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No Campo das semelhanças deslocadas e das proximidades ...

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Volume 4 ◦ Número 2<br />

CRÍTICA<br />

CULTURAL CRITIQUE<br />

CULTURAL<br />

<strong>No</strong> campo <strong>das</strong> <strong>semelhanças</strong><br />

desloca<strong>das</strong> e <strong>das</strong> <strong>proximidades</strong><br />

empáticas<br />

Rosângela Miranda Cherem*<br />

ENSAIO<br />

Resumo:<br />

O ponto de partida deste texto pressupõe um pensamento sobre a fotografia através<br />

de pequenos fragmentos concebidos como partes de um políptico. Se, como<br />

ensina Barthes, tudo pode ser texto, o que interessa neste caso não é nem o significado<br />

e nem a compreensão comparativa e/ou evolutiva que concede ao presente<br />

a última palavra, mas uma ênfase ao caráter de inquietação e heterogeneidade,<br />

quando uma estrutura ordenadora e classificatória pode ser movimentada e desierarquizada<br />

em detrimento da técnica e do registro documental codificados pela<br />

importância histórica ou jornalística. Em tempos de expansão inimaginável do<br />

arsenal imagético e de telas que prometem revelar incansavelmente os fatos em<br />

tempo real, sejam eles íntimos ou de relevância planetária, parece conveniente<br />

suspender as certezas sobre a imagem fotográfica para interrogar sua natureza,<br />

problematizando como a mesma sobrevive por metamorfoses, constituindo-se e<br />

persistindo em sua condição artística.<br />

Palavras-chave:<br />

Fotografia; imagem; arte contemporânea<br />

Considerações sobre um políptico fotográfico<br />

Começo por uma questão: num mundo em que todos fotografam o que faz da<br />

fotografia uma obra de arte? Bem verdade que o primeiro impulso seria responder<br />

que o que faz da fotografia uma obra de arte é o mesmo que dá esta condição<br />

para a pintura, a arquitetura, o cinema, etc. Mas a questão é que este meio técnico<br />

é, possivelmente, o mais proliferante e acessível a uma grande parcela da<br />

população, ainda que proveniente dos mais diferentes meios sociais e culturais.<br />

Em termos formais e de conteúdo temático, especialmente os anúncios publicitários,<br />

os meios impressos e a televisão, além dos recursos de manipulação digital<br />

acessíveis a qualquer curioso, já há muito criaram certas percepções visuais que<br />

acolhem surpresas, fazendo com que aquilo que foi concebido como fotografia artística<br />

em outras déca<strong>das</strong> seja hoje algo não só familiar como seus procedimentos<br />

sejam assimilados e correntes.<br />

Em termos técnicos, para além de equipamentos sofisticados, vendem-se máquinas<br />

fotográficas como brinquedos para crianças desde a mais tenra idade. Podese<br />

mesmo dizer que há um tipo de máquina para cada tipo de fotógrafo. Constituise<br />

em algo quase constrangedor, ou ao menos bastante estranho, alguém dizer<br />

que não fotografou sua viagem. É quase impossível pensar um aniversário, um<br />

* Professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UDESC<br />

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CRÍTICA<br />

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CULTURAL<br />

casamento, uma formatura sem fotógrafos profissionais que disputam a repetição<br />

do gesto fotográfico com pessoas <strong>das</strong> mais diferentes idades e formações.<br />

Goethe e o reino <strong>das</strong> afinidades inverificáveis<br />

Para encarar a pergunta formulada no início deste texto, resolvo recuar. Volto-me<br />

para um escritor que amava pintura e que fez uma viagem a Itália, trazendo duas<br />

questões que o marcaram por toda a vida, a saber, a luz e a forma. Não à toa,<br />

mais adiante, estas duas questões foram indelevelmente associa<strong>das</strong> à fotografia,<br />

embora no seu tempo, uma tenha sido tratada através de um livro chamado<br />

Doutrina <strong>das</strong> cores (1ª versão inglesa, 1840) e outra num livro chamado A metamorfose<br />

