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DE UMA ORGANIZAÇÃO PATOLÓGICA À POSIÇÃO DEPRESSIVA ...

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<strong>DE</strong> <strong>UMA</strong> <strong>ORGANIZAÇÃO</strong> <strong>PATOLÓGICA</strong> <strong>À</strong> <strong>POSIÇÃO</strong><br />

<strong>DE</strong>PRESSIVA: A Elaboração do Luto pelo Personagem Trevor no<br />

filme “O Operário”<br />

Alexandre Pereira de Mattos


1. Apresentação<br />

P á g i n a | 1<br />

Para Roger Money-Kyrle (1996), uma das maiores contribuições de Melanie<br />

Klein para a Psicanálise, em termos de seus efeitos sobre teoria e prática, foi o<br />

conceito de posição esquizoparanóide, seguida pela posição depressiva.<br />

Por ser uma metáfora espacial, o conceito de posição nos permite entender<br />

qual o papel das angústias e defesas nos processos psíquicos, que ora podem<br />

caminhar para uma maior integração dos objetos (Posição Depressiva - PD), ora<br />

regredir a estados persecutórios de maior desintegração (Posição<br />

Esquizoparanóide - PEP).<br />

Igualmente importante nesta conceituação é a ênfase dada ao seu caráter<br />

dinâmico, que nos permite identificar, no sujeito, flutuações de uma posição à<br />

outra, dependendo das angustias despertadas e das defesas por elas<br />

empreendidas.<br />

O desenvolvimento psíquico de um sujeito não se dá, portanto, por uma<br />

cronologia linear, tampouco por uma superação de uma determinada posição. Um<br />

sujeito, que pode ter alcançado uma maturidade psíquica e que consegue<br />

estabelecer relações objetais totais, pode se desorganizar diante de uma angústia<br />

persecutória intensa. De modo análogo, um sujeito, cujas relações objetais são<br />

predominantemente cindidas, pode apresentar movimentos de integração<br />

próprios da posição depressiva. Assim, nenhuma das posições prevalece em<br />

qualquer grau de completude ou permanência (STEINER, 1991, p. 329).<br />

No entanto, esta flutuação entre posições depende de uma flexibilidade<br />

defensiva, cuja ausência pode tornar esta tarefa inviável. Por exemplo, se a<br />

preocupação com a integração do ego for intensa (PEP) ou a preocupação com o<br />

objeto for igualmente demasiada (PD), o sujeito poderá construir uma espécie de<br />

organização defensiva (ou refúgio) como uma posição intermediária, que o<br />

protegerá das angústias desencadeadas por ambas as posições. Trata-se, nos


P á g i n a | 2<br />

termos de John Steiner (1991), de uma organização patológica que, quando<br />

estabelecida, obstaculariza o caminho para uma maturidade psíquica.<br />

Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que essa organização protege o<br />

sujeito de angústias persecutórias ou depressivas, ao mesmo tempo o aprisiona<br />

por produzir uma ilusão de equilíbrio por se sentir em uma zona de proteção.<br />

Isto posto, este trabalho tem por objetivo demonstrar como esta<br />

organização atua defensivamente para garantir este “equilíbrio” e como é possível<br />

abandoná-la por meio do que John Steiner vai chamar de “reversão da identificação<br />

projetiva”, condição sine qua non para a elaboração do luto.<br />

Para atingir este objetivo, analisaremos a trajetória de Trevor, personagem<br />

principal do filme “O Operário”. Nosso argumento é que esta zona intermediária,<br />

com características de uma organização patológica, não se sustenta ao longo do<br />

filme devido ao movimento de integração psíquica vivenciado pelo personagem.<br />

Iniciaremos nossa exposição com as descrições das angústias e defesas das<br />

posições esquizoparanóide e depressiva e a natureza da organização patológica<br />

(quando e por que ela surge). Na segunda etapa, analisaremos o filme dividindo-o<br />

em três partes como estratégia metodológica para atingir os objetivos propostos.<br />

