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Regência de Ossos - Marcelo Paschoalin

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<strong>Marcelo</strong> <strong>Paschoalin</strong><br />

2012


Copyright ©2012 <strong>Marcelo</strong> <strong>Paschoalin</strong><br />

Todos os direitos reservados. É proibido o<br />

armazenamento ou a reprodução <strong>de</strong> qualquer<br />

parte <strong>de</strong>sta obra, qualquer que seja a<br />

forma utilizada – tangível ou intangível –,<br />

sem o consentimento escrito do autor.<br />

Impresso no Brasil pela Editora Modo –<br />

http://www.modoeditora.com.br


Para Patty,<br />

sem a qual este livro<br />

jamais teria sido escrito


Prefácio<br />

Um mundo novo a <strong>de</strong>scobrir...<br />

O mundo da fantasia tem uma magia singular<br />

<strong>de</strong> nos fazer viajar e viver aventuras, <strong>de</strong> nos levar a<br />

conhecer novos universos e compartilhar momentos<br />

com personagens incríveis, que refletem nossas próprias<br />

chamas imaginativas...<br />

Foi com essa chama acesa que a<strong>de</strong>ntrei no universo<br />

criado por <strong>Marcelo</strong> <strong>Paschoalin</strong> e conheci suas<br />

personagens e caminhei com elas.<br />

Conheci um novo mundo no qual as <strong>de</strong>scobertas<br />

<strong>de</strong> Alexia sobre sua própria força e seu <strong>de</strong>stino dão


um colorido e um calor especial a uma aventura<br />

vinda diretamente dos reinos da fantasia.<br />

Como disse uma vez Mitalzar: ...Não é porque<br />

se conhece a sombra que se po<strong>de</strong> dizer<br />

que domina a luz. E trilhando por caminhos<br />

ora iluminados, ora sombrios, conhecemos uma<br />

história empolgante, cheia <strong>de</strong> magia e temperada<br />

com muito suspense, ação e terror.<br />

<strong>Marcelo</strong>, como criador <strong>de</strong>sse universo, oferece<br />

um sopro <strong>de</strong> vida sobre personagens fantásticos e<br />

nos garante uma excelente diversão!<br />

Boa leitura! Boa viagem!<br />

Simone O. Marques


Tomo I


Prelúdio<br />

— ALEXIA, FICA AQUI!<br />

A jovem segurava a flor que ele acabara <strong>de</strong><br />

lhe entregar, olhando com receio enquanto seu<br />

irmão se afastava rapidamente. Tinham ouvido<br />

gritos <strong>de</strong> socorro, apelos <strong>de</strong>sesperados, e Ale-<br />

xia temia pelo que po<strong>de</strong>ria acontecer…<br />

Principalmente agora que ele já sumia além da<br />

curva, fugindo <strong>de</strong> sua vista com a arma em<br />

punho.<br />

— Eron!<br />

O grito ainda infantil da garota enfraquecia<br />

como sua mão, <strong>de</strong>rrubando a flor no momen-


to em que hesitou, antes <strong>de</strong> tentar alcançá-lo.<br />

Sabia que po<strong>de</strong>ria ser perigoso, mas não o <strong>de</strong>i-<br />

xaria enfrentar o que quer que houvesse ali,<br />

sozinho. Os apelos, porém, continuavam, cada<br />

vez mais fortes, como se não pu<strong>de</strong>ssem per<strong>de</strong>r<br />

um segundo que fosse…<br />

Mas Alexia estacou. Ali, do alto do cami-<br />

nho, viu o viajante solitário que estava sendo<br />

atacado por duas… Criaturas.<br />

Não eram pessoas, não mais. Mesmo <strong>de</strong><br />

longe, a jovem notava as vestes puídas, as<br />

mãos <strong>de</strong>scarnadas, a aura <strong>de</strong> podridão. Levan-<br />

do a mão à boca, assustada, via pela primeira<br />

vez a ameaça que Eron sempre dissera que<br />

<strong>de</strong>veria ser combatida…<br />

Eram mortos-vivos.


