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<strong>Lucilia</strong> <strong>Diniz</strong><br />

<strong>Frente</strong>&<strong>Verso</strong>


<strong>Lucilia</strong> <strong>Diniz</strong><br />

<strong>Frente</strong> & <strong>Verso</strong>


<strong>Lucilia</strong> <strong>Diniz</strong><br />

<strong>Frente</strong> & <strong>Verso</strong>


© <strong>Lucilia</strong> <strong>Diniz</strong>, 2004<br />

Texto:<br />

<strong>Lucilia</strong> <strong>Diniz</strong><br />

Coordenação ©<strong>Lucilia</strong> de projeto: <strong>Diniz</strong>:<br />

Eduar<strong>do</strong> Logullo Copyright Editora CARAS S.A., São Paulo, 2004 – 1ª edição: Janeiro de 2004 - ISBN: 85-<br />

7521-185-4 – Divisão Eventos Multimídia e Projetos Especiais - Luis Fernan<strong>do</strong> Maluf (Geren-<br />

Consultor: te), Fabio Cavicchiolli, Antonio Henrique Menendez, Andrea Liguori, Tathiana Vaz – Impressão<br />

Francisco Guglielme e Acabamento: Jr. Brasilform Editora e Indústria Gráfica Ltda. - To<strong>do</strong>s os direitos para o Brasil<br />

reserva<strong>do</strong>s à Editora CARAS S.A. – Av. Engenheiro Luís Carlos Berrini, 1253, 12º andar, -tel.:<br />

Projeto gráfico: (11) 5508-2000, CEP 04571-011, São Paulo, SP, Brasil<br />

Leticia Moura<br />

Diagramação:<br />

Douglas Watanabe<br />

Fotos:<br />

Vania Tole<strong>do</strong><br />

Scanning:<br />

Felipe Caetano<br />

Ilustrações:<br />

Gustavo von Ha (página 16)<br />

Guto Lacaz (páginas 8, 11, 46, 114, 140, 150, 160, 206, 216 e 240)<br />

Marcelo Cipis (páginas 56, 58, 62, 82, 96, 100, 174 e 182)<br />

Mario Cafiero (páginas 20, 50, 92, 104, 178, 186, 190, 194, 220, 224 e 244)<br />

Revisão:<br />

Claudio Eduar<strong>do</strong> Nogueira Ramos<br />

TIPOLOGIA Frutiger e Matrix Script PAPEL Couche matte150g IMPRESSÃO no sistema XXX,<br />

Gráfica XXXXXXX 1ª IMPRESSÃO janeiro 2004.


Dedico este livro ±<br />

±àqueles que mais amo:<br />

Manoella, pela autonomia;<br />

Tiago, pelo companheirismo;<br />

Giovana, pela criatividade,<br />

e a minha Valentina pela inovação.


A vida<br />

pode ser bem<br />

mais leve<br />

para quem<br />

não oculta a<br />

frente,<br />

nem o<br />

verso.


Poucos têm a oportunidade de conhecer <strong>Lucilia</strong> <strong>Diniz</strong>.<br />

Seu carisma, pelo jeito de ser, surpreende e encobre<br />

seus pensamentos. Irrequieta, tempestuosa, ela a<strong>do</strong>ta um<br />

estilo de vida de sempre prosseguir, superan<strong>do</strong> obstáculos.<br />

Exigente e crítica, pensa de forma prática como<br />

driblar as armadilhas que a vida traz. Com certeza, os<br />

traços mais marcantes da sua personalidade são a perseverança<br />

e a feminilidade. Forte e frágil, <strong>Lucilia</strong> expressa a<br />

experiência vivida como lição aprendida para impulsionar<br />

novas conquistas.<br />

Neste livro, to<strong>do</strong>s encontrarão situações que confirmam<br />

suas reflexões. Não há seqüência de leitura, basta<br />

abri-lo em qualquer página e lá estarão momentos de to<strong>do</strong>s<br />

nós. É uma obra de coragem e de auto-exposição, para ser<br />

debatida e até contestada. Mas de grande valor existencial.<br />

Francisco Guglielme Jr.


Sentimentos & Observações<br />

O TEMPO – Hoje é o primeiro dia <strong>do</strong> resto de sua vida . . 17<br />

FAMÍLIA – Pan<strong>do</strong>ra contemporânea . . . . . . . . . . . . . . . 21<br />

LEMBRANÇAS – Arquivos vivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27<br />

PROTEÇÃO – Pêndulo <strong>do</strong>méstico . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31<br />

ROMPIMENTOS – Meu mun<strong>do</strong> caiu . . . . . . . . . . . . . . . . . 35<br />

FALSO MORALISMO – Te perdôo por te trair . . . . . . . . . . . 39<br />

ENVELHECER SEM MEDO – Viva a ampulheta . . . . . . . . . . . 43<br />

AMIZADES – Além <strong>do</strong> horizonte . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47<br />

APRENDER A FICAR SÓ – No silêncio <strong>do</strong> quarto . . . . . . . . 51<br />

VIAGENS – Terrenos mina<strong>do</strong>s . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55<br />

GAFES E TRAPALHADAS – A comédia <strong>do</strong>s erros . . . . . . . . . 59<br />

MODA – Lances e relances . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63<br />

SOMATÓRIO DE ERROS – Erro ao quadra<strong>do</strong> . . . . . . . . . . . . 67<br />

Dia & Noite<br />

SUMÁRIO\<br />

A PRIMEIRA VEZ – Sessão de estréia . . . . . . . . . . . . . . . . 73<br />

A ÚLTIMA VEZ – Acabou-se o que era <strong>do</strong>ce . . . . . . . . . . 76<br />

RITUAL DAS REFEIÇÕES – Saber comer, saber viver . . . . . . 79<br />

CUMPLICIDADE – Piscadelas de olho . . . . . . . . . . . . . . . . 83


HORA DO BANHO – Pro dia nascer feliz . . . . . . . . . . . . . . 86<br />

VIDA DOCE – Alô, <strong>do</strong>çuras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89<br />

ENCONTROS SUPERFICIAIS – Olá, muito prazer! . . . . . . . . . 93<br />

ESPELHOS – Qual é a imagem real? . . . . . . . . . . . . . . . . 97<br />

INVERDADES – Nunca fui santa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101<br />

A VERDADE – Sem alívio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105<br />

VULGARIDADES – Um jeito feio de estar no mun<strong>do</strong> . . . . . 108<br />

DESAFIOS – Na mira <strong>do</strong> imaginário . . . . . . . . . . . . . . . . 111<br />

VAMPIROS – Baixa voltagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115<br />

Dentro & Fora<br />

USAR O OUTRO – Pista dupla . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121<br />

CONFIDÊNCIAS – Falar é prata, calar é ouro . . . . . . . . . . 124<br />

BEM-ESTAR X SEXUALIDADE – De tu<strong>do</strong>, para to<strong>do</strong>s . . . . . . . 127<br />

RECONHECIMENTO – Rol da fama . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131<br />

EGOS INFLADOS – Infláveis & inflamáveis . . . . . . . . . . . . 134<br />

INTUIÇÃO – Será que fiz bem? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137<br />

ANSIEDADE – O dragão nosso de cada dia . . . . . . . . . . . 141<br />

LIBERDADE – Liberdade ou independência? . . . . . . . . . . 144<br />

PERFEIÇÃO – Perfeição pode ser imperfeita . . . . . . . . . . 147<br />

DIPLOMACIA – Geografia humana . . . . . . . . . . . . . . . . . 151<br />

DESVIOS – Desafinan<strong>do</strong> o coro <strong>do</strong>s contentes . . . . . . . . 154<br />

TERRITÓRIO – Áreas de proteção pessoal . . . . . . . . . . . . 157<br />

LÍNGUAS DIFERENTES – Torre de Babel . . . . . . . . . . . . . . . 161<br />

CAMA DE FILHO – Playground . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 164


Amores & Desamores<br />

UM COMPANHEIRO – O companheiro mágico . . . . . . . . . 170<br />

PRIMEIRO CASAMENTO – Cobaias e cientistas . . . . . . . . . . 175<br />

SEGUNDO CASAMENTO – Pânico de ser gueixa . . . . . . . . 179<br />

TERCEIRO CASAMENTO – Terceiro ato . . . . . . . . . . . . . . . 183<br />

HOMENS SEDUTORES – Atração fatal? . . . . . . . . . . . . . . . 187<br />

POSSE E SEDUÇÃO – As duas mosqueteiras . . . . . . . . . . 191<br />

PIGMALIÃO – Projeto sentimental . . . . . . . . . . . . . . . . . 195<br />

VOLTA AO PASSADO – Mil pontos de interrogação . . . . . . 198<br />

AMANTES – O negócio é amar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203<br />

ROMPIMENTOS – Dores de amores . . . . . . . . . . . . . . . . . 208<br />

RITUAIS DE SEDUÇÃO – Jogo de damas . . . . . . . . . . . . . . 211<br />

<strong>Verso</strong> & Reverso<br />

DOM QUIXOTE – Nem mestre, nem aprendiz . . . . . . . . . 217<br />

PREGUIÇA – Cadeira de balanço . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221<br />

LUXÚRIA – Amiga de fé, irmã, camarada . . . . . . . . . . . 225<br />

ORGULHO – Pai herói . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 228<br />

AVAREZA – A sete chaves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231<br />

GULA – Homens das cavernas em ação . . . . . . . . . . . . 234<br />

INVEJA – O quintal <strong>do</strong> vizinho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237<br />

IRA – O leão está solto nas ruas . . . . . . . . . . . . . . . . . 241<br />

DESCOBERTAS – Olhan<strong>do</strong> pelas frestas . . . . . . . . . . . . . . 245


Sentimentos<br />

&<br />

Observações


O TEMPO<br />

HOJE É O PRIMEIRO DIA<br />

DO RESTO DE SUA VIDA<br />

A cada vez que viramos uma página <strong>do</strong><br />

calendário, ou quan<strong>do</strong> somamos um mês a<br />

mais ou 30 dias a menos, ninguém se dá conta<br />

dessa realidade aparentemente abstrata que<br />

nos cerca: o tempo. É a partir da passagem<br />

contínua <strong>do</strong> tempo que os ciclos se renovam, a<br />

natureza se manifesta, os planetas permanecem<br />

em órbita e nós, desespera<strong>do</strong>s com esse<br />

avanço ininterrupto <strong>do</strong> ponteiro, corremos<br />

atrás de alguma coisa que possa anular o<br />

efeito <strong>do</strong> tempo.<br />

Anular ninguém consegue. Nem aqueles mais radicais,<br />

que pedem em testamento para ter seus cérebros ou<br />

corpos congela<strong>do</strong>s por perío<strong>do</strong> indetermina<strong>do</strong>, até que a<br />

ciência consiga ressuscitá-los. Acho isso meio macabro.<br />

Difícil imaginar minha cabeça dentro de uma re<strong>do</strong>ma, com<br />

algum líqui<strong>do</strong> estranho à volta. Será que me deixariam<br />

ficar de óculos de sol? E com um colar básico, pelo menos?<br />

Dá para brincar, mas o tema é assusta<strong>do</strong>r. Mesmo.<br />

Prefiro nem comentar muito sobre a passagem <strong>do</strong> tempo<br />

17


18<br />

em nós, míseros mortais, e focar o tema sobre realizações<br />

inesperadas que os anos proporcionam à vida. O tempo é<br />

soberano. O tempo aprimora, paralisa ou piora.<br />

Prefiro sempre o melhor: o aprimoramento. Só o<br />

tempo pode me transformar de gorda em esbelta, de<br />

complicada em light. Apenas a passagem <strong>do</strong> calendário<br />

seria capaz de trazer interpretações mais suaves sobre as<br />

agruras da vida, para que não ficássemos o resto <strong>do</strong>s dias<br />

procuran<strong>do</strong> entender com quantos paus se faz uma<br />

canoa, se São Jorge mora na Lua e porque os avós têm<br />

cabelos brancos. Ganhamos sabe<strong>do</strong>ria com o tempo, mas,<br />

tristeza das tristezas, perdemos coisas essenciais como<br />

viço, esbelteza, tônus e… É melhor parar por aqui, senão<br />

começo a gritar.<br />

Contra esses efeitos catastróficos <strong>do</strong> tempo, batalhamos<br />

na manutenção contínua <strong>do</strong> corpo. Mas há efeitos<br />

mais terríveis ainda: ficar com a cabeça velha, com aquele<br />

papo de aranha e cheio de memórias nostálgicas. Devemos<br />

celebrar o passa<strong>do</strong>, mas não nos entregarmos a ele. Aliás,<br />

já houve quem disse que passa<strong>do</strong> e futuro eram as duas<br />

grandes invenções da humanidade.<br />

E se ninguém admite que o seu sal<strong>do</strong> de tempo<br />

diminui dia-a-dia, só nos resta misturar um punha<strong>do</strong> de<br />

resignação, duas colheres de loucura, 600 gramas de alegria,<br />

<strong>do</strong>is quilos de perseverança e um litro de energia positiva<br />

para continuarmos saltitantes ainda por longo tempo.


Decisões que iluminam o cotidiano só impulsionam a novas<br />

e melhores conquistas. O tempo passa, mas não podemos<br />

nos submeter à acomodação da cadeira de balanço, nem<br />

ao fel <strong>do</strong> rancor, nem à paralisia <strong>do</strong> desânimo. O tempo<br />

não pára e o show deve continuar.<br />

O tempo depura, o tempo alarga, o tempo ajusta, o<br />

tempo apaga, o tempo enobrece, o tempo desfaz. A areia<br />

da ampulheta desce ou sobe, de acor<strong>do</strong> com a perspectiva<br />

de quem aciona a direção. A areia <strong>do</strong> tempo pode cobrir<br />

tu<strong>do</strong>, mas proponho ficar de plantão com uma pá e não<br />

deixar nunca que a avalanche <strong>do</strong> esquecimento caia sobre<br />

minha cabeça. A mesma cabeça, aliás, que jamais será<br />

congelada para ser revivida no futuro, como um andróide.<br />

Em matéria de congela<strong>do</strong>s, prefiro os que sejam light, OK?<br />

E vamos tratar logo de fazer com que o tempo seja nosso<br />

sócio e não um inimigo.<br />

19


FAMÍLIA<br />

PANDORA CONTEMPORÂNEA<br />

Conheci certa vez uma menina, filha caçula<br />

de um casal bon<strong>do</strong>so, trabalha<strong>do</strong>r e bem-sucedi<strong>do</strong>.<br />

A menina e seus cinco irmãos moravam<br />

em uma propriedade cercada por árvores<br />

fron<strong>do</strong>sas. Ali, o entrosamento em grupo estava<br />

entre os valores essenciais para a harmonia<br />

familiar. As reuniões festivas eram freqüentes,<br />

assim como encontros com numerosos parentes,<br />

fatos que passariam a ser marcantes na<br />

memória da menina. Havia sinceridade, união<br />

e alegria em meio à atmosfera de fartura, simplicidade<br />

e amor – três pontos sempre deseja<strong>do</strong>s<br />

pelo casal.<br />

Acompanhei o crescimento dessa menina, que logo<br />

me escolheu por confidente. Descobria, assim, que a sua<br />

infância esteve repleta de momentos felizes, porém entremea<strong>do</strong>s<br />

de isolamento: eram muitos os compromissos de<br />

seus pais, enquanto os irmãos viviam constantemente<br />

atribula<strong>do</strong>s com afazeres ou estu<strong>do</strong>s. Desse mo<strong>do</strong>, ela habituava-se<br />

a receber a eventual atenção materna e a dividir<br />

seus pensamentos com bonecas, aquarelas e livros de fadas.<br />

21


22<br />

Com a chegada da a<strong>do</strong>lescência, ela se viu confinada<br />

à casa <strong>do</strong>s pais. Suas saídas e entradas eram controladas<br />

segun<strong>do</strong> os princípios rígi<strong>do</strong>s da moral impenetrável <strong>do</strong>s<br />

pais, imigrantes europeus. Ela poderia ter tu<strong>do</strong>, mas não<br />

alcançava o que ansiava: ser levada por descobertas, erros,<br />

acertos e ímpetos de qualquer jovem. Logo perceberia que<br />

a solução apenas ela poderia criar, se partisse de alternativas<br />

que fossem socialmente aceitáveis. Casar, por exemplo.<br />

Moça precoce, aos 14 anos ela inicia um romance com o<br />

seu melhor amigo, decidida a conseguir a independência<br />

absoluta <strong>do</strong> território familiar. Ingênua, acreditava ser essa<br />

a grande opção. E, por certo, foi. Casada, viveu feliz por<br />

algum tempo com o homem que escolhera.<br />

Tempos depois, seu mun<strong>do</strong> caiu. O romance, tão aceso<br />

no início, estava transforma<strong>do</strong> em prato morno. A<br />

menina que brincava de ser mulher pediu a separação.<br />

Houve enorme desgosto na família, que passou a considerá-la<br />

um problema ao cubo. Como fazer para preservar<br />

a imagem familiar de prestígio e de ramificações empresariais<br />

importantes? A irmã caçula apresentava a eles um<br />

potencial explosivo e autodestrutivo. Separação homologada,<br />

ela se viu na berlinda. Não poderia errar mais, sob<br />

pena de receber penalidades máximas no âmbito familiar.<br />

Mas como os corpos não são de ferro, lá se foi ela<br />

rumo ao segun<strong>do</strong> casamento. Antes, garantiu-me ser uma<br />

escolha mais amadurecida. O mari<strong>do</strong> era empreende<strong>do</strong>r,


havia entre eles grande atração física e afinidades diversas.<br />

Pausa. Vários anos mais tarde, depois de perío<strong>do</strong>s de<br />

esmagamento pessoal, ela estava prestes a sucumbir à<br />

submissão imposta pelo mari<strong>do</strong>, aos maus-tratos psicológicos<br />

e ao papel de subserviência <strong>do</strong>méstica. Rompeu-se o<br />

seu segun<strong>do</strong> casamento, com reação ainda mais dura da<br />

família. Restou à menina que conheci, naquele perío<strong>do</strong><br />

transformada em animal acua<strong>do</strong> e indefeso, a punição<br />

com o que foi considera<strong>do</strong> condizente ao peso da separação:<br />

internação psiquiátrica.<br />

Ela se submeteu, sentin<strong>do</strong>-se apagada, sem viço, sem<br />

vigor, sem voz. Diagnóstico: tristeza. Cura: sem prazo. Suas<br />

tentativas e erros estavam transforma<strong>do</strong>s em drama familiar<br />

de grandes proporções. Os irmãos negavam apoio. Pior: os<br />

irmãos a faziam sentir-se deformada, derrotada, aniquilada.<br />

Sem contar que a sua opinião jamais voltaria a valer, por ela<br />

“só ter cometi<strong>do</strong> erros”. Garantiam que ela nunca acertaria<br />

em decisão alguma. Qualquer que fosse a sua posição, essa<br />

posição seria considerada incômoda ao grupo.<br />

A minha amiga encurralada lembrava-me, naqueles<br />

momentos de baixa estima, que algumas plantas <strong>do</strong><br />

deserto sobrevivem com apenas uma gota de água por<br />

ano. Essa foi a metáfora que usava para me dizer que um<br />

dia seria vitoriosa e voltaria a se sentir viva. Quisessem ou<br />

não os seus irmãos. Ela estava certa: invejada por se manter<br />

alerta, a perseverança seria a melhor resposta a dar.<br />

23


24<br />

Excetuan<strong>do</strong>-se o amor que recebia <strong>do</strong>s pais, ela sentia os<br />

dar<strong>do</strong>s <strong>do</strong> desprezo e da maldade lança<strong>do</strong>s pelos outros<br />

membros da família.<br />

Ultrapassada aquela fase terrível, ela passou a entender<br />

que se uma família propõe ajuda por outros ângulos,<br />

também pode oferecer desilusão, frustração e desrespeito.<br />

De nada adiantaria, pensava a minha sofrida amiga, o acúmulo<br />

de trabalho e de poder se não se consegue lidar com<br />

sentimentos humanos como a cordialidade, a fraternidade,<br />

o amor ao próximo. Mas a garota que eu conhecera e que<br />

se havia transfigura<strong>do</strong> em uma mulher maltratada, iniciava<br />

então um processo de renovação mental, física e espiritual.<br />

Como uma caixa de Pan<strong>do</strong>ra, ela aprendeu a lidar<br />

com seus desejos escondi<strong>do</strong>s, com suas idéias em ebulição<br />

e com suas pequenas fadas invisíveis. Começava a sentir<br />

algo poderoso: uma força estranha, luminosa e renova<strong>do</strong>ra<br />

a fazia encarar o mun<strong>do</strong> sem me<strong>do</strong>. Finalmente, surgia<br />

a mulher que conseguiria olhar as feridas sem me<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

sangue, a mulher que enfrentaria traumas e a mulher<br />

destemida que podia até gritar “danem-se to<strong>do</strong>s”.<br />

Era como se de dentro da caixa invisível de uma Pan<strong>do</strong>ra<br />

moderna, aparecessem mil e uma faces de deusas,<br />

amazonas, entidades mitológicas e espíritos delica<strong>do</strong>s de<br />

grande intensidade cósmica. Ela abriu a caixa e deixou<br />

escapar Afrodite, Ísis, Zorya, Olulu, Maria, Juno, Diana,<br />

Ixchel, Bona Dea, Astrea, Kupalo, Lakshmi, Maha Devi,


Yacy, Sophia, Shadai, Samana e mais uma série de pequenas<br />

criaturas que só ela conhecia pelo nome, que só ela<br />

sabia <strong>do</strong> poder de cada uma.<br />

Desde então, a menina que conheci ainda habita a<br />

alma dessa amiga, hoje uma mulher iluminada por uma<br />

beleza que ela própria buscou, por uma fortaleza espiritual<br />

que lhe foi dada depois <strong>do</strong> sofrimento, por uma conexão<br />

planetária que adquiriu ao olhar as coisas simples da vida.<br />

Minha amiga hoje é feliz. E conversa diariamente com suas<br />

fadas protetoras, com suas mil e uma faces femininas.<br />

25


Foi um pequeno momento<br />

Um jeito, uma coisa assim,<br />

Era um movimento<br />

Que aí você não pôde<br />

mais gostar de mim direito<br />

(Da Maior Importância, de Caetano Veloso)


LEMBRANÇAS<br />

ARQUIVOS VIVOS<br />

Histórias de amor às vezes podem dispensar<br />

finais infelizes ou encerramentos aniquila<strong>do</strong>res.<br />

Isso acontece quan<strong>do</strong> os amores interrompi<strong>do</strong>s<br />

ficam como sinfonias inacabadas.<br />

Entre os enigmas nas relações de amor existe a<br />

estranha capacidade de se guardar na memória<br />

alguém de quem ainda se gosta. Afinal, algo<br />

forte não se apaga para sempre.<br />

Tu<strong>do</strong> pode começar depois de três ou quatro encontros:<br />

percebemos quan<strong>do</strong> uma pessoa começa a nos interessar<br />

para valer. Basta um telefonema, a mensagem deixada no<br />

celular ou a simples menção de um encontro, a promessa<br />

de um passeio ou a surpresa de encontros durante as caminhadas<br />

matinais. A pele se enche de brilho, a espinha<br />

permanece ereta, os olhos faíscam, o humor reluz. E, toque<br />

após toque, aproximação após aproximação, o envolvimento<br />

para tornar-se uma presença essencial.<br />

A segunda fase tem início com o aprendiza<strong>do</strong> <strong>do</strong> novo<br />

eleito, nas suas características por determina<strong>do</strong>s prazeres,<br />

no tom da voz, nos gestos, na voz cheia de sedução, na<br />

inteligência das observações, nas pausas, nos silêncios.<br />

27


28<br />

Vamos supor que o eleito veio de longe, separa<strong>do</strong> e economicamente<br />

sem problemas, para buscar refazer a trajetória<br />

dele em rumo ainda indefini<strong>do</strong>. De repente, parece<br />

encontrar o que procura. Então, viva. Não há prazer igual a<br />

estar com a pessoa certa no momento certo, com o sol<br />

<strong>do</strong>ura<strong>do</strong> detrás das árvores, a brisa suave, o champanhe no<br />

ponto e nenhum minuto de pressa. Cena de cinema.<br />

O indescritível continua. Mais empolgante ainda são<br />

as rápidas separações: em da<strong>do</strong> momento, cada um vai<br />

para a sua casa, toma banho, troca de roupa, torna-se<br />

atraente e depois se apressa em telefonar para confirmar<br />

a escolha <strong>do</strong> restaurante. O que mais desejar de um jantar<br />

com vinhos, conversas <strong>do</strong>s deuses e revelações envolventes?<br />

O que mais pedir quan<strong>do</strong> há sinceridade no discurso<br />

e nas intenções de aprimorar um encontro especial?<br />

São etapas em que tu<strong>do</strong> ao re<strong>do</strong>r se transforma na mais<br />

magnífica das paisagens e o seu romance na meta determinante<br />

da existência.<br />

Na terceira etapa, essas duas pessoas já lidam com<br />

aspectos de companheirismo. Apresentam solidez de planos,<br />

revisões, mudanças, proposições, retomadas, definições,<br />

reinvenções de metas. Atravessam meses de evolução<br />

sentimental e pessoal. Tu<strong>do</strong> certo? Não. Um dia, por<br />

obra e graça das forças inexplicáveis <strong>do</strong> destino, o ser ama<strong>do</strong><br />

pede uma conversa séria. Nenhuma conversa que se diz<br />

séria acaba sem deixar rastro.


Recebe-se a seguinte informação: o seu ama<strong>do</strong> pretende<br />

retornar para onde morava. Por aqui, muito amor,<br />

mas também inadaptabilidades, saudades, vontade de rever<br />

pessoas queridas. Argumentos terrivelmente simples.<br />

OK, você que já pressentia tal possibilidade no começo,<br />

pensou que isso desapareceria. E o seu coração faz crac<br />

dentro <strong>do</strong> peito.<br />

O baque é amorteci<strong>do</strong>, contorna<strong>do</strong>, disfarça<strong>do</strong>, assimila<strong>do</strong>,<br />

degluti<strong>do</strong>, pensa<strong>do</strong> e, finalmente, resolvi<strong>do</strong>. Aquele<br />

que poderia ser o enlevo de sua vida vai mesmo embora.<br />

Você: arrasada, porém compreensiva. Ele: promessas, projetos,<br />

garantias, declarações. Abraços e beijos no aeroporto.<br />

O avião decola, você não derrama uma lágrima.<br />

Durante as primeiras semanas, trocas diárias de emails,<br />

ligações telefônicas e tu<strong>do</strong> bem. Dois meses depois,<br />

raras mensagens. Seis meses à frente, ele a convida para visitá-lo,<br />

para retomarem o impulso <strong>do</strong> romance e, quem sabe,<br />

até pensar em morar por lá. Ele, anima<strong>do</strong>. Você, apreensiva.<br />

Surpresa: você decide não viajar ao encontro dele.<br />

Nem manter contatos freqüentes. Se a decisão dele morar<br />

longe é irrevogável, você prefere sair dessa. Mudar de<br />

cidade, para ceder àquele chama<strong>do</strong>, seria anular-se<br />

demais. Com infinita tristeza, você prefere sumir de cena,<br />

manten<strong>do</strong> a chama <strong>do</strong> que nunca fora acaba<strong>do</strong>. Descobre<br />

sozinha que é bem mais valioso manter boas lembranças<br />

<strong>do</strong> que promessas que voam.<br />

29


PROTEÇÃO<br />

PÉNDULO DOMÉSTICO<br />

Dedico este texto à minha mãe Floripes, que sempre<br />

inventava um jeito de nos proteger além da conta<br />

Geralmente a família <strong>Diniz</strong> costuma citar<br />

em muitas referências na imprensa a figura de<br />

meu pai, Valentim, por ter si<strong>do</strong> ele o funda<strong>do</strong>r<br />

<strong>do</strong> nosso grupo de empresas. Eu também me<br />

incluo entre os que vivem a citá-lo com amigos,<br />

talvez devi<strong>do</strong> à enorme consideração e à admiração<br />

que mantenho por ele. Mas, de repente,<br />

me <strong>do</strong>u conta de que a minha família não<br />

deveria ser considerada um patriarca<strong>do</strong>. E a<br />

minha mãe, Floripes, participa de qual parte<br />

dessa história?<br />

De origem portuguesa, ela mantém aquelas características<br />

discretas das tradicionais mulheres européias, que,<br />

por motivos agora já perdi<strong>do</strong>s no tempo, preferiam deixar<br />

os mari<strong>do</strong>s brilharem por si, sozinhos, contanto que as<br />

poupassem <strong>do</strong>s aspectos públicos. São mulheres que herdaram<br />

comportamentos provenientes da <strong>do</strong>minação, e<br />

31


32<br />

que embora tenham caráter forte, são discretas e se mantêm,<br />

por vontade e tradição, em segun<strong>do</strong> plano.<br />

Minha mãe deve ser reconhecida também por outros<br />

valores. Enquanto meu pai se ocupava em fazer crescer<br />

continuamente os negócios, ela agia como o pêndulo familiar.<br />

Vinham dela a força, a perseverança, o senso de justiça,<br />

o equilíbrio e, acima de tu<strong>do</strong>, o exercício diário de manter<br />

a família em união.<br />

Sua preocupação com os filhos continua exemplar.<br />

Até hoje ela acha que precisamos comer mais, e vive a<br />

comandar/coordenar pratos tenta<strong>do</strong>res para nos seduzir<br />

pelo estômago. Para minha mãe, vamos continuar a ser os<br />

seus eternos meninos e meninas (ainda hoje deve ser difícil<br />

aceitar que crescemos, saímos de casa e que ficamos<br />

independentes). Bom, agora que também sou mãe de três<br />

filhos, sei o quanto isso é duro. Mas fazer o quê? Regras<br />

da vida são regras da vida.<br />

Lembro-me de minha mãe, ainda hoje uma senhora relativamente<br />

vai<strong>do</strong>sa e atenta ao mun<strong>do</strong>, como uma torre de<br />

observação <strong>do</strong>méstica. Nada lhe escapava, apesar de nunca<br />

deixar transparecer que estivesse ciente de tu<strong>do</strong>. Coisas da<br />

contenção emocional <strong>do</strong>s europeus, talvez. Mas ela costumava<br />

se manifestar, sim, a qualquer momento, quan<strong>do</strong> se<br />

fazia necessário defender um filho de alguma pequena<br />

injustiça familiar ou proteger a prole de qualquer risco.<br />

Como neste livro entro em temas inéditos na minha car-


eira profissional, decidi aproveitar para registrar meu afeto<br />

por essa mulher que nos gerou e que sempre esteve oculta<br />

<strong>do</strong>s holofotes da fama. Sua discrição e sua forma suave de<br />

aceitar os contrapontos dessa família com personalidades tão<br />

fortes fizeram dela uma lição permanente de harmonia, de<br />

ternura, de sabe<strong>do</strong>ria e de atuação pacifica<strong>do</strong>ra.<br />

Então, começo a pensar que faz muito senti<strong>do</strong> aquela<br />

frase popular que garante: Sempre existe uma mulher forte<br />

por trás de um homem importante. Floripes <strong>Diniz</strong> está, portanto,<br />

muito além de ser apenas uma rainha <strong>do</strong> lar.<br />

33


Ah, você está ven<strong>do</strong> só<br />

Do jeito que eu fiquei<br />

E que tu<strong>do</strong> ficou<br />

Uma tristeza tão grande<br />

Nas coisas mais simples que<br />

você tocou<br />

A nossa casa, queri<strong>do</strong><br />

Já estava acostumada<br />

Guardan<strong>do</strong> você<br />

As flores na janela sorriam,<br />

cantavam<br />

Por causa de você<br />

(Dolores Duran, na canção Por causa de você)


ROMPIMENTOS<br />

MEU MUNDO CAIU<br />

Os últimos ruí<strong>do</strong>s que ouvi foram o da<br />

chave dan<strong>do</strong> voltas na porta e o carro sain<strong>do</strong> da<br />

garagem. Depois disso, um silêncio incompreensível<br />

e assusta<strong>do</strong>r se abateu pela casa. Olhei em<br />

volta, completamente sem reação. Cada objeto<br />

parecia reter a sua marca, o seu rastro. Meus<br />

olhos pediam lágrimas, mas me faltavam forças<br />

até para isso. Eu estava em esta<strong>do</strong> de letargia<br />

profunda e, ao mesmo tempo, com o pior <strong>do</strong>s<br />

sentimentos: autocompaixão.<br />

Na cabeça ainda ecoavam as últimas frases que trocamos.<br />

Sim, a saída dele já estava definida entre nós. Eu<br />

sabia que o dia D chegaria, mas durante o arrasta<strong>do</strong><br />

processo da separação, preferi me portar como se aquilo<br />

não fosse realidade. Fingi estar dentro de um filme, em<br />

que o final seria, sobretu<strong>do</strong>, sorridente e feliz. Portei-me<br />

como se ainda recebesse demonstrações de afeto – e não<br />

o tratamento meramente educa<strong>do</strong> que ele me dispensava.<br />

Distancia<strong>do</strong>, a palavra melhor. Tratou-me assim para evitar<br />

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36<br />

qualquer ebulição súbita, qualquer atitude inesperada ou<br />

outros princípios de discussão. E isso é o pior: quan<strong>do</strong><br />

alguém se porta de mo<strong>do</strong> calmo em situações de rompimento,<br />

é porque a decisão já foi amadurecida, pensada e<br />

tomada. Decisão. Uma palavra que me fazia tremer.<br />

Mas agora lá estava eu, inerte no sofá, olhan<strong>do</strong> para<br />

o teto. Não tinha vontade de ouvir música, de falar, de<br />

comer. Nada vezes nada. Náusea. O sol brilhava intenso lá<br />

fora. Seria melhor que o dia estivesse cinza, chuvoso, com<br />

intensidade dramática suficiente para combinar com o<br />

meu esta<strong>do</strong> de ânimo. Para não dizer que me faltava ação<br />

por completo, eu sentia vontade de pegar o telefone e<br />

ligar para o celular dele. Pedir uma revisão daquela decisão<br />

drástica. Argumentar que fomos tão amigos e que<br />

poderíamos pelo menos retomar tu<strong>do</strong> de forma civilizada,<br />

tentar voltar o filme, sei lá.<br />

Quantas vezes eu já havia repeti<strong>do</strong> esse mesmo procedimento,<br />

de ligar para ouvir apenas respostas vagas? O<br />

resulta<strong>do</strong>, no final, me deixava atônita. Pior <strong>do</strong> que se tivesse<br />

evita<strong>do</strong> telefonar. E mais: com vergonha de ter, novamente,<br />

dispara<strong>do</strong> em busca de uma corda que se rompeu.<br />

Sensação de gritar sozinha à beira <strong>do</strong> abismo.<br />

Os amigos, há semanas, tentam me confortar.<br />

Perante eles confirmo que ultrapassei o estágio de desamparo<br />

e que começo a me sentir renovada, que bom, pronta<br />

a rever a minha existência, disposta a corrigir inseguranças


emocionais, a fazer análise, qualquer coisa. Depois <strong>do</strong>s discursos<br />

cheios de clichê e estereótipos, me pego ausente,<br />

oca, com o olhar paralisa<strong>do</strong>. No pensamento, uma única<br />

missão impossível. Ele de volta.<br />

Percebo que sofrer por rompimentos é estar a um<br />

passo <strong>do</strong> masoquismo. Sofre-se, sente-se compaixão de si<br />

próprio, suspira-se, inventam-se saídas, sofre-se, sofre-se e<br />

conforma-se com o círculo contínuo de flagelação.<br />

Descubro existir certa elegância na <strong>do</strong>r, que faz as pessoas<br />

falarem baixo e se portarem de mo<strong>do</strong> menos expansivo. A<br />

<strong>do</strong>r nos amadurece.<br />

Só que esses momentos de clareza acontecem como<br />

fagulhas. Na grande parte das horas, sei que vou apenas<br />

roer a minha obsessão de não aceitar a perda, de jamais<br />

aceitar que alguém aperte a tecla delete na minha vida.<br />

Isso nunca, porque fiz tu<strong>do</strong> para que a relação fluísse com<br />

beleza, amei-o como ninguém, gastei anos ao la<strong>do</strong> dele.<br />

Inadmissível agora ser tratada como personagem estranho.<br />

Em que parte dessa história foram parar as cumplicidades,<br />

as viagens, os planos, o casal considera<strong>do</strong> quase<br />

modelo? Quan<strong>do</strong> despencou o meteoro no lago? Quan<strong>do</strong><br />

a lua deixou de furar o nosso teto para salpicar estrelas no<br />

chão? Difícil captar o pensamento <strong>do</strong> outro. Mas estou<br />

absolutamente certa de que ele foi imaturo, inconseqüente,<br />

egoísta.<br />

No esta<strong>do</strong> de torpor em que permaneço, a única<br />

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38<br />

coisa que poderia me mover seria a vontade de buscar<br />

forças, desconheço onde, para dedicar um longo tempo a<br />

vigiar a vida dele. Nem seria difícil: conheço bem os seus<br />

novos projetos de vida. Embora ele tenha garanti<strong>do</strong> não<br />

querer saber de casamento, considero isso apenas outra<br />

hábil conversa para evitar cenas de mulher aban<strong>do</strong>nada.<br />

Óbvio que ele vai procurar parcerias. E depois descartá-las,<br />

como fez comigo.<br />

Preciso me levantar <strong>do</strong> sofá. Talvez uma caixa de<br />

bombons me faça bem. Ou sair para a rua, mudar o corte<br />

<strong>do</strong> cabelo, viajar para um país distante, fazer curso de italiano.<br />

Sei que vou passar a minha vida tentan<strong>do</strong> esquecer<br />

esse rompimento. Nunca mais serei a mesma mulher. O<br />

amor, como dizia aquela antiga canção, é o ridículo da vida.<br />

E ele onde estará? Já se passaram duas horas e 17<br />

minutos desde que saiu de casa. Será que ligo agora?


