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1 Adelino Torres “Oração de Sapiência” proferida na cerimónia do ...

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<strong>A<strong>de</strong>lino</strong> <strong>Torres</strong><br />

<strong>“Oração</strong> <strong>de</strong> <strong>Sapiência”</strong><br />

<strong>proferida</strong> <strong>na</strong> <strong>cerimónia</strong> <strong>do</strong> “Doutoramento Honoris Causa”<br />

<strong>do</strong> Embaixa<strong>do</strong>r Doutor Onésimo Silveira<br />

<strong>na</strong> Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Min<strong>de</strong>lo (Cabo Ver<strong>de</strong>)<br />

em 8 <strong>de</strong> Dezembro <strong>de</strong> 2012<br />

Senhor Primeiro Ministro<br />

Magnifico Reitor da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Min<strong>de</strong>lo<br />

Senhor Ministro <strong>do</strong> Ensino Superior, Ciência e Inovação<br />

Senhor Ministro da Defesa<br />

(Outras altas individualida<strong>de</strong>s)…<br />

Senhoras e Senhores<br />

Estima<strong>do</strong>s amigos,<br />

É para mim uma gran<strong>de</strong> honra participar <strong>na</strong> home<strong>na</strong>gem ao Doutor<br />

Onésimo Silveira. Esta oportunida<strong>de</strong> dá-me justificada alegria por duas<br />

razões: pessoais e profissio<strong>na</strong>is.<br />

No primeiro caso porque se trata <strong>de</strong> um companheiro que encontrei pela<br />

primeira vez há cerca <strong>de</strong> cinquenta anos e que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, tenho<br />

revisto a espaços, sempre com renova<strong>do</strong> prazer.<br />

No segun<strong>do</strong> caso pela excepcio<strong>na</strong>l qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong> home<strong>na</strong>gea<strong>do</strong>, como<br />

distinto homem <strong>de</strong> letras, poeta, escritor e ensaísta, características que<br />

fazem <strong>de</strong>le um <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s intelectuais contemporâneos, não ape<strong>na</strong>s <strong>de</strong><br />

Cabo Ver<strong>de</strong>, mas da língua portuguesa como tentarei <strong>de</strong>monstrar a<br />

seguir.<br />

Começan<strong>do</strong> pelas razões pessoais:<br />

Conheço o Doutor Onésimo Silveira <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos já longínquos da<br />

Argélia, on<strong>de</strong> ambos estivemos exila<strong>do</strong>s logo a seguir a este país ter<br />

conquista<strong>do</strong> a sua in<strong>de</strong>pendência no inicio <strong>do</strong>s anos 1960.<br />

1


Encontrámo-nos mais tar<strong>de</strong> em Paris e, se ele se lembra ainda, no café<br />

Lutèce no bd St Michel, on<strong>de</strong> até falámos <strong>de</strong> muita coisa (mas agora sou<br />

eu que não se lembra <strong>do</strong> resto)<br />

Vimo-nos <strong>de</strong> novo, fugazmente, em Moçambique em 1986 se não estou<br />

em erro, quan<strong>do</strong> Onésimo Silveira era Embaixa<strong>do</strong>r da ONU para os<br />

refugia<strong>do</strong>s e eu integrava uma missão da Universida<strong>de</strong> Técnica <strong>de</strong><br />

Lisboa junto da Universida<strong>de</strong> Eduar<strong>do</strong> Mondlane.<br />

Mais tar<strong>de</strong>, já nos anos 2000, os nossos caminhos cruzaram-se <strong>de</strong> novo<br />

quan<strong>do</strong> Onésimo Silveira era Embaixa<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Cabo Ver<strong>de</strong> em Lisboa e eu<br />

fazia parte <strong>do</strong> grupo <strong>de</strong> pessoas que tiveram a sincera alegria <strong>de</strong> o<br />

receber como novo membro da Aca<strong>de</strong>mia Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l da Cultura<br />

Portuguesa, então Presidida pelo Professor Adriano Moreira.<br />

Portanto cruzámo-nos repetidamente em quatro países diferentes ao<br />

longo <strong>de</strong> 50 anos, o que é mais <strong>do</strong> que simples “coincidência”…<br />

É claro que a maioria <strong>de</strong>sses encontros, sobretu<strong>do</strong> os últimos, fez-se em<br />

situações pessoais diferentes: ele <strong>na</strong>s altas esferas da diplomacia<br />

inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, e eu incorpora<strong>do</strong> <strong>na</strong>s tropas mo<strong>de</strong>stas <strong>do</strong> professora<strong>do</strong><br />

sem influência e até, confesso, feliz por não a ter.<br />

Também não foram simples “coincidências” esses reencontros, porque<br />

trilhámos, cada um a seu mo<strong>do</strong>, caminhos com pontos comuns e<br />

objectivos similares que enumero:<br />

I<strong>de</strong>ais pela libertação <strong>de</strong> África;<br />

luta contra as injustiças feitas ao continente africano;<br />

<strong>de</strong>fesa, em to<strong>do</strong>s os momentos (e até hoje) das i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong><br />

liberda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia humanista;<br />

2


partilha <strong>do</strong> património que pertence a to<strong>do</strong>s aqueles que ainda se<br />

lembram <strong>do</strong> que foi o colonialismo e que <strong>de</strong>le não têm boas<br />

recordações.<br />

Portanto esses encontros, mais <strong>do</strong> que “coincidências”, resultavam sim<br />

