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Acusações de feitiçaria e insurreções escravas no sudeste do ...

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ACUSAÇÕES DE FEITIÇARIA<br />

E INSURREIÇÕES ESCRAVAS<br />

NO SUDESTE DO IMPÉRIO DO BRASIL*<br />

Luiz Alberto Couceiro **<br />

questão central <strong>de</strong>ste artigo é avaliar algumas situações nas<br />

quais escravos eram acusa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong>, <strong>no</strong> Su<strong>de</strong>ste <strong>do</strong> Brasil<br />

<strong>do</strong> século XIX. A partir da análise <strong>de</strong> <strong>no</strong>tícias <strong>de</strong> jornal,<br />

bem como <strong>de</strong> casos encontra<strong>do</strong>s <strong>no</strong>utros tipos <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos, concluímos<br />

que as acusações <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong> pesquisadas <strong>no</strong>s arquivos estavam<br />

ligadas a assassinatos ou ameaças <strong>de</strong> assassinatos, pratica<strong>do</strong>s por escravos<br />

contra os senhores e seus emprega<strong>do</strong>s, bem como insurreições<br />

ou ameaças <strong>de</strong> insurreições <strong>de</strong> escravos.<br />

Após o levante <strong>do</strong>s malês, em janeiro <strong>de</strong> 1835, toda a África<br />

passou a ser vista, com mais ênfase, pela classe senhorial, como pátria<br />

<strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> sua origem ou nação. 1 A<br />

Muitos afri-<br />

* Este artigo é uma versão bastante ampliada da comunicação apresentada <strong>no</strong> Colóquio Internacional<br />

A Feitiçaria <strong>no</strong> Atlântico Negro, ocorri<strong>do</strong> entre 19 e 20 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2006, <strong>no</strong> Centro<br />

<strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Afro-Orientais, Salva<strong>do</strong>r, Bahia, na mesa intitulada “Feitiçaria <strong>no</strong> universo lusobrasileiro<br />

colonial e <strong>no</strong> Brasil Império”. Por seus comentários, agra<strong>de</strong>ço a Maria Rosário<br />

Carvalho (UFBA), <strong>de</strong>bate<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s trabalhos relativos à mesa, bem como a Gabriela <strong>do</strong>s Reis<br />

Sampaio (UFBA), que também <strong>de</strong>la fazia parte. Agra<strong>de</strong>cemos também aos pareceristas da<br />

Afro-Ásia, pelos ricos e generosos comentários, e a Yvonne Maggie, Peter Fry e João José<br />

Reis, pela troca <strong>de</strong> idéias que abriu <strong>no</strong>vas chaves <strong>de</strong> análise para outros artigos.<br />

** Doutor em Antropologia – PPGSA- IFCS/UFRJ)<br />

1 Ver Manuela Carneiro da Cunha, Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à<br />

África, São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 77. Por outros caminhos meto<strong>do</strong>lógicos, consultan<strong>do</strong><br />

fontes policiais e <strong>do</strong> Ministério da Justiça, Flávio <strong>do</strong>s Santos Gomes chegou às mesmas conclusões<br />

<strong>de</strong> Cunha, para a província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, em “História, protesto e cultura política<br />

<strong>no</strong> Brasil escravista”, in Jorge Prata <strong>de</strong> Sousa (org.), Escravidão: ofícios e liberda<strong>de</strong> (Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, Arquivo Público <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1998), pp. 65-97. Sobre a insurreição<br />

malê, ver João José Reis, Rebelião escrava <strong>no</strong> Brasil: a história <strong>do</strong> levante <strong>do</strong>s malês em<br />

1835 – edição revista e ampliada, São Paulo, Companhia das Letras, 2003.<br />

Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244 211


ca<strong>no</strong>s e seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes passaram, assim, a ser encara<strong>do</strong>s como perigosos,<br />

potencialmente conspira<strong>do</strong>res, fossem livres, escravos ou libertos.<br />

O gover<strong>no</strong> imperial tentou <strong>de</strong>portar alguns <strong>de</strong>les para a África, sem<br />

sequer pagar sua passagem, e passou a verificar os passaportes <strong>do</strong>s africa<strong>no</strong>s<br />

vin<strong>do</strong>s <strong>no</strong>s navios aporta<strong>do</strong>s <strong>no</strong> Império, para evitar o <strong>de</strong>sembarque<br />

<strong>de</strong> qualquer liberto que não fosse nasci<strong>do</strong> <strong>no</strong> Brasil. 2 O me<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

que outras partes <strong>do</strong> Império, com gran<strong>de</strong> concentração <strong>de</strong> escravos,<br />

repetisse o levante <strong>do</strong>s malês levou ao aumento <strong>do</strong> controle por parte<br />

das autorida<strong>de</strong>s policiais <strong>de</strong> ajuntamentos <strong>de</strong> escravos. 3 Encontramos<br />

casos <strong>de</strong> acusação <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong> em fontes que narram fatos relaciona<strong>do</strong>s<br />

à insurreições <strong>de</strong> escravos.<br />

O Código Criminal <strong>do</strong> Império <strong>do</strong> Brasil, <strong>de</strong> 1830, não previa<br />

como crime a prática <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong>, ao contrário das Or<strong>de</strong>nações Filipinas,<br />

4 o conjunto <strong>de</strong> leis das colônias portuguesas, e <strong>do</strong> Código Penal<br />

republica<strong>no</strong>, <strong>de</strong> 1890. No Título 3 <strong>do</strong> Livro 5 daquelas Or<strong>de</strong>nações,<br />

intitula<strong>do</strong> “Dos Feiticeiros”, po<strong>de</strong>mos ler sobre uma série <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s<br />

consi<strong>de</strong>radas como sen<strong>do</strong> “<strong>feitiçaria</strong>”, mas não encontramos <strong>de</strong>finição<br />

alguma <strong>de</strong>sta palavra. O acusa<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong> <strong>de</strong>veria pagar três mil<br />

réis ao acusa<strong>do</strong>r, ser açoita<strong>do</strong> <strong>no</strong> braço, em plena vila on<strong>de</strong> residisse, e<br />

<strong>de</strong>greda<strong>do</strong> para o Brasil. 5 A acusação <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong> também aparece em<br />

outra situação nas Or<strong>de</strong>nações. No Título 88 <strong>do</strong> Livro 4, “Das causas<br />

porque o pai ou mãe po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>serdar seus filhos”, o Item 7 fala em<br />

2<br />

Cunha, Negros, estrangeiros, pp. 80-1.<br />

3<br />

Cf. Carlos Eugênio Líba<strong>no</strong> Soares, A capoeira escrava e outras tradições rebel<strong>de</strong>s <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro (1808-1850), 2 ª edição revista e ampliada, Campinas, Editora da UNICAMP, CECULT,<br />

2002, pp. 99-114.<br />

4<br />

Dava-se este <strong>no</strong>me às antigas leis portuguesas compiladas em códigos. As primeiras, or<strong>de</strong>nadas<br />

por D. João I, foram concluídas em 1446. Em 1514, publicou-se <strong>no</strong>va coleção das leis <strong>do</strong> rei<strong>no</strong>,<br />

com as alterações introduzidas pelo tempo. Por terem si<strong>do</strong> impressas por or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> D. Manuel,<br />

receberam o <strong>no</strong>me <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nações Manuelinas. Em 1603, publicaram-se as Or<strong>de</strong>nações Filipinas,<br />

mandadas compilar por Filipe I, que, em Portugal, vigoraram até 1868. No Brasil, as Or<strong>de</strong>nações<br />

Filipinas, por força da lei <strong>de</strong> 20 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1823, vigoraram até 31 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong><br />

1916, como subsídio <strong>do</strong> direito pátrio, e só foram, <strong>de</strong>finitivamente, revogadas pelo Código Civil<br />

<strong>de</strong> 1917. Em relação às discussões jurídicas sobre a regulação da magia, ver também Roberto<br />

Macha<strong>do</strong> et al., Danação da <strong>no</strong>rma: a medicina social e a construção da psiquiatria <strong>no</strong> Brasil,<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, Graal, 1978, e Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Sortilégios <strong>de</strong> saberes: curan<strong>de</strong>iros<br />

e juízes <strong>no</strong>s tribunais brasileiros (1900-1990), São Paulo, IBCCRIM, 2004.<br />

5<br />

Or<strong>de</strong>nações Filipinas, disponível em ,<br />

acessa<strong>do</strong> em 18/08/2007.<br />

212 Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244


<strong>de</strong>serção <strong>no</strong> caso <strong>de</strong> alguém “usar <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong> ou conversar com feiticeiros”.<br />

Em seguida, uma <strong>no</strong>ta intitulada “Feiticeiros” faz uma longa<br />

análise das hipóteses <strong>de</strong> surgimento da expressão e conclui que não é<br />

possível <strong>de</strong>finir <strong>feitiçaria</strong> e nem feiticeiro(a). 6<br />

No Código Penal republica<strong>no</strong> também encontramos a regulação<br />

da crença, mas sem explicitar <strong>feitiçaria</strong>, em três artigos. O artigo 156<br />

proibia: “Exercer a medicina em qualquer <strong>de</strong> seus ramos e a arte <strong>de</strong>ntária<br />

ou farmácia; praticar a homeopatia, a <strong>do</strong>simetria, o hip<strong>no</strong>tismo ou o magnetismo<br />

animal, sem estar habilita<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> as leis e regulamentos”. O<br />

artigo 157 proibia “Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar<br />

talismãs e cartomancia para <strong>de</strong>spertar sentimentos <strong>de</strong> ódio e amor, inculcar<br />

cura <strong>de</strong> moléstias curáveis e incuráveis, enfim, para fascinar a credulida<strong>de</strong><br />

pública”, e o artigo 158 proibia “Ministrar, ou simplesmente prescrever,<br />

como meio curativo para uso inter<strong>no</strong> ou exter<strong>no</strong> e sob qualquer<br />

forma preparada, substância <strong>de</strong> qualquer <strong>do</strong>s rei<strong>no</strong>s da natureza, fazen<strong>do</strong><br />

ou exercen<strong>do</strong>, assim, o ofício <strong>de</strong><strong>no</strong>mina<strong>do</strong> <strong>de</strong> curan<strong>de</strong>iro”. 7<br />

As palavras “<strong>feitiçaria</strong>” e “feiticeiro” sequer aparecem <strong>no</strong> Código<br />

Criminal <strong>do</strong> Império. 8 Como <strong>no</strong>s arquivos brasileiros os <strong>do</strong>cumentos relativos<br />

aos crimes cometi<strong>do</strong>s <strong>no</strong> Império, grosso mo<strong>do</strong>, estão organiza<strong>do</strong>s<br />

pelos artigos daquele Código, não po<strong>de</strong>mos encontrar as acusações<br />

<strong>de</strong> crença e prática <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong> como motivos legais para a abertura <strong>de</strong><br />

um processo criminal. Entretanto, encontramos esta acusação diluída em<br />

outras fontes, como um processo criminal <strong>de</strong> homicídio, outro <strong>de</strong><br />

estelionato, <strong>no</strong>tícias <strong>de</strong> jornais e correspondências privadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>lega<strong>do</strong>s<br />

<strong>de</strong> polícia e ministros da justiça. Além <strong>de</strong>stas fontes, não é <strong>no</strong>vida<strong>de</strong> a<br />

6<br />

Or<strong>de</strong>nações Filipinas, disponível em ,<br />

acessa<strong>do</strong> em 14/08/2007.<br />

7 Yvonne Maggie, Me<strong>do</strong> <strong>do</strong> feitiço: relações entre magia e po<strong>de</strong>r <strong>no</strong> Brasil, Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

Arquivo Nacional,1992, pp. 22-3, <strong>no</strong>ta 3.<br />

8<br />

Utilizamos a seguinte edição: Código Criminal <strong>do</strong> Império <strong>do</strong> Brazil an<strong>no</strong>ta<strong>do</strong> com os atos<br />

<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res Legislativo, Executivo e Judiciário, que têm altera<strong>do</strong> e interpreta<strong>do</strong> suas disposições<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que foi publica<strong>do</strong>, e com o cálculo das penas em todas as suas aplicações por<br />

Araújo Figueiras Júnior (Bacharel em Direito), 2ª Edição, cuida<strong>do</strong>samente revista e aumentada<br />

com os atos <strong>do</strong>s Po<strong>de</strong>res supra-referi<strong>do</strong>s, expedi<strong>do</strong>s <strong>de</strong>pois da 1ª Edição, [1876], Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, Eduar<strong>do</strong> e Henrique Laemmert. Agra<strong>de</strong>cemos ao historia<strong>do</strong>r Rafael Sancho Silva<br />

pela indicação <strong>de</strong>sta edição <strong>do</strong> Código Criminal na Biblioteca da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito da<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia (UFBA).<br />

Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244 213


existência <strong>de</strong> romances que narram histórias nas quais personagens chama<strong>do</strong>s<br />

<strong>de</strong> feiticeiros aparecem como agentes centrais da trama. 9<br />

Estas informações <strong>de</strong>monstram que a crença <strong>no</strong> po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> feitiço<br />

e <strong>do</strong>s feiticeiros existia <strong>no</strong> Império <strong>do</strong> Brasil, e que não havia lei alguma<br />

que punisse os acusa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong>, ao contrário <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> colonial<br />

e <strong>do</strong> republica<strong>no</strong>. As pessoas eram punidas não por serem feiticeiras<br />

e nem por praticarem a <strong>feitiçaria</strong>, mas sim por estelionato, homicídio,<br />

e <strong>de</strong>mais crimes prescritos pelo Código Criminal.<br />

Nossa argumentação seguirá as indicações <strong>de</strong> Mauss & Hubert<br />

acerca da proeminência <strong>do</strong> social nas explicações da crença e das práticas<br />

mágicas. 10 Também seremos <strong>no</strong>rtea<strong>do</strong>s pelas questões levantadas<br />

por Mali<strong>no</strong>wski sobre a centralida<strong>de</strong> da explicação mágica na vida social,<br />

garantin<strong>do</strong> um “algo a mais” para o sucesso <strong>do</strong>s empreendimentos<br />

das pessoas. 11 Nosso material <strong>de</strong> pesquisa traz informações sobre infortúnios,<br />

acusações <strong>de</strong> “<strong>feitiçaria</strong>”, isto é, a crença <strong>de</strong> que certas pessoas<br />

têm o po<strong>de</strong>r extraordinário <strong>de</strong> fazer o mal e reverter situações entendidas<br />

como sen<strong>do</strong> ruins, segun<strong>do</strong> os fins persegui<strong>do</strong>s. Assim, levaremos<br />

em conta a abordagem <strong>de</strong> Evans-Pritchard sobre a socieda<strong>de</strong> Zan<strong>de</strong>, na<br />

qual coloca em relação questões morais levantadas pelos Azan<strong>de</strong> para<br />

explicar os infortúnios causa<strong>do</strong>s por pessoas acusadas <strong>de</strong> os terem pro-<br />

9 A presença <strong>de</strong> feiticeiros em alguns romances foi analisada, por exemplo, por Gabriela <strong>do</strong>s<br />

Reis Sampaio, “Majesta<strong>de</strong>s <strong>do</strong> oculto: imagens <strong>de</strong> lí<strong>de</strong>res religiosos negros na literatura <strong>do</strong>s<br />

oitocentos <strong>no</strong> Brasil,” in Ligia Bellini, Ewergton Sales Souza e Gabriela <strong>do</strong>s Reis Sampaio<br />

(orgs.), Formas <strong>de</strong> crer: ensaios <strong>de</strong> história religiosa <strong>no</strong> mun<strong>do</strong> afro-brasileiro, séculos XIV-<br />

XXI (Salva<strong>do</strong>r, Corrupio, EDUFBA, 2006), pp. 249-71. Estamos com um trabalho <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssa<br />

autoria <strong>no</strong> prelo sobre esse tema, aprofundan<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s capítulos <strong>de</strong> “Magia e Feitiçaria <strong>no</strong><br />

Império <strong>do</strong> Brasil: o po<strong>de</strong>r da crença <strong>no</strong> Su<strong>de</strong>ste e em Salva<strong>do</strong>r”, (Tese <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong>, PPGSA-<br />

IFCS/UFRJ, Concentração em Antropologia, 2008).<br />

10 Marcel Mauss & Henri Hubert, “Esboço <strong>de</strong> uma teoria geral da magia”, in Marcel Mauss,<br />

Sociologia e Antropologia, São Paulo, Cosac & Naify, 2003, pp. 47-181.<br />

11 Bronislaw Mali<strong>no</strong>wski, “A magia e o kula”, in Argonautas <strong>do</strong> Pacífico Oci<strong>de</strong>ntal: um relato<br />

