Download do Livro Lucilia Diniz Frente & Verso
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<strong>Lucilia</strong> <strong>Diniz</strong><br />
<strong>Frente</strong>&<strong>Verso</strong>
<strong>Lucilia</strong> <strong>Diniz</strong><br />
<strong>Frente</strong> & <strong>Verso</strong>
<strong>Lucilia</strong> <strong>Diniz</strong><br />
<strong>Frente</strong> & <strong>Verso</strong>
© <strong>Lucilia</strong> <strong>Diniz</strong>, 2004<br />
Texto:<br />
<strong>Lucilia</strong> <strong>Diniz</strong><br />
Coordenação ©<strong>Lucilia</strong> de projeto: <strong>Diniz</strong>:<br />
Eduar<strong>do</strong> Logullo Copyright Editora CARAS S.A., São Paulo, 2004 – 1ª edição: Janeiro de 2004 - ISBN: 85-<br />
7521-185-4 – Divisão Eventos Multimídia e Projetos Especiais - Luis Fernan<strong>do</strong> Maluf (Geren-<br />
Consultor: te), Fabio Cavicchiolli, Antonio Henrique Menendez, Andrea Liguori, Tathiana Vaz – Impressão<br />
Francisco Guglielme e Acabamento: Jr. Brasilform Editora e Indústria Gráfica Ltda. - To<strong>do</strong>s os direitos para o Brasil<br />
reserva<strong>do</strong>s à Editora CARAS S.A. – Av. Engenheiro Luís Carlos Berrini, 1253, 12º andar, -tel.:<br />
Projeto gráfico: (11) 5508-2000, CEP 04571-011, São Paulo, SP, Brasil<br />
Leticia Moura<br />
Diagramação:<br />
Douglas Watanabe<br />
Fotos:<br />
Vania Tole<strong>do</strong><br />
Scanning:<br />
Felipe Caetano<br />
Ilustrações:<br />
Gustavo von Ha (página 16)<br />
Guto Lacaz (páginas 8, 11, 46, 114, 140, 150, 160, 206, 216 e 240)<br />
Marcelo Cipis (páginas 56, 58, 62, 82, 96, 100, 174 e 182)<br />
Mario Cafiero (páginas 20, 50, 92, 104, 178, 186, 190, 194, 220, 224 e 244)<br />
Revisão:<br />
Claudio Eduar<strong>do</strong> Nogueira Ramos<br />
TIPOLOGIA Frutiger e Matrix Script PAPEL Couche matte150g IMPRESSÃO no sistema XXX,<br />
Gráfica XXXXXXX 1ª IMPRESSÃO janeiro 2004.
Dedico este livro ±<br />
±àqueles que mais amo:<br />
Manoella, pela autonomia;<br />
Tiago, pelo companheirismo;<br />
Giovana, pela criatividade,<br />
e a minha Valentina pela inovação.
A vida<br />
pode ser bem<br />
mais leve<br />
para quem<br />
não oculta a<br />
frente,<br />
nem o<br />
verso.
Poucos têm a oportunidade de conhecer <strong>Lucilia</strong> <strong>Diniz</strong>.<br />
Seu carisma, pelo jeito de ser, surpreende e encobre<br />
seus pensamentos. Irrequieta, tempestuosa, ela a<strong>do</strong>ta um<br />
estilo de vida de sempre prosseguir, superan<strong>do</strong> obstáculos.<br />
Exigente e crítica, pensa de forma prática como<br />
driblar as armadilhas que a vida traz. Com certeza, os<br />
traços mais marcantes da sua personalidade são a perseverança<br />
e a feminilidade. Forte e frágil, <strong>Lucilia</strong> expressa a<br />
experiência vivida como lição aprendida para impulsionar<br />
novas conquistas.<br />
Neste livro, to<strong>do</strong>s encontrarão situações que confirmam<br />
suas reflexões. Não há seqüência de leitura, basta<br />
abri-lo em qualquer página e lá estarão momentos de to<strong>do</strong>s<br />
nós. É uma obra de coragem e de auto-exposição, para ser<br />
debatida e até contestada. Mas de grande valor existencial.<br />
Francisco Guglielme Jr.
Sentimentos & Observações<br />
O TEMPO – Hoje é o primeiro dia <strong>do</strong> resto de sua vida . . 17<br />
FAMÍLIA – Pan<strong>do</strong>ra contemporânea . . . . . . . . . . . . . . . 21<br />
LEMBRANÇAS – Arquivos vivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27<br />
PROTEÇÃO – Pêndulo <strong>do</strong>méstico . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31<br />
ROMPIMENTOS – Meu mun<strong>do</strong> caiu . . . . . . . . . . . . . . . . . 35<br />
FALSO MORALISMO – Te perdôo por te trair . . . . . . . . . . . 39<br />
ENVELHECER SEM MEDO – Viva a ampulheta . . . . . . . . . . . 43<br />
AMIZADES – Além <strong>do</strong> horizonte . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47<br />
APRENDER A FICAR SÓ – No silêncio <strong>do</strong> quarto . . . . . . . . 51<br />
VIAGENS – Terrenos mina<strong>do</strong>s . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55<br />
GAFES E TRAPALHADAS – A comédia <strong>do</strong>s erros . . . . . . . . . 59<br />
MODA – Lances e relances . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63<br />
SOMATÓRIO DE ERROS – Erro ao quadra<strong>do</strong> . . . . . . . . . . . . 67<br />
Dia & Noite<br />
SUMÁRIO\<br />
A PRIMEIRA VEZ – Sessão de estréia . . . . . . . . . . . . . . . . 73<br />
A ÚLTIMA VEZ – Acabou-se o que era <strong>do</strong>ce . . . . . . . . . . 76<br />
RITUAL DAS REFEIÇÕES – Saber comer, saber viver . . . . . . 79<br />
CUMPLICIDADE – Piscadelas de olho . . . . . . . . . . . . . . . . 83
HORA DO BANHO – Pro dia nascer feliz . . . . . . . . . . . . . . 86<br />
VIDA DOCE – Alô, <strong>do</strong>çuras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89<br />
ENCONTROS SUPERFICIAIS – Olá, muito prazer! . . . . . . . . . 93<br />
ESPELHOS – Qual é a imagem real? . . . . . . . . . . . . . . . . 97<br />
INVERDADES – Nunca fui santa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101<br />
A VERDADE – Sem alívio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105<br />
VULGARIDADES – Um jeito feio de estar no mun<strong>do</strong> . . . . . 108<br />
DESAFIOS – Na mira <strong>do</strong> imaginário . . . . . . . . . . . . . . . . 111<br />
VAMPIROS – Baixa voltagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115<br />
Dentro & Fora<br />
USAR O OUTRO – Pista dupla . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121<br />
CONFIDÊNCIAS – Falar é prata, calar é ouro . . . . . . . . . . 124<br />
BEM-ESTAR X SEXUALIDADE – De tu<strong>do</strong>, para to<strong>do</strong>s . . . . . . . 127<br />
RECONHECIMENTO – Rol da fama . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131<br />
EGOS INFLADOS – Infláveis & inflamáveis . . . . . . . . . . . . 134<br />
INTUIÇÃO – Será que fiz bem? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137<br />
ANSIEDADE – O dragão nosso de cada dia . . . . . . . . . . . 141<br />
LIBERDADE – Liberdade ou independência? . . . . . . . . . . 144<br />
PERFEIÇÃO – Perfeição pode ser imperfeita . . . . . . . . . . 147<br />
DIPLOMACIA – Geografia humana . . . . . . . . . . . . . . . . . 151<br />
DESVIOS – Desafinan<strong>do</strong> o coro <strong>do</strong>s contentes . . . . . . . . 154<br />
TERRITÓRIO – Áreas de proteção pessoal . . . . . . . . . . . . 157<br />
LÍNGUAS DIFERENTES – Torre de Babel . . . . . . . . . . . . . . . 161<br />
CAMA DE FILHO – Playground . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 164
Amores & Desamores<br />
UM COMPANHEIRO – O companheiro mágico . . . . . . . . . 170<br />
PRIMEIRO CASAMENTO – Cobaias e cientistas . . . . . . . . . . 175<br />
SEGUNDO CASAMENTO – Pânico de ser gueixa . . . . . . . . 179<br />
TERCEIRO CASAMENTO – Terceiro ato . . . . . . . . . . . . . . . 183<br />
HOMENS SEDUTORES – Atração fatal? . . . . . . . . . . . . . . . 187<br />
POSSE E SEDUÇÃO – As duas mosqueteiras . . . . . . . . . . 191<br />
PIGMALIÃO – Projeto sentimental . . . . . . . . . . . . . . . . . 195<br />
VOLTA AO PASSADO – Mil pontos de interrogação . . . . . . 198<br />
AMANTES – O negócio é amar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203<br />
ROMPIMENTOS – Dores de amores . . . . . . . . . . . . . . . . . 208<br />
RITUAIS DE SEDUÇÃO – Jogo de damas . . . . . . . . . . . . . . 211<br />
<strong>Verso</strong> & Reverso<br />
DOM QUIXOTE – Nem mestre, nem aprendiz . . . . . . . . . 217<br />
PREGUIÇA – Cadeira de balanço . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221<br />
LUXÚRIA – Amiga de fé, irmã, camarada . . . . . . . . . . . 225<br />
ORGULHO – Pai herói . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 228<br />
AVAREZA – A sete chaves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231<br />
GULA – Homens das cavernas em ação . . . . . . . . . . . . 234<br />
INVEJA – O quintal <strong>do</strong> vizinho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237<br />
IRA – O leão está solto nas ruas . . . . . . . . . . . . . . . . . 241<br />
DESCOBERTAS – Olhan<strong>do</strong> pelas frestas . . . . . . . . . . . . . . 245
Sentimentos<br />
&<br />
Observações
O TEMPO<br />
HOJE É O PRIMEIRO DIA<br />
DO RESTO DE SUA VIDA<br />
A cada vez que viramos uma página <strong>do</strong><br />
calendário, ou quan<strong>do</strong> somamos um mês a<br />
mais ou 30 dias a menos, ninguém se dá conta<br />
dessa realidade aparentemente abstrata que<br />
nos cerca: o tempo. É a partir da passagem<br />
contínua <strong>do</strong> tempo que os ciclos se renovam, a<br />
natureza se manifesta, os planetas permanecem<br />
em órbita e nós, desespera<strong>do</strong>s com esse<br />
avanço ininterrupto <strong>do</strong> ponteiro, corremos<br />
atrás de alguma coisa que possa anular o<br />
efeito <strong>do</strong> tempo.<br />
Anular ninguém consegue. Nem aqueles mais radicais,<br />
que pedem em testamento para ter seus cérebros ou<br />
corpos congela<strong>do</strong>s por perío<strong>do</strong> indetermina<strong>do</strong>, até que a<br />
ciência consiga ressuscitá-los. Acho isso meio macabro.<br />
Difícil imaginar minha cabeça dentro de uma re<strong>do</strong>ma, com<br />
algum líqui<strong>do</strong> estranho à volta. Será que me deixariam<br />
ficar de óculos de sol? E com um colar básico, pelo menos?<br />
Dá para brincar, mas o tema é assusta<strong>do</strong>r. Mesmo.<br />
Prefiro nem comentar muito sobre a passagem <strong>do</strong> tempo<br />
17
18<br />
em nós, míseros mortais, e focar o tema sobre realizações<br />
inesperadas que os anos proporcionam à vida. O tempo é<br />
soberano. O tempo aprimora, paralisa ou piora.<br />
Prefiro sempre o melhor: o aprimoramento. Só o<br />
tempo pode me transformar de gorda em esbelta, de<br />
complicada em light. Apenas a passagem <strong>do</strong> calendário<br />
seria capaz de trazer interpretações mais suaves sobre as<br />
agruras da vida, para que não ficássemos o resto <strong>do</strong>s dias<br />
procuran<strong>do</strong> entender com quantos paus se faz uma<br />
canoa, se São Jorge mora na Lua e porque os avós têm<br />
cabelos brancos. Ganhamos sabe<strong>do</strong>ria com o tempo, mas,<br />
tristeza das tristezas, perdemos coisas essenciais como<br />
viço, esbelteza, tônus e… É melhor parar por aqui, senão<br />
começo a gritar.<br />
Contra esses efeitos catastróficos <strong>do</strong> tempo, batalhamos<br />
na manutenção contínua <strong>do</strong> corpo. Mas há efeitos<br />
mais terríveis ainda: ficar com a cabeça velha, com aquele<br />
papo de aranha e cheio de memórias nostálgicas. Devemos<br />
celebrar o passa<strong>do</strong>, mas não nos entregarmos a ele. Aliás,<br />
já houve quem disse que passa<strong>do</strong> e futuro eram as duas<br />
grandes invenções da humanidade.<br />
E se ninguém admite que o seu sal<strong>do</strong> de tempo<br />
diminui dia-a-dia, só nos resta misturar um punha<strong>do</strong> de<br />
resignação, duas colheres de loucura, 600 gramas de alegria,<br />
<strong>do</strong>is quilos de perseverança e um litro de energia positiva<br />
para continuarmos saltitantes ainda por longo tempo.
Decisões que iluminam o cotidiano só impulsionam a novas<br />
e melhores conquistas. O tempo passa, mas não podemos<br />
nos submeter à acomodação da cadeira de balanço, nem<br />
ao fel <strong>do</strong> rancor, nem à paralisia <strong>do</strong> desânimo. O tempo<br />
não pára e o show deve continuar.<br />
O tempo depura, o tempo alarga, o tempo ajusta, o<br />
tempo apaga, o tempo enobrece, o tempo desfaz. A areia<br />
da ampulheta desce ou sobe, de acor<strong>do</strong> com a perspectiva<br />
de quem aciona a direção. A areia <strong>do</strong> tempo pode cobrir<br />
tu<strong>do</strong>, mas proponho ficar de plantão com uma pá e não<br />
deixar nunca que a avalanche <strong>do</strong> esquecimento caia sobre<br />
minha cabeça. A mesma cabeça, aliás, que jamais será<br />
congelada para ser revivida no futuro, como um andróide.<br />
Em matéria de congela<strong>do</strong>s, prefiro os que sejam light, OK?<br />
E vamos tratar logo de fazer com que o tempo seja nosso<br />
sócio e não um inimigo.<br />
19
FAMÍLIA<br />
PANDORA CONTEMPORÂNEA<br />
Conheci certa vez uma menina, filha caçula<br />
de um casal bon<strong>do</strong>so, trabalha<strong>do</strong>r e bem-sucedi<strong>do</strong>.<br />
A menina e seus cinco irmãos moravam<br />
em uma propriedade cercada por árvores<br />
fron<strong>do</strong>sas. Ali, o entrosamento em grupo estava<br />
entre os valores essenciais para a harmonia<br />
familiar. As reuniões festivas eram freqüentes,<br />
assim como encontros com numerosos parentes,<br />
fatos que passariam a ser marcantes na<br />
memória da menina. Havia sinceridade, união<br />
e alegria em meio à atmosfera de fartura, simplicidade<br />
e amor – três pontos sempre deseja<strong>do</strong>s<br />
pelo casal.<br />
Acompanhei o crescimento dessa menina, que logo<br />
me escolheu por confidente. Descobria, assim, que a sua<br />
infância esteve repleta de momentos felizes, porém entremea<strong>do</strong>s<br />
de isolamento: eram muitos os compromissos de<br />
seus pais, enquanto os irmãos viviam constantemente<br />
atribula<strong>do</strong>s com afazeres ou estu<strong>do</strong>s. Desse mo<strong>do</strong>, ela habituava-se<br />
a receber a eventual atenção materna e a dividir<br />
seus pensamentos com bonecas, aquarelas e livros de fadas.<br />
21
22<br />
Com a chegada da a<strong>do</strong>lescência, ela se viu confinada<br />
à casa <strong>do</strong>s pais. Suas saídas e entradas eram controladas<br />
segun<strong>do</strong> os princípios rígi<strong>do</strong>s da moral impenetrável <strong>do</strong>s<br />
pais, imigrantes europeus. Ela poderia ter tu<strong>do</strong>, mas não<br />
alcançava o que ansiava: ser levada por descobertas, erros,<br />
acertos e ímpetos de qualquer jovem. Logo perceberia que<br />
a solução apenas ela poderia criar, se partisse de alternativas<br />
que fossem socialmente aceitáveis. Casar, por exemplo.<br />
Moça precoce, aos 14 anos ela inicia um romance com o<br />
seu melhor amigo, decidida a conseguir a independência<br />
absoluta <strong>do</strong> território familiar. Ingênua, acreditava ser essa<br />
a grande opção. E, por certo, foi. Casada, viveu feliz por<br />
algum tempo com o homem que escolhera.<br />
Tempos depois, seu mun<strong>do</strong> caiu. O romance, tão aceso<br />
no início, estava transforma<strong>do</strong> em prato morno. A<br />
menina que brincava de ser mulher pediu a separação.<br />
Houve enorme desgosto na família, que passou a considerá-la<br />
um problema ao cubo. Como fazer para preservar<br />
a imagem familiar de prestígio e de ramificações empresariais<br />
importantes? A irmã caçula apresentava a eles um<br />
potencial explosivo e autodestrutivo. Separação homologada,<br />
ela se viu na berlinda. Não poderia errar mais, sob<br />
pena de receber penalidades máximas no âmbito familiar.<br />
Mas como os corpos não são de ferro, lá se foi ela<br />
rumo ao segun<strong>do</strong> casamento. Antes, garantiu-me ser uma<br />
escolha mais amadurecida. O mari<strong>do</strong> era empreende<strong>do</strong>r,
havia entre eles grande atração física e afinidades diversas.<br />
Pausa. Vários anos mais tarde, depois de perío<strong>do</strong>s de<br />
esmagamento pessoal, ela estava prestes a sucumbir à<br />
submissão imposta pelo mari<strong>do</strong>, aos maus-tratos psicológicos<br />
e ao papel de subserviência <strong>do</strong>méstica. Rompeu-se o<br />
seu segun<strong>do</strong> casamento, com reação ainda mais dura da<br />
família. Restou à menina que conheci, naquele perío<strong>do</strong><br />
transformada em animal acua<strong>do</strong> e indefeso, a punição<br />
com o que foi considera<strong>do</strong> condizente ao peso da separação:<br />
internação psiquiátrica.<br />
Ela se submeteu, sentin<strong>do</strong>-se apagada, sem viço, sem<br />
vigor, sem voz. Diagnóstico: tristeza. Cura: sem prazo. Suas<br />
tentativas e erros estavam transforma<strong>do</strong>s em drama familiar<br />
de grandes proporções. Os irmãos negavam apoio. Pior: os<br />
irmãos a faziam sentir-se deformada, derrotada, aniquilada.<br />
Sem contar que a sua opinião jamais voltaria a valer, por ela<br />
“só ter cometi<strong>do</strong> erros”. Garantiam que ela nunca acertaria<br />
em decisão alguma. Qualquer que fosse a sua posição, essa<br />
posição seria considerada incômoda ao grupo.<br />
A minha amiga encurralada lembrava-me, naqueles<br />
momentos de baixa estima, que algumas plantas <strong>do</strong><br />
deserto sobrevivem com apenas uma gota de água por<br />
ano. Essa foi a metáfora que usava para me dizer que um<br />
dia seria vitoriosa e voltaria a se sentir viva. Quisessem ou<br />
não os seus irmãos. Ela estava certa: invejada por se manter<br />
alerta, a perseverança seria a melhor resposta a dar.<br />
23
24<br />
Excetuan<strong>do</strong>-se o amor que recebia <strong>do</strong>s pais, ela sentia os<br />
dar<strong>do</strong>s <strong>do</strong> desprezo e da maldade lança<strong>do</strong>s pelos outros<br />
membros da família.<br />
Ultrapassada aquela fase terrível, ela passou a entender<br />
que se uma família propõe ajuda por outros ângulos,<br />
também pode oferecer desilusão, frustração e desrespeito.<br />
De nada adiantaria, pensava a minha sofrida amiga, o acúmulo<br />
de trabalho e de poder se não se consegue lidar com<br />
sentimentos humanos como a cordialidade, a fraternidade,<br />
o amor ao próximo. Mas a garota que eu conhecera e que<br />
se havia transfigura<strong>do</strong> em uma mulher maltratada, iniciava<br />
então um processo de renovação mental, física e espiritual.<br />
Como uma caixa de Pan<strong>do</strong>ra, ela aprendeu a lidar<br />
com seus desejos escondi<strong>do</strong>s, com suas idéias em ebulição<br />
e com suas pequenas fadas invisíveis. Começava a sentir<br />
algo poderoso: uma força estranha, luminosa e renova<strong>do</strong>ra<br />
a fazia encarar o mun<strong>do</strong> sem me<strong>do</strong>. Finalmente, surgia<br />
a mulher que conseguiria olhar as feridas sem me<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
sangue, a mulher que enfrentaria traumas e a mulher<br />
destemida que podia até gritar “danem-se to<strong>do</strong>s”.<br />
Era como se de dentro da caixa invisível de uma Pan<strong>do</strong>ra<br />
moderna, aparecessem mil e uma faces de deusas,<br />
amazonas, entidades mitológicas e espíritos delica<strong>do</strong>s de<br />
grande intensidade cósmica. Ela abriu a caixa e deixou<br />
escapar Afrodite, Ísis, Zorya, Olulu, Maria, Juno, Diana,<br />
Ixchel, Bona Dea, Astrea, Kupalo, Lakshmi, Maha Devi,
Yacy, Sophia, Shadai, Samana e mais uma série de pequenas<br />
criaturas que só ela conhecia pelo nome, que só ela<br />
sabia <strong>do</strong> poder de cada uma.<br />
Desde então, a menina que conheci ainda habita a<br />
alma dessa amiga, hoje uma mulher iluminada por uma<br />
beleza que ela própria buscou, por uma fortaleza espiritual<br />
que lhe foi dada depois <strong>do</strong> sofrimento, por uma conexão<br />
planetária que adquiriu ao olhar as coisas simples da vida.<br />
Minha amiga hoje é feliz. E conversa diariamente com suas<br />
fadas protetoras, com suas mil e uma faces femininas.<br />
25
Foi um pequeno momento<br />
Um jeito, uma coisa assim,<br />
Era um movimento<br />
Que aí você não pôde<br />
mais gostar de mim direito<br />
(Da Maior Importância, de Caetano Veloso)
LEMBRANÇAS<br />
ARQUIVOS VIVOS<br />
Histórias de amor às vezes podem dispensar<br />
finais infelizes ou encerramentos aniquila<strong>do</strong>res.<br />
Isso acontece quan<strong>do</strong> os amores interrompi<strong>do</strong>s<br />
ficam como sinfonias inacabadas.<br />
Entre os enigmas nas relações de amor existe a<br />
estranha capacidade de se guardar na memória<br />
alguém de quem ainda se gosta. Afinal, algo<br />
forte não se apaga para sempre.<br />
Tu<strong>do</strong> pode começar depois de três ou quatro encontros:<br />
percebemos quan<strong>do</strong> uma pessoa começa a nos interessar<br />
para valer. Basta um telefonema, a mensagem deixada no<br />
celular ou a simples menção de um encontro, a promessa<br />
de um passeio ou a surpresa de encontros durante as caminhadas<br />
matinais. A pele se enche de brilho, a espinha<br />
permanece ereta, os olhos faíscam, o humor reluz. E, toque<br />
após toque, aproximação após aproximação, o envolvimento<br />
para tornar-se uma presença essencial.<br />
A segunda fase tem início com o aprendiza<strong>do</strong> <strong>do</strong> novo<br />
eleito, nas suas características por determina<strong>do</strong>s prazeres,<br />
no tom da voz, nos gestos, na voz cheia de sedução, na<br />
inteligência das observações, nas pausas, nos silêncios.<br />
27
28<br />
Vamos supor que o eleito veio de longe, separa<strong>do</strong> e economicamente<br />
sem problemas, para buscar refazer a trajetória<br />
dele em rumo ainda indefini<strong>do</strong>. De repente, parece<br />
encontrar o que procura. Então, viva. Não há prazer igual a<br />
estar com a pessoa certa no momento certo, com o sol<br />
<strong>do</strong>ura<strong>do</strong> detrás das árvores, a brisa suave, o champanhe no<br />
ponto e nenhum minuto de pressa. Cena de cinema.<br />
O indescritível continua. Mais empolgante ainda são<br />
as rápidas separações: em da<strong>do</strong> momento, cada um vai<br />
para a sua casa, toma banho, troca de roupa, torna-se<br />
atraente e depois se apressa em telefonar para confirmar<br />
a escolha <strong>do</strong> restaurante. O que mais desejar de um jantar<br />
com vinhos, conversas <strong>do</strong>s deuses e revelações envolventes?<br />
O que mais pedir quan<strong>do</strong> há sinceridade no discurso<br />
e nas intenções de aprimorar um encontro especial?<br />
São etapas em que tu<strong>do</strong> ao re<strong>do</strong>r se transforma na mais<br />
magnífica das paisagens e o seu romance na meta determinante<br />
da existência.<br />
Na terceira etapa, essas duas pessoas já lidam com<br />
aspectos de companheirismo. Apresentam solidez de planos,<br />
revisões, mudanças, proposições, retomadas, definições,<br />
reinvenções de metas. Atravessam meses de evolução<br />
sentimental e pessoal. Tu<strong>do</strong> certo? Não. Um dia, por<br />
obra e graça das forças inexplicáveis <strong>do</strong> destino, o ser ama<strong>do</strong><br />
pede uma conversa séria. Nenhuma conversa que se diz<br />
séria acaba sem deixar rastro.
Recebe-se a seguinte informação: o seu ama<strong>do</strong> pretende<br />
retornar para onde morava. Por aqui, muito amor,<br />
mas também inadaptabilidades, saudades, vontade de rever<br />
pessoas queridas. Argumentos terrivelmente simples.<br />
OK, você que já pressentia tal possibilidade no começo,<br />
pensou que isso desapareceria. E o seu coração faz crac<br />
dentro <strong>do</strong> peito.<br />
O baque é amorteci<strong>do</strong>, contorna<strong>do</strong>, disfarça<strong>do</strong>, assimila<strong>do</strong>,<br />
degluti<strong>do</strong>, pensa<strong>do</strong> e, finalmente, resolvi<strong>do</strong>. Aquele<br />
que poderia ser o enlevo de sua vida vai mesmo embora.<br />
Você: arrasada, porém compreensiva. Ele: promessas, projetos,<br />
garantias, declarações. Abraços e beijos no aeroporto.<br />
O avião decola, você não derrama uma lágrima.<br />
Durante as primeiras semanas, trocas diárias de emails,<br />
ligações telefônicas e tu<strong>do</strong> bem. Dois meses depois,<br />
raras mensagens. Seis meses à frente, ele a convida para visitá-lo,<br />
para retomarem o impulso <strong>do</strong> romance e, quem sabe,<br />
até pensar em morar por lá. Ele, anima<strong>do</strong>. Você, apreensiva.<br />
Surpresa: você decide não viajar ao encontro dele.<br />
Nem manter contatos freqüentes. Se a decisão dele morar<br />
longe é irrevogável, você prefere sair dessa. Mudar de<br />
cidade, para ceder àquele chama<strong>do</strong>, seria anular-se<br />
demais. Com infinita tristeza, você prefere sumir de cena,<br />
manten<strong>do</strong> a chama <strong>do</strong> que nunca fora acaba<strong>do</strong>. Descobre<br />
sozinha que é bem mais valioso manter boas lembranças<br />
<strong>do</strong> que promessas que voam.<br />
29
PROTEÇÃO<br />
PÉNDULO DOMÉSTICO<br />
Dedico este texto à minha mãe Floripes, que sempre<br />
inventava um jeito de nos proteger além da conta<br />
Geralmente a família <strong>Diniz</strong> costuma citar<br />
em muitas referências na imprensa a figura de<br />
meu pai, Valentim, por ter si<strong>do</strong> ele o funda<strong>do</strong>r<br />
<strong>do</strong> nosso grupo de empresas. Eu também me<br />
incluo entre os que vivem a citá-lo com amigos,<br />
talvez devi<strong>do</strong> à enorme consideração e à admiração<br />
que mantenho por ele. Mas, de repente,<br />
me <strong>do</strong>u conta de que a minha família não<br />
deveria ser considerada um patriarca<strong>do</strong>. E a<br />
minha mãe, Floripes, participa de qual parte<br />
dessa história?<br />
De origem portuguesa, ela mantém aquelas características<br />
discretas das tradicionais mulheres européias, que,<br />
por motivos agora já perdi<strong>do</strong>s no tempo, preferiam deixar<br />
os mari<strong>do</strong>s brilharem por si, sozinhos, contanto que as<br />
poupassem <strong>do</strong>s aspectos públicos. São mulheres que herdaram<br />
comportamentos provenientes da <strong>do</strong>minação, e<br />
31
32<br />
que embora tenham caráter forte, são discretas e se mantêm,<br />
por vontade e tradição, em segun<strong>do</strong> plano.<br />
Minha mãe deve ser reconhecida também por outros<br />
valores. Enquanto meu pai se ocupava em fazer crescer<br />
continuamente os negócios, ela agia como o pêndulo familiar.<br />
Vinham dela a força, a perseverança, o senso de justiça,<br />
o equilíbrio e, acima de tu<strong>do</strong>, o exercício diário de manter<br />
a família em união.<br />
Sua preocupação com os filhos continua exemplar.<br />
Até hoje ela acha que precisamos comer mais, e vive a<br />
comandar/coordenar pratos tenta<strong>do</strong>res para nos seduzir<br />
pelo estômago. Para minha mãe, vamos continuar a ser os<br />
seus eternos meninos e meninas (ainda hoje deve ser difícil<br />
aceitar que crescemos, saímos de casa e que ficamos<br />
independentes). Bom, agora que também sou mãe de três<br />
filhos, sei o quanto isso é duro. Mas fazer o quê? Regras<br />
da vida são regras da vida.<br />
Lembro-me de minha mãe, ainda hoje uma senhora relativamente<br />
vai<strong>do</strong>sa e atenta ao mun<strong>do</strong>, como uma torre de<br />
observação <strong>do</strong>méstica. Nada lhe escapava, apesar de nunca<br />
deixar transparecer que estivesse ciente de tu<strong>do</strong>. Coisas da<br />
contenção emocional <strong>do</strong>s europeus, talvez. Mas ela costumava<br />
se manifestar, sim, a qualquer momento, quan<strong>do</strong> se<br />
fazia necessário defender um filho de alguma pequena<br />
injustiça familiar ou proteger a prole de qualquer risco.<br />
Como neste livro entro em temas inéditos na minha car-
eira profissional, decidi aproveitar para registrar meu afeto<br />
por essa mulher que nos gerou e que sempre esteve oculta<br />
<strong>do</strong>s holofotes da fama. Sua discrição e sua forma suave de<br />
aceitar os contrapontos dessa família com personalidades tão<br />
fortes fizeram dela uma lição permanente de harmonia, de<br />
ternura, de sabe<strong>do</strong>ria e de atuação pacifica<strong>do</strong>ra.<br />
Então, começo a pensar que faz muito senti<strong>do</strong> aquela<br />
frase popular que garante: Sempre existe uma mulher forte<br />
por trás de um homem importante. Floripes <strong>Diniz</strong> está, portanto,<br />
muito além de ser apenas uma rainha <strong>do</strong> lar.<br />
33
Ah, você está ven<strong>do</strong> só<br />
Do jeito que eu fiquei<br />
E que tu<strong>do</strong> ficou<br />
Uma tristeza tão grande<br />
Nas coisas mais simples que<br />
você tocou<br />
A nossa casa, queri<strong>do</strong><br />
Já estava acostumada<br />
Guardan<strong>do</strong> você<br />
As flores na janela sorriam,<br />
cantavam<br />
Por causa de você<br />
(Dolores Duran, na canção Por causa de você)
ROMPIMENTOS<br />
MEU MUNDO CAIU<br />
Os últimos ruí<strong>do</strong>s que ouvi foram o da<br />
chave dan<strong>do</strong> voltas na porta e o carro sain<strong>do</strong> da<br />
garagem. Depois disso, um silêncio incompreensível<br />
e assusta<strong>do</strong>r se abateu pela casa. Olhei em<br />
volta, completamente sem reação. Cada objeto<br />
parecia reter a sua marca, o seu rastro. Meus<br />
olhos pediam lágrimas, mas me faltavam forças<br />
até para isso. Eu estava em esta<strong>do</strong> de letargia<br />
profunda e, ao mesmo tempo, com o pior <strong>do</strong>s<br />
sentimentos: autocompaixão.<br />
Na cabeça ainda ecoavam as últimas frases que trocamos.<br />
Sim, a saída dele já estava definida entre nós. Eu<br />
sabia que o dia D chegaria, mas durante o arrasta<strong>do</strong><br />
processo da separação, preferi me portar como se aquilo<br />
não fosse realidade. Fingi estar dentro de um filme, em<br />
que o final seria, sobretu<strong>do</strong>, sorridente e feliz. Portei-me<br />
como se ainda recebesse demonstrações de afeto – e não<br />
o tratamento meramente educa<strong>do</strong> que ele me dispensava.<br />
Distancia<strong>do</strong>, a palavra melhor. Tratou-me assim para evitar<br />
35
36<br />
qualquer ebulição súbita, qualquer atitude inesperada ou<br />
outros princípios de discussão. E isso é o pior: quan<strong>do</strong><br />
alguém se porta de mo<strong>do</strong> calmo em situações de rompimento,<br />
é porque a decisão já foi amadurecida, pensada e<br />
tomada. Decisão. Uma palavra que me fazia tremer.<br />
Mas agora lá estava eu, inerte no sofá, olhan<strong>do</strong> para<br />
o teto. Não tinha vontade de ouvir música, de falar, de<br />
comer. Nada vezes nada. Náusea. O sol brilhava intenso lá<br />
fora. Seria melhor que o dia estivesse cinza, chuvoso, com<br />
intensidade dramática suficiente para combinar com o<br />
meu esta<strong>do</strong> de ânimo. Para não dizer que me faltava ação<br />
por completo, eu sentia vontade de pegar o telefone e<br />
ligar para o celular dele. Pedir uma revisão daquela decisão<br />
drástica. Argumentar que fomos tão amigos e que<br />
poderíamos pelo menos retomar tu<strong>do</strong> de forma civilizada,<br />
tentar voltar o filme, sei lá.<br />
Quantas vezes eu já havia repeti<strong>do</strong> esse mesmo procedimento,<br />
de ligar para ouvir apenas respostas vagas? O<br />
resulta<strong>do</strong>, no final, me deixava atônita. Pior <strong>do</strong> que se tivesse<br />
evita<strong>do</strong> telefonar. E mais: com vergonha de ter, novamente,<br />
dispara<strong>do</strong> em busca de uma corda que se rompeu.<br />
Sensação de gritar sozinha à beira <strong>do</strong> abismo.<br />
Os amigos, há semanas, tentam me confortar.<br />
Perante eles confirmo que ultrapassei o estágio de desamparo<br />
e que começo a me sentir renovada, que bom, pronta<br />
a rever a minha existência, disposta a corrigir inseguranças
emocionais, a fazer análise, qualquer coisa. Depois <strong>do</strong>s discursos<br />
cheios de clichê e estereótipos, me pego ausente,<br />
oca, com o olhar paralisa<strong>do</strong>. No pensamento, uma única<br />
missão impossível. Ele de volta.<br />
Percebo que sofrer por rompimentos é estar a um<br />
passo <strong>do</strong> masoquismo. Sofre-se, sente-se compaixão de si<br />
próprio, suspira-se, inventam-se saídas, sofre-se, sofre-se e<br />
conforma-se com o círculo contínuo de flagelação.<br />
Descubro existir certa elegância na <strong>do</strong>r, que faz as pessoas<br />
falarem baixo e se portarem de mo<strong>do</strong> menos expansivo. A<br />
<strong>do</strong>r nos amadurece.<br />
Só que esses momentos de clareza acontecem como<br />
fagulhas. Na grande parte das horas, sei que vou apenas<br />
roer a minha obsessão de não aceitar a perda, de jamais<br />
aceitar que alguém aperte a tecla delete na minha vida.<br />
Isso nunca, porque fiz tu<strong>do</strong> para que a relação fluísse com<br />
beleza, amei-o como ninguém, gastei anos ao la<strong>do</strong> dele.<br />
Inadmissível agora ser tratada como personagem estranho.<br />
Em que parte dessa história foram parar as cumplicidades,<br />
as viagens, os planos, o casal considera<strong>do</strong> quase<br />
modelo? Quan<strong>do</strong> despencou o meteoro no lago? Quan<strong>do</strong><br />
a lua deixou de furar o nosso teto para salpicar estrelas no<br />
chão? Difícil captar o pensamento <strong>do</strong> outro. Mas estou<br />
absolutamente certa de que ele foi imaturo, inconseqüente,<br />
egoísta.<br />
No esta<strong>do</strong> de torpor em que permaneço, a única<br />
37
38<br />
coisa que poderia me mover seria a vontade de buscar<br />
forças, desconheço onde, para dedicar um longo tempo a<br />
vigiar a vida dele. Nem seria difícil: conheço bem os seus<br />
novos projetos de vida. Embora ele tenha garanti<strong>do</strong> não<br />
querer saber de casamento, considero isso apenas outra<br />
hábil conversa para evitar cenas de mulher aban<strong>do</strong>nada.<br />
Óbvio que ele vai procurar parcerias. E depois descartá-las,<br />
como fez comigo.<br />
Preciso me levantar <strong>do</strong> sofá. Talvez uma caixa de<br />
bombons me faça bem. Ou sair para a rua, mudar o corte<br />
<strong>do</strong> cabelo, viajar para um país distante, fazer curso de italiano.<br />
Sei que vou passar a minha vida tentan<strong>do</strong> esquecer<br />
esse rompimento. Nunca mais serei a mesma mulher. O<br />
amor, como dizia aquela antiga canção, é o ridículo da vida.<br />
E ele onde estará? Já se passaram duas horas e 17<br />
minutos desde que saiu de casa. Será que ligo agora?