FALSO MORALISMO<br />

TE PERDÔO POR TE TRAIR<br />

Fica fácil explicar o que é falso moralismo:<br />

é condenar algo e fazer exatamente o que condenou,<br />

só que de forma escondida ou velada.<br />

Aliás, para esse tema existe uma frase perfeita<br />

<strong>do</strong> dramaturgo Nelson Rodrigues: “Se cada um<br />

soubesse o que o outro faz na cama, ninguém<br />

se cumprimentaria”.<br />

Conheço, conhecemos e conheceremos batalhões<br />

infindáveis de gente que age de mo<strong>do</strong> dúbio, farsesco e<br />

limita<strong>do</strong>r. Apegam-se a detalhes ínfimos <strong>do</strong> comportamento<br />

alheio, a<strong>do</strong>ram comentar as agruras sentimentais <strong>do</strong>s<br />

amigos, bisbilhotam a vida sexual de to<strong>do</strong>s e, sobretu<strong>do</strong>,<br />

mantêm uma máscara de padre no altar. Daqueles que<br />

exigem punição, pedi<strong>do</strong> de perdão e penitência.<br />

Os falsos moralistas são altamente repressores e repressivos.<br />

Detestam que os desmintam, odeiam ser rebati<strong>do</strong>s<br />

em uma discussão e não aceitam argumentos contrários<br />

à visão conserva<strong>do</strong>ra que exibem. Decotes, namoros,<br />

demonstrações de afeto? Eles querem morrer só de<br />

imaginar as cenas. Festas prolongadas, filhos que chegam<br />

tarde e reuniões fora de casa? Não, o filho ou a filha deles<br />

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40<br />

são de outro meio, retrucam para negar a permissão.<br />

Mas longe <strong>do</strong>s olhares comuns, distantes <strong>do</strong> altar que<br />

ergueram a si próprios nas suas casas, eles aproveitam as<br />

viagens para tomar todas, dançar todas, namorar todas e<br />

pintar o sete <strong>do</strong> jeito que o diabo gosta. Na verdade, uma<br />

cabeça antiga.<br />

Existem ainda os falsos moralistas atualiza<strong>do</strong>s, com<br />

layout moderno e sem denotar o tom policialesco que rege<br />

a sua vida em grupo. Para eles, tu<strong>do</strong> pode até ser permiti<strong>do</strong>.<br />

Aos outros, apenas o de<strong>do</strong> apontan<strong>do</strong>, duro. Pessoas<br />

assim são aquelas que vão para a happy hour e tomam<br />

suco de laranja, embora estivessem loucas para pedir um<br />

conhaque. Ou, quan<strong>do</strong> saem com a esposa, se portam<br />

como um controla<strong>do</strong>r de vôo: inspecionam cada passo<br />

dela, perguntam com quem estava falan<strong>do</strong>, quem telefonou<br />

no celular e coisas tão horríveis quanto.<br />

Demonstrar ciúmes é um procedimento básico <strong>do</strong> falso<br />

moralista, porque ele vive de consciência pesadíssima<br />

por saber que pequenas traições, contanto que escondidas,<br />

são com ele mesmo. Por sua vez, a esposa falsa moralista<br />

é geralmente meio limitada, que estende toda a<br />

repressão recebida no colégio interno para cima das filhas<br />

moças. Mas, lá no fun<strong>do</strong>, ela a<strong>do</strong>ra contar piadas cabeludas<br />

para as amigas e, de vez em quan<strong>do</strong>, passa um batom<br />

e resolve que hoje é dia de paquerar no shopping. Como<br />

dizia o Geraldão, êta vida besta!


Falsos moralistas perigosos são os que condenam os<br />

radicalismos políticos e agem de mo<strong>do</strong> radical fora <strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s,<br />

ou mesmo aqueles que obrigam os filhos a ir à missa<br />

e ficam em casa folhean<strong>do</strong> Playboy. Falsos moralistas são<br />

aqueles que fazem longos sermões para os filhos sobre os<br />

problemas <strong>do</strong> uso de drogas e à noite fumam seu basea<strong>do</strong><br />

na festa <strong>do</strong>s amigos. Falsos moralistas são os padres que<br />

condenam o homossexualismo e depois são flagra<strong>do</strong>s com<br />

a<strong>do</strong>lescentes de calças arreadas. Falso moralismo é pregar<br />

economia e gastar escondi<strong>do</strong>, é ver alguém se dar mal e<br />

falar “está ven<strong>do</strong>, não avisei?”, é defender uma vida saudável<br />

e atacar uma bandeja de pururuca no boteco da<br />

esquina, é ser a favor da paz universal e viver a atacar o vizinho,<br />

é pedir perdão enquanto guarda mágoas antigas, é<br />

mentir saben<strong>do</strong> que está mentin<strong>do</strong> apenas para construir<br />

uma referência forte para si próprio.<br />

Se você é assim, consulte seu médico, porque o falso<br />

moralismo é contagioso.<br />

41


De mo<strong>do</strong> que meu espírito<br />

Ganhe um brilho defini<strong>do</strong><br />

Tempo, tempo, tempo, tempo<br />

E eu espalhe benefícios<br />

Tempo, tempo, tempo, tempo<br />

(Oração ao tempo, de Caetano Veloso)


ENVELHECER SEM MEDO<br />

VIVA A AMPULHETA<br />

Somos angustia<strong>do</strong>s desde a infância pela<br />

noção da morte. O homem é o único animal a ter<br />

esta noção. Cavalos, cães, tigres ou sapos<br />

demonstram apenas seus instintos de sobrevivência,<br />

não a consciência da sua finitude<br />

enquanto seres vivos. Terrível isso? Não.<br />

Fazer o quê? Só nos resta achar graça, muita graça.<br />

Tu<strong>do</strong> que está no planeta integra um ciclo de começo, meio<br />

e fim, seja rocha, material gasoso, célula, vegetal ou ameba.<br />

Tu<strong>do</strong> começa e cumpre determina<strong>do</strong> ciclo de existência,<br />

na lei natural em que se cede lugar à chegada de outras<br />

criaturas, outras manifestações da Mãe Natureza.<br />

Percebi<strong>do</strong> isso, nota<strong>do</strong> o que se chama inexorabilidade<br />

da vida, ou seja, o que não tem mesmo jeito, só nos resta<br />

viver, viver e viver. Cada segun<strong>do</strong>, cada fração de tempo.<br />

Sem olhar muito para trás e sem querer saber o que vem<br />

pela frente. Passa<strong>do</strong> e futuro parecem ficções. O que existe<br />

é o momento presente, aquele em que as coisas existem, em<br />

que os atos são feitos, em que o sangue pulsa nas veias, em<br />

que o nariz aspira oxigênio. Somos matéria. E dentro dessa<br />

matéria está o enigma da vida, o mistério da alma.<br />

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44<br />

Bom, escrevi esse preâmbulo acima apenas para me<br />

forçar, isso mesmo, me forçar a avaliar um assunto que<br />

ninguém gosta de ouvir: saber envelhecer. Semanalmente<br />

lemos reportagens que garantem méto<strong>do</strong>s revolucionários<br />

de conter a passagem <strong>do</strong> tempo no corpo<br />

humano, além <strong>do</strong> avanço <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s sobre alimentação.<br />

Para ver como o panorama é alenta<strong>do</strong>r, basta<br />

lembrar que no início <strong>do</strong> século 20 a tuberculose ainda<br />

era uma <strong>do</strong>ença mortal.<br />

Hoje podemos regenerar teci<strong>do</strong>s, alterar formas <strong>do</strong><br />

corpo, melhorar performances sexuais, calibrar os hormônios,<br />

moldar a silhueta, a<strong>do</strong>tar dietas rejuvenesce<strong>do</strong>ras,<br />

detectar problemas com antecedência, corrigir imperfeições,<br />

alongar a estatura, acrescentar cabelos, extirpar<br />

pêlos, polir a aura, renovar o espírito. Tu<strong>do</strong> parece possível,<br />

tu<strong>do</strong> parece estar à mão e tu<strong>do</strong> nos faz acreditar que não<br />

seremos anciãos decrépitos.<br />

Mas e daí? O que precisamos ter sempre em mente é<br />

que, em um belo dia, a matéria despenca. Ninguém, infelizmente,<br />

descobriu o elixir da eterna juventude. Esse<br />

tema é tão importante que os mitos de Narciso (autocontemplação<br />

pela beleza) e de Fausto (a entrega da alma em<br />

troca <strong>do</strong> não-envelhecimento) continuam presentes na<br />

consciência coletiva da humanidade. Ninguém quer entrar<br />

em degeneração física e atingir o fim de sua história. Eu<br />

também não.


Então, vamos tratar de contornar o precipício desde já.<br />

Envelhecer sem me<strong>do</strong> é possível, sim. Sempre parto da idéia<br />

de que a minha cabeça está cada vez melhor: sem mágoas,<br />

sem rancores, mais experiente, aberta a novidades, destemida,<br />

jovial. O contraponto é que o invólucro da cabeça, o<br />

tal <strong>do</strong> corpo, não acompanha esse ritmo, coita<strong>do</strong>. Então,<br />

toda atenção a ele, o corpo. Não existe mente boa sem um<br />

corpo são. Discor<strong>do</strong> radicalmente da possibilidade de um obeso<br />

feliz. Creio que as pessoas até têm a capacidade de se<br />

dizerem felizes, sem estarem nada felizes.<br />

Envelhecer sem me<strong>do</strong> é complica<strong>do</strong> e simples ao<br />

mesmo tempo, exatamente como acontece nas questões<br />

elaboradas da vida. Quan<strong>do</strong> o tempo avança e conseguimos<br />

manter o corpo em bom esta<strong>do</strong> de conservação,<br />

a carga da passagem <strong>do</strong> tempo se torna bem mais leve. O<br />

espelho deixa de assustar, as roupas não viram inimigas, a<br />

alimentação se torna um prazer, o amor pode acontecer,<br />

o olho continua a brilhar, os risos são constantes e o calendário<br />

parece uma bobagem. Sem excessos, a trilha<br />

pode ser longa.<br />

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Quem me telefonou<br />

Seus dramas contou<br />

Pois se sentia sozinho<br />

É meu amigo<br />

É isso o que eu tenho<br />

no mun<strong>do</strong>,<br />

em qualquer lugar<br />

(Quem perguntou por mim, de Milton Nascimento<br />

e Fernan<strong>do</strong> Brant)


AMIZADES<br />

ALÉM DO HORIZONTE<br />

Como quase to<strong>do</strong>s os temas atuais, a<br />

amizade também começa a virar mais um item<br />

de consumo. Ter amizade hoje em dia passou a<br />

significar enviar cartões virtuais, mandar<br />

mensagens engraçadas pelo celular, cantar parabéns<br />

bem alto, sair nas noites de sába<strong>do</strong><br />

para assistir um filme. Que pena.<br />

Ainda acredito que amizade é algo muito mais à<br />

frente disso tu<strong>do</strong>, além de abranger sentimentos de profundidade<br />

incomparável. Nada se compara a uma amizade<br />

sincera, de verdade, daquelas que se conta para ligar<br />

até as 4 da madrugada, nem que seja para pedir alívio na<br />

<strong>do</strong>r de cotovelo que não acaba nunca.<br />

Acho espantoso como as pessoas agora utilizam<br />

com freqüência a palavra amigo para gente que absolutamente<br />

não nutrem um naco sequer de amizade.<br />

Na grande parte das vezes, o que agora se chama amizade<br />

é apenas, e olhe lá, uma forma de companheirismo<br />

entre colegas de empresa, ou afinidades<br />

entre conheci<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mesmo bairro que saem para<br />

shoppings e baladas.<br />

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48<br />

Amigo é um termo forte, que ressoa no peito. Quem<br />

pode dizer que tem amigos nunca está só, nunca sente<br />

desamparo, nunca sofre de carência afetiva crônica. Digamos<br />

que os amigos preenchem aquele vácuo que qualquer<br />

amor sempre deixa, mesmo durante as fases boas de<br />

namoro e casamento. Um mari<strong>do</strong> ou um namora<strong>do</strong> jamais<br />

se equivale a um amigo, por mais que se esforce em parecer.<br />

Uma briga de namora<strong>do</strong>s pode significar trovões e relâmpagos<br />

durante uma semana, porque nenhum <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is toma<br />

providências de avançar o terreno para pedir perdão. Na<br />

amizade, um desentendimento costuma acabar em cenas<br />

dramáticas bem exageradas, feitas para que o outro comece<br />

logo a rir e a perceber a bobagem que estavam cometen<strong>do</strong>.<br />

Claro, nem sempre que <strong>do</strong>is amigos brigam a coisa<br />

acaba em bandeira branca. Mas se existir um fluxo contínuo<br />

de afeto, a amizade se mantém viva, tenaz, gratificante,<br />

envolvente e atraente. Amigos de verdade, aliás, não exigem<br />

nada <strong>do</strong> outro amigo. Ou exigem? Não pedem exclusividade,<br />

jamais reclamam se você an<strong>do</strong>u sumi<strong>do</strong>, não<br />

inventam desculpas bobas para justificar faltas cometidas,<br />

nem ligam para tomar satisfação de nada. Só sei que os<br />

bons amigos deixam tu<strong>do</strong> fluir, flutuar, espairecer, pois<br />

sabem que a amizade sobrevive a tremores de humores, a<br />

chás de sumiço e até a falta de notícias.<br />

Tenho amigos de anos a fio, verdadeiros tesouros da<br />

vida. Costuma ocorrer que fiquemos algum tempo sem


nos ver. Quan<strong>do</strong> vem o encontro, os primeiros diálogos<br />

parecem uma continuidade da última conversa que mantivemos<br />

há meses. Ou, quem sabe, anos antes. Sem<br />

cobranças, sem expectativas, sem mágoas, sem rancores,<br />

sem nada. Evitam tomar parti<strong>do</strong> durante uma separação,<br />

ou então tomam logo o seu parti<strong>do</strong>, imediatamente. Só<br />

perguntam sobre o trabalho depois de alguns minutos,<br />

para fugir <strong>do</strong> papo-escritório. Sobre a família, esperam<br />

primeiro você comentar algo. Namoros? Ah, isso cada<br />

bom amigo a<strong>do</strong>ra dar o máximo de força, pedir detalhes,<br />

esmiuçar quem são os pretendentes e rir das situações<br />

acontecidas.<br />

Os amigos são mesmo a alegria da vida. Mas, cuida<strong>do</strong>:<br />

recuse as imitações.<br />

49


APRENDER A FICAR SÓ<br />

NO SILÊNCIO DO QUARTO<br />

Somos educa<strong>do</strong>s desde pequenos a conviver<br />

em grupo, a resolver situações de mo<strong>do</strong> coletivo,<br />

a raciocinar segun<strong>do</strong> opiniões de consenso. OK.<br />

O problema é que nas sociedades ocidentais,<br />

diferentemente <strong>do</strong> que ocorre no Oriente, as<br />

pessoas nunca são ensinadas a pensar por si, a<br />

amadurecer opiniões e, o mais importante, a<br />

aprender a viver só consigo próprio.<br />

O pior é que to<strong>do</strong>s, nem que seja por um momento,<br />

acabam fican<strong>do</strong> sem ninguém. Então, logo surge o bicho da<br />

ansiedade, que nos obriga a reagir <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> mais primário<br />

possível: comer, falar, comer, falar. Confessar publicamente<br />

que se está só parece um ato vergonhoso, por denotar um<br />

raciocínio completamente erra<strong>do</strong>: “Se estou só é porque<br />

não encontro companhias, e se não encontro companhias é<br />

porque devo ser alguém desinteressante”.<br />

Para suprir essa ausência de alguém constantemente<br />

ao la<strong>do</strong> (note-se que não estou falan<strong>do</strong> de casamento),<br />

vale qualquer coisa: ligar a tevê, o toca-discos, falar ao<br />

telefone, abrir uma garrafa de vinho, comer <strong>do</strong>ces e abrir<br />

a geladeira de cinco em cinco minutos. Tu<strong>do</strong> ao mesmo<br />

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52<br />

tempo, lógico. Esse procedimento é comum, principalmente<br />

em grandes centros urbanos, onde se convive no<br />

trabalho com grandes quantidades de pessoas. Ao se<br />

chegar em casa, parece faltar algo: multidão.<br />

Engraça<strong>do</strong> é que deveríamos sentir alívio por chegar<br />

em casa, sem ter que continuar a ouvir o rumor das ruas,<br />

nem conviver na pressão <strong>do</strong>s aglomera<strong>do</strong>s humanos. Mas<br />

qual o quê. Mal se chega da rua e logo se inicia um ritual<br />

de suprir o suposto vazio. Isso também vale para quem<br />

mora com alguém: a aceleração é a mesma. Nunca se<br />

está satisfeito, nunca se relaxa, nunca se acalma.<br />

Podemos levar em conta que esse traço é um <strong>do</strong>s<br />

males da civilização moderna. Mas prefiro conduzir o<br />

assunto para outro la<strong>do</strong>, o de saber ficar só, o de aprender<br />

a ser só. Ou como disse Gilberto Gil em uma bonita<br />

canção, “eu preciso aprender a só ser”. Pois bem, quan<strong>do</strong><br />

chegar a tal constatação, quan<strong>do</strong> saber o momento<br />

de ouvir a voz que vem <strong>do</strong> interior de cada um?<br />

Ficar só é fundamental para se colocar as idéias em<br />

ordem, para analisar os acontecimentos <strong>do</strong> dia, para<br />

projetar o andamento da vida. Ficar só faz parte da<br />

essência humana, <strong>do</strong> aspecto animal que obriga cada ser<br />

a refletir, a se programar, a se corrigir. De nada adianta a<br />

humanidade se refugiar em paraísos artificiais ou recursos<br />

tecnológicos para fugir de si próprio. Precisamos<br />

saber nos desligar, nos desplugar, nos desconectar. Ficar


só engrandece, amadurece, suaviza, acalma. Saber ficar<br />

só é uma virtude.<br />

Importante observar quanto a isso: quantas vezes<br />

por semana tentamos fugir da situação de nos sentirmos<br />

sós? E por que agimos assim? Vale mesmo falar<br />

tanto ao telefone, assistir dezenas de filmes ruins na<br />

tevê, perder incontáveis horas nos bares, exercitar sem<br />

parar a musculatura da língua? Qual é o problema de<br />

sentar, cerrar os olhos, meditar e descobrir como somos<br />

grandiosos, interessantes e cheios de infinitas possibilidades?<br />

Ficar só é uma arte, uma ciência, uma religião.<br />

Reze para você mesmo.<br />

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Viver é bom, nas curvas da estrada<br />

Solidão que nada<br />

Viver é bom, partida e chegada<br />

Solidão que nada<br />

(Solidão que nada, de George Israel, Nilo Romero e Cazuza)


VIAGENS<br />

TERRENOS MINADOS<br />

Nada tão próximo <strong>do</strong>s sonhos como as viagens.<br />

Deslocar-se no mapa de um ponto a outro<br />

continua a ser um fator físico que modifica a<br />

percepção, aguça os senti<strong>do</strong>s e provoca aprendiza<strong>do</strong>.<br />

Mudar de paisagem, pisar em locais<br />

desconheci<strong>do</strong>s, ter acesso ao novo: viajar é a<br />

mais profunda forma de compreender a noção<br />

de espaço e tempo.<br />

Tu<strong>do</strong> pode ser assim, grandioso e importante. Contu<strong>do</strong>,<br />

to<strong>do</strong> viajante também acumula histórias às vezes complicadas<br />

ou situações esdrúxulas, porque o imprevisível faz<br />

parte <strong>do</strong> espírito das viagens. Senão, qual seria a graça em<br />

percorrer trajetos banais?<br />

O preâmbulo acima serve apenas para fazer pensar sobre<br />

outros aspectos <strong>do</strong> verbo viajar. Por exemplo: viajar com algum<br />

amigo. Viajar e se aborrecer. Viajar e se arrepender. Tu<strong>do</strong> é<br />

possível, a partir daquela hora em que se deixa a casa rumo a<br />

paragens distantes. Principalmente se vamos acompanha<strong>do</strong>s<br />

por pessoas que irão conviver conosco 24 horas <strong>do</strong> dia.<br />

Nos casamentos, as viagens são o grande teste para o<br />

relacionamento. Mais <strong>do</strong> que no convívio diário, um casal<br />

55


56<br />

em viagem precisa estar muni<strong>do</strong> de cinco arrobas de<br />

paciência e uma tonelada de companheirismo. Haverá<br />

convivências obrigatórias em táxis, aviões, camas de<br />

hotéis, visitas, refeições, compras, passeios, horários de<br />

despertar e o diabo a quatro. Tu<strong>do</strong> com direito a permanecerem<br />

juntos, cotovelo com cotovelo, por grandes<br />

perío<strong>do</strong>s <strong>do</strong> dia. Em lua-de-mel, lin<strong>do</strong>. Na vigésima<br />

viagem, suplício. Conselho: no meio da viagem seria ideal<br />

que cada um inventasse seus programas separa<strong>do</strong>s, desse<br />

um tempo para o outro, pedisse para ficar sozinho no<br />

hotel len<strong>do</strong> um livro, etc. Trocan<strong>do</strong> em miú<strong>do</strong>s, é muito<br />

importante procurar trazer <strong>do</strong>ses de alívio para que a<br />

viagem <strong>do</strong> casal não se torne uma chatice.<br />

Viagens com filhos também costumam ser transtornos,<br />

principalmente se os seus rebentos vão dividir a<br />

mesma suíte ou a mesma habitação. Tolerância zero para<br />

tevês ligadas, banheiros molha<strong>do</strong>s, correrias nos corre<strong>do</strong>res<br />

em dias chuvosos, reclamações constantes sobre a<br />

culinária local e mais 217 pequenos imprevistos, de comprar<br />

band-aid a trocar camisetas na megastore mais distante<br />

da cidade visitada. Como se nota, viagens também<br />

produzem olheiras.<br />

Chega, entretanto, a pior das viagens. Trata-se daquela<br />

que se convida um grande amigo, fazen<strong>do</strong>-se planos<br />

antecipa<strong>do</strong>s de muita diversão, saídas à noite, roteiros mirabolantes,<br />

bons jantares, museus, antiquários. Como são


poucos os que convivem ininterruptamente com amigos<br />

próximos, descobre-se durante a viagem que eles se encaixam<br />

na complicada categoria: de chatos. E que os hábitos<br />

<strong>do</strong> amigo denotam certa avareza irritante, certa displicência<br />

blasé, certos atrasos constantes, certas manias, certos mo<strong>do</strong>s<br />

bobos de se comportar.<br />

Até o terceiro dia, tu<strong>do</strong> podem ser flores. O impacto<br />

da viagem ainda permanece forte e capaz de anular as discrepâncias.<br />

Mas existe um momento – não se sabe quan<strong>do</strong><br />

esse momento acontece exatamente – em que o amigo<br />

começa a parecer o mais estranho <strong>do</strong>s seres em sua vida. E<br />

a tragédia ocorre: descobrir, em silêncio, que ele o incomoda<br />

bastante e que pode comprometer a viagem. Quan<strong>do</strong><br />

se atinge esse ponto de ebulição, é importante ter uma<br />

conversa direta e sincera, expon<strong>do</strong> o que incomoda.<br />

Caso contrário, o sentimento de arrependimento crescerá<br />

como o fermento da discórdia. E a sua tão bela viagem<br />

poderá acabar em cara feia, trombas e falta de assunto. Ou<br />

pior, antecipação <strong>do</strong> retorno. Ou pior ainda: término da<br />

amizade. Antes de pegar o próximo vôo das férias, verifique<br />

quem vai com você. Ou escolha a opção que sempre funciona:<br />

viajar sozinho. O mun<strong>do</strong> continuará lin<strong>do</strong>.<br />

57


GAFES E TRAPALHADAS<br />

A COMÉDIA DOS ERROS<br />

Sim, cometer gafes é terrível. Ninguém admite<br />

a possibilidade de parecer indiscreto, atrapalha<strong>do</strong>,<br />

bisbilhoteiro, mal<strong>do</strong>so, sem educação ou desrespeitoso.<br />

E quan<strong>do</strong> acontece tu<strong>do</strong> isso ao mesmo<br />

tempo? Mas existem formas, formas e formas de<br />

se compreender ou analisar as gafes cometidas<br />

por alguém. As piores são as que podem ser usadas<br />

como instrumento para reforçar idéias contrárias<br />

à presença de alguém, ou as que submetem<br />

pessoas atrapalhadas a julgamentos sociais.<br />

A velha sentença “falar de corda em casa de enforca<strong>do</strong>”<br />

poderia ser considerada a matriz da gafe. Quem nunca indagou<br />

notícias de pessoas que já haviam morri<strong>do</strong>, quem nunca<br />

tentou apresentar um inimigo a outro, quem nunca esqueceu<br />

o nome <strong>do</strong> amigo próximo, exatamente na hora mais importante<br />

da conversa? Atire a primeira pedra quem não revelou<br />

indiscrições que não deveriam ser ditas naquele momento ou<br />

quem nunca pediu informações constrange<strong>do</strong>ras?<br />

Conheço gente que derrubou tinta nanquim em vesti<strong>do</strong><br />

de noiva. Ou pessoas distraídas que abrem cartas dirigidas a<br />

pessoas amigas e descobrem fatos de arrepiar os cabelos.<br />

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60<br />

Existem muitos que fazem revelações maliciosas sobre determinada<br />

pessoa, para em seguida descobrir que abriu a boca<br />

para alguém muito íntimo de quem atacou. E aqueles que<br />

contam detalhes <strong>do</strong>s amigos e depois descobrem que o mesmo<br />

amigo soube em detalhes <strong>do</strong> que foi comenta<strong>do</strong>?<br />

Uma coisa é certa: as mulheres são mais vítimas das<br />

gafes <strong>do</strong> que os homens. A resposta? Elas falam mais, são<br />

bisbilhoteiras de plantão e a<strong>do</strong>ram instilar eventuais venenos.<br />

Mulheres também amam implicar com certos personagens<br />

ou enxergar disputas territoriais onde não existe nada.<br />

O resulta<strong>do</strong>: amizades que se rompem, pequenos escândalos,<br />

discussões e toneladas de perigosos equívocos.<br />

Precisamos, portanto, exercitar a ponderação, contar<br />

até cem a cada vez que baixar a vontade de avaliar o comportamento<br />

de alguém. Há situações em que as pessoas não<br />

sabem lidar com comportamentos excêntricos, ou mesmo<br />

traços marcantes, e transferem seus julgamentos para uma<br />

linguagem repleta de cobranças sociais. E nada mais desagradável<br />

<strong>do</strong> que ouvir um falso moralista, inspetor de salão<br />

ou <strong>do</strong>utor-sabe-tu<strong>do</strong>. Pior ainda, passar por zen-vergonha,<br />

que são os sonsos fingin<strong>do</strong> ser liberais. Mas na essência são<br />

altamente repressores.<br />

Vale refletir sobre isso. Gafes imper<strong>do</strong>áveis não faltam:<br />

ter mau caráter, ser ambicioso em excesso, demonstrar arrogância,<br />

falar em demasia, mentir sem motivos, acolher fofocas,<br />

repassar informações sigilosas, fingir amizade, roubar namo-


a<strong>do</strong>, atrair funcionários, ser presunçoso, entregar-se à preguiça,<br />

esconder fatos, ocultar negligências, ser displicente, ocupar<br />

espaço em ambientes públicos, achar graça em cometer pequenos<br />

furtos, brincar de ser saudável e continuar com os mesmos<br />

hábitos, não respeitar os ancestrais, enviar mensagens<br />

anônimas, ouvir conversas alheias, captar informações de mo<strong>do</strong><br />

sorrateiro, não limpar os pés no capacho, comer com ansiedade,<br />

falar demais de si próprio, dar sinais de que não presta<br />

atenção à conversa, mexer no controle remoto sem consultar<br />

os demais, fazer ligações interurbanas na casa de alguém sem<br />

pedir licença, fuçar arquivos <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r de um amigo,<br />

pedir coisas emprestadas e nunca devolver, não demonstrar<br />

gratidão, obrigar os amigos a conviver com o barulho das suas<br />

crianças, criar animais <strong>do</strong>mésticos apenas por modismo, gastar<br />

além <strong>do</strong> que pode, aplaudir desgraças alheias, fumar em ambientes<br />

fecha<strong>do</strong>s e dizer que é direito seu, casais que discutem<br />

na rua, beijar ardentemente o parceiro em qualquer local público,<br />

andar o tempo to<strong>do</strong> de mãozinhas dadas com o seu par,<br />

falar alto em restaurantes, tratar mal os emprega<strong>do</strong>s, diminuir<br />

o esforço de alguém, não ser gentil, criticar a opção sexual,<br />

pedir favores profissionais a um profissional, ficar impassível na<br />

hora em que recebe a conta, chegar atrasa<strong>do</strong> a qualquer compromisso,<br />

provocar temores, ser alarmista, contar vantagem,<br />

fingir que não vê alguém, ser sovina, não amar o próximo, não<br />

admitir que errou e, principalmente, nunca pedir desculpas.<br />

O resto vale. Ou não?<br />

61


MODA<br />

LANCES E RELANCES<br />

Antes de iniciar essa costura, é bom esclarecer:<br />

a moda não pode mais ser compreendida<br />

como algo frívolo. O que usamos e vestimos<br />

reflete exatamente a época em que vivemos, a<br />

partir de uma série infindável de releituras, códigos,<br />

símbolos e referências. Talvez o grande lance<br />

da moda contemporânea seja o de permitir<br />

milhares de combinações, escolhas e possibilidades,<br />

no mesmo ritmo em que se compartimenta<br />

por segmentos bem específicos de consumo.<br />

Quero contar como foi e como passou a ser minha<br />

relação com a moda. Quan<strong>do</strong> me tornei obesa, tu<strong>do</strong>,<br />

obviamente, era um gigantesco tormento. Aquele tormento<br />

que os gor<strong>do</strong>s conhecem bem: provar roupas que não<br />

entram, raramente encontrar peças adequadas e tantas<br />

outras situações deploráveis. No meu caso, eu só usava<br />

calças fuseau com camisões por cima. Nada deslumbrantes,<br />

porém corretos e discretos.<br />

Depois das mudanças de layout ocorridas na minha<br />

figura (e no layout da cabeça, também), detectei um fator<br />

novo na vida: descobri que sou tridimensional. Isso mesmo,<br />

63


64<br />

descobri pelo espelho a tridimensionalidade <strong>do</strong> corpo! No<br />

tempo da obesidade eu só me via de frente e de costas.<br />

Não havia la<strong>do</strong>s, saliências, reentrâncias, volumes separa<strong>do</strong>s,<br />

nada. Eu era uma massa compacta.<br />

Adaptar-me ao meu novo perfil de mulher magra<br />

também não foi nada fácil. Os ex-gor<strong>do</strong>s demoram um<br />

tempo para se livrar da sombra de sua antiga silhueta. Passei<br />

então a ler muito, a buscar informações e a observar<br />

preferências. Tu<strong>do</strong> me parecia novidade, mas seria preciso<br />

encontrar a trilha própria. Coloquei to<strong>do</strong>s os modelos que<br />

gostava e os que não gostava, fiz testes com golas<br />

re<strong>do</strong>ndas, baba<strong>do</strong>s de ombro a ombro, alças e decotes.<br />

Maravilha <strong>do</strong>s deuses poder, finalmente, ter acesso ao que<br />

me era proibi<strong>do</strong> no tempo de obesidade.<br />

Centímetro a centímetro, botão a botão, consegui<br />

assim elaborar um estilo. Ou melhor, o meu mix de influências.<br />

Hoje vejo que me visto de mo<strong>do</strong> clássico, com toques<br />

de perua. Gosto – e me permito – usar adereços, jóias,<br />

roupas de cores fortes, cortes insinuantes e braços de fora.<br />

Exatamente o contrário <strong>do</strong>s tempos de “roliça rebelde”.<br />

Naquele perío<strong>do</strong>, bastava colocar um cinto para parecer<br />

que explodiria tu<strong>do</strong>: figurino, cintura, costuras e até as<br />

paredes ao re<strong>do</strong>r. Ah, como é bom ser magra.<br />

Como essas descobertas ainda são recentes, divirtome<br />

combinan<strong>do</strong> trajes ou arriscan<strong>do</strong> combinações. Roupa<br />

nova, a<strong>do</strong>ro. Sinto raiva de quem tem corpo legal e não o


valoriza. Por exemplo: tenho horror daqueles que usam<br />

roupa velha para ficar em casa, com figurinos destrambelha<strong>do</strong>s,<br />

molengos e com cara de relaxo. Amo estar sempre<br />

impecável. Ninguém sabe o que pode acontecer no próximo<br />

minuto, não?<br />

Aprendi que estilo precisa ser um tom maior de se<br />

encarar a vida, de se olhar para as situações, de se reagir<br />

ao inespera<strong>do</strong>. Em moda vale perguntar, pedir opinião ao<br />

espelho, não agir por impulso, namorar o vesti<strong>do</strong> da vitrine,<br />

evitar roupas que provoquem insegurança, saber como<br />

mostrar o corpo, entender que nem sempre o menos é<br />

mais e não se entregar a embalagens que não foram<br />

desenhadas para você. Porque na esfera <strong>do</strong> estilo nem<br />

tu<strong>do</strong> é necessariamente universal, usável ou dura<strong>do</strong>uro.<br />

