18.05.2013 Views

aspectos eclesiológicos da comunidade de antônio conselheiro

aspectos eclesiológicos da comunidade de antônio conselheiro

aspectos eclesiológicos da comunidade de antônio conselheiro

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

INSTITUTO SANTO INÁCIO<br />

FACULDADE JESUÍTICA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA<br />

JOSÉ WILSON ANDRADE<br />

A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA E SOCIOPOLÍTICA DE CANUDOS<br />

ASPECTOS ECLESIOLÓGICOS DA COMUNIDADE DE ANTÔNIO CONSELHEIRO<br />

Dissertação <strong>de</strong> Mestrado<br />

Orientador: Prof. Dr. João Batista Libanio<br />

BELO HORIZONTE – MINAS GERAIS<br />

2006


INSTITUTO SANTO INÁCIO<br />

FACULDADE JESUÍTICA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA<br />

JOSÉ WILSON ANDRADE<br />

A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA E SOCIOPOLÍTICA DE CANUDOS<br />

ASPECTOS ECLESIOLÓGICOS DA COMUNIDADE DE ANTÔNIO CONSELHEIRO<br />

Dissertação apresenta<strong>da</strong> à Banca Examinadora do<br />

Instituto Santo Inácio, Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> Jesuítica <strong>de</strong><br />

Filosofia e Teologia, como exigência parcial para<br />

obtenção do título <strong>de</strong> Mestre em Teologia, sob a<br />

orientação do Dr. João Batista Libanio.<br />

Dissertação <strong>de</strong> Mestrado<br />

Orientador: Prof. Dr. João Batista Libanio<br />

BELO HORIZONTE – MINAS GERAIS<br />

2006


AGRADECIMENTOS<br />

Ao querido Dom Esmeraldo Barreto <strong>de</strong> Farias, bispo <strong>da</strong> Diocese <strong>de</strong> Paulo Afonso – BA.,<br />

por ter me liberado para essa aventura, não obstante a carência <strong>de</strong> padres e as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

financeiras <strong>da</strong> Diocese. Sempre apostou na formação dos leigos e padres.<br />

Ao querido gran<strong>de</strong> orientador Pe. Libanio, pelas suas sábias “dicas”. Foi uma alegria tê-lo<br />

como professor e, ain<strong>da</strong> mais, como orientador.<br />

Ao amigo Pe. Charles <strong>da</strong> Diocese <strong>de</strong> Grajaú – MA, pelo acompanhamento sistemático;<br />

Oscar José Ramos, <strong>da</strong> Paróquia Nossa Senhora Mãe <strong>da</strong> Igreja – Belo Horizonte, católico<br />

fervoroso, pelas “dicas” <strong>da</strong> língua portuguesa e pelas conversas sobre o tema. Ao meu irmão<br />

Antônio Mendonça, pelo estímulo ao Mestrado. A Raimundo, irmão marista, pela aju<strong>da</strong> na<br />

tradução para a língua francesa. Ao companheiro no Ministério, Pe. Hélio Raso, pelos elogios.<br />

Aos professores <strong>da</strong> Companhia <strong>de</strong> Jesus, pela partilha do saber, <strong>de</strong> modo especial ao Pe.<br />

Konings, que me incentivou no aprofun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> temática <strong>de</strong> Canudos.<br />

Aos amigos <strong>da</strong> Província do Brasil Centro-Leste <strong>da</strong> Companhia <strong>de</strong> Jesus, pelo<br />

apoio financeiro, sem o qual não seria possível esse estudo. Estendo o reconhecimento ao Centro<br />

<strong>de</strong> Estudos Superiores <strong>da</strong> Companhia <strong>de</strong> Jesus, na pessoa dos padres Mac Dowell, Vitório e Ir.<br />

Carmelita, pela bolsa institucional.<br />

estes anos.<br />

Aos amigos <strong>da</strong> Adveniat pelo computador, parte dos livros, plano <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, etc., durante<br />

Ao Pe. Célio (Paróquia Rainha <strong>da</strong> Paz), Pe. Fernando (Paróquia Santo Inácio <strong>de</strong> Loyola),<br />

Pe. Carlinhos (Paróquia Santa Inês) e Pe. Danilo (Paróquia Mãe <strong>da</strong> Igreja), pelo apoio pastoral.<br />

A todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para que este projeto se realizasse,<br />

especialmente pelo atendimento sempre cordial e carinhoso <strong>de</strong> Dulcinéia Gui<strong>de</strong>s, na Secretaria <strong>da</strong><br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong>.


ÍNDICE GERAL<br />

Índice geral.....................................................................................................................................03<br />

Resumo...........................................................................................................................................06<br />

Resumé...........................................................................................................................................07<br />

INTRODUÇÃO............................................................................................................................08<br />

1- Motivação inicial.......................................................................................................................08<br />

2- Pretensões...................................................................................................................................09<br />

3- Organização do trabalho.............................................................................................................10<br />

4- Nossa opção................................................................................................................................11<br />

5- Opção hermenêutica...................................................................................................................14<br />

CAPÍTULO I<br />

ANTÔNIO CONSELHEIRO E CANUDOS.......................................................................16<br />

1.1. Origem, formação humana e religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..............................................17<br />

1.2. Formação religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro...........................................................................19<br />

1.3. Antônio Conselheiro, Padre Ibiapina e Padre Cícero <strong>de</strong> Juazeiro...........................................22<br />

