No Campo das semelhanças deslocadas e das proximidades ...
No Campo das semelhanças deslocadas e das proximidades ...
No Campo das semelhanças deslocadas e das proximidades ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Volume 4 ◦ Número 2<br />
CRÍTICA<br />
CULTURAL CRITIQUE<br />
CULTURAL<br />
<strong>No</strong> campo <strong>das</strong> <strong>semelhanças</strong><br />
desloca<strong>das</strong> e <strong>das</strong> <strong>proximidades</strong><br />
empáticas<br />
Rosângela Miranda Cherem*<br />
ENSAIO<br />
Resumo:<br />
O ponto de partida deste texto pressupõe um pensamento sobre a fotografia através<br />
de pequenos fragmentos concebidos como partes de um políptico. Se, como<br />
ensina Barthes, tudo pode ser texto, o que interessa neste caso não é nem o significado<br />
e nem a compreensão comparativa e/ou evolutiva que concede ao presente<br />
a última palavra, mas uma ênfase ao caráter de inquietação e heterogeneidade,<br />
quando uma estrutura ordenadora e classificatória pode ser movimentada e desierarquizada<br />
em detrimento da técnica e do registro documental codificados pela<br />
importância histórica ou jornalística. Em tempos de expansão inimaginável do<br />
arsenal imagético e de telas que prometem revelar incansavelmente os fatos em<br />
tempo real, sejam eles íntimos ou de relevância planetária, parece conveniente<br />
suspender as certezas sobre a imagem fotográfica para interrogar sua natureza,<br />
problematizando como a mesma sobrevive por metamorfoses, constituindo-se e<br />
persistindo em sua condição artística.<br />
Palavras-chave:<br />
Fotografia; imagem; arte contemporânea<br />
Considerações sobre um políptico fotográfico<br />
Começo por uma questão: num mundo em que todos fotografam o que faz da<br />
fotografia uma obra de arte? Bem verdade que o primeiro impulso seria responder<br />
que o que faz da fotografia uma obra de arte é o mesmo que dá esta condição<br />
para a pintura, a arquitetura, o cinema, etc. Mas a questão é que este meio técnico<br />
é, possivelmente, o mais proliferante e acessível a uma grande parcela da<br />
população, ainda que proveniente dos mais diferentes meios sociais e culturais.<br />
Em termos formais e de conteúdo temático, especialmente os anúncios publicitários,<br />
os meios impressos e a televisão, além dos recursos de manipulação digital<br />
acessíveis a qualquer curioso, já há muito criaram certas percepções visuais que<br />
acolhem surpresas, fazendo com que aquilo que foi concebido como fotografia artística<br />
em outras déca<strong>das</strong> seja hoje algo não só familiar como seus procedimentos<br />
sejam assimilados e correntes.<br />
Em termos técnicos, para além de equipamentos sofisticados, vendem-se máquinas<br />
fotográficas como brinquedos para crianças desde a mais tenra idade. Podese<br />
mesmo dizer que há um tipo de máquina para cada tipo de fotógrafo. Constituise<br />
em algo quase constrangedor, ou ao menos bastante estranho, alguém dizer<br />
que não fotografou sua viagem. É quase impossível pensar um aniversário, um<br />
* Professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UDESC<br />
193
CRÍTICA<br />
CULTURAL CRITIQUE<br />
CULTURAL<br />
casamento, uma formatura sem fotógrafos profissionais que disputam a repetição<br />
do gesto fotográfico com pessoas <strong>das</strong> mais diferentes idades e formações.<br />
Goethe e o reino <strong>das</strong> afinidades inverificáveis<br />
Para encarar a pergunta formulada no início deste texto, resolvo recuar. Volto-me<br />
para um escritor que amava pintura e que fez uma viagem a Itália, trazendo duas<br />
questões que o marcaram por toda a vida, a saber, a luz e a forma. Não à toa,<br />
mais adiante, estas duas questões foram indelevelmente associa<strong>das</strong> à fotografia,<br />