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Vai, vai mesmo<br />

Eu não quero você mais<br />

nunca mais<br />

Tenha a santa paciência<br />

Ponha a mão na consciência<br />

Deixe-me viver em paz<br />

(Vai mesmo, de Ataulfo Alves)


SOMATÓRIO DE ERROS<br />

ERRO AO QUADRADO<br />

Acho que to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> já passou pela situação<br />

de ter que dispensar alguém de sua vida.<br />

Esse alguém pode ser funcionário, amigo,<br />

namora<strong>do</strong> ou amante. Óbvio que a situação é<br />

sempre delicada e nos deixa cheios de de<strong>do</strong>s<br />

na hora de elaborar palavras elementares ou<br />

para atingir o ponto de apertar o botão Sumase!<br />

para sempre.<br />

E como se chega a ponto tão crítico assim? Aí o bicho<br />

pega. Cada história apresenta o seu roteiro, alguns parecen<strong>do</strong><br />

rocamboles, outros com jeito de labirinto. Mas há uma<br />

unanimidade sobre o assunto: as pessoas são dispensadas<br />

por pisadas na bola, por desatenção desmedida, por caráter<br />

duvi<strong>do</strong>so, por mentiras seqüenciadas, por bajulação excessiva,<br />

por falta de noção e por invasão de espaço alheio.<br />

O problema, talvez, é não se perceber como cada um<br />

difere <strong>do</strong> outro, exatamente <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> que os países<br />

podem ser antagônicos em culturas, características geográficas<br />

e idiomas. Se às vezes ocorrem aproximações,<br />

são meros movimentos diplomáticos e políticas de boavontade.<br />

No mais, tu<strong>do</strong> continua como antes.<br />

Voltan<strong>do</strong> ao começo <strong>do</strong> tema, para se atingir o ponto X<br />

67


68<br />

de enviar alguém ao espaço, será preciso ter suporta<strong>do</strong><br />

várias situações irritantes e diversas trapalhadas. Na maioria<br />

das vezes, quem comete as infrações não percebe nada.<br />

Ou quan<strong>do</strong> leva uma chamada, arrepia-se feito jaguatirica<br />

pronta a dar o bote. Incrível como existem personagens<br />

sem a menor humildade para ouvir, aprender ou reconhecer<br />

erros, mesmo que essa reprimenda seja feita em tom bran<strong>do</strong>,<br />

educa<strong>do</strong> e aproximativo.<br />

Conheço histórias de pessoas que vivem pulan<strong>do</strong> de emprego,<br />

sempre em atritos internos aparentemente bobos. Alegam<br />

ser incompreendidas. Tu<strong>do</strong> bem, isso pode acontecer em<br />

alguns casos. Na real, entretanto, a situação é a seguinte: é<br />

gente de nariz empina<strong>do</strong> na alma, que jamais se <strong>do</strong>braria perante<br />

uma simples bronca. Pior: jamais se acham fora de rota,<br />

jamais cometem deslizes, jamais deixariam de ser perfeitas.<br />

Considero uma virtude poder ouvir alguém mais<br />

experiente ou desfrutar <strong>do</strong>s conhecimentos mais amplos<br />

de determina<strong>do</strong> amigo. Precisamos ter essa capacidade de<br />

admirar, de reconhecer análises mais elaboradas, de aceitar<br />

propostas rejeitadas, de compreender que não temos a<br />

chave <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Tento ser assim, torcen<strong>do</strong> meu orgulho<br />

to<strong>do</strong> dia, baixan<strong>do</strong> meu topete e engolin<strong>do</strong> palavras que<br />

ficam prontas para pular da boca.<br />

Então, espero que aconteçam aprendiza<strong>do</strong>s semelhantes<br />

com quem convivo. Quan<strong>do</strong> não há, exercito meu<br />

la<strong>do</strong> de monja: olho para a janela, observo as nuvens e


agüento o tranco. Com litros de paciência. Suporto uma,<br />

duas, três, quatro. Mas num belo dia a monja roda o<br />

hábito. E aciona o seu coman<strong>do</strong> invisível que dispara pequenos<br />

raios e relâmpagos. Isso significa que aquela pessoa<br />

que incomodava tanto já não irá mais pisar na bola,<br />

muito menos dividir diálogos comigo. Não desejo nenhum<br />

descaminho aos que cometem somatórios de erros. Ao<br />

contrário: torço com sinceridade para que acertem o rumo,<br />

percam a altivez e ganhem concentração na vida. Voilà!<br />

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Dia<br />

&<br />

Noite


Na primeira manhã<br />

que te perdi<br />

Acordei mais cansada<br />

que sozinha<br />

Como quem perde o prumo<br />

e desatina<br />

(Na primeira manhã, de Alceu Valença)


A PRIMEIRA VEZ<br />

SESSÃO DE ESTRÉIA<br />

Ah, a primeira vez. Toda primeira vez é um<br />

mergulho no desconheci<strong>do</strong>, seja em qualquer<br />

tipo de ação ou de acontecimento. O resulta<strong>do</strong><br />

pode ser bom, ruim, mediano, complica<strong>do</strong>,<br />

inesquecível, marcante, desanima<strong>do</strong>r, delirante,<br />

traumático, apaixonante, repelente, <strong>do</strong>s deuses<br />

ou <strong>do</strong>s infernos. Cada pessoa tem histórias a<br />

contar sobre a primeira vez que fez algo.<br />

A primeira vez pode ser sexo, uma estréia em teatro,<br />

uma receita culinária, uma viagem de navio, um salto de<br />

trampolim, um quadro, um beijo, a chegada de um filho,<br />

um sutiã, um livro, um casaco de tricô, um <strong>do</strong>ce, um amor,<br />

um sonho.<br />

A primeira vez pode significar embaraço, me<strong>do</strong>, erro,<br />

primarismo, inexperiência, ousadia, arrojo, valentia, determinação,<br />

preparação, desejo, impulso, delírio, bobagem,<br />

sucesso. Quem disse que muitos não acertam logo na<br />

primeira vez? Muitos, aliás, ficam marca<strong>do</strong>s por seus<br />

primeiros acertos profissionais, por mais que façam tentativas<br />

posteriores. Muitos também desaparecem de cena<br />

depois de uma estréia sem talento, depois de um beijo mal<br />

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74<br />

da<strong>do</strong>, depois de um bolo queima<strong>do</strong>. Quantos não sentem<br />

saudade da primeira vez em que viram a neve, da primeira<br />

vez que tomaram um pileque ou da primeira vez que sentiram<br />

prazer com alguém?<br />

Já nascemos com a estranha capacidade de querer<br />

experimentar tu<strong>do</strong> o que aparece. Basta ver a criança na<br />

fase oral, que coloca to<strong>do</strong>s os objetos na boca, para que<br />

possa compreender através daquele contato a textura, o<br />

sabor, o volume e até se vale a pena insistir no aprendiza<strong>do</strong>.<br />

Os testes com a boca evoluem com o tempo, mas continuamos<br />

curiosos e impeli<strong>do</strong>s a fazer coisas que nunca<br />

realizamos antes. Com me<strong>do</strong> ou sem me<strong>do</strong>, o que vale é se<br />

jogar no tobogã da vida.<br />

Quebrar a cara faz parte das experiências. Ainda bem.<br />

Seria muito chato se todas as primeiras vezes fossem<br />

momentos sublimes. Bem melhor poder contar, depois de<br />

anos, como foi a sua reação quan<strong>do</strong> se viu pela<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong><br />

de alguém também pela<strong>do</strong>, por exemplo. Encolheu a barriga,<br />

relaxou, aproveitou, ficou tími<strong>do</strong>, deitou e rolou?<br />

Tu<strong>do</strong> se torna diverti<strong>do</strong> e importante na formação de qualquer<br />

um. Basta ter olhos diverti<strong>do</strong>s para descomplicar os<br />

novelos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>.<br />

A primeira vez em qualquer trabalho também é<br />

dureza: tu<strong>do</strong> parece estranho e capaz de provocar o seu<br />

imediato desligamento. A primeira vez em uma viagem é<br />

quase uma aula sobre o mun<strong>do</strong> e a nossa função aqui nes-


sa imensidão planetária. E o primeiro me<strong>do</strong>? Pode ter<br />

aconteci<strong>do</strong> na roda-gigante, na escuridão <strong>do</strong> bosque, na<br />

bronca <strong>do</strong> professor, no susto da madrugada, na perda <strong>do</strong><br />

amigo, no ciúme de alguém.<br />

A primeira alegria talvez ninguém registre na memória,<br />

porque sentir-se alegre faz parte da condição humana desde<br />

a menor infância. A primeira decepção to<strong>do</strong>s guardam dentro<br />

<strong>do</strong> vinagre <strong>do</strong> rancor e estará sempre disponível quan<strong>do</strong><br />

solicitada. A primeira conquista, essa sim, faz estufar a alma<br />

e o peito de empresários a pilotos, de agricultores a escritores,<br />

de conquista<strong>do</strong>res a conquista<strong>do</strong>s.<br />

Bom, se tu<strong>do</strong> tem, obrigatoriamente, uma primeira<br />

vez, nem adianta se lastimar. Vale mais é armazenar sensações<br />

calorosas, cálidas, amistosas, sensuais, bem-sucedidas,<br />

curiosas, excitantes, apaixonantes ou mirabolantes.<br />

Nem que a primeira vez tenha si<strong>do</strong> uma catástrofe. E daí?<br />

Há sempre uma primeira vez. Certo?<br />

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76<br />

A ÚLTIMA VEZ<br />

ACABOU-SE O QUE ERA DOCE<br />

A última vez pode trazer vários sentimentos<br />

e sensações: alívio, <strong>do</strong>r, concretização, perda,<br />

vantagem, acúmulo, desfecho, solução, partida,<br />

despedida, ausência definitiva de repetição, decisão,<br />

interrupção, ponto final. A última vez<br />

lembra lenços brancos na despedida e também<br />

lembra felicidade por ter, finalmente, atingi<strong>do</strong><br />

a esperada etapa final de um acontecimento. A<br />

única carga terrível encerrada no termo a última<br />

vez pode ser a expressão nunca mais.<br />

A última vez, portanto, só se torna definitiva com a<br />

passagem <strong>do</strong> tempo. Ninguém pode garantir que “esta é a<br />

última vez que procuro por você”, como os namora<strong>do</strong>s e<br />

os amantes costumam proferir em momentos de pouca<br />

lucidez. Se realmente não se encontrarão mais, é decisão<br />

<strong>do</strong> destino. E cada um só poderá afirmar “a última vez que<br />

o vi” depois de um longo perío<strong>do</strong> de confirmação <strong>do</strong> afastamento<br />

definitivo. Senão estaremos diante da tragicomédia<br />

da vida amorosa, que permite idas e vindas como as<br />

marés, e onde nada costuma ser definitivo. Não é assim? O<br />

compositor Noel Rosa escreveu uma letra que dizia assim:


“Jurei não mais amar, pela décima vez”. Isso, cá entre nós,<br />

demonstrava a sua imensa sabe<strong>do</strong>ria.<br />

Bom, vamos mudar de canal? Fazer algo pela última<br />

vez também pode provocar alívio, essa palavra linda que<br />

parece um bálsamo para qualquer situação possível. Não é<br />

delicioso sentir-se alivia<strong>do</strong> porque, pela última vez, fez a<br />

aula final <strong>do</strong> curso, ou porque deixará de voltar àquela<br />

situação X que tanto evitava? Às vezes o destino nos dá<br />

uma rasteira e acabamos por voltar a situações que pareciam<br />

absolutamente improváveis de acontecer novamente.<br />

E lá vamos nós, murchos, de rabo entre as pernas.<br />

De repente começo a perceber que pronunciar a<br />

última vez é uma tarefa complicada e que, aparentemente,<br />

só as situações de morte traduzem sua real amplitude.<br />

Dizer que fará algo pela última vez? Quem garante<br />

que não? Ninguém. Só as impossibilidades físicas<br />

impedem algo de acontecer mais uma vez. Vamos supor,<br />

por exemplo, que você teve um namoro com alguém da<br />

Hungria, há muitos anos. Mesmo assim, não há garantia<br />

de que a última vez que vocês se encontraram foi a última<br />

vez definitiva. Nas voltas que o mun<strong>do</strong> costuma dar,<br />

existem incontáveis possibilidades de se encontrar com o<br />

seu antigo amor húngaro no meio da rua – por meio das<br />

travessuras que o destino a<strong>do</strong>ra fazer com to<strong>do</strong>s. Uma<br />

amiga que tenho, outro exemplo, ficou pasma ao encontrar,<br />

no trigésimo-segun<strong>do</strong> andar de um hotel de Tóquio,<br />

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78<br />

com um garçom cearense que conhecera muitos anos<br />

antes no Brasil.<br />

A última vez fica terrível quan<strong>do</strong> sabemos que alguém<br />

muito especial se foi para sempre, tornan<strong>do</strong> uma situação<br />

irremediável, sem volta, sem possibilidades físicas de contato.<br />

Então podemos, assim, de verdade, dizer nunca mais ou que<br />

houve uma última vez em tal história. OK, mas vamos virar<br />

corren<strong>do</strong> esta página <strong>do</strong> livro porque prometo ser a última<br />

vez em que escrevo sobre a última vez. Será que terei que<br />

jurar dez vezes? Pela última vez, acredito que não.


RITUAL DAS REFEIÇÕES<br />

SABER COMER, SABER VIVER<br />

Acompanho com enorme interesse um movimento<br />

que só existe na Europa, chama<strong>do</strong> de<br />

slow food. A tradução <strong>do</strong> termo significa literalmente<br />

comida lenta, ou comida sem pressa. É o<br />

contrário de fast food, comida apressada, comida<br />

de balcão e uma das pragas da vida moderna.<br />

O movimento slow food procura trazer de volta o ritual<br />

das refeições, a confraternização à mesa, a alegria de compartilhar<br />

a comida com amigos, a leveza e a alegria que a alimentação<br />

deveria sempre proporcionar aos comensais. Tu<strong>do</strong><br />

em ritmo desacelara<strong>do</strong>, para que cada pessoa possa valorizar<br />

os aromas, as texturas e as receitas, além de encontrar<br />

pessoas em busca de conversas amenas e inteligentes.<br />

Vivemos em um país que, talvez pela péssima influência<br />

<strong>do</strong>s hábitos norte-americanos, começa a aban<strong>do</strong>nar o<br />

costume de almoçar e jantar com a dignidade que o ato de<br />

se alimentar pede de cada um. As pessoas optam, cada vez<br />

mais, por lanches calóricos, sucos industrializa<strong>do</strong>s e locais<br />

barulhentos. Poucos ainda se dedicam a sentir prazer no<br />

ato de comer, que é uma ação quase sagrada, por ser a<br />

única forma de se renovar a energia <strong>do</strong> corpo.<br />

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80<br />

Fico assustada ao ver pessoas comen<strong>do</strong> em pé, quase<br />

enfian<strong>do</strong> um hambúrguer pela goela abaixo. Mesmo<br />

quan<strong>do</strong> têm um pouco mais de tempo, elas preferem<br />

comer de mo<strong>do</strong> apressa<strong>do</strong>, como se estivessem sen<strong>do</strong> empurradas<br />

por alguém. Comem, ou melhor, engolem,<br />

sorvem refrigerantes o dia inteiro e reduzem sua alimentação<br />

a uma cadeia de alta ansiedade.<br />

Água, por exemplo, deixou de ser o líqui<strong>do</strong> mais consumi<strong>do</strong><br />

no planeta há mais de 20 anos. Você sabia disso? O<br />

consumo de refrigerantes suplantou, com grande diferença,<br />

o consumo de água. E por quê? Talvez o homem<br />

contemporâneo considere ao pé da letra os slogans publicitários<br />

<strong>do</strong>s refrigerantes, que prometem ação, emoções<br />

fortes e muita adrenalina. Tomar água deve parecer coisa<br />

da terceira idade.<br />

Então, voltan<strong>do</strong> à premissa inicial, vivo a falar, em<br />

palestras ou em encontros menores, da importância de se<br />

voltar a comer sem pressa. De nada adianta, inclusive, entrar<br />

em dietas e continuar a comer de mo<strong>do</strong> ansioso. Os resulta<strong>do</strong>s<br />

serão sempre menores. Para reeducar a alimentação<br />

também é preciso reeducar a atitude perante o alimento.<br />

Nada tão simples e nada tão complexo quanto uma<br />

simples berinjela ou um ovo. Procure observar como são os<br />

legumes, as verduras, as proteínas que se transformam em<br />

receitas elaboradas para vir à mesa. Procure apalpar as frutas,<br />

cheirá-las, sentir a textura das cascas, saborear lenta-


mente uma mordida, deixar o paladar em êxtase. Há quanto<br />

tempo você não faz isso? E por mais quanto tempo pretende<br />

continuar almoçan<strong>do</strong> um sanduíche de três andares?<br />

A vida acaba ou se renova to<strong>do</strong>s os dias. Precisamos<br />

estar atentos à quantidade de toxinas e de alimentos equivoca<strong>do</strong>s<br />

que ingerimos. Quem muda a alimentação, muda<br />

de vida. E quem muda a forma de se comportar na hora das<br />

refeições, enaltece o espírito e celebra a própria existência.<br />

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CUMPLICIDADE<br />

PISCADELAS DE OLHO<br />

Ser cúmplice traz inicialmente um senti<strong>do</strong><br />

de alguém com quem se divide um delito, ou<br />

algo erra<strong>do</strong>. Certo? Erra<strong>do</strong>. A cumplicidade<br />

também costuma aparecer como uma participação<br />

efetiva de algum parceiro em algo<br />

específico. Trocan<strong>do</strong> em miú<strong>do</strong>s, o cúmplice<br />

pode ser o seu sócio de travessuras pela vida<br />

afora, o avalista de to<strong>do</strong>s os seus rompantes<br />

inespera<strong>do</strong>s e, melhor ainda, aquele que pisca<br />

o olho feito um anjo protetor na hora que você<br />

pede socorro publicamente.<br />

Sob aspectos mais amplos, os cúmplices nem precisam<br />

ser apenas duas pessoas. Pode-se muito bem inventar<br />

uma confraria de cumplicidades sobre um mesmo<br />

objetivo, sobre um tema aproximativo ou sobre formas<br />

semelhantes de compreender o vaivém da vida. Com um<br />

ban<strong>do</strong> de gente amiga.<br />

Um cúmplice entra em ação de mo<strong>do</strong> silencioso,<br />

porque aí reside a graça da cumplicidade. Não se deve evidenciar<br />

nunca quais são as suas bases de sustentação. O<br />

bom é deixar esse rastro de mistério, como se fosse uma<br />

83


84<br />

rede de conexões e de senhas que só nós, os cúmplices,<br />

conhecemos.<br />

Para se estabelecer essas cumplicidades será preciso,<br />

antes de qualquer ação, haver algum tipo de sintonia,<br />

algum tipo de opinião em comum, algum direcionamento.<br />

Não que da cumplicidade deva surgir necessariamente<br />

uma obra ou um fato concreto. Ser cúmplice é ter uma<br />

aliança invisível, para o que der e vier. De preferência em<br />

situações que provoquem muitas risadas depois.<br />

O bom humor deveria ser o combustível das cumplicidades.<br />

Sabe aquele amigo que o incentiva a fazer traquinagem<br />

com alguém bem chato, só para vocês se deleitarem<br />

depois, às gargalhadas, com o ocorri<strong>do</strong>? Sabe aquela amiga<br />

que passa bilhetes com deliciosas bobagens no meio de<br />

uma reunião maçante? É isso. O melhor da cumplicidade é<br />

tentar controlar o riso e viver inventan<strong>do</strong> pequenos terrorismos<br />

poéticos para testar a reação das pessoas. E quan<strong>do</strong><br />

ninguém sabe a autoria de uma ação, por mais inócua que<br />

seja, é um momento indescritível dividir a sensação de<br />

vitória com algum cúmplice.<br />

A cumplicidade corre em trilhos paralelos à amizade.<br />

Cúmplices não se cobram por nada. De vez em quan<strong>do</strong> até<br />

atualizam as conversas, mas não ficam comentan<strong>do</strong> ou<br />

estenden<strong>do</strong> demais um assunto. Cúmplice ideal é aquele<br />

rápi<strong>do</strong>, que pega as coisas no ar, que sabe ser criativo,<br />

inventivo, brincalhão e manter a cara mais séria <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.


Isso porque um cúmplice se torna co-autor da ação<br />

cometida por você. Dá para entender? A cumplicidade gera<br />

elos de aproximação, de quase dependência e de uma<br />

intensa parceria moral. Um sinal com a mão, um telefonema<br />

rápi<strong>do</strong>, uma palavra ao ouvi<strong>do</strong>, duas piscadelas de olho<br />

e o roteiro está pronto. Com bons cúmplices ao la<strong>do</strong>,<br />

suportamos qualquer baque na vida: eles sabem levantar<br />

nosso ânimo, sabem arrasar com o caráter <strong>do</strong>s que nos fizeram<br />

ficar mal, sabem como injetar ânimo em nossas<br />

reações. Um cúmplice é um amigo com a elegância de um<br />

mor<strong>do</strong>mo, a sabe<strong>do</strong>ria de um feiticeiro, a rapidez de um<br />

matemático, a sensatez de um diplomata e a disposição<br />

anárquica de um comediante. Tu<strong>do</strong> em segre<strong>do</strong>. Não é o<br />

máximo? Procure já formar um time de cúmplices <strong>do</strong> bem.<br />

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86<br />

HORA DO BANHO<br />

PRO DIA NASCER FELIZ<br />

Habitar grandes cidades significa pouco<br />

ou quase nenhum tempo priva<strong>do</strong>, tempo para<br />

se ficar a sós, tempo para colocar a cabeça em<br />

ordem. Não vale dizer que existem por aí dezenas<br />

de academias de ioga ou centros de meditação,<br />

porque mesmo em situações assim estaremos<br />

próximos a outras pessoas na idêntica busca<br />

por isolamento, relaxamento, elevação e autoconhecimento.<br />

Descubro, portanto, que o último<br />

reduto a me permitir estar completamente isolada<br />

é o banheiro.<br />

Intuitivamente, com o passar <strong>do</strong> tempo, transformei o<br />

meu banheiro em uma sala de banhos, com tu<strong>do</strong> a que<br />

teria direito para sair renovada. Pena lembrar que a maioria<br />

das pessoas considera que o banheiro apenas uma parte<br />

na planta da casa reservada à higiene <strong>do</strong> corpo, nunca à<br />

higiene mental. Muitos também tratam o banheiro de<br />

mo<strong>do</strong> relaxa<strong>do</strong>, sem charme, sem elegância, por achar que<br />

não é uma área nobre. Sempre penso que o banheiro<br />

reflete a elegância da casa, a hospitalidade <strong>do</strong>s <strong>do</strong>nos, a<br />

personalidade <strong>do</strong>s que habitam um endereço.


Bom, mas como transformar de forma adequada esse<br />

local? Primeiro, o banheiro precisa ter algumas referências<br />

pessoais agradáveis, como uma planta bem-cuidada, uma<br />

gravura que traga boas lembranças, toalhas nas cores que<br />

se gosta e cheiros suaves. Nem é preciso gastar muito para<br />

se obter resulta<strong>do</strong>s de efeito, simples e gostosos de ver.<br />

Um quadro, uma toalha felpuda, um vaso de flores, uma<br />

luz indireta, espelho poli<strong>do</strong>, sabonete cheiroso e pronto.<br />

Mas o melhor <strong>do</strong> banheiro está em saber aproveitar o<br />

momento de se banhar na água que jorra <strong>do</strong> chuveiro.<br />

Tenho tendência a me prolongar ali um tanto além <strong>do</strong> que<br />

devia, embora procure me corrigir para evitar desperdício<br />

de água – esse bem tão precioso para o planeta. Então<br />

aproveito cada segun<strong>do</strong> em que ocorre o contato desse<br />

líqui<strong>do</strong> renova<strong>do</strong>r com a pele, com os cabelos, com a alma.<br />

A água é um elemento quase misterioso, por sua fluidez,<br />

por sua rapidez, por suas capacidades adstringentes, por<br />

sua mobilidade física de líqui<strong>do</strong>. A água é algo sagra<strong>do</strong>.<br />

E desse contato da água com o meu corpo saem as<br />

impurezas adquiridas durante o dia, saem as idéias pesadas,<br />

saem as sensações de desânimo, saem as amarguras<br />

<strong>do</strong> espírito. Um banho é capaz de trazer novo ânimo,<br />

ressaltar intenções, animar o cérebro, restaurar a umidade<br />

da pele, recarregar as baterias <strong>do</strong> otimismo necessário para<br />

enfrentar outras jornadas e, acima de tu<strong>do</strong>, colocar a<br />

cabeça em ordem.<br />

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88<br />

Banhar-se às vezes é como chorar, deixar fluir aquilo<br />

que precisa sair, aquilo que impede o fluxo energético,<br />

aquilo que trava a garganta. Banhar-se é saber se renovar,<br />

se gostar, se admirar, se cuidar. Um bom banho tem ação<br />

terapêutica, arruma a desordem <strong>do</strong>s neurônios e traz luz<br />

sobre fatos aparentemente obscureci<strong>do</strong>s pelo cansaço.<br />

Meu banho, minha terapia de cada dia. Meus banhos,<br />

meus momentos de isolamento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Meus<br />

banhos, minha limpeza de alma, de aura, de ânimo. E viva<br />

a água, essa seiva que traz vida à natureza, que movimenta<br />

os ciclos ecológicos e que sempre significará fertilidade.


VIDA DOCE<br />

ALÔ, DOÇURAS<br />

Gostosuras, travessuras, <strong>do</strong>çuras e delícias.<br />

Fiz, há pouco, um livro inteiramente volta<strong>do</strong> a<br />

um <strong>do</strong>s temas mais preocupantes para quem<br />

deseja se manter em forma: os <strong>do</strong>ces. Parece,<br />

inicialmente, um tema tolo, mas não é. E nem<br />

está liga<strong>do</strong> apenas às questões de silhueta. Vou<br />

explicar o porquê.<br />

O açúcar, no grande painel da história da humanidade,<br />

é um elemento recente: entrou em cena por volta <strong>do</strong><br />

século 16, a partir <strong>do</strong>s grandes descobrimentos e <strong>do</strong> crescimento<br />

das legendárias rotas de comércio marítimo. A sua<br />

forma refinada, que agora <strong>do</strong>mina o consumo mundial, é<br />

um processo bastante recente, advin<strong>do</strong> <strong>do</strong> século 20.<br />

Entretanto, os confeiteiros já desenvolviam técnicas<br />

apuradas <strong>do</strong> uso <strong>do</strong> açúcar, desde os grandes banquetes<br />

das cortes francesas. Naquele perío<strong>do</strong> ninguém nem<br />

sequer sonhava com taxas de colesterol, glicídios ou excesso<br />

de glicose. O que valia era se empanturrar, viver<br />

espremi<strong>do</strong> entre espartilhos torturantes, administrar os<br />

constantes problemas de saúde e morrer. Sem levar em<br />

conta os malefícios bucais que o consumo <strong>do</strong> açúcar pro-<br />

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90<br />

duzia nos perío<strong>do</strong>s em que a escova de dentes era uma<br />

ficção científica. As pessoas ficavam sem dentes aos 30<br />

anos. E depois ainda queremos glamourizar os personagens<br />

que freqüentavam o Palácio de Versalhes.<br />

Mas a humanidade sempre esteve voltada aos<br />

sabores que a<strong>do</strong>cicassem o paladar. Nos tempos antigos,<br />

os escritos consagram os prazeres <strong>do</strong> mel e <strong>do</strong> néctar das<br />

frutas. Poetas, profetas e prega<strong>do</strong>res sempre relacionavam<br />

o sabor a<strong>do</strong>cica<strong>do</strong> às visões <strong>do</strong> paraíso. No céu, os fiéis<br />

teriam, entre outras recompensas, muito mel a jorrar das<br />

fontes, muitas frutas <strong>do</strong>ces colhidas à mão. A vida deveria<br />

ser tão dura – e tu<strong>do</strong> tão precário – que só o sabor <strong>do</strong>ce na<br />

boca poderia proporcionar algum descanso, algum prazer<br />

degustativo.<br />

As <strong>do</strong>çuras continuariam a acompanhar a humanidade<br />

desde sempre. Basta reparar nos contos tradicionais<br />

europeus, indianos e chineses. Neles, sempre ocorrem<br />

histórias com citações de tesouros com jarras de mel, de palácios<br />

cerca<strong>do</strong>s por pomares de frutas <strong>do</strong>ces ou até de casas<br />

feitas de gulodices, como na história de João e Maria.<br />

A literatura infantil, aliás, parece construir um mun<strong>do</strong><br />

sobre o sabor que mais encanta a criançada: o <strong>do</strong>ce. Quase<br />

tu<strong>do</strong> traz aspectos de <strong>do</strong>ces elabora<strong>do</strong>s, mágicos, mirabolantes<br />

e tenta<strong>do</strong>res. Bruxas oferecem bolos sedutores,<br />

fadas mostram onde na floresta se encontram tortas de<br />

maçã, animais falantes constroem abrigos repletos de


<strong>do</strong>ces e até a Branca de Neve cai no truque de uma fruta<br />

<strong>do</strong>ce, a maçã envenenada.<br />

Atualmente, o açúcar refina<strong>do</strong> tornou-se um <strong>do</strong>s<br />

grandes vilões da saúde mundial. O seu uso indiscrimina<strong>do</strong><br />

acarreta centenas de problemas, ciclos de obesidade,<br />

blablablá (Nem vou entrar no assunto, porque este livro<br />

não é sobre produtos light). Apenas tive a idéia de associar<br />

o sabor <strong>do</strong>ce à noção <strong>do</strong> prazer. O sabor <strong>do</strong>ce, além de<br />

provocar energia, saciar ansiedades e agradar as papilas da<br />

língua, é algo que permanece no inconsciente coletivo da<br />

humanidade. Tu<strong>do</strong> nos leva a crer que o bom será sempre<br />

uma placa com os dizeres “Lar, <strong>do</strong>ce lar” e nunca “Lar,<br />

aze<strong>do</strong> lar”. Por isso, viva o bico <strong>do</strong> beija-flor e cuida<strong>do</strong> com<br />

a cintura!<br />

91


Inocentes, as conversas começam, /<br />

depois envolvem os senti<strong>do</strong>s, /<br />

Meio a contragosto. / Depois não há<br />

mais escolha, depois não há mais<br />

senti<strong>do</strong>; / Até que some a diferença<br />

entre senti<strong>do</strong> e nome.<br />

(Elizabeth Bishop, em Conversação)