2.3.1- Antônio Conselheiro e o Padre Ibiapina.......................................................................23<br />

2.3.2- Antônio Conselheiro e o Padre Cícero..........................................................................26<br />

1.4. Padre Ibiapina, Padre Cícero e Conselheiro: semelhanças e <strong>de</strong>ssemelhanças.........................28<br />

1.5. Contextualização do Nor<strong>de</strong>ste do Brasil no tempo <strong>de</strong> Antônio Conselheiro........................32<br />

1.6. A Conjuntura eclesial..............................................................................................................36<br />

1.7. De Antônio Vicente Men<strong>de</strong>s Maciel a Antônio Conselheiro: história <strong>de</strong> um Beato<br />

Conselheiro.....................................................................................................................................43<br />

Conclusão.......................................................................................................................................48


CAPÍTULO II<br />

UNIVERSO RELIGIOSO DE ANTÔNIO CONSELHEIRO......................................50<br />

2.1. As fontes do projeto <strong>de</strong> Antônio Conselheiro.........................................................................51<br />

2.2.1. Alcance e limites <strong>da</strong> interpretação marxista.............................................................58<br />

2.2.2. A utilização <strong>da</strong> Bíblia Sagra<strong>da</strong>..................................................................................63<br />

2.2.3. A Missão Abrevia<strong>da</strong> como livro <strong>de</strong> cabeceira..........................................................64<br />

2.2.4. Obra manuscrita por Antônio Conselheiro...............................................................71<br />

2.2. Descrição do imaginário religioso <strong>de</strong> Antônio Conselheiro....................................................75<br />

2.2.1- As dores <strong>de</strong> Nossa Senhora......................................................................................77<br />

2.2.2. Os Dez Man<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> lei <strong>de</strong> Deus.......................................................................80<br />

2.2.3. Textos tirados <strong>da</strong> Sagra<strong>da</strong> Escritura..........................................................................82<br />

2.2.4. Prédicas <strong>de</strong> circunstâncias e discursos......................................................................84<br />

2.2.4.1- Sobre a Cruz..........................................................................................................86<br />

2.2.4.2- Sobre a Missa........................................................................................................88<br />

2.2.4.3- Sobre a confissão...................................................................................................89<br />

2.2.4.4- Sobre as maravilhas <strong>de</strong> Jesus.................................................................................91<br />

2.2.4.5- Construção e edificação do templo <strong>de</strong> Salomão....................................................92<br />

2.2.4.6- Sobre o recebimento <strong>da</strong> chave <strong>da</strong> Igreja <strong>de</strong> Santo Antônio, Padroeiro do Belo<br />

Monte..................................................................................................................................93<br />

2.2.4.7- Sobre a parábola do semeador...............................................................................94<br />

2.2.4.8- Sobre a República, o casamento civil, a família imperial, a libertação dos<br />

escravos...............................................................................................................................95<br />

2.2.4.9- Prédica <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedi<strong>da</strong>.............................................................................................98<br />

2.3. Tentativa <strong>de</strong> uma leitura sistemática do pensamento teológico do Conselheiro.....................99<br />

2.3.1- O Deus Criador, Misericordioso e Onipotente.......................................................103<br />

2.3.2- Concepção sobre Jesus Cristo................................................................................106<br />

2.3.3- A idéia sobre o Espírito Santo................................................................................107<br />

2.3.4- A idéia sobre a Igreja Católica...............................................................................105<br />

2.3.5- A idéia sobre o papa, car<strong>de</strong>ais e bispos..................................................................109<br />

2.4- O enfrentamento <strong>de</strong> Masseté.................................................................................................111 5<br />

2.5- A comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> solidária <strong>de</strong> Canudos.....................................................................................111<br />

2.6- Por que a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos constituiu-se um perigo para a República?...................117<br />

4


2.7- A participação <strong>da</strong> Igreja Católica na <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> Canudos................................................124<br />

Conclusão.....................................................................................................................................130<br />

CAPÍTULO III<br />

ELEMENTOS ECLESIOLÓGICOS DA COMUNIDADE DE CANUDOS........................134<br />

3.1- Natureza eclesial do movimento <strong>de</strong> Canudos.......................................................................139<br />

3.2- A eclesiologia subjacente em Canudos.................................................................................139<br />

3.3- A relação <strong>de</strong> Antônio Conselheiro com as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s eclesiásticas....................................149<br />

3.4- Canudos: Igreja pobre acolhendo os pobres..........................................................................152<br />

3.5- Os colaboradores diretos na Igreja dos pobres em Belo Monte............................................155<br />

3.6- Outras manifestações religiosas em Canudos.......................................................................165<br />

3.7- Características fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> Igreja <strong>de</strong> Canudos..............................................................167<br />

3.7.1- Uma Igreja fun<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo Bom Jesus......................................................................167<br />

3.7.2- Uma Igreja alicerça<strong>da</strong> na sucessão apostólica........................................................168<br />

3.7.3- Uma Igreja pobre e para os pobres.........................................................................171<br />

3.8- Fun<strong>da</strong>mentos bíblicos e teológicos <strong>da</strong> eclesiologia <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos..................174<br />

Conclusão..........................................................................................................................177<br />

CONCLUSÃO GERAL.............................................................................................................179<br />

BIBLIOGRAFIA........................................................................................................................188<br />

5


RESUMO<br />

O presente texto examina a história <strong>da</strong> Guerra <strong>de</strong> Canudos, pelo viés dos “vencidos”: seus<br />

