UM ROMANCE DE VIDA - UFF
UM ROMANCE DE VIDA - UFF
UM ROMANCE DE VIDA - UFF
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
<strong>UM</strong> <strong>ROMANCE</strong> <strong>DE</strong> <strong>VIDA</strong><br />
Jacob Pinheiro Goldberg 1<br />
Abordar o tema tabú da morte é um esforço que demanda uma atitude de<br />
compreensão íntima e de observação externa. Portanto, no percurso do tempo emocional e<br />
espaço geográfico o historiador Philippe Ariès produziu obra que reúne, elementos<br />
fundamentais de psicologia e sociologia. O intimo e o ex-timo.<br />
O prefácio que leva o título de “História de um livro que não tem fim”, carrega em si<br />
mesmo o desafio da contradição. O assunto fim da vida, é celebrado na perenidade da<br />
escrita.<br />
“A História da Morte no Ocidente” é para o leigo e para o cientista do<br />
comportamento.<br />
Recordo as palavras de nosso escritor Guimarães Rosa, em “Grande Sertão Veredas”<br />
– “Comigo as coisas não tem hoje e nem ant’ontem, nem amanhã. É sempre”. Este leve<br />
relacionamento entre a visão do historiador, os conteúdos da escrita e seu objeto de<br />
pesquisa.<br />
O engajamento pessoal do Autor demonstra um carinho e autentica militância no trato<br />
da questão. Seminários, conferencias, debates, uma carreira que dialoga com especialistas e<br />
o público.<br />
Um diálogo que também se alterna. Leitor e escritor, vida e morte. E, curiosamente,<br />
embora a ótica francesa nítida, coincide integralmente com as nossas experiências. Até o<br />
resultado de pesquisas, por exemplo, com nosso estudo publicado pelo jornal “O São<br />
Paulo”, editado pela Igreja Católica.<br />
Philippe Ariès produz uma nítida divisão que facilita o entendimento dos dados<br />
obtidos. Na Primeira Parte, a subjetividade, sob o título, “As atitudes diante da morte”, na<br />
Segunda Parte, a objetividade, “Itinerários”, 1966 – 1975.<br />
As divisões da leitura permitem que os itens se desenvolvam de forma quase didática,<br />
mas num estilo que guarda o toque poético.<br />
I – A morte domada.<br />
O individuo diante da morte num processo que se pretende intercambiar. Uma lida<br />
que implica em providências para morrer, com descrições extensas. Um conceito sintetiza,<br />
“despoja-se de suas armas”. O descanso do guerreiro.<br />
II - A morte de si mesmo.<br />
A singularidade absoluta do fenômeno da morte remete o leitor a quatro dimensões. A<br />
representação do Juízo Final, o código da biografia pessoal. No aposento do moribundo, a<br />
solenidade do ritual que recorda James Joyce, em “Finnegans wake”, “Fim aqui. Nós,<br />
1 Doutor em psicologia, advogado e assistente social, escritor, autor entre outros livros de "Clave da<br />
Morte".Convidado por Jiro Takahashi o idealista da Ediouro, escreveu o prefacio para "História da Morte no<br />
Ocidente", de Philippe Ariès, re-editado.
após”. O cadáver decomposto, a ideia da “carniça” que, aliás, povoa o folclore brasileiro,<br />
na figuração do simbólico e do Inconsciente, comum no interior do país. As sepulturas, que<br />
termina com o coroamento personalizado em que “o homem ocidental rico, poderoso ou<br />
letrado reconhece a si próprio em sua morte”.<br />
Numa transcriação permissiva é a ocupação do espaço para enganar o tempo que<br />
expirou.<br />
III – A morte do outro.<br />
Depois da conformidade diante da morte, que lembra Homero, na Ilíada, “Sono,<br />
irmão da Morte” e após a valorização da vida, nos versos de Malherbe “E, rosa, ela viveu o<br />
que vivem as rosas”, o Autor levanta, com sutileza, a relação do erotismo com a morte.<br />
IV – A morte interdita.<br />
A cultura urbanizada que exilou a morte é apresentada como o enterro do cadáver,<br />
num texto veemente e polemico. No contraponto a Reza dos marinheiros do Danúbio, em<br />
naufrágio, “Durmo, logo voltarei a remar”.<br />
V - Na “conclusão da primeira parte”, Philippe Ariès mostra a morte tornada<br />
inominável e nos prepara para sua intenção de BATIZÄ-LA.<br />
Agora, serão os “Itinerários”.<br />
Este caminho deve ser palmilhado pelo leitor, numa viagem pessoal. Fique entregue à<br />
seu destino, na companhia inspirada de Philippe Ariès, suas descobertas, encantos e<br />
desencantos.<br />
A sinalização é farta. Exemplos, documentos, testemunhas. Mas o raciocínio é opção<br />
literária.<br />
O que posso é ressaltar a importância revolucionária deste livro no mais profundo Eu<br />
psíquico do pensamento contemporâneo.<br />
Re-introduzira Morte nas nossas vidas é desmascarar a mentira da mitificação e<br />
mistificação. Humanizar, na dor e na serenidade esta realidade irrecusável é um gesto de<br />
generosidade do historiador que nos estimula a enfrentar temores, frustrações e medos, na<br />
fórmula da esperança.<br />
O livro termina, aonde começa a saga de nossas aflições. Denuncia que hoje o papel,<br />
da pessoa é do moribundo que finge que não vai morrer (pg. 177).<br />
Certos filmes recentes mostram que para o grande público, além dos meios<br />
acadêmicos e mais do que pieguice consoladora, existe a honestidade intelectual que esta<br />
obra reflete. A morte, enquanto metáfora da vida. O Mistério visitado.<br />
A aventura iniciática e cientifica de Philippe Ariès pode ser equacionada com o<br />
haikai escrito pelo poeta japonês Bashô quando verificou a chegada do fim:<br />
“Em seis de setembro, parti rumo ao santuário de Ise. Embora a fadiga da longa<br />
jornada ainda me acompanhasse, estava ansioso por conhecer aquele luminoso templo. No<br />
barco, novamente ao alegre sabor das cristalinas correntezas escrevi:<br />
como as valvas do marisco<br />
que se separam em maio<br />
adeus, amigos, sigo através!”<br />
Um adeus do Oriente para nós, ocidentais.<br />
Cantareira – www.historia.uff.br/cantareira ISSN 1677-7794<br />
Nº III, Vol I, Ago/2003