de</strong><br />
uma metrópole. De um la<strong>do</strong> se tem o entretenimento, o encanto, o romantismo, o glamour.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, existe o perigo, o me<strong>do</strong>, a angústia, a <strong>de</strong>rrota, a solidão. Por fim, Vai<br />
chegar é uma música on<strong>de</strong> se teve a intenção <strong>de</strong> produzir uma sonorida<strong>de</strong> cuja associação<br />
transitasse por vários esta<strong>do</strong>s emocionais. Alegria, tensão, angústia, tristeza, me<strong>do</strong>,<br />
jocosida<strong>de</strong>, esperança, entre outras.<br />
Palavras-chaves<br />
Emoção Extrínseca, Apofenia, Emoções Básicas, Análise Musical.<br />
Argumento Teórico<br />
Esta sessão <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstração tem a intenção <strong>de</strong> discutir a aplicação <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
estu<strong>do</strong> da Emoção Extrínseca em música. Neste estu<strong>do</strong> procura-se traçar uma relação<br />
entre elementos da estrutura musical — como harmonia, melodia, ritmo,<br />
entre muitos outros- e emoções específicas. Esta <strong>de</strong>monstração será um complemento<br />
ao textoApofenia Musical e a Emoção Extrínseca em música apresenta<strong>do</strong><br />
neste mesmo <strong>Simpósio</strong>, e é resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma pesquisa realizada para uma dissertação<br />
que trata da relação entre música e emoção.<br />
Primeiramente, o estu<strong>do</strong> sobre a Emoção Extrínseca em música, proposto pela pesquisa,<br />
visa fornecer ferramentas para composição e análise <strong>de</strong> músicas que possam<br />
estar associadas às emoções. Contu<strong>do</strong>, a intenção não é criar uma relação direta
entre elemento da estrutura musical e <strong>de</strong>terminada emoção. Também não é intenção<br />
propor uma interpretação correta, ou <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r que to<strong>do</strong>s os ouvintes terão a<br />
mesma interpretação. A pesquisa concluiu e que a combinação entre alguns elementos<br />
da estrutura musical <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a uma semelhança com aspectos característicos<br />
<strong>de</strong> cada emoção possibilita a associação por parte <strong>do</strong>s ouvintes <strong>de</strong> uma música com<br />
uma ou mais emoções. E esses da<strong>do</strong>s propostos po<strong>de</strong>m ser utiliza<strong>do</strong>s na criação <strong>de</strong><br />
composições e arranjos, na interpretação, e na análise on<strong>de</strong> se pretenda compreen<strong>de</strong>r<br />
os motivos que levam uma música ser associada à <strong>de</strong>terminada emoção. Porém,<br />
não há regras, e po<strong>de</strong>m existir interpretações diferentes, ou nenhuma. A proposta<br />
que se segue é só uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretação para <strong>de</strong>monstrar como os<br />
da<strong>do</strong>s colhi<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>m ser utiliza<strong>do</strong>s.<br />
Po<strong>de</strong>-se afirmar que a música é uma arte essencialmente abstrata. Isso porque, salvo<br />
algumas exceções, possui uma sonorida<strong>de</strong> que só é possível na experiência da escuta<br />
musical e não é presenciada <strong>de</strong> outra forma a não ser esta. Como afirma Sparshott,<br />
“a <strong>do</strong>utrina que a música é ou <strong>de</strong>veria ser um sistema ‘abstrato’ <strong>de</strong> relacionamento<br />
estabeleci<strong>do</strong> em um conjunto <strong>de</strong> equações assombrou a estética musical <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre.”<br />
(Sparshott, 1980, p.122). Contu<strong>do</strong>, o ser humano sempre procura entendimento<br />
nas suas experiências, e por isso é comum existir algum processo cognitivo<br />
para dar senti<strong>do</strong> a uma experiência tão abstrata como a escuta musical. Normalmente<br />
é feito um paralelo com outras experiências não-musicais que possuam <strong>de</strong> alguma<br />
forma semelhança com o que se está escutan<strong>do</strong> na música. Talvez a mais<br />
comum seja a associação com emoções. Desta forma o ouvinte encontra semelhanças<br />
entre as características <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adas por uma emoção nos mais diferentes<br />
âmbitos, como da fala, gestual, fisiológico, só pra citar alguns, e elementos da estrutura<br />
musical. Para <strong>de</strong>nominar esse processo foi utiliza<strong>do</strong> o termo Apofenia Musical.<br />
O termo apofenia foi primeiramente utiliza<strong>do</strong> por Klaus Conrad em um<br />
estu<strong>do</strong> psicopatológico sobre esquizofrenia.<br />
“Inicialmente a vivência/experiência específica da ‘interpretação anormal da<br />
consciência’, ou para a vivência/experiência <strong>do</strong> ‘estabelecimento <strong>de</strong> relação sem<br />
motivo’, é chamada atualmente <strong>de</strong> percepção fantasiosa, representação <strong>de</strong>lirante,<br />
entre outras, e introduzimos a <strong>de</strong>signação ‘apofenia’, com o objetivo <strong>de</strong> ter a<br />
mão uma expressão prática e claramente <strong>de</strong>finida <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> vivência/experiência.1<br />
O termo apofenia foi provi<strong>de</strong>ncial pois engloba <strong>de</strong> forma sucinta em um único<br />
termo to<strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> necessário para <strong>de</strong>screver o processo que leva o ouvinte a associar<br />
uma música a uma ou mais emoções.<br />
O estu<strong>do</strong> da Emoção Extrínseca em música visa traçar um paralelo entre elementos<br />
da estrutura musical e emoções específicas. Para <strong>de</strong>limitar o objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> foram<br />
selecionadas “cinco emoções (alegria, tristeza, ira, amor / ternura e me<strong>do</strong>) que fora<br />
estudadas extensivamente. Essas emoções representam um ponto natural <strong>de</strong> partida<br />
507
508<br />
já que são vista como emoções típicas por pessoas leigas e foram postuladas como<br />
as tão faladas ‘emoções básicas’ por cientistas.” (Juslin, 2001, p.314-5). Um <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s<br />
da pesquisa foi perceber que tanto emoções quanto elementos da estrutura<br />
musical po<strong>de</strong>m ser qualifica<strong>do</strong>s <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com dimensões <strong>de</strong> valência (positiva<br />
e negativa) e ativida<strong>de</strong> (alta ou baixa) e esses é um da<strong>do</strong> importante para <strong>de</strong>limitar<br />
as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> associação entre elementos e emoções. Na música ativida<strong>de</strong> esta<br />
relacionada a volume, dinâmica, tempo e altura. Alta ativida<strong>de</strong> está relacionada<br />
com volume alto, ou, em outras palavras, dinâmica forte, tempo rápi<strong>do</strong> e notas agudas.<br />
Em contrapartida, baixa ativida<strong>de</strong> está relacionada com volume baixo, ou, em<br />
outras palavras, dinâmica piano, tempo lento e notas graves. Quanto à valência,<br />
aparentemente, pelo menos na cultura musical oci<strong>de</strong>ntal, parece ter forte ligação<br />
com consonâncias e dissonâncias, e simplicida<strong>de</strong> ou complexida<strong>de</strong>. Valências positivas<br />
estão relacionadas sons consonantes, harmonia simples, melodia com escalas<br />
diatônicas, tonalida<strong>de</strong>, simplicida<strong>de</strong> rítmica e melódica. Valência negativa está relacionada<br />
com sons dissonantes, harmonia complexa, melodias com cromatismo,<br />
atonalida<strong>de</strong>, complexida<strong>de</strong> rítmica e melódica. Outros fatores, como timbre e articulações,<br />
estão mais liga<strong>do</strong>s diretamente a aspectos <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>ssas emoções<br />
básicas, e são menos genéricas.<br />
Um <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s da pesquisa foi a tabela em anexo que relaciona os mais diversos<br />
fatores da composição e performance musical com as eleitas emoções básicas. Para<br />
tal, foram usa<strong>do</strong>s três textos: Juslin (2001), Gabrielsson e Lindström (2001) e Bunt<br />
e Pavlicevic (2001), e ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> cada fator serão colocadas as duas primeiras letras<br />
<strong>do</strong> sobrenome <strong>do</strong> primeiro (ou único) autor <strong>do</strong> texto <strong>de</strong> referência, no caso (Ju),<br />
(Ga) e (Bu) respectivamente. Esses autores tiveram contato com uma vasta bibliografia<br />
para propor essa relação entre fatores e emoções, mas como esta pesquisa não<br />
teve contato com essa bibliografia, será mencionada apenas a referência direta. Em<br />
alguns casos, foram leva<strong>do</strong>s em conta alguns nomes que po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s<br />
sinônimos <strong>de</strong>ssas emoções básicas como, por exemplo, melancolia para tristeza, ternura<br />
para amor, entre outros. A emoção extrínseca provavelmente acontece em diferentes<br />
culturas, mas os resulta<strong>do</strong>s abaixo apresentam por vezes características<br />
próprias da música oci<strong>de</strong>ntal, pois está é a única viável <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>, neste trabalho,<br />
<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à maior familiarida<strong>de</strong> com a mesma. Essas informações serão cruciais para<br />
o presente trabalho e serão base para a as análises a seguir.<br />
Uma proposta alternativa à pesquisa laboratorial é estudar aspectos característicos<br />
<strong>de</strong> emoções específicas e tentar encontrar elementos da estrutura musical semelhante<br />
a estes. Este é um méto<strong>do</strong> que po<strong>de</strong> ser eficiente e até menos trabalhoso que<br />
o laboratorial, pois segue o mesmo caminho feito pelo ouvinte, assim como interpretes<br />
e compositores, que muitas vezes traçam esse paralelo a partir <strong>de</strong> semelhanças<br />
encontradas entre a sonorida<strong>de</strong> musical e emoções.
Aplicações Conceituais<br />
Para o estu<strong>do</strong> serão discuti<strong>do</strong>s trechos musicais <strong>de</strong> minha autoria, tentan<strong>do</strong> ilustrar<br />
minha intenção e como utilizei esses da<strong>do</strong>s como base para chegar a uma sonorida<strong>de</strong><br />
que possa se associar à <strong>de</strong>terminada emoção. Para isso é feita uma relação <strong>de</strong> semelhança<br />
entre os elementos da estrutura musical e características da emoção manifestada.<br />
É importante ter em mente que não serão estudadas as emoções <strong>de</strong>spertadas<br />
no ouvinte através da audição musical. Os motivos que levam esse <strong>de</strong>spertar po<strong>de</strong>m<br />
ser muito idiossincráticos e difíceis <strong>de</strong> prever. Por isso, as analises se limitarão somente<br />
às emoções que po<strong>de</strong>m ser associadas a música em questão.<br />
1. Sonhan<strong>do</strong> Acorda<strong>do</strong><br />
Sonhan<strong>do</strong> acorda<strong>do</strong> é uma música com a temática sobre amor. Não só amor entre<br />
casais, mas amor entre indivíduos principalmente. É uma canção, mas com alguns<br />
trechos instrumentais como o que será apresenta<strong>do</strong> que acontece <strong>do</strong> c.77 ao c.91.<br />
Esta música foi escrita para orquestra baixo, bateria, violão e voz. Para facilitar a<br />
análise foi feita uma redução <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os instrumentos para uma pauta para melodia,<br />
outra para contracanto e uma pauta <strong>de</strong> piano para a base harmônica, <strong>de</strong> forma<br />
a ter to<strong>do</strong>s os elementos necessários para a análise <strong>de</strong> forma simplificada.<br />
Ao sentirmos amor ou ternura, nossos gestos são mais lentos, calmos. Por isso a<br />
toda essa música, tem andamento lento em 65 bpm. O ritmo da melodia principal<br />
e o contracanto geralmente são basea<strong>do</strong>s no pulso, com algumas divisões em <strong>do</strong>is,<br />
raras em 4 como no c.78 e somente uma em quiáltera <strong>de</strong> 6 no c.90. O ritmo e andamento<br />
são aspectos fundamentais na associação da música com emoção, pois é<br />
um fator facilmente percebi<strong>do</strong> pelos ouvintes. A discrepância entre o ritmo <strong>de</strong><br />
como agimos quan<strong>do</strong> manifestamos <strong>de</strong>terminada emoção e o ritmo da música inviabiliza<br />
a associação <strong>de</strong>sta música com esta emoção. Desta forma, em uma música<br />
em que se preten<strong>de</strong> uma associação com amor/ternura é espera<strong>do</strong> um ritmo lento.<br />
O amor ou ternura é uma emoção positiva e muito agradável. A harmonia é feita<br />
por acor<strong>de</strong>s consoantes, principalmente tría<strong>de</strong>s. Da mesma forma a melodia segue<br />
a harmonia não oferece tensão ou dissonância a esta. Muitos estu<strong>do</strong>s apontam que<br />
músicas associadas à emoção com valência positiva, pelo menos no oci<strong>de</strong>nte, ten<strong>de</strong>m<br />
a ser consonantes, com pouca tensão ou complexida<strong>de</strong>.<br />
Na paixão é comum uma sensação <strong>de</strong> inconstância. Algumas pesquisas apontam<br />
para uma harmonia com oscilações entre maior e menor ou uso <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>s para músicas<br />
<strong>de</strong> amor, muito provavelmente por uma semelhança <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> harmonia<br />
com essa característica da emoção. Neste trecho foi usada uma harmonia com algumas<br />
inclinações, on<strong>de</strong> a tonalida<strong>de</strong> não fica tão clara, mas sempre em regiões próximas<br />
e pouco conflitantes. Foi a solução escolhida, pois fica no meio da música e<br />
é um trecho proporcionalmente pequeno que não permite gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvi-<br />
509
510<br />
mentos harmônicos. A música é essencialmente em lá (maior, menor, ou às vezes<br />
usan<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>s). Esse trecho começa na tonalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ré (sub<strong>do</strong>minante <strong>de</strong> lá). Vai<br />
para fá susteni<strong>do</strong> menor (terceiro grau) e <strong>de</strong>pois para lá com sétima menor (<strong>do</strong>minante).<br />
Resolve a <strong>do</strong>minante em si menor (sexto grau) fazen<strong>do</strong> uma cadência <strong>de</strong>ceptiva.<br />
Até então um enca<strong>de</strong>amento harmônico comum em ré maior. Segue com<br />
ré maior, sol maior (sub<strong>do</strong>minante), mi menor (segun<strong>do</strong> grau) e lá maior com sétima<br />
menor (<strong>do</strong>minante) resolven<strong>do</strong> novamente em si menor agora com sétima<br />
menor. A segunda resolução seguida em si menor po<strong>de</strong>, ao meu ver, levar o ouvinte<br />
a interpretar esse si menor (relativo <strong>de</strong> ré maior) como tônica. Desta forma, esta última<br />
cadência po<strong>de</strong> ser percebida, numa sonorida<strong>de</strong> mais si eólio <strong>do</strong> que menor,<br />
como ré maior (terceiro grau), sol maior (sexto grau), mi menor (quarto grau) e lá<br />
maior com sétima menor (sétimo grau) geran<strong>do</strong> uma dubieda<strong>de</strong>. Após o acor<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
si menor segue os acor<strong>de</strong>s: dó susteni<strong>do</strong> meio diminuto, sol maior e la maior com<br />
sétima menor que po<strong>de</strong>m ser respectivamente segun<strong>do</strong> grau, sexto grau e sétimo<br />
grau <strong>de</strong> si menor (ou si eólio) ou sétimo grau, quarto grau e quinto grau <strong>de</strong> ré maior.<br />
Contu<strong>do</strong>, o acor<strong>de</strong> <strong>de</strong> lá maior com sétima menor resolve em si bemol menor, que<br />
po<strong>de</strong> ser o relativo <strong>do</strong> homônimo <strong>de</strong> ré maior, mais que como suce<strong>de</strong> para dó maior<br />
com sétima menor e conclui em fá maior, os acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong> si e <strong>de</strong> dó funcionam como<br />
sub<strong>do</strong>minante e <strong>do</strong>minante <strong>de</strong> fá maior. Esse contexto harmônico dúbio, oscilante<br />
e <strong>de</strong> certa forma livre, ajuda a gerar um contexto <strong>de</strong> inconstância que po<strong>de</strong> ser associa<strong>do</strong><br />
à emoção <strong>de</strong> amor/ternura. Porém com pouca dissonância e conflitos harmônicos,<br />
já q essa é uma emoção positiva.<br />
Quanto à parte melódica a melodia e contracanto possuem um contorno oscilan<strong>do</strong><br />
entre ascendência e <strong>de</strong>scendência <strong>de</strong> forma semelhante a um suspiro, reforçan<strong>do</strong> a<br />
idéia <strong>de</strong> inconstância. A melodia também possui pausas entre as frases musicais, é<br />
tocada com muito legato, tem aspecto suave, e trompa e cordas são tocadas com<br />
timbre suave, e isso lembra a fala com <strong>do</strong>çura e pausada quan<strong>do</strong> expressan<strong>do</strong> amor.<br />
Do c.85 ao c.91 é feita uma sucessão <strong>de</strong> frases ascen<strong>de</strong>ntes crian<strong>do</strong> um clímax q só<br />
será resolvi<strong>do</strong> no c.91. Para criar uma tensão até esse clímax é intensificada a velocida<strong>de</strong><br />
no ritmo da base. Primeiro com pausa <strong>de</strong> semicolcheia e três semicolcheias<br />
e <strong>de</strong>pois com quatro semicolcheias seguidas.<br />
2. Noite Urbana<br />
Noite Urbana é uma canção com um trecho instrumental que será analisa<strong>do</strong>. Esse<br />
trecho tem a intenção <strong>de</strong> criar uma sonorida<strong>de</strong> expressiva <strong>do</strong> contraste dicotômico<br />
<strong>de</strong> situações ocorridas numa cida<strong>de</strong> urbana. De um la<strong>do</strong> se tem o entretenimento,<br />
o encanto, o romantismo, o glamour. Por outro la<strong>do</strong>, existe o perigo, o me<strong>do</strong>, a angústia,<br />
a <strong>de</strong>rrota, a solidão. A proposta foi criar uma sonorida<strong>de</strong> que fosse expressiva<br />
<strong>de</strong>ssas características simultaneamente. Para tal, foi seleciona<strong>do</strong> o trecho inicial<br />
da música que vai <strong>do</strong> c.1 ao c.38. Esse trecho foi composto para tecla<strong>do</strong>, guitarra,
aixo e bateria e to<strong>do</strong>s os instrumentos foram transcritos no anexo. Esses instrumentos<br />
exercem sempre a mesma função na textura da música. Na guitarra está a<br />
melodia, no tecla<strong>do</strong> a harmonia, no baixo uma base melódica na região grave, sempre<br />
em colcheia, às vezes servin<strong>do</strong> como contracanto e na bateria a seção rítmica.<br />
Sentimos me<strong>do</strong> <strong>de</strong> algo não acontecer da forma esperada, e <strong>de</strong> termos uma perda<br />
não <strong>de</strong>sejada. Esse risco e a incerteza criam uma ansieda<strong>de</strong>, uma instabilida<strong>de</strong> no indivíduo.<br />
Essa instabilida<strong>de</strong> é criada ritmicamente neste trecho <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a possibilitar<br />
uma atmosfera <strong>de</strong> insegurança que é característica <strong>do</strong> me<strong>do</strong>. A base, formada<br />
por baixo bateria e tecla<strong>do</strong> tocam uma alternância <strong>de</strong> compassos compostos, como<br />
7 (c.3, c.5, c.11, por exemplo), 8 (c.1, c.19, c.25, por exemplo), 9 (c.4, c.6, c.12, por<br />
exemplo), 10 (c.23, c.30, c.32, por exemplo), 12 (c.26, c.28, por exemplo). Salvo alguns<br />
momentos, não existe sequência previsível nem uma or<strong>de</strong>nação na aparição<br />
<strong>de</strong>sses compassos, <strong>de</strong> forma que é difícil prever o primeiro tempo, dan<strong>do</strong> um caráter<br />
<strong>de</strong> instabilida<strong>de</strong>. Além disso, a caixa da bateria acentua tempos no compasso<br />
que <strong>de</strong>sestabiliza ainda mais a sensação <strong>de</strong> primeiro tempo. O pulso está em 130<br />
bpm e o baixo usa a figura <strong>de</strong> meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> pulso, o que dá uma sensação <strong>de</strong> agonia e<br />
<strong>de</strong> pressa.<br />
Para <strong>de</strong>sestabilizar ainda mais, o enca<strong>de</strong>amento harmônico feito pelo tecla<strong>do</strong> tem<br />
uma seqüência <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s com uma lógica não diatônica. Muitas vezes só possui<br />
uma seqüência <strong>de</strong> no máximo três acor<strong>de</strong>s que po<strong>de</strong>riam estar no mesmo campo<br />
harmônico. E o baixo sempre muda as escalas <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com esses acor<strong>de</strong>s. Para<br />
que isso fosse feito sem problemas foram utilizadas tría<strong>de</strong>s, e às vezes acor<strong>de</strong>s quartas,<br />
pois <strong>de</strong>fine menos qual escala pertence e torna sonoramente mais agradável a sucessão<br />
<strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s vin<strong>do</strong>s <strong>de</strong> tonalida<strong>de</strong>s diferentes. Isso tira também tira a<br />
estabilida<strong>de</strong> e expectativa <strong>de</strong> uma tônica, que não existe neste trecho. E esta foi a<br />
forma <strong>de</strong> trazer a instabilida<strong>de</strong>, a incerteza para a música. Isso remete a sensação <strong>de</strong><br />
me<strong>do</strong>, insegurança, tensão, pressa e instabilida<strong>de</strong>.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, a melodia feita pela guitarra possui um lirismo, uma <strong>do</strong>çura para<br />
lembrar o romantismo da noite. Com notas longas e pausas no final <strong>de</strong> frase, lembra<br />
a fala apaixonada e <strong>de</strong>slumbrada, e parece fazer parte <strong>de</strong> uma música muito mais<br />
lenta <strong>do</strong> que a base propõe. Por usar notas mais longas, não se percebe na melodia<br />
a agonia e o contraste provoca<strong>do</strong> pela alternância <strong>do</strong>s compassos compostos, isoladamente<br />
po<strong>de</strong> trazer a ilusão <strong>de</strong> estar em compasso simples. Da mesma forma, apesar<br />
<strong>de</strong> não levar a nenhuma tônica, possui uma lógica diatônica e os acor<strong>de</strong>s se<br />
harmonizam com suas notas apesar <strong>de</strong> não possuir lógica diatônica. Assim melodia<br />
e harmonia coexistem sem gran<strong>de</strong>s choques. Do c.26 ao c.38 o contorno melódico<br />
possui uma alternância <strong>de</strong> entre ascendência e <strong>de</strong>scendência, mas sempre se encaminhan<strong>do</strong><br />
para o agu<strong>do</strong>. Assim como uma pessoa a contar com paixão uma história<br />
intrigante que se encaminha para um gran<strong>de</strong> acontecimento, um ponto<br />
culminante que se dá no c.37.<br />
511
512<br />
3. Vai Chegar<br />
Vai Chegar é uma canção que fala sobre a problemática vida urbana, as questões e<br />
dificulda<strong>de</strong>s que surgiram nessa nova era, nesse novo estilo <strong>de</strong> vida, mas <strong>de</strong>monstran<strong>do</strong><br />
ao fim uma esperança <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> apesar das adversida<strong>de</strong>s. A música foi<br />
escrita para voz, guitarra, baixo, bateria e orquestra. Será apresentada <strong>de</strong> forma integral<br />
tanto na extensão, quanto na instrumentação, pois uma redução po<strong>de</strong>ria per<strong>de</strong>r<br />
alguns da<strong>do</strong>s para a compreensão da discussão.<br />
A música transita por várias intenções quanto a emoções a serem associadas. Primeiramente,<br />
sugere um esta<strong>do</strong> alegre e jocoso, <strong>de</strong>pois tensão, pressa, agonia, em seguida<br />
me<strong>do</strong> e angústia e por fim a re<strong>de</strong>nção, a volta à alegria. Um da<strong>do</strong> importante<br />
é que a música foi escrita integramente em 4 8. Apesar <strong>de</strong> ter <strong>do</strong>is momentos que po<strong>de</strong>riam<br />
ser escritos em binário, pois se trata <strong>de</strong> uma levada <strong>de</strong> samba, o resto da música<br />
está em quaternário. Desta forma, ao a<strong>do</strong>tar o compasso 4 8, as partes <strong>de</strong> samba<br />
foram escritas com a mesma grafia <strong>de</strong> um 2 4. Essa uniformida<strong>de</strong> <strong>do</strong> compasso facilitou<br />
a programação e gravação da música. A música foi toda escrita para ser tocada<br />
em 180 bpm, que é um andamento que po<strong>de</strong> ser rápi<strong>do</strong>, ou mo<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> se for toca<strong>do</strong><br />
como se tivesse o <strong>do</strong>bro <strong>do</strong> tempo.<br />
A primeira estrofe da música se dá ao longo <strong>do</strong> c.1 ao c.17. É uma típica estrutura<br />
<strong>de</strong> samba trazen<strong>do</strong> um caráter alegre e jocoso. Quan<strong>do</strong> estamos alegres, agimos mais<br />
rapidamente <strong>do</strong> que o normal, seja na fala ou no gestual. A percussão, formada por<br />
um agogô, um triângulo, bateria e uma gran cassa, toca células típicas <strong>de</strong> samba, com<br />
<strong>de</strong>staque a valorização <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> tempo (terceiro no caso <strong>do</strong> quaternário) feita<br />
pela gran cassa como feita pelo sur<strong>do</strong> normalmente. Esta base rítmica produz nessa<br />
estrofe um caráter dançante, anima<strong>do</strong> e jocoso.<br />
A guitarra “limpa” (ou seja, sem distorção) valoriza o ritmo feito pela caixa da bateria<br />
tocan<strong>do</strong> acor<strong>de</strong>s, sen<strong>do</strong> o principal instrumento ritmo-harmônico <strong>de</strong>ssa estrofe.<br />
A harmonia, em dó maior, é típica <strong>do</strong> samba e <strong>de</strong> muitas músicas populares<br />
brasileiras. Apesar <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s com sétimas e sextas, não apresenta muita tensão. As<br />
<strong>do</strong>minantes são sempre resolvidas <strong>de</strong> forma esperada, e as constantes inclinações<br />
corroboram com o caráter ritma<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssa seção. O baixo toca notas da harmonia<br />
valorizan<strong>do</strong> sempre no primeiro tempo a nota mais grave <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>, e acompanha<br />
o ritmo feito pelo bumbo da bateria. É muito comum a associação da sonorida<strong>de</strong><br />
maior com alegria.<br />
Quan<strong>do</strong> falamos com alegria e animação geralmente existe um contorno na voz ascen<strong>de</strong>nte<br />
longo terminan<strong>do</strong> com um contorno curto <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte. Da mesma<br />
forma são as duas primeiras frases <strong>de</strong>ssa primeira estrofe da música. Em seguida, são<br />
feitas algumas frases <strong>de</strong> âmbito curto, porém ritmadas, valorizan<strong>do</strong> o caráter rítmico<br />
da estrofe, cria<strong>do</strong> contraste com as duas frases anteriores. Por fim, a estrofe termina<br />
com outra frase ascen<strong>de</strong>nte com termino curto <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte. E esses aspectos
melódicos possibilitam a associação com um caráter alegre, jocoso e cantante ao<br />
apresentar um contorno semelhante <strong>de</strong> uma possível fala <strong>de</strong> alguém nesse esta<strong>do</strong>.<br />
Na segunda estrofe (c.18 ao c.34) a voz realiza a mesma melodia, contu<strong>do</strong> com uma<br />
base diferente que muda o caráter da música. Quan<strong>do</strong> estamos tensos, ira<strong>do</strong>s, ou<br />
com pressa temos comportamentos acelera<strong>do</strong>s. Falamos e agimos mais rapidamente<br />
assim como o coração bate mais acelera<strong>do</strong>. Contu<strong>do</strong>, diferente da alegria, estes são<br />
estágios emocionais negativos, provoca<strong>do</strong> muitas vezes por frustrações, e acompanham<br />
tensões e ações conflitantes. Para promover uma sonorida<strong>de</strong> que possa ser<br />
associada a esses esta<strong>do</strong>s emocionais algumas mudanças foram feitas. A guitarra<br />
agora é tocada com distorção proporcionan<strong>do</strong> maior tensão. Além disso, seu ritmo<br />
é muito acelera<strong>do</strong>, conten<strong>do</strong> muitas fusas, o que trás um caráter <strong>de</strong> pressa e tensão.<br />
A gran cassa agora <strong>de</strong> <strong>do</strong>is em <strong>do</strong>is compassos toca um ritmo que lembra uma das<br />
batidas <strong>do</strong> maracatu, on<strong>de</strong> não se toca a cabeça <strong>do</strong> tempo, colocan<strong>do</strong> uma pausa <strong>de</strong><br />
semicolcheia antes, o que causa um <strong>de</strong>sconforto pela ausência da cabeça <strong>do</strong> tempo.<br />
Por fim a bateria toca um ritmo mais irregular e com acentuações menos previsíveis.<br />
Isso tu<strong>do</strong> causa uma sensação <strong>de</strong> tensão e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconforto. Essa mudança na sonorida<strong>de</strong><br />
e execução <strong>do</strong>s instrumentos faz um contraste entre primeira e segunda estrofe,<br />
e promove com isso uma mudança <strong>de</strong> caráter, apesar da melodia e parte da<br />
base rítmica ser mantida.<br />
A terceira estrofe (c.35 ao c.50) possui toda instrumentação feita na segunda, mas<br />
agora com o acréscimo da orquestra, com a pre<strong>do</strong>minância das cordas. A orquestra<br />
além <strong>de</strong> preencher mais a harmonia, também acrescenta mais uma informação rítmica<br />
(c.43 ao c.50), e melodias feitas pelos violinos funcionam como contracantos.<br />
A presença da orquestra trás uma sonorida<strong>de</strong> cheia, imponente, “épica”, mas contu<strong>do</strong><br />
não exclui o caráter apresenta<strong>do</strong> na segunda estrofe. Funciona como um somatório<br />
<strong>de</strong> informações, com a sensação <strong>de</strong> um acréscimo <strong>de</strong> timbre, harmonia,<br />
melodia e ritmo, corroboran<strong>do</strong> com a idéia <strong>de</strong> muitos elementos simultâneos, como<br />
acontece nas metrópoles.<br />
Em seguida vem uma seção <strong>de</strong> transição (c.51 ao c.54) com material totalmente<br />
novo com <strong>de</strong>staque na melodia feita pelos violinos I com contorno sempre <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte<br />
e funcionan<strong>do</strong> quase que como um ostinato. A bateria faz um padrão diferente<br />
e contrastante com as estrofes anteriores. Baixo, guitarra e a orquestra<br />
sustentam notas longas forman<strong>do</strong> o material harmônico, com acor<strong>de</strong>s que encaminham<br />
para uma modulação para Am. As notas longas <strong>do</strong> resto <strong>do</strong>s instrumentos<br />
permitem um <strong>de</strong>staque para o ritmo <strong>do</strong>s violinos I e bateria.<br />
A quarta estrofe (c.55 ao c.68) imprime uma sonorida<strong>de</strong> que po<strong>de</strong> ser associada à<br />
tristeza. Quan<strong>do</strong> estamos tristes falamos sem animação, às vezes com contornos<br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, mas vezes com contorno estático e sem gran<strong>de</strong>s variações, <strong>de</strong> forma<br />
“monótona”. Esta estrofe utiliza a idéia melódica com âmbito curto e ritmada apresentada<br />
nas três estrofes anteriores e <strong>de</strong>senvolve, sen<strong>do</strong> esse o material melódico. A<br />
513
514<br />
maior parte da melodia só utiliza duas notas que são intercaladas <strong>de</strong> forma bastante<br />
ritmada, somente ao fim da estrofe que há um movimento <strong>de</strong> ascendência e <strong>de</strong>scendência<br />
curto num âmbito <strong>de</strong> quinta. A utilização <strong>de</strong> somente uma melodia <strong>de</strong><br />
âmbito curto e com poucas notas já modifica o caráter musical. A harmonia está em<br />
Am, e é uma tendência, pelo menos da nossa cultura oci<strong>de</strong>ntal, associar harmonia<br />
menor à tristeza. O enca<strong>de</strong>amento harmônico é Am, C, F, Dm, Bm(b5)7, G7, Em7,<br />
e o fato <strong>de</strong> não usar a <strong>do</strong>minante e sim o quinto grau menor caracteriza uma sonorida<strong>de</strong><br />
mais eólia <strong>do</strong> que menor, mas nem por isso <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser possível a associação<br />
com a tristeza pois as sonorida<strong>de</strong>s são muito parecidas. Quan<strong>do</strong> estamos tristes ou<br />
em esta<strong>do</strong>s <strong>de</strong>pressivos em geral, agimos e falamos mais lentamente. Apesar <strong>do</strong> pulso<br />
ser o mesmo, a bateria realiza uma seqüência rítmica que <strong>de</strong>mora <strong>do</strong>is compassos<br />
para terminar, um perío<strong>do</strong> bem maior <strong>do</strong> que nos padrões anteriores, e isso dá a<br />
impressão <strong>de</strong> estar mais lenta essa estrofe. Por fim, as cordas preenchem a harmonia,<br />
<strong>de</strong> forma que os instrumentos constantemente realizam notas melódicas e mudanças<br />
<strong>de</strong> posição, mas com ritmo diferente. Isso dá uma sensação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sencontro<br />
e <strong>de</strong> irregularida<strong>de</strong> que po<strong>de</strong> corroborar com uma associação com a tristeza, que é<br />
uma emoção negativa e que é <strong>de</strong>spertada geralmente por <strong>de</strong>cepções, frustrações e <strong>de</strong>sencontros.<br />
A quinta estrofe (c.69 ao c.82) apesar <strong>de</strong> possuir a mesma melodia no vocal possui<br />
elementos muito diferentes que possibilitam a associação com outra emoção: o<br />
me<strong>do</strong>. Sentimos me<strong>do</strong> <strong>de</strong> que algo não <strong>de</strong>corra como espera<strong>do</strong>, ou que se perca algo,<br />
que alguma situação tenha um fim in<strong>de</strong>seja<strong>do</strong>. Produz sensações muito fortes e <strong>de</strong>sagradáveis<br />
no indivíduo. É um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> muita tensão, ansieda<strong>de</strong>, angústia e frustração<br />
eminente. Po<strong>de</strong> produzir comportamentos completamente dicotômicos,<br />
como uma completa estaticida<strong>de</strong> ou comportamentos explosivos, <strong>de</strong>senfrea<strong>do</strong>s e<br />
<strong>de</strong>scontrola<strong>do</strong>s. Alguns recursos foram usa<strong>do</strong>s para produzir uma sonorida<strong>de</strong> que<br />
pu<strong>de</strong>sse ser expressiva <strong>de</strong>sse esta<strong>do</strong> emocional. O primeiro da<strong>do</strong> é o contraste entre<br />
a harmonia <strong>de</strong>ssa estrofe com a da estrofe anterior. O enca<strong>de</strong>amento harmônico é:<br />
Am, C#m, Fm, Dm, Bbm, Gm, Em7. Por usar somente acor<strong>de</strong>s menores, cria uma<br />
sonorida<strong>de</strong> tensa ou até mesmo “sombria”. Ao contrário da estrofe anterior não<br />
possui um campo harmônico proveniente <strong>de</strong> uma escala diatônica. Cada acor<strong>de</strong><br />
sempre provoca uma tensão cromática com pelo menos alguma nota <strong>do</strong> acor<strong>de</strong> anterior.<br />
Por exemplo, dó susteni<strong>do</strong> <strong>de</strong> C#m com dó <strong>de</strong> Am, ou lá bemol <strong>de</strong> Fm com<br />
lá natural <strong>de</strong> Dm. Além <strong>de</strong>ssa tensão, cada um <strong>de</strong>sses acor<strong>de</strong>s dura <strong>do</strong>is compassos,<br />
e são sustenta<strong>do</strong>s pelas cordas e baixo elétrico. Sempre no segun<strong>do</strong> compasso as ma<strong>de</strong>iras<br />
e trompas fazem um acor<strong>de</strong> que funciona como um cluster <strong>do</strong> acor<strong>de</strong> que esta<br />
sen<strong>do</strong> toca<strong>do</strong> pelas cordas. Somente o último acor<strong>de</strong> é feito junto às cordas duran<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>is compassos. Ou seja, todas as notas fazem uma dissonância <strong>de</strong> segunda<br />
maior ou menor com as notas tocadas pelas cordas. A seqüência harmônica é G7, B7,<br />
Eb7, Em7, Ab7, F7. Pelo cluster seguir também uma lógica triádica e ser toca<strong>do</strong> com
a distância <strong>de</strong> um compasso, o resulta<strong>do</strong> é mais bran<strong>do</strong> <strong>do</strong> que normalmente acontece<br />
nos clusters, mas nem por isso <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser dissonante. A também uma tensão<br />
rítmica provocada por uma polirritmia. Ao mesmo tempo em que cordas, baixo<br />
elétrico, trompas e ma<strong>de</strong>iras sustentam notas longas, outros instrumentos produzem<br />
notas rápidas e contrastantes entre si. Isso lembra a característica dicotômica<br />
<strong>do</strong> me<strong>do</strong>. O violino I segue um padrão melódico e rítmico, sempre em semicolcheias<br />
que vai varian<strong>do</strong> <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a harmonia. A<br />
gran cassa faz um ritmo constante <strong>de</strong> duas colcheias e quatro semicolcheias. A guitarra<br />
elétrica faz o ritmo inverso, com quatro semicolcheias e duas colcheias e <strong>de</strong>pois<br />
<strong>do</strong> c.77 seguem sempre em semicolcheias. A bateria faz padrões irregulares e<br />
varia sempre estes, aumentan<strong>do</strong> a intensida<strong>de</strong> ao se aproximar <strong>do</strong> fim da estrofe.<br />
Por fim, o agogô faz um ritmo em quiálteras <strong>de</strong> 3 contrastan<strong>do</strong> com os <strong>de</strong>mais instrumentos.<br />
To<strong>do</strong> esse excesso <strong>de</strong> informação contrastante e complexida<strong>de</strong> rítmica<br />
e harmônica criam uma tensão forte que po<strong>de</strong> levar a uma associação com o me<strong>do</strong>.<br />
Uma pequena transição (c.83 ao c.86) realiza um enca<strong>de</strong>amento harmônico como<br />
se fosse modular para dó maior, contu<strong>do</strong> resolve o acor<strong>de</strong> <strong>de</strong> sol maior com sétima<br />
menor em mi bemol maior, que é o terceiro grau <strong>de</strong> empréstimo <strong>do</strong> homônimo. O<br />
importante é que nessa estrofe diminui o excesso <strong>de</strong> informações e dissonâncias<br />
causan<strong>do</strong> uma sensação <strong>de</strong> alívio.<br />
A sexta estrofe (c.84 ao c.108) volta à idéia <strong>de</strong> alegria, animação e esperança. Retorna<br />
a tonalida<strong>de</strong> maior em mi bemol maior, que comumente está associada à alegria. A<br />
harmonia segue uma lógica tonal e previsível. O ritmo é bem menos complexo, com<br />
muitas notas longas e padrões simples e regulares produzi<strong>do</strong>s pela bateria. E <strong>de</strong>vi<strong>do</strong><br />
a essa simplicida<strong>de</strong>, junto a harmonia maior e ao ritmo rápi<strong>do</strong>, mas sem complexida<strong>de</strong>,<br />
essa estrofe po<strong>de</strong> ser associada a emoção alegria.<br />
Por fim, uma última estrofe (c.109 ao c.126), que funciona como coda volta a sonorida<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> samba, repetin<strong>do</strong> sempre uma melodia que tem um caráter livre e <strong>de</strong>spretensioso,<br />
com uma harmonia que oscila entre mi bemol maior e lá bemol maior<br />
(sua sub<strong>do</strong>minante). E essa estrofe final mantém o caráter alegre, agora porém mais<br />
jocoso e encaminha para o fim da música.<br />
Conclusão<br />
A Emoção Extrínseca em música apesar <strong>de</strong> ainda ser um estu<strong>do</strong> novo e insipiente, já<br />
é capaz <strong>de</strong> trazer novas possibilida<strong>de</strong>s para análise e composição musical, trazen<strong>do</strong><br />
recursos suficientes para <strong>de</strong>limitar possíveis associações feitas para uma música <strong>de</strong><br />
acor<strong>do</strong> com os elementos que esta contém na sua estrutura. Apofenia Musical é um<br />
caminho que possivelmente satisfaz as questões conceituais <strong>de</strong> como e porque é<br />
feita uma associação com uma ou mais emoções ao escutar uma música. A seleção<br />
<strong>de</strong> emoções básicas que são normalmente associadas à música po<strong>de</strong> ser uma estraté-<br />
515
516<br />
gia eficiente para <strong>de</strong>limitar os objetos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>. Os da<strong>do</strong>s coleta<strong>do</strong>s nesse tipo <strong>de</strong><br />
pesquisa po<strong>de</strong>m posteriormente servir como base para o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> outras emoções<br />
diferentes e até mais complexas. Um caminho possível para pesquisas futuras é coletar<br />
mais informações sobre aspectos provenientes <strong>de</strong> um esta<strong>do</strong> emocional e tentar<br />
listar os elementos da estrutura musical que possuem semelhança com esses<br />
aspectos. Outra possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pesquisa é promover outras análises a partir <strong>do</strong><br />
que já existe <strong>de</strong> material produzi<strong>do</strong> na pesquisa da Emoção Extrínseca em música.<br />
1 Tradução livre <strong>de</strong>: “Wir führten eigangs für das spezifische Erlebnis <strong>de</strong>s abnormen Be<strong>de</strong>utungs-bewuβtseins<br />
bzw. das Erlebnis <strong>de</strong>r ,,Beziehungsetzung ohne Alaβ, also für jene Erlebnisweisen,<br />
die gemeinhin auch als Wahnwahrnehmung, Wahnvorstellung usw.<br />
Bezeichnet wer<strong>de</strong>n, die Bezeichnung <strong>de</strong>r Apophänie ein, um einen handlichen und klar <strong>de</strong>finierten<br />
Ausdruck zur Verfügung zu haben für eine Erlebnisform (Conrad, 1958, p.46).<br />
Referências Bibliográficas<br />
Bunt, Leslie; Pavlicevic, Mercédès. Music and emotion: perspectives from music therapy.<br />
In: Juslin, Patrick N.; Sloboda, A. John (Ed). Music and Emotion: theory and research.<br />
New York: Oxford University Press, 2001, p.181 -201.<br />
Cheniaux JR, Elie. Manual <strong>de</strong> Psicopatologia. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Guanabara Koogan<br />
S.A, 2002.<br />
Conrad, K. Die beginnen<strong>de</strong> Schizophrenie. Versuch einer Gestaltanalyse <strong>de</strong>s Wahn. Thieme,<br />
Stuttgart, 1958.<br />
Gabrielsson, Alf; Lindström, Erik. The Influence of Musical Structure on Emotional Expression.<br />
In: Juslin, Patrick N.; Sloboda, John A. (Ed). Music and Emotion: theory and<br />
research. New York: Oxford University Press, 2001, p.223-248.<br />
Hanslick, Eduard. Do belo musical: uma contribuição para a revisão da estética musical. Tradução<br />
Nicolino Simone Neto. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989.<br />
Juslin, Patrick N. Communicating Emotion in Music Performance: a review and theoretical<br />
framework. In: Juslin, Patrick N.; Sloboda, John A. (Ed). Music and Emotion: theory<br />
and research. New York: Oxford University Press, 2001, p.309-337.<br />
Kivy, Peter. Sound Sentiment. Phila<strong>de</strong>lphia: Temple University Press. 1989<br />
Petchkovsky, Leon. Some Preliminary Reflections on the Biological Substrate of Meaning-<br />
Making. (A Work in Progress). Disponível em: http://www.anzsja.com.au. Acessa<strong>do</strong><br />
em: 17/03/09.<br />
Sparshott, F.E. Aesthetics of Music. In: Sadie, Stanley (Ed.). The New Grove Dictionary of<br />
Music and Musicians. Lon<strong>do</strong>n: Macmillan Publishers Limited, 1980, vol.1, p.120-134.
artes musicais e cognição social<br />
Música e interdisciplinarida<strong>de</strong>:<br />
bases epistemológicas e exploração <strong>de</strong> uma interface<br />
Rita <strong>de</strong> Cássia Fucci Amato<br />
fucciamato@terra.com.br<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />
Resumo<br />
Este artigo é parte <strong>de</strong> uma pesquisa <strong>de</strong> pós-<strong>do</strong>utora<strong>do</strong> sobre O trabalho <strong>do</strong> regente<br />
como administra<strong>do</strong>r e a perspectiva organizacional <strong>do</strong> canto coral: contribuições interdisciplinares<br />
para administra<strong>do</strong>res e regentes, <strong>de</strong>senvolvida no Grupo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Organizacionais<br />
da Pequena Empresa (GEOPE), <strong>do</strong> Departamento <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Produção<br />
da Escola <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> São Carlos da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo (EESC-USP), com o<br />
apoio da Fundação <strong>de</strong> Amparo à Pesquisa <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Paulo (FAPESP). Especificamente<br />
no presente trabalho, preten<strong>de</strong>-se inicialmente apresentar algumas reflexões epistemológicas<br />
sobre interdisciplinarida<strong>de</strong>, exploran<strong>do</strong>-se: 1) as diferenciações entre os temos<br />
interdisciplinarida<strong>de</strong>, multidisciplinarida<strong>de</strong>, transdicisplinarida<strong>de</strong>, multirreferencialida<strong>de</strong> etc.,<br />
conforme diferentes pensa<strong>do</strong>res; 2) as bases lançadas pela filosofia da ciência sobre alguns<br />
fundamentos <strong>do</strong> conhecimento científico e sobre as relações entre áreas <strong>do</strong> conhecimento;<br />
3) a exemplificação <strong>de</strong> relações interdisciplinares envolven<strong>do</strong> a ciência<br />
musical.<br />
Palavras-chave<br />
Interdisciplinarida<strong>de</strong>; pesquisa em música; música e gestão; administração<br />
Introdução<br />
Este trabalho visa embasar a questão da interdisciplinarida<strong>de</strong> e explorar a interface<br />
entre música, administração <strong>de</strong> empresas e engenharia <strong>de</strong> produção. Tal abordagem<br />
é realizada com base em um levantamento bibliográfico <strong>de</strong> publicações nas<br />
áreas <strong>de</strong> engenharia <strong>de</strong> produção e administração <strong>de</strong> empresas que envolvam o tema<br />
“música”, além <strong>de</strong> algumas publicações na área musical envolven<strong>do</strong> aspectos da administração<br />
e da engenharia <strong>de</strong> produção. As publicações selecionadas foram artigos<br />
em periódicos, dissertações <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong>, teses <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>, trabalhos <strong>de</strong><br />
formatura e artigos publica<strong>do</strong>s em anais <strong>de</strong> <strong>do</strong>is importantes eventos nacionais na<br />
área <strong>de</strong> gestão <strong>de</strong> operações: o Encontro Nacional <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Produção<br />
(ENEGEP), promovi<strong>do</strong> pela Associação Brasileira <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Produção (ABE-<br />
PRO), e o Encontro da Associação Nacional <strong>de</strong> Pós-Graduação e Pesquisa em Administração<br />
(EnANPAD).<br />
517
518<br />
Interdisciplinarida<strong>de</strong><br />
O conhecimento científico se baseia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Antigüida<strong>de</strong>, no preceito <strong>de</strong> que é<br />
possível compreen<strong>de</strong>r a realida<strong>de</strong> por meio <strong>de</strong> sua divisão em diversos campos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes.<br />
Assim, acreditava-se que havia uma ciência para cada objeto específico<br />
<strong>de</strong> estu<strong>do</strong>, isto é, <strong>de</strong>fendia-se a existência <strong>de</strong> uma perfeita correspondência entre<br />
uma divisão preexistente na natureza e as divisões <strong>do</strong> campo científico; haveria,<br />
então, assuntos concernentes a apenas uma parte <strong>do</strong> conhecimento humano: os fenômenos<br />
físicos seriam o objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> da física, os conceitos biológicos se refeririam<br />
estritamente à biologia, e assim por diante. A filosofia, como<br />
fundamentação <strong>do</strong> discurso e da teoria científica, expressou tal concepção em diversos<br />
momentos históricos. Platão (428/7-347 a.C.), por exemplo, expressou este<br />
preceito ao <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a divisão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em várias partes para compreen<strong>de</strong>r cada<br />
uma <strong>de</strong>stas cientificamente, em sua obra A República. Comenta o filósofo:<br />
— [. . .] A ciência tomada em si mesma é ciência <strong>do</strong> cognoscível em si mesmo, ou<br />
<strong>do</strong> objeto, qualquer que seja, que se lhe <strong>de</strong>ve consignar; mas uma ciência <strong>de</strong>terminada<br />
é ciência <strong>de</strong> um objeto <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada Explico-me: quan<strong>do</strong><br />
a ciência <strong>de</strong> construir casas nasceu, não a distinguiram das outras ciências a<br />
ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>nominá-la arquitetura?<br />
— Sim.<br />
— Porque era tal que não se assemelhava a nenhuma outra ciência?<br />
— Sim.<br />
— Ora, não se tornou ela assim quan<strong>do</strong> foi aplicada a um objeto <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>?<br />
E não acontece o mesmo com todas as outras artes e todas as outras ciências?<br />
— Acontece o mesmo. (Platão, 1973: 226)<br />
Tal concepção <strong>do</strong> campo científico pre<strong>do</strong>minou ao longo <strong>do</strong> tempo no pensamento<br />
oci<strong>de</strong>ntal, sen<strong>do</strong> aprofundada por pensa<strong>do</strong>res como René Descartes (1596-1650<br />
d.C.), que, no século X<strong>VI</strong>I, a<strong>do</strong>tou como um <strong>do</strong>s preceitos <strong>de</strong> seu méto<strong>do</strong> o “<strong>de</strong> repartir<br />
cada uma das dificulda<strong>de</strong>s que eu analisasse em tantas parcelas quantas fossem<br />
possíveis e necessárias a fim <strong>de</strong> melhor solucioná-las” (Descartes, 1999: 49).<br />
A <strong>de</strong>speito da influência <strong>do</strong> pensamento filosófico, atualmente a excessiva fragmentação<br />
da realida<strong>de</strong> para fins <strong>de</strong> compreensão e po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> atuação sobre esta é<br />
acelerada pelo grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico. Na contemporaneida<strong>de</strong>, a<br />
<strong>de</strong>smedida especialização das diversas áreas <strong>do</strong> conhecimento — regida pela concepção<br />
<strong>de</strong> ser possível, pela ciência, gerar o saber necessário para <strong>do</strong>minar a natureza,<br />
induzin<strong>do</strong> ao <strong>de</strong>senvolvimento produtivo e tecnológico — tem conduzi<strong>do</strong> o indivíduo<br />
a uma visão <strong>de</strong> várias realida<strong>de</strong>s fragmentadas, com conhecimentos estanques,<br />
não produtores <strong>de</strong> ações eficazes no cotidiano social. Não se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>, sob<br />
esse ângulo, as vinculações semânticas que existem entre os conceitos teóricos, e se<br />
passa à prática com conhecimentos díspares, que po<strong>de</strong>m solucionar um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong><br />
problema e, concomitantemente, criar outros.<br />
Em A estrutura das revoluções científicas, Kuhn (1981) observa que a ciência normal
é bastante eficiente na solução <strong>do</strong>s problemas específicos em que se <strong>de</strong>têm para estudar,<br />
porém suas áreas <strong>de</strong> investigação representam um espectro bastante reduzi<strong>do</strong><br />
da concepção global da realida<strong>de</strong>. Nesse senti<strong>do</strong>, o recorte analítico acaba por<br />
restringir o cientista a uma visão que torna dificultoso o entendimento mais amplo<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> (Kuhn, 1981). Rubem Alves corrobora este pensamento:<br />
Você po<strong>de</strong> ser um especialista em resolver quebra-cabeças. Isto não o torna mais<br />
capacita<strong>do</strong> na arte <strong>de</strong> pensar. Tocar piano (como tocar qualquer instrumento)<br />
é extremamente complica<strong>do</strong>. O pianista tem <strong>de</strong> <strong>do</strong>minar uma série <strong>de</strong> técnicas<br />
distintas — oitavas, sextas, terças, trina<strong>do</strong>s, legatos, staccatos — e coor<strong>de</strong>ná-las,<br />
para que a execução ocorra <strong>de</strong> forma integrada e equilibrada. Imagine um pianista<br />
que resolva especializar-se [. . .] na técnica <strong>do</strong>s trina<strong>do</strong>s apenas. O que vai<br />
acontecer é que ele será capaz <strong>de</strong> fazer trina<strong>do</strong>s como ninguém — só que ele não<br />
será capaz <strong>de</strong> executar nenhuma música. Cientistas são como pianistas que resolveram<br />
especializar-se numa técnica só. Imagine as várias divisões da ciência — física,<br />
química, biologia, psicologia, sociologia — como técnicas especializadas.<br />
No início pensava-se que tais especializações produziriam, miraculosamente,<br />
uma sinfonia. Isto não ocorreu. O que ocorre, freqüentemente, é que cada músico<br />
é sur<strong>do</strong> para o que os outros estão tocan<strong>do</strong>. Físicos não enten<strong>de</strong>m os sociólogos,<br />
que não sabem traduzir as afirmações <strong>do</strong>s biólogos, que por sua vez não<br />
compreen<strong>de</strong>m a linguagem da economia, e assim por diante. A especialização<br />
po<strong>de</strong> transformar-se numa perigosa fraqueza. (Alves, 1982: 11-12)<br />
A idéia <strong>de</strong> que o mun<strong>do</strong> seria um gran<strong>de</strong> relógio, com muitas engrenagens, que estudadas<br />
individualmente (cada uma por sua respectiva ciência), permitiriam — a<br />
partir da união <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s esses conhecimentos específicos — a constituição <strong>de</strong> um conhecimento<br />
global acerca da realida<strong>de</strong> foi contestada pela teoria sistêmica (Bertalanffy,<br />
1977; Crema, 1989; Capra, 1993; 1995). Esta vertente epistemológica prevê<br />
que a soma <strong>de</strong> várias partes não forma o to<strong>do</strong>, e que este somente po<strong>de</strong> ser compreendi<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> maneira global a partir <strong>do</strong> entendimento geral <strong>do</strong>s fenômenos dinâmicos<br />
que se inter-relacionam e, por meio <strong>de</strong>ssas relações, constituem um sistema<br />
integra<strong>do</strong>, indissociável. Segun<strong>do</strong> Crema (1989: 68), a abordagem sistêmica<br />
[. . .] consiste na consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> que to<strong>do</strong>s os fenômenos ou eventos se interligam<br />
e se inter-relacionam <strong>de</strong> uma forma global; tu<strong>do</strong> é inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte.<br />
Sistema (<strong>do</strong> grego systema: reunião, grupo) significa um conjunto <strong>de</strong> elementos<br />
interliga<strong>do</strong>s <strong>de</strong> um to<strong>do</strong>, coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s entre si e que funcionam como uma estrutura<br />
interligada.<br />
O físico Fritjof Capra (1993) <strong>de</strong>monstrou, em sua obra O tao da física, que diferentes<br />
concepções e maneiras <strong>de</strong> explicar <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s fenômenos trazem sua contribuição<br />
para o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong>stes, porém nenhuma vertente <strong>do</strong> conhecimento é capaz<br />
<strong>de</strong> oferecer uma solução única e incontestável para a explicação da realida<strong>de</strong>:<br />
Na tentativa <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o mistério da Vida, homens e mulheres têm segui<strong>do</strong><br />
muitas abordagens diferentes. Entre estas, encontram-se os caminhos <strong>do</strong><br />
cientista e <strong>do</strong> místico. Existem, contu<strong>do</strong>, muitos outros: os caminhos <strong>do</strong>s poetas,<br />
das crianças, <strong>do</strong>s palhaços, <strong>do</strong>s xamãs — isso para indicar apenas uns poucos.<br />
519
520<br />
Esses caminhos <strong>de</strong>ram origem a diferentes <strong>de</strong>scrições <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, tanto verbais<br />
como não-verbais, e que enfatizam diferentes aspectos. Todas são válidas e úteis<br />
no contexto em que surgiram. Todas, entretanto, não passam <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrições ou<br />
<strong>de</strong> representações da realida<strong>de</strong> e, em <strong>de</strong>corrência disso, limitadas. Nenhuma<br />
po<strong>de</strong> oferecer uma representação completa <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. (Capra, 1993: 226)<br />
O que Capra (1993) <strong>de</strong>monstra em sua obra é justamente a inexistência <strong>de</strong> um caminho<br />
unívoco para a compreensão <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> fenômeno. Em seu escrito O<br />
ponto <strong>de</strong> mutação (Capra, 1995), o teórico segue a mesma direção <strong>de</strong> pensamento,<br />
adicionan<strong>do</strong> à citada constatação a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se compreen<strong>de</strong>r <strong>de</strong>termina<strong>do</strong><br />
processo isoladamente, ou seja, sem compreen<strong>de</strong>r suas interação com outros<br />
processos que constituem um organismo, um sistema.<br />
A concepção sistêmica vê o mun<strong>do</strong> em termos <strong>de</strong> relações e <strong>de</strong> integração. Os sistemas<br />
são totalida<strong>de</strong>s integradas, cujas proprieda<strong>de</strong>s não po<strong>de</strong>m ser reduzidas às<br />
<strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s menores. Em vez <strong>de</strong> se concentrar nos elementos ou substancias<br />
básicas, a abordagem sistêmica enfatiza os princípios básicos <strong>de</strong> organização. Os<br />
exemplos <strong>de</strong> sistemas são abundantes na natureza. To<strong>do</strong> e qualquer organismo<br />
— <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a menor bactéria até os seres humanos, passan<strong>do</strong> pela imensa varieda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> plantas e animais — é uma totalida<strong>de</strong> integrada e, portanto, um sistema vivo.<br />
(Capra, 1995: 260)<br />
A teoria sistêmica tem si<strong>do</strong> traduzida, em diversas esferas científicas, pela concepção<br />
<strong>de</strong> re<strong>de</strong>. Como ferramenta analítica, as re<strong>de</strong>s são a<strong>do</strong>tadas nos mais diversos<br />
campos <strong>do</strong> conhecimento, como a sociologia, a educação, a informática, a matemática,<br />
a economia, a engenharia e a administração. Epistemologicamente, po<strong>de</strong>se<br />
enten<strong>de</strong>r que os nós das re<strong>de</strong>s são os conceitos, os quais são compartilha<strong>do</strong>s pelas<br />
diversas áreas <strong>do</strong> conhecimento, que constituem as ligações (ou linkages) da re<strong>de</strong>.<br />
A<strong>de</strong>mais, as re<strong>de</strong>s apresentam características como a flexibilida<strong>de</strong>, que induzem à<br />
noção <strong>de</strong> que uma mudança teórica em <strong>de</strong>terminada área (ligação) ou conceito (nó)<br />
repercutirá por toda a re<strong>de</strong>, levan<strong>do</strong> à ocorrência <strong>de</strong> reflexos em outros campos, em<br />
maior ou menor grau. Esse fato se vincula à noção <strong>de</strong> inter<strong>de</strong>pendência e inter-relacionamento<br />
entre as diversas áreas <strong>do</strong> saber.<br />
Tal relacionamento entre campos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>, que emergiu <strong>de</strong>s<strong>de</strong> finais <strong>do</strong> século<br />
XX, é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> produto <strong>de</strong> novas divisões <strong>do</strong> trabalho intelectual, pesquisas colaborativas,<br />
campos <strong>de</strong> conhecimento híbri<strong>do</strong>s, estu<strong>do</strong>s comparativos e perspectivas<br />
<strong>de</strong> pretensão holística ou unificada (Klein, 1990: 11). A<strong>de</strong>mais, relaciona-se ao<br />
chama<strong>do</strong> pensamento complexo, que busca “reconhecer a multidimensionalida<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>s fenômenos” e ser “capaz <strong>de</strong> associar o que está separa<strong>do</strong> e conceber a multidimensionalida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> toda realida<strong>de</strong> antropossocial” (Morin, 1986, pp. 113-22)<br />
É importante divisar, porém, em que senti<strong>do</strong> tais visões globais <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s fenômenos,<br />
ou da realida<strong>de</strong> como um to<strong>do</strong>, criadas a partir da conjugação <strong>de</strong> conhecimentos<br />
(parciais) <strong>de</strong> áreas que estudam partes da realida<strong>de</strong>, seriam diferentes da<br />
perspectiva filosófica clássica.
A filosofia, i<strong>de</strong>ntificada inicialmente com o diálogo socrático ou platônico, buscava,<br />
pelo <strong>de</strong>bate em que se chocavam opiniões contraditórias, alcançar os conceitos verda<strong>de</strong>iros.<br />
A partir <strong>de</strong> tal movimento <strong>de</strong> síntese <strong>de</strong> idéias, concebeu-se a possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> se chegar — em última instância — ao conhecimento da totalida<strong>de</strong>.<br />
Uma das <strong>de</strong>finições <strong>de</strong> filosofia a concebe como um esforço racional para compreen<strong>de</strong>r<br />
o Universo como uma totalida<strong>de</strong> or<strong>de</strong>nada <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>. Outra <strong>de</strong>finição a<br />
consi<strong>de</strong>ra como uma fundamentação teórica, crítica, racional e sistemática <strong>do</strong>s conhecimentos<br />
e das práticas, isto é, como ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> análise, reflexão e crítica <strong>do</strong>s<br />
conhecimentos, da ciência, da religião, da arte, da moral, da história e da política. A<br />
filosofia contempla os saberes e as práticas, analisan<strong>do</strong>-os racionalmente (Chauí,<br />
2006).<br />
Por <strong>de</strong>finição, a filosofia busca o conhecimento <strong>do</strong> to<strong>do</strong>, com um olhar também<br />
constituí<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> conceitos gerais, que estão na base <strong>de</strong> to<strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> conhecimento.<br />
I<strong>de</strong>almente, a interdisciplinarida<strong>de</strong> também visa à completu<strong>de</strong>, à totalida<strong>de</strong><br />
e à universalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> saber, ainda que este saber seja parcial — busca, ao menos, conjugar<br />
visões que se aproximem — mais <strong>do</strong> que o saberes <strong>de</strong> uma só ciência — ao conhecimento<br />
global sobre <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s objetos, que são parcela da realida<strong>de</strong>. Cada<br />
ciência, por si só, entretanto, busca conhecimentos parciais — basea<strong>do</strong>s em seus<br />
conceitos e méto<strong>do</strong>s próprios — sobre parcelas da realida<strong>de</strong> — seus objetos próprios.<br />
Nota-se que a relação entre campos <strong>do</strong> saber é normalmente pensada a partir da<br />
constituição <strong>de</strong> equipes compostas por indivíduos <strong>de</strong> diversas áreas, cada um com<br />
saberes específicos. Costuma-se ignorar a hipótese <strong>de</strong> uma mesma pessoa ter formação<br />
acadêmica em diversas áreas, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> por si só <strong>de</strong>senvolver pesquisas interdisciplinares,<br />
multidisciplinares, etc. Cabe consi<strong>de</strong>rar ainda que gran<strong>de</strong>s estu<strong>do</strong>s,<br />
como os <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s por pensa<strong>do</strong>res da filosofia e das ciências humanas, foram<br />
elabora<strong>do</strong>s a partir <strong>de</strong> conhecimentos que po<strong>de</strong>riam ser classifica<strong>do</strong>s como pertinentes<br />
a diversas áreas <strong>do</strong> conhecimento e hoje são relevantemente estuda<strong>do</strong>s em<br />
diversas áreas <strong>do</strong> saber. Portanto, não é a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> dizer que a interdisciplinarida<strong>de</strong><br />
seja um fenômeno novo, mas apenas que a consciência <strong>de</strong>sta é que se tem <strong>de</strong>flagra<strong>do</strong><br />
— e se explicita<strong>do</strong> — mais recentemente para os pesquisa<strong>do</strong>res em geral, com<br />
diferentes intensida<strong>de</strong>s conforme os campos científicos.<br />
O fenômeno da relação entre diferentes campos <strong>do</strong> conhecimento (envolven<strong>do</strong><br />
não só ciências, mas também a filosofia e outros tipos <strong>de</strong> saber) tem recebi<strong>do</strong> diversas<br />
nomenclaturas, tais como multidisciplinarida<strong>de</strong>, transdisciplinarida<strong>de</strong>, pluridisciplinarida<strong>de</strong>,<br />
multirreferencialida<strong>de</strong> e interdisciplinarida<strong>de</strong>. Todas essas<br />
<strong>de</strong>signações expressam basicamente a mesma idéia: <strong>de</strong> que há conceitos e objetos <strong>de</strong><br />
estu<strong>do</strong> comuns aos diversos campos <strong>do</strong> conhecimento humano; <strong>de</strong> que conceitos<br />
e arcabouços teóricos <strong>de</strong> uma área po<strong>de</strong>m ajudar na solução questões inerentes a<br />
outra área, e vice-versa. Não somente as relações entre ciências são consi<strong>de</strong>radas,<br />
521
522<br />
mas também entre ciência(s), filosofia, “filosofias orientais”, religião e outros saberes<br />
extracientíficos. Essas formas <strong>de</strong> conhecimento exteriores à ciência, cabe notar,<br />
têm procura<strong>do</strong> obter filosoficamente a legitimida<strong>de</strong> científica e suas “verda<strong>de</strong>s” têm<br />
pretensão <strong>de</strong> “verda<strong>de</strong> científica”. (Gadamer, 1977)<br />
Para Carvalho (1988, p. 93), multidisciplinarida<strong>de</strong> diz respeito ao momento <strong>de</strong><br />
uma pesquisa em que se faz uso <strong>de</strong> contribuições <strong>de</strong> diferentes disciplinas, porém<br />
tal colaboração é “fortemente localizada e limitada”, sen<strong>do</strong> que cada disciplina mantém<br />
seu próprio campo <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>, com autonomia <strong>de</strong> seus méto<strong>do</strong>s e <strong>de</strong> seu escopo.<br />
Já a interdisciplinarida<strong>de</strong> diria respeito a uma coor<strong>de</strong>nação mais acentuada entre<br />
disciplinas, com uma intercomunicação mais efetiva entre pesquisa<strong>do</strong>res <strong>de</strong> diferentes<br />
áreas; as várias disciplinas adaptam seus méto<strong>do</strong>s ao esforço comum — com<br />
planejamento e pretensão <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>, sen<strong>do</strong> que o objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> comum<br />
passa a ser objeto também <strong>de</strong> cada disciplina por si só. Carvalho (1988) <strong>de</strong>staca<br />
ainda o conceito <strong>de</strong> intradisciplinarida<strong>de</strong>, que se origina da particularização <strong>de</strong> um<br />
objeto <strong>de</strong> pesquisa, que passa a ser o foco <strong>de</strong> uma subdisciplina, que entretanto não<br />
obtém autonomia quanto aos méto<strong>do</strong>s em relação à disciplina à qual pertence. Por<br />
fim, para Carvalho (1988) a transdisciplinarida<strong>de</strong> é a elaboração <strong>de</strong> um novo objeto,<br />
estuda<strong>do</strong> por um méto<strong>do</strong> comum a várias disciplinas, processo que culmina com a<br />
criação <strong>de</strong> uma nova ciência, constituída por contributos <strong>de</strong> diversos campos <strong>do</strong><br />
conhecimento; há uma unida<strong>de</strong> complexa <strong>do</strong> objeto com uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
vertentes <strong>de</strong>ste novo campo <strong>do</strong> saber heterogeneamente constituí<strong>do</strong>. Ou, para Pereira<br />
(2004, p.5), transdisciplinarida<strong>de</strong> “é o saber que se obtém a partir <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os<br />
saberes da cultura, isto é, da Ciência, Filosofia, Arte, Religião e Senso Comum. É<br />
um saber que pertence à esfera maior <strong>do</strong>s conhecimentos humanos”.<br />
Klein (1990) nota que a interdisciplinarida<strong>de</strong>, por um la<strong>do</strong>, é <strong>de</strong>scrita como nostalgia<br />
<strong>de</strong> uma inteireza <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> perdida; por outro, como um novo estágio da<br />
evolução das ciências. A associação <strong>do</strong> termo se dá a uma ampla gama <strong>de</strong> experiências.<br />
Se um físico po<strong>de</strong> associar interdisciplinarida<strong>de</strong> a varia<strong>do</strong>s níveis <strong>de</strong> convergência<br />
<strong>do</strong>s conhecimentos da física mo<strong>de</strong>rna, da química e da biologia, o mesmo<br />
po<strong>de</strong> não conceber como tal relacionamento se dá nas ciências sociais. Economistas<br />
po<strong>de</strong>m con<strong>de</strong>nar a interdisciplinarida<strong>de</strong> como diletantismo, enquanto usam<br />
em suas pesquisas estu<strong>do</strong>s interdisciplinares sobre o terceiro mun<strong>do</strong>. O termo interdisciplinarida<strong>de</strong>,<br />
nota a autora, já foi usa<strong>do</strong> para <strong>de</strong>screver tanto uma gran<strong>de</strong><br />
unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> conhecimento humano quanto uma colaboração limitada entre duas ou<br />
mais ciências.<br />
Fazenda (2006) nota que a interdisciplinarida<strong>de</strong>, como movimento, surgiu na Europa,<br />
principalmente na França e na Itália, durante a década <strong>de</strong> 1960, em meio às<br />
movimentações estudantis que ocorriam àquela época. Contrapunha-se à organização<br />
acadêmica que <strong>de</strong>sprezava o conhecimento da cotidianida<strong>de</strong> e da contemporaneida<strong>de</strong><br />
e que prezava a alta especialização, cultivan<strong>do</strong> apenas olhares em uma
“única, restrita e limitada direção” (Fazenda, 2006, p. 19). Fazenda (2002, p. 8)<br />
aponta que<br />
A interdisciplinarida<strong>de</strong> vem sen<strong>do</strong> utilizada como ‘panacéia’ para os males da<br />
dissociação <strong>do</strong> saber, a fim <strong>de</strong> preservar a integrida<strong>de</strong> <strong>do</strong> pensamento e o restabelecimento<br />
<strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m perdida. [. . .] Antes que um slogan, é uma relação <strong>de</strong><br />
reciprocida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> mutualida<strong>de</strong>, que pressupõe uma atitu<strong>de</strong> diferente a ser assumida<br />
frente ao problema <strong>do</strong> conhecimento, ou seja, é a substituição <strong>de</strong> uma concepção<br />
fragmentária para unitária <strong>do</strong> ser humano. [. . .] É uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
abertura, não preconceituosa, on<strong>de</strong> to<strong>do</strong> conhecimento é igualmente importante.<br />
Japiassú (1976) enten<strong>de</strong> que a troca <strong>de</strong> informações entre disciplinas <strong>do</strong> saber é<br />
condição essencial mas não suficiente para a interdisciplinarida<strong>de</strong>, que só se efetiva<br />
quan<strong>do</strong> a intercomunicação entre áreas <strong>do</strong> conhecimento provoca mudanças sensíveis<br />
nessas próprias áreas e em sua interação. O autor ainda i<strong>de</strong>ntifica pluridisciplinarida<strong>de</strong><br />
como o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> um mesmo objeto por diferentes disciplinas, mas<br />
sem a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conceitos e méto<strong>do</strong>s. Já a interdisciplinarida<strong>de</strong> seria uma efetiva<br />
integração das disciplinas no nível <strong>de</strong> conceitos e méto<strong>do</strong>s.<br />
Do ponto <strong>de</strong> vista da pesquisa científica, a interdisciplinarida<strong>de</strong> se constrói da interação,<br />
comparação, análise e síntese <strong>de</strong> conceitos oriun<strong>do</strong>s <strong>de</strong> diversos campos <strong>do</strong><br />
saber, isto é, da conjugação <strong>de</strong> ângulos pelos quais cada ciência e cada modalida<strong>de</strong><br />
outra <strong>de</strong> saber dirige seu olhar à realida<strong>de</strong>. Como atitu<strong>de</strong> meto<strong>do</strong>lógica, tem-se a interdisciplinarida<strong>de</strong><br />
como um direcionamento <strong>do</strong> saber no intuito <strong>de</strong> “superar visões<br />
fragmentadas” e dicotômicas da realida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> “romper barreiras”, principalmente<br />
entre especialida<strong>de</strong> e generalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> conhecimento e entre teoria e prática (Bochniak,<br />
1992: 19). Nesse senti<strong>do</strong>, a interdisciplinarida<strong>de</strong> também é notada como um<br />
i<strong>de</strong>al da ciência em sua fase pós-mo<strong>de</strong>rna, na qual cultiva-se a noção <strong>de</strong> “<strong>de</strong> superação<br />
<strong>de</strong> qualquer dicotomia” (Pereira, 2005: 37).<br />
Ora, a concepção <strong>de</strong> interdisciplinarida<strong>de</strong> [. . .] vem enunciada enquanto mais <strong>do</strong><br />
que superação das barreiras existentes entre as disciplinas científicas (como via<br />
<strong>de</strong> regra ela vem entendida); enquanto mais <strong>do</strong> que superação das fronteiras e<br />
oposições, até então estabelecidas entre Ciência, Filosofia, Arte e Religião [. . .];<br />
enquanto superação <strong>de</strong> toda e qualquer visão fragmentada que tenhamos <strong>de</strong><br />
nosso mun<strong>do</strong>, <strong>de</strong> nós mesmos e <strong>de</strong> nossa realida<strong>de</strong>. O que, contu<strong>do</strong>, não significa<br />
que, sob tal enuncia<strong>do</strong>, sejam <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>radas ou <strong>de</strong>sprezadas as respectivas<br />
distinções, separações e/ ou classificações <strong>de</strong> que vimos nos valen<strong>do</strong>, e que supõem<br />
interessantes e necessárias circunscrições para a análise <strong>de</strong> fenômenos consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s.<br />
Assim e, por exemplo, nesta perspectiva da interdisciplinarida<strong>de</strong> não<br />
se <strong>de</strong>spreza nem se <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra a separação ou a distinção entre ciências; a separação<br />
ou a distinção entre as amplas áreas da produção e expressão <strong>do</strong> conhecimento<br />
[. . .]; a separação e a distinção entre corpo e mente — pensamento,<br />
sentimento, movimento <strong>de</strong> pessoa humana; a separação e a distinção entre teoria<br />
e prática etc. O que se <strong>de</strong>spreza e se <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra é o distanciamento entre tais<br />
circunscrições e/ ou até mesmo a oposição entre tais esferas [. . .]. (Bochniak,<br />
1993, p. 288-9)<br />
523
524<br />
Diante da pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conceitos, é interessante que se busque uma nomenclatura<br />
que seja mais a<strong>de</strong>quada e próxima ao uso lingüístico corrente nos meios científicos.<br />
Cabe, portanto, i<strong>de</strong>ntificar a interdisciplinarida<strong>de</strong> como um conceito aberto, que<br />
diga respeito a vários graus <strong>de</strong> integração entre disciplinas. Uma <strong>de</strong>nsa integração<br />
entre áreas <strong>do</strong> saber, que seja tão profunda a ponto <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r criar uma nova ciência,<br />
é fenômeno quantitativamente limita<strong>do</strong> no campo científico. Esse seria um<br />
nível avança<strong>do</strong> <strong>de</strong> interdisciplinarida<strong>de</strong>. O que costuma ocorrer, entretanto, é a<br />
junção ocasional <strong>de</strong> várias disciplinas para estudar <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> objeto, em <strong>de</strong>terminada<br />
pesquisa; ou, no plano pedagógico, a exploração <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> várias matérias<br />
com foco um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> tema que se está estudan<strong>do</strong>. Esse seria um nível<br />
básico <strong>de</strong> interdisciplinarida<strong>de</strong>, mais comumente nota<strong>do</strong>. Tal como conceituada a<br />
interdisciplinarida<strong>de</strong> lato sensu, esta po<strong>de</strong>ria ser compreendida como gênero <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>do</strong> qual especificar-se-iam diferentes níveis <strong>de</strong> integração entre campos <strong>do</strong> saber,<br />
abrangen<strong>do</strong> as espécies multidisciplinarida<strong>de</strong>, interdisciplinarida<strong>de</strong> stricto sensu,<br />
transdisciplinarida<strong>de</strong>, etc.1 Por outro la<strong>do</strong>, haveria a coexistência mas não integração<br />
entre campos <strong>do</strong> saber, conceituada por Weil (2007) como multidisciplinarida<strong>de</strong>.<br />
Mas cabe notar que essa não integração é relativa, pois autonomamente, <strong>de</strong><br />
forma consciente ou não, as áreas <strong>do</strong> conhecimento são formadas e incorporam —<br />
contínua ou <strong>de</strong>scontinuamente — conhecimentos que não cabiam em seu escopo<br />
original, além <strong>de</strong> partilharem méto<strong>do</strong>s afins, sob bases semelhantes.<br />
Música e gestão: um panorama <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s brasileiros<br />
Buhman, Kekre e Singhal (2005, p. 495) colocam: “Enquanto muito <strong>do</strong>s problemas<br />
<strong>de</strong> gestão <strong>de</strong> operações entram em interface com a economia, a psicologia e outras<br />
áreas <strong>do</strong>s negócios, alguns temas emergentes exten<strong>de</strong>m a fronteira da gestão <strong>de</strong> operações<br />
para além <strong>de</strong>stas áreas”. A<strong>de</strong>mais, muitos <strong>do</strong>s temas trata<strong>do</strong>s em administração<br />
têm por base fundamentos <strong>de</strong> outros campos <strong>do</strong> saber, como a pedagogia<br />
(vi<strong>de</strong>, por exemplo, os estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong> psicopedagogo Carl Rogers), a psicanálise e a psicologia<br />
— que enfatizam a dimensão emocional, muito valorizada nas abordagens<br />
mais recentes <strong>de</strong> administração, e trazem temas como a li<strong>de</strong>rança e a motivação, incluí<strong>do</strong>s<br />
no âmbito <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> gestão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Elton Mayo e outros<br />
pesquisa<strong>do</strong>res da Escola das Relações Humanas.<br />
Artigos com múltiplas abordagens da inter-relação entre música, administração,<br />
gestão e engenharia industrial (engenharia <strong>de</strong> produção) foram levanta<strong>do</strong>s. Nesta<br />
seção, alguns <strong>de</strong>stes trabalhos publica<strong>do</strong>s nos anais <strong>de</strong> <strong>do</strong>is importantes congressos<br />
brasileiros <strong>de</strong> gestão são <strong>de</strong>staca<strong>do</strong>s. Os congressos são o Encontro Nacional <strong>de</strong> Engenharia<br />
<strong>de</strong> Produção (ENEGEP), promovi<strong>do</strong> pela Associação Brasileira <strong>de</strong> Engenharia<br />
<strong>de</strong> Produção (ABEPRO), e o Encontro da Associação Nacional <strong>de</strong><br />
Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (EnANPAD). No <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> Administração<br />
da Produção, Logística e Operações Internacionais, SIMPOI, promo-
Abordagem Trabalhos no ENEGEP<br />
(1996-2008)<br />
Indústria fonográfica; aspectos<br />
tecnológicos e merca<strong>do</strong>lógicos<br />
da produção e distribuição da<br />
música; ca<strong>de</strong>ia produtiva da<br />
música; ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> valor da<br />
música<br />
Monserrat Neto (1997); Yamatogi,<br />
Nantes e Lucente<br />
(2001); Uehara (2001);<br />
Cota Júnior e Cheng<br />
(2006); Menezes et al.<br />
(2006); Côrtes et al. (2008)<br />
Trabalhos no<br />
EnANPAD (1997-2008)<br />
Filgueiras e Silva (2002);<br />
Carvalho, Hemais e<br />
Motta (2001); Kaminski<br />
e Pra<strong>do</strong> (2005); Barros et<br />
al. (2008)<br />
Emergência <strong>de</strong> estilos musicais Kirschbaum (2006)<br />
Gestão <strong>de</strong> carreiras e música Kirschbaum e Vasconcelos<br />
(2005)<br />
Música no ambiente <strong>de</strong><br />
trabalho / música e qualida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> vida no trabalho<br />
Ergonomia no trabalho <strong>do</strong><br />
intérprete musical<br />
Educação musical a distância/<br />
música e tecnologias da informação<br />
e comunicação (TICs)<br />
Gestão <strong>de</strong> organizações <strong>do</strong><br />
terceiro setor <strong>de</strong> caráter sociocultural<br />
Gestão <strong>de</strong> instituições educativo-musicais:<br />
conservatórios,<br />
escolas <strong>de</strong> música, faculda<strong>de</strong>s<br />
Ativida<strong>de</strong>s socioculturais em<br />
projetos comunitários<br />
Lima (1998); Moraes et al. El-Aouar e Souza (2003)<br />
(2004); Pereira et al. (2005);<br />
Timossi, Francisco e Michaloski<br />
(2006); Santos et al.<br />
(2007)<br />
Paixão (1998)<br />
Fleury (2003)<br />
Lemos, Alencar e Costa<br />
(2006)<br />
Pena Júnior, Graciano e<br />
Válery (2005)<br />
Teses, Dissertações e<br />
TCCs<br />
Santos (2009) [TTC<br />
Engenharia <strong>de</strong> Produção<br />
EESC-USP]<br />
Percepção e cognição musical Pelaez (2000) [mestra<strong>do</strong><br />
em Engenharia <strong>de</strong><br />
Produção — UFSC]<br />
Gestão da qualida<strong>de</strong> e grupos<br />
musicais<br />
Gestão <strong>de</strong> competências e música/<br />
educação musical<br />
Música e qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida no<br />
trabalho<br />
Tabela 1 — Levantamento <strong>de</strong> trabalhos brasileiros correlacionan<strong>do</strong><br />
música e gestão <strong>de</strong> operações<br />
A música e sua relação com a<br />
administração <strong>de</strong> empresas (aspectos<br />
da intuição, improvisação,<br />
etc.)<br />
Rocha (2001) Flach e Antonello (2008)<br />
Santiago (2002) [mestra<strong>do</strong><br />
em Engenharia <strong>de</strong><br />
Produção — UFSCar];<br />
Morelembaum (1999)<br />
[mestra<strong>do</strong> em<br />
Musicologia — CBM]<br />
Teixeira (2005) [mestra<strong>do</strong><br />
em música —<br />
UFRGS]; Santiago<br />
(2002) [<strong>do</strong>utora<strong>do</strong> em<br />
Engenharia <strong>de</strong> Produção<br />
— UFSCar)<br />
Teixeira (2005) [mestra<strong>do</strong><br />
em música —<br />
UFRGS]; Morelembaum<br />
(1999) [mestra<strong>do</strong><br />
em Musicologia —<br />
CBM]<br />
525
526<br />
vi<strong>do</strong> pela Escola <strong>de</strong> Administração <strong>de</strong> Empresas <strong>de</strong> São Paulo (EAESP) da Fundação<br />
Getúlio Vargas (FGV) não foram encontra<strong>do</strong>s trabalhos sobre o tema.<br />
Na tabela 1, a seguir, há uma lista exaustiva <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s encontra<strong>do</strong>s nos anais <strong>do</strong>s<br />
ENEGEPs e EnANPADs que contivessem qualquer referência significativa a "música"<br />
ou "musical", ou que exemplificam uma abordagem possível <strong>de</strong> ser aprofundada.<br />
Na tabela, são também menciona<strong>do</strong>s, com um caráter exemplificativo,<br />
algumas dissertações <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong>, teses <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> e trabalhos <strong>de</strong> formatura <strong>de</strong><br />
cursos <strong>de</strong> graduação <strong>do</strong> Brasil que ilustram a síntese possível <strong>do</strong> conhecimento entre<br />
as operações <strong>de</strong> gestão e <strong>de</strong> música. Note-se que outras fontes, como periódicos e outros<br />
anais <strong>de</strong> eventos acadêmicos não foram levanta<strong>do</strong>s.<br />
A seguir, serão analisa<strong>do</strong>s brevemente cada um <strong>do</strong>s temas <strong>de</strong> pesquisa <strong>de</strong>staca<strong>do</strong>s.<br />
1.1. A produção industrial da música comercial<br />
Uma primeira abordagem da relação música-gestão que se po<strong>de</strong> verificar na literatura<br />
brasileira da engenharia <strong>de</strong> produção e da administração <strong>de</strong> empresas é aquela<br />
referente à indústria fonográfica, aos aspectos tecnológicos e merca<strong>do</strong>lógicos da<br />
produção e distribuição da música, à ca<strong>de</strong>ia produtiva da música e à ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> valor<br />
da música. Essa abordagem é a mais tradicional, pois remonta à concepção a<strong>do</strong>rniana<br />
<strong>de</strong> indústria cultural, embora a <strong>de</strong>pure <strong>de</strong> toda criticida<strong>de</strong>. Isso torna possível<br />
que, mesmo que um estu<strong>do</strong> trate da indústria cultural (ou da indústria<br />
fonográfica, segmento <strong>de</strong>sta), possa iniciar-se com a afirmação “Os diversos tipos <strong>de</strong><br />
expressão cultural <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> constituem a sua própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>” (Côrtes<br />
et al., 2008, p. 2). Ora, a produção da indústria cultural reflete a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sociocultural<br />
<strong>de</strong> cada localida<strong>de</strong> em que é consumida?<br />
Nessa linha <strong>de</strong> pesquisa, um <strong>do</strong>s aspectos estuda<strong>do</strong>s são os impactos das inovações<br />
e mudanças tecnológicas na produção e comercialização da música, geran<strong>do</strong> novos<br />
mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> negócio nessa indústria: <strong>de</strong>staca-se, por exemplo, o barateamento das<br />
mídias portáteis, como CDs e DVDs, e a crescente difusão da Internet, que popularizou<br />
o comércio on-line <strong>de</strong> conteú<strong>do</strong>s sonoros (fonogramas) e audiovisuais, bem<br />
como abriu espaço à divulgação gratuita <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>os e sons. Tais mudanças gerariam<br />
um fenômeno <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> <strong>de</strong> “cauda longa” (An<strong>de</strong>rson, 2006), possibilitan<strong>do</strong> a<br />
transição <strong>de</strong> um merca<strong>do</strong> massifica<strong>do</strong> para um merca<strong>do</strong> segmenta<strong>do</strong>, organiza<strong>do</strong><br />
em nichos, no qual novos conteú<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>m ganhar viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> divulgação, pois<br />
haveria, <strong>de</strong>ntre outros fatores, uma <strong>de</strong>mocratização das ferramentas <strong>de</strong> produção e<br />
distribuição da música (Côrtes et al., 2008).<br />
Outros trabalhos procuram compreen<strong>de</strong>r o comportamento <strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res <strong>de</strong><br />
música: é o caso <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Kaminski e Pra<strong>do</strong> (2005), <strong>de</strong>stacaram haver uma relação<br />
entre os valores <strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res e os benefícios e atributos percebi<strong>do</strong>s no<br />
produto musical: no caso, um som agressivo, com mensagens <strong>de</strong> reflexão e alusivo<br />
à rebeldia era valoriza<strong>do</strong> pelo público jovem por induzir a animação, <strong>de</strong>scontração,
euforia e agitação. Semelhante foi o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> por Barros et al. (2008),<br />
que procuraram compreen<strong>de</strong>r o comportamento <strong>de</strong> consumi<strong>do</strong>res <strong>de</strong> música na<br />
Internet por meio <strong>do</strong> consumo digital (<strong>do</strong>wnload) ilegal <strong>de</strong> materiais fonográficos,<br />
fenômeno este inseri<strong>do</strong> no quadro <strong>do</strong> que foi <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> como “pirataria virtual”.<br />
Já Carvalho, Hemais e Motta (2001), enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o momento da entrega <strong>de</strong> um<br />
serviço como um espetáculo teatral promovi<strong>do</strong> pela organização, procuraram estudar<br />
o comportamento <strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res nesse momento em relação à música<br />
que compunha a ambiência <strong>do</strong> cenário em que se realizam as entregas <strong>de</strong> serviços.<br />
Há também trabalhos exploran<strong>do</strong> o uso <strong>de</strong> ferramentas <strong>de</strong> gestão da produção no<br />
<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> produtos musicais: Cota Júnior e Cheng (2006), por exemplo,<br />
estudaram a aplicação <strong>do</strong> planejamento e controle da produção (PCP) no <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> toques musicais para telefone celular. Já outros estu<strong>do</strong>s focam-se<br />
nos meios <strong>de</strong> comercialização da música: Yamatogi, Nantes e Lucente (2001) realizaram<br />
um estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> casos múltiplos, em três empresas, sobre o comércio eletrônico<br />
(e-commerce) <strong>de</strong> discos <strong>de</strong> música (CDs), mostran<strong>do</strong> que, à época, as vendas<br />
<strong>de</strong> tais produtos pela Internet representavam <strong>de</strong> 4 a 10% das vendas totais nas empresas<br />
pesquisadas. Outro trabalho investigou aspectos logísticos no varejo virtual<br />
(e-Commerce B2C, business-to-consumer) <strong>de</strong> CDs, exploran<strong>do</strong> aspectos como<br />
tempos <strong>de</strong> ciclo, ou seja, o tempo total <strong>de</strong> entrega <strong>do</strong>s produtos encomenda<strong>do</strong>s via<br />
Internet (Uehara, 2001). Há ainda trabalhos que discorrem sobre as mudanças tecnológicas,<br />
genericamente, discutin<strong>do</strong> exemplos como a transição das fitas cassetes<br />
e CDs para os DVDs como mídias portáteis <strong>de</strong> conteú<strong>do</strong>s musicais (Monserrat<br />
Neto, 1997). O estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Filgueiras e Silva (2002), que analisaram panoramicamente<br />
as grava<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> música no Brasil, <strong>de</strong>stacou que a indústria fonográfica brasileira<br />
sofre ameaças <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a fatores como a pirataria e o <strong>do</strong>wnload virtual gratuito<br />
<strong>de</strong> músicas, a ambiguida<strong>de</strong> estratégica <strong>de</strong> várias grava<strong>do</strong>ras, a ausência <strong>de</strong> marketing<br />
<strong>de</strong> marca, a falta <strong>de</strong> relacionamento com consumi<strong>do</strong>res finais e artistas e o<br />
gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconhecimento a respeito <strong>de</strong> como os CDs são atualmente consumi<strong>do</strong>s.<br />
Estu<strong>do</strong> interessante a se <strong>de</strong>stacar na área que po<strong>de</strong> ser chamada <strong>de</strong> engenharia <strong>de</strong><br />
produção <strong>do</strong> entretenimento é aquele relaciona<strong>do</strong> à ca<strong>de</strong>ia produtiva ou ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
valor em grupos musicais in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. Menezes et al. (2006) estudaram a ca<strong>de</strong>ia<br />
<strong>de</strong> valor <strong>de</strong> uma banda <strong>de</strong> rock, enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a música como um produto processa<strong>do</strong><br />
ao longo <strong>de</strong> uma ampla ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s estratégicas, em que a cada etapa agregase<br />
valor por meio da vantagem competitiva em relação aos concorrentes. Essa ca<strong>de</strong>ia<br />
produtiva envolveria <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a criação musical, na qual a o grupo musical é o cerne,<br />
até materialização <strong>do</strong> produto (música) por meio <strong>de</strong> gravações, sua divulgação e<br />
distribuição e o encantamento <strong>do</strong> público.2<br />
1.2. Emergência <strong>de</strong> estilos musicais<br />
Neste campo, po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>stacar o interessante tema <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Kirschbaum<br />
(2006), que explorou como se <strong>de</strong>u a introdução da Bossa Nova, um estilo musical<br />
527
528<br />
brasileiro — portanto, periférico, outsi<strong>de</strong>r para a crítica musical internacional —<br />
como espécie <strong>de</strong> Jazz, um estilo já na condição <strong>de</strong> establishment para a crítica. Dentre<br />
outros aspectos, notou-se que a legitimação internacional da Bossa Nova foi<br />
proporcional à quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gravações que procuraram aproximá-la <strong>do</strong> Jazz.<br />
1.3. Gestão <strong>de</strong> carreiras e música<br />
As diversas carreiras musicais são um rico campo <strong>de</strong> investigação, seja pelas peculiarida<strong>de</strong>s<br />
<strong>do</strong> merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho artístico, seja pelas peculiarida<strong>de</strong>s da formação<br />
e atuação <strong>de</strong>sse profissional. Exemplo <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> <strong>de</strong>sse tema é o trabalho <strong>de</strong> Kirschbaum<br />
e Vasconcelos (2005), que focaram o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> Jazz norte-americano entre<br />
1930 e 1969, relacionan<strong>do</strong> os padrões típicos <strong>de</strong> carreira nesse campo às suas transformações<br />
estilísticas e às necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> adaptação à competitivida<strong>de</strong> <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>.<br />
1.4. Música no ambiente <strong>de</strong> trabalho/ música e qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida no trabalho<br />
Há estu<strong>do</strong>s que citam aspectos sobre a utilização da música em diversos ambientes<br />
laborais. Quanto ao espaço <strong>de</strong> um consultório o<strong>do</strong>ntológico, por exemplo, Moraes<br />
et al. (2004), ao refletirem sobre o trabalho <strong>do</strong> o<strong>do</strong>ntopediatra, colocaram que o<br />
atendimento a seus clientes (crianças) po<strong>de</strong> envolver uma série <strong>de</strong> estímulos visuais<br />
e sonoros que <strong>de</strong>sviem a atenção da criança-paciente da região bucal, na qual o <strong>de</strong>ntista<br />
está trabalhan<strong>do</strong>; segun<strong>do</strong> os autores, a música a<strong>de</strong>quada é um elemento importante<br />
para que o tratamento se torne mais agradável e o paciente, menos tenso.<br />
Ao estudarem as condições ergonômicas <strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntistas da re<strong>de</strong> pública<br />
e <strong>do</strong> setor priva<strong>do</strong>, Santos et al. (2007) <strong>de</strong>stacaram que apenas no serviço público<br />
verificou-se a presença <strong>de</strong> música na sala <strong>de</strong> atendimento clínico, o que foi consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong><br />
pelos profissionais entrevista<strong>do</strong>s e por pesquisa<strong>do</strong>res como “fator que contribui<br />
para diminuição <strong>do</strong> stress e ansieda<strong>de</strong> durante o atendimento a pacientes com<br />
alguma aversão à ‘ca<strong>de</strong>ira <strong>do</strong> <strong>de</strong>ntista’. Uma das <strong>de</strong>ntistas entrevistadas comentou<br />
que o trabalho com música é bom porque <strong>de</strong>ixa o paciente mais relaxa<strong>do</strong>” (Santos<br />
et al., 2007, p. 6). Passan<strong>do</strong> a outro setor, Timossi, Francisco e Michaloski (2006),<br />
ao estudarem a implementação <strong>de</strong> um programa ergonômico <strong>de</strong> ginástica laboral<br />
em um órgão público <strong>do</strong> governo fe<strong>de</strong>ral brasileiro, <strong>de</strong>stacaram o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> um trabalho <strong>de</strong> relaxamento, prevenção e combate ao estresse com a utilização<br />
<strong>de</strong> música, exercícios respiratórios e dinâmicas <strong>de</strong> grupo. Já Lima (1998), estudan<strong>do</strong><br />
os temas da mobilização subjetiva, <strong>do</strong> controle disciplinar e da eficiência produtiva<br />
em indústrias <strong>de</strong> processos contínuos (IPCs), relatou um caso em que o uso da música<br />
(rádio) nas salas <strong>de</strong> controle, que era visto como uma concessão por parte da<br />
empresa, passou a ser proibi<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> que os opera<strong>do</strong>res “Apenas dizem que não<br />
atrapalha o seu trabalho, mas não po<strong>de</strong>m argumentar contra a <strong>de</strong>cisão da chefia (e<br />
seu po<strong>de</strong>r disciplinar) dizen<strong>do</strong> como e porque a música é também operacional e<br />
parte integrante da ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> controle <strong>do</strong> processo” (Lima, 1998, p.6).<br />
Também po<strong>de</strong>ria ser inserida nesta linha <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s a pesquisa <strong>de</strong> Pereira et al.<br />
(2005), que estudaram a qualida<strong>de</strong> da prestação <strong>de</strong> serviço <strong>de</strong> transporte público co-
letivo por uma empresa <strong>de</strong> ônibus, <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong> o quesito “conforto versus ruí<strong>do</strong>” e<br />
concluin<strong>do</strong> que: “Provavelmente, se fossem feitas avaliações <strong>de</strong> limite <strong>de</strong> <strong>de</strong>cibéis,<br />
seriam ultrapassa<strong>do</strong>s os 85 db permiti<strong>do</strong>s por lei, algo que com certeza influencia<br />
diretamente no quesito conforto” (Pereira et al., 2005, p. 1675).<br />
Outro campo que se <strong>de</strong>staca é o estu<strong>do</strong> da interrelação música-qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida no<br />
trabalho. Normalmente, as abordagens referem-se a ativida<strong>de</strong>s musicais <strong>de</strong> caráter<br />
sociocultural <strong>de</strong>senvolvidas para a motivação <strong>de</strong> funcionários em empresas. Há,<br />
porém, uma outra perspectiva possível: a <strong>de</strong> se estudar a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida no trabalho<br />
<strong>do</strong> próprio músico, tema da pesquisa <strong>de</strong> El-Aouar e Souza (2003).<br />
1.5. Ergonomia no trabalho <strong>do</strong> intérprete musical<br />
Nos <strong>do</strong>is congressos brasileiros pesquisa<strong>do</strong>s foi encontra<strong>do</strong> apenas um trabalho referente<br />
a este tema: Paixão (1998) avaliou <strong>do</strong> nível <strong>de</strong> pressão sonora nas apresentações<br />
<strong>de</strong> grupos musicais gaúchos, visan<strong>do</strong> à saú<strong>de</strong> <strong>do</strong>s músicos e da comunida<strong>de</strong>.<br />
Destacou que, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> aos avanços da eletrônica e ao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong>s sistemas<br />
<strong>de</strong> amplificação sonora, “a música, tantas vezes associada ao divertimento, à sensibilida<strong>de</strong>,<br />
ao congraçamento entre as pessoas, passou a ser executada e/ou ouvida a<br />
níveis cada vez mais eleva<strong>do</strong>s, causan<strong>do</strong> sérios prejuízos aos músicos (enquanto trabalha<strong>do</strong>res)<br />
e à comunida<strong>de</strong> (enquanto platéia e/ou mora<strong>do</strong>ra da vizinhança)” (Paixão,<br />
1998, p. 4), como a perda auditiva induzida por ruí<strong>do</strong> (PAIR). Na pesquisa<br />
empírica, a autora relatou que os grupos musicais pesquisa<strong>do</strong>s no esta<strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> Sul costumam passar <strong>do</strong>s níveis <strong>de</strong> ruí<strong>do</strong> indica<strong>do</strong>s pelas normas <strong>de</strong> sossego público,<br />
seus músicos têm prolongada exposição (cerca <strong>de</strong> cinco horas sem interrupção)<br />
a altos níveis sonoros, não possuem tempo e espaço a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> para <strong>de</strong>scansos<br />
auditivos durante as apresentações e não usam qualquer equipamento <strong>de</strong> proteção<br />
auditiva.<br />
1.6. Educação musical a distância/ música e tecnologias da informação<br />
e comunicação (TICs)<br />
A educação musical a distância, como a educação a distância em geral, é tema <strong>do</strong>s<br />
que mais têm atraí<strong>do</strong> atenção e provoca<strong>do</strong> <strong>de</strong>bates na atualida<strong>de</strong>. No âmbito da<br />
música, o ensino a distância é possível em diversos níveis, o leva ao surgimento até<br />
<strong>de</strong> cursos superiores <strong>de</strong> música a distância (nesses casos, a qualida<strong>de</strong> é bastante questionável).<br />
Quanto ao uso da música em interação com as tecnologias da informação e comunicação<br />
(TICs), Fleury (2003), que estu<strong>do</strong>u iniciativas <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conhecimento<br />
(<strong>de</strong>finidas vagamente como “espaços on<strong>de</strong> ocorrem trocas <strong>de</strong> informações e experiências<br />
entre profissionais”, p. 1), citou um projeto social que envolve a iniciativa<br />
<strong>de</strong> montagem <strong>de</strong> um pequeno estúdio musical, o qual procura mostrar-se como ferramenta<br />
digital para a criação <strong>de</strong> música <strong>do</strong> usuário pelo computa<strong>do</strong>r.<br />
529
530<br />
1.7. Gestão <strong>de</strong> organizações <strong>do</strong> terceiro setor <strong>de</strong> caráter sociocultural<br />
A gestão <strong>de</strong> organizações não governamentais (ONGs) é tema <strong>de</strong> emergente interesse<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1990. Gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>ssas organizações mantém projetos<br />
socioculturais, quase sempre envolven<strong>do</strong> a educação musical. Santos (2009), por<br />
exemplo, em trabalho <strong>de</strong> formatura em Engenharia <strong>de</strong> Produção estu<strong>do</strong>u a gestão<br />
no terceiro setor, ten<strong>do</strong> como referencial o Instituto Baccarelli, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São<br />
Paulo, associação civil sem fins lucrativos que mantém orquestras e coros volta<strong>do</strong>s<br />
ao atendimento da comunida<strong>de</strong> carente <strong>de</strong> Heliópolis, em São Paulo.<br />
1.8. Gestão <strong>de</strong> instituições educativo-musicais: conservatórios,<br />
escolas <strong>de</strong> música, faculda<strong>de</strong>s<br />
Estu<strong>do</strong>s interessantes po<strong>de</strong>riam ser realiza<strong>do</strong>s sobre a gestão <strong>de</strong> instituições educativo-musicais,<br />
pois seus dirigentes são, geralmente, músicos com pouca ou nenhuma<br />
informação sobre administração <strong>de</strong> empresas ou engenharia <strong>de</strong> produção, o que os<br />
faz <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> aplicar fundamentos essenciais na administração <strong>de</strong> organizações,<br />
como aqueles referentes à gestão <strong>de</strong> recursos humanos.<br />
Entretanto, o único estu<strong>do</strong> que se aproxima <strong>de</strong>ste campo <strong>de</strong> pesquisa encontra<strong>do</strong><br />
nos anais <strong>do</strong>s congressos pesquisa<strong>do</strong>s é um trabalho sobre governo eletrônico (egov),<br />
que analisou o sites <strong>de</strong> instituições ligadas ao governo <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> Pernambuco,<br />
<strong>de</strong>ntre os quais o site <strong>do</strong> Conservatório Pernambucano <strong>de</strong> Música (Lemos,<br />
Alencar e Costa, 2006).<br />
1.9. Ativida<strong>de</strong>s socioculturais em projetos comunitários<br />
Diversas são as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> projetos socioculturais envolven<strong>do</strong><br />
música. Esses projetos po<strong>de</strong>m ser viabiliza<strong>do</strong>s pelo Esta<strong>do</strong> ou por organizações<br />
como as universida<strong>de</strong>s (na área <strong>de</strong> extensão universitária) e as empresas<br />
(<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> programas <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida no trabalho ou como iniciativa <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong><br />
social corporativa ou sustentabilida<strong>de</strong> sociocultural). Entretanto,<br />
apesar da possibilida<strong>de</strong> principalmente da última abordagem (empresarial) para se<br />
<strong>de</strong>senvolver estu<strong>do</strong>s na área <strong>de</strong> administração ou engenharia <strong>de</strong> produção, apenas<br />
um trabalho que se aproxima <strong>do</strong> tema foi encontra<strong>do</strong> nos anais <strong>do</strong>s eventos pesquisa<strong>do</strong>s:<br />
Pena Júnior, Graciano e Válery (2005), refletin<strong>do</strong> sobre universida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>senvolvimento<br />
local, citaram um projeto que promove aulas <strong>de</strong> esportes, música e<br />
outras ativida<strong>de</strong>s artísticas para crianças <strong>de</strong> sete a quinze anos. Esse projeto é viabiliza<strong>do</strong><br />
pela Fe<strong>de</strong>ração das Indústrias <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Ceará (FIEC), especificamente<br />
pelo Grupo <strong>de</strong> Ação em Responsabilida<strong>de</strong> Social (GARS), e também pelo Sindicato<br />
da Indústria <strong>de</strong> Panificação e Confeitaria <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Ceará (SINDPAN).<br />
1.10. Percepção e cognição musical<br />
Este é um tema que dificilmente po<strong>de</strong>ria relacionar-se à administração <strong>de</strong> empresas<br />
ou à engenharia <strong>de</strong> produção. Entretanto, foi o foco da pesquisa <strong>de</strong> Pelaez (2000),
<strong>de</strong>fendida como dissertação <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong> em Engenharia <strong>de</strong> Produção na área <strong>de</strong><br />
“mídia e conhecimento”. A autora estu<strong>do</strong>u os processos biológicos envolvi<strong>do</strong>s na<br />
percepção e cognição sonora, discutiu questões da física envolven<strong>do</strong> as ondas sonoras<br />
e por fim discutiu habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> “apren<strong>de</strong>r a conhecer, a fazer, a viver juntos<br />
e a ser através da música” (Pelaez, 2000, p. 150). Sem questionar o mérito <strong>do</strong> estu<strong>do</strong>,<br />
nota-se uma evi<strong>de</strong>nte ina<strong>de</strong>quação temática: a pesquisa po<strong>de</strong>ria ter si<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvida<br />
nas áreas <strong>de</strong> música, biologia, neurociência, medicina, fonoaudiologia, física<br />
(acústica) e até mesmo pedagogia ou na filosofia; na engenharia <strong>de</strong> produção, dificilmente.<br />
Na bibliografia não há sequer um autor da área <strong>de</strong> engenharia <strong>de</strong> produção,<br />
em que a tese foi <strong>de</strong>fendida.<br />
1.11. Gestão da qualida<strong>de</strong> e grupos musicais<br />
Dois enfoques são possíveis quan<strong>do</strong> se relaciona gestão da qualida<strong>de</strong> e grupos musicais:<br />
a gestão da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> próprio conjunto artístico e os impactos<br />
<strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong> artística na gestão da organização que ela integra. Santiago (2002),<br />
em dissertação <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong> em Engenharia <strong>de</strong> Produção, na área <strong>de</strong> “gestão da qualida<strong>de</strong>”,<br />
relatou ações <strong>de</strong> melhoria contínua da qualida<strong>de</strong> em uma “orquestra experimental”,<br />
concluin<strong>do</strong> ser bastante eficaz tal gestão em grupos musicais. Já<br />
Morelembaum (1999), em dissertação <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong> em musicologia, estu<strong>do</strong>u a influência<br />
da ativida<strong>de</strong> coral para programas <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> total em empresas, <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong><br />
que: “Essa visão holística, da qual o coral se utiliza amplamente, é um <strong>do</strong>s<br />
pilares da filosofia da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, inserida na filosofia da Qualida<strong>de</strong> Total”.<br />
(Morelembaum, 1999, p. 76)<br />
1.12. Gestão <strong>de</strong> competências e música/ educação musical<br />
Apesar da varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conceituações, as habilida<strong>de</strong>s e/ou as competências são conceitos<br />
altamente difundi<strong>do</strong>s, principalmente na pedagogia e na administração. Santiago<br />
(2006) procurou utilizar o conceito <strong>de</strong> gestão <strong>de</strong> competências para<br />
<strong>de</strong>senvolver um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> diagnóstico <strong>do</strong>s atributos <strong>do</strong> educa<strong>do</strong>r musical em cursos<br />
<strong>de</strong> graduação em música. A pesquisa foi <strong>de</strong>fendida como tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> em<br />
Engenharia <strong>de</strong> Produção, na área <strong>de</strong> “gestão da qualida<strong>de</strong>”. A título <strong>de</strong> simplificação<br />
para a análise da a<strong>de</strong>quação temática <strong>de</strong>ste trabalho, nota-se que a tese tem no<br />
total (com apêndices) 315 páginas, sen<strong>do</strong> que sem os apêndices a tese tem 250 páginas.<br />
De uma revisão bibliográfica <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 160 páginas, apenas 13 páginas são<br />
<strong>de</strong>dicadas a um tema que po<strong>de</strong> ser classifica<strong>do</strong> como pertinente à engenharia <strong>de</strong><br />
produção, justamente aos conceitos <strong>de</strong> “competências” e “gestão <strong>de</strong> competências”.<br />
O restante da revisão <strong>de</strong> literatura traz aspectos elementares da história da música<br />
e da educação musical (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Grécia Antiga), além <strong>de</strong> concepção <strong>de</strong> diversos autores<br />
da educação musical sobre o que <strong>de</strong>ve saber um músico ou um educa<strong>do</strong>r musical.<br />
De uma extensa bibliografia, menos <strong>de</strong> 10 trabalhos são da área <strong>de</strong> engenharia<br />
<strong>de</strong> produção ou administração. Em dissertação <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong> em música, Teixeira<br />
531
532<br />
(2005) utilizou-se <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> competências e realizou estu<strong>do</strong>s junto a três coros<br />
<strong>de</strong> empresas para concluir quais seriam as competências necessárias aos regentes<br />
<strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> grupo musical: concluiu que essas competências seriam: ter formação<br />
musical, tocar um instrumento harmônico (eg. piano) e ser flexível. A bibliografia<br />
sobre competências, <strong>de</strong>senvolvida nas áreas <strong>de</strong> pedagogia, educação musical, administração<br />
<strong>de</strong> empresas e engenharia <strong>de</strong> produção, foi composta por cerca <strong>de</strong> 10 trabalhos.<br />
1.13. Música e qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida no trabalho<br />
Os já cita<strong>do</strong>s trabalhos <strong>de</strong> Morelembaum (1999) e Teixeira (2005), por investigarem<br />
o coro <strong>de</strong> empresa, acabam investigan<strong>do</strong> a relação <strong>de</strong>stes grupos com a qualida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> vida no trabalho, que se insere principalmente na prescrição <strong>de</strong> Deming<br />
(1990) <strong>de</strong> que a empresa expulse o me<strong>do</strong>, encoraje a criativida<strong>de</strong> e os méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />
solução <strong>de</strong> problemas. Morelembaum (1999, p. 57) <strong>de</strong>staca que o coro, como espaço<br />
<strong>de</strong> iniciação musical, representa uma forma <strong>de</strong> lazer e po<strong>de</strong> “contribuir para uma<br />
mudança <strong>de</strong> comportamento, ou seja, para o surgimento espontâneo da disciplina,<br />
da receptivida<strong>de</strong>, da alegria e <strong>do</strong> companheirismo entre as pessoas”. Já Teixeira<br />
(2005), baseada na sociologia <strong>do</strong> lazer e <strong>do</strong> tempo livre, procura compreen<strong>de</strong>r o<br />
coro <strong>de</strong> empresa como estratégia <strong>de</strong> gestão <strong>de</strong> recursos humanos.<br />
1.14. A música e sua relação com a administração <strong>de</strong> empresas<br />
(aspectos da intuição, improvisação, etc.)<br />
A utilização <strong>de</strong> metáforas <strong>do</strong> campo musical na literatura e no cotidiano da administração<br />
<strong>de</strong> empresas já é notória. Depen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>do</strong> tema administrativo, escolhese<br />
um aspecto <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> trabalho musical, normalmente visto sob a ótica <strong>do</strong><br />
senso comum social: a li<strong>de</strong>rança é associada ao regente; o trabalho em grupo, a uma<br />
orquestra ou coro; a criativida<strong>de</strong>, a improvisação e a flexibilida<strong>de</strong>, à própria ativida<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> compositor ou intérprete musical (principalmente aos músicos <strong>de</strong> jazz).<br />
Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que as tradicionais prescrições da literatura administrativa <strong>de</strong> planejar,<br />
controlar e padronizar não são possíveis em diversas situações <strong>do</strong> cotidiano<br />
empresarial, que exigem, portanto, improvisação por parte <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r, Flach<br />
e Antonello (2008) <strong>de</strong>stacaram várias metáforas a partir das artes: a) o tempo influencia<br />
o processo <strong>de</strong> improvisação; b) a improvisação trabalha com a bricolagem;<br />
c) a improvisação parte <strong>de</strong> estruturas mínimas; d) as pausas e o silêncio também<br />
fazem parte <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> improvisação; e) a improvisação po<strong>de</strong> ser individual ou<br />
coletiva; f) a improvisação po<strong>de</strong> estar baseada em clichês e em repetição ou variação<br />
<strong>de</strong> temas; g) o erro é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> parte da improvisação; h) a improvisação em<br />
conjunto exige negociação e diálogos contínuos; i) a performance é essencial no ato<br />
<strong>de</strong> improvisação.<br />
Rocha (2001), que estu<strong>do</strong>u o uso <strong>do</strong> pensamento lógico-racional, da intuição e da<br />
criativida<strong>de</strong> por administra<strong>do</strong>res <strong>de</strong> duas gran<strong>de</strong>s empresas brasileiras, concluiu<br />
que os <strong>do</strong>is últimos tipos <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong> intelectual prevaleceram nos três primeiros
anos <strong>de</strong> operação das empresas, a partir daí prevalecen<strong>do</strong> a lógica e a razão. A autora<br />
cita Fisher, que <strong>de</strong>screve o perfil arroja<strong>do</strong> <strong>de</strong> executivos i<strong>de</strong>ais que aproveitam sua<br />
intuição e<br />
solucionam problemas <strong>de</strong> maneira confiante e não-convencional; [. . .] apreciam<br />
música e leitura e se envolvem profundamente com temas abstratos, tais como<br />
verda<strong>de</strong>, beleza, valores maiores; possuem uma confiança cega em si mesmos;<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m com muita convicção as idéias que apóiam, arriscam e acreditam que<br />
é necessário arriscar sempre, para se obter o máximo da vida; [. . .] não sentem insegurança<br />
nem me<strong>do</strong> <strong>de</strong> fazer gran<strong>de</strong>s mudanças em sua vida; são perspicazes,<br />
exigentes, confiantes, previ<strong>de</strong>ntes, informais, espontâneos, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e criativos.<br />
(Fisher apud Rocha, 2001, p. 4)<br />
Conclusões<br />
Estu<strong>do</strong>s sobre música e gestão <strong>de</strong> operações po<strong>de</strong>m trazer contribuições típicas da<br />
interdisciplinarida<strong>de</strong>. Por um la<strong>do</strong>, a ativida<strong>de</strong> musical po<strong>de</strong> ganhar em qualida<strong>de</strong><br />
no momento em que seus atores obtêm conhecimento <strong>de</strong> técnicas e conceitos <strong>de</strong><br />
gestão <strong>de</strong> operações (GO); e pesquisa<strong>do</strong>res <strong>de</strong> gestão po<strong>de</strong>m enriquecer seus estu<strong>do</strong>s<br />
e teorias ao entrarem em contato com o campo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s da arte. Além<br />
disso, a pesquisa interdisciplinar po<strong>de</strong> sofrer <strong>de</strong>ficiências <strong>de</strong> conteú<strong>do</strong>, já que dificilmente<br />
há profissionais qualifica<strong>do</strong>s para avaliar um estu<strong>do</strong> envolven<strong>do</strong> engenharia<br />
<strong>de</strong> produção, <strong>de</strong> gestão e <strong>de</strong> música; tanto trabalhos <strong>de</strong> pesquisa<strong>do</strong>res <strong>de</strong><br />
gestão <strong>de</strong> operações po<strong>de</strong>m revelar falta <strong>de</strong> conhecimentos suficientes na área <strong>de</strong><br />
música, como estu<strong>do</strong>s realiza<strong>do</strong>s por músicos po<strong>de</strong>m revelar um nível muito baixo<br />
<strong>de</strong> compreensão <strong>de</strong> conceitos da gestão. Isto faz alguns trabalhos mostrarem-se superficiais.<br />
Relativamente à revisão da literatura brasileira, muitos <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s menciona<strong>do</strong>s<br />
não mostram o que po<strong>de</strong> ser conceitua<strong>do</strong> como a interdisciplinarida<strong>de</strong>, uma vez<br />
que não exigem conhecimento <strong>de</strong> música e conhecimento <strong>de</strong> gestão: em geral, eles<br />
são apenas estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> gestão cujo tema é a música, e esses estu<strong>do</strong>s não exigem conhecimentos<br />
técnicos na área artística.<br />
Ainda sobre a pesquisa brasileira, é importante notar que alguns estu<strong>do</strong>s não foram<br />
seleciona<strong>do</strong>s já que não foram publica<strong>do</strong>s nos veículos pesquisa<strong>do</strong>s. Estes estu<strong>do</strong>s<br />
concentram-se principalmente em aspectos <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança, motivação, gestão <strong>de</strong> recursos<br />
humanos, organização <strong>do</strong> trabalho e gestão <strong>de</strong> competências nos grupos musicais<br />
(coros), e sobre as habilida<strong>de</strong>s e competências e outros aspectos <strong>de</strong> gestão <strong>do</strong><br />
trabalho <strong>do</strong> maestro (Fucci Amato, 2007, 2008, 2009; 2010; Fucci Amato, Amato<br />
Neto 2007a, 2007b, 2007c, 2008, 2009).<br />
Todas as abordagens possíveis sobre a música interface <strong>de</strong> gestão <strong>de</strong>scritas no presente<br />
<strong>do</strong>cumento são campos abertos esperan<strong>do</strong> um amplo <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong><br />
pesquisas.<br />
533
534<br />
1 Nissani (1997) rejeita esse caminho conceitual <strong>de</strong> se <strong>de</strong>finir vários tipos <strong>de</strong> interdisciplinarida<strong>de</strong>.<br />
2 Note-se a semelhança no título entre este artigo e o <strong>de</strong> Boyle (2004).<br />
Referências<br />
An<strong>de</strong>rson, Chris. The long tail. New York: McGrall-Hill, 2006.<br />
Barros, Denise; Sauerbronn, João; Darbilly, Leonar<strong>do</strong>; Costa, Alessandra. Pirataria, não!<br />
Resistência. Um estu<strong>do</strong> sobre as práticas <strong>de</strong> resistência <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r brasileiro <strong>de</strong> música<br />
digital. In: Encontro da Associação Nacional <strong>de</strong> Pós-Graduação e Pesquisa em Administração<br />
(EnANPAD), 32, 2008, Rio <strong>de</strong> Janeiro. <strong>Anais</strong>. . . Rio <strong>de</strong> Janeiro: ANPAD,<br />
2008.<br />
Bertalanffy, Ludwig Von. Teoria geral <strong>do</strong>s sistemas [General system theory]. Trad. Francisco<br />
M. Guimarães. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1977.<br />
Boyle, Stephen. Achieving community ownership: the case of a regional symphony orchestra.<br />
International Journal of Arts Management 6, n. 1 (2003), 9-18.<br />
———. And the band played on: professional musicians in military and service bands. International<br />
Journal of Arts Management 6, n. 3 ( 2004), 4-12.<br />
Brooks, Arthur C.; Kushner, Roland J. What makes an arts capital? Quantifying a city’s cultural<br />
environment. International Journal of Arts Management 5, n. 1, (2002), 12-23.<br />
Buhman, Charles; Kekre, Sun<strong>de</strong>r; Singhal, Jaya. Interdisciplinary and interorganizational research:<br />
establishing the science of enterprise networks. Production and Operations Management<br />
14, n. 4 ( 2005), 493-513.<br />
Caldwell, Clare; Hibbert, Sally A. The influence of music tempo and musical preference on<br />
restaurant patrons’ behavior. Psychology & Marketing 19, n.11 (2002), 895-917.<br />
Capra, Fritjof. O tao da física: um paralelo entre a física mo<strong>de</strong>rna e o misticismo oriental. Trad.<br />
José Fernan<strong>de</strong>s Dias. 9 ed. São Paulo: Cultrix, 1993.<br />
———. O ponto <strong>de</strong> mutação: a ciência, a socieda<strong>de</strong> e a cultura emergente. Trad. Álvaro Cabral.<br />
14 ed. São Paulo: Cultrix, 1995.<br />
Cardinal, Jacqueline; Lapierre, Laurent. Zarin Mehta and the New York Philharmonic. International<br />
Journal of Arts Management 6, n. 1 (2003), 64-73.<br />
Carù, Antonella; Cova, Bernard. The impact of service elements on the artistic experience:<br />
the case of classical music concerts. International Journal of Arts Management 7, n. 2<br />
(2005).<br />
Carvalho, José Luis; Hemais, Marcus Wilcox; Motta, Paulo Cesar. Do zen ao techno: as tribos<br />
<strong>de</strong> consumi<strong>do</strong>res e a música nos cenários <strong>de</strong> serviços. In: Encontro da Associação Nacional<br />
<strong>de</strong> Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (EnANPAD), 25., 2001,<br />
Campinas. <strong>Anais</strong>. . . Campinas: ANPAD, 2001.<br />
Churchman, C. West. Introdução à teoria <strong>do</strong>s sistemas [The systems approach]. 2 ed. Trad.<br />
Francisco M. Guimarães. Petrópolis: Vozes, 1972.<br />
Coloma, Darrell; Kleiner, Brian H. How can music be used in business? Management Research<br />
News 28, n. 11/12 ( 2005), 115-120.<br />
Côrtes, Mauro; Reis, Leonar<strong>do</strong>; Benze, Rachel; Delga<strong>do</strong>, Sven; Côrtes, Felipe. A cauda longa
e a mudança <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> negócio no merca<strong>do</strong> fonográfico: reflexões acerca <strong>do</strong> impacto<br />
das novas tecnologias. In: Encontro Nacional <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Produção<br />
(ENEGEP), 28., 2008, Rio <strong>de</strong> Janeiro. <strong>Anais</strong>. . . Rio <strong>de</strong> Janeiro: ABEPRO, 2008. pp. 1-13.<br />
Cota Júnior, Márcio; Cheng, Lin. Aplicação <strong>do</strong> QFD e <strong>do</strong> PCP a produtos digitais. In: Encontro<br />
Nacional <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Produção (ENEGEP), 26., 2006, São Paulo. <strong>Anais</strong>...<br />
Fortaleza: ABEPRO, 2006, pp. 1-9.<br />
Crema, Roberto. Introdução à visão holística: breve relato <strong>de</strong> viagem <strong>do</strong> velho ao novo paradigma.<br />
São Paulo: Summus, 1989.<br />
Chaney, Damien. What future for fan-fun<strong>de</strong>d labels in the music recording industry? the<br />
cases of My Major Company and ArtistShare. International Journal of Arts Management<br />
12, n. 2 ( 2010), 44-48.<br />
Deming, W. Edwards. Out of crisis. Boston: MIT, 1990.<br />
Descartes, René. ‘Discurso <strong>do</strong> méto<strong>do</strong>’. In: Descartes. São Paulo: Nova Cultural, 1999, pp.<br />
33-100.<br />
El-Aouar, Walid; Souza, Washington. Com músicos, com qualida<strong>de</strong> e com vida: contribuições<br />
teórico-meto<strong>do</strong>lógicas aos estu<strong>do</strong>s em qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida no trabalho (QVT). In:<br />
Encontro da Associação Nacional <strong>de</strong> Pós-Graduação e Pesquisa em Administração<br />
(EnANPAD), 27., 2003, Atibaia. <strong>Anais</strong>. . . Atibaia: ANPAD, 2003.<br />
El-Sawad, Amal; Korczynski, Marek. Management and Music: The Exceptional Case of the<br />
IBM songbook. Group & Organization Management 32, n. 1, pp. 79-108, 2007.<br />
Fairfield, Kent D.; Lon<strong>do</strong>n, Michael. Tuning into the music of groups: a metaphor for teambased<br />
learning in management education. Journal of Management Education 27, n. 6 (<br />
2003), 654-672.<br />
Filgueiras, Liesel; Silva, Jorge Ferreira da. Análise estratégica das grava<strong>do</strong>ras no brasil: posicionan<strong>do</strong><br />
a pirataria e a troca gratuita <strong>de</strong> música em formato MP3. In: Encontro da Associação<br />
Nacional <strong>de</strong> Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (EnANPAD), 26.,<br />
2002, Salva<strong>do</strong>r. <strong>Anais</strong>. . . Salva<strong>do</strong>r: ANPAD, 2002.<br />
Flach, Leonar<strong>do</strong>; Antonello, Claudia. Improvisação e aprendizagem nas organizações: reflexões<br />
a partir da metáfora da improvisação no teatro e na música. In: Encontro da Associação<br />
Nacional <strong>de</strong> Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (EnANPAD), 32.,<br />
2008, Rio <strong>de</strong> Janeiro. <strong>Anais</strong>. . . Rio <strong>de</strong> Janeiro: ANPAD, 2008.<br />
Fleury, André Leme. Re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conhecimento: aplicações temáticas e regionais. In: Encontro<br />
Nacional <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Produção (ENEGEP), 23, 2003, Ouro Preto. <strong>Anais</strong>...<br />
Ouro Preto: ABEPRO/ UFOP, 2003, pp. 1-8.<br />
Fucci Amato, Rita <strong>de</strong> Cássia. O trabalho <strong>do</strong> regente como administra<strong>do</strong>r e a perspectiva organizacional<br />
<strong>do</strong> canto coral: contribuições interdisciplinares para administra<strong>do</strong>res e regentes.<br />
Pesquisa <strong>de</strong> Pós-Doutora<strong>do</strong> FAPESP — Departamento <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Produção<br />
EESC-USP. 2010.<br />
———. Música e políticas socioculturais: a contribuição <strong>do</strong> canto coral para a inclusão social.<br />
Opus 15, n. 1 (2009).<br />
———. Habilida<strong>de</strong>s e competências na prática da regência coral: um estu<strong>do</strong> exploratório.<br />
Revista da ABEM 19 (2008), 15-26.<br />
———. O canto coral como prática sócio-cultural e educativo-musical. Opus 13, n. 1 ( 2007),<br />
75-96.<br />
535
536<br />
——— ; Amato Neto, João. Organização <strong>do</strong> trabalho e gestão <strong>de</strong> competências: uma análise<br />
<strong>do</strong> papel <strong>do</strong> regente coral. GEPROS. Gestão da Produção, Operações e Sistemas 2, n. 5<br />
(2007a), 89-98.<br />
——— ; ———. Choir conducting: human resources management and organization of the<br />
work. In: Annual Conference of The Production and Operations Management Society<br />
(POMS), 18., 2007, Dallas. POM 2007 — Proceedings. Dallas/ Miami: POMS/ Florida<br />
International University, 2007b. pp. 01-21.<br />
——— ; ———. Regência coral: organização e administração <strong>do</strong> trabalho em corais In: Congresso<br />
da Associação Nacional <strong>de</strong> Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM), 17.,<br />
2007, São Paulo. <strong>Anais</strong> — A pesquisa em música e sua interação na socieda<strong>de</strong>. São Paulo:<br />
ANPPOM/ IA-UNESP, 2007c. pp. 01-12.<br />
——— ; ———. The role of the choir conductor in motivating his group: conceptual revision,<br />
suggestions, and a perspective of music un<strong>de</strong>rgraduate stu<strong>de</strong>nts In: Annual Production<br />
and Operations Management Society (POMS) Conference, 19., 2008, La Jolla.<br />
Proceedings. La Jolla/ Portland: POMS/ University of Oregon, 2008. pp. 01-24.<br />
——— ; ———. A motivação no canto coral: perspectivas para a gestão <strong>de</strong> recursos humanos<br />
em música. Revista da ABEM 22, 2009.<br />
Furnham, Adrian; Bradley, Anna. Music while you work: the differential distraction of background<br />
music on the cognitive test performance of introverts and extraverts. Applied<br />
cognitive psychology 11, n. 5 (1997), 445-455.<br />
Gadamer, Hans-Georg. Verdad y méto<strong>do</strong>: fundamentos <strong>de</strong> una hermenéutica filosófica. Salamanca:<br />
Sígueme, 1977.<br />
Hausmann, Andrea. German artists between Bohemian i<strong>de</strong>alism and entrepreneurial dynamics:<br />
reflections on cultural entrepreneurship and the need for start-up management.<br />
International Journal of Arts Management 12, n. 2 (2010), 17-29.<br />
Hill, Charles W. L. Digital piracy: Causes, consequences, and strategic responses. Asia Pacific<br />
Journal of Management 24, n. 1 (2007), 9-25.<br />
Huutoniemi, Katri; Klein, Julie Thompson; Bruun, Henrik; Hukkinen, Janne. Analyzing<br />
interdisciplinarity: Typology and indicators. Research Policy 39, n. 1 (2010), 79–88.<br />
Kaminski, Sérgio; Pra<strong>do</strong>, Paulo. O Consumo <strong>de</strong> Música Segun<strong>do</strong> o Mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Ca<strong>de</strong>ias<br />
Meios-fim: uma Aplicação da Association Pattern Technique (APT). In: Encontro da<br />
Associação Nacional <strong>de</strong> Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (EnANPAD), 29.,<br />
2005, Brasília. <strong>Anais</strong>. . . Brasília: ANPAD, 2005.<br />
Kirschbaum, Charles. How <strong>do</strong> outsi<strong>de</strong>r styles become legitimated? The introduction of<br />
Bossa Nova in the Jazz field. In: Encontro da Associação Nacional <strong>de</strong> Pós-Graduação e<br />
Pesquisa em Administração (EnANPAD), 30., 2006, Salva<strong>do</strong>r. <strong>Anais</strong>. . . Salva<strong>do</strong>r:<br />
ANPAD, 2006.<br />
———. ; Vasconcelos, Flávio. Career Dynamics in Normative and Competitive Fields: The<br />
American Jazz’s Case. In: Encontro da Associação Nacional <strong>de</strong> Pós-Graduação e Pesquisa<br />
em Administração (EnANPAD), 29., 2005, Brasília. <strong>Anais</strong>. . . Brasília: ANPAD,<br />
2005.<br />
Klein, Julie Thompson. Interdisciplinarity: history, theory, and practice. Detroit: Wayne State<br />
University Press, 1990.<br />
Korczynski, Marek. Music and meaning on the factory floor. Work and Occupations 34, n.<br />
3 (2007), 253-289.