<strong>aspectos</strong> históricos e <strong>eclesiológicos</strong>. A partir dos manuscritos <strong>de</strong>ixados por Antônio Conselheiro,<br />

este trabalho apresenta uma leitura do universo religioso do Conselheiro, lí<strong>de</strong>r principal <strong>da</strong> Igreja<br />

do Belo Monte, este conhecido por Canudos. Ele li<strong>de</strong>rou uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> que se constituiu em<br />

uma alternativa para o povo sertanejo, submergido na crise política, econômica e religiosa, no<br />

final do século XIX. Quer-se com isso discutir a natureza <strong>da</strong> experiência <strong>da</strong> grei canu<strong>de</strong>nse: seus<br />

<strong>aspectos</strong> político-sociais e <strong>eclesiológicos</strong>. Preten<strong>de</strong>-se mostrar, ain<strong>da</strong>, os elementos <strong>eclesiológicos</strong><br />

presentes na experiência <strong>da</strong> Igreja <strong>de</strong> Canudos e suas conseqüências para a igreja católica hoje.<br />

Palavras-chaves: Guerra <strong>de</strong> Canudos, movimento social, movimento popular, religião,<br />

igreja católica, eclesiologia, comunhão eclesial, teologia sistemática, práxis cristã, recepção <strong>da</strong><br />

Bíblia Sagra<strong>da</strong>, comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> cristã, li<strong>de</strong>rança cristã.


Resumé<br />

Le présent texte examine l´histoire <strong>de</strong> la Guerre <strong>de</strong>s “Canudos”, selon la biais <strong>de</strong>s vaincus:<br />

ses aspects historiques et éclésiologiques. À partir <strong>de</strong>s manuscrits laissés par Antônio<br />

Conselheiro, ce travail présente une lecture <strong>de</strong> l´univers réligieu du Conselheiro, chef principal <strong>de</strong><br />

l´Eglise du “Bello Monte” (Belle Montagne), celui-ci connu par le nom <strong>de</strong> Canudos. Il a<br />

commandé une communauté que s´est constituée en une alternative pour la population <strong>de</strong> la<br />

région (<strong>de</strong> l´intérieur) submergée <strong>da</strong>ns la crise politique, économique et religieuse, à la fin du<br />

disneuvième siècle. Ainsi, on veut discuter la nature <strong>de</strong> l´expérience <strong>de</strong> la communauté <strong>de</strong>s<br />

Canudos: ses aspects politiques, sociaux et éclésiologiques. On prétend montrer encore, les<br />

éléments éclésiologiques présents <strong>da</strong>ns l´expérience <strong>de</strong> l´Eglise <strong>de</strong>s Canudos et ses conséquences<br />

pour l´Eglise catholique d´aujourdhui.<br />

Mots principaux (importants): Guerre <strong>de</strong>s Canudos, mouvement populaire, réligion, église<br />

catholique, éclésiologie, communion éclésiale, théologie sistématique, práxis chrétienne,<br />

réception <strong>de</strong> la Sainte Bible, communauté chrétienne, lidérance chrétienne.


1- Motivação inicial<br />

INTRODUÇÃO<br />

O primeiro contato sério que tive com a literatura sobre Antônio Conselheiro e Canudos<br />

<strong>de</strong>u-se quase por acaso. No final <strong>de</strong> 1990, após ter concluído licenciatura em Filosofia, na<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Católica do Salvador, estava finalizando o Bacharelado em Teologia, quando<br />

apareceu um anúncio no Jornal A Tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong> Salvador, comunicando um Curso <strong>de</strong> extensão<br />

universitária sobre Canudos, 1 na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>da</strong> Bahia, <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> setembro a 11 <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1990, ministrado pela professora Noemi Salgado Soares. No final do curso <strong>de</strong><br />

teologia, iria eu residir na Diocese <strong>de</strong> Paulo Afonso (BA), nas proximi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Canudos: eis a<br />

motivação principal para melhor conhecer Antônio Conselheiro e a história <strong>de</strong> seu povo.<br />

O curso foi um aperitivo. Despertou-me interesse para aprofun<strong>da</strong>r a história <strong>de</strong> Canudos.<br />

Deu-me a munição necessária para entrar na Comissão <strong>da</strong> Romaria <strong>de</strong> Canudos, <strong>de</strong> 1991 a 2002,<br />

participar <strong>da</strong> criação do Instituto popular Memorial <strong>de</strong> Canudos, do qual fui secretário <strong>de</strong> 1993 a<br />

1996 e presi<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong> 1996 a 1999. Nesse intervalo, tive oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> participar, na quali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>batedor e palestrante, <strong>de</strong> diversos seminários, em universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, Assembléia Legislativa,<br />

Câmara dos Deputados, Câmara <strong>de</strong> Vereadores, colégios, igrejas, etc.<br />

1 Tema do curso: “A mentali<strong>da</strong><strong>de</strong> do homem sertanejo <strong>de</strong> Canudos: análise literária e análise antropológica”.