<strong>das</strong> plantas (1790). Sobre este, a pergunta que lhe serviu de ponto de<br />

partida pode ser assim resumida: sendo as plantas tão varia<strong>das</strong> em tamanhos,<br />

cores e outras características, o que faz da planta uma planta? Como reconhecêla<br />

em suas inumeráveis variedades e metamorfoses?<br />

Respeita<strong>das</strong> as diferentes circunstâncias, eis a pergunta que parece apropriada<br />

também para pensar a relação entre fotografia e obra de arte: sendo as fotografias<br />

tão varia<strong>das</strong> em tamanhos, cores e outras características, o que faz da<br />

fotografia uma obra de arte? Como reconhecê-la em suas inumeráveis variedades<br />

e metamorfoses? Bem verdade que para responder à questão Goethe recorreu<br />

à taxonomia de Lineu sobre os reinos da natureza, cujos pressupostos descritivos<br />

buscavam independência em relação às referências humanas. Diferente dos<br />

conhecimentos renascentistas, em que o corpo humano era a medida de to<strong>das</strong><br />

as coisas, e mesmo as cores da natureza estavam relaciona<strong>das</strong> às fases da vida,<br />

tanto no racionalismo dos setecentos como também no romantismo, o homem<br />

tornava-se apenas uma parte diminuta em relação aos reinos naturais a serem<br />

estudados e classificados. Distinguindo-se <strong>das</strong> pinturas em que o corpo humano<br />

ocupava papel central, nas telas dos oitocentos ele já havia se tornado uma parte<br />

diminuta em relação à amplidão do mundo e à grandeza da paisagem, enquanto<br />

os reinos animal e vegetal, por exemplo, passavam a ser estudados tanto no padrão<br />

como na singularidade autônoma de suas formas orgânicas.<br />

Todavia, curioso lembrar que A metamorfose da plantas abriu as portas de uma<br />

profunda amizade entre seu autor e o poeta e filósofo Schiller. Este último, três<br />

déca<strong>das</strong> depois de morto, teve sua ossada removida para um ossário e os peritos<br />

foram chamados para identificar sua caveira, sendo credenciado exatamente<br />

seu amigo escritor, em grande parte devido à credibilidade adquirida pelo estudo<br />

<strong>das</strong> formas botânicas. Tarefa que não só cumpriu, mas que resultou num poema<br />

acrescentado em edições posteriores como epílogo ao livro que dera início à relação<br />

entre ambos. É então que, para além da questão vegetal, deslinda-se neste<br />

procedimento uma compreensão sobre a metamorfose e a sobrevivência deslocada<br />

<strong>das</strong> formas.<br />

Pensando a imagem como uma linha de fratura que desmonta o fio de continuidade<br />

entre as coisas, pode-se reconhecê-la, ao mesmo tempo, como plástica e<br />

informe. <strong>No</strong> plano da psicanálise, Freud permite considerar como esta questão se<br />

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desdobra como princípio de alteração e, no plano da cultura, Benjamin permite<br />

pensar um procedimento ancestral e renitente da experiência humana, marcado<br />

pelo princípio a que chamou de busca da semelhança inverificável, movida por<br />

uma proximidade empática. Tento explicar-me.<br />

<strong>No</strong> texto intitulado Além do princípio do prazer (1920), Freud aborda a íntima<br />

relação entre o prazer e o sofrimento através da cena em que uma criança com<br />

cerca de um ano e meio, deixada num ambiente pela mãe, aguarda o seu retorno.<br />