Kuhn, Thomas S. A estrutura das revoluções. São Paulo: Perspectiva, 1981.<br />
Lemos, Daisy; Alencar, Luciana; Costa, Ana Paula. E-Gov: uma Análise <strong>do</strong>s Sites Estaduais<br />
<strong>de</strong> Pernambuco. In: Encontro Nacional <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Produção (ENEGEP), 26.,<br />
2006, São Paulo. <strong>Anais</strong>. . . Fortaleza: ABEPRO, 2006. pp. 1-9.<br />
Lesiuk, Teresa; Pons, Alexan<strong>de</strong>r; Polak, Peter. Personality, mood and music listening of<br />
computer information systems <strong>de</strong>velopers: implications for quality-of-work. Information<br />
Resources Management Journal 22, n. 2 (2009), 83-97.<br />
Lima, Francisco <strong>de</strong> Paula Antunes. Patologias das novas tecnologias. In: Encontro Nacional<br />
<strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Produção (ENEGEP), 18., 1998, Niterói. <strong>Anais</strong>. . . Niterói: UFF/ ABE-<br />
PRO, 1998. pp. 1-8.<br />
Mattos, Pedro Lincoln. “Administração: Ciência ou Arte”: o que po<strong>de</strong>mos apren<strong>de</strong>r com<br />
este mal-entendi<strong>do</strong>. In: Encontro da Associação Nacional <strong>de</strong> Pós-Graduação e Pesquisa<br />
em Administração (EnANPAD), 32., 2008, Rio <strong>de</strong> Janeiro. <strong>Anais</strong>. . . Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
ANPAD, 2008.<br />
Mehta, Zarin. Managing the New York Philharmonic in today’s world. International Journal<br />
of Arts Management 5, n. 3 (2003), 4-11.<br />
Menezes, Danilo; Lima, Vitor; Kamel, José Augusto; Quelhas, Osval<strong>do</strong>. É assim que a banda<br />
toca: mo<strong>de</strong>lagem da ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> valor da ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma banda <strong>de</strong> música in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte.<br />
In: Encontro Nacional <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Produção (ENEGEP), 26., 2006, São Paulo.<br />
<strong>Anais</strong>. . . Fortaleza: ABEPRO, 2006. pp. 1-8.<br />
Miksza, Peter; Roe<strong>de</strong>r, Matthew; Biggs, Dana. Surveying Colora<strong>do</strong> band directors’ opinions<br />
of skills and characteristics important to successful music teaching. Journal of Research<br />
in Music Education 57, n. 4 (2010), 364-381.<br />
Monserrat Neto, José. Moldagem social da tecnologia. In: Encontro Nacional <strong>de</strong> Engenharia<br />
<strong>de</strong> Produção (ENEGEP), 17., 1997, Grama<strong>do</strong>. <strong>Anais</strong>. . . Porto Alegre: UFRGS.<br />
PPGEP/ ABEPRO, 1997. pp. 1-8.<br />
Montanari, Fabio; Mizzau, Lorenzo. Influence of embed<strong>de</strong>dness and social mechanisms on<br />
organizational performance in the musical industry: the case of Mescal Music. International<br />
Journal of Arts Management 10, n. 1 (2007), 32-44.<br />
Moraes, André; Moraes, Jorge; Moraes, Renita; Macha<strong>do</strong>, Simone; Possamai, Osmar. A ergonomia<br />
e a ativida<strong>de</strong> laboral <strong>do</strong> o<strong>do</strong>ntopediatra como um fator indutor <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e educação.<br />
In: Encontro Nacional <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Produção (ENEGEP), 24., 2004,<br />
Florianópolis. <strong>Anais</strong>. . . Florianópolis: ABEPRO/UFSC, 2004. pp. 2377-2383.<br />
Morelenbaum, Eduar<strong>do</strong>. Coral <strong>de</strong> empresa: um valioso componente para o projeto <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong><br />
total. 1999. Dissertação (Mestra<strong>do</strong> em Música) — Conservatório Brasileiro <strong>de</strong> Música,<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
Nissani, Moti. Ten cheers for interdisciplinarity: the case for interdisciplinary knowledge<br />
and research. The Social Science Journal v, n. 2 (2007), 201-216.<br />
Nopper, Anja; Lapierre, Laurent. Tony Hall and the Royal Opera House, Covent Gar<strong>de</strong>n.<br />
International Journal of Arts Management 7, n. 2 (2005), 66-78.<br />
Nuttall, Pete. Thank you for the music? The role and significance of music for a<strong>do</strong>lescents.<br />
Young Consumers 9, n. 2 (2008), 104-111.<br />
Oakes, Steve. Musical tempo and waiting perceptions. Psychology & Marketing 20, v. 8<br />
(2003), 685-705.<br />
537
538<br />
Paixão, Dinara Xavier. Reflexões sobre a ergonomia aplicada à profissão <strong>de</strong> músico. In: Encontro<br />
Nacional <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Produção (ENEGEP), 18., 1998, Niterói. <strong>Anais</strong>. . . Niterói:<br />
UFF/ ABEPRO, 1998. pp. 1-7.<br />
Paleo, Iván Rosa; Wijnberg, Nachoem M. Classification of popular music festivals: a typology<br />
of festivals and an inquiry into their role in the construction of musical genres. International<br />
Journal of Arts Management 8, n. 2 (2006), 50-61.<br />
Papagiannidis, Savvas; Berry, Joanna. What has been learned from emergent music business<br />
mo<strong>de</strong>ls? International Journal of E-Business Research 3, n. 3 (2007), 25-39.<br />
Pelaez, Ney<strong>de</strong>. Um som e seus senti<strong>do</strong>s. 2000. Dissertação (Mestra<strong>do</strong> em Engenharia <strong>de</strong> Produção)<br />
— Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina, Florianópolis.<br />
Pena Júnior, Marcos; Graciano, Claudia; Válery, Françoise. Universida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>senvolvimento<br />
local: reflexões sobre pró-ativida<strong>de</strong> comunitária. In: Encontro Nacional <strong>de</strong> Engenharia<br />
<strong>de</strong> Produção (ENEGEP), 25., 2005, Porto Alegre. <strong>Anais</strong>. . . Porto Alegre: ABEPRO/ PUC-<br />
RS, 2005. pp. 4132-4139.<br />
Pereira, Salomão; Santos, André; Borsatto, Gabriela; Oliveira, Renata; Oliveira, Ana Júlia.<br />
Engenharia <strong>de</strong> produção e gestão pública: análise da eficiência no sistema <strong>de</strong> transporte<br />
coletivo <strong>de</strong> Belém. In: Encontro Nacional <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Produção<br />
(ENEGEP), 25., 2005, Porto Alegre. <strong>Anais</strong>. . . Porto Alegre: ABEPRO/ PUC-RS, 2005. pp.<br />
1669-1676.<br />
Plato. A República. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Difel, 1973. v. 1.<br />
Preece, Stephen. The performing arts value chain. International Journal of Arts Management<br />
8, n. 1 (2005), 21-32.<br />
Prichard, Craig; Korczynski, Marek; Elmes, Michael. Music at work: an introduction. Group<br />
& Organization Management 32, n. 1 (2007), 4-21.<br />
Rabinovich, Elliot; Maltz, Arnold; Sinhá, Rajiv K. Assessing markups, service quality, and<br />
product attributes in music CDs’ internet retailing. Production and Operations Management<br />
17, n. 3 (2008), 320-337.<br />
Ravanas, Philippe. Hitting a high note: the Chicago Symphony Orchestra reverses a <strong>de</strong>ca<strong>de</strong><br />
of <strong>de</strong>cline with new programs, new services and new prices. International Journal of Arts<br />
Management 10, n. 2 (2008), 68-87.<br />
Rocha, Rudimar. O pensamento racional lógico, a intuição e a criativida<strong>de</strong> no processo <strong>de</strong><br />
administração estratégica. In: Encontro Nacional <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Produção<br />
(ENEGEP), 21., 2001. <strong>Anais</strong>. . . Salva<strong>do</strong>r: ABEPRO/ UFBa, 2001. pp. 1-8.<br />
Ropo, Arja; Sauer, Erika. The success of Finnish conductors: grand narratives and small stories<br />
about global lea<strong>de</strong>rship. International Journal of Arts Management 9, n. 3 (2007),<br />
4-15.<br />
——— ; ———. Partnerships of orchestras: towards shared lea<strong>de</strong>rship. International Journal<br />
of Arts Management 5, n. 2 (2003), 44-55.<br />
Santiago, Glauber. Ações <strong>de</strong> melhoria contínua da qualida<strong>de</strong> na Orquestra Experimental da<br />
UFSCar. 2002. Dissertação (Mestra<strong>do</strong> em Engenharia <strong>de</strong> Produção) — Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> São Carlos, São Carlos.<br />
———. Uma proposta <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo para diagnóstico <strong>do</strong>s atributos <strong>do</strong> educa<strong>do</strong>r musical em projetos<br />
pedagógicos <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> licenciatura em música basea<strong>do</strong> na gestão <strong>de</strong> competências.<br />
2006. Tese (Doutora<strong>do</strong> em Engenharia <strong>de</strong> Produção) — Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> São<br />
Carlos, São Carlos.
Santos, Luiz Octávio Maluf. Mo<strong>de</strong>los e instrumentos <strong>de</strong> gestão no Terceiro Setor: estu<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
caso aplica<strong>do</strong> ao Instituto Baccarelli. 2009. Bachelor’s Degree Research (Production Engineering)<br />
— Escola <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> São Carlos, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, São Carlos.<br />
Santos, Vilma; Basilio, Francisco; Barreto, Renata; Oliveira, Emanuelle. Análise ergonômica<br />
das condições <strong>de</strong> trabalho <strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntistas: uma comparação entre a re<strong>de</strong> pública e o setor<br />
priva<strong>do</strong>. In: Encontro Nacional <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Produção (ENEGEP), 27.,<br />
2007, Foz <strong>do</strong> Iguaçu. <strong>Anais</strong>. . . Foz <strong>do</strong> Iguaçu: ABEPRO, 2007. pp. 1-9.<br />
Sicca, Luigi Maria; Zan, Luca. Much a<strong>do</strong> about management: managerial rhetoric in transformation<br />
of Italian opera houses. International Journal of Arts Management 7, n. 3<br />
(2005), 46-64.<br />
Silva, Edinice; Car<strong>do</strong>so, Olga. A função produção no teatro. In: Encontro Nacional <strong>de</strong><br />
Engenharia <strong>de</strong> Produção (ENEGEP), 24., 2004, Florianópolis. <strong>Anais</strong>. . . Florianópolis:<br />
ABEPRO/ UFSC, 2004. pp. 388-394.<br />
———. ; Andra<strong>de</strong>, Sílvia. Qualida<strong>de</strong> na produção <strong>de</strong> artes plásticas: lançan<strong>do</strong> um olhar na<br />
(<strong>de</strong>s)conexão entre o trabalho produtivo e o <strong>de</strong>senvolvimento pessoal. In: Encontro da<br />
Associação Nacional <strong>de</strong> Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (EnANPAD), 29.,<br />
2005, Brasília. <strong>Anais</strong>. . . Brasília: ANPAD, 2005.<br />
Smith, Anne W. San Francisco’s Chanticleer: an American tale of a cappella perfection and<br />
“policy governance”. International Journal of Arts Management 5, n. 1 (2002), 74-83.<br />
Teixeira, Lúcia Helena. Coros <strong>de</strong> empresa como <strong>de</strong>safio para a formação e a atuação <strong>de</strong> regentes<br />
corais: <strong>do</strong>is estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> caso. 2005. Dissertação (Mestra<strong>do</strong> em Música) — Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, Porto Alegre.<br />
Theo<strong>do</strong>ulou, Theo<strong>do</strong>ulos; Papagiannidis, Savvas. Still watching other people’s programmes?<br />
The case of current TV. International Journal of E-Business Research 5, n. 4 ( 2009),<br />
55-67.<br />
Timossi, Luciana; Francisco, Antonio Carlos De; Michaloski, Ariel. As dificulda<strong>de</strong>s e os fatores<br />
culturais no processo <strong>de</strong> implementação <strong>de</strong> um programa ergonômico e ginástica<br />
laboral em um órgão público fe<strong>de</strong>ral: um estu<strong>do</strong> e caso. In: Encontro Nacional <strong>de</strong> Engenharia<br />
<strong>de</strong> Produção (ENEGEP), 26., 2006, São Paulo. <strong>Anais</strong>. . . Fortaleza: ABEPRO, 2006.<br />
pp. 1-8.<br />
Tremblay, Johanne. Klaus Zehelein and the Stuttgart State Opera: when tradition and innovation<br />
go hand in hand. International Journal of Arts Management 6, n. 3 (2004), 60-<br />
67.<br />
Uehara, Leonar<strong>do</strong>. Evolução <strong>do</strong> <strong>de</strong>sempenho logístico no varejo virtual <strong>do</strong> Brasil. In: Encontro<br />
Nacional <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Produção (ENEGEP), 21., 2001. <strong>Anais</strong>. . . Salva<strong>do</strong>r:<br />
ABEPRO/ UFBa, 2001. pp. 1-8.<br />
Vries, Manfred Kets <strong>de</strong>. Lea<strong>de</strong>rs Who make a difference. European Management Journal 14,<br />
n. 5 (1996), 486-493.<br />
Weil, Pierre. Living experience transdisciplinarity. In: International Conference on Systems<br />
Integration (Icsi), 4., 2007, Brasília. Proceedings. Brasília: IIISis, 2007.<br />
Yamatogi, Marcel; Nantes, José Flávio; Lucente, Adriano. Comércio eletrônico: um estu<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> caso em lojas virtuais <strong>de</strong> compact disks. In: Encontro Nacional <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong><br />
Produção (ENEGEP), 21., 2001. <strong>Anais</strong>. . . Salva<strong>do</strong>r: ABEPRO/ UFBa,<br />
539
540<br />
Coral e trabalho:<br />
o canto em conjunto como ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lazer e o coro<br />
como organização produtiva <strong>de</strong> bens e serviços culturais<br />
Rita <strong>de</strong> Cássia Fucci Amato<br />
fucciamato@terra.com.br<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />
Resumo<br />
O presente trabalho integra a pesquisa <strong>de</strong> pós-<strong>do</strong>utora<strong>do</strong> O trabalho <strong>do</strong> regente como<br />
administra<strong>do</strong>r e a perspectiva organizacional <strong>do</strong> canto coral: contribuições interdisciplinares<br />
para administra<strong>do</strong>res e regentes, <strong>de</strong>senvolvida no Grupo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Organizacionais<br />
da Pequena Empresa (GEOPE), <strong>do</strong> Departamento <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Produção da<br />
Escola <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> São Carlos da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo (EESC-USP), com o<br />
apoio da Fundação <strong>de</strong> Amparo à Pesquisa <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Paulo (FAPESP). A intenção<br />
<strong>do</strong> artigo é explorar <strong>do</strong>is pontos <strong>de</strong> vista sobre a ativida<strong>de</strong> coral: por um la<strong>do</strong>, encara-se<br />
o canto coral como ativida<strong>de</strong> lúdica e <strong>de</strong> lazer, “ócio criativo” pratica<strong>do</strong> por grupos vocais<br />
ama<strong>do</strong>res em organizações como empresas, escolas e universida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> programas<br />
<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida no trabalho; por outro la<strong>do</strong>, dimensiona-se o próprio trabalho<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> coro, os processos e a gestão <strong>de</strong> recursos humanos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse grupo ou<br />
organização produtora <strong>de</strong> bens e serviços culturais. Para tanto, a pesquisa realiza-se em<br />
duas etapas: revisão <strong>de</strong> literatura e estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> casos múltiplos.<br />
Palavras-chave<br />
Canto coral; regência coral; motivação; trabalho.<br />
1. Introdução<br />
A visão tradicional <strong>do</strong> coro ama<strong>do</strong>r como um espaço <strong>de</strong> lazer, motivação, integração<br />
interpessoal, inclusão social e como um grupo <strong>de</strong> ensino-aprendizagem musical<br />
e vocal não exclui sua análise sob uma perspectiva interdisciplinar, envolven<strong>do</strong><br />
a interface música-administração. Nesse senti<strong>do</strong>, o presente trabalho visa a <strong>de</strong>senvolver<br />
a análise <strong>de</strong> aspectos organizacionais e administrativos relaciona<strong>do</strong>s à estruturação<br />
e ao trabalho <strong>de</strong> coros, bem como às atribuições e ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sempenhadas<br />
pelos regentes <strong>de</strong>sses grupos.<br />
Primeiramente enfoca-se uma revisão bibliográfica interdisciplinar, nas áreas <strong>de</strong><br />
música (regência e canto coral), administração <strong>de</strong> empresas, engenharia <strong>de</strong> produção,<br />
educação e sociologia, visitan<strong>do</strong>-se autores como Nelson Mathias, Heitor Villa-<br />
Lobos, Abraham Maslow, Chester Barnard, Alain Wisner, Christophe Dejours,<br />
Norbert Elias e Domenico De Masi. A seguir, são estuda<strong>do</strong>s os casos <strong>de</strong> três coros<br />
com diferentes características: (a) um coral municipal uma cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> porte médio<br />
<strong>do</strong> interior paulista; (b) um coral <strong>de</strong> empresa, forma<strong>do</strong> por trabalha<strong>do</strong>res da ope-
ação, secretárias e pessoal da administração <strong>de</strong> uma indústria <strong>de</strong> autopeças <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> porte; (c) um madrigal in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, composto principalmente por professores<br />
universitários e profissionais atuantes em instituições educacionais. A meto<strong>do</strong>logia<br />
a<strong>do</strong>tada é pois <strong>de</strong> cunho qualitativo e exploratório, constituin<strong>do</strong>-se como<br />
uma pesquisa-ação com observação participante ou pesquisa participativa (Thiollent,<br />
2005), mas com um caráter histórico, já que a autora foi regente <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is primeiros<br />
grupos e é regente <strong>do</strong> último coro.<br />
2. O coro: organização ou grupo?<br />
Segun<strong>do</strong> Maximiano (2006), as organizações são grupos sociais <strong>de</strong>liberadamente<br />
orienta<strong>do</strong>s para a realização <strong>de</strong> objetivos, que, <strong>de</strong> forma geral, traduzem-se no fornecimento<br />
<strong>de</strong> produtos e serviços. Nesse senti<strong>do</strong>, as pessoas são o principal recurso<br />
das organizações, agregadas a outros recursos, quer materiais (instalações, espaço,<br />
móveis, equipamentos etc.), quer imateriais (tempo e conhecimentos). O que po<strong>de</strong><br />
ser <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> como comum a to<strong>do</strong>s as vertentes <strong>do</strong> canto coral é que o coro constitui<br />
uma organização — formal ou informal — que se funda em recursos materiais<br />
(como instrumentos musicais, partituras, etc.) e, principalmente, em recursos humanos<br />
(regente e coralistas, basicamente). Vale ressaltar que todas as organizações<br />
po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>smembradas em processos. No caso particular da constituição <strong>de</strong> um<br />
coro, seguin<strong>do</strong> as idéias correntes da teoria da administração (Maximiano, 2006), os<br />
processos po<strong>de</strong>m ser aponta<strong>do</strong>s como os <strong>de</strong> planejamento, organização, li<strong>de</strong>rança,<br />
execução e controle. Nessa perspectiva, po<strong>de</strong>-se a<strong>do</strong>tar o entendimento <strong>de</strong> que o<br />
coro é uma organização, uma vez que é orienta<strong>do</strong> para a realização <strong>de</strong> objetivos<br />
como a performance artística, a educação musical, a inclusão social e a integração<br />
interpessoal, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser encara<strong>do</strong> como um fornece<strong>do</strong>r <strong>de</strong> serviços e produtos socioculturais<br />
(p.ex., concertos).<br />
A<strong>de</strong>mais, apesar <strong>de</strong> um nível variável <strong>de</strong> flexibilida<strong>de</strong> (nos coros ama<strong>do</strong>res, pelo<br />
menos, maior que nas organizações empresariais, <strong>de</strong> atuação no merca<strong>do</strong> econômico),<br />
há em to<strong>do</strong> coro uma série <strong>de</strong> regras estabelecidas pelo grupo quanto ao<br />
comportamento <strong>do</strong>s membros, horários e datas <strong>de</strong> ensaios e concertos, tolerância,<br />
pontualida<strong>de</strong>, etc. Há também certa autorida<strong>de</strong> da figura <strong>do</strong> maestro, em parte por<br />
uma posição formal, em parte por seu carisma e li<strong>de</strong>rança pessoais (variável conforme<br />
o maestro se coloque mais como um “igual” diante <strong>do</strong>s cantores, ou mais<br />
como um controla<strong>do</strong>r distante daqueles). A comunicação é mais ou menos organizada<br />
e há procedimentos, principalmente leva<strong>do</strong>s a cabo pelos regentes, para a<br />
coor<strong>de</strong>nação e cooperação entre os membros. Tem-se assim os requisitos da formulação<br />
<strong>de</strong> Hall (2004, p. 30):<br />
uma organização é uma coletivida<strong>de</strong> com uma fronteira relativamente i<strong>de</strong>ntificável,<br />
uma or<strong>de</strong>m normativa (regras), níveis <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> (hierarquia), sistemas<br />
<strong>de</strong> comunicação e sistemas <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação entre os membros (procedimentos);<br />
541
542<br />
essa coletivida<strong>de</strong> existe em uma base relativamente contínua, está inserida em<br />
um ambiente e toma parte <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s que normalmente se encontram relacionadas<br />
a um conjunto <strong>de</strong> metas; as ativida<strong>de</strong>s acarretam conseqüências para<br />
os membros da organização, para a própria organização e para a socieda<strong>de</strong>.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>-se visualizar o coro apenas como um grupo; em caso <strong>de</strong> coros<br />
ama<strong>do</strong>res, como um “grupo criativo e sem fins lucrativos”, conforme a abordagem<br />
efetuada pelo sociólogo italiano Domenico De Masi (2003, p. 674). Seja como organização,<br />
seja como grupo, o coro é um sistema <strong>de</strong> produção que, como tal, tem<br />
uma <strong>de</strong>terminada configuração <strong>de</strong> seus recursos: além das pessoas, materiais, informações,<br />
equipamentos e energia ou custos (Fleury, 2008, p. 2). Organização ou<br />
grupo, to<strong>do</strong> coro conta com uma estrutura organizacional, sen<strong>do</strong>, no caso <strong>do</strong> canto<br />
coral, a dimensão pessoal uma das mais proeminentes.<br />
3. O coro ama<strong>do</strong>r: lazer ou trabalho?<br />
As relações entre coral e trabalho po<strong>de</strong>m ser vislumbradas <strong>de</strong> duas perspectivas. Por<br />
um la<strong>do</strong>, o canto coral (ama<strong>do</strong>r) po<strong>de</strong> ser encara<strong>do</strong> como uma ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lazer,<br />
como uma ferramenta motivacional, inserida, no caso <strong>de</strong> coros <strong>de</strong> empresa, em programas<br />
<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida no trabalho, <strong>de</strong>finida como “o conjunto <strong>de</strong> ações, incluin<strong>do</strong><br />
diagnóstico, implantação <strong>de</strong> melhorias e inovações gerenciais, tecnológicas<br />
e estruturais no ambiente <strong>de</strong> trabalho, alinhada e construída na cultura organizacional,<br />
com priorida<strong>de</strong> absoluta para o bem-estar das pessoas da organização” (Limongi<br />
França, 2007, p. 167). Nesse senti<strong>do</strong>, o canto coral, como ativida<strong>de</strong> lúdica,<br />
insere-se no perío<strong>do</strong> pós-1968, em que se iniciam as preocupações com a saú<strong>de</strong><br />
mental <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r, após os perío<strong>do</strong>s <strong>de</strong> sua luta pela sobrevivência (século XIX)<br />
e da luta pela proteção à sua saú<strong>de</strong> (1ª Guerra Mundial até 1968)1, conforme <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s<br />
por Dejours (1987, pp. 14-25). Por outro la<strong>do</strong>, a própria ativida<strong>de</strong> coral po<strong>de</strong><br />
ser analisada como trabalho, embora a <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> termo não seja simples e, geralmente,<br />
seja consi<strong>de</strong>rada trabalho apenas a ativida<strong>de</strong> obrigatória (trabalho assalaria<strong>do</strong>,<br />
trabalho produtivo individual, trabalho familiar e escolar), ou, ainda, apenas<br />
“o que acrescenta um valor e entre no circuito monetário” (Wisner, 1987, p. 11), o<br />
que no máximo caracterizaria o canto coral profissional, mas nunca o coro ama<strong>do</strong>r.<br />
Para Dejours (2008, p. 38), trabalhar seria “um ato orienta<strong>do</strong> para um objetivo <strong>de</strong><br />
produção incluin<strong>do</strong> os pensamentos que são indissociáveis <strong>de</strong>le”, noção esta que<br />
permitiria classificar quaisquer manifestações <strong>de</strong> canto coral como trabalho, já que<br />
coros fornecem serviços ou produtos culturais, tais como apresentações, concertos<br />
e gravações. Acrescenta-se ainda a questão da coletivida<strong>de</strong> que envolve a noção <strong>de</strong><br />
trabalho:<br />
[. . .] trabalhar não é unicamente uma relação individual [. . .] entre um sujeito e<br />
sua tarefa. Trabalha-se sempre para alguém: para seus superiores, para seus colegas<br />
ou para seus subordina<strong>do</strong>s. O trabalho é, pois, também, uma relação com
o outro. Levanta-se aqui a questão fundamental da cooperação. Primeiro a cooperação<br />
horizontal com os colegas, com o coletivo <strong>de</strong> trabalho, com a equipe; e<br />
a cooperação vertical com os subordina<strong>do</strong>s e com os chefes. (Dejours, 2007, p.<br />
19)<br />
O aspecto cooperativo é intrinsecamente vincula<strong>do</strong> à natureza <strong>do</strong> canto coral e<br />
constitui sua essência enquanto organização e a dimensão organizacional <strong>do</strong> canto<br />
coral ganha especial <strong>de</strong>staque ao se coadunar com a perspectiva <strong>de</strong> Barnard (1966),<br />
autor pioneiro da abordagem <strong>do</strong>s papéis no trabalho <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r. O autor<br />
i<strong>de</strong>ntifica os papéis <strong>do</strong> executivo como sen<strong>do</strong> os <strong>de</strong> “criar e comunicar” um “propósito<br />
comum” (Escrivão Filho; Men<strong>de</strong>s, 2008, p. 5); nesse senti<strong>do</strong>, o regente se<br />
aproximaria relevantemente <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r, já que é o lí<strong>de</strong>r capaz <strong>de</strong> criar e manter<br />
uma harmonia polifônica grupal no qual se fundamente o trabalho artístico e<br />
educativo-musical <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> no canto coral.<br />
4. Cooperação: uma visão barnardiana<br />
Nasci<strong>do</strong> em 1886, Chester Irving Barnard era filho <strong>de</strong> mecânico, mas teve a oportunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> conviver em seu ambiente familiar com intelectuais e maçons. Como<br />
to<strong>do</strong> jovem filho <strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>res enfrentou problemas financeiros para manter<br />
seus estu<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os quinze anos teve que trabalhar (inclusive como afina<strong>do</strong>r <strong>de</strong><br />
pianos); portanto, não chegou a concluir seus estu<strong>do</strong>s. Com seu livro As funções <strong>do</strong><br />
executivo, publica<strong>do</strong> em 1938, chamou a atenção para um <strong>do</strong>s principais <strong>de</strong>safios da<br />
gerência: estabelecer um grau <strong>de</strong> equilíbrio entre as necessida<strong>de</strong>s individuais e o escopo<br />
da organização (Barnard, 1966). Neste senti<strong>do</strong>, colocou que o papel <strong>de</strong> gerenciar<br />
está centra<strong>do</strong> na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> convencimento, muito mais que no simples<br />
coman<strong>do</strong>. Contribuiu <strong>de</strong> maneira exemplar para a inovação da teoria administrativa<br />
com seu pensamento a respeito das organizações (Levitt; March, 1995: 11) e<br />
antecipou questões relevantes nesse âmbito.<br />
A visão barnardiana <strong>de</strong> gestão inova e amplia o entendimento <strong>do</strong>s pensa<strong>do</strong>res clássicos<br />
Taylor e Fayol. Para Barnard, a organização é um sistema social complexo, em<br />
cujo centro encontra-se o ser humano com suas limitações e aspirações. Daí a relevância<br />
das abordagens comportamentais e psicológicas serem estudadas, a fim <strong>de</strong><br />
fundamentar e ampliar a visão gerencial sobre as organizações. No entendimento<br />
<strong>de</strong> Barnard, conseguir a cooperação <strong>de</strong> indivíduos e grupos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa complexida<strong>de</strong><br />
é a dificulda<strong>de</strong> maior da administração. O pensamento <strong>de</strong> que as pessoas e a<br />
organização se interrelacionam e são inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes é vital neste processo <strong>de</strong><br />
mútua realização (Pefeffer, 1995: 72).<br />
Dentro <strong>de</strong>ste processo <strong>de</strong> cooperação surge nova compreensão da li<strong>de</strong>rança, que<br />
envolve a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r e estimular a realização das aspirações individuais<br />
<strong>do</strong>s funcionários, conjugan<strong>do</strong>-as aos objetivos das empresas. A figura <strong>do</strong><br />
bom administra<strong>do</strong>r, preconizada por Barnard, distingue-se da anteriormente di-<br />
543
544<br />
vulgada, aquela <strong>do</strong> chefe autoritário, manipula<strong>do</strong>r, cumpri<strong>do</strong>r <strong>de</strong> metas. Outra inovação<br />
no pensamento <strong>de</strong>ste autor refere-se ao estabelecimento da autorida<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />
lí<strong>de</strong>r que é referendada pelos li<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s. Usualmente, essa questão era entendida<br />
como fruto <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r e persuasão <strong>do</strong> lí<strong>de</strong>r, no entanto, em Barnard surge a concepção<br />
<strong>de</strong> que os li<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s autorizam e necessitam que a li<strong>de</strong>rança seja exercida, especialmente<br />
quan<strong>do</strong> da elaboração <strong>de</strong> valores e metas da organização.<br />
Barnard escreveu também sobre a natureza e a importância da organização informal,<br />
reconhecen<strong>do</strong> que essa organização <strong>de</strong>limita valores e condicionantes comportamentais<br />
<strong>de</strong>ntro da empresa. Segun<strong>do</strong> Gabor apud Migliato e Perussi Filho<br />
(2008, p. 73): “As organizações formais são vitalizadas por organizações informais”.<br />
As funções <strong>do</strong> executivo formuladas por Barnard dizem respeito, em primeiro lugar,<br />
ao gerenciamento <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> comunicação eficaz (meios formais e informais)<br />
para informar os <strong>de</strong>veres organizacionais e suas hierarquias; em segun<strong>do</strong> lugar,<br />
incrementar a participação <strong>de</strong> pessoas para um relacionamento cooperativo com a<br />
organização; em terceiro lugar, implementar um conjunto <strong>de</strong> ações para efetivar os<br />
objetivos e fins da organização.<br />
Barnard foi, pois, o primeiro autor a se preocupar em expor consistentemente as<br />
funções <strong>do</strong> executivo, concentran<strong>do</strong>-se nas questões humanas, psicológicas e comportamentais.<br />
No centro <strong>de</strong> sua argumentação está a tensão entre a obtenção <strong>do</strong>s<br />
objetivos organizacionais (<strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> <strong>de</strong> eficácia) e a necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s indivíduos<br />
<strong>de</strong> alcançar seus objetivos pessoais (eficiência), colocan<strong>do</strong> o autor que os objetivos<br />
organizacionais não po<strong>de</strong>m ser alcança<strong>do</strong>s a menos que a li<strong>de</strong>rança reconheça um<br />
conjunto <strong>de</strong> aspirações individuais e <strong>de</strong>scubra um meio <strong>de</strong> ajudar os funcionários<br />
a alcançá-los. Assim, o sistema cooperativo funciona melhor se há equilíbrio entre<br />
ambos. Daí ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> que Barnard teve um pensamento pioneiro sobre a natureza<br />
da li<strong>de</strong>rança (conceito <strong>do</strong> bom administra<strong>do</strong>r como um forma<strong>do</strong>r <strong>de</strong> valores),<br />
contrastan<strong>do</strong> com a figura <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r autoritário e manipula<strong>do</strong>r<br />
(sistema <strong>de</strong> recompensas). Precursor da abordagem holística nas organizações, Barnard<br />
previa que to<strong>do</strong>s os atos das pessoas e das organizações estão direta ou indiretamente<br />
interliga<strong>do</strong>s e são inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, inserin<strong>do</strong> nessa concepção os<br />
fundamentos <strong>do</strong> que veio a ser conheci<strong>do</strong> como gestão por objetivos (Migliato e Perussi<br />
Filho, 2008).<br />
Aplican<strong>do</strong> as <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> Barnard sobre o trabalho <strong>do</strong> executivo à ativida<strong>de</strong> gerencial<br />
<strong>do</strong> regente <strong>de</strong> um coro ama<strong>do</strong>r, Fucci Amato, Amato Neto e Escrivão Filho<br />
(2010) notaram que a li<strong>de</strong>rança exercida pela regente <strong>do</strong> grupo estuda<strong>do</strong> era primeiramente<br />
baseada em sua habilida<strong>de</strong> musical; em segun<strong>do</strong> lugar, em sua facilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> tomar <strong>de</strong>cisões levan<strong>do</strong> em conta negociações com os cantores; em terceiro, advinha<br />
da compreensão e aceitação <strong>de</strong> seu padrão <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança pelos coralistas, proporcionada<br />
essa internalização pelo forte po<strong>de</strong>r intuitivo da maestrina em fomentar<br />
um imaginário apto a motivá-los a concretizar objetivos reais; finalmente, era faci-
litada pelo cumprimento <strong>do</strong> objetivo comum a to<strong>do</strong>s: a produção musical <strong>de</strong> alta<br />
qualida<strong>de</strong>.<br />
Ainda sob inspiração barnardiana, os autores colocaram que outro importante<br />
ponto era a fraternida<strong>de</strong> estabelecida pela maestrina e pelos cantores, aos quais<br />
abria-se espaço para expressarem sua ansieda<strong>de</strong> e preocupações pessoais e profissionais:<br />
os momentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontração e a integração na hora <strong>do</strong> lanche coletivo<br />
foram consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s essenciais nos ensaios <strong>do</strong> grupo. Concluiu-se que as ativida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>senvolvidas por aquele madrigal materializavam as funções gerenciais típicas <strong>de</strong>scritas<br />
por Barnard (1966) — manutenção da comunicação organizacional, promoção<br />
da garantia <strong>de</strong> esforços essenciais e formulação e <strong>de</strong>finição <strong>do</strong>s propósitos<br />
organizacionais — e que o processo <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança via cooperação e consentimento era<br />
mais prazeroso ao tornar efetiva a consecução <strong>do</strong>s objetivos coletivos a partir <strong>de</strong> escolhas<br />
também coletivas.<br />
5. Re<strong>de</strong>s sociais e intersubjetivas no canto coral<br />
Como ferramenta analítica, as re<strong>de</strong>s são empregadas nos mais diversos campos <strong>do</strong><br />
conhecimento, como a sociologia, a educação, a ciência da informação, a informática,<br />
a matemática, a economia, a psicologia, a engenharia e a administração. De<br />
acor<strong>do</strong> com Pizarro (2003), as re<strong>de</strong>s são <strong>de</strong>finidas, <strong>de</strong>ntro da teoria sociológica,<br />
como um conjunto <strong>de</strong> indivíduos (que estruturalmente constituiriam os nós da<br />
re<strong>de</strong>) inter-relaciona<strong>do</strong>s e inter<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s a partir <strong>de</strong> suas relações (que seriam<br />
as ligações, ou linkages, da re<strong>de</strong>). Nessa re<strong>de</strong>, as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s individuais são integradas<br />
por relações <strong>de</strong> pertencimento a grupos sociais. A análise da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> configurações<br />
socioculturais que será realizada baseia-se, ainda, nas idéias <strong>de</strong> Norbert<br />
Elias, o qual coloca que as “pessoas constituem teias <strong>de</strong> inter<strong>de</strong>pendência ou configurações<br />
<strong>de</strong> muitos tipos, tais como famílias, escolas, cida<strong>de</strong>s, estratos sociais ou esta<strong>do</strong>s”<br />
(Elias, 1999a: 15).<br />
Essas ca<strong>de</strong>ias não são visíveis e tangíveis, como grilhões <strong>de</strong> ferro. São mais elásticas,<br />
mais variáveis, mais mutáveis, porém não menos reais, e <strong>de</strong>certo não menos<br />
fortes. E é essa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> funções que as pessoas <strong>de</strong>sempenham umas em relação a<br />
outras, a ela e nada mais, que chamamos “socieda<strong>de</strong>”. Ela representa um tipo especial<br />
<strong>de</strong> esfera. Suas estruturas são o que <strong>de</strong>nominamos “estruturas sociais”. E,<br />
ao falarmos em “leis sociais” ou “regularida<strong>de</strong>s sociais”, não nos referimos a outra<br />
coisa senão isto: às leis autônomas <strong>de</strong> relações entre as pessoas individualmente<br />
consi<strong>de</strong>radas. (ELIAS, 1997: 23).<br />
Quanto ao canto coral, este é configura<strong>do</strong> como uma prática musical exercida e difundida<br />
nas mais diferentes etnias e culturas. Por apresentar-se como um grupo <strong>de</strong><br />
aprendizagem musical, <strong>de</strong>senvolvimento vocal, integração interpessoal e inclusão<br />
social, o coro é um espaço constituí<strong>do</strong> por diferentes relações interpessoais e <strong>de</strong> ensino-aprendizagem,<br />
exigin<strong>do</strong> <strong>do</strong> regente uma série <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s e competências re-<br />
545
546<br />
ferentes não somente ao preparo técnico musical, mas também à gestão e condução<br />
<strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> pessoas que buscam motivação, aprendizagem e convivência<br />
em um grupo social (Fucci Amato, 2007). Conforme expressou Mathias (1986),<br />
um coro tem diversos níveis <strong>de</strong> ação, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> um nível micro até o macro, proporcionan<strong>do</strong><br />
que o indivíduo se integre às dimensões pessoal (motivação), grupal (relações<br />
interpessoais), comunitária (melhora da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida), social (inclusão)<br />
e política (participação <strong>de</strong>mocrática nas ações públicas, livre expressão <strong>de</strong> manifestações<br />
estéticas, artísticas, poéticas, <strong>de</strong> idéias e i<strong>de</strong>ais).<br />
Des<strong>de</strong> a Antiguida<strong>de</strong> clássica, as funções sociais <strong>do</strong> canto em conjunto são louvadas<br />
e, àquela época, a música era concebida como um fator integra<strong>do</strong> à política e à<br />
justiça. Na Grécia Antiga, tinham papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na educação <strong>do</strong>s cidadãos a<br />
música (mousiké) e a ginástica (gymnastiké), exercícios para a alma e o corpo (Manacorda,<br />
2000; Platão, 1973, Aristóteles, 1988).<br />
Ainda que sob um viés nacionalista, varguista, unitarista e até por alguns consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s<br />
fascista, o maestro brasileiro Heitor Villa-Lobos, gran<strong>de</strong> i<strong>de</strong>aliza<strong>do</strong>r e coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r<br />
<strong>de</strong> um enorme projeto <strong>de</strong> canto coletivo no Brasil durante a Era Vargas<br />
(Fucci Amato, 2008), também notou exemplarmente a função social <strong>do</strong> canto coral,<br />
<strong>de</strong>stacan<strong>do</strong>:<br />
O canto coletivo, com seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> socialização, predispõe e indivíduo a per<strong>de</strong>r<br />
no momento necessário a noção egoísta da individualida<strong>de</strong> excessiva, integran<strong>do</strong>-o<br />
na comunida<strong>de</strong>, valorizan<strong>do</strong> no seu espírito a idéia da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
renúncia e da disciplina ante os imperativos da coletivida<strong>de</strong> social, favorecen<strong>do</strong>,<br />
em suma, essa noção <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> humana, que requer da criatura uma participação<br />
anônima na construção das gran<strong>de</strong>s nacionalida<strong>de</strong>s. (Villa-Lobos,<br />
1987, p. 87)<br />
Destarte, o canto coletivo constitui uma notável ferramenta <strong>de</strong> integração interpessoal<br />
e socialização cultural. O canto coral atua, na perspectiva da integração,<br />
como um meio <strong>de</strong> eliminação <strong>de</strong> quaisquer barreiras entre os indivíduos, colocan<strong>do</strong><br />
to<strong>do</strong>s em uma posição <strong>de</strong> aprendizes.<br />
Os trabalhos com grupos vocais nas mais diversas comunida<strong>de</strong>s, escolas, empresas,<br />
instituições e centros comunitários po<strong>de</strong>, por meio <strong>de</strong> uma prática vocal bem conduzida<br />
e orientada, realizar a integração, dissipan<strong>do</strong> fronteiras sociais. O regenteeduca<strong>do</strong>r,<br />
na igualda<strong>de</strong> da transmissão <strong>de</strong> conhecimentos novos para to<strong>do</strong>s os<br />
coralistas, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> origem social, faixa etária ou grau <strong>de</strong> instrução,<br />
tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> envolvê-los no fazer <strong>do</strong> “novo”, ou seja, <strong>de</strong> colocá-los como agentes<br />
<strong>do</strong> instigante processo da criação artística.<br />
Ao cumprir com as normas <strong>do</strong> coro, <strong>de</strong>dicar-se ao aprendiza<strong>do</strong> da música nos ensaios<br />
e em horas extras, o indivíduo se integra ao grupo na busca <strong>de</strong> metas comuns,<br />
configuran<strong>do</strong> um carisma grupal, por meio <strong>do</strong> qual to<strong>do</strong>s os sentimentos e obstáculos<br />
são transpostos (Elias e Scotson, 2000), para que to<strong>do</strong>s os indivíduos contribuam<br />
para o cumprimento <strong>do</strong>s objetivos comuns a to<strong>do</strong>s os coralistas. Essa prática
musical <strong>de</strong>senvolve um senso <strong>de</strong> união grupal em torno <strong>de</strong> metas e objetivos comuns,<br />
canalizan<strong>do</strong> as ações e sentimentos individuais para uma produção artística<br />
coletiva, na qual se conjugam a disciplina rigorosa, o estu<strong>do</strong> com afinco e <strong>de</strong>dicação<br />
<strong>de</strong> cada um <strong>do</strong>s agentes, culminan<strong>do</strong> na constituição <strong>do</strong> carisma grupal.<br />
Para abordar mais <strong>de</strong>nsamente tal conceito, relevante é retomar brevemente o contexto<br />
teórico em que se insere no trabalho <strong>de</strong> Norbert Elias e John Scotson, que estudaram<br />
a fonte <strong>de</strong> diferenciais <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r entre grupos inter-relaciona<strong>do</strong>s, os<br />
estabeleci<strong>do</strong>s e os outsi<strong>de</strong>rs.<br />
Os termos establishment e established são utiliza<strong>do</strong>s pelos autores para se referirem,<br />
respectivamente, a um grupo e a indivíduos que, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma escala hierárquica,<br />
ocupam posições superiores <strong>de</strong> prestígio e po<strong>de</strong>r. Tal grupo i<strong>de</strong>ntifica-se e é reconheci<strong>do</strong><br />
como uma “boa socieda<strong>de</strong>”, influente e melhor, construída sobre os pilares<br />
da tradição, da autorida<strong>de</strong> e da influência, presentes <strong>de</strong>cisivamente nessa<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social, sen<strong>do</strong> que seus membros também são consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>los morais<br />
para o restante da socieda<strong>de</strong>. Em oposição aos estabeleci<strong>do</strong>s, encontra-se o<br />
grupo <strong>do</strong>s outsi<strong>de</strong>rs, concebi<strong>do</strong>s como os não membros da “boa socieda<strong>de</strong>”, aglutina<strong>do</strong>s<br />
em agrupamentos heterogêneos e difusos, com relações interpessoais <strong>de</strong><br />
menor intensida<strong>de</strong> que os establishment e com um menor grau <strong>de</strong> reconhecimento<br />
e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural entre seus membros (Neiburg, 2000).<br />
A categorização <strong>do</strong>s grupos estabeleci<strong>do</strong>s passa por um carisma grupal, e to<strong>do</strong>s os<br />
que estão inseri<strong>do</strong>s no establishment participam <strong>de</strong>sse carisma e submetem-se às regras<br />
mais ou menos rígidas <strong>de</strong>sse grupo, com o sacrifício da satisfação pessoal em<br />
prol <strong>do</strong> fortalecimento e coesão da coletivida<strong>de</strong>:<br />
A participação na superiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um grupo e em seu carisma grupal singular é,<br />
por assim dizer, a recompensa pela submissão às normas específicas <strong>do</strong> grupo. Esse<br />
preço tem que ser pago por cada um <strong>de</strong> seus membros, através da sujeição <strong>de</strong> sua<br />
conduta a padrões específicos <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> afetos. [. . .] A satisfação que cada um<br />
extrai da participação no carisma <strong>do</strong> grupo compensa o sacrifício da satisfação pessoal<br />
<strong>de</strong>corrente da submissão às normas grupais. (Elias; Scotson, 2000: 26)<br />
O coro atua, assim, como um neutraliza<strong>do</strong>r das diferenças sociais (em senti<strong>do</strong><br />
amplo: econômicas, culturais, políticas, etc.), permitin<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s a integração em<br />
uma coletivida<strong>de</strong>, da qual participam como establishment. Daí o carisma grupal,<br />
que principalmente em coros ama<strong>do</strong>res é a base da motivação <strong>de</strong> cantores e regentes.<br />
[. . .] a arte está ligada a receptores que, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da ocasião em que<br />
as obras <strong>de</strong> arte são apresentadas, formam um grupo fortemente integra<strong>do</strong>. O<br />
lugar e a função que a obra <strong>de</strong> arte tem para o grupo <strong>de</strong>rivam <strong>de</strong> ocasiões <strong>de</strong>terminadas<br />
em que este se reúne. [. . .] Portanto, uma das funções importantes da<br />
obra <strong>de</strong> arte é ser uma maneira <strong>de</strong> a socieda<strong>de</strong> se exibir, como grupo e como uma<br />
série <strong>de</strong> indivíduos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um grupo. O instrumento <strong>de</strong>cisivo com o qual a<br />
547
548<br />
obra ressoa não são tanto os indivíduos em si mesmos — cada qual sozinho com<br />
seus sentimentos –, mas muitos indivíduos integra<strong>do</strong>s num grupo, pessoas cujos<br />
sentimentos são, em gran<strong>de</strong> parte, mobiliza<strong>do</strong>s e orienta<strong>do</strong>s para o fato <strong>de</strong> estarem<br />
juntas. (Elias, 1999b, p. 49)<br />
Concorrentemente ao carisma grupal, como seu ingrediente e produto, a estrutura<br />
organizacional menos hierarquizada e rígida <strong>do</strong> coro facilita a construção <strong>de</strong> relacionamentos<br />
intersubjetivos, ora harmoniosos, ora dissonantes, expressos na complexa<br />
polifonia construída a partir das vozes <strong>de</strong> cada cantor, unidas por naipe (grupo<br />
<strong>de</strong> vozes por tessitura: geralmente, sopranos, contraltos, tenores e baixos). É extremamente<br />
fi<strong>de</strong>digna, notadamente com relação aos coros ama<strong>do</strong>res, a <strong>de</strong>scrição:<br />
As relações interpessoais são pre<strong>do</strong>minantemente horizontais, calorosas, informais,<br />
solidárias e centradas na emotivida<strong>de</strong>. Para o indivíduo ou para o grupo no<br />
conjunto contam, principalmente o reconhecimento e a gratificação moral. Prevalece<br />
uma li<strong>de</strong>rança carismática. Cada um está atento àquilo que <strong>de</strong>ve dar aos<br />
outros; atribui muita importância ao empenho; ten<strong>de</strong> a apren<strong>de</strong>r o mais possível,<br />
para melhorar a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas próprias contribuições; sente-se responsável;<br />
sabe para que ele serve; sabe para que serve a sua contribuição pessoal; não<br />
ten<strong>de</strong> a <strong>de</strong>scarregar sobre os outros as suas próprias responsabilida<strong>de</strong>s. A disciplina<br />
provém <strong>do</strong> empenho pessoal, da atração exercida pelo lí<strong>de</strong>r, da a<strong>de</strong>são à<br />
missão, da <strong>de</strong>dicação ao trabalho, da fé, da generosida<strong>de</strong>, da participação na<br />
“brinca<strong>de</strong>ira” [. . .]. (De Masi, 2003, p. 675-6)<br />
Nota-se ainda que o coro também oportuniza a aquisição <strong>de</strong> saberes artísticos e estéticos<br />
que po<strong>de</strong>m provocar uma transformação na mentalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s coralistas e os<br />
auxiliar em seu <strong>de</strong>senvolvimento intelectual e crítico. Conforme expressou Mathias<br />
(2001), um coro tem diversos níveis <strong>de</strong> ação, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> um nível micro até o macro,<br />
proporcionan<strong>do</strong> que o indivíduo se integre às dimensões pessoal (motivação), grupal<br />
(relações interpessoais), comunitária (melhora da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida), social (inclusão)<br />
e política (participação <strong>de</strong>mocrática nas ações públicas). Provém <strong>de</strong>ssa<br />
conjunção <strong>de</strong> planos o po<strong>de</strong>r comunicacional e expressivo <strong>do</strong> canto coral, sua “força<br />
única, própria; uma força vinda <strong>de</strong> uma ação comum, capaz <strong>de</strong> comunicar o concreto<br />
mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s sons, o abstrato da beleza da harmonia, e a plenitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> transcen<strong>de</strong>ntal<br />
— eis o po<strong>de</strong>r da Comunica Som” (Mathias, 1986, p. 15).<br />
A partir da participação em um coro po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>senvolver o que Abraham Maslow<br />
(1908-1970) chamou <strong>de</strong> auto-atualização, isto é, “o uso e a exploração plenos <strong>de</strong> talentos,<br />
capacida<strong>de</strong>s, potencialida<strong>de</strong>s etc.”, sen<strong>do</strong> que o homem “se auto-atualiza<br />
não como um homem comum a quem alguma coisa foi acrescentada, mas sim como<br />
o homem comum <strong>de</strong> quem nada foi tira<strong>do</strong>. O homem comum é um ser humano<br />
completo, com po<strong>de</strong>res e capacida<strong>de</strong>s amorteci<strong>do</strong>s e inibi<strong>do</strong>s” (Maslow apud Fadiman;<br />
Frager, 1986, p. 262). Além da motivação, da convivência e da aprendizagem<br />
proporcionadas pelo canto coral, essa prática também nos leva a um<br />
significativo prazer estético, ou seja, a um conjunto <strong>de</strong> manifestações significativas<br />
em termos <strong>de</strong> emoções e sentimentos.
Dessarte, no plano das relações intragrupais ou intraorganizacionais, o canto em<br />
conjunto <strong>de</strong>svela-se como extraordinária ferramenta para estabelecer uma <strong>de</strong>nsa<br />
re<strong>de</strong> <strong>de</strong> configurações socioculturais, com os elos da valorização da própria individualida<strong>de</strong>,<br />
da individualida<strong>de</strong> <strong>do</strong> outro e <strong>do</strong> respeito das relações interpessoais, em<br />
um comprometimento <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> e cooperação.<br />
6. Comentários sobre casos múltiplos (coros ama<strong>do</strong>res)<br />
6.1. Coral municipal<br />
O Coral Municipal <strong>de</strong> São Carlos (1983-1989) foi cria<strong>do</strong> pela Prefeitura Municipal<br />
<strong>de</strong> São Carlos e manti<strong>do</strong> em parceria com a entida<strong>de</strong> sem fins lucrativos Socieda<strong>de</strong><br />
Civil Amigos da Arte (FILARTE). O grupo congregou uma gran<strong>de</strong><br />
heterogeneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cantores, provenientes <strong>do</strong>s mais diversos espectros socioeconômicos,<br />
profissionais e culturais daquela cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> porte médio, no interior <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Paulo. Ao longo da história <strong>do</strong> grupo, verificou-se a presença <strong>de</strong> professores<br />
universitários, estudantes <strong>de</strong> graduação e pós-graduação, pa<strong>de</strong>iros, <strong>do</strong>nas <strong>de</strong><br />
casa, manicures, funcionários públicos, eletricistas, engenheiros, entre diversos outros<br />
grupos.<br />
Observou-se que com o passar <strong>do</strong>s anos o grupo foi-se diminuin<strong>do</strong> <strong>de</strong> porte (em termos<br />
<strong>de</strong> números <strong>de</strong> cantores), bem como aperfeiçoan<strong>do</strong> seu escopo último em termos<br />
musicais, que foi <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio como manter um grau crescente<br />
<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> nas performances, sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> la<strong>do</strong> as outras dimensões inerentes<br />
ao trabalho em um coro comunitário. Dentre outros motivos, a “seleção” <strong>do</strong>s coralistas<br />
ao longo <strong>do</strong> tempo <strong>de</strong>u-se por questões pessoais (como limitações <strong>de</strong> horários<br />
<strong>do</strong>s cantores, já que o grupo costumava ensaiar cerca <strong>de</strong> <strong>de</strong>z horas semanais) e<br />
por afinida<strong>de</strong>s (questões <strong>de</strong> relacionamento entre os coristas, entre coristas e regente,<br />
convivência, observância e adaptação aos méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> trabalho a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s).<br />
Verificou-se, principalmente nos anos iniciais <strong>do</strong> grupo, problemas relativos à formações<br />
<strong>de</strong> grupos parciais <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>, caracteriza<strong>do</strong>s pelo que Mintzberg (1998)<br />
<strong>de</strong>nominou <strong>de</strong> “pequenas informações” (fofocas, boatos e especulações).<br />
Verificou-se sempre no grupo uma sobrecarga das funções da regente — e também<br />
das monitoras e <strong>do</strong> pianista assistente — <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a divulgação <strong>do</strong>s concertos <strong>do</strong> grupo<br />
(impressão e distribuição <strong>de</strong> cartazes e programas) até as conflituosas negociações<br />
para obtenção <strong>de</strong> espaços para ensaio e concerto <strong>do</strong> grupo, a má vonta<strong>de</strong> da instituição<br />
mantene<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> grupo em fornecer transporte para viagens em apresentações<br />
em encontros <strong>de</strong> corais, a arrumação <strong>do</strong>s locais <strong>de</strong> concertos, entre tantas<br />
outras ativida<strong>de</strong>s características <strong>de</strong> um trabalho profissional no canto coral ama<strong>do</strong>r,<br />
marca<strong>do</strong> pela <strong>de</strong>ficiência <strong>de</strong> infra-estrutura e apoios <strong>de</strong> pessoal, principalmente<br />
em órgãos públicos.<br />
549
550<br />
Em termos intragrupais, ao la<strong>do</strong> da li<strong>de</strong>rança forte e por vezes centralizada da regente<br />
na consecução <strong>de</strong> altas metas <strong>de</strong>finidas e na condução <strong>de</strong> um grupo bastante<br />
heterogêneo e muitas vezes <strong>de</strong> dimensões relativamente gran<strong>de</strong>s (em termos <strong>de</strong> número<br />
<strong>de</strong> coralistas), o Coral caracterizou-se pela união <strong>de</strong> coralistas e regente diante<br />
da felicida<strong>de</strong> resultante da aprendizagem musical, da convivência, da cooperação e<br />
<strong>do</strong> prazer <strong>de</strong> uma realização individual e coletiva com qualida<strong>de</strong> artística.<br />
6.2. Coro <strong>de</strong> empresa<br />
No Coral Metal Leve (1988-1991) formou-se um grupo, também ama<strong>do</strong>r, composto<br />
por funcionário <strong>do</strong>s mais diversos setores daquela indústria <strong>de</strong> autopeças fundada<br />
pelo empresário José Mindlin e à época também por este presidida. Dada a<br />
composição extremamente diversificada <strong>do</strong> coro, envolven<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>res<br />
<strong>do</strong> chão <strong>de</strong> fábrica até pessoal com cargo gerencial e secretárias bilíngues, primeiramente,<br />
foi possível verificar uma quebra nos níveis hierárquicos estabeleci<strong>do</strong>s pelo<br />
trabalho <strong>de</strong>ntro da empresa: para participar <strong>do</strong> coral só era necessário querer cantar.<br />
O gosto pelo canto estabeleceu as condições para uma quebra das barreiras sociais<br />
e criou a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> diferentes pessoas, <strong>de</strong> diferentes categorias<br />
profissionais, se integrarem para realizar um mesmo trabalho. Em certa ocasião, o<br />
Theatro Municipal <strong>de</strong> São Paulo promoveu uma montagem da ópera Cosi fan tutte,<br />
<strong>de</strong> Mozart, a preços populares. Os coralistas foram estimula<strong>do</strong>s para que fossem assistir<br />
ao espetáculo e até aludi<strong>do</strong>s quanto à não-necessida<strong>de</strong> trajar vestimentas formais<br />
para a entrada no teatro. Dessa forma, alguns cantores <strong>de</strong>cidiram ir ao evento<br />
e, após a ocasião inédita que tiveram a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vivenciar, passaram a narrar<br />
por meses a belíssima experiência que tinham ti<strong>do</strong>, ao não se sentirem excluí<strong>do</strong>s<br />
da vida cultural e, em particular, da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> entrar em uma sala <strong>de</strong> concertos<br />
geralmente <strong>de</strong>stinada a um público seleto. Tal acontecimento ilustra a possibilida<strong>de</strong><br />
que um coro tem para a formação <strong>de</strong> platéias, produzin<strong>do</strong> efeitos colaterais<br />
para o indivíduo criar interesse para ouvir outros corais, assistir a concertos e participar<br />
outros eventos <strong>de</strong> natureza artística, re<strong>de</strong>finin<strong>do</strong> o seu papel e a sua posição<br />
na socieda<strong>de</strong>.<br />
O Coral foi cria<strong>do</strong> e manti<strong>do</strong> pela Associação Desportiva e Classista Metal Leve,<br />
um órgão <strong>do</strong>s próprios funcionários. À regente foram sempre proporcionadas ótimas<br />
condições <strong>de</strong> trabalho e a fácil comunicação entre esta e os mantene<strong>do</strong>res <strong>do</strong><br />
coro foi condição essencial para o bom andamento daquele trabalho.<br />
Verifica-se nesse coro que o trabalho <strong>de</strong> natureza artística propicia<strong>do</strong> pelo canto<br />
coral <strong>de</strong>sfazia certos paradigmas típicos <strong>do</strong> trabalho na empresa, tais como hierarquia,<br />
divisão <strong>de</strong> trabalho e tipos <strong>de</strong> metas e <strong>de</strong> realização pessoal no <strong>de</strong>senvolvimento<br />
das ativida<strong>de</strong>s. Corrobora-se, então, a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> Morelembaum (1999),<br />
que estu<strong>do</strong>u a influência da ativida<strong>de</strong> coral para programas <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> total em<br />
empresas, <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong> que:
O homem é o to<strong>do</strong> e, nesse processo, corpo, voz e emoção interagem simultaneamente.<br />
As emoções estão intrinsecamente ligadas ao equilíbrio corporal e a<br />
postura correta é <strong>de</strong>terminante na qualida<strong>de</strong> da voz. Essa visão holística, da qual<br />
o coral se utiliza amplamente, é um <strong>do</strong>s pilares da filosofia da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida,<br />
inserida na filosofia da Qualida<strong>de</strong> Total. (Morelembaum, 1999, p. 76)<br />
6.3. Madrigal in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
O Madrigal InCanto é um grupo forma<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> encontro <strong>de</strong> ex-integrantes<br />
<strong>do</strong> Coral Municipal <strong>de</strong> São Carlos, duas décadas <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> encerramento das ativida<strong>de</strong>s<br />
daquele grupo. O InCanto iniciou suas ativida<strong>de</strong>s em agosto <strong>de</strong> 2008 e passou<br />
a ser forma<strong>do</strong> também por novos cantores, hoje sen<strong>do</strong> composto por nove<br />
cantores, <strong>de</strong>ntre os quais funcionários públicos, professores universitários e da educação<br />
básica, pesquisa<strong>do</strong>res, estudantes, entre outros. Como o trabalho da regente<br />
é totalmente voluntário (nem regente nem cantores recebem qualquer remuneração)<br />
e esta resi<strong>de</strong> em São Paulo, sen<strong>do</strong> as ativida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> grupo e a residência <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais<br />
cantores em São Carlos-SP, a questão espacial <strong>de</strong> locomoção (cerca <strong>de</strong> 230Km<br />
<strong>de</strong> distância) faz com que os ensaios <strong>do</strong> grupo tenham menor frequência (cerca <strong>de</strong><br />
uma vez ao mês), o que também é <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> pela disponibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s cantores<br />
em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> compromissos pessoais e profissionais. Embora tenha enfrenta<strong>do</strong> perío<strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong> estagnação, por exemplo pelas questões <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> da Assistente, que também<br />
é quem ce<strong>de</strong> sua residência como local <strong>de</strong> ensaio <strong>do</strong>s grupos aos fins <strong>de</strong> semana,<br />
buscaram-se sempre meios <strong>de</strong> suprir a falta <strong>de</strong> uma maior carga horária e frequência<br />
<strong>de</strong> ensaios, como as gravações digitais <strong>de</strong> áudio das vozes, para ensaio individual<br />
pelos coralistas em seus aparelhos <strong>de</strong> som coletivos ou individuais. Recentemente,<br />
também tem-se procura<strong>do</strong> realizar ensaios gerais a distância (com a regente em uma<br />
cida<strong>de</strong> e os <strong>de</strong>mais cantores em outra), por via da ferramenta <strong>de</strong> comunicação digital<br />
Skype.<br />
Outro óbice às ativida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> grupo é a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> obtenção <strong>de</strong> apoio material<br />
para a realização e a divulgação <strong>de</strong> concertos. No seu primeiro concerto, o grupo (regentes<br />
e cantores) tiveram <strong>de</strong> realizar uma repartição das <strong>de</strong>spesas relativas à taxa <strong>de</strong><br />
apresentação no Teatro Municipal <strong>de</strong> São Carlos, embora o concerto tivesse entrada<br />
franca.<br />
Verifica-se no grupo ainda uma centralida<strong>de</strong> na regente das funções/ papéis/ ativida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> coman<strong>do</strong>, comunicação, motivação, contatos, busca <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s<br />
para o grupo, organização e programação das apresentações, embora esta busque o<br />
apoio da Assistente nessas ativida<strong>de</strong>s e, também, <strong>de</strong> outros cantores, que por morarem<br />
na cida<strong>de</strong>-se<strong>de</strong> <strong>do</strong> madrigal teriam maior facilida<strong>de</strong> em alguns aspectos.<br />
Apesar <strong>de</strong> momentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>smotivação e <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s pessoais <strong>de</strong> diferentes gravida<strong>de</strong>s<br />
e duração, cada integrante tem procura<strong>do</strong> manter a harmonia, o comprometimento<br />
e a amiza<strong>de</strong> que ensejam a existência <strong>do</strong> grupo.<br />
551
552<br />
Conclusões<br />
A partir das análises efetuadas, algumas conclusões <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>stacadas:<br />
1) o coral como ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lazer em organizações, coloca<strong>do</strong>, sob essa perspectiva,<br />
em oposição ao trabalho, faz parte <strong>de</strong> uma preocupação das organizações com a<br />
saú<strong>de</strong> mental <strong>de</strong> seus funcionários e colabora<strong>do</strong>res, bem como é ofereci<strong>do</strong> à comunida<strong>de</strong><br />
como ativida<strong>de</strong> sociocultural <strong>de</strong> extensão por instituições educativas como<br />
as universida<strong>de</strong>s; 2) há diversas conceituações <strong>de</strong> trabalho, sen<strong>do</strong> que sob uma perspectiva<br />
meramente econômico-financeira apenas o canto coral profissional seria<br />
caracteriza<strong>do</strong> como trabalho; porém, a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong>-se outras conceituações, po<strong>de</strong>-se<br />
enten<strong>de</strong>r que há trabalho em qualquer ativida<strong>de</strong> coral; 3) o aspecto que mais marca<br />
o trabalho no canto coral é seu caráter coletivo, colaborativo e cooperativo, instituin<strong>do</strong><br />
o coro como um paradigma <strong>de</strong> trabalho em equipe; 4) em coros, as relações<br />
interpessoais costumam ser calorosas, horizontais, fundadas na solidarieda<strong>de</strong> e na<br />
emotivida<strong>de</strong>; 5) as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gestão <strong>de</strong> recursos humanos e materiais, <strong>de</strong> organização<br />
e planejamento têm foco no regente, principalmente em coros ama<strong>do</strong>res,<br />
em que o maestro é visto como o profissional responsável por tais tarefas e pelos<br />
resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s pelo grupo.<br />
1 Po<strong>de</strong>-se inferir, ainda, que após as etapas <strong>de</strong>scritas por Dejours (1987), chegar-se-ia a uma<br />
“socieda<strong>de</strong> fundada não mais no trabalho, mas no tempo vago”, segun<strong>do</strong> Domenico <strong>de</strong> Masi<br />
(2000, p. 13).<br />
Referências<br />
Aristóteles. Política. Trad. Mário da Gama Kury. 2 ed. Brasília: Editora UnB, 1988.<br />
Barnard, Chester Irving. The functions of the executive. 17 ed. Boston: Harvard University<br />
Press, 1966.<br />
Dejours, Christophe. A loucura <strong>do</strong> trabalho: estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> psicopatologia <strong>do</strong> trabalho. Trad. Ana<br />
Isabel Paraguay e Lúcia Leal Ferreira. São Paulo: Oboré, 1987.<br />
———. Psicodinâmica <strong>do</strong> trabalho na pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. In: Men<strong>de</strong>s, Ana Magnólia; Lima,<br />
Suzana Canez da Cruz; Facas, Emílio Peres (Orgs.). Diálogos em psicodinâmica <strong>do</strong> trabalho.<br />
Brasília: Paralelo 15, 2007. pp. 13-26.<br />
———. Avaliação <strong>do</strong> trabalho submetida à prova <strong>do</strong> real: crítica aos fundamentos da avaliação.Trad.<br />
Laerte Idal Sznelwar e Fausto Leopos<strong>do</strong> Mascia. São Paulo: Blucher, 2008.<br />
De Masi, Domenico. Criativida<strong>de</strong> e grupos criativos. Trad. Léa Manzi e Yadyr Figueire<strong>do</strong>.<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro: Sextante, 2003.<br />
———. O ócio criativo. Entrevista a Maria Serena Palieri.Trad. Léa Manzi. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
Sextante, 2000.<br />
Elias, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 1999a.<br />
———. Mozart: sociologia <strong>de</strong> um gênio. Trad. Sergio Goes <strong>de</strong> Paula. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge<br />
Zahar, 1999b.
———. A socieda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s indivíduos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1997a.<br />
Elias, Norbert; Scotson, John L. Os estabeleci<strong>do</strong>s e os outsi<strong>de</strong>rs: sociologia das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />
a partir <strong>de</strong> uma pequena comunida<strong>de</strong>. Trad. Vera Ribeiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar,<br />
2000.<br />
Escrivão Filho, Edmun<strong>do</strong>; Men<strong>de</strong>s, Juliana Veiga. O trabalho <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r: uma visão<br />
geral e crítica. In: Escrivão Filho, Edmun<strong>do</strong>; Perussi Filho, Sergio (Orgs.). Administrar<br />
é. . . A evolução <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r. São Carlos: RiMa, 2008. pp. 1-19.<br />
Fadiman, James; Frager, Robert. Teorias da personalida<strong>de</strong>.Trad. Camila Pedral Sampaio e<br />
Sybil Safdié. São Paulo: Harbra, 1986.<br />
Fleury, Afonso. O que é engenharia <strong>de</strong> produção. In: Batalha, Mário Otávio. Introdução à<br />
engenharia <strong>de</strong> produção. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Elsevier, 2008. pp. 1-10.<br />
Fucci Amato, Rita <strong>de</strong> Cássia. Momento brasileiro: reflexões sobre o nacionalismo, a educação<br />
musical e o canto orfeônico em Villa-Lobos. Revista Electrónica Complutense <strong>de</strong> Investigación<br />
en Educación Musical — RECIEM 5, n. 2 ( 2008c), 1-18.<br />
———. O canto coral como prática sócio-cultural e educativo-musical. Opus 13, n. 1 (2007),<br />
75-96.<br />
———.; Escrivão Filho, E.; Amato Neto, J. ‘Maestro as manager: the work of conductors<br />
beyond the stage’. IN: Annual Production and Operations Management Society<br />
(POMS) Conference, 21, 2010, Vancouver. Proceedings. Vancouver: POMS, 2010.<br />
Hall, Richard H. Organizações: estruturas, processos e resulta<strong>do</strong>s. São Paulo: Prentice Hall,<br />
2004.<br />
Levitt, Barbara; March, James G. Chester I. Barnard and the intelligence of learning. In:<br />
Williamson, Oliver E. (Org.). Organization theory: from Chester Barnard to the present<br />
and beyond. New York: Oxford University Press, 1995. pp. 11-37.<br />
Limongi França, Ana Cristina. Práticas <strong>de</strong> recursos humanos — PRH: conceitos, ferramentas<br />
e procedimentos. São Paulo: Atlas, 2007.<br />
Manacorda, Mario A. História da educação: da Antiguida<strong>de</strong> aos nossos dias. 8ª ed. São Paulo:<br />
Cortez, 2000.<br />
Mathias, Nelson. Coral: um canto apaixonante. Brasília: Musimed, 1986.<br />
Maximiano, Antonio Cesar Amaru. Introdução à administração. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2006.<br />
Migliato, Antonio Luiz Tonissi; Perussi Filho, Sergio. Administrar é comunicar e obert cooperação:<br />
a visão <strong>de</strong> Chester Barnard. In: Escrivão Filho, Edmun<strong>do</strong>; Perussi Filho, Sergio<br />
(Orgs.). Administrar é. . . A evolução <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r. São Carlos: RiMa,<br />
2008. pp. 69-81.<br />
Mintzberg, Henry. The manager’s job: folklore and fact. In: Harvard Business Review on<br />
lea<strong>de</strong>rship. Boston: Harvard Business School Press, 1998b.<br />
Morelenbaum, Eduar<strong>do</strong>. Coral <strong>de</strong> empresa: um valioso componente para o projeto <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong><br />
total. 1999. Dissertação (Mestra<strong>do</strong> em Música) — Conservatório Brasileiro <strong>de</strong> Música,<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
Neiburg, Fe<strong>de</strong>rico. Apresentação à edição brasileira: a sociologia das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />
Norbert Elias. In: Elias, Norbert; Scotson, John L. Os estabeleci<strong>do</strong>s e os outsi<strong>de</strong>rs: sociologia<br />
das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r a partir <strong>de</strong> uma pequena comunida<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge<br />
Zahar, 2000. pp. 7-11<br />
Pfeffer, Jeffrey. Incentives in organizations: the importance of social relations. In:<br />
553
554<br />
Williamson, Oliver E. (Org.). Organization theory: from Chester Barnard to the present<br />
and beyond. New York: Oxford University Press, 1995. pp. 72-97.<br />
Pizarro, Narciso. Un nuevo enfoque sobre la equivalencia estructural: lugares y re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> lugares<br />
como herramientas para la teoría sociológica. REDES — Revista hispana para el análisis<br />
<strong>de</strong> re<strong>de</strong>s sociales 5, n. 2 (oct.-dic. 2003), 1-14.<br />
Platão. A República. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Difel, 1973. v. 1.<br />
Thiollent, Michel. Perspectivas <strong>de</strong> meto<strong>do</strong>logia <strong>de</strong> pesquisa participativa e <strong>de</strong> pesquisa-ação<br />
na elaboração <strong>de</strong> projetos sociais e solidários. In: Lianza, Sidney; Ad<strong>do</strong>r, Felipe (Org.).<br />
Tecnologia e <strong>de</strong>senvolvimento social e solidário. p. 172-189.<br />
Villa-Lobos, Heitor. Villa-Lobos por ele mesmo. In: Ribeiro, J. C. (Org.). O pensamento vivo<br />
<strong>de</strong> Villa-Lobos. São Paulo: Martin Claret, 1987.<br />
Wisner, Alain. Por <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> trabalho: ergonomia: méto<strong>do</strong> & técnica. Trad. Flora Maria Gomi<strong>de</strong><br />
Vezzá. São Paulo: FTD, 1987.