9<br />

Essa militância na atuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos, especialmente nos dois gran<strong>de</strong>s centenários: o<br />

<strong>da</strong> chega<strong>da</strong> <strong>de</strong> Antônio Conselheiro a Canudos (1993) e o <strong>da</strong> <strong>de</strong>struição do arraial (1997),<br />

iluminou-me na <strong>de</strong>cisão <strong>da</strong> escolha do tema <strong>de</strong>sta Dissertação <strong>de</strong> Mestrado: A experiência<br />

Religiosa e Sociopolítica <strong>de</strong> Canudos: <strong>aspectos</strong> <strong>eclesiológicos</strong> <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Antônio<br />

Conselheiro. Minha monografia <strong>de</strong> Pós-Graduação em Ensino Religioso, apresenta<strong>da</strong> na<br />

Pontifícia Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Católica <strong>de</strong> Minas Gerais, em 2004, versou sobre um tema semelhante: A<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos: uma experiência religiosa ou político-social?<br />

2- Pretensões<br />

Este estudo nasceu, assim, <strong>de</strong> uma longa experiência pastoral junto ao Canudos atual.<br />

Perceber os diversos olhares que se entrecruzam num movimento como Canudos é enriquecedor,<br />

muito revela sobre os sujeitos sociais nele envolvidos. Levando em consi<strong>de</strong>ração to<strong>da</strong> a parte<br />

histórica <strong>de</strong> Canudos, presente no primeiro capítulo, nosso olhar sobre Canudos é teológico ou,<br />

mais especificamente, eclesiológico. Nossa aproximação visa particularizar tal abor<strong>da</strong>gem,<br />

procurando enfocar <strong>aspectos</strong> mais <strong>eclesiológicos</strong> e respon<strong>de</strong>r a algumas perguntas: 1- Foi a<br />

experiência do séquito <strong>de</strong> Antônio Conselheiro uma motivação <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m meramente político-<br />

social, ou <strong>de</strong> natureza religiosa? 2- Por que a experiência <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos <strong>de</strong>sperta<br />

tanta controvérsia entre historiadores, cientistas sociais e religiosos? 3- Qual a novi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

eclesiológica subjacente na experiência <strong>da</strong> Igreja em Canudos? 4- Que tipo <strong>de</strong> contribuição a<br />

Teologia po<strong>de</strong>ria <strong>da</strong>r para uma melhor compreensão do aspecto teológico, no diálogo com as<br />

ciências humanas e sociais? Fun<strong>da</strong>mentalmente preten<strong>de</strong>mos realçar os <strong>aspectos</strong> <strong>eclesiológicos</strong><br />

<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Antônio Conselheiro.


3- Organização do trabalho<br />

Esta pesquisa divi<strong>de</strong>-se em três capítulos. O primeiro apresenta a história <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

Antônio Conselheiro, principal ator do acontecimento Canudos: sua história <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, formação<br />

humana, intelectual e religiosa. Ressaltar-se a contextualização histórica e sociológica do Brasil,<br />

o contexto específico do Nor<strong>de</strong>ste do final do século XIX, os interesses políticos <strong>da</strong>s forças<br />

sociais, o <strong>de</strong>slocamento do eixo <strong>da</strong> economia nacional, o fim do ciclo <strong>da</strong> cana-<strong>de</strong>-açúcar no<br />

Nor<strong>de</strong>ste e a ascensão do cultivo <strong>da</strong> borracha e do café, respectivamente, no Norte e Su<strong>de</strong>ste do<br />

Brasil. Finaliza com uma análise <strong>da</strong> conjuntura eclesial: o papel do catolicismo popular, a<br />

romanização verso religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> popular, o encontro entre Padre Ibiapina, Padre Cícero e<br />

Antônio Conselheiro.<br />

O segundo capítulo apresenta o universo religioso <strong>de</strong> Antônio Conselheiro; analisa as<br />

fontes do projeto do Peregrino, a utilização <strong>da</strong> Bíblia, a Missão Abrevia<strong>da</strong> e os Manuscritos do<br />

Beato, publicados por Ataliba Nogueira. Destacam-se, ain<strong>da</strong>, a ortodoxia <strong>da</strong> catequese ensina<strong>da</strong><br />

pelo Conselheiro no acampamento: os sacramentos (batismo, eucaristia e penitência), a missa, os<br />

Dez Man<strong>da</strong>mentos, etc., a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> solidária, sua <strong>de</strong>struição e o papel <strong>da</strong> Igreja Católica no<br />

episódio.<br />

Finalmente, o terceiro capítulo apresenta os elementos <strong>eclesiológicos</strong> <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Canudos, sempre partindo <strong>de</strong> textos manuscritos por Antônio Conselheiro. Aqui se apresentam a<br />

natureza eclesial do movimento <strong>de</strong> Canudos, a eclesiologia subjacente na grei, o contato do<br />

Peregrino com as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s eclesiásticas, a forma <strong>de</strong> acolhi<strong>da</strong> em Canudos, os ministérios, as<br />

características fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> Igreja em Canudos.<br />

10


4- Nossa opção<br />

Optamos, ao logo <strong>da</strong> pesquisa, por alguns autores: Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha, Abelardo<br />

Montenegro, Edmundo Muniz, Rui Facó, José Calazans, Marco Antônio Villa e Alexandre Otten.<br />

Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha é a “porta <strong>de</strong> entra<strong>da</strong>” para Canudos. Os Sertões não per<strong>de</strong>u o caráter <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong> obra <strong>da</strong> literatura brasileira. De Os Sertões, <strong>de</strong>rivam uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> obras, contra ou a<br />

favor. Diante <strong>de</strong>sse escrito <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha é sempre possível reação. Durante quase cem<br />

anos, ele exerceu forte influência no pensamento dos intelectuais brasileiros. Por muito tempo,<br />

não se conseguia superar essa monumental obra, acusa<strong>da</strong> por autores contemporâneos <strong>de</strong> ter<br />