As criaturas <strong>de</strong>smortas já cercavam o via-<br />

jante que, com uma árvore às costas, tentava<br />

se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r com o cajado que carregava. Ele<br />

não conseguiria resistir por muito mais tempo.<br />

— Eron!<br />

O grito <strong>de</strong> Alexia se per<strong>de</strong>u no ar enquan-<br />

to seu irmão saltava sobre um dos mortos-<br />

vivos com a espada em riste. O golpe <strong>de</strong>rru-<br />

bou o <strong>de</strong>smorto e fez com que o outro<br />

cessasse temporariamente o ataque, virando-se<br />

para confrontar o jovem combatente, permi-<br />

tindo que o viajante tivesse um momento <strong>de</strong><br />

alívio.<br />

Os golpes com o punho da espada puse-<br />

ram a criatura fora <strong>de</strong> ação a tempo <strong>de</strong><br />

conseguir se erguer, antes que o outro morto-


vivo estivesse próximo <strong>de</strong>mais. Alexia come-<br />

çou a <strong>de</strong>scer a trilha, querendo ajudar <strong>de</strong><br />

alguma maneira, mesmo sem carregar arma<br />

alguma, orando em silêncio para que os oito<br />

<strong>de</strong>uses protegessem seu irmão.<br />

O viajante recuou, tomado <strong>de</strong> pavor. Via o<br />

morto-vivo se aproximar <strong>de</strong> seu salvador, mas<br />

não conseguia agir. O cajado, já com a ponta<br />

partida por ter sido usado em sua <strong>de</strong>fesa, caía<br />

<strong>de</strong> suas mãos, rolando pelo chão, inofensivo.<br />

Mãos <strong>de</strong>scarnadas atacavam e Eron se es-<br />

quivava. Sua espada dançou por mais <strong>de</strong> uma<br />

vez, a lâmina se chocando contra ossos, arran-<br />

cando lascas que pareciam não afetar em nada<br />

o <strong>de</strong>smorto. Um passo para trás, outra investi-


da, mas a criatura era mais forte do que julgara<br />

a princípio.<br />

Foi então que Alexia tomou o cajado e o<br />

arremessou. Agia mais por impulso do que por<br />

experiência, pois somente tinha ouvido falar<br />

dos ataques da Necrópole até então. Eram his-<br />

tórias que seu irmão lhe contava. Ao menos,<br />

até aquele fim <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>, tinham sido apenas<br />

histórias.<br />

Fazendo uma parábola enquanto girava<br />

sobre si mesmo, o cajado atingiu o morto-vivo<br />

pelas costas. O golpe fez com que ele se viras-<br />

se, sua face distorcida numa expressão <strong>de</strong> raiva<br />

mesmo sem possuir olhos que pu<strong>de</strong>ssem con-<br />

templá-la. Alexia ficou imóvel, não sabendo<br />

como reagir, e isso <strong>de</strong>u o tempo necessário


para que a criatura marchasse em sua direção,<br />

braços erguidos, mãos em forma <strong>de</strong> garras…<br />

Até que Eron golpeou com a parte chata<br />

<strong>de</strong> sua lâmina, secamente, atingindo o crânio<br />

do <strong>de</strong>smorto com tal força que a cabeça se<br />

<strong>de</strong>spren<strong>de</strong>u. A espada, agora amassada, era<br />