2. Posição Esquizoparanóide e Posição Depressiva<br />

Nos três primeiros meses de vida, o bebê vive ansiedades de natureza<br />

primitiva que ameaçam o ego imaturo e o levam à mobilização de defesas arcaicas.<br />

Por não ter alcançado a maturidade necessária que garante a diferenciação entre<br />

self e objeto, o bebê sente o mundo a partir das sensações físicas que o acometem.<br />

Frio, fome e cólicas são percebidas pelo bebê como objetos maus que o atacam e o<br />

ameaçam. Em contrapartida, calor, aconchego, alimentação e cuidados são<br />

experienciados pelo bebê como objetos bons. Como a linha que divide mundo<br />

externo e interno é incipiente, o bebê tende a conceber tais fenômenos dentro de


P á g i n a | 3<br />

uma natureza eminentemente narcísica. Ou seja, o self é sempre o ponto de partida,<br />

tanto como alvo de ataque como de amor.<br />

Na medida em que o bebê sente que algo ruim lhe acontece (fome, frio, etc),<br />

ele tende, na fantasia, a projetar aquilo que lhe faz mal para fora como forma de<br />

salvaguardar o self de qualquer possibilidade de aniquilamento. Isto ocorre porque<br />

o bebê é exposto ao impacto da realidade externa que tanto produz ansiedade,<br />

quanto lhe dá a vida. Quando confrontado com o instinto de morte, ele o projeta<br />

transformando-o em agressividade (SEGAL, 1975). Trata-se, portanto, de uma<br />

dinâmica defensiva que põe em ação mecanismos como o splitting (divisão, cisão) e<br />

projeção. Contudo, ao projetar para fora o que lhe é mau, este “fora” torna-se<br />

perseguidor por conter tanto as características do objeto mau como partes do ego,<br />

promovendo assim uma identificação com o objeto projetado (Identificação<br />

projetiva 1 ).<br />

Os cuidados maternos são vividos pelo bebê como objetos bons, portanto,<br />

introjetados para salvaguardar o mesmo ego que também é ameaçado. Podemos<br />

perceber que os mecanismos de projeção e introjeção caminham juntos e tornam-<br />

se possíveis por meio do processo de cisão. Ao cindir o objeto entre mau e bom, ele<br />

dirige todo o seu amor para o objeto bom e todo o seu ódio contra o objeto mau.<br />

Como conseqüência da projeção, a ansiedade predominante é paranóide e a<br />

preocupação é com a sobrevivência do self. Desta forma, o pensar é concreto devido<br />

à confusão entre self e objeto (STEINER, 1991, p. 330)<br />

A posição depressiva representa um importante avanço no<br />

desenvolvimento psíquico, na medida em que os objetos totais começam a ser<br />

reconhecidos e impulsos ambivalentes direcionam-se para o objeto primário. Em<br />

outras palavras, próximo ao sexto mês de vida, o bebê começa a perceber que o<br />

objeto alvo de ataques fora o mesmo de amor. O amor e ódio direcionados ao<br />

mesmo objeto mobilizam ansiedades e defesas próprias desta posição: culpa por<br />

medo da perda do objeto e necessidade de reparação deste mesmo objeto.<br />

1 Identificação projetiva constitui a visão mais tradicional da projeção, em que partes do<br />

self é atribuída ao objeto (HINSHELWOOD, 1992). No entanto, a distinção entre projeção e<br />

identificação projetiva não é uma tarefa sem controvérsias. A distinção talvez mais comumente<br />

aceita é que na identificação projetiva partes do self são projetadas, e não somente os objetos (algo<br />

que ocorreria somente na projeção.