<strong>de</strong> objectivos que no essencial convergiam, ainda que por vias distintas<br />

e níveis <strong>de</strong> participação diferentes, como já disse. Isso era váli<strong>do</strong> tanto<br />

nos anos 60-70 como ainda <strong>na</strong> actualida<strong>de</strong>, mesmo se o mun<strong>do</strong> se<br />

transformou e a realida<strong>de</strong> inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l se reveste <strong>de</strong> características<br />

que exigem novas abordagens.<br />

Com todas as suas vantagens e inconvenientes, a globalização <strong>de</strong>ntro<br />

da qual agora vivemos, favoreceu um melhor conhecimento entre os<br />

homens, quer dizer o conhecimento “<strong>do</strong> outro” o que, com todas as suas<br />

limitações, é bem melhor <strong>do</strong> que o preconceito gerada <strong>na</strong> ignorância <strong>do</strong><br />

que está para além <strong>de</strong> nós, enquanto indivíduos.<br />

Também é certo que o surgimento <strong>de</strong>sta globalização actual, alimentou<br />

<strong>de</strong> algum mo<strong>do</strong> o progresso e universalização da ciência, ao mesmo<br />

tempo que esta foi favorecida por aquela. Por exemplo a evolução e<br />

divulgação das conquistas da biologia científica, atirou <strong>de</strong>finitivamente<br />

certos conceitos para o museu <strong>de</strong> antiguida<strong>de</strong>s, impedin<strong>do</strong><br />

interpretações metafísicas, por assim dizer, que antes justificavam<br />

arbitrarieda<strong>de</strong>s utilizadas por certas ciências, como por exemplo a velha<br />

“antropologia física” <strong>de</strong> má memória (medição <strong>de</strong> crânios em África à<br />

procura <strong>de</strong> inferiorida<strong>de</strong>s e patologias, etc.).<br />

Assim aconteceu com o conceito <strong>de</strong> “raça” (com todas as consequências<br />

pseu<strong>do</strong>-filosóficas e sociais que esse conceito há muito obsoleto<br />

veiculava) ainda que esse termo tenha si<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong> – erradamente -<br />

<strong>na</strong> linguagem corrente sem nenhuma conotação especial, mas ao qual<br />

será um dia necessário encontrar um conceito equivalente, porém sem<br />

a carga histórica que caracteriza a palavra “raça”.<br />

3


Sabe-se hoje <strong>de</strong> fonte segura, graças aos avanços da ciência, que <strong>na</strong><br />

“espécie huma<strong>na</strong>” não existem “raças” mas ape<strong>na</strong>s uma: o homem, dito<br />

o homo sapiens, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da região on<strong>de</strong> <strong>na</strong>sceu, <strong>do</strong> polo<br />

norte ao polo sul, <strong>do</strong> oriente ao oci<strong>de</strong>nte<br />

Não se trata <strong>de</strong> i<strong>de</strong>alismo, mas, pura e simplesmente, <strong>de</strong> biologia<br />

comprovada cientificamente e já levada ao conhecimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

graças aos avanços das novas tecnologias.<br />

A diferença entre homens <strong>de</strong> aparência étnica diferente, em vez <strong>de</strong> ser<br />

vista como uma riqueza que a varieda<strong>de</strong> sempre contém, era<br />

perversamente interpretada como uma justificação das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s<br />

sociais e políticas, à luz <strong>de</strong> uma teologia ignorante, que por vezes nem<br />

sequer conhecia Tomás <strong>de</strong> Aquino e outros gran<strong>de</strong>s pensa<strong>do</strong>res da<br />

Igreja, ou à luz <strong>de</strong> um pensamento político e científico retrógra<strong>do</strong>s que<br />

vigorou durante séculos.<br />

Se querem um exemplo, experimentem fazer hoje, <strong>de</strong>pois das mutações<br />

científicas que tiveram lugar <strong>na</strong>s últimas décadas, uma transfusão <strong>de</strong><br />

sangue entre um chinês, um índio da Amazónia, um europeu, um<br />

asiático ou um africano. Des<strong>de</strong> que o tipo <strong>de</strong> sangue seja o mesmo, tu<strong>do</strong><br />

se passará bem e o paciente po<strong>de</strong> voltar para casa. O ser humano é<br />

igual em todas as latitu<strong>de</strong>s, apesar das diferenças culturais e históricas.<br />

Mas ousem fazer essa transfusão entre um homem e um ser <strong>de</strong> outra<br />

raça (por exemplo um crocodilo) e rapidamente constatarão que o<br />

mesmo paciente em vez <strong>de</strong> alegremente voltar para casa, tomará, com<br />

menos alegria, outro <strong>de</strong>stino que será provavelmente mais <strong>de</strong>finitivo…<br />

É certo que a globalização tem também efeitos negativos, como<br />

acontece, no plano económico, com a actual pre<strong>do</strong>minância <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r<br />

fi<strong>na</strong>nceiro inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l que também usufrui das novas tecnologias<br />

4


para <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>das acções que <strong>de</strong>sconhecem a ética, mas não me<br />

atardarei sobre esses pontos embora eles estejam presentes no<br />

pensamento <strong>de</strong> Onésimo Silveira.<br />

Relativamente à importância da sua obra, sublinho alguns aspectos que<br />

me parecem revela<strong>do</strong>res.<br />

Quan<strong>do</strong> recebi o convite para participar nesta sessão <strong>de</strong> home<strong>na</strong>gem, li<br />

ou reli gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong> que escreveu. E apesar da admiração que já<br />

tinha, <strong>de</strong>vo confessar que fui surpreendi<strong>do</strong>.<br />

