UFMA Universidade Federal do Maranhão - Observatório de Favelas
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Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular<br />
<strong>UFMA</strong><br />
<strong>UFMA</strong> <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong><br />
<strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>
<strong>UFMA</strong>
Copyright © 2009 by <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro / Pró-Reitoria <strong>de</strong> Extensão.<br />
O conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong>s textos <strong>de</strong>sta publicação é <strong>de</strong> inteira responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus autores.<br />
Coor<strong>de</strong>nação da Coleção: Jailson <strong>de</strong> Souza e Silva<br />
Jorge Luiz Barbosa<br />
Ana Inês Sousa<br />
Organização da Coleção: Monique Batista Carvalho<br />
Francisco Marcelo da Silva<br />
Dalcio Marinho Gonçalves<br />
Aline Pacheco Santana<br />
Programação Visual: Núcleo <strong>de</strong> Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ<br />
Coor<strong>de</strong>nação: Claudio Bastos<br />
Anna Paula Felix Iannini<br />
Thiago Maioli Azeve<strong>do</strong><br />
C183<br />
Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular : <strong>UFMA</strong> / organiza<strong>do</strong> por Ana Inês Souza,<br />
Jorge Luiz Barbosa, Jailson <strong>de</strong> Souza e Silva. — Rio <strong>de</strong> Janeiro : <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong><br />
<strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, Pró-Reitoria <strong>de</strong> Extensão, 2009.<br />
120 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular)<br />
Ao alto <strong>do</strong> título: Ministério da Educação. Secretaria <strong>de</strong> Educação Continuada,<br />
Alfabetização e Diversida<strong>de</strong>. Programa Conexões <strong>de</strong> Saberes : Diálogos entre a <strong>Universida<strong>de</strong></strong> e<br />
as Comunida<strong>de</strong>s Populares.<br />
Parceria: <strong>Observatório</strong> <strong>de</strong> <strong>Favelas</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
ISBN: 978-85-89669-41-2<br />
1. Estudantes universitários — Programas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento — Brasil. 2. Integração<br />
universitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunida<strong>de</strong> e universida<strong>de</strong> — Brasil. I.<br />
Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson <strong>de</strong> Souza e, org. VI.<br />
Programa Conexões <strong>de</strong> Saberes : Diálogos entre a <strong>Universida<strong>de</strong></strong> e as Comunida<strong>de</strong>s Populares.<br />
V. <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>. VI. <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. VII.<br />
<strong>Observatório</strong> <strong>de</strong> <strong>Favelas</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
CDD: 378.81
Ministério da Educação<br />
Secretaria <strong>de</strong> Educação Continuada, Alfabetização e Diversida<strong>de</strong><br />
Programa Conexões <strong>de</strong> Saberes: diálogos entre a universida<strong>de</strong> e as comunida<strong>de</strong>s populares<br />
Organiza<strong>do</strong>res<br />
Jailson <strong>de</strong> Souza e Silva<br />
Jorge Luiz Barbosa<br />
Ana Inês Sousa<br />
<strong>UFMA</strong><br />
Pró-Reitoria <strong>de</strong> Extensão - UFRJ<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro - 2009
Presi<strong>de</strong>nte da República<br />
Luiz Inácio Lula da Silva<br />
Ministério da Educação<br />
Fernan<strong>do</strong> Haddad<br />
Ministro<br />
Secretaria <strong>de</strong> Educação Continuada,<br />
Alfabetização e Diversida<strong>de</strong> – SECAD<br />
André Luiz <strong>de</strong> Figueire<strong>do</strong> Lázaro<br />
Secretário<br />
Armênio Bello Schmidt<br />
Diretoria <strong>de</strong> Educação para a Diversida<strong>de</strong> - DEDI<br />
Leonor Franco <strong>de</strong> Araújo<br />
Coor<strong>de</strong>nação Geral <strong>de</strong> Diversida<strong>de</strong> – CGD<br />
Programa Conexões <strong>de</strong> Saberes:<br />
diálogos entre a universida<strong>de</strong> e<br />
as comunida<strong>de</strong>s populares<br />
Jorge Luiz Barbosa<br />
Jailson <strong>de</strong> Souza e Silva<br />
Coor<strong>de</strong>nação Geral<br />
Maria Cristina Bunn<br />
Coor<strong>de</strong>nação Geral <strong>do</strong> Programa Conexões <strong>de</strong> Saberes/<strong>UFMA</strong><br />
Maria Helena Seabra Soares <strong>de</strong> Brito<br />
Coor<strong>de</strong>nação Acadêmica<br />
Fernanda Santos Pinheiro<br />
Coor<strong>de</strong>nação Executiva – Campus I<br />
Emilene Leite <strong>de</strong> Sousa<br />
Coor<strong>de</strong>nação Executiva - Campus II<br />
Carlos André Sousa Dublante<br />
Articula<strong>do</strong>r e Monitor na parceria com o Programa Escola Aberta<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong><br />
Natalino Salga<strong>do</strong> Filho<br />
Reitor<br />
Antônio José Silva Oliveira<br />
Vice-Reitor<br />
Antônio Luis Amaral Pereira<br />
Pró–Reitor <strong>de</strong> Extensão<br />
Coleção<br />
Autores<br />
Abimaelson Santos Pereira<br />
Alexsandro Costa Ferreira<br />
Ana Paula <strong>de</strong> Albuquerque Martins<br />
Cláudia Nunes da Silva<br />
Danielle Lima Costa<br />
Eldimir Faustino da Silva Junior<br />
Elieser Barros Ma<strong>de</strong>ira<br />
Eliete da Silva Cruz<br />
Iracema Andra<strong>de</strong> Luz<br />
Jardiane Moura Abreu<br />
Jefferson Veras Rodrigues<br />
Jonival<strong>do</strong> Lopes Santos<br />
Josenira <strong>do</strong>s Santos Veras<br />
Lidiana Diniz Azeve<strong>do</strong><br />
Lourdilene <strong>de</strong> Fàtima Teixeira Ferreira<br />
Lucélia Cristina Carvalho Ferreira<br />
Lucilei<strong>de</strong> Martins Borges<br />
Marcio Vinícius Campos Borges<br />
Maria Domingas Ferreira Castro<br />
Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Andra<strong>de</strong> Pereira<br />
Maya Dayana Penha da Silva<br />
Paulo Leles Neto<br />
Raquel Moreira Meireles Silva<br />
Ricar<strong>do</strong> Waldrean Melo da Silva<br />
Rogério <strong>do</strong>s Santos Car<strong>do</strong>so
Prefácio<br />
A socieda<strong>de</strong> brasileira tem como seu maior <strong>de</strong>safio a construção <strong>de</strong> ações que permitam,<br />
sem abrir mão da <strong>de</strong>mocracia, o enfrentamento da secular <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social e econômica<br />
que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.<br />
A possibilida<strong>de</strong> da educação contribuir <strong>de</strong> forma sistemática para esse processo implica<br />
uma educação <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> para to<strong>do</strong>s, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente<br />
<strong>de</strong>mocratizada, em to<strong>do</strong>s os níveis <strong>de</strong> ensino, e orientada, <strong>de</strong> forma continua, pela<br />
melhoria <strong>de</strong> sua qualida<strong>de</strong>. No atual governo, o Ministério da Educação persegue <strong>de</strong> forma<br />
intensa e sistemática esses objetivos.<br />
Conexões <strong>de</strong> Saberes é um <strong>do</strong>s programas <strong>do</strong> MEC que expressa <strong>de</strong> forma nítida a luta<br />
contra a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um<br />
la<strong>do</strong>, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunida<strong>de</strong>s populares e,<br />
por outro la<strong>do</strong>, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários<br />
<strong>de</strong> origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação<br />
nas universida<strong>de</strong>s públicas.<br />
Cria<strong>do</strong> pelo MEC em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2004, o Programa é <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> a partir da<br />
Secretaria <strong>de</strong> Educação Continuada, Alfabetização e Diversida<strong>de</strong> (SECAD-MEC) e representa<br />
a evolução e expansão, para o cenário nacional, <strong>de</strong> uma iniciativa elaborada, na<br />
cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro no ano <strong>de</strong> 2002, pela Organização da Socieda<strong>de</strong> Civil <strong>de</strong> Interesse<br />
Público <strong>Observatório</strong> <strong>de</strong> <strong>Favelas</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Re<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Universitários <strong>de</strong> Espaços Populares com núcleos <strong>de</strong> formação e produção <strong>de</strong> conhecimento<br />
em várias comunida<strong>de</strong>s populares da cida<strong>de</strong>. O Programa Conexões <strong>de</strong> Saberes criou,<br />
inicialmente, uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> estudantes <strong>de</strong> graduação em cinco universida<strong>de</strong>s fe<strong>de</strong>rais,<br />
distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2005, ampliamos<br />
o Programa para mais nove universida<strong>de</strong>s fe<strong>de</strong>rais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS,<br />
UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em to<strong>do</strong>s os<br />
esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> país, 33 universida<strong>de</strong>s fe<strong>de</strong>rais integrantes <strong>do</strong> Programa, sen<strong>do</strong> incluídas: UFAC,<br />
UFAL, UFG, <strong>UFMA</strong>, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar,<br />
UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB.<br />
Através <strong>do</strong> Programa Conexões <strong>de</strong> Saberes, essas universida<strong>de</strong>s passam a ter, cada uma,<br />
ao menos 25 1 universitários que participam <strong>de</strong> um processo contínuo <strong>de</strong> qualificação como<br />
pesquisa<strong>do</strong>res; construin<strong>do</strong> diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas<br />
<strong>do</strong>s estudantes <strong>de</strong> origem popular e <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> diagnósticos e ações sociais em<br />
comunida<strong>de</strong>s populares. Dessa forma, busca-se a formulação <strong>de</strong> proposições e realização <strong>de</strong><br />
1 A partir da liberação <strong>do</strong>s recursos 2007/2008 cada universida<strong>de</strong> fe<strong>de</strong>ral passou a ter, cada uma, ao<br />
menos 35 bolsistas.
práticas voltadas para a melhoria das condições <strong>de</strong> permanência <strong>do</strong>s estudantes <strong>de</strong> origem<br />
popular na universida<strong>de</strong> pública e, também, aproximar os setores populares da instituição,<br />
amplian<strong>do</strong> as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> encontro <strong>do</strong>s saberes <strong>de</strong>stas duas instâncias sociais.<br />
Nesse senti<strong>do</strong>, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco <strong>do</strong>s objetivos <strong>do</strong><br />
Programa: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publica<strong>do</strong>s, com o lançamento das 19<br />
publicações em 2009, reunin<strong>do</strong> as contribuições das universida<strong>de</strong>s integrantes <strong>do</strong> Conexões<br />
<strong>de</strong> Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conce<strong>de</strong>r voz a esses estudantes<br />
e ampliar sua visibilida<strong>de</strong> nas universida<strong>de</strong>s públicas e em outros espaços sociais. Esses<br />
livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> jovens, rapazes e moças, que<br />
contrariaram a forte estrutura <strong>de</strong>sigual que ainda impe<strong>de</strong> o pleno acesso <strong>do</strong>s estudantes das<br />
camadas mais <strong>de</strong>sfavorecidas às universida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> excelência <strong>do</strong> país ou só o permite para os<br />
cursos com menor prestígio social.<br />
Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção<br />
<strong>de</strong> uma universida<strong>de</strong> pública efetivamente <strong>de</strong>mocrática, um socieda<strong>de</strong> brasileira mais<br />
justa e uma humanida<strong>de</strong> cada dia mais plena.<br />
Secretaria <strong>de</strong> Educação Continuada, Alfabetização e Diversida<strong>de</strong><br />
Ministério da Educação<br />
<strong>Observatório</strong> <strong>de</strong> <strong>Favelas</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro
Sumário<br />
Apresentação<br />
Maria Cristina Bunn............................................................................................. 9<br />
Respiro a minha arte<br />
Abimaelson Santos Pereira ................................................................................ 11<br />
Motivações que me levaram a alcançar meus objetivos<br />
Alexsandro Costa Ferreira ................................................................................. 15<br />
Memorial<br />
Ana Paula <strong>de</strong> Albuquerque Martins .................................................................. 18<br />
Primeiro capítulo<br />
Cláudia Nunes da Silva ...................................................................................... 21<br />
Memorial<br />
Danielle Lima Costa ........................................................................................... 30<br />
O périplo <strong>de</strong> um per<strong>de</strong><strong>do</strong>r <strong>de</strong> tempo<br />
Eldimir Faustino da Silva Junior ...................................................................... 34<br />
Participações especiais<br />
Elieser Barros Ma<strong>de</strong>ira....................................................................................... 39<br />
Projeto “Conexões <strong>de</strong> Saberes”<br />
Eliete da Silva Cruz ............................................................................................ 42<br />
“É caminhan<strong>do</strong> que se faz o caminho...”<br />
Iracema Andra<strong>de</strong> Luz .......................................................................................... 45<br />
Detalhes <strong>de</strong> uma história inesquecível<br />
Jardiane Moura Abreu ....................................................................................... 52<br />
A luta antece<strong>de</strong> a vitória<br />
Jefferson Veras Rodrigues .................................................................................. 57
Vencen<strong>do</strong> <strong>de</strong>safios<br />
Jonival<strong>do</strong> Lopes Santos ...................................................................................... 61<br />
De on<strong>de</strong> vim e para on<strong>de</strong> eu quero ir agora<br />
Josenira <strong>do</strong>s Santos Veras .................................................................................. 64<br />
Meus pais, minha vida<br />
Lidiana Diniz Azeve<strong>do</strong> ........................................................................................ 69<br />
In Memorian<br />
Lourdilene <strong>de</strong> Fátima Teixeira Ferreira ............................................................ 71<br />
Tu<strong>do</strong> vale a pena, se a alma não é pequena<br />
Lucélia Cristina Carvalho Ferreira .................................................................. 76<br />
Os primeiros passos <strong>de</strong> uma formação contínua - a educação<br />
Lucilei<strong>de</strong> Martins Borges ................................................................................... 80<br />
Marcio Vinícius Campos Borges<br />
Marcio Vinícius Campos Borges........................................................................ 85<br />
Pequenas ações para uma gran<strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong><br />
Maria Domingas Ferreira Castro ...................................................................... 89<br />
Pão, educação e arte<br />
Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Andra<strong>de</strong> Pereira ................................................................... 91<br />
História <strong>de</strong> uma vida <strong>de</strong> lutas<br />
Maya Dayana Penha da Silva............................................................................ 95<br />
Diário <strong>de</strong> superação<br />
Paulo Leles Neto ............................................................................................... 100<br />
Até a última gota<br />
Raquel Moreira Meireles Silva ........................................................................ 104<br />
Eu pela vida<br />
Ricar<strong>do</strong> Waldrean Melo da Silva ..................................................................... 110<br />
História <strong>de</strong> vida<br />
Rogério <strong>do</strong>s Santos Car<strong>do</strong>so ........................................................................... 115
Apresentação<br />
Os autores que expõem aqui suas histórias <strong>de</strong> vida, seus sofrimentos, sonhos, realizações,<br />
esperanças, representam o segmento da socieda<strong>de</strong> que o “Projeto Conexões <strong>de</strong> Saberes:<br />
diálogos entre a universida<strong>de</strong> e as comunida<strong>de</strong>s populares” objetiva abarcar – a juventu<strong>de</strong><br />
que traz em sua trajetória a marca da exclusão social.<br />
Cria<strong>do</strong> em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2004 pela SECAD/MEC em parceria com o <strong>Observatório</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>Favelas</strong>, o Programa Conexões <strong>de</strong> Saberes tem entre seus objetivos dar suporte à<br />
permanência e à qualificação <strong>de</strong> estudantes <strong>de</strong> origem popular na <strong>Universida<strong>de</strong></strong> e,<br />
capacitá-los para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> ações sociais transforma<strong>do</strong>ras nas comunida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> origem. No caso <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>, a <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> está localizada em<br />
São Luís, distante geograficamente <strong>de</strong> inúmeros municípios <strong>de</strong> origem <strong>do</strong>s estudantes<br />
com perfil para ingresso no Programa e nas comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> entorno da <strong>Universida<strong>de</strong></strong>.<br />
Assim como <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> em 33 universida<strong>de</strong>s fe<strong>de</strong>rais, o Programa na <strong>UFMA</strong><br />
iniciou em 2006. Daquele perío<strong>do</strong> temos o registro e a produção <strong>do</strong> primeiro grupo <strong>de</strong><br />
conexistas nesta publicação. Percebemos nos escritos aqui apresenta<strong>do</strong>s, a expressão<br />
e realização <strong>do</strong> primeiro momento <strong>de</strong> diálogo entre a universida<strong>de</strong> e as comunida<strong>de</strong>s<br />
populares. Os representantes daquelas comunida<strong>de</strong>s, os estudantes universitários <strong>de</strong><br />
origem popular seleciona<strong>do</strong>s para participarem <strong>do</strong> Conexões, trazem à tona a realida<strong>de</strong><br />
social <strong>de</strong>sigual <strong>de</strong> nosso país. Estes jovens autores, ao relatarem suas trajetórias<br />
tatuadas pelas feridas sociais, impõem à universida<strong>de</strong> brasileira encarar o cenário <strong>do</strong><br />
Brasil real.<br />
Numa realida<strong>de</strong> como a maranhense, com os piores indica<strong>do</strong>res sociais <strong>do</strong> Brasil,<br />
em que gran<strong>de</strong> parte da população tem o menor po<strong>de</strong>r aquisitivo <strong>do</strong> país, com quadro <strong>de</strong><br />
concentração <strong>de</strong> renda e po<strong>de</strong>r acintosos, a <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> tem a<br />
rica oportunida<strong>de</strong>, a partir da experiência <strong>do</strong> Programa Conexões, <strong>de</strong> enxergar<br />
verda<strong>de</strong>iramente quem é a comunida<strong>de</strong> acadêmica que a constitui. E <strong>de</strong>ssa percepção, a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> assumir a responsabilida<strong>de</strong> social e política, <strong>de</strong> construir instrumentos<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratização <strong>do</strong> saber e <strong>de</strong> emancipação <strong>do</strong>s sujeitos que fazem a <strong>Universida<strong>de</strong></strong>. A<br />
inserção social <strong>de</strong>stes estudantes, a partir <strong>de</strong> sua qualificação, e a participação das<br />
comunida<strong>de</strong>s populares nas ações extensionistas construídas pela <strong>Universida<strong>de</strong></strong> e<br />
protagonizadas por estudantes oriun<strong>do</strong>s daquelas realida<strong>de</strong>s, traz efetivamente o<br />
potencial transforma<strong>do</strong>r <strong>de</strong>seja<strong>do</strong> por aqueles que têm compromisso com a educação<br />
pública e <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> neste país.<br />
Os relatos corajosos <strong>do</strong>s 25 bolsistas <strong>do</strong> Programa Conexões da <strong>Universida<strong>de</strong></strong><br />
<strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> vêm a compor com as experiências similares <strong>de</strong> outras<br />
universida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> país, um bra<strong>do</strong> em <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> políticas educacionais inclusivas e<br />
permanentes para a juventu<strong>de</strong> brasileira.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 9
É com alegria e orgulho que parabenizo os autores <strong>de</strong>ste “Caminhadas”, certa <strong>de</strong> que<br />
ocuparão os espaços sociais que <strong>de</strong>sejarem se as Instituições <strong>de</strong>ste país assegurarem condições<br />
<strong>de</strong> acesso e permanência no ensino superior. Vejo na continuida<strong>de</strong> e aperfeiçoamento <strong>do</strong><br />
Programa Conexões <strong>de</strong> Saberes um <strong>de</strong>stes caminhos.<br />
Profa. Dra. Maria Cristina Bunn<br />
Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra Geral Programa Conexões - <strong>UFMA</strong>
Respiro a minha arte<br />
* Graduan<strong>do</strong> em Licenciatura em Teatro na <strong>UFMA</strong>.<br />
1 cf.HOLANDA: “Numa cida<strong>de</strong>, a região mais afastada <strong>do</strong> centro”, p. 528.<br />
Abimaelson Santos Pereira *<br />
A vida é uma incógnita que a cada dia <strong>de</strong>ve ser resolvida; caso contrário, os dias<br />
passarão e teremos a angustiante sensação <strong>de</strong> que, enquanto o mun<strong>do</strong> gira, nossa mente o<br />
acompanha, e a vida segue sem um foco fixo, sem um objetivo, ou sem uma meta a ser<br />
cumprida. Se a mente acompanhar este movimento cíclico <strong>do</strong> planeta <strong>de</strong> forma não<br />
perceptível, a nossa razão <strong>de</strong> ser, apren<strong>de</strong>remos com a vida, “mais ce<strong>do</strong> ou mais tar<strong>de</strong>” que,<br />
sem um foco, sem uma meta ou sem um objetivo, não chegaremos a lugar algum ou, talvez,<br />
até possamos chegar a algum lugar <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à relativida<strong>de</strong> que a vida nos oferece, contu<strong>do</strong>,<br />
nem sempre o caminho proposto pelo acaso é o mais satisfatório.<br />
É incrível como existe uma gama <strong>de</strong> caminhos que traça a nossa trajetória, basta que<br />
o sol se levante para nos <strong>de</strong>pararmos com pessoas e/ou situações que po<strong>de</strong>m transformar<br />
to<strong>do</strong> o nosso universo, e é neste ponto que mora o gran<strong>de</strong> perigo. Saber dizer sim e saber<br />
dizer não aos acontecimentos que nos ro<strong>de</strong>iam, sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> estamos em um ambiente<br />
que chega a ser febril e poético, nocivo e vital, que nos leva sempre aos extremos, que nos<br />
proporciona sempre a utilização <strong>de</strong> um ou <strong>de</strong> outro, nos coloca entre querer viver ou querer<br />
apenas manter-se vivo. Refiro-me ao que a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>nominou periferia, mas não<br />
“periferia 1 ” como encontramos nos dicionários, e sim uma periferia nomeada pela classe<br />
alta <strong>de</strong> nossa hostil socieda<strong>de</strong> como lugar on<strong>de</strong> a marginalida<strong>de</strong> impera, on<strong>de</strong> ser negro é<br />
sinônimo <strong>de</strong> marginal. Mas essa socieda<strong>de</strong> não sabe que é na periferia que a arte acontece,<br />
on<strong>de</strong> a cultura é vivenciada e produzida, posto que a classe alta por si só não produz cultura,<br />
exceto aquela cuja meta é simplesmente comercial.<br />
Em meio a esse turbilhão <strong>de</strong> caminhos é que se <strong>de</strong>senvolve a minha simples e<br />
<strong>de</strong>safia<strong>do</strong>ra vida, simples pelo fato <strong>de</strong> crescer em meio a muita pobreza financeira, e<br />
<strong>de</strong>safia<strong>do</strong>ra <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> às gran<strong>de</strong>s possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ganhar dinheiro fácil, mas por mais cruéis<br />
que sejam as condições estruturais <strong>de</strong> um bairro pobre por falta <strong>de</strong> políticas públicas, ter<br />
uma base familiar que nos dê sustento para ultrapassarmos nossos limites é essencial.<br />
Mesmo com as dificulda<strong>de</strong>s, sempre tive gran<strong>de</strong> força familiar acompanhan<strong>do</strong> minha<br />
formação, posto que o Esta<strong>do</strong> nunca cumpriu com seu papel no pólo que resi<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> falo<br />
<strong>de</strong> cumprir papel, não me refiro a políticas <strong>de</strong> assistencialismo, mas a intervenções contínuas<br />
e práticas, através das sonhadas políticas públicas, e <strong>de</strong> um trabalho cultural que vise à<br />
formação, tanto voltada para o merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho, quanto para o <strong>de</strong>senvolvimento críticosocial<br />
e i<strong>de</strong>ológico, ten<strong>do</strong> como foco alcançar uma formação que integre <strong>de</strong> crianças a i<strong>do</strong>sos.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 11
Sabemos que a educação básica ainda é um <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s meios <strong>de</strong> transformação<br />
social, é a partir da escola que somos instruí<strong>do</strong>s a <strong>de</strong>codificar regras e normas <strong>de</strong> nossa<br />
socieda<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>mos as regras <strong>do</strong> jogo, on<strong>de</strong> nos <strong>de</strong>paramos, <strong>de</strong> forma mais precisa,<br />
com os conceitos em torno <strong>do</strong> certo e <strong>do</strong> erra<strong>do</strong> e ficamos cientes <strong>de</strong> direitos e <strong>de</strong>veres,<br />
sobretu<strong>do</strong>, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> somos lança<strong>do</strong>s para o mun<strong>do</strong>. Todavia, essa instituição, como se encontra<br />
hoje, é um <strong>do</strong>s maiores meios <strong>de</strong> propagação <strong>de</strong> vários tipos <strong>de</strong> preconceitos, às vezes <strong>de</strong><br />
forma bem sutil e outras vezes <strong>de</strong> forma bem clara, fazen<strong>do</strong> da escola, a vilã da sua formação.<br />
Na educação básica, aprendi muitos conceitos e o porquê <strong>de</strong> muitos questionamentos<br />
vivencia<strong>do</strong>s pelo homem. Algumas <strong>de</strong>ssas aprendizagens nunca serviram <strong>de</strong> fato para o<br />
meu <strong>de</strong>senvolvimento como cidadão e outras me instruem diariamente, mas existe algo que<br />
a escola não me ensinou e tive que apren<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> seu universo: apren<strong>de</strong>r a viver e a<br />
escapar das armadilhas que o espaço educacional nos traz. Orgulho-me <strong>de</strong> relatar que estu<strong>de</strong>i<br />
em uma das escolas mais cobiçadas no <strong>Maranhão</strong>, o CINTRA, e é <strong>de</strong> lá que tenho gran<strong>de</strong><br />
base da vida, porque a instituição me ensinou a refletir quan<strong>do</strong> precisei, e a convivência<br />
com fatos nos leva a <strong>de</strong>cisões. Quan<strong>do</strong> estava no Ensino Médio, percebi que disciplinas<br />
como Teatro, Filosofia e Sociologia <strong>de</strong>veriam ter um respal<strong>do</strong> maior das instituições <strong>de</strong><br />
ensino, pois nos levam a questionamentos essenciais em relação ao mun<strong>do</strong>.<br />
Paralelo à formação educacional escolar, quem sempre teve um papel primordial na<br />
minha caminhada, ou quem sabe “corrida social”, foi a Pastoral da Juventu<strong>de</strong>. Gran<strong>de</strong> parte<br />
da minha experiência com trabalhos na comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve-se a esta Pastoral que sempre me<br />
carregou no colo e me ensinou a ser sujeito da minha própria história. Infelizmente a escola<br />
ainda não nos proporciona o fato <strong>de</strong> sermos protagonistas <strong>do</strong> nosso teatro, mas sim, que<br />
possamos construir uma vida voltada para a formação profissional, sem uma visão aplicada<br />
das relações sociais, <strong>de</strong> quem é você na socieda<strong>de</strong> e qual seu papel, e nem tão pouco no que<br />
se refere à história <strong>do</strong> nosso povo, à origem da nossa cultura e das nossas tradições religiosas.<br />
Cabe então, procurarmos meios <strong>de</strong> transformar nossa história em páginas concretas e<br />
<strong>de</strong>finidas; saber fazer história, e a Pastoral da Juventu<strong>de</strong> aju<strong>do</strong>u na construção da minha.<br />
Um <strong>do</strong>s capítulos <strong>de</strong>ste maravilhoso e inacaba<strong>do</strong> livro que se chama vida, reservo ao<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> transformação que a arte causa, em especial a arte que respiro e que me consome,<br />
que me faz levantar to<strong>do</strong>s os dias e perceber que vale a pena lutar por uma meta, por um<br />
objetivo, por um foco, é o Teatro, aquele que me encanta, me <strong>de</strong>fine, mostra que a vida po<strong>de</strong><br />
ser diferente e que posso transformar sonhos em realida<strong>de</strong>s; que posso, através <strong>de</strong>sta arte<br />
secular, ajudar na educação <strong>de</strong> um povo que é educa<strong>do</strong> historicamente a se escon<strong>de</strong>r por<br />
<strong>de</strong>trás <strong>de</strong> máscaras, imposições que são feitas por meio <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e da mídia. É tempo <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>rrubarmos todas as máscaras que nos são impostas, e o Teatro é instrumento fundamental<br />
para o reconhecimento da história <strong>de</strong> cada ser humano, o elo entre o meu eu interior e o meu<br />
mun<strong>do</strong> exterior.<br />
Meu primeiro contato com este universo fictício, concomitantemente real, foi ainda<br />
na 8 a série, e com o passar <strong>do</strong>s tempos, pu<strong>de</strong> ver que não po<strong>de</strong>ria fazer outra coisa na minha<br />
vida como forma <strong>de</strong> trabalho. Os anos foram passan<strong>do</strong> e então acontece o gran<strong>de</strong> momento<br />
<strong>de</strong> to<strong>do</strong> estudante secundarista, a hora <strong>de</strong> prestar vestibular, e sem ter nenhuma dúvida,<br />
escolhi Teatro Licenciatura.<br />
O Vestibular, sem sombra <strong>de</strong> dúvida, é um <strong>de</strong>safio que mexe muito com o plano<br />
psicológico <strong>de</strong> cada um, sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> se participa <strong>de</strong> um seletivo que <strong>de</strong>ixa clara a<br />
ineficiência <strong>de</strong> avaliar quem entra na universida<strong>de</strong>. Um processo seletivo que não prova a<br />
12 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
capacida<strong>de</strong> intelectual <strong>de</strong> ninguém e que, em vez <strong>de</strong> incluir, exclui. Mas estava disposto a<br />
passar por essa etapa da vida, mesmo saben<strong>do</strong> que seria um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio ter que mostrar<br />
minha capacida<strong>de</strong> perante um processo totalmente <strong>de</strong>sacredita<strong>do</strong>, mas que, por sua vez, é o<br />
único meio <strong>de</strong> ingresso na instituição <strong>de</strong> ensino superior público. Todavia, fui em frente e<br />
consegui ser aprova<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> os critérios utiliza<strong>do</strong>s pela <strong>Universida<strong>de</strong></strong>, mesmo sem<br />
subsídios financeiros suficientes para fazer um curso pré-vestibular ou uma revisão teórica,<br />
pois to<strong>do</strong> rendimento que dispunha em tal momento foi <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> ao pagamento da absurda<br />
taxa <strong>de</strong> inscrição <strong>do</strong> vestibular.<br />
A universida<strong>de</strong> era o começo <strong>de</strong> uma nova vida, posso afirmar que ela é “A <strong>de</strong>scoberta<br />
<strong>de</strong> um mesmo novo mun<strong>do</strong> 2 ”. É como <strong>de</strong>scobrir um universo que já existe, to<strong>do</strong> dia uma luta<br />
diferente, uma busca por sobrevivência, lugar em que encontramos vários semblantes, uns<br />
se intitulam elite pensante ou intelectuais, mas que, na maioria das vezes, entram titula<strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong> calouros e conseguem se formar e não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser calouros; outros que conseguem<br />
ultrapassar barreiras e alguns que simplesmente passam pela universida<strong>de</strong>, um espaço on<strong>de</strong><br />
a segregação social é mais que nítida. De um la<strong>do</strong>, encontramos uma assistência absoluta às<br />
áreas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e tecnologia, e <strong>de</strong> outro, um <strong>de</strong>scaso com as áreas das ciências humanas e<br />
sociais. Descaso este às vezes camufla<strong>do</strong> por reformas fictícias na estrutura física, sobretu<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s cursos <strong>de</strong> Licenciatura. Triste realida<strong>de</strong>. Porém, o que me dá mais fervor para conseguir<br />
ultrapassar os limites e romper com as máscaras existentes na universida<strong>de</strong>.<br />
É óbvio que, por mais problemática que seja a estrutura <strong>de</strong> uma universida<strong>de</strong> pública,<br />
existem fatores positivos agrega<strong>do</strong>s à formação. Os programas e projetos <strong>de</strong> acesso e<br />
permanência merecem <strong>de</strong>staque, pois são através <strong>de</strong>les que muitos estudantes conseguem<br />
manter e administrar a vida acadêmica, programas como bolsas trabalho, fiscalização <strong>do</strong><br />
vestibular, bolsa <strong>de</strong> língua estrangeira, bolsa alimentação e outros.<br />
É bem verda<strong>de</strong> que a universida<strong>de</strong> é um espaço amplo <strong>de</strong> discussões e formações diversas<br />
no que se refere à estrutura educacional que temos nos dias contemporâneos. Um envolvimento<br />
direto entre o educa<strong>do</strong>r e o educan<strong>do</strong> e a transformação da educação básica. Ressalta-se ainda<br />
a luta <strong>do</strong> movimento estudantil <strong>de</strong> esquerda por uma universida<strong>de</strong> plural, gratuita e laica,<br />
on<strong>de</strong> o educan<strong>do</strong> possa ter respeita<strong>do</strong>s seus direitos e exercer com vigor os seus <strong>de</strong>veres.<br />
Sinto-me bem em tentar <strong>de</strong>codificar a natureza acadêmica. To<strong>do</strong>s os dias são para<br />
buscar a re<strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong>ste universo fantasmagórico e realista. Existe uma luta constante<br />
em não nos <strong>de</strong>ixarmos ser engoli<strong>do</strong>s por uma estrutura que muitas vezes po<strong>de</strong> ser<br />
massifica<strong>do</strong>ra e cruel.<br />
Um <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s ganhos que tive até este momento na universida<strong>de</strong> é a participação no<br />
programa “Conexões <strong>de</strong> Saberes”. O convívio com pessoas <strong>de</strong> outros cursos <strong>de</strong> graduação,<br />
e conseqüentemente, uma troca <strong>de</strong> experiências profissionais e <strong>de</strong> vida, serve para estruturar<br />
ainda mais a formação pessoal e coletiva. Tal programa é <strong>de</strong> suma importância para a<br />
comunida<strong>de</strong>, assim como para a aca<strong>de</strong>mia, pois é um espaço <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> a um diálogo aberto<br />
e sincero entre o conhecimento científico e o empírico. Contu<strong>do</strong>, como to<strong>do</strong>s os programas,<br />
o “Conexões” tem seus problemas estruturais, que acabam empurran<strong>do</strong> um pouco o processo<br />
a ser <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> na sua prática em prol da população circunvizinha da universida<strong>de</strong>, mas<br />
2 Título <strong>de</strong> um espetáculo teatral encena<strong>do</strong> no ano <strong>de</strong> 2006 na <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> Piauí por<br />
uma companhia teatral maranhense chamada “Xibé cia. Cênica”, na primeira Semana <strong>de</strong> Arte<br />
Noêmia Varela.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 13
é um programa <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> relevância, pois nos capacita a um diálogo aberto e diferencia<strong>do</strong><br />
acerca <strong>do</strong> acesso e permanência na universida<strong>de</strong>. Ainda existe muito a ser melhora<strong>do</strong>, mas<br />
estamos dan<strong>do</strong> passos largos com o programa “Conexões <strong>de</strong> Saberes”. O próprio seminário<br />
nacional <strong>do</strong> programa e o fórum Nacional <strong>de</strong> Estudantes <strong>de</strong> Origem Popular e nos <strong>de</strong>ixam<br />
claras a gran<strong>de</strong> preocupação em proporcionar o acesso e a conseguinte permanência na<br />
instituição <strong>de</strong> ensino público superior.<br />
A corrida continua, pois a vida é uma batalha inacabável, on<strong>de</strong> somos opressores e<br />
oprimi<strong>do</strong>s, condutores e condução, somos fruto da soma <strong>do</strong>s nossos antepassa<strong>do</strong>s e respiramos<br />
um presente <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> <strong>de</strong> herança. Nossa função é só uma: transformar, ser agente transforma<strong>do</strong>r<br />
da socieda<strong>de</strong> através da educação e da ligação entre o que é <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> científico e o que<br />
é <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> empírico. Ainda falta muito para a socieda<strong>de</strong> se mostrar como uma via <strong>de</strong><br />
mão dupla, on<strong>de</strong> tanto posso dar como posso receber, on<strong>de</strong> posso transformar e me <strong>de</strong>ixar<br />
ser transforma<strong>do</strong>. Existem muitas pessoas que agem <strong>de</strong>sta maneira, mas são apenas exceções.<br />
Contu<strong>do</strong>, em um futuro que esperamos que não seja muito distante, essas pessoas serão<br />
maioria e é nessa certeza que, a cada levantar <strong>do</strong> Sol, levanta a esperança <strong>de</strong> um país melhor,<br />
digno <strong>do</strong> seu povo, e sobretu<strong>do</strong>, volta<strong>do</strong> para o povo, perpassan<strong>do</strong> por todas as camadas<br />
sociais, estruturan<strong>do</strong> assim cada família, dan<strong>do</strong> dignida<strong>de</strong> e educação <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> a to<strong>do</strong>s.<br />
E essa ainda é a minha busca. E a sua, você já <strong>de</strong>scobriu?<br />
14 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Motivações que me levaram a<br />
alcançar meus objetivos<br />
Alexsandro Costa Ferreira *<br />
Minha história <strong>de</strong> vida é marcada por muitos <strong>de</strong>safios e muita superação. Sempre<br />
morei com meus pais e com minha irmã, que se chamam: Maria Antonia Costa Ferreira<br />
(minha mãe), José Luis Costa Ferreira (meu pai), Alessandra Costa Ferreira (minha irmã) e,<br />
há mais ou menos 4 anos, ganhei mais uma irmã, a Brenda, uma afilhada <strong>do</strong>s meus pais,<br />
como se fosse minha irmã.<br />
Meus pais sempre priorizaram os meus estu<strong>do</strong>s. Mesmo nos momentos mais difíceis,<br />
eles fizeram questão <strong>de</strong> não abrir mão <strong>do</strong>s nossos estu<strong>do</strong>s.<br />
Minha trajetória para chegar até a universida<strong>de</strong> começou no Colégio “Henrique <strong>de</strong> La<br />
Roque”, uma escola particular, on<strong>de</strong>, graças aos meus pais, consegui uma bolsa para estudar.<br />
Lá, estu<strong>de</strong>i <strong>do</strong> jardim (alfabetização) até a 4ª série <strong>do</strong> Ensino Fundamental; to<strong>do</strong> esse tempo<br />
com bolsa <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s.<br />
A partir da 5ª série, tive que mudar <strong>de</strong> escola, pois a bolsa que meus pais ganhavam<br />
para custear meus estu<strong>do</strong>s foi interrompida, fazen<strong>do</strong> com que eu tivesse <strong>de</strong> mudar <strong>de</strong> uma<br />
escola particular para uma escola pública.<br />
No princípio, não queria sair da minha antiga escola. Como meus pais tinham perdi<strong>do</strong><br />
o beneficio da bolsa <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s, tive que me mudar para outro colégio.<br />
Essa foi mais uma etapa da minha vida em que pensei que não ia conseguir me adaptar<br />
a essa nova escola, não só a ela, mas também, em ter que conhecer outras pessoas. Muito<br />
pelo contrário, me adaptei muito rápi<strong>do</strong>.<br />
A escola na qual estu<strong>de</strong>i da 5ª à 8ª séries <strong>do</strong> Ensino Fundamental chama-se “Ban<strong>de</strong>ira<br />
Tribuzzi”. Nessa escola, vivi gran<strong>de</strong>s momentos da minha vida, encontrei gran<strong>de</strong>s amigos<br />
e me i<strong>de</strong>ntifiquei muito com o ambiente escolar.<br />
Nessa escola, vivi momentos maravilhosos como minha primeira namorada, gran<strong>de</strong>s amigos<br />
e professores que me ensinaram não só em sala <strong>de</strong> aula, como também, me revelaram gran<strong>de</strong>s<br />
histórias <strong>de</strong> vida e me ensinaram a ter força e garra para os obstáculos que ela nos coloca.<br />
No final <strong>de</strong> 1996, prestei exame para duas escolas públicas, CEFET e “Liceu<br />
Maranhense”. Fui aprova<strong>do</strong> nesta última, on<strong>de</strong> vivi gran<strong>de</strong>s momentos da minha juventu<strong>de</strong>.<br />
Conheci gran<strong>de</strong>s amigos, participei da seleção <strong>de</strong> futsal, uma das minhas paixões.<br />
No “Liceu” passei três anos maravilhosos. Lá, vivi gran<strong>de</strong>s momentos, conheci pessoas<br />
que marcaram muito minha vida. No ano <strong>de</strong> 1999, meu ciclo no “Liceu” terminou, pois concluí<br />
o 3º ano <strong>do</strong> Ensino Médio, e a partir daí , começou uma gran<strong>de</strong> batalha para entrar na <strong>Universida<strong>de</strong></strong>.<br />
* Graduan<strong>do</strong> em Geografia na <strong>UFMA</strong>.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 15
No ano 2000, comecei a estudar para meu primeiro vestibular, consegui uma nova<br />
bolsa <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s para fazer um curso pré-vestibular. Nesse ano, prestei vestibular para<br />
Educação Física, infelizmente não consegui ser aprova<strong>do</strong>, apesar <strong>de</strong> to<strong>do</strong> esforço que havia<br />
feito. No ano seguinte, em 2001, não <strong>de</strong>sisti <strong>de</strong> prestar o vestibular, só que, ao invés <strong>de</strong> fazer<br />
para Educação Física, <strong>de</strong>scobri uma gran<strong>de</strong> paixão: a Geografia. Nesse ano, consegui<br />
aprovação, infelizmente só na 1ª etapa.<br />
Em 2002 tentei novamente o vestibular para Geografia, agora em 2 universida<strong>de</strong>s:<br />
<strong>UFMA</strong> e UEMA, porém, mais uma vez, não consegui a aprovação. Para mim foi um <strong>do</strong>s<br />
piores momentos, pois cheguei a per<strong>de</strong>r as esperanças <strong>de</strong> cursar o Ensino Superior.<br />
Nesse mesmo ano, em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mês <strong>de</strong> junho, quan<strong>do</strong> eu já estava à procura <strong>de</strong> um<br />
emprego, surgiu um programa <strong>do</strong> governo estadual chama<strong>do</strong> “Vestibular da Cidadania”, que<br />
consistia em um curso preparatório para o vestibular, cujo objetivo era beneficiar estudantes<br />
oriun<strong>do</strong>s <strong>de</strong> escolas públicas, que contariam com uma bolsa no valor <strong>de</strong> 100 reais.<br />
Meu pai insistiu para que eu fizesse a inscrição para o programa. Eu não queria fazer,<br />
mas com muita insistência, fiz a inscrição nas provas. Participei das provas <strong>de</strong> classificação<br />
para o curso, graças à insistência <strong>do</strong> meu pai. Para nossa satisfação, consegui ser aprova<strong>do</strong><br />
para o programa “Vestibular da Cidadania”.<br />
A partir daí, começou uma nova fase na minha vida, me <strong>de</strong>dicava exclusivamente aos<br />
estu<strong>do</strong>s, pois estava receben<strong>do</strong> para estudar; me <strong>de</strong>diquei como nunca, estudava no curso pela<br />
manhã e pela tar<strong>de</strong>, e à noite estudava em casa e acordava às 4:30h para voltar a estudar.<br />
Em 2003, foi um ano muito especial na minha vida, um <strong>do</strong>s mais importantes <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s<br />
que já vivi, pois nesse ano prestei vestibular com a certeza <strong>de</strong> que iria conseguir uma vaga.<br />
Então, fiz as provas para as mesmas universida<strong>de</strong>s, e no dia 3 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2003, prestei<br />
vestibular para a <strong>UFMA</strong>, conseguin<strong>do</strong> aprovação na 1ª etapa.<br />
A partir daí, a rotina <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s se intensificou, fiz a 2ª etapa com muita convicção <strong>de</strong><br />
que iria passar. Quan<strong>do</strong> terminei a prova, falei para mim mesmo: “Missão Cumprida! Dei o<br />
melhor <strong>de</strong> mim, agora é só esperar o resulta<strong>do</strong>”.<br />
No dia 13 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2003, saiu o resulta<strong>do</strong>. Eu estava em casa com <strong>do</strong>is primos. Foi<br />
quan<strong>do</strong> eu falei: “Vamos à <strong>UFMA</strong> ver o resulta<strong>do</strong>?” Pois eu já estava muito ansioso.<br />
Ao chegarmos lá, <strong>de</strong>paramos com muita gente, era tanta gente que eu não consegui<br />
olhar on<strong>de</strong> estava a listagem <strong>do</strong> meu curso, saí <strong>do</strong> local e fiquei esperan<strong>do</strong> abrir espaço para<br />
que eu pu<strong>de</strong>sse olhar a lista <strong>do</strong>s aprova<strong>do</strong>s. Cinco minutos <strong>de</strong>pois, olhei meus primos<br />
voltan<strong>do</strong> <strong>do</strong> mesmo lugar on<strong>de</strong> eu estava, dan<strong>do</strong>-me uma gran<strong>de</strong> notícia: “Alex, teu nome<br />
esta na lista!” Não acreditei e falei: “Vocês estão brincan<strong>do</strong>?” Tive que ir lá e comprovar<br />
com meus próprios olhos e lá estava meu nome: Alexsandro Costa Ferreira, aprova<strong>do</strong> em<br />
13º lugar. Vibrei muito e agra<strong>de</strong>ci a Deus por tu<strong>do</strong>, peguei o telefone e liguei para casa para<br />
dar a gran<strong>de</strong> noticia. Meus pais também vibraram muito.<br />
Quan<strong>do</strong> cheguei em casa, to<strong>do</strong>s me abraçaram e meu pai começou a chorar e eu também<br />
comecei a chorar. Lembrei que foi graças à insistência <strong>de</strong>les que consegui essa gran<strong>de</strong> vitória.<br />
Só que minha trajetória <strong>de</strong> conquistas não pára por aí, também fiz o vestibular para a<br />
UEMA e também lá consegui ser aprova<strong>do</strong> para o mesmo curso. Mas acabei optan<strong>do</strong> por<br />
ficar só na <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong>, pois moro no Bairro que fica em frente à <strong>UFMA</strong>.<br />
Minhas conquistas também não se limitaram somente aos estu<strong>do</strong>s. Nesse mesmo ano<br />
conheci uma pessoa maravilhosa chamada Mara Francy que Deus colocou na minha vida, uma<br />
pessoa que, junto com minha família e Deus, me dá forças para superar a cada dia os obstáculos.<br />
16 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Depois da euforia <strong>de</strong> passar no vestibular, vivi um gran<strong>de</strong> dilema, pois meu pai per<strong>de</strong>u<br />
o emprego e só minha mãe continuou trabalhan<strong>do</strong>; estávamos passan<strong>do</strong> por gran<strong>de</strong>s<br />
dificulda<strong>de</strong>s financeiras. Com isso, eu vi meus pais fazen<strong>do</strong> o maior esforço para pagar as<br />
contas e colocar comida em nossa mesa. Ven<strong>do</strong> to<strong>do</strong> esse esforço <strong>de</strong> meus pais, pensei outra<br />
vez em <strong>de</strong>sistir para po<strong>de</strong>r procurar um emprego. Contu<strong>do</strong>, meus pais não <strong>de</strong>ixaram com<br />
que eu <strong>de</strong>sistisse, dizen<strong>do</strong> para que nunca abrisse mão <strong>do</strong>s meus i<strong>de</strong>ais, que era sempre<br />
cursar um ensino superior e assim alcançar meus objetivos.<br />
Graças a Deus, meu pai conseguiu um emprego e eu, graças ao esforço <strong>do</strong>s meus pais,<br />
não tive que <strong>de</strong>sistir da universida<strong>de</strong>. Hoje, estou no 7º perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> curso <strong>de</strong> Geografia da<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> e estou aqui relatan<strong>do</strong> um pouco da minha vida, até<br />
chegar à universida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ixar aqui um pequeno reca<strong>do</strong>: sempre procure motivações para<br />
alcançar seus objetivos. No meu caso, a minha motivação foram meus pais.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 17
18 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular<br />
Ana Paula <strong>de</strong> Albuquerque Martins *<br />
Devo confessar que a idéia <strong>de</strong> escrever sobre mim, sobre a história da minha vida,<br />
inicialmente, me assusta, e na verda<strong>de</strong>, me <strong>de</strong>ixa sem palavras. Pensei muito, antes <strong>de</strong><br />
iniciar, imaginan<strong>do</strong> como tornar público algo tão reserva<strong>do</strong>, que é a forma como me percebo<br />
ou como percebo a minha história. Fiquei procuran<strong>do</strong> uma maneira <strong>de</strong> escrever tentan<strong>do</strong><br />
não ser superficial, o que aconteceria se levasse em conta somente o receio <strong>de</strong> que as<br />
pessoas me vejam, e por outro la<strong>do</strong>, sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong>sveladas coisas realmente íntimas, que<br />
dizem respeito somente a minha existência.<br />
Decidi então iniciar pelo que me trouxe a este programa, que foi a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
refletir e estabelecer mecanismos <strong>de</strong> intervenção num <strong>do</strong>s campos mais críticos da<br />
universida<strong>de</strong>: o acesso das camadas populares ao Ensino Superior. Isto se torna importante<br />
na minha trajetória, porque, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Ensino Fundamental, que cursei numa escola pública<br />
perto da minha casa, a idéia que tinha <strong>de</strong> universida<strong>de</strong> era a <strong>de</strong> um espaço que nunca<br />
po<strong>de</strong>ria ocupar, dadas as contingências materiais e sociais. Lembro-me da primeira vez em<br />
que entrei na <strong>UFMA</strong>, tinha uns 11 anos, acho que era um Congresso <strong>de</strong> Química. A minha<br />
turma veio participar <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s momentos <strong>do</strong> congresso. Hoje, eu paro para pensar e<br />
recor<strong>do</strong> que nem cogitava a hipótese <strong>de</strong> chegar a ser estudante daquela universida<strong>de</strong>, pois<br />
era uma coisa muito distante. Na minha realida<strong>de</strong>, a meta era concluir o Ensino Médio, no<br />
máximo um curso profissionalizante, que realmente cheguei a fazer, o <strong>de</strong> Informática no<br />
CEFET-MA, quan<strong>do</strong> estava concluin<strong>do</strong> o 3º ano.<br />
Mas o diferencial na minha história, como <strong>de</strong> muitos <strong>de</strong> origem popular, foi o suporte<br />
familiar. Meus pais, apesar <strong>de</strong> não terem concluí<strong>do</strong> o Ensino Básico, sempre <strong>de</strong>ram muita<br />
importância à nossa educação, oferecen<strong>do</strong> o necessário para continuarmos estudan<strong>do</strong>, sem<br />
ter que trabalharmos.<br />
Meu pai, Francisco Paulo, nasceu em Barreirinhas, veio para São Luís com 11 anos,<br />
sozinho, absolutamente sozinho. Apesar <strong>de</strong> nosso relacionamento (meu e <strong>do</strong>s meus irmãos)<br />
com ele tem si<strong>do</strong> sempre complica<strong>do</strong>, pois ele é um homem <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong> forte e um tanto<br />
quanto reacionário, sempre tive profunda admiração por ele. É um homem <strong>de</strong> luta, que trabalha<br />
para conseguir o que quer. Costuma nos dizer que duas vezes em sua vida per<strong>de</strong>u tu<strong>do</strong> que<br />
tinha, mas não se <strong>de</strong>sesperou, levantou e trabalhou para ter tu<strong>do</strong> novamente. Acho que isso<br />
her<strong>de</strong>i <strong>de</strong>le, nunca me <strong>de</strong>sespero, sempre junto todas as forças para continuar adiante.<br />
* Graduanda em Psicologia na <strong>UFMA</strong>.<br />
Memorial
Minha mãe, Maria <strong>do</strong> Livramento, nunca se conformou <strong>de</strong> não ter podi<strong>do</strong> continuar<br />
estudan<strong>do</strong>, concluiu apenas o Ensino Fundamental, então transferiu para seus filhos a<br />
responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter nos estu<strong>do</strong>s a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alçar vôos mais altos. Mãe <strong>de</strong> três<br />
filhas, Maria <strong>de</strong> Nazaré, Solange e eu, nunca nos educou para o casamento, aliás, esse é o<br />
último <strong>do</strong>s planos <strong>de</strong> nossas vidas, sempre nos incentivou a estudar e a trabalhar para<br />
sermos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, principalmente <strong>de</strong> um possível mari<strong>do</strong>. Enfim, percebi que tenho<br />
mais <strong>do</strong>s meus pais <strong>do</strong> que posso imaginar.<br />
Comecei a apren<strong>de</strong>r a ler com a minha mãe aos quatro anos, <strong>de</strong> forma que, quan<strong>do</strong><br />
ingressei na Educação Infantil, já estava quase alfabetizada. No Ensino Fundamental, fui<br />
“a mais inteligente da turma”, a “queridinha” <strong>do</strong>s professores, tanto que, na 2 a série, os<br />
outros alunos não falavam comigo, nunca entendi ao certo o porquê. Nessa época foi<br />
preciso a professora conversar com toda a turma para que eles voltassem a se relacionar<br />
comigo. Outro aspecto importante <strong>de</strong>ssa primeira fase da minha vida escolar é que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
a 1 a série, fui lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong> turma, aquela responsável pela disciplina da turma na ausência <strong>do</strong>s<br />
professores. Isso me distanciava um pouco <strong>do</strong>s outros alunos, muitos tinham ódio <strong>de</strong><br />
mim, mas ainda consegui fazer alguns amigos. Fora da sala eu era outra. Descontraída, me<br />
divertia muito com as amigas.<br />
Passei sem dificulda<strong>de</strong>s por essa etapa, pelo menos no que se refere ao rendimento<br />
escolar. Fiz os seletivos para o “Liceu Maranhense” e para o CEFET-MA. Mas acabei<br />
ingressan<strong>do</strong> neste último e acho que foi a melhor escolha que po<strong>de</strong>ria ter feito. Lá eu<br />
comecei a viver; conheci muita gente interessante, muitas realida<strong>de</strong>s distintas das que<br />
vivera até aquele momento.<br />
Pouco antes <strong>de</strong> iniciar o Ensino Médio, entrara para a Pastoral da Juventu<strong>de</strong> (PJ), na<br />
Igreja Católica da minha comunida<strong>de</strong>, num grupo <strong>de</strong> jovens chama<strong>do</strong> JEP VS , em que pu<strong>de</strong><br />
começar minha vida <strong>de</strong> militância. Nunca fui muito religiosa e acho até a simbologia e os<br />
ritos da Igreja Católica muito interessantes, mas vi, nesse movimento social, a oportunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> intervir na realida<strong>de</strong> e nas consciências das pessoas daquela comunida<strong>de</strong>. Fazíamos<br />
muitas ativida<strong>de</strong>s culturais, sociais e políticas. Naquela época, a Pastoral da Juventu<strong>de</strong> era<br />
um movimento muito forte, e para to<strong>do</strong>s que participam <strong>de</strong>la, uma escola <strong>de</strong> vida. Na <strong>UFMA</strong><br />
reencontrei muita gente da PJ. Fico me perguntan<strong>do</strong> por que não existem mais jovens como<br />
aqueles, parece que a “mística” da juventu<strong>de</strong> acabou, o sentimento <strong>de</strong> coletivida<strong>de</strong> parece<br />
não mais nos impulsionar, as injustiças nos parecem agora “naturais”. Talvez estejamos<br />
internalizan<strong>do</strong> efetivamente os valores da socieda<strong>de</strong> capitalista contemporânea e entran<strong>do</strong><br />
muito ce<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> competitivo <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho. Nossos sonhos, i<strong>de</strong>ais, i<strong>de</strong>ologias,<br />
parecem ter esmoreci<strong>do</strong>…<br />
Quan<strong>do</strong> fui para o CEFET-MA, logo conheci algumas pessoas que compunham o<br />
GRÊMIO “Edson Luis” e engajei-me rapidamente no movimento estudantil, tanto que,<br />
com <strong>do</strong>is meses <strong>de</strong> aula, estávamos em passeata contra a UMES, entida<strong>de</strong> que vinha<br />
negligencian<strong>do</strong> o direito <strong>do</strong>s estudantes <strong>de</strong> meia-passagem, com frau<strong>de</strong>s na emissão <strong>de</strong><br />