P á g i n a | 4<br />

Experiências de luto podem ser mais plenamente vivenciadas e o pensar não<br />

precisa ser mais concreto (há um desenvolvimento da função simbólica). O<br />

deslocamento das equações simbólicas para a representação simbólica se dá na<br />

posição depressiva e também por meio da conscientização crescente da diferença<br />

existente entre os mundos interno e externo 2 . É um processo de abandonar os<br />

objetos externos e, portanto, fazer o trabalho de luto deles (SEGAL, 1972/1998).<br />

Em suma, a distinção entre as ansiedades que atuam em cada posição pode<br />

ser útil na compreensão das defesas empreendidas. No entanto, como nos diz<br />

Melanie Klein,<br />

...a diferença entre duas formas principais de ansiedade de maneira<br />

alguma se pode considerar nítida 3 . Tendo em mente essa limitação, creio<br />

que uma diferenciação entre as duas formas de ansiedade é valiosa dos<br />

pontos-de-vista teórico e prático [....]<br />

Neste aspecto, ela conclui seu argumento afirmando que<br />

...A ansiedade persecutória se relaciona predominantemente com o<br />

aniquilamento do ego; a ansiedade depressiva está sobretudo relacionada com<br />

o dano causado aos objetos amados, internos e externos, pelos impulsos<br />

destrutivos do sujeito. A ansiedade depressiva tem múltiplos conteúdos, tais<br />

como: o bom objeto é danificado, está sofrendo, encontra-se num estado de<br />

deterioração; converte-se num mau objeto; é aniquilado, está perdido e nunca<br />

mais aparecerá. Concluí também que a ansiedade depressiva está<br />

intimamente vinculada à culpa e à tendência para fazer reparações (KLEIN,<br />

1948/1982, p. 302)<br />

Entretanto, a intensidade com que essas defesas podem atuar em ambas as<br />

posições dá um colorido diferente a cada uma delas. Se na posição<br />

esquizoparanóide, a angústia de aniquilamento for intensa e identificação projetiva<br />

maciça, ocorre processos de despersonalização e de extrema ansiedade. Se na<br />

posição depressiva a culpa for maior que a possibilidade de reparação, o bebê pode<br />

fazer uso de negação maníaca como forma de se proteger da culpa persecutória de<br />

ter destruído o objeto.<br />

Estes aspectos mais patológicos dependem de como se deu o<br />

desenvolvimento emocional do bebê no que tange à introjeção de objetos bons, da<br />

qualidade da função materna e do quantun de pulsão destrutiva é constitutivo no<br />

bebê.<br />

2 Convém salientar que o ego apresenta, desde o nascimento, uma tendência à integração e<br />

que os processos de simbolização podem se fazer presentes mesmo na Posição Esquizoparanóide.<br />

3 O grifo é nosso.


P á g i n a | 5<br />

Contudo, um dos aspectos de suma importância para entendermos o<br />

funcionamento mental do sujeito é atentar para o fato de que ansiedades e defesas<br />

próprias de uma determinada posição podem estar presentes em outra posição.<br />

Embora no primeiro estágio predominem os impulsos destrutivos e a<br />

ansiedade persecutória, a ansiedade depressiva e a culpa já desempenham um<br />

certo papel nas primitivas relações objetais da criança, isto é, na sua relação<br />

inicial com o seio materno (KLEIN, 1948/1982, p. 302)<br />

Podemos compreender que uma tendência à integração se faz presente nos<br />

primórdios da vida mental do sujeito. Porém, a culpa, como característica<br />

fundamental da posição depressiva, apresenta contornos próprios quando<br />

presentes na posição esquizoparanóide. Vejamos:<br />

De início, na posição esquizoparanóide, a culpa é uma perseguição<br />

retaliatória, de tipo não mitigado. Quando a posição depressiva entre em<br />

existência e os objetos se tornam “objetos totais”, a violência da perseguição é<br />

aliviada pela ajuda e pela preocupação provindas dos aspectos “bons” do<br />

objeto. Isto conduz ao medo pela sobrevivência do objeto “bom”, mas parte<br />

essencial dele é remorso e culpa. A princípio, esta culpa é persecutória e<br />

punitiva, tirando o seu colorido do estado paranóide precedente de<br />

perseguição. Entretanto, pela acumulação de experiências boas com o objeto<br />

total e sua tendência a sobreviver, a culpa vem a ser modificada pelo impulso<br />

a reparar o objeto bom e contribuir para a sua sobrevivência. Neste ponto, a<br />