FALSO MORALISMO<br />
TE PERDÔO POR TE TRAIR<br />
Fica fácil explicar o que é falso moralismo:<br />
é condenar algo e fazer exatamente o que condenou,<br />
só que de forma escondida ou velada.<br />
Aliás, para esse tema existe uma frase perfeita<br />
<strong>do</strong> dramaturgo Nelson Rodrigues: “Se cada um<br />
soubesse o que o outro faz na cama, ninguém<br />
se cumprimentaria”.<br />
Conheço, conhecemos e conheceremos batalhões<br />
infindáveis de gente que age de mo<strong>do</strong> dúbio, farsesco e<br />
limita<strong>do</strong>r. Apegam-se a detalhes ínfimos <strong>do</strong> comportamento<br />
alheio, a<strong>do</strong>ram comentar as agruras sentimentais <strong>do</strong>s<br />
amigos, bisbilhotam a vida sexual de to<strong>do</strong>s e, sobretu<strong>do</strong>,<br />
mantêm uma máscara de padre no altar. Daqueles que<br />
exigem punição, pedi<strong>do</strong> de perdão e penitência.<br />
Os falsos moralistas são altamente repressores e repressivos.<br />
Detestam que os desmintam, odeiam ser rebati<strong>do</strong>s<br />
em uma discussão e não aceitam argumentos contrários<br />
à visão conserva<strong>do</strong>ra que exibem. Decotes, namoros,<br />
demonstrações de afeto? Eles querem morrer só de<br />
imaginar as cenas. Festas prolongadas, filhos que chegam<br />
tarde e reuniões fora de casa? Não, o filho ou a filha deles<br />
39
40<br />
são de outro meio, retrucam para negar a permissão.<br />
Mas longe <strong>do</strong>s olhares comuns, distantes <strong>do</strong> altar que<br />
ergueram a si próprios nas suas casas, eles aproveitam as<br />
viagens para tomar todas, dançar todas, namorar todas e<br />
pintar o sete <strong>do</strong> jeito que o diabo gosta. Na verdade, uma<br />
cabeça antiga.<br />
Existem ainda os falsos moralistas atualiza<strong>do</strong>s, com<br />
layout moderno e sem denotar o tom policialesco que rege<br />
a sua vida em grupo. Para eles, tu<strong>do</strong> pode até ser permiti<strong>do</strong>.<br />
Aos outros, apenas o de<strong>do</strong> apontan<strong>do</strong>, duro. Pessoas<br />
assim são aquelas que vão para a happy hour e tomam<br />
suco de laranja, embora estivessem loucas para pedir um<br />
conhaque. Ou, quan<strong>do</strong> saem com a esposa, se portam<br />
como um controla<strong>do</strong>r de vôo: inspecionam cada passo<br />
dela, perguntam com quem estava falan<strong>do</strong>, quem telefonou<br />
no celular e coisas tão horríveis quanto.<br />
Demonstrar ciúmes é um procedimento básico <strong>do</strong> falso<br />
moralista, porque ele vive de consciência pesadíssima<br />
por saber que pequenas traições, contanto que escondidas,<br />
são com ele mesmo. Por sua vez, a esposa falsa moralista<br />
é geralmente meio limitada, que estende toda a<br />
repressão recebida no colégio interno para cima das filhas<br />
moças. Mas, lá no fun<strong>do</strong>, ela a<strong>do</strong>ra contar piadas cabeludas<br />
para as amigas e, de vez em quan<strong>do</strong>, passa um batom<br />
e resolve que hoje é dia de paquerar no shopping. Como<br />
dizia o Geraldão, êta vida besta!
Falsos moralistas perigosos são os que condenam os<br />
radicalismos políticos e agem de mo<strong>do</strong> radical fora <strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s,<br />
ou mesmo aqueles que obrigam os filhos a ir à missa<br />
e ficam em casa folhean<strong>do</strong> Playboy. Falsos moralistas são<br />
aqueles que fazem longos sermões para os filhos sobre os<br />
problemas <strong>do</strong> uso de drogas e à noite fumam seu basea<strong>do</strong><br />
na festa <strong>do</strong>s amigos. Falsos moralistas são os padres que<br />
condenam o homossexualismo e depois são flagra<strong>do</strong>s com<br />
a<strong>do</strong>lescentes de calças arreadas. Falso moralismo é pregar<br />
economia e gastar escondi<strong>do</strong>, é ver alguém se dar mal e<br />
falar “está ven<strong>do</strong>, não avisei?”, é defender uma vida saudável<br />
e atacar uma bandeja de pururuca no boteco da<br />
esquina, é ser a favor da paz universal e viver a atacar o vizinho,<br />
é pedir perdão enquanto guarda mágoas antigas, é<br />
mentir saben<strong>do</strong> que está mentin<strong>do</strong> apenas para construir<br />
uma referência forte para si próprio.<br />
Se você é assim, consulte seu médico, porque o falso<br />
moralismo é contagioso.<br />
41
De mo<strong>do</strong> que meu espírito<br />
Ganhe um brilho defini<strong>do</strong><br />
Tempo, tempo, tempo, tempo<br />
E eu espalhe benefícios<br />
Tempo, tempo, tempo, tempo<br />
(Oração ao tempo, de Caetano Veloso)
ENVELHECER SEM MEDO<br />
VIVA A AMPULHETA<br />
Somos angustia<strong>do</strong>s desde a infância pela<br />
noção da morte. O homem é o único animal a ter<br />
esta noção. Cavalos, cães, tigres ou sapos<br />
demonstram apenas seus instintos de sobrevivência,<br />
não a consciência da sua finitude<br />
enquanto seres vivos. Terrível isso? Não.<br />
Fazer o quê? Só nos resta achar graça, muita graça.<br />
Tu<strong>do</strong> que está no planeta integra um ciclo de começo, meio<br />
e fim, seja rocha, material gasoso, célula, vegetal ou ameba.<br />
Tu<strong>do</strong> começa e cumpre determina<strong>do</strong> ciclo de existência,<br />
na lei natural em que se cede lugar à chegada de outras<br />
criaturas, outras manifestações da Mãe Natureza.<br />
Percebi<strong>do</strong> isso, nota<strong>do</strong> o que se chama inexorabilidade<br />
da vida, ou seja, o que não tem mesmo jeito, só nos resta<br />
viver, viver e viver. Cada segun<strong>do</strong>, cada fração de tempo.<br />
Sem olhar muito para trás e sem querer saber o que vem<br />
pela frente. Passa<strong>do</strong> e futuro parecem ficções. O que existe<br />
é o momento presente, aquele em que as coisas existem, em<br />
que os atos são feitos, em que o sangue pulsa nas veias, em<br />
que o nariz aspira oxigênio. Somos matéria. E dentro dessa<br />
matéria está o enigma da vida, o mistério da alma.<br />
43
44<br />
Bom, escrevi esse preâmbulo acima apenas para me<br />
forçar, isso mesmo, me forçar a avaliar um assunto que<br />
ninguém gosta de ouvir: saber envelhecer. Semanalmente<br />
lemos reportagens que garantem méto<strong>do</strong>s revolucionários<br />
de conter a passagem <strong>do</strong> tempo no corpo<br />
humano, além <strong>do</strong> avanço <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s sobre alimentação.<br />
Para ver como o panorama é alenta<strong>do</strong>r, basta<br />
lembrar que no início <strong>do</strong> século 20 a tuberculose ainda<br />
era uma <strong>do</strong>ença mortal.<br />
Hoje podemos regenerar teci<strong>do</strong>s, alterar formas <strong>do</strong><br />
corpo, melhorar performances sexuais, calibrar os hormônios,<br />
moldar a silhueta, a<strong>do</strong>tar dietas rejuvenesce<strong>do</strong>ras,<br />
detectar problemas com antecedência, corrigir imperfeições,<br />
alongar a estatura, acrescentar cabelos, extirpar<br />
pêlos, polir a aura, renovar o espírito. Tu<strong>do</strong> parece possível,<br />
tu<strong>do</strong> parece estar à mão e tu<strong>do</strong> nos faz acreditar que não<br />
seremos anciãos decrépitos.<br />
Mas e daí? O que precisamos ter sempre em mente é<br />
que, em um belo dia, a matéria despenca. Ninguém, infelizmente,<br />
descobriu o elixir da eterna juventude. Esse<br />
tema é tão importante que os mitos de Narciso (autocontemplação<br />
pela beleza) e de Fausto (a entrega da alma em<br />
troca <strong>do</strong> não-envelhecimento) continuam presentes na<br />
consciência coletiva da humanidade. Ninguém quer entrar<br />
em degeneração física e atingir o fim de sua história. Eu<br />
também não.
Então, vamos tratar de contornar o precipício desde já.<br />
Envelhecer sem me<strong>do</strong> é possível, sim. Sempre parto da idéia<br />
de que a minha cabeça está cada vez melhor: sem mágoas,<br />
sem rancores, mais experiente, aberta a novidades, destemida,<br />
jovial. O contraponto é que o invólucro da cabeça, o<br />
tal <strong>do</strong> corpo, não acompanha esse ritmo, coita<strong>do</strong>. Então,<br />
toda atenção a ele, o corpo. Não existe mente boa sem um<br />
corpo são. Discor<strong>do</strong> radicalmente da possibilidade de um obeso<br />
feliz. Creio que as pessoas até têm a capacidade de se<br />
dizerem felizes, sem estarem nada felizes.<br />
Envelhecer sem me<strong>do</strong> é complica<strong>do</strong> e simples ao<br />
mesmo tempo, exatamente como acontece nas questões<br />
elaboradas da vida. Quan<strong>do</strong> o tempo avança e conseguimos<br />
manter o corpo em bom esta<strong>do</strong> de conservação,<br />
a carga da passagem <strong>do</strong> tempo se torna bem mais leve. O<br />
espelho deixa de assustar, as roupas não viram inimigas, a<br />
alimentação se torna um prazer, o amor pode acontecer,<br />
o olho continua a brilhar, os risos são constantes e o calendário<br />
parece uma bobagem. Sem excessos, a trilha<br />
pode ser longa.<br />
45
Quem me telefonou<br />
Seus dramas contou<br />
Pois se sentia sozinho<br />
É meu amigo<br />
É isso o que eu tenho<br />
no mun<strong>do</strong>,<br />
em qualquer lugar<br />
(Quem perguntou por mim, de Milton Nascimento<br />
e Fernan<strong>do</strong> Brant)
AMIZADES<br />
ALÉM DO HORIZONTE<br />
Como quase to<strong>do</strong>s os temas atuais, a<br />
amizade também começa a virar mais um item<br />
de consumo. Ter amizade hoje em dia passou a<br />
significar enviar cartões virtuais, mandar<br />
mensagens engraçadas pelo celular, cantar parabéns<br />
bem alto, sair nas noites de sába<strong>do</strong><br />
para assistir um filme. Que pena.<br />
Ainda acredito que amizade é algo muito mais à<br />
frente disso tu<strong>do</strong>, além de abranger sentimentos de profundidade<br />
incomparável. Nada se compara a uma amizade<br />
sincera, de verdade, daquelas que se conta para ligar<br />
até as 4 da madrugada, nem que seja para pedir alívio na<br />
<strong>do</strong>r de cotovelo que não acaba nunca.<br />
Acho espantoso como as pessoas agora utilizam<br />
com freqüência a palavra amigo para gente que absolutamente<br />
não nutrem um naco sequer de amizade.<br />
Na grande parte das vezes, o que agora se chama amizade<br />
é apenas, e olhe lá, uma forma de companheirismo<br />
entre colegas de empresa, ou afinidades<br />
entre conheci<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mesmo bairro que saem para<br />
shoppings e baladas.<br />
47
48<br />
Amigo é um termo forte, que ressoa no peito. Quem<br />
pode dizer que tem amigos nunca está só, nunca sente<br />
desamparo, nunca sofre de carência afetiva crônica. Digamos<br />
que os amigos preenchem aquele vácuo que qualquer<br />
amor sempre deixa, mesmo durante as fases boas de<br />
namoro e casamento. Um mari<strong>do</strong> ou um namora<strong>do</strong> jamais<br />
se equivale a um amigo, por mais que se esforce em parecer.<br />
Uma briga de namora<strong>do</strong>s pode significar trovões e relâmpagos<br />
durante uma semana, porque nenhum <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is toma<br />
providências de avançar o terreno para pedir perdão. Na<br />
amizade, um desentendimento costuma acabar em cenas<br />
dramáticas bem exageradas, feitas para que o outro comece<br />
logo a rir e a perceber a bobagem que estavam cometen<strong>do</strong>.<br />
Claro, nem sempre que <strong>do</strong>is amigos brigam a coisa<br />
acaba em bandeira branca. Mas se existir um fluxo contínuo<br />
de afeto, a amizade se mantém viva, tenaz, gratificante,<br />
envolvente e atraente. Amigos de verdade, aliás, não exigem<br />
nada <strong>do</strong> outro amigo. Ou exigem? Não pedem exclusividade,<br />
jamais reclamam se você an<strong>do</strong>u sumi<strong>do</strong>, não<br />
inventam desculpas bobas para justificar faltas cometidas,<br />
nem ligam para tomar satisfação de nada. Só sei que os<br />
bons amigos deixam tu<strong>do</strong> fluir, flutuar, espairecer, pois<br />
sabem que a amizade sobrevive a tremores de humores, a<br />
chás de sumiço e até a falta de notícias.<br />
Tenho amigos de anos a fio, verdadeiros tesouros da<br />
vida. Costuma ocorrer que fiquemos algum tempo sem
nos ver. Quan<strong>do</strong> vem o encontro, os primeiros diálogos<br />
parecem uma continuidade da última conversa que mantivemos<br />
há meses. Ou, quem sabe, anos antes. Sem<br />
cobranças, sem expectativas, sem mágoas, sem rancores,<br />
sem nada. Evitam tomar parti<strong>do</strong> durante uma separação,<br />
ou então tomam logo o seu parti<strong>do</strong>, imediatamente. Só<br />
perguntam sobre o trabalho depois de alguns minutos,<br />
para fugir <strong>do</strong> papo-escritório. Sobre a família, esperam<br />
primeiro você comentar algo. Namoros? Ah, isso cada<br />
bom amigo a<strong>do</strong>ra dar o máximo de força, pedir detalhes,<br />
esmiuçar quem são os pretendentes e rir das situações<br />
acontecidas.<br />
Os amigos são mesmo a alegria da vida. Mas, cuida<strong>do</strong>:<br />
recuse as imitações.<br />
49
APRENDER A FICAR SÓ<br />
NO SILÊNCIO DO QUARTO<br />
Somos educa<strong>do</strong>s desde pequenos a conviver<br />
em grupo, a resolver situações de mo<strong>do</strong> coletivo,<br />
a raciocinar segun<strong>do</strong> opiniões de consenso. OK.<br />
O problema é que nas sociedades ocidentais,<br />
diferentemente <strong>do</strong> que ocorre no Oriente, as<br />
pessoas nunca são ensinadas a pensar por si, a<br />
amadurecer opiniões e, o mais importante, a<br />
aprender a viver só consigo próprio.<br />
O pior é que to<strong>do</strong>s, nem que seja por um momento,<br />
acabam fican<strong>do</strong> sem ninguém. Então, logo surge o bicho da<br />
ansiedade, que nos obriga a reagir <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> mais primário<br />
possível: comer, falar, comer, falar. Confessar publicamente<br />
que se está só parece um ato vergonhoso, por denotar um<br />
raciocínio completamente erra<strong>do</strong>: “Se estou só é porque<br />
não encontro companhias, e se não encontro companhias é<br />
porque devo ser alguém desinteressante”.<br />
Para suprir essa ausência de alguém constantemente<br />
ao la<strong>do</strong> (note-se que não estou falan<strong>do</strong> de casamento),<br />
vale qualquer coisa: ligar a tevê, o toca-discos, falar ao<br />
telefone, abrir uma garrafa de vinho, comer <strong>do</strong>ces e abrir<br />
a geladeira de cinco em cinco minutos. Tu<strong>do</strong> ao mesmo<br />
51
52<br />
tempo, lógico. Esse procedimento é comum, principalmente<br />
em grandes centros urbanos, onde se convive no<br />
trabalho com grandes quantidades de pessoas. Ao se<br />
chegar em casa, parece faltar algo: multidão.<br />
Engraça<strong>do</strong> é que deveríamos sentir alívio por chegar<br />
em casa, sem ter que continuar a ouvir o rumor das ruas,<br />
nem conviver na pressão <strong>do</strong>s aglomera<strong>do</strong>s humanos. Mas<br />
qual o quê. Mal se chega da rua e logo se inicia um ritual<br />
de suprir o suposto vazio. Isso também vale para quem<br />
mora com alguém: a aceleração é a mesma. Nunca se<br />
está satisfeito, nunca se relaxa, nunca se acalma.<br />
Podemos levar em conta que esse traço é um <strong>do</strong>s<br />
males da civilização moderna. Mas prefiro conduzir o<br />
assunto para outro la<strong>do</strong>, o de saber ficar só, o de aprender<br />
a ser só. Ou como disse Gilberto Gil em uma bonita<br />
canção, “eu preciso aprender a só ser”. Pois bem, quan<strong>do</strong><br />
chegar a tal constatação, quan<strong>do</strong> saber o momento<br />
de ouvir a voz que vem <strong>do</strong> interior de cada um?<br />
Ficar só é fundamental para se colocar as idéias em<br />
ordem, para analisar os acontecimentos <strong>do</strong> dia, para<br />
projetar o andamento da vida. Ficar só faz parte da<br />
essência humana, <strong>do</strong> aspecto animal que obriga cada ser<br />
a refletir, a se programar, a se corrigir. De nada adianta a<br />
humanidade se refugiar em paraísos artificiais ou recursos<br />
tecnológicos para fugir de si próprio. Precisamos<br />
saber nos desligar, nos desplugar, nos desconectar. Ficar
só engrandece, amadurece, suaviza, acalma. Saber ficar<br />
só é uma virtude.<br />
Importante observar quanto a isso: quantas vezes<br />
por semana tentamos fugir da situação de nos sentirmos<br />
sós? E por que agimos assim? Vale mesmo falar<br />
tanto ao telefone, assistir dezenas de filmes ruins na<br />
tevê, perder incontáveis horas nos bares, exercitar sem<br />
parar a musculatura da língua? Qual é o problema de<br />
sentar, cerrar os olhos, meditar e descobrir como somos<br />
grandiosos, interessantes e cheios de infinitas possibilidades?<br />
Ficar só é uma arte, uma ciência, uma religião.<br />
Reze para você mesmo.<br />
53
Viver é bom, nas curvas da estrada<br />
Solidão que nada<br />
Viver é bom, partida e chegada<br />
Solidão que nada<br />
(Solidão que nada, de George Israel, Nilo Romero e Cazuza)
VIAGENS<br />
TERRENOS MINADOS<br />
Nada tão próximo <strong>do</strong>s sonhos como as viagens.<br />
Deslocar-se no mapa de um ponto a outro<br />
continua a ser um fator físico que modifica a<br />
percepção, aguça os senti<strong>do</strong>s e provoca aprendiza<strong>do</strong>.<br />
Mudar de paisagem, pisar em locais<br />
desconheci<strong>do</strong>s, ter acesso ao novo: viajar é a<br />
mais profunda forma de compreender a noção<br />
de espaço e tempo.<br />
Tu<strong>do</strong> pode ser assim, grandioso e importante. Contu<strong>do</strong>,<br />
to<strong>do</strong> viajante também acumula histórias às vezes complicadas<br />
ou situações esdrúxulas, porque o imprevisível faz<br />
parte <strong>do</strong> espírito das viagens. Senão, qual seria a graça em<br />
percorrer trajetos banais?<br />
O preâmbulo acima serve apenas para fazer pensar sobre<br />
outros aspectos <strong>do</strong> verbo viajar. Por exemplo: viajar com algum<br />
amigo. Viajar e se aborrecer. Viajar e se arrepender. Tu<strong>do</strong> é<br />
possível, a partir daquela hora em que se deixa a casa rumo a<br />
paragens distantes. Principalmente se vamos acompanha<strong>do</strong>s<br />
por pessoas que irão conviver conosco 24 horas <strong>do</strong> dia.<br />
Nos casamentos, as viagens são o grande teste para o<br />
relacionamento. Mais <strong>do</strong> que no convívio diário, um casal<br />
55
56<br />
em viagem precisa estar muni<strong>do</strong> de cinco arrobas de<br />
paciência e uma tonelada de companheirismo. Haverá<br />
convivências obrigatórias em táxis, aviões, camas de<br />
hotéis, visitas, refeições, compras, passeios, horários de<br />
despertar e o diabo a quatro. Tu<strong>do</strong> com direito a permanecerem<br />
juntos, cotovelo com cotovelo, por grandes<br />
perío<strong>do</strong>s <strong>do</strong> dia. Em lua-de-mel, lin<strong>do</strong>. Na vigésima<br />
viagem, suplício. Conselho: no meio da viagem seria ideal<br />
que cada um inventasse seus programas separa<strong>do</strong>s, desse<br />
um tempo para o outro, pedisse para ficar sozinho no<br />
hotel len<strong>do</strong> um livro, etc. Trocan<strong>do</strong> em miú<strong>do</strong>s, é muito<br />
importante procurar trazer <strong>do</strong>ses de alívio para que a<br />
viagem <strong>do</strong> casal não se torne uma chatice.<br />
Viagens com filhos também costumam ser transtornos,<br />
principalmente se os seus rebentos vão dividir a<br />
mesma suíte ou a mesma habitação. Tolerância zero para<br />
tevês ligadas, banheiros molha<strong>do</strong>s, correrias nos corre<strong>do</strong>res<br />
em dias chuvosos, reclamações constantes sobre a<br />
culinária local e mais 217 pequenos imprevistos, de comprar<br />
band-aid a trocar camisetas na megastore mais distante<br />
da cidade visitada. Como se nota, viagens também<br />
produzem olheiras.<br />
Chega, entretanto, a pior das viagens. Trata-se daquela<br />
que se convida um grande amigo, fazen<strong>do</strong>-se planos<br />
antecipa<strong>do</strong>s de muita diversão, saídas à noite, roteiros mirabolantes,<br />
bons jantares, museus, antiquários. Como são
poucos os que convivem ininterruptamente com amigos<br />
próximos, descobre-se durante a viagem que eles se encaixam<br />
na complicada categoria: de chatos. E que os hábitos<br />
<strong>do</strong> amigo denotam certa avareza irritante, certa displicência<br />
blasé, certos atrasos constantes, certas manias, certos mo<strong>do</strong>s<br />
bobos de se comportar.<br />
Até o terceiro dia, tu<strong>do</strong> podem ser flores. O impacto<br />
da viagem ainda permanece forte e capaz de anular as discrepâncias.<br />
Mas existe um momento – não se sabe quan<strong>do</strong><br />
esse momento acontece exatamente – em que o amigo<br />
começa a parecer o mais estranho <strong>do</strong>s seres em sua vida. E<br />
a tragédia ocorre: descobrir, em silêncio, que ele o incomoda<br />
bastante e que pode comprometer a viagem. Quan<strong>do</strong><br />
se atinge esse ponto de ebulição, é importante ter uma<br />
conversa direta e sincera, expon<strong>do</strong> o que incomoda.<br />
Caso contrário, o sentimento de arrependimento crescerá<br />
como o fermento da discórdia. E a sua tão bela viagem<br />
poderá acabar em cara feia, trombas e falta de assunto. Ou<br />
pior, antecipação <strong>do</strong> retorno. Ou pior ainda: término da<br />
amizade. Antes de pegar o próximo vôo das férias, verifique<br />
quem vai com você. Ou escolha a opção que sempre funciona:<br />
viajar sozinho. O mun<strong>do</strong> continuará lin<strong>do</strong>.<br />
57
GAFES E TRAPALHADAS<br />
A COMÉDIA DOS ERROS<br />
Sim, cometer gafes é terrível. Ninguém admite<br />
a possibilidade de parecer indiscreto, atrapalha<strong>do</strong>,<br />
bisbilhoteiro, mal<strong>do</strong>so, sem educação ou desrespeitoso.<br />
E quan<strong>do</strong> acontece tu<strong>do</strong> isso ao mesmo<br />
tempo? Mas existem formas, formas e formas de<br />
se compreender ou analisar as gafes cometidas<br />
por alguém. As piores são as que podem ser usadas<br />
como instrumento para reforçar idéias contrárias<br />
à presença de alguém, ou as que submetem<br />
pessoas atrapalhadas a julgamentos sociais.<br />
A velha sentença “falar de corda em casa de enforca<strong>do</strong>”<br />
poderia ser considerada a matriz da gafe. Quem nunca indagou<br />
notícias de pessoas que já haviam morri<strong>do</strong>, quem nunca<br />
tentou apresentar um inimigo a outro, quem nunca esqueceu<br />
o nome <strong>do</strong> amigo próximo, exatamente na hora mais importante<br />
da conversa? Atire a primeira pedra quem não revelou<br />
indiscrições que não deveriam ser ditas naquele momento ou<br />
quem nunca pediu informações constrange<strong>do</strong>ras?<br />
Conheço gente que derrubou tinta nanquim em vesti<strong>do</strong><br />
de noiva. Ou pessoas distraídas que abrem cartas dirigidas a<br />
pessoas amigas e descobrem fatos de arrepiar os cabelos.<br />
59
60<br />
Existem muitos que fazem revelações maliciosas sobre determinada<br />
pessoa, para em seguida descobrir que abriu a boca<br />
para alguém muito íntimo de quem atacou. E aqueles que<br />
contam detalhes <strong>do</strong>s amigos e depois descobrem que o mesmo<br />
amigo soube em detalhes <strong>do</strong> que foi comenta<strong>do</strong>?<br />
Uma coisa é certa: as mulheres são mais vítimas das<br />
gafes <strong>do</strong> que os homens. A resposta? Elas falam mais, são<br />
bisbilhoteiras de plantão e a<strong>do</strong>ram instilar eventuais venenos.<br />
Mulheres também amam implicar com certos personagens<br />
ou enxergar disputas territoriais onde não existe nada.<br />
O resulta<strong>do</strong>: amizades que se rompem, pequenos escândalos,<br />
discussões e toneladas de perigosos equívocos.<br />
Precisamos, portanto, exercitar a ponderação, contar<br />
até cem a cada vez que baixar a vontade de avaliar o comportamento<br />
de alguém. Há situações em que as pessoas não<br />
sabem lidar com comportamentos excêntricos, ou mesmo<br />
traços marcantes, e transferem seus julgamentos para uma<br />
linguagem repleta de cobranças sociais. E nada mais desagradável<br />
<strong>do</strong> que ouvir um falso moralista, inspetor de salão<br />
ou <strong>do</strong>utor-sabe-tu<strong>do</strong>. Pior ainda, passar por zen-vergonha,<br />
que são os sonsos fingin<strong>do</strong> ser liberais. Mas na essência são<br />
altamente repressores.<br />
Vale refletir sobre isso. Gafes imper<strong>do</strong>áveis não faltam:<br />
ter mau caráter, ser ambicioso em excesso, demonstrar arrogância,<br />
falar em demasia, mentir sem motivos, acolher fofocas,<br />
repassar informações sigilosas, fingir amizade, roubar namo-
a<strong>do</strong>, atrair funcionários, ser presunçoso, entregar-se à preguiça,<br />
esconder fatos, ocultar negligências, ser displicente, ocupar<br />
espaço em ambientes públicos, achar graça em cometer pequenos<br />
furtos, brincar de ser saudável e continuar com os mesmos<br />
hábitos, não respeitar os ancestrais, enviar mensagens<br />
anônimas, ouvir conversas alheias, captar informações de mo<strong>do</strong><br />
sorrateiro, não limpar os pés no capacho, comer com ansiedade,<br />
falar demais de si próprio, dar sinais de que não presta<br />
atenção à conversa, mexer no controle remoto sem consultar<br />
os demais, fazer ligações interurbanas na casa de alguém sem<br />
pedir licença, fuçar arquivos <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r de um amigo,<br />
pedir coisas emprestadas e nunca devolver, não demonstrar<br />
gratidão, obrigar os amigos a conviver com o barulho das suas<br />
crianças, criar animais <strong>do</strong>mésticos apenas por modismo, gastar<br />
além <strong>do</strong> que pode, aplaudir desgraças alheias, fumar em ambientes<br />
fecha<strong>do</strong>s e dizer que é direito seu, casais que discutem<br />
na rua, beijar ardentemente o parceiro em qualquer local público,<br />
andar o tempo to<strong>do</strong> de mãozinhas dadas com o seu par,<br />
falar alto em restaurantes, tratar mal os emprega<strong>do</strong>s, diminuir<br />
o esforço de alguém, não ser gentil, criticar a opção sexual,<br />
pedir favores profissionais a um profissional, ficar impassível na<br />
hora em que recebe a conta, chegar atrasa<strong>do</strong> a qualquer compromisso,<br />
provocar temores, ser alarmista, contar vantagem,<br />
fingir que não vê alguém, ser sovina, não amar o próximo, não<br />
admitir que errou e, principalmente, nunca pedir desculpas.<br />
O resto vale. Ou não?<br />
61
MODA<br />
LANCES E RELANCES<br />
Antes de iniciar essa costura, é bom esclarecer:<br />
a moda não pode mais ser compreendida<br />
como algo frívolo. O que usamos e vestimos<br />
reflete exatamente a época em que vivemos, a<br />
partir de uma série infindável de releituras, códigos,<br />
símbolos e referências. Talvez o grande lance<br />
da moda contemporânea seja o de permitir<br />
milhares de combinações, escolhas e possibilidades,<br />