“engaiolado” a história <strong>da</strong> Guerra <strong>de</strong> Canudos, em uma única versão: a oficial. É preciso<br />

reconhecer o valor <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha. Porém, outros ventos sopraram na historiografia<br />

brasileira, nas últimas déca<strong>da</strong>s.<br />

Optamos também por Abelardo Montenegro, Rui Facó e Edmundo Moniz. Eles nos<br />

proporcionam uma boa reflexão sobre os <strong>aspectos</strong> marxistas, a dimensão do comunismo<br />

primitivo em Canudos. Levantaram muitas dúvi<strong>da</strong>s sobre visões ti<strong>da</strong>s como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras sobre o<br />

Beato. Edmundo Moniz foi acusado <strong>de</strong> i<strong>de</strong>alizar Canudos, enquadrá-lo num igualitarismo<br />

romântico, sem comprovação histórica e <strong>de</strong> não apresentar fun<strong>da</strong>mentação teórica. A visão <strong>de</strong><br />

Abelardo e a <strong>de</strong> Rui Facó partem do mesmo referencial teórico que Edmundo Moniz, porém com<br />

maior fun<strong>da</strong>mentação bibliográfica. Abelardo Montenegro é rico em <strong>de</strong>talhes, muito citado por<br />

autores mo<strong>de</strong>rnos e apresenta uma vasta bibliografia. Rui Facó estruturou seu livro no que<br />

Hoornaert caracterizou <strong>de</strong> “esquema mecanicista <strong>de</strong> caráter marxista”. 2 Seu livro apresenta uma<br />

base para ler Canudos <strong>de</strong> forma crítica, especialmente na compreensão do “jogo” <strong>da</strong>s forças do<br />

Estado o do enfrentamento dos movimentos sociais. Seu enfoque é um excelente instrumental<br />

teórico <strong>de</strong> viés marxista. Porém, não conseguiu superar a imagem fun<strong>da</strong>mental <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong><br />

2 HOORNEAT, Eduardo, Os anjos <strong>de</strong> Canudos: revisão histórica, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 3.<br />

11


Cunha, Maria Isaura <strong>de</strong> Queirós, Gilberto Freyre e Djacir Menezes dos “dois brasis”. 3 Abelardo<br />

Montenegro, Rui Facó e Edmundo Moniz estimularam a pesquisa sobre Canudos.<br />

José Calazans tomou outro caminho. Foi um dos pioneiros na revisão histórica. Procurou<br />

auscultar o povo, especialmente alguns sobreviventes <strong>da</strong> guerra. Valorizou e preferiu pisar o chão<br />

firme do relato preciso dos fatos históricos. Visitou diversas vezes a região do Vaza-Barris.<br />

Tornou-se o “pai <strong>da</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong>” sobre a Guerra <strong>de</strong> Canudos. “No seu discurso, na<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

“extraordinário” aparece em Canudos, nem socialismo, nem igualitarismo, nem exaltação<br />

religiosa”. 4 José Calazans iniciou seus estudos históricos sobre Canudos no início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

1940, com mais <strong>de</strong> 50 anos <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicação. Foi pioneiro na revisão histórica. Superou a visão<br />

dicotômica <strong>de</strong> povo em “dois brasis”: a do litoral e o sertão. Costuma-se dizer que ele nos<br />

libertou <strong>da</strong>s “amarras” euclidianas: “<strong>de</strong>sengaiolou” Canudos e o entregou aos estudiosos.<br />

Segundo Eduardo Hoornaert, José Calazans “pertence à corrente historiográfica dos que<br />

preten<strong>de</strong>m interpretar o Brasil a partir do Brasil, e não <strong>de</strong> esquemas interpretativos importados”. 5<br />

Marco Antônio Villa trata do Canudos mais especificamente histórico. Ele reconstrói<br />

<strong>da</strong>dos factuais, há tempos submersos no esquecimento. A obra <strong>de</strong> Marco Antônio Villa propõe-se<br />

apresentar uma visão <strong>de</strong> totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos. Por ser um autor crítico, apresenta uma análise <strong>de</strong><br />

certas visões cristaliza<strong>da</strong>s, sempre partindo <strong>de</strong> documentos históricos e, muitos, até raros.<br />

Diferentemente <strong>de</strong> Alexandre Otten, afirma que a Igreja ficou satisfeita com a <strong>de</strong>struição <strong>de</strong><br />

Canudos e comemorou a volta dos militares. Sua publicação é <strong>de</strong> nível acadêmico, não se per<strong>de</strong><br />

em <strong>de</strong>talhes fúteis.<br />

3 Ibid, p.98.<br />

4 Ibid, p. 95.<br />

5 HOORNAERT, Eduardo, Os anjos <strong>de</strong> Canudos: revisão histórica, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 93.<br />

12


Alexandre Otten, por ser, na concepção <strong>de</strong> José Calazans, a obra mais completa sobre a<br />

história <strong>de</strong> Canudos, 6 é o texto que não <strong>de</strong>ve faltar numa pesquisa que se propõe abor<strong>da</strong>r os<br />