<strong>do</strong> empreendimento e da aventura <strong>do</strong>s nativos <strong>no</strong>s arquipélagos da Nova Guiné melanésia<br />

(São Paulo, Abril Cultural, 1984), pp. 292-312, Coleção Os Pensa<strong>do</strong>res, v. XLIII. An<br />

eth<strong>no</strong>graphic theory of the magical word”, Coral Gar<strong>de</strong>ns and their magic, v. II, Lon<strong>do</strong>n,<br />

George Allen and Unwin Ltd., 1935, pp. 213-48. Norbert Elias também argumenta, assim<br />

como Mali<strong>no</strong>wski, que a importância <strong>de</strong> controlar a natureza leva pessoas a lançarem mão <strong>de</strong><br />

recursos mágicos para dar garantias explicativas emocionais, e não racionais, aos acontecimentos<br />

imprevistos. Para mais este autor, o recurso individual à magia necessita da crença<br />

coletiva nela. Ver Norbert Elias, “Part II: The fishermen in the Maelstrom”, in Involvement<br />

and <strong>de</strong>tachment, Oxford & New York, Basil Blackwell, 1987, pp. 43-118.<br />

214 Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244


voca<strong>do</strong> através da <strong>feitiçaria</strong> (sorcery) ou da bruxaria (witchcraft). 12 Levaremos<br />

em conta, também, as observações <strong>de</strong> Favret-Saada, <strong>de</strong> certo<br />

mo<strong>do</strong> já apontadas por Mauss & Hubert, sobre a importância da opinião<br />

pública para a sustentação da crença <strong>no</strong>s po<strong>de</strong>res daquele que é<br />

acusa<strong>do</strong> <strong>de</strong> ser feiticeiro. 13<br />

Segun<strong>do</strong> estes autores, as crenças são claras, mas as condições<br />

nas quais ocorrem os contextos variam muito. Nas socieda<strong>de</strong>s on<strong>de</strong> há<br />

acusações <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong>, gran<strong>de</strong> e influente número <strong>de</strong> pessoas acreditam<br />

que to<strong>do</strong>s têm po<strong>de</strong>res para fazer o mal aos outros, mas não acusam<br />

a si mesmos. A crença não <strong>de</strong>termina a interpretação <strong>do</strong>s acontecimentos.<br />

Há eventos que são entendi<strong>do</strong>s como produto da ação <strong>do</strong> feiticeiro,<br />

infortúnios específicos socialmente legitima<strong>do</strong>s por essa crença. De<br />

acor<strong>do</strong> com o contexto, uma socieda<strong>de</strong> po<strong>de</strong> legitimar a crença na <strong>feitiçaria</strong><br />

através da repetição <strong>de</strong> um infortúnio, envolven<strong>do</strong> dilemas entre<br />

vizinhos e familiares – como po<strong>de</strong>mos ver <strong>no</strong>s materiais <strong>de</strong> pesquisa <strong>de</strong><br />

Evans-Pritchard e Favret-Saada. De toda forma, são levadas em conta<br />

situações locais para a compreensão <strong>do</strong>s males que atingem as pessoas,<br />

pois o reconhecimento <strong>de</strong> que a <strong>feitiçaria</strong> realmente ocorreu se dá através<br />

<strong>do</strong> consenso da opinião pública. Esta sustenta a idéia <strong>de</strong> que não é<br />

feiticeiro quem quer. É feiticeiro quem é reconheci<strong>do</strong> como feiticeiro –<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da própria pessoa se reconhecer como tal, posto<br />

que se trata, como dissemos, <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r socialmente constituí<strong>do</strong>.<br />

12 E. E. Evans-Pritchard, Witchcraft, oracles and magic among the Azan<strong>de</strong>, Oxford, Claren<strong>do</strong>n<br />

Press, 1935. Para comentários sobre alguns <strong>do</strong>s temas trata<strong>do</strong>s por Evans-Pritchard, que interessam<br />

diretamente à <strong>no</strong>ssa argumentação, ver Malcolm D. McLeod, “Oracles and accusations<br />

among the Azan<strong>de</strong>”, in André Singer & Brian V. Street (orgs.), Zan<strong>de</strong> themes: essays presented<br />

to Sir Edward Evans-Pritchard (Oxford, Basil Blackwell, 1972), pp. 158-78.<br />

13 Dizemos “<strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong>” pelo fato <strong>de</strong> Jeanne Favret-Saada, Les mots, la mort, les sorts, Paris,<br />

Gallimard, 1977, não se remeter, em momento algum, ao trabalho <strong>de</strong> Mauss & Henri Hubert,<br />

“Esboço <strong>de</strong> uma teoria geral da magia”, principalmente às consi<strong>de</strong>rações da p. 77. Mas não<br />

conseguimos, ao ler e reler seu livro, <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> relacionar os apontamentos pioneiros <strong>de</strong>sses<br />

autores em relação às condições sociais da crença na magia, décadas antes da publicação <strong>do</strong><br />

livro daquela autora. Algumas importantes reflexões acerca <strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong> Favret-Saada foram<br />

feitas por Marcio Goldman, “Jeanne Favret-Saada, os afetos, a et<strong>no</strong>grafia”, in Ca<strong>de</strong>r<strong>no</strong>s <strong>de</strong><br />

Campo, (2005), n o 13, pp. 149-53, 2005.<br />

Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244 215


Pai Gavião e a ameaça <strong>de</strong> insurreição em 1854<br />

São Paulo, 24 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1854. Na coluna “Notícias e Fatos Diversos”<br />

<strong>do</strong> jornal Correio Paulista<strong>no</strong>, impresso na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, mais<br />

uma <strong>no</strong>tícia sobre um pla<strong>no</strong> <strong>de</strong> insurreição escrava. 14 Segun<strong>do</strong> a informação,<br />

caso não tivesse si<strong>do</strong> <strong>de</strong>scoberto pelos senhores das gran<strong>de</strong>s<br />

escravarias e pelas autorida<strong>de</strong>s policiais da região, essa insurreição teria<br />

abarca<strong>do</strong> escravos <strong>de</strong> diversas fazendas <strong>de</strong> São Roque – possível<br />

centro nervoso da tramóia – Una, Campo Largo e Itu. Processos haviam<br />

si<strong>do</strong> instaura<strong>do</strong>s e, da capital da província, partiram <strong>de</strong>z praças comanda<strong>do</strong>s<br />

por um oficial, bem como um correspon<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> jornal Correio<br />

Paulista<strong>no</strong>. Dois dias <strong>de</strong>pois, o correspon<strong>de</strong>nte publicou as primeiras<br />

informações. Da página 4 <strong>do</strong> número anterior, a narrativa passou,<br />

da<strong>do</strong> significativo, às páginas 2 e 3, na coluna “Interior – Correspondências<br />

<strong>do</strong> Correio”. O correspon<strong>de</strong>nte afirmava que tantos escravos<br />

se encontravam presos nas celas da <strong>de</strong>legacia <strong>de</strong> São Roque “que o<br />

carcereiro quase não conseguia dar conta <strong>de</strong> seu, até então, pacato serviço”.<br />

15 Além <strong>do</strong>s <strong>de</strong>ti<strong>do</strong>s, outros escravos e livres da região estavam<br />

participan<strong>do</strong> <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s reuniões misteriosas, em <strong>no</strong>ites e lugares<br />

in<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s.<br />

Na <strong>no</strong>ite <strong>do</strong> dia 18, três homens procuravam <strong>do</strong>is escravos que<br />

haviam fugi<strong>do</strong> <strong>do</strong> engenho <strong>de</strong> sua senhora, <strong>do</strong>na Ana Theresa, quan<strong>do</strong><br />

foram surpreendi<strong>do</strong>s por uma “sentinela, guardan<strong>do</strong> a porta <strong>do</strong> Templo<br />

on<strong>de</strong> a Gran<strong>de</strong> Or<strong>de</strong>m celebrava uma <strong>de</strong> suas sessões”. 16 Alertan<strong>do</strong> outros<br />

escravos, botaram os homens para correr. Ao <strong>de</strong>nunciarem as reuniões<br />

para o <strong>de</strong>lega<strong>do</strong>, os três homens forneceram as informações ne-<br />

14<br />

Biblioteca Nacional, <strong>do</strong>ravante BN, Seção <strong>de</strong> Periódicos. Não conseguimos obter maiores informações<br />

acerca <strong>de</strong>sse jornal – quem eram as pessoas que o sustentavam, quais as posições políticas<br />

centrais <strong>do</strong>s editores, os fins que buscavam com aquilo que publicavam, por exemplo. Analisan<strong>do</strong><br />

parte <strong>de</strong>ssas <strong>no</strong>tícias <strong>do</strong> Correio Paulista<strong>no</strong>, através <strong>de</strong> outras questões, Robert W. Slenes<br />

também não apresenta maiores da<strong>do</strong>s sobre a natureza política <strong>de</strong>sse jornal. Ver Robert W. Slenes,<br />

“A árvore <strong>de</strong> Nsanda transplantada: cultos kongo <strong>de</strong> aflição e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> escrava <strong>no</strong> Su<strong>de</strong>ste<br />

brasileiro (século XIX)”, in Douglas Cole Libby & Júnia Furta<strong>do</strong> (orgs.), Trabalho livre, trabalho<br />

escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX (São Paulo, Annablume, 2006), pp. 273-314.<br />

Agra<strong>de</strong>cemos a Flávio <strong>do</strong>s Santos Gomes pela indicação inicial <strong>de</strong>sta fonte.<br />

15 Cf. Correio Paulista<strong>no</strong>, BN, Seção <strong>de</strong> Periódicos.<br />

16<br />

Colocamos entre aspas to<strong>do</strong>s os termos que aparecem na <strong>de</strong>scrição <strong>do</strong> jornalista <strong>do</strong> Correio<br />

Paulista<strong>no</strong>.<br />

216 Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244


cessárias para que fossem efetuadas as prisões <strong>de</strong> alguns <strong>do</strong>s escravos<br />

supostamente envolvi<strong>do</strong>s. Um <strong>de</strong>stes presos revelou o lugar que, até<br />

aquele momento se achava oculto. Revelou também a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

“grão mestre da Associação: o preto forro <strong>de</strong> <strong>no</strong>me José, mora<strong>do</strong>r em<br />

Sorocaba. [Desta forma,] Dirigiu-se para ali uma escolta, que conseguiu<br />

capturá-lo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> porfiada e perigosa luta”. 17<br />

O correspon<strong>de</strong>nte continua seu relato, afirman<strong>do</strong> que havia si<strong>do</strong><br />

apreendida uma curiosa coleção <strong>de</strong> objetos pertencentes à<br />

‘Gran<strong>de</strong> Or<strong>de</strong>m’, [como] caramujos, guiso <strong>de</strong> cascavel, gran<strong>de</strong> e varia<strong>do</strong><br />

sortimento <strong>de</strong> raízes, figuras <strong>de</strong> pão e <strong>de</strong> cera da terra, pedras <strong>de</strong><br />

cevar, cabeças e olhos <strong>de</strong> cobra, pés e cabeças <strong>de</strong> macaco, rabo <strong>de</strong><br />

serelepe, pontos <strong>de</strong> chifre betuma<strong>do</strong> <strong>de</strong> cera coberta com um fragmento<br />

<strong>de</strong> espelho, patuás conten<strong>do</strong> raspas <strong>de</strong> raízes, cabelos e unhas <strong>de</strong> gente e<br />

outras muitas coisas. [To<strong>do</strong>s estes] Bizarros objetos exalavam um cheiro<br />

nauseabun<strong>do</strong> e ativíssimo <strong>de</strong> aguar<strong>de</strong>nte. 18<br />

In<strong>do</strong> ao encontro <strong>de</strong> Pai Gavião<br />

O correspon<strong>de</strong>nte resolveu investigar as tais reuniões, <strong>de</strong>scobrin<strong>do</strong> que<br />

existiam três grupos na região, aos quais chamou <strong>de</strong> “lojas”, que formavam<br />

a “Or<strong>de</strong>m” inteira. Seus <strong>no</strong>mes eram:<br />

17 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

18 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

Filhos das Trevas, Maçonaria Negra e Campo Encanta<strong>do</strong>. [O] Grãomestre<br />

da Or<strong>de</strong>m [chamava-se] José Cabinda, figura célebre naquela<br />

região, a quem os irmãos não conheciam se não pelo <strong>no</strong>me <strong>de</strong> Pai Gavião,<br />

ou Coroa<strong>do</strong>.<br />

[Nas] Sessões [e na] admissão <strong>de</strong> <strong>no</strong>vos a<strong>de</strong>ptos, os irmãos formavam<br />

um gran<strong>de</strong> círculo, [<strong>no</strong> qual alguns <strong>do</strong>s] assistentes tocavam um tosco<br />

instrumento feito <strong>de</strong> cabaças com cabo <strong>de</strong> pão e chocalhos. [Ao som <strong>do</strong><br />

instrumento], O grão-mestre, dançan<strong>do</strong> e cantan<strong>do</strong> numa linguagem<br />

ininteligível, [se dirigia para o centro e ali colocava] uma luz, uma garrafa<br />

<strong>de</strong> aguar<strong>de</strong>nte, uma tigela com diversas raízes, uma figura <strong>de</strong> pau à<br />

meio-corpo e sem braços. [Em seguida], Informava que a tal figura ti-<br />

Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244 217


19 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

nha o <strong>no</strong>me <strong>de</strong> Careta, [assim] como outra, feita <strong>de</strong> cera. O umbigo era<br />

forma<strong>do</strong> por um pedaço <strong>de</strong> vidro. [Colocaram ali também uma] raiz<br />

gran<strong>de</strong>, a qual lhe davam o <strong>no</strong>me <strong>de</strong> Guinéu Encanta<strong>do</strong> – um cor<strong>no</strong> <strong>de</strong><br />

boi – que tinha o <strong>no</strong>me <strong>de</strong> Vungo, um patuá envolto em casca <strong>de</strong> lagarto,<br />

<strong>do</strong>is Santos Antonios <strong>de</strong> nó-<strong>de</strong>-pinho, sen<strong>do</strong> um sem cabeça, e, finalmente,<br />

uma panelinha, betumada <strong>de</strong> cera, coberta por um vidro que<br />

é conheci<strong>do</strong> pelo <strong>no</strong>me <strong>de</strong> Galo. 19<br />

Nesse momento, o correspon<strong>de</strong>nte escreve que<br />

(...) entrou em cena, na gran<strong>de</strong> reunião, o Pai Gavião, entornan<strong>do</strong> a<br />

garrafa sobre a tigela e or<strong>de</strong>nan<strong>do</strong> que um <strong>no</strong>vo irmão se aproximasse.<br />

[O] Novo irmão ajoelhou-se ante o grão-mestre e <strong>de</strong>spiu-se <strong>de</strong> sua camisa.<br />

Pai Gavião, o gran<strong>de</strong> lí<strong>de</strong>r, apontou uma faca sobre o peito <strong>do</strong><br />

<strong>no</strong>viço [e o fez prestar um] juramento solene <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>. Segre<strong>do</strong><br />

inviolável, sob pena <strong>de</strong> morte, mesmo que fosse estrangula<strong>do</strong> ou queima<strong>do</strong>.<br />

[Em seguida,] Abriu-lhe uma cruz, com a ponta da faca, sobre o<br />

peito direito. Correram algumas gotas <strong>de</strong> sangue da epi<strong>de</strong>rme rasgada.<br />

Passou-se, [então,] alternadamente, um patuá e uma raiz-<strong>de</strong>-guiné encontrada<br />

sobre a cissura da cruz [e <strong>de</strong>pois] esfregaram-se uns pós brancos<br />

na ferida <strong>do</strong> inicia<strong>do</strong>. [Por fim, o mesmo] bebeu a pinga sagrada,<br />

[que estava numa] tigela que corria por to<strong>do</strong>s os irmãos.<br />

[Numa] Vasilha <strong>de</strong> barro com brasas, Pai Gavião <strong>de</strong>itou um pouco <strong>de</strong><br />

incenso, e o irmão inicia<strong>do</strong> aspirou o perfume que dali exalou. [Depois<br />

disso, o] Grão-mestre Pai Gavião [acen<strong>de</strong>u seu cachimbo naquele] fogo<br />

sagra<strong>do</strong>.<br />

[Cerimônia encerrada, o] inicia<strong>do</strong> [foi leva<strong>do</strong>, já como] irmão, ao centro<br />