ENCONTROS SUPERFICIAIS<br />

OLÁ, MUITO PRAZER!<br />

Viver e trabalhar entre grandes cidades me<br />

obriga, há tempos, a manter seqüências contínuas<br />

de encontros rápi<strong>do</strong>s, apertos de mão,<br />

compromissos sociais e diálogos que às vezes<br />

nem ultrapassam duas frases. É impressionante,<br />

de qualquer forma, como situações<br />

assim podem ser produtivas, marcantes e<br />

decisivas na minha vida. Apren<strong>do</strong> a extrair o<br />

máximo <strong>do</strong> mínimo, sem me deixar levar por<br />

impressões imediatistas – que sempre conduzem<br />

idéias preconcebidas.<br />

Encontros rápi<strong>do</strong>s costumam ser considera<strong>do</strong>s “encontros<br />

superficiais”. Não deixam de ser, na acepção correta<br />

<strong>do</strong> termo. Mas acredito que na superfície das coisas,<br />

ações e pessoas se encontram películas bem acabadas,<br />

interessantes e que me fazem observar com agudeza os<br />

matizes <strong>do</strong> comportamento humano. Ninguém se parece<br />

inteiramente com outra pessoa, por mais que as aparências<br />

nos levem a pensar assim. Pequenas atitudes são<br />

capazes de transformar uma conversa de <strong>do</strong>is, três minutos<br />

em algo que permaneça por tempos na minha<br />

93


94<br />

memória. Ou um encontro que seria passageiro em momento<br />

histórico na vida de alguém. Por que não?<br />

Isso depende da abordagem, da forma com que<br />

alguém se aproxima, <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de tocar, de sorrir, <strong>do</strong>s lampejos<br />

de inteligência e, sobretu<strong>do</strong>, da naturalidade de<br />

agir, ser e estar. Nunca deveríamos evitar a aproximação<br />

de outras pessoas – a não ser quan<strong>do</strong> o infalível radar da<br />

intuição avisa que existe simulação naqueles contatos.<br />

Mesmo assim, aprendi a sair dessas situações sem parecer<br />

desagradável. Sugiro que cada um desenvolva as suas<br />

próprias técnicas.<br />

No roteiro <strong>do</strong>s incontáveis encontros em reuniões,<br />

coquetéis, eventos, espetáculos ou meetings profissionais,<br />

ocasionalmente ocorre de conhecermos alguém bastante<br />

interessante, atraente e bem resolvi<strong>do</strong>. Em geral, a primeira<br />

reação é evitar que cresça a animação daquela descoberta,<br />

porque os mandamentos sociais impedem<br />

precipitações nos encontros. E o que acontece? Corta-se<br />

qualquer possibilidade de desenvolver ligações um tanto<br />

mais próximas, apenas por ser alguém que se conheceu<br />

minutos atrás. Convencionou-se que agir assim seria<br />

imprudente, deselegante, etc.<br />

Discor<strong>do</strong> inteiramente. Apesar de não fazer dessa<br />

posição uma prática comum, devemos, sim, demonstrar<br />

curiosidade por quem nos desperte interesse. Afinal, estamos<br />

no século 21, uma era em que vale mais ter valores


essenciais de caráter <strong>do</strong> que permanecer preso à rigidez<br />

das normas sociais. Encontros prazerosos costumam deixar<br />

um resulta<strong>do</strong> de histórias maravilhosas em nossas vidas. É<br />

só questão de saber escolher, de mirar olho no olho, de<br />

apresentar segurança de atitude. Quan<strong>do</strong> os caminhos se<br />

cruzam, acontece uma superposição de idéias, sentimentos,<br />

gostos, afinidades. Tu<strong>do</strong> pode ser váli<strong>do</strong>, desde que<br />

ninguém decida impor regras imediatas nos encontros que<br />

começam de mo<strong>do</strong> passageiro.<br />

Vale lembrar que às vezes a gente se desgasta com<br />

pessoas que estão de passagem. Mas em outras ocasiões<br />

perdemos a oportunidade de transformar um encontro<br />

superficial em um grande e único encontro.<br />

95


ESPELHOS<br />

QUAL É A IMAGEM REAL?<br />

Desde criança ficava intrigada com os<br />

espelhos. Como e por que refletem imagens? O<br />

que há <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong>? Gostava de imaginar que<br />

havia um mun<strong>do</strong> inverti<strong>do</strong> dentro <strong>do</strong>s espelhos,<br />

habita<strong>do</strong> por pessoas que andavam ao contrário<br />

e que nos viam lá de dentro. Não deixa de<br />

ser intrigante ver imagens refletidas. O espelho<br />

tem um poder misterioso.<br />

Narciso, talvez por não ter sequer um espelho na penteadeira,<br />

apaixonou-se por sua própria imagem refletida<br />

na água de um pequeno lago. Ou teria si<strong>do</strong> naquilo que<br />

hoje chamamos de “espelho-d’água”? Nos primórdios históricos<br />

da Grécia e <strong>do</strong> Egito, os mais abasta<strong>do</strong>s usavam<br />

superfícies de metal polidas para que pudessem mirar os<br />

seus rostos. Essas peças eram de extremo valor e eram<br />

enterradas junto com seus proprietários. Com a evolução<br />

<strong>do</strong> tempo, o espelho continuou a ter status de riqueza.<br />

Basta lembrar <strong>do</strong>s palácios barrocos e <strong>do</strong>s salões <strong>do</strong> perío<strong>do</strong><br />

clássico europeu. Depois seriam incorpora<strong>do</strong>s até em<br />

lendas e folclores. Espelho, espelho meu: existe alguém<br />

mais curiosa <strong>do</strong> que eu?<br />

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98<br />

E o me<strong>do</strong> que os espelhos provocavam (ou ainda<br />

provocam em muita gente)? Alguns não gostam de olhar<br />

para o espelho à noite, outros cobrem espelhos em casas<br />

de pessoas que morreram, muitos têm pavor de quebrar<br />

um espelho e os índios continuam perplexos perante a<br />

contemplação <strong>do</strong>s espelhos.<br />

Às vezes me divirto sozinha imaginan<strong>do</strong> o que seria<br />

de algumas amigas sem um espelho por perto. Acho que<br />

morreriam de crise de abstinência caso fossem deixadas<br />

três dias sem um espelho. Conheço mulheres que também<br />

não sobreviveriam sem um estojo de maquiagem com<br />

espelho. E a turma <strong>do</strong>s vai<strong>do</strong>sos que quer se contemplar a<br />

to<strong>do</strong> instante, nem que seja para corrigir uma <strong>do</strong>bra da<br />

blusa? E aqueles que colecionam espelhos pela casa? E os<br />

voyeurs que colocam espelhos no teto <strong>do</strong> quarto? E os que<br />

a<strong>do</strong>ram banheiros espelha<strong>do</strong>s?<br />

A sociedade moderna está profundamente ligada ao<br />

espelho. Em uma época de extrema vaidade, fica impensável<br />

imaginar as pessoas sem o cumprimento <strong>do</strong> ritual <strong>do</strong><br />

retoque, da vigilância constante, da cumplicidade com a<br />

imagem refletida. Parece até que precisamos estar bem<br />

para não brigar com o espelho. O espelho é a entidade que<br />

pauta a nossa vida estética. Ou não? Quem discordar que<br />

atire a primeira pedra. No espelho.<br />

Porém, gosto ainda de pensar sobre as seguintes questões<br />

em torno <strong>do</strong> reflexo: a imagem nos espelhos côncavos


e convexos, as imagens distorcidas nos espelhos <strong>do</strong>s parques<br />

de diversões e as imagens que temos de nós mesmos em<br />

nossos espelhos <strong>do</strong>mésticos. Qual seria a imagem real?<br />

E se a projeção da imagem não passasse de um sonho<br />

dentro de outro sonho? Por que ficamos tão atentos ao<br />

espelho? Por que o reflexo daquele rosto é tão importante?<br />

Por ser revela<strong>do</strong>r <strong>do</strong> grau de conservação <strong>do</strong> corpo<br />

ou por mostrar que somos uma coisa viva, com movimentos,<br />

com olhos, com boca, com me<strong>do</strong>s, com lógicas, com<br />

cabelos, com superfícies físicas estranhas. Por que quan<strong>do</strong><br />

estamos mal evitamos o espelho? Por que quan<strong>do</strong> estamos<br />

bem corremos ao espelho? Está perceben<strong>do</strong> como o espelho<br />

é uma entidade a nos perseguir? Experimente ficar um<br />

dia sem se olhar em qualquer superfície que reflita imagens.<br />

Difícil, não? Está aí um <strong>do</strong>s mistérios da vida contemporânea:<br />

a over<strong>do</strong>se <strong>do</strong> espelho.<br />

99


INVERDADES<br />

NUNCA FUI SANTA<br />

Existem situações que ocultamos pelo resto<br />

da vida, até que, sem motivos aparentes, decidimos<br />

contá-las. Aproveito agora para revelar<br />

uma série de acontecimentos pouco conheci<strong>do</strong>s<br />

da minha vida.<br />

Ninguém imagina que, ainda menina, a<strong>do</strong>rava escrever<br />

cem vezes em um caderno o nome <strong>do</strong> cantor<br />

Roberto Carlos. Diariamente fiz isso, até que minha mãe<br />

descobriu e queimou o meu caderno de fã. Na mesma<br />

época, sempre que me levavam à missa, eu dava um jeito<br />

de furtar um missal da igreja. Colecionei dezenas.<br />

Na a<strong>do</strong>lescência, comecei a fumar cachimbo, escondida<br />

de meus pais. Subia em uma grande árvore<br />

que havia no fun<strong>do</strong> de nossa casa e ficava lá em cima,<br />

pitan<strong>do</strong> por horas a fio. Depois enjoei dessa mania e<br />

passei a comprar perucas de to<strong>do</strong>s os tipos: platinum<br />

blonde, afro, oriental look, Chanel, camponesa, melindrosa<br />

e psicodélica. Convidava algumas amigas, colocávamos<br />

as perucas mais absurdas e saíamos para<br />

caminhar pelo Parque <strong>do</strong> Ibirapuera. As pessoas não<br />

acreditavam.<br />

101


102<br />

Quan<strong>do</strong> comecei a namorar, decidi que me especializaria<br />

em atiçar os namora<strong>do</strong>s alheios. Assim cumpri a<br />

decisão: cada um ao seu tempo, namorei com mais de<br />

dez rapazes e arranjei dez inimigas ferrenhas. Depois,<br />

senti que havia chega<strong>do</strong> a hora de partir para uma longa<br />

viagem. Era o auge <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> hippie. Embarquei para a<br />

Europa, deixan<strong>do</strong> meus pais em desespero. Morei um ano<br />

em Amsterdã, em uma comunidade que estudava os<br />

ensinamentos de Hare Krishna. Viajamos até a Índia e o<br />

Nepal, em trajeto que durou oito meses. Fomos deti<strong>do</strong>s<br />

algumas vezes, por porte de substâncias alucinógenas ou<br />

por falta de vistos nos países que a nossa caravana maluca<br />

atravessava.<br />

Como sempre dei voltas na vida, retornei ao Brasil<br />

disposta a buscar a paz que tanto procurava. Para outro<br />

desgosto de meus pais, falei que desejava ir para um convento<br />

e fazer voto de clausura. Fui levada, em uma manhã<br />

fria de junho, ao convento da Ordem das Irmãs Dominicanas,<br />

em Ubá, Minas Gerais. Lembro-me da despedida:<br />

meus pais em prantos e eu sen<strong>do</strong> levada para uma área<br />

restrita às internas. Permaneci no convento por <strong>do</strong>is anos<br />

e meio, com voto de silêncio. Minha rotina era acordar às<br />

4h30, rezar no quarto até as 6h30, ajudar na preparação<br />

<strong>do</strong> café, limpar e varrer os corre<strong>do</strong>res, rezar o restante da<br />

manhã, etc. Em 1977, decidi que gostaria de voltar ao<br />

convívio da sociedade. Comuniquei o fato à madre supe-


iora, que, a princípio, demonstrou certa irritação. Telefonei<br />

a meus pais, que vieram me buscar, mais uma vez<br />

muito comovi<strong>do</strong>s.<br />

Quatro dias depois de minha chegada em São Paulo,<br />

promovi uma festa à fantasia no night club Papagaio,<br />

então a casa mais fervilhante de São Paulo. A festa foi um<br />

escândalo, com centenas de amigos, muito champanhe,<br />

namoros e cenas engraçadas. De lá, partimos em grupos<br />

para o Guarujá, onde continuamos no clima da festa. Foi<br />

na casa de uma amiga, no Guarujá, que conheci, naquela<br />

esticada, o rapaz que viria a ser o meu primeiro mari<strong>do</strong>.<br />

Seis meses depois, estávamos casa<strong>do</strong>s.<br />

Que tal esse insight inédito da minha vida? Ninguém<br />

soube disso até agora.<br />

OK, tu<strong>do</strong> o que está escrito acima é mentira. Mas se<br />

eu sustentasse as informações, poderia deixar de ser invenção.<br />

Fiz isso apenas para mostrar como a manipulação<br />

da informação pode ser algo perigoso. Quantas pessoas<br />

que você conhece mentem por compulsão? Eu conheço<br />

um monte. Mentir, infelizmente, passou a ser um jogo<br />

social da vida moderna. Que pena. Seria melhor que to<strong>do</strong>s<br />

tentassem mudar as suas realidades de mo<strong>do</strong> inventivo e<br />

delirante. Sem precisar forjar filmes, sem precisar dar combustão<br />

à mentira. Que, é bom que se diga, nem sempre<br />

tem pernas curtas.<br />

103


A VERDADE<br />

SEM ALÍVIO<br />

Somos ensina<strong>do</strong>s que dizer, saber e praticar<br />

a verdade é o ato mais importante da vida.<br />

Somos leva<strong>do</strong>s a acreditar que a verdade, sob<br />

to<strong>do</strong>s aspectos, conduz a situações melhor resolvidas,<br />

onde o que estava nebuloso se torna<br />

visível. Somos força<strong>do</strong>s a dizer a verdade em<br />

situações compromete<strong>do</strong>ras, delicadas e que<br />

podem transformar completamente o rumo da<br />

história de cada pessoa. To<strong>do</strong>s concordamos<br />

que a verdade esteja acima de tu<strong>do</strong>. Pois eu não<br />

concor<strong>do</strong>. Quer saber por quê?<br />

Na tragédia grega Édipo Rei existe uma frase que<br />

continua marcante para mim: “É sempre terrível a verdade<br />

quan<strong>do</strong> ela não traz alívio”. Certíssimo estava Sófocles, o<br />

autor desse clássico. A verdade, quan<strong>do</strong> é exigida, pode<br />

trazer uma seqüência de fatos desastrosos e impensáveis,<br />

capazes de aniquilar alguém para sempre. Jamais defendi<br />

que se ocultem fatos profissionais importantes, nem que<br />

as pessoas apostem na duplicidade de suas intenções. Não<br />

defen<strong>do</strong> os mitômanos, os mentirosos ou os dissimula<strong>do</strong>s.<br />

Ao contrário, a<strong>do</strong>ro lidar com posições claras, luminosas e<br />

105


106<br />

sinceras. Mas, em situações de relacionamentos pessoais e<br />

na amizade, quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> corre aparentemente bem, para<br />

que tentar arrancar depoimentos força<strong>do</strong>s, em busca de<br />

supostas verdades?<br />

Ninguém quer passar por tolo. Nem eu. Entretanto,<br />

convenhamos um detalhe importante: vale mesmo saber<br />

tu<strong>do</strong> de alguém, se esse alguém é muito importante na sua<br />

vida? Vale querer descobrir se o seu namora<strong>do</strong> piscou o<br />

olho para alguém na festa, ou se o seu amor trocou uns<br />

beijos com uma desconhecida na última viagem à Europa?<br />

Você também acha necessário revelar que teve sonhos<br />

eróticos com um amigo em comum ou que sente estranha<br />

atração pelo corpo <strong>do</strong> instrutor de tênis? Meus amigos e<br />

amigas, em boca fechada não entra mosca e to<strong>do</strong>s vivem<br />

felizes para sempre.<br />

São, por isso, chatas as pessoas que vivem queren<strong>do</strong><br />

discutir o relacionamento, sempre para cavar a tal da<br />

verdade. Penso que nem as freiras na clausura <strong>do</strong>s conventos<br />

estão livres de sentir ondas de desejo, nem os<br />

nossos parceiros ou parceiras não deixam de cometer<br />

várias pequenas traições por dia. Em pensamento, vontade<br />

ou ação. E vamos agir como? Enlouquecer? Sair<br />

pelas ruas disfarçadas de Sherlock Holmes? Virar megeras<br />

in<strong>do</strong>máveis? Soltar os cachorros? Revirar lenços em<br />

busca de marcas de batom, procurar telefones estranhos<br />

nos bolsos <strong>do</strong> paletó, telefonar a to<strong>do</strong> o momento,


desconfiar de tu<strong>do</strong> e de to<strong>do</strong>s? Olha, meu conselho é:<br />

relax, baby.<br />

A verdade, se não for na barra <strong>do</strong>s tribunais, pode<br />

muito bem ser dita quan<strong>do</strong> se quer, sem forçar a barra,<br />

sem obrigações. Ou, quem sabe, omitir fatos que não fariam<br />

mal a ninguém deixa de ser uma falta. Sejamos modernos<br />

e menos arcaicos: se alguém gosta sinceramente de<br />

nós e nós gostamos sinceramente desse alguém, nada de<br />

cobranças para saber a verdade. Porque a verdadeira<br />

elegância, senhores e senhoras, está em nunca perguntar<br />

nada. Nem to<strong>do</strong>s conseguem. Mas, volto a repetir, vale<br />

saber a verdade se ela não traz alívio? De jeito algum,<br />

baby. Sejamos light em tu<strong>do</strong> e menos dramáticos.<br />

107


108<br />

VULGARIDADES<br />

UM JEITO FEIO DE ESTAR NO MUNDO<br />

Os conceitos de vulgaridade se alteram de<br />

tempos em tempos e, muitas vezes, o repugnante<br />

de antes se transforma no belo de agora.<br />

Importante não querer armazenar tabelas<br />

estéticas pela vida afora, mas ficar atento à<br />

maleabilidade das interpretações, à mudança<br />

inevitável que o tempo produz e ao ritmo incessante<br />

de renovação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> contemporâneo.<br />

O kitsch, o cafona e o brega são continuamente assimila<strong>do</strong>s<br />

na moda, nas artes plásticas ou na música, acrescentan<strong>do</strong><br />

citações que só enriquecem suas criações e produtos,<br />

além de propor convivências mais democráticas. Maneirismos,<br />

manias, cores, excessos, colecionismos, misturas, contrastes,<br />

releituras, replays, revisões: tu<strong>do</strong> pode conter gotas<br />

de vulgaridade, sem perder nada em qualidade. Que bom.<br />

Agora vamos descer a lenha? Vamos. Há vulgaridades<br />

e vulgaridades, convenhamos. Ligadas a propostas estéticas,<br />

serão sempre bem-vindas, louvadas e assimiladas com<br />

muita bossa. Mas o que dizer quan<strong>do</strong> a vulgaridade traz<br />

apenas a banalização da burrice, o uso estúpi<strong>do</strong> da sensualidade<br />

e a reprodução de comportamentos agressivos?


Temos si<strong>do</strong> forçosamente obriga<strong>do</strong>s a aceitar, pela TV,<br />

essa avalanche ininterrupta de jovens pretendentes ao posto<br />

de celebridades instantâneas. São pessoas que, para<strong>do</strong>xalmente,<br />

ficam famosas apenas porque ficaram famosas.<br />

Tu<strong>do</strong> alimenta<strong>do</strong> por exaltações à vulgaridade, pela falta<br />

de propostas profissionais interessantes e por excesso de<br />

oportunismo. Cultuam os próprios corpos de maneira<br />

meramente exibicionista e, ao divulgarem em excesso suas<br />

supostas possibilidades sensuais, se tornam os seres menos<br />

sedutores <strong>do</strong> planeta. Ocos, sem conteú<strong>do</strong>, com tempo<br />

data<strong>do</strong>, os fenômenos da vulgaridade são perigosos. Mas,<br />

sorte nossa, têm vida curta.<br />

Triste é constatar que a vulgaridade ronda o nosso<br />

calcanhar. Como se fosse um vírus sem controle, ela pode<br />

atacar a qualquer momento, a toda hora, segun<strong>do</strong> a<br />

segun<strong>do</strong>. A vulgaridade pode surgir no cabelo louro farmácia<br />

da quarentona exibida, na risada alta <strong>do</strong> homem<br />

que fuma no corre<strong>do</strong>r <strong>do</strong> hotel, no rímel borra<strong>do</strong> da recepcionista,<br />

na camiseta regata usada fora de hora, no barulho<br />

<strong>do</strong> chiclete, no uso excessivo de celulares, na comida gordurosa,<br />

no marketing religioso, nos cabelos com descui<strong>do</strong>,<br />

na exibição de poder, na ostentação de dinheiro, no cinema<br />

americano violento, no som alto <strong>do</strong> carro, nos bíceps estufa<strong>do</strong>s,<br />

no carro para<strong>do</strong> em fila dupla, no jardim particular<br />

mal cuida<strong>do</strong>, na gula, na informalidade obrigatória, na máfé,<br />

na ultrapassagem <strong>do</strong> sinal vermelho, nos decotes no<br />

109


110<br />

trabalho, nas pernas de fora dentro <strong>do</strong> ônibus, no consumismo<br />

bobo, na vizinha que dispara palavrões pela janela,<br />

no aeroporto lota<strong>do</strong>, na falta de assunto, na conversa<br />

mole, nas modelos de lábios abertos, nas festas barulhentas,<br />

no macarrão mole, na cabeça dura, no descontrole de<br />

ações, na exposição das emoções, no excesso da palavra<br />

eu, na falta de amor ao planeta. Tu<strong>do</strong> depende de limites:<br />

vulgaridade é um mo<strong>do</strong> <strong>do</strong>ente de ver a Terra, um mo<strong>do</strong><br />

vicia<strong>do</strong> de conviver com o próximo, um jeito feio de se<br />

estar no mun<strong>do</strong>, um egoísmo cheio de pontas.


DESAFIOS<br />

NA MIRA DO IMAGINÁRIO<br />

Dispor-se a um desafio é como empunhar um<br />

arco-e-flecha determinan<strong>do</strong>-se a acertar o mais<br />

próximo possível <strong>do</strong> alvo. No início, há a insegurança<br />

de conseguir firmar a flecha, de desconhecer<br />

a trajetória a ser percorrida <strong>do</strong> momento<br />

<strong>do</strong> impulso até a ponta da seta ser cravada no<br />

alvo. Quan<strong>do</strong> se consegue um arremesso bom,<br />

ótimo. Chegar ao alvo é puro êxtase.<br />

Uso essa imagem por considerar que desafios são<br />

como apostas sobre a sua própria capacidade, conjugada à<br />

potência <strong>do</strong>s instrumentos que serão utiliza<strong>do</strong>s para se<br />

alcançar o objetivo pretendi<strong>do</strong>. Olho, cálculo, músculos,<br />

braços, mãos e decisão. Lá se vai a flecha, lá se vai a decisão<br />

de fisgar o objetivo.<br />

Para mim, essa imagem é muito importante, por significar<br />

o resulta<strong>do</strong> das alterações de corpo, mente e coração<br />

a que me propus de alguns anos para cá. Decidi-me a<br />

fazer uma manobra radical, implantan<strong>do</strong> nos meus coman<strong>do</strong>s<br />

os chips invisíveis da determinação. Andava farta<br />

de ver meus planos esmorecerem e de ser considerada<br />

uma pessoa fraca, daquelas que nunca eram ouvidas para<br />

111


112<br />

decidir nada e que mantinha uma aparência que traduzia<br />

infelicidade completa. A partir daquele esta<strong>do</strong>, só me<br />

restaria fazer voto de clausura para entrar em algum convento<br />

perdi<strong>do</strong> na mais alta montanha <strong>do</strong> mais escondi<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong>s países. Entretanto, o alarme soou e eu disse a mim<br />

mesma: não sou o que pensam.<br />

Provei a mim, aos amigos, à família e a tu<strong>do</strong> o que me<br />

cerca que eu armazenava uma gigantesca capacidade de<br />

realizar, produzir e gerar boas idéias. Capacitei-me porque<br />

assim quis, porque me decidi a cumprir o objetivo de nunca<br />

mais ser uma pessoa passiva, desconsiderada, apática,<br />

fora de forma, em processo contínuo de falta de estima e<br />

confusa quanto ao que esperava da vida. Eu sabia que lá<br />

dentro havia um dínamo, uma potência, uma força latente<br />

de proporções desconhecidas. Sentia o rugi<strong>do</strong> da fera.<br />

A fera surgiu, eu me refiz, a vida foi inteiramente reconstruída,<br />

adquiri excelente forma física, passei a propagar<br />

minhas idéias, ganhei novos e fiéis amigos, tornei-me<br />

independente da sombra da família, gerei negócios, consegui<br />

administrar os vulcões emocionais, restaurei nova<br />

ordem nas relações pessoais, ganhei maior confiança <strong>do</strong>s<br />

filhos e, nada se compara a isso, pude encontrar a forma<br />

exata de me expressar perante o mun<strong>do</strong>.<br />

Apegar-se a desafios é, portanto, um exercício fundamental<br />

para quem deseja ir além. Contra a acomodação,<br />

contra a mesmice <strong>do</strong>s dias, contra o amortecimento


que nos impõem, só existe uma solução: decidir-se por<br />

buscar seus objetivos. De nada adianta optar por escapismos<br />

de religião, nem fugir da realidade que não se deseja<br />

ver. Antigos pensa<strong>do</strong>res orientais diziam que manter um<br />

objetivo seria praticamente meio caminho anda<strong>do</strong> para a<br />

realização da meta desejada, <strong>do</strong> sonho pretendi<strong>do</strong>, da<br />

mudança almejada.<br />

Nunca defen<strong>do</strong> positivismos ou esoterismos de butique:<br />

apenas quero esclarecer, a quem quiser prestar<br />

atenção em mim, que nada pode ser tão importante<br />

quanto se pautar por objetivos. Alcançar um objetivo,<br />

por menor que seja, já é o suficiente para trazer um<br />

enorme bem ao coração.<br />

113


VAMPIROS<br />

BAIXA VOLTAGEM<br />

Talvez não exista na face da Terra alguém<br />

que não seja vítima de alguma forma de vampirismo<br />

emocional. Sabe <strong>do</strong> que estou falan<strong>do</strong>?<br />

Claro que sim. São aquelas pessoas sem luz<br />

própria, geralmente complicadas e emaranhadas<br />

em problemas diversos, e que sobrevivem<br />

graças à energia alheia. Energia em vários senti<strong>do</strong>s:<br />

profissional, financeira, sexual, emocional<br />

e por aí afora.<br />

Pois bem. Então essas pessoas – coitadas delas e<br />

coita<strong>do</strong>s de nós – precisam inventar uma gambiarra de<br />

energia. Puxada diretamente de quem? De nós ou de outros,<br />

as usinas gera<strong>do</strong>ras de luz. Não que elas façam isso de<br />

mo<strong>do</strong> proposital. Não que todas sejam um estorvo. Na<br />

maioria das vezes, essas pessoas mal têm consciência da<br />

carência energética a que estão submetidas, nem ao uso<br />

que fazem <strong>do</strong>s contatos humanos.<br />

O vampirismo mais corriqueiro ocorre quan<strong>do</strong> alguém<br />

sente fascínio por outra pessoa e a tal pessoa escolhida<br />

se torna a sua referência máxima de realização, de postura<br />

e de layout social. Fascínio declara<strong>do</strong>, vampirismo de<br />

115


116<br />

contraban<strong>do</strong>. Não estou inventan<strong>do</strong> coisas. Basta analisar<br />

com calma to<strong>do</strong>s os que estão ao seu re<strong>do</strong>r.<br />

E os vampiros agem na calada da noite ou na calada<br />

<strong>do</strong> dia. A sugação se processa mais ou menos assim: contam<br />

seus problemas, pedem atenção ilimitada, requerem tempo<br />

infindável, riem, choram, fazem lamúrias e parecem estar<br />

sempre à espera <strong>do</strong> apocalipse. Depois, aliviam um pouco<br />

essa dinâmica. Porém, novos ataques podem acontecer em<br />

edição extraordinária.<br />

Vampiros emocionais não são amigos. Os amigos<br />

podem chorar, espernear, contar relatos tristíssimos e pedir<br />

ajuda. Em contrapartida, existe um recarregamento mútuo<br />

de baterias. Também estamos sujeitos a furar o pneu no<br />

meio da vida e precisar de um ombro amigo. Por isso, não<br />

se confunde amizade com vampirismo. Deu para entender?<br />

Os vampiros são meio bajula<strong>do</strong>res, a<strong>do</strong>ram demonstrar<br />

simpatia, sabem tu<strong>do</strong> da sua vida e dizem conseguir<br />

realizar qualquer tarefa. De repente, pimba: falam durante<br />

meia hora sem parar, pedem sua opinião, inventam situações<br />

absurdas, dão nó em pingo d’água, torram a sua<br />

paciência, não registram nada <strong>do</strong> que você propôs e vão<br />

embora, felizes da vida por ter encontra<strong>do</strong> algum ser disposto<br />

a ouvir suas vampirices.<br />

E você? Sente-se enfraqueci<strong>do</strong>, zonzo, com a cabeça<br />

confusa. Missão cumprida: o vampiro emocional conseguiu<br />

o seu intento. Saiu to<strong>do</strong> serelepe, descarregou o seu


embrulho de confusão na sua cabeça, bebeu da sua disposição<br />

e pronto. Aí você fala que está se sentin<strong>do</strong> sem<br />

energia, não é assim?<br />

O que nos traz consolo é saber que os suga<strong>do</strong>s são<br />

completamente antagônicos aos suga<strong>do</strong>res. Os primeiros<br />

são poços intermináveis de alegria, experiência de vida,<br />

decisão, resolução, amor-próprio e um ban<strong>do</strong> de coisas<br />

legais. Bom, enquanto isso, os segun<strong>do</strong>s parecem fada<strong>do</strong>s<br />

ao amortecimento contínuo de suas vidas tão opacas, tão<br />

bobas e tão desajeitadas. São pessoas que parecem ter<br />

vin<strong>do</strong> ao mun<strong>do</strong> para não realizar nada além de depender<br />

<strong>do</strong> fluxo de criatividade <strong>do</strong> outro. Rezemos por eles.<br />

117


Dentro<br />

&<br />

Fora


120<br />

Cada vez que te vierem propor<br />

Personagens pra vida real<br />

Jogue as máscaras fora ou não<br />

Mas não se esqueça que é triste<br />

o flagrante no fim<br />

(Café, de Egberto Gismonti)


USAR O OUTRO<br />

PISTA DUPLA<br />

Há certas pessoas que a<strong>do</strong>ram usar e abusar<br />

de contatos profissionais, sociais ou sentimentais<br />

para abrir caminhos por onde passam. Não elaboram<br />

duas frases sem citar o nome de alguém, de<br />

preferência famoso. É o chama<strong>do</strong> despeja<strong>do</strong>r de<br />

nomes: basta pronunciar com segurança que é<br />

amigo de fulano, ou que está ali para checar tu<strong>do</strong><br />

a pedi<strong>do</strong> daquele ator ou empresário famoso.<br />

Façanhas que costumam ser bem-sucedidas, já<br />

que citar o nome certo no lugar certo funciona<br />

como chave-mestra em várias situações.<br />

Há pouco soube de um produtor de teatro que usou o<br />

meu nome em cidades <strong>do</strong> Sul <strong>do</strong> Brasil para tentar apresentar<br />

por lá a montagem beneficente de um grupo <strong>do</strong> qual eu<br />

participei. Ok, nem me importei tanto. É impossível evitar<br />

passagens desse tipo, principalmente quan<strong>do</strong> lidamos com<br />

pessoas de áreas distintas, em situações nunca repetidas.<br />

Se nada impede que sejamos usa<strong>do</strong>s, só nos resta<br />

tomar consciência de quem está ao re<strong>do</strong>r. Será que to<strong>do</strong>s<br />

121


122<br />

merecem confiança absoluta? Em que momentos é essencial<br />

falar menos, revelar menos? Ser usa<strong>do</strong> pode ser o resulta<strong>do</strong><br />

direto de palavras que proferimos a esmo.<br />

Os que citam com constância o nome de amigos<br />

poderosos por interesse próprio merecem até olhares de<br />

compaixão. São pessoas sem repertório próprio, sem brilho<br />

pessoal e sem carisma suficiente para circular com segurança.<br />

O problema é que os despeja<strong>do</strong>res de nomes jamais admitem<br />

que acionaram da agenda um punha<strong>do</strong> de nomes cintilantes<br />

para galgar escalas sociais. Seria como assumir que são<br />

ino<strong>do</strong>ros, incolores e insípi<strong>do</strong>s. Gente de luz própria não precisa<br />

de recursos desse tipo, nem pontuam a conversa com<br />

artimanhas que não lhes pertencem.<br />

Vale citar uma curiosidade. Existiu no século XIX uma<br />

escola de pensamento que propunha o utilitarismo como<br />

<strong>do</strong>utrina para conseguir prazer individual. Se to<strong>do</strong>s aderissem<br />

à prática, haveria um equilíbrio entre os interesses diversos e<br />

a felicidade seria possível para um número maior de pessoas.<br />

Hoje ninguém se atreve a defender coisas desse tipo…<br />

Em determinadas ocasiões, porém, nossos amigos íntimos<br />

podem usar <strong>do</strong> conhecimento que têm sobre nós para nos<br />

defender em público. Nesse caso, trata-se de usar o conhecimento<br />

de outra pessoa de forma altruísta, zelan<strong>do</strong> pela imagem<br />

<strong>do</strong> amigo por desfrutar de sua intimidade. Um bom exemplo de<br />

que, às vezes, há fatos positivos para quem permite ser usa<strong>do</strong>.<br />

Desde pequenos, usamos em benefício próprio a pro-


teção biológica <strong>do</strong>s pais. Eles, por sua vez, usam os filhos<br />

para dar continuidade a suas vidas, planos e histórias. Entre<br />

amigos, ocorrem trocas constantes de idéias, confissões,<br />

preferências e parcerias. Até na relação com os animais<br />

<strong>do</strong>mésticos há o uso explícito: o cão traz alegria, calma e faz<br />

companhia, enquanto damos abrigo, alimentação e carinho.<br />

Agora chego ao ponto essencial: o uso que existe num<br />

relacionamento amoroso. Há quem prefira dizer que são trocas.<br />

Mas qualquer troca exige uma situação de uso. A relação<br />

serve para proporcionar prazer, companheirismo, divisão de<br />

idéias comuns e conexões de confiança mútua. Geralmente<br />

só temos essa visão quan<strong>do</strong> avaliamos os antigos namoros<br />

ou casamentos.<br />

Sim, sempre houve e haverá algum tipo de uso. Quan<strong>do</strong><br />

somos avisa<strong>do</strong>s de que alguém usou nosso nome de mo<strong>do</strong><br />

impróprio, devemos cortar relações. Principalmente se houve<br />

intenção de conseguir vantagens imediatas ou puxar o tapete<br />

de outras pessoas. Porém, se a atitude foi inofensiva, vale lembrar<br />

<strong>do</strong> antigo slogan de um fabricante de mate: use e abuse.<br />

Basta não darmos peso excessivo aos verbos. Afinal, não são<br />

esses os ossos <strong>do</strong> ofício de quem se tornou usável?<br />

123


124<br />

CONFIDÊNCIAS<br />

FALAR É PRATA, CALAR É OURO<br />

Ah, como é bom poder contar segre<strong>do</strong>s, revelar<br />

situações íntimas, abrir o coração, mostrar<br />

fatos desconheci<strong>do</strong>s. Ah, como é bom ter alguém<br />

que nos ouve, alguém com quem se divide uma<br />

confidência, alguém que compreende cada resgate<br />

<strong>do</strong> nosso passa<strong>do</strong>. Ah, mas como pode ser<br />

perigoso fazer confidências!<br />

Sempre vai existir um momento em que passamos a<br />

sentir confiança em determinadas pessoas, a ponto de revelar<br />

assuntos íntimos ou detalhes pessoais altamente<br />

bombásticos. Bom, por mim, não considero mais nada<br />

capaz de ser bombástico. Porém, existem muitos que, tão<br />

logo recebem informações delicadas, sentem-se porta<strong>do</strong>res<br />

de algo precioso, de segre<strong>do</strong>s que passam a significar<br />

poder sobre alguém. E, em uma seqüência que varia<br />

de situação a situação, revelam exatamente aquilo que<br />

nunca poderia ter prossegui<strong>do</strong> adiante, por motivos óbvios.<br />

Hoje são poucos os que ouvem um segre<strong>do</strong> e mantêm a<br />

boca fechada. Falar muito, contar tu<strong>do</strong> e espalhar brasas<br />

alheias virou uma especialidade quase profissional.<br />

Dá a sensação de impotência e raiva descobrir que a


sua confidência caiu em bocas de Matildes, sem o menor<br />

pu<strong>do</strong>r ou acabamento final. A bem da verdade, passa a<br />

existir arrependimento antecipa<strong>do</strong> assim que acabamos de<br />

contar algo importante a alguém não merece<strong>do</strong>r de confiança.<br />

Passamos a desejar, ardentemente, que aquela<br />

pessoa esqueça o que falamos. Ou que, pelas condutas<br />

civilizadas, jamais toque outra vez no assunto.<br />

Em tempo: contar mais <strong>do</strong> que se deve acontece com<br />

freqüência quan<strong>do</strong> se ultrapassa os limites <strong>do</strong> vinho, por<br />

exemplo. Vinho é aquela bebida leve e traiçoeira que nos<br />

impulsiona, sem que se perceba, a desfiar rosários de confidências,<br />

geran<strong>do</strong> aproximações indevidas, ou crian<strong>do</strong><br />

um delivery imediato de segre<strong>do</strong>s. No vinho está o segre<strong>do</strong>.<br />

Na manhã seguinte, o alarme grita na memória: “Para<br />

que fui contar aquilo, meu Deus? Onde eu estava com a<br />

cabeça? E agora? Ai, que vexame”. Frases clássicas de um<br />

day after.<br />

O único jeito é se fingir de morto, rezan<strong>do</strong> para que a<br />

outra pessoa tenha esqueci<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>. Claro que isso nunca<br />

ocorre, mas é lin<strong>do</strong> acreditar em milagres. Quarenta e oito<br />

horas depois, que tal uma discreta sondagem de terreno?<br />

Pode-se telefonar à pessoa em questão, comentar a noite,<br />

disfarçar e comentar meio sem-graça sobre a quantidade<br />

de bobagens que foi falada por to<strong>do</strong>s. Quan<strong>do</strong> se trata de<br />

alguém elegante, você até pode ouvir esta frase conforta<strong>do</strong>ra:<br />

“Não se preocupe, tu<strong>do</strong> o que foi fala<strong>do</strong> vai ficar<br />

125


126<br />

entre nós”. Com certeza, esse é o maior bálsamo que se<br />

pode ter em vida.<br />

O problema, cain<strong>do</strong> na real, é que apenas 1% das<br />

pessoas teria um comportamento tão impecável assim.<br />

Então só resta tirar lição da tolice cometida para, em uma<br />

próxima vez, exercitar o autocontrole, estancar o fluxo de<br />

segre<strong>do</strong>s, tratar de não falar sem refletir sobre as conseqüências,<br />

e por aí afora. Tenha sempre em mente que, por<br />

meio de uma confidência, sim, de uma simples confidência,<br />

podem surgir golpes de esta<strong>do</strong>, rompimentos amorosos,<br />

perdas de cargos, maledicências em grupo, finais de<br />

amizades, atitudes preconceituosas, decepções, sustos,<br />

isolamento e, o pior, a fama de ser indiscreto. Repita<br />

muitas vezes o velho dita<strong>do</strong>: “Em boca fechada não entra<br />

mosquito”. E boa sorte.