Na obra poética, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, reencontrei a <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um pensamento<br />

que revela, hoje como ontem, a par <strong>de</strong> um estilo apura<strong>do</strong> e<br />

literariamente bem cinzela<strong>do</strong>, a voz po<strong>de</strong>rosa <strong>de</strong> um poeta, inquieto e<br />

revolta<strong>do</strong> que vai além <strong>do</strong> que se convencionou chamar “intervenção<br />

social” e cuja poesia é um grito <strong>de</strong> indig<strong>na</strong>ção que lhe suscita o<br />

sofrimento <strong>de</strong> to<strong>do</strong> um povo nos anos 50 <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, numa<br />

busca, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito ce<strong>do</strong>, da verda<strong>de</strong> por <strong>de</strong>trás das aparências com<br />

base num salutar inconformismo, como é visível no poema intitula<strong>do</strong><br />

“Lema” on<strong>de</strong> é dito:<br />

“Atras <strong>do</strong>s ferros da prisão<br />

é preciso levantar os braços algema<strong>do</strong>s<br />

contra a prepotência”<br />

ou ainda no poema “Hora gran<strong>de</strong>” on<strong>de</strong> com forte simbolismo poético<br />

se po<strong>de</strong> ler:<br />

“O negreiro está perdi<strong>do</strong> <strong>na</strong> légua <strong>do</strong> tempo<br />

porque a alma das nossas vozes<br />

não morrerá no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s porões…<br />

A fome não se alimentará da fome<br />

5


e voaremos <strong>na</strong>s asas <strong>do</strong> sol<br />

com o <strong>de</strong>stino <strong>na</strong> palma da mão!»<br />

A palavra é manifestamente a sua arma e ele maneja-a como um<br />

guerreiro digno <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong>s clari<strong>do</strong>sos que – como Baltasar Lopes,<br />

Manuel Lopes, Aurélio Gonçalves, , Gabriel Mariano e muitos outros -<br />

serão sempre uma glória para Cabo Ver<strong>de</strong> e que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> essa época, não<br />

têm émulos em mais nenhum território africano <strong>de</strong> língua oficial<br />

portuguesa: enfim, uma geração exemplar da cultura cabo-verdia<strong>na</strong> e<br />

universal, num país on<strong>de</strong>, ao contrário <strong>de</strong> outros, a Nação prece<strong>de</strong>u o<br />

Esta<strong>do</strong>.<br />

Onésimo Slveira <strong>de</strong>scobre, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito jovem, uma realida<strong>de</strong> que<br />

alguns ignoravam e sobre a qual outros se <strong>de</strong>bruçavam com<br />

indiferença, por “egoísmo” ou porque julgavam “<strong>na</strong>tural” essa dita<br />

“fatalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>stino” contra a qual seria inútil revoltar-se.<br />

Noutro <strong>do</strong>s seus poemas intitula<strong>do</strong> “Lágrimas <strong>do</strong> mar”, o lirismo<br />

transparece <strong>de</strong> novo com vigor no recurso sugestivo da acção da<br />

<strong>na</strong>tureza:<br />

«As ondas<br />

que vêm morrer <strong>na</strong>s encostas das nossa ilhas<br />

não são ondas:<br />

são lágrimas<br />

que o mar chora<br />

pelos sobreviventes <strong>de</strong> <strong>de</strong>z barcos petrifica<strong>do</strong>s<br />

que há mil anos estão a pedir socorro…»<br />

Os seus versos, cujo realismo e força poética são evi<strong>de</strong>ntes, arrancam a<br />

máscara da aparência e trazem à luz a face oculta <strong>de</strong> um sofrimento<br />

visível ou vela<strong>do</strong> que marca a ferro e fogo a tragedia <strong>de</strong> um povo e <strong>de</strong><br />

uma <strong>na</strong>ção com uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> própria que mais tar<strong>de</strong> ele a<strong>na</strong>lisará no<br />

plano científico, embora seja verda<strong>de</strong>, como escreverá no seu livro A<br />

6


<strong>de</strong>mocracia em Cabo Ver<strong>de</strong>, que “poucos são os povos cujo passa<strong>do</strong> não<br />

esteja pontua<strong>do</strong> <strong>de</strong> tragédias” (2005: 66).<br />

Essa poesia <strong>de</strong> protesto social e <strong>de</strong> reivindicação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />

<strong>na</strong>ção maltratada, estava já patente nos cinco poemas fi<strong>na</strong>is <strong>do</strong> livro em<br />

prosa Toda a gente fala sim senhor, publica<strong>do</strong> <strong>na</strong> sau<strong>do</strong>sa colecção<br />

Imbon<strong>de</strong>iro, em Luanda, no seu Ca<strong>de</strong>rno nº 9 <strong>do</strong>s anos 50 <strong>do</strong> século<br />

passa<strong>do</strong>, colecção que se <strong>de</strong>veu à iniciativa abnegada <strong>de</strong> Leonel Cosme<br />

et Garibaldino <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, cujo trabalho editorial pioneiro se prolongou<br />

durante vários anos. Ainda hoje possuo muitos <strong>de</strong>sses ca<strong>de</strong>rnos<br />

O grito <strong>do</strong>s versos encontra-se <strong>de</strong> novo no livro <strong>de</strong> poemas Hora<br />

Gran<strong>de</strong> (1962) cuja jovem editora <strong>de</strong> vida efémera era dirigida por<br />

Ernesto Lara Filho e Inácio Rebelo <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, <strong>na</strong> cida<strong>de</strong> angola<strong>na</strong> que<br />

se chamava então Nova Lisboa, hoje Huambo.<br />

Para acrescentar outra “coincidência” às anteriormente referidas, tanto<br />

o Ernesto Lara Filho como o Inácio Rebelo <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> contam-se<br />

também entre os meus companheiros. O Ernesto faleceu mais tar<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>pois da in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> Ãngola. O Inácio continua a publicar<br />

romances com a regularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um relógio que <strong>do</strong>mi<strong>na</strong> o tempo, com a<br />

exigência e qualida<strong>de</strong> que honrariam Angola se esta <strong>de</strong>sse por isso.<br />