<strong>do</strong> gran<strong>de</strong> círculo, on<strong>de</strong> sentou. Pai Gavião submergiu a cabeça das figuras<br />

na tigela [e ouviu-se <strong>no</strong>vamente] o som monstruoso [<strong>do</strong> já referi<strong>do</strong><br />

instrumento. Or<strong>de</strong><strong>no</strong>u que] se fizesse silêncio <strong>no</strong> Campo Encanta<strong>do</strong>. [Foi]<br />

Prontamente obe<strong>de</strong>ci<strong>do</strong>. Conversou com as figuras, aproximan<strong>do</strong>-as <strong>do</strong><br />

ouvi<strong>do</strong> para escutar suas respostas. [Pai Gavião começava, então, a]<br />

tresvariar, dizen<strong>do</strong> com uma voz terrível – Não ouvis? Não ouvis uma<br />

voz que me chama? [O correspon<strong>de</strong>nte afirma que] não queria ir, mas era<br />

obriga<strong>do</strong> a obe<strong>de</strong>cer, [porque] essa voz era mais forte e mais po<strong>de</strong>rosa <strong>do</strong><br />

que a vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> Deus <strong>no</strong> qual cria! Pai Gavião, [ou] Pai Coroa<strong>do</strong>, correu<br />

<strong>de</strong>svaira<strong>do</strong> para o mato, [voltan<strong>do</strong> pouco tempo <strong>de</strong>pois], alisan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong><br />

218 Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244


oldão <strong>no</strong> meio <strong>do</strong> círculo, suan<strong>do</strong> e fazen<strong>do</strong> horríveis contorções. [De<br />

repente, parou tais movimentos, levantan<strong>do</strong>-se com] altitu<strong>de</strong> majestosa.<br />

Seus olhos percorreram <strong>de</strong>svaira<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>s Filhos das Trevas.<br />

Consultan<strong>do</strong> o Galo, e, len<strong>do</strong> o futuro pelo vidro <strong>do</strong> Vungo, prometeu<br />

aos irmãos que, num futuro não tão remoto: gozarão <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> pela<br />

morte <strong>de</strong> seus senhores; possuirão gran<strong>de</strong>s riquezas; seus senhores não<br />

terão ânimo <strong>de</strong> castigá-los; nem ferro, nem balas colarão em seus corpos;<br />

gozarão das moças mais bonitas. 20<br />

O interrogatório <strong>de</strong> Pai Gavião<br />

No dia 24, o <strong>de</strong>lega<strong>do</strong> <strong>de</strong> polícia <strong>de</strong> Itu, capitão Moraes, interrogou<br />

pessoalmente o escravo José Cabinda, que recebia o espírito chama<strong>do</strong><br />

Pai Gavião. Permiti<strong>do</strong> o ingresso na sala, <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> interrogatório, várias<br />

pessoas logo entraram, inclusive o correspon<strong>de</strong>nte.<br />

Num certo momento da “sessão” jurídica, um curioso, com a<br />

permissão <strong>do</strong> <strong>de</strong>lega<strong>do</strong>, promoveu “uma experiência i<strong>no</strong>fensiva”. Dirigin<strong>do</strong>-se<br />

ao “lí<strong>de</strong>r <strong>do</strong>s escravos Filhos das Trevas”, que “recebia” naquele<br />

momento a entida<strong>de</strong> espiritual chamada “Pai Gavião ou Coroa<strong>do</strong>”,<br />

lhe indagou:<br />

– Sabeis adivinhar?<br />

– Sim, senhor – respon<strong>de</strong>u Pai Gavião.<br />

– E se eu escon<strong>de</strong>r essa caixa <strong>de</strong> tabaco, po<strong>de</strong>rá adivinhar o lugar em<br />

que ela ficará?<br />

– Sim, senhor. 21<br />

O curioso retirou-se da sala, <strong>de</strong>u a caixa a uma pessoa que se<br />

achava <strong>do</strong> la<strong>do</strong> esquer<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma janela, <strong>no</strong> patamar <strong>de</strong> uma escada.<br />

Voltou pouco <strong>de</strong>pois, dizen<strong>do</strong> ao Pai Gavião que fizesse a tal adivinhação.<br />

“Pai Gavião” [afirmou que] “precisava <strong>do</strong> Vungo”, “a raiz gran<strong>de</strong>,<br />

chamada <strong>de</strong> Guinéu Encanta<strong>do</strong> – um cor<strong>no</strong> <strong>de</strong> boi” [como vimos anteriormente].<br />

Satisfizeram sua vonta<strong>de</strong>, trazen<strong>do</strong>-lhe um <strong>do</strong>s Vungos apreendi<strong>do</strong>s.<br />

Pai Gavião o recusou, dizen<strong>do</strong> que “não prestava”. Então, pediu<br />

outro. Novamente, foi satisfeito.<br />

20 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

21 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244 219


– Este sim – disse o adivinho, seguran<strong>do</strong> <strong>no</strong> Vungo com ambas as mãos,<br />

com a esquerda na extremida<strong>de</strong>, meio sobreposta sobre o <strong>de</strong><strong>do</strong> mínimo<br />

da direita; aproximou o Vungo <strong>de</strong> sua boca, com os olhos semi-fixa<strong>do</strong>s.<br />

Pelos movimentos <strong>do</strong>s lábios, via-se que ele travava com o Vungo um<br />

solilóquio misterioso.<br />

[Daí a pouco, algumas]<br />

(...) bagas <strong>de</strong> suor rebentaram da fronte <strong>do</strong> oráculo <strong>do</strong> Campo Encanta<strong>do</strong>.<br />

Suas feições se contraíram, seus olhos meio cerra<strong>do</strong>s se tornaram<br />

sombrios e ameaça<strong>do</strong>res; exalou um gemi<strong>do</strong> quase abafa<strong>do</strong>, e um movimento<br />

nervoso, involuntário ou admiravelmente fingi<strong>do</strong>; por três vezes<br />

contraiu e puxou violentamente as mãos e os braços para o la<strong>do</strong><br />

esquer<strong>do</strong>, e todas essas contrações eram acompanhadas <strong>de</strong> suor mais<br />

copioso e um tremor geral <strong>do</strong> corpo.<br />

[Com o ambiente estan<strong>do</strong>] em total silêncio, o adivinho disse:<br />

– Meu senhor, me per<strong>do</strong>e. A boceta está perto da escada, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> esquer<strong>do</strong><br />

da janela.<br />

[O homem, que dirigia a] experiência i<strong>no</strong>fensiva, [assim] lhe or<strong>de</strong><strong>no</strong>u:<br />

– Pois vá buscá-la!<br />

[O] Oráculo dirigiu-se ao patamar da escada, olhou atrás da falha da<br />

janela <strong>do</strong> la<strong>do</strong> direito, <strong>de</strong>u um suspiro e disse:<br />

– O Vungo me traiu. 22<br />

O correspon<strong>de</strong>nte escreve que “os brancos fizeram isso para enganar<br />

Pai Gavião”, pois a pessoa à qual fora confiada a guarda da caixa<br />

passou-a para outra, que estava na janela <strong>do</strong> la<strong>do</strong> direito. Dedurava,<br />

<strong>de</strong>sta forma, a<br />

22 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

23 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

(...) trapaça que lhe haviam arma<strong>do</strong>, para tentar <strong>de</strong>smascarar publicamente<br />

os seus po<strong>de</strong>res. Transtorna<strong>do</strong>, o oráculo consultou <strong>no</strong>vamente o Vungo.<br />

Cansa<strong>do</strong> <strong>de</strong> errar, <strong>de</strong>clarou que estava muito atribula<strong>do</strong> e não podia adivinhar,<br />

porque o Vungo estava profana<strong>do</strong> e provavelmente havia si<strong>do</strong> toca<strong>do</strong><br />

por alguém que houvesse ti<strong>do</strong> relações com mulheres, porque eles,<br />

oráculos, para fazerem adivinhações, não as tinham <strong>de</strong>s<strong>de</strong> véspera. 23<br />

220 Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244


E Pai Gavião ainda vagava pela região...<br />

Antes <strong>do</strong> acontecimento envolven<strong>do</strong> as “lojas da or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Pai Gavião”,<br />

membros da classe senhorial local não atribuíam a onda <strong>de</strong> perturbações<br />

sociais provocada pelos escravos à li<strong>de</strong>rança exercida pelas sugestões<br />

proferidas por ele nas “sessões”, até então secretas.<br />

Em 17 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1854, o Correio Paulista<strong>no</strong> transcreveu uma<br />

<strong>no</strong>tícia que saiu na página 3 <strong>do</strong> Correio da Barca. Em Valença, a redação<br />

<strong>de</strong>ste jornal havia recebi<strong>do</strong> um bilhete <strong>no</strong> qual estava escrito que,<br />

entre os dias 23 e 28 <strong>de</strong> junho, correram boatos <strong>de</strong> que aconteceria uma<br />

terrível insurreição escrava <strong>no</strong>s dias subseqüentes. Imediatamente, “os<br />

fazen<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> Valença se armaram o quanto pu<strong>de</strong>ram, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong><br />

suas fazendas, fugin<strong>do</strong> para a cida<strong>de</strong>”.<br />

Em três <strong>de</strong> agosto, o mesmo jornal, na “Coluna Interior” – Correspondência<br />

<strong>do</strong> Correio, em suas páginas 2 e 3, também transcritas <strong>no</strong><br />

Correio Paulista<strong>no</strong>, trouxe <strong>no</strong>tícias acerca <strong>do</strong> julgamento <strong>do</strong> “escravo,<br />

Filho das Trevas, Joaquim”, pertencente a Inácio Alves. O fato ocorreu<br />

em Taubaté, <strong>no</strong> dia 24, com o escravo “julga<strong>do</strong> por tentar matar sua<br />

senhora a foiçadas”, sen<strong>do</strong> “con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> à galés perpétuas”.<br />

No dia seguinte, um <strong>no</strong>vo escravo foi julga<strong>do</strong>. Tratava-se <strong>de</strong> Chico<br />

Garcia, pertencente a Ma<strong>no</strong>el Vaz <strong>de</strong> Tole<strong>do</strong>, con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> por ter si<strong>do</strong> o<br />

“cabeça <strong>de</strong> uma insurreição, abortada contra a vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong>s seus companheiros”.<br />

Seu senhor havia pedi<strong>do</strong> um <strong>no</strong>vo julgamento, mas teve que<br />

escutar a veemente recusa <strong>do</strong> promotor, que não tinha visto motivo algum<br />

para aceitar tal pedi<strong>do</strong>. No entanto, o promotor não contava com a<br />

forte influência <strong>do</strong> senhor <strong>do</strong> escravo sobre o juiz <strong>do</strong> caso, conseguin<strong>do</strong><br />

que este aceitasse um <strong>no</strong>vo julgamento para o réu. Mesmo confessan<strong>do</strong>,<br />

(...) sem a me<strong>no</strong>r cerimônia e frescura, que o pla<strong>no</strong> era matar to<strong>do</strong>s os<br />

brancos, e que para isso os escravos os quais li<strong>de</strong>rava possuíam armas<br />

<strong>de</strong> fogo, além das <strong>do</strong> trabalho nas fazendas, e mais to<strong>do</strong> o armamento<br />

que assaltariam das lojas, Chico Garcia foi absolvi<strong>do</strong> por <strong>de</strong>z votos. 24<br />

Em oito <strong>de</strong> agosto, na página 2 <strong>do</strong> Correio Paulista<strong>no</strong>, lemos mais<br />

<strong>no</strong>tícias acerca das lojas Filhos das Trevas e Campo Encanta<strong>do</strong>, sobre o<br />

24 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244 221


prosseguimento que o <strong>de</strong>lega<strong>do</strong> <strong>de</strong> polícia da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Roque, em 31<br />

<strong>de</strong> julho, dava às investigações das possíveis insurreições <strong>escravas</strong> comandadas<br />

por “Pai Gavião”. Havia prendi<strong>do</strong> vários escravos membros daquelas<br />

lojas. Além disso, <strong>de</strong> outros lugares das re<strong>do</strong>n<strong>de</strong>zas chegavam <strong>no</strong>tícias<br />

<strong>de</strong> ações <strong>do</strong>s “Filhos das Trevas”. Em São Roque, <strong>no</strong> dia 28 <strong>de</strong> julho, uma<br />

“reunião <strong>de</strong> escravos da loja” foi <strong>de</strong>bandada pelas autorida<strong>de</strong>s policiais,<br />

terminan<strong>do</strong> com um “escravo com o braço quebra<strong>do</strong>, e outros <strong>do</strong>is com a<br />

cabeça partida”. Um indivíduo chega<strong>do</strong> <strong>de</strong> Sorocaba dizia a várias pessoas<br />

da cida<strong>de</strong> que lá também fora <strong>de</strong>scoberta uma “patota <strong>do</strong>s Filhos das<br />

Trevas”, e que o sub<strong>de</strong>lega<strong>do</strong> <strong>de</strong> polícia havia or<strong>de</strong>na<strong>do</strong> a prisão <strong>do</strong>s seus<br />

membros. O mesmo <strong>de</strong>lega<strong>do</strong> foi apurar uma <strong>de</strong>núncia na Serra <strong>de</strong> São<br />

Francisco sobre a existência <strong>de</strong> uma “casa secreta, conten<strong>do</strong> uma provisão<br />

<strong>de</strong> espingardas, lanças, e outras armas i<strong>no</strong>fensivas”, pertencentes ao<br />

arsenal da insurreição tão prometida e propalada por Pai Gavião. Assim,<br />

toda a “população <strong>do</strong>s municípios <strong>de</strong> São Roque, <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z mil<br />

almas disseminadas em três freguesias, com cento e tantos juízes <strong>de</strong> fato,<br />

um batalhão da Guarda Nacional com cinco numerosas companhias e<br />

quase trezentos guardas <strong>de</strong> reserva”, estava em esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> alerta.<br />

As <strong>no</strong>tícias alarmantes continuaram <strong>no</strong> dia 18 <strong>de</strong> agosto, na coluna<br />

“Notícias e Fatos Diversos”, na página 4 <strong>do</strong> mesmo jornal. Em <strong>no</strong>tícia<br />

<strong>de</strong> título “Fogo <strong>de</strong> Escravos”, o autor dizia que estavam acontecen<strong>do</strong>,<br />

para “as bandas <strong>do</strong> Campo Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, <strong>no</strong>s dias santifica<strong>do</strong>s, gran<strong>de</strong>s<br />

reuniões <strong>de</strong> escravos, on<strong>de</strong> a primeira distração era o fogo”, ou seja,<br />

bebe<strong>de</strong>iras. Tal informação gerou gran<strong>de</strong> me<strong>do</strong> nas pessoas da região,<br />

pois “era sabi<strong>do</strong> que nas reuniões <strong>do</strong>s Filhos das Trevas e <strong>do</strong> Campo<br />

Encanta<strong>do</strong>, a ingestão <strong>de</strong> aguar<strong>de</strong>nte por parte <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os membros era<br />

o prenúncio <strong>de</strong> uma <strong>no</strong>va vinda <strong>de</strong> Pai Gavião”. Tais reuniões, apesar<br />

<strong>de</strong> conhecidas e comuns nas re<strong>do</strong>n<strong>de</strong>zas da cida<strong>de</strong>, haviam-se tornan<strong>do</strong><br />

mais freqüentes naqueles dias.<br />

Denúncias acerca <strong>de</strong> furtos <strong>do</strong>mésticos, que recentemente alguns<br />

escravos estavam cometen<strong>do</strong> para “po<strong>de</strong>r comprar parte <strong>do</strong>s materiais<br />

para as reuniões”, e pagar pelos conselhos <strong>de</strong> Pai Gavião – afinal <strong>de</strong><br />

contas, quem não lhe pagava, não os recebia – atormentavam autorida<strong>de</strong>s<br />

locais. Também ocorreu o “espancamento <strong>de</strong> um alemão, perto <strong>do</strong><br />

cemitério da cida<strong>de</strong>, <strong>do</strong> qual saiu com a cabeça quebrada”. O tal “ale-<br />

222 Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244


mão”, <strong>de</strong> quem não <strong>no</strong>s foi revela<strong>do</strong> o <strong>no</strong>me, “não sabia das reuniões<br />