Enquanto isto não acontece, na solidão de sua espera, põe-se a brincar com<br />

um carretel que joga para baixo do sofá e busca novamente, puxando-o por um<br />

fio. Explorando o conceito de alteração, o psicanalista explica a relação entre a<br />

ausência materna e a transformação do objeto em brinquedo como uma espécie<br />

de assassinato simbólico e um processo de substituição da falta. O movimento de<br />

fluxo e refluxo, abandono e preenchimento poderia ser então pensado mais como<br />

ambigüidade do que oposição ou contraponto, pois figurar a ausência seria um<br />

modo de suspender a espera e eternizar o desejo. Para Freud, sob certas circunstâncias,<br />

esforçando-se para obter a tolerância do desprazer e assim poder restaurar<br />

um estado anterior, a criança, como os neuróticos e os artistas, repete o que<br />

lhe causou grande impressão como um modo de se tornar senhora da situação.<br />

<strong>No</strong> pequeno, mas complexo texto chamado Doutrina da semelhança (1933), o<br />

autor reflete como certos procedimentos guardados nos primórdios da magia e<br />

<strong>das</strong> caça<strong>das</strong> permitem pensar ainda, tanto o mimetismo <strong>das</strong> brincadeiras como<br />

do cientista, especialmente considerando os fundamentos de reminiscência e associações<br />

que operam através de contigüidade e desvio, condensação e cintilação<br />

onde as similitudes são construí<strong>das</strong>, embora mantendo o inexplicável salto em que<br />

algo pré-existente parece escapar. Em outras palavras, ao pensar os processos<br />

que engendram a semelhança, Benjamin observou que os mesmos fazem parte<br />

de um repertório filogenético que atravessou da pré-história à antiguidade, perpassando<br />

a leitura de pega<strong>das</strong> e o poder revelador dos astros, vísceras e outros<br />

acasos através dos quais os destinos humanos seriam vinculados, persistindo na<br />

força onomatopaica <strong>das</strong> palavras, no poder decifrador da escritura e da grafologia,<br />

etc. Ao situar a semelhança sobre o fluxo <strong>das</strong> coisas era a própria linguagem<br />

que se elaborava, construindo conexões e percepções instala<strong>das</strong> sob os equívocos<br />

da vidência que se acreditava ou fazia passar por evidência.<br />

Assim, tomando de Goethe a questão da metamorfose, chega-se ao entendimento<br />

de que a imagem relaciona-se à instância onde resplandece um mundo de significados<br />

completamente móveis e inefáveis. Simbologizando a ausência do objeto<br />

amado, a criança processa e altera a falta, assim como, ao construir <strong>semelhanças</strong><br />

entre coisas díspares o homem faz a imagem ser ao mesmo tempo repetição e<br />

aparição única, mas cuja lei, repousada num abismo silencioso, pertence a uma<br />

ordem analfabética. Se o animal humano é o único capaz de se interessar pela<br />

imagem como imagem, é menos por sua capacidade de reapresentar o mundo<br />

e mais porque pode criar e freqüentar mundos onde tudo resplandece e vibra<br />

no seu estado puro e desordenado, podendo mover-se de modo imprevisível e<br />

para qualquer direção. Eis-me diante de uma nova pergunta: afinal, não seriam<br />

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CRÍTICA<br />

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CULTURAL<br />

estes pontos importantes para pensar a condição artística da própria fotografia?<br />

Desdobro-me.<br />

Blossfeld e o deslocamento <strong>das</strong> formas<br />

Com uma câmera fotográfica desenhada por ele mesmo, Karl Blossfeld (1865-<br />

1932) dedicou-se ao registro alterado <strong>das</strong> formas vegetais, ampliando-as em cerca<br />

de trinta vezes e revelando seus detalhes. Alemão que também viajou pela<br />

Itália, embora mais de um século depois de Goethe, em tempos de art-nouveau,<br />

desenhava e ensinou modelagem com base nas próprias fotografias que tirava,<br />

centrando-se na relação entre as formas vegetais e os ornamentos em metal. <strong>No</strong><br />

pós-Primeira Guerra suas fotos foram publica<strong>das</strong> em revistas ilustra<strong>das</strong>, além de<br />

livros de arquitetura e design, destacando-se numa estética conhecida como <strong>No</strong>va<br />