embora no seu tempo, uma tenha sido tratada através de um livro chamado<br />
Doutrina <strong>das</strong> cores (1ª versão inglesa, 1840) e outra num livro chamado A metamorfose<br />
<strong>das</strong> plantas (1790). Sobre este, a pergunta que lhe serviu de ponto de<br />
partida pode ser assim resumida: sendo as plantas tão varia<strong>das</strong> em tamanhos,<br />
cores e outras características, o que faz da planta uma planta? Como reconhecêla<br />
em suas inumeráveis variedades e metamorfoses?<br />
Respeita<strong>das</strong> as diferentes circunstâncias, eis a pergunta que parece apropriada<br />
também para pensar a relação entre fotografia e obra de arte: sendo as fotografias<br />
tão varia<strong>das</strong> em tamanhos, cores e outras características, o que faz da<br />
fotografia uma obra de arte? Como reconhecê-la em suas inumeráveis variedades<br />
e metamorfoses? Bem verdade que para responder à questão Goethe recorreu<br />
à taxonomia de Lineu sobre os reinos da natureza, cujos pressupostos descritivos<br />
buscavam independência em relação às referências humanas. Diferente dos<br />
conhecimentos renascentistas, em que o corpo humano era a medida de to<strong>das</strong><br />
as coisas, e mesmo as cores da natureza estavam relaciona<strong>das</strong> às fases da vida,<br />
tanto no racionalismo dos setecentos como também no romantismo, o homem<br />
tornava-se apenas uma parte diminuta em relação aos reinos naturais a serem<br />
estudados e classificados. Distinguindo-se <strong>das</strong> pinturas em que o corpo humano<br />
ocupava papel central, nas telas dos oitocentos ele já havia se tornado uma parte<br />
diminuta em relação à amplidão do mundo e à grandeza da paisagem, enquanto<br />
os reinos animal e vegetal, por exemplo, passavam a ser estudados tanto no padrão<br />
como na singularidade autônoma de suas formas orgânicas.<br />
Todavia, curioso lembrar que A metamorfose da plantas abriu as portas de uma<br />
profunda amizade entre seu autor e o poeta e filósofo Schiller. Este último, três<br />
déca<strong>das</strong> depois de morto, teve sua ossada removida para um ossário e os peritos<br />
foram chamados para identificar sua caveira, sendo credenciado exatamente<br />
seu amigo escritor, em grande parte devido à credibilidade adquirida pelo estudo<br />
<strong>das</strong> formas botânicas. Tarefa que não só cumpriu, mas que resultou num poema<br />
acrescentado em edições posteriores como epílogo ao livro que dera início à relação<br />
entre ambos. É então que, para além da questão vegetal, deslinda-se neste<br />
procedimento uma compreensão sobre a metamorfose e a sobrevivência deslocada<br />
<strong>das</strong> formas.<br />
Pensando a imagem como uma linha de fratura que desmonta o fio de continuidade<br />
entre as coisas, pode-se reconhecê-la, ao mesmo tempo, como plástica e<br />
informe. <strong>No</strong> plano da psicanálise, Freud permite considerar como esta questão se<br />
194<br />
Dezembro de 2009
Volume 4 ◦ Número 2<br />
CRÍTICA<br />
CULTURAL CRITIQUE<br />
CULTURAL<br />
desdobra como princípio de alteração e, no plano da cultura, Benjamin permite<br />
pensar um procedimento ancestral e renitente da experiência humana, marcado<br />
pelo princípio a que chamou de busca da semelhança inverificável, movida por<br />
uma proximidade empática. Tento explicar-me.<br />
<strong>No</strong> texto intitulado Além do princípio do prazer (1920), Freud aborda a íntima<br />
relação entre o prazer e o sofrimento através da cena em que uma criança com<br />
cerca de um ano e meio, deixada num ambiente pela mãe, aguarda o seu retorno.<br />
Enquanto isto não acontece, na solidão de sua espera, põe-se a brincar com<br />
um carretel que joga para baixo do sofá e busca novamente, puxando-o por um<br />