inútil, mas a criatura não mais representava<br />

uma ameaça, tombando inerte no chão, seus<br />

ossos per<strong>de</strong>ndo a força que os mantinham u-<br />

nidos. Aquilo havia acabado.<br />

— Eu disse para ficares lá em cima, Alexia!<br />

— o grito era <strong>de</strong> repreensão, mas o sentimen-<br />

to era <strong>de</strong> alívio. — Eu jamais me perdoaria se<br />

algo acontecesse contigo!<br />

Ela olhou para seu irmão com a cabeça<br />

abaixada, observando os cortes que as criatu-


as tinham feito na túnica <strong>de</strong>le. Sua pele tam-<br />

bém tinha ferimentos, mas eram superficiais,<br />

não representando perigo algum. Contudo,<br />

aquilo havia sido o suficiente para que a jovem<br />

começasse a chorar.<br />

Eron <strong>de</strong>u um breve suspiro e largou a ar-<br />

ma no chão, abraçando-a. Aquele gesto <strong>de</strong><br />

carinho conseguiu conter parte das lágrimas.<br />

— És importante <strong>de</strong>mais para mim, Alexia,<br />

para que te arrisques. Ainda mais com a Ne-<br />

crópole ousando chegar tão perto…<br />

— O-Obrigado… — o viajante saiu <strong>de</strong><br />

trás da árvore, ainda cauteloso e olhando con-<br />

tinuamente para as duas pilhas <strong>de</strong> ossos. — Se<br />

não fosse por vós…


— Não nos agra<strong>de</strong>ça, senhor…? — Eron<br />

ergueu a cabeça, apertando sua irmã, como se<br />

<strong>de</strong>sejasse protegê-la ainda mais.<br />

— Niesek. Sou um mascate em viagem pa-<br />

ra Amberlon.<br />

— Nem os caminhos para o baronato es-<br />

tão seguros, Niesek.<br />

— On<strong>de</strong> estão os que patrulham as estra-<br />

das? — perguntou o mascate, procurando algo<br />

em uma bolsa <strong>de</strong> couro. — É certo que a<br />

Guarda Real…<br />

— É certo que ela nos abandonou. — in-<br />

terrompeu Eron. — Assim como a milícia do<br />

baronato. Viajar sozinho é perigoso <strong>de</strong>mais…<br />

— Tive a sorte <strong>de</strong> te ter como meu salva-<br />

dor. Toma… — o mascate ofereceu-lhe


algumas moedas <strong>de</strong> ouro. — É o mínimo que<br />

posso fazer…<br />

— Guarda teu dinheiro, Niesek. Agra<strong>de</strong>ço<br />

tua generosida<strong>de</strong>, mas o que quero é um lugar<br />

seguro para mim e minha irmã. — ele a libe-<br />

rou do abraço, colocando-a ao seu lado, ainda<br />

com a mão sobre seu ombro. — E, se para<br />

isso, tiver <strong>de</strong> tomar das armas, eu o farei…<br />

— Eron, é perigoso…<br />

— Eu sei, Alexia. Mas alguém precisa fa-<br />

zer algo.<br />

Niesek colocou as moedas numa sacola<br />

pequena <strong>de</strong> pano e a jogou na direção <strong>de</strong> Eron<br />

que, por reflexo, segurou-a.


— Não conseguirás nada sozinho, jovem.<br />

Usa o dinheiro e convence outros à tua causa.<br />

Talvez, juntos, conseguireis o que <strong>de</strong>sejas.


1<br />

— ABR AM CAMINHO!<br />

Ele atravessava os corredores com a mis-<br />

siva em mãos, sabendo o que nela havia,<br />

balançando a cabeça em <strong>de</strong>sgosto. Sabia o ris-<br />

co a que o reino estava submetido, mas tinha<br />

certeza <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>riam lidar com isso…<br />

Mesmo que tivessem <strong>de</strong> ensinar ao barão suas<br />

verda<strong>de</strong>iras priorida<strong>de</strong>s.<br />

— Abram caminho! — repetiu. — Isto<br />

não po<strong>de</strong> esperar!


Os dois guardas diante das largas portas <strong>de</strong><br />

carvalho não se mexeram, mantendo as lanças<br />

cruzadas, impedindo a passagem.<br />

— Eu preciso…<br />

— Tuas razões po<strong>de</strong>m esperar. — o da di-<br />

reita não virou o rosto para encará-lo. — Sua<br />

Majesta<strong>de</strong> está orando e não será interrompida.<br />

— Tolo! Trago comigo notícias que são <strong>de</strong><br />

suma importância para o reino <strong>de</strong> Dunir. Rai-<br />

nha Caehlis precisa me receb…<br />

A frase foi interrompida pelo abrir da por-<br />

ta, o que fez com que os dois guardas <strong>de</strong><br />

imediato colocassem suas armas ao lado do<br />

corpo, em respeito e atenção. Das sombras,<br />

fugazmente iluminada por velas ainda acessas,<br />

ela surgiu.