<strong>do</strong>s Filhos das Trevas naquele cemitério e, i<strong>no</strong>centemente, passou por<br />

ali, sem po<strong>de</strong>r prever as conseqüências <strong>de</strong> sua atitu<strong>de</strong>”. O que o autor<br />

da <strong>no</strong>tícia estranhava era que, apesar da “vítima pedir que o acudissem,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> gravemente feri<strong>do</strong>, as pessoas que por ali passavam ig<strong>no</strong>ravam<br />

sua figura, viran<strong>do</strong>-lhe a cara”, atitu<strong>de</strong> também tomada por um<br />

oficial <strong>de</strong> plantão. O autor ainda <strong>de</strong>ixa <strong>no</strong> ar que haveria conivência<br />

entre mora<strong>do</strong>res da região e os escravos “Filhos das Trevas” para que<br />

fizessem em paz suas reuniões, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não fossem para “combinar a<br />

morte <strong>de</strong> brancos e insurreições”. Não saben<strong>do</strong> disso, ou seja, <strong>de</strong> que<br />

membros da “loja” estariam <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> cemitério em meio a uma das<br />

reuniões, talvez o alemão tenha si<strong>do</strong> puni<strong>do</strong> pelo que não sabia e acaba<strong>do</strong>,<br />

<strong>de</strong> maneira drástica, toman<strong>do</strong> parte <strong>no</strong> “acor<strong>do</strong>”.<br />

A visita <strong>do</strong> Dr. Roth: a promessa <strong>de</strong> Pai Gavião<br />

quase foi cumprida<br />

No número <strong>do</strong> dia 19, nas mesmas coluna e página, o jornal publicou<br />

<strong>no</strong>tícias acerca da visita <strong>de</strong> um tal “dr. Carlos Roth, que verificaria se<br />

naquela região haveria jazidas <strong>de</strong> carvão mineral, assim como minas <strong>de</strong><br />

ferro”. Segun<strong>do</strong> um mora<strong>do</strong>r, “as primeiras impressões visuais <strong>do</strong> dr. Roth,<br />

acerca da configuração da Montanha <strong>do</strong> Sabão, apontavam para uma vasta<br />

riqueza mineral”. Tal montanha era <strong>de</strong> “formato piramidal, e <strong>de</strong> seu topo<br />

podia-se ver as povoações <strong>de</strong> Sorocaba, Itu, Araçá e São Roque”.<br />

Simultaneamente, um peque<strong>no</strong> <strong>de</strong>stacamento <strong>de</strong> praças, comanda<strong>do</strong><br />

pelo tenente Pimenta, seguiu para Porto Feliz. A região estava<br />

protegida pela Guarda Nacional, evitan<strong>do</strong> a insegurança da população<br />

quanto à possível insurreição <strong>do</strong>s Filhos das Trevas. Além disso,<br />

25 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

(...) as festas religiosas, que tradicionalmente ocorriam naquela época <strong>do</strong><br />

a<strong>no</strong>, <strong>de</strong> Bom Jesus <strong>de</strong> Pirapora, distrito da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paraíba, estavam<br />

atrain<strong>do</strong>, como espera<strong>do</strong>, um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> <strong>de</strong>votos romeiros – naquele<br />

a<strong>no</strong> calcula<strong>do</strong> entre cinco e seis mil almas – e qualquer tipo <strong>de</strong> ação<br />

<strong>do</strong>s Filhos das Trevas originaria um tumulto <strong>de</strong> proporções inestimáveis. 25<br />

Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244 223


O me<strong>do</strong> <strong>de</strong> que esses escravos fizessem “algo <strong>de</strong> terrível” durante<br />

a festa se dava pelos<br />

(...) boatos que se espalhavam pela região sobre um homem que teria<br />

si<strong>do</strong> assassina<strong>do</strong> por causa <strong>de</strong> um jogo <strong>do</strong>s Filhos das Trevas, <strong>de</strong> um<br />

outro que o corpo teria si<strong>do</strong> acha<strong>do</strong> <strong>no</strong> rio Tietê, assim como da morte<br />

<strong>de</strong> duas crianças que as autorida<strong>de</strong>s locais preferiram dizer – para não<br />

causar maior reboliço – que haviam si<strong>do</strong> asfixiadas na multidão <strong>de</strong> <strong>de</strong>votos<br />

romeiros. 26<br />

Em sua expedição, o dr. Roth, escolta<strong>do</strong> por alguns praças, encontrou<br />

<strong>no</strong> cume da montanha uma pequena construção, com “mais <strong>de</strong><br />

300 espingardas, e alguns objetos estranhos, tais como <strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> cobra<br />

e patuás”. Assim, foi “<strong>de</strong>scoberta mais uma parte das armas que os<br />

Filhos das Trevas” diziam possuir – e que muitas autorida<strong>de</strong>s locais<br />

haviam acredita<strong>do</strong> serem imaginárias – “muito mais <strong>do</strong> que a própria<br />

Guarda Nacional, agentes <strong>de</strong> polícia, senhores <strong>de</strong> escravos e comerciantes<br />

soma<strong>do</strong>s possuíam” nas re<strong>do</strong>n<strong>de</strong>zas. A localização <strong>do</strong> paiol <strong>de</strong><br />

armas obe<strong>de</strong>cia, ao que parecia, “a uma estratégia <strong>de</strong> observação <strong>de</strong><br />

to<strong>do</strong>s os que Pai Gavião havia prometi<strong>do</strong> atacar” [ou seja] “to<strong>do</strong>s os<br />

brancos” [daquela região]. Do cume da montanha, os escravos po<strong>de</strong>riam<br />

observar a movimentação cotidiana <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res das cida<strong>de</strong>s, <strong>do</strong>s<br />

grupos arma<strong>do</strong>s, para, enfim, <strong>de</strong>cidirem a melhor estratégia <strong>de</strong> ataque.<br />

“Desta forma, po<strong>de</strong>riam tomar <strong>de</strong> assalto toda a região”.<br />

Notícias e mais <strong>no</strong>tícias sobre as intenções <strong>do</strong>s “Filhos das Trevas”<br />

não paravam <strong>de</strong> chegar à redação <strong>do</strong> Correio da Barca, retransmitidas<br />

pelo Correio Paulista<strong>no</strong>. No dia 23 <strong>de</strong> agosto, o mesmo jornal<br />

publicou uma pequena <strong>no</strong>ta, afirman<strong>do</strong> que, <strong>no</strong> dia <strong>de</strong>z <strong>do</strong> mesmo mês,<br />

na fazenda <strong>do</strong> capitão Joaquim <strong>de</strong> Souza, havia si<strong>do</strong> <strong>de</strong>scoberto mais<br />

um projeto <strong>de</strong> insurreição liga<strong>do</strong> à loja Filhos das Trevas. As autorida<strong>de</strong>s<br />

policiais, aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ao chama<strong>do</strong> <strong>do</strong> fazen<strong>de</strong>iro, foram, <strong>no</strong> mesmo<br />

dia, “verificar a veracida<strong>de</strong>” [<strong>do</strong> tal] “projeto”, [mas] “não encontraram<br />

nada referente à revolta <strong>de</strong> escravos”. Já <strong>no</strong> dia 25, <strong>no</strong>ticiou-se que<br />

escravos e pretos livres, “assegurava uma pessoa <strong>de</strong> fé <strong>do</strong>s redatores,<br />

continuavam a se reunir <strong>no</strong> cemitério da cida<strong>de</strong> para fogar, especifica-<br />

26 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

224 Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244


mente <strong>no</strong>s dias santifica<strong>do</strong>s”. Apesar das <strong>de</strong>núncias, dizia o autor da<br />

<strong>no</strong>tícia, as autorida<strong>de</strong>s locais não tomavam<br />

providência alguma e a polícia <strong>de</strong> São Paulo dizia que não possuía solda<strong>do</strong>s,<br />

nem dinheiro bastante para dar conta daqueles encontros para<br />

fogos e, mesmo, ameaças <strong>de</strong> insurreição <strong>do</strong>s escravos, que, para ela,<br />

não passavam <strong>de</strong> boatos.<br />

Sobre os acusa<strong>do</strong>res <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong><br />

Vimos em <strong>de</strong>talhes uma versão <strong>do</strong> caso <strong>de</strong> Pai Gavião. Nele, os envolvi<strong>do</strong>s,<br />

incluin<strong>do</strong> o correspon<strong>de</strong>nte que <strong>no</strong>s forneceu a versão da história,<br />

acreditavam <strong>no</strong>s po<strong>de</strong>res <strong>de</strong> uma entida<strong>de</strong> espiritual que incorporava em<br />

José Cabinda, um escravo por ele escolhi<strong>do</strong>, utilizan<strong>do</strong> seu corpo para<br />

pronunciar-se <strong>no</strong>s encontros <strong>no</strong>tur<strong>no</strong>s, bem como planejar uma possível<br />

insurreição. Victor Turner alertou para a pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> usos <strong>do</strong>s conceitos<br />

<strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong> e bruxaria pela antropologia britânica <strong>do</strong>s a<strong>no</strong>s 1950 e<br />

60, sobre o perigo <strong>de</strong> operar-se com categorias estanques, impostas pelo<br />

antropólogo antes mesmo das análises <strong>do</strong> material disponível. 27 No mesmo<br />

artigo, comentan<strong>do</strong> uma publicação dirigida pelos antropólogos britânicos<br />

Middleton & Winter – também pesquisa<strong>do</strong>res das acusações <strong>de</strong><br />

<strong>feitiçaria</strong> nas socieda<strong>de</strong>s africanas – que visava dar uma visão universal<br />

da <strong>feitiçaria</strong> na parte leste da África, Turner propôs uma <strong>de</strong>finição básica<br />

para a <strong>feitiçaria</strong> como fenôme<strong>no</strong> social. Tal <strong>de</strong>finição se modificaria ao se<br />

aproximar <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s coleta<strong>do</strong>s pelos pesquisa<strong>do</strong>res. 28<br />

27 Cf. Victor W. Turner, “Brujería y hechicería: taxo<strong>no</strong>mía versus dinámica”, in La selva <strong>de</strong> los<br />

símbolos: aspectos <strong>de</strong>l ritual N<strong>de</strong>mbu, Madrid, Siglo Veintiu<strong>no</strong>, 1967, pp. 124-41.<br />

28 Trata-se <strong>de</strong> John Middleton e E. H. Winter (orgs.), Witchcraft and sorcery in East Africa, Lon<strong>do</strong>n,<br />

Routledge & Kegan Paul, 1963. Alguns a<strong>no</strong>s mais tar<strong>de</strong>, houve uma tentativa <strong>de</strong> historia<strong>do</strong>res e<br />

antropólogos repensarem paradigmas até então <strong>do</strong>minantes <strong>no</strong>s estu<strong>do</strong>s sobre acusações <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong>,<br />

in Mary Douglas (org.), Witchcraft confessions and accusations (Lon<strong>do</strong>n, Tavistock<br />

Publications, 1970). Para uma visão geral acerca <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s que antropólogos britânicos fizeram<br />

sobre “acusações <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong>” na África, ver Adam Kuper, Antropólogos e Antropologia, Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora, 1978, pp. 87-119, e Murray Leaf, Uma história da<br />

Antropologia, Rio <strong>de</strong> Janeiro, São Paulo, Zahar/Edusp, 1981, pp. 298-301. Para uma análise crítica<br />

<strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da antropologia britânica acerca <strong>de</strong>ssas acusações, ver Malcolm Crick,<br />

“Recasting witchcraft”, in Max Marwick (org.), Witchcraft and sorcery (Middlesex, Penguin, 1982),<br />

pp. 343-64. Consi<strong>de</strong>rações importantes acerca <strong>de</strong> vários <strong>do</strong>s autores da antropologia inglesa, por<br />

nós cita<strong>do</strong>s, encontram-se em George W. Stocking Jr., After Tylor: British School Anthropology,<br />

Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244 225


Para ele, muitas das socieda<strong>de</strong>s africanas estudadas pelos autores<br />

<strong>do</strong>s artigos que compunham o livro reconheceriam a mesma série<br />

<strong>de</strong> componentes das relações sociais, antes mesmo <strong>de</strong> se falar em <strong>feitiçaria</strong>.<br />

Estes componentes são: as capacida<strong>de</strong>s inatas, adquiridas, aprendidas<br />

ou herdadas para causar da<strong>no</strong> e para matar; o po<strong>de</strong>r para matar <strong>de</strong><br />

maneira imediata e po<strong>de</strong>r consegui<strong>do</strong> por meio <strong>de</strong> medicinas, técnicas<br />

curativas; o emprego <strong>de</strong> familiares, visíveis e invisíveis, na provocação<br />

ou na resolução <strong>de</strong> conflitos; a introdução mágica <strong>de</strong> objetos <strong>no</strong> interior<br />

<strong>do</strong>s inimigos; a existência <strong>de</strong> concepções <strong>de</strong> magia hostil <strong>no</strong>turna e<br />

diurna; a invocação <strong>do</strong>s espíritos mediante uma maldição, etc. Além<br />

disso, o autor <strong>de</strong>monstra como as técnicas aprendidas pelos acusa<strong>do</strong>s<br />

<strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong>, nas pesquisas compiladas <strong>no</strong> livro <strong>de</strong> Middleton & Winter,<br />

eram para ser usadas para causar da<strong>no</strong> a alguém. Turner ainda argumenta<br />

que, nas distintas socieda<strong>de</strong>s, e às vezes nas distintas situações<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma mesma socieda<strong>de</strong>, aqueles componentes aparecem separa<strong>do</strong>s<br />

ou agrupa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> diferentes maneiras. A solução apontada pelo<br />

autor é que o pesquisar opte pela análise <strong>de</strong> casos e situações, pois isso<br />

po<strong>de</strong> muito bem revelar parte da dinâmica social sem amarrar-se em<br />

conceitos pre<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s da pesquisa.<br />

Segun<strong>do</strong> as indicações <strong>de</strong> Turner, e analisan<strong>do</strong> cada caso, po<strong>de</strong>mos<br />

ver que, a partir da primeira acusação <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong>, as investigações<br />

policiais revelam uma série <strong>de</strong> conflitos e alianças que já estavam<br />

postos – que diziam respeito às diversas disputas entre os agentes sociais<br />

– como apontava Evans-Pritchard. 29 Nas <strong>no</strong>tícias ao re<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Pai<br />

Gavião, encontramos os expecta<strong>do</strong>res, os senhores <strong>de</strong> escravos, provavelmente<br />

<strong>de</strong> vários perfis econômicos, e os escravos que compunham<br />

as tais “Lojas Feiticeiras”, membros da justiça e o escravo que incorporava<br />

a entida<strong>de</strong> espiritual <strong>de</strong><strong>no</strong>minada Pai Gavião, o envia<strong>do</strong> <strong>do</strong> Cor-<br />

1888-1951, Madison, The University of Wisconsin Press, 1995. Outros pontos acerca da forma <strong>de</strong><br />

produzir as et<strong>no</strong>grafias <strong>de</strong>ssa “escola antropológica”, levan<strong>do</strong>-se em conta os contextos políticos<br />

internacionais, são aborda<strong>do</strong>s por Mauro Almeida, “A et<strong>no</strong>grafia em tempos <strong>de</strong> guerra: contextos<br />

temporais e nacionais <strong>do</strong> objeto da antropologia”, in Fernanda Peixoto, Heloisa Pontes &<br />

Lilia Moritz Schwarcz (orgs.), Antropologias, histórias, experiências (Belo Horizonte, Editora<br />

UFMG, 2004), pp. 61-77. Algumas questões acerca <strong>de</strong>ssas discussões foram recentemente<br />

levantadas por Emerson Giumbelli, “Os Azan<strong>de</strong> e nós: experimento <strong>de</strong> antropologia simétrica”,<br />

Horizontes Antropológicos, a<strong>no</strong> 12, n o 26, pp. 261-97.<br />

29 Evans-Pritchard, Witchcraft, oracles and magic among the Azan<strong>de</strong>.<br />

226 Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244


eio Paulista<strong>no</strong> e as pessoas que assistiam aos “rituais <strong>de</strong> possessão”. 30<br />

Também encontramos seus sentimentos e expectativas, movidas pelas<br />

palavras <strong>de</strong> Pai Gavião sobre uma gran<strong>de</strong> insurreição escrava, o me<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> membros da classe senhorial <strong>de</strong> que ela acontecesse, aquelas mesmas<br />

palavras e seus efeitos <strong>no</strong>s escravos presentes <strong>no</strong>s “rituais <strong>de</strong> possessão”<br />

e a classe senhorial local aproveitan<strong>do</strong> a situação para inquirir<br />

Pai Gavião, uma entida<strong>de</strong> espiritual, sobre os seus pla<strong>no</strong>s.<br />

Há, basicamente, duas formas <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>rmos a li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong> Pai<br />