fio. Explorando o conceito de alteração, o psicanalista explica a relação entre a<br />
ausência materna e a transformação do objeto em brinquedo como uma espécie<br />
de assassinato simbólico e um processo de substituição da falta. O movimento de<br />
fluxo e refluxo, abandono e preenchimento poderia ser então pensado mais como<br />
ambigüidade do que oposição ou contraponto, pois figurar a ausência seria um<br />
modo de suspender a espera e eternizar o desejo. Para Freud, sob certas circunstâncias,<br />
esforçando-se para obter a tolerância do desprazer e assim poder restaurar<br />
um estado anterior, a criança, como os neuróticos e os artistas, repete o que<br />
lhe causou grande impressão como um modo de se tornar senhora da situação.<br />
<strong>No</strong> pequeno, mas complexo texto chamado Doutrina da semelhança (1933), o<br />
autor reflete como certos procedimentos guardados nos primórdios da magia e<br />
<strong>das</strong> caça<strong>das</strong> permitem pensar ainda, tanto o mimetismo <strong>das</strong> brincadeiras como<br />
do cientista, especialmente considerando os fundamentos de reminiscência e associações<br />
que operam através de contigüidade e desvio, condensação e cintilação<br />
onde as similitudes são construí<strong>das</strong>, embora mantendo o inexplicável salto em que<br />
algo pré-existente parece escapar. Em outras palavras, ao pensar os processos<br />
que engendram a semelhança, Benjamin observou que os mesmos fazem parte<br />
de um repertório filogenético que atravessou da pré-história à antiguidade, perpassando<br />
a leitura de pega<strong>das</strong> e o poder revelador dos astros, vísceras e outros<br />
acasos através dos quais os destinos humanos seriam vinculados, persistindo na<br />
força onomatopaica <strong>das</strong> palavras, no poder decifrador da escritura e da grafologia,<br />
etc. Ao situar a semelhança sobre o fluxo <strong>das</strong> coisas era a própria linguagem<br />
que se elaborava, construindo conexões e percepções instala<strong>das</strong> sob os equívocos<br />
da vidência que se acreditava ou fazia passar por evidência.<br />
Assim, tomando de Goethe a questão da metamorfose, chega-se ao entendimento<br />
de que a imagem relaciona-se à instância onde resplandece um mundo de significados<br />
completamente móveis e inefáveis. Simbologizando a ausência do objeto<br />
amado, a criança processa e altera a falta, assim como, ao construir <strong>semelhanças</strong><br />
entre coisas díspares o homem faz a imagem ser ao mesmo tempo repetição e<br />
aparição única, mas cuja lei, repousada num abismo silencioso, pertence a uma<br />
ordem analfabética. Se o animal humano é o único capaz de se interessar pela<br />
imagem como imagem, é menos por sua capacidade de reapresentar o mundo<br />
e mais porque pode criar e freqüentar mundos onde tudo resplandece e vibra<br />
no seu estado puro e desordenado, podendo mover-se de modo imprevisível e<br />
para qualquer direção. Eis-me diante de uma nova pergunta: afinal, não seriam<br />
195
CRÍTICA<br />
CULTURAL CRITIQUE<br />
CULTURAL<br />
estes pontos importantes para pensar a condição artística da própria fotografia?<br />
Desdobro-me.<br />
Blossfeld e o deslocamento <strong>das</strong> formas<br />
Com uma câmera fotográfica desenhada por ele mesmo, Karl Blossfeld (1865-<br />
1932) dedicou-se ao registro alterado <strong>das</strong> formas vegetais, ampliando-as em cerca<br />
de trinta vezes e revelando seus detalhes. Alemão que também viajou pela<br />
Itália, embora mais de um século depois de Goethe, em tempos de art-nouveau,<br />
desenhava e ensinou modelagem com base nas próprias fotografias que tirava,<br />
centrando-se na relação entre as formas vegetais e os ornamentos em metal. <strong>No</strong><br />