BEM-ESTAR X SEXUALIDADE<br />

DE TUDO PARA TODOS<br />

Às vezes fico pensan<strong>do</strong> como as pessoas se<br />

entregam a impressões rasteiras sobre assuntos<br />

que, de certa forma, seriam complexos. Ou<br />

então como to<strong>do</strong>s a<strong>do</strong>ram chegar a conclusões<br />

precipitadas e tolas em vez de se abrirem a<br />

perspectivas renovadas <strong>do</strong> comportamento<br />

humano.<br />

Para localizar isso melhor, sou obrigada a me tomar<br />

como exemplo. To<strong>do</strong>s sabem que atravessei mudanças<br />

radicais de vida e que consegui demonstrar, de mo<strong>do</strong><br />

inteiramente profissional, como é possível deixar de ser<br />

uma pessoa abatida para se transformar em uma mulher<br />

que se determinou a nunca mais esmorecer e a não mais<br />

passar a imagem da deformada pela balança, sofre<strong>do</strong>ra<br />

por não ter rumos e mal-amada depois de experiências<br />

equivocadas. Tenho certeza absoluta de que essas conjunções<br />

pessoais não mais se repetirão.<br />

Claro que tantas alterações não me fizeram perder a<br />

feminilidade. Ou melhor, adquiri outra noção de feminilidade,<br />

mais amadurecida, mais experiente e muito mais<br />

decidida. Por estar antenada com as possibilidades de meu<br />

127


128<br />

tempo, compreen<strong>do</strong> que não é tão difícil atingir metas físicas,<br />

emocionais e até econômicas. Quan<strong>do</strong> se quer, nada<br />

parece longe, impossível ou inalcançável.<br />

Pois bem. Então me pego em certos dias agin<strong>do</strong><br />

como uma máquina, feito uma personagem repleta de<br />

ações a realizar, a executar, a criar, a pensar. Gosto de estar<br />

em ação e de ver resulta<strong>do</strong>s daquilo que até pouco pouco<br />

tempo atrás era apenas uma idéia. Acontecimentos assim<br />

me animam, me deixam exultante, me impulsionam a outras<br />

vontades de expansão. Gosto – e me permito – de estar de<br />

bem com a vida. Em to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s.<br />

Entretanto, muitos me vêem como uma mulher que<br />

canaliza toda essa energia e esse dinamismo para um destino<br />

único: a sexualidade. Pensam que por eu estar sempre<br />

bem disposta e com gestos amplos, por achar graça com<br />

quem está ao meu re<strong>do</strong>r e por expor minha forma de ser<br />

generosa perante o mun<strong>do</strong>, seria apenas para enaltecer a<br />

minha libi<strong>do</strong>. Ora, minha libi<strong>do</strong> vai muitíssimo bem, obrigada.<br />

Assim como também vão muito bem a minha<br />

cabeça, o meu tronco e as minhas pernas. Cui<strong>do</strong> de cada<br />

parte <strong>do</strong> corpo – e da psique – sem tentar enaltecer ou<br />

forçar ciclos ou ritmos diferencia<strong>do</strong>s.<br />

Gosto de amar aquilo que me faz contente, gosto<br />

de ser gentil com o que me possibilita troca de alegrias. Se<br />

durante muitos anos estive escondida no sótão da falta<br />

de amor-próprio, de cinco anos para cá posso propagar


que me abasteci de auto-estima suficiente para ser uma<br />

outra pessoa. Livre, rejuvenescida, libertária, aberta, desencanada<br />

e sempre disposta a inventar novas frentes de trabalho,<br />

amor e amizade. Evidentemente que no meio de todas<br />

essas possibilidades se encontra também o sexo, essa dádiva<br />

com que os deuses contemplaram os seres viventes.<br />

Mas é importante avisar aos navegantes: não confundam<br />

energia de vida com mera disposição sexual. Acho<br />

que os que pensam assim estão apenas projetan<strong>do</strong> situações<br />

complicadas das suas próprias vidas, em que deve faltar<br />

disposição, idéias e sexo. Ainda bem que não pen<strong>do</strong> para<br />

nenhum la<strong>do</strong>. Meus funcionamentos físicos, emocionais,<br />

sexuais e espirituais andam no mesmo ritmo e passam<br />

to<strong>do</strong>s muito bem. São como filhos: gosto de to<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>u<br />

atenção a to<strong>do</strong>s. Certo?<br />

129


Vejam que situação<br />

E vejam como sofre<br />

um pobre coração<br />

Pobre de quem acredita<br />

Na glória e no dinheiro<br />

Para ser feliz<br />

(Saudades da Bahia, de Dorival Caymmi)


RECONHECIMENTO<br />

ROL DA FAMA<br />

Encontro pessoas que se transformam imediatamente<br />

quan<strong>do</strong> percebem a aproximação<br />

de um fotógrafo ou de uma câmera de TV. Para<br />

esses, a imagem parece ser a forma real da<br />

vida, e não o contrário. É como se elas vivessem<br />

eternamente estrelan<strong>do</strong> um comercial de televisão,<br />

só que o produto são elas mesmas e serem<br />

aceitas pelo merca<strong>do</strong> é questão de sobrevivência.<br />

A espontaneidade cedeu lugar ao posicionamento<br />

de personagens, <strong>do</strong>s superegos e<br />

<strong>do</strong>s ventríloquos de salão.<br />

Foi-se o tempo em que bastava a frase deita-te na cama<br />

e cria fama. A compreensão da palavra fama na sociedade<br />

contemporânea obedece às obrigações da tresloucada sociedade<br />

<strong>do</strong> espetáculo. Tu<strong>do</strong> deve ser espetacular, anima<strong>do</strong>,<br />

mega, produzidíssimo, ostentativo, festivo. Ninguém convida<br />

mais para se tomar um prato de sopa, sorver um licor ou<br />

ouvir um CD. Existe a obrigação de que to<strong>do</strong>s os atos sejam<br />

expostos, abertos, visíveis e compartilha<strong>do</strong>s.<br />

Claro que reconhecimento autêntico é a melhor das<br />

recompensas para o nosso trabalho, mas é preciso criar defe-<br />

131


132<br />

sas, muitas vezes contra nós mesmos. Para quê? Para <strong>do</strong>marmos<br />

o ego que volta e meia insiste em nos convencer<br />

que só ele pode reinar em nosso castelo. Não dá para deixar<br />

relativa a vida em um único aspecto, não dá para viver<br />

mendigan<strong>do</strong> cinco milésimos de segun<strong>do</strong>s de fama, e não<br />

me corrija, nos dias de hoje basta isso para o novo ficar<br />

antigo. É como um glacê, sem consistência seu destino é a<br />

lata de lixo.<br />

E ser reconheci<strong>do</strong> implica significa<strong>do</strong>s mais bran<strong>do</strong>s,<br />

como gratidão, agradecimento, identificação, observação,<br />

aceitação. Fácil não é. Conquistar o tal reconhecimento é<br />

processo longo, pressupõe aceitar nossas limitações e falhas.<br />

Reconhecer que nem to<strong>do</strong>s os valores dita<strong>do</strong>s pela mídia são<br />

necessariamente melhores <strong>do</strong> que os seus. Saber que existem<br />

outras formas de viver com satisfação além <strong>do</strong>s flashes.<br />

Por isso costumo dizer que não an<strong>do</strong> no encalço da<br />

fama, nem atrás <strong>do</strong>s aspectos vazios da celebridade. Sou impulsionada<br />

a concretizar propostas com o meu dínamo: idealizo,<br />

busco, realizo, questiono, analiso e mostro resulta<strong>do</strong>s<br />

finais aos públicos-alvos. Conquisto outras áreas porque jamais<br />

forjei situações que trouxessem reconhecimento. Vale<br />

notar aqui que jamais colocaria o meu rosto em algo que eu<br />

mesma não acreditasse.<br />

Se agora sou reconhecida em determina<strong>do</strong>s setores,<br />

isso se deve basicamente ao fato de ter consegui<strong>do</strong> atingir<br />

metas a que me propus com seriedade nos últimos anos. Não


creio nas escaladas profissionais fáceis, nem em transformações<br />

pessoais sem dificuldades.<br />

Mudanças em série e que ainda vão continuar por bastante<br />

tempo a me levar a outros meios de expressão. Continuo<br />

inquieta e disposta a ser ajustada ao arrojo <strong>do</strong>s novos<br />

tempos. Ser reconhecida é decorrência desse trabalho. Nunca<br />

uma meta.<br />

133


134<br />

EGOS INFLADOS<br />

INFLÁVEIS E INFLAMÁVEIS<br />

A vida moderna e os rituais sociais contemporâneos<br />

nos levaram, nas duas últimas<br />

décadas, a aprender a conviver com os chama<strong>do</strong>s<br />

egos infla<strong>do</strong>s. E o que significa esse termo?<br />

Não é bem uma forma de exibicionismo. Não<br />

seria puramente ausência de altruísmo. Não se<br />

trata apenas de assuntos auto-referentes. Nem<br />

tampouco de pessoas que compreendem o<br />

mun<strong>do</strong> somente a partir das idéias próprias.<br />

Os egos infla<strong>do</strong>s são isso tu<strong>do</strong> junto, mais uma<br />

porção de intolerância, desatenção, invasão<br />

de espaço alheio, desinteresse por opiniões<br />

diferentes e algumas gramas de presunção,<br />

isso só aprendi a duras penas.<br />

Participei há pouco de uma montagem teatral beneficente<br />

que reuniu um grupo de personalidades com<br />

destaque quase permanente nos jornais, nas colunas sociais<br />

e nas revistas. Altos profissionais de áreas diversas,<br />

celebridades e instant darlings da mídia. Do processo de<br />

encontros iniciais à convivência obrigatória <strong>do</strong>s ensaios


constantes, foi possível observar reações inesperadas e<br />

humores oscilantes. Talvez eu tenha presencia<strong>do</strong> um pouco<br />

da comédia humana relatada por Balzac.<br />

Claro que revi amigos no grupo, além de ter feito<br />

novas amizades. Da equipe de produção aos técnicos, <strong>do</strong>s<br />

atores aos diretores, descobri gente com vontade de<br />

aprender e humildade de reconhecer seus desacertos.<br />

Como também alguns que vieram e saíram, deixan<strong>do</strong> rastros<br />

de estrelismos. Pessoas com dificuldades para dividir<br />

encontros coletivos ou participar de uma criação em grupo.<br />

A rápida passagem pelos palcos só me acrescentou.<br />

Vi como seria possível lidar com a representação das<br />

emoções, percebi que o esforço contínuo leva a performances<br />

bem realizadas e compreendi o valor da tolerância<br />

para se conviver em agrupamentos de pessoas diferentes.<br />

Abri-me, como nunca fizera antes, a ouvir opiniões,<br />

toques e sugestões. Observei ser inútil e pueril reagir com<br />

ataques súbitos, principalmente quan<strong>do</strong> se buscam objetivos<br />

comuns, dentro de prazos determina<strong>do</strong>s. Vi adultos que lembravam<br />

crianças espernean<strong>do</strong>, caso alguém chamasse a sua<br />

atenção ou pedisse correção no comportamento. Alguns<br />

saíam e não retornavam mais aos ensaios. Vários abrandaram<br />

explosões de ira com comentários bem-humora<strong>do</strong>s.<br />

Outros souberam derreter o iceberg <strong>do</strong> orgulho.<br />

Quanto a mim, confesso que preferi deixar claro que<br />

pouco sabia daquelas situações novas, e tu<strong>do</strong> o que acon-<br />

135


136<br />

tecesse seria gratificante. Óbvio que durante certos<br />

momentos senti ímpetos de aban<strong>do</strong>nar a guerra e retornar<br />

às minhas atividades profissionais. Não agi assim pela<br />

decisão de enfrentar um desafio desconheci<strong>do</strong>. Porque existem<br />

duas espécies de entusiasmo: o da alma e o <strong>do</strong> ofício.<br />

Não sei se voltaria novamente aos palcos. Quem sabe?<br />

Mas considero ter aprendi<strong>do</strong> experiências importantíssimas.<br />

Se como disse Caetano Veloso “de perto ninguém<br />

é normal”, em grupos de convivência constante é onde se<br />

revelam os verdadeiros personagens. Cada um com suas<br />

manias, egos em expansão, colisões de idéias e pouco controle<br />

verbal.


INTUIÇÃO<br />

SERÁ QUE FIZ BEM?<br />

Nem sei por onde começar este relato aturdi<strong>do</strong>,<br />

a fim de contar uma parcela <strong>do</strong> que me<br />

ocorreu. Vamos lá. Após dar, por meses a fio,<br />

alguns conselhos para minha melhor amiga<br />

sobre relacionamentos, resolvi fazer o que era<br />

certo, assim achava. Contar-lhe que ela estava<br />

sen<strong>do</strong> traída pelo seu mari<strong>do</strong>. Minha intuição<br />

feminina dizia que algo andava estranho, nele o<br />

comportamento oscilante, o cheiro de perfume e<br />

outras minúcias. Minha amiga, baseada nas minhas<br />

observações, resolveu colocar um detetive<br />

para sondar essa situação nebulosa. Caso existisse<br />

adultério, ela saberia logo. Contratou em<br />

seguida uma agência especializada em serviços<br />

secretos. Cinco dias depois assistiu, gelada, passada<br />

e trêmula, o sinistro resulta<strong>do</strong>. Na sala<br />

daquele escritório, fotos digitais mostravam José<br />

Roberto, seu mari<strong>do</strong>, com a amante, namorada,<br />

sei lá como chamaria a tal sirigaita.<br />

Ao sair de lá, completamente desnorteada, cheia de<br />

provas e com a listagem de endereços freqüenta<strong>do</strong>s pelos<br />

137


138<br />

<strong>do</strong>is, sentiu que a minha intuição, mais uma vez, estava certa.<br />

Seria uma lição de moral, um golpe de superioridade se<br />

o pegasse. Parou o carro, abriu um envelope e viu a direção<br />

<strong>do</strong> principal local que ele, seu mari<strong>do</strong> José Roberto, costumava<br />

ir com ela, a sirigaita-piranha-bandida. Chorou, e<br />

telefonou, ainda fungan<strong>do</strong>, para mim. Eu a incentivei a<br />

prosseguir no seu intento. A minha intuição também pedia<br />

vingança. E lá foi ela, feito uma barata tonta, em busca <strong>do</strong><br />

seu grande amor em um bar escondi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Jardins. Estacionou,<br />

desceu e caminhou desvairadamente até o local <strong>do</strong><br />

crime, ou seja, o bar. Olhou através da grande janela da<br />

fachada e viu, logo na segunda mesa, ele, José Roberto, seu<br />

mari<strong>do</strong>, seguran<strong>do</strong> as mãos dela, a monstra loira. Ele, de<br />

costas, não a viu. Ela, a sirigaita, a viu. Mas desconhecia<br />

quem ela fosse. Lágrimas grossas caíam <strong>do</strong> seu rosto.<br />

Voltou arrasada, massacrada, destroçada.<br />

Dá para imaginar como foi aquela noite? O que soube<br />

é que ela disse tu<strong>do</strong> o que sentia ter direito. Saiu de casa, fez<br />

as malas de José Roberto, quebrou um pufe e um cinzeiro,<br />

xingou, bateu os pés, chorou, mostrou as fotografias. Tu<strong>do</strong>.<br />

Estão separa<strong>do</strong>s desde aquela ocasião, com o divórcio<br />

corren<strong>do</strong> por intermédio de advoga<strong>do</strong>s. Tenho o pressentimento<br />

de que ele vai se arrepender. Mas enquanto isso, para<br />

não cair em desespero, ela consulta oráculos esotéricos que<br />

aprimoram a aura e a intuição. Usa cores indicadas para levantar<br />

o astral, mu<strong>do</strong>u o visual e sentiu que deveria pedir


demissão <strong>do</strong> seu emprego de fonoaudióloga. Isso foi outra<br />

bomba: nunca mais conseguiu colocação no merca<strong>do</strong>. Algo<br />

me diz que era preciso inventar, urgentemente, saídas alternativas<br />

para esses casos.<br />

Sentiu também intuições estranhas de que captaria<br />

algum tipo de sorte nesse perío<strong>do</strong>, pois há dito: infelicidade<br />

no amor traz sorte no jogo. Comprou montes de bilhetes<br />

lotéricos – inteiros – e passou dias e dias e dias nos<br />

bingos. Perden<strong>do</strong> cifrões. Achou que inaugurava a categoria<br />

infeliz no jogo e infeliz no amor.<br />

Durante certa madrugada, perdeu o sono e ficou na<br />

cama analisan<strong>do</strong> a confusão que se tornara a sua vida.<br />

Mas ela não é mulher de desistir fácil daquilo que se<br />

propõe conseguir: estabilidade emocional e econômica.<br />

Sentiu que poderia abrir um negócio próprio, conseguiu um<br />

namora<strong>do</strong> interessante, mu<strong>do</strong>u de casa e arrumou a vida.<br />

Aconselhada por mim, pediu um alto empréstimo no banco<br />

e apostou cada centavo nas minhas intuições.<br />

Oh vida! Oh céus! Oh dias! Hoje, aos 34 anos, é uma<br />

mulher endividada, amargurada, neurótica e assustada. Os<br />

negócios não prosperaram, brigou feio comigo, a separação<br />

continua emperrada e o tempo não pára. Puxa, mas<br />

lá no fun<strong>do</strong> tenho a percepção de que tu<strong>do</strong> ainda poderia<br />

dar certo. Bastaria que eu insistisse e não desistisse de<br />

aconselhá-la. Minhas intuições ainda vão trazer resulta<strong>do</strong>s.<br />

Pressinto isso ou pergunto isso?<br />

139


ANSIEDADE<br />

O DRAGÃO NOSSO DE CADA DIA<br />

Dias atrás me perguntaram no chat <strong>do</strong> meu<br />

site como agir para controlar a ansiedade. Na<br />

hora, confesso ter respondi<strong>do</strong> de maneira simplificada,<br />

mas depois fiquei a pensar sobre a<br />

complexidade <strong>do</strong> tema. Ansiedade é a <strong>do</strong>ença<br />

<strong>do</strong>s tempos modernos e o epicentro de incontáveis<br />

males.<br />

Tecnicamente, a ânsia seria um sentimento oco, desprovi<strong>do</strong><br />

de objetivos lógicos. Devi<strong>do</strong> a causas psicológicas<br />

inconscientes, o cérebro envia coman<strong>do</strong>s que provocam no<br />

corpo esta<strong>do</strong>s de angústia, necessidade imediata de suprir<br />

carências desconhecidas, abrandar temores, saciar algo indizível,<br />

preencher os vazios físicos, existenciais e emocionais.<br />

A velocidade <strong>do</strong> cotidiano das grandes e das médias<br />

cidades impôs ritmos tão acelera<strong>do</strong>s que os surtos de ansiedade<br />

nem sempre são percebi<strong>do</strong>s de imediato. Milhões<br />

de pessoas desconhecem porque continuam a agir<br />

de mo<strong>do</strong> ansioso, incorporan<strong>do</strong> assim hábitos que passam<br />

a destruir o corpo e a mente. Hábitos que corroem<br />

a resistência orgânica, trazem envelhecimento celular e<br />

acúmulo calórico.<br />

141


142<br />

A ansiedade pode acometer também as pessoas<br />

deprimidas, sem ser um componente psicológico liga<strong>do</strong><br />

apenas aos que apresentam comportamentos agita<strong>do</strong>s.<br />

Sob os impulsos da ânsia fala-se mais, come-se mais, bebese<br />

mais, respira-se erra<strong>do</strong>, <strong>do</strong>rme-se menos, travam-se os<br />

músculos, altera-se a circulação, envelhecem-se as células,<br />

crispam-se os gestos, turvam-se as idéias, perde-se a ponderação,<br />

agita-se a alma, morre-se ao poucos.<br />

São combustíveis da ansiedade o excesso de informação,<br />

a obrigação <strong>do</strong> consumismo, a falta de silêncio, a poluição<br />

visual, a velocidade <strong>do</strong>s deslocamentos, a degradação<br />

<strong>do</strong> meio ambiente, a alimentação inadequada, os prazos curtos,<br />

o esquecimento de hábitos simples, a demanda pelo<br />

tempo, o desamor próprio e os desequilíbrios sociais.<br />

Para se contornar o furacão da ansiedade – nem digo<br />

acabar, por parecer uma missão improvável – seria preciso<br />

buscar alterações radicais na qualidade de vida. Não quero<br />

aqui passar nenhuma fórmula mágica antiansiedade, mas<br />

o primeiro passo está em reconhecer que se é vítima desse<br />

mal invisível. Depois, procurar abrandá-lo.<br />

Parece fácil? É dificílimo. Para quem dispõe de tempo<br />

livre, recursos e intenção de mudar, o processo de enfrentar<br />

a ansiedade costuma obter resulta<strong>do</strong>s. Porém, a maioria<br />

esmaga<strong>do</strong>ra das pessoas vive rotinas duras que permitem<br />

quase nenhum controle. Aliás, este é o termo-chave: controle.<br />

Ansiedade não se cura, apenas se controla.


Igual a um dragão <strong>do</strong>s tempos modernos, a ansiedade<br />

pode atacar a qualquer momento, brotan<strong>do</strong> lá <strong>do</strong><br />

mais profun<strong>do</strong> abismo existencial de cada um. Longe de<br />

ter controle <strong>do</strong>s surtos coletivos de ansiedade, o planeta<br />

começa a produzir gerações com componentes genéticos<br />

de angústia. E para abrandar esse rombo na estrutura psicológica<br />

da humanidade, só uma pausa que nos faça<br />

repensar tu<strong>do</strong>, refazer tu<strong>do</strong>, renovar tu<strong>do</strong>.<br />

143


144<br />

LIBERDADE<br />

LIBERDADE OU INDEPENDÊNCIA?<br />

Assim caminha a humanidade: sempre em<br />

busca de liberdade. Liberdade, clamam os grupos<br />

políticos. Liberdade, bradam os jovens à<br />

sociedade. Liberdade, pedem os que se sentem<br />

oprimi<strong>do</strong>s. Liberdade, acertam os casais. Liberdade,<br />

anseiam os que não a têm. Liberdade,<br />

abre as asas sobre nós.<br />

E então somos envolvi<strong>do</strong>s nesse gigantesco clamor<br />

universal em que até fatos corriqueiros podem significar o<br />

oposto da liberdade. Então, a busca pela liberdade parece<br />

impulsionar, mover e empurrar cada um de nós, geran<strong>do</strong><br />

uma obrigação de pregar a importância de ser livre, de se<br />

amar a liberdade e de proteger os que nos liberam de algo<br />

considera<strong>do</strong> pesa<strong>do</strong>.<br />

Como não podia deixar de ser, essa característica não<br />

apenas humana (os animais também desejam ser livres <strong>do</strong><br />

jugo de seus proprietários) acabou sen<strong>do</strong> incorporada por<br />

outras formas de linguagem. Em algumas situações, virou<br />

clichê, como na publicidade. Ninguém deveria se esquecer<br />

daquela frase que dizia assim em um anúncio de jeans:<br />

“Liberdade é uma calça velha desbotada”. Nos discursos


políticos, essa palavra é mais usada <strong>do</strong> que as vírgulas. No<br />

campo das conquistas sociais, liberdade é o combustível de<br />

cada avanço. Na economia, o merca<strong>do</strong> pede para ser livre.<br />

E por aí afora.<br />

Então precisamos tomar o refrigerante que traz sabor<br />

de liberdade, precisamos correr atrás <strong>do</strong> autor que ninguém<br />

jamais viu escrever com tanta liberdade, precisamos conhecer<br />

aquele guru que anuncia uma vida espiritual plena de<br />

liberdade. Daqui a pouco teremos o chiclete com sabor Tutti<br />

liberdade, o miojo com molho Liberdade e a tintura de cabelos<br />

no tom Liberdade.<br />

Pois é. De repente, num momento qualquer <strong>do</strong> dia, a<br />

gente pára e reflete sobre isso. Para que tanta liberdade?<br />

O que fazer com tanta liberdade, ou melhor, com tanta<br />

liberdade rotulada? Penso que se busca um objetivo que<br />

virou outra banalização <strong>do</strong>s tempos modernos e uma<br />

palavra que infelizmente foi esvaziada de seu conteú<strong>do</strong><br />

real. Liberdade seria apenas ficar com alguém (mas manter<br />

a mesma postura conserva<strong>do</strong>ra de gente que não quer<br />

mudanças), liberdade seria sair da happy hour no instante<br />

em que desejar, liberdade seria escolher o show mais conveniente,<br />

liberdade seria optar pela roupa favorita? Liberdade,<br />

atitude, estilo: três palavras que parecem não dizer<br />

mais nada. E o termo liberdade prossegue na mesma<br />

direção.<br />

Prefiro dar ao termo liberdade o senti<strong>do</strong> de inde-<br />

145


146<br />

pendência. Independência seria pensar de mo<strong>do</strong> inteiramente<br />

sem amarras, independência seria agir sem culpa,<br />

sem peca<strong>do</strong>, sem peso. Independência é acreditar nas<br />

mudanças, é apostar no novo, é não seguir tendências.<br />

Independência para se conseguir ar puro, para se abrir ao<br />

romance, para se levar a vida com leveza, para dar palavra<br />

boa a quem precisa, para acreditar na amizade, para poder<br />

falar o que pensa. Independência para observar borboletas,<br />

para beijar na boca, para melhorar o planeta, para<br />

respeitar os ancestrais, para alcançar o futuro. Independência<br />

para deixar tu<strong>do</strong> fluir: pensamento, espiritualidade,<br />

sexo, energia, intuição e sentimentos. Liberdade só vale<br />

com independência.


PERFEIÇÃO<br />

A PERFEIÇÃO PODE SER IMPERFEITA<br />

Um <strong>do</strong>s meus maiores defeitos atende pelo<br />

nome de perfeição. Sei que há muito tempo<br />

deixou de ser virtude para se transformar em<br />

um processo ininterrupto de procurar ajustes,<br />

alterações e mudanças. Tu<strong>do</strong> em nome <strong>do</strong> perfeito,<br />

da exatidão, <strong>do</strong> mais adequa<strong>do</strong>, <strong>do</strong> que<br />

não tem arestas, <strong>do</strong> que não erra. Quanta<br />

chatice e quanta caretice, reconheço.<br />

Por buscar a tal da perfeição, costumo sofrer decepções<br />

ou ser obrigada a enfrentar as miragens da ilusão. Se<br />

idealizo algo, passo a acreditar na melhor formatação possível<br />

para a realização <strong>do</strong> que idealizei. Obviamente, na<br />

maioria das vezes, preciso voltar atrás e reconsiderar decisões.<br />

Sofro com isso, mas procuro me trabalhar para não<br />

perder esse empenho. Nem me tornar obsessiva.<br />

A perfeição é uma meta? É. A perfeição exige atenção<br />

triplicada, organização mental, gavetas em ordem, equipe<br />

sintonizada, propostas estruturadas, controle sobre excessos,<br />

manutenção <strong>do</strong>s fluxos de informações e de atualizações,<br />

boa intuição, disciplina e prática constante naquilo<br />

que se faz. To<strong>do</strong>s esses aspectos anteriores também podem<br />

147


148<br />

ser aplica<strong>do</strong>s a outras modalidades da vida: relacionamentos,<br />

amizades e negócios. Sempre dá certo? Não.<br />

Tentar ser perfeito ou tentar encontrar a perfeição é<br />

um sofrimento contínuo, aviso logo. Na verdade, tenho a<br />

fórmula na mão. Mas como se eu fosse um cientista que<br />

conhece bem a teoria, os experimentos tendem a não produzir<br />

os resulta<strong>do</strong>s espera<strong>do</strong>s. Já me acostumei ao esta<strong>do</strong><br />

de chabu. Nem ligo mais quan<strong>do</strong> uma idéia, que tinha<br />

tu<strong>do</strong> para dar certo, é descartada por ser inviável. Nem ligo<br />

mais quan<strong>do</strong> o que me parecia perfeito se revela o mais<br />

imperfeito <strong>do</strong> universo. Faz parte <strong>do</strong> show.<br />

Perfeição seria poder falar o mínimo e obter o máximo.<br />

Perfeição mesmo seria nunca pedir duas vezes a mesma<br />

coisa, conviver com pessoas de iniciativa, ter amigos<br />

com o mesmo tom de humor, não guardar rancor, ter sempre<br />

uma saída para as soluções complicadas, acreditar que<br />

a crise passa, receber a ligação esperada na hora marcada,<br />

encontrar vaga em qualquer vôo, ter um amor que nunca<br />

nos aborreça com bobagens e conseguir parceria <strong>do</strong>s filhos.<br />

Perfeição é um final de semana sem acrescentar nenhum<br />

grama a mais ao peso, é conseguir o vinho na temperatura<br />

ideal, receber a visita inesperada daquele amor<br />

que não sai da cabeça, ouvir elogio por um trabalho bemfeito,<br />

ver que as plantas foram bem cuidadas durante a sua<br />

ausência, receber pagamentos em dia, reservar <strong>do</strong>ses de<br />

alegria para o próximo dia.


A perfeição se esconde nos detalhes. Pode estar na<br />

<strong>do</strong>bra <strong>do</strong> guardanapo, na luz bonita que entra pela janela,<br />

no sino que toca ao longe, no cheiro de mato molha<strong>do</strong>, no<br />

beijo que sela um grande amor, na boa notícia que chega<br />

pelo e-mail, no aroma de tangerina no café da manhã, na<br />

canção romântica que toca no bar, no sol que aquece a<br />

areia, no som da cachoeira, na turbina <strong>do</strong> avião que me<br />

leva de férias, no abraço de quem me recebe de volta, no<br />

reencontro da rotina, na cumplicidade <strong>do</strong> amigo, nos cabelos<br />

brancos <strong>do</strong>s pais, na paz que nos invade sem motivo.<br />

A perfeição se oculta. Quan<strong>do</strong> ela quer, aparece.<br />

Quan<strong>do</strong> não, corremos atrás. Isso não é perfeito?<br />

149


DIPLOMACIA<br />

GEOGRAFIA HUMANA<br />

Desde sempre ouço as pessoas dizerem:<br />

“Fulano usa muita diplomacia”. Depois, fui informada<br />

por amigos de que eu seria uma pessoa<br />

extremamente diplomática. Então comecei<br />

a perceber que este era um traço herda<strong>do</strong> de<br />

meu pai, ele, sim, um diplomata nato. Agora<br />

que chegamos ao final <strong>do</strong> parágrafo, vale questionar:<br />

o que é diplomacia?<br />

No entendimento mais correto <strong>do</strong> termo, seria a ciência<br />

de negociar as relações exteriores de um país com outro.<br />

Mas o uso corriqueiro dessa palavra ganhou outras interpretações<br />

e também pode ser compreendi<strong>do</strong> como uma espécie<br />

de arte das negociações, ou certa astúcia em analisar<br />

tu<strong>do</strong> o que está ao nosso re<strong>do</strong>r, sem emitir opiniões imediatas<br />

ou sem deixar de tratar bem qualquer pessoa.<br />

Jamais me imaginei viran<strong>do</strong> o rosto para alguém, por<br />

mais que esse suposto personagem fosse extremamente<br />

nocivo. Prefiro dispensar tratamentos cordiais, por uma<br />

simples questão de atitude. Posso e tenho minhas opiniões<br />

contrárias sobre pessoas diversas, mas só quem sabe disso<br />

são meus amigos mais próximos.<br />

151


152<br />

Ser diplomata na vida tem me ajuda<strong>do</strong> a circular por<br />

situações completamente opostas, sem deixar um rastro<br />

de mal-entendimentos. Chego, olho, analiso, avalio, cumprimento,<br />

converso, registro. De certa forma, é um comportamento<br />

político. Seria capaz de apertar a mão de pessoas<br />

com as quais aparentemente não tenho nada a ver,<br />

apenas por uma questão de educação, trato civiliza<strong>do</strong> e…<br />

diplomacia.<br />

Agir assim, de mo<strong>do</strong> diplomático, tem suas compensações<br />

sociais e pessoais. Socialmente me alivia, porque não<br />

sou obrigada a demonstrar posições arredias a ninguém,<br />

nem evidenciar que discor<strong>do</strong> das opiniões daquela pessoa<br />

X, Y ou Z. De certa forma, é um jeito que encontro para me<br />

poupar e não me aborrecer com minúcias alheias. Se fulano<br />

pensa assim, deixa ele pensar exatamente assim. Nas internas,<br />

comento e discor<strong>do</strong> das suas idéias. Mas publicamente<br />

não convém, para que ele também não se sinta no direito<br />

de revidar os meus pensamentos.<br />

A outra vantagem de ser uma mulher diplomática é a<br />

de exercitar por completo um la<strong>do</strong> que pede prudência,<br />

paciência e análise. Aprendi a agir assim com meu pai, que<br />

cada vez que o interrogam se entendeu determina<strong>do</strong> assunto<br />

ele responde uma clássica sentença: Registrei. Portanto,<br />

faço cá os meus registros da forma mais pessoal possível,<br />

sem ter a obrigação de externar na hora julgamentos<br />

precipita<strong>do</strong>s, conceitos apressa<strong>do</strong>s ou avaliações incorretas.


Sem contar que atualmente as pessoas querem opinar<br />

sobre tu<strong>do</strong>. Basta ligar a tevê e lá vão estar, a qualquer<br />

hora <strong>do</strong> dia, um grupo de cidadãos discutin<strong>do</strong> o sexo <strong>do</strong>s<br />

anjos, a inflação da Bulgária, a cor <strong>do</strong> cavalo branco de Napoleão<br />

ou a neurose múltipla que foi descoberta na semana<br />

passada. Por que to<strong>do</strong>s querem emitir tantas opiniões<br />

assim? O verbo achar, por exemplo, é um vício na boca de<br />

milhões de seres. Ninguém mais diz eu considero, eu penso,<br />

eu avalio.<br />

Está aí uma descoberta que fiz agora: talvez eu seja<br />

diplomática para evitar cair no lugar-comum <strong>do</strong> achismo.<br />

Eu prefiro não achar nada sobre nada, mas pensar sobre<br />

algo. Nada mais sensato, então, <strong>do</strong> que exercer nosso la<strong>do</strong><br />

diplomático nas relações humanas. Que tal imaginar que<br />

cada pessoa é um país diferente e que os inter-relacionamentos<br />

pedem a máxima atenção no que se diz, se age ou<br />

se comenta? Registraram essa? Eu registrei.<br />

153


154<br />

DESVIOS<br />

DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES<br />

Por ser um mestre em criar situações desviantes,<br />

este tema é dedica<strong>do</strong> a meu irmão Arnal<strong>do</strong>.<br />

Um concerto de orquestra pode soar desafina<strong>do</strong><br />

por inteiro se um instrumentista resolve<br />

tocar fora <strong>do</strong> tom. Uma gota d’água é o bastante<br />

para atingir o ponto de vazamento. Um<br />

minuto a mais ou a menos é capaz de mudar a<br />

vida de qualquer pessoa. Um jeito diferente de<br />

agir significa um desvio incontornável.<br />

Conheço algumas histórias de vida que se aproximam<br />

desse processo “desviante”. Talvez a mais marcante<br />

seja a <strong>do</strong> filho de um amigo que desejava ser músico,<br />

enquanto ele esperava que fosse cumprida a tradição<br />

familiar: o rapaz se formaria em medicina. Depois <strong>do</strong>s<br />

dramas típicos que acontecem nesses momentos de<br />

decisão profissional, o clima fica aparentemente resolvi<strong>do</strong>.<br />

Aparentemente. Sim, porque convencer alguém que<br />

sonha com determinada profissão a cursar uma área<br />

oposta não é nada simples. Nem de fácil resolução. E o


filho desse amigo amargou seis longos anos até se formar<br />

como médico. Dias depois da formatura, ele chamou o<br />

pai, entregou-lhe o diploma e disse: “Aí está o que prometi.<br />

Agora vou cuidar da minha vocação”. Partiu em seguida<br />

para atuar como músico.<br />

Esse seria um final triste? Talvez para os pais. Mas felicíssimo<br />

para quem sente o alívio da decisão, o alívio de correr<br />

em raia própria, o alívio de ser <strong>do</strong>no de sua própria trajetória.<br />

De certa forma, também fui considerada “desviante” perante<br />

os padrões pré-estabeleci<strong>do</strong>s pela minha família. Por perío<strong>do</strong>s<br />

– de nada sau<strong>do</strong>sa lembrança – fui analisada como outsider<br />

completa. Por quê? Por tentar acreditar em mudanças,<br />

por exigir mudanças, por querer mudar sempre.<br />

Muitos não seguram as expectativas de irmãos, pais,<br />

parceiros ou sócios. E acabam sem realizar nada de prazeroso<br />

para si mesmo, nada de autoral, nada de verdadeiro.<br />

Sobrevivem em um pântano de frustrações, daquelas que<br />

mantêm o travo amargo por prazo indefini<strong>do</strong>. Quantas<br />

pessoas se adaptam a rotinas medíocres, com temor de<br />

serem classificadas como desviantes? Quantos atravessam<br />

suas existências em linha reta, sem novidades, sem<br />

nenhum fato que traga luz, explosão, renovação, brilho?<br />

Quantos milhares vão continuar a nascer, a crescer e a<br />

morrer na mais obscura e triste rotina, sem nem sequer<br />

ter ímpetos de brigar para desviar o caminho de suas<br />

vidas? Definitivamente, desola<strong>do</strong>r.<br />

155


156<br />

Acredito que os desvios de rota costumam trazer<br />

belas surpresas. Certamente nada deve ser considera<strong>do</strong><br />

uma regra imutável, mas vale bastante apostar em<br />

mudanças, em cambalhotas, em reviravoltas. Importante é<br />

nunca esmorecer. Tornam-se grandiosos aqueles que enfrentam<br />

oposição para demonstrar que estavam certos nas<br />

escolhas, ou que desejavam investir em sonhos. Às vezes,<br />

para nossas idéias passarem <strong>do</strong> preto-e-branco para o colori<strong>do</strong><br />

é necessário dar murros em ponta de faca.<br />

Por isso, as palavras de ordem são: não se acomodar<br />

jamais, não seguir retilíneo jamais. Um desvio aqui e outro<br />

lá faz bem à saúde de to<strong>do</strong>s.