culpa fica permeada por desejos reparadores e contribui para a força do<br />

esforço construtivo e criativo que daquela deriva (HINSHELWOOD, 1992, p.<br />

283)<br />

A constatação deste dinamismo entre posições trouxe outros desafios<br />

teóricos: o que ocorre quando a oscilação entre posições é dificultada quando a<br />

angústia predominante de cada posição for demasiada intensa? Quando a angustia<br />

persecutória for de aniquilamento e a culpa persecutória for demasiadamente<br />

intensa, qual a saída para este sujeito?<br />

...É nas transições que ocorrem tanto no interior da posição esquizoparanóide<br />

como na posição depressiva que o indivíduo parece estar mais vulnerável à<br />

influência de uma organização patológica (STEINER, 1991, p. 331).<br />

Podemos dizer que este “encurralamento” favorece a emergência de uma<br />

organização defensiva como forma de dar conta desse impasse. Para John Steiner,<br />

esta organização dita patológica funciona como uma defesa, não apenas contra a<br />

fragmentação e a confusão, mas também contra a dor mental e a ansiedade da<br />

posição depressiva (STEINER, 1991).


3. Organização patológica<br />

P á g i n a | 6<br />

Uma organização patológica nada mais é do que uma defesa, um refúgio,<br />

uma proteção ilusória frente à impossibilidade de vivenciar angustias despertadas<br />

tanto na posição esquizoparanóide quanto na posição depressiva.<br />

Segundo Steiner, uma organização patológica é constituída por defesas de<br />

natureza narcísica, cuja manifestação pode assumir contornos obsessivos,<br />

maníacos, perversos ou psicóticos<br />

A natureza das defesas que se organizam em uma organização patológica<br />

varia em diferentes pacientes e pode ser, por exemplo, predominantemente<br />

obsessiva, maníaca, perversa ou mesmo psicótica. A variedade de formas,<br />

entretanto, encobre elementos comuns que refletem a organização subjacente<br />

das defesas. (STEINER, 1991, p. 332).<br />

Esses elementos em comum dizem respeito à estabilidade e resistência a<br />

mudança. Isto ocorre porque esta organização é constituída, como já citado, de<br />

defesas de natureza basicamente narcísica, pois:<br />

1) Refletem a preponderância de identificação projetiva que cria objetos<br />

que são controlados por parte dos selves e projetados dentro deles;<br />

2) Os objetos cindidos são projetados para dentro de um grupo organizado<br />

por meios complexos e perversos (por oferecer uma gratificação sadomasoquista)<br />

(STEINER, 1991).


P á g i n a | 7<br />

Uma das funções principais das organizações patológicas é a de conter e<br />

neutralizar impulsos primitivos destrutivos e, para lidar com eles, o paciente<br />

seleciona objetos destrutivos nos quais possa projetar as partes destrutivas do self.<br />

Assim, estas organizações são tanto uma manifestação da destrutividade quanto<br />

uma defesa contra ela.<br />

Veremos como esta organização atua na vida de Trevor e os elementos que<br />

contribuem para o seu enfraquecimento.<br />

4. A trajetória de Trevor: de uma organização patológica à<br />

elaboração na Posição Depressiva<br />

Trevor, personagem central neste drama, é um homem solitário. Sua vida<br />

resume-se em trabalhar, ir para casa, satisfazer suas necessidades sexuais com a<br />

prostituta Stevie e tomar um café na lanchonete do aeroporto.<br />

Sua casa e seu corpo apresentam contornos sombrios. O aspecto cadavérico<br />

de seu corpo se assemelha à escuridão e ausência de vitalidade de sua residência,<br />

caracterizada no filme pelo uso de tons acromáticos e pouca iluminação. Sua rotina<br />

é tão enfadonha quanto suas aspirações.<br />

Trevor se recolhe a um estado, como menciona John Steiner na análise de<br />

um de seus casos clínicos, em que ele não é nem plenamente vivo e nem<br />

completamente morto (STEINER, 1991, p. 340).<br />

Seus interesses afetivos estão circunscritos ao relacionamento com Stevie e<br />

com a garçonete do aeroporto chamada Maria. Esta ultima lhe desperta um<br />

interesse peculiar: ser servido por esta mulher acolhedora e maternal. É a mulher<br />

que o alimenta e o questiona sobre a falta de sentido em se deslocar para o<br />

aeroporto quando ele poderia comer a mesma torta e tomar o mesmo café em<br />

outro local mais próximo. No entanto, isto não é suficiente para dissuadi-lo de<br />

deixar de visitá-la todas as noites.