— Eu preciso fazer o quê?<br />

A voz macia, embora autoritária, fruto dos<br />

anos com a coroa sobre a fronte, fez com que<br />

o mensageiro pusesse um dos joelhos ao chão,<br />

cabeça baixa, olhos fixos na sombra da rainha,<br />

sem ousar encará-la ainda. Ele havia aprendido<br />

a respeitá-la e, apesar <strong>de</strong> tê-la servido por tão<br />

pouco tempo, sabia que havia feito a escolha<br />

errada <strong>de</strong> palavras.<br />

— Perdão, Majesta<strong>de</strong>, eu não ousaria dizer<br />

o que precisais ou não fazer. Isso não se repe-<br />

tirá.<br />

Caehlis sorriu, esten<strong>de</strong>ndo-lhe a mão com<br />

gentileza. A rainha sabia da importância <strong>de</strong><br />

bons mensageiros e… Qual era mesmo o nome


<strong>de</strong>le?… O que importava era ser ele um bom<br />

mensageiro.<br />

— Quais as notícias que trazes?<br />

Ele se ergueu, mal tocando na mão esten-<br />

dida, e <strong>de</strong>u um passo para o lado. A rainha<br />

principiou a andar e ele a acompanhou, sem-<br />

pre um passo atrás, sem questionar. Afinal,<br />

sabia, seria ela quem perguntaria…<br />

— Há um núcleo dissi<strong>de</strong>nte em Dunir,<br />

Vossa Majesta<strong>de</strong>. Sua força tem aumentado<br />

nas últimas semanas.<br />

— On<strong>de</strong>? — sibilou a monarca.<br />

— Em Amberlon, minha senhora. Estão<br />

no coração do nosso reino.<br />

ele.<br />

Ela estacou <strong>de</strong> imediato, virando-se para


— Nosso, criatura?<br />

— Vosso reino, Majesta<strong>de</strong>. — ele engoliu<br />

em seco. — Sou apenas vosso servo.<br />

— E é bom que saibas disso se <strong>de</strong>sejares<br />

continuar a me servir. — ela continuou a ca-<br />

minhar, ainda sorrindo. — Creio que Velusius<br />

tem lidado com a ameaça, não?<br />

Limpando o suor do rosto e se movendo<br />

rápido para acompanhá-la, o mensageiro me-<br />

diu bem as palavras — era pru<strong>de</strong>nte saber a<br />

maneira <strong>de</strong> dar as más notícias.<br />

— Vossa Majesta<strong>de</strong> sabe que o barão Ve-<br />

lusius, <strong>de</strong> Amberlon, tem a Guilda <strong>de</strong> Ladrões<br />

como preocupação principal, o que faz com<br />

que assuntos importantes assim sejam… Rele-<br />

gados.


A rainha ficou em silêncio, pon<strong>de</strong>rando<br />

acerca do assunto. Sim, aquele era um assunto<br />

importante <strong>de</strong>mais para ser <strong>de</strong>ixado nas mãos<br />

<strong>de</strong> um velho que temia ladrões a ponto <strong>de</strong><br />

consi<strong>de</strong>rá-los pertencentes a uma Guilda, co-<br />

mo se tivessem or<strong>de</strong>namentos ou mesmo<br />

estrutura. Ainda mais um barão! Um barão<br />

que nunca <strong>de</strong>ixara a quietu<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus domínios<br />

para prestar uma única homenagem sequer na<br />

Corte. Nesses momentos tinha vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> re-<br />

ver toda a Carta Nobiliárquica e <strong>de</strong>stituir<br />

aqueles que não apoiassem o reino, por mais<br />

que a tradição <strong>de</strong>vesse ser respeitada. Uma tra-<br />

dição que po<strong>de</strong>ria se tornar apenas uma<br />

lembrança se as ameaças ao reino não fossem<br />

contidas.


go…<br />

— É certo, minha rainha, que se faça al-<br />

ra isso.<br />

Ela não mais sorria. Não havia motivo pa-<br />

— Sim, criatura, algo precisa ser feito. Mas<br />

não ousa presumir que sabes como lidar com<br />

tais assuntos… Mesmo que a situação em<br />

Amberlon possa ser resolvida naturalmente<br />

com o passar do tempo, manda a Guarda Real.<br />

Eles lidarão com os dissi<strong>de</strong>ntes.<br />

Rabiscando num pergaminho a vonta<strong>de</strong> da<br />

rainha, o mensageiro ainda ousou uma última<br />

pergunta.<br />

— E quais as or<strong>de</strong>ns, minha rainha?<br />

— Mate-os. — os olhos <strong>de</strong> Caehlis brilha-<br />

ram. — Mate todos eles.