<strong>aspectos</strong> <strong>eclesiológicos</strong> <strong>de</strong> Canudos. Alexandre Otten, pioneiro na abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> Canudos nos<br />

aspetos religiosos, como o subtítulo revela: “a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro” é o<br />

autor mais completo sobre a Guerra <strong>de</strong> Canudos, pelas diferentes interpretações, pela serie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> abor<strong>da</strong>gem, acompanha<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma vasta fun<strong>da</strong>mentação científica. Além <strong>de</strong> tratar <strong>da</strong> parte<br />

histórica, o quarto capítulo apresenta excelente base <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em Canudos, na perspectiva <strong>da</strong><br />

sociologia <strong>da</strong> religião. Especialmente nos capítulos dois e três <strong>de</strong> nossa pesquisa, vamos trabalhar<br />

com o pensamento <strong>de</strong> Alexandre Otten.<br />

Diversos outros autores serão citados no corpo e nas notas do trabalho. O fato <strong>de</strong> não<br />

receberem os <strong>de</strong>staques merecidos, não significa, necessariamente, negar sua importância. Por<br />

mais completa que possa parecer, to<strong>da</strong> fonte carrega seu limite. Nossa opção <strong>de</strong>corre em vista <strong>da</strong><br />

circunscrição <strong>de</strong> páginas. Apreciações críticas serão feitas. Isso faz parte do espírito acadêmico.<br />

Não temos a última palavra sobre Canudos. Esperamos colaborar para melhor conhecer e fazer<br />

justiça ao que Antônio Conselheiro e sua gente significaram para a Igreja e, assim, colaborar para<br />

o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> ciência.<br />

Tenho consciência <strong>de</strong> que não vamos <strong>da</strong>r a ultima palavra sobe esse tema. O pensamento<br />

<strong>de</strong> Ronhus Zuurmond sobre as fontes <strong>da</strong> Cristologia, guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>s proporções, também<br />

vale para dá o valor <strong>de</strong>vido aos autores <strong>de</strong> nossa opção e aos que não entraram na escolha, no<br />

<strong>de</strong>correr do trabalho.<br />

Mesmo quando fi<strong>de</strong>digna, uma fonte focaliza apenas <strong>de</strong>terminado aspecto do ocorrido.<br />

Nunca po<strong>de</strong> ser abarca<strong>da</strong> a totali<strong>da</strong><strong>de</strong> do acontecimento, tanto por falta <strong>de</strong> testemunhas<br />

como pelo fato <strong>de</strong> que <strong>da</strong>dos importantes <strong>de</strong> to<strong>da</strong> espécie (motivos coletivos e individuais,<br />

processos intrincados <strong>de</strong> causa e efeito, circunstâncias fortuitas) sempre estão e<br />

permanecerão ocultos. Nunca enxergamos tudo, nem quando as coisas se passam na frente<br />

6 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é Gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, São Paulo: Loyola,<br />

1990.<br />

13


<strong>de</strong> nosso nariz, e muito menos quando estamos a séculos <strong>de</strong> distância do que é <strong>de</strong>scrito.<br />

Querer imagens <strong>de</strong>finitivas é uma ilusão. 7<br />

A ca<strong>da</strong> fonte <strong>de</strong>scoberta é um novo avanço no campo <strong>da</strong> ciência histórica e teológica.<br />

On<strong>de</strong> existe vi<strong>da</strong> humana envolvi<strong>da</strong>, há mistério a ser <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>do. Diante do mistério <strong>da</strong><br />

existência humana, com seus feitos, atitu<strong>de</strong>s e façanhas é ingênuo querer enquadrá-lo totalmente<br />

em teorias objetivas. Isso não significa que os estudos não tenham valor. Falando do mistério<br />

trinitário, Boff apelou para o silêncio. Também po<strong>de</strong>mos silenciar. Porém,<br />

calemos somente no fim do esforço <strong>de</strong> falarmos o mais a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>mente possível <strong>da</strong>quela<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> para a qual não há nenhuma palavra a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>. Calemos no fim e não no<br />

começo. Só no fim o silêncio é digno e santo. No começo seria preguiçoso e irreverente.<br />

As palavras morrem nos lábios. Os pensamentos obscurecem na mente. Mas o louvor<br />

incen<strong>de</strong>ia o coração e a adoração faz dobrar os joelhos. 8<br />

5- Opção hermenêutica<br />

Antes <strong>de</strong> apresentar este trabalho, externo minhas preocupações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m hermenêutica<br />

sobre a historiografia brasileira e, portanto, sobre as publicações e estudos sobre Canudos. Pelo<br />

menos duas reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s interpretativas permeiam a historiografia brasileira. Uma, a ensina<strong>da</strong> nas<br />

escolas oficiais, do pesquisador e historiador Varnhagem, que conta a história ortodoxa do Estado<br />

e <strong>da</strong> Nação, fiel à “ver<strong>da</strong><strong>de</strong> histórica”, à versão dos gran<strong>de</strong>s, dos po<strong>de</strong>rosos, <strong>da</strong>s instituições que<br />

dominam o povo. É a história amplamente divulga<strong>da</strong> nas escolas públicas. Essa versão conta com<br />

vasta documentação, arquivos, monumentos, construções.<br />

Outra orientação vem <strong>de</strong> Capistrano <strong>de</strong> Abreu. Ele documentou a história na perspectiva<br />

<strong>da</strong>s pessoas comuns, dos feitos <strong>de</strong>ixados pelos atores do povo simples, com limitação, é claro.<br />

