Último olhar – Parte 1 - O Nerd Escritor
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O <strong>Nerd</strong> <strong>Escritor</strong> Publicado em 15/10/2009<br />
www.onerdescritor.com.br Escrito por Carlos Geovanni Chrestani<br />
<strong>Último</strong> <strong>olhar</strong> <strong>–</strong> <strong>Parte</strong> 1<br />
As pálpebras cadentes cerraram os olhos num movimento suave,<br />
condescendendo a solicitação, e uma série de imagens conhecidas,<br />
porém desconexas, substituíram as impressões do recinto semiobscurecido.<br />
Junto ao divã, sentado em uma elegante poltrona vitoriana, encontravase<br />
o psicólogo a anotar o comportamento do jovem. Toda reação era<br />
correspondida com movimentos frenéticos do lápis, sob o <strong>olhar</strong> atento<br />
do especialista.<br />
— Diga-me Luís, o que vê?<br />
Após breve pausa, respondeu:<br />
— Nada. Não consigo ver coisa alguma. Somente ouço. Ouço muitas<br />
vozes.<br />
— Consegue identificar o que estão falando? — inquiriu o psicólogo.<br />
— Não entendo o que falam, mas sei que estão falando de mim. Sinto<br />
tocarem minhas mãos — disse o jovem alargando o sorriso.<br />
— Você conseguiria identificar esse lugar?<br />
— Acredito que seja a antiga casa de meus avós. Tenho quase certeza.<br />
O cheiro é inconfundível.<br />
— Reconhece as vozes? Poderia dizer de quem é? — indagou<br />
seguidamente.<br />
— Sim, algumas. Escutei a voz do tio Alfredo, da tia Lena, de minha mãe<br />
e também da vó Augusta. Ouço outras, mas não sei de quem se trata —<br />
falou com morosidade.<br />
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O psicólogo terminava de anotar as últimas palavras pronunciadas<br />
quando, inesperadamente, o semblante do rapaz deixou de lado a feição<br />
angelical para instantes depois, lágrimas verteram como se algo terrível<br />
estivesse acontecendo naquele momento. Logo em seguida ele agarrou<br />
a calça na altura das nádegas e, de modo abrupto tentou arrancá-la.<br />
Algo o incomodava.<br />
Como resposta o psicólogo abriu um singelo sorriso, e anotou no bloco:<br />
fome + fralda suja.<br />
Aproximando-se um pouco mais de Luís, ele anunciou a próxima estação<br />
que seria contemplada na já percorrida estrada da vida: o útero. Pouco a<br />
pouco o corpo do jovem rapaz foi sendo envergado. Os joelhos iniciaram<br />
deslocamento em direção ao peito, e os braços foram dobrando<br />
lateralmente, posicionando as mãos próximas a boca. Via-se pelo peito<br />
que o frenesi cedera lugar à brandura, e um sobe-e-desce ritmado foi<br />
estabelecido.<br />
Admirando toda aquela tranquilidade e pesaroso por quebrá-la, o<br />
psicólogo iniciou novamente sua investigação.<br />
— Como se sente?<br />
O jovem movia os lábios de modo excêntrico, como se os tivesse<br />
explorando pela primeira vez. Então respondeu num murmúrio:<br />
— Ótimo. É o melhor lugar em que já estive.<br />
Rapidamente o psicólogo folheou o bloco e assim que encontrou folha<br />
em branco anotou: Útero: gestação aparentemente tranquila, sem sinais<br />
de violência e/ou trauma. “Está na hora de retroceder mais”, pensou.<br />
Luís havia retornado ao útero de sua mãe por quinze minutos, e quando<br />
o psicólogo lhe informou que iria retroceder até o ponto em que<br />
obtivesse alguma lembrança, seu corpo retomou a forma inicial, deitado<br />
com as pernas paralelas e os braços ao lado do corpo, inertes. Deixou o<br />
semblante infantil e novamente configurou-se como o de um jovem<br />
sensato de vinte anos. Mas isso não perdurou por muito tempo.<br />
Passados alguns minutos o psicólogo notou as sobrancelhas desceram e<br />
os olhos apertaram como quando somos atingidos por luz muito forte.<br />
— Pode descrever o lugar onde você está? — perguntou, direto ao<br />
assunto.<br />
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Como acontecia com a maioria dos pacientes, Luís demorou a<br />
responder. Algumas vezes parecia que se esforçava para pronunciar as<br />
palavras, como se uma força extra-corporal o impedisse de exprimi-las.<br />