pós-Primeira Guerra suas fotos foram publica<strong>das</strong> em revistas ilustra<strong>das</strong>, além de<br />
livros de arquitetura e design, destacando-se numa estética conhecida como <strong>No</strong>va<br />
Objetividade, da qual também faziam parte os expressionistas Otto Dix, Max Beckeman<br />
e George Groz, seguindo para uma exposição na Bauhaus em Dessau.<br />
Karl Blossfeld, sem dados<br />
Em 1929 Georges Bataille usou suas fotografias para ilustrar a Linguagem <strong>das</strong><br />
flores, texto através do qual afirmava ser vão o esforço para reduzir as coisas a<br />
significados meramente inteligíveis, pois o que toca os olhos humanos é também<br />
um estado de espírito decisivo e inexplicável. Do mesmo modo que nada determina<br />
que uma bela jovem ou uma rosa vermelha significam amor, a simbologia <strong>das</strong><br />
flores não estaria relacionada à sua função. Só assim, em clave de estranhamento<br />
poético e não de convenções estéticas, o gesto do Marquês de Sade que despetalava<br />
as mais belas rosas sobre uma fossa poderia ser pensado.<br />
Em Pequena história da fotografia (1931) Walter Benjamin comentou sobre as<br />
plantas de Blossfeld considerando uma anatomia comparada <strong>das</strong> formas. Pensando<br />
a modernidade pelos efeitos caleidoscópicos, reconhecia a fotografia como<br />
montagem visual que testemunhava um tempo de alterações e turbulências. Remetendo<br />
à natureza extra-sensível na qual se situa o reino <strong>das</strong> <strong>semelhanças</strong><br />
desloca<strong>das</strong>, ocupou-se dos processos engendrados pela capacidade humana de<br />
produzir <strong>semelhanças</strong>, onde o que persiste é o gesto que faz aparecer um fundo<br />
resplandecente entre as coisas para logo em seguida deixar que o mesmo desapareça<br />
como noite iluminada por um relâmpago.<br />
Em 1984 foi a vez do teórico e fotógrafo Villem Flusser escrever um texto deno-<br />
196<br />
Dezembro de 2009
Volume 4 ◦ Número 2<br />
CRÍTICA<br />
CULTURAL CRITIQUE<br />
CULTURAL<br />
minado Herbarium, onde analisava as espécies vegetais do catalão Joan Fontcuberta1<br />
(Barcelona, 1955), cujas formas inusita<strong>das</strong> nada tinham a ver com manipulação<br />
genética e sim com manipulação fotográfica. Desfazendo as certezas da<br />
realidade para pensar a verdade da imagem fotografada, apontava para um ardil<br />
que faz passar por real informação botânica aquilo que seriam apenas símbolos<br />
vegetais independentes <strong>das</strong> mutações genéticas. Lembrando bastante as fotografias<br />
de Blossfeld, este novo herbário não só ironiza os critérios ciência-natureza,<br />
como também ciência-arte. Embora a simulação e a fraude tenham sido um tema<br />
recorrente na História da Arte, bem como as investigações científicas em relação<br />
à alteração <strong>das</strong> plantas permitam interrogar a nitidez dos critérios natural-artificial,<br />
o que se afirma nestes trabalhos é uma reflexão sobre verdade e documento,<br />
realidade e representação.<br />
(1) (2) (3)<br />
Joan Fontcuberta:<br />
(1) Lavandula angustifólia, 1984<br />
(2) Giliandria escolforcia, 1984<br />
(3) Pirulera Salbitana, 1983<br />
<strong>No</strong> mundo <strong>das</strong> <strong>semelhanças</strong> desloca<strong>das</strong> e inverificáveis, as minúsculas formas<br />
vegetais amplia<strong>das</strong> por Blossfeld o credenciaram como artista. Possivelmente<br />
também foram estes procedimentos que inspiraram tanto as reflexões de Bataille<br />
sobre a natureza poética como de Benjamin sobre a natureza estética e técnica da<br />
fotografia. Implicados pela afinidade empática, o mesmo não poderia ser pensado<br />
por Flusser e Fontcuberta? Detalhe importante: em 1993 este último fotógrafo<br />