2<br />

— TENS MESMO DE IR , ERON?<br />

O jovem a encarou com um jeito terno,<br />

parando junto à porta entreaberta, seus olhos<br />

escuros como o abraço da noite sobre o dia.<br />

— Alguém tem <strong>de</strong> fazê-lo, Alexia. En-<br />

quanto ficarmos parados, a Necrópole vai<br />

continuar crescendo.<br />

— Isso é coisa para a Guarda resolver, ir-<br />

mão. Não vá… — ela fez uma pausa. — Não<br />

hoje.<br />

Eron fechou a porta e se aproximou, sen-<br />

tando-se ao seu lado. Com um gesto simples,


tirou os cabelos escuros da frente dos olhos<br />

<strong>de</strong>la.<br />

— Eu não me esqueci do dia <strong>de</strong> hoje, Ale-<br />

xia. Sei que agora tens <strong>de</strong>zesseis primaveras,<br />

mas tenho as minhas obrigações. Eles preci-<br />

sam <strong>de</strong> mim lá… — houve uma pausa breve.<br />

— Além disso, tens tuas obrigações com Lady<br />

Janet.<br />

Ela balançou a cabeça em negativa, o sor-<br />

riso que tentava surgir não rompendo a<br />

preocupação <strong>de</strong> sua face.<br />

— Não hoje. Não por alguns dias. Ela via-<br />

jou para Polanty.<br />

— Sem as damas <strong>de</strong> companhia? — Eron<br />

<strong>de</strong>u uma risada rápida e inquiridora. — Não<br />

queres que eu acredite…


Alexia abaixou a cabeça, fazendo um bico,<br />

o que o calou. Não tinha <strong>de</strong> ser daquele jeito.<br />

Ainda mais ele.<br />

a…<br />

— Desculpa, minha irmã… Eu não queri-<br />

— Sabes que não minto, Eron. Nunca<br />

menti. Não seria agora…<br />

— Eu sei… — ele a abraçou ternamente,<br />

inclinando seu corpo para junto do <strong>de</strong>la. —<br />

Eu sei. Peço-te <strong>de</strong>sculpas… Só achei estranho<br />

ela viajar para tão longe sem ter quem a acom-<br />

panhasse.<br />

— As outras foram. — Alexia levantou a<br />

cabeça, ainda um pouco casmurra. — Lady<br />

Janet <strong>de</strong>ixou que eu ficasse para comemorar<br />

esta data contigo.


— Voltarei logo…<br />

— Eu preciso <strong>de</strong> ti agora, não <strong>de</strong>pois.<br />

Deixa que eu vá contigo, então…<br />

— Não. — ele se ajeitou antes <strong>de</strong> se er-<br />

guer. — Alexia, quanto menos souberes, mais<br />

protegida estarás. Eu sei o risco que corremos<br />

ao agirmos assim, às escondidas. Se o barão<br />

não faz nada, nem mesmo a rainha, cabe a nós<br />

garantirmos um pouco <strong>de</strong> paz… Mas não so-<br />

mos loucos a ponto <strong>de</strong> encararmos a<br />

Necrópole sozinhos… Estamos quase <strong>de</strong>ci-<br />

dindo como levaremos à rainha Caehlis nossas<br />

reivindicações. É só o que posso te dizer agora.<br />

ron…<br />

— Mas o barão é um bom homem, E-<br />

— Sem mas, irmãzinha. Eu volto à tar<strong>de</strong>.


E, num suspiro entrecortado, viu Eron<br />

<strong>de</strong>ixá-la… Assim como no dia anterior, e no<br />

dia antes daquele. As últimas semanas tinham<br />

sido assim, com reuniões cada vez mais fre-<br />

quentes, seu irmão retornando cada vez mais<br />

tar<strong>de</strong>… Ela sabia que as coisas estavam fican-<br />

do complicadas, mas era uma preocupação<br />

que não lhe cabia: se Eron jamais dividira seu<br />

fardo, como ousava ela carregá-lo? Não, a A-<br />

lexia restava o consolo dos <strong>de</strong>uses e nada mais.<br />

Ou, no caso, o consolo <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>usa.<br />

Tendo terminado os afazeres rotineiros,<br />

seguiu em direção à Praça dos Templos, uma<br />

construção octogonal nos arredores <strong>de</strong> Am-<br />

berlon, além da ponte <strong>de</strong> pedra. Ela sabia que


ali, sob os auspícios <strong>de</strong> Dalya, <strong>de</strong>usa da treva e<br />

cura, encontraria paz.<br />

Ela não conhecia outros lugares, tendo<br />

sempre vivido no baronato <strong>de</strong> Amberlon, mas<br />

isso não a impedia <strong>de</strong> admirar a Praça dos<br />

Templos como algo único: o caminho <strong>de</strong> pe-<br />

dra dava lugar à terra batida, culminando num<br />

largo relvado adornado <strong>de</strong> flores coloridas, um<br />

verda<strong>de</strong>iro jardim, um caleidoscópio <strong>de</strong> flora,<br />

circundado por oito construções baixas, cada<br />

uma com a estátua <strong>de</strong> um dos oito <strong>de</strong>uses di-<br />

ante da entrada. Era quase um mundo à parte<br />

da realida<strong>de</strong> profana em que o resto <strong>de</strong> Am-<br />

berlon estava inserido.<br />

Um mundo que Alexia via como seu.<br />

— A caminho do Templo?