Um dos problemas <strong>da</strong> historiografia na óptica dos “vencidos” é que eles quase não <strong>de</strong>ixam<br />

monumentos, documentação e outros vestígios. Pouco sabemos, por exemplo, <strong>da</strong> história do<br />

Quilombo dos Palmares, Cangaço, Lampião, Contestado, dos povos indígenas e tantos outros<br />

7 ZUURMUND, Ronhus, Procurais o Jesus histórico?, São Paulo: Loyola, 1998, p. 42.<br />

8 BOFF, Leonardo, A Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>, a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e a libertação, Petrópolis: Vozes, 1986, p. 19.<br />

14


15<br />

levantes em <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, ao longo <strong>de</strong> séculos. Para refazer ou reinterpretar a história dos<br />

pobres, faz-se necessário um trabalho <strong>de</strong> garimpagem. Os pobres e excluídos, mesmo tendo<br />

importância vital no processo histórico, quase sempre são lembrados como marginais, fanáticos,<br />

bandidos, revoltosos e <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iros. Canudos não fugiu a essa lógica.<br />

No tocante à Guerra <strong>de</strong> Canudos, a versão oficial, unilateralmente, tentou enterrar sua<br />

memória nas águas do açu<strong>de</strong> do Cocorobó. 9 Porém, a partir <strong>de</strong> 1945, cresceu o interesse pelo<br />

resgate histórico, versão que vai além <strong>de</strong> Os Sertões, do clássico Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha, superando<br />

uma interpretação preconceituosa e racista sobre o sertanejo. Para Ataliba Nogueira, essa visão<br />

preconceituosa vem sendo purifica<strong>da</strong> “<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as <strong>de</strong>formações propala<strong>da</strong>s pelos partidos<br />

políticos, pela meia-ciência, pelos propósitos inconfessáveis, pela forma literária imaginosa e<br />

sacrificadora <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>”. 10 Os pobres e consi<strong>de</strong>rados vencidos estão com a palavra! Durante o<br />

ano <strong>de</strong> 1997, centenário <strong>da</strong> <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> Canudos, a mídia nacional colocou na or<strong>de</strong>m do dia a<br />

temática <strong>da</strong> experiência ocorri<strong>da</strong> no acampamento e os reais motivos pelos quais o governo<br />

republicano mobilizou quatro expedições militares e promoveu o maior massacre dos próprios<br />

brasileiros <strong>de</strong> nossa história.<br />

Esta pesquisa se propõe trilhar pelo caminho <strong>da</strong> revisão histórico-teológico <strong>da</strong> Guerra <strong>de</strong><br />

Canudos e <strong>da</strong>s lições para nossa vi<strong>da</strong> hoje. Tento garimpar, <strong>de</strong>ntro dos mais <strong>de</strong> cem anos <strong>de</strong><br />

produção literária sobre Canudos, os elementos fun<strong>da</strong>mentais do projeto <strong>de</strong> Antônio Conselheiro<br />

e sua experiência eclesial inovadora na Igreja <strong>de</strong> seu tempo.<br />

9 Cocorobó foi o nome <strong>da</strong> antiga Canudos. Em 1968 foi construído o açu<strong>de</strong> do Cocorobó no local do cenário <strong>da</strong><br />

guerra, com 16km <strong>de</strong> extensão, por 5km <strong>de</strong> largura e 20m <strong>de</strong> profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>, no leito do Rio Vaza-Barris que <strong>de</strong>ságua<br />

no Oceano Atlântico, zona Sul <strong>de</strong> Aracaju – SE. Cf. INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS,<br />

Almanaque <strong>de</strong> Canudos 1999, Paulo Afonso (BA): Fonte Viva, 1998, p. 60 e 82.<br />

10 NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica, São Paulo: Nacional, 1974, p. 1.


CAPÍTULO I<br />

ANTÔNIO CONSELHEIRO E CANUDOS<br />

A primeira parte <strong>de</strong>ste trabalho traça, em linhas gerais, o itinerário histórico <strong>de</strong> Antônio<br />

Conselheiro e o roteiro <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>, situando-o no contexto mais amplo <strong>da</strong> região nor<strong>de</strong>stina do<br />

Brasil, no que diz respeito aos <strong>aspectos</strong> culturais, políticos, econômicos e eclesiais do final do<br />

século XIX.<br />

A segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do referido século, como momento histórico, provocou inquietações na<br />

vi<strong>da</strong> social e religiosa do País, o que causou em Antônio Conselheiro indignação ética e o levou a<br />

buscar novos caminhos <strong>de</strong> soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> para com as vítimas <strong>da</strong>s agitações políticas, sociais e<br />

eclesiais, que caracterizaram o final <strong>de</strong>sse século. Antônio Conselheiro sentiu-se, então, chamado<br />

por Deus para organizar um movimento <strong>de</strong> caráter religioso, com dimensões sociais e políticas,<br />

inserido em um contexto <strong>de</strong> crise <strong>da</strong> Monarquia, <strong>de</strong> implantação <strong>da</strong> República e <strong>de</strong> separação<br />

entre Igreja e Estado.<br />

Este estudo não apresenta exaustiva análise <strong>da</strong> conjuntura social e política do final do<br />

século XIX, nem uma interpretação sociológica dos fatos, mas <strong>de</strong>screve o perfil do lí<strong>de</strong>r Antônio<br />