apresentou trabalho intitulado The theory of botany - the theory of anatomy, fazendo<br />
retornar o insólito parentesco entre as plantas e o corpo humano. Eis o<br />
que faz voltar como aparição os estudos <strong>das</strong> formas vegetais feitos por Goethe e<br />
a estranha autoridade que lhe foi atribuída para reconhecer a ossada de Schiller.<br />
Gartner e Flack, metamorfoses plásticas<br />
Seguindo na clave da relação entre as formas orgânicas e a morte, passo agora<br />
1 Esta série fotográfica foi exposta em São Paulo no Itaú Cultural, de 15.10 a 13.12.2009, como parte<br />
da exposição de vídeos e fotografias intitulada A invenção de um mundo.<br />
197
CRÍTICA<br />
CULTURAL CRITIQUE<br />
CULTURAL<br />
a tratar dos estranhos corpos que brotam nos trabalhos da canadense Marianna<br />
Gartner. Seus retratos remetem a peculiares ambientações em estúdios fotográficos,<br />
dispostos premeditadamente em termos de composição temática e poses<br />
eterniza<strong>das</strong> através deste meio técnico. Em tempos de formas corporais constantemente<br />
expostas e repagina<strong>das</strong>, em que toda revelação é prometida, o que se<br />
destaca em sua arte é o enigma e a ambigüidade. Nas poses solenes e na aparente<br />
cumplicidade do olhar lançado ao espectador, fundem-se o belo e o sinistro,<br />
confundidos propositadamente e guardados como aberração familiar e secreta.<br />
Ocorre que não se trata de fotografias, mas de pinturas em que comparecem com<br />
doçura diabólica um bebê tatuado e chifrudo; bem como os rostos infantis que<br />
ladeiam um adulto parecem conter mais malícia do que o deste. Além de corpos<br />
vestidos como se fossem esqueletos fantasiados para algum ritual ou festejo,<br />
uma menina se equilibra sobre um instável fio, enquanto outra se posiciona como<br />
se protagonizasse um ritual sadô num ambiente de puro ornamento, talvez lembrando<br />
que o erotismo como a beleza não passam de dispêndio. Enquanto algo<br />
mortífero vai se infiltrando, compreende-se que o orgânico é ali detalhe enganoso,<br />
reconhecendo enfim que se trata de um antigo tema pictórico denominado<br />
memento mori, retomado não pelas admoestações barrocas mas pelas fotografias<br />
que eram tira<strong>das</strong> dos mortos como última lembrança para os vivos. Servindo menos<br />
como uma máscara mortuária, destinada à presentificação do morto entre os<br />
vivos e mais como último artifício para encenar a condição vivente, as fotos que<br />
se escondem nas telas de Gartner ainda hoje podem ser alcança<strong>das</strong> como dramaturgia<br />
de um vazio e abandono irreparáveis. Eis a pintura que, citando a fotografia<br />
situa-se não como recurso de suspensão entre a despedida e a desaparição, mas<br />
como visada sinistra de um pesadelo em que o corpo permanece para sempre<br />
prisioneiro entre o não mais e a última vez.<br />
(1) (2)<br />
198<br />
Dezembro de 2009
Volume 4 ◦ Número 2<br />
CRÍTICA<br />
CULTURAL CRITIQUE<br />
CULTURAL<br />
(3) (4)<br />
Marianna Gartner:<br />
(1) Diablo Baby III, s/d<br />
(2) Skeleton & Sailor, 2004, óleo s/ tela, 147 x 88 cm<br />
(3) Skull Girl, 2004, óleo s/ madeira, 177,8 x 111,6 cm<br />
(4) Playing with Scissors, 2004, óleo s/tela, 147 x 198 cm<br />
Por sua vez, embora trate igualmente do tema do memento mori, os trabalhos de<br />
Audrey Flack (<strong>No</strong>va Iorque, 1931) não são retratos, mas naturezas-mortas que<br />
remetem às peculiaridades fotográficas e suas cenografias, estando os objetos<br />
dispostos premeditadamente em termos de composição temática, distribuição,<br />
cor, volume e planos. Além de objetos simbólicos como flores e ampulheta, desde<br />
longa data relacionados às vanitas, seus temas estão relacionados ao universo<br />
feminino onde, entre jóias e apetrechos, estão as coisas de toalete. À maneira<br />