TERRITÓRIO<br />

ÁREAS DE PROTEÇÃO PESSOAL<br />

Muita gente me fala sobre as tormentas<br />

que passam por ter suas realizações não respeitadas,<br />

suas vidas invadidas ou suas privacidades<br />

devassadas sem permissão. Fico calada e<br />

apenas exibo um leve sorriso. Longe de pretender<br />

parecer ter respostas prontas para<br />

tu<strong>do</strong>, apenas considero isso como questão de<br />

ausência da imposição de limites. Ou melhor,<br />

como falta de delimitação de território próprio.<br />

Até os animais determinam seus limites por meio de<br />

sons, rastros, dejetos e expressões de afaste-se. Ora, ora,<br />

ora. Vale lembrar um fato fundamental que to<strong>do</strong>s fingem<br />

esquecer: o ser humano é um animal. Então, para que<br />

aconteça alguma forma de convivência no mínimo tolerante,<br />

seria preciso evidenciar os limites e extensões possíveis<br />

para cada chato sem noção que circula por determina<strong>do</strong>s<br />

ambientes. Seja homem, mulher, papagaio, bandi<strong>do</strong>,<br />

político ou cachorro.<br />

Quan<strong>do</strong> digo ser importante delimitar territórios,<br />

refiro-me a situações em que pessoas invasivas começam a<br />

se sentir inteiramente à vontade para agir de qualquer<br />

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158<br />

mo<strong>do</strong>, sem se preocupar se incomodam, se irritam ou se<br />

são intrusos. Refiro-me principalmente às figuras conhecidas,<br />

algumas dessas muito célebres pelo mau-caráter<br />

empresarial, político ou pessoal, e que se acham no direito<br />

de chegar, puxar conversa, pegar no seu braço e até dar<br />

beijos no rosto.<br />

Nunca estive fechada a conversar com desconheci<strong>do</strong>s,<br />

ao contrário. Penso até que quase to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que vemos<br />

pela frente pode ter pureza de alma. Muitos <strong>do</strong>s que se<br />

aproximam sem nos conhecer chegam de cara limpa, com<br />

boas intenções. Se depois mudam, é outra história.<br />

As velhas raposas <strong>do</strong>s encontros sociais não percebem<br />

quan<strong>do</strong> as evitamos ou fingem não ter compreendi<strong>do</strong><br />

a mensagem. Esses invasores de território tão logo<br />

encontram algum conheci<strong>do</strong>, vão lá abraçar, dar tapinhas<br />

nas costas, perguntar como vai o trabalho, onde está<br />

moran<strong>do</strong> e outras chatices assim. Uma estranha compulsão<br />

pela intimidade imediata, pela obrigação de parecer o<br />

mais anima<strong>do</strong> e simpático <strong>do</strong> planeta. Só que esse comportamento<br />

é inconcebível em certos momentos.<br />

Os intrusos profissionais não conseguem ser formais,<br />

gentis, sorridentes e civiliza<strong>do</strong>s sem apertar o antebraço <strong>do</strong><br />

interlocutor. A<strong>do</strong>ram sentar no braço <strong>do</strong> sofá para trocar<br />

duas frases, falam ajeitan<strong>do</strong> a gola <strong>do</strong> seu vesti<strong>do</strong> ou ajustan<strong>do</strong><br />

o nó da gravata alheia. Ou começam a contar piadas<br />

sem saber que você odeia ser platéia de piadistas de salão.


Também a<strong>do</strong>ram exibir uma intimidade que jamais existiu.<br />

O ataque <strong>do</strong>s invasores não per<strong>do</strong>a.<br />

Declaro aberta a campanha pela delimitação de território.<br />

Cada chato desses que fique na sua, até que aconteça<br />

a sinalização para avançar, ou o sinal verde para<br />

andar mais alguns passos. Gente intrusa, seja político,<br />

cunha<strong>do</strong>, genro, amigo <strong>do</strong> amigo ou pilantra, precisa de<br />

limites, antes que tomem conta <strong>do</strong> planeta, <strong>do</strong>s salões,<br />

<strong>do</strong>s encontros, das relações de amizade e <strong>do</strong>s contatos<br />

profissionais. O pior é que eles estão por toda parte. Mantenha-se<br />

firme e forte!<br />

159


LÍNGUAS DIFERENTES<br />

TORRE DE BABEL<br />

Para o meu irmão Abílio, que embora fale uma língua<br />

diferente da minha, sempre acabamos por nos entender<br />

Incontáveis acontecimentos desagradáveis<br />

surgem por motivo bem simples: não saber lidar<br />

com gente que fala outra língua. Nada a ver<br />

com um brasileiro não poder se comunicar com<br />

um búlgaro, ou um neozelandês sentir impasse<br />

na hora de ser entendi<strong>do</strong> por um peruano.<br />

Aliás, há situações em que pessoas de idiomas<br />

diferentes conseguirem se comunicar, inexplicavelmente.<br />

A metáfora que uso aqui se refere exclusivamente<br />

àqueles que desistimos de manter qualquer possível diálogo,<br />

visto que pensam de mo<strong>do</strong> oblíquo ou então analisam<br />

de maneira oposta a maioria das situações consideradas<br />

resolvidas.<br />

São fatores complica<strong>do</strong>s, mas vale a pena comentar<br />

isso tu<strong>do</strong>. Exemplos? Conheço quem não se importe a<br />

mínima em deixar de comparecer ao aniversário para o<br />

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162<br />

qual fora convida<strong>do</strong> pelo próprio aniversariante. Além de<br />

nem se tocar, também é incapaz de justificar a sua ausência.<br />

Não que seja apenas sinal de desinteresse (também é),<br />

mas a pessoa que age assim simplesmente não compreende<br />

porque os outros se chocam com a sua atitude.<br />

Há gente que interpreta os valores da boa convivência<br />

de jeito estranho à maneira que pensamos. Pode-se explicar<br />

em detalhes a nossa posição, mas os que falam outra<br />

língua vão permanecer na sua posição inarredável, sem<br />

mover-se para trás ou para frente. Nem para os la<strong>do</strong>s. Essa<br />

pessoa simplesmente não entende a sua linguagem, ela<br />

construiu (ou foi levada a construir) imagens <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

sob prismas diferentes, em que as coisas não têm peso<br />

nenhum – ou passam a ter peso em excesso.<br />

Muitos são simpáticos, educa<strong>do</strong>s e gentis. Isto é, na<br />

medida <strong>do</strong> possível. Ficam boian<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> um tema determina<strong>do</strong><br />

é aborda<strong>do</strong> e se questionam porque aquele<br />

tema teria si<strong>do</strong> aborda<strong>do</strong>. Ficam atônitos se são repreendi<strong>do</strong>s,<br />

porque a gramática de vida deles é outra. Cometer<br />

deslizes? Desistir de objetivos? Nunca retornar a sua ligação?<br />

Jamais responder e-mails? Discutir pontos de vista<br />

bobos? Prometer muito e realizar pouco? Encerrar uma<br />

atividade coletiva e sair sem demonstrar saudades <strong>do</strong> grupo?<br />

Continuar a falar sobre futebol, mesmo depois que<br />

você diz não gostar <strong>do</strong> assunto? Insistir para que você<br />

coma pratos que você diz querer evitar? Repetir brinca-


deiras que incomodam? Todas essas ações, e muitas outras<br />

mais, integram o repertório <strong>do</strong>s que falam outra língua. E<br />

olha que nem entrei na questão de se relacionar com alguém<br />

que fala outra língua de verdade.<br />

Nem adianta reclamar ou tentar convencê-los de que<br />

estão equivoca<strong>do</strong>s. Suas profundas certezas continuarão<br />

arraigadas na mente, forman<strong>do</strong> um dicionário próprio de<br />

analisar o mun<strong>do</strong> e as pessoas. O único jeito, conselho de<br />

quem já li<strong>do</strong>u demais com gente assim, é concordar com<br />

tu<strong>do</strong>, em uma espécie de retirada estratégica de cena.<br />

Não gaste palavras à toa. Não haveria diálogo, mas<br />

apenas a confirmação de <strong>do</strong>is pontos de visão inconciliáveis.<br />

Sem contar que lidar com gente que fala outra língua<br />

dá trabalho, perde-se a paciência e utiliza-se mal o<br />

tempo. Desista, mesmo quan<strong>do</strong> são parentes ou amigos<br />

próximos. Eles moram em outro planeta, gostam de coisas<br />

diferentes das que gostamos, têm sensibilidades voltadas a<br />

outros pontos e, sobretu<strong>do</strong>, se consideram certos em tu<strong>do</strong>.<br />

Quem se habilita a fazê-los falar outra língua? Eu, não. Já<br />

fiz muitas tentativas. Hoje fico no meu observatório.<br />

163


164<br />

CAMA DE FILHO<br />

PLAYGROUND<br />

Para meus filhos Manoella, Tiago e Giovana, as três jóias<br />

mais importantes da minha trajetória nesta vida<br />

Primeiramente, quan<strong>do</strong> o casamento não<br />

vai bem, ir ao quarto <strong>do</strong>s filhos costuma ser<br />

uma boa desculpa para evitar a presença<br />

opressora <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Inventam, as mulheres,<br />

que precisam ficar um tempo com as crianças e<br />

depois somem por horas a fio. Essa justificativa,<br />

quan<strong>do</strong> ocorre com freqüência, denota que as<br />

coisas entre o casal estão realmente afundan<strong>do</strong>.<br />

Fugir de mari<strong>do</strong> chato só tem um refúgio<br />

<strong>do</strong>méstico, portanto: o quarto <strong>do</strong>s filhos.<br />

Mas comecei a descobrir, na época em que fazia isso,<br />

que ficar no quarto das crianças é como se atingir um outro<br />

universo. Parece que entramos na tela de um filme em<br />

projeção contínua. Ou que retrocedemos algumas décadas<br />

no tempo. Quem gosta de crianças, ou quem tem filhos,<br />

como eu tive, conhece a indescritível sensação <strong>do</strong> que é a<br />

cama de um pequeno ser com menos de dez anos.


Limitei a idade para entrar nessa viagem, porque<br />

depois <strong>do</strong>s dez anos, entram em cena os efeitos especiais<br />

da pré-a<strong>do</strong>lescência. Mas voltan<strong>do</strong> ao assunto, sempre<br />

costumo dizer que sentar ou deitar ou conversar na<br />

cama de um filho é uma das sensações mais gratificantes<br />

da maternidade. Nesses momentos é que percebemos a<br />

dimensão real (e irreal) daquela pessoa que colocamos<br />

no mun<strong>do</strong>, de seu universo com aspectos ainda tão<br />

restritos, de suas descobertas da vida, de suas expectativas<br />

perante um longo tempo que prevê para sua vida.<br />

A realidade da criança que está a seu la<strong>do</strong> é delirante,<br />

permite tu<strong>do</strong>, alcança tu<strong>do</strong> e decifra tu<strong>do</strong>, de acor<strong>do</strong> com<br />

códigos que só ela tem acesso. Existe naquela criatura<br />

humana um fator real de desabrochamento, de crescimento,<br />

de emissão de sinais. O que é o viver para uma criança?<br />

É receber conforto, ser alimentada, ganhar atenção, ter<br />

carinho, poder observar tu<strong>do</strong> ao re<strong>do</strong>r. Tão pouco para os<br />

adultos e tanto para elas.<br />

Ternura é o nome <strong>do</strong> sentimento que me invadia<br />

quan<strong>do</strong> eu ia até a cama <strong>do</strong>s meus filhos. Para eles, era<br />

sempre uma visita inesperada e um componente a mais<br />

de alegria. Imediatamente se sentiam impeli<strong>do</strong>s a me<br />

mostrar novidades, pequenas bobagens, deliciosas tolices<br />

<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> infantil e que só nos enchem de amor. Sobre<br />

os lençóis, objetos colori<strong>do</strong>s que não nos dizem nada.<br />

Mas que para uma criança pode ser a chave <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

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166<br />

De um pequeno aeroplano de plástico ou de uma casa de<br />

bonecas, tem-se um mun<strong>do</strong> inteiro à disposição da imaginação.<br />

Sempre foi assim e sempre será: a infância tem<br />

olhar minucioso, atento, detalhista, possui<strong>do</strong>r, sem limites.<br />

Olhares rumo ao infinito.<br />

Cama de criança também tem cheiro diferente. São<br />

cheiros que nos levam de volta a algum lugar <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>,<br />

como se nós mesmos nunca tivéssemos saí<strong>do</strong> daquela<br />

cama. São cheiros que misturam fragrâncias silvestres,<br />

sabonetes, travesseiros, brinque<strong>do</strong>s de borracha, madeiras<br />

claras, roupa lavada, sonhos com fadas. E as texturas? Nosso<br />

tato de adulto se envolve na sensação de apalpar pelúcias,<br />

substâncias molengas, mantas fofas, caixas bem lixadas,<br />

cubos, esferas, losangos, varetas mágicas e pequenos<br />

tapetes prontos para voar.<br />

Toda essa ternura se mistura a uma vontade de encolher<br />

a estatura para se juntar àquele pequeno planeta que<br />

gira em torno daquela cama. A atmosfera se torna mais<br />

tocante ainda quan<strong>do</strong> contamos histórias cujas origens se<br />

perdem no tempo, histórias de amigos ala<strong>do</strong>s, de árvores<br />

falantes, de animais sábios, de viagens a reinos encanta<strong>do</strong>s,<br />

de vôos sobre palácios <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s, de choupanas perdidas na<br />

floresta. O grande escritor argentino Jorge Luiz Borges dizia<br />

que a literatura infantil é a mais importante formação da<br />

mentalidade de qualquer pessoa. Fazer sonhar é educar.<br />

Por tu<strong>do</strong> isso, considero a cama de um filho como


uma das experiências mais bonitas da vida. De lá emanam<br />

a pureza que perdemos, os aromas que lembram antigos<br />

momentos, as cores que provocam efeitos sensoriais<br />

retroativos, as formas que explicam como o mun<strong>do</strong> poderia<br />

ser singelo e, o mais importante, aqueles <strong>do</strong>is<br />

pequenos olhos que não sabem de nada. Mas que estão<br />

abertos a tu<strong>do</strong> e que tentam nos proteger.<br />

167


Amores<br />

&<br />

Desamores


170<br />

UM COMPANHEIRO<br />

O COMPANHEIRO MÁGICO<br />

Uma vez soube que existiu nos anos 70 um<br />

grupo musical chama<strong>do</strong> Companheiro Mágico.<br />

Esse nome de vez em quan<strong>do</strong> me vinha à cabeça,<br />

sem motivos aparentes, mas talvez porque<br />

encerrava um punha<strong>do</strong> de significa<strong>do</strong>s que pareciam<br />

fazer senti<strong>do</strong> apenas para mim. Porém,<br />

o tempo se encarregou de dizer que aqueles<br />

meus devaneios tinham senti<strong>do</strong>.<br />

Companheiro mágico. Duas palavras que traduzem a<br />

combinação com que quase to<strong>do</strong>s sonham: encontrar<br />

alguém que reúna a capacidade de formar uma parceria<br />

verdadeira, a partir da companhia física e, ao mesmo tempo,<br />

exercer uma atuação mental capaz de trazer magnetismo,<br />

encanto, crescimento, envolvimento e, sim, magia.<br />

Se levarmos essa análise adiante, corremos o risco de<br />

desistir da possibilidade de permanecermos abertos aos<br />

grandes encontros. Todas as pessoas que conheço sabem<br />

como se tornou desgastante a busca pelo romance, a<br />

procura pela parceria perfeita. O mun<strong>do</strong> contemporâneo,<br />

entre as suas enormes contradições, oferece recursos tecnológicos<br />

que foram cria<strong>do</strong>s para melhorar a vida e propor-


cionar mais tempo livre. Entretanto, esses mesmos recursos<br />

acabam por afastar as pessoas de convívios, de descobertas<br />

e de aproximações. Ou, pior ainda, o ritmo da vida<br />

moderna está tornan<strong>do</strong> as pessoas auto-referenciais em<br />

excesso. Poucos dizem nós. Muitos só conhecem a primeira<br />

conjugação: eu sou, eu faço, eu tenho, eu quero.<br />

Bom, voltan<strong>do</strong> à busca <strong>do</strong> suposto companheiro<br />

mágico, vale acreditar que esse termo, aparentemente<br />

utópico, possa mesmo existir. Por que não? No momento<br />

em que começamos a entender alguém, alguma estranha<br />

luz transforma tu<strong>do</strong> em situações indescritíveis. Gostar de<br />

alguém é algo indizível, próximo da plenitude. Então por<br />

que, depois de reações adversas que não têm um<br />

momento exato para ocorrer, “faz-se de triste o que se<br />

fez contente”, como diz a letra da canção de Tom Jobim?<br />

Pois é, o encontro de duas pessoas costuma sempre ser<br />

algo enigmático.<br />

Abracadabra. Mas se há enigma, há a possibilidade<br />

da magia, não? Não a magia da flutuação, da alquimia ou<br />

<strong>do</strong>s coelhos da cartola. Mas a magia que provém <strong>do</strong>s<br />

olhares em silêncio, das mãos que se tocam, das perguntas<br />

que não precisam ser perguntadas, <strong>do</strong>s detalhes que vão<br />

atingir profundamente a alma <strong>do</strong> outro. Ser companheiro<br />

é, antes de tu<strong>do</strong>, um exercício diário, minuto a minuto, de<br />

compreensão, de manutenção e de busca pela harmonia.<br />

Se a palavra é prata, o silêncio é ouro.<br />

171


172<br />

De nada adianta projetarmos a busca <strong>do</strong> companheiro<br />

perfeito no outro. Precisamos, antes de tu<strong>do</strong>, trazer<br />

esse companheiro ideal dentro de nós. Ao se buscar a<br />

parceria exata, estamos apenas tentan<strong>do</strong> satisfazer uma<br />

projeção de perfeição, uma idealização daquilo que sabemos<br />

nunca estar aptos a realizar. Não é o companheiro<br />

que precisa ser o mais sublime <strong>do</strong>s seres. Nós é que devemos<br />

nos trabalhar para que esse fator <strong>do</strong> sublime aconteça<br />

primeiro dentro de nós. Isso, claro, requer paciência,<br />

inteligência e a capacidade de até se dispor a ser coadjuvante.<br />

Tarefa aparentemente difícil em uma época em<br />

que to<strong>do</strong>s pretendem ocupar o papel de estrela convidada<br />

na vida <strong>do</strong> parceiro.<br />

O companheiro mágico existe, concluo. Só que essa<br />

dádiva celestial raramente será alcançável. Pelo menos<br />

enquanto houver demonstrações de egos infla<strong>do</strong>s, surtos<br />

de ansiedade, análises corriqueiras, palavras inúteis e desconhecimento<br />

da psique humana. O companheiro mágico<br />

existe, acredite. Você já esteve com ele, ou está agora com<br />

ele bem aí <strong>do</strong> seu la<strong>do</strong>. Não dê uma palavra sequer. Feche<br />

os olhos, respire lentamente e abra as pálpebras devagar,<br />

como se estivesse desembarcan<strong>do</strong> em um planeta estranho.<br />

Comece a ver tu<strong>do</strong> a seu re<strong>do</strong>r de outro mo<strong>do</strong>. E a<br />

observar esse ser que você conhece tão pouco. Ali dentro<br />

mora o companheiro mágico. Para ter acesso a ele, basta<br />

encontrar a senha que está dentro de você.


Vem sentar-te comigo, à beira <strong>do</strong> rio<br />

Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos<br />

Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.<br />

(Enlacemos as mãos)<br />

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida<br />

Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa<br />

Vai para um mar muito longe, para o pé <strong>do</strong> Fa<strong>do</strong>,<br />

Mais longe que os deuses.<br />

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.<br />

Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.<br />

Mais vale saber passar silenciosamente<br />

E sem desassossegos grandes.<br />

(trecho de O <strong>Livro</strong> <strong>do</strong> Desassossego, de Fernan<strong>do</strong> Pessoa)<br />

173


Porque tu me chegaste<br />

Sem me dizer que vinhas<br />

E tuas mãos foram minhas<br />

Com calma<br />

Porque foste em minha alma<br />

Como um amanhecer<br />

Porque foste o que tinha de ser<br />

(O que tinha de ser, de Tom Jobim e Vinícius de Morais)


PRIMEIRO CASAMENTO<br />

COBAIAS E CIENTISTAS<br />

Casar é complica<strong>do</strong>. E casar jovem pode ser<br />

ainda mais problemático. Principalmente no<br />

meu exemplo, aos 19 anos. Embora me considerasse<br />

pronta e madura o suficiente para<br />

enfrentar a missão, hoje percebo que mal passava<br />

de uma a<strong>do</strong>lescente bem desenvolvida.<br />

Por ser filha caçula, mimada e controlada<br />

pelos pais, viver oficialmente com alguém era<br />

tão importante quanto atingir a tão desejada<br />

declaração de independência sentimental,<br />

emocional e existencial.<br />

Joguei-me, portanto, de cara e coração em uma aventura<br />

de exatos oito anos – o mesmo tempo que duraram os<br />

meus outros <strong>do</strong>is casamentos. (Costumo até brincar que<br />

esse é o limite de tempo que tolero nas relações amorosas.)<br />

OK, mas casar, naquele momento, valeria como o primeiro<br />

vôo solo de uma crisálida recém-saída <strong>do</strong> casulo. E assim<br />

parti da casa paterna, no princípio pensan<strong>do</strong> que estreava<br />

uma vida em que só aconteceriam situações divinas e maravilhosas<br />

para to<strong>do</strong> o sempre. Afinal de contas, essas eram<br />

as palavras proferidas pelo padre na cerimônia.<br />

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176<br />

Alegria, alegria, alegria. To<strong>do</strong> começo de união é leve<br />

e pode conduzir os pares a esta<strong>do</strong>s próximos da plenitude.<br />

Porém, com o passar <strong>do</strong>s anos, desenvolveu-se no meu<br />

casamento uma estranha forma de amor. Estávamos tão<br />

próximos, meu mari<strong>do</strong> e eu, que desenvolvemos uma<br />

relação como se fôssemos <strong>do</strong>is primos, sempre prontos a<br />

rir e a se divertir com tu<strong>do</strong> e to<strong>do</strong>s. Tamanha intimidade e<br />

conhecimento mútuo em excesso nos afastaram gradativamente<br />

de contatos físicos. Agíamos como parentes fraternos<br />

que, por mero acaso, estavam casa<strong>do</strong>s. O resulta<strong>do</strong>,<br />

como não podia deixar de ser, nos impulsionou na direção<br />

daquela palavra feia que faz tremer os casais: separação.<br />

Romper o primeiro casamento foi como fazer desmoronar<br />

uma utopia de felicidade, um reino de sonhos. E,<br />

com menos de 30 anos, me deparei com uma mulher isolada,<br />

magoada, com sentimento de rejeição, começan<strong>do</strong> a<br />

acumular quilos de rancor na alma e muitos quilos de<br />

ansiedade na cintura. Para mim, a partir daquele momento,<br />

o mun<strong>do</strong> caía de mo<strong>do</strong> irreparável, tu<strong>do</strong> parecia estar<br />

de ponta-cabeça. Reagi como agem os que perdem algo<br />

que consideram de grande valia.<br />

Passadas duas décadas dessa separação – que eu considerei,<br />

imagine-se, a maior tragédia da humanidade – percebo<br />

que também tive significativas parcelas de culpa na<br />

separação. Conduzi e deixei os fatos se dirigirem a um<br />

ponto sem retorno. Hoje garanto que desapareceram com-


pletamente as mágoas, as <strong>do</strong>res, os corações parti<strong>do</strong>s, as<br />

tristezas. Prefiro – e consigo – recordar situações interessantes<br />

que atravessamos a <strong>do</strong>is, ou lembrar da forma com<br />

que nos divertíamos como casal, <strong>do</strong>s anos que repartimos<br />

prazeres, viagens, cama, mesa e idéias. Além de gerar <strong>do</strong>is<br />

filhos, muito queri<strong>do</strong>s.<br />

Meu primeiro casamento trouxe, de forma que apenas<br />

agora analiso, a base emocional para compreender envolvimentos,<br />

sexualidades e as parcerias que acontecem debaixo<br />

<strong>do</strong> mesmo teto. Tornei-me menos auto-referencial e mais<br />

generosa, menos cobaia e mais cientista. Desenvolvi atitudes<br />

para evitar a passividade feminina em excesso e<br />

comecei a olhar o mun<strong>do</strong> com interpretações feministas.<br />

Começava assim o prenúncio da série de mudanças<br />

que ocorreriam depois em minha vida. Foi quase um prenúncio,<br />

um relâmpago, <strong>do</strong> que viria à frente. Não me arrepen<strong>do</strong><br />

de nada que aconteceu nesse primeiro casamento.<br />

Ao contrário, só adquiri conhecimento e desenvoltura.<br />

177


SEGUNDO CASAMENTO<br />

PÂNICO DE SER GUEIXA<br />

Quem sai abala<strong>do</strong> <strong>do</strong> primeiro casamento,<br />

inevitavelmente vai depositar mais esperanças<br />

<strong>do</strong> que devia no segun<strong>do</strong> casamento. Assim acontece<br />

com a maioria das pessoas, assim aconteceu<br />

comigo, assim acontecerá ainda com muitos. E<br />

agora que o tempo já se encarregou de trazer<br />

alívio a tantas lembranças de sabor amargo, não<br />

vejo problemas em rever esse perío<strong>do</strong> de tormentas<br />

pessoais e de submissão absoluta.<br />

Aliás, só a distância é que nos permite rever fatos<br />

anteriormente complica<strong>do</strong>s como uma série de cenas de<br />

algum filme distante no subsolo da memória. Esta impressão<br />

se torna ainda mais forte se conseguimos, durante esse<br />

tempo, evoluir a cabeça, o corpo e o espírito, saben<strong>do</strong><br />

deixar para trás os personagens que nos entristeceram e os<br />

comportamentos equivoca<strong>do</strong>s que exibimos.<br />

Meu segun<strong>do</strong> casamento foi uma fase de aprendiza<strong>do</strong>.<br />

No primeiro eu havia me casa<strong>do</strong> muito jovem e saíra<br />

magoada de uma experiência que tornou <strong>do</strong>is parceiros<br />

em apenas <strong>do</strong>is bons amigos, sem cama nem mesa. Fui,<br />

portanto, buscar em seguida algo que adicionasse aventu-<br />

179


180<br />

ra, ação e trepidação em minha existência. Eu não chegara<br />

aos 30 anos e queria aprender a decifrar o universo masculino.<br />

Mal sabia eu o que me esperava. Em pouco tempo,<br />

comecei a perceber que o papel reserva<strong>do</strong> a mim naquela<br />

relação era o da esposa submissa e completamente isolada<br />

de grupos masculinos. Mulheres servem, to<strong>do</strong> playboy<br />

pensa assim, para proporcionar prazer, cuidar de manter a<br />

beleza e ficar calada.<br />

Nada de emitir opiniões, nada de ousar no figurino,<br />

nada de buscar um tanto de independência. Submeti-me a<br />

situações frustrantes, em que eu me via forçada apenas a<br />

representar o papel da mulher servil, prestativa, maternal e<br />

máquina de fazer sexo. Qualquer ensaio de mudança, um<br />

grito. Qualquer alteração de comportamento, uma reprimenda.<br />

Gostasse ou não, eu precisava aprender que a<br />

mulher era um segun<strong>do</strong> gênero, fraco, débil e acua<strong>do</strong> por<br />

natureza. A mim cabia levar uma bandeja de aperitivos,<br />

sorrir com educação, renovar o gelo, trocar a música, apresentar-me<br />

sempre composta, jamais perder a linha, conversar<br />

apenas com as outras esposas, dar boa noite, sair de<br />

cena e ponto final.<br />

O mais louco é que existem milhares de mulheres que<br />

aceitam como normal esse procedimento, essas imposições<br />

<strong>do</strong>s mari<strong>do</strong>s. Seria como usar um manto invisível. E o mun<strong>do</strong><br />

cairia se alguém olhasse mais demoradamente para<br />

mim. Meu la<strong>do</strong> feminino estava restrito a agradar o mari<strong>do</strong>,


a cuidar das atividades <strong>do</strong> lar, a acompanhá-lo em eventuais<br />

encontros sociais, a cuidar <strong>do</strong>s filhos, a dispor flores no jarro<br />

e a aceitar tu<strong>do</strong> sem fazer cara feia.<br />

Ninguém podia prever, talvez nem eu, que daquela<br />

colossal submissão começava a brotar um sentimento de<br />

mudança. Problemas com o corpo e o excesso de peso<br />

apenas confirmavam a minha extrema falta de auto-estima<br />

e era a radiografia da infelicidade. Lá dentro, o vulcão<br />

começava a rugir, a querer entrar em erupção. Então chega<br />

o tempo em que não se suporta mais a pressão e atingimos<br />

o ponto X da decisão.<br />

Como sempre, finalizar um casamento nunca é fácil,<br />

principalmente quan<strong>do</strong> dele se tem uma filha muito amada.<br />

Mas quan<strong>do</strong> estamos decidi<strong>do</strong>s não existem empecilhos,<br />

e sim obstáculos que precisamos transpor. Lá fui eu<br />

embora, mas decidida a nunca mais bater continência a<br />

mari<strong>do</strong> algum. Desde então, penso que os encontros sentimentais<br />

precisam ter, para começo de conversa, respeito<br />

pelo território <strong>do</strong> outro. Descobri que independência também<br />

pode rimar com amor.<br />

181


TERCEIRO CASAMENTO<br />

TERCEIRO ATO<br />

Deveria iniciar esse parágrafo enaltecen<strong>do</strong><br />

o otimismo e as estranhas formas como quase<br />

to<strong>do</strong>s vivem a apostar em reviravoltas. Mesmo<br />

quan<strong>do</strong> essas tais reviravoltas signifiquem<br />

fazer um lifting em situações de envolvimentos<br />

amorosos, por exemplo. Bom, vamos passar logo<br />

ao tema. Senhores e senhoras, meu terceiro<br />

casamento.<br />

Como a novela havia para<strong>do</strong>? Primeiro, contei sobre<br />

o primeiro casamento, quan<strong>do</strong> nós, feito <strong>do</strong>is namora<strong>do</strong>s<br />

nos tornamos amigos. Tão amigos que parecíamos primos<br />

– e não mais um casal. Depois, veio o segun<strong>do</strong> round<br />

amoroso da minha vida: virar esposa-modelo de um protótipo<br />

de macho, daqueles para quem mulher é artigo de<br />

cama, mesa e banho. Desta última jornada, saí amadurecida<br />

à força. Em parte pelo sofrimento da submissão prolongada,<br />

em parte por ter começa<strong>do</strong> a desenvolver capacidades<br />

que então desconhecia, como a força de vontade, os objetivos<br />

e a determinação pessoal.<br />

Seria natural, portanto, que me considerasse madura<br />

o suficiente para me casar com um sábio, ou com um<br />

183


184<br />

homem extremamente professoral, cheio de ensinamentos<br />

e disposto a dividir seu conhecimento prático. Adivinha o<br />

parceiro que chegou? Um homem mais velho, culto e que<br />

trazia um jeito de estabilidade que eu não experimentara<br />

anteriormente. Assim, meu terceiro casamento despontou<br />

de mo<strong>do</strong> antagônico aos <strong>do</strong>is anteriores. A meu la<strong>do</strong> estava<br />

um companheiro cheio de paciência, bon<strong>do</strong>so, compreensivo,<br />

<strong>do</strong>no de histórias para contar.<br />

Hoje analiso aquele perío<strong>do</strong> como a minha plataforma<br />

de lançamento: ele, como parceiro, foi o instrumento<br />

ideal para quem, como eu, precisava desenvolver-se intelectualmente<br />

e buscar soluções inteligentes, capazes de<br />

mudar minha postura perante o mun<strong>do</strong>. Sim, ele pode ter<br />

si<strong>do</strong> esse agente.<br />

Só que existia o tempo certo para a aluna se tornar<br />

independente <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> instrutor. Ele continuava no<br />

personagem de estabiliza<strong>do</strong>r. Mas havia um problema:<br />

tu<strong>do</strong> começou a ficar estável demais, zen demais, acomoda<strong>do</strong><br />

demais. Eu, em ebulição, trocan<strong>do</strong> de pele para<br />

virar outra mulher. Ele, apega<strong>do</strong> a seus princípios imutáveis.<br />

Ele sonhava com um carrossel, eu sonhava com<br />

um supersônico.<br />

Quan<strong>do</strong> veio o rompimento, nenhum trauma de la<strong>do</strong><br />

a la<strong>do</strong>. A compreensão dele, a correção dele, a atenção<br />

dele nunca o levariam a agir com tom intempestivo perante<br />

a relação amigável que mantivemos por oito anos.