Problemas Sociais <strong>do</strong> A<strong>do</strong>lescente<br />
em Cumprimento <strong>de</strong> Medida Sócio-Educativa<br />
que Interferem na <strong>Cognição</strong> Musical<br />
José Fortunato Fernan<strong>de</strong>s<br />
jfortunatof@itelefonica.com.br<br />
Instituto <strong>de</strong> <strong>Artes</strong>, Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas<br />
Resumo<br />
Este artigo, adapta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s capítulos da tese que estou <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> sobre educação<br />
musical <strong>de</strong> a<strong>do</strong>lescentes em cumprimento <strong>de</strong> medida sócio-educativa, discute os<br />
fatores sociais e psicológicos que po<strong>de</strong>m interferir na cognição da educação musical<br />
através <strong>do</strong> canto coral em uma classe <strong>de</strong> a<strong>do</strong>lescentes em cumprimento <strong>de</strong> medida<br />
sócio-educativa, como também as diversas causas <strong>do</strong> comportamento problemático que<br />
po<strong>de</strong> surgir na sala <strong>de</strong> aula e sugere atitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong> educa<strong>do</strong>r musical ante tais comportamentos.<br />
Aborda fatores relaciona<strong>do</strong>s à família, escola, trabalho e religião que levam o indivíduo<br />
ao conflito com a lei. Os fatores psicossociais são estuda<strong>do</strong>s com o objetivo <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>linear a relação entre o mun<strong>do</strong> interno <strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente em cumprimento <strong>de</strong> medida<br />
sócio-educativa e o externo, ou seja, sua psique e o mun<strong>do</strong> social. Os fatores relaciona<strong>do</strong>s<br />
à família abordam o processo educativo, os maus tratos e a negligência na infância,<br />
a ruptura familiar e a indisponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recursos mínimos para a sobrevivência<br />
(Gomi<strong>de</strong>, 1990). Os fatores relaciona<strong>do</strong>s à baixa escolarida<strong>de</strong> <strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente em cumprimento<br />
<strong>de</strong> medida sócio-educativa estão submeti<strong>do</strong>s aos fatos <strong>de</strong> pertencer a uma<br />
classe social <strong>de</strong>sprivilegiada, da incompatibilida<strong>de</strong> entre as aspirações e as chances reais<br />
<strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> social promovidas pela escola, e <strong>de</strong> apresentarem diversos problemas <strong>de</strong><br />
aprendizagem (Bourdieu, 1983). Os fatores relaciona<strong>do</strong>s ao trabalho abordam a luta <strong>de</strong><br />
classes resultante <strong>do</strong> sistema político-econômico capitalista (Bauman, 2005). Os fatores<br />
relaciona<strong>do</strong>s à religião abordam sua rejeição <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao fato <strong>do</strong>s a<strong>do</strong>lescentes em cumprimento<br />
<strong>de</strong> medida sócio-educativa serem imediatistas e quan<strong>do</strong> é aceita, tem uma função<br />
político-social <strong>de</strong> prover um sentimento <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida em um presente<br />
material ou em um futuro espiritual (Bauman, 2005). To<strong>do</strong>s esses fatores são aborda<strong>do</strong>s<br />
como facilita<strong>do</strong>res para a formação e produção <strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente em conflito com a lei.<br />
Diante <strong>de</strong>sse quadro, o trabalho <strong>de</strong> educação musical através <strong>do</strong> canto coral como meio<br />
<strong>de</strong> inclusão torna-se <strong>de</strong> extrema importância, tanto para o a<strong>do</strong>lescente em cumprimento<br />
<strong>de</strong> medida sócio-educativa quanto para a socieda<strong>de</strong>. Acreditamos que o preparo a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> educa<strong>do</strong>r musical para lidar com esses a<strong>do</strong>lescentes facilitará a cognição musical<br />
e permitirá alcançar o objetivo maior, que é a sua inclusão na socieda<strong>de</strong> através da<br />
música.<br />
Introdução<br />
Este artigo, adapta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s capítulos da tese que estou <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> sobre<br />
educação musical <strong>de</strong> a<strong>do</strong>lescentes em cumprimento <strong>de</strong> medida sócio-educativa, dis-<br />
555
556<br />
cute os fatores sociais e psicológicos que po<strong>de</strong>m interferir na cognição da educação<br />
musical através <strong>do</strong> canto coral em uma classe <strong>de</strong> a<strong>do</strong>lescentes em cumprimento <strong>de</strong><br />
medida sócio-educativa, como também as diversas causas <strong>do</strong> comportamento problemático<br />
que po<strong>de</strong> surgir na sala <strong>de</strong> aula e sugere atitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong> educa<strong>do</strong>r musical<br />
ante tais comportamentos. Po<strong>de</strong>-se consi<strong>de</strong>rar que um a<strong>do</strong>lescente em cumprimento<br />
<strong>de</strong> medida sócio-educativa tenha esse comportamento <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a um conjunto<br />
<strong>de</strong> fatores <strong>de</strong> natureza psicológica, sua condição familiar e social. Partin<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> princípio <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>linquência é a violação da lei, ela não escolhe classe social.<br />
Pressupõe-se que to<strong>do</strong>s têm as mesmas oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conhecimento e interiorização<br />
<strong>de</strong> valores e normas sociais, e que to<strong>do</strong>s estão sujeitos à advertência ou punição<br />
pela sua infração. A <strong>de</strong>linquência é comum na a<strong>do</strong>lescência: “é <strong>de</strong> se supor,<br />
portanto, que exista uma íntima relação entre <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente e<br />
comportamentos <strong>de</strong>linquentes” (Gomi<strong>de</strong>, 1990, p. 33).<br />
Os fatores psicossociais são estuda<strong>do</strong>s com o objetivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>linear a relação entre o<br />
mun<strong>do</strong> interno <strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente em cumprimento <strong>de</strong> medida sócio-educativa e o externo,<br />
ou seja, sua psique e o mun<strong>do</strong> social. Os fatores relaciona<strong>do</strong>s à família abordam<br />
o processo educativo, os maus tratos e a negligência na infância, a ruptura<br />
familiar e a indisponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recursos mínimos para a sobrevivência (Gomi<strong>de</strong>,<br />
1990). Os fatores relaciona<strong>do</strong>s à baixa escolarida<strong>de</strong> <strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente em cumprimento<br />
<strong>de</strong> medida sócio-educativa estão submeti<strong>do</strong>s aos fatos <strong>de</strong> pertencer a uma<br />
classe social <strong>de</strong>sprivilegiada, da incompatibilida<strong>de</strong> entre as aspirações e as chances<br />
reais <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> social promovidas pela escola, e <strong>de</strong> apresentarem diversos problemas<br />
<strong>de</strong> aprendizagem (Bourdieu, 1983). Os fatores relaciona<strong>do</strong>s ao trabalho<br />
abordam a luta <strong>de</strong> classes resultante <strong>do</strong> sistema político-econômico capitalista (Bauman,<br />
2005). Os fatores relaciona<strong>do</strong>s à religião abordam sua rejeição <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao fato<br />
<strong>do</strong>s a<strong>do</strong>lescentes em cumprimento <strong>de</strong> medida sócio-educativa serem imediatistas e<br />
quan<strong>do</strong> é aceita, tem uma função político-social <strong>de</strong> prover um sentimento <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> vida em um presente material ou em um futuro espiritual (Bauman,<br />
2005). To<strong>do</strong>s esses fatores são aborda<strong>do</strong>s como facilita<strong>do</strong>res para a formação e produção<br />
<strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente em conflito com a lei.<br />
Da mesma forma, to<strong>do</strong>s esses fatores interferirão na cognição musical <strong>de</strong> a<strong>do</strong>lescentes<br />
em cumprimento <strong>de</strong> medida sócio-educativa. Diante <strong>de</strong>sse quadro, o trabalho<br />
<strong>de</strong> educação musical através <strong>do</strong> canto coral como meio <strong>de</strong> inclusão torna-se <strong>de</strong><br />
extrema importância, tanto para o a<strong>do</strong>lescente em cumprimento <strong>de</strong> medida sócioeducativa<br />
quanto para a socieda<strong>de</strong>. Acreditamos que o preparo a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> <strong>do</strong> educa<strong>do</strong>r<br />
musical para lidar com esses a<strong>do</strong>lescentes facilitará a cognição musical e<br />
permitirá alcançar o objetivo maior, que é a sua inclusão na socieda<strong>de</strong> através da<br />
música. Para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>ssa pesquisa, formulei a seguinte hipótese: a aplicação<br />
da educação musical aos a<strong>do</strong>lescentes em cumprimento <strong>de</strong> medida sócio-educativa<br />
através <strong>do</strong> canto coral será mais eficiente como meio <strong>de</strong> inclusão se for
diferenciada ao se levar em conta os seguintes fatores: 1) Os fatores sócio-culturais<br />
<strong>do</strong>s a<strong>do</strong>lescentes em cumprimento <strong>de</strong> medida sócio-educativa <strong>de</strong>vem ser <strong>do</strong> conhecimento<br />
<strong>do</strong> educa<strong>do</strong>r musical para que o possível surgimento <strong>de</strong> problemas seja<br />
contorna<strong>do</strong>, pois po<strong>de</strong>m surgir como obstáculos para o bom <strong>de</strong>senvolvimento da<br />
aula; 2) As diversas reações comportamentais, sempre relacionadas à história <strong>do</strong><br />
a<strong>do</strong>lescente, <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>radas, compreendidas e contornadas durante as aulas<br />
para que estas sejam prazerosas; 3) As referências musicais e as condições <strong>do</strong> aparelho<br />
fona<strong>do</strong>r <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>radas ao se escolher o repertório e ao se aplicar a<br />
técnica vocal, pois os danos vocais e a falta <strong>de</strong> técnica po<strong>de</strong>m levar à frustração <strong>de</strong><br />
uma má execução e consequentemente à baixa auto-estima, ao <strong>de</strong>sinteresse e/ou à<br />
<strong>de</strong>sistência <strong>do</strong> curso; 4) O conteú<strong>do</strong> teórico musical <strong>de</strong>ve ser básico, relaciona<strong>do</strong> aos<br />
elementos musicais que surgem nas partituras utilizadas na aula, aplica<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma<br />
lúdica e sua exposição <strong>de</strong>ve a<strong>de</strong>quar-se ao tempo mínimo e máximo <strong>de</strong> permanência<br />
<strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente em cumprimento <strong>de</strong> medida sócio-educativa.<br />
A Família<br />
A instituição familiar se enfraqueceu por diversos motivos: pauperização, arbitrarieda<strong>de</strong>s,<br />
drogas, álcool, violência, prostituição, aban<strong>do</strong>no e rejeição <strong>do</strong>s filhos. As<br />
boas condições das relações familiares são <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância, pois “[. . .] os comportamentos<br />
anti-sociais somente se <strong>de</strong>senvolvem se houver condições propícias<br />
na família” (Gomi<strong>de</strong>, 1990, p. 38). Aliada à pauperização — e esse motivo não justifica<br />
os atos infracionais <strong>de</strong> menores <strong>de</strong> classes abastadas, mas somente é váli<strong>do</strong><br />
para elas quan<strong>do</strong> são atingidas por algum tipo <strong>de</strong> instabilida<strong>de</strong> financeira —, o processo<br />
educativo a que as crianças são submetidas no leito familiar <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>iam<br />
comportamentos anti-sociais. A disciplina relaxada po<strong>de</strong> levar à <strong>de</strong>linquência, assim<br />
como também a punição inconsistente, pois ela não possibilita vir à consciência o<br />
efeito das ações: “a punição inconsistente ou não-contingente interfere sobretu<strong>do</strong><br />
na percepção <strong>do</strong> indivíduo, prejudican<strong>do</strong> a sua avaliação no que se refere aos efeitos<br />
que suas ações tem sobre os outros e sobre o meio” (Gomi<strong>de</strong>, 1990, p. 39). Nesse<br />
senti<strong>do</strong>, a punição aplicada sem fins educativos — como extravasamento <strong>de</strong> um sentimento<br />
colérico, <strong>de</strong>sacompanhada em seu contexto <strong>de</strong> qualquer tipo <strong>de</strong> afetivida<strong>de</strong><br />
— provocará um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> carência que se refletirá na predisposição para atos<br />
infracionais: “a ligação entre a carência e o crime é proporcionada pela assertiva <strong>de</strong><br />
que a carência prejudica fortemente a capacida<strong>de</strong> para constituir relações afetivas<br />
com os outros, que po<strong>de</strong>m, então, ser prejudica<strong>do</strong>s sem remorso” (Gomi<strong>de</strong>, 1990,<br />
p. 39). As técnicas educativas serão eficientes se forem orientadas pelo amor <strong>de</strong> tal<br />
forma que haja interiorização <strong>de</strong> valores morais: “[. . .] a aquisição e internalização<br />
<strong>de</strong> valores morais e a socialização necessitam da mediação <strong>do</strong> afeto para serem instaladas<br />
nos indivíduos [. . .]” (Gomi<strong>de</strong>, 1990, p. 86). Para que essa interiorização<br />
ocorra, é importante que haja uma proximida<strong>de</strong> entre o castigo e a transgressão e<br />
557
558<br />
que seja feita uma autocrítica após o ato. Os mo<strong>de</strong>los mais comuns <strong>de</strong> agressivida<strong>de</strong><br />
na família são as brigas entre pais e a <strong>de</strong>linquência em um <strong>de</strong> seus membros,<br />
mas para que o mo<strong>de</strong>lo seja imita<strong>do</strong> é preciso que tenha algum tipo <strong>de</strong> status relaciona<strong>do</strong><br />
ao po<strong>de</strong>r.<br />
Os maus tratos e a negligência na infância também são <strong>de</strong>terminantes <strong>do</strong> comportamento<br />
em conflito com a lei. Quan<strong>do</strong> a criança é submetida ao po<strong>de</strong>r <strong>do</strong>s pais<br />
através <strong>do</strong> sofrimento <strong>de</strong> maus tratos ou é negligenciada no que tange aos cuida<strong>do</strong>s<br />
que <strong>de</strong>ve ter, a ação <strong>do</strong>s pais servirá <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo e exercerá forte influência no comportamento<br />
<strong>do</strong>s filhos e os po<strong>de</strong>rá levar à <strong>de</strong>linquência.<br />
A família é o primeiro agente socializa<strong>do</strong>r, mas ao nos <strong>de</strong>pararmos com as ações<br />
que “<strong>de</strong>smancham no ar” as não tão sólidas instituições sociais, percebemos que<br />
são ações niilistas na construção <strong>de</strong> uma nova or<strong>de</strong>m. Nessa nova or<strong>de</strong>m está embutida<br />
a problemática da ruptura familiar. Apesar da paixão pela mutabilida<strong>de</strong>, os<br />
menores em situação <strong>de</strong> risco têm necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> terem vínculos dura<strong>do</strong>uros, principalmente<br />
no que tange aos laços familiares:<br />
“Precisamos <strong>de</strong> relacionamentos, e <strong>de</strong> relacionamentos em que possamos servir<br />
para alguma coisa, relacionamentos aos quais possamos referir-nos no intuito <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>finirmos a nós mesmos. [. . .] precisamos <strong>de</strong>les, precisamos muito, e não apenas<br />
pela preocupação moral com o bem-estar <strong>do</strong>s outros, mas para o nosso próprio<br />
bem, pelo benefício da coesão e da lógica <strong>de</strong> nosso próprio ser” (Bauman,<br />
2005, p.75).<br />
Assim, percebemos que há um para<strong>do</strong>xo no que diz respeito aos <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> relacionamentos,<br />
mas o que sempre acaba imperan<strong>do</strong> não é o cultivo longo e cuida<strong>do</strong>so das<br />
relações, mas o imediatismo na satisfação <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sejos e na solução <strong>de</strong> problemas<br />
que está intimamente relaciona<strong>do</strong> a um sentimento he<strong>do</strong>nista: o mais importante<br />
é o prazer próprio sem se importar com os meios para consegui-lo, um sentimento<br />
que não leva em consi<strong>de</strong>ração as consequências futuras <strong>do</strong>s atos: “as coisas <strong>de</strong>vem<br />
estar prontas para consumo imediato” (Bauman, 2005, p. 81).<br />
Este tipo <strong>de</strong> reação <strong>do</strong> menor em situação <strong>de</strong> risco aos relacionamentos se dá <strong>de</strong>vi<strong>do</strong><br />
à visão que tem <strong>de</strong> família, pois os problemas relaciona<strong>do</strong>s a ela são vários: alguns<br />
não têm nenhum contato com a família, outros não têm um <strong>do</strong>s genitores, outros<br />
têm o pai alcoólatra ou inváli<strong>do</strong>, e outros têm os pais muito severos. A separação da<br />
família, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> ter si<strong>do</strong> antes ou no momento da institucionalização, se<br />
dá em meio a uma crise que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>pressão, culpa, necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reparação<br />
ou castigo. O caráter histórico da relação <strong>do</strong> menor com sua família <strong>de</strong>terminará as<br />
causas da infração que o levou ao confinamento: o processo educacional violento e<br />
a ausência <strong>de</strong> orientação e afeto permitem ao menor em situação <strong>de</strong> risco vislumbrar<br />
a rua como alternativa para ter dinheiro e emoção. O perfil das famílias da<br />
maioria <strong>do</strong>s menores em situação <strong>de</strong> risco é o seguinte: socialmente <strong>de</strong>sorganizadas,<br />
lares <strong>de</strong>sfeitos, extrema pobreza. A indisponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recursos mínimos para a so-
evivência é um <strong>do</strong>s fatores que levam à marginalização social e consequentemente<br />
à <strong>de</strong>linquência. Outros motivos que po<strong>de</strong>m levar à <strong>de</strong>linquência são: o aban<strong>do</strong>no,<br />
a orfanda<strong>de</strong>, a dissolução familiar, a ausência <strong>do</strong> pai ou da mãe, o alcoolismo, o <strong>de</strong>semprego<br />
<strong>do</strong>s pais. A visão da família entre os menores em situação <strong>de</strong> risco é antagônica,<br />
principalmente entre os que foram aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s: alguns sentem<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir ou reencontrar algum familiar para que ela seja preservada<br />
(por apresentar uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> segurança e sentimento <strong>de</strong> pertencimento);<br />
outros mostram uma visão negativa e completo <strong>de</strong>sinteresse por ela no<br />
momento <strong>de</strong> um possível reencontro. Preferem dizer-se órfãos a assumirem o aban<strong>do</strong>no.<br />
Apesar da visão negativa da família, os aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s têm a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
saber que possuem uma para seu autoconhecimento. O <strong>de</strong>sequilíbrio da presença<br />
<strong>do</strong> pai e/ou da mãe na vida <strong>do</strong> menor em situação <strong>de</strong> risco po<strong>de</strong> “[. . .] tornar-se o<br />
mais grave fator na <strong>de</strong>sorganização da personalida<strong>de</strong>” (Erikson apud Campos, 1981,<br />
p. 84). Há muitos motivos <strong>de</strong> revolta relaciona<strong>do</strong>s à família no interior <strong>do</strong> menor<br />
em situação <strong>de</strong> risco, geralmente relaciona<strong>do</strong>s à sua dissolução e suas consequências.<br />
A família torna-se um núcleo <strong>de</strong> problemas: padrasto, madrasta, alcoolismo, ociosida<strong>de</strong>,<br />
miséria. O sentimento <strong>de</strong> culpa por não conseguir se adaptar aos familiares<br />
produz uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reparo material. Para alguns a família tem um valor<br />
neutro: tanto faz estar junto ou separa<strong>do</strong> <strong>de</strong>la. A visão da figura paterna é a <strong>de</strong> um<br />
ausente. A figura i<strong>de</strong>alizada <strong>do</strong> pai é <strong>de</strong> supri<strong>do</strong>r <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s materiais, mas sem<br />
nenhuma afetivida<strong>de</strong>. A figura materna contém um para<strong>do</strong>xo: ela é consi<strong>de</strong>rada vítima<br />
da <strong>de</strong>sestrutura familiar e ao mesmo tempo é rejeita<strong>do</strong>ra, mas a rejeição materna<br />
é sempre justificada e racionalizada, apesar <strong>de</strong> alguns se sentirem preteri<strong>do</strong>s<br />
pela mãe em função <strong>de</strong> um padrasto. Assim, o conceito <strong>de</strong> família se resume em<br />
mãe, irmãos e, às vezes, padrasto. O menor em situação <strong>de</strong> risco que sofreu aban<strong>do</strong>no<br />
encontra-se em um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> alienação no qual “[. . .] compara-se a não estar<br />
nem ‘aqui’ (instituição), nem ‘lá’ (família), e em não ter substituto possível para<br />
ocupar um lugar que, sen<strong>do</strong> simultaneamente <strong>de</strong>seja<strong>do</strong> e repeli<strong>do</strong>, é sempre uma ausência<br />
(<strong>do</strong> pai) ou um conflito (por causa da mãe)” (Campos, 1981, p. 88). As marcas<br />
da alienação são irreversíveis, pois o menor em situação <strong>de</strong> risco se sente<br />
marginaliza<strong>do</strong> mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> recupera<strong>do</strong>:<br />
“Compreen<strong>de</strong>-se que a saída da instituição não po<strong>de</strong> ser o estabelecimento <strong>de</strong><br />
um novo contrato social, e que se perpetue o esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> alienação. A socialização<br />
alimenta o senti<strong>do</strong> aliena<strong>do</strong>r e adquire, para o Menor, uma significação ‘corretiva’<br />
(normalização), impedin<strong>do</strong> a produção <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal diferenciada.<br />
Ele permanece sen<strong>do</strong> a ‘imagem que tem <strong>do</strong>s outros e a imagem que<br />
os outros têm <strong>de</strong>le’, uma imagem da sua própria alienação” (Campos, 1981, p.<br />
97).<br />
São muitos os sentimentos que surgem no perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sligamento da instituição:<br />
a fantasia <strong>do</strong> encontro com a família, i<strong>de</strong>alização <strong>de</strong>sse relacionamento e a frustração<br />
ao se conscientizar da realida<strong>de</strong>. Por esses motivos, há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> preparar<br />
559
560<br />
a família para receber o menor em situação <strong>de</strong> risco. E ainda há a agravante <strong>de</strong> que<br />
algumas famílias visitam poucas vezes os internos, outras nunca visitam. Essa atitu<strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong> ser justificada pelo fato <strong>de</strong> as instituições abarcarem menores <strong>de</strong> diversas regiões,<br />
mas se concentrarem nos gran<strong>de</strong>s centros, o que dificulta o acesso <strong>do</strong>s familiares,<br />
em sua maioria com pequeno po<strong>de</strong>r aquisitivo. De qualquer forma, o<br />
aparente <strong>de</strong>sinteresse <strong>do</strong>s familiares pelo menor institucionaliza<strong>do</strong> provoca um sentimento<br />
<strong>de</strong> aban<strong>do</strong>no e revolta e faz com que alguns se mostrem resistentes em voltar<br />
à convivência com a família.<br />
A Escola<br />
Normalmente a família <strong>do</strong> menor em situação <strong>de</strong> risco está inserida nos estratos<br />
mais baixos da hierarquia social e apresenta baixo nível <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong> e qualificação<br />
profissional. Há alguns fatores que precisamos consi<strong>de</strong>rar ao analisarmos as razões<br />
<strong>do</strong> baixo nível <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong> entre os menores em situação <strong>de</strong> risco. Primeiro<br />
é preciso consi<strong>de</strong>rar que existe um estereótipo <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong> associa<strong>do</strong> à irresponsabilida<strong>de</strong>,<br />
virilida<strong>de</strong>, virtu<strong>de</strong>, violência, amor, além <strong>de</strong> estar classificada em uma<br />
faixa etária. Mas, “[. . .] a ida<strong>de</strong> é um da<strong>do</strong> biológico socialmente manipula<strong>do</strong> e manipulável;<br />
[. . .] o fato <strong>de</strong> falar <strong>do</strong>s jovens como se fossem uma unida<strong>de</strong> social, um<br />
grupo constituí<strong>do</strong>, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> interesses comuns, e relacionar estes interesses a uma<br />
ida<strong>de</strong> <strong>de</strong>finida biologicamente já constitui uma manipulação evi<strong>de</strong>nte” (Bourdieu,<br />
1983, p. 113). Nesse senti<strong>do</strong>, a juventu<strong>de</strong> vai per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> suas características conforme<br />
vai possuin<strong>do</strong> atributos <strong>do</strong>s adultos que estão relaciona<strong>do</strong>s ao ter po<strong>de</strong>r: é a<br />
submissão às leis específicas <strong>do</strong> envelhecimento. Encontramos, pois, duas juventu<strong>de</strong>s:<br />
uma <strong>de</strong> classe social privilegiada e outra <strong>de</strong>sprivilegiada, fato que proporcionará<br />
diferentes experiências para as duas. Seria preciso analisar as diferenças entre<br />
as duas juventu<strong>de</strong>s no que diz respeito às condições <strong>de</strong> vida, pois <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> temos<br />
jovens que já trabalham e <strong>do</strong> outro, os que são apenas estudantes.<br />
“De um la<strong>do</strong>, as coerções <strong>do</strong> universo econômico real, apenas atenuadas pela solidarieda<strong>de</strong><br />
familiar; <strong>do</strong> outro, as facilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma economia <strong>de</strong> assisti<strong>do</strong>s<br />
quasi-lúdica, fundada na subvenção, com alimentação e moradia e preços baixos,<br />
entradas para teatro e cinema a preço reduzi<strong>do</strong>, etc. Encontraríamos diferenças<br />
análogas em to<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>mínios da existência [. . .]” (Bourdieu, 1983, p. 113).<br />
Mas a classe social <strong>de</strong>sprivilegiada, que não permitia ao jovem <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong>ssa fase<br />
pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> assumir responsabilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma pessoa adulta para po<strong>de</strong>r sobreviver,<br />
<strong>de</strong>scobriu o status <strong>de</strong> ser a<strong>do</strong>lescente no qual o indivíduo é meio criança<br />
e meio adulto, ou nem criança e nem adulto, o que faz com que o jovem tenha uma<br />
existência separada, como se estivesse “socialmente fora <strong>do</strong> jogo”. Durante a infância<br />
e a a<strong>do</strong>lescência todas as atitu<strong>de</strong>s e idéias <strong>de</strong> uma nova situação são transmitidas<br />
e recebidas inconsciente e involuntariamente. O que é conscientemente aprendi<strong>do</strong><br />
pertence a uma classe <strong>de</strong> problemas que necessita <strong>de</strong> reflexão. Mannheim diz que<br />
“[. . .] no início da infância até mesmo muitos elementos reflexivos são assimila<strong>do</strong>s
<strong>de</strong> maneira ‘não-problemática’ [. . .]. A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que ele realmente questione<br />
e reflita sobre as coisas surge apenas no ponto on<strong>de</strong> começa a experimentação pessoal<br />
com a vida — por volta <strong>do</strong>s 17 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> [. . .]” (Mannheim, 1982, p. 82).<br />
Por menor que seja o perío<strong>do</strong> da a<strong>do</strong>lescência na vida <strong>do</strong> indivíduo, ele é importante<br />
para que haja a experiência da ruptura com o mun<strong>do</strong> jovem para entrar no mun<strong>do</strong><br />
adulto. E o que acontece no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> menor em situação <strong>de</strong> risco é que essa ruptura<br />
normalmente acontece muito ce<strong>do</strong> pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sobrevivência, pois ele<br />
entra para o mun<strong>do</strong> adulto a partir <strong>do</strong> momento que encara os atos infracionais<br />
como meio <strong>de</strong> ganhar dinheiro, ou seja, po<strong>de</strong>r.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, a escola produz uma incompatibilida<strong>de</strong> das aspirações com as chances<br />
reais: “a escola [. . .] é também uma instituição que conce<strong>de</strong> títulos, isto é, direitos,<br />
e, ao mesmo tempo, confere aspirações. [. . .] seus complexos <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos<br />
[. . .] fazem as pessoas terem aspirações incompatíveis com suas chances reais”<br />
(Bourdieu, 1983, p. 115). Houve uma época em que a escola era para poucos e realmente<br />
proporcionava a mobilida<strong>de</strong> social daqueles que a frequentavam e adquiriam<br />
seus títulos. Dessa forma ela alimentou o sonho da mobilida<strong>de</strong> social para<br />
muitos da classe social <strong>de</strong>sprivilegiada. Atualmente ela é para to<strong>do</strong>s, mas não consegue<br />
realizar o sonho <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s que a frequentam.<br />
“Ora, quan<strong>do</strong> os filhos das classes populares não estavam no sistema, o sistema<br />
não era o mesmo. Há a <strong>de</strong>svalorização pelo simples efeito da inflação e, ao<br />
mesmo tempo, também pelo fato <strong>de</strong> se modificar a “qualida<strong>de</strong> social” <strong>do</strong>s <strong>de</strong>tentores<br />
<strong>do</strong>s títulos. Os efeitos da inflação escolar são mais complica<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que<br />
se costuma dizer: <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao fato <strong>de</strong> que os títulos sempre valem o que valem<br />
seus <strong>de</strong>tentores, um título que se torna mais freqüente torna-se por isso mesmo<br />
<strong>de</strong>svaloriza<strong>do</strong>, mas per<strong>de</strong> ainda mais seu valor por se torna [sic: tornar] acessível<br />
a pessoas sem “valor social” (Bourdieu, 1983, p. 116).<br />
Assim, encontramos uma <strong>de</strong>fasagem entre as aspirações e as oportunida<strong>de</strong>s <strong>do</strong><br />
menor em situação <strong>de</strong> risco, causan<strong>do</strong> <strong>de</strong>cepção e recusa <strong>de</strong> seguir adiante com os<br />
estu<strong>do</strong>s formais, o que provoca um baixo nível <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong> entre eles.<br />
A discriminação e rejeição <strong>de</strong> uma criança <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> às suas dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprendizagem<br />
po<strong>de</strong>m levá-la a rejeitar os valores <strong>do</strong> sistema educacional e social e a a<strong>de</strong>rir<br />
à <strong>de</strong>linquência. Por isso, o educa<strong>do</strong>r <strong>de</strong>ve i<strong>de</strong>ntificar no menor em situação <strong>de</strong> risco<br />
distúrbios <strong>de</strong> aprendizagem: dislexia (dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura, inversão <strong>de</strong> sinais gráficos),<br />
disfasia (dificulda<strong>de</strong> na comunicação verbal, na compreensão e expressão) e<br />
hiperativida<strong>de</strong> (ativida<strong>de</strong> motora não direcionada, excessiva impulsivida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>satenção).<br />
Muitas <strong>de</strong>ssas dificulda<strong>de</strong>s têm sua origem na pobreza e po<strong>de</strong>riam ser solucionadas<br />
se a escola tivesse um outro tipo <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong> face à ela. Por ter si<strong>do</strong><br />
i<strong>de</strong>alizada para aten<strong>de</strong>r aos filhos da elite, o pobre não consegue se adaptar a ela e<br />
vai gradativamente sen<strong>do</strong> elimina<strong>do</strong> numa espécie <strong>de</strong> “seleção natural”. A escola<br />
não está preparada para o atendimento da criança pobre, pois esta é rejeitada porque<br />
tem dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprendizagem. O programa <strong>de</strong> reabilitação <strong>do</strong> menor em<br />
561
562<br />
situação <strong>de</strong> risco <strong>de</strong>ve levar em conta os problemas <strong>de</strong> aprendizagem e ser elabora<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> forma que se atinja o sucesso, pois a experiência <strong>do</strong> sucesso resgata a autoestima:<br />
“Expor o a<strong>do</strong>lescente problema a uma situação na qual ele possa<br />
experienciar o sucesso é um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> se atingir o objetivo, por outro la<strong>do</strong>, experienciar<br />
outro fracasso somente servirá para agravar a percepção <strong>de</strong> incompetência<br />
já instalada anteriormente” (Gomi<strong>de</strong>, 1990, p. 46). O <strong>de</strong>sligamento da escola favorece<br />
o engajamento ao grupo da rua. Assim, o rebaixamento da auto-estima na família<br />
e na escola faz com que busque sua elevação através <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong><br />
comportamento anti-social nas ruas. Esse tipo <strong>de</strong> comportamento interferirá diretamente<br />
em sua relação com o trabalho.<br />
O Trabalho<br />
O individualismo ganhou uma importância exacerbada em <strong>de</strong>trimento da coletivida<strong>de</strong>.<br />
O menor em situação <strong>de</strong> risco não se preocupa com os danos causa<strong>do</strong>s ao<br />
outro, pois o que importa é a satisfação <strong>do</strong> seu <strong>de</strong>sejo. Na impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conseguir<br />
uma mobilida<strong>de</strong> social através das vias aprovadas pela socieda<strong>de</strong>, vale tu<strong>do</strong><br />
para adquirir as vantagens que ela proporcionaria. Dessa forma, a idéia <strong>de</strong> um<br />
“mun<strong>do</strong> melhor” se encolhe diante <strong>de</strong> causas <strong>de</strong> grupos violentos e categorias <strong>de</strong>sfavorecidas.<br />
As classes privilegiadas da socieda<strong>de</strong> agem da mesma forma que os menores<br />
em situação <strong>de</strong> risco ao se preocuparem unicamente com seu conforto e<br />
sustentarem um <strong>de</strong>scaso com a injustiça econômica e a consequente miséria humana.<br />
Em seu meio não faltam críticos sociais que renunciaram à sua tarefa, pois<br />
não falam <strong>de</strong> dinheiro e limitam-se à <strong>de</strong>fesa da batalha por reconhecimento. Segun<strong>do</strong><br />
Bauman (2005), a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> só surge com a exposição a uma comunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>stino, que são aquelas com as quais se têm afinida<strong>de</strong>s. Dentro <strong>de</strong>sse contexto,<br />
o menor em situação <strong>de</strong> risco constrói forçosamente uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que é estereotipada<br />
e estigmatizada:<br />
“Num <strong>do</strong>s polos da hierarquia global emergente estão aqueles que constituem e<br />
<strong>de</strong>sarticulam as suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s mais ou menos à própria vonta<strong>de</strong>, escolhen<strong>do</strong>as<br />
no leque <strong>de</strong> ofertas extraordinariamente amplo, <strong>de</strong> abrangência planetária.<br />
No outro polo se abarrotam aqueles que tiveram nega<strong>do</strong> o acesso à escolha da<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, que não têm direito <strong>de</strong> manifestar as suas preferências e que no final<br />
se veem oprimi<strong>do</strong>s por i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s aplicadas e impostas por outros — i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> que eles próprios se ressentem, mas não têm permissão <strong>de</strong> aban<strong>do</strong>nar<br />
nem das quais conseguem se livrar. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s que estereotipam, humilham,<br />
<strong>de</strong>sumanizam, estigmatizam. . .” (Bauman, 2005, p. 44).<br />
Tais i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s parecem ser maquinadas e impostas <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da<br />
subclasse seja a ausência <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ssa forma a subclasse tenha a vida humana<br />
anulada:<br />
“Mas mesmo as pessoas a quem se negou o direito <strong>de</strong> a<strong>do</strong>tar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua<br />
escolha (situação universalmente abominada e temida) ainda não pousaram nas
egiões inferiores da hierarquia <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Há ainda um espaço mais abjeto —<br />
um espaço abaixo <strong>do</strong> fun<strong>do</strong>. Nele caem (ou melhor, são empurradas) as pessoas<br />
que têm nega<strong>do</strong> o direito <strong>de</strong> reivindicar uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> distinta da classificação<br />
atribuída e imposta. [. . .] Se você foi <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> à subclasse (porque aban<strong>do</strong>nou<br />
a escola, é mãe solteira viven<strong>do</strong> da previdência social, vicia<strong>do</strong> ou ex-vicia<strong>do</strong> em<br />
drogas, sem-teto, mendigo ou membro <strong>de</strong> outras categorias arbitrariamente excluídas<br />
da lista oficial <strong>do</strong>s que são consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s e admissíveis), qualquer<br />
outra i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que você possa ambicionar ou lutar para obter lhe é<br />
negada a priori. O significa<strong>do</strong> da ‘i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da subclasse’ é a ausência <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>,<br />
a abolição ou negação da individualida<strong>de</strong>, <strong>do</strong> ‘rosto’ — esse objeto <strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>ver ético e da preocupação moral. Você é excluí<strong>do</strong> <strong>do</strong> espaço social em que as<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s são buscadas, escolhidas, construídas, avaliadas, confirmadas ou refutadas”<br />
(Bauman, 2005, p. 45-46, grifos <strong>do</strong> autor).<br />
Assim, a estrutura <strong>de</strong> classes atua como fator <strong>de</strong>terminante da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Há uma<br />
produção globalizada <strong>de</strong> “lixo humano”, ou seja, pessoas rejeitadas e excluídas, mas<br />
necessárias ao bom andamento <strong>do</strong> sistema capitalista, apesar <strong>de</strong> não fazerem parte<br />
<strong>de</strong> nenhuma linha <strong>de</strong> produção. O fato <strong>de</strong> não fazerem parte da produção <strong>de</strong> capital<br />
faz com que o sistema capitalista soma<strong>do</strong> à <strong>do</strong>minação política e militar provoquem<br />
a mudança da exploração para a exclusão:<br />
“O ‘lixo humano’ tem si<strong>do</strong> <strong>de</strong>speja<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início em to<strong>do</strong>s os lugares nos quais<br />
essa economia foi praticada. [. . .] a expansão da economia capitalista finalmente<br />
se emparelhou com a amplitu<strong>de</strong> global da <strong>do</strong>minação política e militar <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte,<br />
e assim a produção <strong>de</strong> ‘pessoas rejeitadas’ se tornou um fenômeno mundial.<br />
No presente estágio planetário, o ‘problema <strong>do</strong> capitalismo’, a disfunção<br />
mais gritante e potencialmente explosiva da economia capitalista, está mudan<strong>do</strong><br />
da exploração para a exclusão. É essa exclusão, mais <strong>do</strong> que a exploração apontada<br />
por Marx um século e meio atrás, que hoje está na base <strong>do</strong>s casos mais evi<strong>de</strong>ntes<br />
<strong>de</strong> polarização social, <strong>de</strong> aprofundamento da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> aumento<br />
<strong>do</strong> volume <strong>de</strong> pobreza, miséria e humilhação” (Bauman, 2005, p. 47).<br />
Visto que, se por um la<strong>do</strong> o sistema econômico exclui essas pessoas, por outro o sistema<br />
político precisa <strong>de</strong>las, pois se tornam objetos <strong>de</strong> promoção <strong>de</strong>le próprio. O<br />
processo <strong>de</strong> inclusão se dá através da política social e é ela que po<strong>de</strong> sustentar uma<br />
i<strong>de</strong>ologia, talvez utópica, <strong>de</strong> que a socieda<strong>de</strong> se uniria para minimizar o problema<br />
da miséria humana. Nesse senti<strong>do</strong>, a história <strong>do</strong>s menores em situação <strong>de</strong> risco po<strong>de</strong><br />
ser mudada, pois quan<strong>do</strong> se trata da história <strong>de</strong> seres humanos <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong><br />
e po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão, ela não segue as leis inflexíveis da fatalida<strong>de</strong>. Mas alguns<br />
motivos fazem com que a história <strong>do</strong> menor em situação <strong>de</strong> risco continue se <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong><br />
na criminalida<strong>de</strong>, a começar pela omissão <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>: “indivíduos enfrentan<strong>do</strong><br />
os <strong>de</strong>safios da vida e orienta<strong>do</strong>s a buscar soluções privadas para problemas<br />
socialmente produzi<strong>do</strong>s não po<strong>de</strong>m esperar muita ajuda <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, cujos po<strong>de</strong>res<br />
restritos não prometem muito — e garantem menos ainda” (Bauman, 2005, p. 51).<br />
Além da omissão <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, encontramos uma elite que exclui para manter seu status,<br />
pois uma classe <strong>do</strong>minante só subsiste on<strong>de</strong> existe uma classe <strong>do</strong>minada. A fa-<br />
563
564<br />
lência <strong>do</strong> sistema carcerário <strong>de</strong>ntro das instituições que se comprometem com a recuperação<br />
<strong>do</strong> menor em situação <strong>de</strong> risco é outro motivo que o mantém na criminalida<strong>de</strong>:<br />
“[. . .] o significa<strong>do</strong> <strong>de</strong> ‘cidadania’ tem si<strong>do</strong> esvazia<strong>do</strong> <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong><br />
seus antigos conteú<strong>do</strong>s, fossem genuínos ou postula<strong>do</strong>s, enquanto as instituições dirigidas<br />
ou en<strong>do</strong>ssadas pelo Esta<strong>do</strong> que sustentavam a credibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse significa<strong>do</strong><br />
têm si<strong>do</strong> progressivamente <strong>de</strong>smanteladas” (Bauman, 2005, p. 51). A política<br />
social tem si<strong>do</strong> ineficiente, muitas vezes boicotada pelos setores internos das instituições<br />
correcionais, favorecen<strong>do</strong> a continuida<strong>de</strong> <strong>do</strong> sistema repressor apoia<strong>do</strong> por<br />
um sistema judiciário <strong>de</strong>scomprometi<strong>do</strong> com a solução <strong>do</strong> aban<strong>do</strong>no e carência.<br />
Enfim, a falta <strong>de</strong> apoio estatal faz com que o menor em situação <strong>de</strong> risco se empenhe<br />
na busca pelo “caminho individual rumo à felicida<strong>de</strong>”: “eles têm si<strong>do</strong> repetidamente<br />
orienta<strong>do</strong>s a confiarem em suas próprias sagacida<strong>de</strong> [sic; sagacida<strong>de</strong>s],<br />
habilida<strong>de</strong>s e em seu esforço sem esperar que a salvação venha <strong>do</strong> céu [. . .]” (Bauman,<br />
2005, p. 52). A ilusão da mobilida<strong>de</strong> social faz com que usem meios escusos<br />
para consegui-la, sen<strong>do</strong> engana<strong>do</strong>s, trata<strong>do</strong>s como objetos <strong>de</strong>scartáveis, úteis por<br />
pouco tempo: “feri<strong>do</strong>s pela experiência <strong>do</strong> aban<strong>do</strong>no, homens e mulheres <strong>de</strong>sta<br />
nossa época suspeitam ser peões no jogo <strong>de</strong> alguém, <strong>de</strong>sprotegi<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s movimentos<br />
feitos pelos gran<strong>de</strong>s joga<strong>do</strong>res e facilmente renega<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s à pilha <strong>de</strong><br />
lixo quan<strong>do</strong> estes acharem que eles não dão mais lucro” (Bauman, 2005, p. 53). Essa<br />
é uma situação muito comum na máquina <strong>do</strong> tráfico <strong>de</strong> drogas.<br />
É fato que as diferenças reproduzidas pela estrutura <strong>de</strong> classes são <strong>de</strong>correntes <strong>do</strong><br />
sistema capitalista que privilegia uns em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> outros. A maioria das crianças<br />
brasileiras é pobre e essas crianças das classes populares necessitam garantir sua<br />
sobrevivência <strong>de</strong>s<strong>de</strong> ce<strong>do</strong> e são elas que são interpeladas pela polícia e pela justiça em<br />
nome da socieda<strong>de</strong>. Tal <strong>de</strong>sequilíbrio social chegou a um ponto em que a violência,<br />
em seus mais diversos aspectos, tornou-se meio <strong>de</strong> sobrevivência. É consenso geral<br />
que o bem-estar comum <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá <strong>do</strong> esforço <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s: “to<strong>do</strong>s nós <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>mos<br />
uns <strong>do</strong>s outros, e a única escolha que temos é entre garantir mutuamente a vulnerabilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s e garantir mutuamente a nossa segurança comum” (Bauman,<br />
2005, p. 95). O esforço <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s leva-nos a vislumbrar uma utopia: uma irmanda<strong>de</strong><br />
mundial/global que luta pela homogeneização das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, logo, pela homogeneização<br />
das classes sociais.<br />
A Religião<br />
Esse mesmo imediatismo que não permite ao menor em situação <strong>de</strong> risco o cultivo<br />
lento e dura<strong>do</strong>uro <strong>de</strong> um projeto <strong>de</strong> vida que traga perspectivas futuras e que se relacione<br />
à vida material também o impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> vislumbrar uma vida futura espiritual,<br />
e, embora admire e respeite os praticantes <strong>de</strong> uma vida religiosa, o imediatismo os<br />
leva a rejeitá-la: “as pontes que ligam a vida mortal à eternida<strong>de</strong>, laboriosamente<br />
construídas durante milênios, caíram em <strong>de</strong>suso” (Bauman, 2005, p. 82). Por outro
la<strong>do</strong>, a religião assume o papel <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> ao <strong>de</strong>sempenhar a função político-social<br />
<strong>de</strong> prover um sentimento <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida em um presente material ou em um<br />
futuro espiritual. A religião torna-se uma opção <strong>de</strong> resgate da cidadania: “certas varieda<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> igrejas fundamentalistas são particularmente atraentes para a parcela<br />
<strong>de</strong>stituída e empobrecida da população, aqueles que são priva<strong>do</strong>s da dignida<strong>de</strong> humana<br />
e humilha<strong>do</strong>s [. . .]. Essas congregações assumem obrigações e <strong>de</strong>veres aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s<br />
por um Esta<strong>do</strong> social em processo <strong>de</strong> encolhimento” (Bauman, 2005, p.<br />
93).<br />
Conclusão<br />
O estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> importante papel <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> socialização para o ajustamento <strong>do</strong><br />
ser humano po<strong>de</strong> nos levar a enten<strong>de</strong>r a origem <strong>do</strong> comportamento <strong>de</strong>linquente. A<br />
socialização po<strong>de</strong> ser entendida como o processo <strong>de</strong> formação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e é<br />
permeada por diversos fatores: social, cultural, político e econômico. Dentre esses<br />
fatores, o político-econômico tem <strong>de</strong>vasta<strong>do</strong> inúmeras famílias. O sistema capitalista<br />
brasileiro favorece o <strong>de</strong>senvolvimento da marginalida<strong>de</strong> na população exce<strong>de</strong>nte<br />
que é necessária à manutenção <strong>do</strong> sistema capitalista através <strong>do</strong> <strong>de</strong>semprego<br />
e <strong>do</strong> subemprego. Mas não temos nas instituições correcionais apenas a<strong>do</strong>lescentes<br />
da classe <strong>de</strong>sprivilegiada, pois mais <strong>do</strong> que o fator político-econômico, o sócio-cultural<br />
tem atingi<strong>do</strong> inúmeras pessoas sem levar em consi<strong>de</strong>ração sua condição <strong>de</strong> riqueza<br />
ou pobreza. Segun<strong>do</strong> Gomi<strong>de</strong> (1990), várias pesquisas foram realizadas<br />
apontan<strong>do</strong> como uma das principais causas <strong>do</strong>s comportamentos anti-sociais os<br />
problemas na relação com a vida familiar. A teoria que preten<strong>de</strong> explicar a relação<br />
entre origem familiar e <strong>de</strong>linquência através <strong>de</strong> fatores psicossociais <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que as<br />
condições ina<strong>de</strong>quadas na família e fora <strong>de</strong>la originam a <strong>de</strong>linquência. O esfacelamento<br />
<strong>de</strong> instituições — tais como a família e a igreja — têm <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> marcas negativas<br />
na formação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s a<strong>do</strong>lescentes em conflito com a lei. A<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> se forma na história <strong>de</strong> vida <strong>do</strong> indivíduo sen<strong>do</strong> uma intersecção entre<br />
o indivíduo e a estrutura social a que pertence. Os principais fatores culturais responsáveis<br />
pela origem da <strong>de</strong>linquência têm se manifesta<strong>do</strong> através das técnicas educativas,<br />
da estrutura familiar e social, <strong>do</strong>s maus tratos ou da negligência, da cultura,<br />
<strong>do</strong> sistema educacional e da baixa auto-estima. To<strong>do</strong>s esses fatores influenciam diretamente<br />
na cognição musical, <strong>de</strong> forma que não basta apenas o educa<strong>do</strong>r ter consciência<br />
<strong>de</strong>sses fatores, mas é necessário <strong>de</strong>monstrar atitu<strong>de</strong>s que reflitam seu<br />
comprometimento com a educação musical <strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente em cumprimento <strong>de</strong><br />
medida sócio-educativa <strong>de</strong> forma holística através da afetivida<strong>de</strong>. A cognição musical<br />
na prática <strong>do</strong> canto coral ou <strong>de</strong> qualquer outra ativida<strong>de</strong> musical, para a<strong>do</strong>lescentes<br />
em cumprimento <strong>de</strong> medida sócio-educativa ou não, terá um<br />
<strong>de</strong>senvolvimento mais eficaz a partir <strong>do</strong> momento em que o educa<strong>do</strong>r musical <strong>de</strong>monstrar<br />
um olhar mais humano ante seus alunos e buscar um <strong>de</strong>senvolvimento<br />
mais humano <strong>do</strong>s mesmos.<br />
565
566<br />
Referências Bibliográficas<br />
Bauman, Zygmunt. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>: entrevista a Bene<strong>de</strong>tto Vecchi. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar,<br />
2005.<br />
Bourdieu, Pierre. “A ‘juventu<strong>de</strong>’ é apenas uma palavra”. In Questões <strong>de</strong> sociologia, 112-121.<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Marco Zero, 1983.<br />
Campos, Ângela Valadares Dutra <strong>de</strong> Souza. “Menor institucionaliza<strong>do</strong>: um <strong>de</strong>safio para a socieda<strong>de</strong><br />
(atitu<strong>de</strong>s, aspirações e problemas para a sua reintegração à socieda<strong>de</strong>)”. Tese <strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>utora<strong>do</strong>, Instituto <strong>de</strong> Psicologia da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1981.<br />
Duarte, Geni Rosa. “A arte na (da) periferia: sobre. . .vivências”. In Rap e educação, rap é educação,<br />
Elaine Nunes <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> (Org.), 13-22. São Paulo: Summus, 1999.<br />
Ertzogue, Marina Haizenre<strong>de</strong>r. “Disciplina e resistência: institucionalização <strong>de</strong> crianças e<br />
a<strong>do</strong>lescentes infratores no serviço social <strong>de</strong> menores <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul — 1945-<br />
1964”. Tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>, Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letras e Ciências Humanas (Departamento<br />
<strong>de</strong> História Social) da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 2001.<br />
Freire, Paulo. A educação na cida<strong>de</strong>. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 1999.<br />
Gomi<strong>de</strong>, Paula Inez Cunha. “Análise <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> integração <strong>do</strong> menor em situação <strong>de</strong><br />
risco ao meio social”. Tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>, Instituto <strong>de</strong> Psicologia da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
São Paulo, 1990.<br />
Guimarães, Maria Eduarda Araújo. “Rap: transpon<strong>do</strong> as fronteiras da periferia”. In Rap e<br />
educação, rap é educação, Elaine Nunes <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> (Org.), 39-54. São Paulo: Summus,<br />
1999.<br />
Hall, Stuart. A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural na pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. 6ª ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: D&PA, 2001.<br />
———. “Notas sobre a <strong>de</strong>sconstrução popular”. In Da diáspora: i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e mediações culturais,<br />
247-264. Belo Horizonte/Brasília: UFMG/UNESCO, 2003.<br />
Herschmann, Micael. “Apresentação”. In Abalan<strong>do</strong> os anos 90: funk e hip-hop: globalização,<br />
violência e estilo cultural, 6-13. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco, 1997.<br />
———. “Na trilha <strong>do</strong> Brasil contemporâneo”. In Abalan<strong>do</strong> os anos 90: funk e hip-hop: globalização,<br />
violência e estilo cultural, 54-83. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco, 1997.<br />
Mannheim, Karl. “O problema sociológico das gerações”. In Karl Mannheim: sociologia, Marialice<br />
Mencarini Foracchi (Org.), 67-95. (Gran<strong>de</strong>s Cientistas Sociais, 25). São Paulo:<br />
Ática, 1982.<br />
Rocha, Janaína, Mirella Domenich, e Patrícia Casseano. Hip hop: a periferia grita, 9-63. São<br />
Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.<br />
Silva, José Carlos Gomes da. “Arte e educação: a experiência <strong>do</strong> movimento hip hop paulistano”.<br />
In Rap e educação, rap é educação, Elaine Nunes <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> (Org.), 23-38. São<br />
Paulo: Summus, 1999.<br />
Vianna, Hermano. O mun<strong>do</strong> funk carioca. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.<br />
Williams, Raymond. “A cultura é <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s”, 1-12. São Paulo: Departamento <strong>de</strong> Letras da<br />
USP, 1958.
Música erudita e cognição social:<br />
assim se cria um repertório universal<br />
Eliana M. <strong>de</strong> A. Monteiro da Silva<br />
ms.eliana@usp.br / ms_eliana@hotmail.com<br />
ECA — Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />
Resumo<br />
Em seu livro Conversaciones sobre música, cultura e i<strong>de</strong>ntidad, o compositor e musicólogo<br />
Coriún Aharonián chama atenção para a importância da cognição social na formação<br />
<strong>de</strong> conceitos (e preconceitos) que se transformaram em verda<strong>de</strong>s históricas.<br />
Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que a cognição social está associada à percepção <strong>do</strong> indivíduo <strong>do</strong> meio<br />
em que vive e como esta influencia seu mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r e <strong>de</strong>senvolver sua personalida<strong>de</strong>,<br />
o autor responsabiliza o <strong>de</strong>scui<strong>do</strong> “<strong>do</strong>s que nos dizemos interessa<strong>do</strong>s” pela existência<br />
<strong>de</strong> um sentimento <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s países ditos mais <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s — por<br />
serem economicamente prepon<strong>de</strong>rantes — em relação às <strong>de</strong>mais culturas.<br />
Aharonián enfatiza a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma crítica apurada por parte <strong>do</strong>s estudiosos e intelectuais,<br />
para que não passem <strong>de</strong>spercebi<strong>do</strong>s feitos culturais que contribuam com qualquer<br />
tipo <strong>de</strong> política exclu<strong>de</strong>nte. E o presente trabalho apropria-se <strong>de</strong>sta idéia para<br />
<strong>de</strong>nunciar outro tipo <strong>de</strong> preconceito que incidiu — e persiste até os dias <strong>de</strong> hoje, apesar<br />
da menor intensida<strong>de</strong> — sobre o merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> música erudita oci<strong>de</strong>ntal: a exclusão da<br />
composição feminina em geral.<br />
Toman<strong>do</strong> como exemplo a obra da compositora e pianista Clara Schumann, esquecida<br />
por mais <strong>de</strong> um século após sua morte em 1896 apesar <strong>de</strong> sua contribuição para a consolidação<br />
<strong>do</strong> movimento romântico musical, preten<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>monstrar como compositoras<br />
que participaram ativamente da construção da história da música oci<strong>de</strong>ntal foram<br />
ignoradas pela mesma, <strong>de</strong>liberadamente. Um olhar analítico sobre as composições <strong>de</strong><br />
Clara Schumann <strong>de</strong>monstra como a compositora utilizou os mesmos elementos trabalha<strong>do</strong>s<br />
por seus colegas no século XIX, tanto no que tange à ampliação <strong>do</strong>s limites da<br />
forma, harmonia e rítmica, como nos gêneros aborda<strong>do</strong>s.<br />
Após a <strong>do</strong>ença mental que acometeu Robert Schumann levan<strong>do</strong>-o à morte, Clara <strong>de</strong>ixou<br />
<strong>de</strong> compor para <strong>de</strong>dicar-se exclusivamente à carreira <strong>de</strong> concertista — que lhe possibilitava,<br />
além <strong>de</strong> divulgar a obra <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, ganhar mais dinheiro para o sustento da<br />
família. Devi<strong>do</strong> ao pouco interesse que a história reservou à produção musical erudita <strong>de</strong><br />
mulheres, suas composições foram sen<strong>do</strong> esquecidas e Clara tornou-se conhecida <strong>do</strong> público<br />
atual somente através das biografias <strong>de</strong> Robert Schumann, ou seja, como mulher<br />
<strong>de</strong> compositor.<br />
Demonstran<strong>do</strong> como as composições <strong>de</strong> Clara Schumann contribuíram para o processo<br />
<strong>de</strong> transformação sofri<strong>do</strong> pela música oci<strong>de</strong>ntal no século XIX conheci<strong>do</strong> por Romantismo<br />
(com da<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s através <strong>de</strong> análise musical realizada por mim durante a pesquisa <strong>de</strong><br />
Mestra<strong>do</strong>), e como este fato é pouco divulga<strong>do</strong> pelo merca<strong>do</strong> histórico e musical, este<br />
trabalho propõe uma reflexão sobre a importância <strong>de</strong> se realizarem pesquisas sobre composições<br />
<strong>de</strong> mulheres, sob o risco <strong>de</strong> se per<strong>de</strong>r não só uma parte importante da história<br />
das socieda<strong>de</strong>s atuais, como também <strong>de</strong> se empobrecer culturalmente pela falta <strong>de</strong> troca<br />
<strong>de</strong> experiências.<br />
567
568<br />
Introdução: Cultura e cognição social<br />
Em seu livro Conversaciones sobre música, cultura e i<strong>de</strong>ntidad, o compositor e musicólogo<br />
Coriún Aharonián observou que:<br />
“Nem to<strong>do</strong> feito cultural tem conseqüências sociais palpáveis. Mas po<strong>de</strong> ser que<br />
aquele feito cultural que <strong>de</strong>ixamos passar com <strong>de</strong>scui<strong>do</strong>, justo aquele, incida efetivamente<br />
na comunida<strong>de</strong>. Ou que a soma <strong>de</strong> pequenas incidências <strong>de</strong> feitos<br />
culturais aparentemente irrelevantes adquira uma dimensão histórica muito<br />
gran<strong>de</strong>. É por isso (e talvez só por isso) que os que nos dizemos interessa<strong>do</strong>s no<br />
que acontece em nossa socieda<strong>de</strong> temos a obrigação <strong>de</strong> cultivar a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
auto crítica [. . .]”1<br />
Quan<strong>do</strong> se fala em feito cultural (ato, evento ou acontecimento) está-se <strong>de</strong>bruçan<strong>do</strong><br />
sobre um território vasto, que po<strong>de</strong> incluir <strong>de</strong>s<strong>de</strong> uma obra artística até o<br />
movimento social que a ela <strong>de</strong>u origem; <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o aprendiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> signos<br />
que representam a cultura <strong>de</strong> um povo até o sistema que propicia este aprendiza<strong>do</strong>;<br />
ou seja, tu<strong>do</strong> que envolve o conhecimento humano. E se por conhecimento<br />
enten<strong>de</strong>-se tanto a “informação ou noção adquiridas pelo estu<strong>do</strong> ou pela experiência”<br />
, como “consciência <strong>de</strong> si mesmo”, po<strong>de</strong>-se ter uma idéia da dimensão histórica<br />
que certos feitos culturais adquiriram em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s grupos — ou melhor, ocasionaram<br />
— <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à distração <strong>de</strong> muitos membros <strong>de</strong>stas socieda<strong>de</strong>s . . .<br />
O atraso <strong>de</strong> muitos séculos no estu<strong>do</strong> e valorização da produção musical <strong>de</strong> compositores<br />
<strong>do</strong> sexo feminino se <strong>de</strong>ve a um <strong>de</strong>stes <strong>de</strong>scui<strong>do</strong>s que incidiram efetivamente<br />
nas comunida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> oci<strong>de</strong>ntal.2 Pois durante muitos séculos foi<br />
consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> senso comum a inépcia feminina para qualquer ativida<strong>de</strong> intelectual,<br />
o que incluía a composição musical.<br />
Jean-Jacques Rousseau (1712-78) dizia que a natureza da mulher a obrigava a uma<br />
atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> complementação ao homem, “único a encarnar a essência da intelectualida<strong>de</strong>”.3<br />
E o músico Hans Von Büllow (1830-96), um século <strong>de</strong>pois, afirmava<br />
que não haveria jamais uma mulher compositora. “Acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> — dizia — eu <strong>de</strong>testo<br />
isso que representa a emancipação feminina”.4<br />
Sob este estigma <strong>de</strong> incompetência, não admira que as compositoras só começassem<br />
a circular mais livremente pelos ambientes intelectuais a partir <strong>do</strong> século XX, apesar<br />
<strong>de</strong> existirem registros <strong>de</strong> composições que datam da Ida<strong>de</strong> Média.5<br />
Ainda hoje, em pleno século XXI, a produção musical feminina não chega a figurar<br />
em meta<strong>de</strong> <strong>do</strong>s programas das salas <strong>de</strong> concerto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> oci<strong>de</strong>ntal . . .<br />
O exílio das mulheres no âmbito da composição musical.<br />
Po<strong>de</strong>-se atribuir a muitos fatores o atraso da entrada massiva <strong>do</strong> sexo feminino no<br />
rol <strong>do</strong>s compositores eruditos. Mas é inquestionável o fato <strong>de</strong> que o mo<strong>de</strong>lo patriarcal<br />
a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelas socieda<strong>de</strong>s oci<strong>de</strong>ntais <strong>de</strong>finiu on<strong>de</strong>, como, quan<strong>do</strong> e porque
as mulheres <strong>de</strong>veriam atuar. A esta realida<strong>de</strong> somou-se a <strong>de</strong> que a história da música<br />
oci<strong>de</strong>ntal foi pesquisada e registrada por estudiosos <strong>do</strong> sexo masculino, cujos interesses<br />
ignoraram totalmente a participação das mulheres em qualquer processo<br />
musical relevante. Este quadro só começou a mudar quan<strong>do</strong> o acesso às escolas e,<br />
principalmente, às universida<strong>de</strong>s, foi permiti<strong>do</strong> e incentiva<strong>do</strong> ao sexo feminino —<br />
no século XX.<br />
Mas a que se <strong>de</strong>ve tal exílio? Qual a razão <strong>de</strong> tanta resistência? As respostas são várias.<br />
Comecemos por lembrar que a imagem mais difundida da mulher no oci<strong>de</strong>nte<br />
foi criada pela Igreja Católica: a Virgem Maria. Qualquer outro exemplo era visto<br />
pela igreja como uma ameaça à vida espiritual, o que ocasionou a proibição feminina<br />
nos coros e serviços religiosos abertos à comunida<strong>de</strong>. Ao apóstolo Paulo é atribuída<br />
a frase “<strong>de</strong>ixe suas mulheres em silêncio nas igrejas”.6 Também basea<strong>do</strong> na teoria<br />
cristã, Rousseau afirmou que:<br />
“A mulher é o mo<strong>de</strong>lo primordial da humanida<strong>de</strong>. Mas, perdi<strong>do</strong> seu esta<strong>do</strong> natural,<br />
torna-se um ser artificial, falso, mundano. Para se regenerar, ela <strong>de</strong>ve apren<strong>de</strong>r<br />
a viver segun<strong>do</strong> sua verda<strong>de</strong>ira origem. A regeneração passa pelo retorno à<br />
uma linguagem anterior à palavra e à idéia, capaz <strong>de</strong> traduzir o amor conjugal e<br />
maternal.”7<br />
As posições diferencialistas proclamadas por Rousseau foram sen<strong>do</strong> absorvidas e<br />
modificadas por outros filósofos, culminan<strong>do</strong> na criação <strong>do</strong> verbete relativo à mulher<br />
na L’Enciclopédie francesa editada entre 1751 e 1772. O verbete atribuía à mulher<br />
as seguintes qualida<strong>de</strong>s: Femme — ser humano <strong>do</strong> sexo feminino sujeito a<br />
<strong>do</strong>enças, <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> órgãos marca<strong>do</strong>s por uma fraqueza congênita, ossos menos<br />
rígi<strong>do</strong>s que os masculinos, caixa torácica estreita e andar cambaleante. Seu verda<strong>de</strong>iro<br />
<strong>de</strong>stino resume-se à procriação e à ausência <strong>de</strong> toda ativida<strong>de</strong> profissional ou<br />
intelectual.8<br />
Em vista <strong>de</strong>ste panorama, fica claro como a cognição social foi se sedimentan<strong>do</strong> e<br />
forman<strong>do</strong> cabeças ao longo <strong>do</strong>s séculos que antece<strong>de</strong>ram as duas gran<strong>de</strong>s guerras<br />
mundiais que a humanida<strong>de</strong> conheceu. Esclarece também os critérios a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s pela<br />
socieda<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal para escolher o repertório musical que viria a compor a música<br />
clássica universal. Aharonián aponta que: “Não é casual, então, que o imperialismo<br />
europeu burguês tenha feito o impossível para impor a sangue e fogo seus<br />
mo<strong>de</strong>los culturais, chamem estes cristianismo, Beethoven, rock’n’roll, coca-cola,<br />
blue-jeans ou Shakespeare. Ou escala temperada, ou música ‘culta’ [. . .]”9<br />
No que tange às mulheres, tal imposição significou o não reconhecimento quase<br />
total <strong>de</strong> sua participação nas artes em geral, mas principalmente na criação musical.<br />
Michelle Perrot atribui a este fato o princípio <strong>de</strong> que a música foi sempre consi<strong>de</strong>rada<br />
a linguagem <strong>do</strong>s <strong>de</strong>uses, uma forma <strong>de</strong> criação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Por esta razão às<br />
mulheres era permiti<strong>do</strong> apenas copiar, reproduzir, interpretar — jamais compor.10<br />
569
570<br />
Clara Schumann<br />
e a formação <strong>de</strong> uma mulher compositora<br />
Embora tenha nasci<strong>do</strong> no início <strong>do</strong> século XIX (1819), Clara Schumann (nascida<br />
Clara Josephine Wieck) teve uma criação totalmente diferente da maioria das mulheres<br />
<strong>de</strong> sua época. Não só por ter si<strong>do</strong> uma virtuosa <strong>do</strong> piano <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a mais tenra<br />
ida<strong>de</strong>, mas também pela educação musical primorosa que seu pai, o famoso professor<br />
<strong>de</strong> piano Friedrich Wieck, lhe conferiu.<br />
A infância <strong>de</strong> Clara foi um <strong>do</strong>s fatores <strong>de</strong>cisivos em sua carreira musical: antes que<br />
a menina completasse cinco anos sua mãe, Marianne Tromlitz, aban<strong>do</strong>nou o lar<br />
para se casar com outro músico, A<strong>do</strong>lph Bargiel. E Friedrich Wieck, abala<strong>do</strong> com<br />
a situação, voltou-se para a educação <strong>do</strong>s filhos fazen<strong>do</strong> disso seu objetivo <strong>de</strong> vida.11<br />
A menina Clara, mais talentosa e disciplinada que seus irmãos Alwin e Gustav, tornou-se<br />
logo objeto <strong>de</strong> fascínio e <strong>de</strong>dicação <strong>do</strong> pai. Num tempo em que proliferou<br />
a moda das crianças-prodígio na Europa, Wieck soube aproveitar o momento para<br />
lançar a carreira <strong>de</strong> sua pequena pianista, propaganda viva <strong>de</strong> seu méto<strong>do</strong> revolucionário<br />
<strong>de</strong> piano.<br />
A formação religiosa protestante <strong>de</strong> Wieck também contribuiu para a história musical<br />
<strong>de</strong> Clara Schumann, já que a Reforma protestante espalhou pela Europa <strong>do</strong><br />
Norte e <strong>do</strong> Leste escolas para os <strong>do</strong>is sexos. “Ao fazer da leitura da Bíblia um ato e<br />
uma obrigação <strong>de</strong> cada indivíduo, homem ou mulher, ela contribuiu para <strong>de</strong>senvolver<br />
a instrução das meninas.”12<br />
Aos onze anos Clara <strong>de</strong>u seu primeiro recital solo na Gewandhauss <strong>de</strong> Leipzig, inician<strong>do</strong><br />
uma renomada carreira internacional que a acompanharia até a morte, aos<br />
76 anos. Como era habitual, seu pai programava para seus recitais peças <strong>de</strong> cunho<br />
virtuosístico — em que a menina mostrava sua técnica estarrece<strong>do</strong>ra — ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
obras <strong>de</strong> autoria da pianista. E o professor, que sabia distinguir uma obra séria das<br />
<strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> malabarismo que <strong>do</strong>minavam a cena musical, trabalhou para que<br />
as composições da filha fossem inova<strong>do</strong>ras e <strong>de</strong> conteú<strong>do</strong> musical relevante proporcionan<strong>do</strong><br />
à menina aulas <strong>de</strong> composição, harmonia e orquestração, com os melhores<br />
professores da Europa.<br />
Após a temporada <strong>de</strong> recitais, Wieck fazia publicar as peças <strong>de</strong> Clara, o que também<br />
representava uma postura avançada para a época.13 Desta forma as composições <strong>de</strong><br />
Clara Schumann tiveram uma certa projeção, receben<strong>do</strong> inclusive elogios <strong>de</strong> seus<br />
colegas.<br />
O casamento com Robert Schumann<br />
Clara e Robert conviveram, sob a tutela <strong>de</strong> Friedrich Wieck, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o jovem<br />
veio morar em Leipzig, em 1830, para estudar piano. Mas o relacionamento amo-
oso só se <strong>de</strong>u a partir <strong>de</strong> 1836. Apesar <strong>de</strong> ser aluno-resi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Wieck, este nunca<br />
viu com bons olhos esta ligação. Pu<strong>de</strong>ra, aos 16 anos a jovem virtuosa enchia as platéias<br />
<strong>do</strong>s teatros pela Europa afora, sen<strong>do</strong> honrada, inclusive com uma torta à la<br />
Wieck nas confeitarias chiques <strong>de</strong> Viena. E seus ganhos financeiros, que se equiparavam<br />
aos <strong>de</strong> Franz Liszt (com quem dividia o palco, ocasionalmente), pertenciam<br />
legalmente ao seu pai até que ela se casasse.<br />
A teimosia <strong>de</strong> Wieck fez com que a luta pelo amor conjugal terminasse nos tribunais<br />
alemães, num processo que duraria quase 2 anos até que o casamento se <strong>de</strong>sse,<br />
às vésperas <strong>de</strong> Clara completar 21 anos. Como resulta<strong>do</strong>, o pai enciuma<strong>do</strong> não permitiu<br />
que a filha levasse nem seu piano nem o dinheiro que este lhe ren<strong>de</strong>ra.<br />
Em vista disso, a vida conjugal <strong>de</strong> Clara e Robert Schumann iniciou-se com dificulda<strong>de</strong>s<br />
que, ao longo <strong>do</strong>s anos, só fizeram aumentar <strong>de</strong> gravida<strong>de</strong> e tamanho. Os<br />
atributos <strong>de</strong> uma mulher casada, <strong>do</strong>na <strong>de</strong> casa e mãe <strong>de</strong> oito filhos fizeram com que<br />
Clara se <strong>de</strong>dicasse cada vez menos à composição. A necessida<strong>de</strong> financeira, por<br />
outro la<strong>do</strong>, impulsionava a artista a voltar aos palcos em turnês assim que cada nova<br />
gravi<strong>de</strong>z lhe permitia, restan<strong>do</strong>-lhe pouco tempo para a criação <strong>de</strong> novas obras. Para<br />
completar, uma terrível <strong>do</strong>ença mental se abateu sobre Robert Schumann levan<strong>do</strong>o<br />
à internação e morte num asilo em En<strong>de</strong>nich, em 1856.14 Depois <strong>de</strong>stes acontecimentos,<br />
Clara encerrou <strong>de</strong>finitivamente a carreira <strong>de</strong> compositora, salvo por<br />
algumas obras esparsas para dar <strong>de</strong> presente aos amigos.<br />
As composições <strong>de</strong> Clara Schumann<br />
e sua ligação com o movimento romântico.<br />
Ao contrário <strong>do</strong> que se po<strong>de</strong>ria supor, da<strong>do</strong>s os exemplos históricos <strong>de</strong> Félix Men<strong>de</strong>lssohn<br />
e Gustav Mahler (proibin<strong>do</strong> a irmã e a esposa <strong>de</strong> compor), Robert Schumann<br />
era um gran<strong>de</strong> entusiasta das composições <strong>de</strong> sua mulher. Nos anos <strong>de</strong><br />
casa<strong>do</strong>s, ele e Clara estudaram juntos to<strong>do</strong> o Cravo bem Tempera<strong>do</strong> <strong>de</strong> Bach, diversas<br />
sonatas <strong>de</strong> Beethoven, Mozart, etc, atentan<strong>do</strong> para os processos composicionais<br />
<strong>de</strong>stes mestres. Clara compôs sua primeira — e única — sonata para piano<br />
para dar <strong>de</strong> presente ao mari<strong>do</strong> no primeiro Natal <strong>de</strong> sua vida em comum. Presentear-se<br />
um ao outro com composições era um procedimento comum ao casal nas<br />
datas festivas.<br />
Além <strong>do</strong> aspecto musical, o convívio com Schumann trouxe para a vida <strong>de</strong> Clara um<br />
universo literário que a jovem não conhecia até então. Filho <strong>de</strong> um escritor, editor<br />
e comerciante <strong>de</strong> livros, Robert Schumann fora cria<strong>do</strong> ten<strong>do</strong> os clássicos da literatura<br />
alemã ao alcance <strong>do</strong>s olhos. E nos passeios rotineiros recomenda<strong>do</strong>s pelo por<br />
Wieck a ambos — para fortalecer os músculos e os nervos — Schumann contava a<br />
Clara histórias <strong>de</strong> livros que, com o tempo, ela veio a apreciar. Assim formou-se<br />
um intercâmbio <strong>de</strong> idéias culturais e musicais que sobrevivem em diversas composições<br />
<strong>de</strong> ambos.15<br />
571
572<br />
Mas foi principalmente a ousadia e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> romper com as barreiras impostas<br />
pelas formas e harmonias clássicas, que Clara absorveu da convivência com Schumann<br />
e com seus colegas românticos. Ousadia que já era incentivada, diga-se <strong>de</strong><br />
passagem, por seu pai e professor visionário, Friedrich Wieck. Um breve panorama<br />
<strong>de</strong> sua trajetória musical <strong>de</strong>screve como seu estilo foi se <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> ao longo <strong>de</strong><br />
seus 23 opus (e algumas peças soltas).<br />
As composições <strong>de</strong> Clara Schumann trazem, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras peças, aspectos inova<strong>do</strong>res<br />
em relação à música ligeira e virtuosística que fazia sucesso na primeira meta<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> século XIX. Suas Quatre polonoises pour le pianoforte Op. 1, por exemplo,<br />
receberam críticas elogian<strong>do</strong> a qualida<strong>de</strong> das mesmas, porém, com ressalvas pelas<br />
harmonias “um tanto forçadas, freqüentemente dissonantes <strong>de</strong>mais.”16<br />
De fato, suas composições são repletas <strong>de</strong> cromatismos e outros procedimentos harmônicos<br />
usa<strong>do</strong>s por seus colegas na luta por uma música inova<strong>do</strong>ra, legítima e liberta<br />
da harmonia tradicional. Sobre elas Franz Liszt escreveu, em carta à con<strong>de</strong>ssa<br />
d’Agoult: “Suas composições são realmente notáveis, especialmente para uma mulher.<br />
Há nelas cem vezes mais espontaneida<strong>de</strong> e sincerida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentimento que em<br />
todas as fantasias, antigas e atuais, <strong>de</strong> Thalberg”.17-18<br />
O Romantismo <strong>de</strong> Clara Schumann<br />
Não foi só em relação à harmonia que Clara Schumann se aproximou <strong>do</strong>s i<strong>de</strong>ais<br />
persegui<strong>do</strong>s pelos compositores românticos. A seguir estão relaciona<strong>do</strong>s os principais<br />
elementos composicionais trabalha<strong>do</strong>s pela compositora em sua obra:<br />
1) Extensão das composições:<br />
Clara compôs, em sua maioria, peças curtas (Romances, Mazurcas, Noturnos, etc).<br />
Mesmo quan<strong>do</strong> compôs sob gran<strong>de</strong>s formas, como sua Sonata em sol menor, Clara<br />
fez movimentos relativamente curtos, com seções fragmentadas e idéias completas<br />
nas subseções. A peça curta é típica <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> romântico “[. . .] cuja urgência e intensida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> expressão negam [ao artista] a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expandir-se em ampla<br />
e elaborada construção formal [. . .]”19<br />
2) Ausência <strong>de</strong> função social das composições:<br />
A emancipação da obra <strong>de</strong> arte musical, fruto da ascensão <strong>de</strong> uma burguesia consumi<strong>do</strong>ra<br />
da produção <strong>do</strong> compositor autônomo, possibilitou ao artista romântico<br />
expor seus conflitos e colocar as técnicas <strong>de</strong> composição a serviço da poética <strong>do</strong> seu<br />
discurso. Criou-se a imagem <strong>do</strong> artista-gênio, compon<strong>do</strong> com o corpo e com a alma<br />
para expressar suas idéias pessoais.<br />
3) Forma:<br />
Em relação à forma também Clara Schumann mostra-se à vonta<strong>de</strong> para ousadias.<br />
Neste setor, cito o primeiro movimento <strong>de</strong> sua Sonate für Klavier, em sol menor20,<br />
em que a compositora insere uma cadência <strong>de</strong> concerto antes <strong>de</strong> encerrar a seção A<br />
(exposição) e A’ (re-exposição).
4) uso <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os elementos musicais (e não somente melodia e ritmo),<br />
como fator <strong>de</strong> coerência ou <strong>de</strong> contraste entre as partes. Exemplos:<br />
a) Melodia: O uso da melodia longa pelos compositores da primeira meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século<br />
XIX foi absorvi<strong>do</strong> por Clara Schumann em suas composições. Tal recurso foi<br />
amplamente utiliza<strong>do</strong> por Chopin, cuja influência se faz sentir na obra <strong>de</strong> Clara<br />
Schumann tanto neste quesito como nos gêneros por ela aborda<strong>do</strong>s: Mazurcas, Baladas,<br />
Noturnos, entre outros.<br />
b) Harmonia: Clara Schumann fez uso <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s conheci<strong>do</strong>s <strong>do</strong> sistema tonal<br />
colocan<strong>do</strong>-os em situações atípicas, <strong>de</strong> caráter ornamental, para dar cores diferentes<br />
a certas passagens musicais. Em seu livro sobre procedimentos harmônicos que<br />
influenciaram a música <strong>do</strong> século XX, por exemplo, Stephan Kostka traz trechos <strong>de</strong><br />
suas composições para ilustrar este procedimento típico <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> romântico.21<br />
c) Ritmo: Clara Schumann trabalha o ritmo e a métrica com a mesma liberda<strong>de</strong><br />
que seus colegas românticos. Na sua Tocattina Op. 6, por exemplo, a compositora<br />
divi<strong>de</strong> a primeira gran<strong>de</strong> seção em três pequenas, <strong>de</strong> oito, <strong>de</strong>zenove e vinte compassos<br />
respectivamente, separa<strong>do</strong>s entre si por barras duplas. Procedimento semelhante<br />
encontra-se na seção central <strong>do</strong> Drei Romanzen Op. 21 n. 3, mas sem as<br />
barras duplas.22 O uso <strong>de</strong> figuras <strong>de</strong> maior valor para dar a sensação <strong>de</strong> rallentan<strong>do</strong><br />
em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s trechos <strong>de</strong> suas peças também é freqüente. Assim como os grupos<br />
altera<strong>do</strong>s e a polirritmia.<br />
d) Som:23 A textura, a dinâmica e o timbre foram trabalha<strong>do</strong>s pela compositora<br />
em suas peças, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a dar uma configuração precisa <strong>de</strong> cada idéia, na frase ou na<br />
seção a que correspon<strong>de</strong>. No Premier Concert pour le Piano-Forte Op. 7,24 por exemplo,<br />
Clara Schumann <strong>de</strong>dica um solo ao violoncelo no segun<strong>do</strong> movimento, mudan<strong>do</strong><br />
o papel <strong>do</strong> piano <strong>de</strong> instrumento solista a acompanha<strong>do</strong>r e valorizan<strong>do</strong> o<br />
timbre <strong>do</strong> violoncelo. A exploração <strong>de</strong>stes elementos será cada vez mais constante<br />
na música oci<strong>de</strong>ntal a partir <strong>do</strong> final <strong>do</strong> século XIX e início <strong>do</strong> século XX.<br />
O a<strong>de</strong>us à composição e o esquecimento da obra <strong>de</strong> Clara Schumann<br />
Clara po<strong>de</strong>ria ter volta<strong>do</strong> a compor e a publicar suas obras <strong>de</strong>pois da internação e<br />
morte <strong>de</strong> Robert Schumann? Sim, se tivesse confiança em seu talento para tal e não<br />
tivesse diante <strong>de</strong> si uma obra que realmente consi<strong>de</strong>rasse digna <strong>de</strong> divulgação, como<br />
a <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. A verda<strong>de</strong> é que, mesmo com o incentivo e a boa receptivida<strong>de</strong> alcançada<br />
por suas composições, Clara Schumann nunca confiou em seu mérito composicional.<br />
Em carta a Robert, Clara falava <strong>de</strong> suas inseguranças a este respeito:<br />
“Houve um tempo em que acreditei ter um talento cria<strong>do</strong>r, mas <strong>de</strong>sisti da idéia; uma<br />
mulher não <strong>de</strong>ve preten<strong>de</strong>r compor — nenhuma até hoje o fez, por que eu seria<br />
uma exceção? Eu seria arrogante <strong>de</strong> acreditar nisso, foi uma ilusão que só meu pai<br />
certa vez me incutiu.”25<br />
573
574<br />
Em vez disso, a compositora <strong>de</strong>dicou to<strong>do</strong>s os esforços a editar, publicar e divulgar<br />
a obra <strong>de</strong> Robert Schumann. Auxiliada por Johannes Brahms26, compositor e<br />
gran<strong>de</strong> amigo <strong>do</strong> casal, Clara revisou peça por peça <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e tirou <strong>de</strong> circulação<br />
qualquer composição que, segun<strong>do</strong> os <strong>do</strong>is, po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>negrir a imagem <strong>de</strong> Robert<br />
associan<strong>do</strong>-se à <strong>do</strong>ença <strong>do</strong> mesmo.<br />
A postura a<strong>do</strong>tada por Clara Schumann como intérprete e como editora da obra<br />
<strong>do</strong> mari<strong>do</strong> foi uma importante contribuição para estabelecer o nome <strong>de</strong> Robert<br />
Schumann como um <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s mestres da música erudita oci<strong>de</strong>ntal. Certas peças<br />
<strong>do</strong> compositor teriam permaneci<strong>do</strong> inéditas por muito mais tempo se não tivessem<br />
si<strong>do</strong> interpretadas por uma artista da estirpe <strong>de</strong> Clara, cuja carreira esteve sempre<br />
no mais alto patamar da crítica especializada.<br />
O Konzert-Fantasie em lá menor, <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> por Robert a Clara — então sua noiva<br />
— em 1839 é um exemplo <strong>de</strong>ste fato. Nenhum editor havia aceita<strong>do</strong> o trabalho em<br />
sua forma original, em um movimento. Em 1845 Robert retomou a obra, acrescentou<br />
os <strong>do</strong>is outros movimentos e Clara estreou-o, no auge <strong>de</strong> sua carreira. Logo<br />
após sua segunda apresentação a Breitkopf & Härtel <strong>de</strong>cidiu publicá-lo. Se a obra<br />
não tivesse si<strong>do</strong> interpretada por tão brilhante pianista, talvez seu <strong>de</strong>stino fosse<br />
outro.<br />
E talvez se a compositora tivesse agi<strong>do</strong> com a mesma <strong>de</strong>terminação em relação à<br />
sua própria obra, como em relação à sua Sonata em sol menor — que permaneceu<br />
inédita até cem anos após sua morte — o <strong>de</strong>stino da mesma também teria si<strong>do</strong> diferente.<br />
As composições <strong>de</strong> Clara Schumann cem anos após sua morte.<br />
Na década <strong>de</strong> 1990, cem anos após o total <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> Clara Schumann<br />
— vida e obra — algumas <strong>de</strong> suas peças foram editadas, como a Sonate für Klavier,<br />
g-moll (1841-42, editada em 1991) e surgiram biografias sobre a artista. Com um<br />
merca<strong>do</strong> erudito oci<strong>de</strong>ntal tão competitivo como o <strong>do</strong>s séculos XX e XXI, as comemorações<br />
<strong>de</strong> centenários <strong>de</strong> nascimento e morte em festivais e as homenagens<br />
aos compositores tornaram-se uma estratégia <strong>de</strong> atrair público para as salas <strong>de</strong> concerto<br />
e para as lojas <strong>de</strong> livros, CDs e DVDs. E a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> composições inéditas<br />
ou pouco conhecidas significaram um merca<strong>do</strong> à parte, menos rentável que o das<br />
obras tornadas populares pela exaustão, mas ainda assim significativo.<br />
O centenário <strong>de</strong> morte da compositora Clara Schumann em 1996, por exemplo,<br />
lançou uma luz à obra <strong>de</strong>sta mulher tão marcante no cenário musical oci<strong>de</strong>ntal.<br />
Marcante por sua imagem <strong>de</strong> mulher in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, profissional bem sucedida, intérprete<br />
<strong>de</strong> importantes obras românticas até então <strong>de</strong>sconhecidas <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> público<br />
e cria<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> outras tantas, e <strong>de</strong>terminante na formação <strong>do</strong> gosto musical<br />
burguês, na medida em que conquistava o público por on<strong>de</strong> passava e sabia intro-
duzir em seus programas <strong>de</strong> recital obras <strong>de</strong>nsas e inova<strong>do</strong>ras em meio a outras mais<br />
acessíveis ao público leigo.<br />
Clara Schumann foi a responsável pela introdução da música <strong>de</strong> Chopin na Alemanha,<br />
ten<strong>do</strong> estrea<strong>do</strong> e edita<strong>do</strong> a maioria <strong>de</strong> suas peças. Além disso, foi a primeira<br />
pianista a tocar a sonata Apassionata <strong>de</strong> Beethoven completa e <strong>de</strong> cor em Berlim.<br />
Quanto à sua atuação como compositora, criou peças totalmente <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o<br />
movimento romântico que se <strong>de</strong>senvolvia então. No entanto, seu nome raramente<br />
é cita<strong>do</strong> entre os compositores que participaram da formação <strong>de</strong>ste importante estilo<br />
musical, o que <strong>de</strong>nota que pouca coisa mu<strong>do</strong>u em relação à idéia <strong>de</strong> que a mulher<br />
po<strong>de</strong> reproduzir, mas jamais criar obras <strong>de</strong> arte.<br />
A compositora Clara Schumann somente foi registrada, incentivada por seu centenário<br />
<strong>de</strong> morte, em biografias sobre a artista — que não são muitas. Em português,<br />
o único livro publica<strong>do</strong> sobre Clara até o momento é uma biografia <strong>de</strong> autoria<br />
<strong>de</strong> Catherine Lépront27, e não aborda suas composições musicais.<br />
O livro Música Clássica é um <strong>do</strong>s poucos que incluem Clara Schumann e Fanny<br />
Men<strong>de</strong>lssohn entre os compositores românticos, <strong>de</strong>dican<strong>do</strong>-lhes a página inteira,<br />
no caso <strong>de</strong> Clara, e meia, no <strong>de</strong> Fanny. Mas ao referir-se às obras, o editor diz que<br />
“as melhores obras <strong>de</strong> Clara mostram imaginação e apuro, mas falta-lhe individualida<strong>de</strong><br />
melódica”. Quanto a Fanny Men<strong>de</strong>lssohn, diz que “reviver sua música é difícil,<br />
pois seus manuscritos acham-se em coleções particulares”.28 Às duas opiniões<br />
faltam embasamentos que incluem atualização das informações, pois já existem<br />
muitas peças <strong>de</strong> Fanny editadas e comercializadas e a individualida<strong>de</strong> melódica <strong>de</strong><br />
Clara é tão restrita quanto a <strong>de</strong> seus colegas, influencia<strong>do</strong>s pelas idéias que pairavam<br />
no ar em seu tempo.<br />
Pese-se a isso o fato <strong>de</strong> que certas iniciativas da compositora foram ignoradas pelos<br />
musicólogos ou atribuídas a outros compositores. Este é o caso <strong>do</strong> solo <strong>de</strong> violoncelo<br />
<strong>do</strong> 2º movimento <strong>do</strong> concerto Op. 7 <strong>de</strong> Clara Schumann, escrito em 1835 e incorpora<strong>do</strong><br />
por Robert Schumann no Intermezzo <strong>de</strong> seu Concerto para piano Op.<br />
54 (1845) e por Brahms no Concerto para piano Op. 83 (1882). Peter Ostwald29<br />
sugere que o solo seja resulta<strong>do</strong> da orquestração <strong>de</strong> Robert Schumann para o concerto<br />
<strong>de</strong> Clara, já que o mesmo havia orquestra<strong>do</strong> o primeiro movimento escrito<br />
pela compositora em 1832 e que se tornaria o 3º da obra completa. Porém, uma<br />
carta escrita por Clara Schumann a Emilie List em 1835 atesta sua autoria: “Meu<br />
concerto está termina<strong>do</strong>. O Adágio é toca<strong>do</strong> sem orquestra e somente com um solo<br />
<strong>de</strong> cello obbligato. Acho que funcionou muito bem”.30<br />
Consi<strong>de</strong>rações Pontuais (esperan<strong>do</strong> que não sejam finais, pois o<br />
assunto está longe <strong>de</strong> ser esgota<strong>do</strong>. . .)<br />
Concluin<strong>do</strong>, as composições <strong>de</strong> Clara Schumann atestam o profun<strong>do</strong> conheci-<br />
575
576<br />
mento que ela possuía acerca <strong>do</strong> material <strong>de</strong> que dispunha, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os instrumentos<br />
(o piano, especialmente) até os elementos <strong>do</strong> som. O que não chega a causar estranhamento,<br />
já que a compositora foi criada ten<strong>do</strong> alguns <strong>do</strong>s maiores músicos da<br />
história da música oci<strong>de</strong>ntal como amigos que freqüentavam sua residência.31<br />
O fato da música <strong>de</strong> Clara Schumann discutir as mesmas questões e problemas propostos<br />
por seus colegas compositores aponta para a participação <strong>de</strong> mulheres nas<br />
transformações sofridas pela música oci<strong>de</strong>ntal com o passar <strong>do</strong>s séculos. Participação<br />
que vem sen<strong>do</strong> <strong>de</strong>sprezada pela maioria <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res <strong>do</strong> assunto.<br />
Em seu livro O livro feminista <strong>de</strong> 1715: o primeiro grito revolucionário, Fina D’Armada<br />
diz que os primeiros ventos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> espalharam que “os homens tinham<br />
construí<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> sozinhos, enquanto as mulheres estiveram sentadas a ver.”<br />
Po<strong>de</strong>r-se-ia acrescentar que os mesmos ventos espalharam que os compositores criaram<br />
a música erudita oci<strong>de</strong>ntal sozinhos, enquanto as compositoras estiveram sentadas<br />
a ouvir.<br />
É certo que a participação das mulheres foi em proporção infinitamente menor <strong>do</strong><br />
que a <strong>do</strong>s homens, pela própria dificulda<strong>de</strong> das mesmas em ter acesso à instrução e<br />
ao saber (lembran<strong>do</strong> que as primeiras escolas primárias para meninas surgiram, na<br />
França, em 1880 e a secundária, somente em 1900). Mas esta participação existiu<br />
e a prova disto resi<strong>de</strong> em composições esparsas, esquecidas pelo merca<strong>do</strong> musical e<br />
até pelos próprios pesquisa<strong>do</strong>res pela convicção sedimentada através <strong>do</strong>s séculos<br />
<strong>de</strong> que não eram dignas <strong>de</strong> esforços para resgatá-las.<br />
Clara Schumann é uma entre tantas compositoras importantes que permanecem no<br />
ostracismo <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a um preconceito social com raízes históricas. E, logicamente,<br />
não só as mulheres foram ignoradas pelo merca<strong>do</strong> fonográfico e <strong>de</strong> concertos <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> oci<strong>de</strong>ntal.<br />
Em sua pesquisa sobre mulheres compositoras na América Latina, Graciela Paraskevaídis<br />
aponta que os compositores latino-americanos passam pelas mesmas dificulda<strong>de</strong>s<br />
que as mulheres para divulgar e alcançar reconhecimento a nível<br />
internacional. 35 Os processos <strong>de</strong> cognição social neste caso têm outras fontes, igualmente<br />
po<strong>de</strong>rosas.<br />
A mídia impressa e eletrônica, os eventos culturais públicos e os mecanismos <strong>de</strong> divulgação<br />
sonora existentes estão a serviço da socieda<strong>de</strong> e são por ela conduzi<strong>do</strong>s.<br />
Por isso é tão importante que se saiba que o <strong>de</strong>scui<strong>do</strong> <strong>de</strong>stas fontes po<strong>de</strong> trazer conseqüências<br />
que <strong>de</strong>mandam muito tempo para reverter. Gran<strong>de</strong> parcela da responsabilida<strong>de</strong><br />
cabe a nós, pesquisa<strong>do</strong>res, músicos e seres sociais ativos, fixan<strong>do</strong> na<br />
memória as palavras que iniciaram este trabalho, ditas por Coriún Aharonián:<br />
“É por isso (e talvez só por isso) que os que nos dizemos interessa<strong>do</strong>s no que acontece<br />
em nossa socieda<strong>de</strong> temos a obrigação <strong>de</strong> cultivar a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> auto crítica<br />
[. . .]”