dos anúncios de lanchonete em que os alimentos apresentam tonalidade muito<br />
colorida e estimulante aos sentidos, as formas e artefatos apresentam-se num<br />
aglomerado que encena o improviso e o provisório, o precário e o aleatório, destacando-se<br />
a intensidade pulsante <strong>das</strong> cores. Sutil mas fatal traição, tanto ao<br />
que se poderia chamar de foto-realismo como também de pintura hiper-realista,<br />
apenas por um detalhe sua pintura revela a enganosa promessa da documentação<br />
fotográfica: vistos de frente, seus arranjos contemplam diferentes ângulos<br />
astuciosamente montados como se fossem possíveis de serem apreendidos num<br />
único lance.<br />
(1) (2)<br />
199
CRÍTICA<br />
CULTURAL CRITIQUE<br />
CULTURAL<br />
Audrey Flack:<br />
(1) Segunda Guerra Mundial, 1976-77 50 x 50 cm<br />
(2) Roda da Fortuna, 50,8 x 50,8 cm<br />
De toda maneira, o que se poderia reconhecer em ambas as pintoras é um olhar<br />
de contra-mão em relação ao começo da história da fotografia. Se antes esta<br />
deveria citar a pintura em detalhes importantes como a assinatura do artista,<br />
o enquadramento e a cenografia, agora é a pintura que cita e se faz passar por<br />
foto, quer referenciando o objeto visualizado, quer encenando o colorido e seu<br />
caráter de reapresentação documental. Recolocando o entendimento de que pintar<br />
é colocar problemas e pensá-los plasticamente, devendo o artista descobrir<br />
fora de si mesmo um tema digno da intensidade de suas inquietações. Já não<br />
estou certa de que há uma experiência pessoal que precede a obra ou se ela vai<br />
se reinventado pela memória que, como dançarina lábil, modifica-se à medida<br />
que vai entrando no redemoinho da imaginação artística. Assim, as lembranças<br />
e os vestígios nada mais seriam que uma espécie de pretexto para olhar no olho<br />
do furacão sem deixar-se tragar por ele, ou seja, tratar através da pintura sobre<br />
o fascínio da imagem que alcança a fotografia. Ao tentar articular melhor o ponto<br />
que aproxima o pensamento pictórico do fotográfico, debruço-me mais um pouco<br />
sobre esta relação de dupla-via, a tela e a foto.<br />
Wall e Chadwick, distâncias que não se alcançam<br />
Observo os back-lights de Jeff Wall (Canadá, 1946). Neles não há narrativa, apenas<br />
um instante apreendido no flagrante. Soprou um vento, uma cova encheu de<br />
água, alguém está saindo de casa. Ainda que lembre uma tela de Hokusai ou um<br />
filme interrompido em pause, é de uma cenografia real que se trata e nela tudo<br />
está relacionado em escala com o corpo humano. Como nas pinturas de Flack,<br />
encena-se uma impremeditação. Apenas nas entrevistas com o artista e textos<br />
sobre seu respeito é possível reconhecer seus procedimentos, sendo que os cenários<br />
são construídos exaustiva e minuciosamente, as cenas são refeitas muitas<br />
vezes até que atinjam a intenção desejada, o silêncio e o mistério são obtidos<br />
por sobreposições cuja maestria técnica permanece invisível. Para além de seu<br />
trânsito na criação de cenários teatrais e fílmicos, sob a aparente ênfase a um fato<br />
cotidiano ou banal, destaca-se uma temporalidade entre o sono e a vigília, semelhante<br />
àquela em que ao acordar continuamos assombrados por algo ilocalizável<br />
que nos fisgou o olhar, preservando as sensações oníricas. Encenando o como<br />
se nada fosse o artista conduz o gesto fotográfico ao nada mais que, obliterando<br />
as armadilhas que se escondem na precisão e na ordinariedade do registro. Mas<br />
assim como quando acordamos sabemos que perdemos irreparavelmente algo do<br />
que foi sonhado ou como quando contamos o sonho sabemos que jamais poderemos<br />