Gavião sobre o grupo <strong>de</strong> escravos <strong>de</strong><strong>no</strong>mina<strong>do</strong> Filhos das Trevas. Uma,<br />

ligada às origens da crença em lí<strong>de</strong>res religiosos em <strong>de</strong>terminadas regiões<br />

<strong>de</strong> on<strong>de</strong> vinham os africa<strong>no</strong>s, <strong>no</strong> Su<strong>de</strong>ste escravista, que recebeu, majoritariamente,<br />

africa<strong>no</strong>s originários da África Central e os significa<strong>do</strong>s da presença<br />

<strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s <strong>de</strong>ssa região específica, reinterpretada <strong>no</strong> Brasil. 31 Outra<br />

forma, que seguimos, sem <strong>de</strong>smerecer a primeira, está ligada à localização<br />

e à avaliação <strong>do</strong>s contextos <strong>no</strong>s quais as acusações <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong> ocorreram<br />

<strong>no</strong> Império, quem acusava e quem era acusa<strong>do</strong>, e como membros diversos<br />

da classe senhorial coor<strong>de</strong>navam as investigações. Além disso, como a tese<br />

<strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> <strong>de</strong> Gabriela <strong>do</strong>s Reis Sampaio, a <strong>no</strong>ssa própria tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong><br />

e o recente trabalho <strong>de</strong> João José Reis mostram, na socieda<strong>de</strong> brasileira<br />

a crença <strong>no</strong> feitiço não se restringia apenas aos africa<strong>no</strong>s e seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes.<br />

32 Havia uma miría<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas, <strong>de</strong> tipos sociais, conflitos e acor-<br />

30 É possível que a expressão “lojas feiticeiras”, utilizada pelo autor <strong>do</strong>s artigos <strong>do</strong> Correio<br />

Paulista<strong>no</strong>, tenha conexão com palavras da eco<strong>no</strong>mia lingüística da maçonaria <strong>no</strong> Brasil.<br />

Analisaremos essa questão em outra oportunida<strong>de</strong>.<br />

31 Sobre os africa<strong>no</strong>s <strong>no</strong> Su<strong>de</strong>ste e suas origens, ver Mary C. Karash, Slave life in Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

1808-1850, Princeton, Princeton University Press, 1987; Maria Cristina Cortez Wissembach,<br />

Ritos <strong>de</strong> magia e sobrevivência: sociabilida<strong>de</strong>s e práticas mágico-religiosas <strong>no</strong> Brasil (1890-<br />

1940), (Tese <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong>-USP, História Social, 1997); Robert W. Slenes, “‘Malungu, Ngoma<br />

vem!’: África coberta e <strong>de</strong>scoberta <strong>do</strong> [sic: leia-se “<strong>no</strong>”] Brasil”, in Revista USP, n o 12, pp.<br />

48-67; sobre influências africanas nas religiões na América, ver Luis Nicolau Parés, A formação<br />

<strong>do</strong> can<strong>do</strong>mblé: história e ritual da nação jeje na Bahia, Campinas, Editora da UNICAMP,<br />

2006, e John K. Thornton, “African dimensions of the Sto<strong>no</strong> rebellion”, in The American<br />

Historical Review, v. 96, n o 4, pp. 1101-113. Há casos <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong> cita<strong>do</strong>s a partir <strong>de</strong> suas<br />

matrizes africanas em Sidney Chalhoub et al., Artes e ofícios <strong>de</strong> curar <strong>no</strong> Brasil, (Campinas,<br />

Editora da UNICAMP, 2003).<br />

32 Gabriela <strong>do</strong>s Reis Sampaio, “A história <strong>do</strong> feiticeiro Juca Rosa: cultura e relações sociais <strong>no</strong><br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro imperial”, UNICAMP, (Tese <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong>, UNICAMP, História, 2000);<br />

Couceiro, Magia e <strong>feitiçaria</strong> <strong>no</strong> Império <strong>do</strong> Brasil; João José Reis, Domingos Sodré, um sacer<strong>do</strong>te<br />

negro: escravidão, liberda<strong>de</strong> e can<strong>do</strong>mblé na Bahia <strong>do</strong> século XIX, São Paulo, Companhia<br />

das Letras, 2008.<br />

Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244 227


<strong>do</strong>s, envolvi<strong>do</strong>s na crença na <strong>feitiçaria</strong>, ou naquilo <strong>de</strong> que, muitas vezes,<br />

algumas pessoas assim foram acusadas, <strong>no</strong> Império. Vejamos outros casos<br />

<strong>no</strong>s quais po<strong>de</strong>mos observar <strong>no</strong>ssa opção interpretativa.<br />

A fazenda invisível: quan<strong>do</strong> a classe senhorial<br />

errou <strong>de</strong> insurreição<br />

Em 28 <strong>de</strong> <strong>no</strong>vembro <strong>de</strong> 1838, o jornal O Sete D’Abril, <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

publicou em suas páginas 2 e 3 uma longa narrativa sobre o sucesso <strong>de</strong><br />

uma “expedição” senhorial para “acabar com insurreição escrava <strong>de</strong> e<strong>no</strong>rmes<br />

proporções”. 33 A narrativa fora enviada e assinada por Francisco <strong>de</strong><br />

Lacerda Werneck, senhor <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escravos e her<strong>de</strong>iro <strong>de</strong><br />

muitas terras produtivas, em 13 <strong>de</strong> <strong>no</strong>vembro. 34 Vamos aos fatos.<br />

Em Vassouras, província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, “os escravos <strong>do</strong> capitão-mor<br />

Ma<strong>no</strong>el Francisco Xavier estavam revolta<strong>do</strong>s”. 35 Às quatro horas<br />

da tar<strong>de</strong> <strong>do</strong> dia 10, 150 homens da Guarda Nacional, mais paisa<strong>no</strong>s<br />

arma<strong>do</strong>s, foram reuni<strong>do</strong>s, “em 48 horas”, em quatro divisões, para dar<br />

fim à insurreição <strong>do</strong>s escravos. O clima <strong>de</strong> tensão e expectativa era tão<br />

gran<strong>de</strong> que o coronel-chefe da missão, o próprio Werneck, dirigiu aos<br />

seus “camaradas um discurso, cuja leitura enérgica produziu um efeito<br />

admirável, fazen<strong>do</strong> ressoar por alguns minutos entusiasma<strong>do</strong>s vivas”. Às<br />

6 horas da manhã, uma das colunas foi explorar as matas “que ficam à<br />

direita da estrada <strong>de</strong> Santa Catarina”, juntan<strong>do</strong>-se mais tar<strong>de</strong> às <strong>de</strong>mais,<br />

logo abaixo da “Pedra <strong>do</strong> Silveira”. A coluna encontrou, logo, logo, “o<br />

trilho <strong>do</strong>s escravos, com 33 ranchos, aon<strong>de</strong> haviam per<strong>no</strong>ita<strong>do</strong> a primeira<br />

<strong>no</strong>ite; adiante, viram mais um lugar junto à Pedra <strong>do</strong> Silveira, on<strong>de</strong> havi-<br />

33 O Sete d´Abril, BN, Seção <strong>de</strong> Obras Raras. To<strong>do</strong>s os termos entre aspas são os que aparecem<br />

na <strong>de</strong>scrição <strong>no</strong> jornalista <strong>de</strong> O Sete d´Abril.<br />

34 Para maiores informações acerca das ativida<strong>de</strong>s econômicas da família Werneck, ver Eduar<strong>do</strong><br />

Silva, Barões e escravidão: três gerações <strong>de</strong> fazen<strong>de</strong>iros e a crise da estrutura escravista, Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, Brasília, Nova Fronteira/INL, 1984. Sobre o funcionamento da eco<strong>no</strong>mia com base<br />

<strong>no</strong> trabalho escravo <strong>no</strong> município <strong>de</strong> Vassouras, ver Ricar<strong>do</strong> Salles, E o Vale era o escravo –<br />

Vassouras, século XIX: senhores e escravos <strong>no</strong> coração <strong>do</strong> Império, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Civilização<br />

Brasileira, 2008. Sobre insurreições <strong>de</strong> escravos em fazendas <strong>de</strong> café <strong>no</strong> Vale <strong>do</strong> Paraíba Fluminense,<br />

ver Humberto F. Macha<strong>do</strong>, Escravos, senhores e café: a crise da cafeicultura escravista<br />

<strong>do</strong> Vale <strong>do</strong> Paraíba Fluminense, 1860-1888, Niterói, Clube <strong>de</strong> Literatura Cromos, 1983.<br />

35 Cf. O Sete d´Abril, BN, Seção <strong>de</strong> Obras Raras. To<strong>do</strong>s os termos entre aspas são os que aparecem<br />

na <strong>de</strong>scrição <strong>no</strong> jornalista <strong>de</strong> O Sete d´Abril.<br />

228 Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244


am <strong>do</strong>rmi<strong>do</strong>”. No outro la<strong>do</strong> da rocha, outro acampamento, com “alguns<br />

tições <strong>de</strong> fogo”. Às três horas, mais um acampamento foi encontra<strong>do</strong>.<br />

Mas, segun<strong>do</strong> informações prévias, havia ainda um último a ser <strong>de</strong>scoberto,<br />

possivelmente on<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> número <strong>do</strong>s escravos se achava.<br />

O clima continuava tenso, pois as <strong>no</strong>tícias eram <strong>de</strong> que os “escravos<br />

fugi<strong>do</strong>s para as matas <strong>de</strong> Vassouras passavam <strong>de</strong> 100”! Werneck<br />

or<strong>de</strong><strong>no</strong>u, “para prevenir algum inci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sagradável”, [que seus homens]<br />

“não se <strong>de</strong>sunissem e <strong>de</strong>morassem o passo”. [Após] “Oito horas<br />

seguidas <strong>de</strong> caminhada por escarpa<strong>do</strong>s montes”, [quan<strong>do</strong>] “começava a<br />

fatigar gran<strong>de</strong> parte da tropa, muita <strong>de</strong>la pouco afeita a andar a pé”,<br />

todas as colunas acharam o acampamento. Eram então cinco e meia da<br />

tar<strong>de</strong>. A tensão aumentou, pois “na <strong>de</strong>scida <strong>de</strong> um serrote, sentiram<br />

golpes <strong>de</strong> macha<strong>do</strong> e falar <strong>de</strong> gente”.<br />

Os escravos estavam “espalha<strong>do</strong>s”. Era um “quilombo” <strong>de</strong>, pelo<br />

me<strong>no</strong>s, “150 escravos”. Werneck resolveu “cercá-los com to<strong>do</strong>s os seus<br />

150 subordina<strong>do</strong>s”. Depois disso, foram “marchan<strong>do</strong>” em direção aos<br />

escravos. Um <strong>de</strong>les viu toda a movimentação da tropa e <strong>de</strong>u o sinal aos<br />

<strong>de</strong>mais. Com algumas “poucas armas <strong>de</strong> fogo e outras cortantes”, os<br />

escravos venceram a primeira batalha. Em seguida, eles gritaram: “Atira,<br />

caboclos! Atira, diabos!”. [Uma] “<strong>de</strong>scarga muito barulhenta” [se<br />

fez, e] “<strong>do</strong>is homens da missão caíram feri<strong>do</strong>s”. Werneck man<strong>do</strong>u seus<br />

homens “atacarem com força total” [logo fazen<strong>do</strong>] “20 e tantos escravos<br />

rolarem pelo morro abaixo, uns mortos, outros gravemente feri<strong>do</strong>s”.<br />

Depois disso, “o tiroteio se tor<strong>no</strong>u geral”, com os escravos corren<strong>do</strong><br />

mata a<strong>de</strong>ntro, largan<strong>do</strong> parte das armas e dan<strong>do</strong> as costas à tropa,<br />

que continuava a atirar. “Foram persegui<strong>do</strong>s e espingar<strong>de</strong>a<strong>do</strong>s em retirada<br />

e em completa <strong>de</strong>bandada, por espaço <strong>de</strong> uma hora”. Conseguiram<br />

escapar.<br />

O cair da <strong>no</strong>ite e a perda da trilha <strong>do</strong>s escravos fizeram com que<br />

Werneck optasse por “<strong>de</strong>sfazer toda a estrutura física <strong>do</strong> quilombo”.<br />

Foi então que <strong>de</strong>scobriu “gran<strong>de</strong> estoque <strong>de</strong> alimentos”:<br />

(...) mais <strong>de</strong> 20 arrobas <strong>de</strong> açúcar, muito fubá, farinha, toucinho, carnes,<br />

mais <strong>de</strong> 20 galinhas vivas, cinco perus, <strong>do</strong>is carneiros – que fielmente<br />

<strong>no</strong>s acompanharam para casa – gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> utensílios <strong>de</strong> cozinha,<br />

macha<strong>do</strong>s, foices, enxadas, cava<strong>de</strong>iras, ferramentas <strong>de</strong> carpinteiro,<br />

Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244 229


<strong>de</strong> ferreiro, uma bigorna, 40 a 50 caixas com roupa fina, e alguma engomada,<br />

gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> periódicos velhos para cartuxame, folhas<br />

em que tinham trazi<strong>do</strong> pólvora, cento e tantas esteiras, numerosa quantida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> mantas <strong>de</strong> <strong>do</strong>rmir, talvez 60$000 rs em <strong>no</strong>tas e cobre. 36<br />

Werneck orientou os homens para queimarem tu<strong>do</strong> aquilo que<br />

“os camaradas” não pu<strong>de</strong>ssem “levar, a fim <strong>de</strong> tirar to<strong>do</strong>s os recursos”<br />

<strong>do</strong>s quilombolas.<br />

O sal<strong>do</strong> <strong>do</strong> conflito: 22 presos, sete ou oito <strong>do</strong>s quais gravemente<br />

feri<strong>do</strong>s, sete mortos, com to<strong>do</strong> o “mato rastilha<strong>do</strong> <strong>de</strong> sangue em todas<br />

as direções”. Retornaram à fazenda <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s capitães da missão às<br />

ave-marias. No dia seguinte, após uma <strong>no</strong>ite <strong>de</strong> muita chuva, alguns<br />

homens voltaram ao local <strong>do</strong> quilombo para resgatar feri<strong>do</strong>s ou mortos,<br />

e para explorarem suas imediações. Trouxeram <strong>do</strong>is homens da missão<br />

e mais outros <strong>do</strong>is quilombolas feri<strong>do</strong>s. Ainda faltavam ao capitão-mor<br />

<strong>de</strong> “250 a 300 escravos, <strong>de</strong> um e outro sexo”, fugi<strong>do</strong>s nas matas. Entretanto,<br />

o “rei e cabeça <strong>do</strong> motim, Ma<strong>no</strong>el Congo, foi preso; e seu vicerei,<br />

morto com um tiro!”<br />

No final <strong>de</strong> toda a empreitada, Werneck reuniu seus homens em<br />

forma e lhes dirigiu um “discurso em louvor [causan<strong>do</strong>] aplausos e vivas<br />

extraordinários”.<br />

Nessa narrativa, há uma curiosa observação feita por Werneck:<br />

“<strong>no</strong>tei que nem um só escravo fez alto quan<strong>do</strong> se mandava parar, sen<strong>do</strong><br />

preciso espingar<strong>de</strong>á-los pelas pernas. Uma crioula gritava: morrer sim,<br />

entregar, não!!!” O que isso queria dizer? Porque os escravos foram tão<br />

<strong>de</strong>stemi<strong>do</strong>s, num primeiro momento, e <strong>de</strong>pois fugiram para o interior<br />

das matas, como que retornan<strong>do</strong>, to<strong>do</strong>s ao mesmo tempo, a algum lugar<br />

que as tropas não haviam consegui<strong>do</strong> chegar?<br />

Na mesma página 3, on<strong>de</strong> a narrativa <strong>de</strong> Werneck termina, um<br />

jornalista <strong>de</strong> O Sete D’Abril fala que recebeu mais informações <strong>do</strong>s<br />

redatores <strong>de</strong> outro jornal, chama<strong>do</strong> O Chronista. Um tal “amigo Y” lhe<br />

havia escrito uma carta com revelações que explicavam a curiosa observação<br />

<strong>de</strong> Werneck. As informações são <strong>de</strong>scritas como sen<strong>do</strong> “seguras<br />

e verda<strong>de</strong>iras”.<br />

36 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

230 Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244


Na fazenda <strong>do</strong> capitão-mor Ma<strong>no</strong>el Francisco Xavier, três ou quatro<br />