carteiras. Des<strong>de</strong> então, o movimento estudantil tem si<strong>do</strong> parte da minha vida. Costumo<br />
dizer que o CEFET-MA foi para mim uma preparação para o clima da universida<strong>de</strong>,<br />
tínhamos quase total responsabilida<strong>de</strong> e liberda<strong>de</strong> com relação à nossa formação. No<br />
terceiro ano, comecei a fazer curso técnico <strong>de</strong> informática nessa mesma instituição, <strong>de</strong>ssa<br />
forma estudava <strong>do</strong>is turnos (manhã e tar<strong>de</strong>) e não tinha muito tempo para pensar nas<br />
provas <strong>do</strong> vestibular, mas me inscrevi em Psicologia. Confesso que até hoje não sei<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 19
direito por que escolhi esse curso; na verda<strong>de</strong>, não achava que aquela escolha seria a<br />
última, a única, aquilo que eu faria para o resto da vida. Sempre fiz mil coisas ao mesmo<br />
tempo e mudar <strong>de</strong> idéia não seria muito difícil.<br />
Comecei minha vida acadêmica em 2003 e até me interessava o curso <strong>de</strong> Psicologia.<br />
Mas o fato é que nunca fui muito <strong>de</strong> gostar <strong>de</strong> assistir às aulas, sempre preferi os livros aos<br />
professores. E me interessava mais participar <strong>de</strong> palestras, <strong>de</strong>bates, encontros. Na época, o<br />
assunto em pauta no movimento estudantil era a famigerada Reforma Universitária. Nesses<br />
<strong>de</strong>bates, conheci o grupo que estava na gestão <strong>do</strong> DCE-<strong>UFMA</strong>, grupo político com o qual me<br />
i<strong>de</strong>ntifiquei e <strong>do</strong> qual faço parte até hoje. Nessa época, estava na gestão <strong>do</strong> Centro Acadêmico<br />
<strong>de</strong> Psicologia e tentávamos estabelecer no curso um clima <strong>de</strong> integração e politização.<br />
Em 2006, foi lança<strong>do</strong> o edital <strong>do</strong> “Conexões <strong>de</strong> Saberes” na <strong>UFMA</strong> e logo me interessei<br />
pela temática e objetivos <strong>do</strong> programa, principalmente pela possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar visibilida<strong>de</strong><br />
às comunida<strong>de</strong>s polares e à <strong>de</strong>mocratização <strong>do</strong> espaço acadêmico. Como já tinha vivência em<br />
trabalhos com a minha comunida<strong>de</strong>, o projeto trouxe-me a ampliação <strong>de</strong>ssa intervenção, com<br />
vistas a mostrar que as comunida<strong>de</strong>s populares são espaços <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> conhecimento,<br />
cultura e ciência.<br />
20 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Cláudia Nunes da Silva *<br />
Tu<strong>do</strong> vai mudar, quan<strong>do</strong> essa luz se acen<strong>de</strong>r,<br />
você vai me conhecer, vai me ver <strong>de</strong> um jeito<br />
que nunca viu. Eu tenho se<strong>de</strong> <strong>de</strong> som, eu<br />
tenho fome <strong>de</strong> luz, tenho a força, tenho o <strong>do</strong>m,<br />
<strong>do</strong>n’t you know quem eu sou? Remember my<br />
name, vem pro meu la<strong>do</strong> forever, vem pra bem<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim, vem que vou longe, vou fun<strong>do</strong>,<br />
vem que eu te faço feliz, vou te contar meus<br />
segre<strong>do</strong>s, você vai rir e chorar, vou te mostrar<br />
o meu mun<strong>do</strong>, vou te tirar pra dançar...<br />
Sandra <strong>de</strong> Sá<br />
Este é um momento difícil, singular e inexplicável. Tantas foram as adversida<strong>de</strong>s, os<br />
conflitos, os me<strong>do</strong>s e as <strong>do</strong>res que tive na vida! Sem alguma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compartilhar,<br />
sem visibilida<strong>de</strong>, e <strong>de</strong> repente, tenho que fazer umas caminhadas. Tenho que lembrar <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>.<br />
De cada tormento, <strong>de</strong> cada paixão e alegria. Tenho que me entregar a um infinito vazio, <strong>do</strong><br />
ca<strong>de</strong>rno, que <strong>de</strong>semboca num mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> conhecimentos e o passaporte para essa “viagem” é<br />
minha vida. E eu sou a <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>ra, senhora <strong>de</strong> um passa<strong>do</strong> que hesito, mas tenho que reviver.<br />
Na solidão que compartilho com o papel, surgem as cores e os segre<strong>do</strong>s <strong>de</strong> minha vida,<br />
que começa quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>is nor<strong>de</strong>stinos resolveram “tentar a vida na cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>”. Minha<br />
mãe, mulher guerreira, filha <strong>de</strong> uma família originária <strong>de</strong> uma terra <strong>de</strong> pretos - o Jejuí - <strong>de</strong>sejava<br />
ter uma vida diferente da que levava no interior <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>. Foi morar com tios, trabalhar e<br />
estudar em São Paulo. Meu pai conta que os meus avós fugiram <strong>de</strong> uma al<strong>de</strong>ia indígena e<br />
foram morar num povoa<strong>do</strong> <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> Baiacuí. Homem <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> ín<strong>do</strong>le, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os oito<br />
anos trabalhava em uma quitanda, e após realizar o primeiro sonho <strong>de</strong> sua vida, ter uma<br />
havaiana para calçar, <strong>de</strong>cidiu alçar vôos mais altos e ir também para a cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> eu nasceria.<br />
Um índio, uma negra. Dois nor<strong>de</strong>stinos numa cida<strong>de</strong> cheia <strong>de</strong> conflitos sociais, numa<br />
socieda<strong>de</strong> impregnada pelos conflitos raciais e uma única proteção: os sonhos. Além <strong>do</strong>s<br />
sonhos, as filhas. Uma <strong>de</strong>las surge nessa história em 1981, no mês <strong>de</strong> outubro, no dia trinta.<br />
Era eu, nascia mais uma Cláudia em São Paulo, mais uma mora<strong>do</strong>ra da periferia, mais uma<br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> nor<strong>de</strong>stinos, mais uma filha da esperança.<br />
* Graduanda em Ciências Sociais na <strong>UFMA</strong>.<br />
Primeiro capítulo<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 21
Esperança compartilhada com muitos amigos. Lembro-me <strong>de</strong> que morávamos num<br />
bairro on<strong>de</strong> a maioria <strong>do</strong>s <strong>do</strong>micilia<strong>do</strong>s era nor<strong>de</strong>stino. Uma época muito feliz. Morava no<br />
Capão Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, lugar on<strong>de</strong> a ação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> não é percebida e os mora<strong>do</strong>res sempre<br />
elaboram estratégias <strong>de</strong> sobrevivência. O Centro Comunitário é uma <strong>de</strong>las. Lugar para on<strong>de</strong><br />
eu caminhava diariamente, para conviver com outras crianças e com a arte. On<strong>de</strong> se<br />
compartilham esperanças, sofrimentos, paixões e alegrias. Lembro-me das festas que minha<br />
mãe organizava com as outras mulheres. Elas conseguiam alimentos, brinque<strong>do</strong>s, material<br />
escolar e distribuíam tu<strong>do</strong> isso para as crianças <strong>do</strong> bairro. Sempre era uma festa.<br />
O único problema <strong>de</strong>ssa época era que meus pais tinham que sair muito ce<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
casa para trabalhar, sempre durante a madrugada e só retornavam muito tar<strong>de</strong>, quan<strong>do</strong><br />
eu e minha irmã já estávamos <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>. Mas esse sacrifício era sempre recompensa<strong>do</strong><br />
nos finais <strong>de</strong> semana e com a alegria <strong>de</strong> ver as filhas na escola. Para completar a nossa<br />
alegria, minha irmã mais velha havia passa<strong>do</strong> no seletivo da escola técnica e parecia<br />
que o sonho <strong>de</strong> ver as duas filhas enveredan<strong>do</strong> pelos caminhos da educação estava<br />
muito perto <strong>de</strong> se concretizar.<br />
Tive uma infância tranqüila, recheada <strong>de</strong> prazeres. Mas quan<strong>do</strong> cheguei ao conturba<strong>do</strong><br />
e apaixonante mun<strong>do</strong> da a<strong>do</strong>lescência, parece que o mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> conto <strong>de</strong> fadas em que vivia<br />
<strong>de</strong>sfez-se numa nova realida<strong>de</strong>, cheia <strong>de</strong> me<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>silusões.<br />
A primeira gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>cepção, foi a rejeição <strong>de</strong> meu corpo negro. Haveria uma peça na<br />
escola, os critérios para a participação no evento eram as boas notas, estudar a história da<br />
índia “Mani” e ter bom comportamento. Desses critérios, não me enquadrava em apenas<br />
um: bom comportamento. Mas mesmo assim, me esforcei, até parei <strong>de</strong> brigar com os meninos<br />
da escola. Fazia questão <strong>de</strong> dizer que meu pai era índio, nunca tive tanto orgulho disso,<br />
tinha tanta certeza <strong>de</strong> que seria eu a escolhida.<br />
No dia da escolha, a professora contou mais uma vez a história da indiazinha, era a<br />
mais bela <strong>de</strong> toda a al<strong>de</strong>ia, a mais <strong>de</strong>licada, a mais inteligente, a mais <strong>de</strong>sejada, Mani era a<br />
“tal”. E eu, toda convencida, achava que seria a própria. Mas na hora a professora anunciou<br />
a escolhida, e era Vivian, a menina mais branca da sala. Eu não falei nada. Apenas me<br />
entreguei ao batuque <strong>do</strong> meu peito. Mas lembro-me <strong>de</strong> que alguns colegas perguntaram à<br />
professora se existia índia branca. E a resposta: “Mani era, pois foi <strong>de</strong>la que surgiu a mandioca<br />
para os índios comerem e mandioca é branca”. E pronto, estava da<strong>do</strong> o veredito da <strong>de</strong>tentora<br />
<strong>do</strong> conhecimento. E eu não po<strong>de</strong>ria participar da encenação, pois existia uma índia branca<br />
como Mani, mas não negra como eu.<br />
Essa peça era para a semana <strong>do</strong> folclore da escola, da qual to<strong>do</strong>s tinham que participar.<br />
Fui recrutada junto com as outras meninas negras para dançar uma música da dupla <strong>de</strong><br />
cantores, Sandy e Junior. Detestei. Mas era uma imposição da professora. Dessa forma,<br />
iniciei a a<strong>do</strong>lescência com a revolta <strong>de</strong> ser negra e a culpa <strong>de</strong> não ser bonita como Mani.<br />
Passei a a<strong>do</strong>lescência namoran<strong>do</strong> meninos que só existiam em meus pensamentos e que me<br />
enxergavam “bela” como Mani. Todas as aproximações com meninos reais eram rapidamente<br />
bloqueadas. Logo, passei a a<strong>do</strong>lescência sem namoros reais.<br />
Mas esse era o menor <strong>de</strong> meus problemas. Minha irmã estava na escola técnica, fazia<br />
um curso muito caro, Desenho e Construção Civil. Meus pais tinham que fazer horas extras<br />
e to<strong>do</strong> dinheiro arrecada<strong>do</strong> ainda era insuficiente para custear os gastos com sua formação.<br />
Minha mãe per<strong>de</strong>u o emprego na fábrica e minha irmã, a vaga na escola técnica. E com a<br />
crise financeira vieram muitos conflitos familiares.<br />
22 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Eu tinha quinze anos, nunca havia vivencia<strong>do</strong> conflitos em casa, não da espécie <strong>do</strong>s<br />
que estavam ocorren<strong>do</strong>. Minha mãe retornou com as duas filhas para o <strong>Maranhão</strong>. Meu pai<br />
continuou em São Paulo, trabalhan<strong>do</strong>.<br />
Nossos problemas financeiros se agravavam cada vez mais. E, naquele momento, ainda<br />
tínhamos que conviver com a sauda<strong>de</strong>. Logo, minha mãe começou a trabalhar como <strong>do</strong>méstica,<br />
morávamos na casa em que ela trabalhava. Uma nova realida<strong>de</strong> com a qual <strong>de</strong>moraria muito<br />
para me acostumar. Foram muitas as idas e vindas <strong>de</strong> minha irmã e <strong>de</strong> meus pais, sou a única da<br />
família que nunca retornou a São Paulo. Já estava com <strong>de</strong>zessete anos, a ida<strong>de</strong> adulta já se<br />
aproximava. Já tínhamos uma casa, mas persistiam os problemas financeiros. Tinha que começar<br />
a eleger priorida<strong>de</strong>s. E a educação foi a opção escolhida. Continuava estudan<strong>do</strong> em duas<br />
escolas, fazia um curso técnico e outro regular. Cursei to<strong>do</strong> o Ensino Médio com muitas<br />
privações. To<strong>do</strong>s os dias levava, a pé, uma hora para ir e outra para voltar <strong>do</strong> colégio, talvez<br />
isso não fosse gran<strong>de</strong> sacrifício, se o sapato que usava não fosse <strong>do</strong>is números menores que o<br />
tamanho <strong>do</strong> meu pé, pois havia si<strong>do</strong> uma <strong>do</strong>ação e não tínhamos dinheiro para comprar outro.<br />
To<strong>do</strong>s os dias, quan<strong>do</strong> atravessava a ponte <strong>do</strong> São Francisco, pensava no lugar para<br />
on<strong>de</strong> estava in<strong>do</strong>, não para a escola, mas imaginava a que lugares aquela caminhada iria me<br />
levar. Que caminhos ainda iria percorrer na vida. Quais os resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> tanto sacrifício. E<br />
parecia que a ponte nunca acabava.<br />
Tínhamos apenas o suficiente para as necessida<strong>de</strong>s primeiras, sem nada <strong>de</strong> supérfluos.<br />
E, às vezes, o “supérfluo” era algo muito necessário. Cursei to<strong>do</strong> o Ensino Médio com<br />
muito sacrifício, meu e <strong>de</strong> meus pais. Um dia percebi que meus pais não estavam se<br />
alimentan<strong>do</strong> direito, para garantir que eu tivesse duas refeições por dia. No meio <strong>de</strong> tantas<br />
dificulda<strong>de</strong>s, resolvi procurar um emprego. Trabalhei como ven<strong>de</strong><strong>do</strong>ra <strong>de</strong> planos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong><br />
e <strong>de</strong> cartelas <strong>de</strong> bingo.<br />
Entre tantos problemas, tínhamos ainda <strong>de</strong> ter forças para continuar lutan<strong>do</strong>. Do nosso<br />
amor e <strong>de</strong> nossa esperança, e assim prosseguimos nossas caminhadas. Tive que apren<strong>de</strong>r a<br />
cuidar <strong>de</strong> mim muito ce<strong>do</strong>, pois meus pais constantemente arranjavam empregos temporários<br />
em São Paulo, minha irmã foi embora, pois havia passa<strong>do</strong> no vestibular e eu aqui permanecia.<br />
Queria fazer faculda<strong>de</strong>, tinha que sobreviver e lutar.<br />
Um dia eu e algumas amigas <strong>do</strong> bairro em que morava (Ilhinha) abrimos um novo<br />
caminho nas nossas vidas e nas vidas <strong>de</strong> muitos outros que ali moravam. Resolvemos dar<br />
aulas <strong>de</strong> reforço para as crianças. Pedimos roupas usadas, fizemos um brechó e com o dinheiro<br />
compramos materiais didáticos, e finalmente fundamos a Casa <strong>do</strong> Guri. Como não tínhamos<br />
dinheiro para pagar uma se<strong>de</strong>, ficou <strong>de</strong>cidi<strong>do</strong> que a escolinha funcionaria em minha casa.<br />
Começamos com trinta crianças, e logo esse número aumentou para duzentas e quarenta.<br />
Tínhamos um gran<strong>de</strong> problema, ou duzentos e quarenta problemas bem pequenininhos.<br />
Precisávamos alimentar as crianças, comprar material escolar, comprar remédios e ainda<br />
distribuir semanalmente uma sopa para a comunida<strong>de</strong>. Isso sem contar com os nossos<br />
problemas pessoais. Algumas precisavam trabalhar, outras estavam estudan<strong>do</strong> para o<br />
vestibular. Tínhamos que dar aulas e preparar outras meninas que estivessem dispostas a<br />
fazer o mesmo, sem ganhar dinheiro para isso.<br />
Resolvemos ensinar as crianças a fazer artesanato. A idéia seria criar uma fonte <strong>de</strong><br />
recursos, para que não fosse mais preciso sair todas as semanas pedin<strong>do</strong> roupas nos bairros<br />
vizinhos. Enquanto eu dava aulas <strong>de</strong> reforço, organizava as ativida<strong>de</strong>s da Casa <strong>do</strong> Guri e<br />
ainda tinha que estudar para o vestibular.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 23
Na primeira tentativa, fiz vestibular para Comunicação Social. Era a profissão que<br />
mais admirava. Já na primeira etapa, a <strong>de</strong>cepção. Então, resolvi me afastar, sem me ausentar<br />
totalmente das ativida<strong>de</strong>s da casa. Fiquei um ano apenas conseguin<strong>do</strong> recursos, sem dar<br />
aulas <strong>de</strong> reforço. Estudava dia e noite, e quan<strong>do</strong> saiu o resulta<strong>do</strong> da primeira etapa, lá estava<br />
o meu nome. Consegui passar em décimo quinto, na última vaga para o curso <strong>de</strong>seja<strong>do</strong>,<br />
Comunicação Social. Era uma alegria, não só minha, mas também das crianças, <strong>de</strong> minhas<br />
amigas e <strong>do</strong>s meus pais. Fiz a prova <strong>de</strong> segunda etapa muito confiante.<br />
No mesmo ano, quan<strong>do</strong> saiu o resulta<strong>do</strong> da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> Estadual <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>, um<br />
amigo passou e parecia que a luta para chegar à universida<strong>de</strong> finalmente tinha chega<strong>do</strong> ao<br />
fim. Mas quan<strong>do</strong> foi anuncia<strong>do</strong> o resulta<strong>do</strong> final <strong>do</strong> vestibular da <strong>UFMA</strong>, uma nova frustração.<br />
E <strong>de</strong>ssa vez, ainda pior, tinha perdi<strong>do</strong> a bolsa <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s no cursinho. Mas minha família<br />
mais uma vez <strong>de</strong>cidiu fazer um novo sacrifício por mim.<br />
Dessa vez havia me conscientiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> que o problema não era somente meu, mas <strong>do</strong><br />
próprio sistema educacional. Tinha a certeza <strong>de</strong> que havia estuda<strong>do</strong> e <strong>de</strong> que as vagas eram<br />
insuficientes para a <strong>de</strong>manda. Nesse ano, um professor e amigo, Carvalho, me aconselhou<br />
que eu não ficasse muito triste, como se isso fosse possível. O argumento era que <strong>de</strong>veria<br />
acreditar que aquele não seria o curso certo e naquela turma não encontraria as pessoas que<br />
fariam diferença em minha vida.<br />
Mais um ano <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s para o vestibular, <strong>de</strong>ssa vez estudava sozinha, porque, <strong>do</strong>s<br />
meus amigos, um já havia passa<strong>do</strong> no vestibular e os outros tiveram que trabalhar o dia<br />
inteiro e não tinham mais tempo e nem disposição para estudar.<br />
Continuava na Casa <strong>do</strong> Guri, <strong>de</strong>ssa vez resolvi dar aulas sem me preocupar muito com<br />
os recursos da casa. Como não tínhamos muitas contribuições, o número <strong>de</strong> crianças diminuiu<br />
para cento e trinta. Matriculei-me no cursinho noturno, com ajuda <strong>de</strong> meus pais e <strong>de</strong> minha<br />
irmã; estudava pela manhã e dava aulas à tar<strong>de</strong>.<br />
Sem muitas expectativas <strong>de</strong> passar no vestibular, <strong>de</strong>dicava-me mais à casa <strong>do</strong> que<br />
aos estu<strong>do</strong>s. Finalmente, chegou a hora <strong>de</strong> me inscrever no concurso. Havia li<strong>do</strong> sobre o<br />
curso <strong>de</strong> Ciências Sociais e conversa<strong>do</strong> com algumas pessoas sobre a profissão. Resolvi<br />
prestar vestibular para este curso. Agora me lembro daquele dia. Era nove <strong>de</strong> março, meu pai<br />
estava comigo no campus da <strong>UFMA</strong>. Ele esperaria até o fim. Sempre que fosse preciso, sei<br />
que estaria lá. Com sua bonda<strong>de</strong>, amor e sabe<strong>do</strong>ria. E foi nesse dia que o poeta <strong>de</strong> minha<br />
vida, homem que me fez amar as letras e os versos, escreveu este poema pra mim.<br />
Vestibular<br />
Um senso em moroso apenso<br />
Fron<strong>do</strong>so ao rigor imenso<br />
Rebuscas áureas <strong>do</strong> pensamento<br />
E vai!<br />
É hora <strong>de</strong> esboçar conhecimentos<br />
Nas raízes <strong>de</strong>sse campo cultural<br />
É um labirinto penoso e cru<br />
Refuta a sensibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ser<br />
Sob tensão <strong>do</strong> rosto carrancu<strong>do</strong><br />
Quan<strong>do</strong> fecha-se o portão ferru<strong>do</strong><br />
24 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
O <strong>de</strong>stino pe<strong>de</strong> novo caminho<br />
E vai!<br />
To<strong>do</strong>s são concorrentes pensativos<br />
A lembrar das matérias puras<br />
Revisadas ao pé da explicação<br />
Cada acerto percentua pontos<br />
E cada nota reboca à vaga<br />
Induzida que na porta escapa<br />
Porque sai, num possível erro ingrato<br />
E vai!<br />
A tensão leva a hora a fora<br />
Pela chance que no mun<strong>do</strong> agora<br />
Não é mais parte da revisão<br />
É o próprio vestibular, arguto<br />
É a sala... on<strong>de</strong> está o fiscal<br />
Dos anseios, o <strong>de</strong>vaneio não fala<br />
Mas eleva a sensação que pulsa<br />
Quem espera, imagina a sala<br />
E vai!<br />
Vi no pensamento tecen<strong>do</strong><br />
Como vencer a batalha<br />
Tu<strong>do</strong> fecha num refrão papu<strong>do</strong><br />
Nas instâncias enleadas <strong>do</strong> estu<strong>do</strong><br />
O incentivo venceu o me<strong>do</strong><br />
E vai!<br />
Esse campus, é fusão embrionária<br />
Refratárias <strong>de</strong> muitas pretensões<br />
O vestibulan<strong>do</strong> pesca sem arpões<br />
Nesse mar <strong>de</strong> fictícios tubarões<br />
Agora, Josés, Moises e Joãos<br />
As Terezas, Marias e Claudias<br />
Mais os Raimun<strong>do</strong>s, Pedros e Sebastiãos<br />
Porém, a elite é a maioria preparada<br />
Raros são <strong>do</strong>mésticos e operários<br />
É a vida fechada sem sacrários<br />
E vai!<br />
Por isso o tempo <strong>de</strong>termina<br />
O fechamento <strong>de</strong>sse dia rotular<br />
Pra selar na prova, a <strong>de</strong>cisão<br />
Nesse suor que aflita a face<br />
O esforço cerebral passa nas mãos<br />
Ao transcrever a sua folha <strong>de</strong> respostas<br />
Respostas essas, certas ou não<br />
É hora da verda<strong>de</strong> sem propostas<br />
As matérias, reunidas em questão<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 25
Por último, vem o <strong>de</strong>grau ingrato<br />
Compilação final: a redação<br />
E vai!<br />
O horário marca<strong>do</strong> se reduzin<strong>do</strong><br />
Pelo tempo que não po<strong>de</strong> esperar<br />
Nesse ponto, para tu<strong>do</strong> ou continua<br />
Pelo saber, da razão <strong>de</strong> estudar<br />
Que a sorte acompanhe a to<strong>do</strong>s<br />
Nessa imensa maratona sem re<strong>do</strong>ma<br />
Capiosamente chamada: Vestibular<br />
Adalberto Santos da Silva (No prelo)<br />
Na primeira etapa o resulta<strong>do</strong> já não foi muito promissor, passei em vigésimo sexto<br />
lugar para um curso que oferecia apenas <strong>de</strong>zoito vagas. Tinha certeza <strong>de</strong> que não conseguiria<br />
passar. Pensava na tentativa anterior em que havia me classifica<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro das vagas e não<br />
consegui passar e imaginava que agora seria muito mais difícil. Mesmo assim, fiz a segunda<br />
etapa. Um mês <strong>de</strong>pois, minha expectativa foi confirmada. Fecho os olhos e sinto a emoção<br />
daquele dia. Eu havia menti<strong>do</strong> para minha mãe dizen<strong>do</strong> que o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> vestibular não<br />
sairia naquele dia, ela me fez acreditar que havia “caí<strong>do</strong> na minha conversa” e saiu para<br />
ouvir o resulta<strong>do</strong> na casa <strong>de</strong> um vizinho. Ouvi vários nomes da lista <strong>de</strong> Ciências Sociais:<br />
Simony, Rafael, Denise, Otávio, Fabrine..., mas o meu não estava lá. Entreguei-me às águas<br />
que caíam <strong>de</strong>scontroladas em meu rosto. Parece que perdia a consciência <strong>de</strong> mim, e as<br />
minhas amigas e crianças da casa e meus pais vinham em meu socorro. Já não tinha mais<br />
alternativa. Afastei-me totalmente da casa e fui procurar trabalho. A única coisa que consegui<br />
foi um emprego <strong>de</strong> <strong>do</strong>méstica. Iria cuidar <strong>de</strong> uma senhora e só po<strong>de</strong>ria ir para casa uma vez<br />
por mês em troca <strong>de</strong> míseros cem reais. Tinha muito me<strong>do</strong> <strong>do</strong> que pu<strong>de</strong>sse acontecer comigo.<br />
Estava <strong>de</strong>cidida a fazer um novo vestibular para Ciências Sociais, mas sabia que não teria<br />
condições <strong>de</strong> estudar, pois estaria muito atarefada com as ativida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> trabalho, como<br />
aconteceu com minhas amigas e tantas outras Cláudias, Anas, Lucélias, Raqueis,<br />
Mayas...mulheres negras e <strong>de</strong> origem popular.<br />
Ainda tinha esperança <strong>de</strong> continuar estudan<strong>do</strong>, e, na última semana antes <strong>de</strong> começar<br />
a trabalhar, resolvi ir até o cursinho e pedir mais uma vez uma bolsa <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s, que havia<br />
perdi<strong>do</strong> no ano anterior. Fiquei lá durante horas na porta olhan<strong>do</strong> para o prédio e pensan<strong>do</strong><br />
o que po<strong>de</strong>ria acontecer, mas não tive coragem <strong>de</strong> entrar. Quan<strong>do</strong> estava in<strong>do</strong> embora,<br />
avistei um amigo, era Denis. Ele veio em minha direção e estava choran<strong>do</strong> muito. Pensei<br />
em mil coisas: mortes, <strong>do</strong>enças, aci<strong>de</strong>ntes. Ele me pediu que o acompanhasse, mas eu<br />
resisti, queria antes saber o que estava acontecen<strong>do</strong>. Incrivelmente senti a <strong>do</strong>r da morte, e<br />
parece que ela me concebeu. Não sei explicar o que se passava nesse momento, havia<br />
passa<strong>do</strong> semanas muito triste com a <strong>de</strong>cepção <strong>do</strong> terceiro vestibular e naquele momento<br />
sentia-me contagiada por uma emoção da qual não sabia o motivo. Tinha apenas a<br />
confiança num amigo que sabia, tinha um segre<strong>do</strong> que se transformaria em um forte<br />
motivo para me emocionar.<br />
Depois, percebi que meu pai também estava chegan<strong>do</strong>, muito transtorna<strong>do</strong>. Ele me<br />
falou com os olhos, que eu tinha que ir imediatamente para casa. Eu não hesitei à or<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />
um pai. Foram os <strong>de</strong>z minutos mais longos <strong>de</strong> minha vida, eu corria e parecia que a distância<br />
26 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
só aumentava. Quan<strong>do</strong> cheguei, a casa estava lotada, minha mãe gritava muito e to<strong>do</strong>s<br />
celebravam. Minha mãe me disse: “Minha filha, corre que a universida<strong>de</strong> man<strong>do</strong>u te chamar”.<br />
Tinha que seguir por um novo caminho.<br />
A emoção tomou conta <strong>de</strong> mim, eu ria e chorava, gritava e tu<strong>do</strong> parecia um novo<br />
sonho. Abracei meus pais, parecia que naquele momento nossa luta havia chega<strong>do</strong> ao fim,<br />
sentimos que nosso sacrifício tinha vali<strong>do</strong> a pena. De repente, já estava a caminho da<br />
universida<strong>de</strong>. Tinha que fazer a matrícula com urgência, pois as aulas já haviam começa<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>is dias antes.<br />
Fui o mais rápi<strong>do</strong> que pu<strong>de</strong> à universida<strong>de</strong>. Foi um momento <strong>de</strong> emoção ímpar em<br />
minha vida. Nem sabia direito o que aquele momento significaria. Quan<strong>do</strong> cheguei, fui<br />
recebida por uma colega <strong>de</strong> turma, Socorro, que me orientou sobre to<strong>do</strong>s os procedimentos<br />
que <strong>de</strong>veria tomar para efetuar minha matrícula. Eu corria pelo Campus dan<strong>do</strong> risadas e<br />
gritava para to<strong>do</strong>s que eu tinha si<strong>do</strong> chamada. Na mesma semana, fui recebida pelo<br />
coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r <strong>de</strong> curso, era Carlão. Eu nem imaginava a importância que ele teria em<br />
minha vida. Ele me chamou para fazer parte <strong>do</strong> grupo <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s que ele coor<strong>de</strong>nava, o<br />
Grupo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Ritmos da I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, vincula<strong>do</strong> ao Núcleo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Afro Brasileiros.<br />
Logo aceitei a proposta <strong>do</strong> professor. Nesse grupo entrei em uma nova realida<strong>de</strong>, estava<br />
conviven<strong>do</strong> com pessoas que se preocupavam em refletir sobre a condição da população<br />
negra e nele passei a me apaixonar pela minha condição <strong>de</strong> negra e a me orgulhar pela<br />
história <strong>de</strong> meus ancestrais.<br />
Retornava a um conto <strong>de</strong> fadas que logo acabaria com as dificulda<strong>de</strong>s que um curso <strong>de</strong><br />
graduação proporciona aos estudantes <strong>de</strong> origem popular. Mais uma vez tinha que caminhar<br />
horas para chegar ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> conhecimento. Tinha várias <strong>de</strong>spesas com as cópias, pois os<br />
livros disponíveis na biblioteca não são suficientes. E ainda, a dificulda<strong>de</strong> em me acostumar<br />
com os conteú<strong>do</strong>s acadêmicos. Nesse novo mun<strong>do</strong>, com o qual não tive contatos anteriores,<br />
tive vários amigos, muitas paixões. O novo conhecimento, a antropologia, o movimento<br />
estudantil, os amigos e Lili, companhia para to<strong>do</strong>s os momentos da vida, com quem<br />
compartilhei idéias, aflições, alegrias, sauda<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>cepções e esperanças. A quem entregueime<br />
aos caminhos <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>s da volúpia que ar<strong>de</strong> na loucura <strong>do</strong>s apaixona<strong>do</strong>s. Com<br />
quem <strong>de</strong>scobri os <strong>de</strong>vaneios <strong>do</strong> amor.<br />
Mas mesmo com a presença <strong>de</strong> Lili em minha vida, a trajetória na aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong>u-se<br />
através <strong>de</strong> contínuos enfrentamentos. O maior <strong>de</strong>les foi reconhecer que a universida<strong>de</strong><br />
preserva as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais e reproduz a meritocracia <strong>do</strong> vestibular. Sabia que, uma<br />
vez na universida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>ria almejar uma bolsa <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s, mas para isso <strong>de</strong>veria estar nos<br />
critérios acadêmicos, notas, coeficiente <strong>de</strong> rendimento, tu<strong>do</strong> “em dias” com a falsa<br />
neutralida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s sistemas <strong>de</strong> recrutamento <strong>do</strong>s “melhores” estudantes.<br />
Esse era o caminho que <strong>de</strong>veria percorrer, pois necessitava ter uma bolsa para me<br />
manter no curso <strong>de</strong> graduação. Mas ele não foi fácil, pois não estava acostumada com o<br />
conhecimento acadêmico. Tinha dificulda<strong>de</strong>s com as leituras e tinha sempre que estudar<br />
mais, para po<strong>de</strong>r acompanhar os conteú<strong>do</strong>s das disciplinas. Fiz minha inscrição para o<br />
seletivo <strong>do</strong> Programa Institucional <strong>de</strong> Bolsas <strong>de</strong> Iniciação Científica-PIBIC com a ajuda <strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>is professores muito importantes em minha vida, Álvaro e Benedito. Tive êxito. Conhecia<br />
um novo mun<strong>do</strong> e me entregava a ele, apaixonadamente. Nessa época, passei a integrar o<br />
Grupo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Rurais e Urbanos, coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong> pela professora Maristela. A cada dia me<br />
envolvia mais com a pesquisa que <strong>de</strong>senvolvia no PIBIC. Durante <strong>do</strong>is anos fui bolsista <strong>de</strong><br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 27
iniciação científica. E ao mesmo tempo, era coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Centro Acadêmico, estagiava<br />
na Secretaria <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> (para on<strong>de</strong> ia diariamente a pé), fazia disciplinas da graduação,<br />
<strong>do</strong>na-<strong>de</strong>-casa, professora. Muitas Cláudias para pouco tempo e pouco espaço.<br />
Estava muito feliz, sentia-me in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e motivada a enfrentar os preconceitos<br />
que ainda me cercam: racismo, <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social, machismo e homofobia. E esses<br />
enfrentamentos me proporcionaram muitas paixões e prazeres. Continuava caminhan<strong>do</strong>,<br />
percorren<strong>do</strong> lugares on<strong>de</strong> enfrentava o preconceito e com o pensamento bem adiante, no<br />
amargo gosto <strong>do</strong> <strong>de</strong>sconhecimento <strong>do</strong> futuro. Sem saber que caminhos me esperavam. À<br />
medida que o perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> iniciação científica chegava ao fim, aproximava-se <strong>de</strong> mim um<br />
gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero. Parecia que as dificulda<strong>de</strong>s <strong>do</strong> início da graduação retornavam e eu<br />
não sabia o que fazer. Ainda estava no sexto perío<strong>do</strong> e tinha pelo menos um ano <strong>de</strong><br />
graduação. A uma semana <strong>do</strong> início <strong>do</strong> sexto perío<strong>do</strong>, soube <strong>de</strong> um edital que estava<br />
selecionan<strong>do</strong> estudantes <strong>de</strong> origem popular para fazer parte <strong>de</strong> um programa <strong>de</strong> extensão,<br />
<strong>do</strong> qual eu nem sabia o nome.<br />
Fiz minha inscrição e fui selecionada. Era o “Conexões <strong>de</strong> Saberes”. Po<strong>de</strong>ria concluir<br />
a graduação com certa tranqüilida<strong>de</strong>, mas o “Conexões” não foi apenas um meio <strong>de</strong><br />
permanecer na universida<strong>de</strong>. Foi mais uma paixão. Espaço em que compartilhei minha vida<br />
com outras Cláudias, chamadas Daniele, Eliete, Lourdilene, Josenira, Lidiana, Lucilei<strong>de</strong>.<br />
Foi o momento em que reconheci em outros estudantes minha própria luta, minha história.<br />
Vários foram os aprendiza<strong>do</strong>s nesse grupo. Nesse momento da vida, <strong>de</strong>i as mãos a outros<br />
vinte e cinco estudantes que, como eu, já haviam percorri<strong>do</strong> caminhos tortuosos para chegar<br />
à universida<strong>de</strong>. E juntos, trilhamos uma nova caminhada, cujo <strong>de</strong>stino era a <strong>de</strong>mocratização<br />
da universida<strong>de</strong>. Uma caminhada cheia <strong>de</strong> conflitos, concessões, amores e vitórias, agora,<br />
somos to<strong>do</strong>s liga<strong>do</strong>s pelas dificulda<strong>de</strong>s que enfrentamos e pelas emoções que vivemos.<br />
Quan<strong>do</strong> estava cursan<strong>do</strong> o sétimo perío<strong>do</strong>, a <strong>UFMA</strong> <strong>de</strong>liberou em Conselho Superior<br />
a a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> um programa <strong>de</strong> Ações Afirmativas para estudantes negros, indígenas e oriun<strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong> escolas públicas. E o maior responsável por essa <strong>de</strong>liberação foi o NEAB, que trouxe o<br />
<strong>de</strong>bate às instâncias <strong>de</strong>liberativas da universida<strong>de</strong>. Finalmente, a universida<strong>de</strong> começa a<br />
perceber quais caminhos <strong>de</strong>ve tomar para a <strong>de</strong>mocratização <strong>do</strong> conhecimento. É chega<strong>do</strong> o<br />
momento em que a universida<strong>de</strong> se abrirá para novos caminhos e abarcará o discurso e os<br />
passos <strong>de</strong> outros estudantes negros, indígenas e <strong>de</strong> origem popular. Quan<strong>do</strong> penso em todas<br />
as transformações que ocorreram em minha vida, nas pessoas, paixões e oportunida<strong>de</strong>s que<br />
tive no curso <strong>de</strong> Ciências Sociais, lembro-me das palavras <strong>do</strong> amigo Carvalho e tenho a<br />
certeza <strong>de</strong> que ele estava certo.<br />
Finalmente, chego ao oitavo perío<strong>do</strong>. Vou sair <strong>do</strong> “Conexões”, o motivo me causa<br />
muita alegria. Aproxima-se o dia oito <strong>de</strong> março, importante para mim e para tantas outras<br />
Cláudias, Marias, Jardianes, Iracemas, Regimeires, Fernandas, Carlas. Neste dia apresentarei<br />
minha Monografia <strong>de</strong> Conclusão <strong>de</strong> Curso. É chegada a hora <strong>de</strong> alçar vôos mais altos. De<br />
começar novas caminhadas. Quan<strong>do</strong> fecho os olhos, penso em todas as angústias e<br />
sofrimentos da vida. Lembro-me <strong>do</strong>s sacrifícios e sinto o cansaço <strong>de</strong> quem já percorreu<br />
caminhos longínquos. Mas ainda não posso <strong>de</strong>scansar. Tenho que continuar a caminhada<br />
que foi iniciada por um menino <strong>de</strong> pés <strong>de</strong>scalços. Logo, serei mais uma outra Cláudia,<br />
Cientista Social, quem sabe <strong>de</strong>pois Antropóloga. Conhecerei novos caminhos e farei<br />
novas conexões. Tenho que prosseguir minha caminhada e viver o Segun<strong>do</strong> Capítulo<br />
<strong>de</strong> minha vida.<br />
28 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Como fosse um par, que nessa valsa triste se <strong>de</strong>senvolvesse ao<br />
som <strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>lins..<br />
E como não, e por que não dizer que o mun<strong>do</strong> respirava mais<br />
se ela apertava assim<br />
Seu colo, como se não fosse um tempo em que já fosse impróprio<br />
se dançar assim<br />
Ela teimou e enfrentou o mun<strong>do</strong> se ro<strong>do</strong>pian<strong>do</strong> ao som<br />
<strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>lins.<br />
Como fosse um lar seu corpo a valsa triste iluminava e a noite<br />
caminhava assim<br />
E como um par o vento e a madrugada iluminavam a fada <strong>do</strong><br />
meu botequim.<br />
Valsan<strong>do</strong> como valsa uma criança que entra na roda e a noite<br />
tá no fim,<br />
Ela valsan<strong>do</strong> só na madrugada, se julgan<strong>do</strong> amada ao som<br />
<strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>lins.<br />
“Ban<strong>do</strong>lins”- Oswal<strong>do</strong> Montenegro<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 29
30 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular<br />
Memorial<br />
Danielle Lima Costa *<br />
Nasci no mês <strong>de</strong> maio, exatamente no dia <strong>do</strong>ze. Acho que minha mãe ficou mais<br />
preocupada que alegre com minha vinda, era mãe solteira e trabalhava, nesta época, em casa<br />
<strong>de</strong> família. Sua mãe e irmãos moravam no interior <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, ela veio para a cida<strong>de</strong> ainda<br />
pequena com o intuito <strong>de</strong> estudar, morava na casa das freiras até ir trabalhar em casa <strong>de</strong><br />
família. O objetivo principal <strong>de</strong> sua vinda para a cida<strong>de</strong> foi adia<strong>do</strong> e ela só conseguiu<br />
terminar o segun<strong>do</strong> grau <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> sétimo filho, com quase trinta anos. E assim, foi que essa<br />
guerreira me ensinou a lutar e a ser muito otimista.<br />
Quan<strong>do</strong> eu estava com alguns meses <strong>de</strong> vida, minha mãe se casou. Então seu mari<strong>do</strong><br />
assumiu minha paternida<strong>de</strong>, uma vez que meu pai biológico não assumira essa<br />
responsabilida<strong>de</strong>. Assim, foi que ganhei um super pai, ele é a pessoa mais honesta e generosa<br />
que conheci. Ele vinha <strong>de</strong> <strong>do</strong>is outros casamentos e já tinha cinco filhos. Com minha mãe<br />
gerou mais sete, <strong>do</strong>s quais morreram <strong>do</strong>is. Deste mo<strong>do</strong>, hoje, totalizamos <strong>de</strong>z irmãos e to<strong>do</strong>s<br />
muito diferentes uns <strong>do</strong>s outros.<br />
Minha infância foi muito simples, sempre estu<strong>de</strong>i em escola pública. A fase da educação<br />
infantil foi toda em escolinha comunitária, numa comunida<strong>de</strong> próxima da minha. Eu, meus irmãos<br />
e os vizinhos caminhávamos em grupo cerca <strong>de</strong> cinco quilômetros por dia. Em nosso trajeto para<br />
a escola, era tu<strong>do</strong> muito diverti<strong>do</strong>, principalmente quan<strong>do</strong> chovia ou quan<strong>do</strong>, na volta da escola,<br />
alguém sentia <strong>do</strong>r <strong>de</strong> barriga. Neste perío<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong> se tornava diversão, até as dificulda<strong>de</strong>s <strong>do</strong> dia-adia.<br />
No geral fomos crianças felizes, mesmo com todas as dificulda<strong>de</strong>s, mesmo quan<strong>do</strong> tínhamos<br />
que carregar, na cabeça, água <strong>de</strong> longe para o gasto diário e ajudar os pais nas pedreiras, separan<strong>do</strong><br />
as pedras britas (utilizadas na construção civil) para ven<strong>de</strong>r, o que era e ainda é ativida<strong>de</strong> principal<br />
<strong>de</strong> muitos <strong>de</strong> meus vizinhos e <strong>de</strong> meu pai, quan<strong>do</strong> ficava <strong>de</strong>semprega<strong>do</strong>.<br />
As lembranças <strong>de</strong> minha infância são muito vivas em minha memória. Entre as mais marcantes,<br />
estão as recordações <strong>de</strong> minha avó, a qual chamávamos carinhosamente <strong>de</strong> Mamãe Ciuta, nos<br />
livran<strong>do</strong> das surras da minha mãe. Das brinca<strong>de</strong>iras com os vizinhos, uma <strong>de</strong>las era a guerra <strong>de</strong><br />
pedradas nos quintais <strong>de</strong> casa. Dessas brinca<strong>de</strong>iras sempre saía alguém com a cabeça quebrada.<br />
Uma das recordações mais tristes é <strong>de</strong> meu irmão, o “Chico Preto”, que foi para o garimpo em Serra<br />
Pelada e nunca mais voltou. Sabemos que está vivo, mas não temos notícias <strong>de</strong>le há muito tempo.<br />
Minha a<strong>do</strong>lescência foi uma transformação psicológica e social alucinante, da qual<br />
eu tive pavor. Engravi<strong>de</strong>i com quinze anos. Esta situação foi um fato que marcou minha<br />
existência profundamente e sobre a qual não quero comentar aqui. Deste episódio, nasceu<br />
* Graduanda em Filosofia na <strong>UFMA</strong>.
um garoto e uma mãe. Passavam mil coisas na minha cabeça, não sabia nada daquela minha<br />
nova tarefa, cuidar <strong>de</strong> um filho era um <strong>de</strong>safio. Todavia, minha mãe e minha família foram<br />
essenciais, pois assumiram essa jornada comigo. Não parei <strong>de</strong> estudar, estava na 8 a série.<br />
Minha mãe, incentiva<strong>do</strong>ra insistente, não <strong>de</strong>ixou que eu <strong>de</strong>sistisse <strong>de</strong> estudar, me apoian<strong>do</strong><br />
em tu<strong>do</strong>. Sempre fui boa aluna, mas quan<strong>do</strong> mu<strong>de</strong>i <strong>de</strong> escola para uma outra no centro da cida<strong>de</strong>,<br />
fiquei logo reprovada na primeira série <strong>do</strong> Ensino Médio, no “Liceu Maranhense”. Foi uma<br />
<strong>de</strong>cepção para minha mãe, pois ela pensava que eu faltava às aulas, mas na verda<strong>de</strong> não conseguia<br />
me adaptar àquela realida<strong>de</strong> tão distinta da minha, me sentia “um peixe fora d’água”. O maior<br />
público <strong>de</strong>sta escola, eram pessoas <strong>de</strong> classe média. Para estudar lá, era necessário ser aprova<strong>do</strong><br />
no seletivo da instituição. Quan<strong>do</strong> repeti a série, a escola formou uma turma só <strong>de</strong> reprova<strong>do</strong>s.<br />
Foi nesta turma turbulenta e “reclamona” que me encontrei, ganhei amigas das quais ainda<br />
lembro com carinho, e consegui concluir o Ensino Médio com entusiasmo.<br />
Ainda cursan<strong>do</strong> o Ensino Médio, comecei a participar ativamente da igreja católica,<br />
que minha mãe já freqüentava; logo, formamos um grupo <strong>de</strong> jovens. Eu era da<br />
coor<strong>de</strong>nação, juntamente com outras colegas, e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algum tempo, nos integramos<br />
à Pastoral da Juventu<strong>de</strong> (PJ) <strong>de</strong> nossa paróquia. Aqui, queri<strong>do</strong>s, passei por mais uma<br />
transformação radical. Fiz amigos que amo muito, são pessoas “pé no chão”, com os<br />
quais aprendi muito. Nós apren<strong>de</strong>mos juntos a “fazer a hora”, sem ficar esperan<strong>do</strong><br />
acontecer. Não tínhamos nenhum recurso financeiro, mas fazíamos encontros <strong>de</strong> jovens<br />
com mais <strong>de</strong> cem participantes, viajávamos para as romarias no interior <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,<br />
fazíamos cursos <strong>de</strong> formação, acampamentos <strong>de</strong> lazer e etc... era trabalho duro, necessitava<br />
<strong>de</strong> muita responsabilida<strong>de</strong>, se não os padres, os pais, e até os outros jovens perdiam a<br />
credibilida<strong>de</strong> em nós. Os melhores momentos, os mais diverti<strong>do</strong>s e também profun<strong>do</strong>s,<br />
que vivi, remontam ao perío<strong>do</strong> da PJ. Nesta fase, nutri um Eros que me incendiava e<br />
fazia com que eu fosse uma militante enraizada em princípios cristãos, da teologia da<br />
libertação. Namorar era um verbo que nesta época sabíamos conjugar bem; me apaixonei<br />
algumas vezes, mas namorei pouco e <strong>de</strong>scobri que a vida é muito mais <strong>do</strong> que as<br />
experiências <strong>do</strong> cotidiano, aprendi um significa<strong>do</strong> que transcen<strong>de</strong> as coisas finitas e as<br />
relações simbólicas.<br />
Foi na Pastoral da Juventu<strong>de</strong> que entendi o que significava a universida<strong>de</strong> pública,<br />
que a gente tinha que fazer o vestibular, que ele não era fácil, e que eu tinha poucas chances,<br />
mas que era necessário fazê-lo. Eu, a essa altura, já terminara o Ensino Médio e não tinha<br />
emprego, só os “bicos” que fazia <strong>de</strong> vez em quan<strong>do</strong>. Aqui, começou o terror, precisava<br />
trabalhar, mas eu queria fazer faculda<strong>de</strong> e não conseguia nada. Então, quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>is amigos<br />
meus, <strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> jovens, passaram no tal <strong>do</strong> vestibular, quan<strong>do</strong> ouvi o nome <strong>de</strong> Gerson e<br />
<strong>de</strong> Geane no rádio, Ah! parecia que era o meu. Acreditei na possibilida<strong>de</strong> da aprovação,<br />
<strong>de</strong>diquei-me <strong>de</strong> corpo e alma para conseguir uma vaga.<br />
Os empecilhos foram os primeiros a bater em minha porta, não conseguia estudar<br />
sozinha e não estava preparada para fazer a prova, não tinha com que pagar nem as passagens,<br />
imagine um cursinho. Então, comecei a popularizar que queria fazer o vestibular, mas que<br />
não tinha como realizar esse <strong>de</strong>sejo. Comecei a estudar sozinha, mas era muito difícil, e<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algum tempo, minha amiga Monika, da PJ, ficou saben<strong>do</strong> através <strong>de</strong> outros que,<br />
no convento das irmãs <strong>de</strong> São José <strong>de</strong> São Jacinto, que ficava num bairro <strong>de</strong> classe média,<br />
funcionava um cursinho comunitário; o PRENEC – Pré-vestibular para Negros e Carentes;<br />
então, eu fui verificar, ver como era aquilo, se eu po<strong>de</strong>ria participar.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 31
O cursinho funcionava no perío<strong>do</strong> noturno e para lá eu fui com minha amiga Monika.<br />
Quan<strong>do</strong> lá chegamos, não havia ca<strong>de</strong>ira para que nos sentássemos. Então, fiquei na<br />
expectativa <strong>de</strong> um precioso assento. A secretária <strong>do</strong> cursinho não gostou <strong>de</strong> mim, não<br />
gostava que eu ficasse lá, não <strong>de</strong>ixava eu assinar a freqüência e nem falava comigo. Então<br />
<strong>de</strong>i uma <strong>de</strong> esperta e comecei a chegar mais ce<strong>do</strong> pra arrumar uma ca<strong>de</strong>ira. Quan<strong>do</strong> alguém<br />
ficava em pé, to<strong>do</strong>s olhavam pra mim, eu fingia que não era comigo. Depois se acostumaram<br />
com minha presença. Ah, eles faziam isso comigo porque já havia passa<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
inscrições e não havia mais vagas, mas acabaram <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> que ficasse porque sempre<br />
havia <strong>de</strong>sistências.<br />
Seis meses <strong>de</strong>pois, fizera amigos como Jojó, Nilcilene e Nélio Brasil e já estávamos<br />
pleitean<strong>do</strong> a direção <strong>do</strong> cursinho. Conseguimos a vitória e iniciamos o trabalho duro<br />
<strong>de</strong> reanimar alunos e professores voluntários. O primeiro passo consistiu em formalizar,<br />
legalizar a instituição, campanha para atrair voluntários para dar aulas, para ajudarnos<br />
a formalizar pedi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> financiamento, engajamento nas lutas referentes às<br />
populações afro<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes. Assim, expandimos o nome <strong>do</strong> cursinho e ajudamos a<br />
formar o Conselho Municipal <strong>de</strong> Afro<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, junto com outras instituições <strong>do</strong><br />
movimento negro.<br />
A <strong>Universida<strong>de</strong></strong> tomou conhecimento <strong>de</strong> nossa existência, começamos a pedir isenção<br />
das taxas <strong>do</strong> concurso, não conseguíamos para to<strong>do</strong>s, então, saímos pedin<strong>do</strong> <strong>de</strong> porta em<br />
porta, para todas as pessoas que acreditávamos que pu<strong>de</strong>ssem ajudar, e <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong>, não<br />
ficávamos sem prestar o concurso. Depois <strong>de</strong> bater em várias portas, encaminhamos um<br />
projeto ao MEC para custear as <strong>de</strong>spesas <strong>do</strong> cursinho. Conseguimos financiamento por <strong>do</strong>is<br />
anos e aí pairou uma certa tranqüilida<strong>de</strong>.<br />
A aprovação veio no segun<strong>do</strong> vestibular. Fui aprovada no curso <strong>de</strong> Filosofia da<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> e no curso <strong>de</strong> História da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> Estadual. Foram <strong>do</strong>is anos <strong>de</strong><br />
tortura, comen<strong>do</strong> farofa <strong>de</strong> ovo na casa das colegas para estudar o dia to<strong>do</strong>, almoçar em casa<br />
era impossível, morava muito longe e as passagens sempre custavam caro. Uma das maiores<br />
dificulda<strong>de</strong>s que encontrara, foi garantir o dinheiro da passagem, quan<strong>do</strong> papai não tinha e<br />
eu não conseguia nenhum “bico”. O PRENEC me ajudava, mas logo chegou uma professora<br />
nova que me aju<strong>do</strong>u muito com o transporte, principalmente para que eu não faltasse às<br />
suas aulas. Ela conseguiu um estágio para mim para que eu pu<strong>de</strong>sse custear minhas <strong>de</strong>spesas.<br />
As coisas melhoraram a partir daí.<br />
“Caloura” foi a primeira palavra que ouvi no Campus e que guar<strong>do</strong> como um regalo<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muita labuta. A empolgação não durou muito, pois o estágio acabara e já não<br />
tinha com que custear as <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong> um curso superior. Neste perío<strong>do</strong>, as amiza<strong>de</strong>s me<br />
salvaram: as freiras com quem me relacionei na PJ me encaminhavam para to<strong>do</strong> tipo <strong>de</strong><br />
ativida<strong>de</strong>, para as quais eu ia sem nem mesmo perguntar o que era. Nesta jornada, conseguiram<br />
um curso <strong>de</strong> formação que tinha como eixo <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> o <strong>de</strong>senvolvimento sustentável em<br />
comunida<strong>de</strong>s quilombolas.<br />
Depois <strong>do</strong> curso, fui chamada para trabalhar durante um tempo. Estava no primeiro<br />
perío<strong>do</strong> da universida<strong>de</strong>, e a esta altura, já morava separada <strong>de</strong> minha mãe, em companhia<br />
<strong>de</strong> um amor que começou no PRENEC. Aquela experiência aproximou-me ainda mais <strong>de</strong><br />
uma realida<strong>de</strong> exclu<strong>de</strong>nte e muitas vezes <strong>de</strong>sumana. Todavia, entendi que minha missão<br />
apenas começara. Finda<strong>do</strong> este trabalho, voltei a ficar <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, agora <strong>do</strong> companheiro e<br />
<strong>de</strong> trabalhos esporádicos.<br />
32 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
O Conexão <strong>de</strong> Saberes foi uma porta que se abriu. O contato com alunos <strong>de</strong> outros<br />
cursos e até <strong>de</strong> outras universida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> país se intensificou e meu olhar começou a ir mais<br />
longe. A bolsa ajuda muito, principalmente com a aquisição <strong>de</strong> livros e outros materiais<br />
didáticos. A auto-estima, renovada neste espaço, me faz sonhar com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
cursar um Mestra<strong>do</strong>. Tenho uma forte sensação <strong>de</strong> que vou conseguir!<br />
Acredito firmemente que ainda conseguirei morar e trabalhar na comunida<strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />
cresci e não verei meu filho com a mesma “sorte” <strong>de</strong> muitos amigos da minha infância. Rezo<br />
e também trabalho muito nas ativida<strong>de</strong>s comunitárias para que o sonho sonha<strong>do</strong> ainda na<br />
PJ se torne realida<strong>de</strong>, que as pessoas não percam a esperança <strong>de</strong> virar esta página cruel da<br />
humanida<strong>de</strong>, e que se lancem a esse propósito. Que a espiritualida<strong>de</strong>, a la Gandhi e Francisco<br />
<strong>de</strong> Assis, sejam o fio condutor <strong>de</strong>sta jornada.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 33
O périplo <strong>de</strong> um per<strong>de</strong><strong>do</strong>r <strong>de</strong> tempo<br />
34 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular<br />
Eldimir Faustino da Silva Júnior – Dyl Pires *<br />
“A felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r é maior que a<br />
felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentir e <strong>de</strong> imaginar.”<br />
Jorge Luis Borges<br />
Chamo-me Eldimir Faustino da Silva Júnior (o ortônimo) e Dyl Pires (o heterônimo).<br />
Nasci no dia 1 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1970, em São Luís-MA. Portanto, um pouco <strong>de</strong>pois <strong>do</strong><br />
golpe militar e da tão festejada conquista da seleção brasileira <strong>de</strong> futebol, e um pouquinho<br />
antes da maior revolução teatral acontecida em nossa cida<strong>de</strong>: o laboratório <strong>de</strong> expressões<br />
artísticas-LABORARTE. Devo, nas linhas que comporei mais adiante, traçar uma espécie<br />
<strong>de</strong> mosaico <strong>de</strong>sta minha trajetória existencial, levan<strong>do</strong> em consi<strong>de</strong>ração o ponto em que<br />
a vida escolar toca a minha caminhada. Assim, começarei a recordar um misto <strong>de</strong> realida<strong>de</strong><br />
e ficção a partir <strong>do</strong> momento em que soube que havia passa<strong>do</strong> no vestibular. Digo realida<strong>de</strong><br />
e ficção, porque assim como o poeta Carpinejar: “avanço na ida<strong>de</strong> e não sei discernir o<br />
que foi vivi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que foi conta<strong>do</strong>. Tenho dúvidas se minha infância é realmente o que<br />
vivi ou o que sonhei nela”.<br />
Creio que, uma semana <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong>, me veio uma espécie <strong>de</strong> insight que dava<br />
conta <strong>do</strong> <strong>de</strong>senho cíclico da minha vida, e <strong>de</strong> quanto em quanto tempo as gran<strong>de</strong>s<br />
transformações aconteciam nela. Na hora me soou como uma epifania, revelada pelo fato <strong>de</strong><br />
ter si<strong>do</strong> aprova<strong>do</strong> para o Curso <strong>de</strong> Teatro da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>. Comecei a<br />
refletir (aparentemente sem nenhuma espécie <strong>de</strong> superstição) que o número sete (isto mesmo,<br />
o número sete!) era por <strong>de</strong>mais presente no meu ainda parco existir. Parco, mas nem por isso<br />
menos intenso. Repentinamente, comecei a explicar tu<strong>do</strong> através <strong>de</strong>ste número significativo<br />
para a dimensão mística que ocupa, ou não, o imaginário <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s.<br />
Bom, a partir daí, voltei a 1970, e logo <strong>de</strong> cara fui constatan<strong>do</strong> que o tal sete estava no<br />
meu ano <strong>de</strong> nascimento. Era o começo. O mun<strong>do</strong> das letras e das imagens iniciava em 1974,<br />
no que chamávamos <strong>de</strong> primeiro perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> jardim (Ed. Infantil). Foi lá na escola Dom<br />
Francisco, que existe até hoje na Praça da Alegria. Permaneci até 1976, e <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> ficou na<br />
minha memória a preocupação <strong>do</strong>s professores para que não ultrapassássemos os limites <strong>do</strong><br />
jardim; coisa que freqüentemente ocorria com a <strong>de</strong>vida punição: ficar <strong>de</strong> castigo no quartinho<br />
escuro da escola.<br />
* Graduan<strong>do</strong> em Teatro na <strong>UFMA</strong>.