Ele percebeu que havia chega<strong>do</strong> o meu tempo de inventar<br />

uma rota própria e de alçar planos profissionais maiores.<br />

O sal<strong>do</strong> foi – e vai continuar – positivo. Ficaram lembranças<br />

calmas, serenas e apazigua<strong>do</strong>ras. Não me senti<br />

explorada, nem subjugada, nem atada a moralismos<br />

machistas. Houve desligamentos simultâneos: cada parte<br />

seguiu rumos diferentes. Cresci, mudei, evoluí, dei saltos.<br />

Desde então adquiri notável poder de observar – e de me<br />

surpreender – como são os homens, as mulheres, os seres.<br />

Não voltei a me casar, embora continue disposta a encontros<br />

dura<strong>do</strong>uros. Encontros feitos de romance, encontros<br />

de <strong>do</strong>is que se gostam, encontros que traduzam o termo<br />

amantes naquele senti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s amores épicos, enleva<strong>do</strong>s,<br />

faiscantes e envolventes. Não é fácil. Do terceiro casamento<br />

para cá, considero-me outra pessoa. E. por isso, como<br />

naquela canção de Roberto Carlos, “Só vou gostar de quem<br />

gosta de mim”.<br />

185


HOMENS SEDUTORES<br />

ATRAÇÃO FATAL?<br />

Um, <strong>do</strong>is, três: a sorte está lançada. Quan<strong>do</strong><br />

eles entram no ambiente, mulher alguma deixa<br />

de esboçar reação. Um homem sedutor vira<br />

acontecimento onde quer que passe. E como elas<br />

percebem? Ora, por meio de um simples gesto<br />

para<strong>do</strong> no ar, de um olhar que parece desnudar<br />

corpo e alma, ou de um magnetismo físico que<br />

obrigatoriamente atrai os olhares.<br />

O curioso dessa situação é que os sedutores sabem<br />

como seduzem. Pior ainda: eles sabem a intensidade <strong>do</strong><br />

impacto que provocam. Algo ainda pior? Às vezes eles fingem<br />

não saber <strong>do</strong> poder. E nós, mulheres, presas indefesas,<br />

na mira dessas feras impie<strong>do</strong>sas, entramos no jogo de brincar<br />

de difícil. Jogamos os cabelos, evitamos olhar naquela<br />

direção perigosa, puxamos assuntos longos com o interlocutor<br />

mais próximo, estendemos a conversa sobre qualquer<br />

assunto e sorrimos <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> mais enigmático possível.<br />

Quan<strong>do</strong> existe um homem sedutor de alta intensidade,<br />

é bem provável que no mesmo instante, no mesmo<br />

recinto, cerca de dez mulheres estejam arrastan<strong>do</strong> a asa,<br />

discretamente. Elas são capazes disso: saber que existe<br />

187


188<br />

concorrência forte no salão, mas acreditar firmemente na<br />

sua vitória. Isso nem sempre acontece.<br />

Sempre haverá um homem sedutor disposto a jogar<br />

seu charme, a exibir-se como um deus que escapou <strong>do</strong><br />

Olimpo, a fazer tremer uma mulher apenas com um simples<br />

olhar. O que vem depois, ninguém garante. Seduzir é<br />

quase uma prática esportiva, ou não?<br />

Depois de efetivada a sedução, aquele mesmo homem<br />

que parecia prometer um festim diabólico, pode se<br />

revelar tão sem graça quanto um picolé de chuchu. Acredite<br />

quem quiser.<br />

Existem, ainda bem, outros tipos de homens sedutores,<br />

diferentes desses cheios de estampa. Penso naqueles<br />

mais discretos, que só costumamos reparar nos últimos<br />

momentos, exatamente quan<strong>do</strong> estávamos quase in<strong>do</strong><br />

embora da festa. Sabe aquele ser absoluto, insinuante e<br />

belo, que faz qualquer uma pedir outro drinque e comentar<br />

que ainda vai ficar “mais um tempo” por ali?<br />

Aliás, essa frase funciona bem para se livrar de possíveis<br />

concorrentes. Se foi detecta<strong>do</strong> um clima entre aquele<br />

homem sedutor e você, e que ninguém ainda percebeu a<br />

grandeza <strong>do</strong> lance, é bom tratar logo de limpar a área de<br />

possíveis concorrentes. Eis uma seqüência de frases úteis<br />

para mandar as amigas embora: 1) “Hum, se você quiser,<br />

pode ir, porque ainda vou demorar mais uns 40 minutos por<br />

aqui”; 2) “Você vai ficar comigo por mais quanto tempo?


Marquei um encontro daqui a duas horas”; 3) “Depois não<br />

vou sair com você, preciso passar de novo no escritório”; 4)<br />

“Sain<strong>do</strong> daqui ainda preciso passar em <strong>do</strong>is eventos profissionais”.<br />

Depois de uma frase dessas, qual amiga ficaria<br />

dan<strong>do</strong> sopa no salão e atrapalhan<strong>do</strong> o seu flerte fatal?<br />

Então, tu<strong>do</strong> resolvi<strong>do</strong>, você está só na área e o sedutor<br />

discreto continua lá no canto, sempre à espreita. Pega<br />

mal se aproximar e puxar conversa? Pega. Ou não? E se ele<br />

for o homem da sua vida? E se você for a mulher que ele<br />

esperou durante anos? Peça outro drinque, crie coragem e<br />

dê um alô. Somos adeptos <strong>do</strong>s filmes de suspense. Então,<br />

boa sorte.<br />

189


POSSE E SEDUÇÃO<br />

AS DUAS MOSQUETEIRAS<br />

Um texto para minha irmã Vera, que conheceu<br />

muito bem as trapalhadas dessas duas mosqueteiras<br />

Atenção: essa conversa é fechada a homens.<br />

Podemos começar? OK. Então aquelas duas<br />

amigas tão liberais – e aparentemente satisfeitas<br />

com as suas liberdades conquistadas –<br />

começaram a dar sinais de que estariam fingin<strong>do</strong>.<br />

Fingin<strong>do</strong> que não desejavam envolvimentos<br />

sérios, fingin<strong>do</strong> que apenas buscavam seduzir<br />

possíveis parceiros e fingin<strong>do</strong> ser avançadas.<br />

Resulta<strong>do</strong>: confusão, aborrecimentos, mal-entendi<strong>do</strong>s<br />

e rompimento de amizade.<br />

Vamos supor que as tais amigas são uma dupla de<br />

mulheres bem-sucedidas, desenvoltas e com enorme disposição<br />

de aproveitar o que a vida traz de melhor. Gostam<br />

de viajar, freqüentam bons restaurantes, têm vida profissional<br />

equilibrada, são convidadas para as melhores festas,<br />

sabem cuidar bem <strong>do</strong> corpo, conversam com inteligência<br />

e, melhor de tu<strong>do</strong>, a<strong>do</strong>ram namorar homens bonitos. Qual<br />

191


192<br />

o problema? Nenhum. Principalmente quan<strong>do</strong> atingimos<br />

uma etapa histórica em que dá para ser, simultaneamente,<br />

feminista, feminina, fêmea, fatal, fina, faceira e feliz.<br />

As duas amigas, vez por outra, não se importavam em<br />

confessar que estavam a fim <strong>do</strong> mesmíssimo homem, um<br />

personagem meio cala<strong>do</strong>, discreto, independente, bemcuida<strong>do</strong><br />

e sorridente. Um homem que não se aproximava<br />

com as velhas cantadas de sempre, um homem que provocava<br />

um misto de atração e curiosidade, um homem, enfim,<br />

para mulher nenhuma encontrar defeito.<br />

Pois esse homem foi conquista<strong>do</strong> pelas duas amigas,<br />

cada uma por seu turno. Ele marcava encontros em datas<br />

diferentes, enquanto elas faziam o teatrinho de desconhecer<br />

que o mancebo saía com ambas. Só que a dupla de<br />

mosqueteiras não se importava nada com o fato, bem<br />

como a<strong>do</strong>rava contar – de pestanas piscan<strong>do</strong> – como os<br />

encontros eram maravilhosos, diverti<strong>do</strong>s, blablablá e uma<br />

série de adjetivos cabíveis.<br />

Passa<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is meses, a situação começou a tomar<br />

contornos mais ou menos previsíveis. As duas amigas se<br />

descobriram envolvidas pelo mesmo homem, que, por sua<br />

vez, não parecia estar envolvi<strong>do</strong> com nenhuma delas. Ele<br />

pretendia boa companhia, namoro, champanhe e bom<br />

humor. Nada mal, não? Mas no meio <strong>do</strong> trajeto surgiu<br />

uma pedra no escarpim de cada uma delas: o ciúme.<br />

Os sinais de posse começaram em sintonia baixa e


cresceram à medida que elas descobriam brilhos insuspeitos<br />

no olhar da outra. Aliás, as mulheres percebem a léguas de<br />

distância quan<strong>do</strong> existe ameaça de concorrência. E logo pipocaram<br />

as pequenas tiranias: telefonar para ele com maior<br />

insistência (muitas vezes só para atrapalhar o encontro da<br />

outra), deixar reca<strong>do</strong>s irônicos no celular da amiga, convidálo<br />

para viagens prolongadas, não responder mensagens da<br />

amiga ou telefonar dizen<strong>do</strong>: “Liberei ele hoje para você, mas<br />

saiba que sou a <strong>do</strong>na”. Esta<strong>do</strong> vela<strong>do</strong> de guerra.<br />

Obviamente o resulta<strong>do</strong> foi desastroso para as duas<br />

amigas que viraram rivais peçonhentas durante um tempo.<br />

Acusaram-se de usurpa<strong>do</strong>ras, conquista<strong>do</strong>ras irrefreáveis,<br />

dissimuladas e por aí afora. Depois, deram boas risadas da<br />

situação e voltaram às boas. Claro que o alvo da disputa<br />

percebeu a manipulação dupla (homens só admitem manipular)<br />

e pulou fora de vez. Elas, as duas amigas, decidiram<br />

que conquistas, de agora em diante, só se for cada uma<br />

por si. E Deus por todas.<br />

193


PIGMALIÃO<br />

PROJETO SENTIMENTAL<br />

Conheço mulheres que almejam conhecer<br />

um homem rude, simples e tosco para transformá-lo<br />

imediatamente em um príncipe<br />

encanta<strong>do</strong>, louro, de olhos azuis, gentil, perfuma<strong>do</strong>,<br />

sensual e educa<strong>do</strong>. Sei de mulheres<br />

que ignoram essa balela, e que continuam a<br />

tentar, a tentar e a tentar modificar seus<br />

pares. Mulheres que a<strong>do</strong>rariam viver dentro<br />

das páginas <strong>do</strong>s contos de fadas.<br />

Claro que é um tanto incômo<strong>do</strong> ter namora<strong>do</strong>s que<br />

diferem muito <strong>do</strong>s seus padrões sociais, culturais e econômicos.<br />

Incômo<strong>do</strong> porque é uma saia-justa permanente. Mas,<br />

curioso notar, quan<strong>do</strong> os homens fazem isso, a aceitação é<br />

bem facilitada, e as tais eleitas, consideradas sereias fora<br />

d’água, um dia acabam por ganhar estilo, ficam atraentes<br />

pra valer e se tornam interessantes de verdade. Talvez essa<br />

trajetória faça parte da vida de muitas mulheres.<br />

Bom, voltan<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> oposto, coitadas daquelas<br />

que procuram dar pedigree ao namora<strong>do</strong>. Primeiro porque<br />

to<strong>do</strong>s cochicham quan<strong>do</strong> elas passam. Segun<strong>do</strong>, por<br />

ser uma situação meio patética. Terceiro, porque está fa-<br />

195


196<br />

da<strong>do</strong> a não dar certo. Quarto, por parecer falta de senso.<br />

Quinto, porque a humanidade é preconceituosa mesmo;<br />

uma pena.<br />

Lembro-me de uma antiga novela, inspirada em texto<br />

de Shakespeare e atualizada na época para Pigmalião 70,<br />

onde a personagem vivida por Tonia Carrero queria transformar<br />

um feirante simplório, interpreta<strong>do</strong> na trama pelo<br />

ator Sergio Car<strong>do</strong>so, em um homem finérrimo. Deu certo?<br />

Nem é preciso responder. Claro que são poucas as que<br />

chegam a extremos assim, mas ao ajustar-se o foco encontramos<br />

comparações aproximativas.<br />

E alto lá: quero emitir concepções sociais libertárias.<br />

Aviso que continuo muito a favor de qualquer forma de<br />

amor. Mas isso não me impede de analisar determina<strong>do</strong>s<br />

comportamentos caricatos, como, por exemplo, daquelas<br />

que preferem não perceber as limitações <strong>do</strong> parceiro,<br />

forçan<strong>do</strong> a sua presença em momentos que só geram<br />

desconforto geral. Geralmente mulheres assim moldam o<br />

namora<strong>do</strong> de maneira artificial, para construir nele uma<br />

projeção de valores que são mal resolvi<strong>do</strong>s nela própria.<br />

As pessoas não são, pelo menos até a hora em que<br />

escrevo este texto, marionetes de ventríloquo. Então porque<br />

tentar mudar alguém que nunca pediu para ser transforma<strong>do</strong>?<br />

Isso é compreensível se houvesse solicitação da<br />

pessoa que deseja se aprimorar, ou daquele que pede correções<br />

de rumo das atitudes. Aí, sim. Fica lin<strong>do</strong> elaborar


alguém, acompanhar o seu crescimento intelectual, a sua<br />

busca pelo refinamento.<br />

Por outros aspectos, nada tão feio quanto impor trajes,<br />

assuntos, posturas, discursos e comprometimentos em<br />

pessoas que ficariam bem mais interessantes sem lapidações<br />

artificiais. E outra coisa: por que não aceitar o<br />

namora<strong>do</strong> <strong>do</strong> jeito que é? Só não vale deixá-lo colocar as<br />

botas em cima da mesa. O resto vale a pena, o resto é<br />

lucro. Precisamos nos esforçar para evitar a mania de querer<br />

idealizar ou construir pessoas. Isso só dá certo no palco ou<br />

no cinema. Ou melhor, nem no palco e nas telas dá certo,<br />

não é Shakespeare?<br />

197


198<br />

VOLTA AO PASSADO<br />

MIL PONTOS DE INTERROGAÇÃO<br />

Era uma vez um daqueles momentos em que<br />

se olha para fora da janela e se decide procurar<br />

um antigo namora<strong>do</strong> que não sai da memória.<br />

Aliás, dizer “aqueles momentos” é modéstia,<br />

pois já existia vontade diária de ouvir a voz<br />

dele. Por tu<strong>do</strong> isso, teria si<strong>do</strong> importante utilizar<br />

o controle remoto da emoção para conter esse<br />

ímpeto. Mas que nada.<br />

Ex-namora<strong>do</strong>s que vivem gruda<strong>do</strong>s na nossa memória<br />

significam que o amor valeu? Ou será, em hipótese<br />

contrária, que foram um pedregulho no sapato? Como<br />

dizia um antigo bolero, quizás, quizás, quizás. Mas se considerarmos<br />

válida a primeira possibilidade, buscar namoros<br />

passa<strong>do</strong>s pode ser um passatempo diverti<strong>do</strong>. Entretanto,<br />

ao se procurar via telefone, atenção: há procedimentos<br />

básicos. Primeiramente, telefona-se a um amigo em comum.<br />

Assim como quem não quer nada. Depois de 15 minutos<br />

de assuntos sem senti<strong>do</strong>, pergunta-se displicentemente<br />

sobre o ex. O que to<strong>do</strong>s esperam ouvir é a seguinte<br />

frase: “Ah, ele vive perguntan<strong>do</strong> por você”. Le<strong>do</strong> engano.<br />

Diálogos assim só acontecem em novelas.


A resposta costumeira para a questão acima será sempre<br />

evasiva, com informações que trazem mal-estar: “Ah,<br />

não tenho visto ele, não. Parece que já está namoran<strong>do</strong> de<br />

novo”. Você, <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da linha, passada. Bem-feito.<br />

Quem man<strong>do</strong>u perguntar? Mas, alto lá, quem falou que o<br />

romance está acaba<strong>do</strong>? Ele também não enviou, pouco<br />

tempo atrás, sinais de simpatia, que logo foram interpreta<strong>do</strong>s<br />

por seus amigos como uma “tentativa de reaproximação”?<br />

Puxa, como gostamos de nos iludir. Evidente<br />

que nem deveria haver tentativa de aproximação alguma,<br />

mas aquela simples mensagem ainda paira na sua cabeça<br />

como um néon de loja de flores.<br />

Então, por bem ou por mal, você decide procurar<br />

aquele amor, cutucar aquela ferida, mexer em vespeiro, levantar<br />

a poeira. Tu<strong>do</strong> ao mesmo tempo. O máximo que<br />

pode acontecer é ouvir um não, repete para si mesma. De<br />

repente, surge uma série de dúvidas: 1) como vou reagir se<br />

me tratar friamente; 2) o que devo dizer se falar que ainda<br />

prefere “dar um tempo”; 3) o que fazer se me convidar para<br />

sair; 4) como manter o controle se disser que fui culpada<br />

pelo fim da nossa história; 5) e se atender uma secretária<br />

eletrônica; 6) e se atender uma voz de mulher nada eletrônica;<br />

7) e se todas as boas lembranças forem por água abaixo<br />

com esse telefonema? Mil pontos de interrogação.<br />

Às 20 horas em ponto, horário que você considerou<br />

civiliza<strong>do</strong>, é o momento escolhi<strong>do</strong> para telefonar ao seu ex-<br />

199


200<br />

grande-talvez-futuro amor. Você já tomou banho, vestiu-se<br />

como quem vai a um restaurante, perfumou-se, tomou<br />

duas taças de champanhe, abriu e fechou a janela 126<br />

vezes, ajeitou todas as almofadas da sala, penteou o cabelo<br />

21 vezes, ensaiou frases, passou hidratante nas mãos seis<br />

vezes, pensou em voltar a fumar, conferiu 19 vezes se o<br />

celular está liga<strong>do</strong>, colocou um CD de jazz, olhou para o<br />

relógio de 45 em 45 segun<strong>do</strong>s. Finalmente, oito da noite.<br />

Melhor pensar pouco e telefonar logo.<br />

Barulho <strong>do</strong> tecla<strong>do</strong>: tictictictictictic. Errou o número.<br />

Volta novamente. Tictictictic-tictictictic-tictictictic. Do outro<br />

la<strong>do</strong>, o ruí<strong>do</strong> da campainha: truuuuuu. Segun<strong>do</strong> ruí<strong>do</strong>: truuuuu.<br />

Terceiro ruí<strong>do</strong>: truuuuuu. Quarto: truuu – “Alô.”. É<br />

ele. Você, lívida, respira fun<strong>do</strong>. Tenta fazer voz firme, sedutora,<br />

convincente, sem mágoas. Tu<strong>do</strong> ao mesmo tempo:<br />

“Olá, sou eu. Há quanto tempo…”. Ele: “Oi. E aí, tu<strong>do</strong><br />

bem?”. Você, ainda sem graça, tenta ser conveniente:<br />

“Tu<strong>do</strong> ótimo. Você pode falar agora?”, propõe. Ele: “Agora<br />

não, desculpe, porque começou o Jornal Nacional e depois<br />

vou ter que sair em seguida. Dá para ligar amanhã ou outro<br />

dia?”. Você, atônita, mas sem demonstrar o terremoto:<br />

“Claro. Não tem problema. Ligo depois. Tchau. Um abraço”.<br />

Ele: “Um abração também”. E desliga. Ploft.<br />

Nem será preciso descrever o esta<strong>do</strong> de calamidade<br />

pública da sua fisionomia. Durante dez minutos você permanece<br />

paralisada, sem ação nem para se levantar <strong>do</strong>


sofá. Sente-se a última das mulheres, a derradeira criatura<br />

na fila <strong>do</strong>s insensatos, a mais inútil criação da natureza, a<br />

mais desamparada das desamparadas. Aquele passa<strong>do</strong><br />

que foi tão importante para vocês <strong>do</strong>is desmorona em<br />

câmera lenta, como as torres de Nova York. Só que a única<br />

vítima parece ter si<strong>do</strong> você.<br />

E aí vem a ressaca moral, com a dúvida cruel: valeu a<br />

pena remexer em um romance passa<strong>do</strong>, mesmo quan<strong>do</strong><br />

esse romance parecia não ter acaba<strong>do</strong>? Teria si<strong>do</strong> melhor<br />

reter boas lembranças ou desintegrar tu<strong>do</strong> com um único<br />

contato? Quizás, quizás, quizás.<br />

201


Quanto tempo longe de você<br />

Quero ao menos lhe falar<br />

A distância não vai impedir<br />

Meu amor de te encontrar<br />

Cartas já não adiantam mais<br />

Quero ouvir a sua voz<br />

Vou telefonar dizen<strong>do</strong><br />

Que estou quase morren<strong>do</strong><br />

De saudades de você<br />

(Eu te amo, te amo, te amo, de Roberto Carlos e Erasmo<br />

Carlos)


AMANTES<br />

O NEGÓCIO É AMAR<br />

Homens e mulheres disfarçam, mudam de<br />

assunto e ninguém aceita encarar um assunto<br />

polêmico: amantes. Entretanto, quantas pessoas<br />

<strong>do</strong> seu círculo de amizades – para não se<br />

estender muito – têm ou tiveram tórri<strong>do</strong>s e<br />

calientes amantes?<br />

Evitar um tema tão recorrente na literatura, no cinema,<br />

na TV e na vida real seria apenas camuflar um falso<br />

moralismo. Nem vamos aqui entrar na discussão moral que<br />

pretende analisar os casos extraconjugais como a mais terrível<br />

das traições. Cada pessoa tem critérios próprios para<br />

compreender ações alheias – ou explicar os seus próprios<br />

méto<strong>do</strong>s de atuação no território sentimental.<br />

Há romances tão vulcânicos que aniquilam pessoas,<br />

histórias de vida, agrupamentos familiares e êxitos profissionais.<br />

Existem aqueles seres que se entregam a uma paixão<br />

de forma avassala<strong>do</strong>ra, como se novas esferas da existência<br />

fossem construídas para sustentar o amor que sentem um<br />

pelo outro. Lembro de uma canção da bossa nova que diz:<br />

“amor ciumento/amor vira-lata/amor que só cria caso/amor<br />

vagabun<strong>do</strong>/ Mas não interessa: o negócio é amar”.<br />

203


204<br />

Se o negócio é amar, vamos to<strong>do</strong>s encarar a face de<br />

Cupi<strong>do</strong>. Mas por que não conhecer algumas opções que<br />

comumente surgem entre os amantes? A mais clássica,<br />

sem dúvida, é a que envolve <strong>do</strong>is parceiros casa<strong>do</strong>s em<br />

uma história paralela, repleta de lances dramáticos, momentos<br />

de puro êxtase, desfechos lacrimosos, cenas de<br />

cinema e a agonia permanente que as vidas duplas proporcionam.<br />

Quan<strong>do</strong> esse amor é <strong>do</strong> tipo explode coração, o<br />

casal assume tu<strong>do</strong> e manda o mun<strong>do</strong> oficial para o espaço.<br />

Pois é, às vezes surge um antagonismo: para se construir a<br />

felicidade própria se torna necessário provocar um turbilhão<br />

de infelicidades em volta. Lei da compensação? Sei lá.<br />

Ninguém gosta de estar <strong>do</strong> la<strong>do</strong> que foi rompi<strong>do</strong>.<br />

Prefiro, por isso tu<strong>do</strong>, usar a palavra amante no senti<strong>do</strong><br />

daquele que traz o romance, de jeito calmo, galante, sedutor,<br />

cheiroso, porém menos explosivo. Continuo a acreditar<br />

nas parcerias que dão certo, no casamento com proposta de<br />

durar para sempre e nos amores transforma<strong>do</strong>res, capazes<br />

de mudar definitivamente a vida de duas pessoas. Mas<br />

quan<strong>do</strong> essa junção de mun<strong>do</strong>s não se torna possível, por<br />

vários motivos, vale optar pelo amante versão número <strong>do</strong>is.<br />

O amante ideal sabe manter situações que tragam<br />

prazer, júbilo, celebração à vida, parceria, alegria, sexo,<br />

romance, diversão, viagens, expansão de sentimentos.<br />

Poucos alcançam a sorte de ter encontros grandiosos<br />

assim. Encontros que se tornam leves por não exigir com-


promissos bilaterais nem amarrações imediatas. Vale agir<br />

com tanta pressa ao se lidar com um assunto tão fugidio<br />

quanto o amor? Negativo.<br />

Ninguém passa a vida inteira em um parque de diversões.<br />

Existem perío<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> brilha na luz perfeita,<br />

na cenografia exata. Depois podem ocorrer curtos-circuitos,<br />

escuridão, silêncio e tédio. Fazer o quê? A vida é repleta de<br />

lances inespera<strong>do</strong>s, como da<strong>do</strong>s joga<strong>do</strong>s ao acaso. Por<br />

vezes tangenciamos os sonhos de encontrar a leveza no<br />

amor. Vale tentar.<br />

205


Quan<strong>do</strong> olhaste bem<br />

nos olhos meus<br />

E o teu olhar era de adeus<br />

Juro que não acreditei<br />

(Atrás da porta, de Chico Buarque)<br />

207


208<br />

ROMPIMENTOS<br />

DORES DE AMORES<br />

Há um tanto de engano em pensar que a<br />

verdadeira percepção <strong>do</strong> rompimento amoroso<br />

surge de imediato, logo após algo brusco, <strong>do</strong>lori<strong>do</strong><br />

e de forte impacto. Do momento em que o<br />

cérebro armazena que uma relação se rompeu,<br />

e até o fato vir nos atingir, passam-se intervalos<br />

de tempo. Quanto tempo, ninguém saberia precisar.<br />

Mas num belo dia a tempestade despenca<br />

sobre cabeça, tronco e membros.<br />

Romper, desligar-se, ser desliga<strong>do</strong>, descartar ou ser<br />

descarta<strong>do</strong>. Muitas palavras e verbos podem ser emprega<strong>do</strong>s<br />

para revestir um <strong>do</strong>s momentos mais determinantes que<br />

acometem a vida emocional da maioria <strong>do</strong>s homens e mulheres.<br />

(Vale até lembrar: vida emocional é uma espécie de<br />

trajetória repleta de emoções, sustos, novas experiências,<br />

imprevistos, delícias, <strong>do</strong>res e prazeres. Se fosse um percurso<br />

linear, reclamaríamos da monotonia. Pois é. Caso não existissem<br />

altos e baixos, nem haveria romances, canções, novelas<br />

e tampouco aprimoramento sentimental.)<br />

Entretanto, subitamente acontece. Choque, espanto,<br />

resoluções. No início <strong>do</strong> fim seremos fortes e prometemos


a nós mesmos que daqui a pouco a perda passa. Dor, eu?<br />

Tristeza, eu? Ninguém admite ser observa<strong>do</strong> com compaixão<br />

nessas etapas de separação, porque significaria<br />

expor publicamente uma série de frases diretíssimas: “estive<br />

iludi<strong>do</strong>”, “me enganei” ou, muito pior, “perdi o meu tempo”.<br />

Sim, é chato. Sim, é quase caricato. Mas quan<strong>do</strong> se<br />

enfrenta rompimentos de forte intensidade, percebe-se que<br />

a imagem <strong>do</strong> coração parti<strong>do</strong> se transforma em uma projeção<br />

próxima <strong>do</strong> palpável. Difícil seria escapar desses fragmentos<br />

amorosos, desses cacos. Hoje, ao notar alguns<br />

comportamentos públicos, considero admiráveis aquelas<br />

pessoas que, ao se separar, conseguem dizer, poucos dias<br />

depois: “OK, estou feliz”. Que bom. E a tristeza foi para<br />

onde? Abalar-se por amor parece ter fica<strong>do</strong> contraproducente,<br />

ultrapassa<strong>do</strong> e inútil. Que pena. (Falamos de amor,<br />

não de paixões para pronto uso.)<br />

Rompimento continua, queira-se ou não, uma palavra<br />

assusta<strong>do</strong>ra. Puf. A bolha de sabão some e deixa<br />

apenas um pequeno sinal líqui<strong>do</strong> no chão. Será possível<br />

reverter essa situação? Talvez. Penso ser sempre melhor<br />

partir <strong>do</strong> pressuposto de que os romances só retornam<br />

quan<strong>do</strong> não houve desfechos dramáticos ou rastros de<br />

incômo<strong>do</strong>s. De fazer um pouco de drama, ninguém escapa.<br />

Mas o que dizer daqueles que perdem o prumo, o<br />

tino, o senso? Importante saber entrar e se desfazer de<br />

tu<strong>do</strong> com elegância, controle, dignidade. A última lem-<br />

209


210<br />

brança de um rompimento pode ser a primeira saudade<br />

para a possível volta.<br />

E quan<strong>do</strong> alguém perguntar se a situação continua<br />

<strong>do</strong>lorosa, responda sempre que sim. Fica bonito, sincero,<br />

pondera<strong>do</strong>. Choro também pode, principalmente em ombros<br />

amigos. A angústia de uma separação geralmente<br />

custa a passar. Não se esconda disso. Porque se a <strong>do</strong>r de<br />

um rompimento de tendões, por exemplo, é forte, a <strong>do</strong><br />

coração, nem se fala. Ou melhor: fala-se, sim.


RITUAIS DE SEDUÇÃO<br />

JOGO DE DAMAS<br />

Existe um momento na vida em que<br />

percebemos ter desenvolvi<strong>do</strong> olhares agu<strong>do</strong>s e<br />

perspicazes sobre situações diversas. Nada mais<br />

parece chocar tanto ou nos deixar boquiabertos<br />

como antes – pelo menos perante comportamentos<br />

sociais. Vamos direto ao ponto? Falo <strong>do</strong>s<br />

jogos de sedução.<br />

Quan<strong>do</strong>, como e com quem ocorrem os jogos de<br />

sedução? A qualquer momento, em qualquer local, com<br />

qualquer pessoa. São pequenos ritos de convencimento, de<br />

exibição sutil, de mise-en-scène de salão. As trocas de<br />

olhares servem para enviar códigos sutis, devidamente capta<strong>do</strong>s<br />

pelas partes interessadas. Às vezes sem ninguém suspeitar<br />

de nada. E aí é que fica o melhor la<strong>do</strong> da história: agir<br />

sem deixar pistas.<br />

Mas ninguém deve pensar que esses códigos são indecifráveis.<br />

Eis que surge o la<strong>do</strong> perigoso da história: estar com<br />

pessoas que conseguem perceber exatamente as mensagens<br />

da sedução enviadas de um emissor para um receptor<br />

– ou receptores. Até aí, nada de mais, porque o flerte<br />

sempre faz parte <strong>do</strong>s encontros e, por isso mesmo, nada tão<br />

211


212<br />

humano. Mas agora desponta uma nova categoria: a <strong>do</strong>s<br />

homens que estão aptos a serem seduzi<strong>do</strong>s pelas mulheres.<br />

Historicamente, é uma conquista feminista, embora<br />

existam famosos relatos de mulheres sedutoras <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>.<br />

Mas quan<strong>do</strong> essa prática se torna um procedimento<br />

comum, então estamos diante de alterações importantes<br />

nos jogos de sedução. A situação funciona mais ou menos<br />

assim: duas ou três amigas em comum detectam um alvo<br />

interessante. Conversam entre si sobre a balística necessária<br />

para atingir aquele alvo disponível.<br />

Subitamente, to<strong>do</strong>s os recursos femininos da sedução<br />

podem ser coloca<strong>do</strong>s em ação. Bateria de olhares, apontar.<br />

Tropa das conversas interessantes, avançar. Note-se aqui<br />

algo importante: muitas mulheres já não se importam em<br />

desejar namorar o mesmo homem. Há um acor<strong>do</strong> tácito de<br />

que a exclusividade virou artigo raro e, como homens interessantes<br />

são eventos raríssimos como a aparição <strong>do</strong>s santos,<br />

por que não dividir? Namorar desse jeito é simples,<br />

moderno e produtivo. Conheço várias situações parecidas<br />

em que os participantes vivem felizes da vida. Mas vale<br />

avisar: dividir não significa ser coletivo. É uma questão de<br />

agendamento, de customização, de planejamentos individuais.<br />

Cada encontro é forma<strong>do</strong> separadamente, a <strong>do</strong>is.<br />

Espero que isso esteja claro.<br />

Sem moralismos ou falsos pu<strong>do</strong>res, os homens aptos<br />

a serem seduzi<strong>do</strong>s por mulheres são um fato social em


crescimento vertiginoso. Primeiro porque eles já deviam<br />

andar aborreci<strong>do</strong>s de sempre ter que iniciar uma aproximação.<br />

Segun<strong>do</strong>, por que as mulheres <strong>do</strong> século 21 decidiram<br />

que podem agir com atuações semelhantes às <strong>do</strong>s<br />

homens, sem perder o rebola<strong>do</strong>. Ou, como dizia Che Guevara:<br />

é preciso endurecer, sem jamais perder a ternura…<br />

Cada mulher conhece bem suas táticas e seus arsenais<br />

de conquista. Toda mulher almeja desenvolver seus talentos<br />

de sedutora, sem nunca precisar ser vulgar, pegajosa ou fácil.<br />

A sedução é um ritual pleno de delicadezas, sutilezas, avanços,<br />

recuos, acor<strong>do</strong>s, avaliações, armazenamento de da<strong>do</strong>s,<br />

persistências e conquistas prazerosas. Lembrei-me agora de<br />

uma referência musical importante, cantada por Rita Lee, em<br />

que o refrão diz tu<strong>do</strong>: “Toda mulher é meio <strong>do</strong>ida / Toda mulher<br />

quer ser feliz / Toda mulher é meio Leila <strong>Diniz</strong>”. E, para<br />

quem não sabe, Leila <strong>Diniz</strong> foi precursora no Brasil dessa liberação<br />

feminina que fez a mulher escolher seus parceiros com<br />

a maior naturalidade. Viva nós e vivam eles.<br />

213


<strong>Verso</strong><br />

&<br />

Reverso


DOM QUIXOTE<br />

NEM MESTRE, NEM APRENDIZ<br />

Relato dedica<strong>do</strong> a Francisco Guglielme Jr., meu conselheiro<br />

de todas as horas, de todas as direções e de to<strong>do</strong>s os prumos<br />

Nas minhas últimas férias resolvi fazer<br />

uma viagem pelas páginas <strong>do</strong> texto que é<br />

considera<strong>do</strong> o mais importante romance da<br />

literatura ocidental: Dom Quixote. O intertítulo<br />

original dessa obra de Miguel de Cervantes,<br />

publicada originalmente em 1604, já traz a<br />

pompa e a circunstância da leitura: O Engenhoso<br />

Fidalgo Dom Quixote de La Mancha.<br />

A envolvente história de Cervantes relata as andanças<br />

de um fidalgo andarilho e idealista, acompanha<strong>do</strong><br />

por seu fiel escudeiro, Sancho Pança. No trajeto <strong>do</strong> livro<br />

acontecem várias seqüências de paixões, desilusões,<br />

lutas, perdas, conquistas, aprendiza<strong>do</strong>s, situações de<br />

limite e acontecimentos de sonho. Quixote se lançou por<br />

caminhos que não conhecia, apenas pelo intuito de ganhar<br />

sabe<strong>do</strong>ria através da observação <strong>do</strong>s personagens<br />

que encontrassem, e por meio das manifestações da<br />

217


218<br />

natureza. Sancho era a voz que o enchia de lições, sempre<br />

retiradas de coisas mínimas ou de parábolas visionárias<br />

sobre a vida.<br />

O mais belo nesse grandioso romance está na atitude<br />

de entrega, de confiança e de comunhão entre duas pessoas<br />

aparentemente opostas. Um fidalgo, por sua condição<br />

de nobreza, dificilmente dividiria pão, vinho e abrigo<br />

com um escudeiro. Cervantes foi moderno para o seu tempo<br />

por criar <strong>do</strong>is personagens literários que conseguiram<br />

alterar bastante a concepção social <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Um aprendeu<br />

com o outro, e vice-versa.<br />

Vamos fechar o zoom. Muitas vezes nos portamos<br />

como fidalgos anteriores a Quixote: com arrogância, presunção<br />

e orgulho. E isso independe de recursos econômicos.<br />

A soberba pode ser encontrada pela vida afora, em<br />

grupos diversifica<strong>do</strong>s, em situações corriqueiras. Quantas<br />

vezes já presenciamos cenas de pessoas de nariz empina<strong>do</strong>,<br />

sobretu<strong>do</strong> sem motivo aparente? Quantas vezes encontramos<br />

alguém que prefere morrer ata<strong>do</strong> a suas idéias preconcebidas,<br />

sem nunca se abrir para o novo e para a novidade?<br />

Eu poderia enumerar dezenas de questões assim.<br />

Melhor avisar logo que ninguém está a salvo <strong>do</strong> contágio<br />

da soberba. Evidentemente que to<strong>do</strong>s já dissemos<br />

algo em tom que mais tarde nos deixaria arrependi<strong>do</strong>s, ou<br />

cometemos gestos que poderiam ter si<strong>do</strong> menos ríspi<strong>do</strong>s.<br />