<strong>do</strong>s seus escravos “conseguiram a fama <strong>de</strong> feiticeiros, e por esse<br />

título ganharam a confiança e o respeito <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong>s outros<br />

escravos”. Por serem vistos como “senhores da natureza”, os <strong>de</strong>mais<br />

escravos foram “convenci<strong>do</strong>s pelos feiticeiros malandrins” [que tinham]<br />

“o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> fazê-los ficar invisíveis”. Além disso, se fossem com os<br />

“feiticeiros” para o mato, encontrariam a “fazenda invisível”, longe <strong>do</strong>s<br />

olhos <strong>do</strong>s senhores. Assim, muitos escravos, por volta <strong>de</strong> 300, se embrenharam<br />

mata a<strong>de</strong>ntro, na esperança <strong>de</strong> encontrarem a “fazenda encantada”.<br />

Construíram uma estrada, com a largura <strong>de</strong> “po<strong>de</strong>r andar quatro<br />

homens <strong>de</strong> frente”, um <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> outro. Quan<strong>do</strong> paravam, faziam e<strong>no</strong>rmes<br />

ranchos, “com toda a comodida<strong>de</strong>”.<br />

Assim, continua o autor da <strong>no</strong>tícia, não havia mais que um “boato<br />

<strong>de</strong> que os escravos <strong>do</strong> capitão-mor se haviam insurgi<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> apenas<br />

tinham fugi<strong>do</strong>”. A insurreição ocorria tão “mansa e pacificamente”, sem<br />

que em momento algum a família <strong>do</strong> capitão-mor fosse colocada em perigo.<br />

Prova disso era a certeza <strong>do</strong>s escravos <strong>de</strong> que eram invisíveis, tanto<br />

que, <strong>no</strong> primeiro encontro que com eles teve a tropa, aos primeiros tiros,<br />

da<strong>do</strong>s da parte <strong>de</strong>sta, eles vinham com os braços abertos oferecer-se como<br />

alvos das espingardas, e só quan<strong>do</strong> viram que a invisibilida<strong>de</strong> não os<br />

preservava das balas é que recorreram também às armas! 180 e tantos<br />

escravos só tinham 19 espingardas velhas ou <strong>de</strong> caça!<br />

As “congêres”<br />

No a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1862, misteriosas cerimônias promovidas por escravos surpreen<strong>de</strong>ram<br />

os senhores <strong>de</strong> Valença, província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. Aos<br />

mol<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s encontros promovi<strong>do</strong>s sob motivação da crença em Pai<br />

Gavião, escravos <strong>de</strong> várias fazendas “ajuntaram-se em reuniões <strong>no</strong>turnas<br />

com o fim <strong>de</strong> preservarem-se <strong>de</strong> moléstias e terem fortuna”. 37 As<br />

reuniões eram “temidas” pelos senhores, por indicarem a possibilida<strong>de</strong><br />

37 “Comunica<strong>do</strong> Urgente” envia<strong>do</strong> por senhores <strong>de</strong> escravos <strong>de</strong> Valença (RJ) ao então chefe <strong>de</strong><br />

polícia da Corte, em 1862, José Custódio <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Pinto. AN, IJ1 – pacote 871, Ofícios <strong>do</strong><br />

Presi<strong>de</strong>nte da Província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. To<strong>do</strong>s os termos entre aspas são os que aparecem<br />

<strong>no</strong> <strong>do</strong>cumento.<br />

Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244 231


<strong>de</strong> “insurreição”, pois envolviam “gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escravos”. Ao<br />

receber “comunica<strong>do</strong> urgente”, o então chefe <strong>de</strong> polícia da Corte, José<br />

Custódio <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Pinto, tratou <strong>de</strong> investigar as “reuniões sinistras”<br />

promovidas pelos escravos <strong>de</strong> Valença. Concluiu que os mesmos lhes<br />

davam o <strong>no</strong>me <strong>de</strong> “Congêres” [nas quais celebravam] “cerimônias grosseiras<br />

e misteriosas, com o fim <strong>de</strong> se protegerem <strong>de</strong> moléstias e terem<br />

fortuna, como bem já disseram os seus senhores, por meio <strong>de</strong> feitiços”.<br />

José Custódio percebeu que os senhores eram obstáculos <strong>no</strong> caminho<br />

da “fortuna” e <strong>de</strong> cura das “moléstias” <strong>do</strong>s escravos, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> ser elimina<strong>do</strong>s<br />

através <strong>do</strong>s feitiços feitos nas “Congêres”. Além disso, quanto<br />

mais as autorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>moravam a confirmar tal informação, “mais a<br />

população <strong>de</strong> Valença, e municípios vizinhos, se alarmava”. A solução<br />

encontrada foi recorrer ao então ministro da justiça, Francisco <strong>de</strong> Paula<br />

Negreiros Sayão Lobato. O <strong>do</strong>cumento se encerra com essa informação,<br />

e não sabemos, até o momento, quais foram as atitu<strong>de</strong>s tomadas<br />

pelo ministro, se é que este as tomou.<br />

Os escravos come<strong>do</strong>res <strong>de</strong> pólvora<br />

Em <strong>de</strong>z <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1857, o comenda<strong>do</strong>r Joaquim José <strong>de</strong> Sousa Breves,<br />

um <strong>do</strong>s maiores senhores e traficantes <strong>de</strong> escravos <strong>do</strong> Império,<br />

escreveu um ofício ao então presi<strong>de</strong>nte da província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

João Manuel Pereira da Silva. Breves estava muito preocupa<strong>do</strong> com o<br />

“indício <strong>de</strong> sedição entre seus escravos, <strong>no</strong> município <strong>de</strong> São João <strong>do</strong><br />

Príncipe”. 38 Seu incômo<strong>do</strong> era <strong>de</strong>vi<strong>do</strong>, num primeiro momento, ao fato<br />

<strong>de</strong> ter encontra<strong>do</strong> mais <strong>de</strong> 34 latas <strong>de</strong> pólvora na senzala <strong>de</strong> uma <strong>de</strong> suas<br />

fazendas. Isso daria para carregar muita munição e provocar explosões<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s proporções on<strong>de</strong> os escravos bem enten<strong>de</strong>ssem. Para sua<br />

surpresa, “<strong>de</strong>scobriu que a gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pólvora servia para<br />

fins me<strong>no</strong>s sediciosos.<br />

38 Ofício envia<strong>do</strong> pelo comenda<strong>do</strong>r José <strong>de</strong> Souza Breves ao Presi<strong>de</strong>nte da Província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, em 1857, AN, IJ1 – pacote 867, Ofícios <strong>do</strong> Presi<strong>de</strong>nte da Província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

To<strong>do</strong>s os termos entre aspas são os que aparecem <strong>no</strong> <strong>do</strong>cumento. Para outras informações<br />

acerca da atuação <strong>do</strong> comenda<strong>do</strong>r Breves na política imperial, fundamentalmente na burla à<br />

proibição ao tráfico internacional <strong>de</strong> escravos para o Brasil, ver Luiz Alberto Couceiro, “<strong>Acusações</strong><br />

atlânticas: o caso <strong>do</strong>s escravos num navio fantasma – Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1861”, Revista <strong>de</strong><br />

História/USP – Dossiê História Atlântica, n o 152, pp.57-77.<br />

232 Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244


Os escravos <strong>de</strong> suas e das <strong>de</strong>mais fazendas da região “andavam se<br />

reunin<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>no</strong>ite, há seis meses, em grupos ocultos [numa] socieda<strong>de</strong><br />

chamada Dom Miguel”. Cada “inicia<strong>do</strong> [segun<strong>do</strong> as investigações <strong>do</strong><br />

próprio comenda<strong>do</strong>r Breves] era queima<strong>do</strong> e bebia pólvora com misteriosas<br />

misturas”. Apesar <strong>do</strong>s “castigos que Breves man<strong>do</strong>u aplicar <strong>no</strong>s escravos<br />

[que <strong>de</strong>scobriu pertencerem à tal] seita[,] eles continuavam com<br />

estas baboseiras”. Breves <strong>de</strong>sconfiava que em tais reuniões po<strong>de</strong>riam “ser<br />

combina<strong>do</strong>s pla<strong>no</strong>s para uma gran<strong>de</strong> insurreição [dada a] insistência <strong>do</strong>s<br />

escravos em continuar se encontran<strong>do</strong>, por várias <strong>no</strong>ites seguidas”. Descobriu<br />

que os “inicia<strong>do</strong>s” <strong>de</strong>veriam pagar certa quantia <strong>de</strong> dinheiro para<br />

os “mestres da seita”, o que lhe “<strong>de</strong>spertava a <strong>de</strong>sconfiança da estratégia<br />

para ganhar dinheiro inventada por certos negros espertalhões”.<br />

Como as autorida<strong>de</strong>s locais não faziam qualquer tipo <strong>de</strong> investigação<br />

mais profunda sobre as ativida<strong>de</strong>s da “seita Dom Miguel, nem<br />

mesmo <strong>de</strong>la tomavam se quer conhecimento”, Breves – com toda a<br />

autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s membros mais prestigia<strong>do</strong>s da elite senhorial –<br />

escreveu diretamente ao presi<strong>de</strong>nte da província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Aproveitan<strong>do</strong> a situação, pediu-lhe a mudança <strong>de</strong> todas as autorida<strong>de</strong>s<br />

da justiça naquela região. Em sua opinião, “o <strong>de</strong>lega<strong>do</strong> e o sub<strong>de</strong>lega<strong>do</strong><br />

eram <strong>do</strong>i<strong>do</strong>s, além <strong>de</strong>ste último ser bobo e vingativo”. Isso porque, avaliava<br />

Breves, tais autorida<strong>de</strong>s, ao invés <strong>de</strong> pedirem reforço policial à<br />

Corte para evitar uma possível insurreição <strong>do</strong>s escravos, se <strong>de</strong>dicavam<br />

a se “vingarem <strong>de</strong> questões pessoais, e resolverem intriguinhas”.<br />

A solicitação <strong>de</strong> Breves foi prontamente atendida. O ministro man<strong>do</strong>u<br />

o chefe <strong>de</strong> polícia interi<strong>no</strong> da província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, José Caeta<strong>no</strong><br />

<strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Pinto, começar as investigações sobre a “seita Dom<br />

Miguel”. Além disso, <strong>no</strong>meou um <strong>no</strong>vo sub<strong>de</strong>lega<strong>do</strong>, Eusébio da Fonseca<br />

Guimarães, que passou imediatamente a “dar buscas nas senzalas” 39<br />

para encontrar objetos rouba<strong>do</strong>s que pu<strong>de</strong>ssem dar algum indício sobre<br />

o “pla<strong>no</strong> <strong>do</strong>s escravos matarem os senhores da região”. Eusébio proibiu<br />

que os escravos saíssem à <strong>no</strong>ite das fazendas <strong>de</strong> seus senhores, para que<br />

39 Solicitação enviada pelo ministro da justiça ao chefe <strong>de</strong> polícia interi<strong>no</strong> da província <strong>do</strong> Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, José Caeta<strong>no</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Pinto, em 1857. AN, IJ1 – pacote 867, Ofícios <strong>do</strong> Presi<strong>de</strong>nte<br />

da Província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. To<strong>do</strong>s os termos entre aspas são os que aparecem <strong>no</strong><br />

<strong>do</strong>cumento.<br />

Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244 233


as “reuniões sinistras fossem interrompidas”. Em suas primeiras buscas,<br />

encontrou “raízes e ervas vene<strong>no</strong>sas, que po<strong>de</strong>m produzir graves<br />

incômo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>”. Os “pretos encontra<strong>do</strong>s com estes objetos foram<br />

castiga<strong>do</strong>s, evitan<strong>do</strong> o mal maior”. Tais <strong>no</strong>tícias foram comunicadas ao<br />

ministro, em “correspondência confi<strong>de</strong>ncial” <strong>de</strong> 21 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1857,<br />

pelo próprio Eusébio, que ainda informou “não haver indício algum <strong>de</strong><br />

sedição entre os escravos”. 40<br />

Mas os trabalha<strong>do</strong>res livres e mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s núcleos urba<strong>no</strong>s<br />

próximos àquelas fazendas não estavam bem certos quanto à conclusão<br />

<strong>do</strong> sub<strong>de</strong>lega<strong>do</strong>. Os boatos eram tantos que os administra<strong>do</strong>res das fazendas<br />

recorreram ao <strong>no</strong>vo sub<strong>de</strong>lega<strong>do</strong>, alegan<strong>do</strong> que era necessário<br />

pedir, “o quanto antes, reforços para evitar as sedições <strong>do</strong>s escravos”. 41<br />

Diante <strong>de</strong> tal situação, Eusébio passou a dar buscas também nas roças,<br />

on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria encontrar mais “objetos e raízes escondidas pelos escravos”,<br />

que já sabiam <strong>de</strong> suas idas às senzalas, bem como <strong>do</strong>s castigos<br />

que sofreriam, caso seus “feitiços fossem encontra<strong>do</strong>s”. Tratou <strong>de</strong> isolar<br />

“os escravos <strong>do</strong> fazen<strong>de</strong>iro Joaquim Breves, que não têm contato<br />

com os <strong>do</strong>s fazen<strong>de</strong>iros vizinhos, e por isso é impossível que possam<br />

entre si estabelecer um acor<strong>do</strong> para qualquer fim sinistro”.<br />

Eusébio havia “percebi<strong>do</strong> que entre aqueles escravos havia nações<br />

rivais, apesar da harmonia forçada em que vivem pela sujeição <strong>do</strong><br />

cativeiro”. Mas havia uma coisa que unia tais escravos,<br />

(...) a supersticiosa idéia que sempre <strong>do</strong>mina a raça africana, acreditan<strong>do</strong><br />

em seus fetiches, patuás, amuletos, etc., quan<strong>do</strong> praticam cerimônias e<br />

danças grotescas <strong>do</strong> seu país, e nesta prática supõem alcançarem absurdas<br />

felicida<strong>de</strong>s, regresso à sua pátria, a bem <strong>de</strong> algumas <strong>do</strong>çuras ao cativeiro<br />

em que vivem, e mil insignificantes coisas <strong>de</strong> sua fantasia”. 42<br />

O sub<strong>de</strong>lega<strong>do</strong> também tinha uma idéia <strong>de</strong> “África fetiche”, segun<strong>do</strong><br />

<strong>no</strong>ssa interpretação, supon<strong>do</strong> que aqueles escravos estavam ex-<br />

40 Cf. “Correspondência Confi<strong>de</strong>ncial” enviada pelo chefe <strong>de</strong> polícia da Corte ao ministro da<br />

justiça, em 1857. AN, IJ1 – pacote 867, Ofícios <strong>do</strong> Presi<strong>de</strong>nte da Província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

To<strong>do</strong>s os termos entre aspas são os que aparecem <strong>no</strong> <strong>do</strong>cumento.<br />

41 Ofício envia<strong>do</strong> pelo sub<strong>de</strong>lega<strong>do</strong> Eusébio da Fonseca Guimarães ao ministro da justiça, comunican<strong>do</strong><br />

solicitações <strong>de</strong> fazen<strong>de</strong>iros, em 1857. AN, IJ1 – pacote 867, Ofícios <strong>do</strong> Presi<strong>de</strong>nte da<br />

Província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. To<strong>do</strong>s os termos entre aspas são os que aparecem <strong>no</strong> <strong>do</strong>cumento.<br />

42 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

234 Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244


ternan<strong>do</strong> o que seria afeito a sua “raça africana”. Assim, seu comportamento<br />

seria <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> por um grau me<strong>no</strong>r <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong>, em comparação<br />

aos brancos. De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, o sub<strong>de</strong>lega<strong>do</strong> alegara que, apesar <strong>de</strong><br />

os escravos terem motivos <strong>de</strong> sobra para “manifestar a rivalida<strong>de</strong> entre<br />

suas diferentes nações”, a crença <strong>no</strong> feitiço era superior a tais querelas.<br />

As coisas pareciam agravar-se em São João Marcos. Em correspondência<br />

confi<strong>de</strong>ncial, <strong>de</strong> 8 <strong>de</strong> julho, o <strong>de</strong>lega<strong>do</strong> local, Antonio Cesar<br />

<strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong>, escreveu ao vice-presi<strong>de</strong>nte da província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

comunican<strong>do</strong> que havia confirma<strong>do</strong> a informação <strong>de</strong> que os escravos<br />

<strong>de</strong> diversas fazendas realmente “andavam planejan<strong>do</strong> uma insurreição”.<br />

[O] “Centro das reuniões <strong>do</strong>s escravos era [segun<strong>do</strong> o <strong>de</strong>lega<strong>do</strong>,<br />

a] lavoura da fazenda São Joaquim, pertencente ao comenda<strong>do</strong>r<br />