P á g i n a | 8<br />

No trabalho ele exerce a função de operário, mais precisamente torneiro<br />

mecânico. Visto pelos colegas como estranho, ele se relaciona afetivamente com<br />

eles de maneira econômica. <strong>À</strong>s vezes quieto e às vezes questionador, acaba<br />

despertando antipatia por parte da chefia. Esta, por sua vez, o considera como<br />

alguém que possa estar doente em razão do seu emagrecimento.<br />

No que diz respeito à sua insônia, Trevor confidencia à Stevie que não<br />

dormia há um ano.<br />

Em casa, realiza rituais de limpeza com água sanitária sem motivo objetivo<br />

aparente. Com memória prejudicada em razão de seu estado mental e físico,<br />

recorre aos post-it´s amarelos para lembrá-lo de alguma tarefa a realizar (como<br />

pagar as contas de casa, por exemplo).<br />

Nesta primeira parte do filme, a vida de Trevor segue uma rotina<br />

aparentemente normal, a despeito de suas idiossincrasias. No entanto, se<br />

observarmos seu isolamento social e seus sintomas obsessivos, podemos<br />

conjecturar que ele está vivenciando angustias do tipo paranóide e depressiva.<br />

Paranóide pelo isolamento, pelo fato de sua insônia não o permitir integrar<br />

elementos de um mundo psíquico perturbado. Depressiva, pelos sintomas<br />

obsessivos cuja função é purgar uma culpa inconsciente. Seu corpo, como<br />

representante do self, é identificado com um objeto atacado, o que explicaria uma<br />

suposta autopunição contínua: o corpo cadavérico. Segundo Paula Heimann, os<br />

estados paranóides apresentam aspectos característicos. Vejamos:<br />

As associações do paciente concentram-se em suas experiências persecutórias<br />

e na pessoa (ou pessoas) a quem ele considera responsável. Descreve em<br />

grande pormenor como, em conseqüência das ações hostis dessa pessoa, ele é<br />

lançado num estado de ansiedade, sofrimento, incapacidade mental e física<br />

(HEIMANN, 1980, p. 256).<br />

Nos estados paranóides [...] o delírio de perseguição é mantido por longo<br />

período e atuado repetidamente. O perseguidor é, repetida e frequentemente,<br />

introjetado; a introjeção é seguida pela divisão e pela projeção. Assim, são<br />

impedidas as funções associativa e integradora do ego e também sua<br />

capacidade para estabelecer relações de objeto de natureza realista e<br />

gratificante (HEIMANN, 1980, p. 276).


P á g i n a | 9<br />

Certamente Trevor está imerso nesse estado de sofrimento mental e físico<br />

tal qual descrito por Heimann. Mas não é possível observar, na primeira parte do<br />

filme, características alucinatórias ou delirantes de cunho persecutório. Em outras<br />

palavras, os perseguidores projetados ainda não afloraram à consciência (no<br />

sentido fenomenológico do termo). Tampouco é possível ainda aferir que ele negue<br />

seus impulsos cruéis pela projeção destes no objeto, cujo efeito seria considerar-se<br />

vítima da perseguição por esse mesmo objeto (HEIMANN, 1980, p. 270).<br />

Isto ocorre porque os mecanismos de cisão tendem a criar múltiplos objetos<br />

que são então reunidos dentro de uma estrutura complexa e organizada. Estes<br />

objetos são controlados por parte dos selves projetados para dentro deles e são<br />

mantidos afastados como estratégia defensiva contra o aniquilamento ou a<br />

angustia da perda do objeto. É justamente entre as posições esquizoparanóide e<br />

depressiva que o sujeito torna-se mais vulnerável à emergência de uma<br />

organização patológica. Uma vez instalada, esta organização pode se manter unida,<br />

no caso de Trevor, por mecanismos obsessivos nos quais o controle é soberano<br />