Em 1977, sete anos <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> meu nascimento, e bem <strong>de</strong>pois da fase <strong>de</strong> familiarização<br />
com outro espaço, que não o meu lar, ingresso na primeira série <strong>do</strong> primário (Ensino<br />
Fundamental). Era a época das congas e das kichutes. A escola se chamava Sotero <strong>do</strong>s Reis,<br />
bem ali na Rua São Pantaleão. À época, creio que o colégio era o último a inspirar<br />
respeitabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> ensino público. Aprendi muitas coisas. Algumas relacionadas<br />
diretamente com os estu<strong>do</strong>s, outras, com as travessuras daquela faixa <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> e com o<br />
<strong>de</strong>sejo da carne que começava a formar suas primeiras manifestações pontiagudas em mim.<br />
Recor<strong>do</strong>-me <strong>do</strong>s nomes <strong>de</strong> alguns professores: O<strong>de</strong>th, Nócia, Terezinha, Benedita (minha<br />
primeira referência <strong>de</strong> professor no estilo linha-dura) e também <strong>do</strong> porteiro que se chamava<br />
Batista. Este percurso que vai até 1980, me trouxe a igreja, on<strong>de</strong> fui sacristão por uns <strong>do</strong>is<br />
anos, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ser padre, o primeiro discurso como ora<strong>do</strong>r da turma e uma pequeníssima<br />
encenação sobre o Bumba-meu-Boi (a gran<strong>de</strong> imagem mítica da minha infância), em que eu<br />
fazia um pequeno papel, não me recor<strong>do</strong> bem se <strong>de</strong> um lobo, ou <strong>de</strong> um cão.<br />
De 1981 a 1984 (perío<strong>do</strong> ginasial), estu<strong>de</strong>i (por intermédio <strong>de</strong> uma bolsa integral) no<br />
Colégio Henrique <strong>de</strong> La Rocque, na Rua <strong>do</strong> Passeio. O máximo <strong>de</strong> envolvimento artístico que<br />
se cometia por ali era jogar bola ou participar da banda marcial da escola. Entre meus professores,<br />
lembro-me <strong>de</strong> Elisio (o carrasco da Matemática), Dalva (a <strong>do</strong>ce estrela <strong>de</strong> Português) e Heloisa,<br />
<strong>de</strong> História (o fetiche <strong>de</strong> alguns colegas, inclusive meu). Lembro-me também que a escola<br />
possuía a disciplina Educação Artística, que era ministrada pelo professor que havia me<br />
consegui<strong>do</strong> a bolsa (e meu padrinho) Jorge Itacy, na época já famoso babalorixá “Jorge da Fé<br />
em Deus”. Não me lembro <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> da disciplina. Mas sei que nem ela, nem a banda<br />
marcial e nem a encenação me marcariam a alma naquele instante.<br />
Em 1984, sete anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter entra<strong>do</strong> para o Sotero <strong>do</strong>s Reis, <strong>de</strong>scobri o karatê, o<br />
atletismo, e sobretu<strong>do</strong>, o futebol. O gran<strong>de</strong> acontecimento para mim daquela época foi ter<br />
entra<strong>do</strong> para a turma <strong>do</strong>s meninos que eram mascotes <strong>do</strong> Sampaio Corrêa Futebol Clube.<br />
Guar<strong>do</strong> até hoje duas fotos <strong>de</strong> jornais, já bastante envelhecidas, revela<strong>do</strong>ras daquele momento.<br />
De 1985 a 1989, estu<strong>de</strong>i na escola Dr João Bacelar Portela (antigo segun<strong>do</strong> grau), no<br />
bairro Ivar Saldanha. Três professores especialmente me vêem à mente: a professora <strong>de</strong><br />
Português Jaciara, cuja casa freqüentava com alguns colegas, o professor <strong>de</strong> Física Augusto<br />
(da estirpe <strong>do</strong>s linha-dura) e o professor Campelo, que acabara me reprovan<strong>do</strong> por causa <strong>de</strong><br />
sérios <strong>de</strong>sentendimentos na sala <strong>de</strong> aula (<strong>de</strong> um la<strong>do</strong> ele me alegava negligência para com<br />
a sua matéria, <strong>do</strong> outro eu me <strong>de</strong>fendia dizen<strong>do</strong> que ele não sabia tornar a matéria sedutora<br />
para mim). No Bacelar Portela, fiz Eletrotécnica. Não sei bem por que. Um ano <strong>de</strong>pois<br />
percebi que a alta voltagem que me interessaria seria a <strong>do</strong> álcool e a da boêmia. Portanto, eu<br />
já cultuava sem saber uma particular necessida<strong>de</strong> báquica.<br />
Em 1990 foi um ano vazio e <strong>de</strong> intransponíveis fantasmas... em 1991, sete anos após<br />
ter me <strong>de</strong>slumbra<strong>do</strong> com a história <strong>do</strong> futebol, <strong>de</strong>scobri <strong>de</strong>finitivamente o caminho das<br />
leituras, <strong>de</strong> um conhecimento outro que só perpetuariam as dúvidas que já possuía acerca<br />
da natureza humana e <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> isso, ou da falta <strong>de</strong>. No perío<strong>do</strong> que vai <strong>de</strong> 1991 a<br />
1998, eu me <strong>de</strong>parei com amigos músicos, artistas plásticos, cantores e sobretu<strong>do</strong> poetas e<br />
atores.<br />
Primeiramente foi a literatura que me <strong>de</strong>sbravou, mostran<strong>do</strong>-me, juntamente com os<br />
amigos, algumas leituras e todas as experiências mundanas e estéticas daquele instante, o<br />
caminho que construiria o poeta. Isso por volta <strong>de</strong> 1991. Lembro-me <strong>de</strong> que, em 1992,<br />
conheci duas pessoas super-importantes para a minha vida. A mineira Tereza, motoqueira e<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 35
<strong>do</strong>na <strong>do</strong> posto <strong>de</strong> gasolina ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Clube Lítero Português e a maranhense, compositora<br />
e cantora, Célia Leite. Ambas, cada uma a seu mo<strong>do</strong>, me influenciaram sem nem perceberem.<br />
A primeira, com seu jeito fortemente espontâneo e com uma vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver a vida <strong>de</strong><br />
forma sempre apaixonadamente perigosa; a segunda, por ter me trazi<strong>do</strong> o diálogo possível<br />
entre a timi<strong>de</strong>z que em mim prepon<strong>de</strong>rava e a loucura que se ocultava por trás <strong>de</strong>la, pronta<br />
para dar o salto no instante certo. Célia foi mais além. Um dia, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter li<strong>do</strong> alguns<br />
poeminhas que eu havia escrito, confundiu a minha assinatura ao final <strong>do</strong>s textos e cismou<br />
que ali estava posto o nome Dyl (não necessariamente com esta grafia). A partir daquele<br />
momento, comecei a me chamar Dyl e acrescentei às três letrinhas o sobrenome da família,<br />
Pires, herança <strong>do</strong> meu avô materno, Raimun<strong>do</strong> Nonato Lisboa Pires. Abro um parênteses<br />
aqui para registrar que fui educa<strong>do</strong> por três mulheres: Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Santos Pires (minha<br />
mãe), Eldilene Santos (minha irmã) e Terezinha <strong>de</strong> Jesus Rodrigues (outra mãe). As três me<br />
abriram as portas <strong>do</strong> universo feminino. O único <strong>de</strong> fato que importa. Dyl Pires surgiu então<br />
para construir, juntamente com alguns amigos, Jorgeane, Catarina, Gilberto, Gissele, Jales,<br />
Natan, Bioque, Ailton, Hagamenon e Ricar<strong>do</strong>, um percurso intelectual e estético que o<br />
ajudaria a amadurecer o olhar para as coisas da vida e para as coisas <strong>do</strong> seu interior<br />
<strong>de</strong>sassossega<strong>do</strong> e febril. Passa<strong>do</strong>s quinze anos, penso que Eldimir permaneceu um menino<br />
<strong>de</strong> fé, como inversamente está no poema <strong>do</strong> Leminsky, que poucas vezes se manifesta frente<br />
a um Dyl Pires que tem o <strong>de</strong>sencanto como um pensamento concluso em sua vida, acredita<br />
no caráter ficcional da existência e se percebe fantasmal.<br />
Eldimir, apaixona<strong>do</strong> por futebol e pelas brinca<strong>de</strong>iras da infância que não o libertavam<br />
nunca. Dyl, apaixona<strong>do</strong> por literatura, teatro e pelos “subterrâneos” <strong>do</strong> existir. Um tem<br />
compaixão, o outro é irônico e niilista. Um se irmana misticamente com o mun<strong>do</strong>, o outro<br />
tem em Joyce, Beckett, Hilst e Borges a medida exata para profanar e <strong>de</strong>molir o que não<br />
<strong>de</strong>veria nem ter existi<strong>do</strong>: a vida. Eldimir acha que a vida é um estágio <strong>de</strong> beleza em permanente<br />
espanto, por isso vale a pena ser vivida; Dyl acha, assim como o sau<strong>do</strong>so ator Gianfrancesco<br />
Guarnieri, que “só um homem que não sabe das coisas po<strong>de</strong> achar graça na vida”... e por aí<br />
vão as diferenças <strong>de</strong>sta solidão <strong>do</strong>lorosamente singular.<br />
Em 1993, conheci o ator Uimar Junior que me levaria a fazer duas performances, além <strong>do</strong><br />
serviço <strong>de</strong> contra-regra no espetáculo “Joana”, monólogo adapta<strong>do</strong> <strong>do</strong> texto Gota D’ água, <strong>de</strong><br />
Chico Buarque e Paulo Pontes. A encenação <strong>do</strong> lobo ou <strong>do</strong> cão começava a uivar fortemente<br />
em mim. Dois anos antes, o ator Jonatas Tavares (que fez o Creonte, no “Édipo Rei” da<br />
Coteatro) vira para mim numa passagem <strong>de</strong> ano e diz: “Você <strong>de</strong>veria fazer teatro. Tu tens cara<br />
<strong>de</strong> ator”. Em 1995, a atriz paulista Lucia Gato põe <strong>de</strong>z reais nas minhas mãos e me impele a ir<br />
à Cooperativa Oficina <strong>de</strong> Teatro-COTEATRO (coor<strong>de</strong>nada por Tácito Borralho) fazer a minha<br />
inscrição para o Curso <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Ator. Tu<strong>do</strong> isso porque, em 1993, eu e Gilberto Goiabeira<br />
dissemos que iríamos fazer nossa inscrição no Curso. Ele foi. Eu, somente sob pressão, <strong>do</strong>is<br />
anos <strong>de</strong>pois. De 1995 até os dias <strong>de</strong> hoje, eu fiz as peças “A Bela e a Fera”, “Morte e Vida<br />
Severina”, “Paixão-Segun<strong>do</strong> Nós”, “Viva El Rei D. Sebastião”, “Auto <strong>do</strong> Boi”, “Auto <strong>de</strong><br />
Natal”, “Torres <strong>de</strong> Silêncio”; performances, recitais, aju<strong>de</strong>i a fundar três grupos: um <strong>de</strong> poesia,<br />
outro <strong>de</strong> performance, e outro <strong>de</strong> teatro, e fiz <strong>do</strong>is ví<strong>de</strong>os: “Cartas”, para o cineasta Fre<strong>de</strong>rico<br />
Macha<strong>do</strong> e “Guarnicê 2000 e Outros Souvenires”, para o cineasta Carlos Reinchembach .<br />
Em 1994, participei <strong>de</strong> duas oficinas <strong>de</strong> poesia, cujo objetivo maior era instigar o imaginário<br />
para a criação poética. O poeta, performer e jornalista Paulo Melo Souza foi o coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />
evento. Mais à frente nos tornaríamos amigos e começaríamos a cumprir juntos um papel estético<br />
36 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
on<strong>de</strong> a poesia e a arte da performance comporiam o vivo diálogo entre espíritos que se inquietam<br />
rumo à fabulação <strong>do</strong> real. Paulo, juntamente com o também poeta, amigo e crítico <strong>de</strong> arte, Couto<br />
Correa Filho, contribuíram bastante para o início da minha formação literária. Ambos me abriram<br />
as portas <strong>de</strong> suas bibliotecas, num ato explícito <strong>de</strong> “bonda<strong>de</strong> envenenada”. À la Genet, “eles me<br />
contagiaram com o seu mal para po<strong>de</strong>rem se libertar <strong>de</strong>le.” Couto Correa Filho, gran<strong>de</strong> anfitrião,<br />
fez <strong>de</strong> sua casa a “Movelaria Guanabara” 1 da minha geração, promoven<strong>do</strong> memoráveis encontros<br />
rega<strong>do</strong>s à literatura, artes, vinhos e boa comida.<br />
Em 1996, tive meus primeiros poemas seleciona<strong>do</strong>s para compor a Antologia Poética<br />
Safra 90, obra editada pela Secretaria <strong>de</strong> Cultura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> que tinha por finalida<strong>de</strong><br />
apresentar a minha geração. Em 1998, sete anos após a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong>finitiva das leituras,<br />
recebo duas premiações na área da literatura: o primeiro lugar no XXIV Concurso Literário<br />
e Artístico Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Luís e o primeiro lugar no XII Festival Maranhense <strong>de</strong> Poesia.<br />
Ambos realiza<strong>do</strong>s, respectivamente, pela Fundação <strong>de</strong> Cultura <strong>do</strong> Município-FUNC e pela<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>-<strong>UFMA</strong>. A premiação da FUNC possibilitou, em 1999, o<br />
lançamento <strong>do</strong> meu primeiro livro <strong>de</strong> poemas: O Círculo das Pálpebras. Ainda em 1998,<br />
começo a me inquietar e a me angustiar profundamente com o processo teatral maranhense<br />
e <strong>de</strong>ci<strong>do</strong> começar a escrever nos principais jornais da cida<strong>de</strong> comentários críticos sobre<br />
nossas produções. O único crítico teatral da cida<strong>de</strong>, Ubiratan Teixeira, abraça a idéia e me<br />
felicita num artigo <strong>de</strong> fim <strong>de</strong> ano, no seu espaço <strong>de</strong> crônicas no jornal O Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>.<br />
No ano <strong>de</strong> 1999, além <strong>do</strong> lançamento <strong>do</strong> livro, passo a integrar o grupo <strong>de</strong> comentaristas<br />
<strong>do</strong> Programa Cultural, apresenta<strong>do</strong> pela jornalista Maria José Costa, na rádio Mirante-AM.<br />
Na virada <strong>de</strong> 2000 para 2001, fui indica<strong>do</strong> pelo artista plástico e amigo Binho Dushinka<br />
para fazer uma seleção para monitor da Mostra <strong>do</strong> Re<strong>de</strong>scobrimento que comemoraria os<br />
500 anos <strong>do</strong> Brasil. Participei <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o processo e ao final consegui ficar. Os cinco meses<br />
que permaneci por lá (a exposição aconteceu no Convento das Mercês) foram esteticamente<br />
os mais viscerais da minha existência. Sobretu<strong>do</strong> no que tange aos estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong> módulo <strong>do</strong><br />
inconsciente e da arqueologia.<br />
Em 2002, fui outra vez premia<strong>do</strong> no Concurso Literário e Artístico Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São<br />
Luís. Desta feita, agracia<strong>do</strong> com o segun<strong>do</strong> lugar pela obra O Círculo da Vertigem. De 2002<br />
para 2003, ministrei oficinas <strong>de</strong> produção textual voltadas para a terceira ida<strong>de</strong> e trabalhei<br />
como monitor nas exposições A Herança Cultural da China e Mostra Fotográfica <strong>de</strong><br />
Artefatos Indígenas, ambas, realizadas pela galeria <strong>de</strong> arte <strong>do</strong> SESC.<br />
Em 2004, tive outros poemas seleciona<strong>do</strong>s para participar da seção “Dom Casmurro”,<br />
<strong>do</strong> jornal literário O Rascunho, <strong>de</strong> Curitiba. Ainda neste ano, consegui ser seleciona<strong>do</strong> para<br />
fazer uma oficina <strong>de</strong> interpretação para ator com o grupo “Lume”, <strong>de</strong> Campinas, em São<br />
Paulo. Fui, fiz e me perturbei o suficiente para perceber que preciso ancorar naquelas plagas.<br />
São Paulo está para além da esfera <strong>de</strong> bairro ou cida<strong>de</strong> que caracteriza, por exemplo, o Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro, que conheci recentemente. São Paulo é o mun<strong>do</strong>. Para este ilha<strong>do</strong> andarilho que<br />
já residiu nos seguintes bairros <strong>de</strong> São Luís: Santo Antonio, Macaúba, Belira, Liberda<strong>de</strong>,<br />
Bairro <strong>de</strong> Fátima e Cohatrac e atualmente resi<strong>de</strong> no Tambaú, município <strong>de</strong> Paço <strong>do</strong> Lumiar,<br />
ir para Sampa redimensionaria a relação <strong>de</strong> conflito com esta limitada geografia. A busca<br />
por uma geografia <strong>de</strong> “exílio” potencializaria minha geografia imaginária.<br />
1 Reduto <strong>de</strong> intelectuais e artistas maranhenses no final da década <strong>de</strong> 40<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 37
Agora em 2005, após ter i<strong>do</strong> a Porto Alegre participar <strong>do</strong> V Fórum Social Mundial,<br />
experiência ótima por ter propicia<strong>do</strong> um saudável embate entre o <strong>de</strong>sencanta<strong>do</strong> que em mim<br />
habita e o “torce<strong>do</strong>r <strong>de</strong> ocasião”, ingresso no Curso <strong>de</strong> Teatro da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>Maranhão</strong>. Estar na universida<strong>de</strong> nunca fez parte <strong>do</strong> meu projeto <strong>de</strong> vida. Na verda<strong>de</strong>, nunca<br />
tive um projeto <strong>de</strong> vida. Exatamente por isso, tive mais implicações que o lugar-comum <strong>do</strong>s<br />
que simplesmente passaram. Demorei muito tempo para estar na universida<strong>de</strong>. Nunca senti em<br />
mim uma vocação acadêmica claman<strong>do</strong> entre meus neurônios. Aliás, nunca senti em mim uma<br />
vocação para especialista. E não po<strong>de</strong>ria ser diferente já que passei os últimos treze anos<br />
sen<strong>do</strong> um autodidata. Nunca precisei <strong>de</strong> uma instituição escolar me impon<strong>do</strong> a consciência<br />
para a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estudar. Sempre estu<strong>de</strong>i porque era e é uma maneira <strong>de</strong> falsear algum<br />
entendimento sobre a vida. Hoje me <strong>de</strong>sencanto com facilida<strong>de</strong> até das minhas principais<br />
paixões: a literatura, o teatro, o amor pela carne e o vinho (Dão, <strong>de</strong> preferência!). De alguma<br />
forma estranha e inusitada, tal condição me trouxe para cá, para <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> Curso. Vim para a<br />
discussão, a boa discussão. Vim para potencializar o “equilíbrio precário” em to<strong>do</strong>s os seus<br />
senti<strong>do</strong>s, como bem o faz o Abujamra no seu “Provocações”. Acredito que só exista diálogo<br />
vivo entre antagônicos, fora disso, o que há são apáticas concordâncias entre os que mormente<br />
contemplam e se contentam com tal condição. Evoé, Baco!!!<br />
38 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Elieser Barros Ma<strong>de</strong>ira *<br />
“Se não houver frutos, valeu a beleza<br />
das flores<br />
Se não houver flores, valeu a sombra<br />
das folhas<br />
Se não houver folhas, valeu a intensão<br />
da semente.”<br />
Henfil<br />
Nasci em São José <strong>de</strong> Ribamar, cida<strong>de</strong> balneária, situada a 32 km <strong>de</strong> São Luís, na<br />
parte oriental da Ilha; o município é também um importante centro <strong>de</strong> peregrinação e<br />
romarias. Para meu irmão mais velho, essa localida<strong>de</strong> possuía (ou possui) analogia com<br />
a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “O Bem Ama<strong>do</strong>”- novela exibida pela TV Globo nos anos 70 <strong>do</strong> século XX.<br />
Tal comparação, segun<strong>do</strong> ele, se <strong>de</strong>ve à extrema pobreza que existia nas duas cida<strong>de</strong>s:<br />
a real e a fictícia. Meus pais nasceram em São João Batista, mas moraram em Monção,<br />
município da Baixada Maranhense, e chegaram à capital maranhense na primeira meta<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>s anos 50; posteriormente, mudaram-se para São José <strong>de</strong> Ribamar, no final da década<br />
citada. Meu pai, que era fabricante <strong>de</strong> caixões, resolveu se estabelecer em “Ribamar”<br />
por achar que, na região, havia uma carência <strong>de</strong> profissionais <strong>de</strong>ste oficio. Minha mãe,<br />
que possui um temperamento forte, o seguiu, mesmo a contragosto, reflexo <strong>de</strong> uma<br />
educação provinciana.<br />
Sou penúltimo filho <strong>de</strong> Dona Isabel com Salustiano, numa família com <strong>do</strong>ze filhos.<br />
Apenas <strong>do</strong>is não sobreviveram: a quarta e a última filha que morreu com apenas quatro<br />
meses, tornan<strong>do</strong>-me o caçula da família. Essa linhagem é composta por quatro mulheres e<br />
seis homens. Embora meus pais não possuíssem educação escolar suficiente, eles sabiam o<br />
quanto isso era importante para os filhos. Motivo pelo qual por nenhum momento<br />
aban<strong>do</strong>namos a escola. Destaco aqui a importância da minha mãe, não que tenha havi<strong>do</strong><br />
omissão <strong>do</strong> meu pai para o <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>ssa função. Dona Belinha alfabetizou to<strong>do</strong>s os<br />
filhos, tivemos a prerrogativa <strong>de</strong> iniciar os estu<strong>do</strong>s saben<strong>do</strong> ler e escrever. Seu méto<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
ensino era bastante rigoroso, porém eficaz. Do la<strong>do</strong> paterno, apren<strong>de</strong>mos a não supervalorizar<br />
coisas frívolas (festas) e a respeitar a vida - não queria animais silvestres <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa. Ele,<br />
assim como minha mãe, nos corrigia quan<strong>do</strong> errávamos.<br />
* Graduan<strong>do</strong> em História Licenciatura na <strong>UFMA</strong>.<br />
Participações especiais<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 39
Minha fase infanto-juvenil foi marcada por momentos bons e ruins. An<strong>de</strong>i <strong>de</strong> bicicleta,<br />
na<strong>de</strong>i nos igarapés e joguei bola. Porém, jogar bola na rua foi complica<strong>do</strong>, pois um dia me<br />
levaram à <strong>de</strong>legacia por causa disso. A culpa foi <strong>de</strong> um vizinho recém-chega<strong>do</strong> à rua que era<br />
evangélico e que não gostava <strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong> na sua porta. O meu argumento <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa foi<br />
que não havia atenta<strong>do</strong> ao pu<strong>do</strong>r durante essas “peladas” vespertinas.<br />
Nossa família, passou por muitas privações, principalmente em São José <strong>de</strong> Ribamar,<br />
pois lá eram raras as oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> emprego. Logo, minha mãe, sempre perspicaz,<br />
incentivou meu pai a se mudar para São Luís. Filhos crescen<strong>do</strong> <strong>de</strong>semprega<strong>do</strong>s não é bom.<br />
Mudamos então para a capital maranhense, eu estava com cinco anos. Nós nos estabelecemos,<br />
primeiramente, no Sá-Viana - bairro popular próximo à <strong>UFMA</strong>-<strong>de</strong>pois, nos mudamos para a<br />
Vila Embratel, bairro on<strong>de</strong> moro até hoje. Essa mudança nos trouxe uma gran<strong>de</strong> expectativa<br />
<strong>de</strong> vida: meus irmãos trabalhan<strong>do</strong>, aumento da renda familiar etc, porém, a tragédia abateu<br />
nossa família: meu pai faleceu. Eu estava com quatorze anos quan<strong>do</strong> isso aconteceu. Este<br />
fato marcou, para mim, a conscientização <strong>do</strong> rumo que minha vida iria ter. Direcionei meus<br />
objetivos para a educação, com a intenção <strong>de</strong> concluir o segun<strong>do</strong> grau (Ensino Médio). A<br />
família tornou-se matriarcal, não que antes houvesse patriarcalismo inflexível, pois essa<br />
linhagem não vivia sob nenhuma “ditadura paterna”.<br />
Não parei <strong>de</strong> estudar, contu<strong>do</strong>, não <strong>de</strong>sejava um curso superior, e sim um emprego. Até<br />
certo ponto, essa idéia era interessante porque eu não tinha maturida<strong>de</strong> para escolher a área.<br />
Concluí o Ensino Fundamental na Escola “Francisco <strong>de</strong> Assis Ximenes Aragão”, localizada<br />
na Vila Embratel. Meu Ensino Fundamental foi precário, porque as aulas eram ministradas<br />
pela televisão; logo, se alguém tivesse uma dúvida em qualquer disciplina, nem sempre era<br />
auxilia<strong>do</strong> pela professora. Nesse perío<strong>do</strong>, fui reprova<strong>do</strong> na 3ª série. No Ensino Médio estu<strong>de</strong>i<br />
no “Liceu Maranhense”, escola pública <strong>de</strong> maior prestígio em São Luís. Essa afirmativa se<br />
<strong>de</strong>ve à gran<strong>de</strong> presença <strong>de</strong> estudantes universitários proce<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>ssa escola. Aqui, também<br />
repeti o ano (1º série), porém, a cobrança foi maior por causa <strong>do</strong>s gastos com passagens e<br />
livros. Estudava no perío<strong>do</strong> da tar<strong>de</strong>; anos antes, um <strong>do</strong>s meus irmãos estu<strong>do</strong>u lá à noite e<br />
comentou que existia uma diferença <strong>de</strong> ensino <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> diurno para o noturno. Ele quase<br />
não tinha aula <strong>de</strong> Física e Química. No ano seguinte, a minha reprovação, fui o <strong>de</strong>staque da<br />
sala por ter apresenta<strong>do</strong> as melhores notas.<br />
Ao concluir o Ensino Médio, passei por uma “fase negra”, imaginan<strong>do</strong> que, com esse<br />
diploma <strong>de</strong> conclusão, conseguiria um emprego facilmente, seria in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, e <strong>de</strong>pois<br />
pagaria um cursinho preparatório para entrar na <strong>Universida<strong>de</strong></strong>. Aos 16 anos, tive consciência<br />
da minha negritu<strong>de</strong> da pior forma possível e a polícia tem participação especial nesta<br />
conscientização. Era um <strong>do</strong>mingo à tar<strong>de</strong> e estávamos <strong>de</strong>ntro da área da <strong>Universida<strong>de</strong></strong><br />
<strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> quan<strong>do</strong> fomos aborda<strong>do</strong>s por três policiais militares que faziam a segurança da<br />
Instituição. Éramos cinco pessoas, das quais <strong>do</strong>is eram negros, eu e um amigo; estávamos<br />
comen<strong>do</strong> mangas. Quan<strong>do</strong> eles pararam o carro, o outro rapaz negro, <strong>de</strong>sespera<strong>do</strong>, a<strong>de</strong>ntrou o<br />
matagal. Eu, ciente que comer mangas não constitui uma infração grave, esperei uma advertência<br />
verbal. O que não aconteceu. Fui surra<strong>do</strong> e xinga<strong>do</strong>, enquanto os outros eram adverti<strong>do</strong>s.<br />
Infelizmente, algo semelhante aconteceu no início <strong>de</strong> 2006, novamente <strong>de</strong>ntro da área da <strong>UFMA</strong>.<br />
Os seguranças da empresa particular, presta<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> serviço a essa <strong>Universida<strong>de</strong></strong>, me abordaram<br />
agressivamente e pediram minha i<strong>de</strong>ntificação porque achavam que não tinha (ou tenho) o<br />
estereótipo <strong>de</strong> um universitário (negro, cabelu<strong>do</strong> e trajan<strong>do</strong> bermudas). Esses fatos <strong>de</strong>monstram<br />
que tanto a polícia, quanto a segurança privada, são compostas por pessoas <strong>de</strong>spreparadas.<br />
40 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
O acesso à universida<strong>de</strong> foi longo e árduo, pois prestei meu primeiro vestibular anos<br />
<strong>de</strong>pois. Foi horrível, não estudava em cursinho, nem trabalhava, fiz porque havia passa<strong>do</strong> na<br />
isenção da taxa. O curso escolhi<strong>do</strong> foi Física Licenciatura, na <strong>UFMA</strong>. Levei “bomba”. Em<br />
1999, comecei a trabalhar como ajudante <strong>de</strong> carpintaria com o meu terceiro irmão, porém,<br />
fiquei isento na UEMA (<strong>Universida<strong>de</strong></strong> Estadual <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>) e o curso escolhi<strong>do</strong> foi o<br />
mesmo <strong>do</strong> primeiro vestibular, bem como o resulta<strong>do</strong>. Percebi o quanto era (ou é) difícil<br />
trabalhar e estudar ao mesmo tempo. No ano seguinte, isento novamente, me escrevi no curso<br />
<strong>de</strong> Desenho Industrial. Desejava ainda a área técnica, mas percebi que os meus conhecimentos<br />
sobre as Ciências Exatas eram ínfimos. O resulta<strong>do</strong> não foi diferente <strong>do</strong>s anteriores.<br />
Em 2001, como estava <strong>de</strong>semprega<strong>do</strong>, passei a lecionar aulas particulares e, caso não<br />
ficasse isento, po<strong>de</strong>ria pagar a inscrição. Todavia, ganhei a isenção novamente, e o curso<br />
escolhi<strong>do</strong> pertencia à área <strong>de</strong> humanas: Letras, estimula<strong>do</strong> por uma amiga que lecionava<br />
numa escola <strong>do</strong> Ensino Médio, aqui no bairro. A concorrência me eliminou. No ano seguinte,<br />
foi muito bom, porque fui indica<strong>do</strong> para ensinar Matemática <strong>do</strong> Ensino Fundamental no<br />
programa governamental “Capacitação Solidária”. Em março <strong>do</strong> mesmo ano, iniciaram-se<br />
as ativida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> CVARTE (Centro <strong>de</strong> Vivência e Arte), ONG da qual sou sócio-funda<strong>do</strong>r. O<br />
objetivo <strong>de</strong>ssa organização, é a realização <strong>de</strong> trabalhos volta<strong>do</strong>s para minha comunida<strong>de</strong>.<br />
Nesse ano, não prestei nenhum vestibular.<br />
O ano <strong>de</strong> 2003, apesar <strong>do</strong> <strong>de</strong>semprego, foi marcante, pois comecei a ministrar aulas a<br />
duas garotas <strong>do</strong> Bairro da Liberda<strong>de</strong> que estudavam no Colégio “Santa Teresa” (consi<strong>de</strong>rada<br />
uma das melhores escolas privadas <strong>de</strong> São Luís). Além disso, por estar participan<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
“Vestibular da Cidadania”, uma ação conjunta entre a UEMA e a <strong>UFMA</strong>, ganhei a isenção<br />
nas duas universida<strong>de</strong>s. Dessa vez, faltou muito pouco para passar, mas fiquei estimula<strong>do</strong><br />
para o ano seguinte. Os cursos escolhi<strong>do</strong>s foram da área <strong>de</strong> humanas: Ciências Sociais, na<br />
<strong>UFMA</strong> e História Licenciatura, na UEMA.<br />
No início <strong>de</strong> 2004, antes da realização das provas, comecei a trabalhar como educa<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />
PETI (Programa <strong>de</strong> Erradicação <strong>do</strong> Trabalho Infantil) da PAMEM (Pastoral <strong>do</strong> Menor), o que me<br />
proporcionou uma experiência rica no magistério. As crianças <strong>de</strong>ssa “Escolinha” estavam em<br />
situação <strong>de</strong> risco, pois algumas passavam por problemas graves ocorri<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> suas famílias.<br />
Nós, os educa<strong>do</strong>res, analisávamos o comportamento <strong>de</strong>sses garotos e garotas para <strong>de</strong>pois encaminhálos<br />
ao Psicólogo da Pastoral. Quan<strong>do</strong> saiu o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> vestibular em 25 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2004,<br />
uma vizinha me chamou para os parabéns pela minha conquista (nem sabia que tinha passa<strong>do</strong>).<br />
Permaneci no PETI somente um ano, porque era inevitável trabalhar e estudar simultaneamente,<br />
no perío<strong>do</strong> vespertino. Esse vestibular, foi o único em que não fiquei isento, tive que pagar a taxa<br />
<strong>de</strong> inscrição. Iniciei, com muita ansieda<strong>de</strong>, na <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>, o curso <strong>de</strong><br />
História Licenciatura em 20 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2004, após minha sétima tentativa em mais <strong>de</strong> seis<br />
anos <strong>de</strong> luta (houve ano em que fiz <strong>do</strong>is vestibulares em universida<strong>de</strong>s diferentes).<br />
Como foi relata<strong>do</strong>, minha vida foi marcada por participações especiais: positivas<br />
(minha família e meus amigos) e negativas que contribuíram (e ainda contribuem), para<br />
tornar-me um protagonista forte nessa trajetória <strong>de</strong> lutar, pois estou apenas começan<strong>do</strong><br />
minha história. Relembran<strong>do</strong> a bela canção <strong>do</strong> Renato Russo:<br />
“A nossa história não está pelo avesso assim,<br />
sem final feliz, teremos coisas bonitas pra cantar...<br />
E até lá, vamos viver, temos muito ainda por fazer...”<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 41
Programa Conexões <strong>de</strong> Saberes<br />
42 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular<br />
Eliete da Silva Cruz *<br />
A chuva que caía na ilha <strong>de</strong> São Luís <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>, em 31 <strong>de</strong> maio <strong>do</strong> ano 1980, não<br />
somente representava um fenômeno natural, como também, marcava minha vinda ao mun<strong>do</strong>,<br />
transbordan<strong>do</strong> <strong>de</strong> alegria os meus pais, senhora Ruth e senhor Raimun<strong>do</strong> Cruz, que, sem<br />
motivo expressivo, me <strong>de</strong>ram o nome <strong>de</strong> Eliete.<br />
É impossível <strong>de</strong>screver minha existência, meu ser, sem consi<strong>de</strong>rar o trabalho <strong>do</strong>s meus<br />
pais. Eles <strong>do</strong>aram toda <strong>de</strong>dicação e amor a minha vida que logo se tornou reflexo <strong>de</strong>ste<br />
compromisso humano. Minha mãe, era uma simples <strong>do</strong>méstica na qual encontrei o referencial<br />
quanto ao posicionar-se diante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, e assim, her<strong>de</strong>i <strong>de</strong>la a persistência, a força para<br />
lutar diante das adversida<strong>de</strong>s e a sensibilida<strong>de</strong> para apreciar cada segun<strong>do</strong> da vida; já meu<br />
pai, servi<strong>do</strong>r público, ensinou-me a amar a educação e a tê-la como i<strong>de</strong>al.<br />
Foi a partir <strong>de</strong>ssa visão <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> que, aos quatro anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, comecei a freqüentar<br />
a escola intitulada SESI, uma escola pública on<strong>de</strong> estu<strong>de</strong>i por <strong>de</strong>z anos. Nesta instituição<br />
fui apresentada ao fantástico mun<strong>do</strong> das letras, e aos cinco anos, li meu primeiro livro<br />
cujo título era: Meu barquinho amarelo, através <strong>do</strong> qual não só exercitava minha leitura,<br />
como ainda viajava pelo mun<strong>do</strong> da imaginação, excitada pelas mais belas figuras que<br />
constituíam a obra.<br />
Momento espetacular para mim, pois, mais <strong>do</strong> que aprendiz, posicionei-me como<br />
anuncia<strong>do</strong>ra aos meus parentes e coleguinhas das boas-novas sobre o <strong>de</strong>svelar da<br />
leitura. Tu<strong>do</strong> o que queria, nesse momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta e conquista, era ler tu<strong>do</strong> e<br />
para to<strong>do</strong>s.<br />
Extasiada pelo maravilhoso ato <strong>de</strong> ler, a<strong>de</strong>ntrei no Ensino Fundamental ansiosa pelas<br />
novas formas <strong>de</strong> aprendizagem, convicta da minha capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sbravar este novo<br />
estágio <strong>de</strong> educação. Não encontrei dificulda<strong>de</strong>s nas novas disciplinas que cursei, afinal,<br />
não sou autodidata, porém, <strong>de</strong>dicação, observação e facilida<strong>de</strong> por compreen<strong>de</strong>r aquilo que<br />
me é ensina<strong>do</strong>, constam como minhas características e conseqüentemente obtinha aprovação<br />
em todas as séries.<br />
Os <strong>de</strong>z primeiros anos <strong>de</strong> minha vida escolar foram prepon<strong>de</strong>rantes para a minha<br />
chegada ao Ensino Médio. Nestes anos, conheci bons professores, construí laços <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong><br />
que atualmente ainda vigoram, sofri preconceitos religioso e racial, e por to<strong>do</strong>s esses fatores,<br />
neguei a intolerância humana, optan<strong>do</strong> pelos melhores sentimentos através <strong>do</strong>s quais o<br />
homem po<strong>de</strong> construir um mun<strong>do</strong> melhor.<br />
* Graduanda em Filosofia <strong>UFMA</strong>.
Em 1994, tive que me <strong>de</strong>sligar <strong>do</strong> meu segun<strong>do</strong> lar, o SESI, porque não havia em tal<br />
escola o segun<strong>do</strong> grau, hoje, Ensino Médio. Iniciava-se, assim, a busca por uma vaga em<br />
escolas secundaristas, no entanto tal empreitada não foi árdua, afinal, a direção escolar <strong>do</strong><br />
SESI encaminhou-me, sem a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> participar <strong>do</strong>s eventuais processos seletivos,<br />
já que tinha obti<strong>do</strong> no Ensino Fundamental um bom histórico escolar, com boas notas e<br />
bom comportamento, a várias escolas estaduais com essa graduação <strong>de</strong> ensino, caben<strong>do</strong> a<br />
mim a opção por uma <strong>de</strong>las. Não optei por nenhuma das alternativas disponíveis. Então,<br />
por influência <strong>do</strong>s meus pais que acreditavam na garantia <strong>de</strong> um emprego advin<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
educação profissionalizante, participei <strong>do</strong> processo seletivo <strong>do</strong> CEFET e logrei êxito,<br />
ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> aprovada.<br />
Cursei minha nova fase escolar no CEFET, adquirin<strong>do</strong> conhecimentos necessários<br />
para minha aprovação no vestibular e <strong>de</strong>scobrin<strong>do</strong> aquilo que não queria para minha vida:<br />
ser uma técnica em eletrotécnica. No término <strong>do</strong> curso, em 1999, para <strong>de</strong>cepção da minha<br />
família, não consegui estágio, muito menos um emprego nas empresas conveniadas com o<br />
centro tecnológico. Assim, envere<strong>de</strong>i-me pelo caminho <strong>do</strong>s vestibulares tanto nas<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong>s <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> e Estadual <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>, como até mesmo no CEFET.<br />
Analogamente à inexistência <strong>de</strong> brilho dissipa<strong>do</strong> pelo Sol quan<strong>do</strong> a chuva encena seu<br />
papel no palco da natureza, a luminosida<strong>de</strong> da minha vida estava ofuscada pelas reprovações<br />
nos vestibulares. Foram três anos sem vitória nos processos seletivos, e sobretu<strong>do</strong>, sem a<strong>de</strong>ntrar<br />
no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho, vin<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sânimo e a insegurança que me levaram ao esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> inércia.<br />
Nesse momento <strong>de</strong> improdutivida<strong>de</strong>, minha família, em especial meus pais, <strong>de</strong>monstraram<br />
to<strong>do</strong> o carinho e a crença em mim, fazen<strong>do</strong>-me ver as adversida<strong>de</strong>s no mun<strong>do</strong> e que a postura<br />
guerreira diante <strong>de</strong>las é o diferencial. Então, resolvi participar da seleção para o cursinho prévestibular<br />
da cidadania, promovi<strong>do</strong> pelo Governo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. O fator <strong>de</strong>terminante para minha<br />
<strong>de</strong>cisão foi o valor da bolsa que seria forneci<strong>do</strong> aos aprova<strong>do</strong>s no seletivo.<br />
Fui aprovada, e como prenúncio <strong>de</strong> uma conquista maior, cursei to<strong>do</strong> o pré-vestibular<br />
no prédio da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>. Destino? Estava freqüentan<strong>do</strong> a<br />
universida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s meus sonhos, como aluna <strong>de</strong> cursinho, é claro! Mas habituava-me e<br />
sentia-me como parte <strong>do</strong> atraente mun<strong>do</strong> acadêmico.<br />
Influenciada pela pouca concorrência e pelas belas aulas <strong>de</strong> filosofia no cursinho,<br />
optei por este curso no vestibular. A chuva passara, ce<strong>de</strong>n<strong>do</strong> lugar ao Sol que irradiava seu<br />
brilho na minha vida, tocan<strong>do</strong> as sementes lançadas nas mais diversas fases da minha<br />
existência, pelos meus pais e educa<strong>do</strong>res.<br />
Fui aprovada para o Curso <strong>de</strong> Filosofia ofereci<strong>do</strong> pela <strong>UFMA</strong>, e no mesmo perío<strong>do</strong>,<br />
conquistei meu primeiro emprego, que exigia tempo integral, geran<strong>do</strong> incompatibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> horário com meu curso. Mais uma vez houve a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolher. A intervenção <strong>do</strong><br />
meu pai foi primordial, ainda que não apreciasse a minha opção acadêmica, estudante <strong>de</strong><br />
Filosofia, pois seu amor maior era pela educação em seus mais varia<strong>do</strong>s graus. Logo, eu<br />
podia <strong>de</strong>ixar o trabalho e seguir os estu<strong>do</strong>s, ten<strong>do</strong> certeza <strong>do</strong> seu esforço financeiro para<br />
comigo, nesta nova fase <strong>de</strong> estudante.<br />
Em 2003, a<strong>de</strong>ntrei na universida<strong>de</strong>, universo aspira<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primeiros anos <strong>de</strong> vida<br />
escolar e que <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> ser enigmático a cada perío<strong>do</strong> cursa<strong>do</strong>. Posicionava-me cada vez<br />
mais como ser consciente <strong>do</strong> <strong>de</strong>ver humano no qual nada permanece idêntico a si mesmo;<br />
assim, minha vida é um processo contínuo <strong>de</strong> inacabamento e as buscas, sejam elas<br />
espirituais, sejam emotivas ou sociais, são incessantes diante <strong>de</strong> cada conquista.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 43
No jogo da existência humana, acredito ser personagem fundamental a fim <strong>de</strong> participar<br />
e interagir com o público a<strong>do</strong>lescente, pois, em minha caminhada, o objetivo principal é<br />
trabalhar como professora, ten<strong>do</strong> como meio a formação acadêmica, não só na graduação,<br />
mas em um Mestra<strong>do</strong> cursa<strong>do</strong> num país <strong>de</strong> língua inglesa, a exemplo <strong>do</strong> Canadá.<br />
Acredito também, em conformida<strong>de</strong> com Heráclito, ser o movimento a realida<strong>de</strong><br />
verda<strong>de</strong>ira. Assim, continuo minha caminhada!<br />
44 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
“É caminhan<strong>do</strong> que se faz o caminho...”<br />
Iracema Andra<strong>de</strong> Luz *<br />
Caro leitor, escrever este memorial não significou apenas falar sobre mim, mas também,<br />
relembrar vários acontecimentos marcantes em minha vida que são muito significativos no<br />
que diz respeito a minha vida universitária. Confesso, que não foi fácil relembrar certos<br />
momentos difíceis, mas espero contribuir para que outros se sintam capazes <strong>de</strong> ir em busca<br />
<strong>de</strong> seus i<strong>de</strong>ais.<br />
Falar <strong>de</strong> mim, antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, é falar <strong>do</strong>s precursores da minha história, meus pais.<br />
Estes que, apesar <strong>de</strong> toda uma luta para chegarem on<strong>de</strong> estão, buscam também ver em seus<br />
filhos o retrato <strong>do</strong>s sonhos não realiza<strong>do</strong>s. Em especial, minha mãe: mulher honesta,<br />
guerreira e otimista que, apesar <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, conserva em seu rosto a alegria e a esperança <strong>de</strong><br />
dias melhores.<br />
Meus pais<br />
Minha mãe chama-se Tânia. Ela nasceu em 1963, em São Luís, capital <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.<br />
Filha <strong>de</strong> mãe solteira, sentiu na pele todas as conseqüências <strong>de</strong> uma família <strong>de</strong>sestruturada.<br />
Sua infância, como ela sempre diz, “não tive”, ficou marcada apenas pelas companhias<br />
<strong>de</strong> sua avó e <strong>de</strong> sua tia que a criaram até os cinco anos, pois sua mãe teve que trabalhar em<br />
“casa <strong>de</strong> família” para seu sustento. Em seguida, foi morar com a mãe e o padrasto e mais<br />
tar<strong>de</strong> com três irmãos, permanecen<strong>do</strong> com eles até os quinze anos. Neste perío<strong>do</strong>, viveu o<br />
regime conserva<strong>do</strong>r que lhe era imposto a to<strong>do</strong> momento, principalmente pela mãe que era<br />
bastante rigorosa nesse senti<strong>do</strong>.<br />
Começou a trabalhar com treze anos, conferin<strong>do</strong>-lhe a mesma herança <strong>de</strong> sua mãe:<br />
“casa <strong>de</strong> família”; isso porque precisava suprir suas necessida<strong>de</strong>s e ter sua in<strong>de</strong>pendência.<br />
Contu<strong>do</strong>, por motivo <strong>de</strong> <strong>do</strong>ença, parou aos <strong>de</strong>zesseis anos. Logo após, só restou fazer<br />
pequenos “bicos” para ajudar no sustento da família.<br />
Estu<strong>do</strong>u <strong>do</strong> jardim até a 5ª série em escola pública, repetin<strong>do</strong> a 1ª série <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao<br />
fraco ensino. O restante <strong>do</strong> ginásio até o 2º ano <strong>do</strong> antigo 2º grau foram cursa<strong>do</strong>s em<br />
escola particular, <strong>do</strong>s quais da 6ª até a 8ª série era bolsista. Os <strong>do</strong>is anos <strong>do</strong> 2º grau,<br />
ela mesma custeou com o que ganhava no seu trabalho. Alguns anos <strong>de</strong>pois, repetiu to<strong>do</strong><br />
o 2º grau, por causa <strong>de</strong> um problema <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentação escolar, só que como técnica<br />
em contabilida<strong>de</strong>.<br />
* Graduanda em Matemática na <strong>UFMA</strong>.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 45
Meu pai chama-se Bento. Ele nasceu em 1955, no interior <strong>de</strong> Montes Claros, município<br />
<strong>de</strong> Pinheiro, <strong>Maranhão</strong>. É o segun<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma família <strong>de</strong> <strong>de</strong>z filhos, <strong>do</strong>s quais <strong>do</strong>is faleceram<br />
ainda quan<strong>do</strong> crianças. Conviveu com seus pais até os sete anos. Em seguida, foi morar com<br />
seus avós maternos e alguns tios em Mundico, no interior <strong>de</strong> Pinheiro. Nesta época, iniciou<br />
a escola primária, ten<strong>do</strong> concluí<strong>do</strong> a alfabetização. Nas horas vagas, ajudava seu avô na<br />
roça e fazia alguns “bicos”. Devi<strong>do</strong> ao alistamento militar, veio para capital, acomodan<strong>do</strong>se<br />
em casa <strong>de</strong> parentes.<br />
Para manter-se na capital, continuou fazen<strong>do</strong> “bicos”, e através <strong>de</strong>les, cursou o ginásio. Já<br />
o 2º grau, chama<strong>do</strong> <strong>de</strong> educação geral, cursou em escola fe<strong>de</strong>ral, só que incompleto (1º e 2º ano).<br />
Apren<strong>de</strong>u, através <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s dificulda<strong>de</strong>s, a profissão <strong>de</strong> pedreiro, e por causa <strong>de</strong>la, fez<br />
um curso <strong>de</strong> mestre <strong>de</strong> obras por correspondência, o qual até hoje lhe serve <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> ajuda.<br />
Meus pais se conheceram quan<strong>do</strong> meu pai veio para a capital. Nessa época, minha mãe<br />
tinha nove anos e diz não se lembrar <strong>de</strong> papai, mas ele diz que ela tinha antipatia por ele,<br />
principalmente quan<strong>do</strong> ele dizia que um dia se casariam. Com o <strong>de</strong>correr <strong>do</strong> tempo, foram<br />
se conhecen<strong>do</strong> melhor e assim resolveram namorar, só que por correspondência, pois minha<br />
mãe viajou a trabalho para a Bahia. Após um ano, ela voltou e então se casaram.<br />
Eles casaram-se em 1980. Meu pai com vinte e cinco anos e minha mãe com <strong>de</strong>zesseis.<br />
Moraram primeiramente na casa <strong>do</strong>s meus avós paternos, mas como dizem: “Quem casa<br />
quer casa”. Minha mãe logo tomou a iniciativa. Então, mudaram-se para um quarto aluga<strong>do</strong>,<br />
ou melhor, um casebre cain<strong>do</strong> aos pedaços, quan<strong>do</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algum tempo, compraram um<br />
terreno e fizeram uma casa <strong>de</strong> taipa no atual lugar on<strong>de</strong> moro, Gancharia. Neste lugar não<br />
havia água, luz ou tráfego <strong>de</strong> qualquer veículo, apenas mato e umas poucas casas e ruas<br />
cheias <strong>de</strong> lama, que às vezes transbordavam com a água da chuva.<br />
Dessa relação, nasceram quatro filhos: Eduar<strong>do</strong>, eu (Iracema), Ribamar e Elvis. Como<br />
nascemos um em cada ano, minha mãe <strong>de</strong>cidiu que não teria mais filhos após o seu último<br />
parto e optou pela ligadura <strong>de</strong> trompas.<br />
Meus irmãos<br />
Dos meus irmãos gostaria <strong>de</strong> dar <strong>de</strong>staque ao Ribamar, pois ele é o motivo da luta <strong>de</strong><br />
cada dia em nossa família, ou melhor, da minha mãe.<br />
Ele é a “criancinha” da família, assim como também é trata<strong>do</strong>, ou seja, uma criança especial.<br />
Tu<strong>do</strong> começou ainda na sua infância, pois ele era diferente em seu mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> agir em<br />
relação aos outros irmãos. Embora tivesse sempre o acompanhamento <strong>de</strong> pediatras, estes<br />
nada diziam. Então, quan<strong>do</strong> completou quatro anos, já na escola, a falta <strong>de</strong> integração<br />
social reforçou a idéia <strong>de</strong> que algo não estava bem com ele.<br />
Auxiliada por um amigo médico, minha mãe foi indicada por uma carta <strong>de</strong><br />
recomendação ao Dr. Fernan<strong>do</strong> Ramos, atual reitor da <strong>UFMA</strong>, para acompanhar meu irmão,<br />
pois, nessa época, não só havia muita burocracia, como também ele só atendia quem era<br />
paciente <strong>de</strong>le.<br />
Fernan<strong>do</strong> Ramos dizia que meu irmão era sur<strong>do</strong>-mu<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong> minha mãe observava<br />
o contrário no dia-a-dia. Assim, Ribamar foi encaminha<strong>do</strong> para um eletroencefalograma e<br />
uma audiometria, o que até hoje ele não <strong>de</strong>ixa fazer. No eletroencefalograma foi apontada<br />
uma disritmia (pequena lesão no cérebro). Então, o médico o encaminhou para a APAE<br />
(Associação <strong>de</strong> Pais e Amigos <strong>do</strong>s Excepcionais) e para uma escola com jardim para classe<br />
especial. Ele freqüentou a APAE por <strong>do</strong>ze anos, lá, fez tratamento com fonoaudiólogos,<br />
46 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
psicólogos, neuropediatras, psicomotricistas, entre outras ativida<strong>de</strong>s para seu<br />
<strong>de</strong>senvolvimento, além da escola, é claro, on<strong>de</strong> passou <strong>do</strong>is anos no jardim classe especial,<br />
e três anos <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> trabalhos como tapeçaria, pintura, entre outros. Além disso,<br />
freqüentou um ano <strong>de</strong> classe especial regular em uma escola pública. Nesse perío<strong>do</strong>, meu<br />
irmão começou a utilizar remédios controla<strong>do</strong>s paralelamente com o tratamento, fazen<strong>do</strong><br />
com que minha mãe trabalhasse informalmente para custear seu tratamento.<br />
Como se po<strong>de</strong> notar, a vida <strong>de</strong> minha mãe era bastante corriqueira e ao mesmo tempo<br />
cansativa, mas apesar <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, era compensada com a tentativa <strong>de</strong> uma vida “normal”<br />
para meu irmão.<br />
Eduar<strong>do</strong>, meu irmão mais velho, sempre foi calmo, organiza<strong>do</strong> e preocupa<strong>do</strong> em<br />
ajudar a família. Apesar <strong>de</strong> ser um pouco ciumento, minha relação com ele sempre foi<br />
amigável. Ele fez o curso técnico em eletrotécnica no ETEMA, mas concluiu como Educação<br />
Geral, antigo 2º grau, por motivos que irei comentar mais adiante.<br />
Elvis, meu irmão caçula, como dizem, é a “bênção” da família. Des<strong>de</strong> a infância era<br />
motivo <strong>de</strong> preocupação, pois sempre vinha da escola com algo novo para contar e remendar,<br />
pois vivia causan<strong>do</strong> lesões no corpo por causa <strong>de</strong> suas travessuras. Embora fosse um pouco<br />
rebel<strong>de</strong>, quan<strong>do</strong> o assunto eram notas, tirava as melhores, isso até a 4ª série. Da 5ª série em<br />
diante, já em uma outra escola, começou a relaxar nos estu<strong>do</strong>s, faltava muito às aulas por<br />
causa <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o-game com os colegas, e com muita dificulda<strong>de</strong>, terminou o ginásio. O 2º<br />
grau, como era <strong>de</strong> se esperar, não foi muito diferente, aban<strong>do</strong>nou algumas vezes, mas enfim,<br />
terminou. Hoje, trabalha <strong>de</strong> ajudante com meu pai e está atrás <strong>de</strong> um emprego melhor,<br />
mesmo que seja na construção civil. Minha relação com ele é amigável na medida <strong>do</strong><br />
possível, pois não gosto da sua falta <strong>de</strong> bom senso em relação aos nossos pais.<br />
1982 meu nascimento<br />
Nasci no dia 27 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1982, em São Luís, capital <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.<br />
Devi<strong>do</strong> à ocupação da minha mãe com meus outros irmãos e à escola ser muito longe,<br />
tive que morar com minha avó materna e com uns tios. Eduar<strong>do</strong> também já vivia com eles<br />
<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a alguns problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e ao fato <strong>de</strong> o hospital ser muito distante da nossa casa.<br />
Desse perío<strong>do</strong>, quase não tenho recordações e as que lembro ainda não foram as<br />
melhores, pois Eduar<strong>do</strong> e eu não gostávamos <strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>rismo <strong>de</strong> nossa avó. Além <strong>do</strong><br />
mais, eu tinha um problema muito comum em crianças da minha ida<strong>de</strong>, não conseguia<br />
controlar os meus esfíncteres. O que não só me fazia sentir mal, como me provocava me<strong>do</strong>,<br />
porque apanhava. Em função disso, <strong>de</strong>morei bastante para superar esta fase.<br />
Lembro-me também, das horas <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> com minha tia Elza, irmã da minha mãe. Ela<br />
era quem nos ensinava os <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> casa, mas não tinha paciência para isso. Um exemplo<br />
se <strong>de</strong>u quan<strong>do</strong> eu estava apren<strong>de</strong>n<strong>do</strong> os encontros consonantais. Ela falava, repetia, e quan<strong>do</strong><br />
chegava a minha vez, não conseguia pronunciar corretamente e aí puxava minhas orelhas e<br />
me beslicava. Até hoje, tenho dificulda<strong>de</strong>s com alguns <strong>de</strong>les.<br />
Fase escolar<br />
Estu<strong>de</strong>i sete anos na Escola Comunitária “Criamor”, situada no Anjo da Guarda,<br />
próximo à casa da minha avó materna. Lá, cursei <strong>do</strong> jardim até o primário. Nesta escola<br />
aprendi, além das matérias, os bons costumes com disciplina e também sobre a pessoa<br />
<strong>de</strong> Jesus Cristo.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 47
No jardim, apenas me lembro <strong>do</strong> meu problema com os esfíncteres e <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sfiles à<br />
fantasia no sete <strong>de</strong> setembro. No primário, eu achava estranho o meu nome, não gostava,<br />
pois me perguntava <strong>de</strong> on<strong>de</strong> papai o havia tira<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> tão diferente <strong>do</strong>s outros. Gostava<br />
<strong>de</strong> estudar, e mesmo que não gostasse, teria <strong>de</strong> ser obrigada a isso, porque meus pais, ou<br />
melhor, minha mãe, exigia <strong>de</strong> mim e <strong>do</strong>s meus irmãos como forma <strong>de</strong> “compensar” seus<br />
esforços com a nossa educação. Nessa fase, participei das antigas rodas <strong>de</strong> tabuada, que me<br />
davam me<strong>do</strong> e me obrigavam a estudar <strong>de</strong> qualquer jeito, senão era castigada através da<br />
psicologia tradicional, ou seja, apanhava nas mãos com uma tábua. Foi exatamente isso que<br />
aconteceu certa vez. Fiquei não só com as mãos vermelhas, como inchadas.<br />
Em 1993, já no ginásio, estava em uma escola pública chamada “Unida<strong>de</strong> Integrada<br />
‘Y’ Bacanga”, situada num bairro próximo ao Anjo da Guarda. Fui transferida para lá<br />
porque meus pais não tinham como me manter na antiga escola, o que já havia aconteci<strong>do</strong><br />
com o Eduar<strong>do</strong>, e mais adiante, aconteceria com Elvis. Nesta escola, a maior dificulda<strong>de</strong><br />
que encontrei no início foi a divisão <strong>de</strong> professores por disciplina, o que ocasionou certa<br />
confusão na minha cabeça.<br />
Na 6ª série, <strong>de</strong>scobri que algo que já tinha si<strong>do</strong> tão fácil <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r se tornara um<br />
“bicho <strong>de</strong> sete-cabeças”, parecen<strong>do</strong> até piada hoje. A matemática causava uma confusão<br />
<strong>de</strong> assuntos, fórmulas que eu imaginava como iria absorver. Durante esse ano, mudaram<br />
os professores <strong>de</strong>ssa disciplina três vezes e cada um chegava dizen<strong>do</strong> algo novo <strong>do</strong> jeito<br />
que queria. Indica<strong>do</strong> pela minha última professora, procurei um professor particular, o seu<br />
afilha<strong>do</strong> William que não só me aju<strong>do</strong>u a passar, como nos tornamos amigos inseparáveis.<br />
Ele foi <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> ajuda no que diz respeito não só à Matemática, mas também, quanto ao<br />
incentivo que sempre me <strong>de</strong>u para lutar pelos meus i<strong>de</strong>ais.<br />
1996<br />
Na 8ª série a minha preocupação era cursar um curso técnico no CEFET. Sonhava com<br />
a idéia <strong>de</strong> ter uma formação e trabalhar. Então, me preparei em cursinho on<strong>de</strong> William era<br />
professor, e assim, encarei o Provão no final <strong>de</strong> 1996.<br />
Enquanto a<strong>do</strong>lescente, não <strong>de</strong>i trabalho, pois fui educada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância para um<br />
amadurecimento precoce e também não queria ser mais um motivo <strong>de</strong> preocupação para<br />
meus pais. Vivia para os estu<strong>do</strong>s e para a igreja, sen<strong>do</strong> que, na igreja, era catequista, o que me<br />
dava muita alegria. Hoje, a igreja se tornou uma peça fundamental em minha vida, pois,<br />
além da catequese, estou no grupo <strong>de</strong> jovens, na liturgia e também na coor<strong>de</strong>nação geral.<br />
Gostaria <strong>de</strong> mencionar que, em maio <strong>de</strong>sse ano, a vida da minha família <strong>de</strong>u uma<br />
gran<strong>de</strong> reviravolta, com a 1ª crise convulsiva <strong>de</strong> Ribamar. Ele teve oito crises consecutivas<br />
e foi parar no Pronto-socorro. Com a crise, seu quadro clínico se transformou. Houve uma<br />
regressão em to<strong>do</strong>s os aspectos. Começou a se alimentar muito pouco ou quase nada, entre<br />
outros comportamentos difíceis <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r, principalmente a agressivida<strong>de</strong>.<br />
Des<strong>de</strong> a primeira crise, nunca mais foi o mesmo. Continua ten<strong>do</strong> crises só que mais<br />
leves, evoluin<strong>do</strong> assim seu quadro clínico, o que o tem torna<strong>do</strong> mais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> minha<br />
mãe. Levan<strong>do</strong> em conta seu novo comportamento, no ano posterior, a sua neuropediatra<br />
<strong>de</strong>tectou um retar<strong>do</strong> mental.<br />
Como não passei no CEFET, o jeito foi cursar o 2º grau no ETEMA (Escola Técnica<br />
Estadual <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>), em 1997. Não fiz um curso técnico por lá porque, a partir <strong>de</strong>sse ano,<br />
tinha si<strong>do</strong> extinto. Lá, me senti um pouco <strong>de</strong>smotivada em relação à meto<strong>do</strong>logia <strong>de</strong> alguns<br />
48 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
professores que tornavam a disciplina muito chata. Nesse perío<strong>do</strong>, tentei novamente para o<br />
CEFET e não consegui passar outra vez.<br />
1998<br />
Em maio <strong>de</strong>sse ano, houve uma nova mudança no quadro clínico <strong>de</strong> Ribamar. Ele teve<br />
a 1ª crise psiquiátrica que reforçou sua agressivida<strong>de</strong>, ten<strong>do</strong> que ser amarra<strong>do</strong> na cama para<br />
evitar a internação, pois minha mãe temia pelos maus tratos se isso acontecesse. Contu<strong>do</strong>,<br />
foi inevitável, mas ela pô<strong>de</strong> acompanhá-lo. Assim, ele passou três dias interna<strong>do</strong>, e em<br />
conseqüência, adquiriu o vírus Guilliam Barré, provocan<strong>do</strong>-lhe cegueira por quinze dias,<br />
paralisia <strong>do</strong>s membros inferiores e <strong>de</strong> toda a coor<strong>de</strong>nação motora por oito meses. Foi<br />
transferi<strong>do</strong> para outro hospital e passou um mês e vinte e seis dias se tratan<strong>do</strong>. Logo após,<br />
foi encaminha<strong>do</strong> para o Sarah, on<strong>de</strong> ficou <strong>de</strong>z dias e <strong>de</strong>pois voltou para casa a fim <strong>de</strong><br />
continuar se recuperan<strong>do</strong>. Nesse perío<strong>do</strong>, sua psiquiatra <strong>de</strong>tectou um autismo infantil.<br />
1999<br />
Cursan<strong>do</strong> o 3º ano, lembro-me <strong>de</strong> que meus amigos se preocupavam com o vestibular<br />
e eu nem pensava em tentar, por achar que não tinha aprendi<strong>do</strong> o suficiente para isso e que,<br />
para passar, precisava fazer um cursinho para o qual não tinha dinheiro para pagar. Pensava<br />
que, ao terminar o 2ª grau, tinha que conseguir um emprego para ajudar <strong>de</strong> alguma forma<br />
minha família.<br />
Após <strong>do</strong>is meses da recuperação <strong>de</strong> Ribamar, veio outro momento difícil, talvez o<br />
mais difícil. Eduar<strong>do</strong> estava no 3º ano <strong>de</strong> eletrotécnica, sonhava com o término <strong>do</strong> curso e<br />
com novas perspectivas que lhe po<strong>de</strong>ria proporcionar, foi quan<strong>do</strong> uma simples bolada<br />
mu<strong>do</strong>u sua vida. Diante das <strong>do</strong>res, inchaço e da falta <strong>de</strong> apoio, minha mãe resolveu levá-lo<br />
ao Sarah, sen<strong>do</strong> encaminha<strong>do</strong> para o Al<strong>de</strong>nora Belo e lá <strong>de</strong>scobriram que aquilo que parecia<br />
uma simples lesão era mais grave <strong>do</strong> que imaginavam. Era um câncer maligno, chama<strong>do</strong><br />
osteossarcoma.<br />
A partir daí, começou a luta não só pelo combate ao câncer, como também em relação<br />
aos gastos para o tratamento, já que ele não po<strong>de</strong>ria ser feito por aqui <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à falta <strong>de</strong><br />
recursos. Como minha mãe tinha uma irmã em Brasília, pediu-lhe que marcasse uma consulta<br />
no Sarah o mais <strong>de</strong>pressa possível, enquanto a nossa família se virava pedin<strong>do</strong> ajuda aos<br />
familiares, amigos, igrejas, entre outros, para conseguirmos uma passagem <strong>de</strong> avião. Como<br />
minha mãe não podia acompanhá-lo, minha avó se encarregou <strong>de</strong>ssa tarefa.<br />
Após a consulta no Sarah, ficou interna<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> novos exames, e através <strong>de</strong> uma<br />
junta médica, chegaram a um acor<strong>do</strong> e mais à realização da quimioterapia para a redução <strong>do</strong><br />
tumor. Logo após, fez a 1ª cirurgia para a retirada <strong>do</strong> tumor, graças a Deus com sucesso.<br />
Como ficou com um buraco entre as articulações <strong>do</strong> joelho, teve que fazer uma 2ª cirurgia<br />
para um enxerto, sen<strong>do</strong> colocada uma platina, o que o impossibilitou <strong>de</strong> <strong>do</strong>brar o joelho.<br />
Ele e minha avó passaram <strong>do</strong>is anos sem vir até São Luís, e <strong>de</strong>pois da última cirurgia,<br />
passaram a vir mensalmente e <strong>de</strong>pois anualmente, até que ele conseguisse a alta <strong>de</strong>finitiva.<br />
As passagens, após mais ou menos um ano em que começou a vir para São Luís, passaram a<br />
ser fornecidas pelo Sarah, gratuitamente.<br />
Hoje, passa<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is anos da alta, apesar <strong>de</strong> ter fica<strong>do</strong> com um encurtamento <strong>de</strong> seis<br />
centímetros, leva uma vida “normal”, superan<strong>do</strong> a cada dia suas limitações e aproveitan<strong>do</strong><br />
mais ainda esta nova oportunida<strong>de</strong> que Deus lhe <strong>de</strong>u.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 49
Amigo Leitor, você <strong>de</strong>ve perguntar-se on<strong>de</strong> está o meu pai nesta história toda, não é<br />
mesmo? Infelizmente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a 1ª crise <strong>do</strong> Ribamar, ele já estava beben<strong>do</strong> muito. Aquilo que<br />
já tinha si<strong>do</strong> um esporte tornou-se uma prisão da qual ele não conseguia sair. Na época da<br />
<strong>do</strong>ença <strong>do</strong> Eduar<strong>do</strong>, seu alcoolismo, juntamente com o fumo, estava <strong>de</strong>mais. Por isso, ele,<br />
diante <strong>de</strong>sses problemas, esteve basicamente ausente, sen<strong>do</strong> apenas mais uma das<br />
preocupações. Atualmente, cura<strong>do</strong> <strong>de</strong>sses vícios após sua conversão, é uma nova pessoa,<br />
comprometida com a família.<br />
2001<br />
Fiz mais uma vez a prova para o CEFET para os cursos <strong>de</strong> Telecomunicações, 1ª opção<br />
e Desenho Industrial, 2ª opção. Enfim, passei! Passei para a 2ª opção <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à pontuação.<br />
Embora tenha fica<strong>do</strong> contente com a notícia, queria mesmo era Telecomunicações. Cursei<br />
<strong>do</strong>is anos nesta escola receben<strong>do</strong> uma ajuda <strong>de</strong> custo como bolsa trabalho. Foi nessa época<br />
que comecei a pensar em vestibular. Com a ajuda <strong>de</strong> uma amiga, consegui fazer um cursinho,<br />
como bolsista. Ao final <strong>do</strong> curso técnico, tentei o 1º vestibular para Arquitetura e Urbanismo<br />
na UEMA (<strong>Universida<strong>de</strong></strong> Estadual <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>) e também para Ciências da Computação<br />
na <strong>UFMA</strong>, mas não passei nem na primeira etapa.<br />
2002<br />
Terminan<strong>do</strong> o curso no CEFET, consegui um estágio, com ajuda <strong>de</strong> custo, num escritório<br />
<strong>de</strong> Arquitetura e Design. Lá, conheci na prática a área que pensei que fosse exercer, mas não<br />
me i<strong>de</strong>ntifiquei com ela. Tentei <strong>de</strong> novo o vestibular, tanto para <strong>UFMA</strong>, quanto para a<br />
UEMA nas áreas já mencionadas, e me <strong>de</strong>cepcionei novamente.<br />
2003<br />
Nesse ano repensei minhas escolhas quanto à concorrência e principalmente quanto à<br />
vocação, e resolvi fazer algo com a qual me i<strong>de</strong>ntificasse e me <strong>de</strong>sse prazer em cursar. Então,<br />
pensei em Matemática, Pedagogia ou Serviço Social na <strong>UFMA</strong>, mas como não era bem nas<br />
disciplinas específicas <strong>do</strong>s cursos <strong>de</strong> Pedagogia e Serviço Social, resolvi fazer para<br />
Matemática, já que com os cálculos tinha mais facilida<strong>de</strong>, e além <strong>do</strong> mais, gostava muito da<br />
idéia <strong>de</strong> ser professora <strong>de</strong>ssa disciplina.<br />
2004<br />
Quan<strong>do</strong> fiz a 1ª etapa, não tinha em mente que iria ser aprovada, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> às<br />
<strong>de</strong>cepções anteriores. De qualquer forma, tentava não ser pessimista e me concentrar<br />
em meus objetivos.<br />
Ao saber que estava na 2ª etapa pela 1ª vez, tive a força que precisava para confiar<br />
mais em mim, no meu potencial. Terminei a prova acreditan<strong>do</strong> que meu lugar era na<br />
universida<strong>de</strong>, e por isso, merecia estar lá.<br />
A minha ansieda<strong>de</strong> era tanta quanto a data <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> que parecia não chegar, e ao<br />
mesmo tempo, uma gran<strong>de</strong> expectativa <strong>de</strong> saber se o meu nome estava entre os aprova<strong>do</strong>s.<br />
Quan<strong>do</strong> saiu o resulta<strong>do</strong>, eu não estava em casa, mas minha mãe, ouvin<strong>do</strong> a Rádio<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong>, foi a primeira a saber da minha aprovação. Ao chegar perto <strong>de</strong> casa, parecia<br />
que estava ten<strong>do</strong> uma festa quan<strong>do</strong> os vizinhos me abordaram, dan<strong>do</strong>-me a notícia, mas não<br />
acreditava no que eles diziam. Foi quan<strong>do</strong> olhei minha mãe radiante, e ao me dizer, tive a<br />
50 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
certeza <strong>de</strong> que era verda<strong>de</strong>, e não um sonho. Jamais esquecerei o orgulho que vi em meus<br />
pais, ao terem a certeza <strong>de</strong> que sua única filha era uma universitária. Foi como se dissessem:<br />
“Valeu o nosso esforço! Valeu tu<strong>do</strong> o que passamos!”<br />
Sempre vi a universida<strong>de</strong> como um espaço restrito a poucos, mas dizia a mim mesma:<br />
“Se alguém que é mais experiente <strong>do</strong> que eu po<strong>de</strong>, por que eu não posso?” E passar<br />
significou a confirmação disso, entretanto, quan<strong>do</strong> entrei, percebi que não era preciso<br />
apenas entrar, mas permanecer. E permanecer, realmente, é a parte mais difícil. Nesse<br />
senti<strong>do</strong>, o “Conexões <strong>de</strong> Saberes” tem me ajuda<strong>do</strong> bastante, pois me proporcionou não só<br />
uma ajuda financeira, como também, a minha valorização como pessoa. Além da nova<br />
família que encontrei, é claro!<br />
Embora meu curso tenha um certo grau <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>, amo a idéia <strong>de</strong> me tornar uma<br />
professora <strong>de</strong> Matemática e não enten<strong>do</strong> por que muitas pessoas discriminam o fato <strong>de</strong> uma<br />
mulher cursar Matemática. Para mim tem o mesmo valor <strong>de</strong> quem faz Medicina ou Direito,<br />
ou qualquer outro curso. E não me consi<strong>de</strong>ro uma louca pela minha opção, mas uma vitoriosa<br />
por saber que poucos têm a coragem que tenho.<br />
Enquanto universitária, vejo que subi apenas mais um <strong>de</strong>grau em meu caminho, mas<br />
precisarei subir muitos outros. Agra<strong>de</strong>ço muito a Deus pelas maravilhosas pessoas que colocou<br />
em minha vida, em especial minha família, que são a motivação para seguir em frente.<br />
Além da minha família, há várias pessoas que estiveram e estão sempre comigo, mas<br />
como não daria para mencionar o nome <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s, agra<strong>de</strong>cerei em nome <strong>de</strong>les através <strong>do</strong>s<br />
meus amigos William, Antonia, Marcos Colins, Mauro Sérgio, Iolanda (<strong>UFMA</strong>), que sempre<br />
me orientaram, motivaram e principalmente, me disseram quan<strong>do</strong> pensei em <strong>de</strong>sistir:<br />
“Coragem! Você po<strong>de</strong> e vai conseguir!”<br />
Do meu futuro espero apenas que Deus me dê muita saú<strong>de</strong>, porque, em relação ao que<br />
preciso, posso ir em busca: como um trabalho, uma especialização e em breve construir uma<br />
família ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> Manoel, meu noivo. Este que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> quan<strong>do</strong> nos conhecemos, sempre<br />
esteve comigo, me apoian<strong>do</strong> e torcen<strong>do</strong> para que eu fosse uma vence<strong>do</strong>ra! De coração,<br />
obrigada meu amor!<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 51
Detalhes <strong>de</strong> uma história inesquecível<br />
52 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular<br />
Jardiane Moura Abreu *<br />
Nome<br />
Meu nome, Jardiane, foi escolhi<strong>do</strong> pela minha mãe mesmo antes <strong>de</strong> casar-se. Ela diz<br />
que não sabe on<strong>de</strong> ouviu esse nome pela primeira vez, apenas sabe que era um nome que lhe<br />
chamava muita atenção, e que escolhera para ser o nome <strong>de</strong> sua primeira filha. Um nome<br />
muito bonito, vocês não acham?<br />
22 anos<br />
Nasci em 15 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1984, às 21h50m na maternida<strong>de</strong> Benedito Leite, na<br />
cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Luís, filha primogênita <strong>do</strong> casal Maria <strong>do</strong> Rosário <strong>de</strong> Moura Abreu e Agostinho<br />
Lin<strong>do</strong>so Abreu. Segun<strong>do</strong> minha mãe, a sua gestação foi cheia <strong>de</strong> complicações. Ela conta<br />
que não podia andar sozinha na rua que, sem mais nem menos, caísse <strong>de</strong>smaiada.<br />
Ao nascer, pesei <strong>do</strong>is quilos e quatrocentos e cinqüenta gramas, fui um bebê saudável<br />
até o sétimo mês <strong>de</strong> vida, porém, a partir <strong>do</strong> oitavo mês, tive início <strong>de</strong> pneumonia e asma;<br />
esta última, perdurou até os sete anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Quan<strong>do</strong> criança, vivia internada em hospitais.<br />
Meu pai, conta que certa vez, chegou a brigar com uma enfermeira, pois ela não conseguia<br />
puncionar minha veia para administrar o medicamento e me furou várias vezes, o que<br />
<strong>de</strong>ixou meu pai muito irrita<strong>do</strong>. Ele diz que eu não podia ver ninguém vesti<strong>do</strong> <strong>de</strong> branco que<br />
logo chorava. Talvez o fato <strong>de</strong> eu estar boa parte <strong>de</strong> minha vida <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> hospitais, me<br />
levaram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> criança a ter vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> seguir a carreira <strong>de</strong> enfermeira. O me<strong>do</strong> que se<br />
transformou em <strong>de</strong>sejo, um sonho que ainda não foi totalmente realiza<strong>do</strong>.<br />
Rua Gardênia Ribeiro Gonçalves, 10, Ivar-Saldanha<br />
Já morei em quatro casas diferentes. Quan<strong>do</strong> nasci, morei no bairro Sá Viana em uma casa<br />
que meus pais alugaram. Um dia, minha mãe, saiu para comprar algumas coisas e me <strong>de</strong>ixou<br />
<strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>, porém, antes que ela voltasse, acor<strong>de</strong>i e comecei a chorar. Uma vizinha, muito<br />
amiga <strong>de</strong>la, que também tinha uma filha <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> muito próxima da minha, me ouviu e foi até<br />
minha casa, pulou a janela, me levou para a casa <strong>de</strong>la, me amamentou e me escon<strong>de</strong>u. Quan<strong>do</strong><br />
minha mãe chegou e não me encontrou, começou a chorar <strong>de</strong>sesperadamente, imaginan<strong>do</strong>,<br />
que alguém havia me leva<strong>do</strong>, foi então que a vizinha me entregou a ela e por isso tenho hoje<br />
uma “mãe <strong>de</strong> leite”. Foi no Sá Viana que <strong>de</strong>i meus primeiros passos com 10 meses <strong>de</strong> vida.<br />
* Graduanda em Educação Física na <strong>UFMA</strong>.