no mesmo ritmo em que se compartimenta<br />
por segmentos bem específicos de consumo.<br />
Quero contar como foi e como passou a ser minha<br />
relação com a moda. Quan<strong>do</strong> me tornei obesa, tu<strong>do</strong>,<br />
obviamente, era um gigantesco tormento. Aquele tormento<br />
que os gor<strong>do</strong>s conhecem bem: provar roupas que não<br />
entram, raramente encontrar peças adequadas e tantas<br />
outras situações deploráveis. No meu caso, eu só usava<br />
calças fuseau com camisões por cima. Nada deslumbrantes,<br />
porém corretos e discretos.<br />
Depois das mudanças de layout ocorridas na minha<br />
figura (e no layout da cabeça, também), detectei um fator<br />
novo na vida: descobri que sou tridimensional. Isso mesmo,<br />
63
64<br />
descobri pelo espelho a tridimensionalidade <strong>do</strong> corpo! No<br />
tempo da obesidade eu só me via de frente e de costas.<br />
Não havia la<strong>do</strong>s, saliências, reentrâncias, volumes separa<strong>do</strong>s,<br />
nada. Eu era uma massa compacta.<br />
Adaptar-me ao meu novo perfil de mulher magra<br />
também não foi nada fácil. Os ex-gor<strong>do</strong>s demoram um<br />
tempo para se livrar da sombra de sua antiga silhueta. Passei<br />
então a ler muito, a buscar informações e a observar<br />
preferências. Tu<strong>do</strong> me parecia novidade, mas seria preciso<br />
encontrar a trilha própria. Coloquei to<strong>do</strong>s os modelos que<br />
gostava e os que não gostava, fiz testes com golas<br />
re<strong>do</strong>ndas, baba<strong>do</strong>s de ombro a ombro, alças e decotes.<br />
Maravilha <strong>do</strong>s deuses poder, finalmente, ter acesso ao que<br />
me era proibi<strong>do</strong> no tempo de obesidade.<br />
Centímetro a centímetro, botão a botão, consegui<br />
assim elaborar um estilo. Ou melhor, o meu mix de influências.<br />
Hoje vejo que me visto de mo<strong>do</strong> clássico, com toques<br />
de perua. Gosto – e me permito – usar adereços, jóias,<br />
roupas de cores fortes, cortes insinuantes e braços de fora.<br />
Exatamente o contrário <strong>do</strong>s tempos de “roliça rebelde”.<br />
Naquele perío<strong>do</strong>, bastava colocar um cinto para parecer<br />
que explodiria tu<strong>do</strong>: figurino, cintura, costuras e até as<br />
paredes ao re<strong>do</strong>r. Ah, como é bom ser magra.<br />
Como essas descobertas ainda são recentes, divirtome<br />
combinan<strong>do</strong> trajes ou arriscan<strong>do</strong> combinações. Roupa<br />
nova, a<strong>do</strong>ro. Sinto raiva de quem tem corpo legal e não o
valoriza. Por exemplo: tenho horror daqueles que usam<br />
roupa velha para ficar em casa, com figurinos destrambelha<strong>do</strong>s,<br />
molengos e com cara de relaxo. Amo estar sempre<br />
impecável. Ninguém sabe o que pode acontecer no próximo<br />
minuto, não?<br />
Aprendi que estilo precisa ser um tom maior de se<br />
encarar a vida, de se olhar para as situações, de se reagir<br />
ao inespera<strong>do</strong>. Em moda vale perguntar, pedir opinião ao<br />
espelho, não agir por impulso, namorar o vesti<strong>do</strong> da vitrine,<br />
evitar roupas que provoquem insegurança, saber como<br />
mostrar o corpo, entender que nem sempre o menos é<br />
mais e não se entregar a embalagens que não foram<br />
desenhadas para você. Porque na esfera <strong>do</strong> estilo nem<br />
tu<strong>do</strong> é necessariamente universal, usável ou dura<strong>do</strong>uro.<br />
65
Vai, vai mesmo<br />
Eu não quero você mais<br />
nunca mais<br />
Tenha a santa paciência<br />
Ponha a mão na consciência<br />
Deixe-me viver em paz<br />
(Vai mesmo, de Ataulfo Alves)
SOMATÓRIO DE ERROS<br />
ERRO AO QUADRADO<br />
Acho que to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> já passou pela situação<br />
de ter que dispensar alguém de sua vida.<br />
Esse alguém pode ser funcionário, amigo,<br />
namora<strong>do</strong> ou amante. Óbvio que a situação é<br />
sempre delicada e nos deixa cheios de de<strong>do</strong>s<br />
na hora de elaborar palavras elementares ou<br />
para atingir o ponto de apertar o botão Sumase!<br />
para sempre.<br />
E como se chega a ponto tão crítico assim? Aí o bicho<br />
pega. Cada história apresenta o seu roteiro, alguns parecen<strong>do</strong><br />
rocamboles, outros com jeito de labirinto. Mas há uma<br />
unanimidade sobre o assunto: as pessoas são dispensadas<br />
por pisadas na bola, por desatenção desmedida, por caráter<br />
duvi<strong>do</strong>so, por mentiras seqüenciadas, por bajulação excessiva,<br />
por falta de noção e por invasão de espaço alheio.<br />
O problema, talvez, é não se perceber como cada um<br />
difere <strong>do</strong> outro, exatamente <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> que os países<br />
podem ser antagônicos em culturas, características geográficas<br />
e idiomas. Se às vezes ocorrem aproximações,<br />
são meros movimentos diplomáticos e políticas de boavontade.<br />
No mais, tu<strong>do</strong> continua como antes.<br />
Voltan<strong>do</strong> ao começo <strong>do</strong> tema, para se atingir o ponto X<br />
67
68<br />
de enviar alguém ao espaço, será preciso ter suporta<strong>do</strong><br />
várias situações irritantes e diversas trapalhadas. Na maioria<br />
das vezes, quem comete as infrações não percebe nada.<br />
Ou quan<strong>do</strong> leva uma chamada, arrepia-se feito jaguatirica<br />
pronta a dar o bote. Incrível como existem personagens<br />
sem a menor humildade para ouvir, aprender ou reconhecer<br />
erros, mesmo que essa reprimenda seja feita em tom bran<strong>do</strong>,<br />
educa<strong>do</strong> e aproximativo.<br />
Conheço histórias de pessoas que vivem pulan<strong>do</strong> de emprego,<br />
sempre em atritos internos aparentemente bobos. Alegam<br />
ser incompreendidas. Tu<strong>do</strong> bem, isso pode acontecer em<br />
alguns casos. Na real, entretanto, a situação é a seguinte: é<br />
gente de nariz empina<strong>do</strong> na alma, que jamais se <strong>do</strong>braria perante<br />
uma simples bronca. Pior: jamais se acham fora de rota,<br />
jamais cometem deslizes, jamais deixariam de ser perfeitas.<br />
Considero uma virtude poder ouvir alguém mais<br />
experiente ou desfrutar <strong>do</strong>s conhecimentos mais amplos<br />
de determina<strong>do</strong> amigo. Precisamos ter essa capacidade de<br />
admirar, de reconhecer análises mais elaboradas, de aceitar<br />
propostas rejeitadas, de compreender que não temos a<br />
chave <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Tento ser assim, torcen<strong>do</strong> meu orgulho<br />
to<strong>do</strong> dia, baixan<strong>do</strong> meu topete e engolin<strong>do</strong> palavras que<br />
ficam prontas para pular da boca.<br />
Então, espero que aconteçam aprendiza<strong>do</strong>s semelhantes<br />
com quem convivo. Quan<strong>do</strong> não há, exercito meu<br />
la<strong>do</strong> de monja: olho para a janela, observo as nuvens e
agüento o tranco. Com litros de paciência. Suporto uma,<br />
duas, três, quatro. Mas num belo dia a monja roda o<br />
hábito. E aciona o seu coman<strong>do</strong> invisível que dispara pequenos<br />
raios e relâmpagos. Isso significa que aquela pessoa<br />
que incomodava tanto já não irá mais pisar na bola,<br />
muito menos dividir diálogos comigo. Não desejo nenhum<br />
descaminho aos que cometem somatórios de erros. Ao<br />
contrário: torço com sinceridade para que acertem o rumo,<br />
percam a altivez e ganhem concentração na vida. Voilà!<br />
69
Dia<br />
&<br />
Noite
Na primeira manhã<br />
que te perdi<br />
Acordei mais cansada<br />
que sozinha<br />
Como quem perde o prumo<br />
e desatina<br />
(Na primeira manhã, de Alceu Valença)
A PRIMEIRA VEZ<br />
SESSÃO DE ESTRÉIA<br />
Ah, a primeira vez. Toda primeira vez é um<br />
mergulho no desconheci<strong>do</strong>, seja em qualquer<br />
tipo de ação ou de acontecimento. O resulta<strong>do</strong><br />
pode ser bom, ruim, mediano, complica<strong>do</strong>,<br />
inesquecível, marcante, desanima<strong>do</strong>r, delirante,<br />
traumático, apaixonante, repelente, <strong>do</strong>s deuses<br />
ou <strong>do</strong>s infernos. Cada pessoa tem histórias a<br />
contar sobre a primeira vez que fez algo.<br />
A primeira vez pode ser sexo, uma estréia em teatro,<br />
uma receita culinária, uma viagem de navio, um salto de<br />
trampolim, um quadro, um beijo, a chegada de um filho,<br />
um sutiã, um livro, um casaco de tricô, um <strong>do</strong>ce, um amor,<br />
um sonho.<br />
A primeira vez pode significar embaraço, me<strong>do</strong>, erro,<br />
primarismo, inexperiência, ousadia, arrojo, valentia, determinação,<br />
preparação, desejo, impulso, delírio, bobagem,<br />
sucesso. Quem disse que muitos não acertam logo na<br />
primeira vez? Muitos, aliás, ficam marca<strong>do</strong>s por seus<br />
primeiros acertos profissionais, por mais que façam tentativas<br />
posteriores. Muitos também desaparecem de cena<br />
depois de uma estréia sem talento, depois de um beijo mal<br />
73
74<br />
da<strong>do</strong>, depois de um bolo queima<strong>do</strong>. Quantos não sentem<br />
saudade da primeira vez em que viram a neve, da primeira<br />
vez que tomaram um pileque ou da primeira vez que sentiram<br />
prazer com alguém?<br />
Já nascemos com a estranha capacidade de querer<br />
experimentar tu<strong>do</strong> o que aparece. Basta ver a criança na<br />
fase oral, que coloca to<strong>do</strong>s os objetos na boca, para que<br />
possa compreender através daquele contato a textura, o<br />
sabor, o volume e até se vale a pena insistir no aprendiza<strong>do</strong>.<br />
Os testes com a boca evoluem com o tempo, mas continuamos<br />
curiosos e impeli<strong>do</strong>s a fazer coisas que nunca<br />
realizamos antes. Com me<strong>do</strong> ou sem me<strong>do</strong>, o que vale é se<br />
jogar no tobogã da vida.<br />
Quebrar a cara faz parte das experiências. Ainda bem.<br />
Seria muito chato se todas as primeiras vezes fossem<br />
momentos sublimes. Bem melhor poder contar, depois de<br />
anos, como foi a sua reação quan<strong>do</strong> se viu pela<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong><br />
de alguém também pela<strong>do</strong>, por exemplo. Encolheu a barriga,<br />
relaxou, aproveitou, ficou tími<strong>do</strong>, deitou e rolou?<br />
Tu<strong>do</strong> se torna diverti<strong>do</strong> e importante na formação de qualquer<br />
um. Basta ter olhos diverti<strong>do</strong>s para descomplicar os<br />
novelos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>.<br />
A primeira vez em qualquer trabalho também é<br />
dureza: tu<strong>do</strong> parece estranho e capaz de provocar o seu<br />
imediato desligamento. A primeira vez em uma viagem é<br />
quase uma aula sobre o mun<strong>do</strong> e a nossa função aqui nes-
sa imensidão planetária. E o primeiro me<strong>do</strong>? Pode ter<br />
aconteci<strong>do</strong> na roda-gigante, na escuridão <strong>do</strong> bosque, na<br />
bronca <strong>do</strong> professor, no susto da madrugada, na perda <strong>do</strong><br />
amigo, no ciúme de alguém.<br />
A primeira alegria talvez ninguém registre na memória,<br />
porque sentir-se alegre faz parte da condição humana desde<br />
a menor infância. A primeira decepção to<strong>do</strong>s guardam dentro<br />
<strong>do</strong> vinagre <strong>do</strong> rancor e estará sempre disponível quan<strong>do</strong><br />
solicitada. A primeira conquista, essa sim, faz estufar a alma<br />
e o peito de empresários a pilotos, de agricultores a escritores,<br />
de conquista<strong>do</strong>res a conquista<strong>do</strong>s.<br />
Bom, se tu<strong>do</strong> tem, obrigatoriamente, uma primeira<br />
vez, nem adianta se lastimar. Vale mais é armazenar sensações<br />
calorosas, cálidas, amistosas, sensuais, bem-sucedidas,<br />
curiosas, excitantes, apaixonantes ou mirabolantes.<br />
Nem que a primeira vez tenha si<strong>do</strong> uma catástrofe. E daí?<br />
Há sempre uma primeira vez. Certo?<br />
75
76<br />
A ÚLTIMA VEZ<br />
ACABOU-SE O QUE ERA DOCE<br />
A última vez pode trazer vários sentimentos<br />
e sensações: alívio, <strong>do</strong>r, concretização, perda,<br />
vantagem, acúmulo, desfecho, solução, partida,<br />
despedida, ausência definitiva de repetição, decisão,<br />
interrupção, ponto final. A última vez<br />
lembra lenços brancos na despedida e também<br />
lembra felicidade por ter, finalmente, atingi<strong>do</strong><br />
a esperada etapa final de um acontecimento. A<br />
única carga terrível encerrada no termo a última<br />
vez pode ser a expressão nunca mais.<br />
A última vez, portanto, só se torna definitiva com a<br />
passagem <strong>do</strong> tempo. Ninguém pode garantir que “esta é a<br />
última vez que procuro por você”, como os namora<strong>do</strong>s e<br />
os amantes costumam proferir em momentos de pouca<br />
lucidez. Se realmente não se encontrarão mais, é decisão<br />
<strong>do</strong> destino. E cada um só poderá afirmar “a última vez que<br />
o vi” depois de um longo perío<strong>do</strong> de confirmação <strong>do</strong> afastamento<br />
definitivo. Senão estaremos diante da tragicomédia<br />
da vida amorosa, que permite idas e vindas como as<br />
marés, e onde nada costuma ser definitivo. Não é assim? O<br />
compositor Noel Rosa escreveu uma letra que dizia assim:
“Jurei não mais amar, pela décima vez”. Isso, cá entre nós,<br />
demonstrava a sua imensa sabe<strong>do</strong>ria.<br />
Bom, vamos mudar de canal? Fazer algo pela última<br />
vez também pode provocar alívio, essa palavra linda que<br />
parece um bálsamo para qualquer situação possível. Não é<br />
delicioso sentir-se alivia<strong>do</strong> porque, pela última vez, fez a<br />
aula final <strong>do</strong> curso, ou porque deixará de voltar àquela<br />
situação X que tanto evitava? Às vezes o destino nos dá<br />
uma rasteira e acabamos por voltar a situações que pareciam<br />
absolutamente improváveis de acontecer novamente.<br />
E lá vamos nós, murchos, de rabo entre as pernas.<br />
De repente começo a perceber que pronunciar a<br />
última vez é uma tarefa complicada e que, aparentemente,<br />
só as situações de morte traduzem sua real amplitude.<br />
Dizer que fará algo pela última vez? Quem garante<br />
que não? Ninguém. Só as impossibilidades físicas<br />
impedem algo de acontecer mais uma vez. Vamos supor,<br />
por exemplo, que você teve um namoro com alguém da<br />
Hungria, há muitos anos. Mesmo assim, não há garantia<br />
de que a última vez que vocês se encontraram foi a última<br />
vez definitiva. Nas voltas que o mun<strong>do</strong> costuma dar,<br />
existem incontáveis possibilidades de se encontrar com o<br />
seu antigo amor húngaro no meio da rua – por meio das<br />
travessuras que o destino a<strong>do</strong>ra fazer com to<strong>do</strong>s. Uma<br />
amiga que tenho, outro exemplo, ficou pasma ao encontrar,<br />
no trigésimo-segun<strong>do</strong> andar de um hotel de Tóquio,<br />
77
78<br />
com um garçom cearense que conhecera muitos anos<br />
antes no Brasil.<br />
A última vez fica terrível quan<strong>do</strong> sabemos que alguém<br />
muito especial se foi para sempre, tornan<strong>do</strong> uma situação<br />
irremediável, sem volta, sem possibilidades físicas de contato.<br />
Então podemos, assim, de verdade, dizer nunca mais ou que<br />
houve uma última vez em tal história. OK, mas vamos virar<br />
corren<strong>do</strong> esta página <strong>do</strong> livro porque prometo ser a última<br />
vez em que escrevo sobre a última vez. Será que terei que<br />
jurar dez vezes? Pela última vez, acredito que não.
RITUAL DAS REFEIÇÕES<br />
SABER COMER, SABER VIVER<br />
Acompanho com enorme interesse um movimento<br />
que só existe na Europa, chama<strong>do</strong> de<br />
slow food. A tradução <strong>do</strong> termo significa literalmente<br />
comida lenta, ou comida sem pressa. É o<br />
contrário de fast food, comida apressada, comida<br />
de balcão e uma das pragas da vida moderna.<br />
O movimento slow food procura trazer de volta o ritual<br />
das refeições, a confraternização à mesa, a alegria de compartilhar<br />
a comida com amigos, a leveza e a alegria que a alimentação<br />
deveria sempre proporcionar aos comensais. Tu<strong>do</strong><br />
em ritmo desacelara<strong>do</strong>, para que cada pessoa possa valorizar<br />
os aromas, as texturas e as receitas, além de encontrar<br />
pessoas em busca de conversas amenas e inteligentes.<br />
Vivemos em um país que, talvez pela péssima influência<br />
<strong>do</strong>s hábitos norte-americanos, começa a aban<strong>do</strong>nar o<br />
costume de almoçar e jantar com a dignidade que o ato de<br />
se alimentar pede de cada um. As pessoas optam, cada vez<br />
mais, por lanches calóricos, sucos industrializa<strong>do</strong>s e locais<br />
barulhentos. Poucos ainda se dedicam a sentir prazer no<br />
ato de comer, que é uma ação quase sagrada, por ser a<br />
única forma de se renovar a energia <strong>do</strong> corpo.<br />
79
80<br />
Fico assustada ao ver pessoas comen<strong>do</strong> em pé, quase<br />
enfian<strong>do</strong> um hambúrguer pela goela abaixo. Mesmo<br />
quan<strong>do</strong> têm um pouco mais de tempo, elas preferem<br />
comer de mo<strong>do</strong> apressa<strong>do</strong>, como se estivessem sen<strong>do</strong> empurradas<br />
por alguém. Comem, ou melhor, engolem,<br />
sorvem refrigerantes o dia inteiro e reduzem sua alimentação<br />
a uma cadeia de alta ansiedade.<br />
Água, por exemplo, deixou de ser o líqui<strong>do</strong> mais consumi<strong>do</strong><br />
no planeta há mais de 20 anos. Você sabia disso? O<br />
consumo de refrigerantes suplantou, com grande diferença,<br />
o consumo de água. E por quê? Talvez o homem<br />
contemporâneo considere ao pé da letra os slogans publicitários<br />
<strong>do</strong>s refrigerantes, que prometem ação, emoções<br />
fortes e muita adrenalina. Tomar água deve parecer coisa<br />
da terceira idade.<br />
Então, voltan<strong>do</strong> à premissa inicial, vivo a falar, em<br />
palestras ou em encontros menores, da importância de se<br />
voltar a comer sem pressa. De nada adianta, inclusive, entrar<br />
em dietas e continuar a comer de mo<strong>do</strong> ansioso. Os resulta<strong>do</strong>s<br />
serão sempre menores. Para reeducar a alimentação<br />
também é preciso reeducar a atitude perante o alimento.<br />
Nada tão simples e nada tão complexo quanto uma<br />
simples berinjela ou um ovo. Procure observar como são os<br />
legumes, as verduras, as proteínas que se transformam em<br />
receitas elaboradas para vir à mesa. Procure apalpar as frutas,<br />
cheirá-las, sentir a textura das cascas, saborear lenta-
mente uma mordida, deixar o paladar em êxtase. Há quanto<br />
tempo você não faz isso? E por mais quanto tempo pretende<br />
continuar almoçan<strong>do</strong> um sanduíche de três andares?<br />
A vida acaba ou se renova to<strong>do</strong>s os dias. Precisamos<br />
estar atentos à quantidade de toxinas e de alimentos equivoca<strong>do</strong>s<br />
que ingerimos. Quem muda a alimentação, muda<br />
de vida. E quem muda a forma de se comportar na hora das<br />
refeições, enaltece o espírito e celebra a própria existência.<br />
81
CUMPLICIDADE<br />
PISCADELAS DE OLHO<br />
Ser cúmplice traz inicialmente um senti<strong>do</strong><br />
de alguém com quem se divide um delito, ou<br />
algo erra<strong>do</strong>. Certo? Erra<strong>do</strong>. A cumplicidade<br />
também costuma aparecer como uma participação<br />
efetiva de algum parceiro em algo<br />
específico. Trocan<strong>do</strong> em miú<strong>do</strong>s, o cúmplice<br />
pode ser o seu sócio de travessuras pela vida<br />
afora, o avalista de to<strong>do</strong>s os seus rompantes<br />
inespera<strong>do</strong>s e, melhor ainda, aquele que pisca<br />
o olho feito um anjo protetor na hora que você<br />
pede socorro publicamente.<br />
Sob aspectos mais amplos, os cúmplices nem precisam<br />
ser apenas duas pessoas. Pode-se muito bem inventar<br />
uma confraria de cumplicidades sobre um mesmo<br />
objetivo, sobre um tema aproximativo ou sobre formas<br />
semelhantes de compreender o vaivém da vida. Com um<br />
ban<strong>do</strong> de gente amiga.<br />
Um cúmplice entra em ação de mo<strong>do</strong> silencioso,<br />
porque aí reside a graça da cumplicidade. Não se deve evidenciar<br />
nunca quais são as suas bases de sustentação. O<br />
bom é deixar esse rastro de mistério, como se fosse uma<br />
83
84<br />
rede de conexões e de senhas que só nós, os cúmplices,<br />
conhecemos.<br />
Para se estabelecer essas cumplicidades será preciso,<br />
antes de qualquer ação, haver algum tipo de sintonia,<br />
algum tipo de opinião em comum, algum direcionamento.<br />
Não que da cumplicidade deva surgir necessariamente<br />
uma obra ou um fato concreto. Ser cúmplice é ter uma<br />
aliança invisível, para o que der e vier. De preferência em<br />
situações que provoquem muitas risadas depois.<br />
O bom humor deveria ser o combustível das cumplicidades.<br />
Sabe aquele amigo que o incentiva a fazer traquinagem<br />
com alguém bem chato, só para vocês se deleitarem<br />
depois, às gargalhadas, com o ocorri<strong>do</strong>? Sabe aquela amiga<br />
que passa bilhetes com deliciosas bobagens no meio de<br />
uma reunião maçante? É isso. O melhor da cumplicidade é<br />
tentar controlar o riso e viver inventan<strong>do</strong> pequenos terrorismos<br />
poéticos para testar a reação das pessoas. E quan<strong>do</strong><br />
ninguém sabe a autoria de uma ação, por mais inócua que<br />
seja, é um momento indescritível dividir a sensação de<br />
vitória com algum cúmplice.<br />
A cumplicidade corre em trilhos paralelos à amizade.<br />
Cúmplices não se cobram por nada. De vez em quan<strong>do</strong> até<br />
atualizam as conversas, mas não ficam comentan<strong>do</strong> ou<br />
estenden<strong>do</strong> demais um assunto. Cúmplice ideal é aquele<br />
rápi<strong>do</strong>, que pega as coisas no ar, que sabe ser criativo,<br />
inventivo, brincalhão e manter a cara mais séria <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.
Isso porque um cúmplice se torna co-autor da ação<br />
cometida por você. Dá para entender? A cumplicidade gera<br />
elos de aproximação, de quase dependência e de uma<br />
intensa parceria moral. Um sinal com a mão, um telefonema<br />
rápi<strong>do</strong>, uma palavra ao ouvi<strong>do</strong>, duas piscadelas de olho<br />
e o roteiro está pronto. Com bons cúmplices ao la<strong>do</strong>,<br />
suportamos qualquer baque na vida: eles sabem levantar<br />
nosso ânimo, sabem arrasar com o caráter <strong>do</strong>s que nos fizeram<br />
ficar mal, sabem como injetar ânimo em nossas<br />
reações. Um cúmplice é um amigo com a elegância de um<br />
mor<strong>do</strong>mo, a sabe<strong>do</strong>ria de um feiticeiro, a rapidez de um<br />
matemático, a sensatez de um diplomata e a disposição<br />
anárquica de um comediante. Tu<strong>do</strong> em segre<strong>do</strong>. Não é o<br />
máximo? Procure já formar um time de cúmplices <strong>do</strong> bem.<br />
85
86<br />
HORA DO BANHO<br />
PRO DIA NASCER FELIZ<br />
Habitar grandes cidades significa pouco<br />
ou quase nenhum tempo priva<strong>do</strong>, tempo para<br />
se ficar a sós, tempo para colocar a cabeça em<br />
ordem. Não vale dizer que existem por aí dezenas<br />
de academias de ioga ou centros de meditação,<br />
porque mesmo em situações assim estaremos<br />
próximos a outras pessoas na idêntica busca<br />
por isolamento, relaxamento, elevação e autoconhecimento.<br />
Descubro, portanto, que o último<br />
reduto a me permitir estar completamente isolada<br />
é o banheiro.<br />
Intuitivamente, com o passar <strong>do</strong> tempo, transformei o<br />
meu banheiro em uma sala de banhos, com tu<strong>do</strong> a que<br />
teria direito para sair renovada. Pena lembrar que a maioria<br />
das pessoas considera que o banheiro apenas uma parte<br />
na planta da casa reservada à higiene <strong>do</strong> corpo, nunca à<br />
higiene mental. Muitos também tratam o banheiro de<br />
mo<strong>do</strong> relaxa<strong>do</strong>, sem charme, sem elegância, por achar que<br />
não é uma área nobre. Sempre penso que o banheiro<br />
reflete a elegância da casa, a hospitalidade <strong>do</strong>s <strong>do</strong>nos, a<br />
personalidade <strong>do</strong>s que habitam um endereço.
Bom, mas como transformar de forma adequada esse<br />
local? Primeiro, o banheiro precisa ter algumas referências<br />
pessoais agradáveis, como uma planta bem-cuidada, uma<br />
gravura que traga boas lembranças, toalhas nas cores que<br />
se gosta e cheiros suaves. Nem é preciso gastar muito para<br />
se obter resulta<strong>do</strong>s de efeito, simples e gostosos de ver.<br />
Um quadro, uma toalha felpuda, um vaso de flores, uma<br />
luz indireta, espelho poli<strong>do</strong>, sabonete cheiroso e pronto.<br />
Mas o melhor <strong>do</strong> banheiro está em saber aproveitar o<br />
momento de se banhar na água que jorra <strong>do</strong> chuveiro.<br />
Tenho tendência a me prolongar ali um tanto além <strong>do</strong> que<br />
devia, embora procure me corrigir para evitar desperdício<br />
de água – esse bem tão precioso para o planeta. Então<br />
aproveito cada segun<strong>do</strong> em que ocorre o contato desse<br />
líqui<strong>do</strong> renova<strong>do</strong>r com a pele, com os cabelos, com a alma.<br />
A água é um elemento quase misterioso, por sua fluidez,<br />
por sua rapidez, por suas capacidades adstringentes, por<br />
sua mobilidade física de líqui<strong>do</strong>. A água é algo sagra<strong>do</strong>.<br />
E desse contato da água com o meu corpo saem as<br />
impurezas adquiridas durante o dia, saem as idéias pesadas,<br />
saem as sensações de desânimo, saem as amarguras<br />
<strong>do</strong> espírito. Um banho é capaz de trazer novo ânimo,<br />
ressaltar intenções, animar o cérebro, restaurar a umidade<br />
da pele, recarregar as baterias <strong>do</strong> otimismo necessário para<br />
enfrentar outras jornadas e, acima de tu<strong>do</strong>, colocar a<br />
cabeça em ordem.<br />
87
88<br />
Banhar-se às vezes é como chorar, deixar fluir aquilo<br />
que precisa sair, aquilo que impede o fluxo energético,<br />
aquilo que trava a garganta. Banhar-se é saber se renovar,<br />
se gostar, se admirar, se cuidar. Um bom banho tem ação<br />
terapêutica, arruma a desordem <strong>do</strong>s neurônios e traz luz<br />
sobre fatos aparentemente obscureci<strong>do</strong>s pelo cansaço.<br />
Meu banho, minha terapia de cada dia. Meus banhos,<br />
meus momentos de isolamento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Meus<br />
banhos, minha limpeza de alma, de aura, de ânimo. E viva<br />
a água, essa seiva que traz vida à natureza, que movimenta<br />
os ciclos ecológicos e que sempre significará fertilidade.