dar às palavras o exato teor da figuração onírica, a intensidade da cena permanece<br />
suspensa entre um antes e um depois que nunca chegam a se relacionar,<br />
permanecendo entre eles uma distância abismal.<br />
200<br />
Dezembro de 2009
Volume 4 ◦ Número 2<br />
CRÍTICA<br />
CULTURAL CRITIQUE<br />
CULTURAL<br />
(1) (2)<br />
201<br />
Jeff Wall:<br />
(1) A Sudden Gust of Wind (after Hokusai), 1993 lightbox, 229 x 337 cm<br />
(2) The Flooded Grave, 1998–2000, lightbox 228.5 x 282 cm<br />
Poética semelhante, embora não com a mesma temática, também se encontra<br />
em Hellen Chadwick (Inglaterra, 1953-1996). Vinda de uma geração cuja sensibilidade<br />
estética foi denominada Sensation, esta artista percorreu as abordagens<br />
feministas até receber um convite do Museu Victória e Albert em fins dos anos 80,<br />
onde compareceu com uma série de polaróides chamada Carne abstrata, seguida<br />
de back-lights dispostos em dípticos denominados Enfleshings. Ao longo deste<br />
percurso pode-se reconhecer uma problemática relacionada ao rosto desfeito e à<br />
perda da profundidade. Como no caso de Wall, em que a cena não pode ser narrada,<br />
restando apenas um instante a ser captado como fragmento, em Chadwick<br />
o que se destaca é a impossibilidade do retrato. Assim, seu elevado poder de convencimento<br />
visual remete ao que permanece estranhamente inacessível, vestígio<br />
de algo condenado ao que não se revela, potencializando a distância inalcançável<br />
da imagem em sua absoluta solidão.<br />
(1) (2)<br />
Hellen Chadwick:<br />
(1) Auto-retrato, 1991<br />
(2) Meat Abstract, 1989, Polaroid, 61.5 x 52.5cm<br />
Amparados pelo entendimento de que boa parte da arte contemporânea deixou
CRÍTICA<br />
CULTURAL CRITIQUE<br />
CULTURAL<br />
de problematizar o mundo como mistério e espanto e de produzir o trânsito <strong>das</strong><br />
formas, os procedimentos de Wall como de Chadwick parecem concordar com as<br />
críticas de Baudrillard a respeito do assassinato da ilusão como parte constitutiva<br />
da realidade. Esta teria sido substituída pelo conteúdo documental do espetáculo<br />
jornalístico, literário, fílmico e fotográfico, o qual nada mais faz do que recalcar<br />
a condição mais remota e recôndita da imagem para colocar no seu lugar os registros<br />
políticos, econômicos, sociais, etc. Abrindo mão de ser um acelerador de<br />
ilusão e recusando o pensamento que opera por deslocamentos, a imagem fica<br />
reduzida à condição de mero vestígio do mundo, aumentando o efeito anestésico<br />
que a recobre. Assim, denunciando o que resolveu chamar de pornografia <strong>das</strong><br />
imagens e complô da arte, o autor francês constata a miséria da imagem que se<br />
torna orgia do hiper-real, enquanto recusa a potência que advém do desaparecimento<br />
dos objetos e da descoberta <strong>das</strong> coisas como aparição. Contrapondo-se<br />
aos efeitos imobilizadores do excesso de informação, à banalização do consumo<br />
e à impostura artística baseada na verossimilhança, interroga a incapacidade de<br />
alcançar a imagem naquilo que faz rebater o vazio e só existe como potência<br />
imagética, que promete e falha porque nada entrega. Ou seja, ao reafirmar o caráter<br />
ilusório da imagem, Baudrillard, como os artistas em questão, recusam-se a<br />
considerar a arte como espelho super-dotado e hiperbólico ou território de imagens<br />
desnuda<strong>das</strong> de segredo, posto que ignorar o mistério <strong>das</strong> aparências serve<br />
apenas para recalcar aquilo que se apresenta em sua condição de dessemelhança<br />
ou simulacro.<br />
Para finalizar volto ao começo<br />
Sendo as fotografias tão varia<strong>das</strong> em tamanhos, cores e outras características, o<br />
que faz da fotografia uma obra de arte? Como reconhecê-la em suas inumeráveis<br />