Quan<strong>do</strong> tinha 1 ano e 4 meses, nos mudamos para o Bairro <strong>de</strong> Fátima, para a casa <strong>do</strong> tio<br />
Martins, faleci<strong>do</strong> recentemente. Segun<strong>do</strong> minha mãe, lá a casa era dividida por uma cortina,<br />
<strong>de</strong> um la<strong>do</strong> morava meu tio, irmão <strong>do</strong> meu pai, com a esposa e os filhos, e <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> meus<br />
pais e eu. Ela diz que certo dia, durante a noite, to<strong>do</strong>s <strong>do</strong>rmiam e as luzes estavam apagadas,<br />
o papagaio que eles criavam, naquela noite, não parou <strong>de</strong> chamar pelo nome <strong>de</strong> minha mãe.<br />
Achan<strong>do</strong> estranho, ela se levantou e ligou as luzes, e aí ela percebeu que na re<strong>de</strong> em que eu<br />
<strong>do</strong>rmia havia uma cobra enrolada na corda. Ficou <strong>de</strong>sesperada, tiran<strong>do</strong>-me rapidamente.<br />
Saímos <strong>de</strong> lá por causa <strong>do</strong> meu tio. Quan<strong>do</strong> minha mãe saía, ao retornar, encontrava suas<br />
coisas jogadas na rua, o que fazia com que brigasse com meu tio, e para não causar discórdia<br />
entre irmãos, resolveu mudar-se mais uma vez. Uma boa recordação daquela casa foi quan<strong>do</strong><br />
pronunciei a primeira palavra. Querem saber qual? “Papai”.<br />
Com 1 ano e 8 meses, fomos morar no bairro chama<strong>do</strong> Alemanha, na casa <strong>de</strong> outro tio,<br />
Julião. Minha mãe, já estava grávida <strong>do</strong> meu irmão Jefferson, que nasceu no dia 9 <strong>de</strong><br />
setembro <strong>de</strong> 1986. Des<strong>de</strong> pequena, sempre fui muito cuida<strong>do</strong>sa com minhas coisas, é até<br />
engraça<strong>do</strong> falar disso. Quan<strong>do</strong> minha tia emprestava alguma coisa <strong>de</strong> minha mãe, eu, sem<br />
<strong>de</strong>mora, corria para a casa <strong>de</strong>la e a trazia <strong>de</strong> volta. As minhas falas eram: “Isso é da minha<br />
mãe, me dá”. “Possessiva essa menina, não?”.<br />
Depois <strong>de</strong> algum tempo, meus pais conseguiram reunir dinheiro suficiente para comprar<br />
sua primeira casa própria, quer dizer, era apenas um terreno, <strong>de</strong> muita importância para<br />
to<strong>do</strong>s. A<strong>de</strong>us casa alugada, a<strong>de</strong>us casa <strong>de</strong> parentes, uma nova vida, um novo início. Meus<br />
pais construíram uma casa <strong>de</strong> barro e taipa para on<strong>de</strong> nos mudamos. Eu tinha cinco anos <strong>de</strong><br />
ida<strong>de</strong> e po<strong>de</strong>m ter certeza: este foi o início da melhor fase <strong>de</strong> minha vida, foi quan<strong>do</strong> iniciei<br />
meu ciclo <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>s, pois até então, só tinha primos para brincar. Moro até hoje nessa<br />
casa e os melhores momentos <strong>de</strong> minha vida estão nela: risos, lágrimas, vitórias, <strong>de</strong>rrotas,<br />
tu<strong>do</strong> o que tenho consegui<strong>do</strong> e até mesmo o que já perdi. Mesmo assim, sinto-me feliz.<br />
Meu pai, Agostinho Lin<strong>do</strong>so Abreu<br />
Meu pai nasceu no dia 29 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1964, porém, na sua <strong>do</strong>cumentação, consta a<br />
data <strong>de</strong> 12 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1965, pois foi registra<strong>do</strong>, por <strong>de</strong>scui<strong>do</strong>, somente nesta data. Ele morou na<br />
cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São João Batista até os 15 anos, vin<strong>do</strong> para São Luís em 1979 a pedi<strong>do</strong> <strong>de</strong> irmãos mais<br />
velhos para que conseguisse emprego. Em poucos dias, conheceu o rapaz que era filho <strong>do</strong> <strong>do</strong>no<br />
<strong>de</strong> uma padaria que lhe ofereceu emprego. Por coincidência, o <strong>do</strong>no da padaria, seu Dico,<br />
conhecia meu pai, pois era seu conterrâneo. Meu pai então, foi morar com a família <strong>de</strong>sse senhor,<br />
pois até então estava hospeda<strong>do</strong> na casa <strong>de</strong> uma namorada que arranjara. Porém, o relacionamento<br />
<strong>de</strong>les não durou muito tempo. Ele apren<strong>de</strong>u sua profissão <strong>de</strong> pa<strong>de</strong>iro justamente nesse perío<strong>do</strong><br />
e a exerce até hoje, ten<strong>do</strong> o seu próprio negócio. Por mais que ainda não tenha termina<strong>do</strong> o<br />
Ensino Fundamental, ele sempre lutou para não <strong>de</strong>ixar faltar nada para seus filhos, prova disto<br />
era quan<strong>do</strong> recebia o décimo terceiro salário. A primeira coisa que comprava era o material<br />
escolar <strong>do</strong>s filhos, ele sabia o valor da educação e o quanto era muito difícil pagar por ela.<br />
Um susto que tive em relação ao meu pai, foi quan<strong>do</strong> eu tinha 11 anos. Ele <strong>de</strong>smaiou<br />
enquanto se banhava e ficou por vários minutos <strong>de</strong>sacorda<strong>do</strong>. Depois <strong>de</strong>ste episódio,<br />
começou a ter crises <strong>de</strong> vômito acompanha<strong>do</strong> <strong>de</strong> sangue, bem como crises <strong>de</strong> melena (fezes<br />
com sangue), o que o levou a ficar interna<strong>do</strong> por meses a ponto <strong>de</strong> necessitar <strong>de</strong> três bolsas<br />
<strong>de</strong> sangue para transfusão. Ele estava com úlcera nervosa. Graças a Deus, tu<strong>do</strong> ocorreu bem<br />
e hoje eu o tenho junto a mim. O que antes era uma úlcera, regrediu para uma gastrite.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 53
Minha mãe, Maria <strong>do</strong> Rosário <strong>de</strong> Moura Abreu<br />
Minha mãe nasceu no dia 20 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1965, morou durante 15 anos na cida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Caxias. Em junho <strong>de</strong> 1980, <strong>de</strong>ixou sua cida<strong>de</strong> natal para vir morar em São Luís. Meus<br />
avós acreditavam que aqui na cida<strong>de</strong> ela teria uma melhor educação escolar e por isso<br />
mandaram-na com a esposa <strong>do</strong> primo <strong>do</strong> meu avô para cá, e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, começou a trabalhar<br />
como empregada <strong>do</strong>méstica na mesma casa em que morava.<br />
Foi então que, em uma festa <strong>de</strong> carnaval <strong>do</strong> ano seguinte, meus pais se encontraram,<br />
trocaram olhares e em poucos minutos meu pai tirou minha mãe para dançar. Um <strong>de</strong>talhe<br />
importantíssimo: minha mãe não sabia dançar muito bem, mas mesmo assim, aceitou o convite.<br />
Foi então que, começaram a namorar. Um namoro que perdurou por quatro anos, e em 2 <strong>de</strong><br />
Janeiro <strong>de</strong> 1984, se casaram. Neste mesmo ano, minha mãe engravi<strong>do</strong>u pela primeira vez.<br />
Mamãe terminou o Ensino Médio em 2004, juntamente com meu irmão. Depois <strong>de</strong><br />
muita luta, consegui fazer com que ela voltasse a estudar, pois, quan<strong>do</strong> resolveu casar-se,<br />
aban<strong>do</strong>nou os estu<strong>do</strong>s por falta <strong>de</strong> tempo e cansaço. Trabalha como empregada <strong>do</strong>méstica<br />
até hoje, e por incrível que pareça, na casa da filha da senhora que a trouxe para a cida<strong>de</strong>.<br />
Laços são Laços.<br />
Solteira e apaixonada<br />
Até hoje, tive <strong>do</strong>is namora<strong>do</strong>s, o primeiro aos treze anos, fazia parte <strong>do</strong> meu grupo da<br />
igreja. Além <strong>de</strong> morarmos na mesma rua, namoramos durante 6 anos e 8 meses, cheguei<br />
mesmo a pensar que iríamos casar, mas não era esse o nosso futuro. Posso dizer que somos<br />
amigos até certo ponto, não guar<strong>do</strong> mágoa e nem rancor <strong>de</strong>le, fomos felizes até on<strong>de</strong> podíamos<br />
ser. O segun<strong>do</strong> namora<strong>do</strong> foi aos 21 anos. Eu o conheci no grupo “Afro Omnirá <strong>de</strong> Cururupu”,<br />
um grupo <strong>do</strong> movimento negro sobre o qual muito se falava e <strong>do</strong> qual comecei a fazer parte<br />
a partir <strong>de</strong> 12 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2005. Foi lá então que me apaixonei. Ele é o mestre da bateria<br />
<strong>do</strong> grupo e eu faço parte <strong>do</strong> corpo <strong>de</strong> dança. Fiquei surpresa quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>scobri que ele estava<br />
interessa<strong>do</strong> em mim, algo recíproco estava acontecen<strong>do</strong>, e em 28 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2006,<br />
resolvemos namorar e estamos juntos até hoje.<br />
Sabe aquela história <strong>de</strong> unir o útil ao agradável? Pois é, a<strong>do</strong>ro dançar e saber que<br />
através da dança posso conscientizar muitas pessoas da luta que os negros quilombolas<br />
enfrentam hoje, o porquê <strong>de</strong>las, suas razões. Fazer com que compreendam o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
negro, me <strong>de</strong>ixa satisfeita.<br />
Chegada à universida<strong>de</strong><br />
No primeiro perío<strong>do</strong> (1989), estu<strong>de</strong>i na escola “Moranguinho”, escola comunitária<br />
<strong>do</strong> bairro em que eu morava. Chorei muito no primeiro dia <strong>de</strong> aula pedin<strong>do</strong> para que me<br />
levassem <strong>de</strong> volta para casa. Lembro-me da minha primeira professora. Daria, era seu nome.<br />
Participei ativamente <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os eventos que eram organiza<strong>do</strong>s, datas comemorativas<br />
como: festas <strong>de</strong> dia das mães, pais, São João etc. Estu<strong>de</strong>i to<strong>do</strong> o jardim <strong>de</strong> infância lá.<br />
Com sete anos (1992), iniciei a primeira série na escola municipal “Luís Viana”,<br />
porém, ela entrou em reforma e fui transferida para a escola CIEP.<br />
Na segunda série (1993), saí <strong>do</strong> CIEP para fazer a segunda série na escola estadual<br />
“Montezuma”. Lá, cursei até a 4 a série. Era uma das melhores alunas da escola, o que<br />
me fazia ganhar muitos prêmios a cada fim <strong>de</strong> semestre, tais como, livros, caixas <strong>de</strong><br />
bombons e estojos.<br />
54 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Em 1996, retornei para o “Luís Viana”, on<strong>de</strong> cursei da 5 a à 8 a série. Ao término <strong>do</strong><br />
Ensino Fundamental, fiz uma prova para uma das mais cobiçadas escolas da cida<strong>de</strong>, “Liceu<br />
Maranhense”, on<strong>de</strong> obtive aprovação.<br />
Assim, em 2000, iniciei meu Ensino Médio, uma vitória conseguida, motivo <strong>de</strong> muita<br />
alegria tanto para mim, quanto para meus pais. Agora, restava o vestibular, e em pouco<br />
tempo estaria frente a frente com ele.<br />
Ano <strong>de</strong> 2003, meu primeiro vestibular. Fiz vestibular para Enfermagem no vestibular<br />
tradicional da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> e não passei; chorei muito por não ter<br />
consegui<strong>do</strong>. Nesse mesmo ano, fiz seletivo para o PSG da <strong>UFMA</strong> para o curso <strong>de</strong> Medicina,<br />
e na <strong>Universida<strong>de</strong></strong> Estadual <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>, para Biologia. Também não consegui aprovação.<br />
Muitos fracassos em apenas um ano. Decidi, então, que não ficaria sem fazer nada, pois<br />
nunca fui <strong>de</strong> ficar muito tempo parada.<br />
Iniciei um curso técnico <strong>de</strong> Enfermagem <strong>de</strong> <strong>do</strong>is anos; eu já gostava da área e me<br />
apaixonei mais ainda por ela. Para pagar o curso, to<strong>do</strong>s os dias eu guardava três reais que<br />
minha mãe me dava <strong>de</strong> uma entrega <strong>de</strong> pães que ela fazia, e foi assim que consegui fazer meu<br />
curso, ten<strong>do</strong> me forma<strong>do</strong> em 15 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2005. Comemorei tanto minha formatura<br />
quanto meu aniversário.<br />
Em 2004, prestei meu segun<strong>do</strong> vestibular. Lembro que, quan<strong>do</strong> fui escolher o curso,<br />
levei em consi<strong>de</strong>ração o fator tempo que era justamente o que eu não tinha no momento.<br />
Então, como eu iria estudar se o curso técnico tomava boa parte <strong>de</strong>sse tempo? Eu não queria<br />
tentar Enfermagem novamente para ter um resulta<strong>do</strong> não satisfatório. Então, resolvi escolher<br />
outro curso com o qual eu pu<strong>de</strong>sse me i<strong>de</strong>ntificar, foi quan<strong>do</strong>, ao ler o nome <strong>do</strong>s cursos<br />
disponíveis, vi o <strong>de</strong> Educação Física. Nele não havia a disciplina Química como específica<br />
e era uma área que me interessava, pois, durante toda minha vida escolar e mesmo fora da<br />
escola, pratiquei esporte, fui envolvida com toda ativida<strong>de</strong> física. O resulta<strong>do</strong> foi a aprovação,<br />
e hoje, não troco meu curso por nada nesse mun<strong>do</strong>. Lembro que não <strong>de</strong>sisti <strong>do</strong> sonho <strong>de</strong> ser<br />
enfermeira um dia.<br />
Dou graças a Deus, to<strong>do</strong>s os dias <strong>de</strong> minha vida, por to<strong>do</strong>s os momentos que ele me<br />
proporcionou e proporciona. Quan<strong>do</strong> fiquei saben<strong>do</strong> <strong>do</strong> projeto “Conexões”, logo me<br />
interessei. Inscrevi-me, e quan<strong>do</strong> soube que havia si<strong>do</strong> selecionada e que iria passar por<br />
uma entrevista, tive um pouco <strong>de</strong> me<strong>do</strong>. No dia da entrevista, ao entrar na sala, vi to<strong>do</strong>s<br />
aqueles coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>res e imaginava o que po<strong>de</strong>riam me perguntar. A partir daí, vi que<br />
<strong>de</strong>veria apenas relatar um pouco <strong>do</strong> que vivia e ainda vivo e pronto: fui selecionada. Tenho<br />
aprendi<strong>do</strong> muito com o Projeto e me sinto verda<strong>de</strong>iramente honrada por fazer parte da<br />
história <strong>de</strong> muitos que ali estão, pois temos muito em comum, no que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>mos, e acima<br />
<strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, no que queremos.<br />
Empregos<br />
Antes <strong>de</strong> tentar arranjar emprego, trabalhei informalmente ven<strong>de</strong>n<strong>do</strong> bebidas em<br />
festas <strong>de</strong> carnaval, o que me garantiu renda para que pu<strong>de</strong>sse pagar alguns cursos<br />
profissionalizantes.<br />
Comecei a trabalhar formalmente com <strong>de</strong>zesseis anos. O primeiro serviço que consegui<br />
foi em uma fábrica <strong>de</strong> bebidas, mais especificamente refrigerantes, on<strong>de</strong> trabalhava como<br />
<strong>de</strong>gusta<strong>do</strong>ra. O segun<strong>do</strong> foi em uma padaria que tinha convênio com a fábrica <strong>de</strong> bebidas;<br />
nela, trabalhava como <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> tortas e <strong>do</strong> lançamento <strong>de</strong> um refrigerante. O<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 55
terceiro foi em um supermerca<strong>do</strong>. Depois consegui emprego em uma loja <strong>de</strong> confecções.<br />
Após estes, comecei a trabalhar na minha área: educação física, dan<strong>do</strong> aulas <strong>de</strong> ginástica<br />
localizada, futsal, ginástica laboral e natação, inicialmente em projetos da universida<strong>de</strong><br />
e <strong>de</strong>pois em clube.<br />
Igreja<br />
Um fator que influenciou muito na pessoa que sou hoje foi a minha inserção na igreja.<br />
Tinha sete anos quan<strong>do</strong> meus pais finalmente resolveram me batizar e para isso eu tinha que<br />
fazer catecismo durante um ano. Fui batizada com oito anos, juntamente com meu irmão<br />
que tinha seus seis anos. A partir <strong>de</strong> então, iniciei minha vida cristã, fiz primeira comunhão,<br />
participei <strong>do</strong> grupo “Persevérico”, e logo em seguida, fui crismada.<br />
Fui catequista <strong>de</strong> uma turma <strong>de</strong> iniciação para primeira comunhão e <strong>de</strong>pois para uma<br />
turma <strong>de</strong> preparação para a Crisma.<br />
Foi na igreja que percebi o quanto eu era importante para a minha socieda<strong>de</strong> e o<br />
quanto po<strong>de</strong>ria fazer por ela. As ações sociais que realizava me faziam sentir responsável.<br />
Hoje, participo <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> jovens chama<strong>do</strong> “Renascer”. Nele, discutimos vários<br />
temas referentes ao mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida <strong>do</strong>s jovens <strong>de</strong> hoje e o que o grupo po<strong>de</strong> fazer para<br />
melhorar isso, claro que nos âmbitos religioso e social.<br />
Agora...<br />
Inspirada em Joe Kemp, posso dizer-lhes qual foi a melhor época da minha vida. Bem,<br />
esta é minha resposta filosófica aos muitos <strong>de</strong>talhes que pu<strong>de</strong>ram ler sobre minha vida e<br />
digo-lhes: quan<strong>do</strong> nasci e respirei pela primeira vez o ar da minha cida<strong>de</strong>, aquela foi a<br />
melhor época da minha vida; quan<strong>do</strong> fui para a escola pela primeira vez e aprendi as coisas<br />
que sei hoje, aquela foi a melhor época da minha vida; quan<strong>do</strong> arrumei meu primeiro<br />
emprego, passei a ter responsabilida<strong>de</strong> e a ser paga por meu esforço, aquela foi a melhor<br />
época da minha vida; quan<strong>do</strong> me apaixonei pela primeira vez, aquela foi a melhor época da<br />
minha vida; quan<strong>do</strong> recebi o meu primeiro sacramento, aquela foi a melhor época da minha<br />
vida. E hoje, ten<strong>do</strong> 22 anos, continuo apaixonada pela minha vida, pela minha história,<br />
pelo meu passa<strong>do</strong>, bem como pelo meu tempo presente, pelo meu hoje, pelo meu agora.<br />
Essa é a melhor época da minha vida!<br />
56 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
A luta antece<strong>de</strong> a vitória<br />
Jefferson Veras Rodrigues *<br />
Falar da minha trajetória significa voltar ao passa<strong>do</strong> para resgatar a árdua caminhada<br />
da minha vida. To<strong>do</strong>s os acontecimentos que vivi, foram, sem dúvida, difíceis <strong>de</strong> superar.<br />
Sen<strong>do</strong> mais um <strong>do</strong>s excluí<strong>do</strong>s <strong>do</strong> sistema, tive que buscar na esperança, na fé em Deus e na<br />
coragem a força para seguir em frente, em meio aos <strong>de</strong>safios da vida.<br />
Nasci em São Luís <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>, no bairro chama<strong>do</strong> Sá Viana, situa<strong>do</strong> muito próximo<br />
da <strong>Universida<strong>de</strong></strong>, filho <strong>de</strong> <strong>do</strong>na Francisca e <strong>de</strong> seu Daniel. Assim que nasci, minha mãe se<br />
separou <strong>do</strong> meu pai, o qual nunca tive o privilégio <strong>de</strong> conhecer; ele também nunca me<br />
procurou e eu não sei por que. Devi<strong>do</strong> à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhar para me sustentar, minha<br />
mãe foi embora para São Paulo e só se correspondia através <strong>de</strong> cartas ou telegramas. Quan<strong>do</strong><br />
fui começan<strong>do</strong> a enten<strong>de</strong>r a vida, comecei a ter sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>la, pois to<strong>do</strong>s os meus colegas<br />
tinham mãe por perto, somente eu não. Em São Paulo, ela casou-se e teve uma filha <strong>de</strong> nome<br />
Cássia, uma irmãzinha para que eu não fosse filho único. Fiquei sen<strong>do</strong> cria<strong>do</strong> por minha<br />
avó. Nesse tempo, eu tinha pouco mais <strong>de</strong> um ano <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, ainda estava maman<strong>do</strong> quan<strong>do</strong><br />
ela foi para São Paulo, o que me acarretaria problemas posteriormente.<br />
A minha infância foi muito <strong>do</strong>lorida, pois quase sempre me encontrava <strong>do</strong>ente, vítima<br />
da falta <strong>de</strong> aleitamento materno; fui uma presa fácil <strong>de</strong> várias <strong>do</strong>enças ao longo <strong>de</strong> toda a<br />
minha infância, tais como: sarampo, catapora, pneumonia etc. No meio <strong>de</strong> tantas <strong>do</strong>enças,<br />
a única pessoa que estava perto <strong>de</strong> mim era minha avó, foi ela quem cui<strong>do</strong>u <strong>de</strong> mim,<br />
matriculou-me no colégio, assistiu às reuniões da escola. Senti-me verda<strong>de</strong>iramente protegi<strong>do</strong><br />
por ela até a ida<strong>de</strong> em que estou agora.<br />
Por não ter uma boa condição, tive que trabalhar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito ce<strong>do</strong>, aos nove anos<br />
<strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. No começo trabalhei ven<strong>de</strong>n<strong>do</strong> sacola no Merca<strong>do</strong> Central da cida<strong>de</strong>, o que<br />
durou três anos. Paralelamente a isso, trabalhei na feira livre da cida<strong>de</strong>, ajudan<strong>do</strong> a carregar<br />
sacola. Fazia isso diariamente, quase não tinha tempo para estudar, brincar ou conhecer<br />
novas pessoas, ir à biblioteca ou à praia. Aos <strong>do</strong>ze anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, comecei a vigiar carro na<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong>, on<strong>de</strong> hoje estu<strong>do</strong>. Vigiei carros durante <strong>de</strong>z anos da minha vida. Nesse<br />
perío<strong>do</strong>, conheci várias e várias pessoas, <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os tipos, algumas zangadas, outras<br />
amigáveis, fiz até amigos nessa empreitada, nunca vou me esquecer <strong>do</strong>s companheiros<br />
amigos que lá <strong>de</strong>ixei. Eu estava crescen<strong>do</strong> e queria dar um novo rumo para a minha vida,<br />
pois sabia que aquilo não iria durar a vida toda, por isso, eu tinha que arrumar um trabalho<br />
mais digno.<br />
* Graduan<strong>do</strong> em Ciências Imobiliárias na <strong>UFMA</strong>.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 57
Sempre tentei ser uma pessoa <strong>de</strong>dicada aos estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequeno, não gostava <strong>de</strong><br />
faltar às aulas, nem <strong>de</strong> chegar atrasa<strong>do</strong> à sala <strong>de</strong> aula. Lembro-me <strong>de</strong> que, na 6 a série, olhei<br />
meu boletim e vi que não tinha nenhuma falta, posteriormente seria escolhi<strong>do</strong> o melhor<br />
aluno daquela série.<br />
O Ensino Médio foi muito difícil, porque, muitas vezes, eu não tinha como comprar o<br />
livro que o professor indicava. Muitas vezes eu não tinha como comprar o passe escolar,<br />
aquilo ia <strong>de</strong> encontro a minha assiduida<strong>de</strong> na escola. As conseqüências <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> isso vieram<br />
imediatamente, logo comecei a faltar à escola. Os professores não sabiam da minha<br />
dificulda<strong>de</strong>, nem meus colegas <strong>de</strong> classe. Minha avó, muitas vezes, ficava angustiada por<br />
presenciar essa situação. Eu via, muitas vezes, ela preocupada no quarto, mas o que ela pô<strong>de</strong><br />
fazer para me ajudar ela fez, não só por mim, mas com os meus tios que também passavam<br />
pelas mesmas dificulda<strong>de</strong>s financeiras. Nesse momento, comecei a me entristecer e a pensar<br />
que nunca iria terminar o Ensino Médio.<br />
Em meio a tantas dificulda<strong>de</strong>s, terminei o tão sonha<strong>do</strong> Ensino Médio. Nesse momento,<br />
comecei a pensar no meu futuro. Tentei arrumar um serviço, mas não consegui,<br />
principalmente por ser inexperiente. Então, comecei a fazer cursos profissionalizantes,<br />
mesmo assim, não tive sucesso em arranjar trabalho e eu não sabia o que fazer no futuro. Só<br />
pensei em fazer vestibular na minha vida quan<strong>do</strong> terminei o Ensino Médio, no momento <strong>de</strong><br />
tantas in<strong>de</strong>finições acerca <strong>de</strong> meu futuro.<br />
A maior dificulda<strong>de</strong> em fazer vestibular era justamente o ensino público <strong>de</strong>ficiente<br />
que to<strong>do</strong> aluno <strong>de</strong> escola pública tem. Essa era a barreira a ser <strong>de</strong>rrubada. Eu não tinha<br />
dinheiro para fazer cursinho nem pagar a taxa <strong>do</strong> processo seletivo, além <strong>do</strong> mais, as pessoas<br />
me chamavam <strong>de</strong> <strong>do</strong>i<strong>do</strong>, porque, segun<strong>do</strong> elas, eu não tinha qualquer chance da passar em<br />
vestibular. Isso tu<strong>do</strong> fez com que eu ficasse um pouco <strong>de</strong>sanima<strong>do</strong>.<br />
No ano <strong>de</strong> 2003, surgiu uma propaganda na televisão <strong>do</strong> Governo <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>. Ela se<br />
referia a um processo seletivo que o governo iria fazer para dar um cursinho preparatório<br />
para o vestibular, além <strong>de</strong> uma bolsa <strong>de</strong> ajuda <strong>de</strong> custo <strong>de</strong> cinqüenta reais. Eu <strong>de</strong> imediato<br />
me interessei, mas havia um <strong>de</strong>talhe: seria necessário primeiro passar em uma prova, porque<br />
a concorrência era muito gran<strong>de</strong> e as vagas, poucas. Eu fiz minha inscrição e comecei a<br />
estudar to<strong>do</strong> o assunto <strong>do</strong> Ensino Médio, pois este era o conteú<strong>do</strong> da prova. Fiz a prova, e<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um mês, veio o resulta<strong>do</strong>: eu tinha passa<strong>do</strong>, fiquei muito feliz, como se tivesse<br />
passa<strong>do</strong> no vestibular, os vizinhos ficaram contentes e meus colegas também.<br />
Comecei a fazer o cursinho que tinha duração <strong>de</strong> seis meses. O lugar on<strong>de</strong> ficavam as<br />
instalações <strong>do</strong> cursinho era distante e também havia muita insegurança da minha parte porque<br />
o lugar era arrisca<strong>do</strong> e o curso era ministra<strong>do</strong> durante a noite. Nesse perío<strong>do</strong>, eu ficava dividin<strong>do</strong><br />
as atenções entre os estu<strong>do</strong>s e o trabalho, e estudava toda madrugada. O tempo ia passan<strong>do</strong> e<br />
eu continuava a estudar e a trabalhar, e a hora <strong>do</strong> vestibular estava chegan<strong>do</strong>.<br />
Terminei o cursinho <strong>do</strong>is dias da prova <strong>do</strong> vestibular para o qual já tinha consegui<strong>do</strong> a taxa<br />
<strong>de</strong> isenção. Eu já tinha o que eu queria: o cursinho e a inscrição <strong>do</strong> vestibular. Faltava apenas<br />
uma coisa: fazer a prova. Eu, ainda inexperiente, ficava toda hora pensan<strong>do</strong> na tão sonhada<br />
missão: passar no vestibular. Contava nos <strong>de</strong><strong>do</strong>s os dias que faltavam para fazer a prova.<br />
No dia da primeira etapa da seleção, eu estava muito inquieto, cheguei ao local <strong>de</strong><br />
provas faltan<strong>do</strong> ainda duas horas para o seu início. Fiz a prova ocupan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o tempo que<br />
tinha disponível. Fiquei contente com minha prova, agora, só faltava esperar o dia <strong>do</strong><br />
resulta<strong>do</strong> que, por sua vez, não tar<strong>do</strong>u, ten<strong>do</strong> saí<strong>do</strong> após quatro dias da prova. Durante esses<br />
58 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
quatro dias, eu não <strong>do</strong>rmi direito, só pensan<strong>do</strong> nesta tão bendita prova. Passa<strong>do</strong> o tempo,<br />
saiu o resulta<strong>do</strong>, e eu havia passa<strong>do</strong>, fiquei tão, tão contente que não estava acreditan<strong>do</strong><br />
nesse feito. Foram precisos <strong>do</strong>is dias para que eu pu<strong>de</strong>sse acreditar nessa primeira vitória.<br />
Minha cabeça dava milhões <strong>de</strong> voltas em torno <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, mal conseguia almoçar, até a fome<br />
<strong>de</strong>u lugar à alegria.<br />
Faltava ainda <strong>de</strong>rrubar a outra muralha que era tão forte quanta a primeira, o nome<br />
<strong>de</strong>la se chamava segunda etapa, aqui, as provas eram discursivas e havia a famosa redação,<br />
o pesa<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os vestibulan<strong>do</strong>s. Eu também segui essa regra, pois tinha uma letra que<br />
sobrinho <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos ganhava, mas eu consegui aperfeiçoar esta caligrafia antes da segunda<br />
etapa da prova.<br />
Durante o perío<strong>do</strong> que antece<strong>de</strong>u a segunda etapa, a minha jornada <strong>de</strong> estu<strong>do</strong><br />
praticamente <strong>do</strong>brou, nem fui ao trabalho nesse perío<strong>do</strong>, só ficava estudan<strong>do</strong> e pensan<strong>do</strong><br />
como seria a prova. O dia da prova tinha chega<strong>do</strong>, e eu mais uma vez estava muito ansioso.<br />
Já tinha termina<strong>do</strong> as duas provas discursivas e estava alegre, porque elas foram muito boas.<br />
Só faltava a redação, fiz o esboço, tu<strong>do</strong> certo, mas quan<strong>do</strong> chegou à hora <strong>de</strong> passar a limpo,<br />
nesse momento parece que caiu tu<strong>do</strong> sobre minha cabeça, eu tinha “caí<strong>do</strong> na real”: eu<br />
estava na segunda etapa da prova da <strong>UFMA</strong>, simplesmente não estava conseguin<strong>do</strong> passar<br />
a redação a limpo, a mão tremia como se fosse uma fura<strong>de</strong>ira, além disso, suava intensamente,<br />
estava chegan<strong>do</strong> a ponto <strong>de</strong> molhar a folha <strong>de</strong> redação, tentei <strong>de</strong>scontrair pensan<strong>do</strong> em<br />
outras coisas até que consegui melhorar. Passei uma hora e meia com to<strong>do</strong>s esses imprevistos.<br />
Comecei, então, a escrever <strong>de</strong>vagar até o fim.<br />
Demorou um mês para sair o resulta<strong>do</strong>. Nesse tempo, eu estava cheio <strong>de</strong> expectativas<br />
<strong>de</strong> conseguir a vaga na almejada universida<strong>de</strong>. Passaram-se os dias e o resulta<strong>do</strong> saiu: eu<br />
havia passa<strong>do</strong>. Foi a maior alegria, não tinha cabeça para nada. Nesse dia, fui a pessoa mais<br />
famosa <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>, <strong>de</strong>i entrevista, fui manchete <strong>de</strong> primeira página nos jornais <strong>de</strong> alta<br />
circulação. Eu não contava com tu<strong>do</strong> isso, pessoas que eu nem conhecia me cumprimentaram.<br />
Na minha casa foi uma alegria só. Aqui vale agra<strong>de</strong>cer a Deus e a uma pessoa que, sem<br />
dúvida, foi a minha maior inspiração, que eu certamente jamais vou esquecer, o nome <strong>de</strong>la<br />
é a Dona Domingas, minha avó, essa sim, merece tu<strong>do</strong> e um pouco mais.<br />
O meu maior presente por ter passa<strong>do</strong> no vestibular, foi sem dúvida, ser um exemplo<br />
para várias pessoas, que se inspiraram em mim para dar a volta por cima. Pessoas que não<br />
acreditavam mais no futuro e agora voltam a estudar. Ser referência para as pessoas me <strong>de</strong>ixa<br />
muito contente e me dá forças para seguir em frente na <strong>Universida<strong>de</strong></strong>.<br />
A minha aprovação no vestibular da <strong>UFMA</strong> não significa uma guerra ganha, e sim,<br />
apenas uma batalha. Quan<strong>do</strong> comecei a estudar, passei a ter várias dificulda<strong>de</strong>s<br />
financeiras, como, por exemplo: dinheiro para comprar livros, tirar cópias etc. Ainda<br />
não tinha trabalho, até que ganhei uma bolsa para ajudar a custear as <strong>de</strong>spesas. Ela<br />
tinha um valor simbólico, mas me aju<strong>do</strong>u bastante no início. No mês <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2006,<br />
fiquei saben<strong>do</strong> da seleção para fazer parte <strong>do</strong> “Conexões <strong>de</strong> Saberes”, fiquei muito<br />
interessa<strong>do</strong> em fazer parte, primeiro porque eu preenchia to<strong>do</strong>s os requisitos exigi<strong>do</strong>s.<br />
O programa tem tu<strong>do</strong> a ver com minha história, as ativida<strong>de</strong>s fazem parte <strong>de</strong> uma<br />
verda<strong>de</strong>ira interação entre a universida<strong>de</strong> e comunida<strong>de</strong>. No programa “Conexões <strong>de</strong><br />
Saberes”, eu vivo com pessoas que fazem parte da mesma classe social, há uma harmonia<br />
baseada na história <strong>de</strong> cada componente, eu me sinto orgulhoso por estar diariamente<br />
interagin<strong>do</strong> em minha comunida<strong>de</strong>.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 59
A minha caminhada até a <strong>Universida<strong>de</strong></strong> foi e é difícil, foram gran<strong>de</strong>s os problemas, as<br />
dificulda<strong>de</strong>s. Viven<strong>do</strong> excluí<strong>do</strong> <strong>do</strong> sistema, tive muitas vezes que recuar e/ou avançar. Sem<br />
dúvida, é muito difícil para uma pessoa que vive às margens da socieda<strong>de</strong> passar no<br />
vestibular. Para isso acontecer, ela terá que ter muita <strong>de</strong>terminação e coragem para enfrentar<br />
as dificulda<strong>de</strong>s pelas quais passamos durante a trajetória, não <strong>de</strong>saniman<strong>do</strong> com o primeiro,<br />
nem com o segun<strong>do</strong> ou terceiro obstáculo, mas prosseguin<strong>do</strong> avante com a certeza <strong>de</strong> que<br />
irá conseguir alcançar sua meta.<br />
Agra<strong>de</strong>ço a Deus e a to<strong>do</strong>s aqueles que, direta ou indiretamente, me ajudaram a<br />
alcançar o meu objetivo. No meio das adversida<strong>de</strong>s, consegui entrar em uma <strong>Universida<strong>de</strong></strong>.<br />
A batalha agora é terminar a graduação.<br />
60 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Jonival<strong>do</strong> Lopes Santos *<br />
Há um provérbio popular <strong>de</strong> que “toda regra tem sua exceção”. Eu sou a prova viva<br />
<strong>de</strong>sta afirmativa. Talvez você, leitor, ficará sem enten<strong>de</strong>r por alguns instantes, mas ao passo<br />
que eu for contan<strong>do</strong> a minha história, você enten<strong>de</strong>rá e com um pouco <strong>de</strong> sorte se tornará um<br />
<strong>de</strong>fensor ferrenho <strong>de</strong>ste dito. Se “agosto é o mês <strong>do</strong> <strong>de</strong>sgosto”, minha mãe contesta com<br />
toda convicção, pois eu, Jonival<strong>do</strong> Lopes Santos, nasci no dia 07 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1976, para a<br />
alegria geral da minha mãe e da família <strong>do</strong>s Lopes.<br />
Aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> por meu pai antes mesmo <strong>de</strong> nascer, membro <strong>de</strong> uma família <strong>de</strong> pesca<strong>do</strong>res<br />
e lavra<strong>do</strong>res <strong>de</strong> poucas letras, mas <strong>de</strong> um entendimento notável, pois, diante da realida<strong>de</strong> na<br />
qual viviam, sempre tiveram a visão <strong>de</strong> que a educação é uma das principais ferramentas<br />
capazes <strong>de</strong> gerar cidadãos e melhorar a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida daqueles que optam por obtê-la.<br />
Por isso, minha mãe e meus avós incessantemente me davam apoio, principalmente, nas<br />
horas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sânimo, quan<strong>do</strong>, em algumas situações, reclamava da qualida<strong>de</strong> física da escola.<br />
Muitas vezes ouvi o meu avô, <strong>de</strong> sau<strong>do</strong>sa memória, falar com seu tom suave e calmo: “Meu<br />
filho, quem faz a escola é o aluno”, então, resolvi acatar esta reflexão e os frutos foram sen<strong>do</strong><br />
colhi<strong>do</strong>s gradativamente. São estes passos que passarei a expor.<br />
A minha trajetória escolar inicia-se aos sete anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, quan<strong>do</strong>, pela primeira vez,<br />
iria freqüentar uma escola, ainda que minha inserção no processo da alfabetização já tivesse<br />
se inicia<strong>do</strong> em casa com a minha mãe - a mais excelente educa<strong>do</strong>ra que já tive - que sempre<br />
<strong>de</strong>u priorida<strong>de</strong> à educação, transforman<strong>do</strong>-se na minha primeira alfabetiza<strong>do</strong>ra. Quan<strong>do</strong><br />
cheguei à escola, já tinha conhecimento <strong>do</strong> alfabeto e sabia formar as sílabas, fator<br />
<strong>de</strong>terminante para um início com sucesso na longa caminhada rumo ao conhecimento. Era<br />
um aluno <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> que gostava muito <strong>de</strong> ler. Lembro-me da maneira ansiosa com a qual<br />
aguardava os novos livros, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ler novas histórias das quais me recor<strong>do</strong> <strong>de</strong> algumas até<br />
hoje. Alguns fatos <strong>de</strong>ssa época são inesquecíveis, como o episódio da roda <strong>de</strong> tabuada com<br />
direito a bolo <strong>de</strong> palmatória para quem errasse. A minha série, a 2ª, ainda não participava,<br />
mas eu, movi<strong>do</strong> pela curiosida<strong>de</strong>, resolvi participar, para meu <strong>de</strong>sespero mais tar<strong>de</strong>. Quan<strong>do</strong><br />
a roda começou, eu, que não tinha estuda<strong>do</strong> tabuada, comecei a apanhar bolo da turma. Para<br />
piorar a situação, minha mãe resolveu nesse dia e hora visitar-me na escola a fim <strong>de</strong> saber<br />
como eu estava me comportan<strong>do</strong>. Eu não posso afirmar com veemência que bolo <strong>de</strong> palmatória<br />
é remédio para quem não gosta <strong>de</strong> estudar tabuada, mas comigo funcionou <strong>de</strong> tal forma que<br />
nunca mais apanhei na roda.<br />
* Graduan<strong>do</strong> em Turismo na <strong>UFMA</strong>.<br />
Vencen<strong>do</strong> <strong>de</strong>safios<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 61
A carreira escolar foi tão promissora que, antes da 1 a série, já sabia ler e escrever; a<strong>do</strong>rava<br />
as histórias <strong>do</strong> livro da 1 a série intitula<strong>do</strong> É hora <strong>de</strong> ler. Na 2 a série, a gran<strong>de</strong> novida<strong>de</strong> ficou<br />
por conta da chegada da nova professora oriunda <strong>de</strong> Cururupu, município <strong>do</strong> qual faz parte a<br />
Prainha, povoa<strong>do</strong> em que residia. A professora Bibi - como era chamada - e sua família, foram<br />
e continuarão sen<strong>do</strong> parte da minha própria família; foi ela quem apostou na minha capacida<strong>de</strong><br />
e quan<strong>do</strong> apenas eu, <strong>de</strong> uma turma <strong>de</strong> aproximadamente vinte e cinco alunos, passei da 3 a para<br />
a 4 a série, sentin<strong>do</strong> ela que teria dificulda<strong>de</strong>s em ministrar aula para apenas um aluno da 4 a<br />
série, matriculou-me numa escola em Cururupu e levou-me para morar em sua casa, inician<strong>do</strong>se,<br />
assim, um novo momento na minha vida.<br />
Dou graças a Deus por ter aproveita<strong>do</strong> a oportunida<strong>de</strong>, pois como uma flecha lançada:<br />
uma vez perdida, nunca mais voltará. Sem dúvida: se não fosse por essa ação solidária da<br />
professora Bibi, talvez eu não estivesse neste momento escreven<strong>do</strong> este memorial. Alegrame<br />
saber que, em uma socieda<strong>de</strong> egoísta, capitalista, interesseira, ainda há pessoas como<br />
esta educa<strong>do</strong>ra e sua família; são pessoas como estas que nos fazem continuar acreditan<strong>do</strong><br />
na generosida<strong>de</strong>, no caráter e na bonda<strong>de</strong>.<br />
Em Cururupu aprendi várias lições para toda a vida, uma <strong>de</strong>las é a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se<br />
ter um objetivo e lutar para alcançá-lo, mesmo que aparentemente seja quase impossível -<br />
foi o meu caso. No ano seguinte, nos mudamos para São Luís, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>i prosseguimento a<br />
minha carreira escolar. Fui estudar em uma escola pública <strong>de</strong>nominada “Sousândra<strong>de</strong>”,<br />
localizada no Bairro <strong>do</strong> Lira, on<strong>de</strong> concluí o Ensino Fundamental. Nesse perío<strong>do</strong>, passamos<br />
por muitas dificulda<strong>de</strong>s, pois minha casa estava em construção e apenas minha mãe trabalhava<br />
para manter a família e ainda arcar com as <strong>de</strong>spesas escolares, mas como nossa educação era<br />
priorida<strong>de</strong>, não <strong>de</strong>ixamos <strong>de</strong> freqüentar a escola. Um ano <strong>de</strong>pois, meu avô conseguiu um<br />
emprego, fato que foi recebi<strong>do</strong> com muita alegria, pois, a partir <strong>de</strong> então, houve uma melhora<br />
em nossa situação financeira, colocan<strong>do</strong> um ponto final em nosso momento <strong>de</strong> crise.<br />
Assim, como no Ensino Fundamental, o Ensino Médio também transcorreu em<br />
instituição <strong>de</strong> ensino público, tu<strong>do</strong> ocorreu sem anormalida<strong>de</strong>s e eu concluí no tempo<br />
previsto. Sem nenhuma informação por parte da instituição <strong>de</strong> ensino on<strong>de</strong> eu estudava<br />
sobre a importância <strong>do</strong> vestibular e por me sentir <strong>de</strong>sprepara<strong>do</strong>, <strong>de</strong>cidi adiar este sonho,<br />
ainda que incentiva<strong>do</strong> pela minha mãe. Ven<strong>do</strong> a necessida<strong>de</strong> financeira da minha família,<br />
procurei, sem mais <strong>de</strong>longa, uma fonte <strong>de</strong> renda que proporcionasse ajuda para minha mãe<br />
e meu avô, únicos que possuíam renda até o momento. Um ano após a conclusão <strong>do</strong> Ensino<br />
Médio, tive a minha primeira experiência <strong>de</strong> trabalho, mas o sonho <strong>de</strong> ingressar no ensino<br />
superior não tinha morri<strong>do</strong>, estava apenas a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong>, dadas as circunstâncias que me<br />
foram impostas. Movi<strong>do</strong> pelo incentivo da minha família, prestei vestibular pela primeira<br />
vez em 1999, não obten<strong>do</strong> sucesso nesta investida. Após outras tentativas, prestei vestibular<br />
em 2005 para Turismo, quan<strong>do</strong> finalmente conquistei o sonho <strong>do</strong> Ensino Superior.<br />
Com o Ensino Superior, inicia-se uma nova etapa da minha vida. Encaro a universida<strong>de</strong><br />
como uma ferramenta a nossa disposição, sen<strong>do</strong> <strong>de</strong> nossa inteira responsabilida<strong>de</strong> o rumo a ser<br />
toma<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> ouvi falar <strong>do</strong> Programa “Conexões <strong>de</strong> Saberes”, fiquei surpreso e ao mesmo<br />
tempo feliz por esta iniciativa <strong>do</strong> governo que visa à permanência com qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s alunos<br />
<strong>de</strong> origem popular nas universida<strong>de</strong>s. É louvável esta ação que estabelece um diálogo mais<br />
sóli<strong>do</strong> entre as universida<strong>de</strong>s e as comunida<strong>de</strong>s populares, sem apresentar apenas a aca<strong>de</strong>mia<br />
como produtora <strong>do</strong> conhecimento, mas também, levan<strong>do</strong> em conta, o saber popular. Essa<br />
união contribuirá para a <strong>de</strong>mocratização <strong>do</strong> Ensino Superior em nosso Esta<strong>do</strong>.<br />
62 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Este espaço po<strong>de</strong>ria ser preenchi<strong>do</strong> com inúmeras experiências da minha vida familiar<br />
e escolar e assim teria concluí<strong>do</strong> este memorial com sucesso, mas <strong>de</strong>sta forma seria eu<br />
insensato, ingrato, pois faltariam os agra<strong>de</strong>cimentos a tantas pessoas que <strong>de</strong> alguma forma<br />
contribuíram para que este sonho se tornasse realida<strong>de</strong>.<br />
Agra<strong>de</strong>ço a princípio àquele que está no controle <strong>de</strong> todas as coisas, Deus, o to<strong>do</strong><br />
po<strong>de</strong>roso, nosso pai celeste, sem Ele, eu jamais teria conquista<strong>do</strong> as batalhas que a vida nos<br />
impõe em todas as esferas; a minha amada mãe, mulher <strong>de</strong> luta, amável e <strong>de</strong> um coração<br />
enorme e bon<strong>do</strong>so, melhor amiga, a jóia mais preciosa que possuo nesta vida, a minha mais<br />
fiel incentiva<strong>do</strong>ra; a minha avó, por quem eu tenho muito amor, pela motivação, embora<br />
que a sua maneira; ao meu avô, <strong>de</strong> sau<strong>do</strong>sa memória. Gostaria muito que pu<strong>de</strong>sse compartilhar<br />
esta alegria, pois o meu sonho era o sonho <strong>de</strong>le. Mas como os planos <strong>de</strong> Deus não são iguais<br />
aos nossos, um ano antes da minha conquista <strong>do</strong> Ensino Superior, ele faleceu. À minha<br />
família como um to<strong>do</strong>; a minha princesa que sempre me incentiva e me ajuda com os<br />
trabalhos acadêmicos e sempre me atura quan<strong>do</strong> chego às vezes preocupa<strong>do</strong> ou apreensivo<br />
com alguma tarefa; à família da minha querida professora Bibi, pela força que me <strong>de</strong>u<br />
quan<strong>do</strong> mais precisava. Enfim, a to<strong>do</strong>s que, <strong>de</strong> forma direta ou indireta, contribuíram para<br />
que esse objetivo se tornasse realida<strong>de</strong>.<br />
“Na vida, você só será aquilo que quiser ser.”<br />
Jonival<strong>do</strong> Lopes Santos<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 63
De on<strong>de</strong> vim e para on<strong>de</strong> eu quero ir agora<br />
64 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular<br />
Josenira <strong>do</strong>s Santos Veras *<br />
Acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> o amor<br />
“13 1 Ainda que eu falasse línguas,<br />
as <strong>do</strong>s homens e <strong>do</strong>s anjos,<br />
se eu não tivesse o amor,<br />
seria como sino rui<strong>do</strong>so<br />
ou como símbolo estri<strong>de</strong>nte<br />
2 Ainda que eu tivesse o <strong>do</strong>m da profecia,<br />
O conhecimento <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os mistérios e <strong>de</strong><br />
toda ciência;<br />
ainda que eu tivesse toda a fé,<br />
a ponto <strong>de</strong> transportar montanhas,<br />
se não tivesse o amor,<br />
eu não seria nada.”<br />
(I COR 13:1 e 2)<br />
A vida, a meu ver, é complexa e envolta em mistérios. Por que bons momentos são<br />
esqueci<strong>do</strong>s? Por que os momentos tristes persistem em nossa memória? Por que me esqueci<br />
da primeira palavra que pronunciei; <strong>do</strong> meu primeiro passo; <strong>do</strong> primeiro sabor que <strong>de</strong>gustei;<br />
<strong>do</strong> meu primeiro sentimento?<br />
Meu nome é Josenira, sou parda, tenho 21 anos e sou natural <strong>de</strong> São Luís – Ilha <strong>do</strong><br />
<strong>Maranhão</strong>. Resi<strong>do</strong> no bairro Jardim São Cristóvão, prefeitura <strong>de</strong> São Luís, e atualmente<br />
passo mais tempo na <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>, on<strong>de</strong> sou estudante <strong>do</strong> curso<br />
<strong>de</strong> Letras. Faço também outro curso <strong>de</strong> licenciatura: Geografia, na <strong>Universida<strong>de</strong></strong> Estadual<br />
<strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>.<br />
Minha família é <strong>de</strong> crença cristã, católica e é composta por seis pessoas:<br />
meu pai José; minha mãe Maria Virgínia, eu, meus irmãos: Jonas (primogênito),<br />
Josué e Raimunda, que convive conosco <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os seus <strong>do</strong>is anos. Papai e Jonas são<br />
técnicos agrícolas, porém somente meu irmão exerce a profissão; minha mãe é <strong>do</strong>na<br />
<strong>de</strong> casa; o Josué possui o Ensino Médio completo e a Raimunda está na 7ª série <strong>do</strong><br />
Ensino Fundamental.<br />
* Graduanda em Letras na <strong>UFMA</strong>.