1 Coriún Aharonián, Conversaciones sobre música, cultura e i<strong>de</strong>ntidad (Montevi<strong>de</strong>o: Ediciones<br />
Tacuabé, 2005). Esta e as outras traduções foram realizadas pela autora <strong>de</strong>ste trabalho.<br />
2 Roswitha Sperber (1996, 7) afirma que as mulheres começaram a buscar indícios <strong>de</strong> sua própria<br />
história após o primeiro movimento feminista <strong>de</strong> 1920, e <strong>de</strong> maneira mais eficaz a partir<br />
da década <strong>de</strong> 1970. Antes disso, a história da música escrita por homens sobre homens<br />
ignorou qualquer participação feminina.<br />
3 Elisabeth Roudinesco e Michel Manassein, prefácio a De l’égalité <strong>de</strong>s sexes, dir. Michel Manassein<br />
(Paris : Centre National <strong>de</strong> Documentation Pedagogique, 1995), 12.<br />
4 Françoise Escal e Jacqueline Rousseau-Dujardin, ‘’Musique et différence <strong>de</strong>s sexes’’. In : Brigitte<br />
François-Sappey, Clara Schumann : l’œuvre et l’amour d’une femme (Genève : Editions<br />
Papillon, 2001-2004), 75.<br />
5 Or<strong>do</strong> virtutum, <strong>de</strong> Hil<strong>de</strong>gard of Bingen, é o registro mais antigo que se tem <strong>de</strong> composição<br />
feminina e data <strong>de</strong> 1150. Roswitha Sperber, Women composers in Germany, trad. Timothy<br />
Nevill (Bonn: Inter Nationes, 1996), 12-14.<br />
6 Nanny Drechsler, “Con<strong>de</strong>mned to Silence?”. In: Roswitha Sperber, Op. Cit.,10.<br />
7 Elisabeth Roudinesco e Michel Manassein, Op. Cit., 11-12.<br />
8 Ibid., 12.<br />
9 Coriún Aharonián, Op. Cit., 21. Grifos <strong>do</strong> autor.<br />
10 Michelle Perrot, Minha história das mulheres, trad. Angela Côrrea (São Paulo: Contexto,<br />
2007), 101.<br />
11 Como Marianne aban<strong>do</strong>nou o lar ela só teve direito <strong>de</strong> levar consigo o filho mais novo,<br />
Victor, que tinha três meses.<br />
12 Michelle Perrot, Op. Cit., 91.<br />
13 A apresentação <strong>de</strong> crianças prodígio — <strong>de</strong> ambos os sexos — era comum no tempo <strong>de</strong><br />
Clara Schumann, mas não a publicação <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> mulheres.<br />
14 Para maiores informações sobre a vida <strong>de</strong> Robert Schumann, consultar: A. Zani Netto,<br />
“Florestan e Eusebius: por que?” (Tese <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong>, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1988).<br />
15 Para maiores informações sobre o assunto, consultar E. Monteiro da Silva, Clara Schumann:<br />
compositora x mulher <strong>de</strong> compositor (Dissertação <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong>, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
São Paulo, 2008).<br />
16 Nancy Reich, Clara Schumann: the artist and the woman (Ithaca: Cornell University<br />
Press, 2001), 213.<br />
17 Ibid, 195.<br />
18 Liszt transcreveu três canções <strong>de</strong> Clara para piano solo: Op. 12 nº 3, Op. 13 nº 5 e Op. 23<br />
nº 3. Sigismund Thalberg (1812-71), a quem ele se refere na citação, foi pianista virtuoso<br />
aclama<strong>do</strong> pelo público. Em seus concertos constavam peças <strong>de</strong> sua autoria.<br />
19 Renato Di Bene<strong>de</strong>tto, Romanticismo e scuole nazionali nell’Ottocento (Torino: Edizioni<br />
di Torino, 1982), 38.<br />
20 Clara Schumann, Sonate g-moll für klavier (Wiesba<strong>de</strong>n : Breitkopf & Härtel, 1991).<br />
577
578<br />
21 Stephan Kostka, Tonal harmony: with an introduction to twentieth-century music (Nova<br />
Iorque: The McGraw-Hill Companies Inc., 2000).<br />
22 Tanto a Tocattina como o romance cita<strong>do</strong> encontram-se no álbum Clara Wieck-Schumann,<br />
Augewählte Klavierwerke (München: G. Henle Verlag, 1987).<br />
23 Neste contexto, o termo Som inclui as consi<strong>de</strong>rações acerca <strong>do</strong> Timbre, Dinâmica e Textura<br />
(cf: White, 1994, p. 232).<br />
24 Clara Schumann, Konzert für Klavier und orchester, a-moll Op. 7 (Wiesba<strong>de</strong>n: Breitkopf<br />
& Hartel, 1993).<br />
25 Blandine Charvin, Clara Schumann (1819-1896) : voyages en France (Paris: L’Harmattan,<br />
2005), 47.<br />
26 Brahms surgiu na vida <strong>do</strong>s Schumann em 1853 e tornou-se amigo inseparável <strong>de</strong> ambos.<br />
Após a internação <strong>de</strong> Robert Schumann, Brahms <strong>de</strong>u suporte à Clara e aos filhos, além <strong>de</strong><br />
nunca <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> visitar e suprir as necessida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> compositor interna<strong>do</strong>. Ele e Clara tiveram<br />
uma relação amorosa (platônica, segun<strong>do</strong> Nancy Reich) que vem sen<strong>do</strong> esmiuçada e comentada<br />
por muitos historia<strong>do</strong>res da música.<br />
27 Catherine Lepront, Clara Schumann, trad. Eduar<strong>do</strong> Brandão (São Paulo: Martins Fontes<br />
Editora, 1990).<br />
28 John Burrows, Música clássica, trad. André Telles (Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007),<br />
173 e 204.<br />
29 Peter Ostwald, Schumann: the inner voices of a musical genius (Boston: Northeastern University<br />
Press, 1985), 240.<br />
30 Nancy Reich, Op. Cit., 297.<br />
31 Tanto na casa <strong>do</strong> Gran<strong>de</strong> Lírio (como era chamada a residência <strong>do</strong>s Wieck quan<strong>do</strong> Clara<br />
era criança) como na residência <strong>do</strong> casal Schumann, eram comuns as reuniões <strong>de</strong> músicos<br />
para tocar, ensaiar e conversar sobre música. Félix Men<strong>de</strong>lssohn, Fre<strong>de</strong>rick Chopin, Franz<br />
Liszt, Joseph Joachim e Johannes Brahms são alguns <strong>do</strong>s nomes que por lá passaram.<br />
G. PAraskevaídis, “La mujer como crea<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> bienes musicales en América Latina: una <strong>do</strong>cumentación”.<br />
(Trabalho <strong>de</strong> pesquisa, Escuela Universitária <strong>de</strong> Música <strong>de</strong> Montevi<strong>de</strong>o,<br />
1989).<br />
Referências<br />
Aharonián, Coriún. Conversaciones sobre música, cultura e i<strong>de</strong>ntidad. Montevi<strong>de</strong>o: Ediciones<br />
Tacuabé, 2005.<br />
Baroncelli, Nilcéia. Mulheres compositoras: elenco e repertório. São Paulo: Ed. Roswitha<br />
Kempf, 1987. Brasília: Fundação Nacional Pró-Memória, 1987.<br />
Bene<strong>de</strong>tto, Renato Di. Romanticismo e scuole nazionali nell’Ottocento. Torino: Edizioni di<br />
Torino, 1982.<br />
Burrows, John. Música clássica, trad. André Telles. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.<br />
Charvin, Blandine. Clara Schumann (1819-1896): voyages en France. Paris: L’Harmattan,<br />
2005.<br />
François-Sappey, Brigitte. Clara Schumann: l’œuvre et l’amour d’une femme. Genève: Edi-
tions Papillon, 2001-2004.<br />
Kostka, Stephan. Tonal harmony: with an introduction to twentieth-century music. E. U. A.:<br />
The McGraw-Hill Companies Inc., 2000.<br />
Lepront, Catherine. Clara Schumann, trad. Eduar<strong>do</strong> Brandão. São Paulo: Martins Fontes<br />
Editora, 1990.<br />
Monteiro da Silva, E. Clara Schumann: compositora x mulher <strong>de</strong> compositor. Dissertação<br />
<strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong>, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 2008.<br />
Ostwald, Peter. Schumann: the inner voices of a musical genius. Boston: Northeastern University<br />
Press, 1985.<br />
Paraskevaídis, Graciela. La mujer como crea<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> bienes musicales en América Latina:<br />
una <strong>do</strong>cumentación. Trabalho <strong>de</strong> pesquisa, Escuela Universitária <strong>de</strong> Música <strong>de</strong> Montevi<strong>de</strong>o,<br />
1989.<br />
Perrot, Michelle. Minha história das mulheres, trad. Angela Côrrea. São Paulo: Contexto,<br />
2007.<br />
Reich, Nancy. Clara Schumann: the artist and the woman. Ithaca: Cornell University Press,<br />
2001.<br />
Roudinesco, Elisabeth e Manassein, Michel. “Prefácio” in Manassein, Michel. De l’égalité<br />
<strong>de</strong>s sexes. Paris: Centre National <strong>de</strong> Documentation Pedagogique, 1995.<br />
Schumann, Clara. Konzert für Klavier und orchester, a-moll Op. 7. Wiesba<strong>de</strong>n: Breitkopf<br />
& Hartel, 1993.<br />
———. Sonate g-moll für Klavier. Wiesba<strong>de</strong>n : Breitkopf & Härtel, 1991.<br />
Sperber, Roswitha. Women composers in Germany. Trad. Timothy Nevill. Bonn: Inter Nationes,<br />
1996.<br />
White, John. Comprehensive musical analysis. Metuchen, N.J. & Lon<strong>do</strong>n: The Scarecrow<br />
Press Inc., 1994.<br />
Wieck-Schumann, Clara. Augewählte Klavierwerke. München: G. Henle Verlag, 1987.<br />
Zani Netto, A. Florestan e Eusebius: por que? Tese <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong>, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São<br />
Paulo, 1988.<br />
579
580<br />
I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s sociomusicais na Canja <strong>de</strong> Viola em Curitiba<br />
Resumo<br />
Grace Filipak Torres<br />
gracetorres@uol.com.br<br />
Departamento <strong>de</strong> <strong>Artes</strong> — UEPG<br />
Este artigo discute parte da revisão <strong>de</strong> literatura e <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s coleta<strong>do</strong>s para um estu<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> caso sobre a Canja <strong>de</strong> Viola, encontro <strong>de</strong> prática musical que ocorre em Curitiba. A<br />
partir da teoria das Comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Prática <strong>de</strong> Etienne Wenger e alguns trabalhos <strong>de</strong> Joan<br />
Russell que relacionam esta teoria às práticas musicais, foi possível <strong>de</strong>screver o objeto<br />
<strong>de</strong> estu<strong>do</strong> como uma comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prática musical. A pesquisa tratou <strong>do</strong> fazer musical<br />
<strong>de</strong> um grupo que não convive cotidianamente por morarem em lugares distantes uns<br />
<strong>do</strong>s outros. Semanalmente, encontram-se e compartilham um fazer musical, numa comunida<strong>de</strong><br />
cujos membros têm relações <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação sócio-cultural, cultivadas pela<br />
prática musical. O `local` <strong>de</strong>ssa comunida<strong>de</strong>, portanto, é também simbólico, nos encontros<br />
musicais propriamente ditos. As comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> prática são formadas por pessoas<br />
interessadas em um processo <strong>de</strong> aprendizagem coletiva compartilhada em um <strong>do</strong>mínio<br />
<strong>do</strong> esforço humano. O <strong>do</strong>mínio i<strong>de</strong>ntifica a comunida<strong>de</strong> pelos interesses e competências,<br />
distinguin<strong>do</strong> seus membros <strong>de</strong> outras pessoas e comunida<strong>de</strong>s. Em busca <strong>do</strong>s interesses<br />
no seu <strong>do</strong>mínio, os membros engajam-se em ativida<strong>de</strong>s conjuntas e discussões,<br />
ajudam-se mutuamente e compartilham informações. A questão central da pesquisa realizada<br />
foi i<strong>de</strong>ntificar quais as experiências comuns aos freqüenta<strong>do</strong>res da Canja <strong>de</strong> Viola,<br />
a partir <strong>de</strong> três categorias <strong>de</strong> análise relacionadas a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, práticas e construção<br />
<strong>do</strong>s saberes musicais. Neste artigo a discussão se faz principalmente em torno da categoria<br />
das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s sociomusicais relacionadas a processos <strong>de</strong> cognição social, capazes<br />
<strong>de</strong> moldar comportamentos e escolhas <strong>do</strong>s participantes da comunida<strong>de</strong>. Wenger<br />
parte da noção da formação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s como processos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação com certas<br />
práticas sociais e habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> negociar e moldar significa<strong>do</strong>s produzi<strong>do</strong>s no contexto<br />
<strong>de</strong>ssas comunida<strong>de</strong>s. Através <strong>de</strong> um trabalho em campo com observação<br />
participante e entrevistas, foi possível <strong>de</strong>screver comportamentos comuns, crenças e<br />
tradições que foram fundamentais para o <strong>de</strong>senvolvimento musical <strong>de</strong>sses indivíduos.<br />
Palavras-chave<br />
Práticas musicais; Práticas sociais; I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s; Comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prática musical<br />
Introdução<br />
Ai, a viola me conhece<br />
Que eu não posso cantar só.<br />
Ai, se sozinho canto bem,<br />
Junto, eu canto mió.<br />
“Pa<strong>de</strong>cimento” — moda <strong>de</strong> Carreirinho, in Sant’Anna 2000, 220.<br />
A Canja <strong>de</strong> Viola é um evento <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> à música popular sertaneja em que <strong>de</strong>ze-
nas <strong>de</strong> pessoas cultivam suas práticas musicais em encontros semanais, na cida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Curitiba (PR). Apesar <strong>de</strong>sse evento ser <strong>de</strong> acesso livre a qualquer cidadão que<br />
queira <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong> uma tar<strong>de</strong> musical, há um núcleo importante <strong>de</strong> freqüenta<strong>do</strong>res,<br />
tanto <strong>de</strong> praticantes <strong>de</strong> música quanto <strong>de</strong> público, que se relacionam motiva<strong>do</strong>s<br />
por interesses musicais em vários níveis, o que <strong>de</strong>spertou meu interesse e me fez<br />
<strong>de</strong>fini-la como objeto para um estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caso envolven<strong>do</strong> observação participante,<br />
procedimento que me daria condições apropriadas para buscar tanto elementos<br />
que caracterizam a unida<strong>de</strong> e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste grupo. Para tanto, busquei dialogar<br />
com autores que tratassem <strong>do</strong>s temas das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> aprendizagem,<br />
a fim <strong>de</strong> construir uma base teórica satisfatória para <strong>de</strong>senvolver uma dissertação<br />
<strong>de</strong> mestra<strong>do</strong>. Com este processo em andamento, tive o privilégio <strong>de</strong> me<br />
relacionar diretamente com a pesquisa<strong>do</strong>ra Joan Russell em 2007, o que iluminou<br />
o caminho da pesquisa. Através <strong>de</strong>sse contato, tomei conhecimento <strong>do</strong> conceito<br />
<strong>de</strong> ‘comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> prática musical’, o qual, na sua formulação teórica, abarca justamente<br />
os temas que eu havia i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> como importantes em relação ao objeto<br />
<strong>de</strong> estu<strong>do</strong>: aprendizagem, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e comunida<strong>de</strong>.<br />
O conceito <strong>de</strong> ‘comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> prática’, foi formula<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> sobre<br />
‘aprendizagem situada’, publica<strong>do</strong> pelo pesquisa<strong>do</strong>r e teórico organizacional Etienne<br />
Wenger e a antropóloga Jean Lave (1991) e <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> posteriormente por Wenger<br />
(1998a), integran<strong>do</strong> um esquema conceitual mais amplo, uma teoria social da<br />
aprendizagem. Em poucas palavras, é possível dizer que “comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> prática<br />
são grupos que compartilham um interesse ou uma paixão por algo que fazem e<br />
apren<strong>de</strong>m como fazê-lo ainda melhor à medida que interagem regularmente”1<br />
(Wenger 2007, 1, tradução nossa). Em sua teoria, Wenger (1998a) mostra que a<br />
aprendizagem é um fenômeno essencialmente social, que faz parte <strong>de</strong> nosso dia-adia<br />
na interação com outros que compartilham interesses em e i<strong>de</strong>ntificações com<br />
um <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> conhecimento. Em Russell (2002; 2006) encontramos este conceito<br />
expandi<strong>do</strong> para ‘comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> prática musical’, o que se mostrou muito<br />
apropria<strong>do</strong> para o embasamento teórico e <strong>de</strong>senvolvimento da investigação <strong>do</strong> contexto<br />
<strong>de</strong>sses encontros. A abordagem <strong>de</strong>sse fazer musical <strong>do</strong>s freqüenta<strong>do</strong>res da<br />
Canja <strong>de</strong> Viola incluiu, portanto, uma reflexão sobre i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s sociomusicais<br />
nessa comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prática, recorte <strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> neste artigo.<br />
A questão que orientou a pesquisa buscava saber que experiências comuns estão<br />
envolvidas no fazer musical <strong>do</strong>s participantes da Canja <strong>de</strong> Viola. Isso incluía, entre<br />
outras problematizações, buscar em que medida a Canja <strong>de</strong> Viola está relacionada<br />
às i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s sociomusicais <strong>de</strong> seus freqüenta<strong>do</strong>res e aos seus saberes musicais.<br />
Assim, procurei observar e analisar práticas musicais <strong>de</strong> um grupo adulto, que vive<br />
em uma metrópole e não convive cotidianamente por habitarem em lugares diversos<br />
da cida<strong>de</strong> ou na região metropolitana. Aos <strong>do</strong>mingos, no TUC2, assiduamente<br />
se encontram e compartilham um fazer musical, numa comunida<strong>de</strong> cujos mem-<br />
581
582<br />
bros têm relações <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação social, cognitiva (no <strong>do</strong>mínio da música) e cultural,<br />
reveladas e cultivadas na prática musical que ali ocorre. O `local` <strong>de</strong>ssa comunida<strong>de</strong>,<br />
portanto, não é apenas geográfico: é também simbólico, nos encontros<br />
musicais propriamente ditos.<br />
O contexto da Canja <strong>de</strong> Viola<br />
A Canja <strong>de</strong> Viola é um tradicional encontro semanal <strong>de</strong> violeiros3 e aprecia<strong>do</strong>res <strong>de</strong><br />
música sertaneja que acontece em Curitiba há mais <strong>de</strong> vinte anos. Realiza<strong>do</strong> rotineiramente<br />
no minúsculo TUC, no centro da capital paranaense, a Canja <strong>de</strong> Viola<br />
tem formato <strong>de</strong> mini programa <strong>de</strong> auditório, com um anima<strong>do</strong>r <strong>de</strong> palco que coor<strong>de</strong>na<br />
as apresentações musicais <strong>de</strong> violeiros, cantores em duplas4 ou solistas, sanfoneiros,<br />
trova<strong>do</strong>res5 e outros faze<strong>do</strong>res <strong>de</strong> música to<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>mingos à tar<strong>de</strong>. Ali eles<br />
mostram um pouco das canções, toques <strong>de</strong> viola e pontea<strong>do</strong>s que cultivam.<br />
O espaço on<strong>de</strong> ocorre a Canja <strong>de</strong> Viola quase sempre conta com casa cheia e, intencionalmente,<br />
é aberto e <strong>de</strong>mocrático, aceitan<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> aprendizes ou ama<strong>do</strong>res<br />
até profissionais da música em seu pequeno palco.<br />
Tu<strong>do</strong> isso começou em 1986, por iniciativa <strong>de</strong> Paquito Mo<strong>de</strong>sto6, que a partir <strong>de</strong><br />
encontros que aconteciam em um Centro Comunitário, fun<strong>do</strong>u a Canja <strong>de</strong> Viola<br />
com a intenção <strong>de</strong> dar espaço aos trabalha<strong>do</strong>res que quisessem <strong>de</strong>senvolver uma<br />
prática musical ligada ao universo sertanejo:<br />
Inicia<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>stamente no antigo pavilhão comunitário da Avenida Viscon<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Guarapuava (. . .) e, finalmente (. . .), implanta<strong>do</strong> no Teatro Universitário, a<br />
Canja <strong>de</strong> Viola tem si<strong>do</strong> o mais <strong>de</strong>mocrático e aberto espaço para violeiros da cida<strong>de</strong><br />
— solos, duplas, trios e mesmo grupos maiores. To<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>mingos, a partir<br />
das 15 horas, gente <strong>do</strong> povo que faz sua música [espontânea] encontra-se no<br />
asfixiante espaço <strong>do</strong> TUC, na galeria Júlio Moreira, para ali mostrar canções<br />
simples, [espontâneas] — que in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> apreciações estéticas são significativas<br />
como comunicação popular. (Millarch 1992).<br />
Paquito Mo<strong>de</strong>sto <strong>de</strong>u continuida<strong>de</strong> ao seu projeto até o ano <strong>de</strong> 2004, quan<strong>do</strong> faleceu.<br />
Porém, a Canja é tão significativa que o evento se mantém até hoje pela vonta<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>s freqüenta<strong>do</strong>res.<br />
A partir <strong>de</strong>sses encontros semanais no TUC, muitos <strong>do</strong>s freqüenta<strong>do</strong>res da Canja<br />
tiveram oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se aperfeiçoar musicalmente e alguns até chegaram a se<br />
profissionalizar, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os participantes e da<strong>do</strong>s da Fundação Cultural <strong>de</strong><br />
Curitiba:7 “centenas <strong>de</strong> duplas e cantores populares passaram pelo palco <strong>do</strong> TUC,<br />
muitos inician<strong>do</strong> ali uma carreira <strong>de</strong> sucesso”.8 Tal afirmação sugere que a Canja <strong>de</strong><br />
Viola po<strong>de</strong> mesmo ser um espaço <strong>de</strong> aperfeiçoamento musical e profissionalização,<br />
gera<strong>do</strong>r <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s, confirma<strong>do</strong> por Millarch:<br />
I<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> aos artistas anônimos, ama<strong>do</strong>res que fazem música com to<strong>do</strong> entusiasmo,<br />
encontrou no Canja <strong>de</strong> Viola uma forma <strong>de</strong> valorizar cantores, com-
positores e instrumentistas que, uma vez por semana, nas tar<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>do</strong>mingo,<br />
tem seus momentos <strong>de</strong> glória. Entre as duplas que saíram <strong>do</strong> Canja <strong>de</strong> Viola<br />
para trilhar caminhos profissionais está Teleu e Sanvita, hoje radica<strong>do</strong>s em São<br />
Paulo — e preparan<strong>do</strong> um primeiro LP — lembra<strong>do</strong>s por Paquito para serem<br />
convida<strong>do</strong>s especiais <strong>de</strong> amanhã a tar<strong>de</strong>. (Millarch 1992)<br />
A Canja <strong>de</strong> Viola é um espaço em que é digno <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque o respeito, generosida<strong>de</strong><br />
e paciência com que os mais experientes, os “veteranos” na música assistem às apresentações<br />
<strong>do</strong>s iniciantes e ama<strong>do</strong>res. O apresenta<strong>do</strong>r também participa das performances<br />
musicais, ora suprin<strong>do</strong> a falta <strong>do</strong> parceiro <strong>de</strong> alguém para cantar, ora fazen<strong>do</strong><br />
trovas improvisadas com rimas fixas, em <strong>de</strong>safio com outro. Dito isto, é possível<br />
<strong>de</strong>duzir que a qualida<strong>de</strong> das performances varia muito. Porém o que é notável é a prática<br />
musical sempre colaborativa imersa nesse ambiente comunitário.<br />
Quem freqüenta a Canja <strong>de</strong> Viola po<strong>de</strong> estar interessa<strong>do</strong> tanto no encontro <strong>de</strong> amigos<br />
e no entretenimento proporciona<strong>do</strong> por essas tar<strong>de</strong>s <strong>de</strong> apresentações musicais<br />
quanto no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r ou aperfeiçoar seu <strong>de</strong>sempenho musical — seja no<br />
canto ou no instrumento — ao vivo e em público, ten<strong>do</strong> como prática constante a<br />
performance.<br />
A revisão <strong>de</strong> literatura que segue aprofunda elementos relaciona<strong>do</strong>s ao fazer musical<br />
na Canja <strong>de</strong> Viola, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvem-se práticas no universo da música popular<br />
brasileira, notadamente a chamada <strong>de</strong> sertaneja no contexto <strong>do</strong> grupo em estu<strong>do</strong>.<br />
I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, Comunida<strong>de</strong>s<br />
De acor<strong>do</strong> com a abordagem contextual, não existe <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> em<br />
si mesma. Os processos i<strong>de</strong>ntitários não existem fora <strong>de</strong> contexto, são sempre relativos<br />
a algo específico que está em jogo (Agier 2001, p. 9).<br />
A citação acima <strong>de</strong>screve sucintamente como é complexo tentar conceituar i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />
Wenger (1998a), em sua teoria, parte da noção da formação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />
como processos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação com certas práticas sociais e as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> negociar<br />
e moldar significa<strong>do</strong>s produzi<strong>do</strong>s no contexto das comunida<strong>de</strong>s. Em consonância<br />
com este pensamento, que mostra que a relação <strong>de</strong> pertencimento ou<br />
não-pertencimento a um grupo ou comunida<strong>de</strong> acaba por influenciar a construção<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, temos Hall (2006) e também Agier (2001, p. 10), que diz que<br />
“a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> remete, portanto, a um alhures, a um antes e aos outros”. Explican<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>-se retornar a Lave & Wenger (1991, p. 3), que afirmam: “A<br />
nossa própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da individualida<strong>de</strong> é uma questão <strong>de</strong> pertencimento.”<br />
(Tradução nossa).9<br />
Com relação a esta discussão sobre i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, fundamental para diversos pensa<strong>do</strong>res,<br />
Warnier (2003, p. 16) explica: “A noção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> encontra um sucesso<br />
crescente no campo das ciências sociais <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1970”, com diversas <strong>de</strong>finições.<br />
O autor enten<strong>de</strong> que “a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é <strong>de</strong>finida como o conjunto <strong>de</strong> reper-<br />
583
584<br />
tórios <strong>de</strong> ação, <strong>de</strong> língua e <strong>de</strong> cultura que permitem a uma pessoa reconhecer sua<br />
vinculação a certo grupo social e i<strong>de</strong>ntificar-se com ele”. (Ibid., p. 16-17).<br />
A globalização, a partir <strong>do</strong>s fenômenos <strong>de</strong> hibridação cultural <strong>de</strong>correntes da veloz<br />
urbanização <strong>do</strong> planeta, <strong>de</strong> diversas maneiras fragmentou i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pequenos<br />
grupos (como, por exemplo, grupos <strong>de</strong> imigrantes e refugia<strong>do</strong>s) (Canclini 2003a),<br />
porém, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sociocultural consistente em seus contornos<br />
permanece no ser humano. Essas idéias estão presentes em trabalhos <strong>de</strong> autores<br />
relevantes nos estu<strong>do</strong>s culturais como Hall (2006), que <strong>de</strong>screve o reforço a<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s ‘locais’ ou particularistas como uma das possíveis conseqüências da globalização<br />
sobre as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s culturais. Com isso, as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s movimentam-se<br />
e transformam-se, por mais que o homem <strong>de</strong>seje significações estáticas e seguras.<br />
Assim, como dizem Canclini (2003b) e Hall (2006) preservam-se, criam-se, imaginam-se<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s para que os grupos sociais não fiquem sem essa referência coletiva:<br />
a noção <strong>de</strong> pertencimento a uma comunida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntitária, que se diferencia<br />
em algum nível da temida homogeneização que supostamente seria provocada pela<br />
globalização. Talvez também por conta <strong>de</strong>ssas moldagens comportamentais que se<br />
impõem a tantos grupos é que a cognição social tenha ganha<strong>do</strong> terreno e dialoga<strong>do</strong><br />
cada vez mais com outras áreas <strong>do</strong> conhecimento.<br />
Sawaia (1999) <strong>de</strong>senvolve a idéia <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong> como “bons encontros”, que envolvem<br />
associação e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s comuns, ou seja, a comunida<strong>de</strong> é vista como ética<br />
e estética da existência, em tempos <strong>de</strong> profunda estetização <strong>do</strong> estilo <strong>de</strong> vida. A reflexão<br />
<strong>de</strong> Sawaia é mediada pelo conceito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificações em curso, conceito presente<br />
também em Hall (2006), já que nas socieda<strong>de</strong>s complexas como as das<br />
metrópoles as comunida<strong>de</strong>s são <strong>de</strong>sterritorializadas, constituin<strong>do</strong>-se pela i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>,<br />
ao mesmo tempo permanente e em transformação, num par dialético. Neste<br />
aspecto a autora tem seu pensamento em consonância ainda com Warnier:<br />
No campo político das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, os grupos po<strong>de</strong>m fornecer uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
aos indivíduos. (. . .) seria talvez mais pertinente falar-se <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação<br />
ao invés <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, e que a i<strong>de</strong>ntificação é contextual e flutuante. No quadro<br />
da globalização da cultura, um mesmo indivíduo po<strong>de</strong> assumir i<strong>de</strong>ntificações<br />
múltiplas que mobilizam diferentes elementos <strong>de</strong> língua, <strong>de</strong> cultura, <strong>de</strong> religião,<br />
em função <strong>do</strong> contexto. (2003, p. 17).<br />
A concepção <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntitária vista <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong> dinâmico é relevante para<br />
esta pesquisa, uma vez que os freqüenta<strong>do</strong>res da Canja <strong>de</strong> Viola cultivam música sertaneja<br />
numa metrópole, moran<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s em lugares distantes uns <strong>do</strong>s outros, mas<br />
que encontram local e oportunida<strong>de</strong> para exercer plenamente suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />
(e/ou i<strong>de</strong>ntificações) musicais e <strong>de</strong> pertencer, pelo menos no contexto <strong>do</strong> evento, à<br />
“família sertaneja”, sempre evocada pelo apresenta<strong>do</strong>r <strong>do</strong> evento. Importante ressaltar<br />
aqui que as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sta comunida<strong>de</strong> não se integram apenas pela música,<br />
que é o mais importante, mas é um <strong>do</strong>s diversos ingredientes culturais que<br />
compõem o ‘universo sertanejo’:
A cida<strong>de</strong> multiplica os encontros <strong>de</strong> indivíduos que trazem consigo seus pertencimentos<br />
étnicos, suas origens regionais ou suas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> relações familiares<br />
ou extra-familiares. Na cida<strong>de</strong>, mais que em outra parte, <strong>de</strong>senvolvem-se, na prática,<br />
os relacionamentos entre i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, e na teoria, a dimensão relacional da<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Por sua vez, esses relacionamentos “trabalham”, alteran<strong>do</strong> ou modifican<strong>do</strong>,<br />
os referentes <strong>do</strong>s pertencimentos originais (étnicos, regionais, faccionais<br />
etc.). Essa transformação atinge os códigos <strong>de</strong> conduta, as regras da vida<br />
social, os valores morais, até mesmo as línguas, a educação e outras formas culturais<br />
que orientam a existência <strong>de</strong> cada um no mun<strong>do</strong>. (Agier 2001, p. 9).<br />
A chamada ‘cognição social interacionalmente situada’ é uma perspectiva que<br />
procura ver a cognição como uma parte da ação conjunta — o tipo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong><br />
em que nos engajamos diariamente, quan<strong>do</strong> falamos com nossos vizinhos, conversamos<br />
ao telefone, assistimos ou ministramos aula, etc. O que acontece internamente<br />
em nossa mente é inseparável <strong>de</strong> sua manifestação exterior e as ações<br />
<strong>do</strong>s indivíduos somente fazem senti<strong>do</strong> com referência às ações <strong>de</strong> outros indivíduos.<br />
Assim, a cognição se junta à língua, e é através <strong>de</strong>sta união que o novo<br />
senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> cognição social po<strong>de</strong> dar conta <strong>de</strong> aspectos como o discurso (Leite<br />
2003, p. 222).<br />
I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s ou i<strong>de</strong>ntificações sociomusicais<br />
na Canja <strong>de</strong> Viola<br />
Po<strong>de</strong>mos dizer que na Canja <strong>de</strong> Viola pre<strong>do</strong>minam — em um universo i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong><br />
com a ruralida<strong>de</strong> — diversos repertórios que foram, a partir <strong>do</strong>s anos 30, amplamente<br />
difundi<strong>do</strong>s pelo rádio, veículo fundamental na formação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
musical nacional. Foi por meio <strong>do</strong> rádio que a música rural (caipira, sertaneja, gauchesca)<br />
teve presença marcante e constante (Murphy 2006). Na Canja são pratica<strong>do</strong>s<br />
quase to<strong>do</strong>s os estilos <strong>de</strong> música sertaneja. Mas a influência mais forte<br />
percebida nos participantes que se apresentam no palco <strong>do</strong> evento é a variante da<br />
música sertaneja mais romântica, que é influenciada claramente em letras e sonorida<strong>de</strong>s<br />
pela Jovem Guarda (Sant’Anna 2000) e outros estilos <strong>de</strong> sucesso na música<br />
pop, como as baladas românticas atuais.<br />
Vale dizer ainda que essa comunida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntitária da Canja <strong>de</strong> Viola exerce, na prática,<br />
as vivências comunitárias harmônicas <strong>de</strong>scritas por Sawaia (1999): to<strong>do</strong>s têm<br />
suas individualida<strong>de</strong>s; respeitam-se nas diferenças <strong>de</strong> jeito, mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> falar, costumes<br />
— pois são originários <strong>de</strong> várias regiões <strong>do</strong> Brasil — e até <strong>de</strong> gosto estilístico <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>do</strong> mesmo gênero musical. Ao mesmo tempo, encontram-se e compartilham i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />
musicais, repertórios, trocam experiências, comentam <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> recíproco<br />
suas performances, qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s instrumentos, maneiras <strong>de</strong> cantar, etc., sem qualquer<br />
tipo <strong>de</strong> preconceito ou segregacionismo. Esta noção <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong> construída<br />
nos encontros e nas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s musicais está em consonância com as<br />
reflexões <strong>de</strong> Russell em suas pesquisas, relatadas em artigo sobre a sua experiência<br />
com comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> prática musical nas Ilhas Fiji:<br />
585
586<br />
Durante o canto <strong>do</strong>s hinos, fico ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong> sons. Toda a congregação ao meu<br />
re<strong>do</strong>r está cantan<strong>do</strong> em harmonia. A riqueza <strong>de</strong> suas vozes e a ressonância <strong>do</strong><br />
som me dá arrepios. Mãos generosas encontram cada hino no hinário que está<br />
em minhas mãos, para que eu possa acompanhar o culto que prossegue. (. . .) Estamos<br />
cantan<strong>do</strong> um hino na linguagem harmônica <strong>de</strong> Bach. Estou <strong>de</strong> volta ao<br />
coração <strong>de</strong> minha família, e me uno às contraltos, registro mais confortável para<br />
a minha voz. Ainda que temporariamente, sinto que faço parte <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong><br />
— uma comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas que — assim como minha família — cantam.<br />
(2006, p. 9).<br />
Neste senti<strong>do</strong> e em consonância com o pensamento <strong>de</strong> Sawaia (1999), vemos que<br />
nem mesmo a efemerida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s encontros com data marcada para terminarem dissolve<br />
a sensação <strong>de</strong> pertencer a uma comunida<strong>de</strong>. Wenger (1998a) e Sny<strong>de</strong>r e Wenger<br />
(2004) ressaltam que as comunida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m ser efêmeras ou durar séculos, não<br />
sen<strong>do</strong> o tempo <strong>de</strong> ‘vida’ uma variável que possa interferir na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong>.<br />
Outro da<strong>do</strong> relevante da Canja que merece ser <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> é a idéia <strong>de</strong> que as canções,<br />
na cultura popular brasileira, ocupam um primeiro plano nas práticas e no consumo<br />
cultural. Essa informação também gerou um recurso <strong>de</strong> análise importante<br />
para o universo musical <strong>de</strong> que estamos tratan<strong>do</strong> aqui, que toca na i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social<br />
e cultural. Sobre esta importância da canção, no <strong>do</strong>mínio da música sertaneja<br />
ainda há um refinamento: cantar bem, que parece ser a verda<strong>de</strong>ira expertise para<br />
esse universo, como <strong>de</strong>monstra Ulhôa:<br />
O que torna a música sertaneja <strong>de</strong> boa qualida<strong>de</strong> para seus aficiona<strong>do</strong>s não são<br />
melodia, harmonia, ritmo, instrumentação ou forma, categorias musicológicas<br />
usuais para a análise da música popular, mas, principalmente, o estilo vocal <strong>do</strong>s<br />
cantores no que chamam <strong>de</strong> “voz”, além da relação letra-música. A unida<strong>de</strong> estilística<br />
da música sertaneja é conseguida pelo uso consistente <strong>do</strong> estilo vocal<br />
tenso e nasal e pela referência temática ao cotidiano, seja rural e épico na música<br />
sertaneja raiz, seja urbano e individualista na música sertaneja romântica. Deste<br />
mo<strong>do</strong> po<strong>de</strong>m ter qualida<strong>de</strong> tanto Tonico e Tinoco ou Pena Branca e Xavantinho<br />
quanto Chitãozinho e Xororó ou Leandro e Leonar<strong>do</strong>, pela habilida<strong>de</strong> que<br />
<strong>de</strong>monstram em lidar com suas vozes <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um estilo específico, e pela coerência<br />
interna das letras que remetem a um cotidiano histórico. (1999, p. 53-54).<br />
Ainda em relação à música como ativida<strong>de</strong> que constrói i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, po<strong>de</strong>-se observar<br />
que muitos <strong>do</strong>s autores cita<strong>do</strong>s mencionam essa proprieda<strong>de</strong>, inclusive referin<strong>do</strong>-se<br />
a outros autores que, em seus artigos, argumentam na mesma direção. De<br />
acor<strong>do</strong> com Queiroz (2005), sabemos também que as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s se dão <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />
um contexto cultural e que muitas das habilida<strong>de</strong>s e/ou facilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprendizagem<br />
musical referentes a um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> estilo estão para além <strong>de</strong> competências<br />
exclusivamente musicais, pois já estão no sujeito que está imerso em sua cultura,<br />
mesmo que este contexto esteja apenas em seu passa<strong>do</strong>, na infância, uma vez que internalizamos<br />
nossas histórias <strong>de</strong> vida.
Russell (2006) conta que cresceu num ambiente musical familiar em que to<strong>do</strong>s cantavam<br />
harmonicamente no dia-a-dia, ten<strong>do</strong> habilida<strong>de</strong>s e competências musicais,<br />
adquiridas empiricamente, <strong>de</strong> “encontrar a sua voz” e harmonizar naturalmente<br />
uma melodia dada no sistema tonal, a ponto da pesquisa<strong>do</strong>ra imaginar, quan<strong>do</strong><br />
tornou-se educa<strong>do</strong>ra musical, que todas as pessoas teriam essas competências naturalmente<br />
<strong>de</strong>senvolvidas, o que, logicamente, não ocorreu e a surpreen<strong>de</strong>u naquele<br />
momento em que iniciava a sua vida profissional. Ela tinha, então, um olhar apenas<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seu contexto familiar. Para ela, à época, cantar era tão habitual<br />
quanto ler ou conversar.<br />
Estas experiências da infância criaram minha i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> musical. A harmonia<br />
tonal é minha língua musical, e minha imersão nas práticas musicais <strong>de</strong> minha<br />
família a base <strong>de</strong> meu <strong>de</strong>senvolvimento como musicista e educa<strong>do</strong>ra musical. O<br />
prazer <strong>de</strong> fazer música em conjunto continua nutrin<strong>do</strong> a minha participação<br />
fazen<strong>do</strong> música com outras pessoas da comunida<strong>de</strong>, algo que parece ser infinito.<br />
(Russell 2006, p. 8).<br />
Comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Prática<br />
Significa<strong>do</strong>, prática, comunida<strong>de</strong> e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> são conceitos-chave na teoria <strong>de</strong><br />
Wenger (1998). O significa<strong>do</strong> se refere à nossa experiência <strong>de</strong> vida e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
e a prática, aos nossos recursos históricos e sociais compartilha<strong>do</strong>s. Comunida<strong>de</strong><br />
refere-se às formações sociais nas quais as nossas iniciativas são <strong>de</strong>finidas<br />
como dignas <strong>de</strong> prossecução e nossa participação é reconhecível como competência.<br />
I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> tem a ver com várias modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprendizagem que criam<br />
histórias pessoais para nós em nossas comunida<strong>de</strong>s.10 (Russell 2002, p. 2-3, tradução<br />
nossa).<br />
Para Wenger (1998a) a comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prática é a corporificação (embodiment) <strong>de</strong><br />
sua teoria social da aprendizagem e, vista como local <strong>de</strong> aprendizagem (site of learning),<br />
é central para a teoria proposta por Wenger, que tem quatro premissas fundamentais:<br />
(1) Somos seres sociais. Longe <strong>de</strong> ser uma verda<strong>de</strong> trivial, este fato é um aspecto<br />
central da aprendizagem. (2) O conhecimento é uma questão <strong>de</strong> competência<br />
no que diz respeito a iniciativas às quais se dá valor — tal como cantar afina<strong>do</strong>,<br />
<strong>de</strong>scobrir fatos científicos, consertar máquinas, escrever poesia, ser agradável ao<br />
convívio, crescer como menino ou menina, e assim por diante. (3) O saber é<br />
uma questão <strong>de</strong> participação na busca <strong>de</strong> certas iniciativas, ou seja, <strong>de</strong> um engajamento<br />
ativo no mun<strong>do</strong>. (4) Significa<strong>do</strong> — a nossa habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> experienciar<br />
o mun<strong>do</strong> e nosso engajamento com isto como significativo — é o que, afinal <strong>de</strong><br />
contas, a aprendizagem <strong>de</strong>ve produzir.11 (1998a, p. 4, tradução nossa).<br />
As comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> prática são formadas por pessoas interessadas na prática compartilhada<br />
em um <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> esforço humano. Três elementos são fundamentais<br />
para caracterizá-las:<br />
a) o <strong>do</strong>mínio — o interesse em uma competência compartilhada, valorizada pela<br />
587
588<br />
comunida<strong>de</strong>, que distingue os membros <strong>de</strong> outras pessoas e as mantém juntas.<br />
Nesta característica é importante ainda <strong>de</strong>stacar que:<br />
O <strong>do</strong>mínio não é necessariamente algo reconheci<strong>do</strong> como ‘expertise’ fora da comunida<strong>de</strong>.<br />
Uma gangue juvenil po<strong>de</strong> ter <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os tipos <strong>de</strong> formas<br />
<strong>de</strong> lidar com o seu <strong>do</strong>mínio: sobreviver nas ruas e manter algum tipo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
com que se po<strong>de</strong> viver. Eles valorizam a sua competência coletiva e apren<strong>de</strong>m<br />
uns com os outros, mesmo que poucas pessoas fora <strong>do</strong> grupo posam<br />
valorizar, ou mesmo reconhecer a sua especialização.12 (Wenger 2007, p. 2, tradução<br />
nossa).<br />
b) a comunida<strong>de</strong> — em busca <strong>do</strong>s interesses no seu <strong>do</strong>mínio, os membros engajam-se<br />
em ativida<strong>de</strong>s conjuntas e compartilham informações. Assim, formam<br />
uma comunida<strong>de</strong> que interage e apren<strong>de</strong> em torno <strong>do</strong> seu <strong>do</strong>mínio, construin<strong>do</strong><br />
relacionamentos.<br />
c) a prática — uma comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prática não é simplesmente uma comunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> interesses; seus membros são praticantes e <strong>de</strong>senvolvem um repertório compartilha<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> recursos: experiências, histórias, ferramentas, maneiras <strong>de</strong> resolver<br />
problemas <strong>de</strong>correntes da prática.<br />
Como vimos, comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> prática são grupos que apren<strong>de</strong>m juntos e compartilham<br />
repertórios. Transpor esse tipo <strong>de</strong> características para o universo musical é<br />
natural, como <strong>de</strong>monstrou a pesquisa<strong>do</strong>ra Joan Russsell:<br />
A experiência também reforçou minha crença — advinda da infância — <strong>de</strong> que<br />
a maioria das pessoas possui habilida<strong>de</strong>s musicais que, com apoio social (estruturas<br />
e expectativas) e cultural (crenças e valores) apropria<strong>do</strong>s, po<strong>de</strong>m cultiválas<br />
<strong>de</strong> alguma maneira. Vejo as práticas musicais <strong>do</strong>s fijianos como evidências<br />
<strong>de</strong> que a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cantar po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>senvolvida em um grau eleva<strong>do</strong>, e que<br />
a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cantar em polifonia não é exclusivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguns indivíduos talentosos,<br />
mas um tipo <strong>de</strong> expertise que se <strong>de</strong>senvolve em algumas condições particulares.<br />
A experiência em Fiji me ensinou muito a respeito da importância <strong>de</strong><br />
pertencer a uma ‘comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prática musical’; um ambiente <strong>de</strong> aprendizagem<br />
para crianças e adultos que apren<strong>de</strong>m juntos. Em tal comunida<strong>de</strong>, o grupo<br />
tem um repertório comum <strong>de</strong> canções, e o canto é uma prática altamente valorizada<br />
por to<strong>do</strong>s, que se ligam através <strong>de</strong> uma experiência musical. (2006, p. 14).<br />
Sawaia (1999), dialogan<strong>do</strong> com as ciências sociais em artigo direciona<strong>do</strong> a estudiosos<br />
da psicologia social comunitária, apela para que se consi<strong>de</strong>re, ao mesmo<br />
tempo, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> como permanência e transformação, tratan<strong>do</strong>-os como par dialético,<br />
para não incorrermos em falhas <strong>de</strong> análise ou realizarmos práticas equivocadas<br />
e estanques. A autora conclui o estu<strong>do</strong> dizen<strong>do</strong>:<br />
A estética da existência <strong>de</strong>ve ser regulada pelo princípio <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>, que<br />
<strong>de</strong>fine uma ética através <strong>de</strong> bons encontros, que se alimenta da diversida<strong>de</strong>, sem<br />
temer o estranho, pois é ligar-se ao outro sem o <strong>de</strong>spotismo <strong>do</strong> mesmo, caracterizada<br />
pela mutualida<strong>de</strong> em vez <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sigual, como arte <strong>de</strong> dar e receber<br />
prazer. (Sawaia 1999, p. 24).
As entrevistas, <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> geral, reforçaram a idéia da comunida<strong>de</strong> como sen<strong>do</strong><br />
um espaço <strong>de</strong>sses bons encontros e que fornece abrigo às i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s musicais, ligadas<br />
a essa ruralida<strong>de</strong> (pertencimento), através <strong>do</strong> repertório compartilha<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
experiências, conforme indicam Wenger (1998a) e Russell (2002; 2006).<br />
Consi<strong>de</strong>rei importante trazer para a análise também este conceito, que envolve a<br />
idéia <strong>de</strong> estética da existência, por serem muito ligadas a estéticas as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />
<strong>do</strong>s entrevista<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>s participantes da Canja <strong>de</strong> Viola. Uma existência ligada à<br />
ruralida<strong>de</strong>, como já vimos, mas plena <strong>de</strong> estética pela música em si e pela própria<br />
poesia <strong>de</strong> exercer essa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> ‘sertaneja’ em Curitiba, uma cida<strong>de</strong> que parece<br />
não se i<strong>de</strong>ntificar com essa ruralida<strong>de</strong> possível para uma metrópole.<br />
Música, talento, <strong>do</strong>m: ‘herança’ familiar?<br />
A formação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s musicais<br />
Nas <strong>de</strong>clarações <strong>do</strong>s entrevista<strong>do</strong>s, a crença no <strong>do</strong>m da música liga<strong>do</strong> a uma herança<br />
familiar é unânime. Po<strong>de</strong>mos chamar este <strong>de</strong> o primeiro e mais relevante<br />
ponto em comum a to<strong>do</strong>s os entrevista<strong>do</strong>s, o que foi surpreen<strong>de</strong>nte para mim. Este<br />
é um forte da<strong>do</strong> cultural da nossa socieda<strong>de</strong>, que eu, particularmente, julgava ser<br />
apenas <strong>do</strong> senso comum, mas <strong>do</strong>s indivíduos que não são músicos. Como to<strong>do</strong>s<br />
manifestaram a mesma crença e, por sua vez, apren<strong>de</strong>ram música informalmente e<br />
principalmente através <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong>, imitação e memória (Recôva 2006), acredito<br />
que esta crença tenha si<strong>do</strong> justamente um fator motivacional muito significativo.<br />
Sant’Anna (2000) <strong>de</strong>screve em seu trabalho a história da crença no <strong>do</strong>m, advinda<br />
da cultura caipira. Os violeiros, naquele contexto, seriam “verda<strong>de</strong>iros ungi<strong>do</strong>s pelo<br />
<strong>do</strong>m <strong>de</strong> fazer versos” (p. 189-190) e que teriam um certo privilégio <strong>de</strong> levar a vida<br />
com mais prazer <strong>do</strong> que os outros por po<strong>de</strong>rem tocar viola:<br />
Ai, a viola me acompanha<br />
Des<strong>de</strong> quinze anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>,<br />
Ela é minha companhera<br />
Nas minhas contrarieda<strong>de</strong>.<br />
Faço moda alegre e triste,<br />
Conforme a oportunida<strong>de</strong>,<br />
Esse <strong>do</strong>m <strong>de</strong> fazê moda<br />
Não é querer e ter vonta<strong>de</strong>,<br />
Tem muita gente que quer<br />
Mas não tem facilida<strong>de</strong>.<br />
É um <strong>do</strong>m que Deus me <strong>de</strong>u<br />
Pra <strong>de</strong>sabafar sauda<strong>de</strong>, ai, ai, ai.13 (Ibid., p. 222).<br />
Curiosa a diferenciação que essa comunida<strong>de</strong> faz entre apren<strong>de</strong>r música “por partitura”<br />
e por ouvi<strong>do</strong>. Para eles, quem não tem <strong>do</strong>m po<strong>de</strong> até apren<strong>de</strong>r, mas somente<br />
por partitura.<br />
589
590<br />
Russell (2002) conta que sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> como pessoa musical foi construída na infância,<br />
em um ambiente familiar em que to<strong>do</strong>s tinham competências musicais, cantavam<br />
e/ou tocavam instrumentos muito bem sem nunca terem ti<strong>do</strong> aulas <strong>de</strong><br />
música. Como ela cresceu nesse ambiente e foi estimulada a cantar em conjunto<br />
com eles <strong>de</strong>s<strong>de</strong> ce<strong>do</strong> no costume familiar <strong>de</strong> harmonizar as diferentes vozes em coral,<br />
ela absorveu o sistema tonal pela prática <strong>de</strong>s<strong>de</strong> menina e reconheceu a sua família<br />
como uma comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prática musical.<br />
Os entrevista<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong> narraram experiências semelhantes à da pesquisa<strong>do</strong>ra<br />
cana<strong>de</strong>nse, que revelam também outros elementos forma<strong>do</strong>res <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />
em que a ruralida<strong>de</strong> está presente em alguma medida. É interessante, por<br />
exemplo, observar na história da vida musical <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s entrevista<strong>do</strong>s a partir <strong>de</strong><br />
sua infância em Minas Gerais, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> o pai trouxe influências musicais e a aprendizagem<br />
familiar que ocorreu quan<strong>do</strong> mudaram-se para o sul <strong>do</strong> Brasil e tiveram<br />
contato a música gaúcha que, em uma negociação <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>s com fronteiras<br />
musicais (Wenger 1998a), acabou incorporan<strong>do</strong> a presença e som da ‘gaita’ (acor<strong>de</strong>om)<br />
à casa, numa integração sonora e estilística com o violão vin<strong>do</strong> das Minas Gerais.<br />
Dentro <strong>do</strong> universo da música sertaneja, o <strong>do</strong>mínio compartilha<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta comunida<strong>de</strong><br />
(Wenger 1998a; 1998b) existem diversos estilos que fazem parte das preferências<br />
musicais <strong>do</strong>s participantes da Canja. É digno <strong>de</strong> nota, mais uma vez, o<br />
respeito para com as diferenças estéticas. Em geral to<strong>do</strong>s prestam atenção e aplau<strong>de</strong>m<br />
as apresentações, que são bem heterogêneas em qualida<strong>de</strong> e estilos. Os mo<strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong> cantar foram percebi<strong>do</strong>s na observação em campo como ten<strong>do</strong> o mais alto valor<br />
para to<strong>do</strong>s os participantes da Canja, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> estilo aprecia<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong><br />
gênero.<br />
Resulta<strong>do</strong>s<br />
A partir <strong>de</strong> diversas fontes <strong>de</strong> evidências, mas principalmente através <strong>do</strong> trabalho<br />
<strong>de</strong> campo que envolveu a observação e entrevistas com alguns participantes, enten<strong>do</strong><br />
que os resulta<strong>do</strong>s foram mais significativos <strong>do</strong> que propriamente conclusivos,<br />
no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> serem possibilida<strong>de</strong>s abertas a outros e maiores aprofundamentos <strong>de</strong><br />
interpretação e análise. O que respalda essa afirmação é, em primeiro lugar, que o<br />
objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> em si como prática social foi ainda pouco estudada e revelou-se<br />
como um campo <strong>de</strong>nso e fértil que po<strong>de</strong> propiciar mais pesquisas em cognição social<br />
e musical, educação musical, musicologia, psicologia social, antropologia, sociologia,<br />
história, etc.; em segun<strong>do</strong> lugar, a pertinência da teoria das comunida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> prática no campo da música (Russel 2002), praticamente inexplorada no Brasil,<br />
como ferramenta para enten<strong>de</strong>r a cognição e as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s sociomusicais <strong>de</strong> certas<br />
comunida<strong>de</strong>s, além <strong>de</strong> possibilitar caminhos e recursos em educação musical.
Retoman<strong>do</strong> a questão da pesquisa, que buscou i<strong>de</strong>ntificar experiências comuns vivenciadas<br />
pelos participantes da Canja <strong>de</strong> Viola a partir da prática e das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />
relacionadas à comunida<strong>de</strong>, foi possível sintetizar alguns pontos importantes,<br />
relaciona<strong>do</strong>s a seguir.<br />
A opção por manter “um pé na roça” mesmo moran<strong>do</strong> na cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, como diriam<br />
muitos <strong>do</strong>s freqüenta<strong>do</strong>res da Canja sobre as suas i<strong>de</strong>ntificações com uma<br />
certa ruralida<strong>de</strong>. Há aí uma opção também <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m estética que resi<strong>de</strong> na beleza<br />
<strong>do</strong> continuar a ser sertanejo, além <strong>de</strong> uma ética (Sawaia 1999) pelos valores também<br />
sertanejos da cordialida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> ajuda mútua em relações estruturadas como vicinais.<br />
A busca pela memória <strong>de</strong> um contexto social e familiar em que a música fazia parte<br />
<strong>do</strong> cotidiano, sempre haven<strong>do</strong> um membro da família como referência musical<br />
principal, geralmente a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> como mo<strong>de</strong>lo na formação musical <strong>do</strong>s entrevista<strong>do</strong>s.<br />
Daí emerge o conceito <strong>de</strong> enculturação, explora<strong>do</strong> por Green (2001) o qual se<br />
relaciona com as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e também com o aprendiza<strong>do</strong>, ocorri<strong>do</strong> <strong>de</strong> maneira situada<br />
como <strong>de</strong>scrito por Lave & Wenger (1991), muitos ten<strong>do</strong> na própria casa, durante<br />
a infância e/ou a<strong>do</strong>lescência, uma comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prática. (Russel 2002).<br />
A forte crença no <strong>do</strong>m divino da música, herda<strong>do</strong> também “<strong>de</strong> família”, que to<strong>do</strong>s<br />
os entrevista<strong>do</strong>s manifestaram com convicção. Essa crença, segun<strong>do</strong> Sant’Anna<br />
(2000) tem origens históricas no mun<strong>do</strong> caipira e é um fator motiva<strong>do</strong>r para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
da musicalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses indivíduos.<br />
O sentimento <strong>de</strong> pertencimento a essa comunida<strong>de</strong>, tanto <strong>do</strong>s músicos quanto <strong>do</strong><br />
público, <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> por Wenger (1998a) como fundamental para a consolidação da<br />
comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prática.<br />
As preferências musicais semelhantes, como também <strong>de</strong>screveu Oliveira (2008),<br />
com pequenas variações <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mesmo gênero, centradas na música sertaneja<br />
produzida a partir da segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong>s anos 50 até os anos 80.<br />
O respeito com práticas que exploram outros estilos musicais. Não há um “fechamento”<br />
da comunida<strong>de</strong> no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> julgar as suas preferências <strong>de</strong> prática melhores<br />
que as <strong>de</strong> outras pessoas ou grupos, o que revela uma maneira <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong><br />
incomum <strong>de</strong> elaborar questões <strong>de</strong> valor.<br />
O engajamento com a continuida<strong>de</strong> da vida da comunida<strong>de</strong>, para que a prática musical<br />
possa permanecer como oportunida<strong>de</strong> contínua <strong>de</strong> experiências significativas.<br />
(Wenger 1998a; 1998b).<br />
Os processos <strong>de</strong> aprendizagem, sempre situa<strong>do</strong>s (Lave & Wenger, 1991); ten<strong>do</strong><br />
como base a enculturação (Grenn 2001) — que é em si mesma um processo <strong>de</strong> cognição<br />
social — <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> geral foram <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> forma essencialmente autodidata<br />
e envolveram uma forte motivação intrínseca (relacionada à crença no<br />
<strong>do</strong>m), utilizan<strong>do</strong> a observação atenta associada à imitação, ao ouvi<strong>do</strong> e à memória.<br />
(Recôva 2006).<br />
591
592<br />
O estu<strong>do</strong> musical sempre liga<strong>do</strong> a uma prática <strong>de</strong>liberada, com aplicação direta <strong>do</strong>s<br />
objetivos traça<strong>do</strong>s pelo próprio praticante, relaciona<strong>do</strong>s a um repertório que o indivíduo<br />
<strong>de</strong>seja <strong>de</strong>senvolver ou a ser apresenta<strong>do</strong> numa situação concreta.<br />
A comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prática como espaço <strong>de</strong> aquisição e mesmo <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> conhecimento<br />
situa a aprendizagem e por isso a faz significativa. Este fenômeno foi também<br />
<strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> por Russell em suas pesquisas nas Ilhas Fiji, on<strong>de</strong> cantar é um<br />
atributo da cognição social <strong>de</strong> to<strong>do</strong> e qualquer indivíduo daquela população: não<br />
há alguém “<strong>de</strong>safina<strong>do</strong>”, a musicalida<strong>de</strong> está em to<strong>do</strong>s.<br />
1 “Communities of practice are groups of people who share a concern or a passion for something<br />
they <strong>do</strong> and learn how to <strong>do</strong> it better as they interact regularly”. Disponível em:<br />
http://www.ewenger.com/theory/in<strong>de</strong>x.htm (conteú<strong>do</strong> gerencia<strong>do</strong> pelo autor). Acesso em<br />
11/11/2007.<br />
2 O Teatro Universitário <strong>de</strong> Curitiba (TUC), equipamento urbano da administração municipal,<br />
fica no centro histórico da cida<strong>de</strong> e tem menos <strong>de</strong> 100 lugares na platéia.<br />
3 Violeiro é “figura típica <strong>do</strong> folclore brasileiro, toca<strong>do</strong>r e canta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> viola, muitas vezes<br />
também compositor, repentista, cor<strong>de</strong>lista, qualida<strong>de</strong>s típicas <strong>do</strong> violeiro nor<strong>de</strong>stino, geralmente<br />
improvisa<strong>do</strong>r, que vai crian<strong>do</strong> suas rimas enquanto canta e acompanha com a viola”<br />
(Cascu<strong>do</strong> 2002, 730-731).<br />
4 “Dupla caipira” ou “dupla sertaneja”, um par <strong>de</strong> cantores que fazem dueto em vozes paralelas,<br />
em intervalos <strong>de</strong> terças ou sextas, sen<strong>do</strong> que pelo menos um <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is toca um instrumento<br />
(violão ou viola) que faz a base harmônica para o canto. (Oliveira 2005, 5).<br />
5 Trova<strong>do</strong>r é aquele que faz “trovas em forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio”, que “revelam o talento natural e<br />
a agilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensamento <strong>do</strong>s canta<strong>do</strong>res, não só em quadrinhas, mas também nas sextilhas<br />
e em outras modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> versos” (Cascu<strong>do</strong> 2002, 701).<br />
6 Paquito Mo<strong>de</strong>sto, funcionário da administração municipal <strong>de</strong> Curitiba, fun<strong>do</strong>u com sua<br />
esposa Vera La Pastina o Centro Comunitário São Braz, on<strong>de</strong> ocorreram os primeiros encontros<br />
<strong>do</strong> que viria a ser o projeto Canja <strong>de</strong> Viola.<br />
7 A Fundação Cultural <strong>de</strong> Curitiba (FCC), órgão da administração municipal, é mantene<strong>do</strong>ra<br />
<strong>do</strong> evento através da cessão <strong>do</strong> espaço e equipe <strong>de</strong> funcionários: técnico <strong>de</strong> som, apresenta<strong>do</strong>r,<br />
ajudante <strong>de</strong> palco.<br />
8 Disponível em http://www.parana-online.com.br/editoria/almanaque/news/175282<br />
Acesso em 30/11/2006.<br />
9 “Our very i<strong>de</strong>ntity of individuality is a matter of belonging” (Lave & Wenger, 1991, p. 16).<br />
10 “Meaning, practice, community and i<strong>de</strong>ntity are key concepts in Wenger’s theory (ibid).<br />
Meaning refers to our experience of life and the world, and practice refers to our shared historical<br />
and social resources. Community refers to the social configurations in which our enterprises<br />
are <strong>de</strong>fined as worth pursuing, and our participation is recognizable as competence.<br />
I<strong>de</strong>ntity has to <strong>do</strong> with the ways in which learning creates personal histories for us in our<br />
communities” (Russel, 2002, p. 2-3).<br />
11 “(1) We are social beings. Far from being trivially true, this fact is a central aspect of learning.<br />
(2) Knowledge is a matter of competence with respect to valued enterprises — such as
singing in tune, discovering scientific facts, fixing machines, writing poetry, being convivial,<br />
growing up as a boy or a girl, and so forth. (3) Knowing is a matter participating in the pursuit<br />
of such enterprises, that is, of active engagement in the world. (4) Meaning — our ability<br />
to experience the world and our engagement with it as meaningful — is ultimately what<br />
learning is to produce” (Wenger, 1998a, p. 4).<br />
12 “The <strong>do</strong>main is not necessarily something recognized as “expertise” outsi<strong>de</strong> the community.<br />
A youth gang may have <strong>de</strong>veloped all sorts of ways of <strong>de</strong>aling with their <strong>do</strong>main: surviving<br />
on the street and maintaining some kind of i<strong>de</strong>ntity they can live with. They value<br />
their collective competence and learn from each other, even though few people outsi<strong>de</strong> the<br />
group may value or even recognize their expertise”. . Acesso em<br />
30/10/2007.<br />
13 Trecho <strong>de</strong> “Pa<strong>de</strong>cimento”, <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Carreirinho.<br />
Referências<br />
Abib, Pedro Ro<strong>do</strong>lpho Jungers. 2006. Cultura popular, educação e lazer: uma abordagem<br />
sobre a capoeira e o samba. Práxis Educativa 1, 59-67.<br />
Agier, Michel. Distúrbios i<strong>de</strong>ntitários em tempos <strong>de</strong> globalização. 2001. Mana 7, n. 2,<br />
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid= S0104-<br />
93132001000200001& lng=en&nrm=iso (acesso em 28/06/2008).<br />
Canclini, Néstor Garcia. 2003a. Culturas híbridas. 4. ed. São Paulo: Edusp.<br />
———. A Globalização Imaginada. 2003b. São Paulo: Iluminuras.<br />
Cascu<strong>do</strong>, Luís da Câmara. 2002. Dicionário <strong>do</strong> folclore brasileiro. São Paulo: Global.<br />
Green, Lucy. 2001. How popular musicians learn: a way ahead for music education. Lon<strong>do</strong>n:<br />
Lon<strong>do</strong>n University, Institute of Education.<br />
Hall, Stuart. 2006. A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural na Pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. 11 ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: DP&A.<br />
Lave, Jean; Wenger, Etienne. 1991. Situated learning: legitimate peripheral participation.<br />
Cambridge: Cambridge University Press.<br />
Leite, Jan Edson Rodrigues. 2003. A natureza social da cognição: questões sobre a construção<br />
<strong>do</strong> conhecimento. Veredas — Revista <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Lingüísticos 7, n.1 e n.2, 217-232, .<br />
Millarch, Aramis. 1992. Canja <strong>de</strong> Viola: o bom exemplo <strong>de</strong> Paquito na cultura popular,<br />
http://www.millarch.org/artigo/canja-<strong>de</strong>-viola-o-bom-exemplo-<strong>de</strong>-paquito-na-culturapopular<br />
(acesso em: 20/09/2008).<br />
Murphy, John P. 2006. Music in Brazil: experiencing music, expressing culture. New York:<br />
Oxford University Press.<br />
Oliveira, Allan <strong>de</strong> Paula. 2005. Se Tonico e Tinoco fossem Bororo: da natureza da dupla<br />
caipira. Antropologia em Primeira Mão 77, 4-19.<br />
———. 2008. Miguilim foi pra cida<strong>de</strong> ser cantor: uma antropologia da música sertaneja.<br />
Tese (Doutoramento em Antropologia Social) — Centro <strong>de</strong> Filosofia e Ciências Humanas,<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina, Florianópolis.<br />
Queiroz, Luis Ricar<strong>do</strong>. 2005. Aprendizagem musical nos Ternos <strong>de</strong> Catopês <strong>de</strong> Montes<br />
Claros: situações e processos <strong>de</strong> transmissão. Ictus 6, p. 122-138,<br />
http://www.ictus.ufba.br/in<strong>de</strong>x.php/ictus/article/viewFile/65/60 (acesso em:<br />
09/06/2007).<br />
593
594<br />
Recôva, Simone Lacorte. 2006. Aprendizagem <strong>do</strong> músico popular: um processo <strong>de</strong> percepção<br />
através <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s? Dissertação (Mestra<strong>do</strong> em Educação) — Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação,<br />
Universida<strong>de</strong> Católica <strong>de</strong> Brasília, Brasília, http://www.bdtd.ucb.br/te<strong>de</strong>/<br />
t<strong>de</strong>_busca/arquivo.php?codArquivo=373 (acesso em 27/08/2007).<br />
Russell, Joan. 2002. Sites of learning: communities of musical practice in the Fiji Islands. Focus<br />
Areas Report. Bergen: ISME.<br />
———. 2006. Perspectivas socioculturais na pesquisa em educação musical: experiência, interpretação<br />
e prática. Revista da Abem 14, 7-17.<br />
Sant’Anna, Romil<strong>do</strong>. 2000. A moda é viola: ensaio <strong>do</strong> cantar caipira. São Paulo: Arte & Ciência;<br />
Marília, SP: UNIMAR.<br />
Sawaia, Ba<strong>de</strong>r Burihan. 1999. Comunida<strong>de</strong> como ética e estética da existência. Uma reflexão<br />
mediada pelo conceito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Psykhe 8, n.1, 19-25.<br />
Sny<strong>de</strong>r, William M.; Wenger, Etienne. 2004. Our world as a learning system: a communities-of-practice<br />
approach. In: Conner, Marcia L.; Clawson, James G. (Ed.). Creating a<br />
learning culture: Strategy, Practice, and Technology. Cambridge: Cambridge University<br />
Press.<br />
Ulhôa, Marta. 1999. Música sertaneja e globalização. In: Rodrigo Torres (Ed.) Música popular<br />
en América Latina. Santiago, Chile: Fondart; Rama Latinoamericana IASPM, p.<br />
47-60.<br />
Warnier, Jean-Pierre. 2003. A mundialização da cultura. 2 ed. Bauru, SP: EDUSC.<br />
Wenger, Etienne. 1998a. Communities of practice: learning, meaning and i<strong>de</strong>ntity. Cambridge:<br />
Cambridge University Press.<br />
———. 1998b. Communities of practice: Learning as a Social System. In: The Systems Thinker<br />
9, n. 5, www.ewenger.com/pub/in<strong>de</strong>x.htm (acesso em 11/11/2007).<br />
———. Communities of practice — a brief introduction, http://www.ewenger.com/theory/<br />
in<strong>de</strong>x.htm (acesso em: 30/10/2007 e 11/11/2007).
Música e acor<strong>de</strong>om: discutin<strong>do</strong> experiências<br />
<strong>de</strong> educação musical na Maturida<strong>de</strong><br />
Jonas Tarcísio Reis<br />
jotaonas@yahoo.com.br<br />
FEEVALE, PPGEDU/UFRGS<br />
Esther Beyer<br />
PPGEDU/UFRGS<br />
Resumo<br />
Junto ao crescente movimento <strong>de</strong> expansão da área <strong>de</strong> educação musical no mun<strong>do</strong> e,<br />
principalmente, no Brasil, é perceptível o advento <strong>de</strong> instituições e projetos <strong>de</strong> ensino<br />
musical nos mais varia<strong>do</strong>s contextos da socieda<strong>de</strong> brasileira, e com diferentes faixas etárias.<br />
E nesse movimento, circunscrito no ensino musical não escolar se encontra a educação<br />
musical na maturida<strong>de</strong>. Uma modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ensino musical que vem <strong>de</strong>spontan<strong>do</strong><br />
no país. Porém, pouco se sabe sobre experiências educativo-musicais com o público da<br />
terceira ida<strong>de</strong>. Nesse senti<strong>do</strong>, com base nos escritos <strong>de</strong> Souza (2006), Luz e Silveira (2006),<br />
Luz (2008), Leão e Flusser (2008), Torres (2006), procuramos discutir pontos importantes<br />
acerca <strong>do</strong> ensino musical na terceira ida<strong>de</strong>, e, também, da construção <strong>de</strong> conhecimento<br />
musical fomenta<strong>do</strong>s por processos <strong>de</strong> ensino e aprendizagem <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om em aulas<br />
particulares, segun<strong>do</strong> uma perspectiva educacional construtivista interacionista, calcada<br />
em pressupostos teóricos da Epistemologia Genética <strong>de</strong> Jean Piaget. Como a discussão<br />
científica referente ao ensino e a aprendizagem <strong>de</strong> música com i<strong>do</strong>sos ainda é pouco enfatizada<br />
e, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong>, precariamente se publica sobre ensino <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om no Brasil<br />
- diferentemente <strong>do</strong> que ocorre na Europa e em outras partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> tais<br />
temas possuem um status maior que no Brasil-, este trabalho ajudará a suprir uma lacuna<br />
existente na área <strong>de</strong> educação musical <strong>de</strong>ste país, ten<strong>do</strong> como base da<strong>do</strong>s empíricos recolhi<strong>do</strong>s<br />
na região <strong>de</strong> Porto Alegre - RS, sobre o ensino e a aprendizagem <strong>de</strong>sse instrumento<br />
musical com um indivíduo pertencente à faixa etária supracitada.<br />
Introdução<br />
É perceptível a expansão em termos qualitativos e quantitativos da área <strong>de</strong> educação<br />
musical na nação brasileira, principalmente ao longo das duas últimas décadas.<br />
Notamos a esplen<strong>do</strong>rosa atuação da ABEM (Associação Brasileira <strong>de</strong> Educação<br />
Musical) e a crescente fomentação positiva e necessária <strong>de</strong> publicações <strong>de</strong> pesquisas<br />
e estu<strong>do</strong>s acerca <strong>do</strong> ensino e da aprendizagem musical. Conquistamos com<br />
muita satisfação, a cada dia, como resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalhos consistentes e sérios <strong>de</strong><br />
representantes da área nos diferentes segmentos sociais e institucionais <strong>do</strong> país, o<br />
reconhecimento social da importância da música na formação <strong>do</strong> ser humano, <strong>do</strong><br />
cidadão brasileiro. Um reconhecimento que é evi<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong> pelo posicionamento<br />
positivo <strong>de</strong> instituições educacionais privadas e públicas, <strong>do</strong> nível básico ao superior<br />
595
596<br />
e <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> das <strong>de</strong> livre iniciativa (espaços não escolares), e também pelo<br />
posicionamento da socieda<strong>de</strong> que coloca a música como uma forma <strong>de</strong> arte que<br />
subsidia e faz emergir possibilida<strong>de</strong>s reais <strong>de</strong> os indivíduos virem a intervir ativamente<br />
no mun<strong>do</strong> hodierno.<br />
Assim, <strong>de</strong>ntre os temas aborda<strong>do</strong>s pela área da educação musical na contemporaneida<strong>de</strong>,<br />
está o ensino e a aprendizagem da arte musical em espaços não escolares,<br />
que compreen<strong>de</strong>m to<strong>do</strong>s aqueles lugares que não as instituições formais <strong>de</strong> ensino<br />
que, por sua vez, são representadas principalmente pelas escolas <strong>de</strong> educação básica<br />
e pelos estabelecimentos <strong>de</strong> ensino superior. Então, ONGs, asilos, escolas particulares<br />
<strong>de</strong> música, coros e grupos vocais, orquestras, orfanatos, entre outras formações<br />
sociais on<strong>de</strong> o ensino da música é objetiva<strong>do</strong> estão inseridas nesse universo<br />
compreendi<strong>do</strong> como espaços não escolares, on<strong>de</strong> a educação musical se perpetua <strong>de</strong><br />
diversas formas, nos seus mais varia<strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>los pedagógicos, com fins e objetivos<br />
educativo-musicais específicos, singulares, mas que convergem intenções para uma<br />
mesma meta: a construção <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> mais musical e com seres humanos mais<br />
sensíveis. Assim, este trabalho buscará refletir sobre o ensino <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om na terceira<br />
ida<strong>de</strong>, ten<strong>do</strong> como base algumas experiências com o ensino <strong>de</strong>sse instrumento<br />
musical para indivíduos pertencentes a esta faixa etária.<br />
O ensino <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om é uma prática que está fortemente ligada aos processos <strong>de</strong><br />
construção <strong>de</strong> conhecimento musical não escolar. Nessa perspectiva, é meritório<br />
saber que <strong>de</strong>ntre os diversos instrumentos musicais que conhecemos, o acor<strong>de</strong>om<br />
ocupou uma relevante posição no passa<strong>do</strong> musical <strong>do</strong> Brasil. Ainda hoje está presente<br />
como instrumento característico nos estilos musicais regionais, como no baião,<br />
no forró, no sertanejo e na música tradicionalista e nativista <strong>do</strong> sul <strong>do</strong> país, sem<br />
mencionar outros gêneros em que a sua presença é notada. Assim, a principal forma<br />
<strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om é através <strong>de</strong> aulas particulares, <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>oaulas e <strong>de</strong><br />
meto<strong>do</strong>logias <strong>de</strong> auto-aprendizagem a partir <strong>de</strong> materiais gráficos e <strong>de</strong> áudios, o que<br />
caracteriza a sua inserção no universo não escolar <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> conhecimento<br />
musical. Da mesma forma, a percepção musical é um fator importante no ensino e<br />
aprendizagem <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om que, por vezes, não contempla questões <strong>de</strong> teoria, como<br />
a notação musical convencional.<br />
Pensan<strong>do</strong> em educação musical não escolar, o entrecruzamento <strong>de</strong> saberes formais<br />
e informais musicais nas aulas <strong>de</strong> música na terceira ida<strong>de</strong> é uma premissa indispensável<br />
ao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> processos <strong>de</strong> musicalização significativos e <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>,<br />
uma vez que os indivíduos maduros possuem muitos conhecimentos <strong>de</strong><br />
música, que talvez ainda não tenham si<strong>do</strong> sistematiza<strong>do</strong>s, mas fazem parte da sua<br />
bagagem cultural e cognitiva.<br />
A terceira ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossos tempos:<br />
um pequeno panorama relaciona<strong>do</strong> à música<br />
Segun<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s <strong>de</strong>staca<strong>do</strong>s por Souza (2006), Luz e Silveira (2006) e Luz (2008), o
crescimento populacional da terceira ida<strong>de</strong> é inegável, sen<strong>do</strong> que em pesquisas realizadas<br />
recentemente constatou-se que no ano <strong>de</strong> 2020, uma em cada treze pessoas<br />
será i<strong>do</strong>sa. Conclui-se com isso que a população mundial está se tornan<strong>do</strong> i<strong>do</strong>sa, e<br />
isso é bom, pois <strong>de</strong>monstra que as pessoas estão viven<strong>do</strong> mais tempo, e para tanto<br />
a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve se moldar para aten<strong>de</strong>r as novas <strong>de</strong>mandas que virão com esta<br />
transformação social.<br />
Em vista <strong>do</strong>s avanços da ciência, medicina, tecnologia, neurociências, psicologia,<br />
sociologia, filosofia e educação, as pessoas estão atingin<strong>do</strong> maior longevida<strong>de</strong>. Os<br />
seres humanos estão viven<strong>do</strong> mais tempo graças à melhoria na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida da<br />
população. Essa feliz realida<strong>de</strong> constatada por inúmeros pesquisa<strong>do</strong>res ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />
planeta apresenta, entretanto, outra face: Como a socieda<strong>de</strong> age frente a esse novo<br />
momento histórico pelo qual os homens estão passan<strong>do</strong>? O que acontece com essa<br />
população i<strong>do</strong>sa?<br />
Em síntese, o que comumente ocorre é que os integrantes <strong>de</strong>sse grupo social estão<br />
<strong>de</strong> certa forma à margem da socieda<strong>de</strong>, por se encontrarem na camada social <strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>res<br />
inativos e por isso não produtiva <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista capitalista. São excluí<strong>do</strong>s<br />
da vida em socieda<strong>de</strong> e sentem falta <strong>do</strong> convívio <strong>de</strong> outrora e a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> assumirem um papel mais ativo na socieda<strong>de</strong>, colaboran<strong>do</strong> para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong>sta, o que inci<strong>de</strong>, logicamente, no aumento da auto-estima nos indivíduos<br />
i<strong>do</strong>sos.<br />
O trabalho com música nessa ida<strong>de</strong> está sen<strong>do</strong> cada vez mais <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>. Muitos<br />
i<strong>do</strong>sos procuram realizar seus sonhos que, por algum motivo no passa<strong>do</strong> não pu<strong>de</strong>ram<br />
realizar, como o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r música, apren<strong>de</strong>r a tocar, cantar e/ou<br />
compor. Dessa forma, através da prática pedagógico-musical relataremos o caso <strong>de</strong><br />
um aluno que vem fazen<strong>do</strong> aulas <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om, uma vez que, agora, ele dispõe <strong>de</strong><br />
mais tempo para ser <strong>de</strong>dicar à música e realizar o seu sonho <strong>de</strong> tocar acor<strong>de</strong>om. De<br />
acor<strong>do</strong> com Torres (2006), os i<strong>do</strong>sos buscam cada vez mais resgatar e realizar sonhos<br />
e <strong>de</strong>sejos que não pu<strong>de</strong>ram efetivar-se no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> sua vida profissional. A<br />
esse respeito à autora buscou conhecer o processo <strong>de</strong> musicalização <strong>de</strong> adultos em<br />
diferentes momentos da vida, abrangen<strong>do</strong> os sentimentos e as motivações.<br />
É importante <strong>de</strong>stacar que muitas iniciativas a favor <strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos surgem no mun<strong>do</strong><br />
mo<strong>de</strong>rno, como projetos sociais e leis específicas que contemplam os indivíduos<br />
pertencentes a essa faixa etária, assim como as Universida<strong>de</strong>s Abertas à Terceira<br />
Ida<strong>de</strong>, que são uma <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> que “o indivíduo não encerra na velhice seus<br />
anseios <strong>de</strong> esperança <strong>de</strong> vida e <strong>de</strong> uma participação na socieda<strong>de</strong>” (Souza, 2006, p.<br />
56), mas, sim, está mais capacita<strong>do</strong> <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista cognitivo, para participar ativamente<br />
na socieda<strong>de</strong> por se constituir em um ser com gran<strong>de</strong> bagagem cultural,<br />
ampla experiência história e prática em <strong>de</strong>terminadas áreas <strong>do</strong> conhecimento humano,<br />
ou seja, trata-se <strong>de</strong> um sujeito experiente e que por isso tem como colaborar<br />
positivamente na socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> está inseri<strong>do</strong>.<br />
597
598<br />
Nessa perspectiva, Souza (2006) nos fala que na terceira ida<strong>de</strong> muitos fatores<br />
po<strong>de</strong>m contribuir para a maior disponibilida<strong>de</strong> para o estu<strong>do</strong> e para novas experiências.<br />
A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inserção <strong>do</strong> ensino <strong>de</strong> música é promissora e necessária,<br />
levan<strong>do</strong> em consi<strong>de</strong>ração um posicionamento “que remete à idéia <strong>de</strong> uma educação<br />
musical atenta para as transformações da sensibilida<strong>de</strong> musical” (i<strong>de</strong>m, p. 56).<br />
Nesse mesmo senti<strong>do</strong> é possível afirmar que as artes têm a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atingir a sensibilida<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> ser humano, e a música é uma linguagem capaz <strong>de</strong> dizer coisas que nenhum<br />
outro idioma consegue transmitir. Cantan<strong>do</strong> e/ou tocan<strong>do</strong> obras musicais<br />
é possível melhorar a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida não só <strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos, mas também <strong>de</strong> pessoas<br />
pertencentes a outras faixas etárias.<br />
Singularida<strong>de</strong>s no acor<strong>de</strong>om<br />
Como sabemos o ensino e a aprendizagem <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om se constitui em um fenômeno<br />
sócio-histórico não recente no Brasil, entretanto, até agora não alterca<strong>do</strong><br />
profundamente em nosso país. Apesar <strong>de</strong> estarmos falan<strong>do</strong> <strong>de</strong> um instrumento musical<br />
consagra<strong>do</strong> em muitas culturas, a sua discussão no âmbito da educação musical<br />
no Brasil ainda é muito vaga, assim como a formação <strong>do</strong> professor <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om<br />
e <strong>de</strong> professores <strong>de</strong> outros instrumentos populares é um fato pouco contempla<strong>do</strong>,<br />
ainda, nas graduações em música <strong>de</strong>sse país, mesmo apesar <strong>de</strong> sabermos que o acor<strong>de</strong>om<br />
se apresenta como um instrumento muito difundi<strong>do</strong> nas culturas populares<br />
e nos gêneros musicais próprios <strong>de</strong>ssas culturas, que são apreciadas, criadas e difundidas<br />
por boa parte da população da nação brasileira.<br />
Hoje, mais <strong>do</strong> que nunca, os profissionais estão sen<strong>do</strong> cada vez mais exigi<strong>do</strong>s nas<br />
suas profissões e cada vez mais surgem e coexistem diversas profissões semelhantes,<br />
mas com especificida<strong>de</strong>s próprias, o que ocasionam as suas diferenciações. Antigamente<br />
um professor <strong>de</strong> música, por exemplo, podia ensinar vários instrumentos <strong>de</strong><br />
que tivesse um consi<strong>de</strong>rável <strong>do</strong>mínio. Hoje vemos cada professor se aperfeiçoan<strong>do</strong><br />
na arte <strong>de</strong> ensinar um único instrumento, e não é incomum vermos também o ensino<br />
<strong>de</strong> um instrumento musical focan<strong>do</strong> a produção e perpetuação <strong>de</strong> uma técnica<br />
específica para a manutenção, cultuação e propagação <strong>de</strong> um gênero musical<br />
específico, muitas vezes com o foco em <strong>de</strong>terminadas faixas etárias.<br />
Vivemos na época da especialização profissional. Um tempo que não é satisfatório<br />
estar inseri<strong>do</strong> em uma área <strong>do</strong> saber. Não basta ser da educação musical, esse é um<br />
campo <strong>do</strong> saber muito amplo. Não é possível saber tu<strong>do</strong> <strong>de</strong> educação musical. Tampouco<br />
<strong>do</strong>minar a pedagogia <strong>de</strong> vários instrumentos. É necessário procurar o aperfeiçoamento<br />
no ensino <strong>de</strong> um instrumento, quan<strong>do</strong> muito, é preciso restringir o<br />
foco em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s tipos <strong>de</strong> execução, técnicas, maneiras <strong>de</strong> se tocar em culturas<br />
e em grupos sociais específicos.<br />
Por isso, acredita-se que o ensino <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om em <strong>de</strong>terminadas regiões <strong>do</strong> Brasil<br />
assume formas distintas, em vista das diferenças culturais e sociais que os esta<strong>do</strong>s e
cida<strong>de</strong>s guardam entre si. Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> essa hipótese, pensamos que o professor <strong>de</strong><br />
acor<strong>de</strong>om <strong>do</strong> sul <strong>do</strong> Brasil possui motivações, gostos, bagagem pedagógico-musical<br />
e teórico-meto<strong>do</strong>lógica diferentes <strong>do</strong>s professores <strong>de</strong> outras regiões brasileiras,<br />
como o nor<strong>de</strong>ste, on<strong>de</strong> a utilização <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>om apresenta peculiarida<strong>de</strong>s ligadas<br />
à cultura musical própria <strong>de</strong>ssa região.<br />
Nesse senti<strong>do</strong>, a formação <strong>do</strong> professor <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om no Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul é revestida<br />
<strong>de</strong> uma singularida<strong>de</strong>, bem como a formação <strong>de</strong> professores <strong>de</strong>sse instrumento<br />
em outras regiões também possui características diferentes.<br />
Acredita-se que a escolha em ser professor <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om esteja fortemente ligada a<br />
inserção <strong>de</strong>sses indivíduos - que são professores - em uma cultura regional que enfatiza<br />
a produção musical com esse instrumento musical como base para estilos musicais<br />
que norteiam um merca<strong>do</strong> musical e cultural lucrativo. Isso reflete em uma<br />
<strong>de</strong>manda expressiva pelo estu<strong>do</strong> <strong>de</strong>sse instrumento específico acompanha<strong>do</strong> por<br />
um professor <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om. Nessa cultura regional se nota a coexistência <strong>de</strong> duas<br />
profissões: a <strong>de</strong> músico acor<strong>de</strong>onista e <strong>de</strong> professor <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om.<br />
Justificativa<br />
Desenvolver trabalhar com i<strong>do</strong>sos não traz benefícios apenas para os próprios, pois,<br />
<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com Leão e Flusser (2008), a experiência <strong>do</strong>s músicos que trabalham<br />
junto aos i<strong>do</strong>sos se traduz pela busca livre <strong>do</strong> exercício <strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong>, aliada a busca<br />
consciente <strong>do</strong> relacionamento. Ainda dizem que quan<strong>do</strong> a relação Eu-Tu acontece,<br />
<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia nos músicos emoção e sentimentos <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, afetivida<strong>de</strong> e até<br />
mesmo <strong>de</strong> gratidão, pois reconhecem que o encontro, media<strong>do</strong> pela música, possibilitou<br />
seu crescimento pessoal naquele momento agregan<strong>do</strong> valor à sua vida. Essas<br />
interações entre aluno e professor impactam diretamente no fazer pedagógico <strong>do</strong><br />
educa<strong>do</strong>r musical.<br />
A música também po<strong>de</strong> favorecer a memória, evocan<strong>do</strong> lembranças <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>.<br />
Souza (2006, p. 57) nos diz que quan<strong>do</strong> se ativa a memória através da música transmite-se<br />
o pensamento <strong>de</strong> que “a senescência é um perío<strong>do</strong> propício à recordação”.<br />
Assim, o i<strong>do</strong>so reconstrói experiências <strong>do</strong> presente e passa<strong>do</strong>. A autora ainda ressalta<br />
que “esta memória advém <strong>de</strong> um trabalho em que o prazer da música suscita<br />
o inconsciente a trazer material ao consciente” (i<strong>de</strong>m, p. 57). Na aula <strong>de</strong> música o<br />
foco é o <strong>de</strong>senvolvimento da cognição musical, e ao mesmo tempo o sujeito esta fazen<strong>do</strong><br />
uso <strong>de</strong> outros conhecimentos, que não estritamente os musicais, visto que o<br />
indivíduo não põe em ação apenas uma estrutura mental para interagir com o objeto<br />
musical. Ele faz uso <strong>de</strong> muitos outros esquemas não musicais para abstrair <strong>do</strong>s<br />
objetos musicais informações que lhe serão úteis e <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>a<strong>do</strong>ras da formação<br />
<strong>de</strong> esquemas musicais no sujeito.<br />
Além disso, Tourinho (2006 apud Souza 2006), atesta que estu<strong>do</strong>s comprovam<br />
que a ativida<strong>de</strong> muscular, a respiração, a pressão sanguínea, a pulsação cardíaca, o<br />
599
600<br />
humor e o metabolismo são afeta<strong>do</strong>s pela música e pelos sons. Isso realça a pertinência<br />
<strong>de</strong> se apren<strong>de</strong>r música na terceira ida<strong>de</strong>, e relembra a contribuição que a música<br />
po<strong>de</strong> dar para a melhoria da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida não só <strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos, mas<br />
igualmente <strong>do</strong>s sujeitos oriun<strong>do</strong>s <strong>de</strong> gerações mais jovens.<br />
Destarte, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com Souza (2006, p. 59), é importante dizer que “o educa<strong>do</strong>r<br />
<strong>de</strong>ve se inserir no contexto <strong>do</strong> grupo [<strong>do</strong> indivíduo]. O cotidiano da terceira ida<strong>de</strong><br />
é instrumento para a elaboração das aulas. Dissociar a vida <strong>do</strong> ensino é distanciar a<br />
educação <strong>de</strong> um propósito coerente com as necessida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> no qual estão<br />
inseri<strong>do</strong>s”. Então, <strong>de</strong>ve-se estar atento aos <strong>de</strong>sejos <strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos, não somente quanto<br />
à música, mas também quanto a suas esperanças <strong>de</strong> vida e motivações em (con)viver.<br />
Pois a aula <strong>de</strong> música é compreendida por eles como um momento rico <strong>de</strong> interação<br />
e diálogo com o professor.<br />
A solidão e a inativida<strong>de</strong> social dificultam os processos <strong>de</strong> memorização na terceira<br />
ida<strong>de</strong>, é preciso empreen<strong>de</strong>r esforços para que a música surja como um elo que liga<br />
novamente o indivíduo à vida ativa <strong>de</strong> tempos passa<strong>do</strong>s. Por meio da música ele estará<br />
se envolven<strong>do</strong> em processos <strong>de</strong> ensino e aprendizagem, e também estará mobilizan<strong>do</strong><br />
esquemas mentais na busca e na estruturação <strong>do</strong> conhecimento. As re<strong>de</strong>s<br />
neurais serão postas em ativida<strong>de</strong> e a busca pelo alcance <strong>de</strong> uma meta motiva<strong>do</strong>ra<br />
<strong>do</strong> viver, <strong>do</strong> sentir-se útil, <strong>do</strong> sentir-se capaz <strong>de</strong> realizar <strong>de</strong>terminadas tarefas será <strong>de</strong>finida.<br />
Nesse caso, o incentivo <strong>do</strong> educa<strong>do</strong>r musical na busca pelo conhecimento<br />
musical po<strong>de</strong> se <strong>de</strong>finir como uma possibilida<strong>de</strong> e como um apoio na construção <strong>do</strong><br />
saber musical <strong>do</strong> educan<strong>do</strong>.<br />
Assim, po<strong>de</strong>-se afirmar que a educação musical po<strong>de</strong> transformar a realida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s<br />
i<strong>do</strong>sos, <strong>de</strong> forma que eles se sintam agentes da socieda<strong>de</strong> e transforma<strong>do</strong>res da<br />
mesma. Que através da música eles possam acen<strong>de</strong>r, novamente, a chama que instiga<br />
o homem na busca pelo ser mais, pelo saber mais, pelo fazer mais, pelo <strong>de</strong>senvolvimento<br />
social, pela construção <strong>de</strong> saber próprio e coletivo, enfim, pelo<br />
construir-se homem, que é um processo que nunca se encerra.<br />
Discutin<strong>do</strong> a prática <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om na Maturida<strong>de</strong><br />
Em geral os alunos pertencentes à terceira ida<strong>de</strong>, ou os que tenham passa<strong>do</strong> da ida<strong>de</strong><br />
escolar chegam às aulas particulares <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om imbuí<strong>do</strong>s <strong>de</strong> uma idéia preconceituosa,<br />
que é difundida na gran<strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> que somente indivíduos jovens<br />
po<strong>de</strong>m se <strong>de</strong>senvolver musicalmente, que somente estes po<strong>de</strong>m apren<strong>de</strong>r a tocar<br />
algum instrumento ou a cantar. Nesse senti<strong>do</strong>, o educa<strong>do</strong>r precisa estar convicto <strong>de</strong><br />
que qualquer pessoa po<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r música, apren<strong>de</strong>r a tocar, cantar, apreciar ativamente,<br />
a até criar novas obras musicais. Também é necessário <strong>de</strong>sconstruir a concepção<br />
inatista <strong>de</strong> aprendizagem musical que faz parte <strong>do</strong> discurso propaga<strong>do</strong> no<br />
senso comum, e que habita a mente daqueles que procuram apren<strong>de</strong>r música a partir<br />
da ida<strong>de</strong> adulta.
Necessitamos acreditar que a educação musical po<strong>de</strong> ser acessada por to<strong>do</strong>s aqueles<br />
que tenham o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> se envolver formalmente em processos <strong>de</strong> aprendizagem<br />
musical. E, pensar a <strong>de</strong>mocratização <strong>do</strong> acesso a cultura e ao conhecimento<br />
musical sistematiza<strong>do</strong> (ver Penna, 2008) é militar em um movimento educacional,<br />
portanto político, que almeja a construção <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> mais justa, igualitária,<br />
humana, livre <strong>de</strong> preconceitos e <strong>de</strong> taxações elitizantes <strong>do</strong>s processos educativomusicais<br />
disponíveis atualmente. Assim, apostar nos potenciais <strong>de</strong> aprendizagem e<br />
<strong>de</strong> <strong>do</strong>mínio da linguagem musical <strong>de</strong> nossos educan<strong>do</strong>s é crucial. Temos que possibilitar<br />
o acesso a informações musicais e à construção <strong>de</strong> conhecimentos musicais<br />
através <strong>de</strong> uma pedagogia musical construtivista e liberta<strong>do</strong>ra. Isso significa<br />
acreditar na igualda<strong>de</strong> entre os seres humanos e potencializar o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong><br />
um sistema social on<strong>de</strong> os saberes e os produtos culturais produzi<strong>do</strong>s pela humanida<strong>de</strong><br />
ao longo da sua existência não serão nega<strong>do</strong>s aos seres humanos <strong>de</strong> hoje e <strong>de</strong><br />
amanhã, já que, infelizmente, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>sfazer os erros e as injustiças cometidas<br />
no passa<strong>do</strong> contra muitos seres humanos que tiveram o seu acesso a cultura e<br />
aos bens sociais humanos nega<strong>do</strong>s.<br />
Nesse caso, trata-se <strong>de</strong> preconizar, em nossas aulas, o diálogo <strong>do</strong>cente-discente, a<br />
construção conjunta <strong>de</strong> um planejamento pedagógico-musical que possibilite ao<br />
educan<strong>do</strong> a estruturação <strong>do</strong> saber musical em níveis cada vez mais complexos no<br />
que tange ao <strong>de</strong>senvolvimento musical e, também, objetivar o aumento <strong>do</strong> interesse<br />
<strong>do</strong> educan<strong>do</strong> pela imersão na linguagem musical, motivan<strong>do</strong>-o e fazen<strong>do</strong>-o<br />
crer que apren<strong>de</strong>r música é possível, contrarian<strong>do</strong>, feliz e incansavelmente, o senso<br />
comum que se proclama na seguinte máxima <strong>de</strong>sumanizante: “apren<strong>de</strong>r música<br />
tem ida<strong>de</strong> certa e é para quem tem talento; tem que ter <strong>do</strong>m para isso”. Assim, queremos<br />
<strong>de</strong>monstrar por meio das linhas que seguem possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> construção <strong>de</strong><br />
uma educação musical para to<strong>do</strong>s, focan<strong>do</strong> nosso olhar sobre intervenções pedagógico-musicais<br />
realizadas com um adulto maduro, especificamente, através <strong>do</strong> ensino<br />
<strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om.<br />
Sen<strong>do</strong> assim, nas aulas iniciais <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om com esse aluno foram explicitadas questões<br />
referentes ao funcionamento mecânico <strong>do</strong> instrumento, bem como as funções<br />
da baixaria, <strong>do</strong> tecla<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s registros (diferentes vozes, como nos órgãos). Alguns<br />
apontamentos sobre as notas musicais, a utilização <strong>do</strong>s cinco <strong>de</strong><strong>do</strong>s na mão direita,<br />
a <strong>de</strong> quatro <strong>de</strong><strong>do</strong>s na mão esquerda, e a técnica <strong>de</strong> baixos alterna<strong>do</strong>s para acompanhamento<br />
das obras musicais foram <strong>de</strong>staca<strong>do</strong>s. Também foi solicita<strong>do</strong> ao aluno<br />
que falasse sobre as suas motivações pelo aprendiza<strong>do</strong> <strong>do</strong> instrumento, qual o tipo<br />
<strong>de</strong> música que mais apreciava e sobre suas possíveis experiências formais com música,<br />
anteriores às aulas <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om.<br />
Em seguida, foi possível constatar que esse aluno apreciava muito as músicas regionais<br />
<strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, como as <strong>do</strong>s gêneros: xote, chamamé, milonga, valsa,<br />
marcha, rancheira, bugio e vaneira (sobre gêneros musicais <strong>do</strong> sul, ver Bertussi e<br />
601
602<br />
Teixeira, 2005) muito executadas com o acor<strong>de</strong>om, e que fazem parte da cultura regional<br />
tradicionalista e nativista <strong>de</strong>sse esta<strong>do</strong> (sobre Tradicionalismo e Nativismo,<br />
ver Lessa, 1985; Duarte e Alves, 2001).<br />
Com base nos da<strong>do</strong>s supracita<strong>do</strong>s é possível afirmar que o ensino <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om para<br />
esse aluno exigia o aprendiza<strong>do</strong>, principalmente, <strong>de</strong> canções e obras instrumentais<br />
típicas <strong>do</strong> cancioneiro popular gaúcho. Nesse senti<strong>do</strong>, é cogente partir <strong>do</strong> que o<br />
aluno gosta; <strong>do</strong> seu universo musical e cultural; <strong>do</strong>s seus <strong>de</strong>sejos pelo fazer musical,<br />
para estruturar um planejamento <strong>de</strong> aulas que consi<strong>de</strong>re, também, os processos <strong>de</strong><br />
formação musical informal aos quais o indivíduo foi e é submeti<strong>do</strong> diariamente<br />
(Reis, 2009a; Wille, 2003; Arroyo et. al., 2000). É importante trabalhar com a música<br />
conectan<strong>do</strong> os conhecimentos e as informações que o educan<strong>do</strong> já <strong>de</strong>tém, e<br />
aproveitar na aula <strong>de</strong> música o que o aluno já toca ou sente especial apreço.<br />
Nesse ponto, é importante informar que o aluno <strong>de</strong>stacou que não queria apren<strong>de</strong>r<br />
teoria musical, mas sim apren<strong>de</strong>r a tocar, ele queria, principalmente, praticar, fazer<br />
música. Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> aluno e <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os estu<strong>do</strong>s e lega<strong>do</strong>s das<br />
neurociências, é fundamental gerar conexões no cérebro, usar as re<strong>de</strong>s neurais existentes<br />
no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r música, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que isso não seja <strong>de</strong>sconecta<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
que se quer apren<strong>de</strong>r. Ninguém apren<strong>de</strong> aquilo que não tem interesse.<br />
A título <strong>de</strong> esclarecimento, cabe as aulas são particulares e têm a duração <strong>de</strong> uma<br />
hora, geralmente. O trabalho é <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> com <strong>do</strong>is acor<strong>de</strong>ons apiana<strong>do</strong>s, on<strong>de</strong><br />
o professor se vale <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> observação-imitação, muito utiliza<strong>do</strong> pelos educa<strong>do</strong>res<br />
musicais com alunos que não possuem conhecimentos <strong>de</strong> teoria musical<br />
(Reis, 2009b). O méto<strong>do</strong> consiste basicamente em o professor <strong>de</strong>monstrar os exercícios,<br />
o que tocar e os mo<strong>do</strong>s como tocar para o aluno, que <strong>de</strong>ve imitar aquele no<br />
seu instrumento.<br />
Na primeira aula começamos o aprendiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma valsa em Dó maior, envolven<strong>do</strong><br />
apenas as primeiras cinco notas da escala <strong>de</strong> Dó maior em uma evolução harmônica<br />
composta por tônica e <strong>do</strong>minante apenas, como usualmente temos feito<br />
com os alunos que estão ten<strong>do</strong> seus primeiros contatos com o acor<strong>de</strong>om. Opto por<br />
trabalhar inicialmente com este gênero musical (valsa), <strong>de</strong> compasso ternário, pelo<br />
fato <strong>de</strong> quase todas as pessoas gostarem <strong>de</strong> valsa e saberem dançar esse tipo <strong>de</strong> música,<br />
pois a vivência prévia com algo facilita nos processos cognitivos <strong>de</strong> assimilação,<br />
acomodação e adaptação no que tange ao <strong>de</strong>senvolvimento musical <strong>do</strong> ser humano<br />
(quanto a esses processos, ver Kebach, 2008; Rizzon, 2009; Beyer, 1988).<br />
O trabalho com a valsa permitiu o ensino da baixaria paralelo ao <strong>do</strong> tecla<strong>do</strong>. A valsa<br />
era composta por nove compassos, quatro compassos no campo harmônico da <strong>do</strong>minante<br />
e cinco no da tônica. Como na baixaria o acor<strong>de</strong> <strong>de</strong> tônica fica, sempre,<br />
abaixo <strong>do</strong> acor<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>do</strong>minante, trabalhou-se basicamente o movimento <strong>de</strong> subir<br />
e <strong>de</strong>scer nos baixos, marcan<strong>do</strong> os três tempos <strong>de</strong> cada compasso. A melodia tocada<br />
no tecla<strong>do</strong> <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>om era constituída <strong>de</strong> mínimas pontuadas (em uma evolução
melódica construída, apenas, com as primeiras cinco notas da escala utilizada) o<br />
que facilitou a conjugação das mãos e a execução simultânea entre baixos e tecla<strong>do</strong>,<br />
que mudavam ao mesmo tempo. Também foi dada importância à utilização e ao<br />
aprendiza<strong>do</strong> da técnica instrumental própria <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>om (Mascarenhas, 2003;<br />
Bertussi e Teixeira, 2005) com a aprendizagem da execução da escala <strong>de</strong> Dó maior<br />
no tecla<strong>do</strong>; <strong>de</strong> um exercício com os cinco <strong>de</strong><strong>do</strong>s da mão direita; e da mudança <strong>de</strong><br />
acor<strong>de</strong> na mão esquerda, para a obtenção <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência nos <strong>de</strong><strong>do</strong>s, agilida<strong>de</strong> e<br />
precisão na execução, bem como a construção <strong>de</strong> noções <strong>de</strong> harmonia. Nessa abordagem<br />
<strong>de</strong> ensino objetivou-se a construção <strong>de</strong> esquemas motores por parte <strong>do</strong> educan<strong>do</strong>,<br />
que facilitaram a execução da música em questão e <strong>de</strong> outras que virão a<br />
compor o repertório <strong>de</strong>le.<br />
Durante as primeiras aulas notamos o gran<strong>de</strong> interesse <strong>do</strong> aluno por aquilo que era<br />
trabalha<strong>do</strong> em aula. A atenção nas explanações <strong>do</strong> professor era algo bastante notável<br />
e visto pelo aluno como fator importante na aprendizagem, e na construção<br />
<strong>do</strong> conhecimento musical, formalmente pelo professor. O estudante se mostra<br />
muito entusiasma<strong>do</strong> e cada vez mais motiva<strong>do</strong> para apren<strong>de</strong>r a tocar “gaita” (ou<br />
cor<strong>de</strong>ona, <strong>de</strong>nominações comuns no Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul para o instrumento acor<strong>de</strong>om,<br />
que em outras partes <strong>do</strong> Brasil é chama<strong>do</strong>, também, <strong>de</strong> sanfona). A cada aula<br />
<strong>de</strong>monstra conquistas na linguagem musical. As suas interpretações são mais precisas,<br />
carregadas <strong>de</strong> sentimento e expressão, o que indica a musicalida<strong>de</strong> aflorada e<br />
a bagagem musical <strong>do</strong> aluno. E também, pelo grau <strong>de</strong> aproveitamento, <strong>de</strong>monstra<br />
que trabalha bastante os exercícios e as músicas na sua casa. Além da prática <strong>de</strong> interpretação<br />
o aluno é incentiva<strong>do</strong> a ouvir músicas diferentes para expandir seus horizontes<br />
musicais.<br />
Nas ativida<strong>de</strong>s são trabalhadas músicas da preferência <strong>do</strong> educan<strong>do</strong>, a fim <strong>de</strong> viabilizar<br />
um momento <strong>de</strong> sensibilização e o <strong>de</strong>spertar <strong>do</strong> gosto pelo fazer musical, que<br />
já não é pequeno nesse indivíduo. Nas aulas, faz-se uso <strong>de</strong> exercícios para estimular<br />
a coor<strong>de</strong>nação motora e possibilitar a improvisação futura. O acor<strong>de</strong>om é visto<br />
como uma extensão <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong> músico, facilitan<strong>do</strong> o aprendiza<strong>do</strong> e o <strong>do</strong>mínio<br />
da linguagem musical consciente e articulada ao corpo e seus movimentos, enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong><br />
e conhecen<strong>do</strong> os sons e/ou a música como algo que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da pessoa e da<br />
sua intenção para expressar e <strong>de</strong>stacar fatores estéticos.<br />
O repertório utiliza<strong>do</strong> nas aulas, sempre, está sujeito a alterações em função <strong>de</strong> possíveis<br />
sugestões <strong>do</strong>s alunos. Abor<strong>do</strong> a educação musical numa visão horizontal <strong>do</strong><br />
ensino e através <strong>do</strong> estabelecimento <strong>de</strong> uma ação dialógica com os educan<strong>do</strong>s, ouvin<strong>do</strong><br />
seus anseios; atento a suas expectativas e contemplan<strong>do</strong>, na medida <strong>do</strong> possível,<br />
seus <strong>de</strong>sejos, pois o foco principal é o educan<strong>do</strong> e o seu processo <strong>de</strong><br />
aprendizagem e não o educa<strong>do</strong>r, sen<strong>do</strong> este, também, sujeito indispensável à estruturação<br />
<strong>de</strong> processos educativo-musicais significativos.<br />
603
604<br />
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
Ao procurarmos material bibliográfico que tratasse <strong>do</strong> ensino <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om ficou<br />
constatada a inexistência <strong>de</strong> publicações direcionadas a discussão científica <strong>do</strong> tema.<br />
Diante disso, surgiu a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compartilhar com a área <strong>de</strong> educação musical,<br />
refletin<strong>do</strong> sobre a prática <strong>de</strong> um professor <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om, atuante há quatro anos,<br />
mas dan<strong>do</strong> <strong>de</strong>staque, aqui, para um caso específico com um aluno <strong>de</strong> sessenta e três<br />
anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, pertencente à terceira ida<strong>de</strong>, que <strong>de</strong>cidiu apren<strong>de</strong>r a tocar “gaita” e<br />
realizar um sonho não concluí<strong>do</strong> em tempos passa<strong>do</strong>s, mas que, como agora possuía<br />
tempo e recursos, optou pela aprendizagem musical <strong>de</strong> um instrumento <strong>de</strong> que<br />
gosta muito. Segun<strong>do</strong> estu<strong>do</strong>s neurológicos o aprendiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> um instrumento musical<br />
melhora a vida <strong>do</strong> indivíduo, pois age modifican<strong>do</strong> a sua estrutura cerebral,<br />
aumentan<strong>do</strong> a auto-estima e geran<strong>do</strong> sentimentos <strong>de</strong> satisfação e alegria.<br />
Em síntese geral acerca <strong>do</strong> ensino <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om po<strong>de</strong>-se aferir que este exige <strong>do</strong> professor<br />
um <strong>do</strong>mínio técnico e prático <strong>do</strong> instrumento, e uma bagagem teórico-meto<strong>do</strong>lógica<br />
específica para fazer intervenções pedagógico-musicais na aprendizagem<br />
<strong>de</strong>sse instrumento musical, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a permitir que o aluno possa <strong>de</strong>scobrir e <strong>de</strong>senvolver<br />
ao máximo seu potencial artístico, além <strong>de</strong> sentir-se realiza<strong>do</strong> e feliz na<br />
aprendizagem objetivada. A<strong>de</strong>mais, é imprescindível que possibilitemos aos nossos<br />
alunos <strong>de</strong> música, o tempo para que estes cheguem à tomada <strong>de</strong> consciência por<br />
conta própria <strong>do</strong>s conceitos musicais via fazer musical, visan<strong>do</strong> à construção <strong>de</strong> um<br />
conhecimento assimila<strong>do</strong> e consolida<strong>do</strong>. Pensan<strong>do</strong> a educação musical na terceira<br />
ida<strong>de</strong>, vemos que a imersão no universo da música como acor<strong>de</strong>onista, fez com que<br />
o educan<strong>do</strong> supracita<strong>do</strong> pu<strong>de</strong>sse se enxergar como um ser social ativo na figura <strong>de</strong><br />
um artista, mesmo que fosse em um esta<strong>do</strong> transitório <strong>de</strong> ama<strong>do</strong>rismo. Isso contribuiu<br />
para a restituição <strong>de</strong> uma auto-imagem positiva, e <strong>do</strong> resgate da auto-estima<br />
<strong>do</strong> i<strong>do</strong>so que ocupa, sim, um lugar significativo e importante no meio social <strong>do</strong> qual<br />
faz parte e com o qual colabora para <strong>de</strong>senvolver uma socieda<strong>de</strong> melhor.<br />
Finalizan<strong>do</strong>, é mister frisar que outras iniciativas no que tange ao ensino <strong>de</strong> instrumentos<br />
populares como o acor<strong>de</strong>om, bem como aos processos <strong>de</strong> ensino e aprendizagem<br />
musical com i<strong>do</strong>sos venham a acontecer com mais freqüência, para<br />
levarmos para a aca<strong>de</strong>mia a discussão sobre essas duas questões, visto que, atualmente,<br />
na Europa e em outras partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> estes temas possuem um status<br />
maior que no Brasil, levan<strong>do</strong> em consi<strong>de</strong>ração que o ensino <strong>de</strong>sse instrumento é<br />
bastante difundi<strong>do</strong> nos regionalismos brasileiros e na música portenha, que guardam<br />
relação estreita com a música <strong>do</strong> sul <strong>do</strong> Brasil. Enfim, este trabalho é apenas um<br />
ponto inicial <strong>de</strong> uma discussão que precisa ser ampliada sobre um tema ainda pouco<br />
explora<strong>do</strong>.<br />
Referências<br />
Arroyo, M. et. al. Transitan<strong>do</strong> entre o “formal” e o “Informal”: um relato sobre a formação
<strong>de</strong> educa<strong>do</strong>res musicais. In: SPEM, 7, 2000, Londrina. <strong>Anais</strong> . . . Londrina: SPEM, 2000,<br />
p. 77-90.<br />
Bertussi, A; Teixeira, W. Som Bertussi: som maior, méto<strong>do</strong> para acor<strong>de</strong>on. Vol. 2. Curitiba:<br />
Editora <strong>do</strong> Conservatório Musical Som Maior, 2005.<br />
Beyer, E. A abordagem cognitiva em música: uma crítica ao ensino da música a partir da teoria<br />
<strong>de</strong> Piaget. Dissertação (Mestra<strong>do</strong> em Educação), Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio<br />
Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, Porto Alegre, 1988.<br />
Duarte, C. P.; Alves, J. L. Califórnia da canção nativa: marco <strong>de</strong> mudanças na cultura gaúcha.<br />
Porto Alegre: Movimento, 2001.<br />
Kebach, P. Musicalização Coletiva <strong>de</strong> Adultos: o processo <strong>de</strong> cooperação nas produções musicais<br />
em grupo. Tese (Doutora<strong>do</strong> em Educação), Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul,<br />
Porto Alegre, 2008.<br />
Leão, E. R.; Flusser, V. Música para i<strong>do</strong>sos institucionaliza<strong>do</strong>s: percepção <strong>do</strong>s músicos atuantes.<br />
Revista da Escola <strong>de</strong> Enfermagem da USP 42, São Paulo, 2008, p. 73-80.<br />
Lessa, L. C. B. Nativismo, um fenômeno social gaúcho. Porto Alegre: L&PM, 1985 (Coleção<br />
Universida<strong>de</strong> Livre).<br />
Libâneo, J. C. Democratização da escola pública: a pedagogia crítico-social <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s. 14 ed.<br />
São Paulo: Loyola, 1996.<br />
Luz, M. C. Educação Musical na Maturida<strong>de</strong>. São Paulo: Som, 2008.<br />
Luz, M. C.; Silveira, N. R. A educação musical na maturida<strong>de</strong>. In: Côrte, B.; Frohlich, E.; Arcuri,<br />
I. G. (Orgs.). Masculin(ida<strong>de</strong>) e velhices: entre um bom e mau envelhecer. São Paulo:<br />
Vetor, 2006 (Coleção Gerontologia, 3).<br />
Mascarenhas, M. Méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>ão Mascarenhas: teórico e prático. 51ª edição. São Paulo:<br />
Ricordi Brasileira, 2003.<br />
Penna, M. Música(s) e seu ensino. Porto Alegre: Sulina, 2008.<br />
Reis, J. T. A influência da educação musical informal em uma ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> composição musical.<br />
In: Encontro Regional da ABEM-Sul, 12, e Fórum Catarinense <strong>de</strong> Educação Musical,<br />
5, 2009, Itajaí. <strong>Anais</strong> . . ., Itajaí: ABEM, 2009a, p. 01-07.<br />
———. Música no LARCAMJE: uma proposta <strong>de</strong> educação musical não-escolar. In: Encontro<br />
Regional da ABEM-Sul, 12, e Fórum Catarinense <strong>de</strong> Educação Musical, 5, 2009, Itajaí.<br />
<strong>Anais</strong>. . ., Itajaí: ABEM, 2009b, p. 01-08.<br />
Rizzon, F. G. Os mecanismos da memória na construção <strong>do</strong> pensamento musical. Dissertação<br />
(Mestra<strong>do</strong> em Educação), Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, Porto Alegre,<br />
2009.<br />
Souza, C. M. S. Terceira ida<strong>de</strong> e música: perspectivas para uma educação musical. In: Congresso<br />
da Anppom, 17, 2006, Brasília. <strong>Anais</strong> . . ., Brasília: ANPPOM, 2006, p. 56-60.<br />
Torres, M. C. Narrativas <strong>de</strong> Valsa: um relato <strong>de</strong> caso acerca <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> musicalização na<br />
vida adulta. Expressão – Revista <strong>do</strong> Centro <strong>de</strong> <strong>Artes</strong> e Letras da UFSM 1, ano 10,<br />
jan/jun/2006, p. 102-107.<br />
Wille. R. B. Educação musical formal, não formal ou informal: um estu<strong>do</strong> sobre processos<br />
<strong>de</strong> ensino e aprendizagem musical <strong>de</strong> a<strong>do</strong>lescentes. Dissertação (Mestra<strong>do</strong> em Música),<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, Porto Alegre, 2003.<br />
605
606<br />
A construção <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> harmonia tonal<br />
através <strong>de</strong> aulas particulares <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om na região<br />
metropolitana <strong>de</strong> Porto Alegre - RS: três estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> caso<br />
Jonas Tarcísio Reis<br />
jotaonas@yahoo.com.br<br />
FEEVALE, PPGEDU/UFRGS<br />
Resumo<br />
Esta comunicação discute da<strong>do</strong>s preliminares <strong>de</strong> uma pesquisa em andamento, que busca<br />
investigar especificamente como se dá a construção <strong>do</strong> conceito harmonia tonal, focan<strong>do</strong><br />
nos processos <strong>de</strong> ensino e a aprendizagem através <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>om. Esta investigação<br />
está sen<strong>do</strong> realizada por meio <strong>de</strong> três estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> caso, com três professores <strong>de</strong><br />
acor<strong>de</strong>om - atuantes na região metropolitana <strong>de</strong> Porto Alegre – RS-, passan<strong>do</strong> a conhecer<br />
mais sobre suas concepções <strong>de</strong> educação musical e estratégias para o ensino e<br />
a aprendizagem <strong>de</strong> harmonia tradicional. Desta forma, buscamos compreen<strong>de</strong>r como os<br />
professores <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om abordam o conteú<strong>do</strong> harmonia em suas aulas; quais são os<br />
pressupostos pedagógico-musicais e teórico-meto<strong>do</strong>lógicos na abordagem <strong>de</strong> harmonia<br />
em suas aulas; como fomentam os processos <strong>de</strong> ensino e aprendizagem <strong>de</strong>sse conteú<strong>do</strong>;<br />
quais são as estratégias para isso; como o aluno é visto na aprendizagem <strong>de</strong> harmonia<br />
pelos professores e quais são as concepções <strong>de</strong> educação musical <strong>de</strong>stes para o<br />
ensino <strong>de</strong> harmonia. Assim, queremos compreen<strong>de</strong>r, que pressupostos teóricos e meto<strong>do</strong>lógicos<br />
permeiam as práticas <strong>do</strong>s professores <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om para o ensino e aprendizagem<br />
<strong>de</strong> harmonia, bem como saber que recursos (conhecimentos, habilida<strong>de</strong>s e<br />
competências) são utiliza<strong>do</strong>s para fomentar isso no ensino <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om. A importância<br />
<strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong> se revela, principalmente, pelo fato <strong>de</strong> que o ensino e a aprendizagem <strong>de</strong><br />
acor<strong>de</strong>om se constituem em um fenômeno sócio-histórico antigo no Brasil, mas ainda não<br />
investiga<strong>do</strong> profundamente em nosso país. Portanto, a pertinência <strong>de</strong>sse estu<strong>do</strong> vai ao<br />
encontro da premissa em contribuir com a área <strong>de</strong> educação musical, especificamente<br />
no tocante a psicologia da educação musical e a construção <strong>de</strong> saber musical fora <strong>de</strong><br />
instituições formais, possibilitan<strong>do</strong> um maior e mais concreto diálogo com as práticas musicais<br />
<strong>do</strong> cotidiano e não escolares.<br />
Introdução<br />
A música e os instrumentos populares somente agora vêm ganhan<strong>do</strong> mais espaço<br />
no ensino superior. A música e o ensino <strong>de</strong> instrumentos populares no Brasil, tais<br />
como acor<strong>de</strong>om, gaita <strong>de</strong> boca, viola caipira, cavaquinho, ban<strong>do</strong>lim, entre outros, é<br />
uma construção social e cultural que acontece ao natural, sem a intervenção ou<br />
ajuda previamente planejada com intervenções educativo-musicais institucionalizadas.<br />
É um acontecimento sócio-cultural singular, que reflete o esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> nosso país e o status que algumas culturas possuem em <strong>de</strong>trimento<br />
<strong>de</strong> outras. São questões que fazem parte da história específica da constituição social
e cultural <strong>de</strong> um povo. Assim, se apren<strong>de</strong> e se ensina acor<strong>de</strong>om no cotidiano, em<br />
conservatórios e escolas específicas <strong>de</strong> música também. Mas a criação e perpetuação<br />
<strong>de</strong> estilos musicais e mo<strong>de</strong>los pedagógico-musicais acontece no dia-a-dia e <strong>de</strong> mo<strong>do</strong><br />
não estrutura<strong>do</strong> em mo<strong>de</strong>los institucionaliza<strong>do</strong>s como conhecemos, e que acontece<br />
com o ensino <strong>de</strong> outros instrumentos como piano, violino, trombone, etc., por<br />
exemplo.<br />
Nessa perspectiva, ao longo <strong>do</strong>s anos foram surgin<strong>do</strong> inúmeros questionamentos<br />
sobre tópicos específicos da minha prática <strong>do</strong>cente. Essas perguntas e ocorrências<br />
<strong>do</strong> cotidiano profissional acabaram me levan<strong>do</strong> a eleger um ponto principal, mas<br />
não único, para o qual busquei <strong>de</strong>dicar o foco <strong>de</strong>sta pesquisa, discutin<strong>do</strong> com mais<br />
proprieda<strong>de</strong> e aprofundamento, a maneira como é trata<strong>do</strong> o ensino <strong>de</strong> harmonia<br />
através da aprendizagem <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om dirigida por professores particulares <strong>de</strong> instrumento.<br />
Ao longo <strong>do</strong>s anos fui construin<strong>do</strong> uma pedagogia para o acor<strong>de</strong>om <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com<br />
teorias da educação e educação musical em que acredito, transpon<strong>do</strong> conceitos e<br />
méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> outros instrumentos para o ensino <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om. Também fui perceben<strong>do</strong><br />
que a discussão sobre o ensino <strong>de</strong>sse instrumento é muito escassa, principalmente<br />
em termos <strong>de</strong> materiais bibliográficos publica<strong>do</strong>s no Brasil. A reflexão<br />
sobre a prática <strong>do</strong>cumentada é quase inexistente sobre esse instrumento em nosso<br />
país. Por isso <strong>de</strong>cidi contribuir com a área <strong>de</strong> educação musical. Portanto, procuro<br />
ao longo da pesquisa lançar luz sobre inúmeros pontos, mas me centran<strong>do</strong> especialmente<br />
no tocante ao mo<strong>do</strong> como aparece o conteú<strong>do</strong> harmonia nas aulas <strong>de</strong><br />
acor<strong>de</strong>om <strong>de</strong> três professores atuantes na região metropolitana <strong>de</strong> Porto Alegre –<br />
RS.<br />
Justificativa<br />
O ensino e a aprendizagem <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om se constituem em um fenômeno sóciohistórico<br />
antigo no Brasil, mas ainda não investiga<strong>do</strong> profundamente em nosso<br />
país. Desse mo<strong>do</strong>, uma investigação que <strong>de</strong>svenda questões relativas a estratégias<br />
<strong>de</strong> ensino e aprendizagem <strong>de</strong>sse instrumento nos possibilita a construção <strong>de</strong> um<br />
conhecimento científico acerca <strong>de</strong> como esse parâmetro da música, harmonia, po<strong>de</strong><br />
ser ensina<strong>do</strong>, e como os professores trabalham esse conteú<strong>do</strong> em suas aulas <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om,<br />
ten<strong>do</strong> em vista as especificida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> foco <strong>de</strong> pesquisa.<br />
Apesar <strong>de</strong> estarmos falan<strong>do</strong> <strong>de</strong> um instrumento musical consagra<strong>do</strong> em muitas culturas,<br />
a sua discussão no âmbito da Educação Musical no Brasil ainda é muito vaga,<br />
assim como a construção <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> harmonia através <strong>do</strong> ensino e aprendizagem<br />
<strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om e <strong>de</strong> outros instrumentos é um fato pouco contempla<strong>do</strong> nas pesquisas<br />
da área. Também existem poucas graduações em música nesse país que<br />
enfocam instrumentos populares, mesmo apesar <strong>de</strong> sabermos que o acor<strong>de</strong>om se<br />
607
608<br />
apresenta como um instrumento muito difundi<strong>do</strong> nas culturas populares e nos gêneros<br />
musicais próprios <strong>de</strong>ssas culturas, que são apreciadas, criadas e difundidas<br />
por boa parte da população da nação brasileira.<br />
A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong> vai ao encontro da premissa em<br />
contribuir com a área <strong>de</strong> educação musical, focan<strong>do</strong> a psicologia da educação musical<br />
e a construção <strong>de</strong> saber musical fora <strong>de</strong> instituições formais. Para isso o estu<strong>do</strong><br />
está sen<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong> com professores particulares <strong>de</strong> instrumento, possibilitan<strong>do</strong><br />
um maior e mais concreto diálogo com as práticas musicais <strong>do</strong> cotidiano1 e não escolares.<br />
Através <strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong> po<strong>de</strong>remos começar a analisar cientificamente a construção <strong>do</strong><br />
conhecimento musical <strong>de</strong> harmonia através <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>om, e consequentemente a<br />
complexida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ensino e da aprendizagem <strong>de</strong>sse instrumento. Po<strong>de</strong>remos iniciar<br />
uma breve compreensão das diferentes formas que os professores <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om utilizam<br />
para a transmissão e apreensão <strong>de</strong> informações musicais, <strong>de</strong>svendan<strong>do</strong> se existem<br />
meto<strong>do</strong>logias compartilhadas entre essa classe profissional, revelan<strong>do</strong> qual a<br />
influência das tecnologias, das mídias, <strong>do</strong>s grupos musicais, <strong>do</strong>s festivais <strong>de</strong> música,<br />
das escolas particulares <strong>de</strong> música, da família e <strong>do</strong>s amigos na concepção <strong>de</strong> educação<br />
musical <strong>de</strong>sses professores, e as suas estratégias para o ensino e a aprendizagem<br />
<strong>de</strong> harmonia. Será possível, também, revelar a presumível presença das culturas tradicionalista,<br />
nativista e regionalista no ensino <strong>de</strong>sse conteú<strong>do</strong> musical. Destarte, veremos<br />
a que níveis acontecem as trocas <strong>de</strong> experiências com colegas músicos e<br />
professores, e quais as consequências <strong>de</strong>ssas interações na educação musical <strong>de</strong>senvolvida<br />
pelos professores <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om escolhi<strong>do</strong>s. Também po<strong>de</strong>rão ser <strong>de</strong>scobertas<br />
fatos a respeito da ligação entre o aprimoramento como professor e o<br />
aprimoramento como músico e quais as táticas próprias <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong> harmonia,<br />
on<strong>de</strong> a curiosida<strong>de</strong> e criativida<strong>de</strong> têm papel fundamental, seja na forma <strong>de</strong> lecionar<br />
ou nos recursos materiais utiliza<strong>do</strong>s. Resultan<strong>do</strong>, ao final, na compreensão da pedagogia<br />
musical perpetuada nessa subclasse específica <strong>de</strong> educa<strong>do</strong>res-músicos, e no<br />
ensino e na aprendizagem <strong>de</strong> harmonia.<br />
Meto<strong>do</strong>logia<br />
A presente pesquisa é <strong>de</strong> natureza aplicada, pois busca produzir conhecimentos<br />
sobre a construção <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> harmonia através <strong>de</strong> aulas <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om, com vistas<br />
a respon<strong>de</strong>r a seguinte questão: “Como se dá a construção <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> harmonia<br />
tonal nas aulas <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om?”, sen<strong>do</strong> a busca pela resposta <strong>de</strong>ssa pergunta<br />
um problema específico circunscrito em uma subárea da educação, a educação musical.<br />
Para isso o méto<strong>do</strong> científico a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> será o dialético. De acor<strong>do</strong> com Prodanov<br />
e Freitas (2009, p. 140),<br />
“a dialética fornece as bases para uma interpretação dinâmica e totalizante da<br />
realida<strong>de</strong>, já que estabelece que os fatos sociais não po<strong>de</strong>m ser entendi<strong>do</strong>s
quan<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s isoladamente, abstraí<strong>do</strong>s <strong>de</strong> suas influencias políticas, econômicas,<br />
culturais, etc. Como a dialética privilegia as mudanças qualitativas,<br />
opõe-se naturalmente a qualquer mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> pensar em que a or<strong>de</strong>m quantitativa<br />
se torna norma”.<br />
O méto<strong>do</strong> dialético é, geralmente, emprega<strong>do</strong> em pesquisas qualitativas, para tornar<br />
possível a interpretação dinâmica e totalizante da realida<strong>de</strong> que se quer investigar<br />
sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> fora informações que possam clarificar e dar mais confiabilida<strong>de</strong><br />
ao mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> se produzir conhecimentos, sem correr o risco <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong>duções vazias<br />
ou superficiais <strong>do</strong>s fatos que compõe o fenômeno a ser estuda<strong>do</strong>.<br />
Como procedimento técnico será utiliza<strong>do</strong> o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caso (Prodanov e Freitas,<br />
2009, p. 140), que por alguns autores também é entendi<strong>do</strong> como méto<strong>do</strong> científico<br />
(Becker, 1997). Para outros autores é compreendi<strong>do</strong> como estratégia <strong>de</strong> pesquisa<br />
(Martins, 2008). Assim a pesquisa será conduzida <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a compreen<strong>de</strong>r não isoladamente<br />
o fenômeno em questão, mas olhan<strong>do</strong> atentamente as influências econômicas,<br />
culturais, educacionais, políticas e regionais <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista social, que<br />
permeiam e agem modifican<strong>do</strong> o fenômeno aborda<strong>do</strong>.<br />
Dessa forma, é possível afirmar que o méto<strong>do</strong> dialético e o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caso formam<br />
a estrutura <strong>de</strong> base na qual se edifica a pesquisa, consistin<strong>do</strong> nos instrumentos principais<br />
para a especificação <strong>do</strong> <strong>de</strong>senho meto<strong>do</strong>lógico <strong>de</strong>ssa investigação científica.<br />
Os da<strong>do</strong>s foram recolhi<strong>do</strong>s, principalmente, por meio <strong>de</strong> entrevistas semiestruturadas,<br />
e da observação <strong>de</strong> duas aulas <strong>de</strong> cada professor.<br />
Apontamentos sobre o acor<strong>de</strong>om<br />
O acor<strong>de</strong>om, em formato semelhante ao que conhecemos hoje, é certamente um<br />
produto da era industrial2. Uma época em que surgiram, no cenário oci<strong>de</strong>ntal, muitos<br />
instrumentos que conhecemos hoje. Ele começou a ser difundi<strong>do</strong> em mo<strong>de</strong>los<br />
pareci<strong>do</strong>s com os que temos hoje, no século XIX, na Europa e, a partir daí se espalhou<br />
pelo mun<strong>do</strong>. É uma invenção <strong>de</strong> muitos autores. Portanto, suas origens e autoria<br />
na história ainda não são muito claras. Como afirma Zanatta (2005, p. 42-43),<br />
“fica difícil atribuir a autoria da inventivida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste instrumento, porque os aperfeiçoamentos<br />
que foram acrescenta<strong>do</strong>s até atingir a forma que tomou, só foram<br />
possíveis graças aos trabalhos <strong>de</strong> inúmeros artífices anônimos ao longo <strong>do</strong> tempo”.<br />
O conheci<strong>do</strong> acor<strong>de</strong>om é um instrumento musical aerófono3. Composto por um<br />
fole, um diapasão e duas caixas harmônicas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira. A seguir veja a gravura <strong>do</strong>s<br />
principais mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>ons cromáticos utiliza<strong>do</strong>s na atualida<strong>de</strong> no mun<strong>do</strong>.<br />
Posteriormente, venho o acréscimo <strong>de</strong> registros tanto na mão esquerda quanto na<br />
direita, trazen<strong>do</strong> maior varieda<strong>de</strong> expressiva ao instrumento. Tal acréscimo permitiu<br />
a combinação e utilização <strong>de</strong> diferentes timbres em um mesmo instrumento.<br />
Isso tu<strong>do</strong> tornou possível a utilização <strong>de</strong> escalas complexas, mo<strong>do</strong>s diversos, harmonia<br />
mais rebuscada e melodias com evoluções harmônicas mais ricas <strong>do</strong> que as<br />
609
610<br />
que eram possíveis <strong>de</strong> serem compostas nos acor<strong>de</strong>ons diatônicos (mo<strong>de</strong>lo mais<br />
primitivo). E conferiu ao instrumento possibilida<strong>de</strong>s outras <strong>de</strong> aprendiza<strong>do</strong>, difusão<br />
e incorporação em culturas populares <strong>de</strong> repertórios simples a complexos. Nessas<br />
circunstâncias, o mun<strong>do</strong> erudito musical, também, começou a se valer das<br />
possibilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>om e passou a inseri-lo em suas composições. Tanto que<br />
Ludwig Van Beethoven tem um movimento para acor<strong>de</strong>om na sua sinfonia <strong>de</strong> número<br />
sete. É o segun<strong>do</strong> movimento <strong>de</strong>ssa obra sinfônica. Wolfgang Ama<strong>de</strong>us Mozart<br />
também escreveu, em 1791, um Adágio e um Rondó para Glasharmonika4,<br />
Flauta, Oboé, Viola e Violoncelo (KV 617) (Maurer, 1983, p. 27). Outros compositores<br />
menos famosos também privilegiaram o acor<strong>de</strong>om em suas obras (Ver<br />
Maurer, 1983).<br />
Figura 1. 1 — Acor<strong>de</strong>ons cromáticos <strong>de</strong> 120 baixos, com tecla<strong>do</strong> <strong>de</strong> piano,<br />
e com botões, respectivamente.<br />
O acor<strong>de</strong>om no Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul<br />
Acredita-se que com a chegada <strong>do</strong>s primeiros imigrantes alemães, a partir 1824, já<br />
teriam si<strong>do</strong> trazi<strong>do</strong>s os primeiros acor<strong>de</strong>ons para o esta<strong>do</strong>. Depois disso, como sabemos<br />
durante a revolução farroupilha a imigração cessou por alguns anos, sen<strong>do</strong><br />
retomada mais tar<strong>de</strong> e, <strong>de</strong> forma mais intensa. Fora aí que a difusão <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>om<br />
se <strong>de</strong>ra mais extensivamente, com a pacificação no esta<strong>do</strong>.<br />
Contu<strong>do</strong>, foram os italianos, chega<strong>do</strong>s por volta <strong>de</strong> 1875, que a<strong>de</strong>ntraram em território<br />
gaúcho em ondas migratórias incentivadas pelo governo brasileiro, que difundiram<br />
mais extensiva e intensivamente o acor<strong>de</strong>om. Tanto que na região da<br />
serra gaúcha surgiram muitas fábricas <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om. Nessa região a cultura musical<br />
<strong>do</strong> acor<strong>de</strong>om possui contornos próprios. Tanto que existe um estilo serrano <strong>de</strong> se<br />
tocar acor<strong>de</strong>om. Na região da fronteira a maneira <strong>de</strong> tocar acor<strong>de</strong>om sofreu fortes<br />
influências da música portenha. No entanto, são muitos os povos que tem o acor<strong>de</strong>om<br />
incorpora<strong>do</strong> às suas tradições e costumes culturais. Dentre eles se <strong>de</strong>stacam<br />
os alemães, que também ajudaram na colonização <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> localiza<strong>do</strong> na região<br />
mais austral <strong>do</strong> Brasil.