VIDA DOCE<br />
ALÔ, DOÇURAS<br />
Gostosuras, travessuras, <strong>do</strong>çuras e delícias.<br />
Fiz, há pouco, um livro inteiramente volta<strong>do</strong> a<br />
um <strong>do</strong>s temas mais preocupantes para quem<br />
deseja se manter em forma: os <strong>do</strong>ces. Parece,<br />
inicialmente, um tema tolo, mas não é. E nem<br />
está liga<strong>do</strong> apenas às questões de silhueta. Vou<br />
explicar o porquê.<br />
O açúcar, no grande painel da história da humanidade,<br />
é um elemento recente: entrou em cena por volta <strong>do</strong><br />
século 16, a partir <strong>do</strong>s grandes descobrimentos e <strong>do</strong> crescimento<br />
das legendárias rotas de comércio marítimo. A sua<br />
forma refinada, que agora <strong>do</strong>mina o consumo mundial, é<br />
um processo bastante recente, advin<strong>do</strong> <strong>do</strong> século 20.<br />
Entretanto, os confeiteiros já desenvolviam técnicas<br />
apuradas <strong>do</strong> uso <strong>do</strong> açúcar, desde os grandes banquetes<br />
das cortes francesas. Naquele perío<strong>do</strong> ninguém nem<br />
sequer sonhava com taxas de colesterol, glicídios ou excesso<br />
de glicose. O que valia era se empanturrar, viver<br />
espremi<strong>do</strong> entre espartilhos torturantes, administrar os<br />
constantes problemas de saúde e morrer. Sem levar em<br />
conta os malefícios bucais que o consumo <strong>do</strong> açúcar pro-<br />
89
90<br />
duzia nos perío<strong>do</strong>s em que a escova de dentes era uma<br />
ficção científica. As pessoas ficavam sem dentes aos 30<br />
anos. E depois ainda queremos glamourizar os personagens<br />
que freqüentavam o Palácio de Versalhes.<br />
Mas a humanidade sempre esteve voltada aos<br />
sabores que a<strong>do</strong>cicassem o paladar. Nos tempos antigos,<br />
os escritos consagram os prazeres <strong>do</strong> mel e <strong>do</strong> néctar das<br />
frutas. Poetas, profetas e prega<strong>do</strong>res sempre relacionavam<br />
o sabor a<strong>do</strong>cica<strong>do</strong> às visões <strong>do</strong> paraíso. No céu, os fiéis<br />
teriam, entre outras recompensas, muito mel a jorrar das<br />
fontes, muitas frutas <strong>do</strong>ces colhidas à mão. A vida deveria<br />
ser tão dura – e tu<strong>do</strong> tão precário – que só o sabor <strong>do</strong>ce na<br />
boca poderia proporcionar algum descanso, algum prazer<br />
degustativo.<br />
As <strong>do</strong>çuras continuariam a acompanhar a humanidade<br />
desde sempre. Basta reparar nos contos tradicionais<br />
europeus, indianos e chineses. Neles, sempre ocorrem<br />
histórias com citações de tesouros com jarras de mel, de palácios<br />
cerca<strong>do</strong>s por pomares de frutas <strong>do</strong>ces ou até de casas<br />
feitas de gulodices, como na história de João e Maria.<br />
A literatura infantil, aliás, parece construir um mun<strong>do</strong><br />
sobre o sabor que mais encanta a criançada: o <strong>do</strong>ce. Quase<br />
tu<strong>do</strong> traz aspectos de <strong>do</strong>ces elabora<strong>do</strong>s, mágicos, mirabolantes<br />
e tenta<strong>do</strong>res. Bruxas oferecem bolos sedutores,<br />
fadas mostram onde na floresta se encontram tortas de<br />
maçã, animais falantes constroem abrigos repletos de
<strong>do</strong>ces e até a Branca de Neve cai no truque de uma fruta<br />
<strong>do</strong>ce, a maçã envenenada.<br />
Atualmente, o açúcar refina<strong>do</strong> tornou-se um <strong>do</strong>s<br />
grandes vilões da saúde mundial. O seu uso indiscrimina<strong>do</strong><br />
acarreta centenas de problemas, ciclos de obesidade,<br />
blablablá (Nem vou entrar no assunto, porque este livro<br />
não é sobre produtos light). Apenas tive a idéia de associar<br />
o sabor <strong>do</strong>ce à noção <strong>do</strong> prazer. O sabor <strong>do</strong>ce, além de<br />
provocar energia, saciar ansiedades e agradar as papilas da<br />
língua, é algo que permanece no inconsciente coletivo da<br />
humanidade. Tu<strong>do</strong> nos leva a crer que o bom será sempre<br />
uma placa com os dizeres “Lar, <strong>do</strong>ce lar” e nunca “Lar,<br />
aze<strong>do</strong> lar”. Por isso, viva o bico <strong>do</strong> beija-flor e cuida<strong>do</strong> com<br />
a cintura!<br />
91
Inocentes, as conversas começam, /<br />
depois envolvem os senti<strong>do</strong>s, /<br />
Meio a contragosto. / Depois não há<br />
mais escolha, depois não há mais<br />
senti<strong>do</strong>; / Até que some a diferença<br />
entre senti<strong>do</strong> e nome.<br />
(Elizabeth Bishop, em Conversação)
ENCONTROS SUPERFICIAIS<br />
OLÁ, MUITO PRAZER!<br />
Viver e trabalhar entre grandes cidades me<br />
obriga, há tempos, a manter seqüências contínuas<br />
de encontros rápi<strong>do</strong>s, apertos de mão,<br />
compromissos sociais e diálogos que às vezes<br />
nem ultrapassam duas frases. É impressionante,<br />
de qualquer forma, como situações<br />
assim podem ser produtivas, marcantes e<br />
decisivas na minha vida. Apren<strong>do</strong> a extrair o<br />
máximo <strong>do</strong> mínimo, sem me deixar levar por<br />
impressões imediatistas – que sempre conduzem<br />
idéias preconcebidas.<br />
Encontros rápi<strong>do</strong>s costumam ser considera<strong>do</strong>s “encontros<br />
superficiais”. Não deixam de ser, na acepção correta<br />
<strong>do</strong> termo. Mas acredito que na superfície das coisas,<br />
ações e pessoas se encontram películas bem acabadas,<br />
interessantes e que me fazem observar com agudeza os<br />
matizes <strong>do</strong> comportamento humano. Ninguém se parece<br />
inteiramente com outra pessoa, por mais que as aparências<br />
nos levem a pensar assim. Pequenas atitudes são<br />
capazes de transformar uma conversa de <strong>do</strong>is, três minutos<br />
em algo que permaneça por tempos na minha<br />
93
94<br />
memória. Ou um encontro que seria passageiro em momento<br />
histórico na vida de alguém. Por que não?<br />
Isso depende da abordagem, da forma com que<br />
alguém se aproxima, <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de tocar, de sorrir, <strong>do</strong>s lampejos<br />
de inteligência e, sobretu<strong>do</strong>, da naturalidade de<br />
agir, ser e estar. Nunca deveríamos evitar a aproximação<br />
de outras pessoas – a não ser quan<strong>do</strong> o infalível radar da<br />
intuição avisa que existe simulação naqueles contatos.<br />
Mesmo assim, aprendi a sair dessas situações sem parecer<br />
desagradável. Sugiro que cada um desenvolva as suas<br />
próprias técnicas.<br />
No roteiro <strong>do</strong>s incontáveis encontros em reuniões,<br />
coquetéis, eventos, espetáculos ou meetings profissionais,<br />
ocasionalmente ocorre de conhecermos alguém bastante<br />
interessante, atraente e bem resolvi<strong>do</strong>. Em geral, a primeira<br />
reação é evitar que cresça a animação daquela descoberta,<br />
porque os mandamentos sociais impedem<br />
precipitações nos encontros. E o que acontece? Corta-se<br />
qualquer possibilidade de desenvolver ligações um tanto<br />
mais próximas, apenas por ser alguém que se conheceu<br />
minutos atrás. Convencionou-se que agir assim seria<br />
imprudente, deselegante, etc.<br />
Discor<strong>do</strong> inteiramente. Apesar de não fazer dessa<br />
posição uma prática comum, devemos, sim, demonstrar<br />
curiosidade por quem nos desperte interesse. Afinal, estamos<br />
no século 21, uma era em que vale mais ter valores
essenciais de caráter <strong>do</strong> que permanecer preso à rigidez<br />
das normas sociais. Encontros prazerosos costumam deixar<br />
um resulta<strong>do</strong> de histórias maravilhosas em nossas vidas. É<br />
só questão de saber escolher, de mirar olho no olho, de<br />
apresentar segurança de atitude. Quan<strong>do</strong> os caminhos se<br />
cruzam, acontece uma superposição de idéias, sentimentos,<br />
gostos, afinidades. Tu<strong>do</strong> pode ser váli<strong>do</strong>, desde que<br />
ninguém decida impor regras imediatas nos encontros que<br />
começam de mo<strong>do</strong> passageiro.<br />
Vale lembrar que às vezes a gente se desgasta com<br />
pessoas que estão de passagem. Mas em outras ocasiões<br />
perdemos a oportunidade de transformar um encontro<br />
superficial em um grande e único encontro.<br />
95
ESPELHOS<br />
QUAL É A IMAGEM REAL?<br />
Desde criança ficava intrigada com os<br />
espelhos. Como e por que refletem imagens? O<br />
que há <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong>? Gostava de imaginar que<br />
havia um mun<strong>do</strong> inverti<strong>do</strong> dentro <strong>do</strong>s espelhos,<br />
habita<strong>do</strong> por pessoas que andavam ao contrário<br />
e que nos viam lá de dentro. Não deixa de<br />
ser intrigante ver imagens refletidas. O espelho<br />
tem um poder misterioso.<br />
Narciso, talvez por não ter sequer um espelho na penteadeira,<br />
apaixonou-se por sua própria imagem refletida<br />
na água de um pequeno lago. Ou teria si<strong>do</strong> naquilo que<br />
hoje chamamos de “espelho-d’água”? Nos primórdios históricos<br />
da Grécia e <strong>do</strong> Egito, os mais abasta<strong>do</strong>s usavam<br />
superfícies de metal polidas para que pudessem mirar os<br />
seus rostos. Essas peças eram de extremo valor e eram<br />
enterradas junto com seus proprietários. Com a evolução<br />
<strong>do</strong> tempo, o espelho continuou a ter status de riqueza.<br />
Basta lembrar <strong>do</strong>s palácios barrocos e <strong>do</strong>s salões <strong>do</strong> perío<strong>do</strong><br />
clássico europeu. Depois seriam incorpora<strong>do</strong>s até em<br />
lendas e folclores. Espelho, espelho meu: existe alguém<br />
mais curiosa <strong>do</strong> que eu?<br />
97
98<br />
E o me<strong>do</strong> que os espelhos provocavam (ou ainda<br />
provocam em muita gente)? Alguns não gostam de olhar<br />
para o espelho à noite, outros cobrem espelhos em casas<br />
de pessoas que morreram, muitos têm pavor de quebrar<br />
um espelho e os índios continuam perplexos perante a<br />
contemplação <strong>do</strong>s espelhos.<br />
Às vezes me divirto sozinha imaginan<strong>do</strong> o que seria<br />
de algumas amigas sem um espelho por perto. Acho que<br />
morreriam de crise de abstinência caso fossem deixadas<br />
três dias sem um espelho. Conheço mulheres que também<br />
não sobreviveriam sem um estojo de maquiagem com<br />
espelho. E a turma <strong>do</strong>s vai<strong>do</strong>sos que quer se contemplar a<br />
to<strong>do</strong> instante, nem que seja para corrigir uma <strong>do</strong>bra da<br />
blusa? E aqueles que colecionam espelhos pela casa? E os<br />
voyeurs que colocam espelhos no teto <strong>do</strong> quarto? E os que<br />
a<strong>do</strong>ram banheiros espelha<strong>do</strong>s?<br />
A sociedade moderna está profundamente ligada ao<br />
espelho. Em uma época de extrema vaidade, fica impensável<br />
imaginar as pessoas sem o cumprimento <strong>do</strong> ritual <strong>do</strong><br />
retoque, da vigilância constante, da cumplicidade com a<br />
imagem refletida. Parece até que precisamos estar bem<br />
para não brigar com o espelho. O espelho é a entidade que<br />
pauta a nossa vida estética. Ou não? Quem discordar que<br />
atire a primeira pedra. No espelho.<br />
Porém, gosto ainda de pensar sobre as seguintes questões<br />
em torno <strong>do</strong> reflexo: a imagem nos espelhos côncavos
e convexos, as imagens distorcidas nos espelhos <strong>do</strong>s parques<br />
de diversões e as imagens que temos de nós mesmos em<br />
nossos espelhos <strong>do</strong>mésticos. Qual seria a imagem real?<br />
E se a projeção da imagem não passasse de um sonho<br />
dentro de outro sonho? Por que ficamos tão atentos ao<br />
espelho? Por que o reflexo daquele rosto é tão importante?<br />
Por ser revela<strong>do</strong>r <strong>do</strong> grau de conservação <strong>do</strong> corpo<br />
ou por mostrar que somos uma coisa viva, com movimentos,<br />
com olhos, com boca, com me<strong>do</strong>s, com lógicas, com<br />
cabelos, com superfícies físicas estranhas. Por que quan<strong>do</strong><br />
estamos mal evitamos o espelho? Por que quan<strong>do</strong> estamos<br />
bem corremos ao espelho? Está perceben<strong>do</strong> como o espelho<br />
é uma entidade a nos perseguir? Experimente ficar um<br />
dia sem se olhar em qualquer superfície que reflita imagens.<br />
Difícil, não? Está aí um <strong>do</strong>s mistérios da vida contemporânea:<br />
a over<strong>do</strong>se <strong>do</strong> espelho.<br />
99
INVERDADES<br />
NUNCA FUI SANTA<br />
Existem situações que ocultamos pelo resto<br />
da vida, até que, sem motivos aparentes, decidimos<br />
contá-las. Aproveito agora para revelar<br />
uma série de acontecimentos pouco conheci<strong>do</strong>s<br />
da minha vida.<br />
Ninguém imagina que, ainda menina, a<strong>do</strong>rava escrever<br />
cem vezes em um caderno o nome <strong>do</strong> cantor<br />
Roberto Carlos. Diariamente fiz isso, até que minha mãe<br />
descobriu e queimou o meu caderno de fã. Na mesma<br />
época, sempre que me levavam à missa, eu dava um jeito<br />
de furtar um missal da igreja. Colecionei dezenas.<br />
Na a<strong>do</strong>lescência, comecei a fumar cachimbo, escondida<br />
de meus pais. Subia em uma grande árvore<br />
que havia no fun<strong>do</strong> de nossa casa e ficava lá em cima,<br />
pitan<strong>do</strong> por horas a fio. Depois enjoei dessa mania e<br />
passei a comprar perucas de to<strong>do</strong>s os tipos: platinum<br />
blonde, afro, oriental look, Chanel, camponesa, melindrosa<br />
e psicodélica. Convidava algumas amigas, colocávamos<br />
as perucas mais absurdas e saíamos para<br />
caminhar pelo Parque <strong>do</strong> Ibirapuera. As pessoas não<br />
acreditavam.<br />
101
102<br />
Quan<strong>do</strong> comecei a namorar, decidi que me especializaria<br />
em atiçar os namora<strong>do</strong>s alheios. Assim cumpri a<br />
decisão: cada um ao seu tempo, namorei com mais de<br />
dez rapazes e arranjei dez inimigas ferrenhas. Depois,<br />
senti que havia chega<strong>do</strong> a hora de partir para uma longa<br />
viagem. Era o auge <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> hippie. Embarquei para a<br />
Europa, deixan<strong>do</strong> meus pais em desespero. Morei um ano<br />
em Amsterdã, em uma comunidade que estudava os<br />
ensinamentos de Hare Krishna. Viajamos até a Índia e o<br />
Nepal, em trajeto que durou oito meses. Fomos deti<strong>do</strong>s<br />
algumas vezes, por porte de substâncias alucinógenas ou<br />
por falta de vistos nos países que a nossa caravana maluca<br />
atravessava.<br />
Como sempre dei voltas na vida, retornei ao Brasil<br />
disposta a buscar a paz que tanto procurava. Para outro<br />
desgosto de meus pais, falei que desejava ir para um convento<br />
e fazer voto de clausura. Fui levada, em uma manhã<br />
fria de junho, ao convento da Ordem das Irmãs Dominicanas,<br />
em Ubá, Minas Gerais. Lembro-me da despedida:<br />
meus pais em prantos e eu sen<strong>do</strong> levada para uma área<br />
restrita às internas. Permaneci no convento por <strong>do</strong>is anos<br />
e meio, com voto de silêncio. Minha rotina era acordar às<br />
4h30, rezar no quarto até as 6h30, ajudar na preparação<br />
<strong>do</strong> café, limpar e varrer os corre<strong>do</strong>res, rezar o restante da<br />
manhã, etc. Em 1977, decidi que gostaria de voltar ao<br />
convívio da sociedade. Comuniquei o fato à madre supe-
iora, que, a princípio, demonstrou certa irritação. Telefonei<br />
a meus pais, que vieram me buscar, mais uma vez<br />
muito comovi<strong>do</strong>s.<br />
Quatro dias depois de minha chegada em São Paulo,<br />
promovi uma festa à fantasia no night club Papagaio,<br />
então a casa mais fervilhante de São Paulo. A festa foi um<br />
escândalo, com centenas de amigos, muito champanhe,<br />
namoros e cenas engraçadas. De lá, partimos em grupos<br />
para o Guarujá, onde continuamos no clima da festa. Foi<br />
na casa de uma amiga, no Guarujá, que conheci, naquela<br />
esticada, o rapaz que viria a ser o meu primeiro mari<strong>do</strong>.<br />
Seis meses depois, estávamos casa<strong>do</strong>s.<br />
Que tal esse insight inédito da minha vida? Ninguém<br />
soube disso até agora.<br />
OK, tu<strong>do</strong> o que está escrito acima é mentira. Mas se<br />
eu sustentasse as informações, poderia deixar de ser invenção.<br />
Fiz isso apenas para mostrar como a manipulação<br />
da informação pode ser algo perigoso. Quantas pessoas<br />
que você conhece mentem por compulsão? Eu conheço<br />
um monte. Mentir, infelizmente, passou a ser um jogo<br />
social da vida moderna. Que pena. Seria melhor que to<strong>do</strong>s<br />
tentassem mudar as suas realidades de mo<strong>do</strong> inventivo e<br />
delirante. Sem precisar forjar filmes, sem precisar dar combustão<br />
à mentira. Que, é bom que se diga, nem sempre<br />
tem pernas curtas.<br />
103
A VERDADE<br />
SEM ALÍVIO<br />
Somos ensina<strong>do</strong>s que dizer, saber e praticar<br />
a verdade é o ato mais importante da vida.<br />
Somos leva<strong>do</strong>s a acreditar que a verdade, sob<br />
to<strong>do</strong>s aspectos, conduz a situações melhor resolvidas,<br />
onde o que estava nebuloso se torna<br />
visível. Somos força<strong>do</strong>s a dizer a verdade em<br />
situações compromete<strong>do</strong>ras, delicadas e que<br />
podem transformar completamente o rumo da<br />
história de cada pessoa. To<strong>do</strong>s concordamos<br />
que a verdade esteja acima de tu<strong>do</strong>. Pois eu não<br />
concor<strong>do</strong>. Quer saber por quê?<br />
Na tragédia grega Édipo Rei existe uma frase que<br />
continua marcante para mim: “É sempre terrível a verdade<br />
quan<strong>do</strong> ela não traz alívio”. Certíssimo estava Sófocles, o<br />
autor desse clássico. A verdade, quan<strong>do</strong> é exigida, pode<br />
trazer uma seqüência de fatos desastrosos e impensáveis,<br />
capazes de aniquilar alguém para sempre. Jamais defendi<br />
que se ocultem fatos profissionais importantes, nem que<br />
as pessoas apostem na duplicidade de suas intenções. Não<br />
defen<strong>do</strong> os mitômanos, os mentirosos ou os dissimula<strong>do</strong>s.<br />
Ao contrário, a<strong>do</strong>ro lidar com posições claras, luminosas e<br />
105
106<br />
sinceras. Mas, em situações de relacionamentos pessoais e<br />
na amizade, quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> corre aparentemente bem, para<br />
que tentar arrancar depoimentos força<strong>do</strong>s, em busca de<br />
supostas verdades?<br />
Ninguém quer passar por tolo. Nem eu. Entretanto,<br />
convenhamos um detalhe importante: vale mesmo saber<br />
tu<strong>do</strong> de alguém, se esse alguém é muito importante na sua<br />
vida? Vale querer descobrir se o seu namora<strong>do</strong> piscou o<br />
olho para alguém na festa, ou se o seu amor trocou uns<br />
beijos com uma desconhecida na última viagem à Europa?<br />
Você também acha necessário revelar que teve sonhos<br />
eróticos com um amigo em comum ou que sente estranha<br />
atração pelo corpo <strong>do</strong> instrutor de tênis? Meus amigos e<br />
amigas, em boca fechada não entra mosca e to<strong>do</strong>s vivem<br />
felizes para sempre.<br />
São, por isso, chatas as pessoas que vivem queren<strong>do</strong><br />
discutir o relacionamento, sempre para cavar a tal da<br />
verdade. Penso que nem as freiras na clausura <strong>do</strong>s conventos<br />
estão livres de sentir ondas de desejo, nem os<br />
nossos parceiros ou parceiras não deixam de cometer<br />
várias pequenas traições por dia. Em pensamento, vontade<br />
ou ação. E vamos agir como? Enlouquecer? Sair<br />
pelas ruas disfarçadas de Sherlock Holmes? Virar megeras<br />
in<strong>do</strong>máveis? Soltar os cachorros? Revirar lenços em<br />
busca de marcas de batom, procurar telefones estranhos<br />
nos bolsos <strong>do</strong> paletó, telefonar a to<strong>do</strong> o momento,
desconfiar de tu<strong>do</strong> e de to<strong>do</strong>s? Olha, meu conselho é:<br />
relax, baby.<br />
A verdade, se não for na barra <strong>do</strong>s tribunais, pode<br />
muito bem ser dita quan<strong>do</strong> se quer, sem forçar a barra,<br />
sem obrigações. Ou, quem sabe, omitir fatos que não fariam<br />
mal a ninguém deixa de ser uma falta. Sejamos modernos<br />
e menos arcaicos: se alguém gosta sinceramente de<br />
nós e nós gostamos sinceramente desse alguém, nada de<br />
cobranças para saber a verdade. Porque a verdadeira<br />
elegância, senhores e senhoras, está em nunca perguntar<br />
nada. Nem to<strong>do</strong>s conseguem. Mas, volto a repetir, vale<br />
saber a verdade se ela não traz alívio? De jeito algum,<br />
baby. Sejamos light em tu<strong>do</strong> e menos dramáticos.<br />
107
108<br />
VULGARIDADES<br />
UM JEITO FEIO DE ESTAR NO MUNDO<br />
Os conceitos de vulgaridade se alteram de<br />
tempos em tempos e, muitas vezes, o repugnante<br />
de antes se transforma no belo de agora.<br />
Importante não querer armazenar tabelas<br />
estéticas pela vida afora, mas ficar atento à<br />
maleabilidade das interpretações, à mudança<br />
inevitável que o tempo produz e ao ritmo incessante<br />
de renovação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> contemporâneo.<br />
O kitsch, o cafona e o brega são continuamente assimila<strong>do</strong>s<br />
na moda, nas artes plásticas ou na música, acrescentan<strong>do</strong><br />
citações que só enriquecem suas criações e produtos,<br />
além de propor convivências mais democráticas. Maneirismos,<br />
manias, cores, excessos, colecionismos, misturas, contrastes,<br />
releituras, replays, revisões: tu<strong>do</strong> pode conter gotas<br />
de vulgaridade, sem perder nada em qualidade. Que bom.<br />
Agora vamos descer a lenha? Vamos. Há vulgaridades<br />
e vulgaridades, convenhamos. Ligadas a propostas estéticas,<br />
serão sempre bem-vindas, louvadas e assimiladas com<br />
muita bossa. Mas o que dizer quan<strong>do</strong> a vulgaridade traz<br />
apenas a banalização da burrice, o uso estúpi<strong>do</strong> da sensualidade<br />
e a reprodução de comportamentos agressivos?
Temos si<strong>do</strong> forçosamente obriga<strong>do</strong>s a aceitar, pela TV,<br />
essa avalanche ininterrupta de jovens pretendentes ao posto<br />
de celebridades instantâneas. São pessoas que, para<strong>do</strong>xalmente,<br />
ficam famosas apenas porque ficaram famosas.<br />
Tu<strong>do</strong> alimenta<strong>do</strong> por exaltações à vulgaridade, pela falta<br />
de propostas profissionais interessantes e por excesso de<br />
oportunismo. Cultuam os próprios corpos de maneira<br />
meramente exibicionista e, ao divulgarem em excesso suas<br />
supostas possibilidades sensuais, se tornam os seres menos<br />
sedutores <strong>do</strong> planeta. Ocos, sem conteú<strong>do</strong>, com tempo<br />
data<strong>do</strong>, os fenômenos da vulgaridade são perigosos. Mas,<br />
sorte nossa, têm vida curta.<br />
Triste é constatar que a vulgaridade ronda o nosso<br />
calcanhar. Como se fosse um vírus sem controle, ela pode<br />
atacar a qualquer momento, a toda hora, segun<strong>do</strong> a<br />
segun<strong>do</strong>. A vulgaridade pode surgir no cabelo louro farmácia<br />
da quarentona exibida, na risada alta <strong>do</strong> homem<br />
que fuma no corre<strong>do</strong>r <strong>do</strong> hotel, no rímel borra<strong>do</strong> da recepcionista,<br />
na camiseta regata usada fora de hora, no barulho<br />
<strong>do</strong> chiclete, no uso excessivo de celulares, na comida gordurosa,<br />
no marketing religioso, nos cabelos com descui<strong>do</strong>,<br />
na exibição de poder, na ostentação de dinheiro, no cinema<br />
americano violento, no som alto <strong>do</strong> carro, nos bíceps estufa<strong>do</strong>s,<br />
no carro para<strong>do</strong> em fila dupla, no jardim particular<br />
mal cuida<strong>do</strong>, na gula, na informalidade obrigatória, na máfé,<br />
na ultrapassagem <strong>do</strong> sinal vermelho, nos decotes no<br />
109
110<br />
trabalho, nas pernas de fora dentro <strong>do</strong> ônibus, no consumismo<br />
bobo, na vizinha que dispara palavrões pela janela,<br />
no aeroporto lota<strong>do</strong>, na falta de assunto, na conversa<br />
mole, nas modelos de lábios abertos, nas festas barulhentas,<br />
no macarrão mole, na cabeça dura, no descontrole de<br />
ações, na exposição das emoções, no excesso da palavra<br />
eu, na falta de amor ao planeta. Tu<strong>do</strong> depende de limites:<br />
vulgaridade é um mo<strong>do</strong> <strong>do</strong>ente de ver a Terra, um mo<strong>do</strong><br />
vicia<strong>do</strong> de conviver com o próximo, um jeito feio de se<br />
estar no mun<strong>do</strong>, um egoísmo cheio de pontas.
DESAFIOS<br />
NA MIRA DO IMAGINÁRIO<br />
Dispor-se a um desafio é como empunhar um<br />
arco-e-flecha determinan<strong>do</strong>-se a acertar o mais<br />
próximo possível <strong>do</strong> alvo. No início, há a insegurança<br />
de conseguir firmar a flecha, de desconhecer<br />
a trajetória a ser percorrida <strong>do</strong> momento<br />
<strong>do</strong> impulso até a ponta da seta ser cravada no<br />
alvo. Quan<strong>do</strong> se consegue um arremesso bom,<br />
ótimo. Chegar ao alvo é puro êxtase.<br />
Uso essa imagem por considerar que desafios são<br />
como apostas sobre a sua própria capacidade, conjugada à<br />
potência <strong>do</strong>s instrumentos que serão utiliza<strong>do</strong>s para se<br />
alcançar o objetivo pretendi<strong>do</strong>. Olho, cálculo, músculos,<br />
braços, mãos e decisão. Lá se vai a flecha, lá se vai a decisão<br />
de fisgar o objetivo.<br />
Para mim, essa imagem é muito importante, por significar<br />
o resulta<strong>do</strong> das alterações de corpo, mente e coração<br />
a que me propus de alguns anos para cá. Decidi-me a<br />
fazer uma manobra radical, implantan<strong>do</strong> nos meus coman<strong>do</strong>s<br />
os chips invisíveis da determinação. Andava farta<br />
de ver meus planos esmorecerem e de ser considerada<br />
uma pessoa fraca, daquelas que nunca eram ouvidas para<br />
111
112<br />
decidir nada e que mantinha uma aparência que traduzia<br />
infelicidade completa. A partir daquele esta<strong>do</strong>, só me<br />
restaria fazer voto de clausura para entrar em algum convento<br />
perdi<strong>do</strong> na mais alta montanha <strong>do</strong> mais escondi<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s países. Entretanto, o alarme soou e eu disse a mim<br />
mesma: não sou o que pensam.<br />
Provei a mim, aos amigos, à família e a tu<strong>do</strong> o que me<br />
cerca que eu armazenava uma gigantesca capacidade de<br />
realizar, produzir e gerar boas idéias. Capacitei-me porque<br />
assim quis, porque me decidi a cumprir o objetivo de nunca<br />
mais ser uma pessoa passiva, desconsiderada, apática,<br />
fora de forma, em processo contínuo de falta de estima e<br />
confusa quanto ao que esperava da vida. Eu sabia que lá<br />
dentro havia um dínamo, uma potência, uma força latente<br />
de proporções desconhecidas. Sentia o rugi<strong>do</strong> da fera.<br />
A fera surgiu, eu me refiz, a vida foi inteiramente reconstruída,<br />
adquiri excelente forma física, passei a propagar<br />
minhas idéias, ganhei novos e fiéis amigos, tornei-me<br />
independente da sombra da família, gerei negócios, consegui<br />
administrar os vulcões emocionais, restaurei nova<br />
ordem nas relações pessoais, ganhei maior confiança <strong>do</strong>s<br />
filhos e, nada se compara a isso, pude encontrar a forma<br />
exata de me expressar perante o mun<strong>do</strong>.<br />
Apegar-se a desafios é, portanto, um exercício fundamental<br />
para quem deseja ir além. Contra a acomodação,<br />
contra a mesmice <strong>do</strong>s dias, contra o amortecimento
que nos impõem, só existe uma solução: decidir-se por<br />
buscar seus objetivos. De nada adianta optar por escapismos<br />
de religião, nem fugir da realidade que não se deseja<br />
ver. Antigos pensa<strong>do</strong>res orientais diziam que manter um<br />
objetivo seria praticamente meio caminho anda<strong>do</strong> para a<br />
realização da meta desejada, <strong>do</strong> sonho pretendi<strong>do</strong>, da<br />
mudança almejada.<br />
Nunca defen<strong>do</strong> positivismos ou esoterismos de butique:<br />
apenas quero esclarecer, a quem quiser prestar<br />
atenção em mim, que nada pode ser tão importante<br />
quanto se pautar por objetivos. Alcançar um objetivo,<br />
por menor que seja, já é o suficiente para trazer um<br />
enorme bem ao coração.<br />
113
VAMPIROS<br />
BAIXA VOLTAGEM<br />
Talvez não exista na face da Terra alguém<br />
que não seja vítima de alguma forma de vampirismo<br />
emocional. Sabe <strong>do</strong> que estou falan<strong>do</strong>?<br />
Claro que sim. São aquelas pessoas sem luz<br />
própria, geralmente complicadas e emaranhadas<br />
em problemas diversos, e que sobrevivem<br />
graças à energia alheia. Energia em vários senti<strong>do</strong>s:<br />
profissional, financeira, sexual, emocional<br />
e por aí afora.<br />
Pois bem. Então essas pessoas – coitadas delas e<br />
coita<strong>do</strong>s de nós – precisam inventar uma gambiarra de<br />
energia. Puxada diretamente de quem? De nós ou de outros,<br />
as usinas gera<strong>do</strong>ras de luz. Não que elas façam isso de<br />
mo<strong>do</strong> proposital. Não que todas sejam um estorvo. Na<br />
maioria das vezes, essas pessoas mal têm consciência da<br />
carência energética a que estão submetidas, nem ao uso<br />
que fazem <strong>do</strong>s contatos humanos.<br />
O vampirismo mais corriqueiro ocorre quan<strong>do</strong> alguém<br />
sente fascínio por outra pessoa e a tal pessoa escolhida<br />
se torna a sua referência máxima de realização, de postura<br />
e de layout social. Fascínio declara<strong>do</strong>, vampirismo de<br />
115
116<br />
contraban<strong>do</strong>. Não estou inventan<strong>do</strong> coisas. Basta analisar<br />
com calma to<strong>do</strong>s os que estão ao seu re<strong>do</strong>r.<br />
E os vampiros agem na calada da noite ou na calada<br />
<strong>do</strong> dia. A sugação se processa mais ou menos assim: contam<br />
seus problemas, pedem atenção ilimitada, requerem tempo<br />
infindável, riem, choram, fazem lamúrias e parecem estar<br />
sempre à espera <strong>do</strong> apocalipse. Depois, aliviam um pouco<br />
essa dinâmica. Porém, novos ataques podem acontecer em<br />
edição extraordinária.<br />
Vampiros emocionais não são amigos. Os amigos<br />
podem chorar, espernear, contar relatos tristíssimos e pedir<br />
ajuda. Em contrapartida, existe um recarregamento mútuo<br />
de baterias. Também estamos sujeitos a furar o pneu no<br />
meio da vida e precisar de um ombro amigo. Por isso, não<br />
se confunde amizade com vampirismo. Deu para entender?<br />
Os vampiros são meio bajula<strong>do</strong>res, a<strong>do</strong>ram demonstrar<br />
simpatia, sabem tu<strong>do</strong> da sua vida e dizem conseguir<br />
realizar qualquer tarefa. De repente, pimba: falam durante<br />
meia hora sem parar, pedem sua opinião, inventam situações<br />
absurdas, dão nó em pingo d’água, torram a sua<br />
paciência, não registram nada <strong>do</strong> que você propôs e vão<br />
embora, felizes da vida por ter encontra<strong>do</strong> algum ser disposto<br />
a ouvir suas vampirices.<br />
E você? Sente-se enfraqueci<strong>do</strong>, zonzo, com a cabeça<br />
confusa. Missão cumprida: o vampiro emocional conseguiu<br />
o seu intento. Saiu to<strong>do</strong> serelepe, descarregou o seu
embrulho de confusão na sua cabeça, bebeu da sua disposição<br />
e pronto. Aí você fala que está se sentin<strong>do</strong> sem<br />
energia, não é assim?<br />
O que nos traz consolo é saber que os suga<strong>do</strong>s são<br />
completamente antagônicos aos suga<strong>do</strong>res. Os primeiros<br />
são poços intermináveis de alegria, experiência de vida,<br />
decisão, resolução, amor-próprio e um ban<strong>do</strong> de coisas<br />
legais. Bom, enquanto isso, os segun<strong>do</strong>s parecem fada<strong>do</strong>s<br />
ao amortecimento contínuo de suas vidas tão opacas, tão<br />
bobas e tão desajeitadas. São pessoas que parecem ter<br />
vin<strong>do</strong> ao mun<strong>do</strong> para não realizar nada além de depender<br />
<strong>do</strong> fluxo de criatividade <strong>do</strong> outro. Rezemos por eles.<br />
117
Dentro<br />
&<br />
Fora
120<br />
Cada vez que te vierem propor<br />
Personagens pra vida real<br />
Jogue as máscaras fora ou não<br />
Mas não se esqueça que é triste<br />
o flagrante no fim<br />
(Café, de Egberto Gismonti)
USAR O OUTRO<br />
PISTA DUPLA<br />
Há certas pessoas que a<strong>do</strong>ram usar e abusar<br />
de contatos profissionais, sociais ou sentimentais<br />
para abrir caminhos por onde passam. Não elaboram<br />
duas frases sem citar o nome de alguém, de<br />
preferência famoso. É o chama<strong>do</strong> despeja<strong>do</strong>r de<br />
nomes: basta pronunciar com segurança que é<br />
amigo de fulano, ou que está ali para checar tu<strong>do</strong><br />
a pedi<strong>do</strong> daquele ator ou empresário famoso.<br />
Façanhas que costumam ser bem-sucedidas, já<br />
que citar o nome certo no lugar certo funciona<br />
como chave-mestra em várias situações.<br />
Há pouco soube de um produtor de teatro que usou o<br />
meu nome em cidades <strong>do</strong> Sul <strong>do</strong> Brasil para tentar apresentar<br />
por lá a montagem beneficente de um grupo <strong>do</strong> qual eu<br />
participei. Ok, nem me importei tanto. É impossível evitar<br />
passagens desse tipo, principalmente quan<strong>do</strong> lidamos com<br />
pessoas de áreas distintas, em situações nunca repetidas.<br />
Se nada impede que sejamos usa<strong>do</strong>s, só nos resta<br />
tomar consciência de quem está ao re<strong>do</strong>r. Será que to<strong>do</strong>s<br />
121
122<br />
merecem confiança absoluta? Em que momentos é essencial<br />
falar menos, revelar menos? Ser usa<strong>do</strong> pode ser o resulta<strong>do</strong><br />
direto de palavras que proferimos a esmo.<br />
Os que citam com constância o nome de amigos<br />
poderosos por interesse próprio merecem até olhares de<br />
compaixão. São pessoas sem repertório próprio, sem brilho<br />
pessoal e sem carisma suficiente para circular com segurança.<br />
O problema é que os despeja<strong>do</strong>res de nomes jamais admitem<br />
que acionaram da agenda um punha<strong>do</strong> de nomes cintilantes<br />
para galgar escalas sociais. Seria como assumir que são<br />
ino<strong>do</strong>ros, incolores e insípi<strong>do</strong>s. Gente de luz própria não precisa<br />
de recursos desse tipo, nem pontuam a conversa com<br />
artimanhas que não lhes pertencem.<br />
Vale citar uma curiosidade. Existiu no século XIX uma<br />
escola de pensamento que propunha o utilitarismo como<br />
<strong>do</strong>utrina para conseguir prazer individual. Se to<strong>do</strong>s aderissem<br />
à prática, haveria um equilíbrio entre os interesses diversos e<br />
a felicidade seria possível para um número maior de pessoas.<br />
Hoje ninguém se atreve a defender coisas desse tipo…<br />
Em determinadas ocasiões, porém, nossos amigos íntimos<br />
podem usar <strong>do</strong> conhecimento que têm sobre nós para nos<br />
defender em público. Nesse caso, trata-se de usar o conhecimento<br />
de outra pessoa de forma altruísta, zelan<strong>do</strong> pela imagem<br />
<strong>do</strong> amigo por desfrutar de sua intimidade. Um bom exemplo de<br />
que, às vezes, há fatos positivos para quem permite ser usa<strong>do</strong>.<br />
Desde pequenos, usamos em benefício próprio a pro-
teção biológica <strong>do</strong>s pais. Eles, por sua vez, usam os filhos<br />
para dar continuidade a suas vidas, planos e histórias. Entre<br />
amigos, ocorrem trocas constantes de idéias, confissões,<br />
preferências e parcerias. Até na relação com os animais<br />
<strong>do</strong>mésticos há o uso explícito: o cão traz alegria, calma e faz<br />
companhia, enquanto damos abrigo, alimentação e carinho.<br />
Agora chego ao ponto essencial: o uso que existe num<br />
relacionamento amoroso. Há quem prefira dizer que são trocas.<br />
Mas qualquer troca exige uma situação de uso. A relação<br />
serve para proporcionar prazer, companheirismo, divisão de<br />
idéias comuns e conexões de confiança mútua. Geralmente<br />
só temos essa visão quan<strong>do</strong> avaliamos os antigos namoros<br />
ou casamentos.<br />
Sim, sempre houve e haverá algum tipo de uso. Quan<strong>do</strong><br />
somos avisa<strong>do</strong>s de que alguém usou nosso nome de mo<strong>do</strong><br />
impróprio, devemos cortar relações. Principalmente se houve<br />
intenção de conseguir vantagens imediatas ou puxar o tapete<br />
de outras pessoas. Porém, se a atitude foi inofensiva, vale lembrar<br />
<strong>do</strong> antigo slogan de um fabricante de mate: use e abuse.<br />
Basta não darmos peso excessivo aos verbos. Afinal, não são<br />
esses os ossos <strong>do</strong> ofício de quem se tornou usável?<br />
123
124<br />
CONFIDÊNCIAS<br />
FALAR É PRATA, CALAR É OURO<br />
Ah, como é bom poder contar segre<strong>do</strong>s, revelar<br />
situações íntimas, abrir o coração, mostrar<br />
fatos desconheci<strong>do</strong>s. Ah, como é bom ter alguém<br />
que nos ouve, alguém com quem se divide uma<br />
confidência, alguém que compreende cada resgate<br />
<strong>do</strong> nosso passa<strong>do</strong>. Ah, mas como pode ser<br />
perigoso fazer confidências!<br />
Sempre vai existir um momento em que passamos a<br />
sentir confiança em determinadas pessoas, a ponto de revelar<br />
assuntos íntimos ou detalhes pessoais altamente<br />
bombásticos. Bom, por mim, não considero mais nada<br />
capaz de ser bombástico. Porém, existem muitos que, tão<br />
logo recebem informações delicadas, sentem-se porta<strong>do</strong>res<br />
de algo precioso, de segre<strong>do</strong>s que passam a significar<br />
poder sobre alguém. E, em uma seqüência que varia<br />
de situação a situação, revelam exatamente aquilo que<br />
nunca poderia ter prossegui<strong>do</strong> adiante, por motivos óbvios.<br />
Hoje são poucos os que ouvem um segre<strong>do</strong> e mantêm a<br />
boca fechada. Falar muito, contar tu<strong>do</strong> e espalhar brasas<br />
alheias virou uma especialidade quase profissional.<br />
Dá a sensação de impotência e raiva descobrir que a
sua confidência caiu em bocas de Matildes, sem o menor<br />
pu<strong>do</strong>r ou acabamento final. A bem da verdade, passa a<br />
existir arrependimento antecipa<strong>do</strong> assim que acabamos de<br />
contar algo importante a alguém não merece<strong>do</strong>r de confiança.<br />
Passamos a desejar, ardentemente, que aquela<br />
pessoa esqueça o que falamos. Ou que, pelas condutas<br />
civilizadas, jamais toque outra vez no assunto.<br />
Em tempo: contar mais <strong>do</strong> que se deve acontece com<br />
freqüência quan<strong>do</strong> se ultrapassa os limites <strong>do</strong> vinho, por<br />
exemplo. Vinho é aquela bebida leve e traiçoeira que nos<br />
impulsiona, sem que se perceba, a desfiar rosários de confidências,<br />
geran<strong>do</strong> aproximações indevidas, ou crian<strong>do</strong><br />
um delivery imediato de segre<strong>do</strong>s. No vinho está o segre<strong>do</strong>.<br />
Na manhã seguinte, o alarme grita na memória: “Para<br />
que fui contar aquilo, meu Deus? Onde eu estava com a<br />
cabeça? E agora? Ai, que vexame”. Frases clássicas de um<br />
day after.<br />
O único jeito é se fingir de morto, rezan<strong>do</strong> para que a<br />
outra pessoa tenha esqueci<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>. Claro que isso nunca<br />
ocorre, mas é lin<strong>do</strong> acreditar em milagres. Quarenta e oito<br />
horas depois, que tal uma discreta sondagem de terreno?<br />
Pode-se telefonar à pessoa em questão, comentar a noite,<br />
disfarçar e comentar meio sem-graça sobre a quantidade<br />
de bobagens que foi falada por to<strong>do</strong>s. Quan<strong>do</strong> se trata de<br />
alguém elegante, você até pode ouvir esta frase conforta<strong>do</strong>ra:<br />
“Não se preocupe, tu<strong>do</strong> o que foi fala<strong>do</strong> vai ficar<br />
125
126<br />
entre nós”. Com certeza, esse é o maior bálsamo que se<br />
pode ter em vida.<br />
O problema, cain<strong>do</strong> na real, é que apenas 1% das<br />
pessoas teria um comportamento tão impecável assim.<br />
Então só resta tirar lição da tolice cometida para, em uma<br />
próxima vez, exercitar o autocontrole, estancar o fluxo de<br />
segre<strong>do</strong>s, tratar de não falar sem refletir sobre as conseqüências,<br />
e por aí afora. Tenha sempre em mente que, por<br />
meio de uma confidência, sim, de uma simples confidência,<br />
podem surgir golpes de esta<strong>do</strong>, rompimentos amorosos,<br />
perdas de cargos, maledicências em grupo, finais de<br />
amizades, atitudes preconceituosas, decepções, sustos,<br />
isolamento e, o pior, a fama de ser indiscreto. Repita<br />
muitas vezes o velho dita<strong>do</strong>: “Em boca fechada não entra<br />
mosquito”. E boa sorte.