Eu sou uma pessoa divertida, <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong> reservada e completamente apaixonada<br />
pela minha família, conseqüentemente sou muito caseira, mas não dispenso ir ao cinema<br />
com meus amigos. Gosto <strong>de</strong> ouvir músicas, cantar. Gosto da natureza e <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> que ela po<strong>de</strong><br />
oferecer <strong>de</strong> bom. Nela vejo o “<strong>de</strong><strong>do</strong> <strong>de</strong> Deus”, através <strong>de</strong> sua perfeição. Por falar Nele,<br />
agra<strong>de</strong>ço-lhe to<strong>do</strong>s os dias pela família, amigos e tu<strong>do</strong> que colocou em minha vida.<br />
Minha velha infância<br />
Consi<strong>de</strong>ro a infância a melhor fase da minha vida. Ela foi repleta <strong>de</strong> momentos<br />
maravilhosos e mágicos, que foram compartilha<strong>do</strong>s com meus irmãos, primos e minha<br />
melhor amiga: Heliana.<br />
Minha vida estudantil iniciou-se ce<strong>do</strong>; estu<strong>de</strong>i no Jardim <strong>de</strong> Infância “Tico e Teco” <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
o maternal até a alfabetização, meus irmãos estudavam na Instituição <strong>de</strong> Ensino Fundamental<br />
“Nossa Senhora Sagra<strong>do</strong> Coração” (ambas pertenciam à Igreja Católica <strong>do</strong> bairro).<br />
A escola, hoje extinta, ficava cerca <strong>de</strong> 30 minutos – <strong>de</strong> caminhada – da minha casa,<br />
aproximadamente 10 minutos em um veículo qualquer. Eu e meus irmãos éramos leva<strong>do</strong>s<br />
por papai em sua bicicleta e geralmente voltávamos com nossa mãe a pé.<br />
Minha rotina era mais ou menos assim: acordava muito ce<strong>do</strong>; seguia hábitos higiênicos<br />
e alimentares; ia para escola às 06:45; saía da escola por volta <strong>de</strong> 12:00. Chegava em casa,<br />
tomava banho; almoçava; <strong>de</strong>scansava e/ou <strong>do</strong>rmia; ao acordar, fazia minhas ativida<strong>de</strong>s<br />
escolares, <strong>de</strong>pois brincava com minha amiga Heliana e minha prima Mariana <strong>de</strong> escolinha<br />
ou casinha, ou subíamos na goiabeira <strong>do</strong> quintal e ficávamos horas e horas “curtin<strong>do</strong>” o<br />
vento forte em nossa casa da árvore. Ao final da tar<strong>de</strong>, tomava banho; jantava e assistia à TV.<br />
Depois <strong>de</strong> um dia “exaustivo”, <strong>do</strong>rmia na minha re<strong>de</strong>, mas antes da “fada-<strong>de</strong>-olhos” tocar<br />
meus cílios, balançava-me alto, bem alto, sem me<strong>do</strong>. Tu<strong>do</strong> se resumia a uma gran<strong>de</strong> e<br />
interminável brinca<strong>de</strong>ira...<br />
Nesse perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>iras e travessuras, papai ficou <strong>de</strong>semprega<strong>do</strong>, to<strong>do</strong> o dinheiro<br />
que conseguia (oriun<strong>do</strong> <strong>de</strong> “bicos” <strong>de</strong> pedreiro) era <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> às contas e mensalida<strong>de</strong>s, o pão<strong>de</strong>-cada-dia<br />
foi por muito tempo fia<strong>do</strong>. Papai, sem “bicos”, sem dinheiro, sem saída, fez um<br />
empréstimo junto ao banco (como muitos outros pelos quais passamos e que também foram<br />
supera<strong>do</strong>s), porém meus pais nunca <strong>de</strong>ixaram que <strong>do</strong>rmíssemos um dia sequer com fome.<br />
Lembro-me <strong>de</strong> um momento que me foi muito especial: quan<strong>do</strong> li pela primeira vez<br />
frases distintas da cartilha da escola, a frase era: “Lula não, Collor sim” e estava “pichada”<br />
no muro da base aérea <strong>do</strong> Aeroporto Carlos Cunha; muro que corta vários bairros <strong>de</strong> distrito<br />
<strong>do</strong> Tirirical.<br />
Outros momentos importantes <strong>de</strong> que me lembro foram a vinda <strong>do</strong> Papa João Paulo II<br />
ao <strong>Maranhão</strong> e quan<strong>do</strong> meu irmão Jonas não ficou <strong>de</strong> recuperação pela primeira vez...<br />
Novos rumos...<br />
No final <strong>de</strong> 1992, o “Tico e Teco” fechou. Eu havia terminan<strong>do</strong> a alfabetização, meus<br />
irmãos já cursavam o Ensino Fundamental, meu primo Paulo estava no segun<strong>do</strong> perío<strong>do</strong>.<br />
Foram to<strong>do</strong>s estudar na Escola Comunitária “Marly Sarney”, no Ipem São Cristóvão, agora<br />
pela tar<strong>de</strong>.<br />
Papai conseguiu um novo emprego como vigia, conseqüentemente houve melhorias<br />
em nossa qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, além disso, continuou com os “bicos” <strong>de</strong> pedreiro, pois era<br />
vigia somente à noite.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 65
Minha rotina mu<strong>do</strong>u: acordava por volta das 06:00, tomava um café reforça<strong>do</strong>, ia<br />
brincar por cerca <strong>de</strong> duas horas; merendava sucos naturais ou as próprias frutas (maracujá,<br />
abacate, manga, limão, goiaba, murta, ata, coco) colhidas no quintal, <strong>de</strong>pois ajudava<br />
minha mãe (varren<strong>do</strong> a casa, enchen<strong>do</strong> litros com água, enxugan<strong>do</strong> louças, etc.),<br />
enquanto meus irmãos auxiliavam meu pai no serviço <strong>de</strong> pedreiro. Almoçava ao meiodia,<br />
ia para a escola. Chegava em casa às 06:00; fazia minhas ativida<strong>de</strong>s escolares;<br />
<strong>de</strong>pois assistia ao meu <strong>de</strong>senho anima<strong>do</strong> favorito: “Cavaleiros <strong>do</strong> Zodíaco”, jantava e<br />
<strong>de</strong>pois ia <strong>do</strong>rmir.<br />
Em 1992, tinha 10 anos e fazia a 4ª série, era uma boa aluna. Nesse perío<strong>do</strong> aprendi a<br />
cozinhar com a supervisão <strong>de</strong> minha mãe. Nesse ano, lembro-me, papai ficou <strong>de</strong>semprega<strong>do</strong><br />
novamente. A diferença naquele momento era que compreendíamos (eu e meus irmãos) a<br />
situação em que nos encontrávamos. Várias foram as vezes em que almoçávamos somente<br />
feijão cozi<strong>do</strong> com água e sal , feito no fogareiro <strong>de</strong> barro – o feijão planta<strong>do</strong> no quintal e o<br />
fogareiro feito por papai...<br />
Na meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> 1996, papai conseguiu um novo emprego <strong>de</strong> vigia, em uma escola<br />
primária, perto da casa da minha avó. Na “Marly Sarney”, estudava bastante, pois nunca<br />
fiquei <strong>de</strong> recuperação e valorizo o “suor” <strong>de</strong> meus pais...<br />
Você não sabe o quanto eu caminhei...<br />
Papai trocou <strong>de</strong> emprego: <strong>de</strong>ixou a escola que vigiava todas as noites e passou a<br />
vigiar uma empresa, a uma quadra <strong>de</strong> nossa casa, em dias alterna<strong>do</strong>s. Meus irmãos cursavam<br />
o Ensino Médio: Jonas na Escola Agrotécnica <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> e Josué no “Liceu<br />
Maranhense”; a Raimunda fazia o jardim, em um bairro vizinho ao nosso, para o qual eu a<br />
levava e buscava to<strong>do</strong>s os dias, junto com o meu primo Raimun<strong>do</strong> José.<br />
O Ensino Fundamental foi um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> muitas <strong>de</strong>scobertas, fiz muitas amiza<strong>de</strong>s. Foi<br />
também um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s perdas e nascimentos na minha gran<strong>de</strong> família.<br />
A minha rotina mu<strong>do</strong>u um pouco: além <strong>de</strong> levar a Raimunda para a escola, fazia a<br />
“feira” da casa e ministrava aulas particulares.<br />
No final <strong>do</strong> ano 2000, fiz os seletivos para o “Liceu” e CEFET, mas não fui aprovada<br />
em nenhuma <strong>de</strong>las.<br />
Valeu a pena...<br />
Em 2001 fui estudar no “Almirante Tamandaré”. Nessa escola cursei apenas a 1ª série<br />
<strong>do</strong> Ensino Médio, mas as séries seguintes cursei no “Liceu Maranhense”.<br />
No “Almirante” fiz gran<strong>de</strong>s amiza<strong>de</strong>s, conheci novos bairros, realida<strong>de</strong>s, conheci<br />
também a indiferença e <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s por parte <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> em relação à educação: estrutura<br />
<strong>de</strong>ficiente, professores faltosos, gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> alunos evadi<strong>do</strong>s e repetentes: sistema<br />
educacional <strong>de</strong>fasa<strong>do</strong>, porém conheci também pessoas que tentavam reverter este quadro,<br />
através <strong>de</strong> planejamento e ações inteligentes.<br />
O ano <strong>de</strong> 2001 foi muito importante para mim: meu pai foi aprova<strong>do</strong> no seletivo da<br />
Escola Agrotécnica <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> para o curso <strong>de</strong> Técnico Agrícola; meu irmão<br />
Jonas conseguiu um bom emprego em Balsas (interior <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>), em sua área <strong>de</strong> formação;<br />
conheci minha amiga Karla; foi o ano <strong>do</strong> lançamento <strong>do</strong> CD <strong>do</strong> “Red Hot Chili Peppers –<br />
Californication”. No final <strong>de</strong> 2001, Karla insistiu para que fizéssemos o seletivo para o<br />
“Liceu” novamente; fui aprovada, mas ela não.<br />
66 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Em 2002 fui cursar a 2ª série no “Liceu”, ambiente semelhante ao “Almirante”, salvo a<br />
sua estrutura: bem melhor, afinal o “Liceu” é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> o melhor colégio público <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.<br />
No “Liceu” fiz gran<strong>de</strong>s amiza<strong>de</strong>s e em especial com Dayanna e Liana, minhas duas “irmãs”.<br />
No “Liceu” <strong>de</strong>senvolvi várias pesquisas e trabalhos interdisciplinares relaciona<strong>do</strong>s<br />
aos bairros da capital sobre a importância turística e ecológica da Ilha Cajual, e a importância<br />
e características <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s brasileiros. Os <strong>do</strong>is últimos trabalhos foram produzi<strong>do</strong>s para a<br />
Jornada anual da escola.<br />
Durante três anos (2001, 2002, 2003), fiz os seletivos <strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Seleção (PSG)<br />
da <strong>UFMA</strong> e Programa <strong>de</strong> Acesso ao Ensino Superior (PASES) da UEMA, obtive boas<br />
classificações, principalmente porque não fiz nenhum tipo <strong>de</strong> cursinho, porém não havia<br />
<strong>de</strong>cidi<strong>do</strong> as opções <strong>de</strong> curso: Agronomia? Letras? História?<br />
No final <strong>de</strong> 2003, papai terminou seu curso <strong>de</strong> Técnico Agrícola. Nesse perío<strong>do</strong> cheguei<br />
a uma solução sobre as minhas opções <strong>de</strong> cursos no vestibular: <strong>de</strong>cidi por Letras na <strong>UFMA</strong><br />
e Geografia na UEMA. Ainda em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2003, fiz as duas etapas <strong>do</strong> PSG da <strong>UFMA</strong> e,<br />
em janeiro <strong>de</strong> 2004, enquanto esperava ansiosa pelo resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> PSG, estudava para o<br />
PASES, pois as datas das provas se aproximavam.<br />
Eu estava ciente <strong>de</strong> que seria aprovada na <strong>UFMA</strong> <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à minha boa colocação na<br />
primeira etapa, por ter feito uma “boa” prova <strong>de</strong> língua portuguesa e literatura e provas<br />
razoáveis <strong>de</strong> espanhol e redação. Contu<strong>do</strong>, tinha certeza também <strong>de</strong> que o mesmo não<br />
ocorreria na UEMA: tinha feito provas difíceis e a concorrência era gran<strong>de</strong>. Em março saiu<br />
o resulta<strong>do</strong>: fui aprovada em ambos, para minha alegria e satisfação <strong>de</strong> toda a família.<br />
Ingressei na <strong>UFMA</strong> em abril. Acordava muito ce<strong>do</strong>, pois a instituição fica uma hora e<br />
meia <strong>do</strong> meu bairro, principalmente se o percurso é feito por transporte coletivo. Saía da<br />
<strong>UFMA</strong> por volta <strong>de</strong> meio dia e chegava em casa às 14:00 horas. Foi também nesse perío<strong>do</strong><br />
que meu irmão mais velho foi transferi<strong>do</strong> <strong>de</strong> Balsas para uma fazenda em Chapadinha, ou<br />
seja, para mais perto <strong>de</strong> casa, para a alegria da família!<br />
No começo todas as minhas <strong>de</strong>spesas foram bancadas pelo meu pai, <strong>de</strong>pois por meus<br />
<strong>do</strong>is irmãos. Era uma situação difícil porque muitas vezes sabia que meu pai não tinha<br />
dinheiro e o via pedin<strong>do</strong> empresta<strong>do</strong> para eu comprar passe escolar; tirar fotocópias e<br />
adquirir outros materiais. A situação ficou mais <strong>de</strong>licada quan<strong>do</strong> comecei o curso <strong>de</strong> Geografia<br />
na UEMA, com a duplicação da <strong>de</strong>spesa.<br />
Ao longo <strong>de</strong> <strong>do</strong>is anos, a rotina estressante da <strong>UFMA</strong> foi me <strong>de</strong>sestimulan<strong>do</strong> pouco a<br />
pouco; não tinha como evitar comparações entre os <strong>do</strong>is cursos: a UEMA ficava a quinze<br />
minutos <strong>de</strong> ônibus da minha casa; e o curso era noturno; a turma, no que se refere a sua<br />
origem, possuía histórias <strong>de</strong> vida semelhantes a minha (mesma classe social, resi<strong>de</strong>ntes da<br />
periferia e etc.), consequentemente éramos muito uni<strong>do</strong>s. Em contrapartida a <strong>UFMA</strong> era<br />
distante <strong>de</strong> casa, a turma muito <strong>de</strong>sunida, o curso era diurno e a estrutura da <strong>UFMA</strong> débil:<br />
biblioteca <strong>de</strong>fasada, com muitos livros bem antigos e/ou mal conserva<strong>do</strong>s; poucos<br />
computa<strong>do</strong>res para fazermos trabalhos, muitas greves, etc.<br />
No curso <strong>de</strong> Letras, conheci muitas pessoas interessantes: Thiago foi a primeira <strong>de</strong>las,<br />
<strong>de</strong>pois veio Elenir, Priscila, Daphne, Jonas, Marco An<strong>de</strong>rson, a turma <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> anterior ao<br />
nosso... o mesmo aconteceu no curso <strong>de</strong> Geografia.<br />
Atualmente estou no sexto perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> Letras e <strong>de</strong> Geografia, <strong>de</strong>veria estar no sétimo<br />
<strong>de</strong> Letras, pois estou atrasada <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> às greves... se alguém perguntasse: “Valeu a pena fazer<br />
o curso <strong>de</strong> Letras?” Decerto não saberia respon<strong>de</strong>r. Acredito que os pontos negativos e<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 67
positivos se alternam. Mas, pela minha experiência <strong>de</strong> vida, percebo a carência <strong>de</strong> ações<br />
afirmativas no tocante ao ingresso e permanência <strong>de</strong> estudantes <strong>de</strong> origem popular na<br />
universida<strong>de</strong>, pois muitos estudantes “estudam” muito, sem condições <strong>de</strong> freqüentar<br />
cursinhos pré-vestibulares. Depois <strong>de</strong> muitas tentativas sem sucesso, são aprova<strong>do</strong>s no<br />
seletivo vestibular e, ao ingressarem na universida<strong>de</strong>, vêem seus sonhos acabarem <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a<br />
problemas financeiros, a “<strong>de</strong>talhes” que modificam toda uma história <strong>de</strong> luta e persistência.<br />
Terminam por fazer <strong>de</strong> um sonho ou realização uma frustração ou <strong>de</strong>sassossego.<br />
Canción <strong>de</strong> Amor<br />
Quisiera ser convexo<br />
para tu mano côncava.<br />
Y como un tronco hueco<br />
para acogerte en mi regazo<br />
y darte sombra y sueño<br />
Suave y horizontal e interminable<br />
para la huella alterna y presurosa<br />
<strong>de</strong> tu pie izquier<strong>do</strong><br />
y <strong>de</strong> tu pie <strong>de</strong>recho.<br />
Ser <strong>de</strong> todas las formas<br />
como água siempre a gusto en cualquier<br />
[...vaso<br />
siempre abrazán<strong>do</strong>te por <strong>de</strong>ntro.<br />
Y también como vaso<br />
para abrazar por fuera al mismo tiempo.<br />
Como el água hecha vaso<br />
tu confín – <strong>de</strong>ntro y fuera – sempre<br />
[...exacto.<br />
68 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular<br />
Gerar<strong>do</strong> Diego
Lidiana Diniz Azeve<strong>do</strong> *<br />
Sou filha <strong>de</strong> Raimun<strong>do</strong> Azeve<strong>do</strong> e Lídia Diniz, ambos negros oriun<strong>do</strong>s, respectivamente,<br />
<strong>de</strong> Penalva e Alcântara, cida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> interior <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>. Possuem apenas o Ensino<br />
Fundamental incompleto e exerciam, naquela época, as profissões <strong>de</strong> pedreiro e empregada<br />
<strong>do</strong>méstica. Conheceram e se casaram na Liberda<strong>de</strong>, um bairro da periferia <strong>de</strong> São Luis on<strong>de</strong>,<br />
até hoje, moramos, e tiveram quatros filhos: Lidiana, Ana Lídia, Adriana e Leandro.<br />
Eu e meus irmãos tivemos uma infância com poucos recursos, pois minha mãe tinha<br />
que trabalhar em média 10 h por dia e sete vezes por semana, chegan<strong>do</strong> a andar mais <strong>de</strong><br />
cinco quilômetros da nossa casa até o seu emprego, para economizar sua passagem e comprar<br />
o pão no dia seguinte. Nós nunca passamos fome, mas a maioria das nossas roupas e sapatos<br />
era <strong>do</strong>ada; os brinque<strong>do</strong>s eram apenas os imaginários e, apesar <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> isso, me lembro com<br />
sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sse perío<strong>do</strong>, já que nossos pais nos ofereceram o essencial para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
humano: amor e educação.<br />
Nas séries iniciais, estu<strong>de</strong>i na escola comunitária “Olhar <strong>de</strong> Maria” e foi uma experiência<br />
um pouco <strong>de</strong>sagradável, porque a sala <strong>de</strong> aula era lotada. Os últimos alunos que chegavam se<br />
sentavam no chão, sem contar as brigas. Em uma <strong>de</strong>las, fui vítima <strong>de</strong> agressão. Na terceira série<br />
<strong>do</strong> Ensino Fundamental, fui para a escola municipal “Mario Andreazza” on<strong>de</strong> conheci um<br />
professor chama<strong>do</strong> Elias, um <strong>do</strong>s que contribuíram significativamente para a minha vida.<br />
Elias era professor <strong>de</strong> Matemática, mora<strong>do</strong>r da comunida<strong>de</strong>. Além <strong>de</strong> lecionar, ele se<br />
comportava como um pai <strong>de</strong>ntro da sala <strong>de</strong> aula. Contava-nos várias historias <strong>de</strong> sua vida<br />
acadêmica, as alegrias por ter cursa<strong>do</strong> o Ensino Superior e principalmente os preconceitos<br />
que sofria por ter si<strong>do</strong> o único negro em sua turma. Em minha turma, a maioria <strong>do</strong>s alunos<br />
era negra e mora<strong>do</strong>ra da periferia. Estávamos ali apenas obter notas e passar <strong>de</strong> ano. Éramos<br />
<strong>de</strong>sinteressa<strong>do</strong>s, e isso o incomodava muito, pois ele queria fomentar em nós o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />
apren<strong>de</strong>r e com isso sempre nos questionava sobre o que queríamos para o nosso futuro. Se<br />
queríamos, por exemplo, “contribuir” para a continuação <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social da qual<br />
éramos vítimas.<br />
Com o passar <strong>do</strong> tempo, ele conseguiu conscientizar a maioria da turma e começamos<br />
a nos interessar pelos estu<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>spertan<strong>do</strong>-nos a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> cursar uma universida<strong>de</strong>. Acho<br />
que ele cumpriu o seu papel enquanto professor – o <strong>de</strong> fomentar em seus educan<strong>do</strong>s uma<br />
certa conscientização <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>, compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> assim a lógica que rege esta socieda<strong>de</strong><br />
em que vivemos.<br />
* Graduanda em Pedagogia na <strong>UFMA</strong>.<br />
Meus pais, minha vida<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 69
No Ensino Médio, estu<strong>de</strong>i na escola estadual “Nerval Lebre Santiago”, on<strong>de</strong> a falta <strong>de</strong><br />
professores e livros foi um <strong>do</strong>s entraves a ser venci<strong>do</strong>. Os meus pais mal tinham a condição<br />
<strong>de</strong> comprar o fardamento escolar. Sem ele, éramos impedi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> assistir às aulas. A<br />
conseqüência <strong>de</strong>sses fatos foi o total <strong>de</strong>spreparo para fazer um vestibular.<br />
Com a conclusão <strong>do</strong> Ensino Médio, comecei a trabalhar em uma loja como ven<strong>de</strong><strong>do</strong>ra<br />
externa e posteriormente como ven<strong>de</strong><strong>do</strong>ra interna, mas a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> estudar continuava.<br />
Meu salário dava apenas para pagar um cursinho comunitário e foi o isso que fiz. Como<br />
fiquei mais <strong>de</strong> três anos longe <strong>do</strong>s livros, custei a pegar o “ritmo”. Como conseqüência,<br />
fiquei reprovada no meu primeiro vestibular, mas não <strong>de</strong>sisti e, no ano seguinte, fui aprovada<br />
para o curso <strong>de</strong> Pedagogia na <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>, on<strong>de</strong> conheci a minha<br />
amiga Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s, uma das pessoas responsáveis por eu estar participan<strong>do</strong> <strong>do</strong> projeto<br />
“Conexões <strong>de</strong> Saberes”.<br />
Dentro <strong>do</strong>s muros da universida<strong>de</strong>, mais <strong>de</strong>safios a serem venci<strong>do</strong>s. Na sala <strong>de</strong> aula, me<br />
sentia um pouco <strong>de</strong>slocada, pois não vivia a mesma realida<strong>de</strong> da maioria <strong>do</strong>s meus colegas,<br />
o discurso <strong>do</strong>s textos, <strong>do</strong>s professores, das avaliações era algo inédito para mim, sem contar<br />
a questão financeira, já que me <strong>de</strong>spediram pouco antes <strong>de</strong> começar o curso.<br />
Começou a fluir em mim o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> aban<strong>do</strong>nar o curso e procurar um novo emprego.<br />
Estava muito <strong>de</strong>sanimada e sentia que meu rendimento acadêmico não estava sen<strong>do</strong><br />
satisfatório. Foi quan<strong>do</strong> participei da seleção para o programa “Conexões <strong>de</strong> Saberes” e,<br />
para minha felicida<strong>de</strong>, passei e encontrei mais vinte e quatro “conexistas”, maravilhosos<br />
por sinal, que enfrentavam <strong>de</strong>safios pareci<strong>do</strong>s com os meus.<br />
Com a convivência com este grupo, a minha auto-estima foi aos poucos se<br />
reestruturan<strong>do</strong> e o problema foi ameniza<strong>do</strong>. O mais importante: o crescimento <strong>de</strong> minha<br />
conscientização enquanto sujeito atuante nessa socieda<strong>de</strong>.<br />
Hoje, me consi<strong>de</strong>ro uma aluna mais atuante, cada vez mais apaixonada pelo meu<br />
curso. Os meus pais, ambos funcionários públicos, continuam sen<strong>do</strong> o nosso “porto seguro”.<br />
Espero um dia po<strong>de</strong>r retribuir-lhes um pouco <strong>do</strong>s sacrifícios vivi<strong>do</strong>s por eles para nos<br />
oferecer o essencial, sempre com dignida<strong>de</strong>. Por isso o que faço é por eles e para eles, em<br />
nome <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> amor que nutro por esse casal maravilhoso.<br />
70 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Lourdilene <strong>de</strong> Fátima Teixeira Ferreira *<br />
O meu nome é Lourdilene <strong>de</strong> Fátima Teixeira Ferreira, sou natural <strong>de</strong> São Luís<br />
<strong>Maranhão</strong>, nasci no dia 08 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1975, às 13:00 da tar<strong>de</strong>, num dia <strong>de</strong> <strong>do</strong>mingo.<br />
Costumo dizer que vim ao mun<strong>do</strong> num dia e mês especial, o mês das flores, das mães,<br />
das noivas e <strong>de</strong> Nossa Senhora <strong>de</strong> Fátima, quan<strong>do</strong>, por coincidência <strong>do</strong> <strong>de</strong>stino, nasci<br />
no dia das mães e numa data em que é comemora<strong>do</strong> o dia da Vitória. Sou filha <strong>de</strong> uma<br />
mulher guerreira que lutou muito durante toda sua vida para vencer as dificulda<strong>de</strong>s que<br />
a vida lhe apresentava, minha sau<strong>do</strong>sa mãe se chamava Izis <strong>de</strong> Jesus Teixeira e, quan<strong>do</strong><br />
criança, sofreu muito por causa <strong>de</strong> problemas familiares, porém um <strong>do</strong>s motivos <strong>de</strong>sses<br />
problemas foi o falecimento <strong>de</strong> sua mãe, que a <strong>de</strong>ixou com mais três irmãs. Com muita<br />
dificulda<strong>de</strong> em po<strong>de</strong>r criar e educar suas filhas, meu avô resolveu entregar minha mãe e<br />
uma <strong>de</strong> suas irmãs que se chamava Lélis para o meu bisavô que ficaria responsável pela<br />
educação <strong>de</strong> ambas.<br />
Durante o tempo em que ficou sob <strong>do</strong>s cuida<strong>do</strong>s <strong>do</strong> meu bisavô, per<strong>de</strong>u o contato com<br />
a sua família e somente aos 18 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> reencontrou-se com seu pai; foi um momento<br />
marcante, pois não sabia on<strong>de</strong> morava sua família. Mesmo diante <strong>do</strong>s obstáculos, sempre se<br />
mostrou uma mulher forte, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e <strong>de</strong> boa ín<strong>do</strong>le. Essas características foram<br />
fundamentais para a formação da personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas filhas.<br />
Toda a minha vida estu<strong>de</strong>i em escola pública, iniciei minha vida escolar com 6<br />
anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, no Jardim <strong>de</strong> Infância “ Solfia Silva”, localiza<strong>do</strong> na Rua Boa Esperança<br />
s/n, na Vila Passos, bairro em que moro até hoje. Nessa escolinha geralmente quem<br />
estudava eram as crianças que moravam próximas. Lembro-me <strong>de</strong> que, quan<strong>do</strong> ingressei<br />
nessa escolinha, já sabia escrever o meu nome e ler algumas palavras. A pessoa<br />
responsável pelo meu primeiro contato com o mun<strong>do</strong> da escrita e da leitura foi a minha<br />
querida e única irmã Izilene que consi<strong>de</strong>ro como minha segunda mãe. Quan<strong>do</strong> nasci,<br />
ela estava com onze anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> e teve que passar a estudar no horário noturno para<br />
cuidar <strong>de</strong> mim, porque minha mãe trabalhava como <strong>do</strong>méstica na casa <strong>de</strong> uma família<br />
conhecida em São Luís e, com um mês <strong>do</strong> meu nascimento, teve que voltar a trabalhar<br />
para não per<strong>de</strong>r o emprego que era sua única fonte <strong>de</strong> renda para nos sustentar, já que<br />
meu pai não assumiu a minha paternida<strong>de</strong>. Izilene assumiu o papel <strong>de</strong> educa<strong>do</strong>ra<br />
na minha vida, abriu-me a porta <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> até então <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>: “O mun<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> conhecimento”.<br />
* Graduanda em Bibliotecnomia na <strong>UFMA</strong>.<br />
In Memorian<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 71
Quan<strong>do</strong> chegava da escola, minha irmã passava horas e horas me ensinan<strong>do</strong> a tabuada<br />
e a soletrar a Cartilha <strong>do</strong> ABC. No início tive muitas dificulda<strong>de</strong>s em apren<strong>de</strong>r e muitas<br />
vezes fiquei até <strong>de</strong> castigo, porque minha irmã não admitia a pouca assimilação que tinha<br />
<strong>do</strong>s assuntos que estudava. Lembro-me com muita sauda<strong>de</strong> da minha professora conhecida<br />
como Bulica, era uma jovem sorri<strong>de</strong>nte e atenciosa com seus alunos. Ela sempre me tratava<br />
com carinho e às vezes até me <strong>de</strong>ixava em casa. Essa fase escolar foi bastante enriquece<strong>do</strong>ra<br />
para mim, pois foi o perío<strong>do</strong> em que mais me diverti, pois os alunos participavam <strong>de</strong><br />
brinca<strong>de</strong>iras recreativas to<strong>do</strong>s os dias e das festinhas <strong>de</strong> comemoração como: Páscoa, Dia <strong>do</strong><br />
Índio, São João e Natal.<br />
No ano <strong>de</strong> 1982, ingressei na Escola “Sotero <strong>do</strong>s Reis” on<strong>de</strong> estu<strong>de</strong>i no turno vespertino<br />
<strong>do</strong> antigo primário. Nessa época a Secretaria <strong>de</strong> Educação era responsável pelos lanches e<br />
materiais didáticos como livros, ca<strong>de</strong>rnos, lápis, borracha que eram distribuí<strong>do</strong>s aos alunos.<br />
A 1 a série foi importante para mim, pois aprendi a fazer cópia, dita<strong>do</strong> e leitura <strong>de</strong> textos.<br />
Gostava muito também da aula <strong>de</strong> Educação Artística, vivia <strong>de</strong>senhan<strong>do</strong> bonecas em<br />
ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho. A minha professora pedia sempre aos pais <strong>do</strong>s alunos que comprassem<br />
ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> caligrafia para exercitarem a escrita e é por isso que tenho hoje em dia a letra<br />
bonita e legível.<br />
Na 2 a série, minha professora se chamava Madalena e as ativida<strong>de</strong>s em sala <strong>de</strong> aula<br />
eram feitas em grupos <strong>de</strong> alunos ou equipes, como era chama<strong>do</strong>s na época. Na sala ficavam<br />
duas estagiárias secundaristas <strong>do</strong> Curso <strong>de</strong> Magistério que auxiliavam a professora nas<br />
ativida<strong>de</strong>s em sala <strong>de</strong> aula. Muitas vezes, a professora ficava conversan<strong>do</strong> e dan<strong>do</strong> conselhos<br />
aos alunos sobre a importância <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> e das famílias em nossas vidas.<br />
Na 3 a série, foi a fase mais difícil para mim, pois, <strong>de</strong> todas as disciplinas, Matemática<br />
era aquela com a qual mais tinha dificulda<strong>de</strong>. To<strong>do</strong>s os dias a professora Auxilia<strong>do</strong>ra fazia<br />
a sabatina da tabuada, tinha dificulda<strong>de</strong>s com ela e, todas as vezes em que errava na hora da<br />
sabatina, ficava impossibilitada <strong>de</strong> ir participar <strong>do</strong> recreio. Diante <strong>de</strong>ssa situação, a professora<br />
resolveu comunicar a minha mãe sobre as minhas dificulda<strong>de</strong>s com a Matemática. A partir<br />
<strong>de</strong>sse momento, passei a estudar to<strong>do</strong>s os dias a tabuada e percebi o reconhecimento da<br />
minha professora pelo meu esforço.<br />
Na 4 a série começava a ser responsável pelos meus estu<strong>do</strong>s, conseguia estudar e resolver<br />
sozinha as ativida<strong>de</strong>s escolares; era o início da minha in<strong>de</strong>pendência estudantil. Nessa fase<br />
já tinha sonhos profissionais <strong>de</strong> ser advogada, cantora e jornalista. Tirava notas boas e<br />
percebia o orgulho no rosto da minha irmã quan<strong>do</strong> ia buscar o meu boletim na escola.<br />
Da 5 a à 8 a séries <strong>do</strong> Ensino Fundamental, estu<strong>de</strong>i na escola “Unida<strong>de</strong> Integrada<br />
Sousândra<strong>de</strong>”, on<strong>de</strong> tive que me esfoçar muito para ter êxito em todas as disciplinas. Algumas<br />
vezes tive até professor particular para me ensinar, pois minha mãe não queria que ficasse<br />
reprovada. Na minha casa o estu<strong>do</strong> sempre foi coloca<strong>do</strong> como uma necessida<strong>de</strong> para o<br />
nosso crescimento pessoal e profissional.<br />
No ano <strong>de</strong> 1991, tive que passar por uma seleção para po<strong>de</strong>r estudar no “Centro <strong>de</strong><br />
Ensino <strong>do</strong> 2° grau Coelho Neto”, on<strong>de</strong> fiz o curso profissionalizante Técnico em Administração.<br />
Nessa época já pensava no vestibular, mas, como fazia um curso técnico profissionalizante,<br />
percebia a dificulda<strong>de</strong> que teria quan<strong>do</strong> prestasse vestibular, porque o conteú<strong>do</strong> das disciplinas<br />
não estava sen<strong>do</strong> ministra<strong>do</strong> corretamente pelos professores. Isso com certeza no futuro seria<br />
um problema para os alunos que almejavam ingressar na universida<strong>de</strong>. Nessa época ainda<br />
sentia o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> prestar vestibular para Direito e Jornalismo.<br />
72 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Durante o Ensino Médio, tive algumas experiências profissionais: fui estagiária<br />
durante seis meses da Divisão <strong>de</strong> Direitos e Deveres (DDD) da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>Maranhão</strong>. Esse estágio me foi bastante enriquece<strong>do</strong>r, pois aprendi a realizar algumas<br />
ativida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> serviço público como: digitação <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos, entrada e saída <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos<br />
via protocolo e atendimento ao público. Tinha a ilusão, nesse perío<strong>do</strong>, <strong>de</strong> que conseguiria<br />
emprego facilmente, mas tu<strong>do</strong> aconteceu <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> contrário, pois, após o término, fiquei<br />
um bom tempo procuran<strong>do</strong> emprego.<br />
Resolvi prestar vestibular. Como tinha si<strong>do</strong> isenta da taxa <strong>de</strong> inscrição, nessa época o<br />
vestibulan<strong>do</strong> tinha direito a duas opções <strong>de</strong> curso; resolvi então concorrer a uma vaga em<br />
Direito e outra em Jornalismo, mas infelizmente não fui aprovada, porque o meu Ensino<br />
Médio foi muito <strong>de</strong>ficiente. Foi então que percebi a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> freqüentar um curso<br />
Pré–Vestibular, mas a condição financeira em que me encontrava não permitia o acesso a<br />
um cursinho, porque o custo das mensalida<strong>de</strong>s era tão alto que às vezes chegava a quase um<br />
salário mínimo.<br />
Mesmo com muita dificulda<strong>de</strong> financeira, minha mãe resolveu investir no meu sonho<br />
<strong>de</strong> ingressar numa universida<strong>de</strong> pública e me pediu que procurasse um curso que fosse<br />
acessível a minha condição financeira. Consegui me matricular num cursinho, mas estu<strong>de</strong>i<br />
apenas por poucos meses, pois minha mãe a<strong>do</strong>eceu <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a problemas com diabetes e<br />
hipertensão arterial, ten<strong>do</strong> que ficar internada durante muito tempo e então começaram a<br />
surgir os obstáculos que me impossibilitariam <strong>de</strong> realizar o meu sonho <strong>de</strong> passar no vestibular.<br />
Diante <strong>de</strong> tanta dificulda<strong>de</strong>s, comecei a pensar em soluções para voltar a estudar,<br />
então resolvi procurar um emprego. Um belo dia pela manhã, minha irmã me avisou que<br />
uma empresa que fica próxima a minha casa, no bairro da Areinha, estava fazen<strong>do</strong> cadastro<br />
<strong>de</strong> pessoas para trabalhar em serviços gerais. Cheguei a essa empresa às 9:00 e só consegui<br />
me cadastrar às 17:30. Essa empresa se chama SERVI-SAN e tinha obti<strong>do</strong> o contrato <strong>de</strong><br />
licitação para prestar serviço na <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> (<strong>UFMA</strong>). Após duas<br />
semanas em que tinha me cadastra<strong>do</strong>, fui chamada para trabalhar. Por ironia <strong>do</strong> <strong>de</strong>stino, o<br />
primeiro local em que prestei serviço para essa empresa foi a Biblioteca Central que passava<br />
por reformas. Lembro-me que passava horas limpan<strong>do</strong> livros, pois o meu expediente<br />
começava às 13:00 e terminava às 21:00.<br />
Com um mês em que estava trabalhan<strong>do</strong>, minha mãe faleceu. Sofri muito, mas, para<br />
aliviar minha <strong>do</strong>r, resolvi me agarrar aos ensinamentos <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong>s por ela que sempre me<br />
falava que com estu<strong>do</strong> se vence tu<strong>do</strong>. Com essa perda a necessida<strong>de</strong>, a vonta<strong>de</strong> e a<br />
<strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> passar no vestibular aumentaram.<br />
A <strong>Universida<strong>de</strong></strong> Estadual <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> (UEMA) resolveu criar um cursinho conheci<strong>do</strong><br />
como SOS; fiz a seleção, passei e consegui estudar durante um ano no turno noturno. As<br />
aulas eram ministradas pelos professores da universida<strong>de</strong> e recebíamos gratuitamente to<strong>do</strong><br />
o material didático. Quan<strong>do</strong> chegou o perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> inscrição para o vestibular, <strong>de</strong>cidi por<br />
Biblioteconomia que oferecia 50 vagas. Fui bem classificada para a segunda etapa e confiante<br />
na aprovação. No entanto, para minha surpresa, quan<strong>do</strong> saiu o resulta<strong>do</strong>, fiquei como<br />
exce<strong>de</strong>nte, o que me <strong>de</strong>sestimulou muito.<br />
Acabei me acomodan<strong>do</strong> e passei uns três anos sem fazer vestibular por algum tempo.<br />
Foi uma das piores atitu<strong>de</strong>s que tomei na minha vida. Mesmo distante <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s, sentia<br />
que algo me faltava, tinha uma sensação <strong>de</strong> vazio. Foi então que resolvi começar a lutar <strong>de</strong><br />
novo pelo sonho <strong>de</strong> ingressar na universida<strong>de</strong>. Voltei a estudar em cursinhos particulares e<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 73
fiz vestibular para Filosofia, mas não fui aprovada nem na primeira etapa, mas <strong>de</strong>ssa vez não<br />
ia <strong>de</strong>sistir <strong>do</strong> meu i<strong>de</strong>al. Voltei a estudar no turno matutino no cursinho da UEMA que <strong>de</strong>ssa<br />
vez se chamava cursinho da Cidadania, assistia aula por televisão, pois a meto<strong>do</strong>logia <strong>de</strong><br />
ensino utilizada <strong>de</strong>ssa vez pelo cursinho era o Telensino.<br />
Quan<strong>do</strong> terminava a aula, ia direto para o trabalho, pois continuava trabalhan<strong>do</strong> em<br />
serviços gerais na <strong>UFMA</strong>. Chegava em casa cansada, mas mesmo assim pegava os meus<br />
livros e apostilas e ficava estudan<strong>do</strong> até tar<strong>de</strong> da noite.<br />
Resolvi me inscrever mais uma vez no vestibular e mais uma vez para Biblioteconomia<br />
que oferecia somente 26 vagas. Fui classificada em quarto lugar para este curso, foi então<br />
que percebi que o meu sonho já era uma realida<strong>de</strong>. Quan<strong>do</strong> saiu o resulta<strong>do</strong> da 2° etapa,<br />
estava aprovada, fiquei muito feliz porque sabia que a minha luta e vitória para ingressar na<br />
universida<strong>de</strong> mudaria a minha vida para melhor. Mas como nem tu<strong>do</strong> é felicida<strong>de</strong>, fiquei<br />
<strong>de</strong>sempregada <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> oito anos em que trabalhava na empresa terceirizada que prestava<br />
serviço para a <strong>UFMA</strong>. Fiquei muito triste e muito preocupada, porque estava fazen<strong>do</strong> alguns<br />
cursos para me reciclar como curso <strong>de</strong> computação e não sabia como iria me manter na<br />
universida<strong>de</strong> ten<strong>do</strong> <strong>de</strong>spesas com materiais didáticos: cópias, livros e digitação <strong>de</strong> trabalhos<br />
acadêmicos, mas a minha irmã se prontificou logo a me ajudar nesse momento difícil, para<br />
que não <strong>de</strong>sistisse <strong>de</strong> estudar na universida<strong>de</strong>.<br />
Quan<strong>do</strong> estava no final <strong>do</strong> 2° perío<strong>do</strong>, fui chamada para comparecer na secretaria <strong>do</strong><br />
Centro <strong>de</strong> Ciências Sociais (CCSO) da <strong>UFMA</strong>. Era o senhor Raimun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Santos, secretário<br />
<strong>do</strong> CCSO, que queria falar comigo. Ao chegar à sala, fui abordada com a seguinte pergunta:<br />
Você está com sua <strong>do</strong>cumentação? Respondi que estava e ele me disse que, a partir daquele<br />
dia, seria estagiária da secretaria <strong>do</strong> CCSO.<br />
Durante minha permanência na secretaria <strong>do</strong> CCSO, aprendi a executar várias<br />
ativida<strong>de</strong>s administrativas, tive liberda<strong>de</strong> para usar o computa<strong>do</strong>r para digitar os meus<br />
trabalhos acadêmicos. Não posso <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> falar <strong>de</strong> Lourenço Pinheiro (in memorian) que<br />
muitas vezes fazia enca<strong>de</strong>rnação das minhas cópias. Alcy Bastos e Maria Clara me contavam<br />
histórias da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> quan<strong>do</strong> ainda era Fundação. Agra<strong>de</strong>ço <strong>de</strong> coração ao senhor<br />
Raimun<strong>do</strong> pela oportunida<strong>de</strong> profissional e peço a Deus que abençoe to<strong>do</strong>s os outros<br />
funcionários e agra<strong>de</strong>ço a to<strong>do</strong>s pelos ensinamentos que tive durante os <strong>do</strong>is anos em que<br />
fui estagiária <strong>do</strong> CCSO.<br />
Foi através da internet, acessan<strong>do</strong> a página da <strong>UFMA</strong>, que vi o edital <strong>do</strong> “Conexões<br />
<strong>de</strong> saberes” e fiquei interessada em participar porque, além <strong>de</strong> estar oferecen<strong>do</strong> 25<br />
bolsas, o projeto ainda era <strong>de</strong> extensão. O que mais chamou a minha atenção foi o fato<br />
<strong>de</strong> esse projeto ser basea<strong>do</strong> no <strong>Observatório</strong> das <strong>Favelas</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, sen<strong>do</strong><br />
volta<strong>do</strong> para o estu<strong>do</strong> e pesquisa <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s. Decidi me inscrever no último dia<br />
para participar da seleção, fiquei muito nervosa no dia da entrevista e fui avaliada por<br />
três coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>res: Prof a Fernanda, Álvaro e Maria Helena. Lembro-me <strong>de</strong> que falei <strong>de</strong><br />
tu<strong>do</strong> que entendia sobre pesquisa <strong>de</strong> campo e sobre a minha visão em relação a<br />
comunida<strong>de</strong>s periféricas.<br />
Hoje vejo o “Conexões” como um Projeto inova<strong>do</strong>r na universida<strong>de</strong> que busca inserir<br />
o estudante <strong>de</strong> origem popular em espaços sociais, tentan<strong>do</strong> diminuir a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social<br />
através <strong>de</strong> ações afirmativas. O projeto visa também qualificar o aluno <strong>de</strong> origem popular<br />
através <strong>de</strong> oficinas voltadas para o conhecimento científico para que o aluno possa<br />
<strong>de</strong>senvolver ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pesquisa e extensão nas comunida<strong>de</strong>s populares.<br />
74 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Atualmente tenho uma visão social mais humana, sem preconceitos ou estereótipos e<br />
<strong>de</strong>vo tu<strong>do</strong> isso ao “Conexões <strong>de</strong> saberes”. Agra<strong>de</strong>ço aos coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>res por to<strong>do</strong>s os ensinamentos.<br />
“Os que têm oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se consagrar aos estu<strong>do</strong>s<br />
científicos <strong>de</strong>verão ser os primeiros a por seus conhecimentos a<br />
serviço da humanida<strong>de</strong>”.<br />
Karl Marx<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 75
Tu<strong>do</strong> vale a pena, se a alma não é pequena<br />
* Graduanda em Geografia na <strong>UFMA</strong>.<br />
76 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular<br />
Lucélia Cristina Carvalho Ferreira *<br />
De tu<strong>do</strong>, ficaram três coisas:<br />
A certeza <strong>de</strong> que estamos sempre<br />
começan<strong>do</strong>...<br />
A certeza <strong>de</strong> que precisamos continuar...<br />
A certeza <strong>de</strong> que seremos interrompi<strong>do</strong>s<br />
antes <strong>de</strong> terminar...<br />
Portanto <strong>de</strong>vemos:<br />
Fazer da interrupção um caminho novo...<br />
Da queda um passo <strong>de</strong> dança...<br />
Do me<strong>do</strong>, uma escada...<br />
Do sonho, uma ponte...<br />
Da procura, um encontro...<br />
Certeza - Fernan<strong>do</strong> Pessoa<br />
Um <strong>do</strong>s versos <strong>de</strong> Fernan<strong>do</strong> Pessoa resume bem a minha caminhada: “Tu<strong>do</strong> vale a<br />
pena se a alma não é pequena”. Filha única <strong>de</strong> um pedreiro e <strong>de</strong> uma <strong>do</strong>na <strong>de</strong> casa, tive<br />
uma infância tranqüila. Seu Antonio e Dona Josecília se esforçaram muito para me dar<br />
uma boa educação que refletisse na minha criação como um to<strong>do</strong>. Morávamos no bairro<br />
da Madre Deus, um local repleto <strong>de</strong> festivida<strong>de</strong>s e berço da cultura popular lu<strong>do</strong>vicense.<br />
A duas quadras dali, ficava a casa <strong>de</strong> meus avós maternos, seu José Toim e <strong>do</strong>na Lucília,<br />
<strong>do</strong>s quais eu sou a primeira neta. Logo, não é difícil imaginar que passei gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong><br />
minha infância na casa <strong>do</strong>s meus avós, aon<strong>de</strong> ia para brincar com meus primos, to<strong>do</strong>s<br />
mais novos que eu. Praticamente fui criada pela minha avó que, em certos aspectos, me<br />
mimou muito.<br />
Lembro-me da rotina <strong>do</strong>minical <strong>de</strong> ir à missa logo pela manhã cedinho, sempre<br />
acompanhada <strong>de</strong> vovó que me incentivou a fazer a Primeira Comunhão. Vovô tem um<br />
sítio numa localida<strong>de</strong> chamada Gapara, na área Itaqui-Bacanga; um sítio por sinal<br />
enorme, que hoje está dividi<strong>do</strong> entre seus nove filhos. Como naquela época ainda não
existia a ponte que atualmente liga o centro da cida<strong>de</strong> à região <strong>do</strong> Itaqui-Bacanga, ele<br />
embarcava seus netos em uma canoa e nos levava para lá; era muito diverti<strong>do</strong> e eu<br />
gostava muito disso.<br />
Comecei minha vida escolar aos quatros anos. As lembranças <strong>do</strong> Jardim <strong>de</strong> Infância<br />
são muito vagas, mas uma <strong>de</strong>las é marcante: lembro que minha mãe nunca ia me buscar –<br />
por razões que <strong>de</strong>sconheço até hoje, o certo é que eu tinha que vir com a professora Rosa<br />
que, além <strong>de</strong> amiga <strong>de</strong> minha mãe, morava na mesma rua <strong>de</strong> minha avó.<br />
Terminada a fase <strong>do</strong> Jardim, comecei a percorrer o caminho da escola primária e fui<br />
estudar na Escola Sotero <strong>do</strong>s Reis, que ficava próxima ao bairro da Madre Deus. Foi uma<br />
fase nova, cheia <strong>de</strong> experiências <strong>de</strong>sconhecidas para uma menina <strong>de</strong> sete anos: fazer novos<br />
amigos, ter uma professora que não queria mais saber <strong>de</strong> pinturas e <strong>de</strong>senhos. Na sala <strong>de</strong> aula<br />
e fora <strong>de</strong>la, sempre fui quieta e tímida. Sentava na fileira <strong>do</strong> la<strong>do</strong> da pare<strong>de</strong>, na última<br />
carteira e estudava com gosto, sentia-me feliz quan<strong>do</strong> trazia lição <strong>de</strong> casa. Logo, tirar boas<br />
notas nunca foi problema para mim.<br />
Quan<strong>do</strong> eu estava na 3ª para a 4ª série, meu pai aban<strong>do</strong>nou o emprego <strong>de</strong> pedreiro<br />
em uma construtora <strong>de</strong> edifícios que era responsável pela construção <strong>de</strong> vários edifícios<br />
<strong>do</strong> bairro <strong>do</strong> São Francisco. Com o valor da rescisão trabalhista recebida, <strong>de</strong>cidiu abrir<br />
um comércio varejista no Merca<strong>do</strong> Central, foco <strong>do</strong> comércio popular da Capital. Nos<br />
fins <strong>de</strong> semana, eu estava sempre lá para ajudá-lo e então aprendi a trabalhar no caixa,<br />
na venda, com a balança, enfim, com as ativida<strong>de</strong>s corriqueiras <strong>de</strong> um pequeno comércio<br />
popular. Quan<strong>do</strong> terminei o primário, fui cursar o Ensino Fundamental na Escola<br />
Sousândra<strong>de</strong>, cuja vaga minha mãe conseguiu na última hora. De lá não guar<strong>do</strong> nenhuma<br />
boa recordação, muito pelo contrário: fiquei reprovada na 5ª série – juntamente com<br />
meta<strong>de</strong> da turma - por questões pessoais <strong>de</strong> uma das professoras. Minha mãe tinha<br />
escondi<strong>do</strong> <strong>do</strong> meu pai esse fato e, como mentira sempre tem pernas curtas, ele acabou<br />
<strong>de</strong>scobrin<strong>do</strong> e ficou tão furioso que brigou comigo e com mamãe. Em parte ele estava<br />
certo, mamãe realmente não <strong>de</strong>veria ter escondi<strong>do</strong> minha reprovação e nem eu ter omiti<strong>do</strong><br />
a notícia, porque papai sempre se esforçou para me dar um estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong> suas possibilida<strong>de</strong>s. Passada essa fase, fui matriculada na Escola Benedito Leite, lá<br />
tive que começar <strong>de</strong> novo e fiz daquela oportunida<strong>de</strong> a diferença: passei em todas as<br />
séries com excelentes notas.<br />
Nessa época meu pai havia perdi<strong>do</strong> o ponto comercial no Merca<strong>do</strong> Central e tivemos<br />
que montar o comércio na própria residência. Foi uma fase muito difícil, já que a casa só<br />
tinha quatro cômo<strong>do</strong>s e a sala havia se transforma<strong>do</strong> em ponto comercial. O certo é que, com<br />
o comércio em casa, papai não me <strong>de</strong>ixava mais sair. Tinha que ficar no comércio e só saía<br />
<strong>de</strong> casa, praticamente, para ir à escola.<br />
Tive uma a<strong>do</strong>lescência mal vivida, totalmente reprimida. Nesse ponto meu pai<br />
atrapalhou muito meu <strong>de</strong>senvolvimento, não <strong>de</strong>ixou que eu vivesse essa fase em sua<br />
plenitu<strong>de</strong>, o que me tornou uma pessoa ainda mais retraída e tímida.<br />
Por volta <strong>de</strong> 1998, tinha termina<strong>do</strong> o Ensino Fundamental e participei <strong>do</strong> processo<br />
seletivo no CEFET-MA (Centro Fe<strong>de</strong>rativo Tecnológico <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>), mas não passei.<br />
Acabei por estudar no anexo <strong>do</strong> CEGEL (Complexo Educacional Governa<strong>do</strong>r Edson Lobão),<br />
<strong>de</strong>pois fui transferida para a Escola “BCA” (Bernar<strong>do</strong> Coelho <strong>de</strong> Almeida), on<strong>de</strong> terminei<br />
meu Ensino Médio. Eu havia me disposto a prestar vestibular para o programa seria<strong>do</strong> da<br />
<strong>UFMA</strong>, o PSG. Com muito custo ingressei no Processo <strong>de</strong> Seleção Gradual ainda na 1ª série<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 77
<strong>do</strong> Ensino Médio, a muito custo porque além <strong>de</strong> não ter consegui<strong>do</strong> o dinheiro necessário<br />
para a inscrição, minha mãe começou a manifestar sérios problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, dan<strong>do</strong> início<br />
a uma fase <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão psíquica.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, nossa família encontrava-se em uma situação financeira <strong>de</strong>licada, o<br />
comércio estava falin<strong>do</strong> e meu pai não conseguia emprego <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à ida<strong>de</strong>. Eu já estava com<br />
20 anos e meu pai insistia para que eu procurasse um emprego e só <strong>de</strong>pois pensasse em<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong>. Mas eu queria continuar meus estu<strong>do</strong>s, ter um curso superior, ter uma profissão<br />
que me possibilitasse crescer, adquirir conhecimentos. Mesmo contrarian<strong>do</strong> meu pai, fui<br />
atrás <strong>do</strong>s meus sonhos. Estu<strong>de</strong>i sozinha, pois não tinha como pagar um cursinho, chegava a<br />
estudar até 14 horas por dia, sem nenhum <strong>de</strong>scanso.<br />
Quan<strong>do</strong> cheguei à 3ª etapa <strong>do</strong> PSG, eu já havia termina<strong>do</strong> o Ensino Médio. Após todas<br />
as provas, cheguei à fase da prova dissertativa. Minha primeira opção tinha si<strong>do</strong> o Curso <strong>de</strong><br />
História. Lembro que, no dia 31 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2001, fiquei saben<strong>do</strong> <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong>: eu não havia<br />
si<strong>do</strong> aprovada! Sofri uma <strong>de</strong>cepção tão gran<strong>de</strong> que me marcou muito. Meu pai não se<br />
conformou por eu não ter passa<strong>do</strong>. Nesse instante percebi que, no fun<strong>do</strong>, ele esperava mais<br />
isso <strong>do</strong> que eu mesma, brigou muito comigo, me falou coisas horríveis que me magoaram.<br />
Eu estava sentada na cama choran<strong>do</strong> muito quan<strong>do</strong> algo me surpreen<strong>de</strong>u: minha mãe, que<br />
praticamente havia se anula<strong>do</strong> para a vida, ausentan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> acompanhar meu crescimento,<br />
viven<strong>do</strong> em uma outra realida<strong>de</strong> distante daquela presente em nossas vidas, abraçou-me<br />
bem forte e disse que um dia eu iria passar no vestibular, com um pouco <strong>de</strong> calma, minha<br />
hora iria chegar, não era preciso chorar...<br />
Por volta <strong>de</strong> 2002, nossa situação financeira tornou-se mais crítica ainda. Meu avô<br />
então, ven<strong>do</strong> aquela situação, convenceu meu pai a ir morar no sítio <strong>do</strong> Gapara. No começo,<br />
papai relutou muito, mas, sem outra opção, acabou aceitan<strong>do</strong> e então lá fomos nós<br />
recomeçarmos a vida. Com a mudança para o Gapara, nossa casa da Madre Deus ficou<br />
alugada. No terreno <strong>do</strong> Gapara, <strong>de</strong> imediato, papai construiu uma casa <strong>de</strong> taipa, toda rebocada<br />
por cimento e, para buscar nosso sustento, passou a plantar hortaliças as quais eram vendidas<br />
para os mora<strong>do</strong>res da região.<br />
Com o dinheiro <strong>do</strong> aluguel da casa da Madre Deus e com o que rendia da venda <strong>de</strong><br />
verduras e hortaliças, meu pai investiu mais uma vez em uma pequena mercearia e construiu<br />
uma casa <strong>de</strong> alvenaria. Nesse mesmo ano, resolvi fazer vestibular <strong>de</strong> novo, mais uma vez<br />
optei pelo Processo <strong>de</strong> Seleção Gradual. Para me manter e conseguir pagar a inscrição,<br />
resolvi dar aulas particulares <strong>de</strong> reforço para alunos <strong>do</strong> Ensino Fundamental. Ensinava pela<br />
manhã e pela tar<strong>de</strong> e estudava nos intervalos entre uma aula e outra. À noite, entrava pela<br />
madrugada, com uma caneca <strong>de</strong> café na mão e com os olhos finca<strong>do</strong>s nos livros. Quan<strong>do</strong> eu<br />
estava muito cansada, chegava até mesmo a me <strong>de</strong>bruçar sobre os livros e <strong>do</strong>rmia.<br />
Em 2003, a condição psíquica <strong>de</strong> minha mãe se agravou <strong>de</strong>finitivamente e ela entrou<br />
em um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> esquizofrenia, já não articulava corretamente o pensamento, passan<strong>do</strong> a<br />
viver em um mun<strong>do</strong> somente seu. Nesse mesmo ano, conheci o homem que viria a ser<br />
futuramente meu namora<strong>do</strong>. Ele estava cursan<strong>do</strong> os últimos perío<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Curso <strong>de</strong> Psicologia<br />
na <strong>UFMA</strong> e exerceu um papel super importante em minha vida e na caminhada rumo à<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong>; aju<strong>do</strong>u -me muito com os estu<strong>do</strong>s e incentivou-me bastante a não <strong>de</strong>sistir <strong>de</strong><br />
meus sonhos. O Ben, que hoje é meu ama<strong>do</strong>, começou como meu vizinho e era ele quem<br />
corrigia minhas redações; aos poucos fomos nos aproximan<strong>do</strong> mais e mais e, com o tempo,<br />
o amor nasceu como uma sementinha que nasce em solo fértil, crescen<strong>do</strong> forte e bela.<br />
78 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Em 2005, era a última etapa <strong>do</strong> PSG. Dessa vez escolhi o curso <strong>de</strong> Geografia, pela<br />
afinida<strong>de</strong> e porque achava bonito o papel <strong>do</strong> geógrafo na socieda<strong>de</strong>. No dia da prova,<br />
estava tranqüila, fiz uma boa prova e estava na expectativa <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong>. No final <strong>de</strong> abril,<br />
saiu o resulta<strong>do</strong> e, para minha surpresa, havia passa<strong>do</strong> em 5 o lugar, entre as 12 vagas ofertadas<br />
pelo curso. Fiz a prova dissertativa e passei. No dia <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong>, lembro que estava ouvin<strong>do</strong><br />
a Rádio <strong>Universida<strong>de</strong></strong> na expectativa <strong>de</strong> conferir a lista <strong>do</strong>s aprova<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong>, por volta<br />
das 11 horas, começou a ser divulga<strong>do</strong> o resulta<strong>do</strong>. Nessa hora a emoção bombeava<br />
fortemente o coração, sem parar. Por incrível que pareça, no exato momento em que ia ser<br />
divulgada a lista <strong>do</strong>s aprova<strong>do</strong>s para o Curso <strong>de</strong> Geografia, simplesmente faltou energia no<br />
bairro e eu fiquei <strong>de</strong>sesperada. Entretanto, minutos <strong>de</strong>pois, o telefone público que fica<br />
próximo tocou. Era o Ben que, como um anjo anuncia<strong>do</strong>r da boa nova, me trouxe a melhor<br />
das notícias da minha vida: eu tinha passa<strong>do</strong> no vestibular seria<strong>do</strong> (PSG) em 8° lugar. Meu<br />
pai e Ben me prepararam uma festa no fim <strong>de</strong> semana seguinte. Ao sabor <strong>de</strong> uma feijoada,<br />
toda a minha família apareceu para me parabenizar.<br />
No 2 o semestre <strong>de</strong> 2005, ingressei na <strong>Universida<strong>de</strong></strong> realizan<strong>do</strong> um sonho: estudar na<br />
<strong>UFMA</strong> e fazer um curso que é maravilhoso. Minha turma, sem palavras, amei tê-los como<br />
amigos. Ainda no 1° perío<strong>do</strong>, ingressei no NEPA (Núcleo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s e Pesquisas Ambientais).<br />
Para mim foi importante, conheci novos amigos, comecei a me interessar por assuntos sobre<br />
questões ambientais e aprendi a realizar pesquisas na área e, também, a superar a timi<strong>de</strong>z.<br />
Meu curso funciona no perío<strong>do</strong> vespertino-noturno, mas eu passo o dia to<strong>do</strong> na <strong>UFMA</strong>.<br />
Pela manhã, em dias alterna<strong>do</strong>s, vou ao NEPA e ao curso <strong>de</strong> língua estrangeira, oferta<strong>do</strong>s<br />
pelo Curso <strong>de</strong> Letras, on<strong>de</strong> estu<strong>do</strong> inglês e espanhol. Com isso os gastos para me manter na<br />
universida<strong>de</strong> foram aumentan<strong>do</strong> a cada dia: cópias, alimentação, livros, passagens,<br />
impressões, enfim. Meu pai não tinha muito para me dar, e nessa parte Ben me ajudava.<br />
Fiquei saben<strong>do</strong> <strong>do</strong> Programa Conexões <strong>de</strong> Saberes pelo Ben. Como eu me encaixava no<br />
perfil <strong>do</strong> projeto, resolvi me inscrever. Participei da seleção e, para minha surpresa, passei.<br />
Vinte e cinco novos amigos que antes mal conhecia (só os via pelos corre<strong>do</strong>res da<br />
universida<strong>de</strong>) se tornaram um pouco minha família. São vinte e cinco trajetórias <strong>de</strong> pessoas<br />
que, assim como eu, tiveram em suas caminhadas também dias ensolara<strong>do</strong>s e dias nubla<strong>do</strong>s.<br />
Com o programa implanta<strong>do</strong> na <strong>UFMA</strong>, tivemos a visita <strong>do</strong> Jailson <strong>de</strong> Souza,<br />
coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r <strong>do</strong> <strong>Observatório</strong> <strong>de</strong> <strong>Favelas</strong>. Participamos das oficinas e <strong>do</strong> Seminário Nacional<br />
que ocorreu no Rio <strong>de</strong> Janeiro, em novembro <strong>de</strong> 2006. Foi nesse evento que pu<strong>de</strong> conhecer<br />
a dimensão <strong>do</strong> Programa Conexões <strong>de</strong> Saberes e sua importância para cada um <strong>de</strong> nós, que<br />
faz parte <strong>de</strong>ssa família grandiosa. Espero terminar minha graduação e continuar os estu<strong>do</strong>s,<br />
pensan<strong>do</strong> no Mestra<strong>do</strong> e Doutora<strong>do</strong>. Atuar em minha profissão e po<strong>de</strong>r dar aos meus queri<strong>do</strong>s<br />
pais um conforto, uma velhice mais tranqüila. Ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Ben, ter a certeza <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>mos<br />
fazer <strong>de</strong>sse encontro o começo da construção <strong>de</strong> nossa história. Continuo, nessa caminhada,<br />
tentan<strong>do</strong> realizar meus sonhos profissionais, pessoais e familiares, com passos firmes e<br />
objetivos. E, como Pessoa, estou certa <strong>de</strong> que “tu<strong>do</strong> vale a pena, se a alma não é pequena”.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 79
Os primeiros passos <strong>de</strong> uma<br />
formação contínua - a educação<br />
80 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular<br />
Lucilei<strong>de</strong> Martins Borges *<br />
“Devemos ser a mudança que<br />
<strong>de</strong>sejamos ver no mun<strong>do</strong>”<br />
Gandhi<br />
A escolha pelo curso <strong>de</strong> Pedagogia <strong>de</strong>ve-se, sobretu<strong>do</strong>, às falhas encontradas no<br />
<strong>de</strong>correr da minha escolarização, na certeza <strong>de</strong> que, para transformar minha realida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
origem, precisaria promover em mim tal mudança. A mudança que busquei é a mudança que<br />
<strong>de</strong>sejo ver no mun<strong>do</strong>: um mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s, on<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s possam ter acesso à educação<br />
<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>.Começarei a ser agente <strong>de</strong>ssa mudança na realida<strong>de</strong> que está ao meu alcance<br />
e, quem sabe, quan<strong>do</strong> mais pessoas começarem a semear as sementes da transformação,<br />
teremos um país on<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s tenham acesso à educação.<br />
Sou natural <strong>de</strong> Bequimão – <strong>Maranhão</strong>, município <strong>do</strong> litoral oci<strong>de</strong>ntal maranhense.<br />
Tenho oito irmãos (sete mulheres e um homem) e sou a quinta filha <strong>de</strong> Paulino Álvares<br />
(pedreiro) e Arcângela Lemos (auxiliar <strong>de</strong> serviços gerais).<br />
Em 1989, com 5 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, fui pela primeira vez para a escola – Unida<strong>de</strong> Integrada<br />
Dr. Antônio da Costa Rodrigues - on<strong>de</strong> comecei a cursar a educação infantil. Não me<br />
lembro <strong>de</strong> muitos <strong>de</strong>talhes <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is primeiros anos escolares, porém tentarei registrar os<br />
fatos mais marcantes.<br />
Em 1990, passei para o 2º perío<strong>do</strong>, popularmente chama<strong>do</strong>, naquela época, <strong>de</strong> cartilha,<br />
em <strong>de</strong>corrência <strong>do</strong> material didático que utilizávamos. Fazíamos leituras nas cartilhas maiores,<br />
eram frases soltas e palavras com sons repeti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> tipo: “A babá é Bia”; “Ivo viu a uva”.<br />
Em 1991, já na 1ª série, estudava em classe multisseriada, juntamente com minha irmã<br />
Lucilene, embora ela fosse mais velha. Um dia, não sei por qual motivo, a professora a<br />
colocou <strong>de</strong> castigo, ajoelhada <strong>de</strong> frente para a pare<strong>de</strong>, próxima à porta – era mais que um<br />
castigo: era uma humilhação, pois as pessoas que passavam na rua olhavam-na ali ajoelhada.<br />
Fiquei indignada, mas não podia fazer nada.<br />
Em 1992, na 2ª série, continuava a estudar no perío<strong>do</strong> da manhã, assim como nos anos<br />
anteriores. Com aprovação na 2ª série, comecei a cursar a 3ª no ano seguinte, no perío<strong>do</strong> da<br />
tar<strong>de</strong>. Sentia um pouco <strong>de</strong> me<strong>do</strong>, pois era muito pequena e estudava com a turma da 4ª série.<br />
Nesse perío<strong>do</strong> estu<strong>de</strong>i junto com outra irmã, a Tereza, que, por sinal, é mais velha <strong>do</strong> que eu<br />
* Graduanda em Pedagogia na <strong>UFMA</strong>.