O importante é ter a noção exata desses acontecimentos e


atos, para atenuá-los, corrigi-los ou mudá-los completamente.<br />

Precisamos estar de olhos e coração abertos para<br />

ouvir o que pessoas, comuns ou especiais, nos têm a dizer,<br />

mesmo quan<strong>do</strong> não as indagamos sobre nada. Muitas<br />

vezes, da observação dita em palavras diretas surgem soluções<br />

para coisas que andavam complicadas.<br />

Olhar nos olhos, dividir, pedir opinião, escutar também<br />

a voz das pessoas sem erudição, prestar atenção ao acaso,<br />

consultar a natureza: são incontáveis as possibilidades de se<br />

compreender aspectos desconheci<strong>do</strong>s da existência humana.<br />

Nem é preciso eleger um Sancho Pança fiel, nem se considerar<br />

um fidalgo <strong>do</strong>no da verdade. Cada pessoa pode ser<br />

Sancho, fidalgo, rei, ascensorista, arquiteto, costureira, mestre,<br />

aprendiz e, acima de tu<strong>do</strong>, um ser disposto a criar parcerias<br />

de alma com pessoas diferentes. A multiplicidade de<br />

pontos de vista engrandece a condição humana.<br />

219


PREGUIÇA<br />

CADEIRA DE BALANÇO<br />

Decidi pensar alguns tópicos sobre os sete<br />

peca<strong>do</strong>s capitais, um tema sempre cita<strong>do</strong> e, na<br />

verdade, tão pouco conheci<strong>do</strong>. Primeiro foi<br />

importante descobrir que os sete peca<strong>do</strong>s não<br />

estão liga<strong>do</strong>s à Bíblia, mas apenas trazem<br />

interpretações segun<strong>do</strong> os códigos <strong>do</strong>s cristãos<br />

da Idade Média. E, para começar, vamos levantar<br />

da cadeira e falar sobre a preguiça, este<br />

que, entre os sete peca<strong>do</strong>s, talvez deva ser o que<br />

confessamos com maior facilidade.<br />

Ter preguiça faz parte da condição humana e <strong>do</strong> comportamento<br />

<strong>do</strong>s animais. Quem nunca ficou admiran<strong>do</strong> um<br />

gato se espreguiçar? Quem nunca sentiu prazer em ficar<br />

pegan<strong>do</strong> brisa na espreguiçadeira da varanda? Sentir preguiça<br />

é uma espécie de reação física à aceleração forçada <strong>do</strong><br />

cotidiano. O corpo também gosta de sossego, moleza e <strong>do</strong><br />

bem-bom. Os que negam isso sofrem de hiperatividade.<br />

Mas a preguiça também pode nos levar à estagnação,<br />

ao marasmo, à acomodação, à inércia, ao conserva<strong>do</strong>rismo.<br />

Os preguiçosos compulsivos rejeitam qualquer possibilidade<br />

de movimentos inespera<strong>do</strong>s, de alterações no percurso pre-<br />

221


222<br />

viamente traça<strong>do</strong>, de atividade extra. Depois que sentam,<br />

incorporam o espírito da moleza, como se estivessem<br />

acometi<strong>do</strong>s de uma ausência, de um distanciamento<br />

inexplicável. Pensan<strong>do</strong> melhor, a preguiça em excesso,<br />

acho, deve ser capaz de deixar alguém em esta<strong>do</strong> de<br />

contemplação zen. Ficar sem fazer nada é esvaziar a mente.<br />

E esvaziar a mente é o primeiro passo para a meditação.<br />

Brincadeiras à parte, a preguiça pode ser extremamente<br />

perigosa, por produzir acomodação diante de situações<br />

injustas. Ai, que preguiça!, falam aqueles que só reclamam<br />

da falta de ações <strong>do</strong>s governantes, quan<strong>do</strong> poderiam<br />

colaborar com ações elementares de cidadania. Ai, que<br />

preguiça!, constatam os aliena<strong>do</strong>s, aqueles seres incapazes<br />

de nem sequer analisar o mun<strong>do</strong>, a vida e a vida paralisada<br />

que levam. Essa é a pior forma de se ter preguiça:<br />

esperar que as mudanças aconteçam por si, sem mover<br />

uma palha para conseguir ajustes. Acho intolerável conhecer<br />

gente assim, que só espera mudanças e que não se<br />

move <strong>do</strong> lugar.<br />

Por outro aspecto, sentir preguiça se torna essencial<br />

quan<strong>do</strong> estamos em uma atmosfera preguiçosa: mormaço,<br />

praia, sombra, água fresca, barulho de vento nos<br />

coqueiros, nenhum compromisso à vista. O pior é que<br />

existe gente que, mesmo em lugares paradisíacos, continua<br />

em ritmo elétrico, sem conseguir se desligar da agonia<br />

urbana. Preguiça deixa de ser peca<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> a natureza


pede que fiquemos calmos, cala<strong>do</strong>s e com movimentos<br />

arrasta<strong>do</strong>s.<br />

Preguiça combina também com manhãs de <strong>do</strong>mingo,<br />

finais de tarde no campo, a moleza súbita depois <strong>do</strong><br />

almoço, a vontade de olhar para a janela, a lembrança de<br />

momentos de prazer, as pausas depois <strong>do</strong> amor e os<br />

primeiros minutos após o despertar. Ter preguiça, afinal, é<br />

peca<strong>do</strong> ou não? Peca<strong>do</strong> é apostar na imobilidade. Peca<strong>do</strong><br />

é saber que deveria – e poderia – fazer um movimento,<br />

mas permanecer sem ação. E, cuida<strong>do</strong>, ela ataca a qualquer<br />

hora. Contra a preguiça vale um arsenal de munição<br />

contrária: guaraná em pó, clorofila, banho gela<strong>do</strong>, puxão<br />

de orelha, alongamento ou, caso se prefira, dar uma corrida<br />

pelo quarteirão.<br />

223


LUXÚRIA<br />

AMIGA DE FÉ, IRMÃ, CAMARADA<br />

Para minha grande amiga Hebe Camargo,<br />

mulher que irradia uma energia capaz de ultrapassar<br />

as vibrações de qualquer forma<br />

Ela é minha amiga, daquelas que a gente<br />

pode contar a to<strong>do</strong>s os momentos. Companheira<br />

disposta a enfrentar qualquer parada, mulher<br />

de fibra que não há quem deixe de admirá-la. O<br />

nome dela é Hebe Camargo e sempre quis fazer<br />

alguma homenagem pública a ela.<br />

Obviamente falo de uma mulher que exerce um la<strong>do</strong><br />

extremamente aproximativo, de forma que to<strong>do</strong>s no seu<br />

entorno se mantêm em permanente imantação. Aliás,<br />

Hebe é um ímã: atrai olhares, sorrisos, afetos e demonstrações<br />

de carinho. Mas prefiro me deter sobre outros<br />

aspectos de sua personalidade: o da sedução, no senti<strong>do</strong><br />

mais amplo que essa palavra possa ter.<br />

A sedução de Hebe não está ligada a apelos sensuais<br />

nem as jogadas pessoais deliberadamente feitas para<br />

encantar. Ela seduz por outros caminhos. Seduz por irra-<br />

225


226<br />

diar bem-estar, mesmo quan<strong>do</strong> sabemos que possa estar lá<br />

com suas <strong>do</strong>res. Hebe seduz por sua naturalidade perante<br />

qualquer assunto, <strong>do</strong>s mais complica<strong>do</strong>s aos cotidianos.<br />

Sua reação será sempre íntegra e livre de estereótipos,<br />

porque ela não oculta quan<strong>do</strong> está indignada, feliz ou ressabiada.<br />

Hebe, enfim, seduz por se manter espiritualmente<br />

jovem, em meio a seus ataques de ira e de cidadania, em<br />

meio a suas gargalhadas contagiantes. Uma supermulher.<br />

Os amigos dela costumam dizer que formamos um<br />

grupo de seus amantes. Gostamos de segui-la, contemplála<br />

e amá-la por Hebe ser <strong>do</strong> jeito que é, por nos seduzir<br />

com pequenos detalhes, por viver para insuflar alegria de<br />

vida em to<strong>do</strong>s que a rodeiam.<br />

Lembro-me de um réveillon que passamos juntas, a<br />

bor<strong>do</strong> de um iate em Angra <strong>do</strong>s Reis. Quem já passou por<br />

experiências marítimas prolongadas sabe que, a partir de<br />

determina<strong>do</strong> momento, o programa se torna meio tedioso,<br />

repetitivo e, principalmente, cansativo. Pois enquanto<br />

to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> já estava com a cara meio jururu, Hebe não<br />

perdia o rebola<strong>do</strong>: era a mais disposta, a mais brincalhona<br />

e a que menos se importava com os contratempos <strong>do</strong> trajeto<br />

– além da demora <strong>do</strong>s festejos que as datas especiais<br />

costumam ter.<br />

Ali, no meio <strong>do</strong> mar, percebi como ela exerce controle<br />

sobre suas ações, como sabe ser altruísta e jamais baixar o<br />

astral. Essa mestra também pode às vezes parecer uma


menina travessa, ou, de repente, dar conselhos dignos de<br />

um sábio. Daqui a minutos, tu<strong>do</strong> vira uma gargalhada só.<br />

Não há quem não se deixe seduzir. Também, pudera.<br />

Por isso tu<strong>do</strong> posso me considerar uma seduzida pela<br />

Hebe. Tenho certeza de que se, por acaso, amanhã eu estivesse<br />

perdida no meio da neve <strong>do</strong> Pólo Norte, poderia<br />

contar com a sua ajuda. Hebe não tem horas, não tem<br />

preconceitos, não tem protocolo, não tem má vontade.<br />

Hebe Camargo é uma pessoa rara. E tão saborosa quanto<br />

uma taça de champanhe. Mil brindes a essa amiga.<br />

227


228<br />

ORGULHO<br />

PAI HERÓI<br />

Para meu queri<strong>do</strong> pai, Valentim, que sempre<br />

se declara orgulhoso por ter realiza<strong>do</strong> os seus sonhos<br />

de um homem disposto a vencer<br />

Eu não poderia escrever um livro sem reservar<br />

um capítulo especial a meu pai, Valentim<br />

<strong>Diniz</strong>. Ele talvez seja o homem-modelo da minha<br />

vida e o personagem cuja trajetória mais admiro<br />

e que nunca deixarei de comentar. Motivos<br />

não faltam. Mas como este volume passeia<br />

entre lembranças e resoluções pessoais, escolho<br />

apenas um fato curioso de minha infância para<br />

ser o tema <strong>do</strong> texto dedica<strong>do</strong> a ele.<br />

Sempre percebi meu pai como um homem altivo,<br />

seguro de si. Desde pequena costumava observá-lo, sem<br />

que ele percebesse que carinhosamente eu espionava os<br />

seus atos. Era uma admiração secreta. Aos poucos, como<br />

acontece quan<strong>do</strong> observamos alguém especial, passei a<br />

notar uma peculiaridade, quase em forma de pureza: papai<br />

se considerava inatacável.


Explico melhor. A sua história é a odisséia de um vence<strong>do</strong>r.<br />

Trabalhou arduamente a existência inteira. Ainda<br />

hoje, aos 90 anos, ele, como sócio-funda<strong>do</strong>r, participa das<br />

reuniões, opinan<strong>do</strong> com tino e apuro mental.<br />

Meu pai, enquanto alicerçava o seu conglomera<strong>do</strong><br />

empresarial, considera<strong>do</strong> um império sem precedentes no<br />

setor <strong>do</strong> varejo no Brasil, jamais deixou de ser zeloso com os<br />

filhos. O crescimento <strong>do</strong>s negócios, o seu tino comercial e a<br />

sua diplomacia social o elevaram ao posto de herói – para filhos<br />

e descendentes, e para muitos empresários também.<br />

Essa noção gerou nele um comportamento altaneiro,<br />

de homem elegante e que deixava claro ter adquiri<strong>do</strong> por<br />

merecimento aquela posição na vida, nas finanças e no<br />

trato com o mun<strong>do</strong>. Não passaria a idéia de que o destino<br />

pudesse provocar reveses, ou que a má sorte o escolhesse<br />

para pregar uma peça de desencanto. Ele seria<br />

sempre um contempla<strong>do</strong> e as coisas ocorreriam em harmonia<br />

e equilíbrio.<br />

Lembro-me, então, de uma passagem na minha infância,<br />

quan<strong>do</strong> ele costumava nos levar para passear de carro.<br />

São Paulo era uma cidade calma e diferente da atual loucura<br />

urbana. Era uma festa sair com papai. Tu<strong>do</strong> parecia um filme.<br />

Com um detalhe: para nosso espanto, ele raramente obedecia<br />

a um sinal fecha<strong>do</strong>. Essa pequena contravenção, hoje<br />

percebo que lhe dava muito prazer, no entanto, perante nós<br />

vinha o discurso: “To<strong>do</strong>s me conhecem e quan<strong>do</strong> me virem<br />

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230<br />

passar vão frear seus carros”. Grande mentira! Mas, acreditávamos<br />

e percebíamos sua satisfação com a situação.<br />

Essa lógica de vence<strong>do</strong>r parecia afastá-lo de qualquer<br />

causalidade ou evento funesto. Seu argumento, na época,<br />

fazia senti<strong>do</strong>: ele era Valentim <strong>Diniz</strong>, homem considera<strong>do</strong><br />

exemplar. Portanto, merecia que, vez por outra, lhe dessem<br />

passagem preferencial. Ninguém poderia considerá-lo<br />

infrator; era um pai de família e empresário passean<strong>do</strong><br />

com os filhotes. Bons tempos. São Paulo não permite mais<br />

essa liberdade. Mas, para nós, foi determinante observar a<br />

segurança paterna perante tu<strong>do</strong>.<br />

Hoje analiso que o raciocínio dele era desprovi<strong>do</strong> de<br />

sentimentos de superioridade: era uma compensação afetiva<br />

ou a certeza de que receberia a retribuição amorosa da<br />

cidade onde investira to<strong>do</strong> o seu potencial, toda a sua disposição<br />

de imigrante. Seria inadmissível, portanto, que<br />

alguém se tornasse seu desafeto ou que os sinais de trânsito<br />

atrapalhassem o seu passeio de guerreiro, mesmo<br />

quan<strong>do</strong> cometia um pequeno peca<strong>do</strong>.


AVAREZA<br />

A SETE CHAVES<br />

Para Alcides, meu irmão e a pessoa mais<br />

generosa que existe na face da Terra,<br />

exatamente o oposto <strong>do</strong>s que praticam a avareza<br />

Responda rápi<strong>do</strong>: quantas vezes encontramos<br />

pessoas simpáticas, acolhe<strong>do</strong>ras, sorridentes,<br />

versáteis em qualquer assunto, e que,<br />

perante uma aproximação posterior mais aprofundada,<br />

revelam-se terrivelmente sovinas?<br />

Socorro. A avareza assusta. Principalmente<br />

quan<strong>do</strong> provém de quem não deveria nunca praticar<br />

a sovinice, o pão-durismo, a ausência de<br />

partilha. Socorro.<br />

Detesto, execro e afasto-me de pessoas assim. Nenhuma<br />

chance de convivência seria possível. OK, ninguém<br />

está obriga<strong>do</strong> a ser perdulário, a pagar todas as despesas<br />

<strong>do</strong>s amigos ou a pouco se importar com um monte de<br />

gastos inúteis. Isso também seria tolice, principalmente se<br />

não envolver os tão valiosos ritos de amizade, amor, prazer<br />

e generosidade. Mas, cá para nós, conviver com os<br />

231


232<br />

avaros não dá pé. E esse nefasto peca<strong>do</strong> capital, é bom<br />

que se diga bem alto, acomete qualquer classe social.<br />

Catar tostões, economizar migalhas, reter o inútil,<br />

temer ficar na pobreza, jamais ofertar com o coração,<br />

negar a quem precisa? Acho que não existem atitudes<br />

mais feias e desconcertantes, para quem as pratica e para<br />

quem as assiste, geralmente em meio ao constrangimento.<br />

Ser sovina é o princípio <strong>do</strong>s malefícios sociais <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />

desde os tempos imemoriais.<br />

O avarento é assusta<strong>do</strong>, egocêntrico, exclusivista e<br />

ultrapassa<strong>do</strong>. Ele evita encontros numerosos, para nunca<br />

ser posto à prova em possíveis divisões finais de gastos. O<br />

avarento vai às compras sozinho para, desta forma estúpida,<br />

nunca se ver obriga<strong>do</strong> a pagar um objeto sequer ao<br />

acompanhante. Existem pessoas de mãos tão fechadas<br />

– esse exemplo aconteceu com um velho conheci<strong>do</strong> meu –<br />

que cobram até um creme dental que fora incluí<strong>do</strong>, por<br />

praticidade, em meio às enormes compras que o pão-duro<br />

fazia. Dá para crer? Pois é, aconteceu.<br />

Já li sobre mendigos que amealharam fortunas, descobertas<br />

depois de suas mortes, geralmente ocultadas sob<br />

assoalhos de casas aban<strong>do</strong>nadas ou dentro de velhas malas.<br />

E isso não saiu <strong>do</strong>s romances de Victor Hugo, não. A<br />

avareza, na sessão acredite se quiser permanece muito<br />

bem fornida. No Japão, há poucos anos, um homem i<strong>do</strong>so,<br />

encontra<strong>do</strong> morto em um casebre na mais absoluta penúria,


mantinha escondi<strong>do</strong>, soube-se depois, uma conta astronômica<br />

no banco. Dispensam-se os comentários, não?<br />

Exemplos existem aos montes. O pior é descobrir, assim<br />

meio por acaso, durante um jantar simpático, que aquele<br />

amigo bem-sucedi<strong>do</strong> é <strong>do</strong> tipo que faz questão de contar os<br />

tostões, jamais arre<strong>do</strong>nda contas, escapole na hora das gorjetas<br />

e finge não ver o guarda<strong>do</strong>r de automóveis. Triste também<br />

é ficar saben<strong>do</strong> que aquela pessoa – que sempre<br />

lamentava a falta de recursos – tem belas somas de dinheiro<br />

aplicadas no exterior. Conheci personagens assim.<br />

Terrível, o peca<strong>do</strong> da avareza. Terrível encontrar quem<br />

não divide, quem não abre a mão, quem não sente prazer<br />

em ser generoso, quem se compraz no mero acúmulo de<br />

valores pessoais, quem não entendeu ainda que dividir é<br />

parte essencial da vida. Pai, afasta de nós o cálice <strong>do</strong>s sovinas.<br />

Eles não herdarão reino algum. Bem-feito.<br />

233


234<br />

GULA<br />

HOMENS DAS CAVERNAS EM AÇÃO<br />

Fui gorda. Ou melhor, obesa. Sei onde a coisa<br />

pega quan<strong>do</strong> se fala em gula. Não que to<strong>do</strong> obeso<br />

seja necessariamente um glutão, mas é óbvio<br />

que a maioria come em demasia. Há centenas de<br />

explicações. Disposição genética, ansiedade, desequilíbrios<br />

hormonais, psicológicos, o pudim a<br />

quatro. Mas o tema deste capítulo é a gula, considerada<br />

um <strong>do</strong>s peca<strong>do</strong>s capitais e um <strong>do</strong>s hábitos<br />

mais ancestrais da humanidade. Por isso,<br />

vale um passeio rápi<strong>do</strong> pelo túnel <strong>do</strong> tempo.<br />

Na Antiguidade Clássica, a Grécia foi uma sociedade<br />

de gente esbelta, enquanto Roma defendia a vida prazerosa,<br />

a sensualidade e a disposição guerrea<strong>do</strong>ra: comer<br />

muito, se divertir muito, lutar muito. Tu<strong>do</strong> muito. A saudável<br />

dieta grega, mais os esportes, privilegiou corpos tão perfeitos<br />

que ainda hoje são considera<strong>do</strong>s exemplos acadêmicos<br />

insuperáveis. Roma bem que tentou o ideal grego,<br />

mas acabou descamban<strong>do</strong> para a circunferência rotunda<br />

das cinturas, pernas e flancos. Comiam tanto que inventaram<br />

o vomitório: vomitava-se para se voltar à mesa e<br />

recomeçar novamente.


Na Idade Média, as pessoas se alimentavam de mo<strong>do</strong><br />

absur<strong>do</strong>: com exageros, sem talheres, em grandes quantidades,<br />

em condições péssimas de higiene, mais o consumo<br />

imenso de carnes e, claro, nenhum planejamento nutricional.<br />

Também, pudera, morria-se antes <strong>do</strong>s 40, de <strong>do</strong>enças ligadas<br />

aos excessos alimentares, ao sedentarismo e às pestes.<br />

Voltan<strong>do</strong> mais ainda na linha <strong>do</strong> tempo, sabe-se que<br />

a alimentação <strong>do</strong> homem das cavernas era um show animalesco.<br />

Primatas que também eram, comiam a caça em<br />

grandes nacos, jogavam os ossos para o alto e brigavam<br />

pelo pedaço que o outro mastigava. Mulheres e crianças?<br />

Ficavam com os restos, já que não existia noção nuclear de<br />

família. Moleza não devia ser.<br />

Cito os homens das cavernas, os romanos e os castelões<br />

da Idade Média como exemplos radicais sobre a<br />

gula. Mas sempre me vêm essas imagens quan<strong>do</strong> encontro<br />

pessoas glutonas. A gula transforma o rosto das pessoas<br />

em máscaras de feras: nada em volta passa a ter importância,<br />

apenas olhar para a comida e querer saciar algo insaciável.<br />

Já vi quem comesse 12 pedaços de pizza. Homem<br />

primata, gula selvagem.<br />

A gula é uma estranha forma de compulsão. Não se<br />

consegue parar, porque o cérebro não emite ordens para<br />

interromper a refeição. Os glutões não pensam no que vem<br />

depois. Só pensam no antes e no durante. Dos sete peca<strong>do</strong>s<br />

capitais, a gula talvez seja o que mais traz arrependi-<br />

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236<br />

mentos: dilata, infla e provoca tristeza. O filme A Comilança<br />

mostra a melhor metáfora: transfere-se para a boca o prazer<br />

da libi<strong>do</strong>, e come-se até a morte <strong>do</strong>s comensais.<br />

Uma tragédia contemporânea é comum: ver pais que<br />

incentivam filhos e amigos a competirem para ver quem<br />

come mais. Ou produzin<strong>do</strong> quantidades quase industriais<br />

de guloseimas para o uso <strong>do</strong>méstico. Ou a moça desiludida<br />

que devora uma caixa de bombons enquanto assiste a um<br />

programa de televisão. A gula é triste, deprimente e insensata.<br />

Os resulta<strong>do</strong>s da gula são de difícil retorno. Nada<br />

como celebrar o prazer <strong>do</strong>s sabores com a comida. Mas,<br />

cuida<strong>do</strong>: a gula é traiçoeira.


INVEJA<br />

O QUINTAL DO VIZINHO<br />

Para Sônia, minha irmã, que, por diversas ocasiões,<br />

me fez sentir inveja de suas atitudes perante a vida<br />

Impossível encontrar alguém que jamais<br />

tenha cometi<strong>do</strong> o peca<strong>do</strong> da inveja. Impossível,<br />

mesmo. Mais intrusa <strong>do</strong> que a preguiça ou a<br />

gula, a inveja é sorrateira e, pimba, quan<strong>do</strong><br />

menos se espera lá está ela, terrível, à espreita,<br />

aguardan<strong>do</strong> o momento certo de se manifestar,<br />

de mostrar suas unhas roxas.<br />

Arrisco até a dizer que existem os profissionais da<br />

inveja, aquela categoria que não pode ver nada de aproveitável<br />

ou desfrutável na vida alheia, sem que sinta imediatamente<br />

as punhaladas da inveja. Não seria à toa que<br />

muitos consideram os invejosos como seres com olhares <strong>do</strong><br />

tipo seca pimenteira, ou, mais popularmente, com o conheci<strong>do</strong><br />

olho gor<strong>do</strong>. Pé de arruda neles.<br />

A inveja, como a luxúria, a ira e a avareza, é bastante<br />

perceptível. Fica níti<strong>do</strong>. Muda o tom da voz, o gestual e o<br />

tratamento. Difícil para o invejoso ocultar esse sentimento<br />

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arroxea<strong>do</strong> que corrói a sua alma. A inveja talvez seja prima<br />

<strong>do</strong> ciúme, por provocar a sensação quase semelhante de<br />

vazio no coração, de assento perdi<strong>do</strong>, de preterimento<br />

pessoal, de favorecimento inexplicável. A inveja é amarga,<br />

avassala<strong>do</strong>ra e capaz de causar imensa destruição. Nunca<br />

é bom duvidar da palavra de um invejoso, porque para ele<br />

o quintal <strong>do</strong> vizinho será sempre o mais belo, o mais verde<br />

e o mais tenta<strong>do</strong>r. Inveja mata. Nos <strong>do</strong>is senti<strong>do</strong>s.<br />

Há ainda aquele tipo de inveja pequena, boba, que nos<br />

acomete quan<strong>do</strong> não temos mais nada a pensar. Comigo já<br />

aconteceu uma história de inveja, que hoje acho bastante<br />

engraçada. Sou canceriana, ligada em família, e sempre fui<br />

meio fascinada pela minha irmã Sônia. Fascinada, como<br />

assim? Explico esse episódio que vem a seguir com calma.<br />

Durante as primeiras fases de turbulência emocional<br />

da minha vida de casada, eu invejava essa irmã por ela ser<br />

casada com um médico desligadão, charmoso e, confesso,<br />

uma espécie de homem perfeito para o sonho de qualquer<br />

mulher. Em tempo: eles continuam casa<strong>do</strong>s e felizes até<br />

hoje. Então, a minha inveja era repleta de subterfúgios,<br />

como convém aos invejosos educa<strong>do</strong>s. Eu queria porque<br />

queria descobrir como um casal daqueles podia se dar tão<br />

bem e qual seria a fórmula mágica daquele amor.<br />

Por duas vezes cheguei a pedir para me hospedar na<br />

casa de Sônia, apenas para fazer observações de suas qualidades<br />

secretas como esposa. Pode? Pode, sim. Eu a pers-


crutava, disfarçadamente. E suspirava ao vê-la de óculos,<br />

len<strong>do</strong> livros, com ares intelectuais. Como minha irmã era<br />

muito desligada e dinâmica, fiquei a imaginar ser esse o clima<br />

exato para deslanchar o seu charme. E que talvez por<br />

tanto dinamismo, ela nunca chegasse ao fim de um livro.<br />

Obviamente aquelas observações não levaram a nada.<br />

Agora são lembranças curiosas que voltam. Assumo-as<br />

como um ataque bobo de inveja em uma mulher pouco liberada,<br />

como eu era. Não foi inveja baixo-astral, nem de<br />

roer unhas pelos cantos. Foi inveja de querer ser aquela pessoa,<br />

de querer se transformar em alguém quase mitifica<strong>do</strong>.<br />

Hoje a inveja é algo raríssimo em minha vida. Invejo apenas<br />

os prazeres simples da vida e as pessoas que sabem levar a<br />

existência com <strong>do</strong>ses intermináveis de bom humor.<br />

E viva o pé de arruda!<br />

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IRA<br />

O LEÃO ESTÁ SOLTO NAS RUAS<br />

Você sabia que, pelos preceitos cristãos, a ira<br />

só é peca<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> acontece com freqüência? Ao<br />

se ocorrer um ataque de ira volta<strong>do</strong> a defender a<br />

justiça ou a abrandar alguma situação indigna,<br />

ela passa a ser considerada manifestação <strong>do</strong><br />

poder divino, de defesa da vida e da busca de<br />

correção. Trocan<strong>do</strong> em miú<strong>do</strong>s: para a ira não<br />

ser pecaminosa, é preciso existir um fundamento<br />

justo.<br />

Aliás, a bem da verdade, ter ira não significa sentir raiva.<br />

A raiva seria, digamos assim, uma demonstração de pequeneza<br />

<strong>do</strong> ser humano, de mesquinhez das relações pessoais.<br />

A ira tem magnitude, atitude e objetivo. A ira é<br />

soberana, a raiva é rasteira. A raiva dá chineladas, a ira solta<br />

um leão nas ruas.<br />

Durante a minha vida aprendi que a ira pode trazer<br />

alterações importantes. Tive poucos ataques de ira, mas<br />

foram suficientes para mudar completamente uma série<br />

de situações que se haviam torna<strong>do</strong> insuportáveis. Por<br />

exemplo: quan<strong>do</strong> decidi que não seria mais uma mulher<br />

obesa e coitadinha, senti uma força inexplicável, estra-<br />

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nha e vulcânica, que vinha lá de dentro. Era a ira.<br />

Irava-me por ter me deixa<strong>do</strong> ser maltratada durante tantos<br />

anos, por haver chega<strong>do</strong> ao fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> poço da falta<br />

de estima. A partir dessa ira, decidi que seria uma mulher<br />

destemida, audaciosa e com metas profissionais<br />

ambiciosas. A partir da ira, mandei tu<strong>do</strong> para o espaço:<br />

gorduras, passividade, desamor, desatenção, falta de<br />

objetivos e sofrimentos. A ira trouxe renovação e fôlego<br />

novo. Em retrospectiva, agora percebo também que consegui<br />

me libertar de três casamentos sob o impulso altamente<br />

necessário da ira. Em cada um deles (conforme<br />

conto aqui neste livro, em capítulos separa<strong>do</strong>s), deixeime<br />

ser <strong>do</strong>minada por parcerias equivocadas, que me<br />

consumiam lentamente. Quan<strong>do</strong> eu percebia o tamanho<br />

<strong>do</strong> embrulho em que estava metida, gritava Shazam!,<br />

ficava irada e me soltava definitivamente, sain<strong>do</strong> para<br />

outra jornada existencial. A ira foi a chave certa, a solução<br />

correta, para romper coisas tão desgastantes e inúteis<br />

em minha vida sentimental.<br />

A partir daí, passei a analisar que a ira derruba estruturas<br />

apodrecidas. A ira invade terrenos mina<strong>do</strong>s. A ira é<br />

destemida. A ira movimentou os revolucionários, os grandes<br />

cria<strong>do</strong>res, os rompantes artísticos e as derrubadas de situações<br />

tirânicas. Sentir ira envolve fúria, muitas vezes.<br />

A ira também me fez reunir forças para interromper<br />

encontros fura<strong>do</strong>s, falsas amizades e negócios que anda-


vam erra<strong>do</strong>s. Quan<strong>do</strong> a ira traz justiça, não ficamos <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s.<br />

E o melhor: é uma manifestação que pode durar<br />

pouco, como uma tempestade de raios seguida por um<br />

inespera<strong>do</strong> céu azul. Coisas da natureza humana.<br />

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DESCOBERTAS<br />

OLHANDO PELAS FRESTAS<br />

Para minha neta Valentina, que me fez<br />

ter olhares novos para tu<strong>do</strong> na vida<br />

Coisa boa na vida? Resposta: Descobrir algo,<br />

descobrir pessoas, descobrir lugares, descobrir<br />

novidades próximas e nunca percebidas, descobrir<br />

os segre<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Ter olhos novos para<br />

o novo, não se retrair perante fatos revela<strong>do</strong>res,<br />

manter os sete buracos da cabeça sempre prontos<br />

para conhecer novidades.<br />

Sempre me senti uma mulher destemida, pronta a<br />

olhar pelas frestas em busca <strong>do</strong> desconheci<strong>do</strong>, a desejar<br />

situações que parecem misteriosas, a subir no sótão só<br />

para fuçar objetos perdi<strong>do</strong>s no tempo. Tu<strong>do</strong> isso parece me<br />

completar de mo<strong>do</strong> misterioso, como se as descobertas de<br />

cada dia fossem condições essenciais para a vida fluir.<br />

Muitas vezes me pego distraída, miran<strong>do</strong> alguma coisa<br />

minúscula e tão repleta de pequenos segre<strong>do</strong>s.<br />

Talvez por pensar assim, evito pessoas acomodadas.<br />

Não gosto de quem pouco se importa com a cor da asa da<br />

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borboleta que acabou de passar, ou com quem não fica<br />

curioso perante ruí<strong>do</strong>s inexplicáveis ouvi<strong>do</strong>s na madrugada.<br />

Tu<strong>do</strong> pode ser fascinante, tu<strong>do</strong> tem interpretações múltiplas,<br />

tu<strong>do</strong> ensina, tu<strong>do</strong> revela. Então como não gostar de<br />

ser um descobri<strong>do</strong>r 24 horas ao dia?<br />

Tem gente que leva a existência como se estivesse<br />

eternamente em uma cadeira de balanço, permitin<strong>do</strong> ao<br />

marasmo invadir a mente como um maremoto. Outros se<br />

submetem à repetição mecânica das situações, por me<strong>do</strong><br />

de ousar, por receio de dar saltos, por temor de apostar na<br />

descoberta. Alguns esperam que as oportunidades despenquem<br />

<strong>do</strong> teto ou que os lampejos da sorte enviem aviso<br />

de chegada.<br />

Há enorme diferença entre ser prudente e ser acomoda<strong>do</strong>.<br />

A prudência até que pode ser um componente<br />

posterior das descobertas, quan<strong>do</strong> se chega a um ponto<br />

que nos faz pensar se vale mesmo continuar avançan<strong>do</strong>.<br />

Para se estar aberto a descobrir novidades, é preciso ter<br />

noção de atuar como em um jogo: perde-se, ganha-se,<br />

empata-se, recua-se, avança-se, desiste-se. O mais importante<br />

é saber que, sob qualquer circunstância, o resulta<strong>do</strong><br />

que as descobertas trazem será produtivo, fará refletir,<br />

trará impulsos mentais, reavaliará méto<strong>do</strong>s, proporcionará<br />

novas interpretações sobre a vida.<br />

Então, mãos à obra. Entre no jogo das descobertas:<br />

puxe aquele assunto que deseja conversar com alguém


especial, siga a trilha de João e Maria, assista um programa<br />

naquele canal que nunca chamou a sua atenção, ouça<br />

conversas de pessoas desconhecidas, abra na página 207<br />

daquele livro e leia a terceira frase, converse com alguém<br />

diferente pelo menos uma vez ao dia, jogue-se de férias<br />

em destinos absolutamente desconheci<strong>do</strong>s, prove receitas<br />

culinárias ousadas, ouça o CD daquele artista estranho,<br />

espie de vez em quan<strong>do</strong> pelo buraco da fechadura, roube<br />

um beijo, envie mensagens surpreendentes a um amigo,<br />

visite um museu, abrace quem nunca foi abraça<strong>do</strong>, colecione<br />

fotos de girafas, aprenda a dançar ritmos difíceis,<br />

cheire flores exóticas, brinque de fantasma com os sobrinhos,<br />

conquiste alguém especial, cultive um cacto raro,<br />

aprenda canto, olhe a paisagem de binóculos, assista um<br />

filme da Nova Zelândia, abra um champanhe no café da<br />

manhã <strong>do</strong> próximo <strong>do</strong>mingo, abra a janela, abra o sorriso,<br />

abra o coração, abra a mente, abra-se para o universo.<br />

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