— Estou numa vila… — segredou instantes depois. — Vejo algumas<br />
cabanas no meio da mata. Tudo muito verde…<br />
As últimas palavras chamaram a atenção do psicólogo, que sem demora<br />
anotou: Visão com distinção de cores. Ele em seguida formulou outra<br />
pergunta:<br />
— E o que você está fazendo?<br />
— Estou segurando uma arma — respondeu, sendo correspondido com o<br />
som do atrito do grafite no papel do bloco de anotações. — Estou<br />
apontando a arma para algumas pessoas… elas estão nuas.<br />
— E quem são?<br />
— Índios. Existem outras pessoas, como eu.<br />
— São teus amigos?<br />
— Não sei… mas também apontam armas para os índios — lamentou. —<br />
Não gosto do sujeito gordo.<br />
— Quem é ele?<br />
— Nosso mandante. Não gosto dele — respondeu, finalizando com um<br />
suspiro.<br />
O psicólogo escrevia rapidamente.<br />
— Por que não gosta dele?<br />
— Não quero fazer o que ele manda.<br />
— Ele quer que vocês atirem nos índios?<br />
— Não — respondeu em tom ríspido. — Ele está mandando arrancar os<br />
olhos deles.<br />
O psicólogo não terminou de escrever. Seus olhos, que naquele<br />
momento miravam o bloco de anotações, percorreram a trajetória mais<br />
curta para chegar ao rosto de Luís. Largou o lápis, perplexo. A expressão<br />
facial do jovem juntamente com a respiração ofegante transpassavam<br />
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uma mistura de angústia e revolta; a camisa encharcada de suor<br />
grudava-lhe o corpo.<br />
— Sabe me dizer o motivo de tal ordem?<br />
— Ele não gosta das pessoas da mata. Poupa somente as meninas que<br />
são transformadas em escravas de seus desejos.<br />
— E o que você fez?<br />
— Ele me ameaçou… — falou, iniciando pranto desesperador. — Se eu<br />
não o obedecesse, ele mataria minha família.<br />
Tremores violentos sacudiram o corpo do jovem, lembrando pessoas que<br />
entram em estado de choque. Ele cobriu os olhos com as mãos e<br />
começou a repetir sem cessar: Não quero ver… não quero ver… não<br />
quero ver… não quero ver…<br />
Ao presenciar os efeitos que as recordações geraram em Luís, o<br />
psicólogo resolveu por fim a sessão.<br />
— Escute-me Luís — solicitou Camilo — você está no ano de 2021,<br />
deitado num divã, e eu, Camilo, estou aqui do seu lado — ele segurou a<br />
mão de Luís. — Vamos voltar lentamente dessa longa viagem. Não se<br />
preocupe. Acalme-se.<br />
Como quem desperta de uma longa noite de sono, Luís lentamente abriu<br />
os olhos e esticou os braços para trás, espreguiçando no divã. Camilo<br />
ajudou-o a sentar.<br />
— O que houve comigo? — perguntou após sentir à camisa úmida.<br />
— Como eu falei na primeira consulta, você saberá somente na última<br />
seção.<br />
— Minha mandíbula dói — reclamou.<br />
Camilo levantou da poltrona para alcançar a bolsa de Luís que estava<br />
sobre a mesa, e colocou-a sobre os joelhos do rapaz, que agradeceu.<br />
— Isso é normal. Se deve a tensão produzida nessa região — Ele foi até<br />
a mesa e pegou a agenda. — E então, em que dia deseja a próxima<br />
sessão?<br />
Luís não respondeu. Massageava suas bochechas.<br />
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— Está tudo bem?<br />
— Sim, claro… é só uma dorzinha… Poderia ser para o dia 9?<br />
— A tarde?<br />
— Ótimo!<br />
Camilo marcou no dia 9 de setembro, duas horas.<br />
Luís abriu a bolsa e retirou um bastão de alumínio que se desdobrou<br />
quando ele levantou.<br />
— Venha comigo — disse Camilo, enganchando no braço direito de Luís<br />
— esses meus tapetes são perigosos!<br />
Em frente ao elevador, Luís esticou a mão para o aperto de despedida.<br />
— Muito obrigado, doutor. Estou ansioso por saber tudo o que falei.<br />
— E eu estou ansioso para lhe contar — respondeu o psicólogo que, ao<br />
voltar-se para dentro do consultório, lembrou: — Ah, estava<br />
esquecendo… boa sorte na cirurgia!<br />
— Obrigado — respondeu Luís, entrando receoso no elevador.<br />
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