Objetividade, da qual também faziam parte os expressionistas Otto Dix, Max Beckeman<br />

e George Groz, seguindo para uma exposição na Bauhaus em Dessau.<br />

Karl Blossfeld, sem dados<br />

Em 1929 Georges Bataille usou suas fotografias para ilustrar a Linguagem <strong>das</strong><br />

flores, texto através do qual afirmava ser vão o esforço para reduzir as coisas a<br />

significados meramente inteligíveis, pois o que toca os olhos humanos é também<br />

um estado de espírito decisivo e inexplicável. Do mesmo modo que nada determina<br />

que uma bela jovem ou uma rosa vermelha significam amor, a simbologia <strong>das</strong><br />

flores não estaria relacionada à sua função. Só assim, em clave de estranhamento<br />

poético e não de convenções estéticas, o gesto do Marquês de Sade que despetalava<br />

as mais belas rosas sobre uma fossa poderia ser pensado.<br />

Em Pequena história da fotografia (1931) Walter Benjamin comentou sobre as<br />

plantas de Blossfeld considerando uma anatomia comparada <strong>das</strong> formas. Pensando<br />

a modernidade pelos efeitos caleidoscópicos, reconhecia a fotografia como<br />

montagem visual que testemunhava um tempo de alterações e turbulências. Remetendo<br />

à natureza extra-sensível na qual se situa o reino <strong>das</strong> <strong>semelhanças</strong><br />

desloca<strong>das</strong>, ocupou-se dos processos engendrados pela capacidade humana de<br />

produzir <strong>semelhanças</strong>, onde o que persiste é o gesto que faz aparecer um fundo<br />

resplandecente entre as coisas para logo em seguida deixar que o mesmo desapareça<br />

como noite iluminada por um relâmpago.<br />

Em 1984 foi a vez do teórico e fotógrafo Villem Flusser escrever um texto deno-<br />

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minado Herbarium, onde analisava as espécies vegetais do catalão Joan Fontcuberta1<br />

(Barcelona, 1955), cujas formas inusita<strong>das</strong> nada tinham a ver com manipulação<br />

genética e sim com manipulação fotográfica. Desfazendo as certezas da<br />

realidade para pensar a verdade da imagem fotografada, apontava para um ardil<br />

que faz passar por real informação botânica aquilo que seriam apenas símbolos<br />

vegetais independentes <strong>das</strong> mutações genéticas. Lembrando bastante as fotografias<br />

de Blossfeld, este novo herbário não só ironiza os critérios ciência-natureza,<br />

como também ciência-arte. Embora a simulação e a fraude tenham sido um tema<br />

recorrente na História da Arte, bem como as investigações científicas em relação<br />

à alteração <strong>das</strong> plantas permitam interrogar a nitidez dos critérios natural-artificial,<br />

o que se afirma nestes trabalhos é uma reflexão sobre verdade e documento,<br />

realidade e representação.<br />

(1) (2) (3)<br />

Joan Fontcuberta:<br />

(1) Lavandula angustifólia, 1984<br />

(2) Giliandria escolforcia, 1984<br />

(3) Pirulera Salbitana, 1983<br />

<strong>No</strong> mundo <strong>das</strong> <strong>semelhanças</strong> desloca<strong>das</strong> e inverificáveis, as minúsculas formas<br />

vegetais amplia<strong>das</strong> por Blossfeld o credenciaram como artista. Possivelmente<br />

também foram estes procedimentos que inspiraram tanto as reflexões de Bataille<br />

sobre a natureza poética como de Benjamin sobre a natureza estética e técnica da<br />

fotografia. Implicados pela afinidade empática, o mesmo não poderia ser pensado<br />

por Flusser e Fontcuberta? Detalhe importante: em 1993 este último fotógrafo<br />

apresentou trabalho intitulado The theory of botany - the theory of anatomy, fazendo<br />

retornar o insólito parentesco entre as plantas e o corpo humano. Eis o<br />

que faz voltar como aparição os estudos <strong>das</strong> formas vegetais feitos por Goethe e<br />

a estranha autoridade que lhe foi atribuída para reconhecer a ossada de Schiller.<br />