(STEINER, 1991, p. 332).<br />

Portanto, cabe à organização a tarefa de manter a cisão preservada,<br />

impedindo assim qualquer movimento de integração como forma de se proteger<br />

de angústias depressivas. Segundo John Steiner, caso esse equilíbrio ameaçar<br />

desfazer-se, o indivíduo pode tentar preservá-lo voltando-se para a proteção do<br />

objeto bom, e das partes boas do self, contra o objeto mau e as partes más do self<br />

(STEINER, 1997, p. 23). Com efeito, este “aparente” equilíbrio ocorre devido à<br />

atuação desta organização patológica.<br />

Porém, na segunda parte do filme, esta aparente estabilidade é ameaçada<br />

pelo surgimento de três elementos-chave: uma série de post-it´s colocados em sua<br />

geladeira, a aproximação com seu colega de trabalho chamado Ivan e o seu<br />

relacionamento com a garçonete Maria.


Os post-it´s, Ivan e Maria<br />

P á g i n a | 10<br />

Certa noite, ao se dar conta de que seu alvejante estava acabando, Trevor<br />

recorre ao post-it para lembrá-lo de comprá-lo no dia seguinte.<br />

Ao se dirigir à geladeira onde fixaria o lembrete, notou que já<br />

havia um lá, mostrando o “jogo da forca”.<br />

Tanto Trevor quanto o expectador são lançados num jogo<br />

enigmático. Quem teria colocado este post-it em sua geladeira? E por que o “jogo<br />

da forca”?<br />

Materializa-se assim, pela primeira vez, a presença de um perseguidor<br />

externo. Trevor envereda-se numa busca para descobrir o verdadeiro autor do<br />

lembrete ao mesmo tempo em que surge seu novo colega de trabalho: Ivan.<br />

Em um dos seus intervalos no trabalho, Ivan, um homem de aparência<br />

estranha, aborda Trevor para puxar conversa, alegando estar substituindo outro<br />

colega que teria se afastado temporariamente. Seu tom evasivo e enigmático<br />

desperta suspeitas à Trevor.<br />

Num outro dia, ao ajudar seu colega a consertar uma máquina, Trevor se<br />

distrai com Ivan, que naquele momento lhe fazia um sinal cujo significado era<br />

“cortar seu pescoço”. Nesta distração, a máquina é acionada e seu colega tem<br />

vários dedos decepados. Quando posteriormente é inquirido sobre o acidente,<br />

Trevor menciona Ivan, levando todos a afirmarem que não existia ninguém na<br />

fábrica com este nome e que seu suposto substituto nunca havia se afastado.<br />

Após este acidente, Trevor passa a encontrar sucessivos post-it´s em sua<br />

geladeira, parcialmente preenchidos, como se o jogo da forca já tivesse iniciado.


P á g i n a | 11<br />

Trevor então começa a suspeitar de todos os colegas e principalmente da<br />

vítima do acidente como possíveis autores dos post-it´s. O que Trevor e o<br />

expectador ainda não percebem é que tanto Ivan como os post-it´s cumpriam a<br />

função de denunciar a origem da culpa de Trevor.<br />

Mas que evento traumático fora demasiadamente forte para desencadear a<br />

emergência desta organização patológica? A resposta a esta pergunta começa a<br />

tomar corpo na medida em que Trevor se permite viver as angústias persecutórias<br />

neste momento em sua vida. E esta empreitada só é levada a cabo porque a cisão<br />

ora mantida pela organização patológica começa a se desfacelar na medida em que<br />