variedades e metamorfoses? Se a resposta é a morte da pergunta, melhor apenas<br />
guardar a principal lição alcançada ao longo dos trabalhos aqui referidos, a saber,<br />
que para ser habitante do território artístico a fotografia precisa destacar-se na<br />
capacidade de acolher o imprevisível e o ambíguo. Produzindo um tipo de pensamento<br />
plástico que opera por báscula e que permite estabelecer articulações e<br />
descentramentos, observa-se que, em termos de planos e contra-planos, os mesmos<br />
situam-se menos na relação de opostos ou complementos e mais como instâncias<br />
combinatórias perpassa<strong>das</strong> por algo que persiste e insiste potencializado<br />
como extra-parte. Trata-se de surpreender e estranhar, desconhecendo a ordem<br />
e a receita daquilo que constitui uma obra, mas reconhecendo sua faculdade de<br />
alterar a medida <strong>das</strong> coisas, tornando-se uma espécie de bloco que move o olhar<br />
entre a precisão e a desmedida, desejando menos ser a regra e mais ser alteração<br />
e desvio. Entretanto, este raciocínio não valeria para pensar outras obras artísticas<br />
para além da fotografia? É certo que problematizar a fotografia como obra de<br />
arte não é o mesmo que distinguir a fotografia <strong>das</strong> outras possibilidades artísticas,<br />
mas isto já é outra questão, melhor parar por aqui.<br />
202<br />
Dezembro de 2009
Volume 4 ◦ Número 2<br />
CRÍTICA<br />
CULTURAL CRITIQUE<br />
CULTURAL<br />
Referências:<br />
BARTHES, Roland. Texto (teoria do). Inéditos, I. São Paulo: Martins Fontes,<br />
2004.<br />
BATAILLE, Georges. Le langage des fleurs. Oeuvres complètes vol. I. Premiers<br />
écrits, 1922-1940. Paris: Gallimard, 1970.<br />
BAUDRILLARD, Jean. A arte da desaparição. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997.<br />
BENJAMIN, Walter. A doutrina <strong>das</strong> <strong>semelhanças</strong>. Magia e técnica, arte e política.<br />
Obras Escolhi<strong>das</strong> vol.I. São Paulo: Brasiliense, 1985.<br />
BERGAMIN, José. La decadencia del analfabetismo. Madrid: Siruela, 2000.<br />
FONTCUBERTA, Joan. Ciencia y fricción. Fotografia, naturaleza, artificio. Murcia:<br />
Mestizo A.C., 1998.<br />
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. Lisboa: Relógio d’Agua, 2009.<br />
GOETHE, Johann Wolfgang von. A metamorfose <strong>das</strong> plantas. 3ª ed. São Paulo:<br />
Ed. Antroposófica, 1997.<br />
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. Uma história de amor e ódio. São Paulo: Cia.<br />
<strong>das</strong> Letras, 2001.<br />
Title:<br />
In the field of dislocated similarities and empathic proximities<br />
Abstract:<br />
The starting point in this essay assumes a view on photography through small<br />
fragments conceived as parts of a poliptic. If, as Barthes claims, everything can<br />
be a text, what is of interest here is not so much the meaning, nor the comparative<br />
and/or evolutive understanding that endows the present with the last word,<br />
but a stress on the character of heterogeneity and unrest when an ordaining and<br />
classificatory structure can be moved and its hierarchy undone over the technique<br />
and the documental record codified by the historical or journalistic relevance. In<br />
times of an unthinkable expansion of the imagetic arsenal and of screens that<br />
untiringly promise to reveal the facts in real time, be it a matter of intimate facts,<br />
be it a matter of facts of planetary significance, it seems wise to suspend those<br />
certainties about the photographic image in order to interrogate its very nature,<br />
asking how it survives such metamorphoses, constituting itself and persisting in<br />
its artistic condition.<br />
Keywords:<br />
Photography; image; contemporary art<br />
203