O acor<strong>de</strong>om foi sen<strong>do</strong> difundi<strong>do</strong> através <strong>de</strong> obras musicais populares <strong>de</strong> origem<br />
europeia inicialmente, e <strong>de</strong>pois com obras compostas no Brasil, estas criadas com<br />
base em formas e mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> discursos musicais também europeus. O acor<strong>de</strong>om<br />
aju<strong>do</strong>u na difusão <strong>de</strong> diversos gêneros musicais, mas estes gêneros também ajudaram<br />
na difusão <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>om pelas diversas regiões <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a popularida<strong>de</strong><br />
que assumiram nos diferentes cenários sociais e culturais <strong>de</strong> nosso esta<strong>do</strong>.<br />
Surgiu uma relação <strong>de</strong> cumplicida<strong>de</strong> entre o instrumento acor<strong>de</strong>om e vários gêneros<br />
musicais trazi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> fora <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> e <strong>do</strong> país. Em cada microrregião <strong>do</strong> esta<strong>do</strong><br />
os gêneros musicais foram sen<strong>do</strong> trabalhos, dissemina<strong>do</strong>s e modifica<strong>do</strong>s com base<br />
nas culturas locais e nas concepções musicais pertencentes às culturas <strong>de</strong> diferentes<br />
etnias que vieram a compor o espectro social cultural <strong>do</strong> povo gaúcho.<br />
O lugar da Música Popular Gaúcha no ensino <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om<br />
Por ser o acor<strong>de</strong>om um instrumento fortemente liga<strong>do</strong> às culturas regionais no<br />
Brasil, o repertório musical que se têm para esse instrumento, a título <strong>de</strong> exemplo,<br />
no sul <strong>do</strong> Brasil, está em gran<strong>de</strong> medida inseri<strong>do</strong> no que <strong>de</strong>nominamos por Música<br />
Popular Gaúcha (MPG)5. Então as músicas que são trabalhadas no instrumento<br />
acor<strong>de</strong>om, que fazem parte <strong>do</strong> repertório da gran<strong>de</strong> maioria <strong>do</strong>s alunos são advindas<br />
da música nativista e regionalista. Alguns alunos também procuram apren<strong>de</strong>r<br />
músicas sertanejas (caipiras como em outras partes chamam). Há também aqueles<br />
que apreciam e <strong>de</strong>senvolvem-se musical e tecnicamente através <strong>de</strong> músicas <strong>de</strong> correntes<br />
culturais variadas e <strong>de</strong> várias partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
A influência <strong>de</strong> gêneros musicais <strong>de</strong> países <strong>do</strong> MERCOSUL é notada nas aulas <strong>de</strong><br />
acor<strong>de</strong>om. Tangos, milongas, chacareras, ragui<strong>do</strong>s <strong>do</strong>bles, entre outros gêneros musicais<br />
também estão no gosto <strong>de</strong> muitos jovens que procuram apren<strong>de</strong>r a tocar acor<strong>de</strong>om.<br />
Esses gêneros musicais são executa<strong>do</strong>s em nosso esta<strong>do</strong> por muitos músicos,<br />
principalmente por artistas da corrente musical compreendida como nativista em<br />
nosso esta<strong>do</strong>. To<strong>do</strong>s esses gêneros têm seus caminhos harmônicos escritos <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>do</strong> tonalismo oci<strong>de</strong>ntal. Modulações e tonicizações ocorrem, porém a tendência<br />
<strong>de</strong>ssas músicas é manter um centro tonal principal, especialmente as mais tradicionais,<br />
mais antigas. Muitos músicos têm busca<strong>do</strong> inovar o estilo gaúcho <strong>de</strong> se<br />
fazer música popular. Alguns <strong>de</strong>sses músicos tentam mesclar gêneros musicais <strong>do</strong><br />
sul com <strong>de</strong> outras regiões <strong>do</strong> Brasil e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Algumas <strong>de</strong>ssas tentativas são tímidas.<br />
Outras mais exacerbadas. O caso <strong>do</strong> Tchê Music é uma <strong>de</strong>ssas tendências<br />
mais, digamos, radicais. No entanto, o que prevalece são os complexos sonoros que<br />
estão mais liga<strong>do</strong>s às tradições. Isso <strong>de</strong>corre também pelo fato <strong>de</strong> o Movimento<br />
Tradicionalista Gaúcho ser bastante sóli<strong>do</strong>, presente e impositivo no esta<strong>do</strong>, inclusive<br />
no que tange a conservação <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los musicais tais como eram aprecia<strong>do</strong>s<br />
e <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s em épocas mais distantes <strong>de</strong> nosso tempo atual.<br />
As músicas gaúchas fazem parte <strong>do</strong> imaginário cultural <strong>de</strong> boa parte <strong>do</strong> povo sul-<br />
611
612<br />
rio-gran<strong>de</strong>nse. Com os alunos <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om isso comumente é mais freqüente. Os<br />
alunos que geralmente procuram professores <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om estão <strong>de</strong> alguma forma,<br />
envolvi<strong>do</strong>s com a cultura musical regional gaúcha. Eles muitas vezes participam <strong>de</strong><br />
CTGs, <strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> danças folclóricas <strong>do</strong> sul. Essa participação nesses contextos<br />
sócio-culturais on<strong>de</strong> o acor<strong>de</strong>om e a MPG estão presentes traz a possibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />
estabelecimento <strong>de</strong> influências musicais no tocante ao gosto e apreciação, também<br />
resultan<strong>do</strong> no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> tocar acor<strong>de</strong>om ou outro instrumento típico ou não, emprega<strong>do</strong>s<br />
pelos grupos musicais que fazem MPG.<br />
Assim, as interações sociais e físicas <strong>do</strong> sujeito com os objetos musicais no meio cultural<br />
<strong>do</strong> qual o estudante faz parte é um fator <strong>de</strong>terminante na sua escolha por tocar<br />
acor<strong>de</strong>om e, consequentemente, no repertório escolhi<strong>do</strong> ou i<strong>de</strong>aliza<strong>do</strong> pelo educan<strong>do</strong><br />
como meta intrínseca ao estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om.<br />
Revisão <strong>de</strong> bibliografia<br />
Como sabemos a área <strong>de</strong> educação musical tem cresci<strong>do</strong> muito ao longo <strong>do</strong>s últimos<br />
vinte anos no Brasil. Nesse panorama histórico <strong>de</strong> avanço científico, a área tem<br />
volta<strong>do</strong> seu olhar para discussões e reflexões que contemplam os espaços <strong>de</strong> ensino<br />
e aprendizagem musical não escolares, on<strong>de</strong> culturas <strong>de</strong> ensino e aprendizagem <strong>de</strong><br />
instrumentos musicais diversos assumem a forma <strong>de</strong> fenômenos sócio-culturais e<br />
sócio-musicais. On<strong>de</strong>, também, meto<strong>do</strong>logias, teorias e conceitos acerca <strong>de</strong> educação<br />
musical são produzi<strong>do</strong>s, compartilha<strong>do</strong>s, modifica<strong>do</strong>s, dissemina<strong>do</strong>s - às vezes,<br />
mesmo que <strong>de</strong> forma não intencional ou inconsciente - e on<strong>de</strong> se criam concepções<br />
<strong>de</strong> ensino e aprendizagem, <strong>de</strong> profissão, <strong>de</strong> formação pedagógico-musical e <strong>de</strong><br />
perfil i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> profissional.<br />
Mais especificamente quanto ao ensino <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om temos o trabalho <strong>de</strong> Reis<br />
(2009), que trata <strong>do</strong> ensino <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>m na terceira ida<strong>de</strong>. O autor reflete sobre peculiarida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> processos <strong>de</strong> ensino e aprendizagem <strong>de</strong>sse instrumento, entrecruzan<strong>do</strong><br />
saberes da área <strong>de</strong> educação musical, educação, sociologia, neurociências e<br />
psicologia da aprendizagem musical. Por fim, traz apontamentos sobre referenciais<br />
teórico-meto<strong>do</strong>lógicos próprios para o ensino <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om.<br />
No campo específico <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om, também, temos o trabalho <strong>de</strong> Persch<br />
(2006), que realizou um estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caso investigan<strong>do</strong> as contribuições <strong>do</strong> uso <strong>de</strong><br />
software Encore na educação musical, ten<strong>do</strong> em vista o ensino particular <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om<br />
para alunos iniciantes. O Autor evi<strong>de</strong>nciou que as tecnologias po<strong>de</strong>m ser<br />
gran<strong>de</strong>s aliadas nos processos <strong>de</strong> ensino musical, no seu caso específico, no aprendiza<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> teoria musical. Persch (2006) fala que o programa auxilia o aluno na escrita<br />
e no entendimento <strong>de</strong> questões teóricas, o autor afirma que “os alunos que<br />
ainda não <strong>do</strong>minam a leitura da partitura musical convencional, ou mesmo os que<br />
sentem dificulda<strong>de</strong>s em realizá-la, po<strong>de</strong>m acompanhar a partitura sen<strong>do</strong> executada<br />
no programa, inclusive selecionan<strong>do</strong> trechos que ainda não estão memoriza<strong>do</strong>s”
(i<strong>de</strong>m, p. 11). O autor faz-nos refletir acerca da competência profissional extra-acadêmica,<br />
expressa no saber usar as tecnologias para o melhoramento <strong>de</strong> nossas aulas.<br />
Macha<strong>do</strong> (2009) realizou um trabalho investigativo em torno das práticas pedagógicas<br />
<strong>de</strong> <strong>do</strong>is professores <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om, buscan<strong>do</strong> <strong>de</strong>svelar e registrar aspectos relevantes<br />
da <strong>do</strong>cência em acor<strong>de</strong>om. O autor procurou compreen<strong>de</strong>r quais eram as<br />
meto<strong>do</strong>logias <strong>de</strong> ensino; que processos avaliativos os professores a<strong>do</strong>tavam; como<br />
acontecia o planejamento das aulas; que materiais didáticos utilizavam; como era<br />
a relação professor-aluno; e quais eram as expectativas <strong>do</strong>s professores sobre os alunos,<br />
sobre a profissão e o que almejavam enquanto educa<strong>do</strong>res musicais. Essa pesquisa<br />
venho a contribuir no movimento necessário <strong>de</strong> discussão da pedagogia <strong>do</strong><br />
acor<strong>de</strong>om e da formação <strong>do</strong> professor <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om no contexto brasileiro, ten<strong>do</strong><br />
em vista a enorme carência <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s na temática envolven<strong>do</strong> acor<strong>de</strong>om em nosso<br />
país.<br />
Sobre a construção <strong>do</strong> conhecimento <strong>de</strong> harmonia, temos o trabalho realiza<strong>do</strong> por<br />
Pecker (2009), que buscou compreen<strong>de</strong>r os processos cognitivos que asseguram as<br />
conquistas das crianças <strong>de</strong> <strong>do</strong>is a cinco anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> sobre os mo<strong>do</strong>s <strong>do</strong> sistema<br />
tonal. Alguns trabalhos <strong>de</strong> Costa-Giomi (2003; 2001) sobre o <strong>de</strong>senvolvimento da<br />
percepção harmônica na infância também po<strong>de</strong>m ser menciona<strong>do</strong>s como relevantes<br />
para as reflexões que queremos projetar nesse estu<strong>do</strong>.<br />
Já no campo da construção <strong>de</strong> conhecimento musical, pensa<strong>do</strong> amplamente, com<br />
reflexões teóricas baseadas no lega<strong>do</strong> epistemológico <strong>de</strong> Jean Piaget, temos os trabalhos<br />
<strong>de</strong> Beyer (1999; 1996; 1995; 1994; 1988), Kebach (2008; 2003), Fink<br />
(2001), Maffioletti (2004), Bündchen (2005), Specht (2007), entre outros que enfocam<br />
processos <strong>de</strong> ensino e aprendizagem musical, que é uma problemática específica<br />
da educação musical, e que <strong>de</strong>ve ser alvo <strong>de</strong> reflexões científicas rumo à<br />
estruturação <strong>de</strong> saberes mais consistentes na área em questão, bem como a construção<br />
mais concreta <strong>de</strong> uma epistemologia da educação musical para o nosso<br />
tempo, e que dê explicações condizentes ao movimento <strong>de</strong> complexificação <strong>do</strong> ser<br />
e estar da socieda<strong>de</strong> humana. Isso presume andar a par <strong>do</strong>s avanços científicos na<br />
área da educação e em outros campos <strong>do</strong> saber.<br />
Algumas consi<strong>de</strong>rações preliminares<br />
Os professores entrevista<strong>do</strong>s trouxeram da<strong>do</strong>s que elucidam a existência <strong>de</strong> um ensino<br />
musical e, uma respectiva aprendizagem no acor<strong>de</strong>om, permea<strong>do</strong>s pelo incentivo<br />
e valorização da prática musical em si, salientan<strong>do</strong> também o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
da percepção auditiva. E, nesse ponto, no tocante ao <strong>de</strong>senvolvimento da percepção<br />
auditiva, resi<strong>de</strong> e tem fundamental importância as noções <strong>de</strong> enca<strong>de</strong>amentos<br />
harmônicos, seja no âmbito horizontal ou vertical temporal <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
das músicas. Assim, ocorre que os professores incentivam bastante o ato <strong>de</strong> tirar<br />
613
614<br />
música <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>. Eles vêem essa prática como intrínseca a aprendizagem <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om,<br />
levan<strong>do</strong>, nesse caso, em consi<strong>de</strong>ração o trabalho musical com repertório popular.<br />
Também essa prática <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contornar as<br />
dificulda<strong>de</strong>s encontradas na busca por material didático-instrumental, ou seja, por<br />
partituras <strong>de</strong> obras para compor repertório. Então, o útil (tirar músicas <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>),<br />
e o agradável (<strong>de</strong>senvolver a percepção musical), que também é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como<br />
necessário pelos professores se coadunam na prática educativo-musical <strong>de</strong> ensinar<br />
e apren<strong>de</strong>r acor<strong>de</strong>om.<br />
Em tal senti<strong>do</strong>, o <strong>de</strong>senvolvimento da percepção harmônica está atrela<strong>do</strong> - po<strong>de</strong>ríamos<br />
dizer <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte - diretamente ao <strong>de</strong>senvolvimento da percepção musical<br />
como um to<strong>do</strong>, seja no âmbito <strong>do</strong>s ritmos, <strong>do</strong>s timbres6, das alturas e também das<br />
intensida<strong>de</strong>s, principalmente no tocante a construção <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s e arpejos, on<strong>de</strong> a<br />
interpretação <strong>de</strong> cada músico confere características singulares no produto musical<br />
final, seja este uma música registrada na forma <strong>de</strong> gravação fonográfica, ou uma<br />
apresentação não registrada, mas sim apreciada ao vivo.<br />
Exemplo <strong>do</strong> Professor “Y” na abordagem da harmonia<br />
No que concerne a abordagem da harmonia nas aulas <strong>do</strong> professor “Y”, po<strong>de</strong>mos<br />
notar que a visão <strong>do</strong> professor quanto à aprendizagem <strong>do</strong> instrumento <strong>de</strong>lineia a sua<br />
conduta para o tratamento pedagógico <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s elementos da linguagem<br />
musical no acor<strong>de</strong>om. O professor afirma que a harmonia vai surgin<strong>do</strong> nas aulas.<br />
Ele faz afirmações que, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à construção <strong>do</strong> mecanismo mecânico que é emprega<strong>do</strong><br />
na baixaria, o ensino <strong>de</strong> harmonia tonal não acontece como em outros instrumentos.<br />
Isto porque as relações harmônicas entre os acor<strong>de</strong>s mais usa<strong>do</strong>s, em<br />
complexos harmônicos simples, como as estabelecidas entre Tônica, Dominante e<br />
Sub<strong>do</strong>minante, tem seus botões <strong>de</strong> acionamento <strong>de</strong> notas e acor<strong>de</strong>s localiza<strong>do</strong>s la<strong>do</strong><br />
a la<strong>do</strong>. A Tônica no centro, Sub<strong>do</strong>minante abaixo, e acima da Tônica o botão da<br />
Dominante. Nisso a obtenção <strong>de</strong> um acompanhamento se dá pelo uso e execução<br />
constante <strong>de</strong> uma célula rítmica que, minimamente faz uso <strong>de</strong> <strong>do</strong>is <strong>de</strong><strong>do</strong>s e duas<br />
notas por função - isso <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da técnica <strong>de</strong> execução na baixaria <strong>de</strong> que se po<strong>de</strong><br />
estar tratan<strong>do</strong>, po<strong>de</strong> ser a <strong>de</strong> baixos alterna<strong>do</strong>s ou não (Ver Mascarenhas, 2003).<br />
Para compreen<strong>de</strong>r a disposição física <strong>do</strong>s botões <strong>de</strong> acionamento <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s na baixaria<br />
<strong>do</strong> acor<strong>de</strong>om, veja o exemplo abaixo, extraí<strong>do</strong> <strong>de</strong> Mascarenhas (2003, p. 32):
O professor diz que a harmonia não é ensinada explicitamente. Ela surge como<br />
parte integrante e indissociável das obras musicais e gêneros musicais ti<strong>do</strong>s como<br />
conteú<strong>do</strong>. “Devi<strong>do</strong> à construção <strong>do</strong> instrumento, <strong>do</strong>s acor<strong>de</strong>s da<strong>do</strong>s nos baixos<br />
para acompanhamento, pela facilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s acor<strong>de</strong>s da<strong>do</strong>s” (Professor Y). Ele fala<br />
que os acompanhamentos para os gêneros musicais como xote, vaneirão e valsa, por<br />
exemplo, são facilita<strong>do</strong>s na baixaria, pois as músicas são na gran<strong>de</strong> maioria tonais.<br />
Reforçan<strong>do</strong> o professor relata que:<br />
Principalmente quan<strong>do</strong> se faz o acompanhamento <strong>de</strong> certos gêneros musicais, os<br />
acor<strong>de</strong>s diatômicos já estão prontos e você acaba usan<strong>do</strong> disso, que é uma facilida<strong>de</strong>.<br />
É incomum a gente ter isso pronto assim [em outros instrumentos]. Mas<br />
ao mesmo tempo a gente acaba não mais abordan<strong>do</strong> questões harmônicas, porque<br />
isso já fica muito fácil. Por exemplo, a primeiro e quinto graus ficam um <strong>do</strong><br />
la<strong>do</strong> <strong>do</strong> outro: fica muito tranqüilo <strong>de</strong> fazer acompanhamento. Já no piano você<br />
vai ter que construir esses acor<strong>de</strong>s diatômicos (Professor Y).<br />
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
To<strong>do</strong>s os professores entrevista<strong>do</strong>s mencionaram em algum momento das entrevistas,<br />
que buscam contemplar as necessida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s educan<strong>do</strong>s. De tal forma, procuram<br />
estruturar suas aulas com base nos <strong>de</strong>sejos <strong>do</strong>s educan<strong>do</strong>s, e priman<strong>do</strong> pela<br />
construção <strong>do</strong> saber musical que seja significativo para o educan<strong>do</strong>. Nesse senti<strong>do</strong>,<br />
o querer <strong>do</strong> educan<strong>do</strong> tem mais força <strong>de</strong> voz <strong>do</strong> que a utilização <strong>de</strong> méto<strong>do</strong>s engessa<strong>do</strong>s<br />
ou a utilização <strong>de</strong> fragmentos <strong>de</strong> méto<strong>do</strong>s distintos, que muitas vezes<br />
foram escritos e i<strong>de</strong>aliza<strong>do</strong>s para o ensino musical em outras realida<strong>de</strong>s culturais e<br />
sociais. Quanto a isso, Beyer (1988, p. 08) ressalta que,<br />
O ecletismo generaliza<strong>do</strong> é a base <strong>de</strong> ação para um número significativo <strong>de</strong> educa<strong>do</strong>res<br />
musicais. Logicamente por necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> se ancorarem sobre um fundamento<br />
sóli<strong>do</strong> (que é inexistente), aproveita-se um pouco <strong>de</strong> cada méto<strong>do</strong>,<br />
exatamente aquilo consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> aleatoriamente como o melhor, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
la<strong>do</strong> o restante. Pensa-se <strong>de</strong>sta forma, estar completo o novo méto<strong>do</strong> cria<strong>do</strong>, pois<br />
tem por base um número gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s na educação musical (grifos da<br />
autora).<br />
615
616<br />
No entanto, a necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> educa<strong>do</strong>r é criar uma meto<strong>do</strong>logia para cada educan<strong>do</strong>,<br />
com base na realida<strong>de</strong> cultural musical <strong>de</strong>ste. Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> prioritariamente<br />
os conhecimentos musicais que este já possui. Assim, contemplar no plano<br />
<strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s os vários elementos da música com vistas ao <strong>de</strong>senvolvimento completo<br />
<strong>do</strong> aluno na linguagem musical, e almejan<strong>do</strong> que este passe a ser <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>r <strong>de</strong>ssa<br />
linguagem, sen<strong>do</strong> capaz <strong>de</strong> manipulá-la e ressignificá-la ao fazer uso da sua capacida<strong>de</strong><br />
inventiva, que <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>senvolvida na aula <strong>de</strong> música, é militar por uma educação<br />
musical liberta<strong>do</strong>ra: que não <strong>de</strong>senvolva meros reprodutores <strong>de</strong> constructos<br />
musicais; executores <strong>de</strong> obras já prontas.<br />
É preciso <strong>de</strong>senvolver seres capazes <strong>de</strong> criar novida<strong>de</strong>s na música, ou pelo menos recriar<br />
músicas <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>s singulares. Porém, para que isso aconteça é preciso pensar<br />
em um ensino que não se restrinja ao simples <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> repertório, e que<br />
contemple a música como discurso fazen<strong>do</strong> o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s diversos elementos musicais<br />
que a constituem, estan<strong>do</strong> inseri<strong>do</strong>s aí os paradigmas harmônicos que nos estão<br />
disponíveis, e que a partir <strong>de</strong>sses o educan<strong>do</strong> possa criar novos padrões se quiser.<br />
Enfim, que a inventivida<strong>de</strong>, criativida<strong>de</strong>, e liberda<strong>de</strong> sejam palavras intrinsecamente<br />
ligadas e nortea<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>s processos educativo-musicais fomenta<strong>do</strong>s com o acor<strong>de</strong>om,<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>do</strong> nível <strong>de</strong> aprofundamento e <strong>do</strong>mínio da linguagem<br />
musical que o educan<strong>do</strong> tenha. E que seja consi<strong>de</strong>rada a construção progressiva <strong>de</strong><br />
conhecimento musical, sem privar o educan<strong>do</strong> da tomada <strong>de</strong> consciência <strong>de</strong> elementos<br />
chave da arte musical.<br />
1 Sobre as teorias <strong>do</strong> cotidiano aplicadas à educação musical, ver Souza, 2000; 2008.<br />
2 Segun<strong>do</strong> Zanatta (2005, p. 49), “o acor<strong>de</strong>om é o primeiro instrumento da nova era da industrialização.<br />
Os primeiros acor<strong>de</strong>ons construí<strong>do</strong>s em série aparecem a partir <strong>de</strong> 1830 pelas<br />
firmas: Buffet (Bélgica), Napoleón Fourneaux, e Bousson (França). Inicialmente, enquanto<br />
produto industrial, <strong>de</strong>le <strong>de</strong>rivara duas versões: acor<strong>de</strong>om tônico <strong>de</strong> botões, com um som para<br />
cada botão, e o acor<strong>de</strong>om diatônico, composto por uma a três carreiras <strong>de</strong> botões e com a<br />
emissão <strong>de</strong> <strong>do</strong>is sons por botão, obti<strong>do</strong>s conforme o movimento <strong>do</strong> fole” (grifos da autora).<br />
São os movimentos <strong>de</strong> abrir e fechar o fole, no acor<strong>de</strong>om diatônico, que permite a obtenção<br />
<strong>de</strong> notas diferentes através <strong>do</strong> acionamento <strong>de</strong> um mesmo botão. Ainda <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os<br />
da<strong>do</strong>s levanta<strong>do</strong>s por Zanatta (2005, p. 47), po<strong>de</strong>mos dizer que havia certos graus <strong>de</strong> interesse<br />
<strong>do</strong>s artesões com vistas ao aperfeiçoamento <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>om. Esse interesse manteve-se<br />
com base na utilização <strong>do</strong> mesmo princípio <strong>de</strong> palhetas <strong>de</strong> soprar. Isso possibilitou o surgimento<br />
<strong>de</strong> novas variações pelo mun<strong>do</strong>. “Em Londres, Charles Wheatstone registra, em 19<br />
<strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1829, um instrumento chama<strong>do</strong> Concertina, que foi muito difundida pelos marinheiros<br />
da Grã-Bretanha. Em 1834, Carl Friedrich Uhlig, musicista e construtor <strong>de</strong> instrumentos<br />
na Saxônia, durante uma viagem em Viena, vem conhecer o princípio <strong>do</strong><br />
acor<strong>de</strong>om <strong>de</strong> Demian. Em seguida, ele <strong>de</strong>senvolve um instrumento <strong>de</strong> forma quadrada, a<br />
Concertina Alemã” (i<strong>de</strong>m, grifos da autora).<br />
2 Segun<strong>do</strong> a classificação organológica proposta por Curt Sacks (1881-1959), trata-se <strong>de</strong><br />
uma <strong>de</strong>nominação para qualquer instrumento <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, <strong>de</strong> metal, <strong>de</strong> fole, etc., que soa<br />
por meio <strong>do</strong> ar posto em vibração.
3 Esse instrumento é um mo<strong>de</strong>lo mais primitivo <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>om como conhecemos hoje.<br />
4 Compreen<strong>de</strong>-se como sen<strong>do</strong> Música Popular Gaúcha, todas aquelas obras musicais que<br />
por algum motivo tem raízes no esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, seja pelo fato <strong>de</strong> que aqui chegaram<br />
por intermédio <strong>do</strong>s imigrantes e caíram no gosto da população gaúcha no passa<strong>do</strong>, ou<br />
que aqui nesse esta<strong>do</strong> emergiram com base em gêneros e concepções musicais originárias <strong>do</strong>s<br />
povos indígenas ou trazidas para o esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> outras partes <strong>do</strong> Brasil e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e na cultura<br />
sul-rio-gran<strong>de</strong>se sofreram modificações que lhe conferiram caracteres diferencia<strong>do</strong>s <strong>de</strong> suas<br />
origens. Portanto, a vaneira, valsa gaúcha, marcha, xote, polca, milonga, chamamé, bugio,<br />
etc., são gêneros musicais representantes diretos <strong>do</strong> estilo musical gaúcho, e compõem o que<br />
chamamos <strong>de</strong> MPG. MPG é to<strong>do</strong> o tipo <strong>de</strong> música que guarda relações diretas com estilos<br />
musicais mais antigos perpetua<strong>do</strong>s no Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, construções musicais que secularmente<br />
se consolidaram e estão incrustadas na cultural gaúcha e que ainda hoje são produzidas,<br />
difundidas e apreciadas no esta<strong>do</strong> ou fora <strong>de</strong>le, mas a origem geográfica <strong>do</strong> estilo se<br />
encontra no supracita<strong>do</strong> esta<strong>do</strong>.<br />
5 No acor<strong>de</strong>om, trata-se das mudanças <strong>de</strong> registros, ou então das diferenças <strong>de</strong> sonorida<strong>de</strong>s<br />
existentes entre os diferentes tipos <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om, porque em alguns casos há o ato <strong>de</strong> transpor<br />
uma música executada no acor<strong>de</strong>om diatônico ou cromático para o apiana<strong>do</strong> por meio<br />
da audição <strong>de</strong> um e interpretação em outro. E, então, passamos a ter a diferença <strong>do</strong>s timbres<br />
como fator responsável por mudanças no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> abstrair as informações musicais da obra,<br />
uma vez que os harmônicos passam a se apresentar com intensida<strong>de</strong>s variadas em vista <strong>do</strong> material<br />
físico utiliza<strong>do</strong> na confecção <strong>do</strong> instrumento.<br />
Referências<br />
Becker, H. S. Méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> pesquisa em ciências sociais. Tradução <strong>de</strong> Marco Estevão e Renato<br />
Aguiar. 3ª edição. São Paulo: Hucitec, 1997.<br />
Beyer. E. A construção <strong>de</strong> conceitos musicais no indivíduo: perspectivas para a educação<br />
musical. Em Pauta 09/10 (Porto Alegre, Dez. 1994/Abril 1995), p. 22-31.<br />
———. A abordagem cognitiva em música: uma crítica ao ensino <strong>de</strong> música a partir da teoria<br />
<strong>de</strong> Jean Piaget. Dissertação (Mestra<strong>do</strong>), Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Educação,<br />
Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul. Porto Alegre, 1988.<br />
———. Musikalische und sprachliche entwicklung in <strong>de</strong>r frühen kindheit. Em português: Desenvolvimento<br />
da musicalida<strong>de</strong> e da fala na primeira infância. Hamburgo: Krämer, 1994.<br />
———. Os múltiplos caminhos da cognição musical: algumas reflexões sobre seu <strong>de</strong>senvolvimento<br />
na primeira infância. Revista da ABEM 3, nº. 3 (Porto Alegre, 1996), p. 9-16.<br />
———. Fazer ou enten<strong>de</strong>r música? In: Beyer, Esther (org.). Idéias para a educação musical.<br />
Porto Alegre: Mediação, 1999. p. 09-31.<br />
Bündchen, D. S. A relação ritmo-movimento no fazer musical criativo: uma abordagem<br />
construtivista na prática <strong>de</strong> canto coral. Dissertação (Mestra<strong>do</strong>) – Programa <strong>de</strong> Pós-<br />
Graduação em Educação, Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> Sul. Porto Alegre, 2005.<br />
Costa-Giomi, E. El <strong>de</strong>sarrollo <strong>de</strong> la percepción armónica durante la infancia. In: Cua<strong>de</strong>rnos<br />
Interamericanos <strong>de</strong> Investigación en Educación Musical 2 (2001).<br />
———. Young Children’s Harmonic Perception. In: Annals of the New York Aca<strong>de</strong>my of<br />
Sciences 999 (2003), p. 477–484.<br />
617
618<br />
Fink, Regina. O fazer criativo em música: um estu<strong>do</strong> sobre o processo da construção <strong>do</strong> conhecimento<br />
a partir da criação musical. Dissertação (Mestra<strong>do</strong>) - Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação<br />
em Educação, Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />
Sul. Porto Alegre, 2001.<br />
Kebach, P. F. C. A construção <strong>do</strong> conhecimento musical: um estu<strong>do</strong> através <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> clínico.<br />
Dissertação (Mestra<strong>do</strong>), Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Educação, Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Educação, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul. Porto Alegre, 2003.<br />
———. Musicalização Coletiva <strong>de</strong> Adultos: o processo <strong>de</strong> cooperação nas produções musicais<br />
em grupo. Tese (Doutora<strong>do</strong>), Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Educação, Faculda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Educação, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, Porto Alegre, 2008.<br />
Macha<strong>do</strong>, A. V. Ensino <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>on: um estu<strong>do</strong> a partir da prática <strong>do</strong>cente <strong>de</strong> <strong>do</strong>is professores.<br />
Montenegro, 2009<br />
Maffioletti, L. <strong>de</strong> A. Diferenciações e integrações: o conhecimento novo na composição musical<br />
infantil. Tese (Doutora<strong>do</strong>) Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Educação, Faculda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Educação, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul. Porto Alegre, 2004.<br />
Martins, G. A. Estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Caso: uma estratégia <strong>de</strong> pesquisa. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2008.<br />
Mascarenhas, M. Méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>ão Mascarenhas: teórico e prático. 51ª edição. São Paulo:<br />
Ricordi Brasileira, 2003.<br />
Maurer, W. Accordion: Handbuch eines instruments, seiner historischen entwicklung und seiner<br />
literatur. Wien: Edition Harmonia, 1983.<br />
Pecker, P. C. As condutas musicais da criança entre <strong>do</strong>is e cinco anos: trabalhan<strong>do</strong> com os<br />
mo<strong>do</strong>s <strong>do</strong> sistema tonal. Dissertação (Mestra<strong>do</strong>), Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Educação,<br />
Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul. Porto Alegre,<br />
2009.<br />
Persch, A. J. O ensino particular <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>on auxilia<strong>do</strong> por computa<strong>do</strong>r: um estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caso<br />
utilizan<strong>do</strong> o software Encore. Monografia (Graduação em Música: Licenciatura) - Universida<strong>de</strong><br />
Estadual <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, Montenegro, 2006.<br />
Prodanov, C. C.; Freitas, E. C. Meto<strong>do</strong>logia <strong>do</strong> trabalho científico: méto<strong>do</strong>s e técnicas <strong>de</strong> pesquisa<br />
e <strong>do</strong> trabalho acadêmico. Novo Hamburgo: Feevale, 2009.<br />
Reis, J. T. Aulas <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om na terceira ida<strong>de</strong>: uma abordagem reflexiva sobre um caso específico.<br />
In: Congresso Nacional da Abem, 18, e SPEM, 15, 2009. Londrina. <strong>Anais</strong> . . .,<br />
Londrina: ABEM, 2009, p. 320-328.<br />
Souza, J. (Org.). Música, cotidiano e educação. Porto Alegre: Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação<br />
em Música <strong>do</strong> Instituto <strong>de</strong> <strong>Artes</strong> da UFRGS, 2000.<br />
Souza, J. (Org.). Apren<strong>de</strong>r e ensinar música no cotidiano. Porto Alegre: Sulina, 2008. (coleção<br />
Músicas).<br />
Specht, A. C. O ensino <strong>do</strong> canto segun<strong>do</strong> uma abordagem construtivista: investigação com<br />
professoras <strong>de</strong> educação infantil. Dissertação (Mestra<strong>do</strong>), Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação<br />
em Educação, Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul.<br />
Porto Alegre, 2007.<br />
Zanatta, M. A. F. Dialetos <strong>do</strong> acor<strong>de</strong>ão em Curitiba: Música, cotidiano e representações sociais.<br />
Dissertação (Mestra<strong>do</strong> em Ciências Sociais), Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Ponta<br />
Grossa. Ponta Grossa, 2005.
Ensino coletivo <strong>de</strong> instrumentos musicais: auto-estima e<br />
motivação na aprendizagem musical realizada em grupo<br />
Tais Dantas<br />
Tais.dantas@hotmail.com<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia<br />
Resumo<br />
Como fruto da conclusão <strong>do</strong> Mestra<strong>do</strong> em Educação Musical, sob orientação <strong>do</strong> Professor<br />
Dr. Luiz César Magalhães, este artigo apresenta os resulta<strong>do</strong>s da incursão realizada<br />
sobre as relações existentes entre a auto-estima, autoconceito acadêmico e motivação<br />
em aulas coletivas <strong>de</strong> instrumentos musicais. A investigação focou a influência das relações<br />
interpessoais entre os alunos e professores sobre esses aspectos e sua interface com<br />
a aprendizagem musical. A auto-estima tem si<strong>do</strong> alvo <strong>de</strong> diversos enfoques na área da<br />
psicologia e, sobretu<strong>do</strong>, no campo da educação. São inúmeras as abordagens e contribuições<br />
que estu<strong>do</strong>s e pesquisas sérias vêm acrescentan<strong>do</strong> aos processos <strong>de</strong> ensino e<br />
aprendizagem, e conseqüentemente à aprendizagem coletiva <strong>de</strong> instrumentos musicais,<br />
por ser um ambiente on<strong>de</strong> o indivíduo reforça suas relações interpessoais. Como a autoestima<br />
é um tema complexo e extremamente amplo, a pesquisa buscou orientar-se apenas<br />
por parâmetros referentes aos processos <strong>de</strong> ensino e aprendizagem bem como às<br />
relações <strong>de</strong>senvolvidas nestes processos, utilizan<strong>do</strong> como referência autores que se <strong>de</strong>stacam<br />
no campo da pedagogia e psicologia da educação abordan<strong>do</strong> auto-estima e<br />
aprendizagem. O <strong>de</strong>senvolvimento da pesquisa se <strong>de</strong>u por meio <strong>de</strong> uma investigação<br />
realizada numa escola <strong>do</strong> ensino fundamental, em duas turmas da 5ª série que participam<br />
das coletivas <strong>de</strong> instrumentos <strong>de</strong> cordas como componente curricular da disciplina <strong>Artes</strong>.<br />
Além da observação das aulas, a coleta <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s foi realizada a partir da realização entrevistas<br />
focadas com os 21 alunos que freqüentam as aulas <strong>de</strong> música. Ao longo <strong>do</strong> trabalho<br />
evi<strong>de</strong>nciaram-se alguns fatores que interferem na formação, manutenção e<br />
alteração da auto-estima, <strong>do</strong> autoconceito e da motivação no processo <strong>de</strong> aprendizagem<br />
observadas no ensino coletivo, como: o papel <strong>do</strong>s professores e <strong>do</strong>s colegas da<br />
classe como “outros significantes”; a reação diante das críticas e elogios; e a relação<br />
existente entre apoio <strong>do</strong>s pais e percepção <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho.<br />
Palavras-chave<br />
Ensino coletivo, auto-estima, autoconceito, motivação, aprendizagem musical.<br />
A Auto-estima e aprendizagem musical em grupo<br />
Por que abordar auto-estima em ensino coletivo? O tema tem si<strong>do</strong> alvo <strong>de</strong> diversos<br />
enfoques na área da psicologia e, sobretu<strong>do</strong>, no campo da educação. Contu<strong>do</strong>, apesar<br />
da complexida<strong>de</strong> que envolve tal aspecto, verifica-se que a produção bibliográfica<br />
a respeito <strong>do</strong> tema tornou-se bastante abrangente, como constata Moysés (2007,<br />
p. 17-18) existe um certo modismo em relação à auto-estima: “a auto-estima virou<br />
palavra mágica. Cabe no anúncio profissional que trata <strong>de</strong>pressão, que faz hipnose,<br />
619
620<br />
regressão <strong>de</strong> memória [. . .]. A respeito <strong>de</strong>sse modismo, percebi que os estu<strong>do</strong>s e as<br />
pesquisas no campo <strong>do</strong> autoconceito e da auto-estima vão alcançan<strong>do</strong> refinamentos<br />
cada vez maiores, ainda que com enfoques e concepções diferentes.”<br />
Apesar das inúmeras abordagens que a auto-estima inspira em diversos campos,<br />
<strong>de</strong>stacam-se em especial as contribuições que estu<strong>do</strong>s e pesquisas sérias vêm acrescentan<strong>do</strong><br />
aos processos <strong>de</strong> ensino e aprendizagem. Esta relevância também po<strong>de</strong><br />
ser observada no campo <strong>do</strong> ensino coletivo <strong>de</strong> instrumentos musicais por se tratar<br />
<strong>de</strong> um ambiente on<strong>de</strong> o indivíduo reforça suas relações interpessoais, contribuin<strong>do</strong><br />
para o seu <strong>de</strong>senvolvimento psicossocial e para a sua formação como ser humano,<br />
acarretan<strong>do</strong> em ganhos para a aprendizagem musical. Diante da complexida<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />
tema, esta pesquisa buscou orientar-se por parâmetros que dizem respeito aos processos<br />
<strong>de</strong> ensino e aprendizagem bem como às relações <strong>de</strong>senvolvidas nestes processos.<br />
O propósito geral da pesquisa foi investigar certos aspectos psicossociais presentes<br />
no ensino coletivo <strong>de</strong> instrumentos musicais e que interferem positivamente no<br />
processo <strong>de</strong> aprendizagem musical. A pesquisa procurou investigar <strong>de</strong> que forma as<br />
interações no grupo influenciam a auto-estima e a motivação nas aulas coletivas, e<br />
como estes aspectos estão presentes e interagem na relação aluno-aluno e alunoprofessor.<br />
A pesquisa foi <strong>de</strong>senvolvida por meio <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caso exploratório<br />
realiza<strong>do</strong> com professores <strong>do</strong> ensino coletivo e com alunos <strong>de</strong> duas turmas da 5ª<br />
série <strong>do</strong> ensino fundamental II <strong>do</strong> Colégio Adventista <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r (Bahia) que participam<br />
das aulas <strong>de</strong> instrumentos <strong>de</strong> cordas, oferecidas na gra<strong>de</strong> curricular como<br />
opção na disciplina <strong>Artes</strong>. On<strong>de</strong> se utilizou como instrumento <strong>de</strong> coleta <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s<br />
a entrevista espontânea e focada1. Para análise <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s utilizou-se como aporte<br />
teórico para os elementos investiga<strong>do</strong>s as contribuições das seguintes áreas: educação<br />
musical, psicologia da educação, psicologia social e a psicologia da música. Neste<br />
texto apresentamos <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s aspectos que foram investiga<strong>do</strong>s com a realização<br />
da pesquisa <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong>, focan<strong>do</strong> o aprofundamento realiza<strong>do</strong> sobre o autoconceito<br />
e a auto-estima.<br />
A construção <strong>do</strong> autoconceito e formação da auto-estima<br />
Quan<strong>do</strong> nascemos não sabemos muito a nosso respeito. No <strong>de</strong>correr <strong>do</strong> nosso crescimento<br />
e nossa aprendizagem nos <strong>de</strong>paramos com alguns conceitos que nossos<br />
pais nos mostram sobre nós mesmos, a estes se acrescentam outras <strong>de</strong>finições que<br />
nós construímos baseadas na observação <strong>de</strong> outras pessoas com quem convivemos.<br />
Esses rótulos vão se agregan<strong>do</strong> a nossa imagem ao longo <strong>do</strong> tempo, e <strong>de</strong>sta forma<br />
vamos crian<strong>do</strong> um autoconceito.<br />
Nas interações ocorridas em sala <strong>de</strong> aula o aluno está constantemente realizan<strong>do</strong> observações<br />
sobre si mesmo e sobre os outros. Através <strong>de</strong>stes processos <strong>de</strong> avaliação,<br />
próprios e <strong>de</strong> terceiros, ele também vai construin<strong>do</strong> seu autoconceito. “Como a
própria palavra <strong>de</strong>nota, o autoconceito proce<strong>de</strong> <strong>de</strong> processos cognitivos. Ele é fruto<br />
da percepção que a pessoa tem <strong>de</strong> si mesma. Como to<strong>do</strong> processo <strong>de</strong> percepção, está<br />
sujeito a uma série <strong>de</strong> fatores externos e internos à própria pessoa (Moysés 2007, p.<br />
18).”<br />
“O aluno que ali está traz consigo o selo da sua origem e da suas história como um<br />
ser social. Ser que vive em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> ambiente sociocultural ao qual influencia<br />
e pelo qual é influencia<strong>do</strong>. O autoconceito acadêmico, nessa visão, passa<br />
a ser mais um ângulo, <strong>de</strong>ntre vários, passíveis <strong>de</strong> ser foca<strong>do</strong>s. Há um imenso<br />
leque <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s que po<strong>de</strong>m ser trabalha<strong>do</strong>s para além das habilida<strong>de</strong>s<br />
vinculadas à escola. Campos como os das artes, <strong>do</strong>s esportes, da cidadania e da<br />
consciência grupal oferecem um manancial inesgotável <strong>de</strong> opções <strong>de</strong> trabalho<br />
nesse setor. Experiências bem vividas em qualquer uma <strong>de</strong>ssas áreas acabam oferecen<strong>do</strong><br />
pontos <strong>de</strong> apoio reais para a auto-estima.” (Moysés 2007, 28)<br />
De acor<strong>do</strong> com Antunes (2007, 23), apoia<strong>do</strong> nos trabalhos <strong>de</strong> Carl Rogers e <strong>de</strong><br />
George Kelly (1955), a criança não nasce com a auto-estima formada através <strong>de</strong><br />
uma condição genética nem tão pouco é resulta<strong>do</strong> da inteligência ou da personalida<strong>de</strong>,<br />
a auto-estima é construída através da interiorização da imagem que pais e<br />
professores fazem da criança. “As crianças e a<strong>do</strong>lescentes estão continuamente perguntan<strong>do</strong><br />
a si mesmos ‘como estou in<strong>do</strong>?’ Elas me<strong>de</strong>m as reações verbais e não-verbais<br />
das pessoas significativas – pais e outros membros da família nos primeiros<br />
anos, e amigos, colegas e professores mais tar<strong>de</strong> – para fazer julgamentos. Os alunos<br />
comparam seu <strong>de</strong>sempenho a seus próprios padrões e ao <strong>de</strong>sempenho <strong>do</strong>s pares.”<br />
(Woofolk 2000, 78). As pessoas inseridas neste contexto atuam como “outros significativos”,<br />
uma vez que o indivíduo estabelece as relações mais significativas para<br />
a formação <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> sua auto-estima.<br />
Esta relação na aprendizagem musical em grupo se constrói <strong>de</strong> maneira semelhante,<br />
pois a aula coletiva <strong>de</strong> instrumentos musicais possui os mesmos atores, ou seja, alunos<br />
e professores, e o rendimento escolar que é da<strong>do</strong> pela evolução <strong>do</strong> aluno no <strong>de</strong>sempenho<br />
técnico no instrumento.<br />
O autoconceito não é forma<strong>do</strong> apenas a partir <strong>de</strong> uma perspectiva pessoal <strong>de</strong> julgamento,<br />
as idéias e opiniões externalizadas por outras pessoas a nosso respeito também<br />
fazem parte da construção. Moysés (2005, 26) <strong>de</strong>staca a relevância das pessoas<br />
que a criança consi<strong>de</strong>ra importantes, como pais e “outros significantes”, para a formação<br />
<strong>do</strong> autoconceito e da auto-estima. A autora afirma ainda que a partir das relações<br />
<strong>de</strong>senvolvidas com estas pessoas é que “a criança estabelece as relações mais<br />
significativas para a formação <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Nas suas mãos estão o po<strong>de</strong>r e o<br />
controle e, em conseqüência, a aprovação e a recompensa ou a reprovação e o castigo.”<br />
A influência <strong>de</strong>stas pessoas se dá por meio da importância que elas representam<br />
para o indivíduo e das reações geradas a partir da aprovação ou reprovação<br />
elaboran<strong>do</strong> um conceito positivo ou negativo <strong>de</strong> si mesmo, <strong>de</strong>sta forma, transpon<strong>do</strong><br />
estas relações para a aula <strong>de</strong> instrumento em grupo, po<strong>de</strong>-se afirmar que as atitu<strong>de</strong>s<br />
621
622<br />
e opiniões <strong>do</strong>s professores e colegas numa turma <strong>de</strong> ensino coletivo influenciam diretamente<br />
na formação <strong>do</strong> autoconceito <strong>do</strong> aluno.<br />
Sobre a formação <strong>do</strong> autoconceito, Antunes (2007, 20-21) chama a atenção para os<br />
rótulos que são impostos às crianças, que muitas vezes lhes tira a oportunida<strong>de</strong> da<br />
auto-exploração, uma vez que <strong>de</strong>positam extrema confiança nos adultos e acabam<br />
por aceitar estes rótulos sem fazer algum questionamento sobre seu próprio conceito.<br />
Contu<strong>do</strong> estes rótulos po<strong>de</strong>m estar corretos ou não, e “é por essa razão que<br />
a escola precisa ajudar toda criança a se autoconhecer, pois assim sentir-se-á apoiada<br />
em bases firmes sobre as quais construirá sua vida e saberá i<strong>de</strong>ntificar o que necessita<br />
ser muda<strong>do</strong> e como realizar essa mudança” (Antunes 2007, 21). Não basta apenas,<br />
para a escola, construir um ambiente on<strong>de</strong> alunos e professores se respeitem, é<br />
preciso também <strong>de</strong>senvolver uma postura crítica nos alunos <strong>de</strong> forma que ele possa,<br />
por si mesmo, <strong>de</strong>senvolver sua auto-imagem.<br />
De maneira consi<strong>de</strong>rável, o ensino coletivo <strong>de</strong> instrumentos musicais proporciona<br />
aos alunos a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se <strong>de</strong>pararem com a heterogeneida<strong>de</strong>, fazen<strong>do</strong> com<br />
que se confrontam com a realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> outro a to<strong>do</strong> o momento, pois cada aluno<br />
traz consigo sua história e sua cultura que é compartilhada com os <strong>de</strong>mais. Numa<br />
classe <strong>de</strong> ensino coletivo, assim como em qualquer ambiente escolar, o aluno está<br />
exposto a diversas referências que influenciam a formação <strong>do</strong> seu autoconceito,<br />
muitas vezes ele vê o professor como um referencial <strong>de</strong> i<strong>de</strong>al e o colega como um espelho,<br />
em que ele po<strong>de</strong> se projetar. Contu<strong>do</strong> Antunes (2007, 21) ressalta que “se<br />
existe coerência e congruência entre a maneira como se vê e os anseios <strong>do</strong> que <strong>de</strong>sejaria<br />
ser, apresentará um <strong>de</strong>senvolvimento equilibra<strong>do</strong> e integra<strong>do</strong>.” O autor segue<br />
enfatizan<strong>do</strong> a importância <strong>do</strong> papel <strong>do</strong>s professores <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> ensinar a criança a se<br />
conhecer e buscar seus i<strong>de</strong>ais. “Se aceitarmos e valorizarmos nossos alunos, se o consi<strong>de</strong>rarmos<br />
capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver competências e habilida<strong>de</strong>s necessárias para lidar<br />
com seus estu<strong>do</strong>s e se os julgarmos suficientemente importantes para reservarmos<br />
tempo em ouvi-los, contribuiremos para que <strong>de</strong>senvolvam padrões consistentes e<br />
realistas, sintam-se encoraja<strong>do</strong>s a não se intimidar com o fracasso e aprendam a agir<br />
<strong>de</strong> forma in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e responsável.” (Antunes 2007, 23-24).<br />
Abordan<strong>do</strong> a relação entre autoconceito e auto-estima Moysés (2007, 27) afirma<br />
que “a auto-estima representa o nível <strong>de</strong> satisfação que a pessoa sente quan<strong>do</strong> se<br />
confronta com o seu autoconceito.” A auto-estima diz respeito ao julgamento pessoal,<br />
positivo ou negativo, que a pessoa faz <strong>de</strong> si mesma, “em termos práticos, a autoestima<br />
se revela como a disposição que temos para nos ver como pessoas<br />
merece<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> respeito e capazes <strong>de</strong> enfrentar os <strong>de</strong>safios básicos da vida” (Moysés<br />
2007, 19). Guilhard (2002, 12) enfatiza diversos aspectos que contribuem para<br />
a formação da auto-estima, em especial <strong>de</strong>stacam-se aqueles que dizem respeito às<br />
interações sociais: “Auto-estima é produzida por uma história <strong>de</strong> reforçamento positivo<br />
social, em que a pessoa tem seus comportamentos reforça<strong>do</strong>s pelo outro; [. .
.] Auto-estima só se <strong>de</strong>senvolve a partir da inserção da pessoa num contexto social<br />
e esse <strong>de</strong>senvolvimento é proporcional à capacida<strong>de</strong> <strong>do</strong> meio social (<strong>do</strong>s pais, família<br />
etc.) <strong>de</strong> prover reforça<strong>do</strong>res positivos para seus membros (filhos, por ex.).”<br />
Para Humpreys (2001, 16) a auto-estima possui duas dimensões principais, são<br />
elas: o sentimento <strong>de</strong> ser ama<strong>do</strong> e o sentimento <strong>de</strong> ser capaz. Para o autor estas dimensões<br />
da auto-estima po<strong>de</strong>m ser percebidas no comportamento da criança, e cita<br />
os seguintes exemplos: a criança que <strong>de</strong>monstra um comportamento agressivo e<br />
que costuma chamar a atenção po<strong>de</strong> ter dúvidas sobre a sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser<br />
amada; a criança perfeccionista que evita o fracasso, que se irrita com os erros e com<br />
as provas escolares po<strong>de</strong> estar em dúvida sobre a sua capacida<strong>de</strong>. Humpreys acrescenta<br />
ainda que a auto-estima <strong>do</strong>s pais e professores também será refletida na formação<br />
da auto-estima da criança, “os pais e professores com auto-estima elevada<br />
vão induzir uma auto-estima elevada nas crianças, mas o inverso também é<br />
verda<strong>de</strong>iro.”<br />
Auto-estima e motivação para a aprendizagem musical<br />
Abordan<strong>do</strong> aspectos psicológicos existentes na aprendizagem musical em grupo<br />
Cruvinel (2005, 81) afirma que “na medida em que a interação grupal ocorre, o sujeito<br />
se sente realiza<strong>do</strong> por fazer parte daquele grupo, com isso, sua auto-estima aumenta,<br />
da mesma forma que sua produção e rendimento.”<br />
No campo educacional a auto-estima tem si<strong>do</strong> abordada com um fator que influencia<br />
diretamente no rendimento escolar. Schunk (1990), cita<strong>do</strong> por Senos<br />
(1997, 01), afirma que alunos que se sentem seguros das suas capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprendizagem<br />
e com sentimento geral <strong>de</strong> competência ten<strong>de</strong>m a estar mais motiva<strong>do</strong>s<br />
para as tarefas e logo obtém melhores resulta<strong>do</strong>s, fato este que contribui para a elevação<br />
<strong>de</strong> sua auto-estima, ou seja, “alunos com uma atitu<strong>de</strong> positiva face às suas tarefas<br />
escolares, têm na realida<strong>de</strong> melhores resulta<strong>do</strong>s e conseqüentemente, um<br />
autoconceito acadêmico reforça<strong>do</strong>” (Senos e Diniz 1998, 02). O oposto também se<br />
confirma no fato <strong>de</strong> que o aluno que não se sente confiante diante <strong>de</strong> suas capacida<strong>de</strong>s<br />
costuma <strong>de</strong>senvolver uma auto-estima baixa e conseqüente <strong>de</strong>smotivação<br />
para os estu<strong>do</strong>s, fato que po<strong>de</strong> ser refleti<strong>do</strong> em qualquer ambiente escolar inclusive<br />
nos estu<strong>do</strong>s musicais. Corroboran<strong>do</strong> esta idéia, Oliveira (1994, 11) afirma que alunos<br />
indisciplina<strong>do</strong>s e com rendimento escolar baixo, em geral costumam fazer um<br />
julgamento negativo a seu respeito, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se incapazes <strong>de</strong> realizar <strong>de</strong>terminadas<br />
tarefas propostas pelo professor.<br />
Verifica-se a existência <strong>de</strong> quatro classes da motivação, para a conduta humana e<br />
para a conduta <strong>de</strong> aprendizagem, abordadas por Tapia e Fita (2006, 78-79), são<br />
elas: (1) a motivação relacionada com a tarefa ou motivação intrínseca; (2) a motivação<br />
relacionada com o eu e com a auto-estima; (3) a motivação centrada na valorização<br />
social (motivação <strong>de</strong> afiliação); (4)<br />
623
624<br />
a motivação que aponta para a conquista <strong>de</strong> recompensas externas. Em especial <strong>de</strong>staca-se<br />
a classe que diz respeito ao autoconceito e a auto-estima, que interferem no<br />
processo <strong>de</strong> aprendizagem.<br />
Partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> princípio <strong>de</strong> que os alunos optam por estudar música por uma iniciativa<br />
própria, po<strong>de</strong>mos dizer que o mesmo está motiva<strong>do</strong> para a aprendizagem musical,<br />
on<strong>de</strong> cada <strong>de</strong>scoberta é um <strong>de</strong>safio que torna o estu<strong>do</strong> da música motivante.<br />
Porém, a falta <strong>de</strong> motivação para as ativida<strong>de</strong>s nas aulas <strong>de</strong> música po<strong>de</strong> ser uma indicação<br />
<strong>de</strong> baixa auto-estima. “A criança com uma auto-estima elevada tem uma<br />
curiosida<strong>de</strong> natural para o aprendiza<strong>do</strong> e se entusiasma com cada novo <strong>de</strong>safio. Ela<br />
se sente confiante em situações sociais e <strong>de</strong>safios no estu<strong>do</strong>. Por outro la<strong>do</strong> a criança<br />
com auto-estima média ou baixa per<strong>de</strong> o estímulo para apren<strong>de</strong>r; qualquer aprendiza<strong>do</strong><br />
representa um risco <strong>de</strong> erro ou fracasso, fatores que trouxeram a humilhação<br />
e a rejeição no passa<strong>do</strong>” (Humpreys 2001, 21).<br />
Para Humpreys (2001, 20) “o sucesso e o fracasso por si não têm efeito sobre a motivação<br />
para o aprendiza<strong>do</strong>, mas as reações, por parte <strong>de</strong> pais, professores e outros<br />
adultos significativos, ao fracasso e ao sucesso das crianças, têm sobre elas um efeito<br />
<strong>de</strong>vasta<strong>do</strong>r.” De acor<strong>do</strong> com este autor os pais não <strong>de</strong>vem incentivar seus filhos<br />
pelos resulta<strong>do</strong>s alcança<strong>do</strong>s, mas pelo esforço empenha<strong>do</strong>, “o que conta é o esforço,<br />
não o <strong>de</strong>sempenho. A ênfase no <strong>de</strong>sempenho po<strong>de</strong> eventualmente fazê-lo <strong>de</strong>sistir<br />
<strong>do</strong>s esforços ou levá-los a tentativas exageradas.”<br />
Observan<strong>do</strong> a aula coletiva<br />
Antes expor algumas análises realizadas a partir das observações <strong>de</strong> aulas e entrevistas<br />
com os alunos é preciso <strong>de</strong>stacar que abordar auto-estima requer certos cuida<strong>do</strong>s.<br />
Para Moysés (2007, 21) não é possível tratar a auto-estima e o autoconceito<br />
<strong>de</strong> uma forma linear, já que “a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> influências <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s interpsicológicos<br />
é muito mais ampla <strong>do</strong> que se po<strong>de</strong> supor à primeira vista.”<br />
Ao chegar à escola a criança já traz consigo o registro <strong>de</strong> uma auto-imagem, fruto<br />
das relações <strong>de</strong>senvolvidas com pais e familiares. “Nessa perspectiva histórico-social<br />
e, ao se procurar enten<strong>de</strong>r a problemática da auto-estima no âmbito educacional,<br />
não há como negar a presença das mais variadas influências, a começar pelos contextos<br />
socioeconômico e cultural. É algo que passa pelo próprio grupo, pela família<br />
e pelas interações existentes interpares, até chegar à organização da classe como<br />
grupo.” (Moysés 2007, 21-22).<br />
Diante <strong>de</strong>stas verificações, a orientação basilar <strong>de</strong>ste trabalho se <strong>de</strong>u a partir da observação<br />
da influência das relações interpessoais entre os alunos e professores <strong>de</strong><br />
uma classe <strong>de</strong> ensino coletivo sobre a auto-estima e sua interface com a aprendizagem<br />
musical.<br />
Entre os alunos há mais críticas ou elogios?<br />
É possível verificar numa aula <strong>de</strong> instrumento em grupo alunos fazen<strong>do</strong> observações
sobre o <strong>de</strong>sempenho <strong>do</strong>s outros. Essas observações po<strong>de</strong>m ser externadas através<br />
<strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>iras, da correção <strong>de</strong> erros, chaman<strong>do</strong> a atenção <strong>do</strong> professor apontan<strong>do</strong><br />
quem errou, entre outras observações. Através <strong>de</strong> certas brinca<strong>de</strong>iras a auto-estima<br />
<strong>do</strong> aluno po<strong>de</strong> ser afetada, “nascidas das relações interpessoais, as referências negativas<br />
aí presentes – ainda que em tom jocoso – vão sen<strong>do</strong> internalizadas pelo aluno,<br />
passan<strong>do</strong> a servir <strong>de</strong> ponto <strong>de</strong> referência para o seu autoconceito” (Moysés 2007,<br />
22-23). Foi pergunta<strong>do</strong> aos alunos se entre os colegas havia mais críticas ou elogios,<br />
e como eles se sentiam diante <strong>de</strong>sta situação. As respostas a este questionamento<br />
foram organizadas e expostas a seguir. 2<br />
Quadro 1 – <strong>de</strong> que maneira os alunos reagem diante das críticas ou elogios<br />
Aluno Mais elogios ou críticas? Como o aluno reage diante das críticas<br />
AEC 1, AEC 2, AEC 3, AEC 9,<br />
AEC 14 e AEC 15<br />
Críticas<br />
Indiferente, pois não se importa com<br />
opinião <strong>do</strong>s outros.<br />
AEC 6, AEC 11, AEC 12 e AEC 13 Críticas Mais motiva<strong>do</strong> para estudar<br />
AEC 4 Críticas e elogios<br />
Indiferente, pois não se importa com<br />
opinião <strong>do</strong>s outros.<br />
AEC 5 Críticas e elogios Mais motiva<strong>do</strong> para estudar<br />
AEC 7, AEC 8, AEC 10 e AEC 17 Elogios Mais motiva<strong>do</strong> para estudar<br />
Fonte: Dantas, Tais. Pesquisa <strong>de</strong> campo.<br />
Em um julgamento precipita<strong>do</strong> po<strong>de</strong>ríamos dizer que diante das críticas <strong>do</strong>s colegas<br />
o aluno se sentiria <strong>de</strong>smotiva<strong>do</strong>. Contu<strong>do</strong>, o fato <strong>de</strong> receber uma crítica para alguns<br />
po<strong>de</strong> vir a ser um motivo para motivar-se ainda mais, impulsionan<strong>do</strong> o aluno<br />
para superar as dificulda<strong>de</strong>s.<br />
A presença <strong>de</strong> outros colegas que possuem os mesmos objetivos e que estão a to<strong>do</strong><br />
momento, <strong>de</strong> alguma maneira, interagin<strong>do</strong> com os outros, é realmente o diferencial<br />
nas aulas <strong>de</strong> instrumentos musicais. Os alunos <strong>de</strong> alguma forma interferem na<br />
aprendizagem <strong>do</strong> outro seja <strong>de</strong> forma explícita ou implícita, e uma forma <strong>de</strong> interferência<br />
é realizar críticas ou elogios, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> estes fatores representarem um acréscimo<br />
ou não na motivação <strong>do</strong> outro. Embora haja mais críticas <strong>do</strong> que elogios, <strong>de</strong><br />
forma geral, as críticas entre os estudantes entrevista<strong>do</strong>s pareceram não interferir<br />
negativamente na motivação, e em alguns casos serviu como um impulso para que<br />
os estudantes se motivassem mais para alcançar melhores resulta<strong>do</strong>s nos estu<strong>do</strong>s. A<br />
percepção <strong>de</strong> críticas e elogios foi bastante diferenciada entre os alunos, ao passo que<br />
a maioria afirma haver mais críticas <strong>do</strong> que elogios no grupo, quatro alunos afirmaram<br />
que não existe nem críticas nem elogios. Mas, o que mais chama a atenção<br />
é realmente o fato os alunos não se intimidarem facilmente diante das críticas. E é<br />
neste ponto que se <strong>de</strong>staca a relevância das relações <strong>de</strong>senvolvidas em sala <strong>de</strong> aula,<br />
pois, “as experiências, os êxitos e os fracassos, a opinião que os outros têm <strong>de</strong> nós colaboram<br />
<strong>de</strong> forma consi<strong>de</strong>rável para <strong>de</strong>finir nosso autoconceito e auto-estima”<br />
(Tapia e Fita 2006, 79).<br />
625
626<br />
Percepção <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho<br />
O questionamento em relação à forma como os alunos viam seu <strong>de</strong>sempenho também<br />
teve o objetivo <strong>de</strong> se verificar a construção <strong>do</strong> autoconceito musical. O autoconceito<br />
foi aborda<strong>do</strong> sob a ótica da educação como autoconceito acadêmico, para<br />
tanto, “entenda-se por autoconceito acadêmico, aquilo que o aluno pensa <strong>de</strong> si próprio,<br />
sobre o seu <strong>de</strong>sempenho e rendimento escolar e que lhe é forneci<strong>do</strong> pelas notas<br />
que tem e pela atitu<strong>de</strong> que os professores, pais e colegas a<strong>do</strong>tam em relação a ele.”<br />
(Senos e Diniz 1998, 268).<br />
O autoconceito acadêmico e sua relação com a motivação têm si<strong>do</strong> alvo <strong>de</strong> discussão<br />
entre diversos autores, a exemplo <strong>de</strong> Senos (1997), Moysés (2007), Silva e Braga<br />
(2009). É muito <strong>de</strong>lica<strong>do</strong> afirmar se o rendimento escolar interfere na auto-estima<br />
ou se a auto-estima influencia no nível <strong>de</strong> rendimento escolar, ressalta Moysés (2007,<br />
38), <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a autora as pessoas que possuem uma percepção positiva <strong>de</strong> si<br />
mesma, se sentem mais confiantes e têm uma boa expectativa para o sucesso, acabam<br />
se sain<strong>do</strong> bem. Contu<strong>do</strong>, há sempre que se <strong>de</strong>stacar que inúmeros outros aspectos<br />
po<strong>de</strong>m influenciar tais fatores.<br />
Para verificar a construção <strong>do</strong> autoconceito, que também é construí<strong>do</strong> a partir das<br />
observações e comparações entre os alunos, foi pergunta<strong>do</strong> se eles comparavam o<br />
seu <strong>de</strong>sempenho com o <strong>de</strong>sempenho <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais colegas, e como os mesmos observavam<br />
esse <strong>de</strong>sempenho musical em relação aos <strong>de</strong>mais. As respostas foram transcritas<br />
no quadro a seguir:<br />
Quadro 2 – Observação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho musical pessoal em relação ao<br />
<strong>de</strong>sempenho <strong>do</strong>s colegas.<br />
Aluno Como você vê seu <strong>de</strong>sempenho em relação ao <strong>de</strong>sempenho <strong>do</strong>s seus colegas?<br />
AEC 1 Um bom <strong>de</strong>sempenho (porém afirma não fazer esse tipo <strong>de</strong> observação).<br />
AEC 2 Mais ou menos, bem legal pelo menos.<br />
AEC 3 Afirma não fazer esse tipo <strong>de</strong> observação.<br />
AEC 4 Afirma não fazer esse tipo <strong>de</strong> observação.<br />
AEC 5 Bem.<br />
AEC 6 Mesmo <strong>de</strong>sempenho.<br />
AEC 7 Toco bem.<br />
AEC 8 Afirma não fazer esse tipo <strong>de</strong> observação.<br />
AEC 9 Afirma não fazer esse tipo <strong>de</strong> observação.<br />
AEC 10 Com os elogios e críticas <strong>do</strong>s professores.<br />
AEC 11 Que eles apren<strong>de</strong>m melhor que eu.<br />
AEC 12 Às vezes me sinto burra comparan<strong>do</strong> com os colegas.
AEC 13 Um pouco atrasa<strong>do</strong>.<br />
AEC 14 Muito bem.<br />
AEC 15 Bem, porque nós apren<strong>de</strong>mos juntos e somos bem <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s.<br />
AEC 16<br />
Às vezes igualmente na aprendizagem e também quan<strong>do</strong> vejo alguém melhor que eu,<br />
estu<strong>do</strong> mais.<br />
AEC 17 Não respon<strong>de</strong>u.<br />
AEC 18 To<strong>do</strong>s iguais.<br />
AEC 19 Bem. Acho que em algumas músicas eu acompanho bem, e sempre tento me igualar.<br />
AEC 20 Não respon<strong>de</strong>u.<br />
AEC 21 Igual<br />
Fonte: Silva, Tais Dantas. Pesquisa <strong>de</strong> campo.<br />
A maioria <strong>do</strong>s alunos entrevista<strong>do</strong>s realiza comparações entre o seu <strong>de</strong>sempenho e<br />
o <strong>do</strong>s colegas e através das comparações vai estabelecen<strong>do</strong> elementos para verificar<br />
o seu nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho e, <strong>de</strong>ntre outras variáveis, formular um autoconceito. A<br />
partir das respostas pô<strong>de</strong>-se verificar que estas observações influenciam na formação<br />
<strong>do</strong> autoconceito, uma vez que a observação acaba por gerar parâmetros sobre<br />
os quais é construída a sua imagem como instrumentista. Assim como os alunos<br />
comparam seu <strong>de</strong>sempenho com os <strong>do</strong>s colegas, os alunos comparam seu <strong>de</strong>sempenho<br />
entre as disciplinas. Se ele tem um bom <strong>de</strong>sempenho em uma disciplina seu<br />
autoconceito para a mesma vai ser o mais positivo. Mas, as comparações que o aluno<br />
faz entre seu <strong>de</strong>sempenho e o <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais alunos da turma também influenciam na<br />
construção <strong>do</strong> autoconceito (Woofolk 2000, 78).<br />
O apoio <strong>do</strong>s pais e familiares<br />
A aprovação por parte <strong>do</strong>s pais ou “outros significantes” po<strong>de</strong> dar origem a um autoconceito<br />
positivo, assim como a <strong>de</strong>saprovação permanente po<strong>de</strong> levar a um processo<br />
<strong>de</strong> construção <strong>de</strong> um autoconceito e auto-estima negativos, sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />
levar em consi<strong>de</strong>ração outros fatores <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m social e contextual (Moysés 2007,<br />
26). Mesmo focan<strong>do</strong> as interações ocorridas na sala <strong>de</strong> aula, não se po<strong>de</strong> focar a<br />
auto-estima <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> la<strong>do</strong> o apoio da família, pois, os familiares participam <strong>de</strong><br />
forma direta e indireta <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> aprendizagem musical. Com o intuito <strong>de</strong> verificar<br />
<strong>de</strong> que forma o apoio <strong>do</strong>s pais interfere no <strong>de</strong>senvolvimento musical <strong>do</strong>s alunos,<br />
foi pergunta<strong>do</strong> aos alunos se recebiam apoio e incentivo da família para o<br />
estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> instrumento. Acreditan<strong>do</strong>-se que o apoio <strong>do</strong>s pais para as aulas <strong>de</strong> instrumento<br />
tinha gran<strong>de</strong> importância para a motivação nos estu<strong>do</strong>s e no <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>do</strong> autoconceito, estrategicamente após verificar o apoio <strong>do</strong>s pais,<br />
perguntou-se aos alunos como os mesmos se viam em relação ao <strong>de</strong>sempenho no<br />
instrumento.<br />
627
628<br />
A maior parte <strong>do</strong>s estudantes afirmam receber incentivo e apoio <strong>do</strong>s pais e familiares.<br />
Nota-se que expressão <strong>de</strong> apoio <strong>do</strong>s pais é feita <strong>de</strong> várias maneiras, através <strong>de</strong><br />
elogios, <strong>de</strong> incentivo, da atenção dada à aula <strong>de</strong> música e através da ajuda e acompanhamento<br />
nos estu<strong>do</strong>s. Da mesma forma a falta <strong>de</strong> incentivo e apoio também<br />
po<strong>de</strong> estar presente através da falta <strong>de</strong> estímulo e <strong>de</strong> atenção. Comparan<strong>do</strong>-se as<br />
duas respostas, apoio e percepção <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho, verificou-se que aqueles alunos<br />
que recebem apoio e incentivo da família, <strong>de</strong> forma geral afirmam ter um bom <strong>de</strong>sempenho.<br />
A percepção <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho para aqueles alunos que respon<strong>de</strong>ram “não”<br />
ou “mais ou menos” também reflete em parte o apoio <strong>do</strong>s pais, pois os alunos parecem<br />
não se sentirem plenamente confiante <strong>de</strong> suas capacida<strong>de</strong>s, atribuin<strong>do</strong> conceitos<br />
negativos ao seu <strong>de</strong>sempenho.<br />
Consi<strong>de</strong>rações<br />
Ao longo <strong>do</strong> trabalho evi<strong>de</strong>nciaram-se alguns fatores que influenciam a formação,<br />
manutenção e alteração da auto-estima e <strong>do</strong> autoconceito, e consequentemente a<br />
motivação no processo <strong>de</strong> aprendizagem observadas no ensino coletivo. É reconhecida<br />
a importância <strong>do</strong>s professores e <strong>do</strong>s colegas da classe <strong>de</strong> ensino coletivo<br />
como “outros significantes”. Desta maneira sabe-se que a opinião <strong>de</strong>stas pessoas<br />
que participam <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> ensino e aprendizagem tem incalculável valor. Em<br />
especial <strong>de</strong>staca-se a atuação <strong>do</strong> professor <strong>de</strong> música e suas atitu<strong>de</strong>s frente a seus<br />
alunos, bem como a maneira como interme<strong>de</strong>ia as relações entre os estudantes.<br />
Foi possível verificar que entre os colegas ten<strong>de</strong>m a ocorrer certas formas <strong>de</strong> expressão<br />
apoiadas em críticas e rótulos, que, muitas vezes, se projetam na capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> execução e no processo <strong>de</strong> aprendizagem <strong>do</strong> instrumento musical, contu<strong>do</strong> as críticas<br />
parecem não influenciar <strong>de</strong> maneira tão negativa na motivação e na auto-estima<br />
<strong>do</strong> aluno. Observou-se que quan<strong>do</strong> os alunos se <strong>de</strong>param com as críticas <strong>do</strong>s<br />
outros colegas, em geram não sofrem uma <strong>de</strong>smotivação, a reação aponta no senti<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> superar as dificulda<strong>de</strong>s e continuar o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> instrumento. Mesmo que<br />
gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong>s alunos tenha uma reação positiva ou indiferente em relação às críticas,<br />
esta observação não se esten<strong>de</strong> indiscriminadamente a to<strong>do</strong>s os alunos, portanto,<br />
ressalta-se a importância <strong>do</strong> papel <strong>do</strong> professor na mediação das relações<br />
interpessoais para que as mesmas se tornem inclusivas e acolhe<strong>do</strong>ras. A escola, principalmente<br />
através da atuação <strong>do</strong> professor, <strong>de</strong>ve ajudar o aluno a se conhecer e <strong>de</strong>senvolver<br />
os alicerces para que, diante das situações <strong>de</strong> críticas, possa <strong>de</strong>senvolver e<br />
manter <strong>de</strong> forma positiva sua auto-estima e autoconceito.<br />
Por se tratar <strong>de</strong> um trabalho volta<strong>do</strong> para a educação musical esta pesquisa <strong>de</strong>bruçou-se<br />
especialmente sobre o autoconceito acadêmico, que diz respeito à percepção<br />
<strong>do</strong> aluno em relação ao seu <strong>de</strong>sempenho escolar, e que tem ligação com a formação<br />
da auto-estima. Nas interações ocorridas na sala <strong>de</strong> aula estão presentes importantes<br />
fatores que contribuem para a formação <strong>do</strong> autoconceito <strong>do</strong> aluno. Além <strong>do</strong>s re-
sulta<strong>do</strong>s, das avaliações e da opinião <strong>do</strong> professor, entre outros aspectos, um <strong>do</strong>s fatores<br />
que contribuem para esta construção, é a comparação com os outros colegas<br />
que servem como parâmetro, uma vez que os alunos sempre estão realizan<strong>do</strong> observações<br />
entre si. Embora, muitas vezes, essa comparação possa gerar uma percepção<br />
negativa <strong>de</strong> si mesmo para aqueles que consi<strong>de</strong>ram seu <strong>de</strong>sempenho inferior<br />
em relação aos <strong>de</strong>mais, este parâmetro po<strong>de</strong> servir como um impulso, empenhan<strong>do</strong>se<br />
para obter um melhor <strong>de</strong>sempenho no instrumento, surgin<strong>do</strong> como uma forma<br />
<strong>de</strong> manutenção e proteção da auto-estima, e conseqüente influência sobre a motivação.<br />
Retoman<strong>do</strong> a afirmação <strong>de</strong> Schunk (apud Senos 1997, 01), à medida que os alunos<br />
percebem que são capazes <strong>de</strong> realizar uma tarefa com êxito, ten<strong>de</strong>m a se sentir mais<br />
motiva<strong>do</strong>s, e como conseqüência surgem melhores resulta<strong>do</strong>s, o que contribui para<br />
a elevação da auto-estima. Desta forma, o <strong>de</strong>sempenho e os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s nas<br />
aulas <strong>de</strong> música possuem relação com o <strong>de</strong>senvolvimento da auto-estima, e viceversa.<br />
De acor<strong>do</strong> com Moysés (2007, 38) “o fato <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar bom ou ruim po<strong>de</strong><br />
acabar influencian<strong>do</strong> o seu <strong>de</strong>sempenho escolar na medida em que po<strong>de</strong>rá afetar seu<br />
grau <strong>de</strong> esforço, <strong>de</strong> persistência e o seu nível <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong>.”<br />
Diante <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os atores investiga<strong>do</strong>s e <strong>de</strong> suas interações na aprendizagem coletiva,<br />
surgiu um fator <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância no processo <strong>de</strong> aprendizagem musical:<br />
o apoio e incentivo <strong>do</strong>s pais e familiares. Observou-se que existe uma forte relação<br />
entre o apoio <strong>do</strong>s pais e a percepção positiva <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho entre os alunos, aqueles<br />
alunos que recebem incentivos <strong>do</strong>s pais ten<strong>de</strong>m a afirmar possuir um bom <strong>de</strong>sempenho<br />
nas aulas <strong>de</strong> música. Observa-se que as outras pessoas com quem o aluno<br />
convive fora da sala <strong>de</strong> aula, em outros grupos sociais, não <strong>de</strong>vem ser <strong>de</strong>sprezadas<br />
uma vez que também participam <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> formação <strong>do</strong> autoconceito e da<br />
auto-estima <strong>do</strong> indivíduo. Ressalta-se que estes parâmetros não são suficientes para<br />
concluir investigações sobre auto-estima no âmbito <strong>do</strong> ensino coletivo, o tema merece<br />
enfoque em pesquisas futuras e seu aprofundamento no que diz respeito ao<br />
ensino da música.<br />
1 De acor<strong>do</strong> com Yin (2006, p. 117), a entrevista espontânea nos permite tanto obter informações<br />
sobre o fato relaciona<strong>do</strong> ao assunto, quanto obter a opinião <strong>do</strong>s entrevista<strong>do</strong>s<br />
sobre <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s eventos, e inclusive utilizar as interpretações apresentadas pelos respon<strong>de</strong>ntes<br />
como base para uma nova pesquisa. Estrategicamente, a entrevista espontânea<br />
realizada com os professores serviu como base para a investigação com os alunos. Para a obtenção<br />
<strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s junto aos alunos a entrevista focada, a partir <strong>de</strong> questões estruturadas, mostrou-se<br />
mais a<strong>de</strong>quada, uma vez que um <strong>do</strong>s propósitos <strong>de</strong>sta entrevista po<strong>de</strong> ser<br />
“simplesmente corroborar com certos fatos que você já acredita terem si<strong>do</strong> estabeleci<strong>do</strong>s (e<br />
não indagar sobre outros tópicos <strong>de</strong> natureza mais ampla e espontânea)” (Yin, 2006, p.118).<br />
Esta modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> entrevista facilitou o entendimento das questões por parte <strong>do</strong>s estudantes,<br />
proporcionan<strong>do</strong> maior agilida<strong>de</strong> e praticida<strong>de</strong> diante da pouca disponibilida<strong>de</strong> que<br />
os mesmos possuíam para respon<strong>de</strong>r aos questionamentos.<br />
629
630<br />
2To<strong>do</strong>s os alunos foram i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>s através da sigla AEC (aluno <strong>do</strong> ensino coletivo) seguin<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> número da or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> entrevista.<br />
Referências<br />
Antunes, Celso. Relações interpessoais e auto-estima: a sala <strong>de</strong> aula como um espaço <strong>do</strong> crescimento<br />
integral. Fascículo 16. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.<br />
Cruvinel, Flávia Maria. Educação musical e transformação social: uma experiência com ensino<br />
coletivo <strong>de</strong> cordas. Goiânia: Instituto Centro-Brasileiro <strong>de</strong> Cultura, 2005.<br />
Guilhardi, Hélio José. Auto-estima, autoconfiança e responsabilida<strong>de</strong>. TCR. Disponível em:<br />
http://www.terapiaporcontingencias.com.br/pdf/helio/Autoestima_conf_respons.pdf<br />
Acesso em: 26 <strong>de</strong> abr. <strong>de</strong> 2009.<br />
Humpreys, Toni. Auto-estima: a chave para a educação <strong>de</strong> seu filho. São Paulo: Groud, 2001.<br />
Moysés, Lúcia. A auto-estima se constrói passo a passo. Campinas: Papirus, 2005.<br />
Oliveira, Ivone Martins. Preconceito e autoconceito: i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e interação na sala <strong>de</strong> aula.<br />
Campinas: Papirus, 1994.<br />
Senos, Jorge. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social, auto-estima e resulta<strong>do</strong>s escolares. Análise Psicológica vol.15,<br />
no.1 (Março 1997). Disponível em: . Acesso em:<br />
22 <strong>de</strong> mar. <strong>de</strong> 2009.<br />
Senos, Jorge e Diniz, Tereza. Auto-estima, resulta<strong>do</strong>s escolares e indisciplina: Estu<strong>do</strong> exploratório<br />
numa amostra <strong>de</strong> a<strong>do</strong>lescentes. Análise Psicológica 16, no. 2 (Junho 1998).<br />
http://www.scielo.oces.mctes.pt/scielo.php?pid=S0870-82311998000200006&script=<br />
sci_arttext Acesso em 2 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2009.<br />
Tapia, Jesus Alonso e Fita, Enrique Cartula. A motivação em sala <strong>de</strong> aula: o que é e como se<br />
faz. São Paulo: Edições Loyola, 2006.<br />
Silva, Tais Dantas e Braga, Simone Marques. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social e motivação no <strong>de</strong>senvolvimento<br />
musical: relato <strong>de</strong> experiência. In: Encontro Nacional da Associação Brasileira <strong>de</strong><br />
Educação Musical, 18., 2009, Curitiba . <strong>Anais</strong> . . . Londrina. De 06 a 09 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong><br />
2009, Curitiba: ABEM, 2009, p. 697-703.<br />
Woofolk, Anita E. Psicologia da educação. Porto Alegre: Artemed, 2000.<br />
Yin, Robert K. Estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caso: planejamento e méto<strong>do</strong>s. Traduzi<strong>do</strong> por Daniel Grassi. 3. ed.<br />
Porto Alegre: Bookman, 2005.