Trevor começa a vivenciar estas angústias em toda sua magnitude.<br />

Maria desempenha um papel importante nesta trajetória de Trevor. Sua<br />

aproximação com ela e com seu filho desencadeia uma série de Deja-vus. Numa<br />

comemoração do dia das mães, Trevor vai com Maria e seu filho ao parque de<br />

diversões. As imagens que passam diante dele se assemelham a elementos<br />

manifestos dos sonhos. Resquícios de experiências que aparecem simbolizadas de<br />

outra forma, recontextualizadas no momento presente. Os Deja-vus aparecem<br />

quando Trevor tira uma foto de Maria com seu filho (cena que ele já havia visto<br />

mas não sabia quando), os dizeres “Rota 666” na frente de um dos brinquedos e a<br />

crise convulsiva do menino que ocorre quando Trevor e ele estão num brinquedo<br />

de terror.<br />

Os Deja-vus sinalizam também um movimento de maior integração psíquica.<br />

Em termos teóricos, Trevor começa a perceber que aquilo não se tratava de uma<br />

equação simbólica (concretude do objeto), mas sim uma simbolização, uma<br />

representação de algo perdido no tempo e espaço. Para Hanna Segal (1972/1998;<br />

1954/1991), a capacidade de simbolizar só é possível quando objetos cindidos<br />

podem ser integrados, tarefa esta alcançada na posição depressiva . Trata-se de<br />

mais uma desestabilização da organização patológica na medida em que a cisão<br />

maciça não está mais sendo levada a cabo.<br />

Quanto a Ivan, ele ainda continua sendo um enigma para Trevor. Este<br />

decide investigá-lo (pois acredita na sua existência) por meio do número da placa


P á g i n a | 12<br />

de seu carro. Para sua surpresa, Trevor descobre que o carro era de sua<br />

propriedade!<br />

Ao voltar para casa, ainda do lado de fora e transtornado, vê Ivan entrando<br />

em seu apartamento com o filho de Maria. Sem entender a situação, busca<br />

confrontação com Ivan que se encontra no banheiro. Ivan lhe diz que adora os<br />

lembretes que ele mesmo, Trevor, coloca na geladeira. Trevor acaba assassinando<br />

Ivan com um corte no pescoço.<br />

Quando tenta se livrar do corpo, se dá conta de que não havia corpo<br />

nenhum e que Ivan fora uma produção mental alucinatória e acusatória, tal qual<br />

todas as outras produções como os post-it´s e até mesmo a simples presença de<br />

Maria.<br />

Ao chegar a casa, encontra o seguinte post-it: “quem é<br />

você?”. Num momento de grande angústia, na<br />

terceira parte do filme, ele mesmo responde<br />

a esta pergunta terminando de preencher o<br />

“jogo da forca”. A palavra que completaria o<br />

jogo era Killer (assassino). Ele agora entende o que se passa<br />

com ele e sabe agora quem ele é: um assassino.<br />

Os elementos cindidos agora se integram restabelecendo a memória<br />

traumática que desencadeou a formação da organização patológica (STEINER,<br />

1997). Maria na verdade nunca fora uma garçonete, mas a mãe de um menino que<br />

ele atropelara e fugira há um ano atrás. Na impossibilidade psíquica de elaborar a<br />

culpa pela covardia de não socorrer o menino, Trevor não pôde se identificar com<br />

o objeto maltratado, se afastando dele (movimento típido dos estados paranóides)<br />

(HEIMANN, 1980).<br />

Embora a organização patológica o mantivesse relativamente equilibrado<br />

pelas defesas anteriormente descritas, seu corpo não fora poupado, o que nos<br />

sugere que houve sim certa identificação com o objeto maltratado. Seu corpo<br />

passara a ser atropelado diariamente pela impossibilidade de dormir e pela<br />

constante perda de peso. Se seu mundo mental não conseguia integrar os objetos


P á g i n a | 13<br />

cindidos, coube a organização patológica atuar defensivamente direcionando seus<br />

ataques agressivos ao seu próprio corpo.<br />

Quando ele integra esses elementos outrora cindidos, recupera a chance de<br />

reparar a culpa pela morte do garoto. Entrega-se à polícia e quando é levado ao<br />

encarceramento, não agüenta ficar em pé de tanto sono.<br />

Agora Trevor pode dormir o sono dos justos.<br />

5. Considerações finais<br />

O processo de maturação psíquica de Trevor, ou em outros termos, o<br />

abandono de uma organização patológica para a posição depressiva, se dá pela<br />

elaboração do luto como conseqüência da reversão da identificação projetiva.<br />