quatro anos, e assim havia muitos outros alunos com ida<strong>de</strong> avançada, o que me causava<br />
certo constrangimento. Houve vezes em que chorava na turma porque não conseguia<br />
respon<strong>de</strong>r às ativida<strong>de</strong>s sozinha; as explicações da professora eram muito rápidas e não<br />
conseguia acompanhar, principalmente quan<strong>do</strong> da aula <strong>de</strong> Matemática.<br />
Foi a partir <strong>de</strong>sse perío<strong>do</strong> que comecei a estudar mais e a me concentrar nas aulas, sem me<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> errar. Pensei da seguinte forma: “se as outras pessoas apren<strong>de</strong>m, eu também posso apren<strong>de</strong>r”.<br />
Mesmo com muitas dificulda<strong>de</strong>s, choros, erros e acertos, fui aprovada e passei para a 4ª série.<br />
Em janeiro <strong>de</strong> 1994, com 10 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, vim para São Luís morar com uma senhora<br />
chamada Lin<strong>do</strong>mar, irmã da minha madrinha Marlinda. No início estava gostan<strong>do</strong> da idéia<br />
<strong>de</strong> vim morar na cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, mas, quan<strong>do</strong> cheguei, senti me<strong>do</strong> <strong>de</strong> ficar longe <strong>do</strong>s meus<br />
pais e <strong>do</strong>s meus irmãos, embora soubesse que tinha duas tias moran<strong>do</strong> na mesma cida<strong>de</strong>.<br />
Chorei uma semana inteira com vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> voltar para o interior, até o dia em que minha<br />
prima Lidiane foi me buscar e levou-me para a casa <strong>de</strong>la. De lá eu voltaria para o interior, na<br />
companhia <strong>de</strong> um senhor chama<strong>do</strong> Zé.<br />
De volta para casa, fui matriculada na mesma escola on<strong>de</strong> até então havia estuda<strong>do</strong>.<br />
Agora estava mais tranqüila em relação à turma; os colegas eram os mesmos, em sua maioria.<br />
Estu<strong>de</strong>i muito e passei <strong>de</strong> ano com boas notas, mesmo diante das péssimas condições da<br />
escola que, às vezes, não tinha sequer bancos suficientes para acomodar os alunos. Lembrome<br />
<strong>de</strong> um certo dia em que fiquei a tar<strong>de</strong> inteira <strong>de</strong> cócoras, para po<strong>de</strong>r copiar a aula com o<br />
ca<strong>de</strong>rno apoia<strong>do</strong> no assento <strong>do</strong> banco.<br />
Terminadas as séries iniciais <strong>do</strong> Ensino Fundamental, fiquei preocupada, pois não havia<br />
escola <strong>do</strong> ginásio em Pontal (povoa<strong>do</strong> em que morava), somente no centro <strong>de</strong> Bequimão e em<br />
comunida<strong>de</strong>s distantes para as quais não havia meios <strong>de</strong> transporte disponíveis. A única opção<br />
era sair para estudar fora, nos municípios vizinhos, tais como: São Bento, Perimirim, etc. Mas<br />
para mim havia um gran<strong>de</strong> problema: eu era a filha mais velha <strong>do</strong>s irmãos que ainda moravam<br />
em casa e, por este motivo, não podia sair para estudar fora. Precisava ajudar minha mãe a cuidar<br />
<strong>do</strong>s meus irmãos menores e da casa, já que ela passava a manhã inteira na escola on<strong>de</strong> trabalhava<br />
(e ainda hoje trabalha) e o meu pai passava o dia inteiro fora <strong>de</strong> casa, trabalhan<strong>do</strong> como pedreiro.<br />
Fiquei o ano <strong>de</strong> 1995 sem estudar, ou melhor dizen<strong>do</strong>, sem estar matriculada, mas in<strong>do</strong><br />
para a escola revisar os conteú<strong>do</strong>s da 4ª série. Essa era uma prática costumeira, dizia-se que<br />
a pessoa estava encostada, mas o compromisso era o mesmo <strong>do</strong>s que estavam matricula<strong>do</strong>s.<br />
Em 1996, minha mãe e minhas irmãs mais velhas conversaram sobre o tempo em que eu<br />
havia perdi<strong>do</strong> repetin<strong>do</strong> a quarta série por falta <strong>de</strong> escola e chegaram à conclusão <strong>de</strong> que<br />
não po<strong>de</strong>ria mais ficar sem estudar. Foi aí que minha mãe <strong>de</strong>cidiu falar com uma tia minha<br />
para eu morar na sua casa, em São Luís.<br />
No dia 21 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1996, vim para São Luís e aqui permaneço até hoje. Fui<br />
matriculada na escola municipal Olinda Desterro, localizada no bairro Vicente Fialho, na<br />
qual estu<strong>de</strong>i da 5ª à 8ª séries.<br />
O primeiro ano na nova escola foi <strong>de</strong> muitos impactos, primeiro porque não é nada<br />
fácil para uma garota <strong>de</strong> 12 anos sair <strong>de</strong> perto <strong>de</strong> sua família, no interior, e vir morar com<br />
parentes na cida<strong>de</strong>; segun<strong>do</strong> porque há um contraste muito gran<strong>de</strong> na mudança <strong>de</strong> uma<br />
escola <strong>do</strong> interior para uma escola da capital, embora fosse da re<strong>de</strong> municipal e ficasse<br />
localizada num bairro popular <strong>de</strong> São Luís. O impacto foi muito gran<strong>de</strong>, a cobrança era<br />
maior e eu me sentia inferior aos outros alunos, pois percebia que meu nível <strong>de</strong> conhecimento<br />
não era igual ao <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 81
Foi na 5ª série <strong>do</strong> Ensino Fundamental, na escola “Olinda Desterro” e com a ajuda da<br />
professora Conceição, professora <strong>de</strong> Português, que eu percebi a escrita errada <strong>do</strong> meu<br />
nome. Neste momento me questionei: será que os professores das séries anteriores nunca<br />
tinham observa<strong>do</strong> tal erro? O porquê <strong>de</strong> tamanha falha? Não conseguia acreditar que tantas<br />
vezes escrevi meu nome no ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s e os professores nunca haviam observa<strong>do</strong><br />
tal erro. Após consultar meu registro <strong>de</strong> nascimento, constatei que até os 12 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong><br />
não havia si<strong>do</strong> alfabetizada ortograficamente, pois, além disso, cometia muitos outros erros<br />
na escrita das palavras.<br />
Agra<strong>de</strong>ço, carinhosamente, a professora Conceição. Foi muito váli<strong>do</strong> e prazeroso ter<br />
aprendi<strong>do</strong> Língua Portuguesa com ela: uma professora rígida, às vezes brincalhona, às<br />
vezes zangada.<br />
Na sexta série, tive muita dificulda<strong>de</strong> em compreen<strong>de</strong>r Matemática, talvez pela mudança<br />
freqüente <strong>de</strong> professores: foram três em apenas um semestre – Joseli, Roberto Carlos e Maria<br />
<strong>do</strong> Carmo. Obtive notas baixas no 1º semestre e fiquei com me<strong>do</strong> <strong>de</strong> reprovar, mas com a<br />
professora Maria <strong>do</strong> Carmo consegui recuperar as notas e apren<strong>de</strong>r o conteú<strong>do</strong>. No segun<strong>do</strong><br />
semestre letivo <strong>de</strong> 1997, chegou um novo professor <strong>de</strong> Matemática, Edvan Lopes, uma<br />
referência para mim, pois sua história <strong>de</strong> vida é semelhante à minha. Um ano <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>scobri<br />
que ele era oriun<strong>do</strong> <strong>do</strong> meu município e daí ficamos amigos. Ele me estimulou muito a<br />
prosseguir nos estu<strong>do</strong>s, principalmente quan<strong>do</strong> fiz o seletivo para a escola <strong>de</strong> Ensino Médio,<br />
<strong>do</strong> qual falarei mais à frente.<br />
Em 1999, na 8ª série, tive muitos professores bons, que marcaram minha vida escolar:<br />
professora Socorro, conselheira e amiga; professora Marise, historia<strong>do</strong>ra crítica; professora<br />
Maria da Paz, carismática e <strong>de</strong>dicada; professora Doralice, a Dora, meio mãe, meio irmã,<br />
querida por to<strong>do</strong>s; e o professor Edvan, meu estímulo, que continuou a ser meu professor até<br />
o momento em que saí da escola.<br />
Fui muito estimulada, como já mencionei anteriormente, a fazer o seletivo para a<br />
escola Liceu Maranhense, mas por pouco não perdi o prazo das inscrições. Meus colegas <strong>de</strong><br />
turma e eu ficamos saben<strong>do</strong> no último dia e tivemos que passar o dia inteiro corren<strong>do</strong> atrás<br />
<strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos para fazer inscrição; até as aulas foram suspensas naquele dia. Enfim,<br />
conseguimos nos inscrever!<br />
No dia da prova, estávamos no horário brasileiro <strong>de</strong> verão, saí <strong>de</strong> casa ainda na escuridão,<br />
sem saber ao certo o local on<strong>de</strong> faria a prova. No ônibus, perguntei sobre a localização da<br />
escola e várias pessoas disseram que iam para o mesmo bairro. Eu então os acompanhei.<br />
Quan<strong>do</strong> saiu o resulta<strong>do</strong>, num dia <strong>de</strong> sába<strong>do</strong>, estava na escola aguardan<strong>do</strong> a professora chegar<br />
para repor as aulas atrasadas, por motivo <strong>de</strong> greve.. quan<strong>do</strong> olhei meu nome no jornal, pulei <strong>de</strong><br />
alegria, mas ao mesmo tempo fiquei triste porque minha melhor amiga, a D’kéfia, não havia<br />
passa<strong>do</strong>. Passaram apenas <strong>do</strong>is colegas <strong>de</strong> turma, o Ribamar e o Michel.<br />
Em 2000, começou uma nova fase na minha vida escolar: o Ensino Médio. Experiência<br />
riquíssima <strong>de</strong> novas amiza<strong>de</strong>s, novos conhecimentos, novos mestres, tu<strong>do</strong> era novida<strong>de</strong>. No<br />
dia 4 <strong>de</strong> fevereiro, ainda estávamos no horário <strong>de</strong> verão, saí bem ce<strong>do</strong> <strong>de</strong> casa, ainda estava<br />
escuro, a escola era no centro da cida<strong>de</strong> e a ansieda<strong>de</strong> pelo novo era gran<strong>de</strong>. Quan<strong>do</strong><br />
cheguei ao Liceu não conhecia quase ninguém, apenas os <strong>do</strong>is colegas <strong>de</strong> turma que também<br />
haviam si<strong>do</strong> aprova<strong>do</strong>s no seletivo. A nova escola era imensa, se comparada com a antiga.<br />
A recepção foi ótima. A escola era cheia <strong>de</strong> normas, tanto que, quan<strong>do</strong> fiz minha matrícula,<br />
recebi logo o manual <strong>do</strong> aluno.<br />
82 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Passa<strong>do</strong>s alguns dias <strong>de</strong> aula, fiz amiza<strong>de</strong> com uma colega <strong>de</strong> turma, a Janaína <strong>de</strong><br />
Araújo, que, por sinal, foi minha companheira <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> durante to<strong>do</strong> aquele ano,<br />
principalmente nos trabalhos escolares e sem contar nas inúmeras sextas-feiras em que<br />
ficávamos o dia to<strong>do</strong> na escola por causa da Educação Física que acontecia no turno da<br />
tar<strong>de</strong>. Ficávamos o dia inteiro apenas com um lanche, na maioria das vezes biscoito com<br />
refrigerante - cada uma levava o seu biscoito e dividíamos o refrigerante. Estudávamos<br />
muitas tar<strong>de</strong>s na biblioteca <strong>do</strong> SESC (Serviço Social <strong>do</strong> Comércio), localizada próximo ao<br />
Liceu. No ano seguinte, mu<strong>de</strong>i para uma turma na sua maioria proce<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> turno vespertino;<br />
fiz novas amiza<strong>de</strong>s, mas Janaína continuava sen<strong>do</strong> a amiga <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s, ainda que<br />
estudássemos em turmas diferentes.<br />
Nesse perío<strong>do</strong> fazia um curso <strong>de</strong> pintura pelo Programa <strong>de</strong> Capacitação Solidária na<br />
Associação Comunitária <strong>do</strong> meu bairro. Era ótimo, pu<strong>de</strong> reencontrar alguns colegas <strong>do</strong><br />
Ensino Fundamental e conhecer muitos lugares novos, sem contar as pinturas que fazíamos,<br />
pois gosto muito <strong>de</strong> pintar e até preten<strong>do</strong> fazer um curso <strong>de</strong> Artes Plásticas. Ganhava R$50,00<br />
por mês e isso me aju<strong>do</strong>u bastante, inclusive para pagar a primeira inscrição <strong>do</strong> vestibular.<br />
Na 2 a série fui aluna <strong>do</strong> professor João Batista, o vice-diretor da escola, muito temi<strong>do</strong><br />
por to<strong>do</strong>s <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a sua rigi<strong>de</strong>z, tanto como professor quanto como vice-diretor. Não tive<br />
problemas com ele, muito pelo contrário, sempre fui uma aluna esforçada e me <strong>de</strong>stacava<br />
em sala <strong>de</strong> aula.<br />
Des<strong>de</strong> quan<strong>do</strong> entrei no Liceu, fui motivada a fazer o PSG (Programa <strong>de</strong> Seleção<br />
Gradual) da <strong>UFMA</strong>. Na primeira etapa não obtive muito sucesso. Embora tivesse estuda<strong>do</strong>,<br />
meu rendimento foi em torno <strong>de</strong> 3 mil e poucos pontos, mas na segunda etapa me superei:<br />
fiz 5 mil pontos e fiquei cheia <strong>de</strong> expectativas.<br />
Em 2002, pedi transferência <strong>de</strong> matrícula para o perío<strong>do</strong> noturno porque precisava<br />
trabalhar e, mais uma vez, mu<strong>de</strong>i <strong>de</strong> turma. Agora eu estudaria numa turma bastante<br />
diversificada; os alunos, em sua gran<strong>de</strong> maioria, advinham <strong>de</strong> outras escolas e até mesmo <strong>de</strong><br />
outros Esta<strong>do</strong>s, como era o caso <strong>de</strong> Rackel - uma mineira amiga e confiante.<br />
Mesmo estudan<strong>do</strong> no turno da noite, não conseguia emprego, pois não tinha nenhum<br />
curso técnico. A falta <strong>de</strong> emprego me preocupava bastante, estava no último ano <strong>do</strong> Ensino<br />
Médio e tinha que pagar a taxa <strong>de</strong> inscrição <strong>do</strong> PSG, que agora seria o <strong>do</strong>bro das etapas<br />
anteriores: R$ 60,00. Eu precisava trabalhar para arcar com as <strong>de</strong>spesas <strong>do</strong>s meus estu<strong>do</strong>s.<br />
Em agosto <strong>de</strong> 2002, saí da casa da minha tia, na qual morava há quase sete anos, e fui morar<br />
com uma família, para a qual fazia os serviços <strong>do</strong>mésticos e era remunerada com R$ 200,00.<br />
Pedia to<strong>do</strong>s os dias para que Deus me ajudasse a sair daquela casa. Estudava para o PSG <strong>de</strong><br />
madrugada, porque não tinha tempo durante o dia. Quan<strong>do</strong> fui aprovada em 5º lugar na<br />
primeira fase da 3ª etapa, fiquei muito feliz, pois sabia que meu sonho <strong>de</strong> passar no vestibular<br />
estava cada vez mais perto <strong>de</strong> se realizar. Tinha apenas uma semana para estudar e fazer a<br />
segunda fase e me virava da forma como podia: <strong>de</strong> madrugada, nos fins <strong>de</strong> semana, qualquer<br />
tempo livre era para estudar.<br />
Fiz a prova muito confiante. Esperei ansiosamente pelo resulta<strong>do</strong>. No dia 22 <strong>de</strong> março<br />
<strong>de</strong> 2003, quan<strong>do</strong> ouvi meu nome na rádio, gritei <strong>de</strong> alegria: “Passei!” 6º lugar para Pedagogia<br />
Noturno, na <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>.<br />
Alguns meses <strong>de</strong>pois fui morar com minha irmã Tereza no Resi<strong>de</strong>ncial Paraíso, bairro<br />
próximo à <strong>Universida<strong>de</strong></strong>. Mas, surgiu um novo problema: precisava trabalhar para me manter<br />
no meu Curso e não conseguia emprego.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 83
Em janeiro <strong>de</strong> 2004, por intermédio <strong>de</strong> <strong>do</strong>is amigos <strong>do</strong> curso, consegui uma bolsaestágio<br />
na Biblioteca Central da <strong>UFMA</strong>. Trabalhava quatro horas por dia e recebia uma<br />
bolsa no valor <strong>de</strong> R$ 130,00. Apesar <strong>de</strong> ser pouco, dava para eu comprar meus passes<br />
escolares e tirar as xérox <strong>do</strong>s textos.<br />
Quan<strong>do</strong> estava no 3º perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> Curso, fiquei saben<strong>do</strong> que o projeto <strong>de</strong> extensão “Jovens<br />
com a Bola Toda” - <strong>UFMA</strong>/IAS (Instituto Airton Senna) faria uma seleção para contratar uma<br />
educa<strong>do</strong>ra bolsista <strong>do</strong> curso <strong>de</strong> Pedagogia. Fui fazer a prova. Depois <strong>de</strong> <strong>do</strong>is dias, fui saber o<br />
resulta<strong>do</strong> e vi minha aprovação. Que alegria! Era tu<strong>do</strong> que eu precisava. Além da experiência,<br />
ganharia uma bolsa no valor <strong>de</strong> R$ 160,00 para trabalhar três dias (3h/dia).<br />
No final <strong>de</strong> 2005, fiquei sem local para morar, pois minha irmã, com quem eu morava<br />
até então, ven<strong>de</strong>u a casa e foi embora para outro bairro, arrisca<strong>do</strong> e muito distante da<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong>. Fiquei sem saber o que fazer. Então fui até o Núcleo <strong>de</strong> Assuntos Estudantis<br />
(NAE), da <strong>UFMA</strong>, me informar sobre a existência <strong>de</strong> vagas na Residência Estudantil.<br />
Chegan<strong>do</strong> lá, fui informada <strong>de</strong> que não havia vagas, mas como conhecia algumas resi<strong>de</strong>ntes,<br />
procurei uma <strong>de</strong>las, a Marilda, que me informou que havia um sistema <strong>de</strong> hospedagem para<br />
os casos <strong>de</strong> urgência. Fui até à Residência e fiz o pedi<strong>do</strong> <strong>de</strong> hospedagem. Sen<strong>do</strong> aceita pelas<br />
mora<strong>do</strong>ras, mu<strong>de</strong>i-me para o Lar Universitário “Rosa Amélia Gomes Bogéa” (LURAGB) no<br />
dia 15 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2006.<br />
Algum tempo <strong>de</strong>pois, fui chamada para fazer seleção <strong>de</strong> estágio numa escola da re<strong>de</strong><br />
particular, porém no dia seguinte recebi um telefonema da coor<strong>de</strong>nação <strong>do</strong> “Farol da<br />
Educação” (re<strong>de</strong> <strong>de</strong> bibliotecas escolares <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>) para estagiar como auxiliar<br />
<strong>de</strong> biblioteca, optei pelo último por ser melhor remunera<strong>do</strong> e com menor carga horária. Seis<br />
meses <strong>de</strong>pois, encontrei Zartur, o coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r <strong>do</strong> projeto JBT, <strong>do</strong> qual participei durante<br />
oito meses, e ele me perguntou se estava saben<strong>do</strong> das inscrições para o Conexões <strong>de</strong> Saberes.<br />
Informou-me sobre o processo seletivo e disse que aquele era o último dia <strong>de</strong> inscrições. Fui<br />
em casa, peguei minha <strong>do</strong>cumentação e fiz a inscrição. Depois <strong>de</strong> alguns dias, fui chamada<br />
para a entrevista na qual fui aprovada e passei a compor o quadro <strong>de</strong> bolsistas <strong>do</strong> Programa<br />
Conexões <strong>de</strong> Saberes. E hoje estou aqui contan<strong>do</strong> um pouco da minha caminhada...<br />
84 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Por Marcio Vinícius Campos Borges<br />
Marcio Vinícius Campos Borges *<br />
Minha história se inicia em 23 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1983, numa pequena casa localizada no<br />
interior <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>, um povoa<strong>do</strong> chama<strong>do</strong> Bom Viver, próximo à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Pinheiro, na Baixada Maranhense.<br />
Nasci numa família bastante humil<strong>de</strong>, composta na época por 10 pessoas: meus pais,<br />
Maria <strong>do</strong> Livramento Silva e Hipólito (não me recor<strong>do</strong> <strong>de</strong> seu sobrenome) e 8 irmãos.<br />
Sobreviviam apenas da renda que meu pai, <strong>de</strong> quem pouco sei a respeito, trazia para casa.<br />
A situação financeira <strong>de</strong> meus pais biológicos não ia muito bem: <strong>de</strong>z bocas para serem<br />
alimentadas com uma pequena renda mensal, era um ônus quase que insustentável. Primeiro<br />
eles resolveram entregar uma <strong>de</strong> minhas irmãs, Andréia, com 4 anos, a uma família <strong>de</strong><br />
pinheirenses cujas posses po<strong>de</strong>riam lhe garantir um futuro mais promissor, <strong>de</strong>pois, foi a<br />
minha vez; minha mãe conta que relutou muito em nos entregar a outras famílias, mas a<br />
situação não era fácil, meus pais não estavam conseguin<strong>do</strong> sequer nos alimentar bem e o<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ver filhos seus com oportunida<strong>de</strong>s mais realistas <strong>de</strong> “ser alguém na vida” fez a<br />
diferença no momento da <strong>de</strong>cisão. Mas minha “viagem” rumo ao encontro <strong>de</strong> uma nova<br />
família não terminaria tão rápida.<br />
Com 4 meses <strong>de</strong> nasci<strong>do</strong>, fui entregue a uma senhora, Wilma, acho que esse era seu<br />
nome, com quem fiquei mais ou menos durante 15 dias e sobre quem algumas vezes só ouvi<br />
falar. Desconheço o motivo pelo qual não pu<strong>de</strong> permanecer junto a ela, tu<strong>do</strong> que sei é que,<br />
passa<strong>do</strong>s alguns dias, ela resolveu que era hora <strong>de</strong> eu partir, mas não “retornei à casa <strong>do</strong> pai”,<br />
como o filho pródigo da história bíblica, fui conviver com uma outra família, <strong>do</strong>na Darcy e<br />
seu esposo Lobão, que já tinham <strong>do</strong>is filhos na época, Marcus e Márcia, meus atuais irmãos,<br />
minha atual família.<br />
Não posso dizer que tive uma infância traumatizante por causa da minha a<strong>do</strong>ção, porque<br />
não tive. Meus pais, principalmente meu pai, não faziam distinções entre mim e seus outros<br />
filhos, sempre tive tu<strong>do</strong> que quis, na medida em que suas condições podiam me garantir.<br />
Fiz jardim <strong>de</strong> infância, e estu<strong>de</strong>i no mesmo colégio em que meus outros <strong>do</strong>is irmãos<br />
estudaram durante toda minha infância e a<strong>do</strong>lescência até a conclusão <strong>do</strong> Ensino Médio. Era<br />
uma instituição filantrópica, mas que cobrava uma pequena mensalida<strong>de</strong> para “manutenção”.<br />
Meus pais atuais nunca escon<strong>de</strong>ram <strong>de</strong> mim minha verda<strong>de</strong>ira origem, e nem podiam.<br />
Minha mãe biológica sempre me visitava e fazia questão <strong>de</strong> dizer que ela era, sim, “minha<br />
verda<strong>de</strong>ira mãe”. Algumas tias e algumas vezes minha própria mãe tentavam “inculcar” na<br />
* Graduan<strong>do</strong> em O<strong>do</strong>ntologia na <strong>UFMA</strong>.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 85
minha cabeça que eu <strong>de</strong>veria me revoltar pelo fato <strong>de</strong> meus pais biológicos terem me<br />
entrega<strong>do</strong> a uma outra família, como se eu tivesse si<strong>do</strong> rejeita<strong>do</strong>. Diziam elas: “E meus<br />
outros irmãos? Não tiveram condições <strong>de</strong> sustentá-los? Por que eu o escolhi<strong>do</strong>?”. Devo<br />
agra<strong>de</strong>cer, em primeiro lugar, a Deus, foi Ele que não permitiu que atitu<strong>de</strong>s como essas<br />
enchessem meu coração <strong>de</strong> rancor e amargura, pois nunca consegui sentir ódio <strong>do</strong>s meus<br />
pais biológicos.<br />
Meu primeiro contato com o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> conhecimento foi na escolinha Semente <strong>do</strong><br />
Saber, um jardim <strong>de</strong> infância recém-inaugura<strong>do</strong> na cida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> cuja primeira turma<br />
participei. Por <strong>do</strong>is anos estive lá e aprendi bastante. Tive excelentes professoras (as tias)<br />
das quais me recor<strong>do</strong> em vagas lembranças e colegas <strong>de</strong> turma, com alguns <strong>do</strong>s quais<br />
mantenho contato até hoje.<br />
Os fatos mais marcantes durante minha primeira infância foram, sem sombra <strong>de</strong> dúvida,<br />
as famosas Festas Juninas. Minha mãe sempre era escolhida para fazer o mingau <strong>de</strong> milho e<br />
eu sempre dançava na quadrilha. Lembro-me <strong>de</strong> uma vez em que fui escolhi<strong>do</strong> junto com<br />
uma garota <strong>de</strong> minha turma para sermos rei e rainha da Festa <strong>de</strong> São João, porém, tínhamos<br />
que disputar com uma outra dupla <strong>de</strong> crianças. Minha mãe tinha que arrecadar dinheiro<br />
ven<strong>de</strong>n<strong>do</strong> alguns bilhetes, e é claro, venceria a dupla que ven<strong>de</strong>sse mais. Ela passou dias<br />
nas ruas arrecadan<strong>do</strong> dinheiro com as vendas, e recor<strong>do</strong>-me como se fosse hoje, nós vencemos<br />
e eu ganhei um carro enorme <strong>de</strong> brinque<strong>do</strong>.<br />
Assim que saí <strong>do</strong> jardim <strong>de</strong> infância, fui matricula<strong>do</strong> no Colégio Pinheirense, a<br />
instituição filantrópica que cobrava uma taxa, no qual concluí os Ensinos Fundamental e<br />
Médio. É evi<strong>de</strong>nte que eu não gostava <strong>de</strong> estudar e isso me rendia umas boas chineladas na<br />
“poupança”. Minha mãe me obrigava a estudar e eu tinha o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> ser o melhor. Minhas<br />
notas escolares não podiam ser menores que 9,0, numa instituição <strong>de</strong> ensino cuja média era<br />
8,0. Era surra na certa se eu chegasse em casa exibin<strong>do</strong> alguma nota baixa. Não sei se essa<br />
psicologia retrógrada tem algum fun<strong>do</strong> <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, mas parece que a tentativa <strong>de</strong>u certo.<br />
Nunca necessitei <strong>de</strong> professores particulares e fazia meus <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> casa sozinho, já na 4ª<br />
série <strong>do</strong> Ensino Fundamental. Esforçava-me para ser o melhor aluno da sala e adquirir o<br />
espírito <strong>de</strong> competição que me foi ensina<strong>do</strong>. Nessa escola, os boletins eram entregues duas<br />
vezes ao ano, a cada semestre. Neles, era discriminada a colocação <strong>do</strong> aluno na sala <strong>de</strong> aula.<br />
E quem era o primeiro coloca<strong>do</strong> no ranking? Eu. Meus pais ficavam orgulhosos <strong>de</strong> mim e<br />
diziam sempre que eu teria um futuro brilhante; comparavam-me, às vezes, com meus outros<br />
<strong>do</strong>is irmãos, que não davam à mínima para os estu<strong>do</strong>s, mas isso os magoava.<br />
Dois fatos marcaram essa fase da minha vida: o falecimento <strong>do</strong> meu irmão caçula e <strong>do</strong><br />
meu avô. A gravi<strong>de</strong>z da minha mãe não foi problemática, entretanto, o parto foi complica<strong>do</strong><br />
e realiza<strong>do</strong> prematuramente, parece-me que seus pezinhos foram luxa<strong>do</strong>s no trabalho <strong>de</strong><br />
parto. Meu irmão era bonito e aparentemente saudável. O que não sabíamos é que ele era<br />
porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> uma grave <strong>do</strong>ença cardíaca congênita, e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 48 horas <strong>de</strong> nasci<strong>do</strong>, veio a<br />
falecer. Foi traumático para meus pais a sua perda, principalmente, para minha mãe. Pouco<br />
tempo <strong>de</strong>pois, numa das viagens que costumava fazer pelos povoa<strong>do</strong>s nas re<strong>do</strong>n<strong>de</strong>zas <strong>de</strong><br />
Pinheiro, meu avô, que pesava na época mais <strong>de</strong> 100 quilos, sofreu uma parada<br />
cardiorespiratória, e pela falta <strong>de</strong> recursos médicos da região, não pô<strong>de</strong> ser atendi<strong>do</strong> com<br />
urgência, falecen<strong>do</strong> em seguida. Foi o primeiro ser humano adulto que vi <strong>de</strong>ita<strong>do</strong> em um<br />
caixão e isso me abalou fortemente. Meus avós, foram meus pais na infância, convivi com<br />
eles durante anos. Após seu falecimento, fui morar <strong>de</strong>finitivamente com meus pais.<br />
86 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Já quan<strong>do</strong> estava prestes a entrar no conturba<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> da a<strong>do</strong>lescência, vieram os maiores<br />
problemas <strong>de</strong> toda minha vida. Não consigo enten<strong>de</strong>r até hoje o verda<strong>de</strong>iro motivo que levaram<br />
minha mãe a me rejeitar. Foi uma época conturbada! A gente não conseguia se enten<strong>de</strong>r por<br />
alguns motivos e acabávamos discutin<strong>do</strong>, passávamos dias sem nos falar. Por vezes ela dizia se<br />
lamentar por ter-me acolhi<strong>do</strong> como filho e isso me machucava muito, e ainda machuca. Algumas<br />
pessoas diziam que isso acontecia por causa <strong>do</strong> ciúme que ela sentia <strong>do</strong> meu pai, que <strong>de</strong>monstrava<br />
mais amor por mim que por ela. A situação sempre se agravava quan<strong>do</strong> eles discutiam e não era<br />
incomum que brigassem. Minha mãe <strong>de</strong>scontava sua raiva em cima <strong>de</strong> mim e acho que era por<br />
vingança. Foi também nesse tempo que meu irmão mais velho resolveu se casar pela primeira<br />
vez, e <strong>de</strong>pois pela segunda e por último, pela terceira vez. Meu pai sempre aparentava dar mais<br />
atenção às esposas <strong>do</strong> meu irmão que à sua própria esposa. Isso a magoava muito. Perdi a conta<br />
das vezes em que houve discussões na minha casa. Não suportava mais aquela situação. Tu<strong>do</strong><br />
melhorou quan<strong>do</strong> meu irmão finalmente <strong>de</strong>cidiu ir embora <strong>de</strong> casa com sua esposa e filhos.<br />
Na 7ª série <strong>do</strong> Ensino Fundamental, houve um acontecimento que me fez rever minha<br />
família biológica, o falecimento <strong>do</strong> meu pai. Soube <strong>do</strong> seu falecimento através <strong>do</strong> meu pai<br />
atual. O mais interessante <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> é que reagi <strong>de</strong> forma inesperada. Imaginava que, se um dia<br />
isso acontecesse, não me importaria, mas eu chorei e senti sua falta. Chorei por alguém que<br />
havia visto rapidamente apenas uma vez, ou como se tivesse convivi<strong>do</strong> com ele durante<br />
toda minha vida. A verda<strong>de</strong> é que não me recor<strong>do</strong> <strong>de</strong>le, nem mesmo <strong>de</strong> seus traços faciais.<br />
Foi nessa época que conheci muitos <strong>de</strong> meus irmãos, e a partir daí, comecei a manter um<br />
maior vínculo com minha primeira família.<br />
Quan<strong>do</strong> ingressei no Ensino Médio, comecei a ter um forte <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> entrar na<br />
universida<strong>de</strong>. Imaginava que somente <strong>de</strong>ssa forma po<strong>de</strong>ria conseguir “um lugar ao sol”.<br />
Mas havia uma contradição nisso. Passei to<strong>do</strong> o Ensino Fundamental competin<strong>do</strong> para ser<br />
sempre o melhor, porém, quan<strong>do</strong> comecei o Ensino Médio, essa minha ânsia por competição<br />
e vitória foi se apagan<strong>do</strong>, não que eu não gostasse mais <strong>de</strong> estudar, não era isso, só não<br />
valorizava mais o estilo competi<strong>do</strong>r que meus pais, em especial minha mãe, haviam me<br />
ensina<strong>do</strong>. Isso é tão verda<strong>de</strong> que houve uma ocasião em que, no 1º ano <strong>do</strong> Ensino Médio,<br />
fiquei pela primeira vez <strong>de</strong> recuperação em uma disciplina, e po<strong>de</strong> parecer mentira: fiquei<br />
feliz em per<strong>de</strong>r! Para mim, foi um acontecimento inédito, ímpar em toda minha vida. Ora,<br />
alguém que passou to<strong>do</strong> o Ensino Fundamental exibin<strong>do</strong> boletins que diziam ser o melhor,<br />
já não suportava mais pousar como “o garoto perfeito que precisa ser segui<strong>do</strong>”! Coisas<br />
como essas me enojavam.<br />
Passei os três anos <strong>do</strong> Ensino Médio me preparan<strong>do</strong> para o vestibular e sempre estudava<br />
muito. No fun<strong>do</strong> eu sabia que, se não conseguisse ingressar na Faculda<strong>de</strong> Pública, meu<br />
sonho <strong>de</strong> ter um curso superior jamais se concluiria. Não queria seguir pelo mesmo caminho<br />
que meus outros <strong>do</strong>is irmãos seguiram, porque, ao concluírem o Ensino Médio, pararam <strong>de</strong><br />
estudar por falta <strong>de</strong> recursos financeiros.<br />
Na cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> eu morava, não havia cursinho pré-vestibular e aqueles que <strong>de</strong>sejavam<br />
ter uma melhor preparação para enfrentar o vestibular precisavam pagar professores<br />
particulares. Meu pai nunca fez isso por mim e não seria agora que faria. Mas não <strong>de</strong>sisti por<br />
isso. Sozinho ou com alguns amigos, eu sempre estudava.<br />
Completei o Ensino Médio em 2001, e a cada ano, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1999, participava <strong>do</strong> Programa<br />
<strong>de</strong> Seleção Gradual (PSG) da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>, atualmente extinto. Esse<br />
programa realizava provas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o 1º ao 3º ano <strong>do</strong> Ensino Médio com o objetivo <strong>de</strong> selecionar<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 87
alunos para a universida<strong>de</strong>. Nessa época, havia o PSG e o Vestibular Tradicional. Participei<br />
<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is processos seletivos. No Vestibular Tradicional, me inscrevi para Farmácia, mas só<br />
fui aprova<strong>do</strong> na primeira etapa. No PSG coloquei o curso que realmente almejava,<br />
O<strong>do</strong>ntologia, no qual fui aprova<strong>do</strong>.<br />
Foi uma nova fase da minha vida. Como meus pais residiam em Pinheiro, eu teria que<br />
morar com alguém em São Luís, só assim po<strong>de</strong>ria estudar. Minha irmã havia se muda<strong>do</strong> há<br />
pouco tempo para a capital e seria com ela que iria morar. Ficou sempre claro para mim, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
o começo, que fui aceito não por vonta<strong>de</strong> própria. Desejei fortemente nunca ter i<strong>do</strong> viver ali.<br />
Foram quatro anos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que entrei na faculda<strong>de</strong>, em 23 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2002, que<br />
convivi com minha irmã, seu esposo e meu sobrinho, que nasceu pouco tempo <strong>de</strong>pois. Não<br />
foi fácil! Por algumas vezes, pensei em <strong>de</strong>sistir <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, mas meu <strong>de</strong>sejo em crescer como<br />
pessoa <strong>de</strong>ntro da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> e as portas que seriam abertas após a conclusão <strong>do</strong> curso me<br />
fizeram repensar. Evi<strong>de</strong>ntemente que não posso dizer que não houve bons momentos. É<br />
óbvio que sim! Mas foram poucos. Ela saía <strong>de</strong> casa por dias, in<strong>do</strong> “visitar” a sogra, que<br />
morava na mesma cida<strong>de</strong>, e me <strong>de</strong>ixava “ao <strong>de</strong>us dará”. O maior problema nisso tu<strong>do</strong> era a<br />
alimentação. A gela<strong>de</strong>ira ficava, na maioria das vezes, vazia. Meu Deus, era um sufoco! Às<br />
vezes não tinha o que comer, mas preferia ficar cala<strong>do</strong> e não contar para meus pais, porque<br />
sabia que, se contasse, minha situação só pioraria. Até hoje eles não sabem disso. “Mas um<br />
dia a casa cai”. E numa das viagens que ela costumava fazer para Pinheiro, nossa terra natal,<br />
resolvi que não havia a menor possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> continuar viven<strong>do</strong> ali, já não agüentava<br />
mais aquela situação. Fui embora para a casa <strong>de</strong> uma amiga minha, Dinalva, hoje uma irmã<br />
para mim. Foi ela quem me acolheu! E lhe sou grato por tu<strong>do</strong>!<br />
Na faculda<strong>de</strong>, as coisas não iam muito bem. Optei por um curso relativamente caro,<br />
fato que <strong>de</strong>sconhecia. Na O<strong>do</strong>ntologia, temos que comprar materiais e instrumentos <strong>de</strong><br />
estu<strong>do</strong> e não temos a permissão <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r pacientes sem antes tê-los adquiri<strong>do</strong>. Meu pai<br />
ainda conseguiu, com bastante esforço, comprar meus primeiros instrumentos, porém,<br />
quan<strong>do</strong> cheguei ao 7° perío<strong>do</strong>, a situação financeira <strong>de</strong>les ia <strong>de</strong> mal a pior. Decidi que não<br />
podia continuar o curso nessas condições, era a hora <strong>de</strong> trancá-lo. Falei a alguns amigos<br />
meus <strong>de</strong> sala <strong>de</strong> aula que havia <strong>de</strong>cidi<strong>do</strong> parar o curso por falta <strong>de</strong> recursos econômicos. O<br />
que eu não sabia é que o <strong>de</strong>stino me guardava uma gran<strong>de</strong> surpresa. Meus amigos se reuniram<br />
às escondidas e me presentearam com o resto <strong>do</strong> material que estava faltan<strong>do</strong>. Deus meu,<br />
eles me salvaram! Jamais terei como pagá-los por isso! São muitas as dificulda<strong>de</strong>s, mas não<br />
há esforço incapaz <strong>de</strong> vencê-las. Hoje estou no 9º perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> curso <strong>de</strong> O<strong>do</strong>ntologia e prestes<br />
a me formar.<br />
Atualmente, a <strong>UFMA</strong> a<strong>do</strong>tou o sistema <strong>de</strong> cotas para negros e estudantes <strong>de</strong> escolas<br />
públicas, uma ação afirmativa que representa um salto em busca da igualda<strong>de</strong> social, na<br />
tentativa <strong>de</strong> incluir os menos favoreci<strong>do</strong>s no espaço universitário. Mas existe uma dúvida<br />
que me atormenta: como estudantes <strong>de</strong> escolas públicas e negros <strong>de</strong> baixa renda po<strong>de</strong>rão<br />
subsistir em um curso que exige <strong>de</strong> seus alunos um po<strong>de</strong>rio econômico semelhante ao <strong>de</strong><br />
cidadãos pertencentes a níveis sociais <strong>de</strong> prestígio? Essa é uma responsabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Governo<br />
<strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> que <strong>de</strong>verá lhes garantir condições igualitárias <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>. Em um curso no qual<br />
aproximadamente 90% <strong>do</strong>s alunos são oriun<strong>do</strong>s <strong>de</strong> classes sociais altas, já é hora <strong>de</strong> ações<br />
como essas entrarem em cena, com o objetivo único <strong>de</strong> <strong>de</strong>smoronar as regras impostas, cujas<br />
raízes históricas só favorecem a classe social <strong>do</strong>minante.<br />
88 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Maria Domingas Ferreira Castro *<br />
Durante nosso tempo aqui neste mun<strong>do</strong>, coisas acontecem conosco que nem<br />
conseguimos imaginar, muitas vezes, o porquê. No entanto, <strong>de</strong>vemos continuar buscan<strong>do</strong> o<br />
melhor que acreditamos para nossa vida e assim vai chegan<strong>do</strong> o momento em que iremos<br />
enten<strong>de</strong>r a razão <strong>de</strong> acontecimentos inespera<strong>do</strong>s durante nossa jornada. Bem, falo isto<br />
porque falar sobre nossa vida não é algo fácil, principalmente, porque existem <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s<br />
fatos que acontecem e <strong>do</strong>s quais não enten<strong>de</strong>mos a razão.<br />
Eu, por exemplo, nasci em uma família muito pobre e <strong>de</strong> muitos irmãos no interior <strong>do</strong><br />
<strong>Maranhão</strong>. Você enten<strong>de</strong> o que é isso? Pois é, isto quer dizer que lá on<strong>de</strong> nasci nao existia<br />
nenhum tipo <strong>de</strong> recurso que pu<strong>de</strong>sse me fazer imaginar que um dia estaria em uma<br />
universida<strong>de</strong> e escreven<strong>do</strong> agora sobre minha caminhada. É, mas a vida nos reserva surpresas,<br />
e quan<strong>do</strong> menos esperava, com sete anos, fui para uma cida<strong>de</strong> menos pobre que a minha e lá<br />
consegui apren<strong>de</strong>r o alfabeto e até a <strong>de</strong>codificar algumas palavras; mais tar<strong>de</strong>, saí daquela<br />
simples cida<strong>de</strong>zinha e vim para São Luís e é aqui, por incrível que pareça, que começam as<br />
minhas maiores dificulda<strong>de</strong>s.<br />
Tive que começar a trabalhar na casa <strong>de</strong> uma família quan<strong>do</strong> tinha apenas <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong><br />
ida<strong>de</strong>, para conseguir sobreviver aqui e po<strong>de</strong>r estudar... esse tipo <strong>de</strong> coisa aqui é muito<br />
comum: crianças serem trazidas <strong>do</strong> interior <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> para trabalharem como empregadas<br />
<strong>do</strong>mésticas ou babás <strong>de</strong> outras crianças, e na maioria das vezes, serem maltratadas na casa <strong>de</strong><br />
famílias que têm um pouco mais <strong>de</strong> condição financeira, e pelo que vejo, infelizmente, isso<br />
não é só no <strong>Maranhão</strong>, e sim no Brasil to<strong>do</strong>.<br />
Felizmente no meu caso, mesmo não sen<strong>do</strong> boa a vida que levava na casa <strong>de</strong>ssa<br />
família, tive a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estudar (isso graças à exigência que meu queri<strong>do</strong> pai fez: só<br />
viria com essa família se me colocassem para estudar), o que muitas meninas que são trazidas<br />
<strong>de</strong> interiores muito pobres <strong>de</strong> nosso Esta<strong>do</strong> não têm. Muitas apenas são trazidas para trabalhar<br />
e trabalhar sem direito a nada. Infelizmente, é uma atitu<strong>de</strong> indigna <strong>de</strong> muitas famílias que<br />
agem <strong>de</strong>ssa forma aqui no <strong>Maranhão</strong>, pois esse tipo <strong>de</strong> ação só faz <strong>de</strong>struir a pouca esperança<br />
que essas crianças têm ou <strong>de</strong>sejam ter.<br />
Embora tenha si<strong>do</strong> uma das partes mais difíceis da minha vida, foi (talvez) <strong>de</strong>cisiva<br />
para que eu estivesse hoje, aqui, escreven<strong>do</strong> sobre minha caminhada na vida... nessa época,<br />
comecei logo a estudar a 1 a série <strong>do</strong> Ensino Fundamental e continuei até a 8 a série. Tinha<br />
um sonho: conseguir estudar em uma escola melhor da que estudava da 5 a à 8 a (CEMA), pois<br />
* Graduanda em Geografia na <strong>UFMA</strong>.<br />
Pequenas ações para uma<br />
gran<strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong><br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 89
lá o ensino era muito ruim: era a televisão que transmitia as aulas, e como a maior parte das<br />
escolas públicas, não ensinava o aluno a apren<strong>de</strong>r, antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>corar conteú<strong>do</strong>s. Então, quan<strong>do</strong><br />
terminei a 8 a série, fiz prova para cursar o Ensino Médio no Colégio Universitário(COLUN) e<br />
lá consegui uma vaga e foi nela que pu<strong>de</strong> melhorar meu aprendiza<strong>do</strong>.<br />
Com ajuda <strong>de</strong> alguns professores, no fim da 3 a série, fiz o Vestibular e passei para o<br />
curso <strong>de</strong> Geografia. Agora, por mais absur<strong>do</strong> que pareça, começa uma outra etapa também<br />
difícil. Nessa época, já não estava mais na casa da família para on<strong>de</strong> vim, e sim na terceira<br />
casa, mas não gostava <strong>de</strong> ter que viver <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>de</strong>les para me manter na universida<strong>de</strong><br />
(mesmo sen<strong>do</strong> eles bem diferentes da primeira família e me incentivarem um pouco ao<br />
estu<strong>do</strong>, não podiam me sustentar, praticamente, <strong>de</strong> graça para que eu estudasse, já que agora<br />
quase não tinha mais tempo para ficar em casa e ajudar no trabalho <strong>do</strong>méstico), pois, para<br />
cursar o curso, era bem mais custoso. Então precisava encontrar um emprego, foi quan<strong>do</strong> fiz<br />
seleção para estágio no Núcleo <strong>de</strong> Assuntos Estudantis da <strong>UFMA</strong> e consegui uma bolsa que<br />
dava para manter os passes e as cópias <strong>do</strong>s textos.<br />
Fiquei lá durante <strong>do</strong>is anos, o prazo máximo estabeleci<strong>do</strong> e encontrei pessoas que<br />
pu<strong>de</strong>ram me ajudar muitas vezes, pois elas sabiam das dificulda<strong>de</strong>s financeiras que tinha<br />
para me manter no curso, entre outras. O “mun<strong>do</strong>”, é na maior parte das vezes, cruel e para<br />
poucos “bonzinho”; falo <strong>de</strong>sse sistema que os homens estabeleceram para governar nossas<br />
vidas e ações da forma que lhes convêm, nos dizen<strong>do</strong> que <strong>de</strong>vemos aceitar o que nos é<br />
imposto e não lutar para conseguir sair <strong>de</strong>ssa imposição ridícula; não sei se me enten<strong>de</strong>m,<br />
mas falo <strong>do</strong> sistema econômico vigente, pois tu<strong>do</strong> é um processo: se temos escolas públicas<br />
para to<strong>do</strong>s, porém <strong>de</strong> péssima qualida<strong>de</strong>, conseqüentemente, a universida<strong>de</strong> pública é para<br />
to<strong>do</strong>s (contu<strong>do</strong>, para to<strong>do</strong>s os que têm condição financeira para chegar até ela e se manter<br />
lá), o que sabemos que são poucos.<br />
Temos exemplos, na universida<strong>de</strong>, da não condição <strong>de</strong> acesso e permanência <strong>de</strong> alunos<br />
oriun<strong>do</strong>s <strong>de</strong> famílias pobres. Em primeiro lugar, o número <strong>de</strong> vagas oferecidas são poucas;<br />
então, na maioria das vezes, quem entra na universida<strong>de</strong> são os filhos <strong>de</strong> pais com uma<br />
condição financeira razoável. Quan<strong>do</strong> os estudantes pobres conseguem ingressar, encontram,<br />
<strong>de</strong> chofre, entre outras, a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> permanecer no curso; pois muitas vezes não têm como<br />
se manter, e foi o que quase acontecia comigo se não tivesse conheci<strong>do</strong> alguém muito especial<br />
e se não tivesse também consegui<strong>do</strong> o Programa Conexões <strong>de</strong> Saberes. Assim, posso dizer que<br />
são pequenas ações, mas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valor que fazem a diferença na vida <strong>de</strong> muitas pessoas.<br />
Digo isso porque, na minha vida, sempre foram oportunida<strong>de</strong>s muito pequenas que tive, mas<br />
que, somadas, tornaram-se uma OPORTUNIDADE.<br />
Um <strong>do</strong>s meus <strong>de</strong>sejos e anseios na vida é po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> alguma forma contribuir com<br />
crianças e jovens que passam por situações semelhantes à minha (até mais difíceis) para que<br />
um dia possam escrever suas caminhadas e perceberem que suas vidas tomaram um rumo<br />
bom e esperançoso <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> às pequenas oportunida<strong>de</strong>s que se tornaram condição sine qua<br />
non para a saída da caverna escura em busca da luz <strong>do</strong> sol. Enfim, hoje, eu sei que cada<br />
momento bom ou ruim nos é da<strong>do</strong> para que possamos valorizar e apren<strong>de</strong>r que o importante<br />
é o agora, já que ele é o nosso presente e o futuro nele é construí<strong>do</strong>.<br />
90 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Andra<strong>de</strong> Pereira *<br />
Quan<strong>do</strong> a busca <strong>de</strong> um sonho vai dar em<br />
um Rio - <strong>de</strong> Janeiro<br />
que <strong>de</strong>semboca no Complexo maré <strong>de</strong><br />
realizações!<br />
A saga <strong>de</strong> uma nor<strong>de</strong>stina, Maria <strong>de</strong><br />
Lour<strong>de</strong>s<br />
em busca <strong>de</strong> uma vaga na universida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e felicida<strong>de</strong>.<br />
Essa história que vou lhes contar, confun<strong>de</strong>-se com a história <strong>de</strong> qualquer mulher<br />
nascida no Brasil, país on<strong>de</strong> a força da natureza esculpiu os montes ver<strong>de</strong>jantes, as<br />
montanhas, as praias <strong>de</strong> águas azuis esver<strong>de</strong>adas, a fina areia branca, a terra roxa, barrenta<br />
e vermelha como a pele <strong>do</strong>s homens ameríndios que por aqui os portugueses encontraram.<br />
Nessa “pátria amada, explorada, i<strong>do</strong>latrada, salve-salve”, salvaram-se alguns milhões<br />
<strong>de</strong> seus primeiros <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, entre eles uma gente <strong>de</strong> tez escura, que eram reis em sua<br />
terra africana, aportan<strong>do</strong> aqui em viagens dantescas, pilha<strong>do</strong>s em navios por on<strong>de</strong><br />
provavelmente meus antepassa<strong>do</strong>s também vieram: eu sou mestiça, filha <strong>de</strong> um homem<br />
branco e uma mulher negra, mas caracterizada como pele “parda”, mesmo com toda a<br />
minha cara-pálida.<br />
No resgate <strong>de</strong>ssa história da qual hoje me orgulho <strong>de</strong> contar, sinto que é como se eu<br />
falasse pelo coração e a memória <strong>do</strong>s sentimentos que muitas mulheres registraram e<br />
sentem. Para algumas, talvez lhes faltem as palavras, porque a educação foi pouca; para<br />
outras, talvez falte a poesia, e para outras tantas quem sabe, a coragem <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r dizer:<br />
somos diferentes numa socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>siguais, ti<strong>do</strong>s como iguais. Uma parte <strong>de</strong>sta história<br />
<strong>de</strong> brancos e negros, se escreve e se prescreve, às vezes sem letras, às vezes sem o aval da<br />
aca<strong>de</strong>mia, por on<strong>de</strong> agora me insiro. Alfabetizada numa escola pública aos sete anos <strong>de</strong><br />
ida<strong>de</strong>, sem antes haver freqüenta<strong>do</strong> o jardim, minha vida escolar nunca foi um mar <strong>de</strong><br />
rosas, ou flores. E por falar em mar, <strong>do</strong> mar cabralino, <strong>do</strong> mar português <strong>de</strong> Pessoa, <strong>do</strong> mar<br />
lu<strong>do</strong>vicense que conheceu os homens e mulheres arrastadas por correntes, hoje, arrastamos<br />
lembranças, e com nossa luta, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> trazer igualda<strong>de</strong>, liberda<strong>de</strong> e cidadania, que<br />
ainda não é fato.<br />
* Graduanda em Pedagogia na <strong>UFMA</strong>.<br />
Pão, educação e arte<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 91
Eu nasci e me criei no mar, contan<strong>do</strong> conchas, caranguejos, testemunhan<strong>do</strong> a expressão<br />
maior da natureza e <strong>do</strong> amor divino por nós, pensan<strong>do</strong> em minha origem. Um dia, esse mar<br />
maranhense me levou ao mar carioca, mas pensava: on<strong>de</strong> terminam ou começam essas<br />
águas? No mar português? No Atlântico? Nas águas nada pacíficas <strong>do</strong> Pacífico? Por que os<br />
homens conseguem achar e por limites no mar e na vida <strong>do</strong>s homens e mulheres? Limites<br />
estes que a língua e a fala sacramentam, aumentan<strong>do</strong> as diferenças e <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais.<br />
Um dia eu sonhei tão alto, que só olhar o mar não bastava, precisava saber on<strong>de</strong> ele daria,<br />
porque enchia, porque era ver<strong>de</strong>, cantá-lo, comentá-lo, encantá-lo com as l e t r a s, que me<br />
fariam navegar por ele e ir para on<strong>de</strong> eu sonhasse: era uma dádiva juntar as sílabas uma a uma<br />
e perceber que <strong>de</strong>pois elas tinham vida própria, que eu podia ser o que quisesse e <strong>de</strong>sejasse. A<br />
primeira palavra que aprendi a escrever foi “bola”, eu achava que era a palavra mais linda <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>, e me “embolei” no mun<strong>do</strong>, pois, len<strong>do</strong> e sen<strong>do</strong> alfabetizada, <strong>de</strong>scobri que o mun<strong>do</strong><br />
era re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, que ele dá muitas voltas, e nessas voltas que a vida dá, estou viran<strong>do</strong> o jogo das<br />
condições parcas e difíceis <strong>de</strong> uma infância pobre, nascida em uma família que se <strong>de</strong>sestruturou,<br />
que da <strong>de</strong>sunião <strong>de</strong> duas pessoas que povoaram o mun<strong>do</strong> com seis filhos e muitos sonhos,<br />
surgiu uma Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s, nor<strong>de</strong>stina, mestiça, que vos apresento.<br />
No começo <strong>de</strong> minha vida familiar, não sentia as dificulda<strong>de</strong>s, não tinha noção <strong>do</strong>s<br />
problemas afetivos que envolviam meus pais: ignorava que meu pai se casara por pressão,<br />
que ele era um homem “mulherengo” e que minha mãe corria o risco <strong>de</strong> ficar sem mari<strong>do</strong>.<br />
Nem sabia que ele só se casara com minha mãe por ela ser negra e sua mãe ter prometi<strong>do</strong> aos<br />
pais <strong>de</strong>la que ela não ficaria <strong>de</strong>sonrada, o jovem branco não fugiria <strong>do</strong> seu compromisso<br />
com a jovem negra, acho que minha avó quis ser “justa”, reparar erros ancestrais e cometeu<br />
outros ainda maiores.<br />
Quan<strong>do</strong> eu contava oito anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> e me embrenhava pelo mun<strong>do</strong> das palavras,<br />
fomos transferi<strong>do</strong>s para Belém <strong>do</strong> Pará. Per<strong>de</strong>mos o ano escolar e fomos sustenta<strong>do</strong>s por<br />
minha avó Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s que tem um papel fundamental nessa história. Éramos duas<br />
famílias viven<strong>do</strong> com uma pequena pensão (eu, meus cinco irmãos, meus <strong>de</strong>z tios por parte<br />
<strong>de</strong> pai), meu tio Jomar; generosamente enviava pequenas remessas <strong>de</strong> dinheiro para sua<br />
mãe, que sustentava to<strong>do</strong>s: filhos e netos. Os heróis existem em todas as histórias, a minha<br />
está cheia <strong>de</strong>les, pois sem minha avó e meu tio, eu teria pereci<strong>do</strong>. Meu pai dizia estar<br />
trabalhan<strong>do</strong> em São Luís, para nos dar “uma vida melhor” e cinco anos se passaram.<br />
Em Belém, eu não olhava o mar: era longe, distante, e quan<strong>do</strong> o vi pela primeira vez,<br />
achei estranho: suas águas eram <strong>do</strong>ces! Em São Luís, jamais passamos fome, pois meu pai<br />
tirava o sustento das águas que eram fartas <strong>de</strong> pesca<strong>do</strong> e crustáceos. Conheci a cara da fome,<br />
junto com a <strong>do</strong>r e a sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong> meus pais, acho que isso <strong>do</strong>ía mais que a falta <strong>de</strong> comida.<br />
Nessa época, sofri <strong>de</strong> <strong>de</strong>snutrição aguda, minha avó precisou tirar-me da escola, pois eu<br />
<strong>de</strong>smaiava com freqüência, ela tinha receio <strong>de</strong> que eu viesse a morrer no caminho para a<br />
escola (que fosse cair, bater com a cabeça). Eu ganhara um livro <strong>de</strong> minha professora e o lia<br />
to<strong>do</strong>s os dias, era a história <strong>de</strong> uma loba que alimentara um casal <strong>de</strong> gêmeos: Rômulo e<br />
Remo, os funda<strong>do</strong>res da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Roma, meu único elo com a educação enquanto sonhava<br />
em voltar a estudar.<br />
No nosso retorno à Ilha, meus pais estavam separa<strong>do</strong>s, ele havia constituí<strong>do</strong> outra<br />
família, estava <strong>de</strong>semprega<strong>do</strong>, não tínhamos casa, morávamos em um barraco (feito <strong>de</strong><br />
papelão e palha), num bairro <strong>de</strong> classe média no centro da cida<strong>de</strong>, com <strong>do</strong>is cômo<strong>do</strong>s e<br />
cozinhávamos a lenha. Ele continuava fazen<strong>do</strong> suas incursões ao mar para pescar, contar<br />
92 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
histórias, nos ensinar coisas da vida. Voltei à escola, mas as pressões para estudar à noite<br />
eram muitas: eu sentia vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ajudar no meu sustento, no <strong>de</strong> meus irmãos menores (<strong>do</strong>s<br />
quais eu tomava conta) e queria muito ajudar minha mãe que, sem instrução, estava em<br />
situação pior que a nossa. Morávamos com nossa madrasta. Como minha mãe não tinha <strong>de</strong><br />
on<strong>de</strong> tirar nosso sustento, meu pai ficou com nossa guarda.<br />
A literatura entrou na minha vida <strong>de</strong> vez, renovaram-se as esperanças, alguns<br />
a<strong>do</strong>lescentes recorrem às drogas quan<strong>do</strong> querem fugir <strong>do</strong>s problemas, minha droga era os<br />
livros! Eu lia, escrevia, sonhava, construía mil castelos: era fada, rainha, bruxa, princesa,<br />
protagonista, antagonista, be<strong>de</strong>l e o juiz <strong>de</strong> meus personagens e sonhava que um dia queria<br />
ser escritora. Estava apaixonada por um certo Carlos Drumond, Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Luiz Vaz<br />
<strong>de</strong> Camões, eu li Os Lusíadas aos quatorze anos e me apaixonei pelos cantos V e IX, O<br />
Gigante Adamastor que fora transforma<strong>do</strong> no temi<strong>do</strong> “Cabo das tormentas” e o episódio da<br />
“Ilha <strong>do</strong>s Amores” on<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobri como havia surgi<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s apeli<strong>do</strong>s <strong>de</strong> São Luís <strong>de</strong> que<br />
eu mais gosto. Ainda havia Eça <strong>de</strong> Queiroz e seu maravilhoso romance Os Maias; Érico<br />
Veríssimo com sua <strong>do</strong>ce Clarissa (acho que queria ser ela) e Ziral<strong>do</strong> com a linda história: O<br />
menino mais lin<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
Eu colecionava histórias, entrevistas sobre autores literários, além <strong>de</strong> gostar muito <strong>de</strong><br />
ler enciclopédias. No entanto, era consi<strong>de</strong>rada uma aluna “fraca”, meus ca<strong>de</strong>rnos eram<br />
rechea<strong>do</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos, poemas, meus e <strong>de</strong> meus escritores famosos. Tu<strong>do</strong> o que sou e tenho,<br />
<strong>de</strong>vo à minha paixão <strong>de</strong>svairada pela arte e pela literatura, pois, resgataram-me <strong>de</strong> um futuro<br />
fada<strong>do</strong> à violência, aban<strong>do</strong>no e/ou prostituição que me rondava.<br />
Na fase adulta, tinha amigos universitários, mas a aca<strong>de</strong>mia era um sonho inatingível:<br />
eu mal havia completa<strong>do</strong> o Ensino Fundamental, parei <strong>de</strong> estudar na 7 a série para po<strong>de</strong>r<br />
trabalhar. Nas provas <strong>do</strong> supletivo, sempre ficava <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> as disciplinas Física e Matemática.<br />
Não freqüentava as aulas, apenas estudava o conteú<strong>do</strong> para realizar o “provão”. O fato é que<br />
me inscrevi no vestibular <strong>de</strong> 1999 para a <strong>UFMA</strong>, sem haver concluí<strong>do</strong> meus estu<strong>do</strong>s, sem o<br />
diploma <strong>de</strong> segun<strong>do</strong> grau; ninguém acreditava que eu iria conseguir, pois não fizera cursinho,<br />
estudava sozinha na biblioteca e tinha uma estratégia: não podia zerar as matérias Física e<br />
Matemática e me esmerava em fazer excelentes pontos em Português, História, Geografia,<br />
aquelas que eu conseguira apren<strong>de</strong>r apenas len<strong>do</strong> sozinha e on<strong>de</strong> sempre me saíra bem.<br />
Quan<strong>do</strong> consegui a aprovação no vestibular <strong>de</strong> 1999 para Artes, com o jornal nas<br />
mãos, on<strong>de</strong> se podia ler a minha aprovação, procurei a Secretaria <strong>de</strong> Educação <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>,<br />
imploran<strong>do</strong> pela chance <strong>de</strong> tirar meu diploma (ainda não estava na época <strong>do</strong> “provão”).<br />
Fora marcada uma “banca especial” para mim, com questões sorteadas referentes ao conteú<strong>do</strong><br />
que correspondia às disciplinas: Física e Matemática <strong>do</strong> antigo 2º grau. Em nenhum momento<br />
eu pensei que não conseguiria atingir os pontos necessários. Os conteú<strong>do</strong>s que não apren<strong>de</strong>ra<br />
em Matemática durante toda a minha vida, fora obrigada a apren<strong>de</strong>r em 30 dias, tempo que<br />
tive para estudar e realizar as provas para a banca especial. Hoje, faço o meu segun<strong>do</strong> curso<br />
na <strong>UFMA</strong>, Pedagogia (com esforço já realizei inclusive uma pós-graduação).<br />
Quan<strong>do</strong> obtive a aprovação naquele ano, me <strong>de</strong>bulhei em lágrimas <strong>de</strong> emoção e o “sal”<br />
<strong>de</strong>las que me turvaram a vista, lembraram-me Pessoa no seu poema “Mar português”: “Ó Mar<br />
salga<strong>do</strong>, quanto <strong>de</strong> teu sal, são lágrimas <strong>de</strong> Portugal?” E me questiono, quanto <strong>do</strong> sal <strong>do</strong> mar<br />
<strong>de</strong> São Luís representa o sal e o choro <strong>do</strong>s excluí<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>s nossos antepassa<strong>do</strong>s trazi<strong>do</strong>s à força,<br />
quanto representa o sal <strong>do</strong>s milhares <strong>de</strong> jovens que não conseguem uma vaga na <strong>Universida<strong>de</strong></strong><br />
<strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>, ou <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, Bahia, Minas... quanto ainda precisamos chorar?<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 93
Essa experiência <strong>de</strong> vitória ensinou-me algumas coisas: a primeira é que Lenin tinha<br />
razão quan<strong>do</strong> dizia: “sonhos existem, acredite neles”, a outra foi que não adianta ninguém<br />
lhe falar que você po<strong>de</strong>, enquanto você não falar isso a si mesmo! Quan<strong>do</strong> se quer muito<br />
uma coisa, não existem obstáculos que o impeçam, você fica imbuí<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma força divina<br />
maior que as dificulda<strong>de</strong>s, você enxerga que consegue, pois sabe que é capaz!<br />
Mas fico me questionan<strong>do</strong> enquanto cidadã, enquanto estudante, enquanto profissional<br />
da educação: quanto aos que ainda não são capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir em si essa “força <strong>de</strong><br />
superação?” Será que to<strong>do</strong>s nós precisamos amargar tanta negação e <strong>de</strong>saprovação, ou<br />
lutarmos <strong>de</strong>sesperadamente por algo que por direito nos pertence e a Constituição <strong>de</strong>veria<br />
nos garantir?<br />
Nessa história que ainda escrevo, que com a bênção da PROEX-<strong>UFMA</strong> eternizo, tenho<br />
um sentimento <strong>de</strong> profun<strong>do</strong> amor e gratidão por meus pais, meus professores, meus amigos,<br />
meus ama<strong>do</strong>s irmãos conexistas, minha cida<strong>de</strong> e meu bairro on<strong>de</strong> tenho um vínculo<br />
umbilical, a Liberda<strong>de</strong> e sobretu<strong>do</strong> pelo mar <strong>de</strong> São Luís, que me levou ao mar <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, ao Complexo Maré <strong>de</strong> realizações, on<strong>de</strong> preten<strong>do</strong> ganhar o mun<strong>do</strong> que há muito<br />
tempo me ganhou, me fez nascer, crescer e multiplicar.<br />
“Quan<strong>do</strong> o MAR e o CÉU se juntam, eles formam a palavra<br />
MARCELO e juntos, o céu e o mar pelas mãos divinas, fez o<br />
cria<strong>do</strong>r surgir o horizonte, pra on<strong>de</strong> a poesia e a poeta não se<br />
cansam jamais <strong>de</strong> olhar”.<br />
94 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Maya Dayana Penha da Silva *<br />
Sou Maya Dayana Penha da Silva, nascida <strong>de</strong> uma guerreira chamada Yone da<br />
Cruz Penha, que se tornou a esperança, o objetivo e a inspiração da minha luta neste<br />
mun<strong>do</strong> elitista.<br />
Caríssimos leitores, escrever sobre minha história <strong>de</strong> vida foi uma tarefa muito difícil.<br />
Confesso que fiquei com me<strong>do</strong>. Não <strong>de</strong> ter a minha vida retratada em algumas páginas, mas<br />
<strong>de</strong> como começar a redigir. O que lembrar? Do nascimento? Dos traumas? Dos nomes <strong>do</strong>s<br />
meus professores?... Entrei em <strong>de</strong>sespero, pois nunca escrevi bem (sinceramente, sempre<br />
fugia das aulas <strong>de</strong> português)! Então, para iniciar, tive o auxílio <strong>de</strong> minha mãe. E assim,<br />
inicia-se o meu memorial.<br />
Em 1976, na rua Riachuelo, bairro João Paulo, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Luís <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>,<br />
Yone inicia sua profissão <strong>de</strong> ajudante <strong>de</strong> lava<strong>de</strong>ira, junto com seus três irmãos: Irlan,<br />
Irlanda e Izaura. Ofício <strong>de</strong> sua mãe Yolanda (mãe solteira) que, mesmo com tanta<br />
dificulda<strong>de</strong>, priorizava o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s seus filhos. Assim, minha mãe levou a vida até<br />
concluir o antigo colegial no colégio Luís Viana, on<strong>de</strong> conheceria o fiscal <strong>de</strong> ônibus<br />
Raimun<strong>do</strong> Nonato da Silva.<br />
No ano seguinte, agora no colégio Gonçalves Dias, no 1º ano <strong>do</strong> Curso Técnico <strong>de</strong><br />
Enfermagem, minha mãe começou a namorar Raimun<strong>do</strong> Nonato. Os encontros entre eles<br />
eram possíveis <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao curso <strong>de</strong> arte que era ofereci<strong>do</strong> à noite aos alunos <strong>de</strong> baixa<br />
renda. E em uma noite <strong>de</strong> pura arte, em 1981, provavelmente no mês <strong>de</strong> abril, EU fui<br />
gerada. Após alguns meses, minha mãe aban<strong>do</strong>nou o tão sonha<strong>do</strong> Curso <strong>de</strong> Enfermagem<br />
<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à gravi<strong>de</strong>z.<br />
Geralmente, quan<strong>do</strong> as famílias esperam a chegada <strong>de</strong> um bebê, há muita festa, mas<br />
quan<strong>do</strong> eu nasci, não foi um dia <strong>de</strong> alegria para os familiares, pois, além <strong>de</strong> não ser casada,<br />
minha mãe teve complicações no parto: eclâmpsia.<br />
Deste mo<strong>do</strong>, no dia 25 <strong>de</strong> janeiro, em um final <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> chuvoso, minha mãe dava<br />
entrada na Maternida<strong>de</strong> Benedito Leite, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Luis, e foi levada à sala <strong>de</strong><br />
operações, toda amarrada para não se machucar. Então, o <strong>de</strong>sespero, a aflição e o me<strong>do</strong><br />
apo<strong>de</strong>raram-se da minha avó, pois, neste tipo <strong>de</strong> parto, a chance das duas vidas em jogo se<br />
salvarem era mínima. E aí a tristeza <strong>do</strong>s meus familiares. Mas às 20 horas, EU nasci, com<br />
algumas seqüelas que me acompanhariam para sempre.<br />
* Graduanda em Química na <strong>UFMA</strong>.<br />
História <strong>de</strong> uma vida <strong>de</strong> lutas<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 95