Quanto à obra poética <strong>de</strong> Onésimo Silveira, o livro Hora gran<strong>de</strong> foi<br />

posteriormente integra<strong>do</strong>, em 2008, num outro seu livro com o belo<br />

título Poemas <strong>do</strong> tempo <strong>de</strong> trevas publica<strong>do</strong> no Min<strong>de</strong>lo pelo Instituto<br />

da Biblioteca Nacio<strong>na</strong>l e <strong>do</strong> Livro.<br />

No romance <strong>de</strong>staco A sage das as-secas e das graças <strong>de</strong> Nossa<br />

Senhora, edita<strong>do</strong> em Lisboa em 1991 (Edições Europa-América). Já<br />

esgota<strong>do</strong>, aguarda uma merecida reedição em Lisboa ou em Cabo<br />

Ver<strong>de</strong>.<br />

7


Oxalá os ares salutares <strong>do</strong> Min<strong>de</strong>lo permitam ao escritor produzir<br />

muitas outras obras (ou tirá-las porventura da gaveta). Pelo menos até<br />

aos 100 anos o Mestre tem muito tempo para o fazer, como to<strong>do</strong>s<br />

esperamos…<br />

Relativamente aos ensaios, só recentemente tive o ensejo <strong>de</strong> ler os seus<br />

<strong>do</strong>is livros principais. Estes só por si seriam suficientes para lhe<br />

conferir uma justa nomeada inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l se as editoras e a<br />

distribuição livreira cumprissem a sua função, o que infelizmente não<br />

acontece..<br />

Depois <strong>de</strong> os ler, posso dizer agora, com veemência, que o seu livro<br />

África ao Sul <strong>do</strong> Sahara – Sistemas <strong>de</strong> parti<strong>do</strong>s e i<strong>de</strong>ologias <strong>de</strong><br />

socialismo escrito em 1976, foi um <strong>do</strong>s livros mais importantes, <strong>na</strong><br />

área <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento africano, que até hoje foram publica<strong>do</strong>s em<br />

Portugal e, porventura, atrevo-me a dizê-lo, em qualquer outra língua.<br />

Pe<strong>na</strong> foi que em 1976 ele não tivesse consegui<strong>do</strong> uma tradução<br />

imediata e que só o tivéssemos conheci<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> foi fi<strong>na</strong>lmente<br />

edita<strong>do</strong> em 2005. A Democracia em Cabo Ver<strong>de</strong>, ultrapassa por sua<br />

vez o âmbito sugeri<strong>do</strong> pelo título, pois a sua leitura revela um<br />

interessante e origi<strong>na</strong>l estu<strong>do</strong> (ou melhor: um conjunto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s) em<br />

ciência política muito mais abrangente <strong>do</strong> que o título indica.<br />

Vou <strong>de</strong>ter-me um pouco sobre o livro África ao Sul <strong>do</strong> Sahara e sobre<br />

esta data (1976) por razões que explicarei já.<br />

Na data <strong>de</strong> 1976, em primeiro lugar, em que foi escrita essa tese,<br />

<strong>de</strong>tecto mais uma “coincidência” pois foi justamente nesse ano que<br />

regressei a Portugal e me integrei em equipas <strong>de</strong> investiga<strong>do</strong>res que<br />

tratavam essa mesma temática <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento africano. Por isso<br />

me lembro bem. E se o refiro aqui é justamente pela importância <strong>de</strong>sta<br />

data no plano <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s científicos <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e das relações<br />

Norte-Sul, tanto em Portugal como no resto da Europa.<br />

8


Foi precisamente nos anos 70 que o <strong>de</strong>bate sobre o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

atingiu o seu auge, tanto <strong>na</strong> França <strong>do</strong> pós “Maio 1968” como em<br />

Portugal no pós “25 <strong>de</strong> Abril 1974”<br />

Diversas correntes <strong>do</strong> pensamento <strong>de</strong>frontavam-se então.<br />

As visões liberal e neo-liberal, hoje triunfantes, eram então molemente<br />

<strong>de</strong>fendidas e a sua intervenção fraca no <strong>de</strong>bate <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias, com excepção<br />

<strong>do</strong> notável Raymond Aron.<br />

As correntes marxista (orto<strong>do</strong>xa) e néo-marxista (chamemos-lhe<br />

hetero<strong>do</strong>xa) <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>vam <strong>na</strong> Europa <strong>de</strong> então, mas também <strong>na</strong> África e<br />

<strong>na</strong> América Lati<strong>na</strong>. Haveria certamente um pensamento asiático mas<br />

que não circulava nos circuitos editoriais oci<strong>de</strong>ntais. Só me recor<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

um autor indiano, <strong>de</strong> nome Panikkar, que escreveu uma obra<br />

revela<strong>do</strong>ramente intitulada A Ásia e a <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ção oci<strong>de</strong>ntal,<br />

publicada em França em 1953. Não me refiro, bem entendi<strong>do</strong>, a<br />

autores como Mao Tse Toung que saíam <strong>do</strong> âmbito específico <strong>do</strong>s<br />

estu<strong>do</strong>s universitários <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento propriamente dito.<br />