Gartner e Flack, metamorfoses plásticas<br />

Seguindo na clave da relação entre as formas orgânicas e a morte, passo agora<br />

1 Esta série fotográfica foi exposta em São Paulo no Itaú Cultural, de 15.10 a 13.12.2009, como parte<br />

da exposição de vídeos e fotografias intitulada A invenção de um mundo.<br />

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a tratar dos estranhos corpos que brotam nos trabalhos da canadense Marianna<br />

Gartner. Seus retratos remetem a peculiares ambientações em estúdios fotográficos,<br />

dispostos premeditadamente em termos de composição temática e poses<br />

eterniza<strong>das</strong> através deste meio técnico. Em tempos de formas corporais constantemente<br />

expostas e repagina<strong>das</strong>, em que toda revelação é prometida, o que se<br />

destaca em sua arte é o enigma e a ambigüidade. Nas poses solenes e na aparente<br />

cumplicidade do olhar lançado ao espectador, fundem-se o belo e o sinistro,<br />

confundidos propositadamente e guardados como aberração familiar e secreta.<br />

Ocorre que não se trata de fotografias, mas de pinturas em que comparecem com<br />

doçura diabólica um bebê tatuado e chifrudo; bem como os rostos infantis que<br />

ladeiam um adulto parecem conter mais malícia do que o deste. Além de corpos<br />

vestidos como se fossem esqueletos fantasiados para algum ritual ou festejo,<br />

uma menina se equilibra sobre um instável fio, enquanto outra se posiciona como<br />

se protagonizasse um ritual sadô num ambiente de puro ornamento, talvez lembrando<br />

que o erotismo como a beleza não passam de dispêndio. Enquanto algo<br />

mortífero vai se infiltrando, compreende-se que o orgânico é ali detalhe enganoso,<br />

reconhecendo enfim que se trata de um antigo tema pictórico denominado<br />

memento mori, retomado não pelas admoestações barrocas mas pelas fotografias<br />

que eram tira<strong>das</strong> dos mortos como última lembrança para os vivos. Servindo menos<br />

como uma máscara mortuária, destinada à presentificação do morto entre os<br />

vivos e mais como último artifício para encenar a condição vivente, as fotos que<br />

se escondem nas telas de Gartner ainda hoje podem ser alcança<strong>das</strong> como dramaturgia<br />

de um vazio e abandono irreparáveis. Eis a pintura que, citando a fotografia<br />

situa-se não como recurso de suspensão entre a despedida e a desaparição, mas<br />

como visada sinistra de um pesadelo em que o corpo permanece para sempre<br />

prisioneiro entre o não mais e a última vez.<br />

(1) (2)<br />

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(3) (4)<br />

Marianna Gartner:<br />

(1) Diablo Baby III, s/d<br />

(2) Skeleton & Sailor, 2004, óleo s/ tela, 147 x 88 cm<br />

(3) Skull Girl, 2004, óleo s/ madeira, 177,8 x 111,6 cm<br />

(4) Playing with Scissors, 2004, óleo s/tela, 147 x 198 cm<br />

Por sua vez, embora trate igualmente do tema do memento mori, os trabalhos de<br />