Joaquim Breves, on<strong>de</strong> guardam zagaias e outros instrumentos <strong>de</strong> semelhante<br />

gênero”. O vice-presi<strong>de</strong>nte da província resolveu também investigar<br />

o caso. Leu cartas <strong>de</strong> emprega<strong>do</strong>s e caixeiros <strong>de</strong> fazendas da região,<br />

datadas <strong>de</strong> 10 e 11 <strong>de</strong> junho, e tomou conhecimento da existência<br />

<strong>de</strong> 270 colo<strong>no</strong>s portugueses numa das fazendas <strong>de</strong> Breves, que po<strong>de</strong>riam<br />

ser atingi<strong>do</strong>s com a insurreição. Era necessário esclarecer, ainda<br />

segun<strong>do</strong> o vice-presi<strong>de</strong>nte, quais eram os fins da “associação <strong>de</strong> Dom<br />

Miguel, <strong>de</strong> que trata a carta <strong>do</strong> comenda<strong>do</strong>r Breves”.<br />

No dia 22 <strong>de</strong> julho, <strong>no</strong>vamente chegavam <strong>no</strong>tícias sobre o fracasso<br />

<strong>do</strong> pla<strong>no</strong> <strong>de</strong> insurreição, após as batidas das autorida<strong>de</strong>s policiais<br />

nas senzalas <strong>do</strong>s escravos, bem como os castigos aplica<strong>do</strong>s aos “escravos<br />

feiticeiros <strong>de</strong> Dom Miguel”. 43 No dia 24, em um “ofício reserva<strong>do</strong>”,<br />

dirigi<strong>do</strong> ao Palácio da Presidência da Província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

chegou ao ministro e secretário <strong>do</strong>s Negócios da Justiça, Francisco Diogo<br />

Pereira <strong>de</strong> Vasconcelos, a confirmação <strong>de</strong> tais <strong>no</strong>tícias. Aparentemente,<br />

a “associação <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong> Dom Miguel” havia si<strong>do</strong> dissipada por senhores<br />

e autorida<strong>de</strong>s imperiais, ten<strong>do</strong> à frente o comenda<strong>do</strong>r Breves.<br />

Não se falava mais em “insurreição” nem em “<strong>feitiçaria</strong>” entre os inúmeros<br />

escravos das fazendas daquele lugar. Entretanto, a tranqüilida<strong>de</strong><br />

43 “Ofício Reserva<strong>do</strong>” envia<strong>do</strong> ao Palácio da Presidência da Província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro ao<br />

ministro e secretário <strong>do</strong>s Negócios da Justiça, Francisco Diogo Pereira <strong>de</strong> Vasconcelos. AN,<br />

IJ1 – pacote 867, Ofícios <strong>do</strong> Presi<strong>de</strong>nte da Província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. To<strong>do</strong>s os termos entre<br />

aspas são os que aparecem <strong>no</strong> <strong>do</strong>cumento.<br />

Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244 235


que as boas <strong>no</strong>vas traziam <strong>de</strong>u lugar a um clima <strong>de</strong> apreensão entre<br />

altas autorida<strong>de</strong>s imperiais. Os escravos <strong>de</strong> São João Marcos “acreditavam<br />

que <strong>no</strong> dia <strong>de</strong> Santo Antonio seria o fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>”. [O ministro<br />

contou que se] “Ouvia nas ruas da Corte semelhante boato entre os<br />

escravos, [boato este que se ia] espalhan<strong>do</strong> rapidamente por toda a província<br />

<strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro”. Neste senti<strong>do</strong>, o ministro recomendava aos<br />

chefes <strong>de</strong> polícia que “todas as investigações e práticas necessárias fossem<br />

tomadas para tão importante objeto”.<br />

Para além <strong>do</strong> me<strong>do</strong> que as reuniões <strong>de</strong> tantos escravos provocaram<br />

<strong>no</strong>s senhores <strong>de</strong> São João Marcos, me<strong>do</strong> este liga<strong>do</strong> não apenas à<br />

crença <strong>no</strong>s efeitos <strong>do</strong>s feitiços por eles aprendi<strong>do</strong>s e ensina<strong>do</strong>s na seita<br />

Dom Miguel, temos que lembrar que a primeira meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XIX<br />

foi palco <strong>de</strong> forte influência <strong>de</strong> médicos na política imperial. Estes médicos<br />

lutavam pelo prevalecimento <strong>de</strong> suas técnicas <strong>de</strong> curar, bem como<br />

seu saber científico, em uma socieda<strong>de</strong> que acreditava, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos<br />

coloniais, <strong>no</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> curan<strong>de</strong>iros e <strong>de</strong> feiticeiros. Vimos que altas<br />

autorida<strong>de</strong>s imperiais estavam diretamente envolvidas na questão da<br />

repressão da “seita Dom Miguel” e <strong>de</strong> todas as reuniões <strong>de</strong> “escravos<br />

feiticeiros”. Não pensemos que foi “apenas” a influência <strong>do</strong> po<strong>de</strong>roso<br />

senhor e traficante <strong>de</strong> escravos José <strong>de</strong> Sousa Breves o motivo para<br />

tamanho interesse. Aquelas autorida<strong>de</strong>s se reuniam, muitas vezes, em<br />

grupos sociais que se estabeleciam na Corte para discutirem e divulgarem<br />

para membros da elite imperial a “medicina científica”. Ao longo<br />

da segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XIX, as críticas <strong>de</strong> “científicos” aos “feiticeiros”<br />

foram feitas em periódicos, tais como o Correio Paulista<strong>no</strong> e<br />

a Província <strong>de</strong> São Paulo. Notícias <strong>de</strong> <strong>de</strong>smerecimento <strong>do</strong>s feitos <strong>do</strong>s<br />

“feiticeiros” eram, em gran<strong>de</strong> medida, escritas em tom <strong>de</strong> acusação moral<br />

aos mesmos. 44 Em <strong>no</strong>tícia <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> <strong>no</strong>vembro <strong>de</strong> 1879, por exemplo, o<br />

Correio Paulista<strong>no</strong> publicou o caso <strong>de</strong> um flagrante <strong>de</strong> uma “sessão <strong>de</strong><br />

<strong>feitiçaria</strong>”, com “42 pretos livres e escravos, e 11 pretos minas”. “O<br />

celebrante, <strong>no</strong> ato em que foi preso”, continua a <strong>no</strong>tícia, “era escuta<strong>do</strong><br />

com atenção pelo pie<strong>do</strong>so auditório”. A riqueza <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes afirma o<br />

fascínio que tais práticas, chamadas <strong>de</strong> “<strong>feitiçaria</strong>”, provocavam na-<br />

44 Cf. Schwarcz, Retrato em branco e negro, pp. 125-8.<br />

236 Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244


quele periodista. O jornal termina a <strong>no</strong>tícia com a acusação <strong>de</strong> que a<br />

cena era uma “in<strong>de</strong>cente comédia”, sen<strong>do</strong> os escravos que <strong>de</strong>la participaram<br />

presos e castiga<strong>do</strong>s. 45<br />

Magia e técnicas <strong>de</strong> encantamento<br />

As <strong>no</strong>tícias acerca <strong>de</strong> Pai Gavião mostram o quanto o jornalista <strong>do</strong> Correio<br />

Paulista<strong>no</strong> e “autorida<strong>de</strong>s locais” sabiam on<strong>de</strong> os encontros rituais<br />

ocorriam, com quem <strong>de</strong>veriam conversar na região para obterem essas<br />

informações, e <strong>do</strong> interesse <strong>do</strong> editor, em São Paulo, <strong>no</strong>s fatos em relação<br />

aos os quais ele fora envia<strong>do</strong> para observar e relatar. As reportagens<br />

<strong>do</strong> Correio Paulista<strong>no</strong> não versam somente sobre os pla<strong>no</strong>s <strong>de</strong> insurreição<br />

que supostamente Pai Gavião li<strong>de</strong>rava, falam das crenças e da organização<br />

ritual <strong>do</strong>s Filhos das Trevas, <strong>de</strong>monstran<strong>do</strong> familiarida<strong>de</strong> com<br />

termos e ações praticadas pelos acusa<strong>do</strong>s, e, mais, mostram que o principal<br />

acusa<strong>do</strong>s era um africa<strong>no</strong>, José Cabinda, que passou a ser, assim,<br />

uma das categorias acusatórias.<br />

As <strong>no</strong>tícias trazem informações sobre as ações mágicas <strong>de</strong> Pai<br />

Gavião durante os encontros <strong>no</strong>tur<strong>no</strong>s, o mesmo ocorren<strong>do</strong> com os outros<br />

casos que narramos anteriormente, encontra<strong>do</strong>s não apenas em<br />

<strong>no</strong>tícias <strong>de</strong> jornal. O Correio Paulista<strong>no</strong> publicou algumas das palavras<br />

mágicas que proferia, com eficácia socialmente reconhecida para os<br />

fins que prometia. Pai Gavião manejava objetos diversos, se lambuzava<br />

com substâncias, ingeria aguar<strong>de</strong>nte, gritava palavras <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m, <strong>de</strong>senhava<br />

símbolos <strong>no</strong> corpo <strong>do</strong>s inicia<strong>do</strong>s, manusean<strong>do</strong> um punhal, se<br />

contorcia, manejava cor<strong>no</strong> <strong>de</strong> boi e outros objetos e dizia palavras<br />

ininteligíveis para os ouvi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> jornalista <strong>do</strong> Correio Paulista<strong>no</strong>. Ele<br />

registrou essas informações, que nada tinham a ver com a execução em<br />

si da prometida gran<strong>de</strong> insurreição <strong>do</strong>s Filhos das Trevas, aparentemente<br />

planejada e propalada por Pai Gavião. Mas foi por causa da ameaça<br />

<strong>de</strong> insurreições, assim como <strong>no</strong>s <strong>de</strong>mais casos narra<strong>do</strong>s neste artigo,<br />

que as autorida<strong>de</strong>s competentes e membros da classe senhorial chegaram<br />

às informações sobre a <strong>feitiçaria</strong>. As técnicas mágicas atribuídas<br />

a Pai Gavião foram entendidas pelo jornalista como relacionadas, sim,<br />

45 Cf. Correio Paulista<strong>no</strong>, apud Schwarcz, Retrato em branco e negro, p. 126.<br />

Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244 237


com o sucesso <strong>do</strong> pla<strong>no</strong>. Essas palavras confeririam eficácia às ações<br />

<strong>do</strong>s Filhos das Trevas, na sua luta contra senhores que acreditavam naquela<br />

magia e <strong>no</strong>s seus efeitos e, possivelmente, se sentiam seduzi<strong>do</strong>s<br />

por estas práticas, envolvi<strong>do</strong>s pela crença <strong>no</strong>s po<strong>de</strong>res <strong>de</strong> Pai Gavião.<br />

Gell argumentou que, <strong>no</strong> circuito <strong>de</strong> trocas <strong>de</strong> colares, analisa<strong>do</strong><br />

por Mali<strong>no</strong>wski em Argonautas <strong>do</strong> Pacífico Oci<strong>de</strong>ntal, parte <strong>do</strong> sucesso<br />

das relações era <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à sedução que a proa da ca<strong>no</strong>a provocava nas<br />

pessoas que estavam nas praias. As proas, segun<strong>do</strong> os próprios da<strong>do</strong>s<br />

et<strong>no</strong>gráficos <strong>de</strong> Mali<strong>no</strong>wski, eram trabalhadas em <strong>de</strong>talhes por seus<br />

<strong>do</strong><strong>no</strong>s. 46 Para compreen<strong>de</strong>r melhor esta relação entre sedutor e seduzi<strong>do</strong>,<br />

por intermédio das proas esculpidas, Gell <strong>de</strong>finiu o conceito <strong>de</strong> encantamento<br />

como a atribuição <strong>de</strong> um expecta<strong>do</strong>r ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> criação <strong>do</strong><br />

objeto, po<strong>de</strong>r este maior que o <strong>de</strong> um ser huma<strong>no</strong> comum.<br />

Para Gell, arte pressupõe a existência <strong>de</strong> alguém que faz um objeto<br />

e alguém que irá observá-lo. 47 A obra <strong>de</strong> arte é, assim, um media<strong>do</strong>r<br />

entre <strong>do</strong>is sujeitos. Magia e arte po<strong>de</strong>m ser entendidas como ten<strong>do</strong> um<br />

mesmo processo <strong>de</strong> produção técnica, porque criam objetos perturba<strong>do</strong>res.<br />

Para Gell, o mais importante na relação entre arte e magia é que<br />

as duas são produzidas através <strong>de</strong> uma “técnica <strong>do</strong> encantamento” que<br />

faz o objeto construí<strong>do</strong> ser perturba<strong>do</strong>r. A dificulda<strong>de</strong> embutida na ação<br />

<strong>de</strong> construção <strong>do</strong> objeto resulta <strong>no</strong> que chama <strong>de</strong> “encantamento da<br />

técnica”, ou seja, uma técnica que constrói um objeto <strong>de</strong>ve seduzir os<br />

observa<strong>do</strong>res. No kula, as proas esculpidas “facilitaram” as trocas <strong>de</strong><br />

colares entre os ilhéus trobrian<strong>de</strong>ses pelo efeito “perturba<strong>do</strong>r” que provocavam<br />

naqueles que estavam esperan<strong>do</strong> as ca<strong>no</strong>as nas praias. Era<br />

<strong>de</strong>sta forma que os <strong>do</strong><strong>no</strong>s das ca<strong>no</strong>as conseguiam, mais facilmente,<br />

parceiros para as trocas <strong>de</strong> colares.<br />

A partir da i<strong>de</strong>alização <strong>do</strong> observa<strong>do</strong>r diante da dificulda<strong>de</strong> que<br />

ele acredita estar sen<strong>do</strong> utilizada na técnica, cada socieda<strong>de</strong> atribui um<br />

valor particular aos objetos cria<strong>do</strong>s. Os objetos da arte e os da magia<br />

produzem, assim, formas particulares <strong>de</strong> sedução. Cada socieda<strong>de</strong> tem<br />

46 Alfred Gell, “The tech<strong>no</strong>logy of enchantment and the enchantment of tech<strong>no</strong>logy,” in Jeremy<br />

Coote & Anthony Shelton (eds.), Anthropology, art and aesthetics (New York, Claren<strong>do</strong>n<br />

Press, 1994), pp. 40-65.<br />

47 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

238 Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244


seus próprios conceitos <strong>de</strong> objeto da sedução. Cada socieda<strong>de</strong>, assim,<br />

tem sua eficácia técnica, que está ligada ao objeto. Este é admira<strong>do</strong> por<br />

ser inacessível a gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> pessoas, ou porque as pessoas não<br />

têm tempo para apren<strong>de</strong>r a fazê-lo, ou porque simplesmente não o sabem.<br />

Gell lembra que há uma série <strong>de</strong> rituais mágicos, narra<strong>do</strong>s por<br />

Mali<strong>no</strong>wski, que acompanhavam a feitura das esculturas das proas –<br />

como as canções entoadas pelos proprietários das ca<strong>no</strong>as – e sobre essa<br />

informação construiu sua argumentação.<br />

Caminhan<strong>do</strong> através <strong>do</strong>s conceitos <strong>de</strong> técnica <strong>de</strong> encantamento e<br />

encantamento da técnica, propostos por Gell, po<strong>de</strong>mos compreen<strong>de</strong>r,<br />

em parte, por que as ações <strong>de</strong> Pai Gavião seduziram as pessoas e, <strong>de</strong>sta<br />

forma, o que as seduzia. Quais os elementos que aquela socieda<strong>de</strong> construíra<br />

para que Pai Gavião pu<strong>de</strong>sse ter sucesso em sua sedução? O que<br />

diziam as ações mágicas <strong>de</strong> Pai Gavião, narradas pelo jornalista, sobre<br />

a socieda<strong>de</strong>?<br />

José Cabinda dava voz à entida<strong>de</strong> espiritual que falava aos escravos<br />

sobre insurreições para matar to<strong>do</strong>s os brancos da região. Falava<br />

disso <strong>no</strong>s encontros mágico-religiosos, presencia<strong>do</strong>s por membros das<br />

elites locais. Suas palavras tocavam em um <strong>do</strong>s maiores me<strong>do</strong>s da boa<br />

socieda<strong>de</strong> imperial na época, isto é, a ocorrência <strong>de</strong> insurreições nas<br />

áreas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> concentração <strong>de</strong> escravos. 48 Essa mesma elite local levou<br />