Os autores que se situavam nesta área da investigação, como Samir<br />

Amin, Gun<strong>de</strong>r Frank, Ro<strong>do</strong>lfo Stavenhagen, etc. faziam parte da “Escola<br />

da Dependência” neo-marxista, e sobrepunham-se em popularida<strong>de</strong> aos<br />

restantes autores. Mais mo<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s, ou pelo menos assim consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s,<br />

eram Celso Furta<strong>do</strong> e Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Henriques Car<strong>do</strong>so. Celso Furta<strong>do</strong><br />

chegou mesmo a ser apelida<strong>do</strong> <strong>de</strong> “maior economista <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>” pelo<br />

jor<strong>na</strong>l francês Le Mon<strong>de</strong>, num acesso <strong>de</strong> entusiasmo talvez excessivo<br />

para um jor<strong>na</strong>l habitualmente mais circunspecto<br />

Uma das diferenças principais (mas não a única) entre os autores<br />

marxistas ditos orto<strong>do</strong>xos (tendência Moscovo, digamos) e os neo-<br />

marxistas hetero<strong>do</strong>xos era <strong>de</strong> que os primeiros advogavam a passagem<br />

9


<strong>do</strong> sub<strong>de</strong>senvolvimento à fase <strong>do</strong> capitalismo antes <strong>de</strong> chegar ao<br />

socialismo propriamente dito, enquanto que os segun<strong>do</strong>s, tinham o<br />

argumento <strong>de</strong> que o “imperialismo” nunca consentiria no<br />

<strong>de</strong>senvolvimento real <strong>do</strong>s países <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> Terceiro Mun<strong>do</strong> (geran<strong>do</strong> o<br />

que Gun<strong>de</strong>r Frank chamava com algum fatalismo: “o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

<strong>do</strong> sub<strong>de</strong>senvolvimento”), pelo que a única via era passar directamente<br />

<strong>do</strong> sub<strong>de</strong>senvolvimento ao socialismo saltan<strong>do</strong>, portanto, a fase da<br />

construção <strong>do</strong> capitalismo.<br />

Hoje, com o surgimento <strong>do</strong>s novos países emergentes que se<br />

“<strong>de</strong>senvolveram” em vez <strong>de</strong> se “sub<strong>de</strong>senvolverem” como era vatici<strong>na</strong><strong>do</strong>,<br />

apercebemo-nos melhor <strong>do</strong>s limites <strong>de</strong> certas análises i<strong>de</strong>alistas ou<br />

materialistas e da precarieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> “certeza” que Karl Popper<br />

não se cansou <strong>de</strong> criticar.<br />

No entanto, no meio da poeira levantada e das nuvens <strong>de</strong> pólvora que<br />

tu<strong>do</strong> envolviam, os conten<strong>do</strong>res não conseguiram livrar-se <strong>de</strong> <strong>do</strong>is<br />

problemas.<br />

Primeiro problema: Bill Warren – um jovem marxista inglês talentoso<br />

que faleceu prematuramente - <strong>de</strong>monstrou <strong>de</strong> maneira coerente (in<br />

Imperialism: Pioneer of Capitalism, 1980), que os neomarxistas da<br />

“Escola da Dependência” ao suprimirem a etapa “capitalista”, entraram<br />

directamente em contradição com a teoria <strong>de</strong> Marx expressa, quer no<br />

Manifesto quer noutras obras. De facto, Marx dissera no início <strong>do</strong><br />

Capital que os países <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s (capitalistas) mostravam aos<br />

países menos <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s a imagem <strong>do</strong> seu próprio futuro.<br />

Então como passar, sem incoerência ou contradição, por cima <strong>de</strong>sta<br />

etapa? Não conheço nenhuma resposta convincente…<br />

Segun<strong>do</strong> problema: Ninguém sabia (e continua a não saber, aliás)<br />

como seria, concretamente, esse “socialismo” que o próprio Marx se<br />

recusou a <strong>de</strong>screver, para que a sua obra não fosse confundida com a<br />

10


<strong>do</strong>s socialistos “utópicos”: Saint Simon, Charles Fourier e Robert Owen<br />

que tanto criticou, ou, numa outra perspectiva, com a obra <strong>de</strong><br />

Proudhon que, aliás, foi cruelmente (e injustamente) trata<strong>do</strong> por Marx<br />

<strong>na</strong> sua Miséria da Filosofia em resposta à Filosofia da Miséria <strong>de</strong><br />

Proudhon…<br />

Por isso o Capital <strong>de</strong> Marx não é, como alguns ainda julgam, a<br />

<strong>de</strong>scrição <strong>do</strong> que seria o socialismo, mas sim a <strong>de</strong>smontagem <strong>do</strong><br />

capitalismo existente e empiricamente observável, ou seja não era a<br />

<strong>de</strong>monstração <strong>do</strong> que o socialismo <strong>de</strong>veria ser, mas sim aquilo que<br />

ele não po<strong>de</strong>ria ser. A sua análise é “científica” <strong>na</strong> medida em que<br />

Marx se apoiava sobre o que era observável no seu tempo, através <strong>de</strong><br />

da<strong>do</strong>s empíricos, retira<strong>do</strong>s nomeadamente da industrialização da<br />

Inglaterra. A valida<strong>de</strong> epistemológica <strong>de</strong>ssa “cientificida<strong>de</strong>” é uma outra<br />

questão fora <strong>de</strong>ste contexto…<br />

Isso não <strong>de</strong>ve ignorar a justeza da crítica que era feita ao colonialismo e<br />

à sua lógica inter<strong>na</strong> <strong>de</strong> exploração e <strong>de</strong> injustiça, crítica levada ao<br />

extremo por Franz Fanon no seu famoso e controverso livro Os<br />

con<strong>de</strong><strong>na</strong><strong>do</strong>s da terra com o célebre e não menos controverso prefácio<br />