Audrey Flack (<strong>No</strong>va Iorque, 1931) não são retratos, mas naturezas-mortas que<br />

remetem às peculiaridades fotográficas e suas cenografias, estando os objetos<br />

dispostos premeditadamente em termos de composição temática, distribuição,<br />

cor, volume e planos. Além de objetos simbólicos como flores e ampulheta, desde<br />

longa data relacionados às vanitas, seus temas estão relacionados ao universo<br />

feminino onde, entre jóias e apetrechos, estão as coisas de toalete. À maneira<br />

dos anúncios de lanchonete em que os alimentos apresentam tonalidade muito<br />

colorida e estimulante aos sentidos, as formas e artefatos apresentam-se num<br />

aglomerado que encena o improviso e o provisório, o precário e o aleatório, destacando-se<br />

a intensidade pulsante <strong>das</strong> cores. Sutil mas fatal traição, tanto ao<br />

que se poderia chamar de foto-realismo como também de pintura hiper-realista,<br />

apenas por um detalhe sua pintura revela a enganosa promessa da documentação<br />

fotográfica: vistos de frente, seus arranjos contemplam diferentes ângulos<br />

astuciosamente montados como se fossem possíveis de serem apreendidos num<br />

único lance.<br />

(1) (2)<br />

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Audrey Flack:<br />

(1) Segunda Guerra Mundial, 1976-77 50 x 50 cm<br />

(2) Roda da Fortuna, 50,8 x 50,8 cm<br />

De toda maneira, o que se poderia reconhecer em ambas as pintoras é um olhar<br />

de contra-mão em relação ao começo da história da fotografia. Se antes esta<br />

deveria citar a pintura em detalhes importantes como a assinatura do artista,<br />

o enquadramento e a cenografia, agora é a pintura que cita e se faz passar por<br />

foto, quer referenciando o objeto visualizado, quer encenando o colorido e seu<br />

caráter de reapresentação documental. Recolocando o entendimento de que pintar<br />

é colocar problemas e pensá-los plasticamente, devendo o artista descobrir<br />

fora de si mesmo um tema digno da intensidade de suas inquietações. Já não<br />

estou certa de que há uma experiência pessoal que precede a obra ou se ela vai<br />

se reinventado pela memória que, como dançarina lábil, modifica-se à medida<br />

que vai entrando no redemoinho da imaginação artística. Assim, as lembranças<br />

e os vestígios nada mais seriam que uma espécie de pretexto para olhar no olho<br />

do furacão sem deixar-se tragar por ele, ou seja, tratar através da pintura sobre<br />

o fascínio da imagem que alcança a fotografia. Ao tentar articular melhor o ponto<br />

que aproxima o pensamento pictórico do fotográfico, debruço-me mais um pouco<br />

sobre esta relação de dupla-via, a tela e a foto.<br />

Wall e Chadwick, distâncias que não se alcançam<br />

Observo os back-lights de Jeff Wall (Canadá, 1946). Neles não há narrativa, apenas<br />

um instante apreendido no flagrante. Soprou um vento, uma cova encheu de<br />

água, alguém está saindo de casa. Ainda que lembre uma tela de Hokusai ou um<br />

filme interrompido em pause, é de uma cenografia real que se trata e nela tudo<br />

está relacionado em escala com o corpo humano. Como nas pinturas de Flack,<br />

encena-se uma impremeditação. Apenas nas entrevistas com o artista e textos<br />

sobre seu respeito é possível reconhecer seus procedimentos, sendo que os cenários<br />

são construídos exaustiva e minuciosamente, as cenas são refeitas muitas<br />

vezes até que atinjam a intenção desejada, o silêncio e o mistério são obtidos<br />

por sobreposições cuja maestria técnica permanece invisível. Para além de seu<br />

trânsito na criação de cenários teatrais e fílmicos, sob a aparente ênfase a um fato<br />

cotidiano ou banal, destaca-se uma temporalidade entre o sono e a vigília, semelhante<br />