O Espaço Musicoterapêutico<br />
como Campo <strong>do</strong> Representacional:<br />
Representações Sociais, Música e Musicoterapia<br />
Fernanda Valentin<br />
mtfernandavalentin@gmail.com<br />
Leomara Craveiro <strong>de</strong> Sá<br />
leomara.craveiro@gmail.com<br />
Magda <strong>de</strong> Miranda Clímaco<br />
magluiz@hotmail.com<br />
Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Música - UFG<br />
Resumo<br />
Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que as representações sociais regem as relações das pessoas com o<br />
mun<strong>do</strong>, interferin<strong>do</strong> em processos varia<strong>do</strong>s como a difusão e assimilação <strong>de</strong> conhecimentos<br />
e a <strong>de</strong>finição das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s pessoais e sociais, estas po<strong>de</strong>m ser compreendidas<br />
ao mesmo tempo como produto e processo <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apropriação da realida<strong>de</strong><br />
exterior ao pensamento e <strong>de</strong> elaboração psicológica e social <strong>de</strong>ssa realida<strong>de</strong>. Nesse<br />
senti<strong>do</strong>, ao introduzir a idéia <strong>de</strong> produto e processo, esta teoria aproxima-se <strong>de</strong> outras<br />
áreas e passa a servir <strong>de</strong> ferramenta para outros campos, como a Saú<strong>de</strong>, a Educação, a<br />
Arte e o Meio Ambiente. No campo das <strong>Artes</strong>, em especial na Música, a abordagem das<br />
Representações Sociais é capaz <strong>de</strong> explicar processos <strong>de</strong> criação e apreciação artísticas<br />
integran<strong>do</strong> aspectos históricos, sociais e culturais com processos psicológicos individuais,<br />
permitin<strong>do</strong> analisar o fenômeno musical em seu duplo papel, tanto como produto da<br />
realida<strong>de</strong> social quanto como parte <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong>ssa realida<strong>de</strong>. A música,<br />
a partir <strong>de</strong>sse ponto <strong>de</strong> vista, não é compreendida apenas como uma manifestação<br />
individual, fruto da mente brilhante <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s artistas, <strong>de</strong>sconectada com o universo<br />
i<strong>de</strong>ológico, sócio-histórico; não como um sintoma, um presságio, ou mesmo como<br />
um produto acaba<strong>do</strong>, mas como um elemento integrante da própria História. Ela influencia<br />
e é influenciada, ela reflete e refrata uma dada realida<strong>de</strong>, num processo <strong>de</strong> interação e<br />
recriação constante. Nessa perspectiva, preten<strong>de</strong>-se neste artigo, fruto <strong>de</strong> uma pesquisa<br />
<strong>de</strong>senvolvida no Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Música da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong><br />
Goiás, refletir como a Teoria das Representações Sociais po<strong>de</strong> vir a contribuir com a<br />
compreensão <strong>do</strong>s processos vivencia<strong>do</strong>s nos diferentes settings musicoterapêuticos, isto<br />
é, <strong>de</strong> que forma a Musicoterapia se constitui campo <strong>do</strong> representacional. Ressalta-se, no<br />
entanto, a atualida<strong>de</strong> das discussões em uma perspectiva histórica, cultural e social por<br />
parte <strong>do</strong>s teóricos da Música e da Musicoterapia. Assim, ao propor aproximações da<br />
Musicoterapia com tais teorias não se tem a pretensão <strong>de</strong> esgotar a complexida<strong>de</strong> envolvida<br />
na discussão <strong>do</strong>s temas propostos, mas sim apresentar <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s parâmetros<br />
para reflexão e associação <strong>de</strong> idéias.<br />
631
632<br />
Representações Sociais e Música<br />
Uma vez que as representações sociais regem as relações das pessoas com o mun<strong>do</strong>,<br />
interferin<strong>do</strong> em processos varia<strong>do</strong>s como a difusão e assimilação <strong>de</strong> conhecimentos<br />
e a <strong>de</strong>finição das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s pessoais e sociais, estas po<strong>de</strong>m ser abordadas ao mesmo<br />
tempo como produto e processo <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apropriação da realida<strong>de</strong> exterior<br />
ao pensamento e <strong>de</strong> elaboração psicológica e social <strong>de</strong>ssa realida<strong>de</strong>. Sen<strong>do</strong><br />
assim, ao refletir sobre representações sociais, é <strong>de</strong>vidamente apropria<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>rar<br />
os aspectos constituintes (os processos) e os constituí<strong>do</strong>s (os produtos ou conteú<strong>do</strong>s)<br />
(Dotta, 2006).<br />
Nesse senti<strong>do</strong>, ao introduzir a idéia <strong>de</strong> processo e produto, esta teorização aproxima-se<br />
<strong>de</strong> outras áreas e passa a servir <strong>de</strong> ferramenta para outros campos, como a<br />
Saú<strong>de</strong>, a Educação, a Arte e o Meio Ambiente. No campo das <strong>Artes</strong>, em especial na<br />
Música, Duarte (2002) afirma que<br />
a abordagem das Representações Sociais é um mo<strong>de</strong>lo conceitual capaz <strong>de</strong> explicar<br />
processos <strong>de</strong> criação e apreciação artísticas integran<strong>do</strong> aspectos históricos,<br />
sociais e culturais com processos psicológicos individuais. Ela nos permite<br />
analisar o fenômeno musical em seu duplo papel, tanto como produto da realida<strong>de</strong><br />
social quanto como parte <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong>ssa realida<strong>de</strong><br />
(p.126).<br />
A música, a partir <strong>de</strong>sse ponto <strong>de</strong> vista, não é compreendida apenas como uma manifestação<br />
individual, fruto da mente brilhante <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s artistas, <strong>de</strong>sconectada<br />
com o universo i<strong>de</strong>ológico, sócio-histórico. A música não é consi<strong>de</strong>rada<br />
exclusivamente como um sintoma, um presságio, ou mesmo como um produto acaba<strong>do</strong>,<br />
mas como um elemento integrante da própria História. Ela influencia e é influenciada,<br />
ela reflete e refrata uma dada realida<strong>de</strong>, “num processo <strong>de</strong> constante<br />
iteração dialética e recriação permanente” (Freire, 1992, p.7). Portanto, Clímaco<br />
(1998) assinala que,<br />
como elemento constitutivo da socieda<strong>de</strong>, sujeito à sua temporalida<strong>de</strong>, a música<br />
não apenas reflete o que existe neste social, mas é capaz <strong>de</strong> constituir o novo,<br />
lançan<strong>do</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> novas estruturas, no que diz respeito à socieda<strong>de</strong> e à<br />
própria arte. A música significa e ressignifica, estabelece uma relação intricada<br />
com o tempo e com a socieda<strong>de</strong> com a qual interage, ajudan<strong>do</strong> a constituí-los.<br />
Essa capacida<strong>de</strong> da música em incorporar a dinâmica <strong>do</strong> social é <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a sua estrutura<br />
simbólica. Assim, em suas notas, acor<strong>de</strong>s, cadências, intricadas em suas repetições,<br />
imitações, tensões-resoluções, consonâncias, a música articula senti<strong>do</strong>s e<br />
significa<strong>do</strong>s; “não um universo fixo <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>s, mas um universo <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> novas or<strong>de</strong>nações e significações” (Freire, 1994, p.128).<br />
Dessa forma, os símbolos musicais são mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> representação construí<strong>do</strong>s a partir<br />
<strong>do</strong> sonoro, mas a natureza dinâmica da música recusa qualquer fixação <strong>de</strong>finitiva<br />
<strong>de</strong> um código, oferecen<strong>do</strong> uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretações. Para Barbosa (2007)
a lógica <strong>do</strong> sonoro se pauta na sensação, e por isso a música, em uma alternância<br />
permanente entre sensação e códigos, possibilita a criação e dissolução das relações<br />
simbólicas.<br />
Como bem nota Wisnick (1989, apud Duarte e Mazzotti, 2006) sobre a natureza<br />
polissêmica da música:<br />
um grito po<strong>de</strong> ser um som habitual no pátio <strong>de</strong> uma escola e um escândalo na<br />
sala <strong>de</strong> aula ou num concerto <strong>de</strong> música clássica. Uma balada “brega” po<strong>de</strong> ser<br />
embala<strong>do</strong>ra num baile popular e chocante ou exótica numa festa burguesa.<br />
Tocar um piano <strong>de</strong>safina<strong>do</strong> po<strong>de</strong> ser uma experiência interessante no caso <strong>de</strong> um<br />
ragtime e inviável em se tratan<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma sonata <strong>de</strong> Mozart. Um cluster po<strong>de</strong><br />
causar espanto num recital tradicional, sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser tedioso e rotiniza<strong>do</strong><br />
num concerto <strong>de</strong> vanguarda acadêmica. Um show <strong>de</strong> rock po<strong>de</strong> ser um pesa<strong>de</strong>lo<br />
para os ouvi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> pai e da mãe e, no entanto, funcionar para o filho como<br />
canção <strong>de</strong> ninar no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> ruí<strong>do</strong> generaliza<strong>do</strong> (p.1288).<br />
Em ressonância com esse pensamento, Nattiez (1990, p. 34) afirma que “o simbolismo<br />
musical é polissêmico, porque quan<strong>do</strong> ouvimos música, os significa<strong>do</strong>s que ela<br />
toma, as emoções que ela evoca, são múltiplas, variadas, confusas”.<br />
Assim, a música não se restringe aos processos intelectuais, mas promove uma articulação<br />
constante entre pensamento (<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>s sistemas simbólicos) e sentimentos<br />
(experiências). Ao mobilizar as emoções, as obras musicais favorecem o<br />
contato com aquilo que já foi vivencia<strong>do</strong>, evoca lembranças e conduz aos jogos <strong>do</strong><br />
imaginário. Conforme aborda Sekeff (2002, p.20) “a música, linguagem icônica,<br />
carregan<strong>do</strong> em seus flancos o inconsciente, sempre traz uma lacuna que é preenchida<br />
pelo imaginário <strong>do</strong> receptor da escuta. O discurso musical é essencialmente<br />
multívoco, com os sons expressan<strong>do</strong> mais <strong>do</strong> que ‘dizem’”.<br />
Swanwick (2003), tratan<strong>do</strong> sobre os diferentes processos que estão articula<strong>do</strong>s com<br />
a música, ressalta o caráter simbólico das obras musicais, torna<strong>do</strong>-as capazes <strong>de</strong> compartilhar<br />
sistemas <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>s e conectar-se a outras formas simbólicas. Para ele<br />
a música não é uma anomalia curiosa, separada <strong>do</strong> resto da vida; não é só um estremecimento<br />
emocional que funciona como atalho para qualquer processo <strong>de</strong><br />
pensamento, mas uma parte integral <strong>de</strong> nosso processo cognitivo. É um caminho<br />
<strong>de</strong> conhecimento, <strong>de</strong> pensamento, <strong>de</strong> sentimento (p.22-23).<br />
Suzanne Langer (apud Lehmann, 1993) caracteriza o sistema <strong>de</strong> símbolos musicais<br />
como um <strong>do</strong>s mais po<strong>de</strong>rosos e profun<strong>do</strong>s e compara-o aos sistemas da linguagem,<br />
da literatura e da matemática. A autora afirma que <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que é imprescindível<br />
conhecer a dimensão simbólica <strong>de</strong>sses sistemas, todas as pessoas <strong>de</strong>veriam<br />
conhecer também a dimensão simbólica da música.<br />
Como dito anteriormente a música não se restringe a um universo fixo <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>s<br />
e, conforme Freire (1994) explica os símbolos musicais articulam também<br />
com latências e resíduos <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>s:<br />
633
634<br />
os signos utiliza<strong>do</strong>s na linguagem musical reportam-se à re<strong>de</strong> simbólica presente<br />
no momento histórico <strong>de</strong> sua elaboração, mas também os signos utiliza<strong>do</strong>s<br />
po<strong>de</strong>m ser investi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> outras significações que não correspon<strong>de</strong>m a esse<br />
mesmo momento histórico, assim como po<strong>de</strong>m portar, residualmente, significa<strong>do</strong>s<br />
elabora<strong>do</strong>s em momentos históricos outros, e que portanto, estão sen<strong>do</strong><br />
utiliza<strong>do</strong>s através <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> re-significação (p.128).<br />
Esta autora consi<strong>de</strong>ra, portanto, que três níveis <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>s são articula<strong>do</strong>s em<br />
uma obra musical: significa<strong>do</strong>s residuais, atuais e latentes. Os significa<strong>do</strong>s residuais,<br />
como o próprio termo indica, estão relaciona<strong>do</strong>s aos signos remanescentes <strong>de</strong> outras<br />
épocas, outros lugares. Os significa<strong>do</strong>s atuais são as or<strong>de</strong>nações que estão acontecen<strong>do</strong><br />
na atualida<strong>de</strong>, enquanto os significa<strong>do</strong>s latentes provem <strong>de</strong> esta<strong>do</strong>s não<br />
vivi<strong>do</strong>s, mas que a arte já sinaliza.<br />
A coexistência <strong>de</strong>sses significa<strong>do</strong>s, ou a concepção <strong>de</strong> que passa<strong>do</strong>, presente e futuro<br />
estão instaura<strong>do</strong>s e se entrecruzam em uma obra musical, é o que Freire<br />
(ib<strong>de</strong>m) <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> “tempo múltiplo”. Esse conceito mostra como as tramas sociais<br />
são inerentes à música e inviabiliza a redução ou simplificação <strong>do</strong> significa<strong>do</strong><br />
musical, opon<strong>do</strong>-se aos teóricos que <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ram o social, o histórico.<br />
A obra musical é construída pelas experiências, <strong>de</strong>sejos, aspirações e reflexões da<br />
vida <strong>do</strong> compositor. Nota-se, no entanto, que ainda que se queira restringir as vivências<br />
<strong>de</strong>sse indivíduo, este interage com outras pessoas e compartilha configurações<br />
simbólicas com diferentes grupos sociais, pautan<strong>do</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, o que faz<br />
com que a obra musical produzida transcenda o indivíduo e seja tanto uma expressão<br />
social, como um produto histórico.<br />
Por isso, retoman<strong>do</strong> as consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> Freire (1994) e Clímaco (1998), cada obra<br />
musical tem entranhada em si mesma o imaginário <strong>de</strong> um povo, se constituin<strong>do</strong><br />
como suporte representativo. Cada música conserva elementos residuais, atuais e<br />
latentes, bem como, carrega dimensões reais, i<strong>de</strong>ológicas e utópicas que oportunizam<br />
constantes processos <strong>de</strong> ressignificação. Nessa perspectiva, nenhuma obra musical<br />
torna-se obsoleta, ultrapassada, por lhe ser inerente a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
apropriar-se há outros tempos, espaços e significa<strong>do</strong>s.<br />
Toda essa potencialida<strong>de</strong> da música, utilizada em ambiente terapêutico por um<br />
profissional musicoterapeuta, mobiliza e revela investimentos afetivos, que po<strong>de</strong><br />
conduzir o cliente a uma maior compreensão <strong>de</strong> si mesmo e da realida<strong>de</strong> que o cerca.<br />
Assim, nos próximos itens preten<strong>de</strong>-se explorar esses aspectos da música em Musicoterapia,<br />
apresentar alguns <strong>do</strong>s princípios nortea<strong>do</strong>res <strong>de</strong>ssa terapêutica, bem<br />
como <strong>de</strong>linear algumas consi<strong>de</strong>rações acerca <strong>de</strong>sse espaço como um campo <strong>do</strong> representacional.
Musicoterapia e Representações Sociais: uma aproximação<br />
A trajetória construída até aqui oferece apontamentos <strong>de</strong> como a Teoria das Representações<br />
Sociais po<strong>de</strong> vir a contribuir com a compreensão <strong>do</strong>s processos vivencia<strong>do</strong>s<br />
nos diferentes settings musicoterapêuticos, isto é, <strong>de</strong> que forma a<br />
Musicoterapia se constitui campo <strong>do</strong> representacional. Ressalta-se, no entanto, a<br />
atualida<strong>de</strong> das discussões em uma perspectiva histórica, cultural e social por parte<br />
<strong>do</strong>s teóricos da Música e da Musicoterapia, que vêm gradualmente participan<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> eventos científicos com apresentações <strong>de</strong> trabalhos envolven<strong>do</strong> teorias das representações<br />
sociais nas áreas da História Cultural e da Psicologia Social. Assim,<br />
nesta pesquisa ao propor aproximações da Musicoterapia com tais teorias não se<br />
tem a pretensão <strong>de</strong> esgotar a complexida<strong>de</strong> envolvida na discussão <strong>do</strong>s temas propostos,<br />
mas sim apresentar <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s parâmetros para reflexão e associação <strong>de</strong><br />
idéias.<br />
Nesse senti<strong>do</strong>, quatro pontos foram i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>s e terão seus <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos<br />
apresenta<strong>do</strong>s a seguir. São eles: 1) as representações sociais auxiliam o musicoterapeuta<br />
a compreen<strong>de</strong>r o cliente <strong>de</strong> forma mais abrangente, como sujeito social, histórico<br />
e cultural; 2) a musicoterapia po<strong>de</strong> facilitar mudanças nas representações<br />
sociais <strong>de</strong> um indivíduo ou <strong>de</strong> um grupo; 3) o musicoterapeuta <strong>de</strong>ve compreen<strong>de</strong>r<br />
as suas próprias representações sociais; 4) as representações sociais permitem valorizar<br />
a dimensão social sem anular a dimensão individual, viabilizan<strong>do</strong> uma terapêutica<br />
imbricada com a cidadania, com a ética e a política.<br />
González Rey (2007) nota que as representações sociais e os diversos discursos hegemônicos<br />
no interior da socieda<strong>de</strong> aparecem como senti<strong>do</strong>s subjetivos nas configurações<br />
<strong>do</strong>s clientes atendi<strong>do</strong>s e possuem um forte peso na organização <strong>do</strong>s<br />
problemas que surgem na terapia. Como exemplo, o autor mostra que valores regi<strong>do</strong>s<br />
por dinheiro, falta <strong>de</strong> vínculos e <strong>de</strong>spersonalização <strong>do</strong> cotidiano são alguns <strong>do</strong>s<br />
elementos provi<strong>do</strong>s pelo sistema no qual a socieda<strong>de</strong> atual está estruturada, o capitalismo.<br />
Estes, então, facilitam senti<strong>do</strong>s subjetivos associa<strong>do</strong>s à vivência da solidão,<br />
<strong>do</strong> vazio. Ao pensar nos educa<strong>do</strong>res sociais, sujeitos <strong>de</strong>sta pesquisa, po<strong>de</strong>-se pon<strong>de</strong>rar<br />
que o contexto <strong>de</strong> violência e mudanças constantes, possibilita senti<strong>do</strong>s subjetivos<br />
associa<strong>do</strong>s à ansieda<strong>de</strong>, à incerteza, à <strong>de</strong>sconfiança e ao me<strong>do</strong>.<br />
Assim, primeiramente observa-se que o indivíduo, ao iniciar um tratamento musicoterapêutico,<br />
vem investi<strong>do</strong> <strong>de</strong> suas representações sociais. Portanto, a i<strong>de</strong>ntificação<br />
<strong>de</strong>ssas representações permite ao musicoterapeuta compreen<strong>de</strong>r o cliente <strong>de</strong><br />
forma mais abrangente, perceber sua condição <strong>de</strong> sujeito social, histórico e cultural,<br />
seus processos complexos e constitutivos.<br />
Valen<strong>do</strong>-se <strong>de</strong>sse pensamento, Schapira (2005) comenta que o estu<strong>do</strong> das representações<br />
sociais é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância para compreen<strong>de</strong>r a construção, estruturação<br />
e a dinâmica <strong>do</strong>s subgrupos sociais aos quais pertencem os clientes da<br />
Musicoterapia.<br />
635
636<br />
Barcellos e Santos (1996) mostram ainda como a cultura se estabelece como uma<br />
articulação, uma trama <strong>de</strong> representações sociais:<br />
a influência da cultura, <strong>do</strong> social se faz sentir, não só no compositor, mas também<br />
na forma <strong>de</strong> cada ouvinte, ou mesmo executante, <strong>de</strong>codificar ou atribuir<br />
senti<strong>do</strong>s a música. (. . .) Não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar o contexto social que<br />
se <strong>de</strong>senvolvem as vivências humanas e nem preten<strong>de</strong>r caracterizá-las como únicas<br />
e puramente individuais. (. . .) A cultura condiciona as relações <strong>de</strong> cada indivíduo<br />
com a natureza e com os outros homens, não se po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>, a rigor, falar,<br />
por exemplo, <strong>de</strong> uma apreensão da música puramente pessoal, mas sempre <strong>de</strong><br />
uma imbricação entre o biográfico e o social. O indivíduo escuta com o ouvi<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> sua cultura, <strong>de</strong> sua época. (p.14-16)<br />
Então, diferentemente <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo reducionista que, orienta<strong>do</strong> em uma única<br />
direção, enfoca o aspecto biológico, categorizan<strong>do</strong> o cliente em uma patologia e<br />
<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o contexto em que este está inseri<strong>do</strong>, pauta-se na concepção <strong>de</strong><br />
que os transtornos individuais estão intimamente vincula<strong>do</strong>s às configurações<br />
subjetivas sociais. Assim, enten<strong>de</strong>r essas configurações, e a musicalida<strong>de</strong> que emana<br />
<strong>de</strong>stas, oportuniza novos caminhos para o tratamento musicoterapêutico <strong>de</strong>sses<br />
transtornos.<br />
Sen<strong>do</strong> a música ferramenta chave <strong>do</strong> processo musicoterapêutico, um elemento<br />
constitutivo da socieda<strong>de</strong>, capaz <strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nciar representações sociais, observa-se<br />
que a Musicoterapia po<strong>de</strong> facilitar mudanças nas representações <strong>do</strong> cliente ou <strong>do</strong><br />
grupo atendi<strong>do</strong>. Assim, as experiências musicais musicoterapêuticas favorecem a<br />
percepção das representações sociais vigentes e como bem salienta Clímaco (1998)<br />
pela dinamicida<strong>de</strong> da música, há a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> constituir o novo, lançar possibilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> novas estruturas, ressignificar. Dessa forma, a Musicoterapia torna-se<br />
um campo <strong>do</strong> representacional, isto é, há um <strong>de</strong>svelamento das representações sociais<br />
sobre fazeres musicais, on<strong>de</strong> a música se constitui como “um meio <strong>de</strong> criar e representar<br />
novas categorias <strong>de</strong> experiências não referenciais” (Ruud, 1990, p. 91).<br />
Duarte e Mazzotti (2006, p. 1292) afirmam que<br />
diante <strong>de</strong> algum fenômeno <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>, <strong>de</strong> toda ocorrência musical nova ou<br />
inesperada, <strong>de</strong> algo perceptível, mas fora <strong>do</strong> “mo<strong>de</strong>lo” partilha<strong>do</strong> por nós em<br />
nossos grupos reflexivos, reagimos por aproximação, procuran<strong>do</strong> elementos já<br />
presentes no mesmo mo<strong>de</strong>lo que construímos anteriormente. E o estranhamento<br />
<strong>de</strong> algum elemento não-assimilável po<strong>de</strong> ser o ponto <strong>de</strong> partida para uma<br />
reestruturação <strong>de</strong> nossas concepções ou representações.<br />
Ora, quan<strong>do</strong> se elege uma tonalida<strong>de</strong> para construir certa música, ao formar uma<br />
seqüência sucessiva ou simultânea <strong>de</strong> sons, ao propor um ritmo mais acelera<strong>do</strong>, ca<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong>,<br />
o cliente mostra a sua visão <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>. Mesmo que essa seleção seja parcial,<br />
não é ao acaso, uma vez que os elementos seleciona<strong>do</strong>s são os que “coinci<strong>de</strong>m”<br />
com o senti<strong>do</strong> que o indivíduo po<strong>de</strong> ou quer atribuir ao som (Duarte e Mazzotti,<br />
2006). Como afirma Schapira (2007), os elementos musicais são equivalentes sim-
ólicos <strong>de</strong> um acontecer não musical, e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong>s processos musicais<br />
se assemelham aos processos psíquicos, o que <strong>de</strong>monstra que no microcosmo <strong>do</strong>s<br />
encontros musicoterapêuticos ocorrem a reprodução <strong>do</strong> macrocosmo da vida <strong>do</strong>s<br />
clientes.<br />
Conten<strong>do</strong> em si significa<strong>do</strong>s residuais, atuais e latentes, as obras musicais trazidas<br />
ou produzidas pelo cliente permitem ao musicoterapeuta trabalhar presente, passa<strong>do</strong><br />
e futuro, em um processo <strong>de</strong> retomar os conteú<strong>do</strong>s que foram vivi<strong>do</strong>s, trazêlos<br />
para o ‘aqui – agora’ e sinalizar o que está por vir, através <strong>de</strong> uma leitura e análise<br />
das estruturas musicais.<br />
O fato, no entanto, <strong>de</strong> a Musicoterapia a<strong>do</strong>tar um conceito mais abrangente <strong>de</strong><br />
música, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a utilização <strong>de</strong> qualquer objeto sonoro1, não justifica a utilização<br />
da música <strong>de</strong> forma aleatória e <strong>de</strong>scuidada por parte <strong>do</strong> musicoterapeuta, mas<br />
sim exige um aguçamento <strong>do</strong> senso crítico sobre as obras musicais emergentes no<br />
setting, incluin<strong>do</strong> também os fenômenos da massificação cultural e da globalização.<br />
Milleco (1997) afirma que a Indústria Cultural, termo postula<strong>do</strong> por A<strong>do</strong>rno e<br />
Hokheimer (1948), favorece a construção <strong>de</strong> uma “pseu<strong>do</strong>-i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sonora cultural”,<br />
pautada pelo modismo e pela música feita para o consumo em gran<strong>de</strong> escala.<br />
Ele ainda pontua que, como o produto musical é caracteriza<strong>do</strong> pela repetição e utilização<br />
<strong>de</strong> uma mesma estrutura musical, travestida com novas roupagens, muitas<br />
vezes limita a escolha <strong>do</strong>s ouvintes com a imposição <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo estético. Para<br />
Santos (2002),<br />
a i<strong>de</strong>ologia <strong>de</strong>sta indústria promove o conformismo que substitui a consciência,<br />
crian<strong>do</strong> <strong>de</strong>pendência e servidão, manipulan<strong>do</strong> gosto e produzin<strong>do</strong> ao mesmo<br />
tempo uma aparência <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, com o que arrasa o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um<br />
senso e <strong>de</strong> uma prática críticos (p.57).<br />
Dessa forma, acredita-se que o musicoterapeuta <strong>de</strong>ve estar atento aos processos <strong>de</strong><br />
hibridação e também à dimensão i<strong>de</strong>ológica das produções musicais contemporâneas.<br />
A hibridação, para Canclini (2002, p.2), são “os processos socioculturais em<br />
que estruturas e práticas, que existiam <strong>de</strong> forma separada, se combinam para gerar<br />
novas estruturas, objetos ou práticas”. Po<strong>de</strong>-se pensar, ainda, na hibridação como<br />
o cruzamento das representações sociais. Nesse senti<strong>do</strong>, as músicas presentes no<br />
setting e a própria musicalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> cliente po<strong>de</strong>m partir das misturas e fusões <strong>do</strong>s<br />
diferentes grupos sociais nos quais ele está inseri<strong>do</strong> ou serem provenientes <strong>de</strong> imposições<br />
i<strong>de</strong>ológicas, <strong>de</strong> produtos veicula<strong>do</strong>s pela mídia <strong>de</strong>sarticula<strong>do</strong>s <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />
Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a perspectiva apresentada por Milleco (1997), surge o questionamento:<br />
o setting musicoterapêutico po<strong>de</strong>ria tornar-se um espaço para promover<br />
novas referências estéticas aos clientes? O autor comenta que a musicoterapia caracteriza-se<br />
pela possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transitar em diferentes campos da cultura, construin<strong>do</strong><br />
um senso estético e crítico, aberto a diversas formas <strong>de</strong> expressão musical. Muitas vezes es-<br />
637
638<br />
taremos reman<strong>do</strong> contra a correnteza da massificação, transgredin<strong>do</strong> o instituí<strong>do</strong>, preservan<strong>do</strong><br />
a diversida<strong>de</strong> cultural, construin<strong>do</strong> um <strong>de</strong>vir diferencial, favorecen<strong>do</strong> uma percepção/expressão<br />
mais atenta a arte musical (Milleco, 1997, p.34)<br />
Essa diversida<strong>de</strong> cultural é marcante no setting muscicoterapêutico, caben<strong>do</strong>, algumas<br />
vezes, ao musicoterapeuta seguir a correnteza da massificação, utilizan<strong>do</strong><br />
“músicas <strong>de</strong> massa” para acessar o cliente, e ainda articulan<strong>do</strong> elementos musicais<br />
antagônicos e contraditórios.<br />
Acredita-se, também, que essa visão crítica <strong>do</strong> musicoterapeuta <strong>de</strong>ve se esten<strong>de</strong>r a<br />
si mesmo. Conhecer as suas próprias representações sociais, isto é, as representações<br />
que foram construídas em conjunto com os grupos sociais que o cercam po<strong>de</strong><br />
auxiliá-lo na compreensão <strong>de</strong> processos como a transferência e contratransferência2,<br />
bem como a repensar os entraves na relação terapêutica como, por exemplo, o preconceito.<br />
Conhecer suas representações <strong>de</strong> música, <strong>de</strong> musicoterapia, <strong>de</strong> homem, que foram<br />
moldadas em sua formação acadêmica e profissional, articuladas com os valores e<br />
crenças familiares e que sofrem influências <strong>do</strong>s grupos religiosos ao qual po<strong>de</strong> estar<br />
inseri<strong>do</strong>, favorece novas percepções da forma com que o musicoterapeuta constitui<br />
a realida<strong>de</strong>.<br />
Trata-se, portanto, <strong>de</strong> reconhecer a existência <strong>de</strong> um imaginário social, ou seja, uma<br />
instância por on<strong>de</strong> circulam os mitos, as crenças, os símbolos, as i<strong>de</strong>ologias e todas<br />
as idéias e concepções que se relacionam ao mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> viver <strong>de</strong> uma coletivida<strong>de</strong> e<br />
proporcionar ainda reflexão sobre os arquétipos, “elementos constitutivos <strong>do</strong> imaginário<br />
que atravessam os tempos, assinalan<strong>do</strong> formas <strong>de</strong> pensar e construir representações<br />
sobre o mun<strong>do</strong>” (Pesavento, 2003, p. 45).<br />
Dessa forma, o musicoterapeuta <strong>de</strong>ve atentar-se para o fato <strong>de</strong> suas compreensões<br />
sobre os fenômenos musicoterapêuticos, apesar <strong>de</strong> se pautarem em estu<strong>do</strong>s científicos,<br />
serem também construções imaginárias da realida<strong>de</strong>. Os fatos vivencia<strong>do</strong>s no<br />
setting são objetos <strong>de</strong> múltiplas versões e por isso, jamais serão constituí<strong>do</strong>s por uma<br />
verda<strong>de</strong> única ou absoluta, mas por várias verda<strong>de</strong>s. É no encontro entre cliente e<br />
musicoterapeuta, media<strong>do</strong> pela música <strong>de</strong> um e <strong>de</strong> outro, que coexiste a possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> vivenciar reconstruções imaginárias. Cabe, no entanto, ao musicoterapeuta<br />
ter o cuida<strong>do</strong> para não sobrepor as suas representações sociais às <strong>do</strong> cliente/grupo.<br />
Quanto a isso, Queiroz (2003) ressalta que,<br />
a música que vem <strong>do</strong> terapeuta, conten<strong>do</strong> seu gosto musical, suas afinida<strong>de</strong>s estéticas,<br />
é ingrediente indispensável, na medida em que esta é presença <strong>do</strong> terapeuta<br />
no fazer musical, sua busca <strong>de</strong> contato. (. . .) Os valores e conteú<strong>do</strong>s<br />
musicais <strong>do</strong> terapeuta são peças <strong>do</strong> processo musicoterápico (p.69).<br />
Assim, a musicoterapia configura-se como uma terapêutica <strong>do</strong> contato, <strong>do</strong> encontro.<br />
Musicoterapeuta, cliente e música colocam-se entre espaço e tempo, buscan<strong>do</strong><br />
integrar-se um ao outro e ao mun<strong>do</strong>, em uma totalida<strong>de</strong> consciente. Por isso, con-
forme ressalta González Rey (2007, p.164), a terapia está sempre envolvida em um<br />
espaço <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong> social.<br />
A ênfase na dimensão social em musicoterapia se faz cada vez mais necessária, pois<br />
como analisa Jovchelovitch (1995),<br />
em tempos que nos confrontam continuamente com críticas pós-mo<strong>de</strong>rnas que<br />
elogiam a multiplicação <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>s, a diferença e a supremacia da intimida<strong>de</strong><br />
apenas e unicamente em relação a si mesmos, on<strong>de</strong> a noção <strong>de</strong> limite se<br />
apresentam freqüentemente como autoritárias ou como ilusões perdidas da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,<br />
eu acredito ser necessário reafirmar que a produção <strong>de</strong> significação e<br />
da diferença só é possível em relação às fronteiras <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> outros (p.82).<br />
Santos (2002), no entanto, traça uma importante consi<strong>de</strong>ração acerca <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
contexto social em musicoterapia. Para ele,<br />
embora não se possa dizer que a preocupação com os problemas sociais <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong><br />
estar presente entre os musicoterapeutas <strong>do</strong> Brasil, cabe <strong>de</strong>stacar que o estu<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>stas questões não ocupa propriamente um lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque no nosso <strong>de</strong>bate<br />
teórico. Even Ruud já i<strong>de</strong>ntificava, em 1990, o <strong>de</strong>scaso quanto ao contexto social<br />
maior como uma característica das <strong>de</strong>finições <strong>de</strong> musicoterapia, <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong><br />
geral. Caberia questionar se o <strong>de</strong>scaso com o contexto social se esten<strong>de</strong> ao próprio<br />
mo<strong>do</strong> como consi<strong>de</strong>ramos a música, isto é, se a nossa análise <strong>do</strong> fenômeno<br />
musical não estaria sen<strong>do</strong> prejudicada por uma certa falta <strong>de</strong> perspectiva social<br />
na nossas abordagens (p.59).<br />
O autor conclui que ainda são poucas as abordagens da música no campo da musicoterapia<br />
que possui uma perspectiva social mais ampla, que oportunize uma compreensão<br />
mais aprofundada <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s da música que emergem no setting<br />
musicoterapêutico. Frente ao exposto, observa-se que a Teoria das Representações<br />
Sociais permite valorizar a dimensão social sem anular a dimensão individual e que<br />
conexões entre representações sociais e musicoterapia oportunizam uma terapêutica<br />
imbricada com a cidadania, a ética e a política.<br />
Nota-se ainda que o “social” em musicoterapia, muitas vezes, é entendi<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma<br />
restrita, como um campo <strong>de</strong> atuação, atendimentos a pessoas menos favorecidas,<br />
ou intervenções diretas na comunida<strong>de</strong>. Faz-se necessário uma ampliação <strong>de</strong>ste conceito,<br />
pois em concordância ao pensamento <strong>de</strong> Vigostky (1999),<br />
a arte é o social em nós, e, se o seu efeito se processa em um indivíduo isola<strong>do</strong>,<br />
isto não significa, <strong>de</strong> maneira nenhuma, que as suas raízes e essência sejam individuais.<br />
É muito ingênuo interpretar o social apenas como coletivo, como existência<br />
<strong>de</strong> uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas. O social existe até on<strong>de</strong> há apenas um<br />
homem e as suas emoções pessoais (p.315).<br />
Dessa forma, seguin<strong>do</strong> um raciocínio lógico, se a música constitui e é constituída<br />
pela socieda<strong>de</strong>, e esta é o elemento primordial da Musicoterapia, o social é inseparável<br />
a esta terapêutica. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> atendimento (individual ou grupal),<br />
intervenção ou mo<strong>de</strong>lo/abordagem seguida, o social se faz presente em<br />
Musicoterapia.<br />
639
640<br />
Para González Rey (2007), no entanto, consi<strong>de</strong>rar o social no campo da terapia,<br />
não significa acreditar que todas as questões complexas <strong>de</strong>sta or<strong>de</strong>m po<strong>de</strong>m ser solucionadas.<br />
Mas, que a ação terapêutica po<strong>de</strong> gerar alternativas <strong>de</strong> subjetivação que<br />
permitam opções <strong>de</strong> produção subjetiva nos diferentes espaços sociais, capazes <strong>de</strong><br />
melhorar as suas próprias dinâmicas, assim como os esta<strong>do</strong>s subjetivos das pessoas<br />
envolvidas, isto é, melhorar o <strong>de</strong>senvolvimento das relações intra e interpessoais.<br />
Assim acredita-se que a musicoterapia, comprometida com as relações entre música<br />
e socieda<strong>de</strong>, possa vir a contribuir com “a construção <strong>de</strong> vidas individuais que sustentem<br />
em si mesmas as conseqüências plenas <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> que as pessoas vivem umas<br />
com as outras e não existe vida humana sem a presença <strong>de</strong> outros seres humanos”<br />
(Jovchelovitch, 1995, p.83), <strong>de</strong> forma que representações sociais, subjetivida<strong>de</strong> e<br />
música sejam um continnum em um setting musicoterapêutico.<br />
1 De acor<strong>do</strong> com Schaeffer (1993), objeto sonoro é to<strong>do</strong> fenômeno sonoro que é percebi<strong>do</strong><br />
com um conjunto, como um to<strong>do</strong> coerente, que é ouvi<strong>do</strong> por meio <strong>de</strong> uma escuta reduzida<br />
que o enfoque por si mesmo, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> sua procedência ou <strong>de</strong> seu significa<strong>do</strong>.<br />
2 Transferência, para Benenzon, (1998) é a atitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> cliente <strong>de</strong> repetir, com a figura <strong>do</strong><br />
musicoterapeuta, os mesmos episódios ocorri<strong>do</strong>s primitivamente na sua história, na sua relação<br />
materno, parterno-infantil, ou seja, colocar no presente o passa<strong>do</strong>. A contratransferência<br />
é o sentir <strong>do</strong> musicoterapeuta <strong>do</strong> impacto que a transferência produziu no seu<br />
inconsciente.<br />
Referências<br />
Barcellos, L.R.; Santos, M.A.C. A Natureza Polissêmica da Música e a Musicoterapia. Revista<br />
Brasileira <strong>de</strong> Musicoterapia 1 nº1, p. 5-18, 1996.<br />
Benenzon, R. La Nueva Musicoterapia. Argentina: Editora Lumen, 1998.<br />
Canclini, N. Noticias recientes sobre la hibridación In: Arte Latina, 2000, Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
<strong>Anais</strong> eletrônicos. . . Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2000. Disponível em: http://acd.ufrj.br/paccpartelatina/nestor.html.<br />
Acesso em: 19 jan. 2010.<br />
Clímaco, M. M. Um moteto <strong>de</strong> Guillaume Machaut – estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caso com vistas a uma abordagem<br />
da forma musical como um elemento constitutivo <strong>de</strong> trama social. Dissertação<br />
(Mestra<strong>do</strong> em Música) Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Goiás, Goiânia, 1998.<br />
Dotta, L. T. Representações Sociais <strong>do</strong> ser professor. Campinas: Editora Alínea, 2006.<br />
Duarte, M. A.; Mazzotti, T.B. Representações sociais da música: aliadas ou limites <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
das práticas pedagógicas em música? Educ. Soc. 27, n. 97 (Dec. 2006).<br />
Freire, V. L. A história da música em questão - uma reflexão meto<strong>do</strong>lógica. In: Fundamentos<br />
da educação musical 2. Porto Alegre: CPG música/UFRGS, p.113-135, 1994.<br />
González Rey, F. Psicoterapia, subjetivida<strong>de</strong> e pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. São Paulo: Thomson, 2007.<br />
Jovchelovitch, S. Viven<strong>do</strong> a vida com os outros: intersubjetivida<strong>de</strong>, espaço público e Representações<br />
Sociais. In: Guareschi, P.; Jovchelovitch, S. (org.). Textos em representação social.<br />
Petrópolis: Vozes, 1995. p.63-88.
Lehmann, P. Panorama <strong>de</strong> la educación musical en el mun<strong>do</strong>. In: La educación musical frente<br />
al futuro. Buenos Aires: Guadalupe, 1993.<br />
Milleco, R. P. Ruí<strong>do</strong>s da Massificação na Construção da I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> Sonora Cultural. Revista<br />
Brasileira <strong>de</strong> Musicoterapia, II, n.3, p. 5-16, 1997.<br />
Nattiez, J. Music and Discourse: toward a semiology of music. New Jersey: Princeton University<br />
Press, 1990 (Tradução <strong>de</strong> Ilza Nogueira).<br />
Pesavento, S. J. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003<br />
Queiroz, J. P. G. Aspectos da Musicalida<strong>de</strong> e da Música <strong>de</strong> Paul Nor<strong>do</strong>ff – e suas implicações<br />
na prática clínica musicoterapêutica. São Paulo: Editora Apontamentos, 2003.<br />
Ruud, E. Caminhos da Musicoterapia. São Paulo: Summus, 1990.<br />
Santos, M.A.C. Sobre senti<strong>do</strong>s e significa<strong>do</strong>s da música e da musicoterapia. Revista Brasileira<br />
<strong>de</strong> Musicoterapia V, nº6, Rio <strong>de</strong> Janeiro: UBAM, 2002, 52-61.<br />
Schaeffer, P. Trata<strong>do</strong> <strong>do</strong>s objetos musicais: ensaio interdisciplinar. Brasília: Editora Universida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Brasília, 1993.<br />
Schapira, D.; Ferrari, K.; Sánchez, V. Hugo, M. Musicoterapia Abordagem Plurimodal. Argentina:<br />
ADIM Ediciones, 2007.<br />
Sekeff, M. L. Da música: seus usos e recursos. São Paulo: Unesp, 2002.<br />
Swanwick, K. Ensinan<strong>do</strong> música musicalmente. Tradução <strong>de</strong> Alda Oliveira e Cristina Tourinho.<br />
São Paulo: Mo<strong>de</strong>rna, 2003.<br />
Vigostky, L. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999,<br />
641
642<br />
I<strong>do</strong>sos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes versus I<strong>do</strong>sos institucionaliza<strong>do</strong>s:<br />
as diferenças na capacida<strong>de</strong> cognitiva<br />
entre grupos da terceira ida<strong>de</strong><br />
Mackely Ribeiro Borges<br />
mackelyrb@gmail.com<br />
Núcleo <strong>de</strong> Música, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Sergipe<br />
Resumo<br />
Este artigo trata das diferenças na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aprendizagem e na qualida<strong>de</strong> da memória<br />
na educação musical com a terceira ida<strong>de</strong> através <strong>de</strong> um trabalho <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong><br />
com o Grupo da Terceira Ida<strong>de</strong> Reviven<strong>do</strong> e no Abrigo D. Pedro II localiza<strong>do</strong>s em Salva<strong>do</strong>r-<br />
BA. Durante a pesquisa nos <strong>de</strong>paramos com duas realida<strong>de</strong>s vividas pelos i<strong>do</strong>sos:<br />
a primeira formada por pessoas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes financeiramente, geralmente aposenta<strong>do</strong>s<br />
que utilizam o seu tempo livre para a realização <strong>de</strong> novos projetos <strong>de</strong> vida como a<br />
socialização e lazer nos grupos <strong>de</strong> terceira ida<strong>de</strong> e o aprimoramento <strong>do</strong>s conhecimentos<br />
nas faculda<strong>de</strong>s da terceira ida<strong>de</strong>; e a segunda realida<strong>de</strong> é o que chamamos <strong>de</strong> “terceira<br />
ida<strong>de</strong> institucionalizada” formada por i<strong>do</strong>sos que vivem em abrigos e asilos. O<br />
trabalho <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> no Grupo da Terceira Ida<strong>de</strong> Reviven<strong>do</strong> e no Abrigo D. Pedro II tratou-se<br />
<strong>de</strong> uma Oficina <strong>de</strong> Música com Canto Coral fundamenta<strong>do</strong> na abordagem teórica<br />
<strong>de</strong> Swanwick com a adaptação <strong>de</strong> Nagy (1997), no qual a vivência musical é baseada<br />
no mo<strong>de</strong>lo CLATEC (Construção <strong>de</strong> Instrumentos, Literatura Musical, Apreciação Musical,<br />
Técnica, Execução Musical e Composição Musical). Entre os i<strong>do</strong>sos <strong>do</strong> Abrigo D.<br />
Pedro II, foram observadas algumas dificulda<strong>de</strong>s associadas a outros fatores que não os<br />
da velhice como a falta <strong>de</strong> motivação em conseqüência da <strong>de</strong>pressão e da baixa estima,<br />
a falta <strong>de</strong> uma vivência musical sistematizada, orientada e dirigida nas fases anteriores da<br />
vida e, em muitos casos, o baixo nível <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong>. No entanto, apesar <strong>de</strong>stas dificulda<strong>de</strong>s<br />
e das diferentes realida<strong>de</strong>s vividas pelos <strong>do</strong>is grupos, os i<strong>do</strong>sos adquirem conhecimento<br />
musical, principalmente, quan<strong>do</strong> os conteú<strong>do</strong>s estão volta<strong>do</strong>s ao resgate das<br />
experiências musicais <strong>do</strong>s alunos e ministra<strong>do</strong>s sempre <strong>de</strong> forma prazerosa, proporcionan<strong>do</strong><br />
uma prática musical nova e significativa.<br />
O envelhecimento é um processo natural na vida <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o ser humano. Sem dúvida,<br />
a velhice é o presente <strong>de</strong> alguns e o futuro <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s. Afinal, a partir <strong>de</strong> quan<strong>do</strong><br />
o ser humano passa a pertencer à terceira ida<strong>de</strong>1? Em 1985, a Organização das Nações<br />
Unidas (ONU) <strong>de</strong>finiu a população i<strong>do</strong>sa como sen<strong>do</strong> aquela com ida<strong>de</strong> a partir<br />
<strong>do</strong>s 60 anos nos países em <strong>de</strong>senvolvimento e 65 anos em países <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s.<br />
A Organização Mundial da Saú<strong>de</strong> (OMS) ainda divi<strong>de</strong> a terceira ida<strong>de</strong> em três grupos:<br />
jovens i<strong>do</strong>sos (60 a 69 anos); meio i<strong>do</strong>sos (70 a 79 anos) e i<strong>do</strong>sos velhos (a partir<br />
<strong>do</strong>s 80 anos) (Mascaro, 1997: 60).<br />
Em paralelo a “era da informação e da internet”, o mun<strong>do</strong> vive a “era <strong>do</strong> envelhecimento.<br />
Da<strong>do</strong>s da Organização das Nações Unidas revelam que em 1975 existiam<br />
350 milhões <strong>de</strong> i<strong>do</strong>sos, passan<strong>do</strong> para 600 milhões em 2000 e a previsão para o ano
<strong>de</strong> 2025 é <strong>de</strong> 1,2 bilhões <strong>de</strong> pessoas <strong>de</strong> 60 anos ou mais. O crescimento da população<br />
i<strong>do</strong>sa também é uma realida<strong>de</strong> no Brasil. Da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> IBGE confirmam que em<br />
1996, a proporção <strong>de</strong> i<strong>do</strong>sos era <strong>de</strong> 16 i<strong>do</strong>sos para cada 100 crianças passan<strong>do</strong> em<br />
2000 para 30 i<strong>do</strong>sos para cada 100 crianças e, em 2025, o Brasil será o sexto país <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> com o maior número <strong>de</strong> pessoas i<strong>do</strong>sas2. Muitos são os fatores que provocaram<br />
o aumento <strong>de</strong>sta população. No Brasil, <strong>de</strong>stacam-se a expansão <strong>do</strong> saneamento<br />
básico, especialmente nas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s, os programas <strong>de</strong> controle da<br />
natalida<strong>de</strong> (planejamento familiar) e as campanhas <strong>de</strong> conscientização da saú<strong>de</strong><br />
preventiva (alimentação saudável, práticas <strong>de</strong> exercícios físicos, realização <strong>de</strong> exames<br />
periódicos, entre outros). Luz (2006: 1) nos lembra da contribuição <strong>do</strong>s avanços da<br />
ciência em diversas áreas como a “genética molecular, a farmacologia, a quimioterapia<br />
e das atuais pesquisas e <strong>de</strong>scobertas da indústria biotecnológica (célulastronco)”.<br />
No Brasil, o aumento da população i<strong>do</strong>sa e, especialmente, os avanços da ciência, especialmente<br />
da medicina, têm provoca<strong>do</strong> mudanças no conceito <strong>de</strong> velhice, bem<br />
como na posição e comportamento social, cultural e econômico <strong>do</strong> i<strong>do</strong>so. Sem dúvida,<br />
o envelhecimento é um processo natural que provoca alterações fisiológicas,<br />
anatômicas e diminuição da funcionalida<strong>de</strong> nos diversos sistemas e órgão <strong>do</strong> corpo.<br />
Estes fatores geram uma série <strong>de</strong> preconceitos, especialmente no nosso país on<strong>de</strong> o<br />
referencial parte das capacida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s jovens como, por exemplo, a crença <strong>de</strong> que o<br />
i<strong>do</strong>so é um ser inativo, em <strong>de</strong>cadência, e incapaz <strong>de</strong> adquirir conhecimentos (Bueno,<br />
2008; Rodrigues e Carvalho, 2008; Luz e Silveira, 2006).<br />
No entanto, nas últimas décadas, diversos estu<strong>do</strong>s, especialmente na área da Gerontologia3,<br />
tem se <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> a <strong>de</strong>smitificar conceitos em relação às capacida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s<br />
i<strong>do</strong>sos. Aqui, as limitações <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong>sta faixa etária são interpretadas sob um<br />
novo olhar <strong>de</strong> construção e transformação (Luz e Silveira, 2006: 10). O entendimento<br />
<strong>de</strong> Rodrigues a respeito <strong>do</strong> envelhecimento é um exemplo <strong>de</strong>sta tendência.<br />
Nas palavras <strong>do</strong> autor, a velhice é “um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> perdas propício a novas conquistas”<br />
(Rodrigues, 2003: 24 apud Bueno, 2008: 3).<br />
Quanto à parte cognitiva, os autores em geral acreditam que a velhice é um somatório<br />
<strong>de</strong> todas as fases vividas e, por esta razão, os i<strong>do</strong>sos são capazes <strong>de</strong> gerar e transformar<br />
os conhecimentos adquiri<strong>do</strong>s ao longo <strong>de</strong> suas vidas. Além disso, há o<br />
entendimento <strong>de</strong> que a aprendizagem é uma ativida<strong>de</strong> necessária na manutenção da<br />
saú<strong>de</strong> física e mental e <strong>de</strong>ve estar presente, especialmente, na terceira ida<strong>de</strong>. A este<br />
respeito, Figuerê<strong>do</strong> (2009:13) faz o seguinte comentário:<br />
“envolver-se na aprendizagem <strong>de</strong> coisas novas e no aperfeiçoamento <strong>do</strong>s assuntos<br />
já conheci<strong>do</strong>s é ainda mais urgente na velhice porque muitas das dificulda<strong>de</strong>s<br />
impostas pelo envelhecimento natural po<strong>de</strong>m ser “dribladas” ou atenuadas<br />
através <strong>de</strong>sta mobilização, proporcionan<strong>do</strong> uma vida <strong>de</strong> melhor qualida<strong>de</strong>.”<br />
Ainda a respeito da parte cognitiva, o Estatuto <strong>do</strong> I<strong>do</strong>so, o mais recente instrumento<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s interesses das pessoas <strong>de</strong>sta faixa etária, aprova<strong>do</strong> pelo Con-<br />
643
644<br />
gresso Nacional em 2003 (Lei nº 10.741), reconhece a importância <strong>do</strong> i<strong>do</strong>so na<br />
“transmissão <strong>de</strong> conhecimentos e vivências às <strong>de</strong>mais gerações, no senti<strong>do</strong> da preservação<br />
e da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> culturais” (Brasil, 2003: 17). Desta forma, artigo V <strong>de</strong>ste<br />
estatuto garante ao i<strong>do</strong>so o direito à Educação, Cultura, Esporte e Lazer.<br />
Em se tratan<strong>do</strong> das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ensino e aprendizagem musical na terceira ida<strong>de</strong>,<br />
observamos que, no Brasil, a Educação Musical neste segmento ainda se encontra<br />
nos primeiros passos, cujas possibilida<strong>de</strong>s ainda precisam ser exploradas. Os estu<strong>do</strong>s<br />
a respeito das práticas musicais que visam à manutenção e <strong>de</strong>senvolvimento<br />
das faculda<strong>de</strong>s cognitivas <strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos se concentram em <strong>de</strong>scrições e resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />
práticas <strong>de</strong> ensino volta<strong>do</strong>s ao canto coral (Borges, 2002; Figuerê<strong>do</strong>, 2008 e 2009;<br />
Maydana e Brasil, 2007), ensino coletivo <strong>de</strong> instrumento (Bueno, 2008 e Bueno e<br />
Borges, 2008), musicalização (Luz, 2006, Luz e Silveira, 2006) e oficinas <strong>de</strong> música<br />
(Bonilla, 2002 e Coronago, 2007). O ponto em comum encontra<strong>do</strong> entre os autores<br />
cita<strong>do</strong>s acima é a contribuição da aprendizagem musical entre os i<strong>do</strong>sos, principalmente<br />
no que diz respeito à comunicação, socialização, criativida<strong>de</strong>, memória,<br />
coor<strong>de</strong>nação motora, entre outros. Além disso, a constatação <strong>de</strong> que o simples fato<br />
<strong>do</strong> i<strong>do</strong>so se expressar musicalmente gera outros benefícios como a resgate cultural,<br />
o (re)<strong>de</strong>scobrimento <strong>de</strong> suas potencialida<strong>de</strong>s (habilida<strong>de</strong>s) e, conseqüentemente, a<br />
recuperação da auto-estima e a melhora da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida4.<br />
Nosso estu<strong>do</strong> preten<strong>de</strong> discutir as diferenças na capacida<strong>de</strong> cognitiva e na qualida<strong>de</strong><br />
da memória na educação musical na terceira ida<strong>de</strong> através <strong>de</strong> uma Oficina <strong>de</strong><br />
Música e Canto Coral, realizada no perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> maio a <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2002, com um<br />
Grupo da Terceira Ida<strong>de</strong>, chama<strong>do</strong> Reviven<strong>do</strong> e no Abrigo D. Pedro II5, ambos<br />
localiza<strong>do</strong>s em Salva<strong>do</strong>r-BA. Este trabalho nos proporcionou o contato com duas<br />
realida<strong>de</strong>s vividas pelos i<strong>do</strong>sos. A primeira é composta por i<strong>do</strong>sos ativos e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />
e a segunda é o que se costuma chamar <strong>de</strong> “terceira ida<strong>de</strong> institucionalizada”,<br />
formada por i<strong>do</strong>sos que vivem em abrigos, asilos, lares ou qualquer outra<br />
<strong>de</strong>nominação dada às instituições <strong>de</strong> longa permanência para os i<strong>do</strong>sos.<br />
O perfil <strong>do</strong>s participantes <strong>do</strong> Grupo Reviven<strong>do</strong> segue as características <strong>de</strong> um<br />
gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> i<strong>do</strong>sos que, felizmente, tem se beneficia<strong>do</strong> <strong>do</strong>s avanços da ciência<br />
adquirin<strong>do</strong> uma melhor qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida e uma nova colocação (status) social.<br />
São i<strong>do</strong>sos ativos (geralmente aposenta<strong>do</strong>s), in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes economicamente e<br />
preocupa<strong>do</strong>s em se adaptar às exigências <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno. Por esta razão, há<br />
uma procura <strong>de</strong>ssas pessoas por um aprimoramento <strong>de</strong> suas capacida<strong>de</strong>s físicas e<br />
mentais, através <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s que promovam novos conhecimentos, proporcionan<strong>do</strong><br />
a realização <strong>de</strong> novos projetos <strong>de</strong> vida e, em muitos casos, a realização <strong>de</strong> sonhos<br />
pessoais como, por exemplo, o <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r música. Diante <strong>de</strong>sta clientela,<br />
temos visto, cada vez mais, a criação <strong>de</strong> programas e projetos em instituições governamentais<br />
e não-governamentais como, por exemplo, os chama<strong>do</strong>s Grupos da<br />
Melhor Ida<strong>de</strong> e as Faculda<strong>de</strong>s da Terceira Ida<strong>de</strong>6. A respeito das ativida<strong>de</strong>s pro-
postas por estas instituições, Luz e Silveira (2006: 2) <strong>de</strong>stacam o “lazer (excursões,<br />
bingos, chás da tar<strong>de</strong>, aniversários, crochê, etc), ativida<strong>de</strong>s físicas (dança, biodança,<br />
alongamento, ioga, etc.) e as <strong>de</strong> cunho intelectual, cultural e religioso (aulas <strong>de</strong> culinária,<br />
<strong>de</strong> psicologia, festas folclóricas, terços e missas especiais para i<strong>do</strong>sos e seus<br />
grupos, etc.)”.<br />
A terceira ida<strong>de</strong> institucionalizada apresenta uma situação inversa. Aqui os i<strong>do</strong>sos<br />
vivem em condições mais difíceis, começan<strong>do</strong> pela pobreza que, em muitos casos, é<br />
<strong>de</strong>terminante para a institucionalização. Em se tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s motivos que levam à<br />
institucionalização <strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos, Perlini, Leite e Furini (2007) constataram que, na<br />
maioria <strong>do</strong>s casos, a família <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> asilar o seu i<strong>do</strong>so pela impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um ou<br />
mais membros que se disponibilizem e se responsabilizem pelo cuida<strong>do</strong> <strong>do</strong> i<strong>do</strong>so ou<br />
por falta <strong>de</strong> uma acomodação a<strong>de</strong>quada no lar ou por dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> relacionamento<br />
que geram constantes <strong>de</strong>sentendimentos familiares. To<strong>do</strong>s estes motivos<br />
criam uma expectativa <strong>de</strong> que a instituição dará toda a assistência necessária e que<br />
o i<strong>do</strong>so terá mais chances <strong>de</strong> se socializar pelo fato <strong>de</strong> encontrar outras pessoas com<br />
as mesmas características. No entanto, não é o que acontece, porque a instituição<br />
não está preparada para o atendimento individualiza<strong>do</strong>, as instalações da instituição<br />
obrigam o i<strong>do</strong>so a dividir espaço <strong>do</strong>s armários e <strong>do</strong>rmitórios, geran<strong>do</strong> uma<br />
perda da individualida<strong>de</strong> com total perda da privacida<strong>de</strong>. Além disso, a socialização<br />
esperada não acontece por causa da rejeição daqueles que moram na instituição há<br />
mais tempo e <strong>do</strong>s conflitos que po<strong>de</strong>m existir pelas diferenças culturais, sociais e<br />
<strong>de</strong> educação.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, a institucionalização muitas vezes ocorre por vonta<strong>de</strong> própria.<br />
Neste caso, os principais motivos que levam o i<strong>do</strong>so a optar pela moradia na instituição<br />
são: a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência em relação à família, solidão por viuvez<br />
ou por ausência <strong>do</strong>s familiares que saem para trabalho ou estu<strong>do</strong> e dificulda<strong>de</strong>s financeiras<br />
que ocasionam uma moradia ina<strong>de</strong>quada. No caso <strong>do</strong>s resi<strong>de</strong>ntes <strong>do</strong><br />
Abrigo D. Pedro II, os i<strong>do</strong>sos que chegaram por iniciativa própria são mais integra<strong>do</strong>s<br />
e participativos nas ativida<strong>de</strong>s oferecidas pela instituição. É <strong>de</strong>ste perfil a<br />
maioria <strong>do</strong>s alunos que participaram da Oficina <strong>de</strong> Música e Canto Coral.<br />
A realida<strong>de</strong> vivida pelos i<strong>do</strong>sos institucionaliza<strong>do</strong>s, por melhor que seja a estrutura<br />
<strong>do</strong>s abrigos, sempre revela um quadro <strong>de</strong> aban<strong>do</strong>no. A vida na instituição obriga os<br />
i<strong>do</strong>sos a se adaptar a uma rotina <strong>de</strong> horários, a dividir seu espaço com <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>s<br />
e, além disso, a “individualida<strong>de</strong> e o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> escolha são substituí<strong>do</strong>s pelo sentimento<br />
<strong>de</strong> ser apenas mais um <strong>de</strong>ntro daquela coletivida<strong>de</strong>” (Porcu et al. 2002:<br />
714). To<strong>do</strong>s estes fatores levam a um quadro <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão e baixa estima. Em estu<strong>do</strong>s<br />
realiza<strong>do</strong>s sobre a prevalência <strong>de</strong> sintomas <strong>de</strong>pressivos em i<strong>do</strong>sos, constatouse<br />
um alto índice <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão (inclusive nas formas mais graves) nos i<strong>do</strong>sos<br />
institucionaliza<strong>do</strong>s em comparação aos i<strong>do</strong>sos resi<strong>de</strong>ntes em <strong>do</strong>micílios. (Porcu et<br />
al. 2002)7. Diversos estu<strong>do</strong>s apontam os danos físicos e psicológicos causa<strong>do</strong>s pela<br />
645
646<br />
<strong>de</strong>pressão, como a perda da capacida<strong>de</strong> cognitiva e a inaptidão para realizar as ativida<strong>de</strong>s<br />
diárias entre os i<strong>do</strong>sos (Porcu et al. 2002: 716). Além <strong>do</strong>s impactos causa<strong>do</strong>s<br />
pela <strong>de</strong>pressão, outro fator gera<strong>do</strong>r <strong>de</strong> danos físicos e psicológicos aos i<strong>do</strong>sos<br />
institucionaliza<strong>do</strong>s é o isolamento social. Sobre as conseqüências <strong>do</strong> isolamento social,<br />
Leão e Flusser (2008: 74) fazem o seguinte comentário:<br />
“Fato é, que o isolamento social retira os i<strong>do</strong>sos <strong>do</strong>s círculos <strong>de</strong> linguagem significativa,<br />
o que po<strong>de</strong> levar o sistema <strong>de</strong> consciência a danos significativos, pois os<br />
processos <strong>de</strong> comunicação conferem o tônus afetivo e a qualida<strong>de</strong> da ativida<strong>de</strong><br />
simpática e parassimpática e por conseqüência, repercutem inclusive, na vitalida<strong>de</strong><br />
das vísceras. A relação interpessoal, por vezes negligenciada,tem implicações<br />
diretas para com a saú<strong>de</strong> e a prevenção ou agravamento <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças. (...) A<br />
retirada <strong>do</strong>s mais velhos <strong>do</strong> meio social inibe ou limita as estruturas da consciência,<br />
<strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s afetivos e da atuação das vias nervosas conscientes e inconscientes.”<br />
O trabalho realiza<strong>do</strong> na Oficina <strong>de</strong> Música e Canto Coral contou com a participação<br />
<strong>de</strong> 12 i<strong>do</strong>sos <strong>do</strong> Grupo Reviven<strong>do</strong> e 20 i<strong>do</strong>sos <strong>do</strong> Abrigo D. Pedro II. As<br />
aulas <strong>de</strong> música aconteciam duas vezes por semana nos seguintes locais: na se<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />
Grupo Reviven<strong>do</strong>, localizada na região central <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r e no salão <strong>de</strong> convivência<br />
<strong>do</strong> Abrigo D. Pedro II.<br />
As aulas <strong>de</strong> música tiveram como fundamentação a abordagem teórica <strong>de</strong> Swanwick<br />
com a adaptação <strong>de</strong> Nagy (1997), no qual a vivência musical é baseada no mo<strong>de</strong>loCLATEC(Construção<strong>de</strong><br />
Instrumentos, Literatura Musical, Apreciação Musical,<br />
Técnica, Execução Musical e Composição Musical). Nas aulas, todas as ativida<strong>de</strong>s<br />
giravam em torno <strong>de</strong> um repertório musical volta<strong>do</strong> para o resgate da memória sonora<br />
e musical <strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos, trata<strong>do</strong> aqui como “músicas foco”. Foi observa<strong>do</strong> que a<br />
ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> instrumentos contribuiu na ampliação e na integração<br />
das <strong>de</strong>mais ativida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo CLATEC. De mo<strong>do</strong> geral, observamos que o processo<br />
<strong>de</strong> ensino-aprendizagem é impacta<strong>do</strong>, mas não inviabiliza<strong>do</strong> pelo envelhecimento<br />
<strong>do</strong> organismo. Na prática <strong>do</strong> canto, existem dificulda<strong>de</strong>s ocasionadas pelas<br />
perdas musculares da laringe, <strong>de</strong>sequilíbrio respiratório, perda auditiva e outros<br />
efeitos causa<strong>do</strong>s pelo uso <strong>de</strong> medicamentos <strong>de</strong> forma contínua. No caso <strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos<br />
<strong>do</strong> Abrigo D. Pedro II, apareceram algumas dificulda<strong>de</strong>s associa<strong>do</strong>s a outros fatores<br />
que não os da velhice como a falta <strong>de</strong> motivação em conseqüência da <strong>de</strong>pressão<br />
e da baixa estima, a falta <strong>de</strong> uma vivência musical sistematizada, orientada e dirigida<br />
nas fases anteriores da vida e, em muitos casos, o baixo nível <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong>.<br />
Em relação à parte cognitiva, foram observadas diferenças <strong>de</strong> aprendizagem e na<br />
qualida<strong>de</strong> da memória entre os <strong>do</strong>is grupos. Os i<strong>do</strong>sos <strong>do</strong> abrigo apresentaram uma<br />
resposta mais lenta às ativida<strong>de</strong>s musicais propostas em comparação ao <strong>de</strong>sempenho<br />
<strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos <strong>do</strong> Grupo Reviven<strong>do</strong>. Outra diferença importante encontrada entre os<br />
<strong>do</strong>is grupos foi a falta <strong>de</strong> motivação <strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos em participar das ativida<strong>de</strong>s nas primeiras<br />
aulas. Enquanto os i<strong>do</strong>sos <strong>do</strong> grupo reviven<strong>do</strong> participavam ativamente das
ativida<strong>de</strong>s propostas com alegria e <strong>de</strong>scontração, os i<strong>do</strong>sos <strong>do</strong> abrigo se sentiam envergonha<strong>do</strong>s<br />
e a comunicação entre eles praticamente não existia. Nas primeiras<br />
aulas tivemos a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir ao encontro <strong>de</strong> cada i<strong>do</strong>so <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s alojamentos<br />
para convidá-los a irem ao salão para participarem das aulas. Na medida em que<br />
os encontros foram acontecen<strong>do</strong>, os i<strong>do</strong>sos passaram a ir ao salão espontaneamente.<br />
Da mesma forma a comunicação entre os i<strong>do</strong>sos evoluíram gradativamente, geran<strong>do</strong><br />
um ambiente agradável e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>scontração. Todas as aulas realizadas<br />
no abrigo foram acompanhadas pela assistente social, que relatava os efeitos positivos<br />
das aulas nos i<strong>do</strong>sos, especialmente os que apresentavam acentua<strong>do</strong>s quadros<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão. Além <strong>do</strong>s problemas emocionais, a maioria <strong>do</strong>s participantes <strong>do</strong><br />
abrigo tinha dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> locomoção, geralmente por conseqüência <strong>do</strong> aci<strong>de</strong>nte<br />
vascular cerebral (AVC, conheci<strong>do</strong> popularmente como <strong>de</strong>rrame), problemas cardíacos<br />
e, em alguns casos, <strong>de</strong>ficiência mental leve, conseqüência da ida<strong>de</strong> avançada,<br />
controlada por medicamentos.<br />
No entanto, apesar <strong>de</strong>stas dificulda<strong>de</strong>s e das diferentes realida<strong>de</strong>s vividas pelos <strong>do</strong>is<br />
grupos, bem como as diferenças cognitivas observadas, os i<strong>do</strong>sos adquirem conhecimento<br />
musical, principalmente, quan<strong>do</strong> os conteú<strong>do</strong>s estão volta<strong>do</strong>s ao resgate<br />
das experiências musicais <strong>do</strong>s alunos e ministra<strong>do</strong>s sempre <strong>de</strong> forma prazerosa, proporcionan<strong>do</strong><br />
uma prática musical nova e significativa. Entre os i<strong>do</strong>sos <strong>do</strong> Abrigo D.<br />
Pedro II foram observa<strong>do</strong>s muitos episódios <strong>de</strong> alegria e até emoção quan<strong>do</strong> os alunos<br />
conseguiam <strong>de</strong>codificar os elementos da gramática musical. Um exemplo <strong>de</strong>ste<br />
fato aconteceu durante uma ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “jogo da memória”, on<strong>de</strong> foram utilizadas<br />
cartões com as figuras musicais (semibreve, mínima, semínima, colcheia e semicolcheia).<br />
Os i<strong>do</strong>sos que acertavam a posição das figuras tinham que executar o<br />
ritmo usan<strong>do</strong> um instrumento <strong>de</strong> percussão. Quan<strong>do</strong> se executava a célula musical<br />
<strong>de</strong> forma correta to<strong>do</strong>s aplaudiam. Outro momento importante foram as apresentações<br />
musicais, on<strong>de</strong> os i<strong>do</strong>sos <strong>do</strong> abrigo tiveram a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se expressar<br />
musicalmente diante <strong>do</strong> público forma<strong>do</strong> por mora<strong>do</strong>res, funcionários e familiares.<br />
Nestas ocasiões, os i<strong>do</strong>sos sentiam-se emociona<strong>do</strong>s e especialmente valoriza<strong>do</strong>s por<br />
<strong>de</strong>monstrar em público a sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> se expressar musicalmente.<br />
Além <strong>do</strong> conhecimento das duas realida<strong>de</strong>s relatadas aqui, a realização <strong>de</strong>ste trabalho<br />
nos proporcionou o conhecimento das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> trabalho volta<strong>do</strong> ao<br />
ensino <strong>de</strong> música aos i<strong>do</strong>sos institucionaliza<strong>do</strong>s. Neste caso, o ensino e a prática<br />
musical geram resulta<strong>do</strong>s efetivos, que promovem a dignida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos. O papel<br />
da música como um recurso para a promoção <strong>de</strong> uma melhor qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida<br />
também é um objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> outras áreas <strong>de</strong> conhecimento, preocupadas com<br />
a realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> i<strong>do</strong>so asila<strong>do</strong>. Isto po<strong>de</strong> ser observa<strong>do</strong> nas palavras <strong>de</strong> Eliseth Ribeiro<br />
Leão, pesquisa<strong>do</strong>ra da área <strong>de</strong> enfermagem, que diz:<br />
“É nesse ponto que a Arte, em particular a Música, na forma como a concebemos,<br />
647
648<br />
possibilita a revitalização, tão necessária, <strong>do</strong> nosso potencial <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong>, não<br />
como um caminho único, mas como um caminho possível e promissor na abordagem<br />
aos i<strong>do</strong>sos institucionaliza<strong>do</strong>s. A música tem si<strong>do</strong> apontada como um<br />
recurso valioso para se trabalhar com i<strong>do</strong>sos por ser um estímulo que promove:<br />
a) respostas fisiológicas; b) respostas emocionais que estão associadas às respostas<br />
fisiológicas, como alterações nos esta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> ânimos, nos afetos; c) integração<br />
social ao promover oportunida<strong>de</strong>s para experiências comuns, que são a base<br />
para os relacionamentos; d) comunicação, principalmente para i<strong>do</strong>sos que têm<br />
problemas <strong>de</strong> comunicação verbal e pela música conseguem interagir significativamente<br />
com os outros; e)expressão emocional; f) afastamento da inativida<strong>de</strong>,<br />
<strong>do</strong> <strong>de</strong>sconforto e da rotina cotidiana e g)associações extra-musicais, lembranças<br />
<strong>de</strong> pessoas, lugares mediante a evocação <strong>de</strong> emoções guardadas na memória”<br />
(Leão, 2008: 4)<br />
Por fim, acreditamos que o maior <strong>de</strong>safio enfrenta<strong>do</strong> na educação musical na terceira<br />
ida<strong>de</strong> está no preparo <strong>do</strong> profissional <strong>de</strong> música, que <strong>de</strong>ve conhecer as estratégias<br />
<strong>de</strong> ensino e aprendizagem musical que sejam a<strong>de</strong>quadas às condições físicas,<br />
psicológicas e sociais <strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos para uma educação musical <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s8. Além<br />
disso, este profissional necessita <strong>de</strong> um conhecimento interdisciplinar para auxiliar<br />
suas ativida<strong>de</strong>s, principalmente na área <strong>de</strong> Gerontologia. No caso da prática <strong>de</strong> ensino<br />
com i<strong>do</strong>sos institucionaliza<strong>do</strong>s, é <strong>de</strong> fundamental importância o acompanhamento<br />
<strong>de</strong> assistentes sociais da instituição, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> serem fontes importantes<br />
<strong>de</strong> informação que po<strong>de</strong>m auxiliar no trabalho <strong>do</strong> educa<strong>do</strong>r musical.<br />
1 De acor<strong>do</strong> com Nunes (2000), a categoria terceira ida<strong>de</strong> surgiu na França na década <strong>de</strong><br />
1960 e refere-se “a uma emergente realida<strong>de</strong> da velhice, ligada a um novo tempo <strong>de</strong> lazer e<br />
não mais associada à miséria, <strong>do</strong>ença e <strong>de</strong>cadência, o que, em geral, ocorria após a aposenta<strong>do</strong>ria”<br />
(Frutuoso, 1996:33 apud Nunes, 2000: não pagina<strong>do</strong>).<br />
2 Para mais informações consultar o en<strong>de</strong>reço eletrônico <strong>do</strong> Instituto Brasileiro <strong>de</strong> Geografia<br />
e Estatística (IBGE), http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/datas/i<strong>do</strong>so/perfil_i<strong>do</strong>sos.html<br />
3 A Gerontologia é <strong>de</strong>finida como a ciência que estuda o envelhecimento.<br />
4 Além <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s volta<strong>do</strong>s à educação musical, a prática musical na terceira ida<strong>de</strong> está<br />
muito presente nas pesquisas na área <strong>de</strong> musicoterapia, conforme observamos nos congressos<br />
da área <strong>de</strong> música, especialmente os da ANPPOM e <strong>do</strong> <strong>SIMCAM</strong>, realiza<strong>do</strong>s na última<br />
década. Cabe aqui <strong>de</strong>stacar o trabalho realiza<strong>do</strong> por Cotta (2006) volta<strong>do</strong> para a prática <strong>do</strong><br />
canto na musicoterapia e Cunha (2007) sobre a aplicação da musicoterapia junto a i<strong>do</strong>sos<br />
com provável diagnóstico da <strong>do</strong>ença <strong>de</strong> Alzheimer.<br />
5 O Abrigo D. Pedro II foi fundada em 1882 com o nome <strong>de</strong> Asilo <strong>de</strong> Mendicida<strong>de</strong> da Bahia<br />
e foi consi<strong>de</strong>rada uma das primeiras entida<strong>de</strong>s fundadas no Brasil com o objetivo <strong>de</strong> prestar<br />
assistência a mendigos e i<strong>do</strong>sos carentes. Em 1943 o abrigo passa a acolher apenas pessoas<br />
com ida<strong>de</strong> superior a 60 anos. Atualmente esta instituição é ligada à prefeitura <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r<br />
e administrada pela Secretaria Municipal <strong>de</strong> Ação Social.<br />
6 De acor<strong>do</strong> com Nunes (2000: não pagina<strong>do</strong>) a primeira Faculda<strong>de</strong> da Terceira Ida<strong>de</strong> foi<br />
criada em 1973 em Toulouse, na França. No Brasil, a primeira instituição <strong>de</strong>sta natureza foi
criada em São Paulo, em 1977, por iniciativa <strong>do</strong>s técnicos <strong>do</strong> SESC, no qual serviu <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo<br />
para o surgimento das <strong>de</strong>mais instituições a partir da década <strong>de</strong> 1980.<br />
7 Com o objetivo <strong>de</strong> estudar a prevalência da <strong>de</strong>pressão em diferentes grupos <strong>de</strong> i<strong>do</strong>sos, os<br />
autores avaliariam 90 i<strong>do</strong>sos, sen<strong>do</strong> 30 i<strong>do</strong>sos que estavam hospitaliza<strong>do</strong>s, 30 i<strong>do</strong>sos institucionaliza<strong>do</strong>s<br />
e 30 i<strong>do</strong>sos resi<strong>de</strong>ntes em <strong>do</strong>micílios. Nos resulta<strong>do</strong>s, foram obti<strong>do</strong>s altos índices<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão entre os i<strong>do</strong>sos hospitaliza<strong>do</strong>s (56,67%) e institucionaliza<strong>do</strong>s (60%), em<br />
relação aos i<strong>do</strong>sos resi<strong>de</strong>ntes no <strong>do</strong>micílios (23,34%) (Porcu et al., 2002).<br />
8 A respeito da formação <strong>do</strong> professor <strong>de</strong> música volta<strong>do</strong> à terceira ida<strong>de</strong>, Rodrigues e Carvalho<br />
(2008) estão <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> um projeto <strong>de</strong> pesquisa sobre formação e atuação <strong>do</strong>s profissionais<br />
pauta<strong>do</strong> nos seguintes objetivos: “1) conhecer a formação <strong>do</strong>s profissionais que<br />
aten<strong>de</strong>m indivíduos na terceira ida<strong>de</strong>; 2) verificar que concepções sobre ensino e aprendizagem<br />
musical norteiam as práticas <strong>de</strong>sses profissionais; 3) investigar que saberes têm si<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s<br />
por esses profissionais; 4) investigar que saberes são consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s necessários<br />
para atuar nessa faixa etária e 5) investigar os dilemas encontra<strong>do</strong>s pelos profissionais em seu<br />
trabalho <strong>do</strong>cente. (Rodrigues e Carvalho, 2008: 5).<br />
Referências<br />
Bonilla, Karine Nunes “Encontros musicais com o grupo da amiza<strong>de</strong>: uma experiência em<br />
educação musical com a terceira ida<strong>de</strong>.” In <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> XI Encontro Anual da ABEM. XI<br />
Encontro Anual da ABEM. Natal, 2002.<br />
Borges, Mackely Ribeiro. “Relatório anual da disciplina prática <strong>de</strong> ensino.” Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral da Bahia, 2002.<br />
Brasil, Ministério da Saú<strong>de</strong>. Estatuto <strong>do</strong> I<strong>do</strong>so. 1. ed., 2.ª reimpr. Brasília: Ministério da Saú<strong>de</strong>,<br />
2003.<br />
Bueno, Meygla Rezen<strong>de</strong>. “A flauta <strong>do</strong>ce em um processo <strong>de</strong> musicalização na terceira ida<strong>de</strong>.”<br />
Dissertação <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong>, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Goiás, 2008.<br />
———. “Reflexões sobre a valorização <strong>do</strong> i<strong>do</strong>so.” Revista Travessias: Pesquisa em Educação,<br />
Cultura, Linguagem e Arte 2 (2008): 1-10.<br />
Bueno, Meygla Rezen<strong>de</strong>, e Maria Helena Jayme Borges. “Procedimentos meto<strong>do</strong>lógicos utiliza<strong>do</strong>s<br />
no ensino da flauta <strong>do</strong>ce na terceira ida<strong>de</strong>: proposta para uma melhor qualida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> vida.” In <strong>VI</strong>II Congresso Nacional <strong>de</strong> Educação da PUCPR - EDUCERE e III Congresso<br />
Ibero-Americano sobre Violencias nas Escolas - CIAVE, 2008, Curitiba. <strong>Anais</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>VI</strong>II Congresso Nacional <strong>de</strong> Educacao da PUCPR - Educere e III Congresso Ibero-americano<br />
sobre Violencias nas Escolas - CIAVE, 10376-86. Curitiba: R.T.L Grava<strong>do</strong>ra e Distribui<strong>do</strong>ra<br />
<strong>de</strong> Produtos Fonográficos Ltda, 2008.<br />
Coronago, Virgínia Maria Men<strong>de</strong>s Oliveira “Celebran<strong>do</strong> a vida com <strong>do</strong>ces canções.” In<br />
<strong>Anais</strong> <strong>do</strong> 3º <strong>Simpósio</strong> Internacional <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais. 3º <strong>Simpósio</strong> Internacional<br />
<strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais, Salva<strong>do</strong>r 2007.<br />
Cotta, Mariana Fonseca. “Cinco anos cantan<strong>do</strong> a vida.” In XII <strong>Simpósio</strong> Brasileiro <strong>de</strong> Musicoterapia<br />
Tema Livre, <strong>VI</strong> Encontro Nacional <strong>de</strong> Pesquisa em Musicoterapia, II Encontro<br />
Nacional <strong>de</strong> Docência em Musicoterapia. Goiania - GO, 2006.<br />
Cunha, Rosemyriam. “Musicoterapia na abordagem <strong>do</strong> porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> <strong>do</strong>ença <strong>de</strong> Alzheimer.”<br />
Revista Científica/FAP 2, no. 2 (2007): 1-15.<br />
Figuerê<strong>do</strong>, Michal Siviero. “Coral Canto que Encanta: um estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> educação<br />
musical com i<strong>do</strong>sos em Madre <strong>de</strong> Deus, região metropolitana <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r, Bahia.” Dissertação<br />
<strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong>, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia, 2009.<br />
649
650<br />
———. “Fronteiras na Educação Musical com I<strong>do</strong>sos: um estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caso com características<br />
multidisciplinares.” In X<strong>VI</strong>II Congresso da Associação Nacional <strong>de</strong> Pesquisa e Pós-<br />
Graduação (ANPPOM), 149 -52. Salva<strong>do</strong>r, 2008.<br />
IBGE. “Perfil <strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos responsáveis pelos <strong>do</strong>micílios no Brasil - 2000 “<br />
http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/datas/i<strong>do</strong>so/perfil_i<strong>do</strong>sos.html.<br />
———. “Política <strong>do</strong> i<strong>do</strong>so no Brasil “ http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/datas/i<strong>do</strong>so/<br />
politica_<strong>do</strong>_i<strong>do</strong>so_no_brasil.html.<br />
Leão, Eliseth Ribeiro. “A dignida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos institucionaliza<strong>do</strong>s: o papel da música no encontro<br />
humano.” Enfermería Global 13 (2008): 1-6.<br />
Leão, Eliseth Ribeiro, e Victor Flusser. “Música para i<strong>do</strong>sos institucionaliza<strong>do</strong>s: percepção<br />
<strong>do</strong>s músicos atuantes.” Revista Escola <strong>de</strong> Enfermagem - USP 42, no. 1 (2008): 73-80.<br />
Luz, Marcelo Caíres. “A educação musical na terceira ida<strong>de</strong>: uma proposta meto<strong>do</strong>lógica <strong>de</strong><br />
sensibilização e iniciação à linguagem musical.” In XV Encontro Anual da Associação<br />
Brasileira <strong>de</strong> Educação Musical, 44- 53. João Pessoa: ABEM, 2006.<br />
Luz, Marcelo Caires, e Nadia Dumara Ruiz Silveira. “A Educação musical na maiorida<strong>de</strong>.” In<br />
Beltrina Côrte, Elizabeth Frohlich Mercadante e Irene Gaeta Arcuri (orgs),Masculin(ida<strong>de</strong>)<br />
e velhices: entre o bom e o mau envelhecer, 1-17. São Paulo: Coleção Gerontologia,<br />
3. Vetor, 2006.<br />
Mascaro, Sônia <strong>de</strong> Amorim. O que é velhice. São Paulo: Brasiliense, 1997.<br />
Maydana, Celina, e Fátima Brasil. “USIMÚSICA para sentir a vida.” In <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> 3º <strong>Simpósio</strong><br />
Internacional <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais. 3º <strong>Simpósio</strong> Internacional <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e<br />
<strong>Artes</strong> Musicais, 624-25. Salva<strong>do</strong>r, 2007.<br />
Nagy, Brasilena Pinto Trinda<strong>de</strong>. “Educação musical com construção <strong>de</strong> instrumentos: projeto<br />
realiza<strong>do</strong> em uma turma <strong>de</strong> jovens <strong>de</strong> 8 a 14 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.” Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />
da Bahia, 1997.<br />
Nunes, Alzira Tereza Garcia Lobato. “Serviço Social e Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Terceira Ida<strong>de</strong>: Uma<br />
Proposta <strong>de</strong> Participação Social e Cidadania para os I<strong>do</strong>sos.” Textos sobre Envelhecimento<br />
2000, 1-97.<br />
Perlini, Nara Marilene O. Girar<strong>do</strong>n, Marinês Tambara Leite, e Ana Carolina Furini. “Em<br />
busca <strong>de</strong> uma instituição para a pessoa i<strong>do</strong>sa morar: motivos aponta<strong>do</strong>s por familiares.”<br />
Revista Escola <strong>de</strong> Enfermagem - USP 41, no. 2 (2007): 229-36.<br />
Porcu, Mauro, Viviane Margareth Scantamburlo, Natal Rodrigo Albrecht, Sarah Pagliarini<br />
Silva, Fabiano Luiz Vallim, Célio Ribeiro Araújo, Carine Deltreggia, e Rafael Vinícius<br />
Faiola. “Estu<strong>do</strong> comparativo sobre a prevalência <strong>de</strong> sintomas <strong>de</strong>pressivos em i<strong>do</strong>sos hospitaliza<strong>do</strong>s,<br />
institucionaliza<strong>do</strong>s e resi<strong>de</strong>ntes na comunida<strong>de</strong>.” Acta Scientiarum 24, no. 3<br />
(2002): 713-17.<br />
Rocha, Tatiana Fernan<strong>de</strong>s, Flávia Pinto Amaral, e Eliana Mi<strong>do</strong>ri Hanayama. “Extensão vocal<br />
<strong>de</strong> i<strong>do</strong>sos coralistas e não coralistas.” Revista CEFAC 9, no. 2 (2007): 248-54.<br />
Rodrigues, Eunice Dias da Rocha, e Maria Cristina Azeve<strong>do</strong> <strong>de</strong> Carvalho. “O i<strong>do</strong>so e a aprendizagem<br />
musical: ilusão ou realida<strong>de</strong>?” In <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> <strong>SIMCAM</strong>4 – IV <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong><br />
e <strong>Artes</strong> Musicais 1-6, 2008.<br />
Souza, Cristiana Miriam S. e Eliane Leão. “Terceira ida<strong>de</strong> e música: perspectivas para uma<br />
educação musical.” In X<strong>VI</strong> Congresso da ANPPOM, 56-60. Brasília: ANPPOM, 2006.