José Cabinda para um interrogatório, com gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> expecta<strong>do</strong>res.<br />

Permitiu que ele, aliás, Pai Gavião, como foi chama<strong>do</strong>, recebesse<br />

e manipulasse os “objetos <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong>” para provar seu po<strong>de</strong>r,<br />

publicamente e em um recinto que representava o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.<br />

Para que ele não conseguisse isso, segun<strong>do</strong> o jornalista, uma trapaça foi<br />

forjada por pessoas que estavam <strong>no</strong> local, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que Pai Gavião<br />

errasse o lugar on<strong>de</strong> estava o objeto escondi<strong>do</strong>. Membros da própria<br />

classe senhorial <strong>de</strong>monstraram acreditar <strong>no</strong>s po<strong>de</strong>res <strong>de</strong> Pai Gavião,<br />

mas não queriam que eles fossem comprova<strong>do</strong>s para a platéia que as-<br />

48 Sobre esse me<strong>do</strong>, ver Carlos Eugênio Líba<strong>no</strong> Soares & Flávio <strong>do</strong>s Santos Gomes, “‘Com o pé<br />

sobre um vulcão’: africa<strong>no</strong>s minas, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e a repressão antiafricana <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

(1830-1840)” Estu<strong>do</strong>s Afro-Asiáticos, a<strong>no</strong> 23, n o 2 (2001), pp. 335-78, e “Em busca <strong>de</strong> um<br />

“risonho futuro”: seduções, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e comunida<strong>de</strong>s em fugas <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro escravista<br />

(séc. XIX)”, Locus, v. 7, n o 2 (2001), pp. 9-28.<br />

Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244 239


sistia ao interrogatório. Talvez a idéia fosse evitar o alastramento da<br />

crença <strong>de</strong> que ele realmente estaria encorajan<strong>do</strong> os Filhos das Trevas a<br />

fazerem a tal gran<strong>de</strong> insurreição. Pai Gavião seduzia as pessoas porque<br />

elas acreditavam em seus po<strong>de</strong>res, po<strong>de</strong>res esses <strong>de</strong> manipular objetos<br />

específicos para outras finalida<strong>de</strong>s <strong>no</strong>s rituais mágicos, conferin<strong>do</strong>-lhes<br />

<strong>no</strong>vos significa<strong>do</strong>s – cor<strong>no</strong> <strong>de</strong> boi, espelho, punhal, imagem <strong>de</strong> Santo<br />

Antonio, ervas, aguar<strong>de</strong>nte, etc. – os quais discutiremos <strong>no</strong>utra oportunida<strong>de</strong>.<br />

Mauss & Hubert argumentaram que a força mágica torna possível<br />

a crença na magia. Trata-se da idéia <strong>de</strong> que o objeto <strong>de</strong> uma crença<br />

permite a crença em uma ação <strong>de</strong> eficácia mágica, prática para os interesses<br />

das pessoas. Esses autores <strong>de</strong>monstraram que a crença nesta força<br />

é uma condição <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> para que certos fenôme<strong>no</strong>s ocorram;<br />

preocuparam-se em compreen<strong>de</strong>r as relações entre magia e emoções.<br />

Para eles, o que garante a força da magia é a crença coletiva na<br />

sua eficácia. A palavra mágica só funciona porque se acredita na autorida<strong>de</strong><br />

daquele que a enuncia, e essa crença é sustentada por motivos<br />

socialmente constituí<strong>do</strong>s. O perfil social <strong>de</strong> José Cabinda era forma<strong>do</strong><br />

por duas características centrais, para sustentar a crença da elite local<br />

<strong>de</strong> que ele dava voz a Pai Gavião, e aos seus po<strong>de</strong>res mágicos: ser alguém<br />

liga<strong>do</strong> à África e planejar insurreições através <strong>do</strong> uso <strong>de</strong> forças<br />

mágicas. Mauss & Hubert mostraram como a magicização <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

sempre vem acompanhada <strong>de</strong> uma formalização das situações – como<br />

os rituais ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res <strong>de</strong> Pai Gavião, por exemplo, e <strong>do</strong>s que<br />

foram ao me<strong>no</strong>s cita<strong>do</strong>s pelos <strong>do</strong>cumentos consulta<strong>do</strong>s acerca <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais<br />

casos <strong>de</strong>sse artigo.<br />

Não <strong>de</strong>vemos pensar em Pai Gavião como um charlatão, nem em<br />

nenhum <strong>do</strong>s outros acusa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong>, <strong>no</strong> senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> ser um falso<br />

mágico. Como mostraram Mauss & Hubert, a figura <strong>do</strong> “charlatão”, tal<br />

como a <strong>do</strong> mágico, também é construída socialmente e o que a caracteriza<br />

é o seu não reconhecimento social para ser mágico – é apenas um<br />

candidato falho a mágico. Ele não consegue agir para produzir magia,<br />

ou seja, não é mágico quem quer. Por isso, José Cabinda não po<strong>de</strong> ser<br />

enquadra<strong>do</strong> nesta categoria acusatória – charlatão. Ele não foi questiona<strong>do</strong><br />

pelas autorida<strong>de</strong>s locais, mas sim leva<strong>do</strong> preso e testa<strong>do</strong> para que<br />

240 Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244


elas, possivelmente, pu<strong>de</strong>ssem tranqüilizar parte da população local<br />

sobre o fato <strong>de</strong> que ele não tinha po<strong>de</strong>res mágicos eficazes, muito me<strong>no</strong>s<br />

forças espirituais capazes <strong>de</strong> organizar alguma insurreição. Talvez<br />

as autorida<strong>de</strong>s locais quisessem <strong>de</strong>monstrar para os escravos como elas<br />

conseguiram ter agilida<strong>de</strong> para se antecipar à prometida insurreição e<br />

controlar até os elementos mágicos envolvi<strong>do</strong>s em seu planejamento,<br />

através da prisão e <strong>do</strong> interrogatório <strong>de</strong> Pai Gavião. José Cabinda foi<br />

posto na condição <strong>de</strong> charlatão, mas não era um falso-mágico. Ele não<br />

estava prometen<strong>do</strong> algo em que as pessoas <strong>de</strong>sacreditassem que po<strong>de</strong>ria<br />

cumprir.<br />

As <strong>no</strong>tícias acerca <strong>de</strong> Pai Gavião mostram <strong>de</strong>talhadamente como<br />

ele usava os objetos rituais <strong>de</strong> sua magia, o ambiente físico on<strong>de</strong> ocorriam<br />

e as suas so<strong>no</strong>rida<strong>de</strong>s. Aqueles objetos eram típicos, pela narrativa,<br />

familiares aos cultos e estavam à vista <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os que <strong>de</strong>le participavam.<br />

Po<strong>de</strong>mos dizer que <strong>no</strong>s <strong>de</strong>paramos com o que Edmund Leach<br />

chamou <strong>de</strong> “qualida<strong>de</strong> dual <strong>do</strong>s tipos simbólicos”, com seus <strong>do</strong>is aspectos:<br />

o aspecto priva<strong>do</strong>, isto é, o que provoca alterações <strong>no</strong> esta<strong>do</strong><br />

emocional <strong>do</strong> ator, e o aspecto público, isto é, aquele que diz algo sobre<br />

seu esta<strong>do</strong> emocional. 49 Para o jornalista <strong>do</strong> Correio Paulista<strong>no</strong>, os escravos<br />

Filhos das Trevas e <strong>de</strong>mais pessoas que assistiam às reuniões<br />

conduzidas por Pai Gavião, suas palavras eram proferidas em um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong><br />

ambiente, dia, horário, clima específico fora da vida cotidiana<br />

<strong>do</strong> trabalho diário nas fazendas, <strong>do</strong> comércio local e <strong>de</strong> alguns serviços<br />

públicos. Os envolvi<strong>do</strong>s nas reuniões e Pai Gavião compartilhavam,<br />

em alguma medida, <strong>de</strong> uma linguagem simbólica comum, linguagem<br />

essa que transbor<strong>do</strong>u <strong>do</strong>s encontros rituais para um prédio público – a<br />

<strong>de</strong>legacia <strong>de</strong> Itu.<br />

Mas tu<strong>do</strong> isso ocorria porque Pai Gavião e aqueles que participavam<br />

<strong>do</strong>s rituais comunicavam-se através <strong>de</strong> uma simbologia básica <strong>do</strong>s<br />

usos <strong>do</strong>s objetos, das palavras e <strong>do</strong> corpo, <strong>do</strong>s cheiros, <strong>do</strong> tom <strong>de</strong> voz,<br />

da lumi<strong>no</strong>sida<strong>de</strong>, dispon<strong>do</strong>-se a se encontrar <strong>no</strong>s locais, <strong>no</strong>s dias e <strong>no</strong>s<br />

horários estipula<strong>do</strong>s. As pessoas sentiam-se atraídas para as reuniões,<br />

49 Edmund Leach, “Cabelo mágico”, in Edmund Leach (textos seleciona<strong>do</strong>s e organiza<strong>do</strong>s por<br />

Roberto Da Matta) Col. Gran<strong>de</strong>s Cientistas Sociais, n o 38 (São Paulo, Ática, 1983), pp. 139-59.<br />

Para tais <strong>de</strong>finições, cf. p. 140.<br />

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pelos motivos mais diversos. Quan<strong>do</strong> esses motivos estavam liga<strong>do</strong>s<br />

ao planejamento e à execução <strong>de</strong> insurreições, usan<strong>do</strong> po<strong>de</strong>res mágicos<br />

para isso, membros da classe senhorial investigavam as <strong>de</strong>núncias.<br />

Quan<strong>do</strong> a magia estava contra aqueles membros, quan<strong>do</strong> era usada para<br />

lhes causar o mal, era vista como <strong>feitiçaria</strong> e seus praticantes, acusa<strong>do</strong>s<br />

<strong>de</strong> serem feiticeiros.<br />

Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

A crença <strong>no</strong> feitiço perpassava todas as condições sociais, como constatamos<br />

na “correspondência reservada” <strong>de</strong> ministros da justiça e chefes<br />

<strong>de</strong> polícia, bem como em <strong>no</strong>tícias na imprensa, <strong>no</strong> Império <strong>do</strong> Brasil.<br />

A cada <strong>do</strong>cumento que encontramos sobre feitiços e “reuniões para<br />

fins ocultos”, recuávamos ainda mais <strong>no</strong> tempo, marca<strong>do</strong> pelo estu<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> Maggie. 50 Sua preocupação foi conhecer e analisar os critérios e os<br />

procedimentos utiliza<strong>do</strong>s na aplicação das leis que legitimaram a crença<br />

na <strong>feitiçaria</strong>, segun<strong>do</strong> o Código Penal <strong>de</strong> 1890. Procuramos <strong>de</strong>monstrar<br />

como a crença na <strong>feitiçaria</strong>, na Luso-América, minuciosamente<br />

<strong>do</strong>cumentada por Mello e Souza, se manteve após a emancipação política<br />

em relação ao território português, em 1822. 51 O fato <strong>de</strong> se constituir<br />

em um corpo burocrático e jurídico distinto <strong>do</strong> da antiga metrópole<br />

não implicou que os homens que lutavam pelo po<strong>de</strong>r <strong>no</strong> Império <strong>do</strong><br />

Brasil, ao re<strong>do</strong>r <strong>de</strong> seu monarca Pedro, legitimassem os efeitos <strong>do</strong>s feitiços<br />

na vida social da <strong>no</strong>va nação civilizada.<br />

Não houve <strong>no</strong> Império <strong>do</strong> Brasil, segun<strong>do</strong> <strong>no</strong>ssas pesquisas, lei<br />

alguma <strong>de</strong> supressão, combate ou proibição da <strong>feitiçaria</strong>. Não houve,<br />

muito me<strong>no</strong>s, lei alguma que julgasse e <strong>de</strong>terminasse como atitu<strong>de</strong> crimi<strong>no</strong>sa<br />

algum tipo <strong>de</strong> acusação <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong>. Para além <strong>de</strong> algumas <strong>no</strong>tícias<br />

sobre ditos “feiticeiros” que saíram <strong>no</strong>s jornais <strong>do</strong> Império, há<br />

<strong>do</strong>cumentos “reserva<strong>do</strong>s” e “confi<strong>de</strong>nciais” na correspondência entre<br />

autorida<strong>de</strong>s sobre casos <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong> por elas leva<strong>do</strong>s a sério. Tanto assim<br />

que presi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro e ministros da justiça<br />

mandavam apurar tais casos, nunca duvidan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res <strong>do</strong>s “fei-<br />

50 Maggie, Me<strong>do</strong> <strong>do</strong> feitiço.<br />

51 Mello e Souza, O Diabo e a Terra <strong>de</strong> Santa Cruz.<br />

242 Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244


tiços”, nem mesmo <strong>do</strong>s “feiticeiros” <strong>no</strong> meio da escravaria. Isso levou<strong>no</strong>s<br />

a pensar que a crença <strong>do</strong>s escravos também pertencia, <strong>de</strong> certa forma,<br />

ao meio da elite imperial.<br />

No Brasil, significativos segmentos da classe senhorial e escravos,<br />

libertos e africa<strong>no</strong>s livres acreditavam na <strong>feitiçaria</strong>, <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong><br />

linguagens socialmente compartilhadas acerca <strong>de</strong>sta crença, bem<br />

como sobre acusação <strong>de</strong> fatos provoca<strong>do</strong>s por feitiços ou pessoas acusadas<br />

<strong>de</strong> praticarem <strong>feitiçaria</strong>. As insurreições <strong>escravas</strong> juntamente com<br />

a crença <strong>de</strong> membros da elite na <strong>feitiçaria</strong> abriam a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

diálogos conflituosos entre to<strong>do</strong>s aqueles agentes sociais, fato que os<br />

escravos reconheciam através <strong>de</strong> reivindicações bastante específicas,<br />

muitas vezes.<br />

Texto recebi<strong>do</strong> em 28/09/07, reapresenta<strong>do</strong> em 07/03/08 e aprova<strong>do</strong><br />

em 30/11/08<br />

Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244 243


Resumo<br />

Este artigo é resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> sobre a crença na <strong>feitiçaria</strong> <strong>no</strong> Império <strong>do</strong><br />

Brasil. Nossa pesquisa mostrou que não existiam leis regula<strong>do</strong>ras das acusações<br />

<strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong> <strong>no</strong> Império, ao contrário da colônia e <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> republica<strong>no</strong>.<br />

Vários tipos <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos da época <strong>no</strong>s ajudaram a <strong>de</strong>monstrar, <strong>no</strong> entanto,<br />

que a crença <strong>no</strong> feitiço, <strong>no</strong> Império <strong>do</strong> Brasil, assim como na República,<br />

perpassava todas as classes sociais. Analisamos casos paradigmáticos para<br />

<strong>de</strong>svendar o sistema <strong>de</strong> crenças mágico-religiosas. Os casos se referem a <strong>no</strong>tícias<br />

<strong>de</strong> jornal sobre uma argüição <strong>de</strong> um personagem chama<strong>do</strong> Pai Gavião, um<br />

espírito que falava através <strong>de</strong> um escravo africa<strong>no</strong> emSão Paulo, e <strong>do</strong>cumentos<br />

oficiais da administração <strong>do</strong> Império <strong>no</strong> Su<strong>de</strong>ste.<br />

Palavras-chave: acusações <strong>de</strong> <strong>feitiçaria</strong> – antropologia das religiões<br />

afro-brasileiras – antropologia da escravidão<br />

Abstract<br />

This paper is based upon a study on witchcraft beliefs in the Empire of Brazil.<br />

Our research showed that there was <strong>no</strong> legislation ruling over witchcraft<br />

accusations during Imperial times, unlike Colonial and Republican periods.<br />

Still, several kinds of contemporary <strong>do</strong>cuments helped us to <strong>de</strong>monstrate that<br />

un<strong>de</strong>r the Empire, as well as later on, un<strong>de</strong>r Republican governments, the<br />

belief in witchcraft perva<strong>de</strong>d all social classes. Paradigmatic cases were<br />

analyzed in or<strong>de</strong>r to unravel this magic-religious system of belief. Cases<br />

presented here regard newspaper stories about the hearings of a character<br />

called “Pai Gavião” (“Father Hawk”), a spirit who spoke through the mouth<br />

of an African slave in São Paulo, as well as <strong>do</strong>cuments produced by Imperial<br />

officers in Southwestern Brazil.<br />

Keywords: witchcraft accusations – Anthropology of Afro-Brazilian religions<br />

– Anthropology of slavery<br />

244 Afro-Ásia, 38 (2008), 211-244

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