àquela em que ao acordar continuamos assombrados por algo ilocalizável<br />

que nos fisgou o olhar, preservando as sensações oníricas. Encenando o como<br />

se nada fosse o artista conduz o gesto fotográfico ao nada mais que, obliterando<br />

as armadilhas que se escondem na precisão e na ordinariedade do registro. Mas<br />

assim como quando acordamos sabemos que perdemos irreparavelmente algo do<br />

que foi sonhado ou como quando contamos o sonho sabemos que jamais poderemos<br />

dar às palavras o exato teor da figuração onírica, a intensidade da cena permanece<br />

suspensa entre um antes e um depois que nunca chegam a se relacionar,<br />

permanecendo entre eles uma distância abismal.<br />

200<br />

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(1) (2)<br />

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Jeff Wall:<br />

(1) A Sudden Gust of Wind (after Hokusai), 1993 lightbox, 229 x 337 cm<br />

(2) The Flooded Grave, 1998–2000, lightbox 228.5 x 282 cm<br />

Poética semelhante, embora não com a mesma temática, também se encontra<br />

em Hellen Chadwick (Inglaterra, 1953-1996). Vinda de uma geração cuja sensibilidade<br />

estética foi denominada Sensation, esta artista percorreu as abordagens<br />

feministas até receber um convite do Museu Victória e Albert em fins dos anos 80,<br />

onde compareceu com uma série de polaróides chamada Carne abstrata, seguida<br />

de back-lights dispostos em dípticos denominados Enfleshings. Ao longo deste<br />

percurso pode-se reconhecer uma problemática relacionada ao rosto desfeito e à<br />

perda da profundidade. Como no caso de Wall, em que a cena não pode ser narrada,<br />

restando apenas um instante a ser captado como fragmento, em Chadwick<br />

o que se destaca é a impossibilidade do retrato. Assim, seu elevado poder de convencimento<br />

visual remete ao que permanece estranhamente inacessível, vestígio<br />

de algo condenado ao que não se revela, potencializando a distância inalcançável<br />

da imagem em sua absoluta solidão.<br />

(1) (2)<br />

Hellen Chadwick:<br />

(1) Auto-retrato, 1991<br />

(2) Meat Abstract, 1989, Polaroid, 61.5 x 52.5cm<br />

Amparados pelo entendimento de que boa parte da arte contemporânea deixou


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de problematizar o mundo como mistério e espanto e de produzir o trânsito <strong>das</strong><br />

formas, os procedimentos de Wall como de Chadwick parecem concordar com as<br />

críticas de Baudrillard a respeito do assassinato da ilusão como parte constitutiva<br />

da realidade. Esta teria sido substituída pelo conteúdo documental do espetáculo<br />

jornalístico, literário, fílmico e fotográfico, o qual nada mais faz do que recalcar<br />

a condição mais remota e recôndita da imagem para colocar no seu lugar os registros<br />

políticos, econômicos, sociais, etc. Abrindo mão de ser um acelerador de<br />

ilusão e recusando o pensamento que opera por deslocamentos, a imagem fica<br />

reduzida à condição de mero vestígio do mundo, aumentando o efeito anestésico<br />

que a recobre. Assim, denunciando o que resolveu chamar de pornografia <strong>das</strong><br />

imagens e complô da arte, o autor francês constata a miséria da imagem que se<br />

torna orgia do hiper-real, enquanto recusa a potência que advém do desaparecimento<br />

dos objetos e da descoberta <strong>das</strong> coisas como aparição. Contrapondo-se<br />

aos efeitos imobilizadores do excesso de informação, à banalização do consumo<br />

e à impostura artística baseada na verossimilhança, interroga a incapacidade de<br />

alcançar a imagem naquilo que faz rebater o vazio e só existe como potência<br />

imagética, que promete e falha porque nada entrega. Ou seja, ao reafirmar o caráter<br />

ilusório da imagem, Baudrillard, como os artistas em questão, recusam-se a<br />

considerar a arte como espelho super-dotado e hiperbólico ou território de imagens<br />

desnuda<strong>das</strong> de segredo, posto que ignorar o mistério <strong>das</strong> aparências serve<br />

apenas para recalcar aquilo que se apresenta em sua condição de dessemelhança<br />

ou simulacro.<br />

Para finalizar volto ao começo<br />

Sendo as fotografias tão varia<strong>das</strong> em tamanhos, cores e outras características, o<br />