A jovem envolta numa toga púrpura surgi-<br />

ra sem alar<strong>de</strong>, tendo apenas se anunciado com<br />

seu tom aveludado, aparecendo tão soturna-<br />

mente quanto a sombra que sua <strong>de</strong>usa<br />

projetava.<br />

— Para on<strong>de</strong> mais eu iria, Galea?<br />

— Haverá <strong>de</strong> chegar um dia, Alexia Ti-<br />

brass, em que tua jornada seja maior que o<br />

caminho entre tua casa e a casa <strong>de</strong> Dalya.<br />

— Até esse dia chegar, sacerdotisa, — a<br />

jovem <strong>de</strong> cabelos escuros sorriu. — terei <strong>de</strong><br />

me contentar com o que tenho.<br />

— Às vezes, acho que <strong>de</strong>sejas abraçar a<br />

vida sacerdotal, Alexia, mas sempre foste um<br />

enigma.


— Enigma é compreen<strong>de</strong>r o que há no<br />

mundo. Os <strong>de</strong>uses são simples <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r…<br />

— Tens estudado?<br />

Alexia riu.<br />

— Não, tenho vivido. Como os mortais<br />

são cada vez mais complexos, os <strong>de</strong>uses hão<br />

<strong>de</strong> ser simples…<br />

— Isso é… — Galea parou, olhando para<br />

cima, alertada por uma revoada <strong>de</strong> corvos. —<br />

Entra no Templo, Alexia. Algo errado está pa-<br />

ra acontecer.<br />

— O que viste?<br />

— Não há tempo. Anda! Agora!<br />

Diante do tom <strong>de</strong> urgência, a jovem <strong>de</strong> ca-<br />

belos escuros se apressou, atravessando as<br />

colunas sem olhar para trás. Galea nunca agira


daquele jeito, o que fatalmente indicava a seri-<br />

eda<strong>de</strong> da situação, mas Alexia confiava nela…<br />

E então, quase <strong>de</strong> repente, o marchar <strong>de</strong><br />

uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> cavalos rompeu o silêncio. A<br />

sacerdotisa entrou correndo.<br />

lon!<br />

— A Guarda Real! Eles estão em Amber-<br />

— Eu preciso avisar Eron! — Alexia arre-<br />

galara os olhos, preocupada. Se <strong>de</strong>scobrirem…<br />

— Sabes on<strong>de</strong> teu irmão está?<br />

— Eu o segui uma vez, há algum tempo…<br />

Acho que ainda sei on<strong>de</strong> é…<br />

— Achas? E o que preten<strong>de</strong>s, Alexia?<br />

Chegar lá antes <strong>de</strong> homens montados? E se<br />

não estiverem atrás <strong>de</strong> teu irmão?<br />

— Eu…


— Alexia, teu irmão sabe se cuidar.<br />

— Mas…<br />

— Eu sei. A Guarda Real não é a milícia.<br />

E rogo a Dalya para que teu irmão esteja sob<br />

seu manto.<br />

Alexia balançou a cabeça, olhando para a-<br />

lém das colunas do Templo.<br />

— Eu preciso avisá-lo. Ele faria o mesmo<br />

por mim, Galea.<br />

— Eu irei contigo. Mostra o caminho.<br />

Alexia assentiu, seguindo adiante, sem o-<br />

lhar para trás, atravessando a ponte <strong>de</strong> pedra e<br />

rumando para leste, cruzando ruas estreitas e<br />

vielas sujas. Galea ia logo atrás, segurando a<br />

toga para que pu<strong>de</strong>sse correr no mesmo ritmo<br />

que Alexia, orando em silêncio.