BEM-ESTAR X SEXUALIDADE<br />
DE TUDO PARA TODOS<br />
Às vezes fico pensan<strong>do</strong> como as pessoas se<br />
entregam a impressões rasteiras sobre assuntos<br />
que, de certa forma, seriam complexos. Ou<br />
então como to<strong>do</strong>s a<strong>do</strong>ram chegar a conclusões<br />
precipitadas e tolas em vez de se abrirem a<br />
perspectivas renovadas <strong>do</strong> comportamento<br />
humano.<br />
Para localizar isso melhor, sou obrigada a me tomar<br />
como exemplo. To<strong>do</strong>s sabem que atravessei mudanças<br />
radicais de vida e que consegui demonstrar, de mo<strong>do</strong><br />
inteiramente profissional, como é possível deixar de ser<br />
uma pessoa abatida para se transformar em uma mulher<br />
que se determinou a nunca mais esmorecer e a não mais<br />
passar a imagem da deformada pela balança, sofre<strong>do</strong>ra<br />
por não ter rumos e mal-amada depois de experiências<br />
equivocadas. Tenho certeza absoluta de que essas conjunções<br />
pessoais não mais se repetirão.<br />
Claro que tantas alterações não me fizeram perder a<br />
feminilidade. Ou melhor, adquiri outra noção de feminilidade,<br />
mais amadurecida, mais experiente e muito mais<br />
decidida. Por estar antenada com as possibilidades de meu<br />
127
128<br />
tempo, compreen<strong>do</strong> que não é tão difícil atingir metas físicas,<br />
emocionais e até econômicas. Quan<strong>do</strong> se quer, nada<br />
parece longe, impossível ou inalcançável.<br />
Pois bem. Então me pego em certos dias agin<strong>do</strong><br />
como uma máquina, feito uma personagem repleta de<br />
ações a realizar, a executar, a criar, a pensar. Gosto de estar<br />
em ação e de ver resulta<strong>do</strong>s daquilo que até pouco pouco<br />
tempo atrás era apenas uma idéia. Acontecimentos assim<br />
me animam, me deixam exultante, me impulsionam a outras<br />
vontades de expansão. Gosto – e me permito – de estar de<br />
bem com a vida. Em to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s.<br />
Entretanto, muitos me vêem como uma mulher que<br />
canaliza toda essa energia e esse dinamismo para um destino<br />
único: a sexualidade. Pensam que por eu estar sempre<br />
bem disposta e com gestos amplos, por achar graça com<br />
quem está ao meu re<strong>do</strong>r e por expor minha forma de ser<br />
generosa perante o mun<strong>do</strong>, seria apenas para enaltecer a<br />
minha libi<strong>do</strong>. Ora, minha libi<strong>do</strong> vai muitíssimo bem, obrigada.<br />
Assim como também vão muito bem a minha<br />
cabeça, o meu tronco e as minhas pernas. Cui<strong>do</strong> de cada<br />
parte <strong>do</strong> corpo – e da psique – sem tentar enaltecer ou<br />
forçar ciclos ou ritmos diferencia<strong>do</strong>s.<br />
Gosto de amar aquilo que me faz contente, gosto<br />
de ser gentil com o que me possibilita troca de alegrias. Se<br />
durante muitos anos estive escondida no sótão da falta<br />
de amor-próprio, de cinco anos para cá posso propagar
que me abasteci de auto-estima suficiente para ser uma<br />
outra pessoa. Livre, rejuvenescida, libertária, aberta, desencanada<br />
e sempre disposta a inventar novas frentes de trabalho,<br />
amor e amizade. Evidentemente que no meio de todas<br />
essas possibilidades se encontra também o sexo, essa dádiva<br />
com que os deuses contemplaram os seres viventes.<br />
Mas é importante avisar aos navegantes: não confundam<br />
energia de vida com mera disposição sexual. Acho<br />
que os que pensam assim estão apenas projetan<strong>do</strong> situações<br />
complicadas das suas próprias vidas, em que deve faltar<br />
disposição, idéias e sexo. Ainda bem que não pen<strong>do</strong> para<br />
nenhum la<strong>do</strong>. Meus funcionamentos físicos, emocionais,<br />
sexuais e espirituais andam no mesmo ritmo e passam<br />
to<strong>do</strong>s muito bem. São como filhos: gosto de to<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>u<br />
atenção a to<strong>do</strong>s. Certo?<br />
129
Vejam que situação<br />
E vejam como sofre<br />
um pobre coração<br />
Pobre de quem acredita<br />
Na glória e no dinheiro<br />
Para ser feliz<br />
(Saudades da Bahia, de Dorival Caymmi)
RECONHECIMENTO<br />
ROL DA FAMA<br />
Encontro pessoas que se transformam imediatamente<br />
quan<strong>do</strong> percebem a aproximação<br />
de um fotógrafo ou de uma câmera de TV. Para<br />
esses, a imagem parece ser a forma real da<br />
vida, e não o contrário. É como se elas vivessem<br />
eternamente estrelan<strong>do</strong> um comercial de televisão,<br />
só que o produto são elas mesmas e serem<br />
aceitas pelo merca<strong>do</strong> é questão de sobrevivência.<br />
A espontaneidade cedeu lugar ao posicionamento<br />
de personagens, <strong>do</strong>s superegos e<br />
<strong>do</strong>s ventríloquos de salão.<br />
Foi-se o tempo em que bastava a frase deita-te na cama<br />
e cria fama. A compreensão da palavra fama na sociedade<br />
contemporânea obedece às obrigações da tresloucada sociedade<br />
<strong>do</strong> espetáculo. Tu<strong>do</strong> deve ser espetacular, anima<strong>do</strong>,<br />
mega, produzidíssimo, ostentativo, festivo. Ninguém convida<br />
mais para se tomar um prato de sopa, sorver um licor ou<br />
ouvir um CD. Existe a obrigação de que to<strong>do</strong>s os atos sejam<br />
expostos, abertos, visíveis e compartilha<strong>do</strong>s.<br />
Claro que reconhecimento autêntico é a melhor das<br />
recompensas para o nosso trabalho, mas é preciso criar defe-<br />
131
132<br />
sas, muitas vezes contra nós mesmos. Para quê? Para <strong>do</strong>marmos<br />
o ego que volta e meia insiste em nos convencer<br />
que só ele pode reinar em nosso castelo. Não dá para deixar<br />
relativa a vida em um único aspecto, não dá para viver<br />
mendigan<strong>do</strong> cinco milésimos de segun<strong>do</strong>s de fama, e não<br />
me corrija, nos dias de hoje basta isso para o novo ficar<br />
antigo. É como um glacê, sem consistência seu destino é a<br />
lata de lixo.<br />
E ser reconheci<strong>do</strong> implica significa<strong>do</strong>s mais bran<strong>do</strong>s,<br />
como gratidão, agradecimento, identificação, observação,<br />
aceitação. Fácil não é. Conquistar o tal reconhecimento é<br />
processo longo, pressupõe aceitar nossas limitações e falhas.<br />
Reconhecer que nem to<strong>do</strong>s os valores dita<strong>do</strong>s pela mídia são<br />
necessariamente melhores <strong>do</strong> que os seus. Saber que existem<br />
outras formas de viver com satisfação além <strong>do</strong>s flashes.<br />
Por isso costumo dizer que não an<strong>do</strong> no encalço da<br />
fama, nem atrás <strong>do</strong>s aspectos vazios da celebridade. Sou impulsionada<br />
a concretizar propostas com o meu dínamo: idealizo,<br />
busco, realizo, questiono, analiso e mostro resulta<strong>do</strong>s<br />
finais aos públicos-alvos. Conquisto outras áreas porque jamais<br />
forjei situações que trouxessem reconhecimento. Vale<br />
notar aqui que jamais colocaria o meu rosto em algo que eu<br />
mesma não acreditasse.<br />
Se agora sou reconhecida em determina<strong>do</strong>s setores,<br />
isso se deve basicamente ao fato de ter consegui<strong>do</strong> atingir<br />
metas a que me propus com seriedade nos últimos anos. Não
creio nas escaladas profissionais fáceis, nem em transformações<br />
pessoais sem dificuldades.<br />
Mudanças em série e que ainda vão continuar por bastante<br />
tempo a me levar a outros meios de expressão. Continuo<br />
inquieta e disposta a ser ajustada ao arrojo <strong>do</strong>s novos<br />
tempos. Ser reconhecida é decorrência desse trabalho. Nunca<br />
uma meta.<br />
133
134<br />
EGOS INFLADOS<br />
INFLÁVEIS E INFLAMÁVEIS<br />
A vida moderna e os rituais sociais contemporâneos<br />
nos levaram, nas duas últimas<br />
décadas, a aprender a conviver com os chama<strong>do</strong>s<br />
egos infla<strong>do</strong>s. E o que significa esse termo?<br />
Não é bem uma forma de exibicionismo. Não<br />
seria puramente ausência de altruísmo. Não se<br />
trata apenas de assuntos auto-referentes. Nem<br />
tampouco de pessoas que compreendem o<br />
mun<strong>do</strong> somente a partir das idéias próprias.<br />
Os egos infla<strong>do</strong>s são isso tu<strong>do</strong> junto, mais uma<br />
porção de intolerância, desatenção, invasão<br />
de espaço alheio, desinteresse por opiniões<br />
diferentes e algumas gramas de presunção,<br />
isso só aprendi a duras penas.<br />
Participei há pouco de uma montagem teatral beneficente<br />
que reuniu um grupo de personalidades com<br />
destaque quase permanente nos jornais, nas colunas sociais<br />
e nas revistas. Altos profissionais de áreas diversas,<br />
celebridades e instant darlings da mídia. Do processo de<br />
encontros iniciais à convivência obrigatória <strong>do</strong>s ensaios
constantes, foi possível observar reações inesperadas e<br />
humores oscilantes. Talvez eu tenha presencia<strong>do</strong> um pouco<br />
da comédia humana relatada por Balzac.<br />
Claro que revi amigos no grupo, além de ter feito<br />
novas amizades. Da equipe de produção aos técnicos, <strong>do</strong>s<br />
atores aos diretores, descobri gente com vontade de<br />
aprender e humildade de reconhecer seus desacertos.<br />
Como também alguns que vieram e saíram, deixan<strong>do</strong> rastros<br />
de estrelismos. Pessoas com dificuldades para dividir<br />
encontros coletivos ou participar de uma criação em grupo.<br />
A rápida passagem pelos palcos só me acrescentou.<br />
Vi como seria possível lidar com a representação das<br />
emoções, percebi que o esforço contínuo leva a performances<br />
bem realizadas e compreendi o valor da tolerância<br />
para se conviver em agrupamentos de pessoas diferentes.<br />
Abri-me, como nunca fizera antes, a ouvir opiniões,<br />
toques e sugestões. Observei ser inútil e pueril reagir com<br />
ataques súbitos, principalmente quan<strong>do</strong> se buscam objetivos<br />
comuns, dentro de prazos determina<strong>do</strong>s. Vi adultos que lembravam<br />
crianças espernean<strong>do</strong>, caso alguém chamasse a sua<br />
atenção ou pedisse correção no comportamento. Alguns<br />
saíam e não retornavam mais aos ensaios. Vários abrandaram<br />
explosões de ira com comentários bem-humora<strong>do</strong>s.<br />
Outros souberam derreter o iceberg <strong>do</strong> orgulho.<br />
Quanto a mim, confesso que preferi deixar claro que<br />
pouco sabia daquelas situações novas, e tu<strong>do</strong> o que acon-<br />
135
136<br />
tecesse seria gratificante. Óbvio que durante certos<br />
momentos senti ímpetos de aban<strong>do</strong>nar a guerra e retornar<br />
às minhas atividades profissionais. Não agi assim pela<br />
decisão de enfrentar um desafio desconheci<strong>do</strong>. Porque existem<br />
duas espécies de entusiasmo: o da alma e o <strong>do</strong> ofício.<br />
Não sei se voltaria novamente aos palcos. Quem sabe?<br />
Mas considero ter aprendi<strong>do</strong> experiências importantíssimas.<br />
Se como disse Caetano Veloso “de perto ninguém<br />
é normal”, em grupos de convivência constante é onde se<br />
revelam os verdadeiros personagens. Cada um com suas<br />
manias, egos em expansão, colisões de idéias e pouco controle<br />
verbal.
INTUIÇÃO<br />
SERÁ QUE FIZ BEM?<br />
Nem sei por onde começar este relato aturdi<strong>do</strong>,<br />
a fim de contar uma parcela <strong>do</strong> que me<br />
ocorreu. Vamos lá. Após dar, por meses a fio,<br />
alguns conselhos para minha melhor amiga<br />
sobre relacionamentos, resolvi fazer o que era<br />
certo, assim achava. Contar-lhe que ela estava<br />
sen<strong>do</strong> traída pelo seu mari<strong>do</strong>. Minha intuição<br />
feminina dizia que algo andava estranho, nele o<br />
comportamento oscilante, o cheiro de perfume e<br />
outras minúcias. Minha amiga, baseada nas minhas<br />
observações, resolveu colocar um detetive<br />
para sondar essa situação nebulosa. Caso existisse<br />
adultério, ela saberia logo. Contratou em<br />
seguida uma agência especializada em serviços<br />
secretos. Cinco dias depois assistiu, gelada, passada<br />
e trêmula, o sinistro resulta<strong>do</strong>. Na sala<br />
daquele escritório, fotos digitais mostravam José<br />
Roberto, seu mari<strong>do</strong>, com a amante, namorada,<br />
sei lá como chamaria a tal sirigaita.<br />
Ao sair de lá, completamente desnorteada, cheia de<br />
provas e com a listagem de endereços freqüenta<strong>do</strong>s pelos<br />
137
138<br />
<strong>do</strong>is, sentiu que a minha intuição, mais uma vez, estava certa.<br />
Seria uma lição de moral, um golpe de superioridade se<br />
o pegasse. Parou o carro, abriu um envelope e viu a direção<br />
<strong>do</strong> principal local que ele, seu mari<strong>do</strong> José Roberto, costumava<br />
ir com ela, a sirigaita-piranha-bandida. Chorou, e<br />
telefonou, ainda fungan<strong>do</strong>, para mim. Eu a incentivei a<br />
prosseguir no seu intento. A minha intuição também pedia<br />
vingança. E lá foi ela, feito uma barata tonta, em busca <strong>do</strong><br />
seu grande amor em um bar escondi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Jardins. Estacionou,<br />
desceu e caminhou desvairadamente até o local <strong>do</strong><br />
crime, ou seja, o bar. Olhou através da grande janela da<br />
fachada e viu, logo na segunda mesa, ele, José Roberto, seu<br />
mari<strong>do</strong>, seguran<strong>do</strong> as mãos dela, a monstra loira. Ele, de<br />
costas, não a viu. Ela, a sirigaita, a viu. Mas desconhecia<br />
quem ela fosse. Lágrimas grossas caíam <strong>do</strong> seu rosto.<br />
Voltou arrasada, massacrada, destroçada.<br />
Dá para imaginar como foi aquela noite? O que soube<br />
é que ela disse tu<strong>do</strong> o que sentia ter direito. Saiu de casa, fez<br />
as malas de José Roberto, quebrou um pufe e um cinzeiro,<br />
xingou, bateu os pés, chorou, mostrou as fotografias. Tu<strong>do</strong>.<br />
Estão separa<strong>do</strong>s desde aquela ocasião, com o divórcio<br />
corren<strong>do</strong> por intermédio de advoga<strong>do</strong>s. Tenho o pressentimento<br />
de que ele vai se arrepender. Mas enquanto isso, para<br />
não cair em desespero, ela consulta oráculos esotéricos que<br />
aprimoram a aura e a intuição. Usa cores indicadas para levantar<br />
o astral, mu<strong>do</strong>u o visual e sentiu que deveria pedir
demissão <strong>do</strong> seu emprego de fonoaudióloga. Isso foi outra<br />
bomba: nunca mais conseguiu colocação no merca<strong>do</strong>. Algo<br />
me diz que era preciso inventar, urgentemente, saídas alternativas<br />
para esses casos.<br />
Sentiu também intuições estranhas de que captaria<br />
algum tipo de sorte nesse perío<strong>do</strong>, pois há dito: infelicidade<br />
no amor traz sorte no jogo. Comprou montes de bilhetes<br />
lotéricos – inteiros – e passou dias e dias e dias nos<br />
bingos. Perden<strong>do</strong> cifrões. Achou que inaugurava a categoria<br />
infeliz no jogo e infeliz no amor.<br />
Durante certa madrugada, perdeu o sono e ficou na<br />
cama analisan<strong>do</strong> a confusão que se tornara a sua vida.<br />
Mas ela não é mulher de desistir fácil daquilo que se<br />
propõe conseguir: estabilidade emocional e econômica.<br />
Sentiu que poderia abrir um negócio próprio, conseguiu um<br />
namora<strong>do</strong> interessante, mu<strong>do</strong>u de casa e arrumou a vida.<br />
Aconselhada por mim, pediu um alto empréstimo no banco<br />
e apostou cada centavo nas minhas intuições.<br />
Oh vida! Oh céus! Oh dias! Hoje, aos 34 anos, é uma<br />
mulher endividada, amargurada, neurótica e assustada. Os<br />
negócios não prosperaram, brigou feio comigo, a separação<br />
continua emperrada e o tempo não pára. Puxa, mas<br />
lá no fun<strong>do</strong> tenho a percepção de que tu<strong>do</strong> ainda poderia<br />
dar certo. Bastaria que eu insistisse e não desistisse de<br />
aconselhá-la. Minhas intuições ainda vão trazer resulta<strong>do</strong>s.<br />
Pressinto isso ou pergunto isso?<br />
139
ANSIEDADE<br />
O DRAGÃO NOSSO DE CADA DIA<br />
Dias atrás me perguntaram no chat <strong>do</strong> meu<br />
site como agir para controlar a ansiedade. Na<br />
hora, confesso ter respondi<strong>do</strong> de maneira simplificada,<br />
mas depois fiquei a pensar sobre a<br />
complexidade <strong>do</strong> tema. Ansiedade é a <strong>do</strong>ença<br />
<strong>do</strong>s tempos modernos e o epicentro de incontáveis<br />
males.<br />
Tecnicamente, a ânsia seria um sentimento oco, desprovi<strong>do</strong><br />
de objetivos lógicos. Devi<strong>do</strong> a causas psicológicas<br />
inconscientes, o cérebro envia coman<strong>do</strong>s que provocam no<br />
corpo esta<strong>do</strong>s de angústia, necessidade imediata de suprir<br />
carências desconhecidas, abrandar temores, saciar algo indizível,<br />
preencher os vazios físicos, existenciais e emocionais.<br />
A velocidade <strong>do</strong> cotidiano das grandes e das médias<br />
cidades impôs ritmos tão acelera<strong>do</strong>s que os surtos de ansiedade<br />
nem sempre são percebi<strong>do</strong>s de imediato. Milhões<br />
de pessoas desconhecem porque continuam a agir<br />
de mo<strong>do</strong> ansioso, incorporan<strong>do</strong> assim hábitos que passam<br />
a destruir o corpo e a mente. Hábitos que corroem<br />
a resistência orgânica, trazem envelhecimento celular e<br />
acúmulo calórico.<br />
141
142<br />
A ansiedade pode acometer também as pessoas<br />
deprimidas, sem ser um componente psicológico liga<strong>do</strong><br />
apenas aos que apresentam comportamentos agita<strong>do</strong>s.<br />
Sob os impulsos da ânsia fala-se mais, come-se mais, bebese<br />
mais, respira-se erra<strong>do</strong>, <strong>do</strong>rme-se menos, travam-se os<br />
músculos, altera-se a circulação, envelhecem-se as células,<br />
crispam-se os gestos, turvam-se as idéias, perde-se a ponderação,<br />
agita-se a alma, morre-se ao poucos.<br />
São combustíveis da ansiedade o excesso de informação,<br />
a obrigação <strong>do</strong> consumismo, a falta de silêncio, a poluição<br />
visual, a velocidade <strong>do</strong>s deslocamentos, a degradação<br />
<strong>do</strong> meio ambiente, a alimentação inadequada, os prazos curtos,<br />
o esquecimento de hábitos simples, a demanda pelo<br />
tempo, o desamor próprio e os desequilíbrios sociais.<br />
Para se contornar o furacão da ansiedade – nem digo<br />
acabar, por parecer uma missão improvável – seria preciso<br />
buscar alterações radicais na qualidade de vida. Não quero<br />
aqui passar nenhuma fórmula mágica antiansiedade, mas<br />
o primeiro passo está em reconhecer que se é vítima desse<br />
mal invisível. Depois, procurar abrandá-lo.<br />
Parece fácil? É dificílimo. Para quem dispõe de tempo<br />
livre, recursos e intenção de mudar, o processo de enfrentar<br />
a ansiedade costuma obter resulta<strong>do</strong>s. Porém, a maioria<br />
esmaga<strong>do</strong>ra das pessoas vive rotinas duras que permitem<br />
quase nenhum controle. Aliás, este é o termo-chave: controle.<br />
Ansiedade não se cura, apenas se controla.
Igual a um dragão <strong>do</strong>s tempos modernos, a ansiedade<br />
pode atacar a qualquer momento, brotan<strong>do</strong> lá <strong>do</strong><br />
mais profun<strong>do</strong> abismo existencial de cada um. Longe de<br />
ter controle <strong>do</strong>s surtos coletivos de ansiedade, o planeta<br />
começa a produzir gerações com componentes genéticos<br />
de angústia. E para abrandar esse rombo na estrutura psicológica<br />
da humanidade, só uma pausa que nos faça<br />
repensar tu<strong>do</strong>, refazer tu<strong>do</strong>, renovar tu<strong>do</strong>.<br />
143
144<br />
LIBERDADE<br />
LIBERDADE OU INDEPENDÊNCIA?<br />
Assim caminha a humanidade: sempre em<br />
busca de liberdade. Liberdade, clamam os grupos<br />
políticos. Liberdade, bradam os jovens à<br />
sociedade. Liberdade, pedem os que se sentem<br />
oprimi<strong>do</strong>s. Liberdade, acertam os casais. Liberdade,<br />
anseiam os que não a têm. Liberdade,<br />
abre as asas sobre nós.<br />
E então somos envolvi<strong>do</strong>s nesse gigantesco clamor<br />
universal em que até fatos corriqueiros podem significar o<br />
oposto da liberdade. Então, a busca pela liberdade parece<br />
impulsionar, mover e empurrar cada um de nós, geran<strong>do</strong><br />
uma obrigação de pregar a importância de ser livre, de se<br />
amar a liberdade e de proteger os que nos liberam de algo<br />
considera<strong>do</strong> pesa<strong>do</strong>.<br />
Como não podia deixar de ser, essa característica não<br />
apenas humana (os animais também desejam ser livres <strong>do</strong><br />
jugo de seus proprietários) acabou sen<strong>do</strong> incorporada por<br />
outras formas de linguagem. Em algumas situações, virou<br />
clichê, como na publicidade. Ninguém deveria se esquecer<br />
daquela frase que dizia assim em um anúncio de jeans:<br />
“Liberdade é uma calça velha desbotada”. Nos discursos
políticos, essa palavra é mais usada <strong>do</strong> que as vírgulas. No<br />
campo das conquistas sociais, liberdade é o combustível de<br />
cada avanço. Na economia, o merca<strong>do</strong> pede para ser livre.<br />
E por aí afora.<br />
Então precisamos tomar o refrigerante que traz sabor<br />
de liberdade, precisamos correr atrás <strong>do</strong> autor que ninguém<br />
jamais viu escrever com tanta liberdade, precisamos conhecer<br />
aquele guru que anuncia uma vida espiritual plena de<br />
liberdade. Daqui a pouco teremos o chiclete com sabor Tutti<br />
liberdade, o miojo com molho Liberdade e a tintura de cabelos<br />
no tom Liberdade.<br />
Pois é. De repente, num momento qualquer <strong>do</strong> dia, a<br />
gente pára e reflete sobre isso. Para que tanta liberdade?<br />
O que fazer com tanta liberdade, ou melhor, com tanta<br />
liberdade rotulada? Penso que se busca um objetivo que<br />
virou outra banalização <strong>do</strong>s tempos modernos e uma<br />
palavra que infelizmente foi esvaziada de seu conteú<strong>do</strong><br />
real. Liberdade seria apenas ficar com alguém (mas manter<br />
a mesma postura conserva<strong>do</strong>ra de gente que não quer<br />
mudanças), liberdade seria sair da happy hour no instante<br />
em que desejar, liberdade seria escolher o show mais conveniente,<br />
liberdade seria optar pela roupa favorita? Liberdade,<br />
atitude, estilo: três palavras que parecem não dizer<br />
mais nada. E o termo liberdade prossegue na mesma<br />
direção.<br />
Prefiro dar ao termo liberdade o senti<strong>do</strong> de inde-<br />
145
146<br />
pendência. Independência seria pensar de mo<strong>do</strong> inteiramente<br />
sem amarras, independência seria agir sem culpa,<br />
sem peca<strong>do</strong>, sem peso. Independência é acreditar nas<br />
mudanças, é apostar no novo, é não seguir tendências.<br />
Independência para se conseguir ar puro, para se abrir ao<br />
romance, para se levar a vida com leveza, para dar palavra<br />
boa a quem precisa, para acreditar na amizade, para poder<br />
falar o que pensa. Independência para observar borboletas,<br />
para beijar na boca, para melhorar o planeta, para<br />
respeitar os ancestrais, para alcançar o futuro. Independência<br />
para deixar tu<strong>do</strong> fluir: pensamento, espiritualidade,<br />
sexo, energia, intuição e sentimentos. Liberdade só vale<br />
com independência.
PERFEIÇÃO<br />
A PERFEIÇÃO PODE SER IMPERFEITA<br />
Um <strong>do</strong>s meus maiores defeitos atende pelo<br />
nome de perfeição. Sei que há muito tempo<br />
deixou de ser virtude para se transformar em<br />
um processo ininterrupto de procurar ajustes,<br />
alterações e mudanças. Tu<strong>do</strong> em nome <strong>do</strong> perfeito,<br />
da exatidão, <strong>do</strong> mais adequa<strong>do</strong>, <strong>do</strong> que<br />
não tem arestas, <strong>do</strong> que não erra. Quanta<br />
chatice e quanta caretice, reconheço.<br />
Por buscar a tal da perfeição, costumo sofrer decepções<br />
ou ser obrigada a enfrentar as miragens da ilusão. Se<br />
idealizo algo, passo a acreditar na melhor formatação possível<br />
para a realização <strong>do</strong> que idealizei. Obviamente, na<br />
maioria das vezes, preciso voltar atrás e reconsiderar decisões.<br />
Sofro com isso, mas procuro me trabalhar para não<br />
perder esse empenho. Nem me tornar obsessiva.<br />
A perfeição é uma meta? É. A perfeição exige atenção<br />
triplicada, organização mental, gavetas em ordem, equipe<br />
sintonizada, propostas estruturadas, controle sobre excessos,<br />
manutenção <strong>do</strong>s fluxos de informações e de atualizações,<br />
boa intuição, disciplina e prática constante naquilo<br />
que se faz. To<strong>do</strong>s esses aspectos anteriores também podem<br />
147
148<br />
ser aplica<strong>do</strong>s a outras modalidades da vida: relacionamentos,<br />
amizades e negócios. Sempre dá certo? Não.<br />
Tentar ser perfeito ou tentar encontrar a perfeição é<br />
um sofrimento contínuo, aviso logo. Na verdade, tenho a<br />
fórmula na mão. Mas como se eu fosse um cientista que<br />
conhece bem a teoria, os experimentos tendem a não produzir<br />
os resulta<strong>do</strong>s espera<strong>do</strong>s. Já me acostumei ao esta<strong>do</strong><br />
de chabu. Nem ligo mais quan<strong>do</strong> uma idéia, que tinha<br />
tu<strong>do</strong> para dar certo, é descartada por ser inviável. Nem ligo<br />
mais quan<strong>do</strong> o que me parecia perfeito se revela o mais<br />
imperfeito <strong>do</strong> universo. Faz parte <strong>do</strong> show.<br />
Perfeição seria poder falar o mínimo e obter o máximo.<br />
Perfeição mesmo seria nunca pedir duas vezes a mesma<br />
coisa, conviver com pessoas de iniciativa, ter amigos<br />
com o mesmo tom de humor, não guardar rancor, ter sempre<br />
uma saída para as soluções complicadas, acreditar que<br />
a crise passa, receber a ligação esperada na hora marcada,<br />
encontrar vaga em qualquer vôo, ter um amor que nunca<br />
nos aborreça com bobagens e conseguir parceria <strong>do</strong>s filhos.<br />
Perfeição é um final de semana sem acrescentar nenhum<br />
grama a mais ao peso, é conseguir o vinho na temperatura<br />
ideal, receber a visita inesperada daquele amor<br />
que não sai da cabeça, ouvir elogio por um trabalho bemfeito,<br />
ver que as plantas foram bem cuidadas durante a sua<br />
ausência, receber pagamentos em dia, reservar <strong>do</strong>ses de<br />
alegria para o próximo dia.
A perfeição se esconde nos detalhes. Pode estar na<br />
<strong>do</strong>bra <strong>do</strong> guardanapo, na luz bonita que entra pela janela,<br />
no sino que toca ao longe, no cheiro de mato molha<strong>do</strong>, no<br />
beijo que sela um grande amor, na boa notícia que chega<br />
pelo e-mail, no aroma de tangerina no café da manhã, na<br />
canção romântica que toca no bar, no sol que aquece a<br />
areia, no som da cachoeira, na turbina <strong>do</strong> avião que me<br />
leva de férias, no abraço de quem me recebe de volta, no<br />
reencontro da rotina, na cumplicidade <strong>do</strong> amigo, nos cabelos<br />
brancos <strong>do</strong>s pais, na paz que nos invade sem motivo.<br />
A perfeição se oculta. Quan<strong>do</strong> ela quer, aparece.<br />
Quan<strong>do</strong> não, corremos atrás. Isso não é perfeito?<br />
149
DIPLOMACIA<br />
GEOGRAFIA HUMANA<br />
Desde sempre ouço as pessoas dizerem:<br />
“Fulano usa muita diplomacia”. Depois, fui informada<br />
por amigos de que eu seria uma pessoa<br />
extremamente diplomática. Então comecei<br />
a perceber que este era um traço herda<strong>do</strong> de<br />
meu pai, ele, sim, um diplomata nato. Agora<br />
que chegamos ao final <strong>do</strong> parágrafo, vale questionar:<br />
o que é diplomacia?<br />
No entendimento mais correto <strong>do</strong> termo, seria a ciência<br />
de negociar as relações exteriores de um país com outro.<br />
Mas o uso corriqueiro dessa palavra ganhou outras interpretações<br />
e também pode ser compreendi<strong>do</strong> como uma espécie<br />
de arte das negociações, ou certa astúcia em analisar<br />
tu<strong>do</strong> o que está ao nosso re<strong>do</strong>r, sem emitir opiniões imediatas<br />
ou sem deixar de tratar bem qualquer pessoa.<br />
Jamais me imaginei viran<strong>do</strong> o rosto para alguém, por<br />
mais que esse suposto personagem fosse extremamente<br />
nocivo. Prefiro dispensar tratamentos cordiais, por uma<br />
simples questão de atitude. Posso e tenho minhas opiniões<br />
contrárias sobre pessoas diversas, mas só quem sabe disso<br />
são meus amigos mais próximos.<br />
151
152<br />
Ser diplomata na vida tem me ajuda<strong>do</strong> a circular por<br />
situações completamente opostas, sem deixar um rastro<br />
de mal-entendimentos. Chego, olho, analiso, avalio, cumprimento,<br />
converso, registro. De certa forma, é um comportamento<br />
político. Seria capaz de apertar a mão de pessoas<br />
com as quais aparentemente não tenho nada a ver,<br />
apenas por uma questão de educação, trato civiliza<strong>do</strong> e…<br />
diplomacia.<br />
Agir assim, de mo<strong>do</strong> diplomático, tem suas compensações<br />
sociais e pessoais. Socialmente me alivia, porque não<br />
sou obrigada a demonstrar posições arredias a ninguém,<br />
nem evidenciar que discor<strong>do</strong> das opiniões daquela pessoa<br />
X, Y ou Z. De certa forma, é um jeito que encontro para me<br />
poupar e não me aborrecer com minúcias alheias. Se fulano<br />
pensa assim, deixa ele pensar exatamente assim. Nas internas,<br />
comento e discor<strong>do</strong> das suas idéias. Mas publicamente<br />
não convém, para que ele também não se sinta no direito<br />
de revidar os meus pensamentos.<br />
A outra vantagem de ser uma mulher diplomática é a<br />
de exercitar por completo um la<strong>do</strong> que pede prudência,<br />
paciência e análise. Aprendi a agir assim com meu pai, que<br />
cada vez que o interrogam se entendeu determina<strong>do</strong> assunto<br />
ele responde uma clássica sentença: Registrei. Portanto,<br />
faço cá os meus registros da forma mais pessoal possível,<br />
sem ter a obrigação de externar na hora julgamentos<br />
precipita<strong>do</strong>s, conceitos apressa<strong>do</strong>s ou avaliações incorretas.
Sem contar que atualmente as pessoas querem opinar<br />
sobre tu<strong>do</strong>. Basta ligar a tevê e lá vão estar, a qualquer<br />
hora <strong>do</strong> dia, um grupo de cidadãos discutin<strong>do</strong> o sexo <strong>do</strong>s<br />
anjos, a inflação da Bulgária, a cor <strong>do</strong> cavalo branco de Napoleão<br />
ou a neurose múltipla que foi descoberta na semana<br />
passada. Por que to<strong>do</strong>s querem emitir tantas opiniões<br />
assim? O verbo achar, por exemplo, é um vício na boca de<br />
milhões de seres. Ninguém mais diz eu considero, eu penso,<br />
eu avalio.<br />
Está aí uma descoberta que fiz agora: talvez eu seja<br />
diplomática para evitar cair no lugar-comum <strong>do</strong> achismo.<br />
Eu prefiro não achar nada sobre nada, mas pensar sobre<br />
algo. Nada mais sensato, então, <strong>do</strong> que exercer nosso la<strong>do</strong><br />
diplomático nas relações humanas. Que tal imaginar que<br />
cada pessoa é um país diferente e que os inter-relacionamentos<br />
pedem a máxima atenção no que se diz, se age ou<br />
se comenta? Registraram essa? Eu registrei.<br />
153
154<br />
DESVIOS<br />
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES<br />
Por ser um mestre em criar situações desviantes,<br />
este tema é dedica<strong>do</strong> a meu irmão Arnal<strong>do</strong>.<br />
Um concerto de orquestra pode soar desafina<strong>do</strong><br />
por inteiro se um instrumentista resolve<br />
tocar fora <strong>do</strong> tom. Uma gota d’água é o bastante<br />
para atingir o ponto de vazamento. Um<br />
minuto a mais ou a menos é capaz de mudar a<br />
vida de qualquer pessoa. Um jeito diferente de<br />
agir significa um desvio incontornável.<br />
Conheço algumas histórias de vida que se aproximam<br />
desse processo “desviante”. Talvez a mais marcante<br />
seja a <strong>do</strong> filho de um amigo que desejava ser músico,<br />
enquanto ele esperava que fosse cumprida a tradição<br />
familiar: o rapaz se formaria em medicina. Depois <strong>do</strong>s<br />
dramas típicos que acontecem nesses momentos de<br />
decisão profissional, o clima fica aparentemente resolvi<strong>do</strong>.<br />
Aparentemente. Sim, porque convencer alguém que<br />
sonha com determinada profissão a cursar uma área<br />
oposta não é nada simples. Nem de fácil resolução. E o
filho desse amigo amargou seis longos anos até se formar<br />
como médico. Dias depois da formatura, ele chamou o<br />
pai, entregou-lhe o diploma e disse: “Aí está o que prometi.<br />
Agora vou cuidar da minha vocação”. Partiu em seguida<br />
para atuar como músico.<br />
Esse seria um final triste? Talvez para os pais. Mas felicíssimo<br />
para quem sente o alívio da decisão, o alívio de correr<br />
em raia própria, o alívio de ser <strong>do</strong>no de sua própria trajetória.<br />
De certa forma, também fui considerada “desviante” perante<br />
os padrões pré-estabeleci<strong>do</strong>s pela minha família. Por perío<strong>do</strong>s<br />
– de nada sau<strong>do</strong>sa lembrança – fui analisada como outsider<br />
completa. Por quê? Por tentar acreditar em mudanças,<br />
por exigir mudanças, por querer mudar sempre.<br />
Muitos não seguram as expectativas de irmãos, pais,<br />
parceiros ou sócios. E acabam sem realizar nada de prazeroso<br />
para si mesmo, nada de autoral, nada de verdadeiro.<br />
Sobrevivem em um pântano de frustrações, daquelas que<br />
mantêm o travo amargo por prazo indefini<strong>do</strong>. Quantas<br />
pessoas se adaptam a rotinas medíocres, com temor de<br />
serem classificadas como desviantes? Quantos atravessam<br />
suas existências em linha reta, sem novidades, sem<br />
nenhum fato que traga luz, explosão, renovação, brilho?<br />
Quantos milhares vão continuar a nascer, a crescer e a<br />
morrer na mais obscura e triste rotina, sem nem sequer<br />
ter ímpetos de brigar para desviar o caminho de suas<br />
vidas? Definitivamente, desola<strong>do</strong>r.<br />
155
156<br />
Acredito que os desvios de rota costumam trazer<br />
belas surpresas. Certamente nada deve ser considera<strong>do</strong><br />
uma regra imutável, mas vale bastante apostar em<br />
mudanças, em cambalhotas, em reviravoltas. Importante é<br />
nunca esmorecer. Tornam-se grandiosos aqueles que enfrentam<br />
oposição para demonstrar que estavam certos nas<br />
escolhas, ou que desejavam investir em sonhos. Às vezes,<br />
para nossas idéias passarem <strong>do</strong> preto-e-branco para o colori<strong>do</strong><br />
é necessário dar murros em ponta de faca.<br />
Por isso, as palavras de ordem são: não se acomodar<br />
jamais, não seguir retilíneo jamais. Um desvio aqui e outro<br />
lá faz bem à saúde de to<strong>do</strong>s.