O processo de reconquistar as partes perdidas do self através da identificação<br />

projetiva envolve encarar a realidade do que pertence ao objeto e do que<br />

pertence ao self, o que se estabelece com maior clareza por meio da<br />

experiência de perda. É no processo de luto que partes do self são<br />

reconquistadas, e esta aquisição requer extensa elaboração. Assim, uma<br />

verdadeira internalização do objeto só pode ser obtida se se renunciar a ele<br />

reconhecendo-o como um objeto externo. Então, este pode ser internalizado<br />

como separado do self, e nesse estado pode ser identificado de forma flexível e<br />

reversível. O desenvolvimento da função simbólica ajuda nesse processo e<br />

permite ao indivíduo identificar-se mais com aspectos do objeto do que com<br />

sua totalidade concreta (STEINER, 1997, p. 24)<br />

Neste processo, o objeto perdido é visto de forma mais realista, e as partes<br />

anteriormente rejeitadas do self são gradualmente reconhecidas como<br />

pertencentes a ele. Esta conquista psíquica só é possível por meio da constatação<br />

do desastre interno gerado pelo seu sadismo e pela conscientização de que seu<br />

amor e seus desejos reparatórios são insuficientes para preservar o objeto. Esses<br />

processos implicam dor e conflito mental intenso, cuja resolução é parte da função do<br />

luto (STEINER, 1997, p. 80).<br />

No entanto, para alguns sujeitos, a organização patológica parece ser a única<br />

saída na medida em que ela garante o controle e distância emocional necessários.


P á g i n a | 14<br />

Levando-se em consideração os limites que esta análise impõe (por ser uma<br />

leitura sobre uma obra ficcional e não um caso clínico), consideramos que as<br />

articulações teóricas apresentadas nos permitem conjecturar que:<br />

1. Embora a organização patológica ofereça uma zona de proteção<br />

ilusória, é possível ainda assim abandoná-la quando o sujeito<br />

encontra recursos psíquicos para suportar as angústias de ambas as<br />

posições. Tais recursos podem ter sido fortalecidos pelos vínculos<br />

com a figura feminina que ofereceram à Trevor momentos de<br />

contenção e acolhimento, como foi o caso de Stevie e Maria (mesmo<br />

em sua forma alucinatória).<br />

2. Do mesmo modo que há uma fluidez no deslocamento entre as<br />

posições esquizoparanóide e depressiva, a mesma fluidez pode estar<br />

presente quando o sujeito recorre à organização patológica como<br />

forma de alcançar uma trégua em estados de grande vulnerabilidade<br />

psíquica.


2. Referências Bibliográficas<br />

P á g i n a | 15<br />

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(2004). THE MACHINIST (O OPERÁRIO) [Filme Cinematográfico]. USA.<br />

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SEGAL, H. (1975). Introdução à Obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago.<br />

__________ (1991). Notas sobre a Formação de Símbolos. In: E. B. SPILLIUS<br />

(Ed.), Melanie Klein Hoje: Desenvolvimentos da Teoria e da Técnica (Vol. 1, pp. 167-<br />

184). Rio de Janeiro: Imago.<br />

Imago.<br />

__________ (1972/1998). Psicanálise, Literatura e Guerra. Rio de Janeiro:<br />

STEINER, J. (1991). O interjogo entre Organizações Patológicas e as<br />

Posições Esquizo-paranóide e Depressiva. In: E. B. SPILLIUS, Melanie Klein Hoje:<br />

desenvolvimentos da teoria e da técnica (Vol. 1, pp. 329-348). Rio de Janeiro: Imago.<br />

_____________ (1997). Refúgios Psíquicos: Organizações Patológicas em<br />

Pacientes Psicóticos, Neuróticos e Fronteiriços. Rio de Janeiro: Imago.

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