<strong>de</strong> Jean-Paul Sartre. E digo “controverso”, porque ainda está em<br />

discussão se o livro Os con<strong>de</strong><strong>na</strong><strong>do</strong>s da terra foi positivo ou negativo<br />

para a causa africa<strong>na</strong>, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da sua retórica e valor<br />

argumentativo.<br />

Mas se, mais tar<strong>de</strong>, a prática <strong>de</strong>monstrou a falência das experiências<br />

ditas “socialistas” em África (Guiné Co<strong>na</strong>cry, Angola e outros) para as<br />

quais o pensamento orto<strong>do</strong>xo , pela sua rigi<strong>de</strong>z unilateral e <strong>do</strong>gmática<br />

não teve resposta perante a complexida<strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma<br />

situação histórica, antropológica, política, que em África escapava a<br />

todas as axiomáticas pré-<strong>de</strong>termi<strong>na</strong>das (orto<strong>do</strong>xas ou hetero<strong>do</strong>xas),<br />

também ficou claro que a “Escola da Dependência”, a <strong>de</strong>speito da sua<br />

criativida<strong>de</strong> estimulante em muitos aspectos, e <strong>de</strong> novos caminhos<br />

11


abertos à percepção das relações inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, também se revelou<br />

impraticável, por razões inter<strong>na</strong>s e exter<strong>na</strong>s ao continente, para<br />

apreen<strong>de</strong>r a complexida<strong>de</strong> africa<strong>na</strong> ou transformar o<br />

sub<strong>de</strong>senvolvimento em <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

Desse <strong>de</strong>scrédito resultou a vitória, a partir <strong>do</strong>s anos 80 (Regan e<br />

Thatcher) e sobretu<strong>do</strong> <strong>de</strong>pois da queda <strong>do</strong> muro <strong>de</strong> Berlim e da<br />

implosão da URSS, <strong>do</strong> ultra-liberalismo, expresso <strong>na</strong> globalização<br />

fi<strong>na</strong>nceira que Karl Polanyi já tinha <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong> em 1944 no seu genial<br />

livro A gran<strong>de</strong> transformação (Lisboa, Ed. 70, 2012). Porém, tu<strong>do</strong><br />

indica que esta vitória <strong>do</strong> liberalismo é talvez uma vitória “<strong>de</strong> Pirro”,<br />

como o <strong>de</strong>monstra já a crise fi<strong>na</strong>nceira inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l começada em<br />

2008 e que ameaça actualmente o euro e a União Europeia, cuja<br />

bancarrota po<strong>de</strong>rá arrastar com ela, por contágio, os próprios países<br />

emergentes, Chi<strong>na</strong> incluída, apesar das aparências em contrário.<br />

Volto mais uma vez à data <strong>de</strong> 1976 em que a tese <strong>de</strong> Onésimo Silveira<br />

foi <strong>de</strong>fendida. O que preten<strong>do</strong> sublinhar é, creio, importante no plano<br />

científico. Nessa época todas as equipas <strong>de</strong> investiga<strong>do</strong>res europeus<br />

estavam mergulha<strong>do</strong>s nos <strong>de</strong>bates entre as orto<strong>do</strong>xias e as<br />

hetero<strong>do</strong>xias já referidas, <strong>na</strong>s divisões entre o Norte e o Sul ou noutras<br />

questões mais laterais. A África era um <strong>do</strong>s laboratórios <strong>de</strong><br />

experimentação distante no qual uns e outros aplicavam os seus<br />

instrumentos teóricos préconcebi<strong>do</strong>s, nem sempre aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> às<br />

nuances e subtilezas <strong>de</strong> uma empiria diferenciada entre os países<br />

africanos com i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e histórias que se distinguiam<br />

profundamente, como Onésimo Silveira o sublinha com origi<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> e<br />

rigor, afastan<strong>do</strong> as análises estáticas tradicio<strong>na</strong>is e <strong>de</strong>monstran<strong>do</strong> que a<br />

história <strong>de</strong> África teve <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre dinâmicas próprias,<br />

contrariamente aos preconceitos coloniais e à conhecida afirmação <strong>de</strong><br />

Hegel, segun<strong>do</strong> o qual a África seria um continente fora da história…<br />

12


E se é justo distinguir alguns gran<strong>de</strong>s nomes que alertavam já para<br />

aspectos que era necessário tomar em consi<strong>de</strong>ração – como por exemplo<br />

a existência <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira Filosofia africa<strong>na</strong> <strong>de</strong> que quase<br />

ninguém <strong>na</strong> Europa suspeitava a existência, a obra <strong>de</strong> Placi<strong>de</strong> Tempels,<br />

<strong>na</strong> sua Filosofia Bantu <strong>de</strong>u inesperadamente relevo a esse facto novo, a<br />

começar pelo seu título altamente subversivo em 1954!<br />

A evolução <strong>do</strong>s últimos cinquenta anos é notória, sobretu<strong>do</strong> <strong>de</strong>pois <strong>do</strong>s<br />

anos 80, com o aparecimento <strong>de</strong> novos filósofos africanos, muitos eles<br />

<strong>de</strong> envergadura. Depois <strong>de</strong> Nkrumah, <strong>de</strong> Cheik Anta Diop e <strong>de</strong> Léopold<br />

Senghor, surgiram igualmente Kwame Appiah, Paulin Hountondji,<br />

Kwame Gyekye, Kwasi Wiredu, Elungu, Issiaka Lalèyê, Achille Mbembe,<br />

etc.<br />

Novas problemáticas ou pelo menos novos tratamentos <strong>de</strong> antigas<br />

problemáticas viram a luz <strong>do</strong> dia tratadas por pensa<strong>do</strong>res africanos,<br />

como por exemplo o papel <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> em África e as teorias <strong>de</strong> Thomas<br />

Hobbes sobre o “Esta<strong>do</strong> Leviatã”, a dificulda<strong>de</strong> em apreen<strong>de</strong>r a questão<br />

<strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r, ou distinguir o indivíduo da Comunida<strong>de</strong>, o “eu”<br />

relativamente ao “nós” que uma visão etnocêntrica distorcida tinha<br />

praticamente ignora<strong>do</strong>, e que muitos pensa<strong>do</strong>res africanos continuam a<br />

ignorar, aliás.<br />

Ora o que a leitura retrospectiva da África ao Sul <strong>do</strong> Sahara <strong>de</strong><br />

Onésimo Silveira nos leva a reconhecer é que, já em 1976, ele estava 20<br />

ou 30 anos à nossa frente, pois em relação às escolas <strong>de</strong> pensamento e<br />

a muitos <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s autores já referi<strong>do</strong>s, Onésimo Silveira já se tinha<br />

da<strong>do</strong> conta que os problemas culturais e <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento em África<br />

encerravam uma complexida<strong>de</strong> que não se conformava com orto<strong>do</strong>xias<br />

ou hetero<strong>do</strong>xias nem com espaços i<strong>de</strong>ológicos frequenta<strong>do</strong>s por<br />

<strong>do</strong>utri<strong>na</strong>s então em voga. Nem os <strong>do</strong>gmatismos nem os<br />

“libertarianismos” <strong>de</strong> raiz oci<strong>de</strong>ntal se adaptavam às diversas Áfricas e<br />

às diferentes tradições históricas e culturais que constituíam o vasto e<br />

13


diverso mosaico africano. Este, longe <strong>de</strong> ser estático e monolítico,<br />

encerrava dinâmicas durante <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> tempo ignoradas. Esses<br />

problemas colocam-se com igual pertinência nos nossos das.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, as consequências, tanto das correntes “orto<strong>do</strong>xa” como<br />

“hetero<strong>do</strong>xa”, colocavam-<strong>na</strong>s em relação ao resto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> – ou seja o<br />

Oci<strong>de</strong>nte – numa perspectiva <strong>de</strong> confrontação e não <strong>de</strong> diálogo<br />

inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Sem esse diálogo (que o próprio Oci<strong>de</strong>nte recusou ou<br />

não alimentou, é preciso reconhecê-lo) a ruptura era inevitável. Nessa<br />

atmosfera <strong>de</strong> confronto per<strong>de</strong>u-se <strong>de</strong> vista a coerência e as teorias<br />

ficaram i<strong>na</strong>cabadas, umas por ignorarem a realida<strong>de</strong>, outras por a<br />

i<strong>de</strong>alizarem à maneira <strong>de</strong> Hegel.<br />

Em conclusão nenhuma vertente conseguiu resulta<strong>do</strong>s tanto no plano<br />

prático como no plano teórico. Daí o lugar excessivo das i<strong>de</strong>ologias <strong>na</strong><br />

análise <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, <strong>de</strong> que será mais tar<strong>de</strong> exemplo a<br />

transferência <strong>de</strong> tecnologias i<strong>na</strong><strong>de</strong>quadas, a interpretação enviesada da<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, confundida apressadamente com “oci<strong>de</strong>ntalização” e<br />

esta com “neocolonialismo” to<strong>do</strong>s vistos sem outra forma <strong>de</strong> processo<br />

como perigos mortais para a “tradição” (evi<strong>de</strong>ntemente necessária mas<br />

sempre conserva<strong>do</strong>ra).<br />

Também nestes pontos a análise <strong>de</strong> Onésimo Silveira é lúcida e<br />

<strong>de</strong>scomplexada, muito à frente das teses formuladas nos anos 70 <strong>do</strong><br />

século passa<strong>do</strong>. E ainda hoje po<strong>de</strong> ser entendida como uma abordagem<br />

profícua para a leitura <strong>de</strong> uma “socieda<strong>de</strong> aberta” , para parafrasear<br />

Karl Popper.<br />

Para se fazer uma comparação, é um pouco como quan<strong>do</strong> se discutem<br />

hoje <strong>na</strong> Europa os problemas da União Europeia, on<strong>de</strong> alguns falam <strong>de</strong><br />

sair <strong>do</strong> euro, outros <strong>de</strong> expulsar a Grécia, outros ainda <strong>de</strong> “castigar” a<br />

Europa <strong>do</strong> Sul acrescentan<strong>do</strong> à austerida<strong>de</strong> mais austerida<strong>de</strong>. Repete-<br />

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se a história <strong>do</strong> homem que queria fazer economias <strong>na</strong> ração <strong>do</strong> seu<br />

cavalo, e foi cortan<strong>do</strong>, cortan<strong>do</strong> até que um belo dia o cavalo morreu.<br />

Assim vai a confusão <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias que grassa por toda a parte <strong>na</strong> Europa<br />

da actualida<strong>de</strong>, a qual esquece que, como disse há algum tempo um<br />

antigo ministro que sabe pensar (também acontece!), “se a Europa<br />

implodisse como projecto, o Oci<strong>de</strong>nte implodiria como i<strong>de</strong>ia” (Cf. Luís<br />

Ama<strong>do</strong>, Conversas sobre a crise: Portugal, a Europa e o mun<strong>do</strong>,<br />

Dom Quixote, 2012: 45).<br />

No quadro <strong>de</strong>sta globalização, o diálogo Norte-Sul referi<strong>do</strong> por Onésimo<br />

Silveira, mantém a sua actualida<strong>de</strong> e coerência intrínseca,<br />

necessariamente em termos diferentes <strong>do</strong>s <strong>de</strong> há 50 ou 60 anos, <strong>na</strong>s<br />

vésperas das in<strong>de</strong>pendências africa<strong>na</strong>s. Porque hoje nenhuma corrente<br />

<strong>de</strong> opinião, nenhum país ou região <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> po<strong>de</strong> preten<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ter o<br />

monopólio da verda<strong>de</strong> <strong>do</strong>utri<strong>na</strong>l. Se os Esta<strong>do</strong>s reconhecerem essa<br />

limitação no contexto inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma globalização menos<br />