O chão <strong>de</strong> pedregulhos sob seus pés pare-<br />

cia fazer do caminho algo ainda mais longo<br />

enquanto seguiam, ouvindo ao longe a marcha<br />

dos cavalos. Alexia erguia a cabeça na direção<br />

do som, mor<strong>de</strong>ndo o lábio inferior ao reco-<br />

nhecer que a Guarda Real se aproximava da<br />

oficina <strong>de</strong> Barvolo, o ferreiro — local on<strong>de</strong><br />

sabia que Eron e os <strong>de</strong>mais se reuniam.<br />

Haveria tempo?


3<br />

— E U SEI O Q UE ISS O QUE R DIZER,<br />

Trina, mas não temos alternativa. — Eron o-<br />

lhava para os <strong>de</strong>mais, em pé sobre um caixote.<br />

— As novas taxas estão acabando conosco,<br />

mas qual a contrapartida? Ouvimos os rela-<br />

tos…<br />

— Rumores! — interrompeu Dorn, um<br />

dos mais velhos.<br />

— Não é porque não viste os mortos que<br />

andam que eles não existem! — Trina inter-<br />

veio novamente. — Faz semanas que não<br />

temos notícias <strong>de</strong> Verlak e Somly…


— Duas vilas sem comunicação po<strong>de</strong>m<br />

não significar nada.<br />

— Ou po<strong>de</strong>m ser o que mais tememos,<br />

Alliah. Se a rainha pu<strong>de</strong>r enviar a Guarda Real<br />

para investigar, talvez <strong>de</strong>scubra a verda<strong>de</strong>.<br />

— E quem vai a Griphinn solicitar uma<br />

audiência? Talvez <strong>de</strong>vêssemos conversar com<br />

o barão antes…<br />

— Já discutimos isso, Dorn, mas não te<br />

preocupes… — Eron <strong>de</strong>sceu do palanque im-<br />

provisado. — Eu irei. Só preciso saber que<br />

tenho o apoio <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong> vós.<br />

Não houve tempo para que se manifestas-<br />

sem. Escancarando a porta, os homens<br />

armados que formavam a Guarda Real entra-


am, tomando o recinto, como se não soubes-<br />

sem nada além <strong>de</strong> invadir.<br />

— Pela rainha!<br />

Um golpe seco e Dorn foi ao chão, tres-<br />

passado. Alliah e Trina, únicas mulheres ali,<br />

gritaram ao ver a espada ensanguentada, le-<br />

vando as mãos à boca em franco <strong>de</strong>sespero.<br />

— Esperai! Nós não somos ameaça!<br />

Mesmo o apelo <strong>de</strong> Eron foi ignorado. Os<br />

guardas entravam e atacavam, atingindo os<br />

velhos e as mulheres que, incapazes <strong>de</strong> se <strong>de</strong>-<br />

fen<strong>de</strong>rem, eram presas fáceis. O sangue<br />

banhava o chão do lugar, os gritos sendo si-<br />

lenciados pelo aço.<br />

— Deveríeis nos proteger, assassinos! —<br />

Eron pegou uma espada junto à pare<strong>de</strong> e a


empunhou, <strong>de</strong> um modo um tanto <strong>de</strong>sajeitado.<br />