Passa<strong>do</strong>s alguns dias, já estava na casa da minha avó, on<strong>de</strong> mamãe morava, bairro da<br />
Alemanha. Foi uma surpresa enorme para os curiosos <strong>do</strong> bairro que, por muito tempo,<br />
levaram a história <strong>do</strong> meu nascimento às rodinhas <strong>de</strong> conversas <strong>de</strong> rua como um milagre.<br />
Quan<strong>do</strong> completei <strong>de</strong>z meses, tivemos que mudar <strong>de</strong> casa, pois aquela em que morávamos<br />
era alugada, e a <strong>do</strong>na a pediu <strong>de</strong> volta, para alugá-la por um preço melhor. Mudamos para a<br />
casa <strong>de</strong> minha bisavó Maria José, no antigo en<strong>de</strong>reço da minha avó Yolanda, no bairro <strong>do</strong><br />
João Paulo. Nesta, foi cedi<strong>do</strong> um quarto improvisa<strong>do</strong> no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> quintal, no qual moravam<br />
nove pessoas: meu avô José, minha avó Yolanda, tio Irlan, tia Irlanda e meus três primos:<br />
André, Mayra e Andréa, eu e minha mãe.<br />
Moramos treze meses neste quarto. Durante este perío<strong>do</strong>, tive pneumonia <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao<br />
fraco organismo (conseqüência <strong>do</strong> parto). Fui internada no hospital Santa Casa, no centro<br />
da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Luís, no qual fiz uma cirurgia toráxica. Lá, quase passei meu primeiro<br />
aninho <strong>de</strong> vida. Entretanto, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sta vitória, meu pai, que financeiramente ajudava na<br />
minha <strong>de</strong>spesa, <strong>de</strong>sapareceu completamente. Por esta razão, minha mãe her<strong>do</strong>u o ofício <strong>de</strong><br />
sua genitora.<br />
Ano <strong>de</strong> 1985. Vitória <strong>de</strong> um sonho, meus avós José e Euzamar compraram uma casa.<br />
Naquele momento “nossa”, localizada no bairro Mata<strong>do</strong>uro, atualmente Liberda<strong>de</strong>, on<strong>de</strong><br />
moro até hoje. E foi neste ano que iniciei minha vida escolar. Com quatro anos, comecei a<br />
freqüentar a escolinha Jardim <strong>de</strong> Infância Pato Donald, on<strong>de</strong> vivi tempos inesquecíveis<br />
com minhas tias Darlene e Sônia. Neste mesmo perío<strong>do</strong>, mamãe se casou com Welberson<br />
Nascimento. Deste relacionamento nasceram as minhas três irmãs: Soraya, Sâmara e Mayara.<br />
No ano <strong>de</strong> 1989, iniciei o antigo ensino primário na Escola Comunitária Evandro<br />
Ferreira <strong>de</strong> Araújo Costa, no mesmo bairro. Nesta, fiz a 1 a e 2 a séries. Continuei o primário no<br />
Colégio Luis Viana.<br />
Ao terminar o antigo primário, duas tragédias me abalaram, ou seja, <strong>do</strong>is<br />
falecimentos. O primeiro da minha irmã Sâmara, que estava internada no hospital Djalma<br />
Marques- Socorrão I. E, em menos <strong>de</strong> um ano, seria Mayara (a caçula), que faleceu por<br />
negligencia médica. Este é um fato que até hoje ocorre nos hospitais públicos, on<strong>de</strong><br />
muitas vezes, ou quase sempre, nós, seres humanos, principalmente os pobres, somos<br />
trata<strong>do</strong>s piores que animais irracionais: sem valor, sem carinho, simplesmente um nada.<br />
Mesmo ten<strong>do</strong> direitos constitucionais que nos amparam.<br />
Minha mãe sofreu muito com as perdas, e a <strong>do</strong>r <strong>de</strong>la fazia tristeza em meu coração,<br />
pois não podia ajudar a minha guerreira. Mas ainda assim, superamos esta batalha.<br />
Continuei no Colégio Luis Viana, agora na 5 a série, e com mais alguns dilemas cresci.<br />
No ônibus não podia entrar pela porta dianteira, tinha que pagar passagem. Fiquei triste, a<br />
escola era distante, teria que acordar ce<strong>do</strong>, e caminhar um longo percurso, para não chegar<br />
atrasada.<br />
Acor<strong>de</strong>i ce<strong>do</strong>, e no caminho, tive uma idéia. Vou passar por baixo da catraca. E foi<br />
assim até o início da 6ª série. Quan<strong>do</strong>, em um certo dia, ao tentar passar, uma cobra<strong>do</strong>ra<br />
meteu o pé que quase pegou no meu rosto. Passei, mas o ônibus parou e ela gritou em alto<br />
tom: - Desce, você já <strong>de</strong>ve pagar passagem! Desci e esperei o outro ônibus para iniciar a<br />
carreira <strong>de</strong> “bico”; <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong> terminei a 6ª série, com bastante esforço.<br />
Nas séries restantes, minha mãe transferiu-me para o turno vespertino. Continuei como<br />
“biqueira” até quan<strong>do</strong> fui forçada a aposentar-me, pois um motorista já me conhecia, e certa<br />
vez, quan<strong>do</strong> ia dar o bico, ele acelerou... caí e machuquei a testa, os joelhos. Lentamente<br />
96 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
levantei-me, a parada estava lotada. Lembro-me <strong>de</strong> que algumas pessoas olhavam-me com<br />
pena, outras zombavam, e o que mais me entristeceu é que algumas me olhavam como uma<br />
<strong>de</strong>linqüente. Assim, optei por fazer caminhadas até a escola. Com a proteção <strong>de</strong> Deus,<br />
terminei o colegial. Fiz o processo seletivo para estudar no colégio Liceu Maranhense que,<br />
além <strong>de</strong> ser um <strong>do</strong>s melhores colégios públicos, não tinha taxa <strong>de</strong> inscrição. Diferente <strong>do</strong><br />
sonha<strong>do</strong> colégio fe<strong>de</strong>ral, o CEFET, que exigia o pagamento <strong>de</strong> uma taxa a pagar. Por isso<br />
adiei o sonho <strong>de</strong> um curso técnico.<br />
No ano <strong>de</strong> 1996, fui aprovada para estudar no Liceu, e no ano seguinte, tive uma<br />
surpresa: no dia 10 <strong>de</strong> janeiro, quan<strong>do</strong> Raimun<strong>do</strong> Nonato, meu pai, veio passar as férias em<br />
São Luís com sua nova família, trouxe meu irmão que se chama Marcelo para me conhecer.<br />
Depois, retornaram a Paraupebas, no Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Pará, e nunca mais os vi.<br />
Quan<strong>do</strong> começaram as aulas no Liceu, observei que tinha dificulda<strong>de</strong> para copiar as<br />
anotações <strong>do</strong> quadro. Comuniquei isso a minha mãe. Consultei-me com o Dr. Clo<strong>do</strong>mir e<br />
com vários outros médicos no hospital Pan-Diamante que atestaram que eu estava com<br />
atrofia <strong>do</strong> nervo óptico direito. O veredito da família foi a não aceitação. Mas com a graça<br />
<strong>de</strong> Deus, a outra visão suprimiu a falta.<br />
No ano seguinte, tive um gran<strong>de</strong> abalo emocional: a minha avó Yolanda tinha faleci<strong>do</strong>.<br />
Recor<strong>do</strong>-me, era 29 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1998. Vovó chorava muito, parecia que estava se <strong>de</strong>spedin<strong>do</strong>,<br />
não quis comer, e o pior: não quis tomar “Jesus”, seu refrigerante preferi<strong>do</strong>. Só abraçava os<br />
netos e chorava, e às 17 horas e 30 minutos, coinci<strong>de</strong>ntemente, no final <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> chuvosa,<br />
ela faleceu. Neste infortúnio, senti uma solidão enorme, pois era minha avó que escutava<br />
meus lamentos.<br />
Contu<strong>do</strong>, o <strong>do</strong>ce companheirismo das amiza<strong>de</strong>s, <strong>do</strong>s quais <strong>de</strong>staco Joyce, Valdira; a<br />
turma <strong>do</strong>s “sem passagem”: Jenil<strong>de</strong>, Cristiane, Célia e Mara Janaina, que mais tar<strong>de</strong><br />
apresentou-me a Camila. Assim, com muita luta, terminei o Ensino Médio. Lembro que,<br />
apesar <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os perío<strong>do</strong>s difíceis, nunca <strong>de</strong>sisti. Nem mesmo as chuvas, ca<strong>de</strong>rnos molha<strong>do</strong>s<br />
etc. Mas terminei.<br />
No mesmo ano, prestei vestibular para a UEMA para o curso <strong>de</strong> Química e não passei.<br />
Resolvi procurar um emprego, porque meus familiares viviam comentan<strong>do</strong> que eu vivia só<br />
estudan<strong>do</strong> e não arrumava um serviço. Fui à batalha, mas não consegui nada, pois não tinha<br />
uma formação além <strong>do</strong> Ensino Médio.<br />
Consegui, através da minha tia Raimunda, um curso <strong>de</strong> garçonete, com o qual tive a<br />
minha primeira experiência profissional no Hotel Vila Rica. Mas novamente entrava no mun<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s <strong>de</strong>semprega<strong>do</strong>s. Parti mais uma vez para a luta: fui ser ven<strong>de</strong><strong>do</strong>ra <strong>de</strong> planos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong><br />
o<strong>do</strong>ntológicos, ganhan<strong>do</strong> por comissão. Como não tive sucesso com as vendas, retornei aos<br />
estu<strong>do</strong>s. Fiz outro processo seletivo para o Ensino Médio . Passei e iniciei o estu<strong>do</strong> no Complexo<br />
Educacional Governa<strong>do</strong>r Edson Lobão - CEGEL on<strong>de</strong> <strong>de</strong>parei com o novo sistema <strong>de</strong> ensino<br />
implanta<strong>do</strong> pela governa<strong>do</strong>ra Roseana Sarney: o Tele-ensino, que consistia em aula transmitida<br />
pela televisão, com o auxílio <strong>de</strong> um monitor. Este sistema, não teve muito êxito. Muitos<br />
diziam que era por falta <strong>de</strong> informação <strong>do</strong>s monitores; outros, afirmavam que o governo<br />
implantou o sistema para ganhar a eleição. No entanto, mais uma vez Deus foi misericordioso<br />
comigo. O meu monitor era professor <strong>de</strong> Química, que se chamava Juliano. A matéria que<br />
amava. Incentivada pelo professor, tentei o vestibular para o curso <strong>de</strong> Química da <strong>UFMA</strong>. Fui<br />
aprovada na primeira fase, mas não passei na segunda... tive incentivos <strong>do</strong>s amigos e <strong>do</strong>s<br />
professores para continuar. Já na família, só minha mãe me incentivava.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 97
Em 2002, iniciei as aulas no CEGEL, retornan<strong>do</strong> à luta, agora com apoio. Entrei em<br />
um cursinho da Cidadania, ministra<strong>do</strong> por ex-alunos universitários e outros que, mesmo<br />
ainda não estan<strong>do</strong> na universida<strong>de</strong>, tinham o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ajudar outras pessoas como eu a<br />
realizar seus sonhos. Fiz um ano <strong>de</strong> cursinho, mas não prestei vestibular, pois ainda sentiame<br />
<strong>de</strong>spreparada para a guerra.<br />
Tentei, então, o curso técnico no colégio universitário - “COLUN”, no bairro da Vila<br />
Palmeira. Passei para o curso <strong>de</strong> administração. Alegre, mas em alguns instantes angustieime<br />
por não po<strong>de</strong>r cursar. Tinha que pagar uma taxa <strong>de</strong> R$ 50,00 na matrícula (taxa única).<br />
Retornei aos estu<strong>do</strong>s in<strong>do</strong> todas as manhãs para o cursinho <strong>do</strong> CEGEL, on<strong>de</strong> obtive o<br />
dinheiro para a matrícula <strong>do</strong> COLUN, graças ao coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r Renato Melo. Contu<strong>do</strong>, tive<br />
que aban<strong>do</strong>nar o cursinho em função <strong>do</strong> curso <strong>de</strong> administração.<br />
Mesmo afastada <strong>do</strong> cursinho, continuei a estudar para o vestibular com alguns<br />
amigos que continuaram a freqüentá-lo. Nossos estu<strong>do</strong>s eram sempre auxilia<strong>do</strong>s pelo<br />
Edilson, um amigo que cursava Matemática na <strong>UFMA</strong>; estudávamos em uma casa em<br />
construção. Éramos: Aldagisa, Luis Carlos, Thaina, Milca, Luis Fernan<strong>do</strong> e outro a quem<br />
peço <strong>de</strong>sculpas pelo esquecimento. Tentei novamente o vestibular para o curso <strong>de</strong> Química<br />
Licenciatura e Bacharela<strong>do</strong>. Passei na primeira etapa. Mas na segunda etapa, novamente<br />
não passei. Mesmo assim, fiquei alegre porque meu amigo Luis Fernan<strong>do</strong> havia passa<strong>do</strong><br />
para o curso <strong>de</strong> Matemática.<br />
Pela milésima vez, iniciou-se a minha jornada <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>. Agora, um pouco mais<br />
atarefada, tinha começa<strong>do</strong> o meu estágio no Hospital Dutra, <strong>do</strong> curso <strong>de</strong> administração, e à<br />
tar<strong>de</strong> tinha aula no COLUN. Mas encontrei um tempinho para continuar os estu<strong>do</strong>s para o<br />
vestibular; arrumei um novo grupo composto pelos meus amigos da igreja. Alguns <strong>do</strong><br />
grupo <strong>do</strong> qual participava: o grupo <strong>de</strong> oração Divino Espírito Santo, da renovação carismática<br />
católica. Este grupo, tinha um nome popular: F.O. (farofa <strong>de</strong> ovo). Os farofeiros eram: Ingrid,<br />
José William (Zeca), Rita, Jailson, Sharlene, Thaina - mentora <strong>do</strong> nome <strong>do</strong> grupo, e Fernan<strong>do</strong><br />
que ajudava ministran<strong>do</strong> as aulas <strong>de</strong> Matemática.<br />
A felicida<strong>de</strong> reinou neste grupo, pois orávamos e estudávamos. E to<strong>do</strong>s ajudavam-se:<br />
quem sabia português, ministrava essa disciplina e assim sucessivamente. Neste perío<strong>do</strong>,<br />
havia conheci<strong>do</strong> Ja<strong>de</strong>ylson Ferreira, que se tornaria meu namora<strong>do</strong>, e que me incentivou a<br />
continuar os estu<strong>do</strong>s.<br />
Quatro <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2004: fui chamada como exce<strong>de</strong>nte para a <strong>UFMA</strong>.<br />
Iniciei as aulas na <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>. Creio que cheguei à <strong>UFMA</strong><br />
pela misericórdia <strong>de</strong> Deus. Mas apareceram as primeiras provações: falta <strong>de</strong> dinheiro para<br />
transporte, cópias, professores “imcompreensivos”. Então, senti que a universida<strong>de</strong> não era<br />
universal com direitos iguais, e sim, uma balança <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s. A ajuda veio da minha<br />
tia Sônia que custeou as minhas <strong>de</strong>spesas. Ops... não pense que esqueci da ajuda <strong>do</strong> cursinho<br />
da cidadania <strong>do</strong> CEGEL. Por isso, retornei a ele como monitora voluntária <strong>de</strong> Química.<br />
Não <strong>de</strong>morou muito. Lá estava em apuros... havia esqueci<strong>do</strong> <strong>do</strong>is livros <strong>de</strong> Química na<br />
Biblioteca Central da <strong>UFMA</strong>. Desespero e aflição. Como pagar?... Decidi então trancar o<br />
curso, pelo menos um turno. Informei na Coor<strong>de</strong>nação <strong>do</strong> Curso.<br />
Esperei o perío<strong>do</strong> acabar. Já estava tu<strong>do</strong> certo, havia recebi<strong>do</strong> duas propostas <strong>de</strong> emprego<br />
integral: uma no Hospital Dutra, como auxiliar <strong>de</strong> administração e outra na loja Ponte Magazine<br />
como ven<strong>de</strong><strong>do</strong>ra. Então, no penúltimo dia <strong>de</strong> seleção <strong>do</strong> Programa Conexões <strong>de</strong> Saberes, a minha<br />
coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra, professora Gilza, me informou sobre a seleção. E, no último dia, fiz a inscrição.<br />
98 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Hoje, faço parte <strong>do</strong> Programa Conexões <strong>de</strong> Saberes, que me aju<strong>do</strong>u a permanecer no meu<br />
curso.<br />
E não po<strong>de</strong>ria terminar sem agra<strong>de</strong>cer a Deus por sempre proteger-me. À minha mãe<br />
por acreditar na minha capacida<strong>de</strong>. E a to<strong>do</strong>s os amigos e familiares, membros da igreja que<br />
oravam por mim. E assim, continuarei até alcançar to<strong>do</strong>s os meus objetivos.<br />
“Mas, em todas essas coisas somos mais <strong>do</strong> que<br />
vence<strong>do</strong>res por meio daquele que nos ama.”<br />
Romanos 8:37<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 99
100 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular<br />
Diário <strong>de</strong> superação<br />
Paulo Leles Neto *<br />
“Descontente <strong>do</strong>s <strong>do</strong>utores e <strong>do</strong>s livros,<br />
resolvi procurar a verda<strong>de</strong> em mim próprio<br />
e no gran<strong>de</strong> livro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.”<br />
René - DESCARTES<br />
A história da minha vida, daria não simplesmente para escrever uma parte <strong>de</strong>sse livro,<br />
mas to<strong>do</strong> ele. A princípio po<strong>de</strong> parecer exagero, mas assim que terminá-lo, vocês verão que<br />
não menti.<br />
Origem<br />
Nasci num povoa<strong>do</strong> <strong>do</strong> Município <strong>de</strong> Timbiras, no Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>, que tinha<br />
por nome Flores <strong>do</strong>s Leles. E, se você, pensou que esse povoa<strong>do</strong> era <strong>de</strong> minha família,<br />
acertou. No entanto, não pu<strong>de</strong> aproveitar a vida na zona rural, pois, <strong>do</strong>is anos após meu<br />
nascimento, meus pais resolveram se mudar para uma cida<strong>de</strong> próxima chamada Codó, a<br />
vinte cinco quilômetros <strong>de</strong> minha cida<strong>de</strong> natal.<br />
Minha querida mãe, Maria Eunice Mesquita Leal, e meu pai José Raimun<strong>do</strong> Curcino,<br />
ambos naturais <strong>de</strong> Timbiras, tiveram que amargar uma infância sem oportunida<strong>de</strong>s para<br />
estudar, brincar etc. Minha mãe, que ficou órfã <strong>de</strong> mãe aos seis anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, teve que<br />
amadurecer mais ce<strong>do</strong>. Daí em diante ela teve por vários motivos que sofrer a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
não po<strong>de</strong>r estudar, como era seu <strong>de</strong>sejo. Nem mesmo ingressou na primeira série <strong>do</strong> Ensino<br />
Fundamental. Meu pai foi pouquinho menos infeliz, visto que conseguiu ingressar e cursar<br />
até a segunda série <strong>do</strong> Ensino Fundamental.<br />
Enfim, meu pai, bem como minha mãe, tiveram <strong>do</strong>is casamentos. Meu pai teve um filho,<br />
Sebastião, com sua esposa, enquanto minha mãe teve três filhos com seu primeiro mari<strong>do</strong>:<br />
Edílson, Edivan e Emilton. Da união <strong>de</strong>les, resultaram cinco irmãos: José Raimun<strong>do</strong> Filho,<br />
Auricina, Francisco, Eu e Euricilene. Destes filhos, somente eu ainda não constituí família.<br />
Infância e escola primária<br />
Chegan<strong>do</strong> a Codó, no ano <strong>de</strong> 1988, comecei uma história quase inacreditável <strong>de</strong> vida,<br />
<strong>de</strong> menino pobre, negro, sem perspectiva, pois possivelmente seria apenas mais um excluí<strong>do</strong>,<br />
mas que almejava um futuro que para muitos estaria quase que fora <strong>do</strong> alcance. Dentro <strong>de</strong>sse<br />
* Graduan<strong>do</strong> em Matemática na <strong>UFMA</strong>.
momento quero <strong>de</strong>stacar o meu primeiro professor, que tinha por nome Paulo Leles, meu<br />
avô materno. Ele me ensinou a importância <strong>de</strong> buscar no conhecimento científico uma das<br />
oportunida<strong>de</strong>s que a vida oferece, a ascensão social, um <strong>do</strong>s mitos <strong>do</strong> Capitalismo. Saben<strong>do</strong><br />
hoje <strong>de</strong>sse mito, busco fazer com que a ascensão social se torne realida<strong>de</strong>, juntamente com<br />
um conjunto significativo <strong>de</strong> pessoas, que ainda não é o bastante, mas que <strong>de</strong>u início a essa<br />
luta com muita vonta<strong>de</strong> e segurança <strong>de</strong> que vamos conseguir.<br />
Meu avô representa para mim o marco inicial <strong>de</strong> uma trajetória quase perfeita. Quase<br />
perfeita porque, logo no meu primeiro dia <strong>de</strong> aula, tive que amargar a <strong>de</strong>cepção <strong>de</strong> não ter<br />
sequer um lápis para levar para a escola, que se chamava Unida<strong>de</strong> Escolar Irmã Flávia, atual<br />
Unida<strong>de</strong> Escolar João Temístocles, distante uns cento e cinqüenta metros <strong>de</strong> casa.<br />
Por conta da <strong>de</strong>cepção e <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> não enten<strong>de</strong>r a realida<strong>de</strong> que me cercava, chorei<br />
muito. Tanto que minha mãe quis me forçar a ir, também por não enten<strong>de</strong>r naquele momento<br />
o que eu estava sentin<strong>do</strong>, ou por conhecer a realida<strong>de</strong> tão bem que, ao invés <strong>de</strong> me explicar,<br />
resolveu me obrigar.<br />
Neste momento, um colega da mesma escola viu o que se passava e resolveu me<br />
presentear com um lápis. Resolvi não aceitar, pois, por incrível que pareça, naquele<br />
momento, entendi o que se passava e sabia que <strong>de</strong>ixaria minha mãe muito triste se aceitasse.<br />
Desse dia em diante, fazia tu<strong>do</strong> o que uma criança tinha direito, mas passei a cumprir com<br />
meu <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> maneira <strong>do</strong>brada. Sempre estudan<strong>do</strong> muito. Minha 1 a série marcou tanto<br />
que até hoje me lembro <strong>de</strong> quase toda a turma. Ali vivi um ótimo momento da minha<br />
infância. Além disso, concluí essa série em apenas um semestre, resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s ensinamentos<br />
<strong>do</strong> meu avô.<br />
Ao concluir a 4 a série <strong>do</strong> antigo ensino primário, não sabia se sorria ou se chorava,<br />
visto que as amiza<strong>de</strong>s que eram tão importantes, iam não se <strong>de</strong>sfazer, mas enfraquecer.<br />
Enfim, tivemos uma festa organizada pela professora Marlene, <strong>de</strong> Matemática, juntamente<br />
com as <strong>de</strong>mais professoras da escola. Além disso, aos onzes anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, tinha uma nova<br />
preocupação: encontrar vaga em uma das duas melhores escolas <strong>de</strong> minha querida Codó.<br />
Tarefa um pouco difícil. Vou explicar. É que, aos onzes anos, tive que correr atrás <strong>de</strong>sta vaga,<br />
pois minha mãe e meu pai, apesar <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o incentivo que me davam, estavam sempre<br />
procuran<strong>do</strong> trabalho para conseguir nos dar o “pão <strong>de</strong> cada dia”. Meio que com me<strong>do</strong> da<br />
vida, saí e consegui uma vaga para estudar no Centro Educacional Municipal Sena<strong>do</strong>r<br />
Archer, a segunda melhor escola da cida<strong>de</strong>. Após a matrícula, qualquer ser humano po<strong>de</strong>ria<br />
ver no meu rosto a criança mais feliz <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
Meu Ensino Fundamental<br />
Aqui, no primeiro dia <strong>de</strong> aula, tive que encarar um diretor linha-dura, que não permitia<br />
a entrada <strong>de</strong> alunos na escola sem calças compridas, tênis e blusa <strong>de</strong> farda. No entanto, este<br />
diretor, permitiu que eu entrasse <strong>de</strong> bermuda somente no primeiro dia. Depois <strong>de</strong>sse triste<br />
fato, pu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sfrutar da segunda melhor escola <strong>do</strong> meu município. Fiz novas amiza<strong>de</strong>s.<br />
Mais tar<strong>de</strong>, conheci o meu melhor amigo, Raimun<strong>do</strong> Sauda<strong>de</strong>s - rapaz muito<br />
inteligente, <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> aos estu<strong>do</strong>s, alguém que sempre estava buscan<strong>do</strong> apren<strong>de</strong>r e aperfeiçoar<br />
seus conhecimentos. Além <strong>de</strong>le, conheci outros não menos inteligentes, mas que omitirei.<br />
Aqui, apesar <strong>de</strong> todas as dificulda<strong>de</strong>s enfrentadas por mim e minha família, vivi o melhor<br />
perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> toda a minha vida. Aqui também, conheci professores, ou melhor, amigos para a<br />
vida toda.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 101
Meu Ensino Médio<br />
Perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> superação. Aqui senti na pele, ou melhor, no estômago, a sensação <strong>de</strong> ter que ir<br />
ao colégio sem sequer tomar café da manhã. Fato tão critica<strong>do</strong> no seria<strong>do</strong> “Chaves”, exibi<strong>do</strong> no<br />
SBT. Sempre, às nove da manhã, não conseguia estudar, ou melhor, prestar atenção nas aulas por<br />
conta da fome que sentia. Tantas vezes não tomei café que, certo dia, por não agüentar <strong>de</strong> fome,<br />
<strong>de</strong>ixei a escola antes <strong>do</strong> último horário, logo no primeiro ano <strong>do</strong> Ensino Médio.<br />
Aqui também, conheci muita gente. No Centro <strong>de</strong> Ensino Médio Luzenir Matta Roma,<br />
minha escola <strong>de</strong> Ensino Médio, o meu dia começou a ficar mais corri<strong>do</strong>, pois ia para a escola<br />
pela manhã, para a biblioteca pela tar<strong>de</strong>, já visan<strong>do</strong> o vestibular. Foi aí que, por volta <strong>de</strong><br />
julho <strong>de</strong> 2001, mês <strong>do</strong> meu aniversário, o amigo Aslan Natécio, no último dia <strong>de</strong> pedi<strong>do</strong><br />
para isenção para o Programa <strong>de</strong> Seleção Gradual (PSG), da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>Maranhão</strong>, convi<strong>do</strong>u a mim e a alguns amigos para que fizéssemos o pedi<strong>do</strong> <strong>de</strong> isenção para<br />
que pudéssemos participar. Somente eu e três amigos conseguimos a tão sonhada isenção.<br />
Desse fato, já se po<strong>de</strong> perceber que o vestibular é um processo <strong>de</strong> exclusão, e não <strong>de</strong><br />
“seleção”, como querem transparecer as universida<strong>de</strong>s.<br />
Chega<strong>do</strong> o dia da prova (nós, como bons calouros, chegamos consi<strong>de</strong>ravelmente<br />
adianta<strong>do</strong>s), estávamos muito nervosos e ansiosos por começar. Enfim, nossas provas não<br />
foram tão boas, mas para os calouros que éramos, estávamos felizes com o resulta<strong>do</strong>.<br />
Após aprovação no primeiro ano <strong>do</strong> Ensino Médio, ficou no ar a ânsia <strong>de</strong> saber com<br />
quem iríamos estudar no ano seguinte. Contu<strong>do</strong>, para nossa surpresa, nada mu<strong>do</strong>u, continuamos<br />
estudan<strong>do</strong> com os mesmos amigos <strong>do</strong> ano anterior, exceto com os que ficaram reprova<strong>do</strong>s.<br />
Por volta <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2002, pedimos novamente isenção para que assim pudéssemos<br />
fazer a segunda etapa <strong>do</strong> PSG. Ao saber <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong>, a <strong>de</strong>cepção tomou conta <strong>de</strong> nossa face,<br />
pois nenhum <strong>de</strong> nós ficou isento.<br />
Aí surgiu outra questão: E agora, como e o que fazer? Visto que não tínhamos dinheiro<br />
para pagar nossas inscrições. Foi aí que alguns começaram a ficar pelo caminho. Neste momento,<br />
pensei em <strong>de</strong>sistir, pois não encontrava saída, ou melhor, dinheiro para pagar a inscrição, que<br />
até então custava R$ 30,00. Foi aí que falei com mamãe no antepenúltimo dia <strong>de</strong> inscrição,<br />
que me <strong>de</strong>u a brilhante idéia <strong>de</strong> falar com minha irmã, Auricina, e ver se ela po<strong>de</strong>ria me mandar<br />
R$ 30,00 para eu fazer minha inscrição. Por sorte, ela tinha o dinheiro. Expliquei-lhe a<br />
situação e ela se prontificou a me ajudar. Penúltimo dia, lá fui, fazer minha inscrição.<br />
Infelizmente, nenhum <strong>do</strong>s meus amigos conseguiu o dinheiro para fazer a inscrição.<br />
Ao final, acreditei que fiz boa prova.<br />
No terceiro ano, a história com relação ao PSG da segunda etapa se repetiu e eu não<br />
tinha dinheiro para pagar a inscrição. Só que, já preven<strong>do</strong> o acontecimento, pedi o dinheiro<br />
com certo tempo <strong>de</strong> antecipação a minha irmã. Ela tinha aproximadamente R$ 70,00, <strong>do</strong>s<br />
quais me man<strong>do</strong>u sessenta, valor cobra<strong>do</strong> no momento da inscrição para a terceira etapa <strong>do</strong><br />
PSG. Com isso, ficou também inviável fazer o vestibular tradicional paralelo ao processo<br />
cita<strong>do</strong>, pois não tinha dinheiro, nem a quem pedir, para fazer outra inscrição <strong>do</strong> mesmo<br />
valor. Como não tinha outra solução, fiz somente o PSG e aguar<strong>de</strong>i o resulta<strong>do</strong>.<br />
Resulta<strong>do</strong> e ingresso na Faculda<strong>de</strong><br />
Após o resulta<strong>do</strong> no PSG: algo quase inacreditável. Depois <strong>de</strong> quinze dias após a<br />
realização da prova <strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Seleção Gradual, da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>,<br />
procurei o Campus VII, na minha cida<strong>de</strong>, e não obtive o resulta<strong>do</strong> da prova. Como não tinha<br />
102 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
conhecimento <strong>do</strong> que era o vestibular e da importância <strong>de</strong> um curso superior na vida <strong>de</strong> um<br />
ser humano, não procurei mais saber <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong>, até mesmo porque pensei não ter si<strong>do</strong><br />
aprova<strong>do</strong>. No dia 13 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2004, recebi um telegrama da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>Maranhão</strong> convidan<strong>do</strong>-me para sua recepção <strong>de</strong> calouros que aconteceria dia 19 <strong>do</strong> mesmo<br />
mês. Neste momento, surgiu novamente a dúvida se eu tinha si<strong>do</strong> aprova<strong>do</strong> ou não.<br />
Foi aí que resolvi ir até o Campus VII para saber <strong>de</strong> fato o que tinha aconteci<strong>do</strong> para eu<br />
ter recebi<strong>do</strong> aquele convite. O rapaz <strong>do</strong> Campus informou-me que eu tinha si<strong>do</strong> aprova<strong>do</strong> para<br />
cursar Matemática na <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong>. Procurei minha mãe e meus amigos para contar<br />
que eu tinha si<strong>do</strong> aprova<strong>do</strong> na <strong>UFMA</strong>. À noite, dirigi-me até o Centro <strong>de</strong> Capacitação<br />
Tecnológica <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> (CETECMA), <strong>de</strong> Codó, para estudar Química. Falei o que tinha<br />
aconteci<strong>do</strong> para minha professora, hoje minha amiga Ivanize. Em seguida, verificamos qual a<br />
minha classificação no processo seletivo. Fui o décimo quarto coloca<strong>do</strong> no processo. Logo<br />
<strong>de</strong>pois, ela perguntou-me se já havia feito minha matrícula, pois tinha si<strong>do</strong> aprova<strong>do</strong> para o<br />
primeiro semestre <strong>de</strong> 2004. Falei que não. Ela se surpreen<strong>de</strong>u, pois <strong>de</strong>sse mo<strong>do</strong> eu havia<br />
perdi<strong>do</strong> o dia da matrícula. Ali, naquele momento, entendi que tinha vivi<strong>do</strong> um para<strong>do</strong>xo<br />
entre o dia mais feliz e o dia mais triste <strong>de</strong> minha vida. Quase choran<strong>do</strong>, fui para casa contar<br />
para meus pais o aconteci<strong>do</strong>. Eles ficaram muito tristes, pois sabiam <strong>do</strong> meu esforço.<br />
Ivanize me aconselhou a vir até São Luís, à <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>, tentar,<br />
pelo menos, obter novamente a vaga para o segun<strong>do</strong> semestre, visto que eu tinha si<strong>do</strong><br />
aprova<strong>do</strong> para o primeiro semestre. Resolvi seguir seu conselho e saí <strong>de</strong> casa, pela primeira<br />
vez, em busca <strong>do</strong> meu futuro. Cheguei à <strong>UFMA</strong> por volta das <strong>de</strong>z horas da manhã <strong>do</strong> dia 16<br />
<strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2004. Neste dia, estavam matriculan<strong>do</strong> os exce<strong>de</strong>ntes. Dirigi-me até uma das<br />
pessoas encarregadas <strong>de</strong> matricular os calouros e expliquei-lhe o que havia aconteci<strong>do</strong>.<br />
Consegui minha vaga, pois a senhora responsável falou-me que o pessoal exce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />
Matemática não tinha compareci<strong>do</strong> para se matricular.<br />
Feita a matrícula, liguei para uma amiga <strong>de</strong> Ivanize para que ela pu<strong>de</strong>sse me buscar na<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong>. Depois <strong>de</strong> almoçar com ela, tive que procurar as casas <strong>de</strong> estudantes que<br />
existem em São Luís para que futuramente pu<strong>de</strong>sse morar em uma <strong>de</strong>las. Consegui encontrar<br />
a Casa <strong>do</strong> Estudante Universitário <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> (CEUMA), on<strong>de</strong> me hospe<strong>de</strong>i por <strong>do</strong>is dias<br />
antes <strong>de</strong> voltar para minha cida<strong>de</strong>. Quan<strong>do</strong> retornei a São Luís para estudar, já sabia pelo<br />
menos on<strong>de</strong> ficar. Consegui uma bolsa-trabalho fornecida pela <strong>Universida<strong>de</strong></strong> on<strong>de</strong> eu prestava<br />
vinte horas semanais <strong>de</strong> trabalho: atendimento ao público etc. Com isso, pu<strong>de</strong> prosseguir o<br />
curso e hoje estou cursan<strong>do</strong> o sexto perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> Matemática. Vou concluí-lo ano que vem.<br />
Sei que vou ter novo <strong>de</strong>safio pela frente, mas estou conseguin<strong>do</strong> realizar um <strong>do</strong>s meus<br />
maiores sonhos.<br />
Esta é minha impressionante história <strong>de</strong> vida.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 103
104 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular<br />
Até a última gota<br />
Raquel Moreira Meireles Silva *<br />
A história <strong>de</strong> minha vida começa com a história <strong>de</strong> meu pai. Nasci em São Paulo,<br />
cida<strong>de</strong> fria e triste. Conceituo assim a cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> nasci e vivi os meus primeiros <strong>de</strong>zoitos<br />
anos, porque foram muitas as dificulda<strong>de</strong>s pelas quais passamos até chegar ao lugar on<strong>de</strong><br />
estou hoje, a universida<strong>de</strong>. Meu pai <strong>de</strong>ixou, há alguns anos, o <strong>Maranhão</strong> para buscar<br />
melhorias <strong>de</strong> vida na “cida<strong>de</strong> prometida” - São Paulo. Porém, as experiências foram lhe<br />
tolhen<strong>do</strong> os sonhos.<br />
Quan<strong>do</strong> chegou à cida<strong>de</strong>, com <strong>de</strong>zoito anos, logo teve que trabalhar, pois mal tinha<br />
dinheiro para comer e ninguém podia ajudá-lo. Seu pai havia fugi<strong>do</strong>, aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> a família.<br />
Minha avó, costureira, não tinha como enviar dinheiro para ele em São Paulo. Foi meu pai<br />
que sempre trabalhou, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> criança, ven<strong>de</strong>n<strong>do</strong> calções nas ruas <strong>de</strong> São Luís para ajudar na<br />
renda da casa. Agora, sozinho, não contava com ninguém.<br />
Trabalhan<strong>do</strong> <strong>de</strong> vigia em um edifício da gran<strong>de</strong> São Paulo, conheceu minha mãe, mais<br />
velha <strong>do</strong> que ele cerca <strong>de</strong> vinte anos. Após um ano casa<strong>do</strong>s, tiveram meu irmão José Ribamar,<br />
cujo nome é em homenagem ao pai. Dois anos após o seu nascimento, eu nasci.<br />
Morávamos num aperta<strong>do</strong> quarto <strong>de</strong> Santo Amaro, on<strong>de</strong> vivíamos em meio ao<br />
cheiro <strong>de</strong> cebola advin<strong>do</strong> <strong>do</strong>s sacos que levavam para ven<strong>de</strong>r na feira. Sempre vi meu<br />
pai disposto ao trabalho. Mesmo não ten<strong>do</strong> lembranças da minha mãe, a história contada<br />
sobre a sua vida, neste perío<strong>do</strong> em que conheceu e se casou com meu pai, mostra que,<br />
também, era uma mulher esforçada. Além das vendas na feira, trabalhou em casas <strong>de</strong><br />
família como <strong>do</strong>méstica.<br />
Um ano após o meu nascimento, minha mãe, que sofria da <strong>do</strong>ença <strong>de</strong> Chagas e nunca<br />
havia feito um tratamento, teve o seu quadro <strong>do</strong>entio agrava<strong>do</strong>. Por isso ela precisou <strong>de</strong>ixar<br />
a casa, on<strong>de</strong> prestara seus serviços e encontrar alguém que a substituísse.<br />
Em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1982, meu pai e minha mãe vieram a São Luís e aqui conheceram<br />
uma jovem chamada Maria Garcês, que, em parceria com minha avó, ensinava Lições<br />
Bíblicas para crianças das comunida<strong>de</strong>s da periferia <strong>de</strong> São Luís, através da entida<strong>de</strong><br />
evangélica APEC (Aliança pró-evangelização das crianças). Garcês trabalhava <strong>de</strong> <strong>do</strong>méstica<br />
em casas <strong>de</strong> família para se sustentar.<br />
Poucos dias antes da chegada <strong>de</strong> meus pais a São Luís, ela pediu <strong>de</strong>missão da última<br />
casa na qual prestou seus serviços. Saben<strong>do</strong> da procura <strong>de</strong> minha mãe e da situação <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>semprego <strong>de</strong> Garcês, minha avó sugeriu aos meus pais o nome da amiga.<br />
* Graduanda em Pedagogia na <strong>UFMA</strong>.
Encontrada a pessoa que ocuparia o cargo <strong>de</strong> <strong>do</strong>méstica na casa <strong>de</strong> on<strong>de</strong> minha mãe<br />
<strong>de</strong>mitiu-se, em janeiro <strong>de</strong> 1983, estávamos <strong>de</strong> volta a São Paulo. Porém, Garcês não pô<strong>de</strong><br />
assumir o trabalho na casa on<strong>de</strong> os antigos patrões <strong>de</strong> minha mãe a esperavam, pois o esta<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> minha mãe se agravou, impossibilitan<strong>do</strong>-a <strong>de</strong> realizar tarefas, por isso, Garcês<br />
ficou cuidan<strong>do</strong> <strong>de</strong> nós, enquanto meu pai trabalhava: pela manhã na feira e à tar<strong>de</strong> na falida<br />
CMTC (Companhia <strong>de</strong> Transporte Coletivo), on<strong>de</strong> era cobra<strong>do</strong>r.<br />
Meu pai chegava somente <strong>de</strong> madrugada. Mesmo cansa<strong>do</strong>, por várias vezes precisou<br />
carregar minha mãe, com fortes <strong>do</strong>res no corpo, até o hospital. Como se sabe, a realida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s<br />
serviços públicos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> no Brasil nunca foi humano, nunca valorizou o pobre como um<br />
ser digno <strong>de</strong> direitos. Consta até na Constituição que temos o direito à saú<strong>de</strong>, vida, moradia<br />
etc., mas estes direitos nos são nega<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> precisamos ser atendi<strong>do</strong>s por tais serviços<br />
que pagamos por meio <strong>do</strong>s impostos. Com minha mãe não foi diferente, no hospital recebia<br />
apenas um analgésico e era liberada para casa, sem passar por uma avaliação mais cuida<strong>do</strong>sa<br />
<strong>do</strong>s médicos.<br />
A última crise pela qual minha mãe passou, é relatada por Garcês: por um beco entre<br />
casas paupérrimas, meu pai subiu as escadas - se é que se po<strong>de</strong>m chamar aquelas tábuas<br />
sobrepostas <strong>de</strong> maneira <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada <strong>de</strong> escada -, carregan<strong>do</strong> consigo minha mãe que sofria<br />
fortes <strong>do</strong>res.<br />
Internada, minha mãe chamou Garcês e pediu duas coisas: que não <strong>de</strong>ixasse meu pai judiar<br />
<strong>de</strong> meu irmão que era muito travesso e que nos levasse até a janela <strong>do</strong> quarto on<strong>de</strong> estava para,<br />
ao menos, po<strong>de</strong>r se <strong>de</strong>spedir <strong>de</strong> nós, pois crianças não podiam entrar no hospital. Garcês aten<strong>de</strong>u<br />
ao pedi<strong>do</strong>. Da janela <strong>do</strong> quarto minha mãe se <strong>de</strong>spediu <strong>de</strong> nós. Fico hoje imaginan<strong>do</strong> o que<br />
<strong>de</strong>veria ter passa<strong>do</strong> em seu pensamento: saben<strong>do</strong> que a morte estava próxima e não haven<strong>do</strong><br />
mais nada a ser feito, <strong>de</strong>ixava duas crianças no mun<strong>do</strong>. Quantos sonhos ela <strong>de</strong>veria ter ti<strong>do</strong>, para<br />
nós, quantas expectativas… apenas naquele instante, contu<strong>do</strong>, eu não tinha consciência <strong>do</strong> que<br />
estava acontecen<strong>do</strong>, pois era uma criança <strong>de</strong> <strong>do</strong>is anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> e não podia enten<strong>de</strong>r a <strong>do</strong>r <strong>de</strong><br />
uma mãe que se vai, sem po<strong>de</strong>r mais sonhar com o futuro <strong>de</strong> seus filhos.<br />
No dia seguinte, quan<strong>do</strong> meu pai chegou ao hospital, recebeu a notícia. Minha mãe<br />
havia faleci<strong>do</strong>. Era 31 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1983, quatro dias após o aniversário <strong>de</strong> meu irmão. Não<br />
me lembro <strong>do</strong> fato, mas choro a perda <strong>de</strong> quem eu nunca pu<strong>de</strong> conhecer para amar.<br />
Passa<strong>do</strong>s onze meses da morte <strong>de</strong> minha mãe, Garcês e meu pai se casaram. Não<br />
acredito ter si<strong>do</strong> um casamento movi<strong>do</strong> pelo amor, mas pela situação em que ambos se<br />
encontravam. Meu pai, sozinho, a cuidar <strong>de</strong> duas crianças ainda pequenas, e Garcês também,<br />
sozinha, sem parentes para lhe dar ajuda. Ou talvez ela tivesse aceita<strong>do</strong> o compromisso <strong>de</strong><br />
se casar porque se comoveu com o apelo <strong>de</strong> minha mãe momentos antes <strong>de</strong> morrer.<br />
Enquanto meu pai e Garcês organizavam suas vidas, eu e meu irmão passamos uns<br />
meses na casa <strong>de</strong> minha avó em São Luís. Em julho <strong>de</strong> 1984, voltamos para São Paulo.<br />
Mudamos <strong>de</strong> Santo Amaro para Barueri, cida<strong>de</strong> da Zona Norte.<br />
Em Barueri, minhas primeiras lembranças são da Pré-Escola on<strong>de</strong> comecei aos quatro<br />
anos. Era quase uma hora <strong>de</strong> caminhada até a escola. Quan<strong>do</strong> tinha bicicleta, meu pai me<br />
levava. Lembro que sempre tive me<strong>do</strong> <strong>de</strong> mudanças. Sentia-me insegura, e quan<strong>do</strong> chegava<br />
à escola, não queria entrar na sala <strong>de</strong> aula, principalmente, se a aula já houvesse começa<strong>do</strong>.<br />
O uniforme da escola obtive no último perío<strong>do</strong>, o jardim três, pois, como nossa renda era<br />
mínima, eu era a única criança que não tinha o uniforme da turma. Nas fotos <strong>de</strong>ssa época, eu<br />
apareço sempre <strong>de</strong> azul em meio às outras crianças <strong>de</strong> vermelho.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 105
Com sete anos comecei a estudar numa escola perto <strong>de</strong> casa on<strong>de</strong> meu irmão já fazia a<br />
3 a série. Nossa vida em Barueri era muito pacata. Como não tínhamos parentes perto, nem<br />
amigos, vivia para os estu<strong>do</strong>s e para a igreja que freqüentávamos aos <strong>do</strong>mingos. Por volta<br />
<strong>do</strong>s <strong>de</strong>z anos, comecei a freqüentar a única biblioteca da cida<strong>de</strong>. Andava uma hora para<br />
buscar livros da Série “Vaga-lume”. As leituras me fascinavam, me levavam a lugares nunca<br />
antes visita<strong>do</strong>s. De todas as obras que li, não me lembro bem <strong>de</strong> seus enre<strong>do</strong>s, mas uma<br />
marcou a minha vida: Vidas Secas, <strong>de</strong> Graciliano Ramos. Este autor me fez ver as injustiças<br />
sociais e o porquê <strong>de</strong> talvez a vida <strong>do</strong> pobre ser tão seca, às vezes até <strong>de</strong> sentimentos, pois<br />
é difícil sorrir quan<strong>do</strong> a barriga clama por um pedaço <strong>de</strong> pão. Quan<strong>do</strong> olhava meu pai<br />
lutan<strong>do</strong> tanto para ter uma vida melhor e nunca <strong>de</strong>sistir da educação <strong>de</strong> seus filhos,<br />
relacionava a história a nossa vida.<br />
Na escola não podíamos faltar. Nossa segunda mãe nos acompanhava nos estu<strong>do</strong>s, ia<br />
às reuniões, assinava os boletins, e se alguma coisa não ia bem, ela dizia para meu pai que<br />
logo tomava as providências <strong>de</strong> nos aconselhar a buscar sempre o melhor.<br />
Recor<strong>do</strong>-me <strong>de</strong> quan<strong>do</strong> meu pai saiu, após <strong>do</strong>ze anos <strong>de</strong> prestação <strong>de</strong> serviço, da<br />
CMTC. Com o dinheiro que recebeu, tentou montar uma oficina <strong>de</strong> móveis que não<br />
prosperou. Per<strong>de</strong>u to<strong>do</strong> o dinheiro. Uma Variant velha que havia compra<strong>do</strong> pegou fogo.<br />
Tu<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong>. Diante <strong>de</strong>sta nova situação, passamos por dificulda<strong>de</strong>s financeiras. Era o<br />
início <strong>do</strong> ano, não tínhamos condições <strong>de</strong> comprar material escolar. Lembro que fiz um<br />
bilhete pedin<strong>do</strong> a meu pai que comprasse um ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> <strong>de</strong>z matérias para eu levar no<br />
primeiro dia <strong>de</strong> aula. Ele não respon<strong>de</strong>u ao meu pedi<strong>do</strong>, pois não queria dar explicações<br />
sobre a situação <strong>de</strong> crise pela qual passávamos. Minha madrasta foi quem conversou conosco<br />
e aconselhou que não pedíssemos nada a meu pai naquele momento, pois ele não teria<br />
condições <strong>de</strong> nos aten<strong>de</strong>r. Então, fui à oficina on<strong>de</strong> restavam somente as máquinas sem<br />
utilida<strong>de</strong>, naquele perío<strong>do</strong>, e algumas coisas velhas. Busquei, entre os ca<strong>de</strong>rnos velhos,<br />
algumas folhas que sobraram <strong>do</strong> ano anterior. Colei as folhas e fui para a escola, não <strong>de</strong>ixaria<br />
<strong>de</strong> estudar nunca. Lembro-me bem da chinela, que em São Paulo é conhecida por Havaiana,<br />
metonímia da marca. Este foi o meu calça<strong>do</strong>; as folhas coladas, o meu ca<strong>de</strong>rno.<br />
Porém, aqui, louvo a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> um professor <strong>de</strong> Geografia que não ficava culpan<strong>do</strong> o<br />
governo ou qualquer outra instância para mostrar que possuía alguma consciência crítica<br />
sobre a situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> neste país. Era a segunda semana <strong>de</strong> aula, quan<strong>do</strong> ele<br />
pediu aos alunos os exercícios <strong>do</strong>s livros para corrigi-los. Convém ressaltar que estes livros<br />
eram empresta<strong>do</strong>s da Secretaria <strong>de</strong> Educação aos alunos. Entreguei os exercícios respondi<strong>do</strong>s<br />
nas folhas coladas. Ele não teve a atitu<strong>de</strong> paternalista <strong>de</strong> perguntar se passava por alguma<br />
necessida<strong>de</strong> financeira, até porque, era visível a situação. Não precisava <strong>de</strong> nenhuma palavra<br />
“política” vazia <strong>de</strong> significa<strong>do</strong> para minha vida, e sim, <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>rnos, e foi isso que ele<br />
proveu. Com muita discrição, foi à secretaria da escola, pegou três ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> brochura,<br />
e na hora em que to<strong>do</strong>s os alunos já haviam saí<strong>do</strong> para o intervalo, ele entregou-os a mim.<br />
Fiquei muito feliz por receber aqueles bens tão preciosos, ca<strong>de</strong>rnos, on<strong>de</strong> eu escreveria<br />
minhas tarefas e apren<strong>de</strong>ria lições que foram além das letras que estavam na atitu<strong>de</strong><br />
humana daquele professor.<br />
Passa<strong>do</strong> um ano após a saída da CMTC, meu pai conseguiu emprego na loja “Móveis<br />
Taurus”, hoje falida. A situação financeira foi melhoran<strong>do</strong>. Já estávamos na meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> ano<br />
letivo, mesmo assim, ele comprou ca<strong>de</strong>rnos para mim e meu irmão. Nesse trabalho, meu pai<br />
andava a pé mais <strong>de</strong> três horas para chegar às casas on<strong>de</strong> <strong>de</strong>veria montar os móveis, pois,<br />
106 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
eceben<strong>do</strong> por comissão, o dinheiro ainda não era o suficiente para aten<strong>de</strong>r todas as nossas<br />
necessida<strong>de</strong>s. Meu irmão mais velho, quan<strong>do</strong> entrou para o antigo primeiro ano <strong>do</strong> segun<strong>do</strong><br />
grau, passou a estudar à noite, e assim, durante o dia, ajudava meu pai nas montagens.<br />
Juntos, conseguiram fazer um número consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> montagens e pu<strong>de</strong>ram comprar alguns<br />
bens para nossa família, como as bicicletas que serviram <strong>de</strong> meio <strong>de</strong> transporte no trabalho.<br />
Após três anos casa<strong>do</strong>s, Garcês e meu pai tiveram Samuel. Em 1990, nasceu Tiago. Este<br />
último filho <strong>do</strong> casal começou a manifestar no perío<strong>do</strong> em que passávamos pela crise financeira<br />
uma alergia que provocava graves irritações na pele. Através <strong>de</strong> exames, foi diagnosticada<br />
intolerância à lactose. O dinheiro ainda era pouco, mas economizan<strong>do</strong> com algumas coisas<br />
não tão necessárias, os remédios foram compra<strong>do</strong>s e meu irmão fez o tratamento.<br />
Nossa vida financeira era instável, houve perío<strong>do</strong>s em que tivemos o razoável para<br />
sobreviver, e perío<strong>do</strong>s <strong>de</strong> crise em que comemos apenas arroz com manteiga.<br />
Quan<strong>do</strong> estava no terceiro ano <strong>do</strong> Ensino Médio, passamos novamente por uma crise<br />
financeira. Por isso, termina<strong>do</strong> o último ano <strong>do</strong> nível médio, resolvi aceitar o convite <strong>de</strong><br />
minha tia para tentar a faculda<strong>de</strong> em São Luís, pois aqui, seria mais fácil fazer um curso<br />
superior, ten<strong>do</strong> em vista o custo <strong>de</strong> vida mais baixo em relação a São Paulo. No dia 22 <strong>de</strong><br />
janeiro <strong>de</strong> 2000, vim para a capital <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>.<br />
Enquanto tentava o vestibular em São Luís, a loja <strong>de</strong> móveis, on<strong>de</strong> meu pai trabalhava,<br />
faliu e já não era possível contar com a ajuda <strong>do</strong> meu irmão mais velho que estava no<br />
quartel. Consciente das dificulda<strong>de</strong>s financeiras pelas quais minha família passava, comecei<br />
a trabalhar em uma escola. Ganhava mal, cem reais por mês, mas era a forma <strong>de</strong> me manter<br />
sem recorrer a meu pai. Assim, com o dinheiro que recebia, investia nos estu<strong>do</strong>s. Não ten<strong>do</strong><br />
certeza qual curso faria, tentei vários cursos nas duas <strong>Universida<strong>de</strong></strong>s públicas <strong>de</strong> São Luís.<br />
Os três primeiros vestibulares que tentei para a <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong>, foram para o curso <strong>de</strong><br />
Educação Artística, não obten<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong>, resulta<strong>do</strong> positivo. Na <strong>Universida<strong>de</strong></strong> Estadual<br />
tentei para os cursos <strong>de</strong> História; Arquitetura e Urbanismo, e por fim, Administração. Também<br />
não consegui aprovação em nenhum <strong>de</strong>stes vestibulares.<br />
Foram quatro anos fazen<strong>do</strong> vestibular e me angustian<strong>do</strong> cada vez mais, pois as<br />
condições objetivas me mostravam que nunca po<strong>de</strong>ria alcançar um nível superior. O<br />
único <strong>de</strong>sejo que tinha na vida, como até hoje tenho, era continuar meus estu<strong>do</strong>s. Eu dizia<br />
que queria ser <strong>do</strong>utora, ser gente importante, ocupar um lugar que por direito eu tinha a<br />
consciência <strong>de</strong> que era meu. “A universida<strong>de</strong> não é pública?” Eu pensava, porém: “Como<br />
po<strong>de</strong>ria competir com os alunos das escolas particulares que se prepararam para estar no<br />
nível superior?” Diante das dificulda<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>sejei voltar para São Paulo, mas me<br />
perguntava: “Fazer o quê?” A única razão que eu encontrava para a vida estava em<br />
prosseguir nos estu<strong>do</strong>s. Então, soube <strong>do</strong> vestibular da cidadania promovi<strong>do</strong> pela<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> Estadual <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>. Fiz a prova e passei em quadragésima colocação<br />
para a turma que funcionaria na própria <strong>Universida<strong>de</strong></strong>. Meu pai ficou feliz com esta<br />
aprovação. Eu confesso que também fiquei, porém não satisfeita, pois queria fazer um<br />
curso superior e não somente um cursinho. O cursinho na realida<strong>de</strong> foi váli<strong>do</strong> pela ajuda<br />
da bolsa <strong>de</strong> cinqüenta reais e pelo material que recebia.<br />
No perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> vestibular, realizei as provas da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> e da <strong>Universida<strong>de</strong></strong><br />
Estadual. Consi<strong>de</strong>rei a prova <strong>do</strong> vestibular da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> a mais difícil <strong>de</strong>ntre<br />
aquelas realizadas nos quatro anos em que tentei vestibular. As questões <strong>de</strong> História, as<br />
específicas <strong>do</strong> meu curso, estavam muito complexas. Desestimulei-me, já vinha pensan<strong>do</strong><br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 107
que não passaria mais uma vez, me sentia uma <strong>de</strong>sgraçada no mun<strong>do</strong>. Indagava-me o que<br />
queria da vida. Sentia-me fracassada, pois, naquele momento, mesmo ten<strong>do</strong> a certeza <strong>do</strong><br />
curso que escolhera, Pedagogia, não conseguia ter um bom resulta<strong>do</strong>.<br />
No dia seguinte, continuei in<strong>do</strong> ao cursinho <strong>do</strong> Vestibular da Cidadania, pois ainda<br />
faltava basicamente um mês para as provas da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> Estadual.<br />
Quan<strong>do</strong> saiu o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s aprova<strong>do</strong>s nas provas da primeira etapa da <strong>Universida<strong>de</strong></strong><br />
<strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong>, consegui aprovação em quinqüagésima segunda colocação. Nesse perío<strong>do</strong>, já estava<br />
moran<strong>do</strong> com minha madrasta e meus <strong>do</strong>is irmãos mais novos na casa que tinha si<strong>do</strong> da<br />
minha falecida avó. Porém, não quis contar-lhes <strong>de</strong> imediato a notícia. Minha tia foi quem<br />
viu o meu nome em um jornal e me ligou parabenizan<strong>do</strong>-me.<br />
Ainda não estava satisfeita. Fui, receosa, para a segunda etapa. A prova pareceu bem<br />
mais simples que a primeira. O tema da redação estava relaciona<strong>do</strong> com a temática da<br />
novela que estava sen<strong>do</strong> transmitida na televisão naquele perío<strong>do</strong>, “Celebrida<strong>de</strong>”. Enquanto<br />
esperava o resulta<strong>do</strong> final <strong>do</strong> vestibular da segunda etapa, fiz as provas da <strong>Universida<strong>de</strong></strong><br />
Estadual com esperanças <strong>de</strong> passar pelo menos nesta.<br />
Neste perío<strong>do</strong> em que me preparava para as provas <strong>do</strong>s vestibulares <strong>do</strong> ano <strong>de</strong> 2004, a<br />
escola, on<strong>de</strong> lecionava, faliu. O prédio on<strong>de</strong> funcionava a escola era pequeno, e como os<br />
proprietários eram meus parentes, me dispuseram uma sala para ensinar reforço escolar,<br />
enquanto não vendiam o prédio. Foi numa manhã, nesta escola, que escutei os fogos <strong>de</strong><br />
artifício. Era o resulta<strong>do</strong> final <strong>do</strong> vestibular da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> que estava sen<strong>do</strong><br />
divulga<strong>do</strong>. Corri para a Cida<strong>de</strong> Operária, bairro que distava meia hora <strong>de</strong> caminhada da<br />
escola on<strong>de</strong> estava. Pedi para minha tia me <strong>de</strong>ixar ouvir o resulta<strong>do</strong> na rádio. Mas os<br />
aprova<strong>do</strong>s para o Curso <strong>de</strong> Pedagogia já tinham si<strong>do</strong> anuncia<strong>do</strong>s. Almocei com minha tia e<br />
voltei para a escola à tar<strong>de</strong>.<br />
No dia seguinte, saí às seis horas, como <strong>de</strong> costume. Fui lecionar as aulas <strong>de</strong> reforço<br />
escolar. Depois <strong>de</strong> uma hora e meia <strong>de</strong> caminhada, chegan<strong>do</strong> próximo ao prédio, vi uma<br />
senhora, no seu comércio, len<strong>do</strong> o jornal <strong>do</strong> dia. Pedi-lhe o jornal. Novamente a cena <strong>de</strong><br />
quatro anos se repetia: procurar meu nome entre trinta e seis pessoas. Encontrei o meu:<br />
trigésima segunda colocação. As lembranças <strong>de</strong> uma vida vêm à tona: as caminhadas; o<br />
esforço <strong>do</strong> meu pai para nos ver progredin<strong>do</strong> na vida e buscan<strong>do</strong> um futuro melhor; as<br />
economias que fiz naquele ano para pagar a taxa <strong>do</strong> vestibular, pois não queria mais<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r da ajuda financeira <strong>de</strong> minha tia; a distância <strong>do</strong> meu pai que estava em São<br />
Paulo, trabalhan<strong>do</strong> <strong>de</strong> monta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> móveis em outra loja para sustentar sua família em<br />
São Luís e também conseguir o dinheiro para comprar sua passagem <strong>de</strong> volta à terra<br />
<strong>de</strong>ixada há vinte e cinco anos. Enfim, o percurso que fiz para conquistar uma vaga na<br />
universida<strong>de</strong> pública, assim como as pessoas que fizeram parte <strong>de</strong>sta caminhada, me<br />
vieram à memória.<br />
À noite, quan<strong>do</strong> cheguei a minha casa, liguei para meu pai em São Paulo que, ao<br />
receber a notícia, me disse palavras encoraja<strong>do</strong>ras. Nunca me esquecerei. Meu pai sempre<br />
apoiou as minhas escolhas. Ele po<strong>de</strong> até não concordar com algumas <strong>de</strong>cisões que<br />
tomo, mas ele não me <strong>de</strong>sencoraja na conquista <strong>do</strong>s meus sonhos; ele prefere permanecer<br />
neutro e <strong>de</strong>ixar que eu trace o meu <strong>de</strong>stino. Hoje, ele confessa que tinha dúvidas quanto<br />
a minha permanência na <strong>Universida<strong>de</strong></strong>, visto que, no perío<strong>do</strong>, estávamos viven<strong>do</strong> com<br />
basicamente cem reais por mês, com ajudas <strong>de</strong> parentes e eu me sustentan<strong>do</strong> com as<br />
aulas <strong>do</strong> reforço escolar.<br />
108 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Minhas tias também são pessoas significativas. Por isso, não posso <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> fazerlhes<br />
referência neste memorial, pois, cada uma <strong>de</strong>las, sempre que pu<strong>de</strong>ram, me ajudaram,<br />
ora me incentivan<strong>do</strong> a continuar a estudar, ora brigan<strong>do</strong> comigo a fim <strong>de</strong> que <strong>de</strong>spertasse<br />
para a busca <strong>do</strong>s meus sonhos, ou mesmo nos momentos em que a minha tia da Cida<strong>de</strong><br />
Operária abria as portas <strong>de</strong> sua casa para me <strong>de</strong>ixar <strong>do</strong>rmir quan<strong>do</strong> percebia que algo não ia<br />
bem comigo. Elas são pessoas que estarão para sempre em minhas memórias. Nunca as<br />
esquecerei, pois fazem parte <strong>de</strong>sta minha caminhada.<br />
A <strong>Universida<strong>de</strong></strong> foi um sonho conquista<strong>do</strong>. No começo, novos <strong>de</strong>safios. Faltava o<br />
dinheiro para as cópias <strong>do</strong>s textos. Professores politiza<strong>do</strong>s no discurso, mas na prática<br />
pouco se importavam se o aluno tinha ou não condições <strong>de</strong> fazer um trabalho digita<strong>do</strong>. Dou<br />
graças a Deus, porque, no Curso <strong>de</strong> Pedagogia, há pessoas humanas na minha turma. Elas<br />
me ajudaram muito. Simone tirou cópia <strong>de</strong> um texto logo no início. Como não tinha dinheiro,<br />
pedi empresta<strong>do</strong> o texto <strong>de</strong> uma amiga e fichei-o. No dia da apresentação, apresentei o<br />
trabalho com as anotações feitas no ca<strong>de</strong>rno. Simone soube, por uma das integrantes <strong>do</strong><br />
meu grupo, como havia estuda<strong>do</strong> para aquela apresentação. Então, no dia seguinte, sem<br />
dizer nada ou fazer aquelas perguntas imbecis cheias <strong>de</strong> vãs pieda<strong>de</strong>s, me entregou o texto.<br />
Outras estudantes da turma também foram muito generosas comigo: Ester, que várias vezes<br />
me convi<strong>do</strong>u para digitar meus trabalhos na casa <strong>de</strong> sua irmã; Francilene tem si<strong>do</strong> uma<br />
companheira nos estu<strong>do</strong>s. Fazemos trabalhos, construímos artigos para que sejam<br />
apresenta<strong>do</strong>s em encontros e seminários vincula<strong>do</strong>s à área da Educação. No ano <strong>de</strong> 2005,<br />
em que a universida<strong>de</strong> ficou paralisada <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à greve <strong>do</strong>s professores, realizamos uma<br />
pesquisa numa escola pública <strong>do</strong> bairro da Santa Clara; foi enriquece<strong>do</strong>r, pois, estivemos<br />
<strong>do</strong>is meses perto das crianças com diversos problemas sociais. Queríamos falar <strong>de</strong><br />
alfabetização, mas percebemos que este processo vai muito além <strong>de</strong> ensinar as crianças a ler<br />
e a escrever. Desta experiência, apren<strong>de</strong>mos muito sobre os valores humanos e como a<br />
socieda<strong>de</strong> tem visto o processo <strong>de</strong> alfabetização.<br />
Por fim, falo <strong>de</strong> Keila que, ten<strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r conecta<strong>do</strong> à internet em casa, sempre nos<br />
avisava <strong>de</strong> algum evento ou oportunida<strong>de</strong> para estágio. Ela primeiro me convi<strong>do</strong>u para<br />
participarmos <strong>de</strong> uma oficina <strong>de</strong> leitura na Vila Embratel. Foi uma excelente experiência. E<br />
<strong>de</strong>pois, foi ela quem me avisou <strong>do</strong> Programa Conexões <strong>de</strong> Saberes. Sou grata a Deus por me<br />
conce<strong>de</strong>r amigas tão humanas que sabem valorizar, respeitar e construir amiza<strong>de</strong>s que vão<br />
além <strong>de</strong> simplesmente estarmos juntas.<br />
Hoje, faço parte <strong>de</strong>sse Programa, tenho aprendi<strong>do</strong> a conviver com outras pessoas <strong>de</strong><br />
cursos diferentes, e é válida a experiência.<br />
Sei que as dificulda<strong>de</strong>s sempre existirão, porém é gratificante quan<strong>do</strong> elas são<br />
superadas. Como eu sempre falo com minha amiga Francilene: “Vamos até a última gota e<br />
ela sempre será infinita, pois é insaciável”. Estar ao nível da Graduação não me satisfaz,<br />
quero mais. Sonho com o título <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong>, não que eu queira somente prestígio social,<br />
mas que, através <strong>do</strong>s títulos, possa estar contribuin<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma significativa com a esfera<br />
pública, parafrasean<strong>do</strong> Henry Giroux. Não escolhi Pedagogia em vão. A cada perío<strong>do</strong> em<br />
que vou estudan<strong>do</strong> as bases teóricas que fundamentam o curso <strong>de</strong> Pedagogia, ao mesmo<br />
tempo em que vou às escolas fazer pesquisas, confirmo a minha escolha <strong>de</strong> atuar<br />
profissionalmente na área da Educação.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 109
110 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular<br />
Eu pela vida<br />
Ricar<strong>do</strong> Waldrean Melo da Silva *<br />
1 Introdução<br />
Sou Ricar<strong>do</strong> Waldrean Melo da Silva e me apresento como integrante <strong>de</strong> um pequenogran<strong>de</strong><br />
núcleo familiar composto por seis membros da família, um mascote e várias outras<br />
pessoas unidas por laços afetivos <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>.<br />
Para mim, a história humana resulta <strong>do</strong> somatório <strong>de</strong> contribuições individuais das<br />
trajetórias <strong>de</strong> vida que, por sua vez, são influenciadas pela socieda<strong>de</strong> e o meio circundante,<br />
numa troca e entrelaçamento simultâneos que nos conduzem ao envolvimento com histórias<br />
<strong>de</strong> outros, sen<strong>do</strong> assim, os “carpinteiros <strong>do</strong> universo”.<br />
Com base neste princípio, busquei oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> contribuir para a obra<br />
universal, superan<strong>do</strong> as minhas dificulda<strong>de</strong>s e ajudan<strong>do</strong> as pessoas à minha volta a<br />
melhorar suas vidas.<br />
Ao longo <strong>de</strong>ste texto, contarei algumas das limitações que a vida parecia tentar me<br />
impor e como consegui vencê-las, ou ainda estou em fase <strong>de</strong> superação.<br />
2 De on<strong>de</strong> vim<br />
Nasci no final da década <strong>de</strong> 1970, na periferia da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Belém-PA e tive uma<br />
infância bastante pobre, porém, FELIZ e muito rica em experiências diversas que me <strong>de</strong>ixaram<br />
mais prepara<strong>do</strong> para “enfrentar” a vida, e acredito que me tornaram uma pessoa bem melhor<br />
<strong>do</strong> que se não as tivesse vivencia<strong>do</strong>.<br />
Sou o primeiro filho <strong>de</strong> um casal que se uniu basea<strong>do</strong> unicamente na vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
ficarem juntos e serem felizes, quero dizer ainda sem nenhuma estrutura financeira que os<br />
mantivesse. Isso fez com que passássemos - nasci pouco mais <strong>de</strong> um ano após terem se<br />
casa<strong>do</strong> e meus irmãos nos <strong>do</strong>is anos seguintes – por sérias necessida<strong>de</strong>s.<br />
Para quem conhece as áreas periféricas <strong>de</strong> Belém, passei toda a minha infância viven<strong>do</strong><br />
em casinhas <strong>de</strong> tábuas que são construídas suspensas por estacas – algo equivalente às<br />
palafitas ribeirinhas tão comuns em áreas <strong>de</strong> invasão com pouca assistência governamental,<br />
lembran<strong>do</strong> que, vivíamos <strong>de</strong> favor com parentes; to<strong>do</strong>s passavam por muitas dificulda<strong>de</strong>s e<br />
ninguém dispunha <strong>de</strong> emprego fixo – a renda que sustentava a família vinha <strong>de</strong> “bicos”,<br />
nunca sabíamos com quanto dinheiro po<strong>de</strong>ríamos contar para passar o mês. Essa situação,<br />
perdurou por praticamente toda a minha infância.<br />
* Graduan<strong>do</strong> em Física na <strong>UFMA</strong>.