TERRITÓRIO<br />
ÁREAS DE PROTEÇÃO PESSOAL<br />
Muita gente me fala sobre as tormentas<br />
que passam por ter suas realizações não respeitadas,<br />
suas vidas invadidas ou suas privacidades<br />
devassadas sem permissão. Fico calada e<br />
apenas exibo um leve sorriso. Longe de pretender<br />
parecer ter respostas prontas para<br />
tu<strong>do</strong>, apenas considero isso como questão de<br />
ausência da imposição de limites. Ou melhor,<br />
como falta de delimitação de território próprio.<br />
Até os animais determinam seus limites por meio de<br />
sons, rastros, dejetos e expressões de afaste-se. Ora, ora,<br />
ora. Vale lembrar um fato fundamental que to<strong>do</strong>s fingem<br />
esquecer: o ser humano é um animal. Então, para que<br />
aconteça alguma forma de convivência no mínimo tolerante,<br />
seria preciso evidenciar os limites e extensões possíveis<br />
para cada chato sem noção que circula por determina<strong>do</strong>s<br />
ambientes. Seja homem, mulher, papagaio, bandi<strong>do</strong>,<br />
político ou cachorro.<br />
Quan<strong>do</strong> digo ser importante delimitar territórios,<br />
refiro-me a situações em que pessoas invasivas começam a<br />
se sentir inteiramente à vontade para agir de qualquer<br />
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158<br />
mo<strong>do</strong>, sem se preocupar se incomodam, se irritam ou se<br />
são intrusos. Refiro-me principalmente às figuras conhecidas,<br />
algumas dessas muito célebres pelo mau-caráter<br />
empresarial, político ou pessoal, e que se acham no direito<br />
de chegar, puxar conversa, pegar no seu braço e até dar<br />
beijos no rosto.<br />
Nunca estive fechada a conversar com desconheci<strong>do</strong>s,<br />
ao contrário. Penso até que quase to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que vemos<br />
pela frente pode ter pureza de alma. Muitos <strong>do</strong>s que se<br />
aproximam sem nos conhecer chegam de cara limpa, com<br />
boas intenções. Se depois mudam, é outra história.<br />
As velhas raposas <strong>do</strong>s encontros sociais não percebem<br />
quan<strong>do</strong> as evitamos ou fingem não ter compreendi<strong>do</strong><br />
a mensagem. Esses invasores de território tão logo<br />
encontram algum conheci<strong>do</strong>, vão lá abraçar, dar tapinhas<br />
nas costas, perguntar como vai o trabalho, onde está<br />
moran<strong>do</strong> e outras chatices assim. Uma estranha compulsão<br />
pela intimidade imediata, pela obrigação de parecer o<br />
mais anima<strong>do</strong> e simpático <strong>do</strong> planeta. Só que esse comportamento<br />
é inconcebível em certos momentos.<br />
Os intrusos profissionais não conseguem ser formais,<br />
gentis, sorridentes e civiliza<strong>do</strong>s sem apertar o antebraço <strong>do</strong><br />
interlocutor. A<strong>do</strong>ram sentar no braço <strong>do</strong> sofá para trocar<br />
duas frases, falam ajeitan<strong>do</strong> a gola <strong>do</strong> seu vesti<strong>do</strong> ou ajustan<strong>do</strong><br />
o nó da gravata alheia. Ou começam a contar piadas<br />
sem saber que você odeia ser platéia de piadistas de salão.
Também a<strong>do</strong>ram exibir uma intimidade que jamais existiu.<br />
O ataque <strong>do</strong>s invasores não per<strong>do</strong>a.<br />
Declaro aberta a campanha pela delimitação de território.<br />
Cada chato desses que fique na sua, até que aconteça<br />
a sinalização para avançar, ou o sinal verde para<br />
andar mais alguns passos. Gente intrusa, seja político,<br />
cunha<strong>do</strong>, genro, amigo <strong>do</strong> amigo ou pilantra, precisa de<br />
limites, antes que tomem conta <strong>do</strong> planeta, <strong>do</strong>s salões,<br />
<strong>do</strong>s encontros, das relações de amizade e <strong>do</strong>s contatos<br />
profissionais. O pior é que eles estão por toda parte. Mantenha-se<br />
firme e forte!<br />
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LÍNGUAS DIFERENTES<br />
TORRE DE BABEL<br />
Para o meu irmão Abílio, que embora fale uma língua<br />
diferente da minha, sempre acabamos por nos entender<br />
Incontáveis acontecimentos desagradáveis<br />
surgem por motivo bem simples: não saber lidar<br />
com gente que fala outra língua. Nada a ver<br />
com um brasileiro não poder se comunicar com<br />
um búlgaro, ou um neozelandês sentir impasse<br />
na hora de ser entendi<strong>do</strong> por um peruano.<br />
Aliás, há situações em que pessoas de idiomas<br />
diferentes conseguirem se comunicar, inexplicavelmente.<br />
A metáfora que uso aqui se refere exclusivamente<br />
àqueles que desistimos de manter qualquer possível diálogo,<br />
visto que pensam de mo<strong>do</strong> oblíquo ou então analisam<br />
de maneira oposta a maioria das situações consideradas<br />
resolvidas.<br />
São fatores complica<strong>do</strong>s, mas vale a pena comentar<br />
isso tu<strong>do</strong>. Exemplos? Conheço quem não se importe a<br />
mínima em deixar de comparecer ao aniversário para o<br />
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162<br />
qual fora convida<strong>do</strong> pelo próprio aniversariante. Além de<br />
nem se tocar, também é incapaz de justificar a sua ausência.<br />
Não que seja apenas sinal de desinteresse (também é),<br />
mas a pessoa que age assim simplesmente não compreende<br />
porque os outros se chocam com a sua atitude.<br />
Há gente que interpreta os valores da boa convivência<br />
de jeito estranho à maneira que pensamos. Pode-se explicar<br />
em detalhes a nossa posição, mas os que falam outra<br />
língua vão permanecer na sua posição inarredável, sem<br />
mover-se para trás ou para frente. Nem para os la<strong>do</strong>s. Essa<br />
pessoa simplesmente não entende a sua linguagem, ela<br />
construiu (ou foi levada a construir) imagens <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
sob prismas diferentes, em que as coisas não têm peso<br />
nenhum – ou passam a ter peso em excesso.<br />
Muitos são simpáticos, educa<strong>do</strong>s e gentis. Isto é, na<br />
medida <strong>do</strong> possível. Ficam boian<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> um tema determina<strong>do</strong><br />
é aborda<strong>do</strong> e se questionam porque aquele<br />
tema teria si<strong>do</strong> aborda<strong>do</strong>. Ficam atônitos se são repreendi<strong>do</strong>s,<br />
porque a gramática de vida deles é outra. Cometer<br />
deslizes? Desistir de objetivos? Nunca retornar a sua ligação?<br />
Jamais responder e-mails? Discutir pontos de vista<br />
bobos? Prometer muito e realizar pouco? Encerrar uma<br />
atividade coletiva e sair sem demonstrar saudades <strong>do</strong> grupo?<br />
Continuar a falar sobre futebol, mesmo depois que<br />
você diz não gostar <strong>do</strong> assunto? Insistir para que você<br />
coma pratos que você diz querer evitar? Repetir brinca-
deiras que incomodam? Todas essas ações, e muitas outras<br />
mais, integram o repertório <strong>do</strong>s que falam outra língua. E<br />
olha que nem entrei na questão de se relacionar com alguém<br />
que fala outra língua de verdade.<br />
Nem adianta reclamar ou tentar convencê-los de que<br />
estão equivoca<strong>do</strong>s. Suas profundas certezas continuarão<br />
arraigadas na mente, forman<strong>do</strong> um dicionário próprio de<br />
analisar o mun<strong>do</strong> e as pessoas. O único jeito, conselho de<br />
quem já li<strong>do</strong>u demais com gente assim, é concordar com<br />
tu<strong>do</strong>, em uma espécie de retirada estratégica de cena.<br />
Não gaste palavras à toa. Não haveria diálogo, mas<br />
apenas a confirmação de <strong>do</strong>is pontos de visão inconciliáveis.<br />
Sem contar que lidar com gente que fala outra língua<br />
dá trabalho, perde-se a paciência e utiliza-se mal o<br />
tempo. Desista, mesmo quan<strong>do</strong> são parentes ou amigos<br />
próximos. Eles moram em outro planeta, gostam de coisas<br />
diferentes das que gostamos, têm sensibilidades voltadas a<br />
outros pontos e, sobretu<strong>do</strong>, se consideram certos em tu<strong>do</strong>.<br />
Quem se habilita a fazê-los falar outra língua? Eu, não. Já<br />
fiz muitas tentativas. Hoje fico no meu observatório.<br />
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164<br />
CAMA DE FILHO<br />
PLAYGROUND<br />
Para meus filhos Manoella, Tiago e Giovana, as três jóias<br />
mais importantes da minha trajetória nesta vida<br />
Primeiramente, quan<strong>do</strong> o casamento não<br />
vai bem, ir ao quarto <strong>do</strong>s filhos costuma ser<br />
uma boa desculpa para evitar a presença<br />
opressora <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Inventam, as mulheres,<br />
que precisam ficar um tempo com as crianças e<br />
depois somem por horas a fio. Essa justificativa,<br />
quan<strong>do</strong> ocorre com freqüência, denota que as<br />
coisas entre o casal estão realmente afundan<strong>do</strong>.<br />
Fugir de mari<strong>do</strong> chato só tem um refúgio<br />
<strong>do</strong>méstico, portanto: o quarto <strong>do</strong>s filhos.<br />
Mas comecei a descobrir, na época em que fazia isso,<br />
que ficar no quarto das crianças é como se atingir um outro<br />
universo. Parece que entramos na tela de um filme em<br />
projeção contínua. Ou que retrocedemos algumas décadas<br />
no tempo. Quem gosta de crianças, ou quem tem filhos,<br />
como eu tive, conhece a indescritível sensação <strong>do</strong> que é a<br />
cama de um pequeno ser com menos de dez anos.
Limitei a idade para entrar nessa viagem, porque<br />
depois <strong>do</strong>s dez anos, entram em cena os efeitos especiais<br />
da pré-a<strong>do</strong>lescência. Mas voltan<strong>do</strong> ao assunto, sempre<br />
costumo dizer que sentar ou deitar ou conversar na<br />
cama de um filho é uma das sensações mais gratificantes<br />
da maternidade. Nesses momentos é que percebemos a<br />
dimensão real (e irreal) daquela pessoa que colocamos<br />
no mun<strong>do</strong>, de seu universo com aspectos ainda tão<br />
restritos, de suas descobertas da vida, de suas expectativas<br />
perante um longo tempo que prevê para sua vida.<br />
A realidade da criança que está a seu la<strong>do</strong> é delirante,<br />
permite tu<strong>do</strong>, alcança tu<strong>do</strong> e decifra tu<strong>do</strong>, de acor<strong>do</strong> com<br />
códigos que só ela tem acesso. Existe naquela criatura<br />
humana um fator real de desabrochamento, de crescimento,<br />
de emissão de sinais. O que é o viver para uma criança?<br />
É receber conforto, ser alimentada, ganhar atenção, ter<br />
carinho, poder observar tu<strong>do</strong> ao re<strong>do</strong>r. Tão pouco para os<br />
adultos e tanto para elas.<br />
Ternura é o nome <strong>do</strong> sentimento que me invadia<br />
quan<strong>do</strong> eu ia até a cama <strong>do</strong>s meus filhos. Para eles, era<br />
sempre uma visita inesperada e um componente a mais<br />
de alegria. Imediatamente se sentiam impeli<strong>do</strong>s a me<br />
mostrar novidades, pequenas bobagens, deliciosas tolices<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> infantil e que só nos enchem de amor. Sobre<br />
os lençóis, objetos colori<strong>do</strong>s que não nos dizem nada.<br />
Mas que para uma criança pode ser a chave <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
165
166<br />
De um pequeno aeroplano de plástico ou de uma casa de<br />
bonecas, tem-se um mun<strong>do</strong> inteiro à disposição da imaginação.<br />
Sempre foi assim e sempre será: a infância tem<br />
olhar minucioso, atento, detalhista, possui<strong>do</strong>r, sem limites.<br />
Olhares rumo ao infinito.<br />
Cama de criança também tem cheiro diferente. São<br />
cheiros que nos levam de volta a algum lugar <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>,<br />
como se nós mesmos nunca tivéssemos saí<strong>do</strong> daquela<br />
cama. São cheiros que misturam fragrâncias silvestres,<br />
sabonetes, travesseiros, brinque<strong>do</strong>s de borracha, madeiras<br />
claras, roupa lavada, sonhos com fadas. E as texturas? Nosso<br />
tato de adulto se envolve na sensação de apalpar pelúcias,<br />
substâncias molengas, mantas fofas, caixas bem lixadas,<br />
cubos, esferas, losangos, varetas mágicas e pequenos<br />
tapetes prontos para voar.<br />
Toda essa ternura se mistura a uma vontade de encolher<br />
a estatura para se juntar àquele pequeno planeta que<br />
gira em torno daquela cama. A atmosfera se torna mais<br />
tocante ainda quan<strong>do</strong> contamos histórias cujas origens se<br />
perdem no tempo, histórias de amigos ala<strong>do</strong>s, de árvores<br />
falantes, de animais sábios, de viagens a reinos encanta<strong>do</strong>s,<br />
de vôos sobre palácios <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s, de choupanas perdidas na<br />
floresta. O grande escritor argentino Jorge Luiz Borges dizia<br />
que a literatura infantil é a mais importante formação da<br />
mentalidade de qualquer pessoa. Fazer sonhar é educar.<br />
Por tu<strong>do</strong> isso, considero a cama de um filho como
uma das experiências mais bonitas da vida. De lá emanam<br />
a pureza que perdemos, os aromas que lembram antigos<br />
momentos, as cores que provocam efeitos sensoriais<br />
retroativos, as formas que explicam como o mun<strong>do</strong> poderia<br />
ser singelo e, o mais importante, aqueles <strong>do</strong>is<br />
pequenos olhos que não sabem de nada. Mas que estão<br />
abertos a tu<strong>do</strong> e que tentam nos proteger.<br />
167
Amores<br />
&<br />
Desamores
170<br />
UM COMPANHEIRO<br />
O COMPANHEIRO MÁGICO<br />
Uma vez soube que existiu nos anos 70 um<br />
grupo musical chama<strong>do</strong> Companheiro Mágico.<br />
Esse nome de vez em quan<strong>do</strong> me vinha à cabeça,<br />
sem motivos aparentes, mas talvez porque<br />
encerrava um punha<strong>do</strong> de significa<strong>do</strong>s que pareciam<br />
fazer senti<strong>do</strong> apenas para mim. Porém,<br />
o tempo se encarregou de dizer que aqueles<br />
meus devaneios tinham senti<strong>do</strong>.<br />
Companheiro mágico. Duas palavras que traduzem a<br />
combinação com que quase to<strong>do</strong>s sonham: encontrar<br />
alguém que reúna a capacidade de formar uma parceria<br />
verdadeira, a partir da companhia física e, ao mesmo tempo,<br />
exercer uma atuação mental capaz de trazer magnetismo,<br />
encanto, crescimento, envolvimento e, sim, magia.<br />
Se levarmos essa análise adiante, corremos o risco de<br />
desistir da possibilidade de permanecermos abertos aos<br />
grandes encontros. Todas as pessoas que conheço sabem<br />
como se tornou desgastante a busca pelo romance, a<br />
procura pela parceria perfeita. O mun<strong>do</strong> contemporâneo,<br />
entre as suas enormes contradições, oferece recursos tecnológicos<br />
que foram cria<strong>do</strong>s para melhorar a vida e propor-
cionar mais tempo livre. Entretanto, esses mesmos recursos<br />
acabam por afastar as pessoas de convívios, de descobertas<br />
e de aproximações. Ou, pior ainda, o ritmo da vida<br />
moderna está tornan<strong>do</strong> as pessoas auto-referenciais em<br />
excesso. Poucos dizem nós. Muitos só conhecem a primeira<br />
conjugação: eu sou, eu faço, eu tenho, eu quero.<br />
Bom, voltan<strong>do</strong> à busca <strong>do</strong> suposto companheiro<br />
mágico, vale acreditar que esse termo, aparentemente<br />
utópico, possa mesmo existir. Por que não? No momento<br />
em que começamos a entender alguém, alguma estranha<br />
luz transforma tu<strong>do</strong> em situações indescritíveis. Gostar de<br />
alguém é algo indizível, próximo da plenitude. Então por<br />
que, depois de reações adversas que não têm um<br />
momento exato para ocorrer, “faz-se de triste o que se<br />
fez contente”, como diz a letra da canção de Tom Jobim?<br />
Pois é, o encontro de duas pessoas costuma sempre ser<br />
algo enigmático.<br />
Abracadabra. Mas se há enigma, há a possibilidade<br />
da magia, não? Não a magia da flutuação, da alquimia ou<br />
<strong>do</strong>s coelhos da cartola. Mas a magia que provém <strong>do</strong>s<br />
olhares em silêncio, das mãos que se tocam, das perguntas<br />
que não precisam ser perguntadas, <strong>do</strong>s detalhes que vão<br />
atingir profundamente a alma <strong>do</strong> outro. Ser companheiro<br />
é, antes de tu<strong>do</strong>, um exercício diário, minuto a minuto, de<br />
compreensão, de manutenção e de busca pela harmonia.<br />
Se a palavra é prata, o silêncio é ouro.<br />
171
172<br />
De nada adianta projetarmos a busca <strong>do</strong> companheiro<br />
perfeito no outro. Precisamos, antes de tu<strong>do</strong>, trazer<br />
esse companheiro ideal dentro de nós. Ao se buscar a<br />
parceria exata, estamos apenas tentan<strong>do</strong> satisfazer uma<br />
projeção de perfeição, uma idealização daquilo que sabemos<br />
nunca estar aptos a realizar. Não é o companheiro<br />
que precisa ser o mais sublime <strong>do</strong>s seres. Nós é que devemos<br />
nos trabalhar para que esse fator <strong>do</strong> sublime aconteça<br />
primeiro dentro de nós. Isso, claro, requer paciência,<br />
inteligência e a capacidade de até se dispor a ser coadjuvante.<br />
Tarefa aparentemente difícil em uma época em<br />
que to<strong>do</strong>s pretendem ocupar o papel de estrela convidada<br />
na vida <strong>do</strong> parceiro.<br />
O companheiro mágico existe, concluo. Só que essa<br />
dádiva celestial raramente será alcançável. Pelo menos<br />
enquanto houver demonstrações de egos infla<strong>do</strong>s, surtos<br />
de ansiedade, análises corriqueiras, palavras inúteis e desconhecimento<br />
da psique humana. O companheiro mágico<br />
existe, acredite. Você já esteve com ele, ou está agora com<br />
ele bem aí <strong>do</strong> seu la<strong>do</strong>. Não dê uma palavra sequer. Feche<br />
os olhos, respire lentamente e abra as pálpebras devagar,<br />
como se estivesse desembarcan<strong>do</strong> em um planeta estranho.<br />
Comece a ver tu<strong>do</strong> a seu re<strong>do</strong>r de outro mo<strong>do</strong>. E a<br />
observar esse ser que você conhece tão pouco. Ali dentro<br />
mora o companheiro mágico. Para ter acesso a ele, basta<br />
encontrar a senha que está dentro de você.
Vem sentar-te comigo, à beira <strong>do</strong> rio<br />
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos<br />
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.<br />
(Enlacemos as mãos)<br />
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida<br />
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa<br />
Vai para um mar muito longe, para o pé <strong>do</strong> Fa<strong>do</strong>,<br />
Mais longe que os deuses.<br />
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.<br />
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.<br />
Mais vale saber passar silenciosamente<br />
E sem desassossegos grandes.<br />
(trecho de O <strong>Livro</strong> <strong>do</strong> Desassossego, de Fernan<strong>do</strong> Pessoa)<br />
173
Porque tu me chegaste<br />
Sem me dizer que vinhas<br />
E tuas mãos foram minhas<br />
Com calma<br />
Porque foste em minha alma<br />
Como um amanhecer<br />
Porque foste o que tinha de ser<br />
(O que tinha de ser, de Tom Jobim e Vinícius de Morais)
PRIMEIRO CASAMENTO<br />
COBAIAS E CIENTISTAS<br />
Casar é complica<strong>do</strong>. E casar jovem pode ser<br />
ainda mais problemático. Principalmente no<br />
meu exemplo, aos 19 anos. Embora me considerasse<br />
pronta e madura o suficiente para<br />
enfrentar a missão, hoje percebo que mal passava<br />
de uma a<strong>do</strong>lescente bem desenvolvida.<br />
Por ser filha caçula, mimada e controlada<br />
pelos pais, viver oficialmente com alguém era<br />
tão importante quanto atingir a tão desejada<br />
declaração de independência sentimental,<br />
emocional e existencial.<br />
Joguei-me, portanto, de cara e coração em uma aventura<br />
de exatos oito anos – o mesmo tempo que duraram os<br />
meus outros <strong>do</strong>is casamentos. (Costumo até brincar que<br />
esse é o limite de tempo que tolero nas relações amorosas.)<br />
OK, mas casar, naquele momento, valeria como o primeiro<br />
vôo solo de uma crisálida recém-saída <strong>do</strong> casulo. E assim<br />
parti da casa paterna, no princípio pensan<strong>do</strong> que estreava<br />
uma vida em que só aconteceriam situações divinas e maravilhosas<br />
para to<strong>do</strong> o sempre. Afinal de contas, essas eram<br />
as palavras proferidas pelo padre na cerimônia.<br />
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176<br />
Alegria, alegria, alegria. To<strong>do</strong> começo de união é leve<br />
e pode conduzir os pares a esta<strong>do</strong>s próximos da plenitude.<br />
Porém, com o passar <strong>do</strong>s anos, desenvolveu-se no meu<br />
casamento uma estranha forma de amor. Estávamos tão<br />
próximos, meu mari<strong>do</strong> e eu, que desenvolvemos uma<br />
relação como se fôssemos <strong>do</strong>is primos, sempre prontos a<br />
rir e a se divertir com tu<strong>do</strong> e to<strong>do</strong>s. Tamanha intimidade e<br />
conhecimento mútuo em excesso nos afastaram gradativamente<br />
de contatos físicos. Agíamos como parentes fraternos<br />
que, por mero acaso, estavam casa<strong>do</strong>s. O resulta<strong>do</strong>,<br />
como não podia deixar de ser, nos impulsionou na direção<br />
daquela palavra feia que faz tremer os casais: separação.<br />
Romper o primeiro casamento foi como fazer desmoronar<br />
uma utopia de felicidade, um reino de sonhos. E,<br />
com menos de 30 anos, me deparei com uma mulher isolada,<br />
magoada, com sentimento de rejeição, começan<strong>do</strong> a<br />
acumular quilos de rancor na alma e muitos quilos de<br />
ansiedade na cintura. Para mim, a partir daquele momento,<br />
o mun<strong>do</strong> caía de mo<strong>do</strong> irreparável, tu<strong>do</strong> parecia estar<br />
de ponta-cabeça. Reagi como agem os que perdem algo<br />
que consideram de grande valia.<br />
Passadas duas décadas dessa separação – que eu considerei,<br />
imagine-se, a maior tragédia da humanidade – percebo<br />
que também tive significativas parcelas de culpa na<br />
separação. Conduzi e deixei os fatos se dirigirem a um<br />
ponto sem retorno. Hoje garanto que desapareceram com-
pletamente as mágoas, as <strong>do</strong>res, os corações parti<strong>do</strong>s, as<br />
tristezas. Prefiro – e consigo – recordar situações interessantes<br />
que atravessamos a <strong>do</strong>is, ou lembrar da forma com<br />
que nos divertíamos como casal, <strong>do</strong>s anos que repartimos<br />
prazeres, viagens, cama, mesa e idéias. Além de gerar <strong>do</strong>is<br />
filhos, muito queri<strong>do</strong>s.<br />
Meu primeiro casamento trouxe, de forma que apenas<br />
agora analiso, a base emocional para compreender envolvimentos,<br />
sexualidades e as parcerias que acontecem debaixo<br />
<strong>do</strong> mesmo teto. Tornei-me menos auto-referencial e mais<br />
generosa, menos cobaia e mais cientista. Desenvolvi atitudes<br />
para evitar a passividade feminina em excesso e<br />
comecei a olhar o mun<strong>do</strong> com interpretações feministas.<br />
Começava assim o prenúncio da série de mudanças<br />
que ocorreriam depois em minha vida. Foi quase um prenúncio,<br />
um relâmpago, <strong>do</strong> que viria à frente. Não me arrepen<strong>do</strong><br />
de nada que aconteceu nesse primeiro casamento.<br />
Ao contrário, só adquiri conhecimento e desenvoltura.<br />
177
SEGUNDO CASAMENTO<br />
PÂNICO DE SER GUEIXA<br />
Quem sai abala<strong>do</strong> <strong>do</strong> primeiro casamento,<br />
inevitavelmente vai depositar mais esperanças<br />
<strong>do</strong> que devia no segun<strong>do</strong> casamento. Assim acontece<br />
com a maioria das pessoas, assim aconteceu<br />
comigo, assim acontecerá ainda com muitos. E<br />
agora que o tempo já se encarregou de trazer<br />
alívio a tantas lembranças de sabor amargo, não<br />
vejo problemas em rever esse perío<strong>do</strong> de tormentas<br />
pessoais e de submissão absoluta.<br />
Aliás, só a distância é que nos permite rever fatos<br />
anteriormente complica<strong>do</strong>s como uma série de cenas de<br />
algum filme distante no subsolo da memória. Esta impressão<br />
se torna ainda mais forte se conseguimos, durante esse<br />
tempo, evoluir a cabeça, o corpo e o espírito, saben<strong>do</strong><br />
deixar para trás os personagens que nos entristeceram e os<br />
comportamentos equivoca<strong>do</strong>s que exibimos.<br />
Meu segun<strong>do</strong> casamento foi uma fase de aprendiza<strong>do</strong>.<br />
No primeiro eu havia me casa<strong>do</strong> muito jovem e saíra<br />
magoada de uma experiência que tornou <strong>do</strong>is parceiros<br />
em apenas <strong>do</strong>is bons amigos, sem cama nem mesa. Fui,<br />
portanto, buscar em seguida algo que adicionasse aventu-<br />
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180<br />
ra, ação e trepidação em minha existência. Eu não chegara<br />
aos 30 anos e queria aprender a decifrar o universo masculino.<br />
Mal sabia eu o que me esperava. Em pouco tempo,<br />
comecei a perceber que o papel reserva<strong>do</strong> a mim naquela<br />
relação era o da esposa submissa e completamente isolada<br />
de grupos masculinos. Mulheres servem, to<strong>do</strong> playboy<br />
pensa assim, para proporcionar prazer, cuidar de manter a<br />
beleza e ficar calada.<br />
Nada de emitir opiniões, nada de ousar no figurino,<br />
nada de buscar um tanto de independência. Submeti-me a<br />
situações frustrantes, em que eu me via forçada apenas a<br />
representar o papel da mulher servil, prestativa, maternal e<br />
máquina de fazer sexo. Qualquer ensaio de mudança, um<br />
grito. Qualquer alteração de comportamento, uma reprimenda.<br />
Gostasse ou não, eu precisava aprender que a<br />
mulher era um segun<strong>do</strong> gênero, fraco, débil e acua<strong>do</strong> por<br />
natureza. A mim cabia levar uma bandeja de aperitivos,<br />
sorrir com educação, renovar o gelo, trocar a música, apresentar-me<br />
sempre composta, jamais perder a linha, conversar<br />
apenas com as outras esposas, dar boa noite, sair de<br />
cena e ponto final.<br />
O mais louco é que existem milhares de mulheres que<br />
aceitam como normal esse procedimento, essas imposições<br />
<strong>do</strong>s mari<strong>do</strong>s. Seria como usar um manto invisível. E o mun<strong>do</strong><br />
cairia se alguém olhasse mais demoradamente para<br />
mim. Meu la<strong>do</strong> feminino estava restrito a agradar o mari<strong>do</strong>,
a cuidar das atividades <strong>do</strong> lar, a acompanhá-lo em eventuais<br />
encontros sociais, a cuidar <strong>do</strong>s filhos, a dispor flores no jarro<br />
e a aceitar tu<strong>do</strong> sem fazer cara feia.<br />
Ninguém podia prever, talvez nem eu, que daquela<br />
colossal submissão começava a brotar um sentimento de<br />
mudança. Problemas com o corpo e o excesso de peso<br />
apenas confirmavam a minha extrema falta de auto-estima<br />
e era a radiografia da infelicidade. Lá dentro, o vulcão<br />
começava a rugir, a querer entrar em erupção. Então chega<br />
o tempo em que não se suporta mais a pressão e atingimos<br />
o ponto X da decisão.<br />
Como sempre, finalizar um casamento nunca é fácil,<br />
principalmente quan<strong>do</strong> dele se tem uma filha muito amada.<br />
Mas quan<strong>do</strong> estamos decidi<strong>do</strong>s não existem empecilhos,<br />
e sim obstáculos que precisamos transpor. Lá fui eu<br />
embora, mas decidida a nunca mais bater continência a<br />
mari<strong>do</strong> algum. Desde então, penso que os encontros sentimentais<br />
precisam ter, para começo de conversa, respeito<br />
pelo território <strong>do</strong> outro. Descobri que independência também<br />
pode rimar com amor.<br />
181
TERCEIRO CASAMENTO<br />
TERCEIRO ATO<br />
Deveria iniciar esse parágrafo enaltecen<strong>do</strong><br />
o otimismo e as estranhas formas como quase<br />
to<strong>do</strong>s vivem a apostar em reviravoltas. Mesmo<br />
quan<strong>do</strong> essas tais reviravoltas signifiquem<br />
fazer um lifting em situações de envolvimentos<br />
amorosos, por exemplo. Bom, vamos passar logo<br />
ao tema. Senhores e senhoras, meu terceiro<br />
casamento.<br />
Como a novela havia para<strong>do</strong>? Primeiro, contei sobre<br />
o primeiro casamento, quan<strong>do</strong> nós, feito <strong>do</strong>is namora<strong>do</strong>s<br />
nos tornamos amigos. Tão amigos que parecíamos primos<br />
– e não mais um casal. Depois, veio o segun<strong>do</strong> round<br />
amoroso da minha vida: virar esposa-modelo de um protótipo<br />
de macho, daqueles para quem mulher é artigo de<br />
cama, mesa e banho. Desta última jornada, saí amadurecida<br />
à força. Em parte pelo sofrimento da submissão prolongada,<br />
em parte por ter começa<strong>do</strong> a desenvolver capacidades<br />
que então desconhecia, como a força de vontade, os objetivos<br />
e a determinação pessoal.<br />
Seria natural, portanto, que me considerasse madura<br />
o suficiente para me casar com um sábio, ou com um<br />
183
184<br />
homem extremamente professoral, cheio de ensinamentos<br />
e disposto a dividir seu conhecimento prático. Adivinha o<br />
parceiro que chegou? Um homem mais velho, culto e que<br />
trazia um jeito de estabilidade que eu não experimentara<br />
anteriormente. Assim, meu terceiro casamento despontou<br />
de mo<strong>do</strong> antagônico aos <strong>do</strong>is anteriores. A meu la<strong>do</strong> estava<br />
um companheiro cheio de paciência, bon<strong>do</strong>so, compreensivo,<br />
<strong>do</strong>no de histórias para contar.<br />
Hoje analiso aquele perío<strong>do</strong> como a minha plataforma<br />
de lançamento: ele, como parceiro, foi o instrumento<br />
ideal para quem, como eu, precisava desenvolver-se intelectualmente<br />
e buscar soluções inteligentes, capazes de<br />
mudar minha postura perante o mun<strong>do</strong>. Sim, ele pode ter<br />
si<strong>do</strong> esse agente.<br />
Só que existia o tempo certo para a aluna se tornar<br />
independente <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> instrutor. Ele continuava no<br />
personagem de estabiliza<strong>do</strong>r. Mas havia um problema:<br />
tu<strong>do</strong> começou a ficar estável demais, zen demais, acomoda<strong>do</strong><br />
demais. Eu, em ebulição, trocan<strong>do</strong> de pele para<br />
virar outra mulher. Ele, apega<strong>do</strong> a seus princípios imutáveis.<br />
Ele sonhava com um carrossel, eu sonhava com<br />
um supersônico.<br />
Quan<strong>do</strong> veio o rompimento, nenhum trauma de la<strong>do</strong><br />
a la<strong>do</strong>. A compreensão dele, a correção dele, a atenção<br />
dele nunca o levariam a agir com tom intempestivo perante<br />
a relação amigável que mantivemos por oito anos.