— Que fizestes?<br />

— Cala-te, fraco! — or<strong>de</strong>nou o que pare-<br />

cia ser o lí<strong>de</strong>r dos guardas. — Todos os que se<br />

opõem à rainha Caehlis perecem!<br />

— A rainha abandonou seu povo! Ela…<br />

Dois disparos <strong>de</strong> bestas, os virotes atin-<br />

gindo Eron no peito e no abdome, o calaram,<br />

<strong>de</strong>rrubando-o.<br />

— Cala-te, eu disse. Torna-te nosso arauto<br />

na morte, fraco!<br />

Eron levou as mãos aos virotes, seus olhos<br />

já se fechando, o frio tomando seu corpo…<br />

E a única coisa que ouvia era o gargalhar<br />

dos guardas cada vez mais longe…


4<br />

— E LES ES TÃ O PARTINDO!<br />

Galea estava na rua, olhando na direção da<br />

construção diante dos cavalos enquanto a<br />

Guarda Real se afastava com faces satisfeitas.<br />

Não podia ser um bom sinal.<br />

— Eu vou até lá.<br />

— Ainda não, Alexia. Espera até que te-<br />

nham se afastado mais. Não é pru<strong>de</strong>nte.<br />

Eu…<br />

— Meu irmão está lá! — protestou. —<br />

— Dois Tibrass mortos não são melhores<br />

que um só…


Alexia olhou para Galea, os olhos ume<strong>de</strong>-<br />

cidos. Seria verda<strong>de</strong>?<br />

— Eu… — Galea tentou sorrir, em vão.<br />

— Não queria ter dito isso…<br />

— Eu sei — a jovem suspirou, limpando<br />

uma lágrima na túnica. — Agora vamos. Já<br />

foram embora.<br />

Galea fez menção <strong>de</strong> ir à frente, mas Ale-<br />

xia a impediu. Não havia mais ninguém nas<br />

ruas, e mesmo a sapataria próxima tinha as<br />

portas fechadas. Tudo estava quieto <strong>de</strong>mais.<br />

Atravessar a porta havia sido mais difícil<br />

do que ela pensara, mesmo seus passos sendo<br />

tão rápidos quanto os cascos que se afastavam.<br />

O problema não era o silêncio, ou mesmo o


cheiro acre que começava a sentir… Nada da-<br />

quilo importava.<br />

Alexia só queria ver seu irmão são e salvo.<br />

Foi Galea que viu o primeiro <strong>de</strong>les no<br />

chão, imóvel. Em seu íntimo, já sabia que as<br />

bênçãos <strong>de</strong> Dalya não po<strong>de</strong>riam ajudá-lo, pois<br />

sua <strong>de</strong>usa lhe conce<strong>de</strong>ra o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> curar —<br />

mas não <strong>de</strong> reviver —, o que não a impediu <strong>de</strong><br />

se ajoelhar junto a ele, fazendo uma prece si-<br />

lenciosa… Uma prece interrompida pelo grito<br />

<strong>de</strong> Alexia.<br />

— Eron!<br />

Alexia não sabia como havia chegado até<br />

ele, mas já o tinha nos braços, suas lágrimas se<br />

misturando com o rubro sangue que ainda jor-<br />

rava. Palavras haviam dado lugar a soluços.


— Alexia… — Eron tossiu sangue, seus<br />

olhos semicerrados. — Foge… Eles…<br />

— Já foram embora, meu irmão. — ela<br />

não se preocupava em enxugar as lágrimas. —<br />

Não há mais perigo…<br />

Galea se aproximou, suas mãos ainda tin-<br />

tas do sangue dos que ali tombaram na vã<br />

tentativa <strong>de</strong> trazê-los <strong>de</strong> volta ao reino dos vi-<br />

vos. Sua fronte estava carregada.<br />

— Deixa-me tentar, Alexia. Talvez haja<br />

tempo…<br />

A jovem <strong>de</strong> toga púrpura se agachou, suas<br />

mãos postas sobre os virotes, a boca se me-<br />

xendo sem que nenhum som <strong>de</strong>la saísse. Eron<br />

gemeu.


— Eu… — a sacerdotisa pausou. — Des-<br />

culpa-me, Alexia.<br />

— Dalya não é po<strong>de</strong>rosa o bastante? — a<br />

outra lamentava com dor no coração.<br />

— Minha fé é que fraqueja, Alexia… Se eu<br />

acreditasse…<br />

— Não te culpes — a voz embargada <strong>de</strong><br />

Eron as calou. — Quando Gwyanna chama,<br />

temos <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r…<br />

— Eron!<br />

— Alexia, escuta… Caehlis tem levado<br />

Dunir à ruína, esquecendo do povo… A Ne-<br />

crópole está avançando… — ele tossiu sangue<br />

outra vez.<br />

— Descansa, Eron. Poupa tuas forças…


— Tu precisas me ouvir, irmãzinha… Não<br />

<strong>de</strong>ixa que o povo pague pelos erros da rai-<br />

nha… Sejas a voz a ser ouvida em Griphinn…<br />

Faz a diferença…<br />

— Eron, eu…<br />

— Alexia, é tar<strong>de</strong> para mim… Sê forte.<br />

— Eron! Eron! — ele não mais reagia. —<br />

Não me abandona! Eron!<br />

E nada além do pranto <strong>de</strong> uma jovem <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>zesseis anos, no dia <strong>de</strong> seu aniversário, foi<br />

ouvido. Nada mais.


Po<strong>de</strong>rá Alexia erguer sua voz e clamar em<br />

nome <strong>de</strong> seu povo?<br />

A se<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Caehlis será saciada?<br />

Para mudar, é preciso aceitar.<br />

Para verda<strong>de</strong>iramente ser, é preciso acreditar.<br />

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