A Taberninha (mercearia) representou para nós o momento <strong>de</strong> transição para uma<br />
situação financeira um pouco melhor. Após um longo perío<strong>do</strong> moran<strong>do</strong> <strong>de</strong> favor na casa <strong>de</strong><br />
minha tia, meu pai conseguiu uns poucos recursos com os quais teve a idéia <strong>de</strong> alugar uma<br />
casinha <strong>de</strong> apenas um compartimento, e comprou um quilo ou litro <strong>de</strong> cada produto da cesta<br />
básica e montou um pequeno comércio.<br />
Nesta fase, construímos nossa primeira casa própria. Mas em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> reparos nas<br />
ruas <strong>do</strong> bairro, nossa rua ficou intrafegável e a taberna teve que ser fechada por falta <strong>de</strong> freguesia.<br />
E voltamos à situação anterior, com a diferença <strong>de</strong> que agora tínhamos a nossa própria casa.<br />
3 Por on<strong>de</strong> passei<br />
Até os onze anos, vivi (nas condições já citadas) em Belém-PA, quan<strong>do</strong> meu pai<br />
recebeu o convite <strong>de</strong> familiares <strong>de</strong> minha mãe que moravam no Amazonas para mudar-se<br />
para lá com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a trabalhar na área <strong>de</strong> telecomunicações e arrumar<br />
um trabalho nessa área - na época, em franca expansão na região Norte.<br />
Atraí<strong>do</strong>s pela vonta<strong>de</strong> que meu pai tinha <strong>de</strong> “apren<strong>de</strong>r” uma profissão e melhorar as<br />
condições <strong>de</strong> vida da família, <strong>de</strong>cidimos que mudaríamos para Manaus-AM.<br />
Realizamos a mudança com nossos poucos bens materiais e lá estávamos mais uma<br />
vez a morar <strong>de</strong> favor na casa <strong>de</strong> parentes.<br />
Lembro que meu pai se esforçava muito para apren<strong>de</strong>r os procedimentos <strong>de</strong> instalação<br />
<strong>do</strong>s cabos da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> telecomunicações (embora tenha começa<strong>do</strong> abrin<strong>do</strong> valas e carregan<strong>do</strong><br />
escadas). Ele havia gosta<strong>do</strong> da área e tinha um trabalho fixo, embora com um salário que<br />
não fizera diminuir as nossas dificulda<strong>de</strong>s, mas tínhamos esperança <strong>de</strong> que, quan<strong>do</strong> meu pai<br />
apren<strong>de</strong>sse, passaria a ter um cargo com salário melhor.<br />
Acabou não sen<strong>do</strong> possível continuarmos na cida<strong>de</strong>, pois ficamos sem condições <strong>de</strong><br />
nos sustentar naquele Esta<strong>do</strong>, e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um ano sofren<strong>do</strong> necessida<strong>de</strong>s, retornamos a<br />
Belém-PA, com a diferença que, <strong>de</strong>sta vez, meu pai tinha uma profissão que possibilitou a<br />
nossa vinda para São Luís-MA, em melhores condições, comparativamente àquela época.<br />
Meu pai tinha uma profissão numa área que oferecia empregos em Belém. Ele conseguiu<br />
um trabalho e recebeu uma proposta para vir trabalhar aqui, em São Luís <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong>, pois<br />
a empresa fechou contrato para realizar instalações telefônicas no Esta<strong>do</strong>.<br />
4 Na vida da escola e na escola da vida<br />
Como era <strong>de</strong> se prever, sempre estu<strong>de</strong>i em escola pública. Com isso, <strong>de</strong>scobri bem<br />
rápi<strong>do</strong> que teria que apren<strong>de</strong>r a tirar o que havia <strong>de</strong> melhor <strong>de</strong>la e a suprir as muitas<br />
<strong>de</strong>ficiências por ela <strong>de</strong>ixadas.<br />
Na escola<br />
Minha carreira estudantil começa no ano <strong>de</strong> 1984, quan<strong>do</strong> tinha cinco anos. Foi<br />
quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>scobri que a vida era bem maior <strong>do</strong> que meu próprio mun<strong>do</strong>. Tenho inúmeras<br />
boas e más recordações <strong>de</strong>ssa época.<br />
A escola em que comecei a estudar se chamava “Chapeuzinho Vermelho”. Lá, comecei<br />
a conhecer as letras e as pessoas.<br />
No primeiro ano em que estu<strong>de</strong>i, foi maravilhosa a sensação <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> ao cobrir<br />
a letra “a”. Fiquei encanta<strong>do</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r fazê-la <strong>de</strong> vários tipos e tamanhos; o difícil foi não ter<br />
a mesma facilida<strong>de</strong> com a letra “b”, processo torna<strong>do</strong> muito <strong>do</strong>loroso pela professora que,<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 111
no auge <strong>de</strong> sua competência profissional, dizia que eu <strong>de</strong>veria ver melhor a letrinha para<br />
po<strong>de</strong>r seguir as linhas pontilhadas. Para isso me enchia <strong>de</strong> “cascu<strong>do</strong>s” e/ou esfregava minha<br />
cabeça no papel que estava sobre a carteira.<br />
Isso representou o maior trauma da minha vida escolar. Na verda<strong>de</strong>, até hoje nunca<br />
entendi o que a <strong>do</strong>r tem a ver com aprendizagem.<br />
É certo que me esforçava <strong>de</strong>sesperadamente para apren<strong>de</strong>r tu<strong>do</strong> o que aquela professora<br />
ensinava para evitar seus abusos, mas não adiantava nada: ela sempre me batia. Tempos<br />
<strong>de</strong>pois, ela começou a dizer que me odiava por eu ser pareci<strong>do</strong> com um homem que a fez sofrer.<br />
Neste perío<strong>do</strong>, pu<strong>de</strong> observar que havia diferença entre as pessoas (até então todas<br />
eram iguais para mim). Na escola, as crianças e familiares que tinham melhor aparência eram<br />
bem melhor atendidas e <strong>do</strong>nas da atenção das professoras.<br />
Em 1987, minha família e eu nos mudamos <strong>de</strong> bairro, e conseqüentemente, eu teria<br />
que mudar <strong>de</strong> escola. Comecei a estudar na escola José Alves Maia.<br />
Parece que eu havia esqueci<strong>do</strong> muito <strong>do</strong> que a escola tinha representa<strong>do</strong> para mim, e<br />
quan<strong>do</strong> voltei à escola, levava na cabeça o que minha mãe me dizia: “A escola é o lugar<br />
on<strong>de</strong> as pessoas vão para apren<strong>de</strong>r e colaborar <strong>de</strong> alguma forma com as outras”.<br />
Embora ainda criança, foi difícil saber que estava engana<strong>do</strong>, pois os alunos <strong>de</strong>ssa<br />
escola eram muito bagunceiros, não prestavam atenção às aulas, nem faziam os exercícios,<br />
apenas brincavam e brigavam. E eu, que não tinha grupo, apenas ficava em meu lugar,<br />
observan<strong>do</strong> e fazen<strong>do</strong> minhas tarefas; quan<strong>do</strong> muito, brincava com meus lápis e canetas<br />
(fingin<strong>do</strong> que eram aviões ou naves espaciais).<br />
Por eu ser tão calmo em sala <strong>de</strong> aula, a professora dizia que eu não era normal e <strong>de</strong>veria<br />
ter algum problema. Por este motivo, minha mãe foi chamada inúmeras vezes ao colégio<br />
para ser orientada a buscar ajuda médica para resolver meu “problema”.<br />
O interessante é que os mesmos princípios <strong>de</strong> geração <strong>de</strong> energia que faziam com que<br />
as minhas espaçonaves funcionassem são os que fazem, hoje, com que alguns <strong>do</strong>s <strong>do</strong>utores<br />
da <strong>UFMA</strong>, on<strong>de</strong> curso Licenciatura em Física, se <strong>de</strong>brucem sobre um projeto inova<strong>do</strong>r, que<br />
representa uma proposta bastante promissora para suas carreiras científicas.<br />
Em Manaus, mantinha a mesma postura em sala <strong>de</strong> aula: ficava isola<strong>do</strong>, fazia as tarefas<br />
e ninguém me notava. Mesmo com este comportamento dito anormal, eu era um bom aluno,<br />
e quan<strong>do</strong> os(as) professores(as) não implicavam comigo, me <strong>de</strong>stacava nas notas.<br />
A partir da 8ª série <strong>do</strong> Ensino Fundamental, comecei a estudar em São Luís.<br />
No ano <strong>de</strong> 1998, iniciei o Ensino Médio na escola César Aboud. Encontrei excelentes<br />
professores, mas <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à falta <strong>de</strong> ânimo <strong>de</strong> outros, preferi me transferir para o colégio<br />
“Edson Lobão” (CEGEL).<br />
A essa data, já havia supera<strong>do</strong> - não esqueci<strong>do</strong> - alguns <strong>do</strong>s traumas escolares da<br />
infância, já tinha um comportamento mais aceitável e sonhava entrar numa universida<strong>de</strong>,<br />
com a escolha <strong>do</strong> curso já feita, refletin<strong>do</strong> algumas das minhas brinca<strong>de</strong>iras preferidas<br />
quan<strong>do</strong> criança.<br />
Alguns <strong>do</strong>s meus professores, comentavam sobre a dificulda<strong>de</strong> que seria para nós,<br />
alunos das escolas públicas, passarmos no vestibular. Eu comecei a me aproximar <strong>de</strong>les e a<br />
perguntar como po<strong>de</strong>ria fazer para tornar o meu sonho menos difícil; pedia orientações,<br />
sugestões e materiais.<br />
Fiz amiza<strong>de</strong> com colegas que também pensavam em ingressar na universida<strong>de</strong>, e<br />
começamos a estudar juntos.<br />
112 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Não tinha recursos para pagar cursinho preparatório ou comprar livros, mas tinha<br />
muita vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> passar no vestibular para Física. Então, foi neste perío<strong>do</strong> que iniciei um<br />
projeto social que ainda hoje existe. Formamos o grupo Cursinho da Cidadania e começamos,<br />
além <strong>de</strong> estudar em grupo, a dar aulas (cada um na matéria com a qual tinha afinida<strong>de</strong>) a<br />
outros alunos da mesma escola em fase <strong>de</strong> preparação para o Programa <strong>de</strong> Seleção Gradual<br />
(PSG) da <strong>UFMA</strong> e <strong>de</strong>mais vestibulares.<br />
No terceiro ano, me <strong>de</strong>diquei mais ainda aos estu<strong>do</strong>s. Os colegas <strong>do</strong> grupo e eu<br />
passávamos os sába<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>mingos na escola estudan<strong>do</strong> em uma sala cedida pela direção.<br />
Agora, eu pensava que precisava passar, mesmo não estudan<strong>do</strong> nas ditas boas escolas, nem<br />
freqüentan<strong>do</strong> cursos especializa<strong>do</strong>s.<br />
Fiz a última etapa <strong>do</strong> PSG e, graças a Deus, fui aprova<strong>do</strong> logo na primeira tentativa,<br />
sen<strong>do</strong> a primeira pessoa da minha família a passar no vestibular. Minha aprovação fez<br />
com que meus familiares e alguns amigos da infância se sentissem estimula<strong>do</strong>s para<br />
fazê-lo também; incrivelmente até mesmo aqueles que nem sequer cogitavam<br />
essa hipótese, passaram a perceber que realmente é possível uma pessoa pobre<br />
chegar à UNIVERSIDADE!<br />
Eu e a aca<strong>de</strong>mia<br />
Na universida<strong>de</strong> aprendi que a confiança no próprio potencial e na capacida<strong>de</strong>, é um<br />
elemento imprescindível para o sucesso; também, a formação <strong>de</strong> um bom grupo <strong>de</strong><br />
colabora<strong>do</strong>res, e principalmente, aquela esperança que dizem ser a última que morre. Passei<br />
por momentos <strong>de</strong> quase <strong>de</strong>sespero nos quais, se não tivesse consegui<strong>do</strong> ter uma relativa<br />
frieza para ir até a última possibilida<strong>de</strong>, não teria consegui<strong>do</strong> êxito, como ocorreu nos<br />
primeiros perío<strong>do</strong>s em que eu era obriga<strong>do</strong> a jantar na <strong>UFMA</strong> apenas água com a farinha que<br />
levava <strong>de</strong> casa.<br />
Percebi, rapidamente, a presença <strong>de</strong> alguns professores que parecem ter o objetivo<br />
<strong>de</strong> reprovar muitos <strong>de</strong> seus alunos. Um <strong>de</strong>les disse, certa vez, enquanto ministrava uma<br />
disciplina, que a turma “não era muito interessante”. O resulta<strong>do</strong> foi a reprovação <strong>de</strong><br />
quase to<strong>do</strong>s os alunos. Contu<strong>do</strong>, conheci também gran<strong>de</strong>s mestres que expressam com<br />
clareza o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ensinar, que estimulam lindamente o aprendiza<strong>do</strong>, e é por este<br />
aprendiza<strong>do</strong> e pelas oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> crescimento intelectual e pessoal, que preten<strong>do</strong><br />
po<strong>de</strong>r retribuir à socieda<strong>de</strong>.<br />
5 No bairro<br />
Sempre fomos muito caseiros, geralmente não saímos para festas, preferíamos ficar em<br />
casa, comportamento que não era bem aceito pelos vizinhos. Eu concordava com minha<br />
família e tínhamos o seguinte lema: “não perdi nada na rua; se sair, posso encontrar algo que<br />
não faça bem”.<br />
Po<strong>de</strong> parecer estranho, mas para uma criança que vê uma briga <strong>de</strong> faca e facão, que<br />
resulta em muito sangue, começa a fazer senti<strong>do</strong>.<br />
Eu era feliz com a família, livros e TV (quan<strong>do</strong> conseguimos uma - na minha a<strong>do</strong>lescência).<br />
Isso me bastava. Na verda<strong>de</strong>, meus pais conseguiam fazer com que - mesmo com tantas<br />
dificulda<strong>de</strong>s - fôssemos felizes juntos, e como retrata o filme “A Vida é Bela”, mesmo em meio<br />
a uma “guerra”, era possível sermos felizes; a diferença era que sabíamos que corríamos<br />
perigo diariamente.<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 113
Nessa época, eu pensava que, quan<strong>do</strong> crescesse, tentaria uma forma <strong>de</strong> não <strong>de</strong>ixar que<br />
outras pessoas caíssem na marginalida<strong>de</strong> como aquelas que a cada dia trilhavam este rumo.<br />
Continuo acreditan<strong>do</strong> que as pessoas não nascem, más contu<strong>do</strong> as dificulda<strong>de</strong>s as empurram<br />
para a marginalida<strong>de</strong>.<br />
6 Na família<br />
Por apresentar uma personalida<strong>de</strong> calma, <strong>de</strong>ntre meus irmãos, fui o que menos<br />
“aprontou” e raramente apanhava. Só <strong>de</strong>cepcionava na hora da sabatina - neste instante eu<br />
sabia que ia apanhar e que não tinha jeito <strong>de</strong> escapar - esta era também uma <strong>de</strong>sculpa -,<br />
estratégia <strong>de</strong> meu pai para eu “ser castiga<strong>do</strong>”, pois a regra na casa era: “Por um pagam<br />
to<strong>do</strong>s”; e quan<strong>do</strong> meus irmãos faziam alguma coisa errada, sempre vinha a sabatina.<br />
Como eu raramente “saía da linha”, meu pai se sentia culpa<strong>do</strong> em me punir segun<strong>do</strong><br />
suas regras, assim, encontrou esta forma educativa. Hoje, eu acredito que há males que vêm<br />
para bem, pois, graças a isto, aprendi a multiplicar e a ter gosto pela Matemática.<br />
Entendi com isto que, quanto mais soubesse, menos sofreria na vida.<br />
Em casa, costumava ser o intermedia<strong>do</strong>r entre meus irmãos, que viviam brigan<strong>do</strong> e<br />
disputan<strong>do</strong> - entre outras coisas - a atenção <strong>de</strong> nossos pais.<br />
7 Como cheguei ao “Conexões”<br />
O <strong>de</strong>stino tem suas maneiras <strong>de</strong> agir!<br />
Depois <strong>de</strong> conversar com uma amiga que naquele momento tinha alguns problemas<br />
particulares, notei que havia no mural um “convite”, para participar <strong>de</strong>ste projeto. Como eu<br />
estava precisan<strong>do</strong> realizar alguma ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ajuda ao próximo, e a mim mesmo, saí<br />
imediatamente para preparar to<strong>do</strong>s os requisitos solicita<strong>do</strong>s para o programa.<br />
Infelizmente, não fui aprova<strong>do</strong> no seletivo - não porque não me enquadrasse nos<br />
requisitos <strong>do</strong> Programa -, mas porque haviam outros candidatos maior pontuação que eu.<br />
No entanto, fui o primeiro na lista <strong>de</strong> espera e assim que um <strong>do</strong>s bolsistas (um <strong>do</strong>s mais<br />
engaja<strong>do</strong>s) saiu, fui chama<strong>do</strong> para participar <strong>do</strong> Projeto. Isso foi motivo <strong>de</strong> muita alegria<br />
para toda minha família, pois a minha bolsa veio representar a principal fonte <strong>de</strong> renda<br />
<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao <strong>de</strong>semprego <strong>de</strong> meu pai naquele momento.<br />
8 Perspectivas para o futuro<br />
Preten<strong>do</strong> especializar-me para dar aulas e realizar pesquisas em universida<strong>de</strong>s,<br />
realizan<strong>do</strong> o sonho <strong>de</strong> infância: ser um cientista. Num futuro próximo, trabalhar com crianças<br />
que tenham inclinações para o estu<strong>do</strong> das ciências e das artes.<br />
Gostaria também, <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>senvolver um centro educacional que trabalhe a cidadania<br />
como princípio fundamental da vida e da socieda<strong>de</strong>, instruin<strong>do</strong> nas diversas áreas <strong>do</strong><br />
conhecimento, como os <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, noções <strong>de</strong> direito constitucional,<br />
informática, e outros, que tenham como fim o engajamento-social em projetos diversifica<strong>do</strong>s.<br />
114 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
Rogério <strong>do</strong>s Santos Car<strong>do</strong>so *<br />
Único fruto <strong>de</strong> uma relação inter-racial, carrego características <strong>de</strong> ambos os la<strong>do</strong>s da<br />
família, mas i<strong>de</strong>ntifico-me mais com a parte materna, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à proximida<strong>de</strong> da criação e das<br />
relações <strong>de</strong> vínculo mais próximas, moran<strong>do</strong> no mesmo bairro, e quan<strong>do</strong> das mudanças<br />
(assunto que abordarei mais tar<strong>de</strong>), sempre moran<strong>do</strong> muito próximo <strong>de</strong> parentes maternos.<br />
O relacionamento <strong>de</strong> meus pais foi marca<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma bem interessante. Mamãe morava<br />
com uma tia minha (Maria Júlia) em mea<strong>do</strong>s <strong>de</strong>1982, e por morar com minha tia, teve muitas<br />
vezes que cuidar <strong>do</strong>s meus primos, <strong>de</strong>ntre os quais ela sempre <strong>de</strong>monstrou um afinco maior<br />
com o sobrinho mais velho (Mário Sérgio). Por meio <strong>de</strong>le, conheceu papai. Benedito, na<br />
época esposo <strong>de</strong> tia Júlia, é negro. Mário Sérgio tinha o costume <strong>de</strong> ir ao encontro <strong>de</strong><br />
“Sabonete” (apeli<strong>do</strong> <strong>do</strong> pai <strong>de</strong>le), quan<strong>do</strong> este vinha <strong>do</strong> trabalho e <strong>de</strong>scia <strong>do</strong> ônibus. O<br />
gran<strong>de</strong> problema é que to<strong>do</strong>s os homens que <strong>de</strong>sciam na mesma parada <strong>de</strong> ônibus e que<br />
tinham a fisionomia parecida com a <strong>do</strong> pai <strong>de</strong>le eram recebi<strong>do</strong>s por ele como sen<strong>do</strong> seu pai,<br />
e em especial, Domingos (meu pai). Esse costume <strong>de</strong> confundir as pessoas com seu pai se<br />
tornou um gran<strong>de</strong> problema para minha mãe, que era quem cuidava <strong>de</strong>le. Em meio a essas<br />
confusões <strong>de</strong> Sérgio em relação às pessoas que pareciam com seu pai, ele acabou fazen<strong>do</strong><br />
com que os meus pais se conhecessem.<br />
Sen<strong>do</strong> fruto <strong>de</strong> um relacionamento <strong>de</strong> pessoas com certa experiência, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a<br />
relacionamentos anteriores em que houve outros filhos, nasci em uma época crítica da<br />
conjuntura nacional, sain<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma ditadura militar que durara vinte e um anos, permeada <strong>de</strong><br />
problemas na área econômica: os planos econômicos e a inflação eram figuras carimbadas na<br />
vida cotidiana da população. Assim, mesmo com a experiência <strong>de</strong> meus pais, passamos por<br />
muitas dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a esses momentos históricos <strong>do</strong> país, mas surgiu uma criança que<br />
carregou a esperança <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> pais que se uniram para formar uma família e investir sobre ele<br />
os seus sonhos. Por isso, logo após o meu nascimento, meu pai viajou para o Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> Mato<br />
Grosso em busca <strong>de</strong> emprego, on<strong>de</strong> trabalhou por <strong>de</strong>zenove meses. Com o dinheiro recebi<strong>do</strong>,<br />
aju<strong>do</strong>u a suprir as necessida<strong>de</strong>s da família que ficara no <strong>Maranhão</strong>. Nesse meio tempo, já tinha<br />
certa noção <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>, e por não ter a figura <strong>do</strong> meu pai presente na primeira infância, tratei <strong>de</strong><br />
substituí-la por um menino (filho <strong>de</strong> uma vizinha) que eu chamava <strong>de</strong> Babal.<br />
Desta época mamãe conta que, certa vez, caiu uma gran<strong>de</strong> tempesta<strong>de</strong> e a casa on<strong>de</strong><br />
morávamos ainda não estava com o telha<strong>do</strong> completo, e quan<strong>do</strong> a chuva chegou, foi um<br />
corre-corre, pois, com a casa <strong>de</strong>scoberta, os poucos móveis que tínhamos estavam sen<strong>do</strong><br />
* Graduan<strong>do</strong> em Física na <strong>UFMA</strong>.<br />
História <strong>de</strong> vida<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 115
encharca<strong>do</strong>s pela água da chuva, e ela não podia fazer nada por estar cuidan<strong>do</strong> <strong>de</strong> mim. Foi<br />
quan<strong>do</strong> algumas vizinhas chegaram para nos ajudar com relação aos móveis e outra com<br />
uma capa para levar-me para sua casa.<br />
Com o passar <strong>do</strong> tempo, chegou o momento <strong>de</strong> ir para a escola: foi uma experiência<br />
muito interessante. Na época, tinha o prazer <strong>de</strong> levantar bem cedinho (por volta das cinco<br />
da manhã) para ir direto ao banheiro tomar banho, com me<strong>do</strong> <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r aula. Tinha um<br />
afinco muito gran<strong>de</strong> para com a escola <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à consciência <strong>de</strong> minha mãe. Mesmo sob<br />
protesto <strong>de</strong> minha avó materna que dizia que seu netinho não tinha condições <strong>de</strong> estudar<br />
<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> aos seus problemas <strong>de</strong> visão (miopia, astigmatismo e nistagmo horizontal, que faz<br />
com que eu balance a cabeça com se estivesse sempre negan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>). Ela nunca <strong>de</strong>sistiu <strong>de</strong><br />
ver seu filho entran<strong>do</strong> em uma universida<strong>de</strong>. Para espanto <strong>de</strong> meus pais, eu sempre tive<br />
prazer em estudar no perío<strong>do</strong> da manhã, pois tinha prazer em levantar bem ce<strong>do</strong>.<br />
Minha vida escolar sempre esteve ligada a mudanças <strong>de</strong> cida<strong>de</strong> em busca <strong>de</strong> melhores<br />
oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> emprego para meus pais, e em especial, para minha mãe. Essas mudanças<br />
começaram no ano <strong>de</strong> 1991, quan<strong>do</strong> minha mãe foi convidada para trabalhar com o prefeito<br />
da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Barreirinhas-MA (minha avó materna era cozinheira na casa <strong>do</strong> prefeito, e<br />
minha mãe acompanhara o processo das Diretas-Já, ten<strong>do</strong> participa<strong>do</strong> da Constituinte). Fui<br />
morar com ela em Barreirinhas, enquanto meu pai ficou em São Luís. Morei lá um ano, o<br />
tempo <strong>de</strong> duração <strong>do</strong> contrato <strong>de</strong> mamãe, e terminei a Pré-Escola. Então, ocorreu uma nova<br />
mudança para São Luís. Antes <strong>de</strong> começar a 1ª série, minha mãe teve bastante dificulda<strong>de</strong><br />
em matricular-me, em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter apenas seis anos. Quan<strong>do</strong> comecei a 1ª série na Unida<strong>de</strong><br />
Escolar Vila Embratel. Para meu tormento, meu nome não estava em nenhuma lista <strong>de</strong><br />
alunos da 1ª série, e enquanto resolviam esse problema, tive que assistir aula na sala da<br />
minha tia (prima <strong>de</strong> papai) e experimentar suas unhas em minhas orelhas. Passada uma<br />
semana, resolveram meu problema, encontran<strong>do</strong> uma turma em que estudasse, e não podia<br />
ser melhor. Fui para a sala cuja professora era a vizinha à direita da minha casa. Era ótimo!<br />
As filhas <strong>de</strong>la escreviam para mim e eu nunca voltava para casa sozinho, pois já tinha<br />
encontra<strong>do</strong> minhas companhias. Ao final <strong>do</strong> ano, passei <strong>de</strong>spreocupadamente.<br />
Surgiu outra mudança para Barreirinhas. No mês <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1992, minha mãe foi<br />
convidada para participar da campanha <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s candidatos a prefeito <strong>de</strong> Barreirinhas, e<br />
ao final da eleição, o candidato para o qual ela trabalhara, ganhara a eleição. Então, em<br />
1993, mudamos novamente para Barreirinhas e mais uma vez meu pai permaneceu em São<br />
Luís, sob o argumento <strong>de</strong> serviço e isso acabou fazen<strong>do</strong> com que ele não estivesse presente<br />
na minha vida <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> que sempre quis. Em 1993, comecei a cursar a 2ª série na Unida<strong>de</strong><br />
Escolar João XXIII, on<strong>de</strong> tenho como lembrança os momentos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> da tabuada que era<br />
feita com a famosa palmatória. Em 1994, outra mudança <strong>de</strong> escola; mudança esta que não<br />
aparece no meu Histórico Escolar. Fui para a Unida<strong>de</strong> Escolar Matos Carvalho, on<strong>de</strong> cursei<br />
a 3ª série e tenho como lembrança <strong>de</strong> lá os momentos <strong>de</strong> cantar o Hino Nacional antes <strong>de</strong> ir<br />
para a aula.<br />
1995, mais uma mudança <strong>de</strong> escola, agora sob o pretexto <strong>de</strong> estarem colocan<strong>do</strong>-me<br />
numa escola melhor. Fui para a Unida<strong>de</strong> Integrada Joaquim Soeiro <strong>de</strong> Carvalho. Desta<br />
escola tenho ótimas lembranças, lembro-me das brinca<strong>de</strong>iras no pátio, das aulas <strong>de</strong> Educação<br />
Física (que sempre eram futsal) e das brigas na saída da escola. No caminho pra esta escola,<br />
havia uma casa on<strong>de</strong> criavam perus, e lembro-me <strong>de</strong> que, ao ir para a escola, algumas vezes<br />
esses perus corriam atrás <strong>do</strong>s alunos, e era uma gran<strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira ficar insuflan<strong>do</strong> os perus<br />
116 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
à corrida. Em 1996, fui obriga<strong>do</strong> a ter que estudar no perío<strong>do</strong> vespertino, e foi nesse ano que<br />
tive a minha primeira nota abaixo <strong>de</strong> sete. A disciplina era Programa <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, e o que mais<br />
me marcou foi o fato <strong>de</strong> que a nota baixa não foi pelas respostas, mas pela ortografia. Outra<br />
lembrança que carrego <strong>de</strong>sta escola são as diretoras que ligavam para a Prefeitura para<br />
avisarem <strong>de</strong> cada bagunça que eu fazia na escola (e não foram poucas), para avisar das<br />
brigas, das vezes em que dava “rasteira” em colegas <strong>de</strong> sala, mas a pior das lembranças foi<br />
a da vez em que briguei com o filho da professora <strong>de</strong> Ciências (um cara meti<strong>do</strong> e que, ao tirar<br />
um nota abaixo <strong>de</strong> nove, chorava literalmente para os professores darem ponto para ele). Ela<br />
disse-me que iria ficar reprova<strong>do</strong>. Lembro-me <strong>de</strong> que estu<strong>de</strong>i consi<strong>de</strong>ravelmente até que, no<br />
3º bimestre, já estava aprova<strong>do</strong> em Ciências. Este ano também foi ano <strong>de</strong> eleição e o<br />
candidato que o prefeito apoiava ganhou, mas por pressão <strong>de</strong> meu pai que já morava<br />
conosco (ele foi morar conosco no final <strong>do</strong> ano <strong>de</strong> 1994), minha mamãe <strong>de</strong>ixou o emprego<br />
e voltamos para a capital. Com o sonho <strong>do</strong> plano real <strong>de</strong> estabilização econômica e<br />
emprego para to<strong>do</strong>s.<br />
A saída <strong>de</strong> Barreirinhas representa novamente mudança <strong>de</strong> escola e uma volta à escola<br />
on<strong>de</strong> estu<strong>de</strong>i a 1ª série, mas agora teria que enfrentar uma nova forma <strong>de</strong> ensino: a televisão.<br />
Passei somente uma semana na escola, e <strong>de</strong>sta semana me lembro <strong>de</strong> diversos momentos que<br />
me marcaram profundamente, tais como: ter que assistir aula por uma televisão, a ausência<br />
da figura <strong>de</strong> um professor para cada disciplina, a ameaça constante <strong>do</strong> pessoal mais velho na<br />
escola em querer me bater, e em especial, ter que pagar merenda para <strong>do</strong>is rapazes (por ter um<br />
alto índice <strong>de</strong> repetência na escola, e eu nunca ter fica<strong>do</strong> reprova<strong>do</strong>, era um <strong>do</strong>s mais novos<br />
da sala e o mais baixo) para que eles fossem meus “seguranças”. Hoje, acho que eram eles<br />
que mandavam os outros me fazerem me<strong>do</strong> pra que eu pagasse merenda para eles. Mas<br />
graças a Deus, a semana passou.<br />
O processo pelo qual mamãe passou para que eu pu<strong>de</strong>sse sair <strong>do</strong> “Vila Embratel” foi<br />
muito gran<strong>de</strong>: foi à Secretaria <strong>de</strong> Educação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> às 07h da manhã e só chegou em casa<br />
às 23h (isso porque a matrícula era chamada <strong>de</strong> “Bem Fácil”), mas, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muita<br />
dificulda<strong>de</strong>, consegui mudar <strong>de</strong> escola.<br />
Então comecei a estudar na Unida<strong>de</strong> Integrada América <strong>do</strong> Norte, na Vila Embratel. Foi<br />
o momento <strong>de</strong> formar amigos, mas como parte <strong>de</strong> pessoal on<strong>de</strong> moro já estudava nesta escola,<br />
não tive muita dificulda<strong>de</strong>; além <strong>do</strong> mais, uma prima estudava comigo na mesma sala e um<br />
primo estudava na série anterior. Por meio <strong>de</strong>les, conheci aqueles que não conhecia. Mas nem<br />
tu<strong>do</strong> eram flores, a escola era muito pequena para a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alunos, foi então que<br />
dividiram as salas <strong>de</strong> aula nos seguintes horários: 07h10 às 10h55, 11h00 às 14h55 e das<br />
15h00 às 19h20. Nesta divisão <strong>de</strong> horários, acabei ten<strong>do</strong> que estudar das 15h00 às 19h20, e<br />
não tinha coisa melhor <strong>do</strong> que ir para a escola <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>do</strong>rmir no início da tar<strong>de</strong>. Lembro-me<br />
<strong>de</strong> que, nos finais <strong>do</strong>s horários <strong>de</strong> aula, tínhamos o costume <strong>de</strong> <strong>de</strong>sligar o interruptor das<br />
lâmpadas e ficar na sala passan<strong>do</strong> a mão em tu<strong>do</strong> o que encontrávamos pela frente.<br />
Neste mesmo ano (1997), tive contato com um grupo cristão que até então nunca<br />
havia conheci<strong>do</strong>: os Adventistas <strong>do</strong> Sétimo Dia, que começaram uma série evangelística<br />
próximo <strong>de</strong> minha casa. Logo após esta série, eu e meu pai resolvemos nos batizar nesta<br />
igreja, e no dia 27 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1997, fomos batiza<strong>do</strong>s para honra e glória <strong>de</strong> Deus. Mas<br />
o comportamento na escola ainda não era <strong>do</strong>s melhores, com as brinca<strong>de</strong>iras, com a conversa,<br />
o mini-game, e em especial, as brigas; acabava sen<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s mais indisciplina<strong>do</strong>s, mas as<br />
notas eram sempre algumas das melhores da sala. A familiarida<strong>de</strong> com a Matemática sempre<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 117
se <strong>de</strong>stacava, em compensação a Língua Inglesa era a “pedra no sapato”, mas sempre dava<br />
um jeito <strong>de</strong> escapar <strong>de</strong>la, fazen<strong>do</strong> trabalhos para repor as notas baixas e assim por diante. No<br />
final <strong>do</strong> ano, estava aprova<strong>do</strong>, já com a expectativa da 7ª série. segun<strong>do</strong> alguns, esta série<br />
era o “bicho-papão” <strong>do</strong> 1º Grau.<br />
No ano seguinte, as brinca<strong>de</strong>iras aumentaram, pois, agora tinha um vizinho estudan<strong>do</strong><br />
na mesma sala (ele tinha si<strong>do</strong> expulso <strong>de</strong> sua antiga escola), foi aí que minha bagunça foi<br />
potencializada em toda a sua plenitu<strong>de</strong>, “gazear” aula, bagunçar, colocar chiclete na ca<strong>de</strong>ira<br />
<strong>do</strong>s professores, fumar, cheirar solvente, foram algumas das coisas que fiz na companhia<br />
<strong>de</strong>le, mas quase todas elas por pressão <strong>de</strong> grupo, para sentir-me parte <strong>de</strong>le. Foi nesta época<br />
que também entrei numa “galera” chamada abreviadamente <strong>de</strong> C.A. (Caça<strong>do</strong>res <strong>de</strong> Aventura).<br />
Nessa “galera” tive o primeiro e único contato com a maconha (acredito que não fez efeito<br />
em mim). Paralelo a isso, permanecia na igreja. Lembro-me <strong>de</strong> uma briga marcante que tive<br />
com um menino <strong>de</strong> uma outra área <strong>do</strong> bairro (rua 2), que na época era famosa por sua gangue<br />
e que já havia mata<strong>do</strong> algumas pessoas, em que quebrei a boca <strong>de</strong>le e ele saiu dizen<strong>do</strong> que<br />
ia me pegar no dia seguinte, na entrada da escola. Disse que ia trazer a “galera” <strong>de</strong>le para<br />
resolver o problema, foi então que a diretora da escola soube da briga e avisou para os meus<br />
pais que, ao saberem <strong>do</strong> meu feito, foram logo tratan<strong>do</strong> <strong>de</strong> tentar solucionar esse problema.<br />
No outro dia, não fui para a escola, e papai foi à casa <strong>do</strong> avô <strong>do</strong> menino para resolver a<br />
situação. Dois dias <strong>de</strong>pois, pu<strong>de</strong> voltar para a escola, sem risco <strong>de</strong> vida.<br />
Foi então, que minha mãe começou a notar a minha mudança em casa, o tipo <strong>de</strong><br />
música que ouvia, o jeito <strong>de</strong> andar e as companhias com quem me envolvia, e começou a<br />
brigar para que, <strong>de</strong>ixasse <strong>de</strong> andar com aquelas companhias, mas não adiantavam muito<br />
suas conversas. Uma forma que eu utilizava (sem que nem eu mesmo percebesse) eram as<br />
minhas notas que sempre permaneceram entre as melhores da turma. No final <strong>do</strong> ano, lá<br />
estava eu aprova<strong>do</strong>, queren<strong>do</strong> dar uma <strong>de</strong> <strong>do</strong>no da minha vida, sem perceber o mun<strong>do</strong> que<br />
estava me cercan<strong>do</strong>.<br />
No meio <strong>de</strong> to<strong>do</strong> esse clima, fomos estudar no C.E.E.F.M. Profª. Dayse Galvão <strong>de</strong><br />
Sousa. Uma das características <strong>do</strong> pessoal da minha sala era andar sempre um grupo <strong>de</strong> no<br />
mínimo quinze alunos pelo meio <strong>do</strong>s corre<strong>do</strong>res da escola, mas por ironia, <strong>do</strong>is membros da<br />
galera da rua 2 estudavam na minha sala, mas os ânimos entres nós nunca se elevaram.<br />
Novamente tive contato com a televisão como professora, mas agora não tive mais chance<br />
<strong>de</strong> fugir <strong>de</strong>la, foi então que, em meio as peripécias que aprontava na escola, <strong>de</strong>ixei meu<br />
nome duas vezes no Livro da Capa Preta (um livro on<strong>de</strong> eram anotadas as faltas graves <strong>do</strong>s<br />
alunos, e quem tivesse três faltas graves era expulso da escola). Uma por causa das placas <strong>de</strong><br />
tombamento das carteiras, e outra por causa <strong>de</strong> uma bebida alcoólica que alguns membros<br />
da minha sala levaram para uma festa que estava sen<strong>do</strong> realizada na escola, e eu, pensan<strong>do</strong><br />
que fosse um refrigerante, acabei botan<strong>do</strong> no meu copo. Ao prová-la, fui logo cuspin<strong>do</strong> o<br />
líqui<strong>do</strong>, e para meu azar, acabou cain<strong>do</strong> no meu uniforme. Quan<strong>do</strong> o diretor chegou, me<br />
levou para diretoria e começou a pressionar para que eu contasse quem havia leva<strong>do</strong> a<br />
bebida, mas como nunca fui <strong>de</strong> botar culpa nos outros, disse que não era minha e não sabia<br />
quem era que havia leva<strong>do</strong> para a sala.<br />
Mas em meio a tu<strong>do</strong> isso, passei por um momento <strong>de</strong> escolha na vida, como relatei<br />
anteriormente: minha mãe começou a pressionar para que eu <strong>de</strong>ixasse algumas companhias<br />
e três fatos foram cruciais para a minha escolha: o envolvimento com as ativida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> Clube<br />
<strong>de</strong> Desbrava<strong>do</strong>res Tribo <strong>de</strong> Judá, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> estudar no Liceu Maranhense e as lágrimas<br />
118 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular
<strong>de</strong> uma mãe que já não sabia mais o que fazer para libertar o filho <strong>de</strong> certas companhias.<br />
Motiva<strong>do</strong> pelos argumentos acima, comecei a estudar para a seleção <strong>do</strong> Liceu<br />
Maranhense.Como prêmio por minha mudança <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>, fui agracia<strong>do</strong> com a melhor<br />
notícia da minha vida até então: fui aprova<strong>do</strong> na seleção <strong>do</strong> Liceu, e o melhor: o resulta<strong>do</strong><br />
saiu num Sába<strong>do</strong> (dia sagra<strong>do</strong> para a<strong>do</strong>ração ao meu Deus). Agora já havia muda<strong>do</strong> meu<br />
estilo <strong>de</strong> vida, começara a me envolver mais profundamente com as ativida<strong>de</strong>s da igreja <strong>de</strong><br />
que sou membro, e acabei <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> ter contato com o pessoal que costumava conviver<br />
anteriormente. Com isso, meu relacionamento com meus pais, melhorou consi<strong>de</strong>ravelmente.<br />
Ao passar na seleção, sabia que a partir dali tinha a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> traçar novos<br />
caminhos e <strong>de</strong>scobrir um novo estilo <strong>de</strong> vida. Com essa idéia fixa encarei a nova escola,<br />
agora com a experiência <strong>de</strong> alguém que já havia passa<strong>do</strong> por momentos <strong>de</strong> altos e baixos na<br />
vida, mas consciente <strong>do</strong> meu papel na família e também com foco para o que queria alcançar<br />
(na época meu primo Sérgio, o mesmo que fez o papel <strong>de</strong> cupi<strong>do</strong> para o relacionamento <strong>do</strong>s<br />
meus pais, havia acaba<strong>do</strong> <strong>de</strong> passar no vestibular da <strong>UFMA</strong>) e tinha na mente que não<br />
po<strong>de</strong>ria per<strong>de</strong>r o foco.<br />
Escola nova, vida nova, Liceu Maranhense. No primeiro dia <strong>de</strong> aula, ganhei o apeli<strong>do</strong><br />
que carrego até hoje, Black; além disso voltei a estudar no perío<strong>do</strong> matutino, o melhor, no<br />
meu ponto <strong>de</strong> vista. Naquele dia já comecei bagunçan<strong>do</strong> com <strong>do</strong>is alunos da mesma sala,<br />
apesar <strong>de</strong> nunca tê-los visto na vida, mas sabia que não podia per<strong>de</strong>r o foco. Fiquei numa<br />
turma relativamente boa, embora existisse a formação <strong>do</strong>s grupos, que sempre se formam<br />
numa sala. Nós éramos bem uni<strong>do</strong>s e eu tinha livre passagem em to<strong>do</strong>s os grupinhos que se<br />
formaram na sala. Outra característica da nossa turma era a <strong>de</strong> sermos poucos homens, o que<br />
facilitava a formação <strong>do</strong> time <strong>de</strong> futebol (como nunca fui bom em futebol, acabei sen<strong>do</strong> um<br />
<strong>do</strong>s membros <strong>do</strong> banco que sempre entrava no segun<strong>do</strong> tempo <strong>do</strong> jogo). Surgiu, nesse momento,<br />
outro empecilho na minha vida escolar: a Química. Matéria que me levou para a primeira<br />
prova final da minha existência. Ao término daquele ano, não mais era conheci<strong>do</strong> pelo nome,<br />
e sim, pelo apeli<strong>do</strong>. Neste ano, participei <strong>do</strong> meu primeiro acampamento como <strong>de</strong>sbrava<strong>do</strong>r,<br />
foi uma ótima experiência.<br />
Havíamos passa<strong>do</strong> o ano to<strong>do</strong> estudan<strong>do</strong> para o Programa <strong>de</strong> Seleção Gradual da<br />
<strong>UFMA</strong>, mas sabia que não estava prepara<strong>do</strong> para a prova, e então surgiu a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
fazer a prova para o CEFET-MA. Fiz e fui aprova<strong>do</strong> para o curso <strong>de</strong> Materiais, mas por causa<br />
da minha situação financeira, não tive condições nem <strong>de</strong> fazer a matrícula. A aprovação na<br />
prova <strong>do</strong> CEFET tirou um far<strong>do</strong> das minhas costas em relação à nota no PSG I, mas no final<br />
acabei sen<strong>do</strong> bem, sucedi<strong>do</strong> na prova, para minha surpresa.<br />
2001, 2ª série <strong>do</strong> Ensino Médio. Já sabia que área iria seguir: Física. Era a matéria com<br />
a qual mais me i<strong>de</strong>ntificava. Além disso, não queria cursar Matemática, pois Sérgio já o<br />
cursava, e não queria ser a sombra <strong>de</strong>le. Aprendi jogar xadrez neste ano, e a partir daí, jogava<br />
no meio das aulas, no corre<strong>do</strong>r, na saída, em quase to<strong>do</strong>s os lugares. Fiz <strong>de</strong>ste jogo um estilo<br />
<strong>de</strong> vida e o argumento que eu usava era que era um jogo <strong>de</strong> cálculo, como as matérias com<br />
que sempre tive afinida<strong>de</strong>. Lembro-me das aulas <strong>de</strong> Biologia, História e <strong>de</strong> Língua<br />
Portuguesa, em que tive não professores, mas mestres. No PSG II tive uma queda <strong>de</strong> produção,<br />
mas nada muito significativo.<br />
Terceirão, já era agora veterano, e como tal, tinha que sair “impon<strong>do</strong>” autorida<strong>de</strong><br />
sobre to<strong>do</strong>s os calouros que pu<strong>de</strong>sse encontrar pela frente, mas não era apenas isso: era meu<br />
último ano. Tinha que ter foco muito mais <strong>do</strong> que nos outros anos, mas sempre carregan<strong>do</strong><br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Maranhão</strong> 119
comigo o xadrez. No ano anterior, papai tinha i<strong>do</strong> para Barreirinhas trabalhar e nunca<br />
mandava dinheiro algum para mamãe ou para mim. Já estava no seu segun<strong>do</strong> ano em<br />
Barreirinhas e nada tínhamos que ele houvesse consegui<strong>do</strong>. Foi aí que minha mãe foi<br />
aprovada no seletivo da prefeitura <strong>de</strong> São Luís para agente <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, e mesmo ganhan<strong>do</strong><br />
menos <strong>de</strong> um salário-mínimo na época, conseguíamos milagrosamente (aí vejo a intervenção<br />
<strong>de</strong> Deus) suprir as necessida<strong>de</strong>s que tínhamos. Este ano era também um ano <strong>de</strong>cisivo para<br />
mim e para to<strong>do</strong>s da minha turma: era o meu último PSG. Estávamos to<strong>do</strong>s liga<strong>do</strong>s em<br />
nossos estu<strong>do</strong>s, seguíamos um roteiro <strong>de</strong>talha<strong>do</strong> das disciplinas e <strong>do</strong>s assuntos que iriam<br />
cair na prova, nunca estudara tanto na minha vida.<br />
No mês <strong>de</strong> abriu <strong>de</strong> 2003, (num Sába<strong>do</strong>), logo ao chegar da igreja, recebi o telefonema<br />
<strong>de</strong> um colega <strong>de</strong> turma com a notícia <strong>de</strong> que havia passa<strong>do</strong> no PSG em segun<strong>do</strong> lugar para<br />
o curso <strong>de</strong> Física. Foi aí que senti o maior prazer da minha vida: ver minha mãe choran<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
alegria ao saber que eu havia passa<strong>do</strong> e iria cursar uma faculda<strong>de</strong>. Duas semanas <strong>de</strong>pois, já<br />
estavam começan<strong>do</strong> as aulas.<br />
O início foi bem complica<strong>do</strong>, pois trazia falhas <strong>de</strong> formação no Ensino Médio além <strong>do</strong><br />
vício <strong>do</strong> xadrez. Em 2004, tive a primeira experiência <strong>de</strong> morar sozinho. Minha mãe foi para<br />
Barreirinhas e meu pai já estava por lá, então tive que passar a viver sozinho (minha mãe<br />
sempre me dizia que ela estava me crian<strong>do</strong> para a vida). Paralelo a isso, obtive minhas primeiras<br />
reprovações: reprovei em três disciplinas em que estava matricula<strong>do</strong>. Foi então que tomei<br />
noção <strong>de</strong> que já havia passa<strong>do</strong> a época das brinca<strong>de</strong>iras. No quarto perío<strong>do</strong>, concentrei-me em<br />
todas as disciplinas que estava cursan<strong>do</strong>, mas infelizmente, reprovei novamente em Física II.<br />
Desta vez reprovei consciente <strong>de</strong> que havia da<strong>do</strong> o meu melhor, e não podia culpar-me <strong>de</strong> ter<br />
relaxa<strong>do</strong> (na prova final quem “colou”, passou, mas preferi ficar reprova<strong>do</strong>, preservan<strong>do</strong><br />
assim minha consciência limpa: Quarto mandamento da Lei <strong>do</strong> Desbrava<strong>do</strong>r). Neste mesmo<br />
perío<strong>do</strong>, terminei a Classe <strong>de</strong> Lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Desbrava<strong>do</strong>res e fui investi<strong>do</strong> no Camporee Reedificai<br />
o Templo (acampamento <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os Clubes <strong>de</strong> Desbrava<strong>do</strong>res <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada região);<br />
na época já era diretor associa<strong>do</strong> <strong>do</strong> Clube Tribo <strong>de</strong> Judá.<br />
Já o ano <strong>de</strong> 2005, foi o ano da “virada <strong>de</strong> mesa”, consegui passar em Física II. A partir<br />
daí, o tabu das reprovações foi venci<strong>do</strong>, ainda era diretor associa<strong>do</strong> <strong>do</strong> Clube, mas agora<br />
acumulava o cargo <strong>de</strong> regional associa<strong>do</strong>. Aju<strong>de</strong>i com a organização <strong>do</strong> Camporee “Com os<br />
olhos no Céu”, e no curso comecei a me organizar. Neste mesmo ano, conheci uma pessoa<br />
que me marcou muito, Raquel, mantivemos um relacionamento por nove meses, mas por ela<br />
pertencer a uma família branca, a pressão <strong>de</strong> seus familiares começou a afetar nosso<br />
relacionamento. Ao perceber que ela estava no meio <strong>de</strong> um conflito entre mim e a família<br />
<strong>de</strong>la, resolvi terminar o nosso relacionamento (é pedir <strong>de</strong>mais para alguém <strong>de</strong> 16 anos<br />
escolher entre família e namora<strong>do</strong>). Aprendi uma lição para toda a vida. Até então, achava<br />
que po<strong>de</strong>ria resolver to<strong>do</strong>s os problemas que surgissem diante <strong>de</strong> mim, sem machucar-me,<br />
mas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ssa experiência, <strong>de</strong>scobri que certas situações estão além <strong>de</strong> minhas<br />
possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> solução.<br />
Já o ano <strong>de</strong> 2006, foi um ano <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobertas, fui eleito para ser diretor <strong>do</strong> Clube <strong>de</strong><br />
Desbrava<strong>do</strong>res Tribo <strong>de</strong> Judá. Sob minha direção, tive a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> organizar o primeiro<br />
Camporee <strong>do</strong> clube intitula<strong>do</strong> Heróis da Fé (título esse que vivi até o último momento em<br />
toda a sua plenitu<strong>de</strong>). Pu<strong>de</strong>, através <strong>do</strong> cargo <strong>de</strong> direção, ajudar no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong>s<br />
membros <strong>do</strong> clube <strong>do</strong>s pais, e assim, da comunida<strong>de</strong> da Vila Embratel; comunida<strong>de</strong> que<br />
sempre me acolheu <strong>de</strong> braços abertos e com quem tenho uma relação <strong>de</strong> respeito e <strong>de</strong> carinho.<br />
120 Caminhadas <strong>de</strong> universitários <strong>de</strong> origem popular