<strong>de</strong>sigual, o valor supremo da liberda<strong>de</strong> tem condições para sobreviver.<br />

Será então possível uma melhor intervenção regula<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s,<br />

inserida num pensamento “aberto” em constante renovação, o que é<br />

cada vez mais vital para o mun<strong>do</strong>.<br />

O ultra-liberalismo fi<strong>na</strong>nceiro e a sua “teologia <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>” e <strong>de</strong><br />

“pensamento único”, <strong>de</strong> que falou o professor Adriano Moreira – com a<br />

autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem é, em ciência política, provavelmente o maior<br />

pensa<strong>do</strong>r português <strong>do</strong>s últimos cem anos - é uma i<strong>de</strong>ologia suicidária<br />

para o Oci<strong>de</strong>nte e para os países <strong>do</strong> Sul, sen<strong>do</strong> preciso, com urgência,<br />

obrigá-la a arrepiar caminho antes que seja tar<strong>de</strong>. É preciso não per<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> vista, como disse Alain Touraine, que o capitalismo fi<strong>na</strong>nceiro<br />

<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>nte “acumula, não produz <strong>na</strong>da”.<br />

Também é preciso clareza <strong>de</strong> pensamento nos países <strong>do</strong> Sul. Antes <strong>de</strong><br />

se regozijarem com uma eventual bancarrota <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong>vem saber<br />

15


que esse acontecimento os arrastaria inevitavelmente pelo mesmo<br />

caminho, o que inclui os próprios países ditos emergentes.<br />

Muitos <strong>de</strong>stes problemas não escaparam a Onésimo Silveira que os<br />

sugere já com subtileza e profundida<strong>de</strong>, rejeitan<strong>do</strong> as leituras<br />

i<strong>de</strong>ológicas <strong>de</strong> ontem e apontan<strong>do</strong> para uma leitura fi<strong>na</strong> e a vários níveis<br />

<strong>do</strong>s contactos entre a África e a Europa, entre Cabo Ver<strong>de</strong> e Portugal,<br />

países que se assemelham mais <strong>do</strong> que muitos outros, tanto <strong>na</strong><br />

experiência da diáspora como <strong>na</strong> abordagem universalizantes das<br />

situações <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is respectivas ou <strong>na</strong> situação excêntrica em que se<br />

encontram em relação aos continentes a que pertencem pela geografia.<br />

Só é preciso sabermos que a geografia não é um <strong>de</strong>terminismo que<br />

condicio<strong>na</strong> tu<strong>do</strong>…<br />

Por isso se justifica o repensar <strong>de</strong> uma cooperação – sobretu<strong>do</strong> <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à<br />

extraordinária inter<strong>de</strong>pendência entre to<strong>do</strong>s os países <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> – uma<br />

cooperação que, ten<strong>do</strong> embora a dimensão inevitável (e <strong>na</strong>tural) <strong>do</strong>s<br />

interesses, contenha <strong>do</strong> mesmo passo a conjugação <strong>do</strong>s <strong>de</strong>stinos. Não<br />

se trata <strong>de</strong> “i<strong>de</strong>alismo” mas <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> realista com fundamento<br />

histórico para o futuro. Porque, por vezes, é preciso arrancar a pele aos<br />

factos para <strong>de</strong>scobrir o que está por baixo.<br />

♣ ♣ ♣<br />

Ao tentar pôr em relevo a singularida<strong>de</strong> da obra <strong>de</strong> Onésimo Silveira,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> uma poesia humanista e profunda a um trabalho <strong>de</strong> alto recorte<br />

a<strong>na</strong>lítico que a completa - especialmente em África ao Sul <strong>do</strong> Sahara<br />

mas também em A <strong>de</strong>mocracia em Cabo Ver<strong>de</strong> – estou a falar <strong>de</strong> um<br />

pensa<strong>do</strong>r origi<strong>na</strong>l e <strong>de</strong> primeiro plano no espaço <strong>de</strong> língua portuguesa, e<br />

mesmo para lá <strong>de</strong>ste no que concerne o tratamento teórico<br />

interdiscipli<strong>na</strong>r <strong>do</strong>s problemas <strong>do</strong> “<strong>de</strong>senvolvimento”.<br />

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Que o primeiro livro, mais antigo, tenha conserva<strong>do</strong> a frescura e o tom<br />

justo ao longo <strong>de</strong> quase 40 anos é um feito singular, talvez único entre<br />

as obras sobre essa temática <strong>de</strong> que tenho conhecimento, facto que<br />

merece ser assi<strong>na</strong>la<strong>do</strong> para orgulho <strong>de</strong> Cabo Ver<strong>de</strong> e da língua<br />

portuguesa, e para regozijo <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s aqueles que prezam a coragem <strong>do</strong><br />

pensamento, a exemplarida<strong>de</strong> <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> científico e a procura da<br />

verda<strong>de</strong>.<br />

Não tenho conhecimento <strong>de</strong> muitas distinções Honoris Causa tão<br />

merece<strong>do</strong>ras como aquela que é agora atribuída a este gran<strong>de</strong><br />

intelectual que é o Embaixa<strong>do</strong>r Doutor Onésimo Silveira para honra e<br />

mérito da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Min<strong>de</strong>lo e <strong>de</strong>ste país.<br />

Muito obriga<strong>do</strong>.<br />

<strong>A<strong>de</strong>lino</strong> <strong>Torres</strong><br />

[Prof. Catº Jubila<strong>do</strong> <strong>do</strong> ISEG (UTL)<br />

Prof. Catº da Universida<strong>de</strong> Lusófo<strong>na</strong> <strong>de</strong> Lisboa]<br />

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