Ele percebeu que havia chega<strong>do</strong> o meu tempo de inventar<br />
uma rota própria e de alçar planos profissionais maiores.<br />
O sal<strong>do</strong> foi – e vai continuar – positivo. Ficaram lembranças<br />
calmas, serenas e apazigua<strong>do</strong>ras. Não me senti<br />
explorada, nem subjugada, nem atada a moralismos<br />
machistas. Houve desligamentos simultâneos: cada parte<br />
seguiu rumos diferentes. Cresci, mudei, evoluí, dei saltos.<br />
Desde então adquiri notável poder de observar – e de me<br />
surpreender – como são os homens, as mulheres, os seres.<br />
Não voltei a me casar, embora continue disposta a encontros<br />
dura<strong>do</strong>uros. Encontros feitos de romance, encontros<br />
de <strong>do</strong>is que se gostam, encontros que traduzam o termo<br />
amantes naquele senti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s amores épicos, enleva<strong>do</strong>s,<br />
faiscantes e envolventes. Não é fácil. Do terceiro casamento<br />
para cá, considero-me outra pessoa. E. por isso, como<br />
naquela canção de Roberto Carlos, “Só vou gostar de quem<br />
gosta de mim”.<br />
185
HOMENS SEDUTORES<br />
ATRAÇÃO FATAL?<br />
Um, <strong>do</strong>is, três: a sorte está lançada. Quan<strong>do</strong><br />
eles entram no ambiente, mulher alguma deixa<br />
de esboçar reação. Um homem sedutor vira<br />
acontecimento onde quer que passe. E como elas<br />
percebem? Ora, por meio de um simples gesto<br />
para<strong>do</strong> no ar, de um olhar que parece desnudar<br />
corpo e alma, ou de um magnetismo físico que<br />
obrigatoriamente atrai os olhares.<br />
O curioso dessa situação é que os sedutores sabem<br />
como seduzem. Pior ainda: eles sabem a intensidade <strong>do</strong><br />
impacto que provocam. Algo ainda pior? Às vezes eles fingem<br />
não saber <strong>do</strong> poder. E nós, mulheres, presas indefesas,<br />
na mira dessas feras impie<strong>do</strong>sas, entramos no jogo de brincar<br />
de difícil. Jogamos os cabelos, evitamos olhar naquela<br />
direção perigosa, puxamos assuntos longos com o interlocutor<br />
mais próximo, estendemos a conversa sobre qualquer<br />
assunto e sorrimos <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> mais enigmático possível.<br />
Quan<strong>do</strong> existe um homem sedutor de alta intensidade,<br />
é bem provável que no mesmo instante, no mesmo<br />
recinto, cerca de dez mulheres estejam arrastan<strong>do</strong> a asa,<br />
discretamente. Elas são capazes disso: saber que existe<br />
187
188<br />
concorrência forte no salão, mas acreditar firmemente na<br />
sua vitória. Isso nem sempre acontece.<br />
Sempre haverá um homem sedutor disposto a jogar<br />
seu charme, a exibir-se como um deus que escapou <strong>do</strong><br />
Olimpo, a fazer tremer uma mulher apenas com um simples<br />
olhar. O que vem depois, ninguém garante. Seduzir é<br />
quase uma prática esportiva, ou não?<br />
Depois de efetivada a sedução, aquele mesmo homem<br />
que parecia prometer um festim diabólico, pode se<br />
revelar tão sem graça quanto um picolé de chuchu. Acredite<br />
quem quiser.<br />
Existem, ainda bem, outros tipos de homens sedutores,<br />
diferentes desses cheios de estampa. Penso naqueles<br />
mais discretos, que só costumamos reparar nos últimos<br />
momentos, exatamente quan<strong>do</strong> estávamos quase in<strong>do</strong><br />
embora da festa. Sabe aquele ser absoluto, insinuante e<br />
belo, que faz qualquer uma pedir outro drinque e comentar<br />
que ainda vai ficar “mais um tempo” por ali?<br />
Aliás, essa frase funciona bem para se livrar de possíveis<br />
concorrentes. Se foi detecta<strong>do</strong> um clima entre aquele<br />
homem sedutor e você, e que ninguém ainda percebeu a<br />
grandeza <strong>do</strong> lance, é bom tratar logo de limpar a área de<br />
possíveis concorrentes. Eis uma seqüência de frases úteis<br />
para mandar as amigas embora: 1) “Hum, se você quiser,<br />
pode ir, porque ainda vou demorar mais uns 40 minutos por<br />
aqui”; 2) “Você vai ficar comigo por mais quanto tempo?
Marquei um encontro daqui a duas horas”; 3) “Depois não<br />
vou sair com você, preciso passar de novo no escritório”; 4)<br />
“Sain<strong>do</strong> daqui ainda preciso passar em <strong>do</strong>is eventos profissionais”.<br />
Depois de uma frase dessas, qual amiga ficaria<br />
dan<strong>do</strong> sopa no salão e atrapalhan<strong>do</strong> o seu flerte fatal?<br />
Então, tu<strong>do</strong> resolvi<strong>do</strong>, você está só na área e o sedutor<br />
discreto continua lá no canto, sempre à espreita. Pega<br />
mal se aproximar e puxar conversa? Pega. Ou não? E se ele<br />
for o homem da sua vida? E se você for a mulher que ele<br />
esperou durante anos? Peça outro drinque, crie coragem e<br />
dê um alô. Somos adeptos <strong>do</strong>s filmes de suspense. Então,<br />
boa sorte.<br />
189
POSSE E SEDUÇÃO<br />
AS DUAS MOSQUETEIRAS<br />
Um texto para minha irmã Vera, que conheceu<br />
muito bem as trapalhadas dessas duas mosqueteiras<br />
Atenção: essa conversa é fechada a homens.<br />
Podemos começar? OK. Então aquelas duas<br />
amigas tão liberais – e aparentemente satisfeitas<br />
com as suas liberdades conquistadas –<br />
começaram a dar sinais de que estariam fingin<strong>do</strong>.<br />
Fingin<strong>do</strong> que não desejavam envolvimentos<br />
sérios, fingin<strong>do</strong> que apenas buscavam seduzir<br />
possíveis parceiros e fingin<strong>do</strong> ser avançadas.<br />
Resulta<strong>do</strong>: confusão, aborrecimentos, mal-entendi<strong>do</strong>s<br />
e rompimento de amizade.<br />
Vamos supor que as tais amigas são uma dupla de<br />
mulheres bem-sucedidas, desenvoltas e com enorme disposição<br />
de aproveitar o que a vida traz de melhor. Gostam<br />
de viajar, freqüentam bons restaurantes, têm vida profissional<br />
equilibrada, são convidadas para as melhores festas,<br />
sabem cuidar bem <strong>do</strong> corpo, conversam com inteligência<br />
e, melhor de tu<strong>do</strong>, a<strong>do</strong>ram namorar homens bonitos. Qual<br />
191
192<br />
o problema? Nenhum. Principalmente quan<strong>do</strong> atingimos<br />
uma etapa histórica em que dá para ser, simultaneamente,<br />
feminista, feminina, fêmea, fatal, fina, faceira e feliz.<br />
As duas amigas, vez por outra, não se importavam em<br />
confessar que estavam a fim <strong>do</strong> mesmíssimo homem, um<br />
personagem meio cala<strong>do</strong>, discreto, independente, bemcuida<strong>do</strong><br />
e sorridente. Um homem que não se aproximava<br />
com as velhas cantadas de sempre, um homem que provocava<br />
um misto de atração e curiosidade, um homem, enfim,<br />
para mulher nenhuma encontrar defeito.<br />
Pois esse homem foi conquista<strong>do</strong> pelas duas amigas,<br />
cada uma por seu turno. Ele marcava encontros em datas<br />
diferentes, enquanto elas faziam o teatrinho de desconhecer<br />
que o mancebo saía com ambas. Só que a dupla de<br />
mosqueteiras não se importava nada com o fato, bem<br />
como a<strong>do</strong>rava contar – de pestanas piscan<strong>do</strong> – como os<br />
encontros eram maravilhosos, diverti<strong>do</strong>s, blablablá e uma<br />
série de adjetivos cabíveis.<br />
Passa<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is meses, a situação começou a tomar<br />
contornos mais ou menos previsíveis. As duas amigas se<br />
descobriram envolvidas pelo mesmo homem, que, por sua<br />
vez, não parecia estar envolvi<strong>do</strong> com nenhuma delas. Ele<br />
pretendia boa companhia, namoro, champanhe e bom<br />
humor. Nada mal, não? Mas no meio <strong>do</strong> trajeto surgiu<br />
uma pedra no escarpim de cada uma delas: o ciúme.<br />
Os sinais de posse começaram em sintonia baixa e
cresceram à medida que elas descobriam brilhos insuspeitos<br />
no olhar da outra. Aliás, as mulheres percebem a léguas de<br />
distância quan<strong>do</strong> existe ameaça de concorrência. E logo pipocaram<br />
as pequenas tiranias: telefonar para ele com maior<br />
insistência (muitas vezes só para atrapalhar o encontro da<br />
outra), deixar reca<strong>do</strong>s irônicos no celular da amiga, convidálo<br />
para viagens prolongadas, não responder mensagens da<br />
amiga ou telefonar dizen<strong>do</strong>: “Liberei ele hoje para você, mas<br />
saiba que sou a <strong>do</strong>na”. Esta<strong>do</strong> vela<strong>do</strong> de guerra.<br />
Obviamente o resulta<strong>do</strong> foi desastroso para as duas<br />
amigas que viraram rivais peçonhentas durante um tempo.<br />
Acusaram-se de usurpa<strong>do</strong>ras, conquista<strong>do</strong>ras irrefreáveis,<br />
dissimuladas e por aí afora. Depois, deram boas risadas da<br />
situação e voltaram às boas. Claro que o alvo da disputa<br />
percebeu a manipulação dupla (homens só admitem manipular)<br />
e pulou fora de vez. Elas, as duas amigas, decidiram<br />
que conquistas, de agora em diante, só se for cada uma<br />
por si. E Deus por todas.<br />
193
PIGMALIÃO<br />
PROJETO SENTIMENTAL<br />
Conheço mulheres que almejam conhecer<br />
um homem rude, simples e tosco para transformá-lo<br />
imediatamente em um príncipe<br />
encanta<strong>do</strong>, louro, de olhos azuis, gentil, perfuma<strong>do</strong>,<br />
sensual e educa<strong>do</strong>. Sei de mulheres<br />
que ignoram essa balela, e que continuam a<br />
tentar, a tentar e a tentar modificar seus<br />
pares. Mulheres que a<strong>do</strong>rariam viver dentro<br />
das páginas <strong>do</strong>s contos de fadas.<br />
Claro que é um tanto incômo<strong>do</strong> ter namora<strong>do</strong>s que<br />
diferem muito <strong>do</strong>s seus padrões sociais, culturais e econômicos.<br />
Incômo<strong>do</strong> porque é uma saia-justa permanente. Mas,<br />
curioso notar, quan<strong>do</strong> os homens fazem isso, a aceitação é<br />
bem facilitada, e as tais eleitas, consideradas sereias fora<br />
d’água, um dia acabam por ganhar estilo, ficam atraentes<br />
pra valer e se tornam interessantes de verdade. Talvez essa<br />
trajetória faça parte da vida de muitas mulheres.<br />
Bom, voltan<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> oposto, coitadas daquelas<br />
que procuram dar pedigree ao namora<strong>do</strong>. Primeiro porque<br />
to<strong>do</strong>s cochicham quan<strong>do</strong> elas passam. Segun<strong>do</strong>, por<br />
ser uma situação meio patética. Terceiro, porque está fa-<br />
195
196<br />
da<strong>do</strong> a não dar certo. Quarto, por parecer falta de senso.<br />
Quinto, porque a humanidade é preconceituosa mesmo;<br />
uma pena.<br />
Lembro-me de uma antiga novela, inspirada em texto<br />
de Shakespeare e atualizada na época para Pigmalião 70,<br />
onde a personagem vivida por Tonia Carrero queria transformar<br />
um feirante simplório, interpreta<strong>do</strong> na trama pelo<br />
ator Sergio Car<strong>do</strong>so, em um homem finérrimo. Deu certo?<br />
Nem é preciso responder. Claro que são poucas as que<br />
chegam a extremos assim, mas ao ajustar-se o foco encontramos<br />
comparações aproximativas.<br />
E alto lá: quero emitir concepções sociais libertárias.<br />
Aviso que continuo muito a favor de qualquer forma de<br />
amor. Mas isso não me impede de analisar determina<strong>do</strong>s<br />
comportamentos caricatos, como, por exemplo, daquelas<br />
que preferem não perceber as limitações <strong>do</strong> parceiro,<br />
forçan<strong>do</strong> a sua presença em momentos que só geram<br />
desconforto geral. Geralmente mulheres assim moldam o<br />
namora<strong>do</strong> de maneira artificial, para construir nele uma<br />
projeção de valores que são mal resolvi<strong>do</strong>s nela própria.<br />
As pessoas não são, pelo menos até a hora em que<br />
escrevo este texto, marionetes de ventríloquo. Então porque<br />
tentar mudar alguém que nunca pediu para ser transforma<strong>do</strong>?<br />
Isso é compreensível se houvesse solicitação da<br />
pessoa que deseja se aprimorar, ou daquele que pede correções<br />
de rumo das atitudes. Aí, sim. Fica lin<strong>do</strong> elaborar
alguém, acompanhar o seu crescimento intelectual, a sua<br />
busca pelo refinamento.<br />
Por outros aspectos, nada tão feio quanto impor trajes,<br />
assuntos, posturas, discursos e comprometimentos em<br />
pessoas que ficariam bem mais interessantes sem lapidações<br />
artificiais. E outra coisa: por que não aceitar o<br />
namora<strong>do</strong> <strong>do</strong> jeito que é? Só não vale deixá-lo colocar as<br />
botas em cima da mesa. O resto vale a pena, o resto é<br />
lucro. Precisamos nos esforçar para evitar a mania de querer<br />
idealizar ou construir pessoas. Isso só dá certo no palco ou<br />
no cinema. Ou melhor, nem no palco e nas telas dá certo,<br />
não é Shakespeare?<br />
197
198<br />
VOLTA AO PASSADO<br />
MIL PONTOS DE INTERROGAÇÃO<br />
Era uma vez um daqueles momentos em que<br />
se olha para fora da janela e se decide procurar<br />
um antigo namora<strong>do</strong> que não sai da memória.<br />
Aliás, dizer “aqueles momentos” é modéstia,<br />
pois já existia vontade diária de ouvir a voz<br />
dele. Por tu<strong>do</strong> isso, teria si<strong>do</strong> importante utilizar<br />
o controle remoto da emoção para conter esse<br />
ímpeto. Mas que nada.<br />
Ex-namora<strong>do</strong>s que vivem gruda<strong>do</strong>s na nossa memória<br />
significam que o amor valeu? Ou será, em hipótese<br />
contrária, que foram um pedregulho no sapato? Como<br />
dizia um antigo bolero, quizás, quizás, quizás. Mas se considerarmos<br />
válida a primeira possibilidade, buscar namoros<br />
passa<strong>do</strong>s pode ser um passatempo diverti<strong>do</strong>. Entretanto,<br />
ao se procurar via telefone, atenção: há procedimentos<br />
básicos. Primeiramente, telefona-se a um amigo em comum.<br />
Assim como quem não quer nada. Depois de 15 minutos<br />
de assuntos sem senti<strong>do</strong>, pergunta-se displicentemente<br />
sobre o ex. O que to<strong>do</strong>s esperam ouvir é a seguinte<br />
frase: “Ah, ele vive perguntan<strong>do</strong> por você”. Le<strong>do</strong> engano.<br />
Diálogos assim só acontecem em novelas.
A resposta costumeira para a questão acima será sempre<br />
evasiva, com informações que trazem mal-estar: “Ah,<br />
não tenho visto ele, não. Parece que já está namoran<strong>do</strong> de<br />
novo”. Você, <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da linha, passada. Bem-feito.<br />
Quem man<strong>do</strong>u perguntar? Mas, alto lá, quem falou que o<br />
romance está acaba<strong>do</strong>? Ele também não enviou, pouco<br />
tempo atrás, sinais de simpatia, que logo foram interpreta<strong>do</strong>s<br />
por seus amigos como uma “tentativa de reaproximação”?<br />
Puxa, como gostamos de nos iludir. Evidente<br />
que nem deveria haver tentativa de aproximação alguma,<br />
mas aquela simples mensagem ainda paira na sua cabeça<br />
como um néon de loja de flores.<br />
Então, por bem ou por mal, você decide procurar<br />
aquele amor, cutucar aquela ferida, mexer em vespeiro, levantar<br />
a poeira. Tu<strong>do</strong> ao mesmo tempo. O máximo que<br />
pode acontecer é ouvir um não, repete para si mesma. De<br />
repente, surge uma série de dúvidas: 1) como vou reagir se<br />
me tratar friamente; 2) o que devo dizer se falar que ainda<br />
prefere “dar um tempo”; 3) o que fazer se me convidar para<br />
sair; 4) como manter o controle se disser que fui culpada<br />
pelo fim da nossa história; 5) e se atender uma secretária<br />
eletrônica; 6) e se atender uma voz de mulher nada eletrônica;<br />
7) e se todas as boas lembranças forem por água abaixo<br />
com esse telefonema? Mil pontos de interrogação.<br />
Às 20 horas em ponto, horário que você considerou<br />
civiliza<strong>do</strong>, é o momento escolhi<strong>do</strong> para telefonar ao seu ex-<br />
199
200<br />
grande-talvez-futuro amor. Você já tomou banho, vestiu-se<br />
como quem vai a um restaurante, perfumou-se, tomou<br />
duas taças de champanhe, abriu e fechou a janela 126<br />
vezes, ajeitou todas as almofadas da sala, penteou o cabelo<br />
21 vezes, ensaiou frases, passou hidratante nas mãos seis<br />
vezes, pensou em voltar a fumar, conferiu 19 vezes se o<br />
celular está liga<strong>do</strong>, colocou um CD de jazz, olhou para o<br />
relógio de 45 em 45 segun<strong>do</strong>s. Finalmente, oito da noite.<br />
Melhor pensar pouco e telefonar logo.<br />
Barulho <strong>do</strong> tecla<strong>do</strong>: tictictictictictic. Errou o número.<br />
Volta novamente. Tictictictic-tictictictic-tictictictic. Do outro<br />
la<strong>do</strong>, o ruí<strong>do</strong> da campainha: truuuuuu. Segun<strong>do</strong> ruí<strong>do</strong>: truuuuu.<br />
Terceiro ruí<strong>do</strong>: truuuuuu. Quarto: truuu – “Alô.”. É<br />
ele. Você, lívida, respira fun<strong>do</strong>. Tenta fazer voz firme, sedutora,<br />
convincente, sem mágoas. Tu<strong>do</strong> ao mesmo tempo:<br />
“Olá, sou eu. Há quanto tempo…”. Ele: “Oi. E aí, tu<strong>do</strong><br />
bem?”. Você, ainda sem graça, tenta ser conveniente:<br />
“Tu<strong>do</strong> ótimo. Você pode falar agora?”, propõe. Ele: “Agora<br />
não, desculpe, porque começou o Jornal Nacional e depois<br />
vou ter que sair em seguida. Dá para ligar amanhã ou outro<br />
dia?”. Você, atônita, mas sem demonstrar o terremoto:<br />
“Claro. Não tem problema. Ligo depois. Tchau. Um abraço”.<br />
Ele: “Um abração também”. E desliga. Ploft.<br />
Nem será preciso descrever o esta<strong>do</strong> de calamidade<br />
pública da sua fisionomia. Durante dez minutos você permanece<br />
paralisada, sem ação nem para se levantar <strong>do</strong>
sofá. Sente-se a última das mulheres, a derradeira criatura<br />
na fila <strong>do</strong>s insensatos, a mais inútil criação da natureza, a<br />
mais desamparada das desamparadas. Aquele passa<strong>do</strong><br />
que foi tão importante para vocês <strong>do</strong>is desmorona em<br />
câmera lenta, como as torres de Nova York. Só que a única<br />
vítima parece ter si<strong>do</strong> você.<br />
E aí vem a ressaca moral, com a dúvida cruel: valeu a<br />
pena remexer em um romance passa<strong>do</strong>, mesmo quan<strong>do</strong><br />
esse romance parecia não ter acaba<strong>do</strong>? Teria si<strong>do</strong> melhor<br />
reter boas lembranças ou desintegrar tu<strong>do</strong> com um único<br />
contato? Quizás, quizás, quizás.<br />
201
Quanto tempo longe de você<br />
Quero ao menos lhe falar<br />
A distância não vai impedir<br />
Meu amor de te encontrar<br />
Cartas já não adiantam mais<br />
Quero ouvir a sua voz<br />
Vou telefonar dizen<strong>do</strong><br />
Que estou quase morren<strong>do</strong><br />
De saudades de você<br />
(Eu te amo, te amo, te amo, de Roberto Carlos e Erasmo<br />
Carlos)
AMANTES<br />
O NEGÓCIO É AMAR<br />
Homens e mulheres disfarçam, mudam de<br />
assunto e ninguém aceita encarar um assunto<br />
polêmico: amantes. Entretanto, quantas pessoas<br />
<strong>do</strong> seu círculo de amizades – para não se<br />
estender muito – têm ou tiveram tórri<strong>do</strong>s e<br />
calientes amantes?<br />
Evitar um tema tão recorrente na literatura, no cinema,<br />
na TV e na vida real seria apenas camuflar um falso<br />
moralismo. Nem vamos aqui entrar na discussão moral que<br />
pretende analisar os casos extraconjugais como a mais terrível<br />
das traições. Cada pessoa tem critérios próprios para<br />
compreender ações alheias – ou explicar os seus próprios<br />
méto<strong>do</strong>s de atuação no território sentimental.<br />
Há romances tão vulcânicos que aniquilam pessoas,<br />
histórias de vida, agrupamentos familiares e êxitos profissionais.<br />
Existem aqueles seres que se entregam a uma paixão<br />
de forma avassala<strong>do</strong>ra, como se novas esferas da existência<br />
fossem construídas para sustentar o amor que sentem um<br />
pelo outro. Lembro de uma canção da bossa nova que diz:<br />
“amor ciumento/amor vira-lata/amor que só cria caso/amor<br />
vagabun<strong>do</strong>/ Mas não interessa: o negócio é amar”.<br />
203
204<br />
Se o negócio é amar, vamos to<strong>do</strong>s encarar a face de<br />
Cupi<strong>do</strong>. Mas por que não conhecer algumas opções que<br />
comumente surgem entre os amantes? A mais clássica,<br />
sem dúvida, é a que envolve <strong>do</strong>is parceiros casa<strong>do</strong>s em<br />
uma história paralela, repleta de lances dramáticos, momentos<br />
de puro êxtase, desfechos lacrimosos, cenas de<br />
cinema e a agonia permanente que as vidas duplas proporcionam.<br />
Quan<strong>do</strong> esse amor é <strong>do</strong> tipo explode coração, o<br />
casal assume tu<strong>do</strong> e manda o mun<strong>do</strong> oficial para o espaço.<br />
Pois é, às vezes surge um antagonismo: para se construir a<br />
felicidade própria se torna necessário provocar um turbilhão<br />
de infelicidades em volta. Lei da compensação? Sei lá.<br />
Ninguém gosta de estar <strong>do</strong> la<strong>do</strong> que foi rompi<strong>do</strong>.<br />
Prefiro, por isso tu<strong>do</strong>, usar a palavra amante no senti<strong>do</strong><br />
daquele que traz o romance, de jeito calmo, galante, sedutor,<br />
cheiroso, porém menos explosivo. Continuo a acreditar<br />
nas parcerias que dão certo, no casamento com proposta de<br />
durar para sempre e nos amores transforma<strong>do</strong>res, capazes<br />
de mudar definitivamente a vida de duas pessoas. Mas<br />
quan<strong>do</strong> essa junção de mun<strong>do</strong>s não se torna possível, por<br />
vários motivos, vale optar pelo amante versão número <strong>do</strong>is.<br />
O amante ideal sabe manter situações que tragam<br />
prazer, júbilo, celebração à vida, parceria, alegria, sexo,<br />
romance, diversão, viagens, expansão de sentimentos.<br />
Poucos alcançam a sorte de ter encontros grandiosos<br />
assim. Encontros que se tornam leves por não exigir com-
promissos bilaterais nem amarrações imediatas. Vale agir<br />
com tanta pressa ao se lidar com um assunto tão fugidio<br />
quanto o amor? Negativo.<br />
Ninguém passa a vida inteira em um parque de diversões.<br />
Existem perío<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> brilha na luz perfeita,<br />
na cenografia exata. Depois podem ocorrer curtos-circuitos,<br />
escuridão, silêncio e tédio. Fazer o quê? A vida é repleta de<br />
lances inespera<strong>do</strong>s, como da<strong>do</strong>s joga<strong>do</strong>s ao acaso. Por<br />
vezes tangenciamos os sonhos de encontrar a leveza no<br />
amor. Vale tentar.<br />
205
Quan<strong>do</strong> olhaste bem<br />
nos olhos meus<br />
E o teu olhar era de adeus<br />
Juro que não acreditei<br />
(Atrás da porta, de Chico Buarque)<br />
207
208<br />
ROMPIMENTOS<br />
DORES DE AMORES<br />
Há um tanto de engano em pensar que a<br />
verdadeira percepção <strong>do</strong> rompimento amoroso<br />
surge de imediato, logo após algo brusco, <strong>do</strong>lori<strong>do</strong><br />
e de forte impacto. Do momento em que o<br />
cérebro armazena que uma relação se rompeu,<br />
e até o fato vir nos atingir, passam-se intervalos<br />
de tempo. Quanto tempo, ninguém saberia precisar.<br />
Mas num belo dia a tempestade despenca<br />
sobre cabeça, tronco e membros.<br />
Romper, desligar-se, ser desliga<strong>do</strong>, descartar ou ser<br />
descarta<strong>do</strong>. Muitas palavras e verbos podem ser emprega<strong>do</strong>s<br />
para revestir um <strong>do</strong>s momentos mais determinantes que<br />
acometem a vida emocional da maioria <strong>do</strong>s homens e mulheres.<br />
(Vale até lembrar: vida emocional é uma espécie de<br />
trajetória repleta de emoções, sustos, novas experiências,<br />
imprevistos, delícias, <strong>do</strong>res e prazeres. Se fosse um percurso<br />
linear, reclamaríamos da monotonia. Pois é. Caso não existissem<br />
altos e baixos, nem haveria romances, canções, novelas<br />
e tampouco aprimoramento sentimental.)<br />
Entretanto, subitamente acontece. Choque, espanto,<br />
resoluções. No início <strong>do</strong> fim seremos fortes e prometemos
a nós mesmos que daqui a pouco a perda passa. Dor, eu?<br />
Tristeza, eu? Ninguém admite ser observa<strong>do</strong> com compaixão<br />
nessas etapas de separação, porque significaria<br />
expor publicamente uma série de frases diretíssimas: “estive<br />
iludi<strong>do</strong>”, “me enganei” ou, muito pior, “perdi o meu tempo”.<br />
Sim, é chato. Sim, é quase caricato. Mas quan<strong>do</strong> se<br />
enfrenta rompimentos de forte intensidade, percebe-se que<br />
a imagem <strong>do</strong> coração parti<strong>do</strong> se transforma em uma projeção<br />
próxima <strong>do</strong> palpável. Difícil seria escapar desses fragmentos<br />
amorosos, desses cacos. Hoje, ao notar alguns<br />
comportamentos públicos, considero admiráveis aquelas<br />
pessoas que, ao se separar, conseguem dizer, poucos dias<br />
depois: “OK, estou feliz”. Que bom. E a tristeza foi para<br />
onde? Abalar-se por amor parece ter fica<strong>do</strong> contraproducente,<br />
ultrapassa<strong>do</strong> e inútil. Que pena. (Falamos de amor,<br />
não de paixões para pronto uso.)<br />
Rompimento continua, queira-se ou não, uma palavra<br />
assusta<strong>do</strong>ra. Puf. A bolha de sabão some e deixa<br />
apenas um pequeno sinal líqui<strong>do</strong> no chão. Será possível<br />
reverter essa situação? Talvez. Penso ser sempre melhor<br />
partir <strong>do</strong> pressuposto de que os romances só retornam<br />
quan<strong>do</strong> não houve desfechos dramáticos ou rastros de<br />
incômo<strong>do</strong>s. De fazer um pouco de drama, ninguém escapa.<br />
Mas o que dizer daqueles que perdem o prumo, o<br />
tino, o senso? Importante saber entrar e se desfazer de<br />
tu<strong>do</strong> com elegância, controle, dignidade. A última lem-<br />
209
210<br />
brança de um rompimento pode ser a primeira saudade<br />
para a possível volta.<br />
E quan<strong>do</strong> alguém perguntar se a situação continua<br />
<strong>do</strong>lorosa, responda sempre que sim. Fica bonito, sincero,<br />
pondera<strong>do</strong>. Choro também pode, principalmente em ombros<br />
amigos. A angústia de uma separação geralmente<br />
custa a passar. Não se esconda disso. Porque se a <strong>do</strong>r de<br />
um rompimento de tendões, por exemplo, é forte, a <strong>do</strong><br />
coração, nem se fala. Ou melhor: fala-se, sim.