A motivação <strong>do</strong>s alunos<br />
para continuar seus estu<strong>do</strong>s em música<br />
Janaína Con<strong>de</strong>ssa<br />
jcon<strong>de</strong>ssa@hotmail.com<br />
Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Música da UFRGS<br />
Resumo<br />
Este artigo faz parte <strong>de</strong> uma pesquisa em andamento que busca estabelecer a interação<br />
existente entre os fatores individuais e ambientais que motivam os alunos para continuar<br />
seus estu<strong>do</strong>s em música fora da escola. Segun<strong>do</strong> a literatura, os fatores individuais referem-se<br />
às crenças, às percepções e às características pessoais <strong>do</strong>s alunos, enquanto os<br />
fatores ambientais relacionam-se com as experiências em um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> local e momento<br />
<strong>de</strong> vida, bem como as interações estabelecidas com as pessoas <strong>de</strong>sse ambiente.<br />
Além da interação entre esses fatores, a pesquisa preten<strong>de</strong> investigar o papel <strong>do</strong> ambiente<br />
(pais, família, professores, pares e contexto escolar) e das características individuais <strong>do</strong>s<br />
alunos (metas e autoconceito), quan<strong>do</strong> estes escolhem continuar seus estu<strong>do</strong>s em música<br />
fora da escola. O texto aborda conceitos importantes sobre a motivação para apren<strong>de</strong>r<br />
e continuar apren<strong>de</strong>n<strong>do</strong> música, trazen<strong>do</strong> pesquisas atuais e <strong>de</strong> diferentes partes <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>. Apoiada na literatura da educação e da educação musical e sob a perspectiva<br />
da psicologia <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento cognitivo, este trabalho justifica-se pela possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r tanto os diferentes fatores envolvi<strong>do</strong>s na interação entre o indivíduo e<br />
o ambiente durante a aprendizagem musical, quanto a maneira pela qual eles incentivam<br />
o aluno a continuar os estu<strong>do</strong>s em música. Os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>rão colaborar<br />
para o aprimoramento pedagógico <strong>do</strong>s professores <strong>de</strong> música, além <strong>de</strong> permitir<br />
reflexões e subsídios que possam melhorar a motivação <strong>do</strong>s alunos para apren<strong>de</strong>r música.<br />
Motivação para apren<strong>de</strong>r<br />
Des<strong>de</strong> o início <strong>do</strong> século XX, a motivação humana é um assunto estuda<strong>do</strong> por diversos<br />
campos <strong>do</strong> conhecimento, principalmente nas áreas <strong>de</strong> administração, saú<strong>de</strong>,<br />
psicologia e educação. Na perspectiva da psicologia educacional, pesquisas a respeito<br />
da motivação como componente essencial na condução das ativida<strong>de</strong>s humanas<br />
têm si<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvidas com o objetivo <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r ‘como’ e ‘por que’<br />
professores e alunos sentem-se motiva<strong>do</strong>s em relação a seu trabalho e a seus estu<strong>do</strong>s.<br />
Os estu<strong>do</strong>s sobre a motivação <strong>do</strong> professor, também conhecida como motivação<br />
para ensinar, <strong>de</strong>dicam-se à compreensão da ativida<strong>de</strong> <strong>do</strong>cente relacionada com a<br />
satisfação profissional e a qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ensino ofereci<strong>do</strong> (JESUS, 2000), enquanto<br />
aqueles que se referem ao aluno, sobre a motivação para apren<strong>de</strong>r, versam sobre as<br />
autopercepções e os interesses discentes, bem como os resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong>sses aspectos no<br />
comportamento <strong>do</strong> indivíduo. Ambos os tipos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> são bastante relevantes na<br />
área educacional, pois o professor tem um papel fundamental no processo cognitivo<br />
651
652<br />
<strong>do</strong> aluno, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> inferir em seu comportamento motiva<strong>do</strong> (Tapia; Fita, 2006),<br />
assim como o aluno também é responsável pelas características e mudanças que<br />
ocorrem no ambiente <strong>de</strong> aprendizagem (Hallam, 2002).<br />
Os estu<strong>do</strong>s sobre a motivação para apren<strong>de</strong>r compreen<strong>de</strong>m e explicam esse esta<strong>do</strong><br />
psicológico sob diferentes enfoques. De acor<strong>do</strong> com Eccles e Wigfield (2002), estudar<br />
a motivação significa enten<strong>de</strong>r o processo que envolve a ação <strong>do</strong>s indivíduos,<br />
dan<strong>do</strong> uma idéia <strong>de</strong> movimento e <strong>de</strong> dinamicida<strong>de</strong> a esse fenômeno. Bzuneck (2001,<br />
p. 9) também <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a motivação como algo que “move uma pessoa ou a que põe<br />
em ação ou faz mudar <strong>de</strong> curso”. Alguns pesquisa<strong>do</strong>res consi<strong>de</strong>ram a motivação<br />
como um processo e não como um produto da aprendizagem. Ou seja, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se<br />
que o processo motivacional <strong>do</strong> aluno não é passível <strong>de</strong> se observar diretamente,<br />
Pintrich e Schunk (1996, p. 4) afirmam que “po<strong>de</strong>mos inferi-lo através <strong>de</strong><br />
comportamentos como a escolha das tarefas, <strong>do</strong> esforço, da persistência, e das verbalizações<br />
[...]”. Para Hallam (2002), a motivação <strong>do</strong> aluno é entendida como um<br />
fenômeno complexo e multifaceta<strong>do</strong> e, para um maior esclarecimento, <strong>de</strong>vem ser<br />
admiti<strong>do</strong>s os fatores que estão envolvi<strong>do</strong>s e inter-relaciona<strong>do</strong>s nesse processo.<br />
Na maioria das pesquisas sobre a motivação <strong>do</strong> aluno, o contexto escolar é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong><br />
objeto principal <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>, apresentan<strong>do</strong> questões referentes às escolhas, à<br />
persistência e ao esforço <strong>de</strong>spendi<strong>do</strong> pelo aluno (Wigfield; Eccles; Rodriguez, 1998).<br />
Contu<strong>do</strong>, em qualquer ambiente, a compreensão <strong>do</strong> processo motivacional é consi<strong>de</strong>rada<br />
<strong>de</strong> muita relevância, pois conhecer os fatores que levam os alunos a se motivarem,<br />
po<strong>de</strong> contribuir para o alcance <strong>de</strong> altos níveis <strong>de</strong> aprendizagem. Isso<br />
significa que um aluno motiva<strong>do</strong> mostra-se ativamente envolvi<strong>do</strong> no processo <strong>de</strong><br />
aprendizagem (Guimarães; Boruchovitch, 2004) e que um aluno <strong>de</strong>smotiva<strong>do</strong> investe<br />
cada vez menos nas tarefas propostas, o que acarreta a queda <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> no<br />
aprendiza<strong>do</strong> (Zenorini; Santos, 2010).<br />
Nos últimos vinte anos, as pesquisas têm se expandi<strong>do</strong>, trazen<strong>do</strong> não só as variáveis<br />
motivacionais pertencentes ao self 1 – autopercepção, autoconceito, autoestima,<br />
auto<strong>de</strong>terminação, autovalorização, etc. – mas, também, os elementos sociais que<br />
influenciam a motivação para apren<strong>de</strong>r (Wigfield; Eccles; Rodriguez, 1998). Nesse<br />
senti<strong>do</strong>, Weiner (1990) revela em sua revisão histórica da pesquisa sobre motivação<br />
que, cada vez mais, novos conceitos acerca das emoções e cognições humanas<br />
são introduzi<strong>do</strong>s e novas áreas estão sen<strong>do</strong> incorporadas.<br />
Fatores envolvi<strong>do</strong>s na motivação para apren<strong>de</strong>r<br />
Segun<strong>do</strong> a literatura, a motivação para apren<strong>de</strong>r não se limita a causas familiares,<br />
pessoais ou pertencentes à realida<strong>de</strong> escolar, mas é uma combinação <strong>de</strong>sses fatores,<br />
num processo <strong>de</strong> interações multi<strong>de</strong>terminadas, as quais aparecem, em sua maioria,<br />
<strong>de</strong>ntro da escola e da própria classe (Guimarães, 2001). Isso significa que os fatores
envolvi<strong>do</strong>s no processo motivacional <strong>do</strong> aluno perpassam tanto por suas emoções<br />
e percepções quanto pela interação com as situações e com as pessoas que convive.<br />
O termo ‘fatores’ refere-se aos traços das características individuais <strong>do</strong> aluno, tais<br />
como suas crenças, seus valores e suas autopercepções, e às relações pessoais estabelecidas<br />
no ambiente <strong>de</strong> aprendizagem, seja com pessoas <strong>de</strong> sua convivência mais<br />
íntima (pais, irmãos, amigos), seja com aquelas não tão próximas (professores, colegas<br />
<strong>de</strong> classe). Isto é, to<strong>do</strong>s eles são consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s elementos flexíveis e passíveis <strong>de</strong><br />
modificação, além <strong>de</strong> serem fundamentais para a motivação <strong>do</strong>s alunos.<br />
Diante <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s que investigam esses fatores, há diferentes <strong>de</strong>nominações para<br />
os <strong>do</strong>is grupos, um relativo às características pessoais <strong>do</strong>s alunos e outro referente<br />
às características <strong>do</strong> ambiente. De um la<strong>do</strong>, estão os fatores liga<strong>do</strong>s às questões pessoais,<br />
que são as crenças <strong>do</strong>s alunos em relação a suas capacida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>sempenho e,<br />
também, as crenças sobre a música e seu ensino. Esses aspectos aparecem nas pesquisas<br />
como: fatores internos (Sichivitsa, 2007), fatores individuais (Hallam, 2002),<br />
fatores intrínsecos (O’Neill, 1999) e fatores pessoais (Ghazali, 2006). De outro<br />
la<strong>do</strong>, estão os fatores correspon<strong>de</strong>ntes às relações estabelecidas com as pessoas e<br />
com o ambiente <strong>de</strong> aprendizagem, os quais surgem na literatura como: fatores externos<br />
(Vilela, 2009), fatores ambientais (Gembris; Davidson, 2002) e fatores extrínsecos<br />
(Ilari, 2002).<br />
O foco <strong>de</strong>ste trabalho em andamento está na compreensão <strong>de</strong>sses fatores e <strong>de</strong> que<br />
forma eles interagem, quan<strong>do</strong> o aluno <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> continuar seus estu<strong>do</strong>s em música<br />
fora da escola. Como em qualquer área <strong>do</strong> conhecimento, a motivação para apren<strong>de</strong>r<br />
música envolve as crenças pessoais <strong>do</strong> aluno e as interações <strong>de</strong>le com o ambiente<br />
(Ghazali, 2006). Especificamente na área da música, as crenças pessoais, ou os fatores<br />
individuais, referem-se às percepções e opiniões <strong>do</strong>s alunos acerca <strong>de</strong> <strong>do</strong>is aspectos:<br />
sobre suas habilida<strong>de</strong>s na aprendizagem musical e sobre estudar música. As<br />
interações com o ambiente – fatores ambientais – po<strong>de</strong>m ser experienciadas tanto<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um local ou <strong>de</strong> uma instituição específica, como po<strong>de</strong>m ser estabeleci<strong>do</strong>s<br />
através <strong>do</strong> diálogo e da troca <strong>de</strong> vivências musicais entre amigos, colegas, família,<br />
etc.<br />
Como já foi menciona<strong>do</strong> anteriormente, na literatura são muitas as maneiras <strong>de</strong><br />
representar e <strong>de</strong>nominar esses <strong>do</strong>is fatores. No entanto, essa divisão não é feita no<br />
senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> separar essas diferentes características, mas são apresentadas <strong>de</strong>ssa forma,<br />
no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> pesquisar, <strong>de</strong> forma cuida<strong>do</strong>sa, um recorte daquilo que envolve o processo<br />
motivacional. A seguir, serão apresentadas as pesquisas que compreen<strong>de</strong>m os<br />
fatores individuais, os fatores ambientais e a interação estabelecida entre esses <strong>do</strong>is<br />
tipos <strong>de</strong> fatores.<br />
1. Fatores Individuais<br />
Os fatores individuais foram bastante <strong>de</strong>staca<strong>do</strong>s nos primeiros estu<strong>do</strong>s da moti-<br />
653
654<br />
vação humana. Entre os anos <strong>de</strong> 1940 e 1960, as teorias <strong>do</strong>minantes estavam no<br />
eixo behaviorista, o qual argumentava que o comportamento humano é motiva<strong>do</strong><br />
por recompensas ou por impulsos fisiológicos (Ryan; Deci, 2000). A partir da década<br />
<strong>de</strong> 1970, po<strong>de</strong>-se afirmar que, <strong>de</strong> uma ênfase na biologia (instintos e necessida<strong>de</strong>s)<br />
e no comportamento (recompensas e punições), o foco passou para o<br />
reconhecimento da cognição pessoal e <strong>do</strong> contexto social (Austin; Renwick;<br />
McPherson, 2006).<br />
De acor<strong>do</strong> com Hallam (2002), as características <strong>do</strong> indivíduo envolvidas na motivação<br />
incluem a sua personalida<strong>de</strong>, o seu autoconceito e suas metas. Para Sichivitsa<br />
(2007), o autoconceito também aparece como um importante fator que influencia<br />
o <strong>de</strong>sempenho <strong>do</strong>s alunos, a satisfação com o ambiente <strong>de</strong> aprendizagem e o interesse<br />
por um assunto. A característica pessoal <strong>de</strong> se autoperceber, <strong>de</strong> se autoavaliar,<br />
abordada como autoconceito por Sichivitsa (2007), assemelha-se ao construto da<br />
autoeficácia, <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong> teoricamente por Bandura (2008). Segun<strong>do</strong> esse autor, as<br />
crenças <strong>de</strong> autoeficácia representam o julgamento <strong>de</strong> uma pessoa sobre suas próprias<br />
capacida<strong>de</strong>s, num <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> contexto.<br />
A motivação intrínseca também é um construto pertencente às características individuais<br />
<strong>do</strong> aluno. Para Deci e Ryan (1985), o indivíduo intrinsecamente motiva<strong>do</strong><br />
sente-se mais competente e auto<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>, pois ele escolhe realizar uma<br />
tarefa por sua própria causa, sem necessitar <strong>de</strong> qualquer tipo <strong>de</strong> controle <strong>do</strong> ambiente.<br />
Enquanto esses autores baseiam-se na característica inata da motivação intrínseca,<br />
Massimini, Fave e Csikszentmihalyi (1992) particularizam-na como uma<br />
experiência mais subjetiva, em que o indivíduo realiza uma tarefa sem a preocupação<br />
<strong>de</strong> que os <strong>de</strong>safios estão além <strong>de</strong> suas capacida<strong>de</strong>s (Csikszentmihalyi, 1997).<br />
As metas estabelecidas pelos alunos também fazem parte <strong>do</strong>s fatores individuais.<br />
Dentro da literatura da motivação, as metas, também <strong>de</strong>nominadas <strong>de</strong> objetivos <strong>de</strong><br />
realização, po<strong>de</strong>m ser divididas em duas categorias: meta apren<strong>de</strong>r e meta performance.<br />
Quan<strong>do</strong> um aluno completa uma tarefa em busca <strong>de</strong> crescimento intelectual,<br />
enfrentan<strong>do</strong> os <strong>de</strong>safios e valorizan<strong>do</strong> o esforço <strong>de</strong>spendi<strong>do</strong>, a meta apren<strong>de</strong>r<br />
é a pre<strong>do</strong>minante nesse processo. Entretanto, ao terminar uma ativida<strong>de</strong> em que o<br />
foco é <strong>de</strong>monstrar aos outros as suas capacida<strong>de</strong>s, preocupan<strong>do</strong>-se somente com os<br />
elogios e a aprovação externa, surge, então, a meta performance (Zenorini; Santos,<br />
2010). De acor<strong>do</strong> com a literatura, os alunos que a<strong>do</strong>tam a meta apren<strong>de</strong>r costumam<br />
expandir as suas estratégias <strong>de</strong> aprendizagem frente aos obstáculos, amplian<strong>do</strong>,<br />
também, as suas habilida<strong>de</strong>s. Ao contrário, aqueles que têm como objetivo a performance,<br />
procuram evitar tarefas muito <strong>de</strong>safia<strong>do</strong>ras, ou seja, aquelas que percebem<br />
que estão além das suas capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> realizá-las com sucesso (Elliott; Dweck,<br />
1988).<br />
Além da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho nas metas propostas, <strong>de</strong> ser competente nas<br />
tarefas, e <strong>de</strong> sentir-se emocionalmente satisfeito durante a realização <strong>de</strong> uma ativi-
da<strong>de</strong>, atribuir importância e valor à aprendizagem é <strong>de</strong> extrema relevância, quan<strong>do</strong><br />
se preten<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r os fatores individuais no processo motivacional. Segun<strong>do</strong><br />
a literatura, os alunos valorizam mais as tarefas em que se sentem mais seguros, por<br />
terem melhor <strong>de</strong>sempenho e sucesso, a ponto <strong>de</strong> investir maior esforço para a sua<br />
realização, atingin<strong>do</strong>, consequentemente, altos níveis <strong>de</strong> aprendizagem (Vilela,<br />
2009; Wigfield; Eccles; Rodriguez, 1998; Wigfield et al., 1997).<br />
2. Fatores Ambientais<br />
Dentro <strong>do</strong>s fatores ambientais, <strong>de</strong>stacam-se duas gran<strong>de</strong>s categorias que possuem<br />
relação com a motivação discente: as pessoas e os contextos. Inseri<strong>do</strong>s na primeira<br />
categoria, os <strong>do</strong>is grupos <strong>de</strong> adultos que têm maior participação na motivação para<br />
apren<strong>de</strong>r entre crianças e a<strong>do</strong>lescentes são os professores e os pais (Marsh; Craven,<br />
1991). Não só na área da música, muitas pesquisas têm si<strong>do</strong> realizadas com o objetivo<br />
<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o papel <strong>do</strong> professor na motivação <strong>do</strong>s alunos (Bzuneck; Guimarães,<br />
2007, Guimarães, 2003, Jesus, 2008, Lens; Matos; Vansteenkiste, 2008).<br />
Martini e Del Prette (2002, p. 149) <strong>de</strong>stacam que “o papel <strong>do</strong> professor e <strong>de</strong> suas<br />
características tem si<strong>do</strong> amplamente reconheci<strong>do</strong> como um <strong>do</strong>s principais fatores<br />
que influem sobre a qualida<strong>de</strong> das relações professor-aluno e da aprendizagem <strong>do</strong>s<br />
alunos na escola”.<br />
Ainda na primeira categoria, salienta-se o papel <strong>do</strong>s pais, pois eles são a primeira<br />
referência <strong>de</strong> valores e <strong>de</strong> formação <strong>do</strong> indivíduo (McPherson, 2009), os quais irão<br />
instruir e fortalecer as concepções sobre música. O papel da família também é cita<strong>do</strong><br />
como um importante contribuinte para o progresso musical <strong>do</strong>s jovens instrumentistas<br />
(Howe; Sloboda, 1991).<br />
No que diz respeito ao terceiro grupo das pessoas que contribuem para motivar os<br />
alunos, <strong>de</strong>stacam-se os pares (amigos e colegas). Para apren<strong>de</strong>r, o indivíduo perpassa,<br />
obrigatoriamente, por suas relações interpessoais, as quais irão influenciar a<br />
modificação e o reforço <strong>do</strong> seu comportamento (Lisboa; Koller, 2004). A opinião<br />
<strong>do</strong>s colegas, o sentimento <strong>de</strong> pertencer a um grupo, a formação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre<br />
os amigos, a escolha <strong>de</strong> valores e os tipos <strong>de</strong> comportamentos influenciam diretamente<br />
a motivação para apren<strong>de</strong>r em diferentes contextos <strong>de</strong> aprendizagem.<br />
Dentro <strong>do</strong>s ambientes <strong>de</strong> aprendizagem, a escola é consi<strong>de</strong>rada um fator <strong>de</strong>terminante<br />
na motivação <strong>do</strong>s alunos, na medida em que representa o contexto social que<br />
integra alunos, professores e colegas. Representan<strong>do</strong> o principal fator ambiental<br />
enquadra<strong>do</strong> na segunda categoria, a escola é um <strong>do</strong>s contextos <strong>de</strong> interação mais importantes<br />
na vida <strong>de</strong> crianças e a<strong>do</strong>lescentes, “po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> fortalecê-los ou enfraquecêlos<br />
perante as dificulda<strong>de</strong>s inerentes a essa etapa <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento” (Guimarães,<br />
2004, p. 179).<br />
Além da escola, Gembris e Davidson (2002) apontam os sistemas socioculturais,<br />
655
656<br />
compostos pela mídia e pela cultura musical disponível, como elementos importantes<br />
na motivação <strong>do</strong>s alunos. Do mesmo mo<strong>do</strong>, Hallam (2002) também inclui<br />
a cultura nos fatores ambientais, amplian<strong>do</strong>-os, ainda, para os espaços (instituições)<br />
<strong>de</strong> estu<strong>do</strong> e as exigências sociais vigentes.<br />
3. Fatores Individuais e Ambientais<br />
Na área da música, alguns trabalhos <strong>de</strong>dicaram-se a conjugar os aspectos individuais<br />
e os ambientais como objetos científicos. O estu<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong> por Austin, Renwick<br />
e McPherson (2006), por exemplo, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a motivação para apren<strong>de</strong>r<br />
música po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada um processo dinâmico que envolve o autossistema<br />
(percepções, pensamentos, crenças e emoções <strong>do</strong> aluno), o sistema social (professores,<br />
pais, pares e o ambiente <strong>de</strong> sala <strong>de</strong> aula), as ações (comportamentos motiva<strong>do</strong>s<br />
e regulação da aprendizagem), e os resulta<strong>do</strong>s (<strong>de</strong>sempenho, aprendizagem).<br />
Nesse caso, os fatores individuais po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s como os componentes <strong>do</strong><br />
autossistema, e os ambientais significam os aspectos <strong>do</strong> sistema social.<br />
Outra pesquisa que consi<strong>de</strong>ra esses <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> fatores foi feita por Sichivitsa<br />
(2007). Seu objetivo foi investigar os fatores internos – como o autoconceito e o<br />
valor da<strong>do</strong> à música – e externos – como o apoio <strong>do</strong>s pais e a interação social nas<br />
aulas <strong>de</strong> música – para justificar a sua influência no interesse e na persistência <strong>de</strong> alunos<br />
<strong>de</strong> graduação não-músicos em participar <strong>de</strong> um coro. De outra forma, Ghazali<br />
(2006) preferiu a<strong>do</strong>tar os termos ‘pessoais e ambientais’ a ‘internos e externos’, ao<br />
investigar como esses fatores auxiliam a maneira que as crianças malasianas valorizam<br />
o ensino formal <strong>de</strong> música <strong>de</strong>ntro e fora da escola. De acor<strong>do</strong> com seu estu<strong>do</strong>,<br />
os fatores pessoais referem-se às crenças <strong>do</strong>s alunos sobre música e sobre seu <strong>de</strong>senvolvimento<br />
musical; os fatores ambientais são a família, o ambiente <strong>de</strong> casa, os<br />
pais, a escola e os professores; e, ainda, há um terceiro tipo que agrupa outros fatores<br />
sociais, tais como a influência da cultura, da religião e da importância dada à<br />
educação musical.<br />
Diferentemente <strong>de</strong>sses enfoques, MacKenzie (1991) explicou os fatores que motivam<br />
as crianças em apren<strong>de</strong>r um instrumento musical, dividin<strong>do</strong>-os nos seguintes<br />
<strong>de</strong>terminantes: sociais, escola, lar e pessoais. Os <strong>de</strong>terminantes sociais, que po<strong>de</strong>m<br />
ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s como fatores ambientais, são representa<strong>do</strong>s pelos pares, pela escola,<br />
que incluem as condições oferecidas e os professores, e pelo lar, que abrangem os<br />
pais e os irmãos. Os <strong>de</strong>terminantes pessoais, que, nesse caso, só inclui o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
interesse <strong>do</strong>s alunos, significam os fatores individuais.<br />
Em busca da compreensão <strong>do</strong>s fatores ambientais, mas com o foco específico na interação<br />
entre pais e filhos, McPherson (2009) criou um mo<strong>de</strong>lo que explica como<br />
os objetivos, estilos e práticas <strong>do</strong>s pais são media<strong>do</strong>s pelas características da criança<br />
e outros fatores socioculturais. Esse mo<strong>de</strong>lo é o primeiro a traçar as influências que<br />
os pais po<strong>de</strong>m ter na motivação para apren<strong>de</strong>r <strong>do</strong>s seus filhos, juntamente com as
características da criança (motivacionais, autoconceituais e autorregulacionais) e<br />
com as características <strong>do</strong> contexto sociocultural – que se restringe àquele em que<br />
ocorre a interação entre pais e filhos.<br />
Para concluir, é importante ressaltar que os estu<strong>do</strong>s que se referem aos<br />
fatores individuais não negligenciam os fatores ambientais, e vice-versa. Isso significa<br />
que, ao estudar a importância da aula <strong>de</strong> música na escola, por exemplo, não correspon<strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ntificar, somente, as percepções pessoais, mas, também, po<strong>de</strong><br />
consi<strong>de</strong>rar os fatores ambientais envolvi<strong>do</strong>s. Isso acontece, principalmente, na a<strong>do</strong>lescência,<br />
perío<strong>do</strong> em que as expectativas, os valores e as metas <strong>do</strong>s alunos, que adquirem<br />
maior consciência e, portanto, capazes <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>rem e colocarem em<br />
prática as sugestões <strong>de</strong> professores, pais, pares e outros membros <strong>do</strong> sistema social<br />
(Austin; Renwick; McPherson, 2006).<br />
Motivação para apren<strong>de</strong>r e continuar os estu<strong>do</strong>s em música<br />
Os estu<strong>do</strong>s sobre a motivação para apren<strong>de</strong>r música po<strong>de</strong>m ser dividi<strong>do</strong>s em duas<br />
gran<strong>de</strong>s categorias: o estu<strong>do</strong> da motivação <strong>do</strong> aluno no ensino <strong>do</strong> instrumento e o<br />
estu<strong>do</strong> da motivação <strong>do</strong> aluno no contexto escolar. No cenário internacional, as<br />
pesquisas sobre a motivação na aprendizagem musical estão voltadas, por um la<strong>do</strong>,<br />
a explicar o grau <strong>de</strong> envolvimento e <strong>de</strong> persistência no estu<strong>do</strong> da música, principalmente<br />
no instrumento musical (McPherson; McCormick, 2000, McPherson;<br />
Thompson, 1998; O’Neill, 1999) e, por outro la<strong>do</strong>, a analisar os fatores <strong>do</strong> contexto<br />
social <strong>do</strong> aluno e que influenciam sua aprendizagem em música (Davidson et<br />
al., 1998; Gembris; Davidson, 2002; McPherson, 2009; Schimdt, 2005). No Brasil,<br />
há poucos trabalhos <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s sobre motivação na área <strong>de</strong> educação musical.<br />
A maioria <strong>de</strong>les tem por objetivo a motivação <strong>do</strong> aluno nos processos <strong>de</strong> ensino<br />
e aprendizagem <strong>do</strong> instrumento – individual e em grupo – (Araújo; Torres; Ilescas,<br />
2007; Araújo; Pickler, 2008; Cavalcanti, 2009; Figueire<strong>do</strong>, 2008; Fucci Amato,<br />
2008; Tourinho, 1995). A motivação para apren<strong>de</strong>r música no currículo escolar e<br />
em outros contextos foi temática da pesquisa <strong>de</strong> Vilela (2009), enquanto Pizzato<br />
(2009) abor<strong>do</strong>u esse assunto somente em relação à escola.<br />
As pesquisas sobre a escolha <strong>do</strong> aluno têm investiga<strong>do</strong> que a importância <strong>de</strong>le sentir-se<br />
livre para escolher o repertório musical, po<strong>de</strong> fazê-lo atingir altos níveis <strong>de</strong><br />
engajamento nas ativida<strong>de</strong>s musicais (Renwick; McPherson, 2002). Outros autores<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m que a escolha por apren<strong>de</strong>r um instrumento musical po<strong>de</strong> estar associada<br />
à preferência por um estilo musical (Ho, 2003), ou, ainda, pelo timbre <strong>do</strong><br />
instrumento e pela influência <strong>de</strong> pessoas, como professores, pais e amigos (Fortney;<br />
Boyle; Decarbo, 1993). Segun<strong>do</strong> Maehr, Pintrich e Linnebrink (2002), escolher<br />
ou ter preferência por uma tarefa representam alguns indica<strong>do</strong>res da motivação<br />
<strong>do</strong> aluno, porque, ao optar por algo, o indivíduo <strong>de</strong>monstra direcionamento e investimento<br />
<strong>de</strong> energia para realizar a ação.<br />
657
658<br />
Em relação à motivação para continuar os estu<strong>do</strong>s em música, a pesquisa <strong>de</strong> Chen<br />
e Howard (2004) <strong>de</strong>monstra que a satisfação em tocar o instrumento foi o principal<br />
fator aponta<strong>do</strong> pelos músicos entrevista<strong>do</strong>s. No mesmo senti<strong>do</strong>, Leung, So e<br />
Lee (2008) i<strong>de</strong>ntificaram o interesse próprio como <strong>de</strong>terminante na motivação <strong>do</strong>s<br />
alunos em prosseguir seus estu<strong>do</strong>s em música, segui<strong>do</strong> das influências <strong>do</strong> professor<br />
<strong>de</strong> música da escola e <strong>do</strong>s membros da família. No entanto, Ilari (2002) encontrou<br />
resulta<strong>do</strong>s um pouco diferentes na análise das opiniões <strong>de</strong> instrumentistas profissionais,<br />
brasileiros e cana<strong>de</strong>nses, sobre a influência <strong>de</strong> professores, da família e <strong>do</strong>s<br />
conjuntos musicais na sua formação e motivação para continuar estudan<strong>do</strong> ou trabalhan<strong>do</strong><br />
na área <strong>de</strong> música. Nesse trabalho, a autora concluiu que o papel <strong>do</strong>s professores<br />
e da família apareceram como os principais fatores na continuida<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />
estu<strong>do</strong> da música e que o fato <strong>de</strong> o aluno escolher pela carreira <strong>de</strong> instrumentista indica<br />
que ele está motiva<strong>do</strong> (Ilari, 2002).<br />
Consi<strong>de</strong>rações Finais<br />
As reflexões trazidas sobre os <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> fatores – individuais e ambientais – que<br />
motivam os alunos em apren<strong>de</strong>r música e que, também, contribuem para a continuida<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>s seus estu<strong>do</strong>s constituem a moldura <strong>de</strong>sta pesquisa em andamento. Partin<strong>do</strong><br />
da reflexão <strong>de</strong> Ilari (2002) <strong>de</strong> que, ao continuar seus estu<strong>do</strong>s em música, o<br />
aluno <strong>de</strong>monstra o comportamento motiva<strong>do</strong>, os objetivos propostos neste trabalho<br />
têm como foco o entendimento da interação estabelecida entre os fatores individuais<br />
<strong>de</strong> alunos que estudam nas séries finais <strong>do</strong> ensino fundamental e os<br />
aspectos ambientais ofereci<strong>do</strong>s em suas experiências com música <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> currículo<br />
escolar, os quais estão envolvi<strong>do</strong>s na sua <strong>de</strong>cisão em continuar seus estu<strong>do</strong>s em<br />
música fora da escola. O méto<strong>do</strong> escolhi<strong>do</strong> para a coleta e análise <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s foi o estu<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> entrevistas, <strong>de</strong> caráter semi-estrutura<strong>do</strong>, que possibilitará muitas compreensões<br />
sobre os motivos que levaram esses a<strong>do</strong>lescentes a continuar seus estu<strong>do</strong>s<br />
em música fora da escola.<br />
É importante ressaltar que os da<strong>do</strong>s aqui apresenta<strong>do</strong>s, sobre a importância <strong>de</strong> se conhecer<br />
os fatores que contribuem para a motivação <strong>do</strong> aluno, são resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> muitas<br />
pesquisas já realizadas neste campo, uma vez que esta pesquisa ainda está em<br />
andamento. Mesmo assim, cabe salientar que conhecer esses fatores é fundamental<br />
para enriquecer a prática <strong>do</strong>s professores <strong>de</strong> música, em qualquer nível <strong>de</strong> atuação<br />
profissional, pois já se sabe que um aluno interessa<strong>do</strong> e motiva<strong>do</strong> na aula <strong>de</strong> música,<br />
sente-se mais confiante e satisfeito em apren<strong>de</strong>r música na escola ou fora <strong>de</strong>la.<br />
Assim como as pesquisas sobre a motivação para apren<strong>de</strong>r música têm se expandi<strong>do</strong><br />
no cenário internacional, o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s brasileiros nesta área<br />
está se fortalecen<strong>do</strong>, o que beneficia o campo da psicologia <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
cognitivo-musical e a área da educação musical como um to<strong>do</strong>. Portanto, a contribuição<br />
<strong>de</strong> novos trabalhos não se limita à construção <strong>de</strong> novas abordagens teóricas,
mas, também, ao enriquecimento da ação pedagógica <strong>do</strong> professor <strong>de</strong> música, na<br />
qual ele po<strong>de</strong>rá ampliar as suas estratégias e contribuir para a aprendizagem efetiva<br />
e prazerosa em sala <strong>de</strong> aula.<br />
1 Para a área da psicologia cognitiva, o self significa o “sujeito subjetivo”, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> seus<br />
processos cognitivos, motivacionais e afetivos (Almeida; Guisan<strong>de</strong>, 2010). Com o objetivo<br />
<strong>de</strong> ser fiel ao seu significa<strong>do</strong>, os estu<strong>do</strong>s impressos na língua portuguesa mantêm sua escrita<br />
em inglês: self.<br />
Bibliografia<br />
Almeida, Leandro S.; Guisan<strong>de</strong>, Maria A<strong>de</strong>lina. Atribuições causais na explicação da aprendizagem<br />
escolar. In: Boruchovitch, Evely; Bzuneck, José Aloyseo; Guimarães, Sueli Édi<br />
Rufini (Orgs.). Motivação para Apren<strong>de</strong>r: aplicações no contexto educativo. 1. ed. Petrópolis,<br />
RJ: Vozes, 2010. p. 145-166.<br />
Araújo, Rosane Car<strong>do</strong>so <strong>de</strong>; Torres, Grace F.; Ilescas, Agnes L. Prática instrumental e motivação:<br />
uma reflexão sobre a possibilida<strong>de</strong> da experiência <strong>de</strong> fluxo. In: <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong><br />
e <strong>Artes</strong> Musicais, 3, 2007, Salva<strong>do</strong>r. <strong>Anais</strong>... Salva<strong>do</strong>r: EDUFBA, 2007, v. 1, p.<br />
504-510.<br />
Araújo, Rosane Car<strong>do</strong>so <strong>de</strong>; Pickler, Letícia. Um estu<strong>do</strong> sobre a motivação e o esta<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
fluxo na execução musical. In: <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais, 4, 2008, São<br />
Paulo. <strong>Anais</strong> ... São Paulo: USP, maio 2008. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/<br />
dl/simcam4/<strong>do</strong>wnloads_anais/<strong>SIMCAM</strong>4_Rosane%20Araujo_e_LPickler.pdf Acesso<br />
em: 25 fev. 2010.<br />
Austin, James; Renwick, James; McPherson, Gary E. Developing motivation. In: McPherson,<br />
Gary E. (Ed.). The child as musician: a handbook of musical <strong>de</strong>velopment. 1. ed. New<br />
York: Oxford University Press, 2006. p. 213-238.<br />
Bandura, Albert. O sistema <strong>do</strong> self no <strong>de</strong>terminismo recíproco. In: Bandura, Albert; Azzi,<br />
Roberta Gurgel; Poly<strong>do</strong>ro, Soely A. Jorge (Orgs.). Teoria Social Cognitiva: conceitos básicos.<br />
1. ed. Porto Alegre: Artmed, 2008. p. 43-67.<br />
Bzuneck, José Aloyseo. A Motivação <strong>do</strong> Aluno: Aspectos Introdutórios. In: Boruchovitch,<br />
Evely; Bzuneck, José Aloyseo (Orgs.). A motivação <strong>do</strong> aluno: contribuições da psicologia<br />
contemporânea. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 09-36.<br />
Bzuneck, José Aloyseo; Guimarães, Sueli Édi Rufini. Estilos <strong>de</strong> Professores na Promoção da<br />
Motivação Intrínseca: Reformulação e Validação <strong>de</strong> Instrumento. Psicologia: Teoria e<br />
Pesquisa 23, n. 4, p. 415-422, out./<strong>de</strong>z. 2007.<br />
Cavalcanti, Célia Regina Pires. Crenças <strong>de</strong> auto-eficácia: uma perspectiva sociocognitiva no<br />
ensino <strong>do</strong> instrumento musical. Revista da ABEM 21, p. 93-102, mar. 2009.<br />
Chen, Simy Meng-Yu; Howard, Robert W. Musical instrument choice and playing history<br />
in post-secondary level music stu<strong>de</strong>nts: some <strong>de</strong>scriptive data, some causes and some<br />
background factors. Music Education Research 6, n. 2, p. 217-230, July 2004.<br />
Csikszentmihalyi, Mihaly. Finding Flow: the psychology of engagement with everyday life. 1. ed.<br />
New York: BasicBooks, 1997.<br />
Davidson, Jane W.; Moore, Derek G.; Sloboda, John A.; Howe, Michael J. A. Characteris-<br />
659
660<br />
tics of music teachers and the progress of young instrumentalists. Journal of Research in<br />
Music Education 46, n. 1, p. 141-160, Spring 1998.<br />
Deci, Edward L.; Ryan, Richard M. Intrinsic Motivation and Self Determination in Human<br />
Behavior. 1. ed. New York: Plenum, 1985.<br />
Eccles, Jacquelynne S.; Wigfield, Allan. Motivational beliefs, values, and goals. Annual Review<br />
of Psychology 53, p. 109-132, 2002.<br />
Elliott, Elaine S.; Dweck, Carol S. Goals: an approach to motivation and achievement. Journal<br />
of Personality and Social Psychology 54, n. 1, p. 5-12, 1988.<br />
Figueire<strong>do</strong>, Edson A. <strong>de</strong> Freitas. A motivação <strong>do</strong> aluno no contexto violonístico através <strong>do</strong><br />
continuum <strong>de</strong> auto<strong>de</strong>terminação – um projeto para pesquisa. In: <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong><br />
Violão da Embap, 2, 2008, Curitiba. Curitiba: EMBAP, 2008. Disponível em <<br />
http://www.embap.pr.gov.br/arquivos/File/simposio/violao2008/pdf/02-edso_figueire<strong>do</strong>.pdf<br />
>. Acesso em: 26 fev. 2010.<br />
Fortney, Patrick M.; Boyle, J. David; Decarbo, Nicholas J. A Study of Middle School Band<br />
Stu<strong>de</strong>nts’ Instrument Choices. Research Studies in Music Education 41, n. 1, p. 28-39,<br />
1993.<br />
Fucci-Amato, Rita <strong>de</strong> Cássia. O <strong>de</strong>senvolvimento da motivação na gestão <strong>de</strong> recursos humanos<br />
em corais: conceitos e práticas. In: <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais,<br />
4, 2008, São Paulo. São Paulo: UNESP, 2008. p. 01-08.<br />
Gembris, Heiner; Davidson, Jane W. Environmental Influences. In: Parncutt, Richard;<br />
McPherson, Gary E. (Eds.). The science and psychology of musical performance: creatives<br />
strategies for teaching and learning. New York: Oxford University Press, 2002. p. 17-30.<br />
Ghazali, Ghaziah M. Factors influencing malaysian children’s motivation to learning music.<br />
2006. Thesis (Doctor of Philosophy)–School of Music and Music Education, University<br />
of New South Wales, Sydney, 2006.<br />
Guimarães, Sueli Édi Rufini. A organização da escola e da sala <strong>de</strong> aula como <strong>de</strong>terminante<br />
da motivação intrínseca e da meta apren<strong>de</strong>r. In: Boruchovitch, Evely; Bzuneck, José<br />
Aloyseo (Orgs.). A motivação <strong>do</strong> aluno: contribuições da psicologia contemporânea. 3. ed.<br />
Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 78-95.<br />
———. Avaliação <strong>do</strong> estilo motivacional <strong>do</strong> professor: adaptação e validação <strong>de</strong> instrumento.<br />
2003.Tese (Doutora<strong>do</strong> em Educação) – Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Educação, Faculda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Educação, Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas, Campinas, 2003.<br />
———. Necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pertencer: um motivo humano fundamental. In: Boruchovitch,<br />
Evely; Bzuneck, José Aloyseo. Aprendizagem: processos psicológicos e o contexto social na<br />
escola. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. p. 177-199.<br />
Guimarães, Sueli Édi Rufini; Boruchovitch, Evely. O Estilo Motivacional <strong>do</strong> Professor e a<br />
Motivação Intrínseca <strong>do</strong>s Estudantes: uma perspectiva da teoria da auto<strong>de</strong>terminação.<br />
Psicologia: Reflexão e Crítica 17, n.2, p. 143-150, 2004.<br />
Hallam, Susan. Musical Motivation: towards a mo<strong>de</strong>l synthesising the research. Music Education<br />
Research 4, n. 2, p. 225-244, 2002.<br />
Ho, Wai-chung. Gen<strong>de</strong>r Differences in Instrumental Learning, Preferences for Musical Activities<br />
and Musical Genres: a comparative study on Hong Kong, Shanghai and Taipei.<br />
Research Studies in Music Education 20, n. 1, p. 60-76, 2003.<br />
Howe, Michael J. A.; Sloboda, John A. Young Musicians’ Accounts of Significant Influen-
ces in their Early Lives. 1. The Family and the Musical Background. British Journal of<br />
Music Education 8, p. 39-52, 1991.<br />
Ilari, Beatriz Senoi. Quan<strong>do</strong> o músico pensa em <strong>de</strong>ixar a profissão: um estu<strong>do</strong> comparativo<br />
entre instrumentistas brasileiros e cana<strong>de</strong>nses. Em Pauta 13, n. 21, p. 71-88, <strong>de</strong>z. 2002.<br />
Jesus, Saul Neves <strong>de</strong>. Motivação e formação <strong>de</strong> professores. Portugal: Quarteto Editora, 2000.<br />
———. Estratégias para motivar os alunos. Educação XXXI, v. 31, n. 1 (Porto Alegre: PUCRS,<br />
jan./abr. 2008), p. 21-29.<br />
Lens, Willy; Matos, Lennia; Vansteenkiste, Maarten. Professores como fontes <strong>de</strong> motivação<br />
<strong>do</strong>s alunos: o quê e o porquê da aprendizagem <strong>do</strong> aluno. Educação XXXI, v. 31, n. 1<br />
(Porto Alegre: PUCRS, jan./abr. 2008), p. 17-20.<br />
Leung, Chi Cheung; So, Allison; Lee, Anthony. Cope with change: motivating stu<strong>de</strong>nts to<br />
study music in senior secondary programmes. Journal of Artistic and Creative Education<br />
2, n. 2 ( 2008), p. 108-126.<br />
Lisboa, Carolina; Koller, Sílvia Helena. Interações na escola e processos <strong>de</strong> aprendizagem:<br />
fatores <strong>de</strong> risco e proteção. In: Boruchovitch, Evely; Bzuneck, José Aloyseo. Aprendizagem:<br />
processos psicológicos e o contexto social na escola. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. p. 201-<br />
222.<br />
Mackenzie, Clayton G. Starting to learn to play a musical instrument: a study of boys’ and<br />
girls’ motivational criteria. British Journal of Music Education 8 (1991), p. 15-20.<br />
Maehr, Martin L.; Pintrich, Paul R.; Linnenbrink, Elizabeth A. Motivation and achievement.<br />
In: Colwell, Richard; Richardson, Carol P. (Eds.). The new handbook of research<br />
on music teaching and learning. New York: Oxford University Press, 2002. p. 348-372.<br />
Marsh, Herbert W.; Craven, Rhonda G. Self-other agreement on multiple dimensions of<br />
prea<strong>do</strong>lescent self-concept: inferences by teachers, mothers and fathers. Journal of Educational<br />
Psychology 83, n. 3 (Sept. 1991), p. 393-404.<br />
Martini, Mirella Lopez; Del Prette, Zilda Aparecida Pereira. Atribuições <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong> para<br />
o sucesso e o fracasso escolar <strong>do</strong>s seus alunos por professoras <strong>do</strong> ensino fundamental. Interação<br />
em Psicologia 6, n. 2 (Curitiba, 2002), p. 149-156, .<br />
Massimini, Fausto; Fave, Antonella Delle; Csikszentmihalyi, Mihaly. Flow and biocultural<br />
evolution. In: Csikszentmihalyi, Mihaly; Csikszentmihalyi, Isabella Selega (Eds.). Optimal<br />
experience: psychological studies of flow in consciousness. United King<strong>do</strong>m: Cambridge<br />
University, 1992. p. 60-84.<br />
McPherson, Gary E. The role of parents in children’s musical <strong>de</strong>velopment. Psychology of<br />
Music 37, n. 1 (2009), p. 91-110.<br />
McPherson, Gary E.; McCormick, John. The Contribution of Motivational Factors to Instrumental<br />
Performance in a Music Examination. Research Studies in Music Education<br />
15, n. 1 (2000), p. 31-39.<br />
McPherson, Gary E.; Thompson, William F. Assessing Music Performance: issues and influences.<br />
Research Studies in Music Education 10, n. 1 (1998), p. 12-24.<br />
O’Neill, Susan. Quais os motivos <strong>do</strong> insucesso <strong>de</strong> algumas crianças na aprendizagem musical?<br />
Motivação e Flow Theory. Revista <strong>do</strong> CIPEM 1 (1999). Disponível em:<br />
http://cipem.wordpress.com/revista/revista-1999-nº-1/ Acesso em 1 out. 2009.<br />
Pintrich, Paul R.; Schunk, Dale H. Motivation in Education: theory, research, and applications.<br />
New Jersey: Prenctice Hall, 1996.<br />
661
662<br />
Pizzato, Miriam. Motivação em apren<strong>de</strong>r música na escola: um estu<strong>do</strong> sobre o interesse,<br />
2009. Dissertação (Mestra<strong>do</strong> em Música) – Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Música,<br />
Instituto <strong>de</strong> <strong>Artes</strong>, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, Porto Alegre, 2009.<br />
Renwick, James M.; McPherson, Gary E. Interest and choice: stu<strong>de</strong>nt-selected repertoire<br />
and its effect on practicing behavior. British Journal of Music Education 19, n. 2 (2002),<br />
p. 173-188.<br />
Ryan, Richard M.; Deci, Edward L. Intrinsic and Extrinsic Motivations: classic <strong>de</strong>finitions<br />
and new directions. Contemporary Educational Psychology 25 (2000), p. 54-67.<br />
Schmidt, Charles P. Relations among motivation, performance achievement, and music experience<br />
variables in secondary instrumental music stu<strong>de</strong>nts. Journal of Research in<br />
Music Education 53, n. 2 (2005), p. 134-147.<br />
Sichivitsa, Veronica O. The influences of parents, teachers, peers and other factors<br />
on stu<strong>de</strong>nts’ motivation in music. Research Studies in Music Education 29 (2007),<br />
p. 55-67.<br />
Tapia, Jesús Alonso; Fita, Enrique Cártula. A motivação em sala <strong>de</strong> aula: o que é, como se faz.<br />
7. ed. São Paulo: Loyola, 2006.<br />
Vilela, Cassiana Zamith. Motivação para apren<strong>de</strong>r música: o valor atribuí<strong>do</strong> à aula <strong>de</strong> música<br />
no currículo escolar e em outros contextos. 2009. Dissertação (Mestra<strong>do</strong> em Música)<br />
– Instituto <strong>de</strong> <strong>Artes</strong>, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, Porto Alegre,<br />
2009.<br />
Weiner, Bernard. History of Motivational Research in Education. Journal of Educational<br />
Psychology 82, n. 4 (1990), p. 616-622.<br />
Wigfield, Allan; Eccles, Jacquelynne S.; Rodriguez, Daniel. The <strong>de</strong>velopment of children’s<br />
motivation in school contexts. Review of Research in Education 23, n. 1 (1998), p. 73-118.<br />
Wigfield, Allan et. al. Change in children’s competence beliefs and subjective task values<br />
across the elementary school years: a 3-year study. Journal of Educational Psychology 89,<br />
n. 3 (1997), p. 451-469.<br />
Zenorini, Rita da Penha Campos; Santos, Acácia Aparecida Angeli <strong>do</strong>s. Teoria <strong>de</strong> Metas <strong>de</strong><br />
Realização: fundamentos e avaliação. In: Boruchovitch, Evely; Bzuneck, José Aloyseo;<br />
Guimarães, Sueli Édi Rufini (Orgs.). Motivação para Apren<strong>de</strong>r: aplicações no contexto<br />
educativo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. p. 99-125.
Estimulação da memória pelo canto como base <strong>de</strong> educação<br />
musical na maturida<strong>de</strong>: um aspecto cognitivo social<br />
Celina Amalia Vettore Maydana<br />
Maria <strong>de</strong> Fátima Macha<strong>do</strong> Brasil<br />
Resumo<br />
Envelhecer com qualida<strong>de</strong> é o objetivo primordial <strong>do</strong> ser humano. Neste senti<strong>do</strong>, a questão<br />
cognitiva tem si<strong>do</strong> preocupação constante, e seus mecanismos como a memória, a<br />
linguagem, a atenção e as funções executivas, afeta<strong>do</strong>s pelo <strong>de</strong>senvolvimento da vida<br />
até o envelhecimento, bastante pesquisa<strong>do</strong>s e estuda<strong>do</strong>s. Este <strong>de</strong>senvolvimento está associa<strong>do</strong><br />
a mudanças e a to<strong>do</strong>s os processos adaptativos que disso <strong>de</strong>correm. Para que<br />
isto aconteça plenamente e <strong>de</strong> forma natural, aptidões físicas e emocionais <strong>de</strong>vem ser<br />
cultivadas a tal ponto que seu <strong>de</strong>créscimo não seja abrupto nem provoque incapacida<strong>de</strong>.<br />
Dentro <strong>de</strong>stas aptidões, focamos a memória como base para estu<strong>do</strong>. Áreas cerebrais<br />
foram pesquisadas a fim <strong>de</strong> relacioná-las com os diversos tipos <strong>de</strong> memórias (<strong>de</strong><br />
trabalho, <strong>de</strong> curta duração, <strong>de</strong> longa duração, procedural, <strong>de</strong>clarativa e etc). A música<br />
(canto/educação musical) foi utilizada então como ferramenta básica <strong>de</strong> trabalho, pois sabemos<br />
que ela (música) estimula operações físicas e mentais, com melhora significativa<br />
em to<strong>do</strong>s os aspectos cognitivos.<br />
Este trabalho tem por objetivo, avaliar até que ponto o canto como base <strong>de</strong> educação<br />
musical, po<strong>de</strong> influenciar positivamente a memória, e o que isto po<strong>de</strong> representar<br />
na conservação da auto-suficiência, adaptação social, obtenção e<br />
aperfeiçoamento <strong>de</strong> novos conhecimentos, constituin<strong>do</strong> um prazer intelectual/físico<br />
e reafirman<strong>do</strong> o i<strong>do</strong>so como um sujeito ativo na socieda<strong>de</strong>. Foi <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong><br />
num grupo <strong>de</strong> pessoas participantes <strong>de</strong> uma oficina <strong>de</strong> música (atualmente trinta e<br />
cinco mulheres), entre 52 e 90 anos, transformada posteriormente em coral, <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>do</strong> projeto USI-<strong>VI</strong>DA, da empresa USIMED (<strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> civil), e <strong>de</strong>stina<strong>do</strong><br />
aos usuários <strong>do</strong> plano <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> USIMED. Os encontros são semanais com<br />
duração <strong>de</strong> 90 (noventa) minutos, nos quais realizamos ativida<strong>de</strong>s com base na Educação<br />
Musical: noções <strong>de</strong> teoria e harmonia, musicalida<strong>de</strong> corporal, ativida<strong>de</strong>s cênicas,<br />
exercícios vocais, exercícios <strong>de</strong> atenção, concentração e memorização,<br />
utilização <strong>de</strong> músicas com letras em diversas línguas (inglês, espanhol, hebraico, japonês<br />
e francês) e outros. O grupo foi cria<strong>do</strong> há 6 (seis) anos, porém a avaliação foi<br />
feita, baseada em observações ao longo <strong>de</strong> 1(um) ano. Acrescentamos ainda a esta<br />
avaliação um questionário para termos a dimensão <strong>do</strong> conhecimento <strong>do</strong>s participantes<br />
sobre a memória, e como eles se sentem com relação a isto antes e após a pesquisa.<br />
Este trabalho se tornou um <strong>de</strong>safio <strong>de</strong>spertan<strong>do</strong> gran<strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong> e<br />
interesse <strong>do</strong>s participantes tornan<strong>do</strong>-se um estímulo à aquisição e conservação <strong>de</strong><br />
novos conhecimentos. Basea<strong>do</strong>s então nestas ativida<strong>de</strong>s verificou-se uma melhora<br />
consi<strong>de</strong>rável no que se refere à memória, e conseqüentemente melhora em outros<br />
663
664<br />
aspectos da cognição. O “papel”, que antes era imprescindível como apoio para o<br />
canto, já não tem a mesma importância, coreografias são praticadas com <strong>de</strong>senvoltura<br />
e segurança, compromissos não são mais esqueci<strong>do</strong>s. Estas conquistas se esten<strong>de</strong>ram<br />
para o âmbito familiar e social, e foram reconhecidas como fatos reais.<br />
Para os participantes representou a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> que não há limites para novos<br />
conhecimentos, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da faixa etária.<br />
Com base nos pressupostos estuda<strong>do</strong>s, verificou-se que Educação Musical (canto)<br />
não se limita, atualmente, a formar músicos, mas po<strong>de</strong> ser utilizada num contexto<br />
mais abrangente, atuan<strong>do</strong> sobre mecanismos cognitivos (memória) como ferramenta<br />
po<strong>de</strong>rosa na integração/manutenção <strong>do</strong> indivíduo à socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma<br />
prazerosa.<br />
Objetivo<br />
Avaliar até que ponto o canto (coral) po<strong>de</strong> atuar <strong>de</strong> maneira positiva na memória<br />
<strong>do</strong>s participantes <strong>do</strong> grupo e o que isto representa na sua qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida.<br />
Fundamentação<br />
O processo <strong>de</strong> envelhecimento com conseqüente <strong>de</strong>clínio cognitivo e perda da capacida<strong>de</strong><br />
funcional tem preocupa<strong>do</strong> o homem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o inicio da civilização. Inúmeros<br />
estu<strong>do</strong>s têm se <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> sobre o assunto. Parente (2006, p.24) nos<br />
mostra alguns <strong>de</strong>stes estu<strong>do</strong>s:<br />
• o envelhecimento compreen<strong>de</strong> processos <strong>de</strong> transformação <strong>do</strong> organismo que<br />
ocorrem após a maturação sexual, sen<strong>do</strong> acompanha<strong>do</strong> por alterações regulares<br />
na aparência, no comportamento, na experiência e nos papéis sociais (Birren<br />
e Bengston, 1988);<br />
• além <strong>do</strong>s aspectos individuais, existem três <strong>do</strong>mínios gerais a serem consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s<br />
na velhice. O primeiro relaciona-se ao aumento nas perdas físicas, on<strong>de</strong> a<br />
saú<strong>de</strong> ten<strong>de</strong> a ser um problema crescente. O segun<strong>do</strong> acontece quan<strong>do</strong> as pressões<br />
e as perdas sociais ten<strong>de</strong>m a se acumular e o terceiro quan<strong>do</strong> os i<strong>do</strong>sos <strong>de</strong>frontam-se<br />
com a idéia <strong>de</strong> que o tempo está se tornan<strong>do</strong> cada vez mais curto<br />
para eles (Papalia e Olds, 2000);<br />
• a experiência <strong>do</strong> envelhecimento não é homogênea, existin<strong>do</strong> três realida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> envelhecimento:<br />
1 – velhice bem-sucedida ou ótima, quan<strong>do</strong> acontece a preservação da saú<strong>de</strong> objetiva,<br />
da saú<strong>de</strong> auto-referida e da funcionalida<strong>de</strong> no padrão <strong>do</strong> adulto jovem;<br />
2 – velhice usual ou velhice normal, on<strong>de</strong> ocorrem <strong>do</strong>enças físicas e/ou mentais<br />
ou limitações funcionais <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> leve ou mo<strong>de</strong>rada, modifican<strong>do</strong><br />
apenas parcialmente nas ativida<strong>de</strong>s diárias;<br />
3 – velhice com patologia on<strong>de</strong> a funcionalida<strong>de</strong> e o padrão <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> física e<br />
mental <strong>do</strong> adulto jovem foram perdidas ou estão menos níti<strong>do</strong>s, limitan<strong>do</strong> severamente<br />
a vida da pessoa (Neri, 1993).
Atualmente, o interesse da Medicina não é simplesmente a reparação <strong>de</strong> <strong>de</strong>feitos ou<br />
cura <strong>de</strong> males orgânicos que acometem as pessoas, mas sim <strong>de</strong> cuidar <strong>do</strong>s pacientes<br />
numa visão holística, procuran<strong>do</strong> seu bem estar físico e psíquico, com objetivo global<br />
das relações individuais e com o meio ambiente. De acor<strong>do</strong> com Mayr (1991, p.<br />
95) houve uma mudança na “consciência <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>” da comunida<strong>de</strong>. Estes objetivos,<br />
em pessoas i<strong>do</strong>sas, são muitas vezes <strong>de</strong>scuida<strong>do</strong>s, com diminuição da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
vida, e sem encontrar caminhos alternativos para suas dificulda<strong>de</strong>s. Zanini, (2007,<br />
p.94) fala da Síndrome Cerebral Orgânica (SCO), um <strong>do</strong>s mais importantes distúrbios<br />
observa<strong>do</strong>s na comunida<strong>de</strong> entre as pessoas <strong>de</strong> terceira ida<strong>de</strong>, e cita sua <strong>de</strong>finição<br />
segun<strong>do</strong> Veras (1997):<br />
Compreen<strong>de</strong>-se por SCO o comprometimento das funções corticais incluin<strong>do</strong><br />
memória, da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> solucionar problemas cotidianos, da habilida<strong>de</strong> motora,<br />
da linguagem e comunicação e <strong>do</strong> controle das reações emocionais.<br />
Luz apud Azambuja (2008, p.16) confirma esta <strong>de</strong>finição, quan<strong>do</strong> afirma que:<br />
(...) a essas condições somam-se o <strong>de</strong>clínio <strong>de</strong> suas características físicas tais como<br />
rugas, cabelos brancos, diminuição da memória e <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s e muitas outras,<br />
que unidas à sua marginalização <strong>de</strong>terminam alterações psíquicas como a perda<br />
da confiança, da angústia e a <strong>de</strong>pressão.<br />
Concentramos-nos na memória, o que sua diminuição ou perda representa na vida,<br />
e qual a função da música para sua melhoria. O termo memória tem origem etimológica<br />
no latim e <strong>de</strong>fine-se como a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> adquirir (aquisição), armazenar<br />
(conservação) e recuperar (evocação) informações. Ela requer gran<strong>de</strong><br />
quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> energia mental e <strong>de</strong>teriora-se com a ida<strong>de</strong>.<br />
É uma faculda<strong>de</strong> cognitiva extremamente importante, porque forma a base para<br />
a aprendizagem, estan<strong>do</strong> envolvida com a nossa orientação no tempo e no espaço<br />
e nossas habilida<strong>de</strong>s intelectuais e mecânicas. (Car<strong>do</strong>so, p.1)<br />
Manes (2005, p.113) <strong>de</strong>fine aquisição como incorporação e registro da informação;<br />
conservação como guardar a informação na memória até que seja necessária,<br />
em um lugar fácil <strong>de</strong> encontrar e evocação como recuperação da informação quan<strong>do</strong><br />
necessária.<br />
Wil<strong>de</strong>r Penfield, um <strong>do</strong>s mais importantes neurocirurgiões americanos, foi o primeiro<br />
a <strong>de</strong>monstrar que os processos da memória têm localizações específicas no cérebro<br />
humano. Explorou a superfície cortical verifican<strong>do</strong> que a estimulação elétrica<br />
produzia resposta retrospectiva, na qual o paciente <strong>de</strong>screvia uma lembrança correspon<strong>de</strong>nte<br />
a uma experiência vivida. Assim sen<strong>do</strong>, várias áreas cerebrais foram<br />
reconhecidas como participantes <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> memorização.<br />
Segun<strong>do</strong> Izquier<strong>do</strong> (2004, p. 31) os vários tipos <strong>de</strong> memória ocupam e requerem a<br />
ativida<strong>de</strong> simultânea <strong>de</strong> muitas regiões cerebrais (amígdalas, hipocampo, córtex entorrinal<br />
— estruturas <strong>do</strong>s lobos temporais —, córtex pré-frontal) e <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com<br />
sua duração po<strong>de</strong>m ser classificadas em: memória imediata (dura segun<strong>do</strong>s), me-<br />
665
666<br />
mória <strong>de</strong> curta duração (dura <strong>de</strong> uma a seis horas) e memória <strong>de</strong> longa duração<br />
(dura muitas horas, dias ou anos).<br />
Na memória imediata encontramos e chamada Memória <strong>de</strong> trabalho ou operacional,<br />
que persiste por alguns segun<strong>do</strong>s ou minutos além <strong>do</strong> fato ou <strong>do</strong> evento a que<br />
se refere. É um armazenamento temporário e baseia-se na ativida<strong>de</strong> <strong>do</strong> córtex préfrontal.<br />
Em alguns casos há a participação neste tipo <strong>de</strong> memória <strong>do</strong> córtex entorrinal<br />
e <strong>do</strong> hipocampo. A Memória <strong>de</strong> curta duração nos dá a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
respon<strong>de</strong>r aquilo que acabamos <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r, enquanto a Memória <strong>de</strong>finitiva ou <strong>de</strong><br />
longa duração ainda não está construída. Nestes casos, há a participação <strong>do</strong> hipocampo,<br />
córtex entorrinal e córtex parietal.<br />
Quanto ao conteú<strong>do</strong>, Izquier<strong>do</strong> (2004, p. 23) classifica as memórias em: Memória<br />
<strong>de</strong> trabalho (que não <strong>de</strong>ixa arquivo permanente), Memória <strong>de</strong>clarativa (relacionada<br />
com atos conscientes) subdividida em Memória episódica (armazenamento e<br />
recordação <strong>de</strong> experiências e eventos temporais vivi<strong>do</strong>s) e Memória semântica armazenamento<br />
permanente <strong>de</strong> conhecimentos, <strong>de</strong> palavras e seus significa<strong>do</strong>s), e<br />
Memória procedural que provém da aquisição <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong> sensoriais e/ou motoras<br />
. São também <strong>de</strong>nominadas <strong>de</strong> hábitos e não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> um pensamento<br />
consciente, ou seja, a partir <strong>do</strong> momento que são apreendidas, são executadas inconscientemente.<br />
A memória <strong>de</strong>clarativa é processada basicamente pelo hipocampo,<br />
córtex entorrinal, córtex parietal e córtex cingula<strong>do</strong> anterior e posterior. Já a memória<br />
procedural é processada inicialmente pelo hipocampo, sen<strong>do</strong> <strong>de</strong>pois controlada<br />
pelo núcleo cauda<strong>do</strong>, cerebelo e suas conexões.<br />
Quanto à evocação das memórias, as mesmas estruturas cerebrais são ativadas. Há<br />
controvérsias se as falhas <strong>de</strong> memórias são causadas por dificulda<strong>de</strong> no aprendiza<strong>do</strong><br />
da nova informação (aquisição) ou na recuperação da informação apreendida (Me<strong>de</strong>ros<br />
e Ramos, 1992, p.15).<br />
Luz (2008, p.39) se refere a Mercadante (2003, p.56), quan<strong>do</strong> menciona que:<br />
O mo<strong>de</strong>lo social <strong>de</strong> velho, as qualida<strong>de</strong>s a ele atribuídas são estigmatiza<strong>do</strong>ras e<br />
contrapostas às atribuídas aos jovens. Assim sen<strong>do</strong>, qualida<strong>de</strong>s como ativida<strong>de</strong>,<br />
produtivida<strong>de</strong>,memória,belezaeforçasãocaracterísticasepresentesnocorpo<strong>do</strong>s<br />
indivíduos jovens e as qualida<strong>de</strong>s opostas a estas presentes no corpo <strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos.<br />
Zimerman (2000, p.141) em seus estu<strong>do</strong>s sobre memória nos lembra sobre o mito<br />
que existe em relação aos i<strong>do</strong>sos <strong>de</strong> que to<strong>do</strong>s são “esqueci<strong>do</strong>s”, o que acaba geran<strong>do</strong><br />
me<strong>do</strong> <strong>de</strong> não lembrar, levan<strong>do</strong> à insegurança frente a situações <strong>de</strong> aprendizagem.<br />
Este me<strong>do</strong>, insegurança e falta <strong>de</strong> motivação faz com ele não se concentre, não preste<br />
atenção, não armazene as informações recebidas e com isto <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> usar sua memória.<br />
Outro aspecto importante ainda segun<strong>do</strong> Zimerman (i<strong>de</strong>m, p.141) é a dificulda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> memorizar nas pessoas que possuem autocrítica exagerada. O “não consigo”, o<br />
“me<strong>do</strong> <strong>de</strong> errar”, a “obrigação <strong>de</strong> sempre acertar”, <strong>de</strong> “não esquecer nunca”, gera ver-
gonha, culpa e sentimento <strong>de</strong> inferiorida<strong>de</strong> e falta <strong>de</strong> interesse. O estímulo ao interesse<br />
então se faz necessário em to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s como político, econômico, cultural,<br />
alimentar, <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong> socialização, <strong>de</strong> estética, etc.<br />
Em que então a Música po<strong>de</strong>ria ser útil em to<strong>do</strong> este processo? Como a aprendizagem<br />
musical po<strong>de</strong>ria influenciar e <strong>de</strong>safiar preconceitos em relação à capacida<strong>de</strong><br />
memorial das pessoas na maturida<strong>de</strong>? Pensamos então na aprendizagem musical visan<strong>do</strong><br />
possibilida<strong>de</strong>s e não reiteran<strong>do</strong> dificulda<strong>de</strong>s.<br />
Kenneth Bruscia, musicoterapeuta coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r <strong>do</strong> PhD em Musicoterapia da<br />
Temple University, na Filadélfia, i<strong>de</strong>ntificou seis gran<strong>de</strong>s áreas <strong>de</strong> atuação em Musicoterapia:<br />
didática, médica, cura, psicoterapêutica, recreativa e ecológica. (2000<br />
p.165). Po<strong>de</strong>mos fazer uma correlação entre a Musicoterapia e a Educação Musical<br />
(com objetivo <strong>de</strong> trabalhar a memória e conseqüentemente atuar na cognição<br />
social), utilizan<strong>do</strong> esta classificação em alguns aspectos <strong>de</strong>ste trabalho:<br />
• A área didática “tem como foco ajudar os clientes a adquirirem conhecimentos,<br />
comportamentos e habilida<strong>de</strong>s necessários para uma vida funcional, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
e para a adaptação social; <strong>de</strong>senvolver conhecimentos e habilida<strong>de</strong>s<br />
musicais que se relacionam especificamente com as áreas <strong>de</strong> funcionamento<br />
não musical e utilizar a música e ativida<strong>de</strong>s artísticas como um apoio ao aprendiza<strong>do</strong><br />
não musical.” (Bruscia, ibi<strong>de</strong>m, p.183).<br />
• A área médica “inclui todas as aplicações da música ou da musicoterapia em<br />
que o foco primário é ajudar o cliente a melhorar, recuperar ou manter a saú<strong>de</strong><br />
física. As abordagens utilizadas são todas cujo foco situa-se no tratamento direto<br />
<strong>de</strong> <strong>do</strong>enças ou traumas biomédicos bem como aquelas que abordam os fatores<br />
psicossociais correlaciona<strong>do</strong>s.” (ibi<strong>de</strong>m, p.168). Este trabalho abor<strong>do</strong>u,<br />
na verda<strong>de</strong> estes <strong>do</strong>is focos: biomédico objetivan<strong>do</strong> mudanças na condição física<br />
das participantes; psicossocial quan<strong>do</strong> atua para modificar fatores mentais,<br />
emocionais, sociais ou espirituais que contribuem para o problema biomédico,<br />
ou ainda oferecen<strong>do</strong> apoio psicossocial ao longo <strong>de</strong> uma <strong>do</strong>ença ou convalescência.<br />
• A área <strong>de</strong> cura “utiliza as proprieda<strong>de</strong>s universais da vibração, <strong>do</strong> som e da música<br />
com propósito <strong>de</strong> restabelecer a harmonia <strong>do</strong> indivíduo e entre o indivíduo<br />
e o universo”. (ibi<strong>de</strong>m, p.210) A premissa básica é que na medida em que o<br />
corpo entra em harmonia, a psique e o espírito o acompanham. Nesta prática,<br />
pelo fato <strong>do</strong> processo ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> “natural’, o indivíduo modifica sua saú<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> forma in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. No que se refere ao som, utilizamos neste grupo harmonias<br />
vocais, trabalho <strong>de</strong> respiração e voz. Na música, experiências musicais<br />
ativas (cantar, tocar instrumentos, improvisar, compor) e receptivas (ouvir,<br />
imaginar, relaxar). Dentro <strong>do</strong>s objetivos das experiências musicais (ibi<strong>de</strong>m, p.<br />
124 -129), tomamos para orientação:<br />
— melhorar a atenção e a orientação;<br />
— <strong>de</strong>senvolver a memória;<br />
667
668<br />
— apren<strong>de</strong>r a <strong>de</strong>sempenhar papéis específicos nas várias situações interpessoais;<br />
— <strong>de</strong>senvolver e melhorar as habilida<strong>de</strong>s interativas e <strong>de</strong> grupo;<br />
— explorar os vários aspectos <strong>do</strong> eu na relação com os outros;<br />
— <strong>de</strong>senvolver a criativida<strong>de</strong>, a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão, a espontaneida<strong>de</strong> e<br />
capacida<strong>de</strong> lúdica;<br />
— estimular e <strong>de</strong>senvolver os senti<strong>do</strong>s;<br />
— <strong>de</strong>senvolver habilida<strong>de</strong>s perceptivas e cognitivas;<br />
— evocar esta<strong>do</strong>s e experiências afetivas;<br />
— estimular fantasias e imaginação; e<br />
— facilitar a memória, as reminiscências e as regressões.<br />
• A área musico-psicoterapêutica “ocupa-se <strong>de</strong> ajudar ao indivíduo a encontrar<br />
senti<strong>do</strong> e satisfação em sua vida” (ibi<strong>de</strong>m, p. 222). É utilizada para manter a<br />
saú<strong>de</strong> psicológica ou intensificar o crescimento e a realização pessoal. Neste<br />
senti<strong>do</strong>, em nosso trabalho, ela (música) objetivou aguçar a atenção, a memória<br />
e a percepção, <strong>de</strong>senvolver a criativida<strong>de</strong>, dissipar a solidão, reduzir stress<br />
ou ansieda<strong>de</strong>, elevar a auto-estima, estabelecer ou <strong>de</strong>senvolver contato com outras<br />
pessoas, aprimorar habilida<strong>de</strong>s cognitivas.<br />
• A área recreativa “abrange todas as aplicações da música e das ativida<strong>de</strong>s musicais<br />
e da musicoterapia em que o foco recaia sobre o divertimento, a recreação,<br />
as ativida<strong>de</strong>s ou o entretenimento.” (ibi<strong>de</strong>m, p.234). Estas ativida<strong>de</strong>s foram por<br />
nós utilizadas, visan<strong>do</strong> melhorar a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida das participantes.<br />
• A área ecológica “inclui todas as aplicações da música e da musicoterapia em<br />
que o foco primário é promover a saú<strong>de</strong> em e entre os vários extratos sócio-culturais<br />
da comunida<strong>de</strong> e/ou <strong>do</strong> ambiente físico. Inclui to<strong>do</strong>s os trabalhos que focalizam<br />
a família, os locais <strong>de</strong> trabalho, a comunida<strong>de</strong>, a socieda<strong>de</strong>, a cultura e<br />
o ambiente físico.” (ibi<strong>de</strong>m, p. 238). Com estas orientações, tentamos por meio<br />
<strong>do</strong> canto, estabelecer uma atmosfera convidativa à conversação, estimular habilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> articulação e organização com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir mudanças,<br />
promover mudanças internas que contribuam no relacionamento familiar, estimular<br />
a presença e a participação em eventos artísticos.<br />
Ruud (1990, p.74), citan<strong>do</strong> Michel e Martin (1970) reitera nosso objetivo quan<strong>do</strong><br />
diz:<br />
O <strong>de</strong>senvolvimento da habilida<strong>de</strong> musical po<strong>de</strong> se constituir em ajuda no aumento<br />
da auto estima . . . e, conseqüentemente, po<strong>de</strong> se generalizar em aumento<br />
da autoconfiança em outras tarefas.<br />
O po<strong>de</strong>r da música vai muito longe. Sekeff (2002, p. 72) nos afirma que o estímulo<br />
musical mobiliza nossa ativida<strong>de</strong> motora, graças a seu ritmo, esten<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-se por<br />
nossa respiração circulação, digestão, oxigenação, dinamismo nervoso e humoral,<br />
sobre as operações mentais, cria consciência <strong>do</strong> movimento, propician<strong>do</strong> o controle<br />
<strong>do</strong> sistema motor. Afirma ainda que a música diminui nosso limiar em relação<br />
a estímulos sensoriais <strong>de</strong> diferentes tipos, alivian<strong>do</strong> inquietações, ansieda<strong>de</strong>s,<br />
me<strong>do</strong>s. Induz calma e bem-estar. Atua no córtex cerebral, no sistema neurovegeta-
tivo, no ritmo cardíaco, na respiração, motiva, emociona, move a química cerebral<br />
e influencia a conduta (2002, p.75). Age no aparelho fona<strong>do</strong>r, pelo canto, proporcionan<strong>do</strong><br />
higiene da voz e a solução <strong>de</strong> problemas vocais (2002, p.78).<br />
Quanto à memória, a aprendizagem musical proporcionará armazenamento e reutilização<br />
<strong>de</strong> aquisições, bem como o hábito da escuta musical levará à especialização<br />
<strong>de</strong> certo número <strong>de</strong> células <strong>do</strong> córtex cerebral que possibilita o conhecimento e reconhecimentos<br />
<strong>do</strong>s sons musicais. A música age sobre nosso sistema límbico, lugar<br />
on<strong>de</strong> a mente e o corpo se interconectam, on<strong>de</strong> o pensamento encontra a emoção<br />
e on<strong>de</strong> o sistema endócrino faz uma interface com o cérebro. Como ela (música)<br />
fala diretamente a nossas emoções, interessa a este sistema, também chama<strong>do</strong> “cérebro<br />
emocional” sen<strong>do</strong> ele quem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> se vale à pena armazenar uma memória, se<br />
ela é importante o suficiente para um armazenamento permanente. Daí a importância<br />
da música, <strong>do</strong> som, da melodia, <strong>do</strong> timbre e <strong>do</strong> ritmo sobre a memória (Sekeff,<br />
2002, p. 114).<br />
Outro aspecto importante para estimulo <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong> e da memória é a novida<strong>de</strong>,<br />
tornan<strong>do</strong> mais agradável e eficiente o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r, potencializan<strong>do</strong> a memória<br />
<strong>de</strong> longa duração (Fenker e Schutze, 2009, p.43) e com isto a memória, bem<br />
como to<strong>do</strong>s os outros aspectos cognitivos serão passíveis <strong>de</strong> melhora.<br />
Assim, a aprendizagem e a memória serão o suporte para nosso conhecimento, habilida<strong>de</strong>s<br />
e planejamento, fazen<strong>do</strong>-nos consi<strong>de</strong>rar o passa<strong>do</strong>, nos situarmos no presente<br />
e prevermos o futuro.<br />
Meto<strong>do</strong>logia<br />
Este estu<strong>do</strong> foi realiza<strong>do</strong> num grupo, i<strong>de</strong>aliza<strong>do</strong> pela USIMED (empresa brasileira <strong>de</strong><br />
responsabilida<strong>de</strong> social, <strong>de</strong>stinada aos usuários <strong>do</strong> plano <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> UNIMED), composto<br />
atualmente <strong>de</strong> 35 participantes <strong>do</strong> sexo feminino, com ida<strong>de</strong> superior a 50<br />
anos (52-90), por um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1 ano (a Oficina <strong>de</strong> Música funciona há 5 anos).<br />
Os encontros se realizam uma vez por semana, por um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1 hora e 30 minutos.<br />
Inicialmente o trabalho foi <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> <strong>de</strong> Oficina <strong>de</strong> Música (parte <strong>do</strong><br />
projeto USI-<strong>VI</strong>DA, também com oficinas <strong>de</strong> artesanato, <strong>de</strong> ginástica, <strong>de</strong> memória,<br />
<strong>de</strong> convivência), mas aos poucos se transformou em um coral, a que <strong>de</strong>nominamos<br />
CORAL USIMED. Não há seleção <strong>de</strong> pessoas, e utiliza-se o canto como base para a<br />
educação musical.<br />
Através <strong>do</strong> canto, introduzimos noções <strong>de</strong> ritmo, dinâmica, pulso, tipos <strong>de</strong> compassos,<br />
tom e semitom, pausa, ritornello, frases musicais, escala ascen<strong>de</strong>nte e <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte<br />
(utilizan<strong>do</strong> simultaneamente movimentos no corpo para cima e para<br />
baixo), sons graves e agu<strong>do</strong>s, vocalizes, divisão <strong>de</strong> vozes, “fala métrica” (a maioria não<br />
tem conhecimento <strong>de</strong> notação musical), <strong>de</strong> harmonia, afinação e jogos cênicos, musicalida<strong>de</strong><br />
corporal, etc. Uma nova tarefa foi instituída a cada encontro.<br />
A história musical (técnica musicoterapeutica) <strong>de</strong> cada participante foi e é sempre<br />
669
670<br />
evocada, permitin<strong>do</strong> assim que memórias remotas sejam trazidas à tona.<br />
Outro aspecto importante para estímulo <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong> e da memória utiliza<strong>do</strong> foi<br />
a novida<strong>de</strong>, tornan<strong>do</strong> mais agradável e eficiente o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r, potencializan<strong>do</strong><br />
a memória <strong>de</strong> longa duração.<br />
A avaliação foi feita através da observação <strong>do</strong> grupo no que diz respeito à memorização<br />
<strong>de</strong> novas letras e melodias, <strong>de</strong> letras <strong>de</strong> músicas antigas, <strong>de</strong> letras em línguas<br />
estrangeiras, <strong>de</strong> coreografias, <strong>de</strong> diferentes vozes, <strong>de</strong> tarefas solicitadas, <strong>do</strong> conhecimento<br />
teórico musical ofereci<strong>do</strong>, da presença nos encontros e apresentações, e <strong>do</strong><br />
comportamento e atitu<strong>de</strong>s relacionadas à sua vida familiar e social.<br />
A meto<strong>do</strong>logia incluiu reuniões com objetivo <strong>de</strong> avaliação pessoal, <strong>de</strong> cada participante<br />
pelo grupo e <strong>do</strong> grupo como um to<strong>do</strong>.<br />
Síntese <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>, resulta<strong>do</strong>s e conclusão<br />
A partir <strong>de</strong> observações baseadas nas diversas ativida<strong>de</strong>s propostas e <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com<br />
um questionário (que to<strong>do</strong>s os participantes concordaram em respon<strong>de</strong>r, anonimamente),<br />
verificou-se maior liberda<strong>de</strong> frente aos <strong>de</strong>safios musicais e cênicos lança<strong>do</strong>s.<br />
Ativida<strong>de</strong>s que no início só eram possíveis com auxilio e apoio <strong>de</strong> “um papel”,<br />
aos poucos foram sen<strong>do</strong> executadas livremente, sem que nenhuma forma <strong>de</strong> apoio<br />
fosse necessária. Para que isto acontecesse atenção e concentração foram necessárias,<br />
em vários tipos <strong>de</strong> exercícios.<br />
Apoiamos-nos em Bang (1991, p.31) quan<strong>do</strong> afirma ser a música uma das melhores<br />
maneiras <strong>de</strong> manter a atenção <strong>de</strong> um ser humano, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à constante mistura<br />
<strong>de</strong> estímulos novos e estímulos já conheci<strong>do</strong>s. Buscamos a musicalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s participantes,<br />
pois como <strong>de</strong>fine ainda Bang (i<strong>de</strong>m, p.31), é a aptidão <strong>de</strong> reagir aos estímulos<br />
musicais e criar música. Diz ainda que aspectos humanos fundamentais estão<br />
conti<strong>do</strong>s nos diversos meios pelos quais uma pessoa vivencia a música, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong><br />
abrir perspectivas para pessoas consi<strong>de</strong>radas normais, que em algum momento são<br />
colocadas em situação <strong>de</strong>svantajosa, tolhidas pelo sistema.<br />
Somente <strong>do</strong>is participantes (7,8%) não referiram melhora na memória (uma <strong>de</strong>las<br />
é professora <strong>de</strong> línguas e a outra participa <strong>de</strong> grupos musicais religiosos), Por outro<br />
la<strong>do</strong>, 92,2% <strong>do</strong>s participantes referiram melhora no que diz respeito à memória<br />
principalmente no que se refere a armazenamento <strong>de</strong> números, textos e compromissos<br />
assumi<strong>do</strong>s. Confirmamos estes aspectos pelas afirmações das participantes:<br />
“Fiquei mais atenta, conseguin<strong>do</strong> reter por mais tempo as lembranças”; “Consigo<br />
memorizar mais rápi<strong>do</strong>”; “Consigo pensar mais rápi<strong>do</strong>”; “Estou muito mais antenada,<br />
fui apren<strong>de</strong>r tecla<strong>do</strong>, cumpro meus compromissos sem esquecê-los, com<br />
muito mais facilida<strong>de</strong>”; “Fico mais alerta”;”Consigo cantar sem partitura (algumas<br />
músicas); “Porque as letras são memorizadas com a repetição e a melodia durante<br />
as aulas”; “Mais concentração”; “Estou mais ativa na leitura”.<br />
Estes resulta<strong>do</strong>s nos levaram aos familiares, que reiteraram as mudanças nos participantes<br />
no que diz respeito à convivência. Estas mudanças foram confirmadas nos
seguintes <strong>de</strong>poimentos: “Mais ânimo <strong>de</strong> viver”; “Amar e sentir emoções verda<strong>de</strong>iras”;<br />
“Mais atualizada”; “Me aju<strong>do</strong>u muito a melhorar”. Dois aspectos importantes<br />
e que não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> comentar são: após alguns meses <strong>de</strong> participação<br />
nas ativida<strong>de</strong>s, houve melhora significativa no resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> EEG (eletroencefalograma)<br />
em uma das participantes e, numa outra, mudança significativa no aparelho<br />
fona<strong>do</strong>r (através <strong>de</strong> exercícios respiratórios).<br />
O cantar tornou-se elemento importantíssimo neste contexto, como base <strong>de</strong> alterações<br />
e construções internas para transformações externas como, por exemplo, a<br />
abertura <strong>de</strong> uma nova forma <strong>de</strong> comunicação com o mun<strong>do</strong>.<br />
To<strong>do</strong>s estes aspectos analisa<strong>do</strong>s nos levam a concluir que o canto, como estímulo<br />
musical visan<strong>do</strong> trabalhar a memória, <strong>de</strong>monstrou melhora da auto estima e da<br />
qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>stas pessoas, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser utiliza<strong>do</strong> num contexto mais abrangente,<br />
como ferramenta po<strong>de</strong>rosa na integração/reintegração <strong>do</strong> indivíduo à socieda<strong>de</strong><br />
.<br />
Referências bibliográficas<br />
Bang, Claus. Um Mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> Som e Música. in: Ruud, Even (Org) Música e Saú<strong>de</strong>. São Paulo:<br />
Summus, 1991.<br />
Bruscia, Kenneth. Definin<strong>do</strong> Musicoterapia. 2ª edição. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Enelivros, 2000.<br />
Fenker, Daniela; Schutze, Hartmut. O Fascínio da Surpresa. in: Revista Mente e Cérebro.<br />
São Paulo: Ediouro, Fevereiro, 2009.<br />
Izquier<strong>do</strong>, Ivan. Questões sobre Memória. São Leopol<strong>do</strong>: Unisinos, 2004.<br />
Luz, Marcelo Caires. Educação Musical na Maturida<strong>de</strong>. São Paulo: Editora Som, 2008.<br />
Manes, Facun<strong>do</strong>. Convivir con Personas con Enfermidad <strong>de</strong> Alzheimer o otras Demencias.<br />
Buenos Aires: Daniela Palais Ediciones, 2005.<br />
Mayr, Albert. Música, tempo e saú<strong>de</strong>. In: Ruud, Even (Org). Música e Saú<strong>de</strong>. São Paulo:<br />
Summus, 1991.<br />
Me<strong>de</strong>ros, Juan Carlos Rocabruno; Ramos, Osval<strong>do</strong> Prieto. Gerontologia y Geriatria Clinica.<br />
Ciudad <strong>de</strong> La Habana: Editorial Ciencias Médicas, 1992.<br />
Parente, Maria Alice <strong>de</strong> Mattos Pimenta et al. <strong>Cognição</strong> e envelhecimento. Porto Alegre: Artmed,<br />
2006.<br />
Sekeff, Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s. Da música: seus usos e recursos. São Paulo: UNESP, 2002.<br />
Ruud, Even. Música e Saú<strong>de</strong>. São Paulo. Summus, 1991.<br />
Zanini, Claudia Regina <strong>de</strong> Oliveira. Coro Terapêutico – um Olhar <strong>do</strong> Musicoterapeuta<br />
para o I<strong>do</strong>so no Novo Milênio. in: Barcellos, Lia Rejane M. (Org). Vozes da Musicoterapia<br />
Brasileira. São Paulo: Apontamentos Editora, 2007.<br />
Zimerman, Guite I. Velhice: aspectos biopsicossociais. Porto Alegre: Armed, 2000.<br />
Referências Webgráficas<br />
Car<strong>do</strong>so, Silvia Helena. Memória: O que é e Como Melhorá-la. http://www.cerebromente.org.br/<br />
01/memo/memória.htm. Acesso em 17 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2009.<br />
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mem%C3%B3ria. Memória. Acesso em 17<strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2009.<br />
671
672<br />
A referência <strong>do</strong> outro:<br />
aquisição <strong>do</strong> conhecimento através da interação<br />
Simone Braga<br />
ssmmbraga@hotmail.com<br />
Tais Dantas<br />
tais.dantas@hotmail.com.br<br />
Programa <strong>de</strong> Pós-graduação – Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia<br />
Resumo<br />
Este artigo relata uma experiência realizada na disciplina Canto coral, em curso profissionalizante<br />
<strong>de</strong> música, valen<strong>do</strong>-se da interação e observação entre alunos. No Canto<br />
coral o resulta<strong>do</strong> coletivo é <strong>de</strong>terminante para assegurar a qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong> grupo. Todavia,<br />
este resulta<strong>do</strong> é a soma <strong>do</strong> esforço individual <strong>de</strong> cada participante, a se respeitar e consi<strong>de</strong>rar<br />
no processo educacional. A co-relação entre individualida<strong>de</strong> e coletivida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rá<br />
trazer sal<strong>do</strong>s positivos na utilização da individualida<strong>de</strong> como referencial para a coletivida<strong>de</strong><br />
neste processo. As bases teóricas fundamentaram-se no conceito <strong>de</strong> zona <strong>de</strong> Desenvolvimento<br />
Proximal proposto por Vygotsky, que diz respeito a aquisição <strong>de</strong><br />
conhecimento pela interação entre indivíduo on<strong>de</strong>, através da colaboração <strong>de</strong> pessoas<br />
mais capazes, o indivíduo progri<strong>de</strong> para um nível <strong>de</strong> conhecimento mais eleva<strong>do</strong>. O<br />
papel <strong>de</strong> uma pessoa mais capacitada po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sempenha<strong>do</strong> tanto pelo professor<br />
quanto por outro aluno que <strong>de</strong>tenha as condições necessárias para a resolução da tarefa.<br />
Diante <strong>de</strong>stes pressupostos a experiência ora apresentada utilizou a interação entre<br />
alunos através da utilização <strong>do</strong> referencial <strong>do</strong> outro obti<strong>do</strong> pela observação como estratégia<br />
para promover o <strong>de</strong>senvolvimento da cognição musical. Para auxiliar o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
das ativida<strong>de</strong>s propostas utilizou-se como referencial o Mo<strong>de</strong>lo C.(L).A.(S).P,<br />
proposto por Swanwick. A experiência foi realizada em curso profissionalizante <strong>de</strong> música,<br />
aplicada com a<strong>do</strong>lescentes e jovens na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r, cujos resulta<strong>do</strong>s pu<strong>de</strong>ram<br />
ser observa<strong>do</strong>s no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong>s alunos. Comparar e verbalizar a partir da<br />
referência <strong>do</strong> outro, proporcionou a reflexão e auto-análise <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s,<br />
<strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> vocabulários específicos, compreensão <strong>do</strong> processo respiratório e manipulativo<br />
da voz e o <strong>de</strong>senvolvimento da apreciação auditiva mais refinada.<br />
Palavras-chave<br />
Referência <strong>do</strong> outro, interação, cognição musical.<br />
Introdução<br />
No campo das teorias a respeito da aprendizagem e <strong>de</strong>senvolvimento cognitivo humano,<br />
Vygotsky vem acrescentar o conceito <strong>de</strong> agregação e aquisição <strong>de</strong> conhecimento<br />
a partir da interação entre indivíduos. “A teoria Vygotskyana compreen<strong>de</strong><br />
que o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> sujeito, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da vida, ocorre em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />
processo <strong>de</strong> apropriação que ele realiza <strong>do</strong>s significa<strong>do</strong>s culturais que o circundam,
o que faz ascen<strong>de</strong>r a uma condição eminentemente humana, <strong>de</strong> ser, <strong>de</strong> linguagem,<br />
consciência e ativida<strong>de</strong>, transforman<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> biológico em sócio-histórico” (Nunes<br />
e Silveira 2009, 98).” Vygotsky “a<strong>do</strong>tou a idéia <strong>de</strong> que as capacida<strong>de</strong>s cognitivas das<br />
crianças são construídas em interação com as oportunida<strong>de</strong>s e orientação proporcionadas<br />
pelo ambiente” (Fontana 2002, 80). Uma das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> efetivação<br />
da aprendizagem ocorre através das trocas proporcionadas pela Zona <strong>de</strong><br />
Desenvolvimento Proximal – ZDP. Vygotsky propõe que a ZDP caracteriza-se por<br />
uma zona entre o <strong>de</strong>sempenho real on<strong>de</strong> um indivíduo é capaz <strong>de</strong> solucionar um<br />
problema sem auxílio e um nível mais eleva<strong>do</strong> que é alcança<strong>do</strong> através da orientação<br />
e interferência <strong>do</strong> outro. De acor<strong>do</strong> com Goulart (2007, 174), “a zona <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
proximal caracteriza as funções que ainda não amadureceram, mas<br />
que estão em processo <strong>de</strong> maturação, que estão em esta<strong>do</strong> embrionário. Tais funções<br />
po<strong>de</strong>m ser estimuladas pelo educa<strong>do</strong>r, <strong>de</strong>linean<strong>do</strong> o futuro imediato da criança<br />
e o esta<strong>do</strong> dinâmico <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>senvolvimento.”<br />
A importância da ZDP para o ensino em grupo diz respeito não só ao conhecimento<br />
transmiti<strong>do</strong> <strong>do</strong> professor para o aluno, mas também às interações entre os<br />
próprios alunos. Pois, como coloca Antunes (2002, 27) Vygotsky não <strong>de</strong>senvolveu<br />
claramente a concepção <strong>de</strong> que o auxílio seria da<strong>do</strong> unicamente pelo professor, embora<br />
muitos estudiosos <strong>de</strong>duzam que a proposta sugere tal papel. Mas como po<strong>de</strong><br />
ser visto na prática pedagógica a interação entre alunos po<strong>de</strong> proporcionar enormes<br />
ganhos cognitivos, como po<strong>de</strong>rá ser visto no relato <strong>de</strong> experiência presente neste artigo.<br />
Vale salientar, que entre os alunos este auxílio po<strong>de</strong> estar presente na orientação<br />
direta através <strong>de</strong> indicações e explicações verbais, bem como na observação <strong>do</strong><br />
outro na realização <strong>de</strong> tarefas.<br />
Outras pesquisas abordam a importância da interação entre alunos no processo <strong>de</strong><br />
aprendizagem. Dantas (2010) constatou através <strong>de</strong> pesquisa realizada com <strong>do</strong>is grupos<br />
<strong>de</strong> ensino coletivo que a aprendizagem musical em grupo proporciona um ambiente<br />
on<strong>de</strong> os alunos po<strong>de</strong>m observar e fazer comparações entre si, e <strong>de</strong>sta maneira<br />
a referência <strong>do</strong> outro permite a verificação <strong>do</strong> seu nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho. Estas observações<br />
entre os alunos possibilitam também a formação <strong>do</strong> autoconceito acadêmico,<br />
que diz respeito à percepção que o aluno tem em relação ao seu <strong>de</strong>sempenho<br />
escolar. Ter outro indivíduo como referencial no processo <strong>de</strong> aprendizagem proporciona<strong>do</strong><br />
pela observação, constitui-se num fator relevante na motivação <strong>do</strong><br />
aluno, uma vez que o mesmo po<strong>de</strong> se espelhar e se sentir mais próximo <strong>de</strong> sua realida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> aprendizagem. Além disso, ao verificar seu nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho o aluno<br />
acaba por criar metas e <strong>de</strong>sta forma, percebe-se que, na busca para alcançar melhores<br />
resulta<strong>do</strong>s em seu <strong>de</strong>sempenho musical, a motivação extrínseca existente neste<br />
processo impulsiona o aluno em direção a seus objetivos. Verifica-se também que<br />
quan<strong>do</strong> um aluno almeja obter resulta<strong>do</strong>s semelhantes aos <strong>de</strong> outro colega, o<br />
mesmo busca um reconhecimento pelo grupo <strong>de</strong> suas capacida<strong>de</strong>s, também basea<strong>do</strong><br />
673
674<br />
na motivação extrínseca existente no processo <strong>de</strong> aprendizagem. “A motivação extrínseca<br />
tem si<strong>do</strong> <strong>de</strong>finida como a motivação para trabalhar em resposta a algo externo<br />
à tarefa ou ativida<strong>de</strong>, como para obtenção <strong>de</strong> recompensas materiais ou sociais,<br />
<strong>de</strong> reconhecimento, objetivan<strong>do</strong> aten<strong>de</strong>r aos coman<strong>do</strong>s ou pressões externas <strong>de</strong> outras<br />
pessoas ou para <strong>de</strong>monstrar competências ou habilida<strong>de</strong>s” (Guimarães 2001,<br />
46).<br />
A motivação fortalece a interação e a comparação entre pares ao promover a troca<br />
<strong>de</strong> valiosas experiências. Para o educa<strong>do</strong>r Swanwick (2003, p. 68), o acesso a experiências<br />
variadas na área <strong>de</strong> educação musical garantem o respeito a características<br />
individuais <strong>do</strong>s alunos. O autor propõe um Mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> <strong>de</strong> C.(L). A.(S).<br />
P., em que as características individuais se integram às ativida<strong>de</strong>s vivenciadas e possibilitam<br />
respostas diferentes a situações variadas: “Compor, tocar e apreciar: cada<br />
ativida<strong>de</strong> tem a sua parte a <strong>de</strong>sempenhar. Desta forma, as diferenças individuais<br />
<strong>do</strong>s alunos po<strong>de</strong>m ser respeitadas [...]” (Swanwick, 2003, p. 68). Estas características<br />
são <strong>de</strong>nominadas por Swanwick (2003, p. 18) <strong>de</strong> discurso musical e representam<br />
os saberes musicais <strong>de</strong> cada indivíduo. Segun<strong>do</strong> o educa<strong>do</strong>r, o fazer musical é<br />
um discurso e <strong>de</strong>ve ser exerci<strong>do</strong> com fluência <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong>. Este<br />
discurso po<strong>de</strong> ser valoriza<strong>do</strong> e contribuir para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> saberes musicais<br />
por meio da sua troca entre pares ou a utilização <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> outro como referencial.<br />
O Mo<strong>de</strong>lo proposto pelo autor, além <strong>de</strong> valorizar as individualida<strong>de</strong>s, permite a<br />
construção da compreensão musical <strong>de</strong> forma globalizada através <strong>de</strong> experiências diversificadas<br />
ao abordar parâmetros <strong>de</strong> técnica, execução, composição, literatura e<br />
apreciação. Criam-se condições didáticas para o ouvir (apreciação), criar (composição)<br />
e fazer (execução), perpassan<strong>do</strong> por informações (literatura) e procedimentos<br />
<strong>de</strong> como fazer (técnica). Três <strong>de</strong>stes parâmetros são consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s centrais pela<br />
associação direta com o fazer musical: apreciação, composição e execução. Os outros<br />
<strong>do</strong>is, literatura e técnica, fornecem subsídios e apoio na produção <strong>do</strong>s parâmetros<br />
centrais a ser <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> forma equilibrada.<br />
Apoian<strong>do</strong>-se nestes pressupostos teóricos, o artigo relata uma experiência realizada<br />
na disciplina Canto coral, em curso profissionalizante <strong>de</strong> música, aplicada com a<strong>do</strong>lescentes<br />
e jovens na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r. A estratégia <strong>de</strong> ensino a<strong>do</strong>tada valeu-se da<br />
interação e observação entre os alunos para a promoção <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
musical.<br />
Espelhos em canto coral: a referência <strong>do</strong> outro<br />
Em uma aula instrumental, a partir <strong>de</strong> seu campo <strong>de</strong> visão, o aluno explora a topografia<br />
<strong>do</strong> instrumento e to<strong>do</strong> o funcionamento motor corporal envolvi<strong>do</strong> nesta<br />
prática. O confronto das imagens <strong>de</strong>sta manipulação e <strong>do</strong>s movimentos corporais
permite associá-las com as orientações <strong>do</strong>centes e favorecem a construção <strong>do</strong> conhecimento.<br />
A visão torna-se um recurso facilita<strong>do</strong>r na iniciação musical. Entretanto,<br />
no canto coral este processo é limita<strong>do</strong>. A voz, produzida pela vibração das<br />
pregas vocais, comparada a um instrumento, não po<strong>de</strong> ser vista a olho nu, assim<br />
como outros movimentos intrínsecos na prática vocal, como, por exemplo, a compressão<br />
<strong>do</strong> diafragma no apoio respiratório.<br />
Todavia, várias são as estratégias utilizadas por regentes para facilitar a compreensão<br />
e diminuir o grau <strong>de</strong> abstração intrínseco nesta ativida<strong>de</strong>, sobretu<strong>do</strong> no início<br />
<strong>de</strong>sta prática. Alguns <strong>do</strong>s recursos utiliza<strong>do</strong>s é a alusão a imagens como metáforas,<br />
para representar aspectos técnicos, utilização <strong>de</strong> materiais didáticos como bisnagas,<br />
para associar com o processo respiratório ou ví<strong>de</strong>os que reproduzem o funcionamento<br />
<strong>de</strong> órgãos corporais no processo <strong>de</strong> produção vocal.<br />
A utilização da observação entre alunos como recurso facilita<strong>do</strong>r da aprendizagem<br />
foi <strong>de</strong>senvolvida através da aplicação <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s musicais na disciplina Canto<br />
coral, inserida na matriz curricular <strong>de</strong> escola profissionalizante <strong>de</strong> música, com a<strong>do</strong>lescentes<br />
e jovens. Dentre os objetivos <strong>de</strong>stacamos: 1) <strong>de</strong>senvolver a compreensão<br />
<strong>do</strong> funcionamento corporal no ato <strong>de</strong> cantar; 2) diminuir a abstração <strong>de</strong>ste entendimento;<br />
3) oportunizar a compreensão e a verbalização <strong>do</strong> processo vocal, através<br />
da observação entre pares; 4) oportunizar a apropriação <strong>de</strong> vocabulários técnicos referente<br />
à prática, fisiologia e higiene vocal; 5) <strong>de</strong>senvolver a propriocepção1; 6) possibilitar<br />
a troca <strong>de</strong> informações e saberes por pares, enriquecen<strong>do</strong> a experiência em<br />
sala <strong>de</strong> aula.<br />
O nortea<strong>do</strong>r para a elaboração das ativida<strong>de</strong>s fundamentou-se nos seguintes aspectos:<br />
1) <strong>de</strong>finição das informações que se pretendia coletar; 2) conteú<strong>do</strong>s a serem<br />
<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s; 3) <strong>de</strong>sempenho individualiza<strong>do</strong> <strong>do</strong>s alunos; 4) experiências musicais<br />
diversificadas conforme o Mo<strong>de</strong>lo C.(L). A.(S). P. <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> por Swanwick<br />
(1979). Na experiência os parâmetros <strong>de</strong>ste Mo<strong>de</strong>lo foram aborda<strong>do</strong>s através <strong>de</strong><br />
ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> criação (improviso e arranjo), apreciação (análise da prática vocal),<br />
execução (prática vocal), literatura (vocabulários técnicos) e técnica (observações<br />
acerca da prática vocal).<br />
Com a pretensão <strong>de</strong> transferir a percepção <strong>do</strong> outro para a auto-percepção, foram<br />
intercaladas entre as ativida<strong>de</strong>s realizadas para avaliação por pares, ativida<strong>de</strong>s dirigidas<br />
para a auto-observação, ao induzi<strong>do</strong>r o aluno para a conscientização quanto<br />
a sua produção vocal. As ativida<strong>de</strong>s foram aplicadas em diversos momentos da aula,<br />
como na preparação vocal por intermédio <strong>do</strong>s aquecimentos, leitura, aprendizagem<br />
<strong>do</strong> repertório e apreciação, através da observação/participação <strong>do</strong> colega, conforme<br />
<strong>de</strong>scrição abaixo:<br />
675
676<br />
Quadro 1 – Verificação por duplas<br />
Verificação <strong>do</strong> processo da respiração diafragmática <strong>do</strong> colega ao verbalizar o processo<br />
respiratório.<br />
Parâmetros musicais: execução, literatura e técnica.<br />
Conteú<strong>do</strong>s: apoio respiratório e propriocepção.<br />
Critérios avaliativos: manipulação consciente <strong>do</strong> instrumento voz e <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> conhecimentos<br />
referentes a conceitos teórico-vocais.<br />
Avaliação: comentários sobre o processo respiratório <strong>do</strong> colega para a turma.<br />
Resulta<strong>do</strong>s: Verificar o processo da respiração diafragmática <strong>do</strong> colega proporcionou a reflexão e<br />
auto-análise da realização da respiração. Verbalizar a avaliação <strong>de</strong>sta respiração aju<strong>do</strong>u a verificar e<br />
compreen<strong>de</strong>r o processo respiratório bem como a utilizar terminologia específica.<br />
Fonte: Braga, pesquisa <strong>de</strong> campo, 2008.<br />
Quadro 2 – Apreciação <strong>de</strong> vozes<br />
Observação, análise, i<strong>de</strong>ntificação, comparação e verbalização sobre os timbres das vozes<br />
ouvidas.<br />
Parâmetros musicais:apreciação e literatura.<br />
Conteú<strong>do</strong>s: respeito e valorização ao colega e a diversida<strong>de</strong> musical; instrumento voz: classificação,<br />
tessituras e tipo <strong>de</strong> vozes.<br />
Critérios avaliativos: manipulação consciente <strong>do</strong> instrumento voz e <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> conhecimentos<br />
referentes a conceitos teórico-vocais.<br />
Avaliação: discussão em grupo sobre a execução vocal <strong>de</strong> cada aluno.<br />
Resulta<strong>do</strong>s: Observar, analisar, i<strong>de</strong>ntificar, comparar e verbalizar sobre os timbres das vozes ouvidas<br />
<strong>de</strong>senvolveu a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apreciação auditiva mais refinada além <strong>de</strong> conscientizar quanto à<br />
varieda<strong>de</strong> timbrística entre vozes e conceitos referentes a timbre e extensão vocal.<br />
Fonte: Braga, pesquisa <strong>de</strong> campo, 2008.<br />
Quadro 3 – Analisan<strong>do</strong> vozes (grupo <strong>de</strong> vozes iguais)<br />
Observação e análise <strong>do</strong> naipe executante <strong>do</strong> trecho musical.<br />
Parâmetros musicais: apreciação e literatura.<br />
Conteú<strong>do</strong>s: participação, cooperação com o grupo, respeito, valorização ao colega, instrumento<br />
voz: classificação, tessituras e tipo <strong>de</strong> vozes e manipulação consciente <strong>do</strong> instrumento voz.<br />
Critérios avaliativos: <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> conhecimentos referentes a conceitos teórico-vocais e<br />
capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer música em grupo profissionalmente.<br />
Avaliação: verificação <strong>do</strong>cente <strong>do</strong> <strong>de</strong>sempenho <strong>do</strong>s alunos e discussão <strong>do</strong> grupo acerca <strong>do</strong><br />
conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>.<br />
Resulta<strong>do</strong>s: Quan<strong>do</strong> se faz necessária à execução <strong>de</strong> apenas um naipe é importante promover alguma<br />
tarefa a ser executada pelos outros. Neste caso, a observação, além <strong>de</strong> atingir este objetivo,<br />
oportunizou a verificação <strong>do</strong> senso crítico e <strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> termos, vocabulário e conceitos a cerca da<br />
prática vocal. A avaliação <strong>de</strong> naipes também foi favorecida.<br />
Fonte: Braga, pesquisa <strong>de</strong> campo, 2008.
Quadro 4 – Analisan<strong>do</strong> vozes (grupo <strong>de</strong> vozes diferentes)<br />
Formação <strong>de</strong> pequenos grupos (<strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> possível composto <strong>de</strong> naipes diferentes) para a execução<br />
da peça estudada em duas variantes. Na primeira variante, to<strong>do</strong>s dispostos em pequenos grupos<br />
executam a peça enquanto os outros ouvem, verificam e discutem com o grupo aspectos musicais<br />
como equilíbrio entre as vozes, timbragem e segurança <strong>de</strong> participantes. Na segunda variante to<strong>do</strong>s<br />
os grupos executam simultaneamente manten<strong>do</strong> a formação.<br />
Parâmetros musicais: apreciação, execução e técnica.<br />
Conteú<strong>do</strong>s: participação, cooperação com o grupo, respeito, valorização ao colega, instrumento<br />
voz: classificação, tessituras, tipo <strong>de</strong> vozes, manipulação consciente <strong>do</strong> instrumento voz, afinação,<br />
dicção, articulação e projeção vocal.<br />
Critérios avaliativos: capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer música em grupo profissionalmente e manipulação consciente<br />
<strong>do</strong> instrumento voz.<br />
Avaliação: verificação <strong>do</strong>cente <strong>do</strong> <strong>de</strong>sempenho <strong>do</strong>s alunos e participação na discussão acerca <strong>do</strong><br />
conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>.<br />
Resulta<strong>do</strong>s: Com o intuito <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver a autonomia e in<strong>de</strong>pendência vocal <strong>do</strong>s diferentes naipes,<br />
foi proposta a formação <strong>de</strong> pequenos grupos (<strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> possível composto <strong>de</strong> naipes diferentes)<br />
para a execução da peça em duas variantes. Na primeira variante, dispostos em pequenos<br />
grupos, to<strong>do</strong>s executam a peça enquanto os outros ouvem e verificam aspectos musicais como equilíbrio<br />
entre as vozes, timbragem e segurança <strong>de</strong> participantes. Na segunda variante, to<strong>do</strong>s os grupos<br />
executam simultaneamente ao manter a mesma formação. Através da ativida<strong>de</strong> verificou-se também<br />
a <strong>de</strong>dicação extraclasse <strong>do</strong>s alunos em relação ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> repertório.<br />
Fonte: Braga, pesquisa <strong>de</strong> campo, 2008.<br />
Quadro 5 – Verificação individual<br />
Realização <strong>do</strong>s vocalizes focan<strong>do</strong> a execução individual para a verificação <strong>de</strong> alguns aspectos como<br />
a manipulação da voz, colocação, afinação, entre outros.<br />
Parâmetros musicais: execução e técnica.<br />
Conteú<strong>do</strong>s: manipulação da voz, articulação, afinação e projeção vocal.<br />
Critérios avaliativos: manipulação consciente <strong>do</strong> instrumento-voz.<br />
Avaliação: Verificação <strong>do</strong>cente <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong>s alunos.<br />
Resulta<strong>do</strong>s: realização <strong>do</strong>s vocalizes <strong>de</strong> forma individual, facilitou a verificação <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> cada aluno. Ao notar alunos com problemas na execução vocal voltava-se ao mesmo ou<br />
colegas próximos, para a repetição sem chamar-lhe a atenção evitan<strong>do</strong> o constrangimento. Entretanto,<br />
alguns aspectos como a manipulação da voz, colocação, afinação, entre outros, po<strong>de</strong>riam ter<br />
si<strong>do</strong> mais explora<strong>do</strong>s e contribuir para o <strong>de</strong>senvolvimento da técnica vocal. Outro da<strong>do</strong> negativo a<br />
ser nota<strong>do</strong>, por ser uma ativida<strong>de</strong> realizada no início das aulas, é a oscilação nos aspectos <strong>de</strong> freqüência<br />
e <strong>de</strong> pontualida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s alunos. É possível que este hábito esteja associa<strong>do</strong> a compromisso<br />
profissional <strong>de</strong> alguns e a organização administrativa da Instituição, através da mudança constante<br />
<strong>de</strong> horários e a falta <strong>de</strong> pontualida<strong>de</strong> em sua programação.<br />
Fonte: Braga, pesquisa <strong>de</strong> campo, 2008.<br />
677
678<br />
Quadro 6 - Improviso vocal<br />
Proposta <strong>de</strong> improvisação vocal realizada na formação em círculo utilizan<strong>do</strong> a célula <strong>do</strong> refrão <strong>do</strong><br />
repertório <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>: Derramaro Gai2 <strong>de</strong> Luiz Gonzaga.<br />
Parâmetros musicais: execução e composição.<br />
Conteú<strong>do</strong>s: manipulação da voz, composições vocais e improvisação.<br />
Critérios avaliativos: manipulação consciente <strong>do</strong> instrumento-voz e <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> conhecimentos<br />
referentes à estruturação musical.<br />
Avaliação: Verificação <strong>do</strong>cente <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong>s alunos.<br />
Resulta<strong>do</strong>s: Para a realização utilizou-se o refrão da música a ser ensinada: Derramaro Gai <strong>de</strong> Luiz<br />
Gonzaga. A peça serviu como uma forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento da habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criação, através da<br />
exploração da voz e percepção da estrutura musical (perío<strong>do</strong>s e frasea<strong>do</strong>s). Percebe-se total entrosamento<br />
e liberda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s alunos para a sua realização. As criações obtidas nesta ativida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m ser<br />
utilizadas nas peças <strong>do</strong> repertório <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>.<br />
Fonte: Braga, pesquisa <strong>de</strong> campo, 2008.<br />
Quadro 7 - Improviso rítmico<br />
Criação musical por meio <strong>de</strong> células rítmicas a manter o pulso estabeleci<strong>do</strong>.<br />
Parâmetros musicais: execução e composição.<br />
Conteú<strong>do</strong>s: improvisação.<br />
Critérios avaliativos: manipulação consciente <strong>do</strong> instrumento-voz e <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> conhecimentos<br />
referentes à estruturação musical.<br />
Avaliação: Verificação <strong>do</strong>cente <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong>s alunos.<br />
Resulta<strong>do</strong>s: Apesar da exploração <strong>de</strong> diferentes timbres por parte <strong>de</strong> alguns alunos, o objetivo da<br />
ativida<strong>de</strong> foi a criação musical por meio <strong>de</strong> células rítmicas. Todavia, a contagem <strong>de</strong> tempos pela<br />
professora/pesquisa<strong>do</strong>ra tornou-se <strong>de</strong>snecessária. Sua exclusão oportunizaria maior chance aos alunos<br />
<strong>de</strong> perceberem e <strong>de</strong>senvolverem prontidão para a execução <strong>do</strong> improviso respeitan<strong>do</strong> o pulso e<br />
os frasea<strong>do</strong>s. Nota-se a execução <strong>de</strong> células rítmicas com a utilização <strong>de</strong> síncopes e acentos próprios<br />
da música brasileira possivelmente influencia<strong>do</strong> pelo repertório <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> no Tributo a Luiz<br />
Gonzaga.<br />
Fonte: Braga, pesquisa <strong>de</strong> campo, 2008.<br />
Quadro 8 - Regência<br />
Propor aos alunos a experimentação da dinâmica para uma “execução mais musical” além <strong>do</strong><br />
acesso a linguagem gestual utilizada na regência.<br />
Parâmetros musicais: execução e literatura.<br />
Conteú<strong>do</strong>s: conhecimento <strong>de</strong> sinais musicais, gestual <strong>de</strong> regência e exploração <strong>de</strong> parâmetros musicais<br />
como intensida<strong>de</strong> e andamento.<br />
Critérios avaliativos: <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> autodisciplina, capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer música em grupo e<br />
<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> conhecimentos referentes à regência.<br />
Avaliação: verificação <strong>do</strong>cente <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s alunos e discussão sobre a vivência musical.
Resulta<strong>do</strong>s: Propor aos alunos a experimentação da dinâmica foi um convite para uma execução<br />
musical “mais fluente”, além <strong>do</strong> acesso à linguagem gestual utilizada na regência após trabalhar com<br />
conceito <strong>de</strong> pulso e compasso. A prontidão para este gestual também foi testada com a regência <strong>de</strong><br />
um aluno voluntário. O mais importante na participação <strong>do</strong> aluno não foi o gestual padroniza<strong>do</strong><br />
da regência, mas a verificação da exploração <strong>de</strong> dinâmicas, compreensão formal e manipulativa musical<br />
e a interação <strong>do</strong> grupo.<br />
Fonte: Braga, pesquisa <strong>de</strong> campo, 2008.<br />
Quadro 9 – Arranjo para grupo vocal<br />
Criação coletiva <strong>de</strong> arranjo para grupo vocal.<br />
Parâmetros musicais: apreciação, composição, execução, literatura e técnica.<br />
Conteú<strong>do</strong>s: criação <strong>de</strong> arranjos, composições vocais, instrumento voz: classificação, tessituras e<br />
tipo <strong>de</strong> vozes e esquemas analíticos <strong>de</strong> uma peça: estrutura da obra (estilo, forma, motivo, andamento,<br />
textura, timbre, dinâmica, em momentos <strong>de</strong> apreciação musical, utilizan<strong>do</strong> vocabulário<br />
musical a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>, tessitura, extensão, linha melódica, letra, arranjo, entre outros).<br />
Critérios avaliativos: manipulação consciente <strong>do</strong> instrumento voz, <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> conhecimentos<br />
referentes à estruturação musical, conceitos histórico-estilístico musicais, autodisciplina e<br />
capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer música em grupo profissionalmente.<br />
Avaliação: verificação <strong>do</strong>cente <strong>do</strong> <strong>de</strong>sempenho e participação no grupo e discussão acerca <strong>do</strong>s arranjos<br />
<strong>do</strong>s alunos.<br />
Resulta<strong>do</strong>s: O trabalho em grupo foi a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> para atingir os objetivos em promover no canto<br />
coral o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s como a li<strong>de</strong>rança, a comunicação em grupo, a autonomia,<br />
<strong>de</strong>senvolvimento vocal, responsabilida<strong>de</strong> individual, colaboração e a criação coletiva <strong>de</strong> arranjo<br />
para o grupo. Estas habilida<strong>de</strong>s também são apropriadas para a profissionalização musical. O envolvimento<br />
com a ativida<strong>de</strong>, através da elaboração <strong>de</strong> arranjos vocais, promoveu a aproximação com a<br />
disciplina, com a música vocal e favoreceu o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s e competências para o<br />
trabalho em equipe, prática vocal e criação musical, além <strong>de</strong> garantir a participação ativa <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s e<br />
a utilização <strong>de</strong> conhecimentos prévios integra<strong>do</strong>s aos adquiri<strong>do</strong>s.<br />
Fonte: Braga, pesquisa <strong>de</strong> campo, 2008.<br />
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
A análise <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s disponíveis nos quadros acima comprova a eficácia das ativida<strong>de</strong>s<br />
aplicadas no grupo. Observar o outro conduziu para a auto-observação, corroboran<strong>do</strong><br />
para o <strong>de</strong>senvolvimento da propriocepção, fundamental para a<br />
compreensão <strong>do</strong> próprio processo <strong>de</strong> aprendizagem vocal. Esta observação entre<br />
pares, somada a análise e i<strong>de</strong>ntificação, foram responsáveis por um maior <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>do</strong>s alunos. Comparar e verbalizar a partir da referência <strong>do</strong> outro, proporcionou<br />
a reflexão e auto-análise <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>mínio <strong>de</strong><br />
vocabulários específicos, compreensão <strong>do</strong> processo respiratório e manipulativo da<br />
voz e o <strong>de</strong>senvolvimento da apreciação auditiva mais refinada.<br />
O processo educativo percorri<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s os sujeitos envolvi<strong>do</strong>s nesta experiência<br />
comprovam as afirmações <strong>de</strong> Vygostck. A Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal<br />
– ZDP oportuniza o <strong>de</strong>senvolvimento humano e a construção <strong>do</strong> conhecimento, ao<br />
associar a interferência <strong>do</strong> outro com o <strong>de</strong>sempenho individual. Ao utilizar o colega<br />
679
680<br />
como objeto <strong>de</strong> observação o <strong>de</strong>senvolvimento individual consolida-se uma aprendizagem<br />
em uma via dupla: “O outro apren<strong>de</strong> comigo e eu apren<strong>do</strong> com o outro”.<br />
No Canto coral o resulta<strong>do</strong> coletivo é <strong>de</strong>terminante para assegurar a qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />
grupo. Todavia, este resulta<strong>do</strong> é a soma <strong>do</strong> esforço individual <strong>de</strong> cada participante,<br />
que <strong>de</strong>ve ser respeita<strong>do</strong> e consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> no processo educacional, conforme <strong>de</strong>staca<br />
Swanwick. A compreensão <strong>do</strong> processo corporal intrínseco no procedimento vocal<br />
oportunizará a qualida<strong>de</strong> da produção vocal e, como conseqüência, favorecerá a<br />
produção vocal <strong>do</strong> grupo. A co-relação entre o entendimento e a prática individual<br />
com o entendimento e a prática coletiva traz sal<strong>do</strong>s positivos na utilização da<br />
individualida<strong>de</strong> como referencial para a coletivida<strong>de</strong> no processo <strong>de</strong> ensino-aprendizagem.<br />
Numa aula on<strong>de</strong> se reúne estudantes que vêm <strong>de</strong> diversos contextos, a heterogeneida<strong>de</strong><br />
representa um ganho na aquisição <strong>de</strong> conhecimentos, pois a interação proporciona<br />
a troca <strong>de</strong> saberes entre os estudantes. Esta muitas vezes acontece <strong>de</strong> forma<br />
natural e sem intenção, mas po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve ser provocada pela ação pedagógica <strong>do</strong> professor.<br />
A a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> estratégias meto<strong>do</strong>lógicas que reconheça e valorize os diferentes<br />
discursos musicais em sala <strong>de</strong> aula possibilitará uma rica troca e partilha <strong>de</strong><br />
saberes responsáveis pela construção coletiva <strong>do</strong> conhecimento musical.<br />
1 Termo utiliza<strong>do</strong> em fonoaudiologia para <strong>de</strong>finir a consciência <strong>do</strong> sujeito sobre a sua saú<strong>de</strong><br />
vocal possibilitan<strong>do</strong> a expressão <strong>do</strong> seu conhecimento, <strong>do</strong> seu saber e das suas maneiras <strong>de</strong><br />
perceber a própria voz.<br />
2 Música inclusa no repertório <strong>do</strong> Projeto Tributo a Luiz Gonzaga.<br />
Referências<br />
Antunes, Celso.Vygotsky, quem diria?! Em minha sala <strong>de</strong> aula. Fascículo 12. Petrópolis: Editora<br />
Vozes, 2007.<br />
Dantas, Tais. Ensino coletivo <strong>de</strong> instrumentos musicais: motivação, auto-estima e interações<br />
na aprendizagem musical em grupo. 2010. Dissertação <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong>. Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral da Bahia, Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Música.<br />
Fontana, David. Psicologia para professores. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002.<br />
Goulart, Iris Barbosa. Psicologia da Educação: fundamentos teóricos, aplicações à prática pedagógica.<br />
Petrópolis: Vozes, 2007.<br />
Guimarães, Sueli Édi Rufini. Motivação intrínseca, extrínseca e o uso <strong>de</strong> recompensas em sala<br />
<strong>de</strong> aula. In: Burochovitch, Evely; Bzuneck, José Aloyseo. (Orgs.) A motivação <strong>do</strong> aluno:<br />
contribuições da psicologia contemporânea. Petrópolis: Editora vozes, 2001. p. 37-57.<br />
Nunes, Ana Ignez Belém Lima Nunes e Silveira, Rosemary <strong>do</strong> Nascimento. Psicologia da<br />
aprendizagem: processos, teorias e contextos. Brasília: Líber Livro, 2009.<br />
Swanwick, Keith. Ensinan<strong>do</strong> musical musicalmente. São Paulo: Mo<strong>de</strong>rna, 2003.