que faz da fotografia uma obra de arte? Como reconhecê-la em suas inumeráveis<br />

variedades e metamorfoses? Se a resposta é a morte da pergunta, melhor apenas<br />

guardar a principal lição alcançada ao longo dos trabalhos aqui referidos, a saber,<br />

que para ser habitante do território artístico a fotografia precisa destacar-se na<br />

capacidade de acolher o imprevisível e o ambíguo. Produzindo um tipo de pensamento<br />

plástico que opera por báscula e que permite estabelecer articulações e<br />

descentramentos, observa-se que, em termos de planos e contra-planos, os mesmos<br />

situam-se menos na relação de opostos ou complementos e mais como instâncias<br />

combinatórias perpassa<strong>das</strong> por algo que persiste e insiste potencializado<br />

como extra-parte. Trata-se de surpreender e estranhar, desconhecendo a ordem<br />

e a receita daquilo que constitui uma obra, mas reconhecendo sua faculdade de<br />

alterar a medida <strong>das</strong> coisas, tornando-se uma espécie de bloco que move o olhar<br />

entre a precisão e a desmedida, desejando menos ser a regra e mais ser alteração<br />

e desvio. Entretanto, este raciocínio não valeria para pensar outras obras artísticas<br />

para além da fotografia? É certo que problematizar a fotografia como obra de<br />

arte não é o mesmo que distinguir a fotografia <strong>das</strong> outras possibilidades artísticas,<br />

mas isto já é outra questão, melhor parar por aqui.<br />

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Referências:<br />

BARTHES, Roland. Texto (teoria do). Inéditos, I. São Paulo: Martins Fontes,<br />

2004.<br />

BATAILLE, Georges. Le langage des fleurs. Oeuvres complètes vol. I. Premiers<br />

écrits, 1922-1940. Paris: Gallimard, 1970.<br />

BAUDRILLARD, Jean. A arte da desaparição. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997.<br />

BENJAMIN, Walter. A doutrina <strong>das</strong> <strong>semelhanças</strong>. Magia e técnica, arte e política.<br />

Obras Escolhi<strong>das</strong> vol.I. São Paulo: Brasiliense, 1985.<br />

BERGAMIN, José. La decadencia del analfabetismo. Madrid: Siruela, 2000.<br />

FONTCUBERTA, Joan. Ciencia y fricción. Fotografia, naturaleza, artificio. Murcia:<br />

Mestizo A.C., 1998.<br />

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. Lisboa: Relógio d’Agua, 2009.<br />

GOETHE, Johann Wolfgang von. A metamorfose <strong>das</strong> plantas. 3ª ed. São Paulo:<br />

Ed. Antroposófica, 1997.<br />

MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. Uma história de amor e ódio. São Paulo: Cia.<br />

<strong>das</strong> Letras, 2001.<br />

Title:<br />

In the field of dislocated similarities and empathic proximities<br />

Abstract:<br />

The starting point in this essay assumes a view on photography through small<br />

fragments conceived as parts of a poliptic. If, as Barthes claims, everything can<br />

be a text, what is of interest here is not so much the meaning, nor the comparative<br />

and/or evolutive understanding that endows the present with the last word,<br />

but a stress on the character of heterogeneity and unrest when an ordaining and<br />

classificatory structure can be moved and its hierarchy undone over the technique<br />

and the documental record codified by the historical or journalistic relevance. In<br />

times of an unthinkable expansion of the imagetic arsenal and of screens that<br />

untiringly promise to reveal the facts in real time, be it a matter of intimate facts,<br />

be it a matter of facts of planetary significance, it seems wise to suspend those<br />

certainties about the photographic image in order to interrogate its very nature,<br />

asking how it survives such metamorphoses, constituting itself and persisting in<br />

its artistic condition.<br />

Keywords:<br />

Photography; image; contemporary art<br />

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