RITUAIS DE SEDUÇÃO<br />
JOGO DE DAMAS<br />
Existe um momento na vida em que<br />
percebemos ter desenvolvi<strong>do</strong> olhares agu<strong>do</strong>s e<br />
perspicazes sobre situações diversas. Nada mais<br />
parece chocar tanto ou nos deixar boquiabertos<br />
como antes – pelo menos perante comportamentos<br />
sociais. Vamos direto ao ponto? Falo <strong>do</strong>s<br />
jogos de sedução.<br />
Quan<strong>do</strong>, como e com quem ocorrem os jogos de<br />
sedução? A qualquer momento, em qualquer local, com<br />
qualquer pessoa. São pequenos ritos de convencimento, de<br />
exibição sutil, de mise-en-scène de salão. As trocas de<br />
olhares servem para enviar códigos sutis, devidamente capta<strong>do</strong>s<br />
pelas partes interessadas. Às vezes sem ninguém suspeitar<br />
de nada. E aí é que fica o melhor la<strong>do</strong> da história: agir<br />
sem deixar pistas.<br />
Mas ninguém deve pensar que esses códigos são indecifráveis.<br />
Eis que surge o la<strong>do</strong> perigoso da história: estar com<br />
pessoas que conseguem perceber exatamente as mensagens<br />
da sedução enviadas de um emissor para um receptor<br />
– ou receptores. Até aí, nada de mais, porque o flerte<br />
sempre faz parte <strong>do</strong>s encontros e, por isso mesmo, nada tão<br />
211
212<br />
humano. Mas agora desponta uma nova categoria: a <strong>do</strong>s<br />
homens que estão aptos a serem seduzi<strong>do</strong>s pelas mulheres.<br />
Historicamente, é uma conquista feminista, embora<br />
existam famosos relatos de mulheres sedutoras <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>.<br />
Mas quan<strong>do</strong> essa prática se torna um procedimento<br />
comum, então estamos diante de alterações importantes<br />
nos jogos de sedução. A situação funciona mais ou menos<br />
assim: duas ou três amigas em comum detectam um alvo<br />
interessante. Conversam entre si sobre a balística necessária<br />
para atingir aquele alvo disponível.<br />
Subitamente, to<strong>do</strong>s os recursos femininos da sedução<br />
podem ser coloca<strong>do</strong>s em ação. Bateria de olhares, apontar.<br />
Tropa das conversas interessantes, avançar. Note-se aqui<br />
algo importante: muitas mulheres já não se importam em<br />
desejar namorar o mesmo homem. Há um acor<strong>do</strong> tácito de<br />
que a exclusividade virou artigo raro e, como homens interessantes<br />
são eventos raríssimos como a aparição <strong>do</strong>s santos,<br />
por que não dividir? Namorar desse jeito é simples,<br />
moderno e produtivo. Conheço várias situações parecidas<br />
em que os participantes vivem felizes da vida. Mas vale<br />
avisar: dividir não significa ser coletivo. É uma questão de<br />
agendamento, de customização, de planejamentos individuais.<br />
Cada encontro é forma<strong>do</strong> separadamente, a <strong>do</strong>is.<br />
Espero que isso esteja claro.<br />
Sem moralismos ou falsos pu<strong>do</strong>res, os homens aptos<br />
a serem seduzi<strong>do</strong>s por mulheres são um fato social em
crescimento vertiginoso. Primeiro porque eles já deviam<br />
andar aborreci<strong>do</strong>s de sempre ter que iniciar uma aproximação.<br />
Segun<strong>do</strong>, por que as mulheres <strong>do</strong> século 21 decidiram<br />
que podem agir com atuações semelhantes às <strong>do</strong>s<br />
homens, sem perder o rebola<strong>do</strong>. Ou, como dizia Che Guevara:<br />
é preciso endurecer, sem jamais perder a ternura…<br />
Cada mulher conhece bem suas táticas e seus arsenais<br />
de conquista. Toda mulher almeja desenvolver seus talentos<br />
de sedutora, sem nunca precisar ser vulgar, pegajosa ou fácil.<br />
A sedução é um ritual pleno de delicadezas, sutilezas, avanços,<br />
recuos, acor<strong>do</strong>s, avaliações, armazenamento de da<strong>do</strong>s,<br />
persistências e conquistas prazerosas. Lembrei-me agora de<br />
uma referência musical importante, cantada por Rita Lee, em<br />
que o refrão diz tu<strong>do</strong>: “Toda mulher é meio <strong>do</strong>ida / Toda mulher<br />
quer ser feliz / Toda mulher é meio Leila <strong>Diniz</strong>”. E, para<br />
quem não sabe, Leila <strong>Diniz</strong> foi precursora no Brasil dessa liberação<br />
feminina que fez a mulher escolher seus parceiros com<br />
a maior naturalidade. Viva nós e vivam eles.<br />
213
<strong>Verso</strong><br />
&<br />
Reverso
DOM QUIXOTE<br />
NEM MESTRE, NEM APRENDIZ<br />
Relato dedica<strong>do</strong> a Francisco Guglielme Jr., meu conselheiro<br />
de todas as horas, de todas as direções e de to<strong>do</strong>s os prumos<br />
Nas minhas últimas férias resolvi fazer<br />
uma viagem pelas páginas <strong>do</strong> texto que é<br />
considera<strong>do</strong> o mais importante romance da<br />
literatura ocidental: Dom Quixote. O intertítulo<br />
original dessa obra de Miguel de Cervantes,<br />
publicada originalmente em 1604, já traz a<br />
pompa e a circunstância da leitura: O Engenhoso<br />
Fidalgo Dom Quixote de La Mancha.<br />
A envolvente história de Cervantes relata as andanças<br />
de um fidalgo andarilho e idealista, acompanha<strong>do</strong><br />
por seu fiel escudeiro, Sancho Pança. No trajeto <strong>do</strong> livro<br />
acontecem várias seqüências de paixões, desilusões,<br />
lutas, perdas, conquistas, aprendiza<strong>do</strong>s, situações de<br />
limite e acontecimentos de sonho. Quixote se lançou por<br />
caminhos que não conhecia, apenas pelo intuito de ganhar<br />
sabe<strong>do</strong>ria através da observação <strong>do</strong>s personagens<br />
que encontrassem, e por meio das manifestações da<br />
217
218<br />
natureza. Sancho era a voz que o enchia de lições, sempre<br />
retiradas de coisas mínimas ou de parábolas visionárias<br />
sobre a vida.<br />
O mais belo nesse grandioso romance está na atitude<br />
de entrega, de confiança e de comunhão entre duas pessoas<br />
aparentemente opostas. Um fidalgo, por sua condição<br />
de nobreza, dificilmente dividiria pão, vinho e abrigo<br />
com um escudeiro. Cervantes foi moderno para o seu tempo<br />
por criar <strong>do</strong>is personagens literários que conseguiram<br />
alterar bastante a concepção social <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Um aprendeu<br />
com o outro, e vice-versa.<br />
Vamos fechar o zoom. Muitas vezes nos portamos<br />
como fidalgos anteriores a Quixote: com arrogância, presunção<br />
e orgulho. E isso independe de recursos econômicos.<br />
A soberba pode ser encontrada pela vida afora, em<br />
grupos diversifica<strong>do</strong>s, em situações corriqueiras. Quantas<br />
vezes já presenciamos cenas de pessoas de nariz empina<strong>do</strong>,<br />
sobretu<strong>do</strong> sem motivo aparente? Quantas vezes encontramos<br />
alguém que prefere morrer ata<strong>do</strong> a suas idéias preconcebidas,<br />
sem nunca se abrir para o novo e para a novidade?<br />
Eu poderia enumerar dezenas de questões assim.<br />
Melhor avisar logo que ninguém está a salvo <strong>do</strong> contágio<br />
da soberba. Evidentemente que to<strong>do</strong>s já dissemos<br />
algo em tom que mais tarde nos deixaria arrependi<strong>do</strong>s, ou<br />
cometemos gestos que poderiam ter si<strong>do</strong> menos ríspi<strong>do</strong>s.<br />
O importante é ter a noção exata desses acontecimentos e
atos, para atenuá-los, corrigi-los ou mudá-los completamente.<br />
Precisamos estar de olhos e coração abertos para<br />
ouvir o que pessoas, comuns ou especiais, nos têm a dizer,<br />
mesmo quan<strong>do</strong> não as indagamos sobre nada. Muitas<br />
vezes, da observação dita em palavras diretas surgem soluções<br />
para coisas que andavam complicadas.<br />
Olhar nos olhos, dividir, pedir opinião, escutar também<br />
a voz das pessoas sem erudição, prestar atenção ao acaso,<br />
consultar a natureza: são incontáveis as possibilidades de se<br />
compreender aspectos desconheci<strong>do</strong>s da existência humana.<br />
Nem é preciso eleger um Sancho Pança fiel, nem se considerar<br />
um fidalgo <strong>do</strong>no da verdade. Cada pessoa pode ser<br />
Sancho, fidalgo, rei, ascensorista, arquiteto, costureira, mestre,<br />
aprendiz e, acima de tu<strong>do</strong>, um ser disposto a criar parcerias<br />
de alma com pessoas diferentes. A multiplicidade de<br />
pontos de vista engrandece a condição humana.<br />
219
PREGUIÇA<br />
CADEIRA DE BALANÇO<br />
Decidi pensar alguns tópicos sobre os sete<br />
peca<strong>do</strong>s capitais, um tema sempre cita<strong>do</strong> e, na<br />
verdade, tão pouco conheci<strong>do</strong>. Primeiro foi<br />
importante descobrir que os sete peca<strong>do</strong>s não<br />
estão liga<strong>do</strong>s à Bíblia, mas apenas trazem<br />
interpretações segun<strong>do</strong> os códigos <strong>do</strong>s cristãos<br />
da Idade Média. E, para começar, vamos levantar<br />
da cadeira e falar sobre a preguiça, este<br />
que, entre os sete peca<strong>do</strong>s, talvez deva ser o que<br />
confessamos com maior facilidade.<br />
Ter preguiça faz parte da condição humana e <strong>do</strong> comportamento<br />
<strong>do</strong>s animais. Quem nunca ficou admiran<strong>do</strong> um<br />
gato se espreguiçar? Quem nunca sentiu prazer em ficar<br />
pegan<strong>do</strong> brisa na espreguiçadeira da varanda? Sentir preguiça<br />
é uma espécie de reação física à aceleração forçada <strong>do</strong><br />
cotidiano. O corpo também gosta de sossego, moleza e <strong>do</strong><br />
bem-bom. Os que negam isso sofrem de hiperatividade.<br />
Mas a preguiça também pode nos levar à estagnação,<br />
ao marasmo, à acomodação, à inércia, ao conserva<strong>do</strong>rismo.<br />
Os preguiçosos compulsivos rejeitam qualquer possibilidade<br />
de movimentos inespera<strong>do</strong>s, de alterações no percurso pre-<br />
221
222<br />
viamente traça<strong>do</strong>, de atividade extra. Depois que sentam,<br />
incorporam o espírito da moleza, como se estivessem<br />
acometi<strong>do</strong>s de uma ausência, de um distanciamento<br />
inexplicável. Pensan<strong>do</strong> melhor, a preguiça em excesso,<br />
acho, deve ser capaz de deixar alguém em esta<strong>do</strong> de<br />
contemplação zen. Ficar sem fazer nada é esvaziar a mente.<br />
E esvaziar a mente é o primeiro passo para a meditação.<br />
Brincadeiras à parte, a preguiça pode ser extremamente<br />
perigosa, por produzir acomodação diante de situações<br />
injustas. Ai, que preguiça!, falam aqueles que só reclamam<br />
da falta de ações <strong>do</strong>s governantes, quan<strong>do</strong> poderiam<br />
colaborar com ações elementares de cidadania. Ai, que<br />
preguiça!, constatam os aliena<strong>do</strong>s, aqueles seres incapazes<br />
de nem sequer analisar o mun<strong>do</strong>, a vida e a vida paralisada<br />
que levam. Essa é a pior forma de se ter preguiça:<br />
esperar que as mudanças aconteçam por si, sem mover<br />
uma palha para conseguir ajustes. Acho intolerável conhecer<br />
gente assim, que só espera mudanças e que não se<br />
move <strong>do</strong> lugar.<br />
Por outro aspecto, sentir preguiça se torna essencial<br />
quan<strong>do</strong> estamos em uma atmosfera preguiçosa: mormaço,<br />
praia, sombra, água fresca, barulho de vento nos<br />
coqueiros, nenhum compromisso à vista. O pior é que<br />
existe gente que, mesmo em lugares paradisíacos, continua<br />
em ritmo elétrico, sem conseguir se desligar da agonia<br />
urbana. Preguiça deixa de ser peca<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> a natureza
pede que fiquemos calmos, cala<strong>do</strong>s e com movimentos<br />
arrasta<strong>do</strong>s.<br />
Preguiça combina também com manhãs de <strong>do</strong>mingo,<br />
finais de tarde no campo, a moleza súbita depois <strong>do</strong><br />
almoço, a vontade de olhar para a janela, a lembrança de<br />
momentos de prazer, as pausas depois <strong>do</strong> amor e os<br />
primeiros minutos após o despertar. Ter preguiça, afinal, é<br />
peca<strong>do</strong> ou não? Peca<strong>do</strong> é apostar na imobilidade. Peca<strong>do</strong><br />
é saber que deveria – e poderia – fazer um movimento,<br />
mas permanecer sem ação. E, cuida<strong>do</strong>, ela ataca a qualquer<br />
hora. Contra a preguiça vale um arsenal de munição<br />
contrária: guaraná em pó, clorofila, banho gela<strong>do</strong>, puxão<br />
de orelha, alongamento ou, caso se prefira, dar uma corrida<br />
pelo quarteirão.<br />
223
LUXÚRIA<br />
AMIGA DE FÉ, IRMÃ, CAMARADA<br />
Para minha grande amiga Hebe Camargo,<br />
mulher que irradia uma energia capaz de ultrapassar<br />
as vibrações de qualquer forma<br />
Ela é minha amiga, daquelas que a gente<br />
pode contar a to<strong>do</strong>s os momentos. Companheira<br />
disposta a enfrentar qualquer parada, mulher<br />
de fibra que não há quem deixe de admirá-la. O<br />
nome dela é Hebe Camargo e sempre quis fazer<br />
alguma homenagem pública a ela.<br />
Obviamente falo de uma mulher que exerce um la<strong>do</strong><br />
extremamente aproximativo, de forma que to<strong>do</strong>s no seu<br />
entorno se mantêm em permanente imantação. Aliás,<br />
Hebe é um ímã: atrai olhares, sorrisos, afetos e demonstrações<br />
de carinho. Mas prefiro me deter sobre outros<br />
aspectos de sua personalidade: o da sedução, no senti<strong>do</strong><br />
mais amplo que essa palavra possa ter.<br />
A sedução de Hebe não está ligada a apelos sensuais<br />
nem as jogadas pessoais deliberadamente feitas para<br />
encantar. Ela seduz por outros caminhos. Seduz por irra-<br />
225
226<br />
diar bem-estar, mesmo quan<strong>do</strong> sabemos que possa estar lá<br />
com suas <strong>do</strong>res. Hebe seduz por sua naturalidade perante<br />
qualquer assunto, <strong>do</strong>s mais complica<strong>do</strong>s aos cotidianos.<br />
Sua reação será sempre íntegra e livre de estereótipos,<br />
porque ela não oculta quan<strong>do</strong> está indignada, feliz ou ressabiada.<br />
Hebe, enfim, seduz por se manter espiritualmente<br />
jovem, em meio a seus ataques de ira e de cidadania, em<br />
meio a suas gargalhadas contagiantes. Uma supermulher.<br />
Os amigos dela costumam dizer que formamos um<br />
grupo de seus amantes. Gostamos de segui-la, contemplála<br />
e amá-la por Hebe ser <strong>do</strong> jeito que é, por nos seduzir<br />
com pequenos detalhes, por viver para insuflar alegria de<br />
vida em to<strong>do</strong>s que a rodeiam.<br />
Lembro-me de um réveillon que passamos juntas, a<br />
bor<strong>do</strong> de um iate em Angra <strong>do</strong>s Reis. Quem já passou por<br />
experiências marítimas prolongadas sabe que, a partir de<br />
determina<strong>do</strong> momento, o programa se torna meio tedioso,<br />
repetitivo e, principalmente, cansativo. Pois enquanto<br />
to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> já estava com a cara meio jururu, Hebe não<br />
perdia o rebola<strong>do</strong>: era a mais disposta, a mais brincalhona<br />
e a que menos se importava com os contratempos <strong>do</strong> trajeto<br />
– além da demora <strong>do</strong>s festejos que as datas especiais<br />
costumam ter.<br />
Ali, no meio <strong>do</strong> mar, percebi como ela exerce controle<br />
sobre suas ações, como sabe ser altruísta e jamais baixar o<br />
astral. Essa mestra também pode às vezes parecer uma
menina travessa, ou, de repente, dar conselhos dignos de<br />
um sábio. Daqui a minutos, tu<strong>do</strong> vira uma gargalhada só.<br />
Não há quem não se deixe seduzir. Também, pudera.<br />
Por isso tu<strong>do</strong> posso me considerar uma seduzida pela<br />
Hebe. Tenho certeza de que se, por acaso, amanhã eu estivesse<br />
perdida no meio da neve <strong>do</strong> Pólo Norte, poderia<br />
contar com a sua ajuda. Hebe não tem horas, não tem<br />
preconceitos, não tem protocolo, não tem má vontade.<br />
Hebe Camargo é uma pessoa rara. E tão saborosa quanto<br />
uma taça de champanhe. Mil brindes a essa amiga.<br />
227
228<br />
ORGULHO<br />
PAI HERÓI<br />
Para meu queri<strong>do</strong> pai, Valentim, que sempre<br />
se declara orgulhoso por ter realiza<strong>do</strong> os seus sonhos<br />
de um homem disposto a vencer<br />
Eu não poderia escrever um livro sem reservar<br />
um capítulo especial a meu pai, Valentim<br />
<strong>Diniz</strong>. Ele talvez seja o homem-modelo da minha<br />
vida e o personagem cuja trajetória mais admiro<br />
e que nunca deixarei de comentar. Motivos<br />
não faltam. Mas como este volume passeia<br />
entre lembranças e resoluções pessoais, escolho<br />
apenas um fato curioso de minha infância para<br />
ser o tema <strong>do</strong> texto dedica<strong>do</strong> a ele.<br />
Sempre percebi meu pai como um homem altivo,<br />
seguro de si. Desde pequena costumava observá-lo, sem<br />
que ele percebesse que carinhosamente eu espionava os<br />
seus atos. Era uma admiração secreta. Aos poucos, como<br />
acontece quan<strong>do</strong> observamos alguém especial, passei a<br />
notar uma peculiaridade, quase em forma de pureza: papai<br />
se considerava inatacável.
Explico melhor. A sua história é a odisséia de um vence<strong>do</strong>r.<br />
Trabalhou arduamente a existência inteira. Ainda<br />
hoje, aos 90 anos, ele, como sócio-funda<strong>do</strong>r, participa das<br />
reuniões, opinan<strong>do</strong> com tino e apuro mental.<br />
Meu pai, enquanto alicerçava o seu conglomera<strong>do</strong><br />
empresarial, considera<strong>do</strong> um império sem precedentes no<br />
setor <strong>do</strong> varejo no Brasil, jamais deixou de ser zeloso com os<br />
filhos. O crescimento <strong>do</strong>s negócios, o seu tino comercial e a<br />
sua diplomacia social o elevaram ao posto de herói – para filhos<br />
e descendentes, e para muitos empresários também.<br />
Essa noção gerou nele um comportamento altaneiro,<br />
de homem elegante e que deixava claro ter adquiri<strong>do</strong> por<br />
merecimento aquela posição na vida, nas finanças e no<br />
trato com o mun<strong>do</strong>. Não passaria a idéia de que o destino<br />
pudesse provocar reveses, ou que a má sorte o escolhesse<br />
para pregar uma peça de desencanto. Ele seria<br />
sempre um contempla<strong>do</strong> e as coisas ocorreriam em harmonia<br />
e equilíbrio.<br />
Lembro-me, então, de uma passagem na minha infância,<br />
quan<strong>do</strong> ele costumava nos levar para passear de carro.<br />
São Paulo era uma cidade calma e diferente da atual loucura<br />
urbana. Era uma festa sair com papai. Tu<strong>do</strong> parecia um filme.<br />
Com um detalhe: para nosso espanto, ele raramente obedecia<br />
a um sinal fecha<strong>do</strong>. Essa pequena contravenção, hoje<br />
percebo que lhe dava muito prazer, no entanto, perante nós<br />
vinha o discurso: “To<strong>do</strong>s me conhecem e quan<strong>do</strong> me virem<br />
229
230<br />
passar vão frear seus carros”. Grande mentira! Mas, acreditávamos<br />
e percebíamos sua satisfação com a situação.<br />
Essa lógica de vence<strong>do</strong>r parecia afastá-lo de qualquer<br />
causalidade ou evento funesto. Seu argumento, na época,<br />
fazia senti<strong>do</strong>: ele era Valentim <strong>Diniz</strong>, homem considera<strong>do</strong><br />
exemplar. Portanto, merecia que, vez por outra, lhe dessem<br />
passagem preferencial. Ninguém poderia considerá-lo<br />
infrator; era um pai de família e empresário passean<strong>do</strong><br />
com os filhotes. Bons tempos. São Paulo não permite mais<br />
essa liberdade. Mas, para nós, foi determinante observar a<br />
segurança paterna perante tu<strong>do</strong>.<br />
Hoje analiso que o raciocínio dele era desprovi<strong>do</strong> de<br />
sentimentos de superioridade: era uma compensação afetiva<br />
ou a certeza de que receberia a retribuição amorosa da<br />
cidade onde investira to<strong>do</strong> o seu potencial, toda a sua disposição<br />
de imigrante. Seria inadmissível, portanto, que<br />
alguém se tornasse seu desafeto ou que os sinais de trânsito<br />
atrapalhassem o seu passeio de guerreiro, mesmo<br />
quan<strong>do</strong> cometia um pequeno peca<strong>do</strong>.
AVAREZA<br />
A SETE CHAVES<br />
Para Alcides, meu irmão e a pessoa mais<br />
generosa que existe na face da Terra,<br />
exatamente o oposto <strong>do</strong>s que praticam a avareza<br />
Responda rápi<strong>do</strong>: quantas vezes encontramos<br />
pessoas simpáticas, acolhe<strong>do</strong>ras, sorridentes,<br />
versáteis em qualquer assunto, e que,<br />
perante uma aproximação posterior mais aprofundada,<br />
revelam-se terrivelmente sovinas?<br />
Socorro. A avareza assusta. Principalmente<br />
quan<strong>do</strong> provém de quem não deveria nunca praticar<br />
a sovinice, o pão-durismo, a ausência de<br />
partilha. Socorro.<br />
Detesto, execro e afasto-me de pessoas assim. Nenhuma<br />
chance de convivência seria possível. OK, ninguém<br />
está obriga<strong>do</strong> a ser perdulário, a pagar todas as despesas<br />
<strong>do</strong>s amigos ou a pouco se importar com um monte de<br />
gastos inúteis. Isso também seria tolice, principalmente se<br />
não envolver os tão valiosos ritos de amizade, amor, prazer<br />
e generosidade. Mas, cá para nós, conviver com os<br />
231
232<br />
avaros não dá pé. E esse nefasto peca<strong>do</strong> capital, é bom<br />
que se diga bem alto, acomete qualquer classe social.<br />
Catar tostões, economizar migalhas, reter o inútil,<br />
temer ficar na pobreza, jamais ofertar com o coração,<br />
negar a quem precisa? Acho que não existem atitudes<br />
mais feias e desconcertantes, para quem as pratica e para<br />
quem as assiste, geralmente em meio ao constrangimento.<br />
Ser sovina é o princípio <strong>do</strong>s malefícios sociais <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />
desde os tempos imemoriais.<br />
O avarento é assusta<strong>do</strong>, egocêntrico, exclusivista e<br />
ultrapassa<strong>do</strong>. Ele evita encontros numerosos, para nunca<br />
ser posto à prova em possíveis divisões finais de gastos. O<br />
avarento vai às compras sozinho para, desta forma estúpida,<br />
nunca se ver obriga<strong>do</strong> a pagar um objeto sequer ao<br />
acompanhante. Existem pessoas de mãos tão fechadas<br />
– esse exemplo aconteceu com um velho conheci<strong>do</strong> meu –<br />
que cobram até um creme dental que fora incluí<strong>do</strong>, por<br />
praticidade, em meio às enormes compras que o pão-duro<br />
fazia. Dá para crer? Pois é, aconteceu.<br />
Já li sobre mendigos que amealharam fortunas, descobertas<br />
depois de suas mortes, geralmente ocultadas sob<br />
assoalhos de casas aban<strong>do</strong>nadas ou dentro de velhas malas.<br />
E isso não saiu <strong>do</strong>s romances de Victor Hugo, não. A<br />
avareza, na sessão acredite se quiser permanece muito<br />
bem fornida. No Japão, há poucos anos, um homem i<strong>do</strong>so,<br />
encontra<strong>do</strong> morto em um casebre na mais absoluta penúria,
mantinha escondi<strong>do</strong>, soube-se depois, uma conta astronômica<br />
no banco. Dispensam-se os comentários, não?<br />
Exemplos existem aos montes. O pior é descobrir, assim<br />
meio por acaso, durante um jantar simpático, que aquele<br />
amigo bem-sucedi<strong>do</strong> é <strong>do</strong> tipo que faz questão de contar os<br />
tostões, jamais arre<strong>do</strong>nda contas, escapole na hora das gorjetas<br />
e finge não ver o guarda<strong>do</strong>r de automóveis. Triste também<br />
é ficar saben<strong>do</strong> que aquela pessoa – que sempre<br />
lamentava a falta de recursos – tem belas somas de dinheiro<br />
aplicadas no exterior. Conheci personagens assim.<br />
Terrível, o peca<strong>do</strong> da avareza. Terrível encontrar quem<br />
não divide, quem não abre a mão, quem não sente prazer<br />
em ser generoso, quem se compraz no mero acúmulo de<br />
valores pessoais, quem não entendeu ainda que dividir é<br />
parte essencial da vida. Pai, afasta de nós o cálice <strong>do</strong>s sovinas.<br />
Eles não herdarão reino algum. Bem-feito.<br />
233
234<br />
GULA<br />
HOMENS DAS CAVERNAS EM AÇÃO<br />
Fui gorda. Ou melhor, obesa. Sei onde a coisa<br />
pega quan<strong>do</strong> se fala em gula. Não que to<strong>do</strong> obeso<br />
seja necessariamente um glutão, mas é óbvio<br />
que a maioria come em demasia. Há centenas de<br />
explicações. Disposição genética, ansiedade, desequilíbrios<br />
hormonais, psicológicos, o pudim a<br />
quatro. Mas o tema deste capítulo é a gula, considerada<br />
um <strong>do</strong>s peca<strong>do</strong>s capitais e um <strong>do</strong>s hábitos<br />
mais ancestrais da humanidade. Por isso,<br />
vale um passeio rápi<strong>do</strong> pelo túnel <strong>do</strong> tempo.<br />
Na Antiguidade Clássica, a Grécia foi uma sociedade<br />
de gente esbelta, enquanto Roma defendia a vida prazerosa,<br />
a sensualidade e a disposição guerrea<strong>do</strong>ra: comer<br />
muito, se divertir muito, lutar muito. Tu<strong>do</strong> muito. A saudável<br />
dieta grega, mais os esportes, privilegiou corpos tão perfeitos<br />
que ainda hoje são considera<strong>do</strong>s exemplos acadêmicos<br />
insuperáveis. Roma bem que tentou o ideal grego,<br />
mas acabou descamban<strong>do</strong> para a circunferência rotunda<br />
das cinturas, pernas e flancos. Comiam tanto que inventaram<br />
o vomitório: vomitava-se para se voltar à mesa e<br />
recomeçar novamente.
Na Idade Média, as pessoas se alimentavam de mo<strong>do</strong><br />
absur<strong>do</strong>: com exageros, sem talheres, em grandes quantidades,<br />
em condições péssimas de higiene, mais o consumo<br />
imenso de carnes e, claro, nenhum planejamento nutricional.<br />
Também, pudera, morria-se antes <strong>do</strong>s 40, de <strong>do</strong>enças ligadas<br />
aos excessos alimentares, ao sedentarismo e às pestes.<br />
Voltan<strong>do</strong> mais ainda na linha <strong>do</strong> tempo, sabe-se que<br />
a alimentação <strong>do</strong> homem das cavernas era um show animalesco.<br />
Primatas que também eram, comiam a caça em<br />
grandes nacos, jogavam os ossos para o alto e brigavam<br />
pelo pedaço que o outro mastigava. Mulheres e crianças?<br />
Ficavam com os restos, já que não existia noção nuclear de<br />
família. Moleza não devia ser.<br />
Cito os homens das cavernas, os romanos e os castelões<br />
da Idade Média como exemplos radicais sobre a<br />
gula. Mas sempre me vêm essas imagens quan<strong>do</strong> encontro<br />
pessoas glutonas. A gula transforma o rosto das pessoas<br />
em máscaras de feras: nada em volta passa a ter importância,<br />
apenas olhar para a comida e querer saciar algo insaciável.<br />
Já vi quem comesse 12 pedaços de pizza. Homem<br />
primata, gula selvagem.<br />
A gula é uma estranha forma de compulsão. Não se<br />
consegue parar, porque o cérebro não emite ordens para<br />
interromper a refeição. Os glutões não pensam no que vem<br />
depois. Só pensam no antes e no durante. Dos sete peca<strong>do</strong>s<br />
capitais, a gula talvez seja o que mais traz arrependi-<br />
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mentos: dilata, infla e provoca tristeza. O filme A Comilança<br />
mostra a melhor metáfora: transfere-se para a boca o prazer<br />
da libi<strong>do</strong>, e come-se até a morte <strong>do</strong>s comensais.<br />
Uma tragédia contemporânea é comum: ver pais que<br />
incentivam filhos e amigos a competirem para ver quem<br />
come mais. Ou produzin<strong>do</strong> quantidades quase industriais<br />
de guloseimas para o uso <strong>do</strong>méstico. Ou a moça desiludida<br />
que devora uma caixa de bombons enquanto assiste a um<br />
programa de televisão. A gula é triste, deprimente e insensata.<br />
Os resulta<strong>do</strong>s da gula são de difícil retorno. Nada<br />
como celebrar o prazer <strong>do</strong>s sabores com a comida. Mas,<br />
cuida<strong>do</strong>: a gula é traiçoeira.
INVEJA<br />
O QUINTAL DO VIZINHO<br />
Para Sônia, minha irmã, que, por diversas ocasiões,<br />
me fez sentir inveja de suas atitudes perante a vida<br />
Impossível encontrar alguém que jamais<br />
tenha cometi<strong>do</strong> o peca<strong>do</strong> da inveja. Impossível,<br />
mesmo. Mais intrusa <strong>do</strong> que a preguiça ou a<br />
gula, a inveja é sorrateira e, pimba, quan<strong>do</strong><br />
menos se espera lá está ela, terrível, à espreita,<br />
aguardan<strong>do</strong> o momento certo de se manifestar,<br />
de mostrar suas unhas roxas.<br />
Arrisco até a dizer que existem os profissionais da<br />
inveja, aquela categoria que não pode ver nada de aproveitável<br />
ou desfrutável na vida alheia, sem que sinta imediatamente<br />
as punhaladas da inveja. Não seria à toa que<br />
muitos consideram os invejosos como seres com olhares <strong>do</strong><br />
tipo seca pimenteira, ou, mais popularmente, com o conheci<strong>do</strong><br />
olho gor<strong>do</strong>. Pé de arruda neles.<br />
A inveja, como a luxúria, a ira e a avareza, é bastante<br />
perceptível. Fica níti<strong>do</strong>. Muda o tom da voz, o gestual e o<br />
tratamento. Difícil para o invejoso ocultar esse sentimento<br />
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arroxea<strong>do</strong> que corrói a sua alma. A inveja talvez seja prima<br />
<strong>do</strong> ciúme, por provocar a sensação quase semelhante de<br />
vazio no coração, de assento perdi<strong>do</strong>, de preterimento<br />
pessoal, de favorecimento inexplicável. A inveja é amarga,<br />
avassala<strong>do</strong>ra e capaz de causar imensa destruição. Nunca<br />
é bom duvidar da palavra de um invejoso, porque para ele<br />
o quintal <strong>do</strong> vizinho será sempre o mais belo, o mais verde<br />
e o mais tenta<strong>do</strong>r. Inveja mata. Nos <strong>do</strong>is senti<strong>do</strong>s.<br />
Há ainda aquele tipo de inveja pequena, boba, que nos<br />
acomete quan<strong>do</strong> não temos mais nada a pensar. Comigo já<br />
aconteceu uma história de inveja, que hoje acho bastante<br />
engraçada. Sou canceriana, ligada em família, e sempre fui<br />
meio fascinada pela minha irmã Sônia. Fascinada, como<br />
assim? Explico esse episódio que vem a seguir com calma.<br />
Durante as primeiras fases de turbulência emocional<br />
da minha vida de casada, eu invejava essa irmã por ela ser<br />
casada com um médico desligadão, charmoso e, confesso,<br />
uma espécie de homem perfeito para o sonho de qualquer<br />
mulher. Em tempo: eles continuam casa<strong>do</strong>s e felizes até<br />
hoje. Então, a minha inveja era repleta de subterfúgios,<br />
como convém aos invejosos educa<strong>do</strong>s. Eu queria porque<br />
queria descobrir como um casal daqueles podia se dar tão<br />
bem e qual seria a fórmula mágica daquele amor.<br />
Por duas vezes cheguei a pedir para me hospedar na<br />
casa de Sônia, apenas para fazer observações de suas qualidades<br />
secretas como esposa. Pode? Pode, sim. Eu a pers-
crutava, disfarçadamente. E suspirava ao vê-la de óculos,<br />
len<strong>do</strong> livros, com ares intelectuais. Como minha irmã era<br />
muito desligada e dinâmica, fiquei a imaginar ser esse o clima<br />
exato para deslanchar o seu charme. E que talvez por<br />
tanto dinamismo, ela nunca chegasse ao fim de um livro.<br />
Obviamente aquelas observações não levaram a nada.<br />
Agora são lembranças curiosas que voltam. Assumo-as<br />
como um ataque bobo de inveja em uma mulher pouco liberada,<br />
como eu era. Não foi inveja baixo-astral, nem de<br />
roer unhas pelos cantos. Foi inveja de querer ser aquela pessoa,<br />
de querer se transformar em alguém quase mitifica<strong>do</strong>.<br />
Hoje a inveja é algo raríssimo em minha vida. Invejo apenas<br />
os prazeres simples da vida e as pessoas que sabem levar a<br />
existência com <strong>do</strong>ses intermináveis de bom humor.<br />
E viva o pé de arruda!<br />
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IRA<br />
O LEÃO ESTÁ SOLTO NAS RUAS<br />
Você sabia que, pelos preceitos cristãos, a ira<br />
só é peca<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> acontece com freqüência? Ao<br />
se ocorrer um ataque de ira volta<strong>do</strong> a defender a<br />
justiça ou a abrandar alguma situação indigna,<br />
ela passa a ser considerada manifestação <strong>do</strong><br />
poder divino, de defesa da vida e da busca de<br />
correção. Trocan<strong>do</strong> em miú<strong>do</strong>s: para a ira não<br />
ser pecaminosa, é preciso existir um fundamento<br />
justo.<br />
Aliás, a bem da verdade, ter ira não significa sentir raiva.<br />
A raiva seria, digamos assim, uma demonstração de pequeneza<br />
<strong>do</strong> ser humano, de mesquinhez das relações pessoais.<br />
A ira tem magnitude, atitude e objetivo. A ira é<br />
soberana, a raiva é rasteira. A raiva dá chineladas, a ira solta<br />
um leão nas ruas.<br />
Durante a minha vida aprendi que a ira pode trazer<br />
alterações importantes. Tive poucos ataques de ira, mas<br />
foram suficientes para mudar completamente uma série<br />
de situações que se haviam torna<strong>do</strong> insuportáveis. Por<br />
exemplo: quan<strong>do</strong> decidi que não seria mais uma mulher<br />
obesa e coitadinha, senti uma força inexplicável, estra-<br />
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nha e vulcânica, que vinha lá de dentro. Era a ira.<br />
Irava-me por ter me deixa<strong>do</strong> ser maltratada durante tantos<br />
anos, por haver chega<strong>do</strong> ao fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> poço da falta<br />
de estima. A partir dessa ira, decidi que seria uma mulher<br />
destemida, audaciosa e com metas profissionais<br />
ambiciosas. A partir da ira, mandei tu<strong>do</strong> para o espaço:<br />
gorduras, passividade, desamor, desatenção, falta de<br />
objetivos e sofrimentos. A ira trouxe renovação e fôlego<br />
novo. Em retrospectiva, agora percebo também que consegui<br />
me libertar de três casamentos sob o impulso altamente<br />
necessário da ira. Em cada um deles (conforme<br />
conto aqui neste livro, em capítulos separa<strong>do</strong>s), deixeime<br />
ser <strong>do</strong>minada por parcerias equivocadas, que me<br />
consumiam lentamente. Quan<strong>do</strong> eu percebia o tamanho<br />
<strong>do</strong> embrulho em que estava metida, gritava Shazam!,<br />
ficava irada e me soltava definitivamente, sain<strong>do</strong> para<br />
outra jornada existencial. A ira foi a chave certa, a solução<br />
correta, para romper coisas tão desgastantes e inúteis<br />
em minha vida sentimental.<br />
A partir daí, passei a analisar que a ira derruba estruturas<br />
apodrecidas. A ira invade terrenos mina<strong>do</strong>s. A ira é<br />
destemida. A ira movimentou os revolucionários, os grandes<br />
cria<strong>do</strong>res, os rompantes artísticos e as derrubadas de situações<br />
tirânicas. Sentir ira envolve fúria, muitas vezes.<br />
A ira também me fez reunir forças para interromper<br />
encontros fura<strong>do</strong>s, falsas amizades e negócios que anda-
vam erra<strong>do</strong>s. Quan<strong>do</strong> a ira traz justiça, não ficamos <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s.<br />
E o melhor: é uma manifestação que pode durar<br />
pouco, como uma tempestade de raios seguida por um<br />
inespera<strong>do</strong> céu azul. Coisas da natureza humana.<br />
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DESCOBERTAS<br />
OLHANDO PELAS FRESTAS<br />
Para minha neta Valentina, que me fez<br />
ter olhares novos para tu<strong>do</strong> na vida<br />
Coisa boa na vida? Resposta: Descobrir algo,<br />
descobrir pessoas, descobrir lugares, descobrir<br />
novidades próximas e nunca percebidas, descobrir<br />
os segre<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Ter olhos novos para<br />
o novo, não se retrair perante fatos revela<strong>do</strong>res,<br />
manter os sete buracos da cabeça sempre prontos<br />
para conhecer novidades.<br />
Sempre me senti uma mulher destemida, pronta a<br />
olhar pelas frestas em busca <strong>do</strong> desconheci<strong>do</strong>, a desejar<br />
situações que parecem misteriosas, a subir no sótão só<br />
para fuçar objetos perdi<strong>do</strong>s no tempo. Tu<strong>do</strong> isso parece me<br />
completar de mo<strong>do</strong> misterioso, como se as descobertas de<br />
cada dia fossem condições essenciais para a vida fluir.<br />
Muitas vezes me pego distraída, miran<strong>do</strong> alguma coisa<br />
minúscula e tão repleta de pequenos segre<strong>do</strong>s.<br />
Talvez por pensar assim, evito pessoas acomodadas.<br />
Não gosto de quem pouco se importa com a cor da asa da<br />
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borboleta que acabou de passar, ou com quem não fica<br />
curioso perante ruí<strong>do</strong>s inexplicáveis ouvi<strong>do</strong>s na madrugada.<br />
Tu<strong>do</strong> pode ser fascinante, tu<strong>do</strong> tem interpretações múltiplas,<br />
tu<strong>do</strong> ensina, tu<strong>do</strong> revela. Então como não gostar de<br />
ser um descobri<strong>do</strong>r 24 horas ao dia?<br />
Tem gente que leva a existência como se estivesse<br />
eternamente em uma cadeira de balanço, permitin<strong>do</strong> ao<br />
marasmo invadir a mente como um maremoto. Outros se<br />
submetem à repetição mecânica das situações, por me<strong>do</strong><br />
de ousar, por receio de dar saltos, por temor de apostar na<br />
descoberta. Alguns esperam que as oportunidades despenquem<br />
<strong>do</strong> teto ou que os lampejos da sorte enviem aviso<br />
de chegada.<br />
Há enorme diferença entre ser prudente e ser acomoda<strong>do</strong>.<br />
A prudência até que pode ser um componente<br />
posterior das descobertas, quan<strong>do</strong> se chega a um ponto<br />
que nos faz pensar se vale mesmo continuar avançan<strong>do</strong>.<br />
Para se estar aberto a descobrir novidades, é preciso ter<br />
noção de atuar como em um jogo: perde-se, ganha-se,<br />
empata-se, recua-se, avança-se, desiste-se. O mais importante<br />
é saber que, sob qualquer circunstância, o resulta<strong>do</strong><br />
que as descobertas trazem será produtivo, fará refletir,<br />
trará impulsos mentais, reavaliará méto<strong>do</strong>s, proporcionará<br />
novas interpretações sobre a vida.<br />
Então, mãos à obra. Entre no jogo das descobertas:<br />
puxe aquele assunto que deseja conversar com alguém
especial, siga a trilha de João e Maria, assista um programa<br />
naquele canal que nunca chamou a sua atenção, ouça<br />
conversas de pessoas desconhecidas, abra na página 207<br />
daquele livro e leia a terceira frase, converse com alguém<br />
diferente pelo menos uma vez ao dia, jogue-se de férias<br />
em destinos absolutamente desconheci<strong>do</strong>s, prove receitas<br />
culinárias ousadas, ouça o CD daquele artista estranho,<br />
espie de vez em quan<strong>do</strong> pelo buraco da fechadura, roube<br />
um beijo, envie mensagens surpreendentes a um amigo,<br />
visite um museu, abrace quem nunca foi abraça<strong>do</strong>, colecione<br />
fotos de girafas, aprenda a dançar ritmos difíceis,<br />
cheire flores exóticas, brinque de fantasma com os sobrinhos,<br />
conquiste alguém especial, cultive um cacto raro,<br />
aprenda canto, olhe a paisagem de binóculos, assista um<br />
filme da Nova Zelândia, abra um champanhe no café da<br />
manhã <strong>do</strong> próximo <strong>do</strong>mingo, abra a janela, abra o sorriso,<br />
abra o coração, abra a mente, abra-se para o universo.<br />
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