Saraus Musicais Escolares: Projeto <strong>de</strong> Cidadania<br />
Caroline Cao Ponso<br />
Maria Helenita Nascimento Bernál<br />
A aprovação da Lei 11.769, <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008, que visa implementar o ensino <strong>de</strong><br />
música nas escolas <strong>de</strong> ensino fundamental e médio, nos parece uma estratégia i<strong>de</strong>al<br />
para buscar a paz através da música, além <strong>de</strong> todas as aprendizagens inerentes à Educação<br />
Musical. Nesse relato privilegiamos a música trabalhada em conjunto, assim<br />
como a prática musical pedagógica é vista como pesquisa <strong>de</strong> campo. Buscamos com<br />
este trabalho discutir e i<strong>de</strong>ntificar os saberes profissionais <strong>do</strong> professor <strong>de</strong> música,<br />
pois ele toca, ele organiza, ele é mo<strong>de</strong>lo para seus alunos. No entanto, ele também<br />
é apren<strong>de</strong>nte, sua postura <strong>de</strong>ve ser aberta e criativa. Acreditamos que a música na<br />
escola possa mobilizar o grupo <strong>de</strong> professores, a direção e a comunida<strong>de</strong> em projetos<br />
amplos, que agreguem o maior número <strong>de</strong> pessoas voltadas ao fazer musical coletivo.<br />
A vida escolar <strong>do</strong> aluno começa a ter um novo paradigma, a <strong>do</strong> conhecimento<br />
interliga<strong>do</strong>, da interação, da troca entre as pessoas.<br />
Neste texto, preten<strong>de</strong>mos relatar uma experiência <strong>do</strong>cente na área da Música em<br />
uma escola municipal <strong>de</strong> Porto Alegre/RS. A escola possui uma proposta políticopedagógica<br />
diferenciada voltada às classes populares, buscan<strong>do</strong> o sucesso escolar e<br />
rompen<strong>do</strong> com qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> exclusão, manten<strong>do</strong> uma relação muito<br />
sólida com a comunida<strong>de</strong> e práticas coletivas garantin<strong>do</strong> a participação <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s.<br />
O ensino das <strong>Artes</strong> previsto nos PCNs acontece na escola nas três linguagens artísticas:<br />
música, teatro e artes visuais, e fazem parte <strong>do</strong> currículo regular.<br />
Em 2008, quan<strong>do</strong> se comemoravam os 50 anos da Bossa Nova, os alunos comentavam<br />
e <strong>de</strong>monstravam curiosida<strong>de</strong> em conhecer o que foi este movimento da música<br />
brasileira. Fomos à biblioteca da escola coletar informações nos livros e recortes<br />
existentes sobre o assunto, juntan<strong>do</strong> aos outros materiais das professoras <strong>de</strong> música<br />
que foram coloca<strong>do</strong>s à disposição. Os alunos <strong>de</strong>scobriram imagens, artistas,<br />
músicas e a história daquele perío<strong>do</strong>.<br />
Após essa etapa fomos à midiateca, laboratório <strong>de</strong> informática da escola, on<strong>de</strong> os<br />
alunos tiveram acesso à pesquisa na internet. Além <strong>de</strong> obterem mais informações e<br />
imagens, pu<strong>de</strong>ram ouvir diversas das músicas citadas no material consulta<strong>do</strong>.<br />
Já em sala <strong>de</strong> aula, fizemos uma “mesa re<strong>do</strong>nda” on<strong>de</strong> reunimos CDs diversos para<br />
apreciarmos e analisarmos, fazen<strong>do</strong> os mais varia<strong>do</strong>s comentários <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m técnica<br />
ou estética. Surgiu <strong>do</strong>s alunos a idéia <strong>de</strong> acharmos uma forma <strong>de</strong> apresentarmos as<br />
músicas cantan<strong>do</strong> ou tocan<strong>do</strong> individualmente, em duplas, trios, e percebemos que<br />
já se encontravam “contagia<strong>do</strong>s” pela Bossa Nova. Diante <strong>de</strong>sse interesse fizemos a<br />
681
682<br />
proposta para as turmas <strong>de</strong> realizarmos um sarau musical resgatan<strong>do</strong> os saraus <strong>de</strong><br />
antigamente. Os alunos <strong>de</strong>scobriram que os saraus eram encontros culturais ou<br />
musicais, geralmente nos finais <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>, normalmente em uma casa particular, on<strong>de</strong><br />
as pessoas se reuniam para se expressar, se manifestar artisticamente e também trocar<br />
idéias. Era um evento bastante comum no séc. XIX que buscava socialização<br />
através <strong>de</strong> concertos musicais, serestas, cantos e apresentações solo ou performances<br />
artísticas e literárias. A biblioteca da escola já realizava periodicamente os Saraus<br />
Literários e diante disso fizemos uma parceria.<br />
A partir daí toda a escola passou a “viver a Bossa Nova”. Com a certeza <strong>de</strong> que seria<br />
uma ótima oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> integração fizemos um convite a toda a comunida<strong>de</strong><br />
escolar para participar, entre professores, alunos, ex-alunos, pais e funcionários. Os<br />
alunos traziam CDs empresta<strong>do</strong>s das mães, os professores ajudavam dan<strong>do</strong> idéias<br />
e emprestan<strong>do</strong> materiais. Professores <strong>de</strong> outras áreas, que haviam estuda<strong>do</strong> flauta<br />
ou violão, pediram partituras e passaram a estudá-las para tocar no dia <strong>do</strong> Sarau da<br />
Bossa Nova. A professora <strong>de</strong> música da escola que havia se aposenta<strong>do</strong>, voltou e se<br />
preparou para tocar no dia. O estagiário <strong>do</strong> curso <strong>de</strong> música que já havia concluí<strong>do</strong><br />
seu estágio participou <strong>do</strong>s ensaios e <strong>do</strong> sarau falan<strong>do</strong> sobre a participação <strong>de</strong> João<br />
Gilberto no movimento musical. O professor <strong>de</strong> História organizou um ví<strong>de</strong>o pra<br />
mostrar imagens e falar sobre o que estava acontecen<strong>do</strong> no Brasil e no mun<strong>do</strong> no<br />
perío<strong>do</strong> da Bossa Nova, e os alunos falaram sobre o que haviam <strong>de</strong>scoberto em suas<br />
pesquisas.<br />
O sarau aconteceu na biblioteca, transformada em um “barzinho” da época a fim<br />
<strong>de</strong> criar um ambiente com “clima” <strong>de</strong> Bossa Nova. Foi realmente emocionante<br />
ouvir os alunos cantan<strong>do</strong> “Tereza da Praia”, “Águas <strong>de</strong> Março” e outras canções,<br />
embora suas preferências musicais cotidianas sejam o pago<strong>de</strong>, o rap, e o funk. Sem<br />
aban<strong>do</strong>ná-las, ampliaram suas possibilida<strong>de</strong>s musicais resgatan<strong>do</strong> e conhecen<strong>do</strong> a<br />
Bossa Nova como um movimento da MPB.<br />
A aprendizagem <strong>de</strong>corrente da realização <strong>do</strong> sarau, durante o perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> ensaios e<br />
preparação que o antece<strong>de</strong>u, tais como a prática instrumental, a prática <strong>de</strong> conjunto,<br />
o canto, a troca <strong>de</strong> idéias e os arranjos, com certeza marcaram profundamente<br />
a vida <strong>do</strong>s alunos, professores e to<strong>do</strong>s os envolvi<strong>do</strong>s no evento. Tanto que,<br />
após encerrar o Sarau da Bossa Nova com to<strong>do</strong>s cantan<strong>do</strong> “Garota <strong>de</strong> Ipanema”,<br />
os alunos e to<strong>do</strong>s os que participaram, emociona<strong>do</strong>s, pediram que os Saraus continuassem<br />
periodicamente com outros temas porque “foi muito bom fazer o Sarau”.<br />
Sen<strong>do</strong> assim o Projeto Saraus Musicais foi instala<strong>do</strong> com o objetivo geral <strong>de</strong> integrar<br />
os alunos à comunida<strong>de</strong> escolar através da música. Como objetivos específicos,<br />
resgatar a História da Música, elevar a auto-estima, <strong>de</strong>senvolver a prática instrumental<br />
e vocal, crescer como grupo fazen<strong>do</strong> música juntos, <strong>de</strong>senvolver habilida<strong>de</strong>s<br />
como criativida<strong>de</strong>, adquirir postura <strong>de</strong> palco, usar a<strong>de</strong>quadamente o microfone, escolher<br />
e estudar um repertório e ser platéia educada. Outros saraus ocorreram com<br />
682
683<br />
os temas: Sarau Monteiro Lobato, Sarau Jovem Guarda, Sarau Roberto Carlos e<br />
Sarau “Era <strong>do</strong>s Festivais”. O projeto “Saraus Musicais” trouxe uma cara nova para<br />
a escola. Foi através da música que integramos diversas áreas <strong>do</strong> conhecimento, professores,<br />
funcionários e alunos em um mesmo ambiente pedagógico realizan<strong>do</strong> trocas<br />
significativas.<br />
O registro em fotos, ví<strong>de</strong>os e <strong>de</strong>poimentos <strong>do</strong>s envolvi<strong>do</strong>s nos permitiu <strong>de</strong>senvolver<br />
um trabalho <strong>de</strong> avaliação constante em sala <strong>de</strong> aula, ouvin<strong>do</strong>, analisan<strong>do</strong> com<br />
criticida<strong>de</strong> nossa própria performance. Os alunos estão mais habitua<strong>do</strong>s a se escutarem,<br />
publicam seus próprios ví<strong>de</strong>os na internet, se utilizam das ferramentas midiáticas<br />
com muita familiarida<strong>de</strong>.<br />
O relato <strong>de</strong> alguns alunos evi<strong>de</strong>ncia a importância que o evento teve em suas vidas<br />
e em sua formação musical.<br />
“Para os alunos foi importante para “ampliar seus horizontes”, conhecer e apren<strong>de</strong>r<br />
a gostar <strong>de</strong> músicas <strong>de</strong> décadas passadas ou que nunca tinham ouvi<strong>do</strong> antes”.<br />
(Caroline - C34)<br />
“Com esses Saraus, nós apren<strong>de</strong>mos muitas coisas. Por exemplo: controlar a vergonha.<br />
Nós fizemos pesquisas sobre os cantores e ficamos saben<strong>do</strong> mais sobre<br />
eles. Conhecemos cantores que nem sabíamos que existiam. Quan<strong>do</strong> cantei me<br />
senti muito bem e dançan<strong>do</strong>, melhor ainda”. (Kévellin - C31)<br />
“Os Saraus da Monte Cristo são uma porta que se abre para influenciar os alunos<br />
a mostrarem o seu talento. E é tão contagiante que alunos, professores e funcionários<br />
cantam e atuam juntos”. (Leidy - C31)<br />
“Os alunos estão fazen<strong>do</strong> um complemento muito bom. Suas mentes vão estar<br />
com um bom pensamento para o futuro”. (Maximiliano -C32)<br />
“Foram bem legais. To<strong>do</strong>s cantaram, até as mulheres da cozinha, as professoras<br />
da direção, alunos e ex-alunos também”. (Daniela -C32)<br />
683
684<br />
Motivação para apren<strong>de</strong>r e ensinar música:<br />
uma perspectiva sociocognitiva<br />
Liane Hentschke<br />
liane.hentschke@ufrgs.br<br />
Cristina Mie Ito Cereser<br />
crismieito@yahoo.com.br<br />
Miriam Pizzato<br />
miriampizzato@terra.com.br<br />
Cassiana Zamith Vilela<br />
cassianazamith@uol.com.br<br />
Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Música, UFRGS<br />
Resumo<br />
Este trabalho apresenta quatro investigações <strong>do</strong> grupo <strong>de</strong> pesquisa Formação e Atuação<br />
<strong>de</strong> Profissionais em Música (FAPROM) sobre a temática motivação. O FAPROM, vincula<strong>do</strong><br />
ao Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Música da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> Sul (PPG-Mús da UFRGS), tem como uma das linhas <strong>de</strong> atuação o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> pesquisas sobre motivação para apren<strong>de</strong>r e ensinar música em diferentes contextos.<br />
As pesquisas, aqui apresentadas, se inserem na perspectiva sociocognitiva da motivação<br />
e tem como referenciais teóricos, respectivamente: a Teoria <strong>de</strong> Expectativa-Valor e a<br />
Teoria <strong>de</strong> Autoeficácia. Nesse texto, comunicaremos três pesquisas sobre a motivação<br />
na aprendizagem musical e uma que se encontra em andamento que se refere à motivação<br />
<strong>do</strong> professor. A primeira investigação foi a pesquisa internacional coor<strong>de</strong>nada pelo<br />
Prof. Gary McPherson (University of Melbourne), que teve o objetivo <strong>de</strong> investigar a importância<br />
e o significa<strong>do</strong> atribuí<strong>do</strong> pelos alunos às ativida<strong>de</strong>s musicais <strong>de</strong>senvolvidas em<br />
ambientes escolares e não-escolares. O méto<strong>do</strong> consistiu em um survey envolven<strong>do</strong><br />
21.975 alunos <strong>de</strong> oito países (Brasil, China, Coréia <strong>do</strong> Sul, Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, Finlândia, Hong<br />
Kong, Israel e México). No Brasil, fizeram parte da amostra 1848 alunos da 6ª série <strong>do</strong> ensino<br />
fundamental ao 3º ano <strong>do</strong> ensino médio. Utilizan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s brasileiros da pesquisa<br />
internacional, foram <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is estu<strong>do</strong>s. A pesquisa <strong>de</strong> Pizzato teve o<br />
objetivo <strong>de</strong> investigar as relações entre os níveis <strong>de</strong> interesse e os níveis <strong>de</strong> competência,<br />
dificulda<strong>de</strong> e esforço para apren<strong>de</strong>r música na escola. A pesquisa <strong>de</strong> Vilela, por sua<br />
vez, investigou as relações entre o interesse, a utilida<strong>de</strong>, a importância e o esforço (custo)<br />
que alunos atribuem às aulas <strong>de</strong> música no currículo escolar e em outros contextos. O<br />
estu<strong>do</strong> em andamento que se refere à motivação <strong>do</strong>s professores investiga as crenças<br />
<strong>de</strong> autoeficácia <strong>do</strong>s professores <strong>de</strong> música para atuar na Educação Básica em relação às<br />
variáveis <strong>de</strong>mográficas e <strong>de</strong> contexto. As pesquisas <strong>de</strong>senvolvidas no grupo FAPROM<br />
visam contribuir para a área <strong>de</strong> educação musical apresenta<strong>do</strong> uma nova perspectiva<br />
para a compreensão <strong>do</strong> envolvimento <strong>do</strong> indivíduo com a música. Além disso, os da<strong>do</strong>s<br />
permitem refletir e promover ações tanto na motivação <strong>do</strong> aluno como a <strong>do</strong> professor<br />
para apren<strong>de</strong>r e ensinar música em diferentes contextos.
Introdução<br />
O grupo <strong>de</strong> pesquisa Formação e Atuação <strong>de</strong> Profissionais em Música (FAPROM)<br />
é vincula<strong>do</strong> ao Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Música da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong><br />
Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul (PPG-Mús da UFRGS). Atualmente, tem como uma das linhas<br />
<strong>de</strong> atuação o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> pesquisas sobre a motivação para apren<strong>de</strong>r e ensinar<br />
música em diferentes contextos.<br />
A inserção <strong>do</strong> FAPROM na temática motivação foi a partir da participação na pesquisa<br />
internacional coor<strong>de</strong>nada pelo professor Gary McPherson (Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Melbourne). A pesquisa teve como objetivo investigar a importância e o significa<strong>do</strong><br />
atribuí<strong>do</strong> pelos alunos às ativida<strong>de</strong>s musicais <strong>de</strong>senvolvidas em ambientes escolares<br />
e não-escolares. O méto<strong>do</strong> consistiu em um survey envolven<strong>do</strong> 21.975<br />
alunos <strong>de</strong> oito países (Brasil, China, Coréia <strong>do</strong> Sul, Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, Finlândia,<br />
Hong Kong, Israel e México).<br />
Durante a revisão da literatura foi possível encontrar uma relevante produção <strong>de</strong><br />
pesquisas realizadas sobre a motivação nos mais diversos campos. De acor<strong>do</strong> com<br />
Zenorini e Santos (2010), a crescente produção <strong>de</strong> investigações no contexto <strong>de</strong><br />
ensino e aprendizagem sinaliza uma preocupação <strong>de</strong> educa<strong>do</strong>res e estudiosos. A<br />
motivação para apren<strong>de</strong>r e ensinar vem sen<strong>do</strong> investiga<strong>do</strong> pela Psicologia da Educação,<br />
uma vez que a motivação tem si<strong>do</strong> vista pelos teóricos e pesquisa<strong>do</strong>res como<br />
um importante <strong>de</strong>terminante <strong>de</strong> sucesso no processo <strong>de</strong> aprendizagem (Guimarães<br />
e Boruchovitch, 2004; Bzuneck, 2004, Ryan e Deci, 2000a, Ryan e Deci, 2000b).<br />
A seleção <strong>de</strong> motivos e as escolhas <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> ação, a intensida<strong>de</strong> e persistência <strong>de</strong><br />
esforço que o aluno <strong>de</strong>posita em uma ação indicam um comportamento motiva<strong>do</strong>.<br />
A relação da motivação com ação se justifica pela própria palavra, pois esta tem origem<br />
latina <strong>do</strong> verbo movere que significa mover (Buzneck, 2004; Guimarães, 2003;<br />
Eccles e Wigfield, 2004, Siqueira e Wechsler, 2006). Nessa perspectiva, o estu<strong>do</strong><br />
da motivação é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> o estu<strong>do</strong> da ação (Eccles e Wigfield, 2002) ou da modificação<br />
<strong>do</strong> seu curso (Bzuneck, 2004).<br />
Embora a motivação esteja relacionada à ação e assim, ao comportamento das pessoas,<br />
ela é causada por fatores internos e externos. Na área <strong>de</strong> educação musical, por<br />
exemplo, um aluno po<strong>de</strong> mostrar-se motiva<strong>do</strong> para executar um repertório que<br />
gosta (fator interno), enquanto outro aluno po<strong>de</strong> estar realizan<strong>do</strong> uma ativida<strong>de</strong><br />
musical por imposição <strong>do</strong>s pais (fator externo).<br />
Pesquisa<strong>do</strong>res e teóricos têm busca<strong>do</strong> explicar sistematicamente a motivação (Guimarães<br />
e Boruchovitch, 2004; Bzuneck, 2004; Ryan e Deci, 2000a; Ryan e Deci,<br />
2000b). Um consenso entre esses posicionamentos consi<strong>de</strong>ra que certos comportamentos<br />
<strong>de</strong> engajamento em uma ativida<strong>de</strong> são indícios <strong>de</strong> motivação. Dentre<br />
esses comportamentos, <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s <strong>de</strong> indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong> motivação, po<strong>de</strong>mos citar:<br />
escolha, preferência, intensida<strong>de</strong>, persistência e qualida<strong>de</strong> (Maerh, Pintrich e Lin-<br />
685
686<br />
nenbrink, 2002, p. 348). Por exemplo, um estudante motiva<strong>do</strong> escolhe engajar-se<br />
em tarefas on<strong>de</strong> sua concentração e seu raciocínio são requeri<strong>do</strong>s, bem como <strong>de</strong><br />
persistir em tarefas que o <strong>de</strong>safia. Este aluno provavelmente usará estratégias a<strong>de</strong>quadas<br />
na resolução <strong>de</strong> seus problemas <strong>de</strong> aprendizagem a fim <strong>de</strong> obter bons resulta<strong>do</strong>s<br />
com relação à mesma (Guimarães e Boruchovitch, 2004; Bzuneck, 2004;<br />
Ryan e Deci, 2000a; Ryan e Deci, 2000b).<br />
No contexto educacional, a motivação foi estudada através <strong>de</strong> diversas perspectivas<br />
e <strong>de</strong>ram origem a teorias e mo<strong>de</strong>los. A partir da revisão <strong>de</strong> literatura realizada pelo<br />
grupo FAPROM sobre a motivação no contexto <strong>de</strong> ensino e aprendizagem, foi possível<br />
constatar que a maioria <strong>de</strong>sses estu<strong>do</strong>s é <strong>de</strong>senvolvida atualmente a partir da<br />
perspectiva sociocognitiva. Essa perspectiva fundamenta-se na teoria sociocognitiva<br />
<strong>de</strong> Bandura, on<strong>de</strong> os seres humanos são compreendi<strong>do</strong>s como pessoas auto-organizadas,<br />
proativas, autorreflexivas e autorreguladas e não apenas organismos<br />
reativos aos estímulos ambientais. Para esse autor, o funcionamento humano é resulta<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> uma relação bidirecional entre fatores pessoais (na forma <strong>de</strong> eventos cognitivos,<br />
afetivos e biológicos), padrões comportamentais e influências ambientais<br />
(Bandura, 1997). A partir da interpretação que o indivíduo dá às suas ações, ele altera<br />
seu ambiente e fatores pessoais, que por sua vez acabam influencian<strong>do</strong> e alteran<strong>do</strong><br />
seu comportamento futuro. Os fatores pessoais, influências ambientais e<br />
padrões comportamentais são consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s como <strong>de</strong>terminantes <strong>do</strong> funcionamento<br />
humano (Bandura, 2008). A natureza recíproca <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>terminantes é <strong>de</strong>nominada<br />
<strong>de</strong>terminismo recíproco.<br />
Comportamento humano<br />
Fatores pessoais Fatores ambientais<br />
Fig. 1 — Relações entre <strong>de</strong>terminantes na causação recíproca triádica.<br />
(Pajares e Olaz, 2008, p. 98).<br />
O FAPROM a<strong>do</strong>ta a perspectiva sociocognitiva para estudar o envolvimento <strong>do</strong> indivíduo<br />
com a música, pois acredita que em um contexto <strong>de</strong> ensino e aprendizagem<br />
é fundamental consi<strong>de</strong>rar também os fatores ambientais. Al<strong>de</strong>rman (2004) afirma<br />
que no contexto escolar não é possível enfatizar apenas o papel <strong>do</strong>s fatores pessoais<br />
sem consi<strong>de</strong>rar a natureza social da motivação na escola e o papel das influências<br />
ambientais. A abordagem da teoria sociocognitiva fornece pesquisas que po<strong>de</strong>m<br />
auxiliar os professores a construir um clima que promova motivação e ajudar os<br />
alunos a <strong>de</strong>senvolver estratégias <strong>de</strong> motivação. Pajares e Oláz (2008) complementam<br />
que o professor <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>senvolver a aprendizagem e confiança acadêmica. Nesse<br />
senti<strong>do</strong>, os autores sugerem que, através da teoria sociocognitiva, os professores<br />
po<strong>de</strong>m trabalhar para melhorar os esta<strong>do</strong>s emocionais <strong>do</strong>s seus alunos, corrigirem
crenças e hábitos negativos <strong>de</strong> pensamentos, melhorarem suas habilida<strong>de</strong>s e comportamento.<br />
Além disso, po<strong>de</strong>m melhorar suas próprias habilida<strong>de</strong>s, julgamentos<br />
sobre suas capacida<strong>de</strong>s, motivação, que por sua vez po<strong>de</strong>m ajudar a melhorar o ambiente<br />
da escola e da sala <strong>de</strong> aula para atuar <strong>de</strong> forma eficaz e colaborar com a aprendizagem<br />
<strong>do</strong>s alunos.<br />
A revisão realizada por Austin, Renwick e McPherson (2006) mostra que a área <strong>de</strong><br />
Educação Musical também tem realiza<strong>do</strong>, a partir da perspectiva sociocognitiva,<br />
pesquisas e estu<strong>do</strong>s sobre motivação já há cerca <strong>de</strong> quatro décadas. Estas pesquisas<br />
têm por objeto a aprendizagem musical em diferentes contextos, sen<strong>do</strong> que <strong>de</strong> maneira<br />
geral, esta aprendizagem é estudada através <strong>do</strong>s construtos tais como crenças,<br />
percepções e valores <strong>do</strong>s estudantes ou <strong>do</strong>s professores. Pesquisa<strong>do</strong>res mostram que<br />
estes construtos têm um forte impacto sobre a aprendizagem musical <strong>do</strong>s indivíduos,<br />
po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> explicar como se <strong>de</strong>senvolve o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> estudar música, ou porque<br />
os alunos variam no grau <strong>de</strong> persistência e intensida<strong>de</strong> na aprendizagem musical<br />
(O’Neill e McPherson, 2002). Essas questões po<strong>de</strong>m colaborar para avaliar e rever<br />
as práticas educacionais em diferentes contextos e para educa<strong>do</strong>res musicais consi<strong>de</strong>rarem<br />
vários aspectos que influenciam na motivação <strong>do</strong> aluno e, conseqüentemente,<br />
no seu <strong>de</strong>sempenho (Maehr, Pintrich e Linnenbrink, 2002).<br />
A seguir apresentaremos as pesquisas realizadas pelo grupo FAPROM e a pesquisa<br />
que se encontra em andamento.<br />
A motivação para apren<strong>de</strong>r música:<br />
uma investigação com alunos brasileiros<br />
A pesquisa internacional “Os significa<strong>do</strong>s da música para crianças e a<strong>do</strong>lescentes em<br />
ativida<strong>de</strong>s musicais escolares e não-escolares” foi coor<strong>de</strong>nada no Brasil pela Profa.<br />
Liane Hentschke (UFRGS) e conduzida pelo grupo FAPROM no Programa <strong>de</strong> Pós-<br />
Graduação em Música da UFRGS. O objetivo da pesquisa internacional foi investigar<br />
a importância e o significa<strong>do</strong> atribuí<strong>do</strong>s pelos alunos às ativida<strong>de</strong>s musicais<br />
<strong>de</strong>senvolvidas em ambientes escolares e não escolares.<br />
O referencial teórico fundamentou-se no mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Expectativa e Valor <strong>de</strong> Eccles<br />
et al. (1983). Segun<strong>do</strong> o mo<strong>de</strong>lo, as expectativas (o quanto alguém espera realizar<br />
bem uma ativida<strong>de</strong>) e os valores (interesse, importância, utilida<strong>de</strong> e custo da tarefa)<br />
influenciam diretamente o <strong>de</strong>sempenho e escolhas <strong>de</strong> tarefas a serem realizadas (Eccles<br />
e Wigfield, 2002). Para Austin et al. (2006), alunos ten<strong>de</strong>m a engajarem-se e<br />
persistirem por mais tempo em ativida<strong>de</strong>s musicais quan<strong>do</strong> se percebem competentes<br />
e as valorizam.<br />
O mo<strong>de</strong>lo também mostra que as expectativas e os valores são influencia<strong>do</strong>s por<br />
crenças a respeito da tarefa, tais como as percepções <strong>de</strong> competência para realizá-la<br />
e da dificulda<strong>de</strong> da tarefa e, também, <strong>do</strong>s objetivos <strong>do</strong>s indivíduos. O interesse, segun<strong>do</strong><br />
o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> expectativa e valor, está relaciona<strong>do</strong> ao prazer que alguém sente<br />
687
688<br />
ao realizar uma tarefa ou ao prazer que alguém espera experimentar enquanto faz<br />
uma tarefa. Essa sensação <strong>de</strong> satisfação é associada ao equilíbrio entre a competência<br />
<strong>do</strong> indivíduo e a dificulda<strong>de</strong> da tarefa. Quan<strong>do</strong> as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma pessoa exce<strong>de</strong>m<br />
às exigências <strong>de</strong> uma tarefa, elas po<strong>de</strong>m se sentir <strong>de</strong>sanimadas, ou quan<strong>do</strong><br />
ocorre o contrário, po<strong>de</strong> haver a sensação <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong>.<br />
O instrumento <strong>de</strong> coleta <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s utiliza<strong>do</strong> foi um questionário auto-administra<strong>do</strong><br />
com 38 questões sobre a motivação na aprendizagem <strong>de</strong> sete disciplinas <strong>do</strong> currículo<br />
(matemática, língua materna, ciências, história, educação física, artes e música).<br />
Para ser utiliza<strong>do</strong> no Brasil, o questionário foi traduzi<strong>do</strong> para sua língua oficial,<br />
assim como nos <strong>de</strong>mais países participantes <strong>do</strong> projeto.<br />
A amostra brasileira foi composta <strong>de</strong> 1848 alunos entre a 6ª série <strong>do</strong> ensino fundamental<br />
e 3º ano <strong>do</strong> ensino médio. Para participarem da pesquisa, os alunos foram<br />
seleciona<strong>do</strong>s por realizarem ativida<strong>de</strong>s musicais em uma das três situações:<br />
• Grupo 1: aula <strong>de</strong> música no currículo escolar;<br />
• Grupo 2: aula <strong>de</strong> música fora da escola (ativida<strong>de</strong>s extracurriculares, escolas específicas<br />
<strong>de</strong> música, coros e bandas);<br />
• Grupo 3: aula <strong>de</strong> música tanto no currículo escolar como fora da escola.<br />
Um padrão interessante nesse estu<strong>do</strong> foi que os três grupos <strong>de</strong> alunos da amostra<br />
percebem que apren<strong>de</strong>r música é relativamente fácil e atribuem alto valor em apren<strong>de</strong>r<br />
música (exceto na educação musical escolar). Além disso, os alunos se consi<strong>de</strong>ram<br />
competentes no fazer musical. Há uma diferença significante entre os da<strong>do</strong>s<br />
brasileiros e os da<strong>do</strong>s <strong>de</strong> outros países. Entre as diferenças mais expressivas <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s<br />
brasileiros comparada com outros sete países estuda<strong>do</strong>s, é que há um aumento<br />
entre o valor da tarefa e expectativa para o sucesso em música no <strong>de</strong>correr<br />
<strong>do</strong>s níveis <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong>, o que não acontece em outros países, on<strong>de</strong> há um <strong>de</strong>clínio<br />
da disciplina música em comparação com outras disciplinas escolares. Em relação<br />
à dificulda<strong>de</strong> da tarefa, no caso, a aula <strong>de</strong> música, os alunos apresentam um nível<br />
estável em comparação com as <strong>de</strong>mais disciplinas.<br />
Motivação para apren<strong>de</strong>r música na escola<br />
A pesquisa <strong>de</strong> Pizzato (2009), intitulada Motivação Para Apren<strong>de</strong>r Música na Escola:<br />
Um Estu<strong>do</strong> sobre o Interesse, teve por objetivo investigar as relações entre os níveis<br />
<strong>de</strong> interesse e os níveis <strong>de</strong> competência, dificulda<strong>de</strong> e esforço para apren<strong>de</strong>r<br />
música na escola. Esse estu<strong>do</strong> baseou-se somente em da<strong>do</strong>s secundários, que são<br />
da<strong>do</strong>s existentes oriun<strong>do</strong>s <strong>de</strong> outras fontes. Segun<strong>do</strong> Malhotra (2006), da<strong>do</strong>s secundários<br />
apresentam vantagens, como o acesso fácil e o baixo custo, porém <strong>de</strong>vem<br />
ser avalia<strong>do</strong>s a partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s critérios, tornan<strong>do</strong>-os váli<strong>do</strong>s, confiáveis e generalizáveis<br />
para o estu<strong>do</strong> em que serão utiliza<strong>do</strong>s.
A fonte <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s para a execução <strong>de</strong>ste trabalho foi a pesquisa internacional “Os significa<strong>do</strong>s<br />
da música para crianças e a<strong>do</strong>lescentes em ativida<strong>de</strong>s musicais escolares e<br />
não-escolares”. A partir <strong>de</strong>sse survey foi feito um recorte <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s coleta<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong><br />
consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s para a amostra 631 alunos <strong>de</strong> séries finais <strong>do</strong> ensino fundamental e<br />
médio <strong>de</strong> 11 escolas (públicas e privadas) <strong>de</strong> Porto Alegre e interior <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul (Brasil). As ida<strong>de</strong>s variaram <strong>de</strong> 11 até 19 anos, sen<strong>do</strong> 300 meninos<br />
e 331 meninas.<br />
Os resulta<strong>do</strong>s da pesquisa mostraram que 47,7% <strong>do</strong>s alunos atribuíram alto interesse<br />
em apren<strong>de</strong>r música na escola, 16,2%, médio interesse e 35,8%, baixo interesse.<br />
A maioria <strong>do</strong>s alunos da amostra consi<strong>de</strong>rou-se com alta competência (80,3%)<br />
e baixa dificulda<strong>de</strong> (77%) para apren<strong>de</strong>r música na escola. Quanto à questão <strong>de</strong> gênero,<br />
as meninas sentem-se mais competentes e acham menos difícil apren<strong>de</strong>r música<br />
na escola <strong>do</strong> que os meninos. E, em relação ao tipo <strong>de</strong> escola, pública e privada,<br />
há diferença quanto à sensação <strong>de</strong> esforço exigi<strong>do</strong>. Os alunos da escola pública percebem<br />
uma exigência maior <strong>de</strong> esforço para apren<strong>de</strong>r música <strong>do</strong> que os da escola privada.<br />
Comparan<strong>do</strong>-se as faixas etárias, as diferenças significativas apresentaram-se<br />
relacionadas ao interesse, competência e esforço. O maior interesse, maior competência<br />
e menor esforço foram atribuí<strong>do</strong>s pelos alunos <strong>de</strong> 14 a 16 anos.<br />
Os resulta<strong>do</strong>s referentes ao alto interesse neste trabalho são apoia<strong>do</strong>s pela literatura<br />
e por pesquisas feitas sobre motivação na aprendizagem musical, mostran<strong>do</strong><br />
que quan<strong>do</strong> alunos se consi<strong>de</strong>ram muito competentes em música, há uma tendência<br />
a terem muito interesse em realizar ativida<strong>de</strong>s musicais. Porém, também foi<br />
possível constatar que os alunos da amostra que atribuíram baixo interesse, na sua<br />
maioria, atribuíram alta competência, baixa dificulda<strong>de</strong> e baixo esforço para apren<strong>de</strong>r<br />
música na escola. Refletin<strong>do</strong> sobre esse resulta<strong>do</strong>, é possível que o baixo interesse<br />
esteja relaciona<strong>do</strong> às baixas exigências <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho que as aulas <strong>de</strong> música apresentam,<br />
visto que 77% <strong>do</strong>s alunos da amostra atribuíram baixa dificulda<strong>de</strong> para<br />
apren<strong>de</strong>r música e 80% se consi<strong>de</strong>ra altamente competente. Pois, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o<br />
Mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Expectativa e Valor (Eccles et al., 1983), o interesse <strong>do</strong> indivíduo pela<br />
realização <strong>de</strong> tarefas é influencia<strong>do</strong> pelo equilíbrio entre seu senso <strong>de</strong> competência<br />
e <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>.<br />
Esse resulta<strong>do</strong> po<strong>de</strong> ser compreendi<strong>do</strong> pelo fato <strong>de</strong> ser comum a não reprovação<br />
em música na escola e que os alunos sejam avalia<strong>do</strong>s nas aulas <strong>de</strong> música mais pela<br />
sua participação e comprometimento <strong>do</strong> que pelo seu <strong>de</strong>sempenho. Segun<strong>do</strong> Del<br />
Ben (2003), muitas vezes, há maior valorização <strong>de</strong> questões subjetivas na avaliação<br />
em música, como por exemplo, a expressivida<strong>de</strong> e a criativida<strong>de</strong> <strong>do</strong> que conhecimentos<br />
musicais específicos. Além disso, a aula <strong>de</strong> música também po<strong>de</strong> caracterizar-se<br />
como entretenimento entre as outras matérias escolares, consi<strong>de</strong>radas “sérias”<br />
(Lamont et al., 2003).<br />
Os resulta<strong>do</strong>s apontam para a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outras pesquisas que tratem da in-<br />
689
690<br />
fluência <strong>do</strong>s pais, professores, da comunida<strong>de</strong> escolar, das características das escolas<br />
e <strong>de</strong> ensino na motivação <strong>do</strong> aluno que apren<strong>de</strong> música. Da<strong>do</strong>s como esses ainda<br />
são inexistentes na literatura <strong>de</strong> educação musical brasileira e tornam-se importantes,<br />
visto a recente aprovação, no Brasil, da lei que inclui a música como conteú<strong>do</strong><br />
obrigatório na educação básica.<br />
O valor atribuí<strong>do</strong> à aprendizagem musical à aula <strong>de</strong> música<br />
curricular e em diferentes contextos<br />
A pesquisa intitulada Motivação para Apren<strong>de</strong>r Música: o Valor Atribuí<strong>do</strong> à Aula<br />
<strong>de</strong> Música no currículo escolar e em diferentes contextos (Vilela; 2009) teve como objetivo<br />
investigar as relações entre o interesse, a utilida<strong>de</strong>, a importância e o esforço<br />
(custo) que alunos atribuem às aulas <strong>de</strong> música no currículo escolar e em diferentes<br />
contextos. O referencial teórico fundamentou-se no Mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> expectativa e<br />
valor <strong>de</strong> Eccles et al. (2005). A meto<strong>do</strong>logia é <strong>de</strong> caráter quantitativo, sen<strong>do</strong> que o<br />
méto<strong>do</strong> utiliza<strong>do</strong> foi a análise <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s existentes. Esses da<strong>do</strong>s foram obti<strong>do</strong>s, como<br />
na pesquisa <strong>de</strong> Pizzato (2009) através <strong>de</strong> um recorte <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s da pesquisa internacional<br />
anteriormente citada. Porém, a amostra analisada nesse trabalho foi <strong>de</strong> <strong>do</strong>is<br />
grupos distintos <strong>de</strong> alunos:<br />
• 631 (seiscentos e trinta e um) alunos que têm educação musical nas escolas<br />
como disciplina curricular e que não realizam outras ativida<strong>de</strong>s musicais extracurriculares<br />
ou fora da escola;<br />
• 698 (seiscentos e noventa e oito) alunos que não têm aula <strong>de</strong> musica como disciplina<br />
curricular e que somente realizam ativida<strong>de</strong>s musicais extracurriculares<br />
ou em outros contextos como projetos sociais, igrejas, comunida<strong>de</strong>s, escolas<br />
específicas <strong>de</strong> música, entre outros.<br />
Uma das hipóteses <strong>de</strong> pesquisa, surgida da experiência como professora <strong>de</strong> música<br />
da pesquisa<strong>do</strong>ra é que alunos que fazem aulas fora da escola ou aulas extracurriculares<br />
ten<strong>de</strong>m a valorizar mais seu aprendiza<strong>do</strong> <strong>do</strong> que alunos que fazem aulas <strong>de</strong><br />
música curricular. A fim <strong>de</strong> verificar essa hipótese, foi utilizada a análise estatística<br />
inferencial, em especial o teste t.1 Os resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ste teste comprovam que os alunos<br />
que realizam aulas <strong>de</strong> música em diferentes contextos ten<strong>de</strong>m a valorizar mais<br />
a aprendizagem musical <strong>do</strong> que os alunos que realizam aulas <strong>de</strong> música no currículo<br />
escolar. Esses <strong>do</strong>is grupos apresentam uma diferença que é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> influência na<br />
motivação <strong>do</strong>s alunos: a escolha em participar <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong>. Os alunos que<br />
apren<strong>de</strong>m música em diferentes contextos o fazem em razão <strong>de</strong> suas escolhas pessoais,<br />
o que contrasta com a aprendizagem musical no currículo escolar, que ocorre<br />
em <strong>de</strong>corrência <strong>do</strong> caráter obrigatório da ativida<strong>de</strong>.<br />
No envolvimento com uma ativida<strong>de</strong>, as pessoas <strong>de</strong>senvolvem percepções sobre a<br />
mesma que po<strong>de</strong>m ou não se adaptar às metas e às necessida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s indivíduos, ge-
an<strong>do</strong> valores pessoais positivos ou negativos. Segun<strong>do</strong> o Mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Eccles et. al.<br />
(2005), as escolhas <strong>do</strong>s indivíduos em participar ou não <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> são altamente<br />
influenciadas pelos valores positivos que atribuem às tarefas que preten<strong>de</strong>m<br />
realizar. Esse valor é conceitua<strong>do</strong>, no mo<strong>de</strong>lo cita<strong>do</strong>, como valor <strong>de</strong> realização,<br />
sen<strong>do</strong> construí<strong>do</strong> na relação <strong>do</strong> indivíduo com a ativida<strong>de</strong> que realiza. Da mesma<br />
forma, o mesmo é expresso por meio <strong>do</strong> interesse, da importância, da utilida<strong>de</strong> e <strong>do</strong><br />
custo que os indivíduos atribuem a uma <strong>de</strong>terminada ativida<strong>de</strong>.<br />
O valor <strong>de</strong> realização é influencia<strong>do</strong> através <strong>do</strong> tempo, pelas experiências anteriores<br />
que estes alunos tem com esse <strong>do</strong>mínio (música). Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssas proposições<br />
é possível que experiências prévias com música <strong>do</strong>s alunos que tem aula <strong>de</strong> música<br />
em outros contextos tenham <strong>de</strong>sperta<strong>do</strong> neles valores <strong>de</strong> realização mais positivos.<br />
Esses valores po<strong>de</strong>m ter, conseqüentemente, influencia<strong>do</strong>s as escolhas <strong>do</strong>s mesmos<br />
em participar <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s musicais.<br />
Esses resulta<strong>do</strong>s não <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s <strong>de</strong> forma estanque, pois a crença <strong>do</strong><br />
valor <strong>de</strong> realização não é fixa, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser transformada através das vivências que<br />
os alunos têm na ativida<strong>de</strong> musical. Assim, o fato <strong>do</strong>s alunos que apren<strong>de</strong>m música<br />
no currículo escolar terem valores <strong>de</strong> realização mais baixos que alunos que<br />
apren<strong>de</strong>m música em outros contextos não po<strong>de</strong>m ser vistos <strong>de</strong> forma pejorativa ou<br />
imutável. Estas crenças ten<strong>de</strong>m a se transformar, pois o valor <strong>de</strong> realização é construí<strong>do</strong><br />
na relação entre as necessida<strong>de</strong>s pessoais <strong>do</strong> estudante e como ele percebe<br />
suas vivências na ativida<strong>de</strong> específica.<br />
A escolha <strong>do</strong>s alunos <strong>de</strong>ve ser vista como um processo contínuo e não circunspeto<br />
ao momento em que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m inicialmente participar <strong>de</strong> uma tarefa. Fredricks et al.<br />
(2002) ressalta que os alunos estão constantemente avalian<strong>do</strong> sua participação na<br />
ativida<strong>de</strong> que realizam. Portanto, estão constantemente <strong>de</strong>cidin<strong>do</strong> sobre seu nível<br />
<strong>de</strong> envolvimento no que fazem, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> até <strong>de</strong>cidir <strong>de</strong>sistir da ativida<strong>de</strong> escolhida.<br />
No ambiente escolar, os alunos não po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>sistir <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong>, mas po<strong>de</strong>m<br />
escolher não se engajar com esta. Tanto em aulas <strong>de</strong> música curriculares ou em outros<br />
contextos, nota-se a importância <strong>do</strong>s alunos atribuírem valores positivos ao<br />
que realizam, da<strong>do</strong> que isso po<strong>de</strong> afetar o engajamento ou a participação <strong>do</strong>s alunos<br />
na ativida<strong>de</strong> musical.<br />
As crenças <strong>de</strong> autoeficácia <strong>do</strong>s professores <strong>de</strong> música para atuar na<br />
Educação Básica: um estu<strong>do</strong> em andamento<br />
A partir <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s realiza<strong>do</strong>s pelo FAPROM sobre a motivação <strong>do</strong>s alunos para<br />
apren<strong>de</strong>r música, esta pesquisa focaliza a motivação para ensinar música. A motivação<br />
<strong>do</strong>s professores será discutida a partir da investigação <strong>de</strong> suas crenças <strong>de</strong> autoeficácia<br />
em atuar com aulas <strong>de</strong> música na Educação Básica em relação às variáveis<br />
<strong>de</strong>mográficas e <strong>de</strong> contexto.<br />
691
692<br />
Segun<strong>do</strong> Bandura (1997), a autoeficácia percebida se refere “a crença <strong>de</strong> alguém<br />
sobre sua competência em organizar e executar cursos <strong>de</strong> ações requeridas para produzir<br />
certas realizações” (Bandura, 1997, p. 3), que por sua vez, promovem a motivação,<br />
autorregulação e realização.<br />
As crenças das pessoas em sua eficácia pessoal são consi<strong>de</strong>radas aspectos importantes<br />
para o autoconhecimento (Bandura, 1997, p. 79). As fontes <strong>de</strong> informações que<br />
geram as crenças <strong>de</strong> autoeficácia se encontram: a) nas experiências <strong>de</strong> <strong>do</strong>mínios que<br />
reforçam a capacida<strong>de</strong> <strong>do</strong> individual; b) nas experiências vicárias, que alteram as<br />
crenças <strong>de</strong> autoeficácia pela observação <strong>de</strong> competência e comparação com as realizações<br />
<strong>de</strong> outras pessoas; c) persuasão verbal (ou social), que comunica que a pessoa<br />
possui certas competências; e e) esta<strong>do</strong> fisiológico e afetivo, como por exemplo,<br />
o stress, o humor, o qual a pessoa julga suas capacida<strong>de</strong>s, força e vulnerabilida<strong>de</strong><br />
para disfunção (Bandura, 1997). Depen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>do</strong> caso, a informação <strong>de</strong> eficácia<br />
po<strong>de</strong> ser operada através <strong>de</strong> um ou mais fontes <strong>de</strong> crenças <strong>de</strong> autoeficácia.<br />
Pesquisas sobre a eficácia <strong>do</strong>s professores têm si<strong>do</strong> realizadas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1970<br />
usan<strong>do</strong> uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> perspectiva para compreen<strong>de</strong>r esse construto e a partir da<br />
década <strong>de</strong> 1980 essas pesquisas a<strong>do</strong>tam a perspectiva sociocognitiva As pesquisas<br />
que me<strong>de</strong>m o grau <strong>de</strong> crenças <strong>de</strong> autoeficácia <strong>do</strong>s professores usualmente utilizam<br />
questionários e escalas<br />
A escala <strong>de</strong>ssa pesquisa foi baseada em escalas <strong>de</strong> crenças <strong>de</strong> autoeficácia <strong>do</strong>s professores<br />
já validadas (Bandura, 2006; Tschannen-Moran & Wollfolk-Hoy, 2001,<br />
2005; Skaalvik & Skaalvik, 2007). Esse instrumento consiste em questões sobre informações<br />
pessoais e 20 itens em uma escala Likert <strong>de</strong> 5 pontos medin<strong>do</strong> cinco dimensões<br />
da autoeficácia <strong>do</strong>s professores no contexto escolar, a saber, a) ensinar<br />
música; b) gerenciar o comportamento <strong>do</strong>s alunos; c) motivar os alunos; d) consi<strong>de</strong>rar<br />
a diversida<strong>de</strong> <strong>do</strong> aluno; e, e) lidar com mudanças e <strong>de</strong>safios.<br />
Participaram da amostra 148 professores e estagiários que ministram aulas <strong>de</strong> música<br />
na Educação Básica, sen<strong>do</strong> 66.9% são mulheres e 33.1% são homens. Quanto<br />
às escolas, 50% trabalham em escolas públicas e 50% em escolas particulares. A ida<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>s participantes teve uma media <strong>de</strong> aproximadamente 35 anos e o tempo <strong>de</strong> atuação<br />
variou <strong>de</strong> 1 ano a 40 anos. Os da<strong>do</strong>s se encontram em processo <strong>de</strong> análise.<br />
Consi<strong>de</strong>rações Finais<br />
Por meio da revisão bibliográfica, foi possível constatar que a motivação é compreendida,<br />
em diferentes subáreas da psicologia, e principalmente entre as teorias<br />
sociocognitivas, como um fenômeno complexo e multifaceta<strong>do</strong>. Portanto, não há<br />
uma só teoria que explique a motivação, são necessárias várias teorias para compreen<strong>de</strong>r<br />
esse fenômeno. Cada uma <strong>de</strong>las contempla e explica uma parte <strong>do</strong> processo<br />
motivacional, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong>, então, ser complementares.
As diferenças encontradas nas atribuições <strong>de</strong> valor <strong>de</strong> alunos que fazem aulas <strong>de</strong><br />
música no currículo escolar e alunos que realizam aulas <strong>de</strong> música em diferentes<br />
contextos trazem reflexões sobre como diferentes contextos <strong>de</strong> aprendizagem têm<br />
influências diferenciadas na motivação <strong>do</strong>s alunos em apren<strong>de</strong>r. Porém, os estu<strong>do</strong>s<br />
realiza<strong>do</strong>s na psicologia <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento complementam essas reflexões, mostran<strong>do</strong><br />
que não são as características <strong>do</strong> ambiente <strong>de</strong> aprendizagem que unicamente<br />
têm impacto sobre a motivação <strong>do</strong>s alunos. São principalmente as percepções e<br />
crenças que eles <strong>de</strong>senvolvem por meio <strong>de</strong> várias experiências nesses contextos que<br />
têm impacto sobre o valor que atribuem ao aprendiza<strong>do</strong>, e, consequentemente,<br />
sobre a motivação para apren<strong>de</strong>r.<br />
As pesquisas aqui apresentadas buscam contribuir na medida em que trazem uma<br />
outra perspectiva <strong>de</strong> pesquisa com relação à aprendizagem <strong>do</strong>s alunos em diferentes<br />
contextos. Para a psicologia <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, o self é a referência para as <strong>de</strong>cisões<br />
<strong>do</strong>s indivíduos, ou seja, embora os indivíduos sejam afeta<strong>do</strong>s pelos ambientes<br />
<strong>de</strong> aprendizagem, são as percepções que têm <strong>de</strong>sse meio é que terão, principalmente,<br />
impactos sobre o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> sua aprendizagem. Assim, para compreen<strong>de</strong>r<br />
o comportamento <strong>do</strong>s alunos com relação à sua aprendizagem, é necessário investigar<br />
as percepções e crenças que têm em relação a esse meio (Eccles, 2005;<br />
Fredricks et al., 2002).<br />
Como as pesquisas sobre motivação na aprendizagem musical são poucas no Brasil,<br />
e pesquisas que investiguem o valor <strong>de</strong> realização são inexistentes no país, as pesquisas<br />
concluídas <strong>do</strong> grupo FAPROM po<strong>de</strong>m colaborar no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> explorar<br />
uma realida<strong>de</strong> educacional sob uma perspectiva teórica diferente. Como as pesquisas<br />
em âmbito internacional apontam para a importância <strong>de</strong> se investigar a motivação<br />
<strong>do</strong>s alunos e o valor <strong>de</strong> realização na aprendizagem musical, é importante<br />
que outras pesquisas sejam realizadas a fim <strong>de</strong> melhor explorar e compreen<strong>de</strong>r esses<br />
construtos em nosso contexto <strong>de</strong> ensino e aprendizagem.<br />
No que se refere à motivação <strong>do</strong>s professores <strong>de</strong> música, esperamos que o estu<strong>do</strong><br />
sobre as crenças <strong>de</strong> autoeficácia e os resulta<strong>do</strong>s da pesquisa possa contribuir para<br />
que professores forma<strong>do</strong>res, estudiosos e políticos educacionais repensem e direcionem<br />
ações para promover a motivação, autorregulação, e porque não, a realização<br />
<strong>do</strong>s professores <strong>de</strong> música em sua formação inicial e continuada <strong>de</strong> professores.<br />
1 Para <strong>de</strong>talhes, ver Vilela (2009)<br />
Referências Bibliográficas<br />
Al<strong>de</strong>rman, M. Kay. Motivation for achievement: possibilities for teaching and learning. Second<br />
edition, Mahwah, NJ, USA: Lawrence Erlbaum Associates, incorporated, 2004.<br />
Austin, James, Renwick, J, McPherson, Gary E. Developing motivation. In G. E. McPher-<br />
693
694<br />
son (Ed.), The child as musician: A handbook of musical <strong>de</strong>velopment. Oxford: Oxford<br />
University Press, 2006, p. 213-238.<br />
Bandura, Albert. Self-efficacy: The exercise of control. New York: W. H. Freeman, 1997.<br />
Bandura, Albert. Gui<strong>de</strong> for constructing self-efficacy scales. In: Pajares, F. & Urdan, T.<br />
Self-efficacy beliefs of a<strong>do</strong>lescents. Disponível em:<br />
http://www.<strong>de</strong>s.emory.edu/mfp/014-BanduraGui<strong>de</strong>2006.pdf<br />
Bandura, Albert. O sistema <strong>do</strong> self no <strong>de</strong>terminismo recíproco. In: Bandura, Azzi, Poly<strong>do</strong>ro<br />
& col. (orgs.). Teoria Social Cognitiva: conceitos básicos. Porto Alegre: Artmed, 2008, p.<br />
43-68.<br />
Bzuneck, José Aloyseo. A motivação <strong>do</strong> aluno: aspectos introdutórios. In: Boruchovitch,<br />
Evely; Bzuneck, José Aloyseo (orgs.). A motivação <strong>do</strong> aluno: contribuições da psicologia<br />
contemporânea. 3ª edição. Petrópolis, RJ. Editora Vozes, 2004. p. 9-36.<br />
Del Ben, Luciana. M.; Hentschke, Liane. Educação musical no Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul: mapeamento<br />
práticas, limites e possibilida<strong>de</strong>s. In: Oliveira, A.; Cajazeira, R. (Org.). Educação<br />
musical no Brasil. Salva<strong>do</strong>r: P&A, 2007. p. 69-75.<br />
Eccles, Jacquelynne. School, aca<strong>de</strong>mic motivation and stage-enviroment fit. In: Lerner, R.<br />
M.; Steinberg, L. Handbook of a<strong>do</strong>lescent psychology. Hoboken: Wiley, 2004. p. 125-153.<br />
Eccles, Jacquelynne. Subjective task value and the Eccles et al. Mo<strong>de</strong>l of achievement-related<br />
choices. In:Elliot, A. J.; Dweck, C. S. (Ed.). Handbook of competence and motivation.<br />
New York:The Guilford Press, 2005. p. 105-121.<br />
Eccles, Jacquelynne. S.; Wigfield, Allan. Development of Achievement motivation. Oxford:.Aca<strong>de</strong>mic<br />
Press, 2002.<br />
Fredricks, J. A.; Simpkins, S.; Eccles, J. S. Family socialization, gen<strong>de</strong>r, and participation in<br />
sports and instrumental music. In: Cooper, C. R. et al. (Ed.). Development pathways<br />
through middle childhood. Mahwah: Lawrence Erlbaum Associates, 2005. p. 41-62.<br />
Graham, Sandra; Taylor, April. Ethnicity, Gen<strong>de</strong>r, and The Development of Achievement<br />
Values. In: Wigfield, Allan; Eclles, Jacquelynne (eds). Development of Achievement Motivation.<br />
USA: Aca<strong>de</strong>mic Press, 2002, p.121-146.<br />
Guimarães, Sueli Édi Rufini. Avaliação <strong>do</strong> Estilo Motivacional <strong>do</strong> Professor: Adaptação e Validação<br />
<strong>de</strong> um instrumento. Tese <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong>. Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação da Universida<strong>de</strong><br />
Estadual <strong>de</strong> Campinas UNICAMP. Campinas, 2003.<br />
Guimarães, Sueli Édi Rufini. Motivação Intrísenca, extrínseca e o uso <strong>de</strong> recompensas em sala<br />
<strong>de</strong> aula. In: Boruchovitch, Evely; Bzuneck, José Aloyseo (orgs.). A motivação <strong>do</strong> aluno:<br />
contribuições da psicologia contemporânea. 3ª edição. Petrópolis, RJ. Editora Vozes, 2004.<br />
p. 37-57.<br />
Guimarães, Sueli Édi Rufini; Boruchovitch, Evely. O Estilo Motivacional <strong>do</strong> Professor e a<br />
Motivação Intrínseca <strong>do</strong>s Estudantes: Uma Perspectiva da Teoria da Auto-Determinação.<br />
Psicologia:Reflexão e Crítica, v. 17(2), p. 143-150, 2004.<br />
Hentschke, Liane; Santos, Regina. A. T.; Pizzato, Miriam; Vilela, Cassiana. Z.; Cereser, Cristina.<br />
Motivação para apren<strong>de</strong>r música em espaços escolares e não-escolares. ETD - Educação<br />
Temática Digital, Campinas, v. 10, n. especial, p. 85-104, out. 2009.<br />
Hentschke, Liane. Os Significa<strong>do</strong>s da Música para crianças e a<strong>do</strong>lescentes em ativida<strong>de</strong>s musicais<br />
escolares e não-escolares. Projeto <strong>de</strong> Pesquisa para o CNPQ – Conselho Nacional<br />
<strong>de</strong> Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Porto Alegre, julho <strong>de</strong> 2006.
Lamont, A. Young children’s musical worlds: Musical engagement in 3.5-year-olds. Journal<br />
of Early Childhood Research 6, n. 3 (2008), p. 247-261.<br />
Maehr, Martin L.; Pintrich, Paul R.; Linnenbrink, Elizabeth A. Motivation and achievement.<br />
In: Cowell, R.; Richardson, Carol. The new handbook of research on music teaching<br />
and learning. New York: Oxford University Press, 2002.<br />
Malhotra, N. Pesquisa <strong>de</strong> marketing: uma orientação aplicada. Tradução Laura Bocco. 4ª. ed.<br />
Porto Alegre: Bookman, 2006.<br />
O’Neill, Susan. A.; McPherson, Gary. E. Motivation. In: Parncutt, R.; McPherson, G.<br />
E.(Ed.). The science and psychology of musical performance: creatives strategies for teaching<br />
and learning. Oxford: Oxford University Press, 2002. p. 31-46.<br />
Pajares, Frank.; Olaz, Fabián. Teoria social cognitiva e auto-eficácia: uma visão geral. In:<br />
Bandura, Azzi, Poly<strong>do</strong>ro & col. (orgs.). Teoria Social Cognitiva: conceitos básicos. Porto<br />
Alegre: Artmed, 2008, p. 97-114.<br />
Reeve, Johnmarshall. Motivação e Emoção. 4ª ed. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: LTC, 2006.<br />
Ryan, M. Richard; Deci, L. Edward. Intrinsic and Extrinsic Motivations: Classic Definitions<br />
and New Directions. Contemporary Educional Psychology, Aca<strong>de</strong>mic Press, v. 25,<br />
p. 54-67, 2000a.<br />
Ryan, M. Richard; Deci, L. Edward. Self-Determination Theory and the Facilitation of Intrinsic<br />
Motivation, Social Development, and Well-Being. American Psychologist, American<br />
Psychological Association, v. 55, no.1, p. 68-78, 2000b.<br />
Siqueira, L.G.; Wechsler, S. M. Motivação para a aprendizagem escolar: possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
medida. Avaliação Psicológica 5, nº1 (2006), p. 21-31.<br />
Skaalvik, Einar.; Skaalvik, Sidsel. Dimensions of Teacher Self-Efficacy and relations with<br />
strain factors, perceived collective teacher efficacy, and teacher burnout. Journal of Educational<br />
Psychology 99, no. 3 (2007), p. 611-625.<br />
Tschannen-Moran, Megan; Woolfolk- Hoy, Anita. Teacher efficacy: capturing an elusive<br />
construct. Teaching and Teacher Education 17 (2001), p. 783-805.<br />
Wigfield, Allan; Eclles, Jacquelynne. Expectancy-Value Theory of Achievement Motivation.<br />
Contemporary Educational Psychology 25 (2000), p. 68-81.<br />
Wigfield, Allan; Eclles, Jacquelynne. The Development of Competence Beliefs, Expectancies<br />
for Sucess an Achievement Values from Childhood through a<strong>do</strong>lescence. In: Development<br />
of Achievement Motivation. Wigfield, Allan; Eclles, Jacquelynne (eds). USA:<br />
Aca<strong>de</strong>mic Press, 2002, p. 92-120.<br />
Zenorini, Rita P. C.; Santos, Acácia A. A. <strong>do</strong>s. Teoria <strong>de</strong> Metas <strong>de</strong> Realização: fundamentos<br />
e avaliação. In: Boruchovitch. Evely; Buzneck, José Aloyseo; Guimarães. Sueli É. R.<br />
(orgs), Motivação para apren<strong>de</strong>r: aplicações no contexto. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 99-<br />
125.<br />
695
696<br />
Conferências<br />
Memória e Atenção: Bases da <strong>Cognição</strong> Musical<br />
Dr. Gilberto Xavier<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />
Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo (1978),<br />
mestra<strong>do</strong> (1981) e <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> (1985) em Psicobiologia pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />
<strong>de</strong> São Paulo (1985). Realizou estágios <strong>de</strong> Pós-Doutora<strong>do</strong> no Instituto <strong>de</strong> Psiquiatria<br />
da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Londres, na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Aarhus, na Dinamarca, e no<br />
University College Lon<strong>do</strong>n. Atualmente é Professor Associa<strong>do</strong> da Universida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> São Paulo. Tem experiência na área <strong>de</strong> Fisiologia Nervosa e <strong>de</strong>senvolve pesquisas<br />
na área <strong>de</strong> Aprendizagem, Memória e Atenção.<br />
Tendências e Perspectivas<br />
na Pesquisa em <strong>Cognição</strong> Musical (2000-2010)<br />
Drª. Beatriz Ilari<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Paraná<br />
É professora adjunta <strong>de</strong> Educação Musical da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Paraná,<br />
on<strong>de</strong> criou e coor<strong>de</strong>nou entre 2003 e 2008, o curso <strong>de</strong> musicalização infantil para<br />
crianças <strong>de</strong> 0 a 12 anos. Tem experiência na área <strong>de</strong> psicologia da música, com ênfase<br />
em cognição e aprendizagem, atuan<strong>do</strong> principalmente nos seguintes temas:<br />
música, educação musical, e <strong>de</strong>senvolvimento cognitivo-musical da infância à a<strong>do</strong>lescência.<br />
Além <strong>de</strong> editar o periódico International Journal of Music Education -<br />
Research <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2006, acaba <strong>de</strong> lançar juntamente com Claudia Gluschankof (Israel)<br />
um número especial <strong>do</strong> periódico britânico Early Child Development & Care.<br />
A imaterialida<strong>de</strong> <strong>do</strong> corpo:<br />
psicanálise, sentimento e sensação<br />
Dr. Eduar<strong>do</strong> Rozenthal<br />
Universida<strong>de</strong> Santa Úrsula<br />
Gradua<strong>do</strong> em Psicologia pela PUC-RJ (1986), mestre em Teoria Psicanalítica pela<br />
UFRJ (1992) e <strong>do</strong>utor em Saú<strong>de</strong> Coletiva pela UERJ (2003). Atualmente é professor<br />
<strong>do</strong> Instituto <strong>de</strong> Psicologia e Psicanálise da pós-graduação da Universida<strong>de</strong><br />
Santa Úrsula, membro psicanalista, professor e coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Conselho Gestor<br />
da Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Psicanálise Iracy Doyle (SPID) e coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r adjunto <strong>do</strong> Labo-
atório Núcleo <strong>de</strong> Investigação <strong>do</strong> Trabalho Imaterial (NITI) da UFRJ. Tem experiência<br />
na área <strong>de</strong> psicanálise, atuan<strong>do</strong> principalmente nos seguintes temas: psicanálise,<br />
subjetivida<strong>de</strong>, singularida<strong>de</strong>, novos sintomas e trabalho imaterial. É autor<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> artigos e capítulos <strong>de</strong> livros em publicações especializadas.<br />
Mesas-Re<strong>do</strong>ndas<br />
<strong>Cognição</strong> Musical e suas Fronteiras<br />
Dr. Afonso Galvão<br />
Universida<strong>de</strong> Católica <strong>de</strong> Brasília<br />
Drª. Beatriz Raposo<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />
Dr. Ney Carrasco<br />
Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas<br />
Mo<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>r:<br />
Dr. Maurício Dottori<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Paraná<br />
<strong>Cognição</strong> Musical e Educação<br />
Drª. Graziela Bortz<br />
Universida<strong>de</strong> Estadual Paulista<br />
Drª. Thelma Alvares<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
Drª. Regina Antunes<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul<br />
Mo<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>r:<br />
Drª. Sonia Ray<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Goiás<br />
697
698<br />
<strong>Cognição</strong> Musical e Processos Criativos<br />
Drª. Sonia Ray<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Goiás<br />
Dr. Maurício Dottori<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Paraná<br />
Dr. Ricar<strong>do</strong> Freire<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília<br />
Mo<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>r:<br />
Dr. Marcos Nogueira<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
Grupos <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s<br />
<strong>Cognição</strong> e Ensino e Aprendizagem Musicais<br />
Equipe <strong>de</strong> Coor<strong>de</strong>nação:<br />
Beatriz Ilari (UFPR) – coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra geral<br />
Caroline Bren<strong>de</strong>l Pacheco (UFPB)<br />
Danilo Ramos (Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Borgonha – França)<br />
Graziela Bortz (UNESP)<br />
Regina Antunes Teixeira <strong>do</strong>s Santos (UFRGS)<br />
Rosane Car<strong>do</strong>so <strong>de</strong> Araujo (UFPR)<br />
Com o intuito <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar o esta<strong>do</strong> da arte das pesquisas em cognição e educação,<br />
constituiu-se um grupo <strong>de</strong> trabalho com pesquisa<strong>do</strong>res <strong>de</strong> diversas áreas <strong>do</strong><br />
país que têm publica<strong>do</strong> trabalhos em cognição. Em conjunto, o grupo estabeleceu<br />
uma lista <strong>do</strong>s principais periódicos <strong>de</strong> música e áreas afins, anais <strong>de</strong> eventos e teses<br />
<strong>de</strong>fendidas até <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2009, para fazer um levantamento <strong>do</strong>s trabalhos que<br />
envolvessem as áreas <strong>de</strong> cognição e educação musical. O perío<strong>do</strong> investiga<strong>do</strong> foi o<br />
<strong>do</strong>s últimos <strong>de</strong>z anos (isto é, 2000-2010), e cada membro ficou responsável pela<br />
análise <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> obras ou periódicos. No caso <strong>do</strong>s periódicos, foram consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s<br />
os seguintes títulos: <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais, Revista da ABEM, Opus,<br />
Per Musi, Em Pauta, Musica Hodie, REM, Lesex-USP, Claves, Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Coló-
quio da UNIRIO, Psicologia Teoria e Pesquisa, Psicologia em Estu<strong>do</strong>, Texto-Contexto,<br />
Revista <strong>de</strong> Antropologia, Revista Socieda<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Fonoaudiologia, Revista<br />
CEFAC, Revista Brasileira <strong>de</strong> Educação, Ca<strong>de</strong>rnos CEDES, entre outros. Com relação<br />
aos anais <strong>de</strong> eventos, foram consulta<strong>do</strong>s os anais <strong>do</strong>s Encontros da ABEM, ANPPOM<br />
e <strong>do</strong>s <strong>SIMCAM</strong>s.<br />
O levantamento <strong>do</strong> material foi nortea<strong>do</strong> pelo trabalho <strong>de</strong> Levitin (no prelo, cita<strong>do</strong><br />
em Ilari 2009), que propôs 9 linhas <strong>de</strong> pesquisa centrais à pesquisa em cognição<br />
musical na atualida<strong>de</strong>. Apesar da preocupação <strong>do</strong> grupo ter si<strong>do</strong> com as<br />
pesquisas cognitivas acerca da educação musical e não da cognição musical como<br />
um to<strong>do</strong>, a análise <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s revelou algo que já era <strong>de</strong> conhecimento <strong>do</strong> grupo: a<br />
<strong>de</strong> que seria muito difícil categorizar <strong>de</strong> maneira rígida os trabalhos, posto que a<br />
maioria <strong>de</strong>les po<strong>de</strong>ria ser colocada em mais <strong>de</strong> uma categoria. Em alguns casos, a intenção<br />
<strong>do</strong>(s) autor(es), os objetivos da pesquisa, méto<strong>do</strong>s e referenciais teóricos estavam<br />
muito claros e eram facilmente categorizáveis, porém, em outros casos, tal<br />
categorização se tornou ainda mais difícil. Além disso, um outro complica<strong>do</strong>r da tarefa<br />
foi justamente entrar num consenso <strong>do</strong> que seria a educação musical (quais seriam<br />
as suas fronteiras), e se o grupo <strong>de</strong>veria a<strong>do</strong>tar como critério o fato <strong>de</strong> os<br />
trabalhos avalia<strong>do</strong>s traçar implicações para o ensino e o aprendiza<strong>do</strong> musicais. Em<br />
busca <strong>de</strong> um consenso, o grupo a<strong>do</strong>tou como categoria <strong>de</strong> análise os termos “ensino<br />
e aprendizagem” musicais (ao invés <strong>de</strong> educação musical, que é uma subárea da Música<br />
com interfaces próximas e distantes à cognição musical propriamente dita). O<br />
grupo ainda consi<strong>de</strong>rou diversos trabalhos que versam sobre a mente musical no cotidiano,<br />
posto que, mundialmente, a área <strong>de</strong> cognição musical tem consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> a<br />
importância <strong>de</strong>sses contextos para o funcionamento e <strong>de</strong>senvolvimento da mente<br />
musical. Portanto, a síntese que é apresentada a seguir diz respeito a esse recorte específico,<br />
representan<strong>do</strong> uma primeira tentativa <strong>de</strong> mapearmos a área.<br />
De maneira geral, percebeu-se que a maior quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhos encontra-se na<br />
temática <strong>de</strong> performance e aprendizagem instrumental com trabalhos que vão <strong>do</strong>s<br />
conhecimentos musicais usa<strong>do</strong>s na preparação da performance da música dita erudita<br />
a (ex, Santiago 2002; Santos 2007) ao ensino <strong>de</strong> técnicas, repertórios e estruturas<br />
musicais específicas (Borem et al. 2005; Siedlecki 2008). Ainda são poucos,<br />
mas há alguns estu<strong>do</strong>s sobre expertise e prática <strong>de</strong>liberada no Brasil (ver Galvão<br />
2006; 2007). Nos últimos anos, tem havi<strong>do</strong> também uma ênfase em pesquisas sobre<br />
o ensino e aprendizagem musicais em contextos <strong>de</strong> tradição oral e/ou fora <strong>do</strong>s ambientes<br />
formais <strong>de</strong> ensino (como escolas regulares, escolas <strong>de</strong> música, universida<strong>de</strong>s)<br />
e com populações pouco estudadas, como nos estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Kebach (2008), Cajazeira<br />
(2004), Kleber (2004) e Hikiji (2007), entre outros. Muitos <strong>de</strong>sses estu<strong>do</strong>s têm<br />
como referencial teorias <strong>de</strong> outras áreas como sociologia, antropologia, etnomusicologia,<br />
porém traçam contribuições interessantes para o compreendi<strong>do</strong> da mente<br />
musical que apren<strong>de</strong> e ensina.<br />
699
700<br />
A percepção e apreciação musical também têm recebi<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>rável atenção nos<br />
últimos anos, com diversos estu<strong>do</strong>s – <strong>de</strong> surveys a estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> caso, e alguns experimentos<br />
realiza<strong>do</strong>s com participantes <strong>de</strong> diversas ida<strong>de</strong>s, grupos sociais e com diversos<br />
níveis <strong>de</strong> conhecimento musical (ex: Otutumi 2008; Gran<strong>de</strong> 2007; Ramos<br />
2009). Alguns estu<strong>do</strong>s da psicologia social e sociologia também têm busca<strong>do</strong> compreen<strong>de</strong>r<br />
o papel da audição musical continuada e das preferências musicais no <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>do</strong> jovem brasileiro (Brenner et al. 2004; Pimentel et al. 2005; 2009).<br />
Há também uma quantida<strong>de</strong> crescente <strong>de</strong> trabalhos sobre <strong>de</strong>senvolvimento musical,<br />
que vão da percepção à produção musical <strong>de</strong> bebês, crianças e jovens (Parizzi<br />
2003; Beyer 2005; Ilari 2002, França 2007). Alguns trabalhos recentes têm procura<strong>do</strong><br />
estabelecer paralelos entre a música e a linguagem, seja através da alfabetização<br />
e/ou lecto-escrita (Furlan 2007), ou <strong>do</strong>s efeitos extra-musicais da aprendizagem<br />
musical no <strong>de</strong>senvolvimento da leitura (Pacheco 2009). Além disso, uma temática<br />
que tem recebi<strong>do</strong> atenção nos últimos tempos diz respeito à motivação e a música,<br />
com pesquisas sobre engajamento e crenças <strong>de</strong> alunos acerca da aprendizagem (ex.<br />
Araujo & Torres 2008) e na profissionalização <strong>de</strong> músicos (Bortz 2008).<br />
De mo<strong>do</strong> geral, essas são as que aparecem com maior freqüência nos periódicos e<br />
teses consulta<strong>do</strong>s. Há ainda poucos estu<strong>do</strong>s que procuram estabelecer relações entre<br />
o ensino e a aprendizagem da música e a psicologia evolucionária, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns neurológicas<br />
e estu<strong>do</strong>s comparativos entre culturas.<br />
<strong>Cognição</strong>, Música e Musicoterapia<br />
Equipe <strong>de</strong> Coor<strong>de</strong>nação:<br />
Clara Márcia Piazzetta (FAP) – coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra geral<br />
Noemi Ansay (FAP)<br />
Rosemyriam Cunha (FAP)<br />
Shirlene Moreira (SMN)<br />
Tereza Raquel Alcântara Silva (UFG)<br />
Thelma Avares (UFRJ)<br />
Durante o <strong>SIMCAM</strong>5 surgiu a idéia da realização <strong>de</strong> Grupos <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s (GE) para<br />
aprofundamentos temáticos. A inter-relação entre as artes musicais e as dinâmicas<br />
<strong>do</strong> pensamento humano são os temas que fundamentam a construção <strong>de</strong> trabalhos<br />
e pesquisas que são divulga<strong>do</strong>s nos simpósios nacionais e internacionais <strong>de</strong> cognição<br />
e música. Esses eventos têm reuni<strong>do</strong> a comunida<strong>de</strong> científica preocupada em enten<strong>de</strong>r<br />
nuances <strong>do</strong> funcionamento <strong>do</strong> cérebro e da mente quan<strong>do</strong> a música provoca<br />
múltiplas formas <strong>de</strong> funções e emoções no ambiente físico e subjetivo das pessoas.<br />
Entre as áreas <strong>do</strong> conhecimento envolvi<strong>do</strong>s nesse campo <strong>de</strong> pesquisa encontra-se a
Musicoterapia, uma ciência que utiliza a música e seus parâmetros para promover<br />
ou reabilitar a saú<strong>de</strong> das pessoas. Enten<strong>de</strong>-se por saú<strong>de</strong> o bem estar físico, motor,<br />
mental, cognitivo, emocional e social <strong>de</strong> indivíduos e grupos. Por se tratar <strong>de</strong> uma<br />
área ampla no que diz respeito à pesquisa, à prática e à teoria, vários e diferentes<br />
trabalhos compõem a contribuição <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s musicoterapêuticos no âmbito <strong>do</strong><br />
<strong>SIMCAM</strong>.<br />
O GE <strong>Cognição</strong>, Música e Musicoterapia traçou uma meta <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a<br />
englobar a totalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s trabalhos na vertente musicoterapêutica publica<strong>do</strong>s nos<br />
<strong>Anais</strong> <strong>do</strong> <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais <strong>de</strong> 2005 a 2009. O objetivo proposto<br />
foi o <strong>de</strong> averiguar, entre os artigos, como o assunto música e cognição foi trata<strong>do</strong><br />
e apreendi<strong>do</strong> pelos estudiosos da musicoterapia.<br />
Após a seleção <strong>do</strong>s trabalhos, foi realizada uma revisão <strong>do</strong>s termos e conceitos referentes<br />
a música e cognição, utiliza<strong>do</strong>s nas diferentes áreas <strong>de</strong> atuação da Musicoterapia<br />
como a social, a neurológica, a educacional. Como resulta<strong>do</strong>, obteve-se uma<br />
classificação <strong>de</strong> expressões que foram agrupadas em quatro categorias. Para a realização<br />
<strong>de</strong>stas categorias partiu-se das <strong>de</strong>scrições recorrentes nos trabalhos e das especificida<strong>de</strong>s<br />
da forma como as técnicas musicais <strong>de</strong> improvisação, composição,<br />
recriação e audição são consi<strong>de</strong>radas na Musicoterapia, uma vez que estas são redimensionadas<br />
no campo das interações musicais terapêuticas.<br />
As categorias até agora construídas são: I – Música e dinâmica <strong>de</strong> pensamento: favorecem,<br />
nos cenários da pesquisa, prática e teoria <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s musicoterapêuticos,<br />
a mobilização <strong>de</strong> estruturas psicoemocionais e esquemas <strong>de</strong> pensamento; II - Estruturas<br />
sonoro-musicais e funcionamento cerebral: favorecem, nos cenários da<br />
pesquisas em neurociência da música, prática e teoria <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s musicoterapêuticos,<br />
a estimulação e mobilização <strong>de</strong> estruturas cerebrais; III – Música e interação<br />
social: promovem, nos cenários da pesquisa, prática e teoria <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s musicoterapêuticos<br />
envolven<strong>do</strong> a cultura e funções sociais da música; IV - Vivência <strong>do</strong>s parâmetros<br />
e elementos sonoro-musicais (ritmo, intensida<strong>de</strong>, duração, timbre, altura,<br />
melodia e harmonia): favorecem, nos cenários da pesquisa, prática e teoria <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s<br />
musicoterapêuticos, a ativação das funções musicais da improvisação, recriação,<br />
composição e audição, alcançan<strong>do</strong> respostas terapêuticas não musicais.<br />
Este é um estu<strong>do</strong> preliminar e essas categorias estão em formação, portanto, po<strong>de</strong>m<br />
ser reorganizadas durante o <strong>SIMCAM</strong>6, quan<strong>do</strong> o GE continuará seus trabalhos.<br />
Espera-se que o resulta<strong>do</strong> até agora obti<strong>do</strong> possa instigar o pensamento científico<br />
<strong>de</strong> muitos colegas e <strong>de</strong>ixa-se aqui o convite para que esses possam a<strong>de</strong>rir a este<br />
trabalho.<br />
701
702<br />
Criação Musical e <strong>Cognição</strong><br />
Equipe <strong>de</strong> Coor<strong>de</strong>nação:<br />
Sônia Ray (UFG) – coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra geral<br />
Anselmo Guerra (UFG)<br />
Bernar<strong>de</strong>te Póvoas (UDESC)<br />
Bernar<strong>do</strong> Grassi (FAP)<br />
Ricar<strong>do</strong> Freire (UnB)<br />
Yara Quercia Vieira (UFSM)<br />
Num primeiro momento os membros <strong>do</strong> GE Criação Musical e <strong>Cognição</strong> tiveram<br />
a intenção <strong>de</strong> fazer um levantamento da produção em Composição e Performance<br />
com referência a cognição nos últimos cinco anos, com base em publicações <strong>de</strong> periódicos<br />
afins, anais <strong>de</strong> congressos, teses e dissertações <strong>de</strong>fendidas e livros. Após localiza<strong>do</strong>s<br />
os trabalhos, pretendíamos classificá-los entre as seis categorias propostas<br />
pelo <strong>SIMCAM</strong>, quais sejam: I. A mente e a percepção musical; II. A mente e a produção<br />
musical; III. Lingüística, semiótica e cognição musical; IV. Tecnologia e cognição<br />
musical; V. <strong>Artes</strong> musicais e <strong>de</strong>senvolvimento da mente humana e <strong>VI</strong>. <strong>Artes</strong><br />
musicais e cognição social.<br />
O primeiro gran<strong>de</strong> obstáculo foi a dificulda<strong>de</strong> em localizar trabalhos por títulos ou<br />
palavras-chave. Estas duas referências cruciais apresentam <strong>de</strong> formas variadas (muitas<br />
vezes fora <strong>do</strong> padrão recomenda<strong>do</strong> pela área <strong>de</strong> editoria científica, e sem o uso<br />
<strong>de</strong> palavras relacionadas diretamente a cognição musical. Num segun<strong>do</strong> momento,<br />
após constatar a situação acima <strong>de</strong>scrita, optou-se por traçar uma linha geral sobre<br />
os trabalhos localiza<strong>do</strong>s e propor que a discussão <strong>do</strong> GE durante o <strong>SIMCAM</strong>6 se inicie<br />
com a questão da i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong> objeto <strong>de</strong> pesquisa e sugestão <strong>de</strong> escolha <strong>de</strong> palavras-chave<br />
que contribuam com a divulgação e ampliação da produção específica<br />
em Composição e Performance associada a cognição musical.<br />
Diante da dificulda<strong>de</strong> imposta pela aparente <strong>de</strong>ficiência nos títulos e palavras-chave,<br />
unida à nossa impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ler to<strong>do</strong>s os textos (ou resumos), fizemos um levantamento<br />
com base em títulos que nos levassem a crer que o trabalho envolvia explicitamente<br />
alguma relação com cognição musical associada a composição ou<br />
performance. Palavras-chave (isoladas ou no título) tais como: percepção, neurociência,<br />
psicologia, memória, aprendiza<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpo, motricida<strong>de</strong> e cognição foram<br />
consi<strong>de</strong>radas com priorida<strong>de</strong>.<br />
Assim, analisan<strong>do</strong> os anais das cinco edições <strong>do</strong> <strong>SIMCAM</strong>, localizamos 29 textos<br />
sobre performance e 12 sobre composição. Nos periódicos Música Hodie, Permusi,<br />
Revista da ABEM, Claves e Em Pauta (<strong>de</strong> 2005 a 2009) localizamos 14 trabalhos<br />
sobre performance e 17 sobre composição no contexto investiga<strong>do</strong>. Os anais <strong>do</strong>s
Congressos da ANPPOM (2005 a 2009) apresentam 20 trabalhos sobre cognição e<br />
performance e 13 sobre cognição e composição. A investigação nas dissertações e<br />
teses nos PPGs não foi concluída, pois as informações <strong>do</strong>s últimos cinco anos não<br />
estão completas nos sítios eletrônicos da maioria <strong>do</strong>s programas. Esta investigação<br />
<strong>de</strong>ve continuar até a reunião presencial <strong>do</strong> GE em maio, durante o <strong>Simpósio</strong>,<br />
quan<strong>do</strong> preten<strong>de</strong>mos complementar estes da<strong>do</strong>s, discuti-los e assim visualizar a<br />
produção em criação e cognição nos últimos cinco anos, que sirva para nos sincronizar<br />
com a atual produção na área, bem como para nos ajudar a traçar novas metas<br />
para nossas pesquisas.<br />
Música e Sistemas Dinâmicos<br />
Equipe <strong>de</strong> Coor<strong>de</strong>nação:<br />
Beatriz Raposo <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros (USP) – coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra geral<br />
Luiz Felipe Oliveira (UFMS)<br />
Marcos Ribeiro <strong>de</strong> Moraes (UFES)<br />
Rael Toffolo (UEM)<br />
Em uma abordagem dinâmica da cognição, o planejamento da ação e o movimento<br />
da ação pertencem a um sistema uno, a saber, um sistema forma<strong>do</strong> por sistema nervoso,<br />
corpo e meio ambiente, <strong>de</strong>sempenhan<strong>do</strong> seus papéis on-line. Em outras palavras,<br />
a mente (abstrato) e o gesto concreto (físico) formam um sistema em que o<br />
fazer e o saber estão imbrica<strong>do</strong>s necessariamente. O caso da fala é exemplar: vejamos<br />
o caso da pronúncia <strong>do</strong> nome da atriz Marylin Monroe e pensemos nas diversas<br />
formas sonoras que o último nome po<strong>de</strong> tomar: acento na primeira sílaba ou na<br />
segunda; três diferentes /r/: um retroflexo ( mais conheci<strong>do</strong> como caipira), um<br />
velar (r <strong>de</strong> garganta, como em carro) e outro tap (como em cara). In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />
como o nome é pronuncia<strong>do</strong>, é possível i<strong>de</strong>ntificá-lo como o sobrenome da atriz<br />
loira que mais sucesso fez em Hollywood. O que assegura ao falante/ouvinte, o entendimento<br />
<strong>de</strong> diferentes pronúncias para uma mesma unida<strong>de</strong> fonológica? Em<br />
um primeiro momento, po<strong>de</strong>mos dizer que o falante acessa três possibilida<strong>de</strong>s lexicais<br />
diferentes <strong>de</strong>ste nome – as três pronúncias possíveis <strong>do</strong> /r/ em português brasileiro<br />
– e que portanto, qualquer que seja sua realização, será inteligível. Mas o que<br />
dizer da situação em que se ouve pela primeira vez o nome com sua pronúncia original<br />
em inglês, para logo em seguida o realizar com um /r/ velar, por exemplo? Tal<br />
situação talvez nos permita começar a entrever a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que há uma comunicação<br />
entre aquilo que é simbólico (o conhecimento sobre o /r/ como unida<strong>de</strong><br />
sonora da língua) e o que é concretamente realiza<strong>do</strong> (por exemplo, o /r/ retroflexo<br />
<strong>do</strong> inglês), em um jogo entre percepção e produção. Frequentemente fazemos ajustes<br />
<strong>de</strong> pronúncia <strong>de</strong> um nome próprio em língua estrangeira quan<strong>do</strong> o empregamos<br />
703
704<br />
em ca<strong>de</strong>ias sonoras da nossa língua materna. Nestas realizações linguísticas, entrevemos<br />
uma “conversa” entre a representação simbólica <strong>de</strong> um som e sua realização.<br />
Há uma tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão: que /r/ usar? E esta tomada é on-line, ou seja, ao produzirmos<br />
o som <strong>de</strong> nossa língua, estamos ao mesmo tempo realizan<strong>do</strong> uma tarefa<br />
física e lançan<strong>do</strong> o sobrenome da atriz para o inventário das palavras da nossa língua,<br />
o que é uma tarefa cognitiva. Em uma visão cognitiva dinâmica, tais tarefas<br />
não estão separadas pelo limiar mente e corpo.<br />
Então, é essa divisão, ou dualismo, como muitos chamam na psicologia, na filosofia<br />
e nas ciências cognitivas, entre outras áreas, que a abordagem dinâmica cognitiva<br />
quer <strong>de</strong>ixar para trás. Ativida<strong>de</strong>s cognitivas e ativida<strong>de</strong>s físicas (como o movimento<br />
<strong>de</strong> membros <strong>do</strong> corpo, por exemplo) são vistas como sistemas dinâmicos, os quais<br />
são provi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> força, movimento, padrão <strong>de</strong>ste movimento e tempo em que se <strong>de</strong>senvolvem.<br />
A pergunta que este Grupo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s coloca é: a Música po<strong>de</strong> ser<br />
consi<strong>de</strong>rada um sistema dinâmico? E se po<strong>de</strong>, como isso po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong>?<br />
Em A dynamical systems perspective on music, David Burrows cria um paralelo entre<br />
a peça musical e a vida. Ambos seriam sistemas dinâmicos por apresentarem continuida<strong>de</strong><br />
e <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>, estabilida<strong>de</strong> e instabilida<strong>de</strong>. A peça musical escolhida<br />
por Burrows é a Saraban<strong>de</strong> da Suite no. 6 para violoncelo, <strong>de</strong> Bach, cuja partitura<br />
recebe uma análise processual, levan<strong>do</strong>-se em conta que a música é, antes <strong>de</strong> mais<br />
nada, performance, e que os performers são o executante e o ouvinte. Embora a análise<br />
<strong>de</strong> Burrows crie apenas relações genéricas, entre a peça musical e um sistema<br />
dinâmico (tal como é genérico seu paralelo entre vida e peça musical) é interessante<br />
acatar sua proposta <strong>de</strong> que a Saraban<strong>de</strong> é uma unida<strong>de</strong> musical, que se <strong>de</strong>senrola no<br />
tempo, apresentan<strong>do</strong> <strong>de</strong>safios para a expectativa <strong>de</strong> seus performers. Um <strong>do</strong>s <strong>de</strong>safios<br />
seria a presença <strong>do</strong> dó natural que, por momentos, cria uma tonalida<strong>de</strong> distante<br />
daquela original (ré maior). Ainda assim, há um padrão envolven<strong>do</strong> outros<br />
aspectos como ritmo, entre outros, que faz da Saraban<strong>de</strong> uma Saraban<strong>de</strong>.<br />
Na musicologia, especialmente na última década, surgiram algumas propostas que<br />
relacionam conceitos dinâmicos ao estu<strong>do</strong> e <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s musicais. Essa<br />
relação se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra em diferentes possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> investigação científica, que englobam<br />
<strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> produção motora e da performance aos estu<strong>do</strong>s da sintaxe<br />
e da significação musicais. Se as teorias <strong>do</strong>s sistemas dinâmicos, ao superarem dualismos<br />
como mente e corpo, sujeito e objeto, percepção e ação, possibilitam um<br />
ponto <strong>de</strong> vista analítico e <strong>de</strong>scritivo diferencia<strong>do</strong> da cognição, a perspectiva oferecida<br />
por uma musicologia cognitiva dinâmica po<strong>de</strong> fazer o mesmo na <strong>de</strong>scrição das<br />
ativida<strong>de</strong>s musicais. Alguns trabalhos po<strong>de</strong>m ser toma<strong>do</strong>s como exemplos <strong>de</strong> como<br />
mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> sistemas dinâmicos vêm sen<strong>do</strong> emprega<strong>do</strong>s no estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> algumas questões,<br />
como da relação entre percepção e ação sobre padrões rítmicos (Sadakata, Desain<br />
& Honing 2002), no estu<strong>do</strong> da ontogênese <strong>de</strong> relações tonais (Leman 1997;<br />
1991; Petroni & Tricarito 1997), na estruturação topológica <strong>de</strong> campos harmôni-
cos por mapas auto-organiza<strong>do</strong>s (Oliveira et al. 2005), na caracterização perceptiva<br />
e ecológica da música eletroacústica (Windsor 1995). Em propostas composicionais<br />
os trabalhos <strong>de</strong> Manzolli (1996, Manzolli e al. 1999), Rosenboom (1988,<br />
1997), Di Scipio (Solomos & Di Scipio 2008), Zampronha (2000), entre outros,<br />
são ilustrativos das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma compreensão <strong>de</strong> música em aspectos dinâmicos.<br />
A análise musical também po<strong>de</strong> se valer das concepções <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s dinâmicos,<br />
como emergência, auto-organização, ao voltar seu olhar sobre a música<br />
(Bregman & Wright 1987; Meric & Solomos 2008; Tofollo, Oliveira & Zampronha<br />
2003; Clarke 2005).<br />
Em termos mais latos, po<strong>de</strong>-se dizer que os sistemas dinâmicos constituem-se como<br />
uma meta-teoria que abarca e analisa diversas áreas <strong>do</strong> conhecimento. Ainda, os<br />
sistemas dinâmicos, como área ou subárea da cognição (não reduzida à cognição<br />
humana), po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada como parte <strong>do</strong> paradigma da ciência cognitiva dinâmica.<br />
Sen<strong>do</strong> assim, entram, nesse panorama, teorias como a da Psicologia Ecológica,<br />
a semiótica pierciana, os próprios estu<strong>do</strong>s sobre sistemas dinâmicos e<br />
auto-organização, as teorias emergentistas, a neurociência (principalmente aquela<br />
que foge <strong>de</strong> concepções frenológicas), a fenomenologia <strong>de</strong> linhagem pontyana e<br />
pós-pontyana, entre outras. Trata-se, em suma, <strong>de</strong> teorias que fogem <strong>de</strong> concepções<br />
metafísicas, dualistas, apoiadas em fundamentos <strong>do</strong> processamento <strong>de</strong> informação<br />
e que propõem uma análise <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> enquanto processo temporal. No<br />
caso das abordagens cognitivas na área <strong>de</strong> música que se apóiam em teorias advindas<br />
<strong>do</strong>s sistemas dinâmicos, principalmente aquelas que visam compreen<strong>de</strong>r os processos<br />
significativos musicais, costuma-se abordar a música enquanto um processo<br />
dinâmico que ocorre em um corpo, corpo esse <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um sistema nervoso e<br />
afunda<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong>, para usar os termos <strong>de</strong> Merleau-Ponty. Além disso, um cuida<strong>do</strong><br />
essencial <strong>de</strong>ve ser toma<strong>do</strong> com conceitos como o <strong>de</strong> representação ou melhor<br />
ainda representação simbólica por carregar em sua origem resquícios in<strong>de</strong>sejáveis<br />
das teorias <strong>do</strong> processamento <strong>de</strong> informação e por congelar em uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
análise, quase que fisicalista, um “objeto” que não é possível <strong>de</strong> existir quan<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong><br />
à luz da teoria <strong>do</strong>s sistemas dinâmicos.<br />
Os assuntos <strong>de</strong> pesquisa <strong>do</strong>s membros <strong>de</strong>ste grupo tem, direta ou indiretamente<br />
uma ligação com o pensamento não dualista. As propostas <strong>de</strong> entendimento <strong>de</strong> diferentes<br />
aspectos cognitivos em música apresentam sempre um <strong>de</strong>slocamento <strong>do</strong><br />
ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong> cognitivismo tradicional, no qual a mente está separada <strong>do</strong> corpo.<br />
Assim, tanto o processo criativo musical, no senti<strong>do</strong> da produção, como a compreensão/significação<br />
<strong>de</strong> uma peça musical – conhecida ou <strong>de</strong>sconhecida – são fenômenos<br />
ancora<strong>do</strong>s na idéia <strong>de</strong> estratégias cognitivas diferentes, que advêm <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimentos cognitivos individuais, e que, portanto, fazem emergir relações<br />
próprias entre o sujeito e a música (Tofollo 2009; Oliveira 2008). A questão <strong>do</strong><br />
ritmo é vista <strong>de</strong> maneira macroscópica, quan<strong>do</strong> a proposta é enten<strong>de</strong>r o ritmo como<br />
705
706<br />
viabiliza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> movimento – po<strong>de</strong> ser o movimento <strong>do</strong>s corpos, na dança (Me<strong>de</strong>iros<br />
2010). É visto <strong>de</strong> maneira microscópica, quan<strong>do</strong> o que se busca é explicar a<br />
ocorrência das batidas como estan<strong>do</strong> em fase com um relógio mais abstrato, no entanto,<br />
não <strong>de</strong>sconecta<strong>do</strong> da percepção <strong>do</strong> indivíduo, que o faz entrar em fase com<br />
este relógio e levar a cabo marcações rítmicas físicas (Moraes 2003). Uma tal visão<br />
microscópica questiona a <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> ritmo com base na quantida<strong>de</strong>, ou seja, na<br />
duração intrínseca <strong>de</strong> um som e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a expectativa rítmica relaciona-se ao<br />
quan<strong>do</strong> uma batida ocorre e não o quanto dura o som fasea<strong>do</strong> a esta batida.<br />
A contribuição que este grupo <strong>de</strong>seja oferecer à área <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s cognitivos musicais<br />
é <strong>de</strong>svendar o papel da abordagem dinâmica e sua relação com diferentes aspectos<br />
da cognição musical. Os estu<strong>do</strong>s recém-inicia<strong>do</strong>s <strong>do</strong> grupo constituem, hoje, um<br />
ponto <strong>de</strong> partida para po<strong>de</strong>rmos congregar mais estudiosos interessa<strong>do</strong>s em aprofundar<br />
a noção <strong>de</strong> música como sistema dinâmico. Ainda que possa intimidar pela<br />
eventual pomposida<strong>de</strong> <strong>do</strong> nome, enten<strong>de</strong>r o mun<strong>do</strong> através <strong>de</strong> uma visão dinâmica<br />
é inauguralmente muito simples. A centelha para a inauguração já está em muitos<br />
<strong>de</strong> nós, <strong>de</strong>scontentes com explicações mentalistas <strong>de</strong> nossas habilida<strong>de</strong>s, as quais<br />
<strong>de</strong>ixam a corporeida<strong>de</strong> <strong>de</strong> la<strong>do</strong>.<br />
Leitura recomendada<br />
Port, B. e Van Gel<strong>de</strong>r, T. Mind as motion: explorations in the dynamics of cognition. Cambridge:<br />
The MIT Press, 1995.<br />
Referências<br />
Burrows, D. 1997. A Dynamical Systems Perspective on Music. Journal of Musicology 15,<br />
No. 4 (Autumn, 1997): 529-545.<br />
Clarke, E. 2005. Ways of listening: An ecological approach to the perception of musical meaning.<br />
Nova Iorque: Oxford University Press.<br />
Leman, M. 1997. The convergence paradigm, ecological mo<strong>de</strong>lling, and context-<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<br />
pitch perception. Journal of New Music Research 26, nº 2: 133-153.<br />
Leman, M. 1991. “The ontogenesis of tonal semantics: results of a computer study”. In Music<br />
and Connectionism, ed. Peter M. Todd e D. Gareth Loy, 100-127. Cambridge, MA:<br />
MIT Press.<br />
Manzolli, J. 1996. “Auto-organização: um paradigma composicional”. In Autoorganização:<br />
estu<strong>do</strong>s interdisciplinares, org. M.M. Debrun, M.E.Q.Gonzalez, O. Pessoa Jr., 417-435,<br />
Coleção CLE 18. Campinas: CLE-Unicamp.<br />
Manzolli, J.; Moroni, A.; Zuben, F. V. & Gudwin, R. 1999. An evolutionary approach applied<br />
to algorithmic composition. In Proceedings of <strong>VI</strong> Brazilian Symposium on Computer<br />
Music, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1999, 201-210. Rio <strong>de</strong> Janeiro: PUC.<br />
Me<strong>de</strong>iros, B. R. 2010. Ritmo na língua e na música: o elo possível. Música em perspectiva 3,<br />
1.<br />
Meric, R. & Solomos, M. 2009. Audible Ecosystems and emergent sound structures in Di
Scipio’s music: music philosophy helps musical analysis. Journal of Interdisciplinary<br />
Music Studies 3, nº 1-2 (Spring/Fall 2009): 57-76<br />
Moraes, M. 2003. Musicalida<strong>de</strong> Métrico-Tonal. Tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>, PUC/SP.<br />
http://www.sapientia.pucsp.br/t<strong>de</strong>_arquivos/3/TDE-2006-09-08T12:47:45Z-2484/<br />
Publico/Tese%20Marcos%20Ribeiro%20<strong>de</strong>%20Moraes.pdf<br />
Oliveira, L. F.; El-Hani, C. & Zampronha, E. S. 2003. Emergentism and musicology: an anternative<br />
to the un<strong>de</strong>rstanding of dissonance. In Ricar<strong>do</strong> <strong>de</strong> Oliveira Ani<strong>do</strong> & Paulo<br />
César Masiero, ed., <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> XXIII Congresso da Socieda<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Computação,<br />
Campinas, 2003, 51-58. Campinas: SBC.<br />
Oliveira, L. F.; Lima, L. G. P.; Oliveira, A. L. G. & Toffolo, R. B. G. 2005. Classificação <strong>de</strong><br />
inversões <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s por mapas auto-organiza<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Kohonen. In Maurício Dottori;<br />
Beatriz Ilari & Ro<strong>do</strong>lfo Coelho Souza, ed., <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> 1º <strong>Simpósio</strong> Internacional <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong><br />
e <strong>Artes</strong> Musicais, Curitiba, 2005, 304-310. Curitiba: De<strong>Artes</strong>-UFPR.<br />
Oliveira, L. F., Haselager, W. F. G., Manzolli, J., Gonzalez, M. E. Q. 2008. Significa<strong>do</strong> musical<br />
e inferências lógicas a partir da perspectiva <strong>do</strong> pragmatismo Peirceano, <strong>Cognição</strong> e<br />
<strong>Artes</strong> Musicais 3, nº 2: 67 -76.<br />
Petron, N. & Tricarico, M. 1997. “Self-organizing neural nets and the perceptual origin of<br />
the circle of fifths”. In Music, Gestalt, and Computing: Studies in Cognitive and Systematic<br />
Musicology, 169-180. Berlin/Hei<strong>de</strong>lberg: Springer.<br />
Rosenboom, D. 1997. Propositional Music: On Emergent Properties in Morphogenesis and<br />
the Evolution of Music: Part II: Impon<strong>de</strong>rable Forms and Compositional Methods,<br />
Leonar<strong>do</strong> Music Journal 7: 35-39.<br />
Rosenboom, D. 1988. Exten<strong>de</strong>d musical interface with the human nervous system: Assessment<br />
and prospectus, Leonar<strong>do</strong>. Electronic Art Supplemental Issue, 121.<br />
Sadakata, M.; Desain, P. & Honing, H. 2002. ‘The relation between rhythm perception and<br />
production: towards a Bayesian mo<strong>de</strong>l’, Transaction of Technical Committee of Psychological<br />
and Physiological Acoustics, Acoustical Society of Japan, 32 (10), H-2002-92.<br />
Toffolo, R. B. G.; Oliveira, L. F. & Zampronha, E. S. 2003. Paisagem sonora: uma proposta<br />
<strong>de</strong> análise. In <strong>Anais</strong> <strong>do</strong> 14º Encontro da ANPPOM, Porto Alegre, 2003. Porto Alegre: ANP-<br />
POM.<br />
Toffolo, R. B. G. (2009) Processos criativos e cognição musical. In Maurício Dottori, ed.,<br />
<strong>Anais</strong> <strong>do</strong> V <strong>SIMCAM</strong>, <strong>Simpósio</strong> <strong>de</strong> <strong>Cognição</strong> e <strong>Artes</strong> Musicais, Goiânia, 2009, 62-70. Goiânia:<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Goiás.<br />
Windsor, W. 1995. A perceptual approach to the <strong>de</strong>scription and analysis of acousmatic<br />
music. Tese <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong>, City University, Lon<strong>do</strong>n.<br />
Wright, J. & Bregman, A. 1987. Auditory stream segregation and the control of dissonance<br />
in polyphonic music. Contemporary Music Review 2 (1): 63-92.<br />
Zampronha, E. 2000. “Forms of behavior and a new paradigm of perception to the production<br />
of new sounds”. In R. Ascott (ed.). Art Technology, Consciousness, 99-103. Bristol<br />
Intellect.<br />
707