Conselheiro, <strong>de</strong>staca as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s e as bases <strong>de</strong> sua atuação, o que provocou reação <strong>da</strong>s elites<br />

agrária e política <strong>da</strong> República. A natureza e o alcance do movimento <strong>de</strong>ixaram um enorme<br />

legado para a historiografia brasileira e para a Igreja, o que permitiu que fosse re<strong>de</strong>scoberto o<br />

papel do cristão leigo na sua atuação pastoral. A inserção <strong>de</strong> Antônio Conselheiro no Catolicismo<br />

Popular do final do século XIX, sua formação religiosa, o contato com o Padre Cícero e a


17<br />

experiência com o movimento <strong>da</strong>s Beatas do Padre Ibiapina, proporcionaram-lhe inspiração para<br />

organizar a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> do Belo Monte, como era conhecido o acampamento <strong>de</strong> Canudos.<br />

1.1- Origem e formação humana <strong>de</strong> Antonio Conselheiro<br />

Antônio Vicente Men<strong>de</strong>s Maciel, popularmente conhecido por Antônio Conselheiro 1 ,<br />

nasceu na vila <strong>de</strong> Quixeramobim, então Província do Ceará, aos 14 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1830. Era filho <strong>de</strong><br />

Vicente Men<strong>de</strong>s Maciel e Maria Joaquina <strong>de</strong> Jesus (também conheci<strong>da</strong> por Maria Chana),<br />

conforme assentamento <strong>de</strong> seu batizado. 2 Logo aos seis anos, ficou órfão <strong>de</strong> mãe, juntamente com<br />

suas três irmãs passando a viver com a madrasta. Segundo a tradição, ela tinha sérias<br />

perturbações mentais. Abelardo Montenegro confirma: “A madrasta do pequeno Antônio,<br />

Francisca Maria Maciel, consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> ‘mulher geniosa, que não poupava maus tratos’, irritava-se<br />

com o marido e <strong>de</strong>sforrava-se nos enteados. Chamava o pequeno Antônio <strong>de</strong> mandrião e sem<br />

vergonha”. 3 Seu pai, Vicente Men<strong>de</strong>s Maciel, após ser obrigado a <strong>de</strong>ixar o campo, tornou-se<br />

comerciante e construtor, edificando algumas casas na praça principal <strong>de</strong> Quixeramobim.<br />

Maciel originou-se <strong>de</strong> uma família resi<strong>de</strong>nte em Vila Nova, lugarejo entre Tamboril e<br />

Quixeramobim, em conflito com os Araújos, por questões <strong>de</strong> terra, nas acirra<strong>da</strong>s disputas no<br />

interior <strong>da</strong> Província cearense (motivo que o obrigou a migrar para a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>). Antônio Vicente<br />

teve uma vi<strong>da</strong> conturba<strong>da</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início. Seu pai começou a vi<strong>da</strong> como vaqueiro e foi obrigado a<br />

1 No <strong>de</strong>correr do trabalho, usaremos os diversos títulos atribuídos a Antônio Vicente Men<strong>de</strong>s Maciel, durante sua<br />

vi<strong>da</strong> e cristalizados na literatura atual: “Antônio Maciel”, “Antônio Vicente Maciel”, “Antônio Conselheiro”, “O<br />

Conselheiro”, “O Peregrino”, “O Peregrino do sertão”, “Santo Antônio”, “Antônio Aparecido”, “Santo Antônio<br />

Aparecido”, “Antônio dos Mares”, “O Bom Jesus”, “O Ermitão Antônio Conselheiro”.<br />

2 Conforme cópia do original <strong>da</strong> certidão <strong>de</strong> batismo, que se encontra no acervo do Instituto Popular Memorial <strong>de</strong><br />

Canudos (IPMC), na atual ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos – BA, a 420Km <strong>de</strong> Salvador, com o seguinte teor: “Aos vinte e dois<br />

<strong>de</strong> maio <strong>de</strong> mil oitocentos e trinta, batizei e pus os santos óleos nesta Matriz <strong>de</strong> Quixeramobim ao párvulo Antônio<br />

pardo nascido aos treze <strong>de</strong> março do mesmo ano supra, filho natural <strong>de</strong> Maria Joaquina: foram padrinhos, Gonçalo<br />

Nunes Leitão e Maria Francisca <strong>de</strong> Paula. Do que, para constar, fiz este termo, em que me assinei. O vigário,<br />

Domingos Álvaro Vieira”. Gran<strong>de</strong> parte dos autores divulga incorretamente 1828 como o ano do nascimento <strong>de</strong><br />

Antônio Conselheiro.<br />

3 MONTINEGRO, Abelardo F., Fanáticos e cangaceiros, Fortaleza: Henrique Galeno, 1973, p. 114.


18<br />

fixar-se em Quixeramobim, distanciando-se dos confrontos com os Araújos, “que<br />

ensangüentavam o sertão cearense <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início do século XIX”. 4 Para Manoel Benício, os<br />

Maciéis formavam uma família numerosa, <strong>de</strong> homens álidos, ágeis, inteligentes e bravos, que<br />

faziam parte <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s fastos criminais do interior <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> Província, em guerra <strong>de</strong> família,<br />

nas cercanias <strong>de</strong> Quixeramobim e Tamboril. Os confrontos se <strong>de</strong>ram com os Araújos, distinta<br />

família rica, filia<strong>da</strong> a outras <strong>da</strong>s mais antigas do norte <strong>da</strong> Província. “Foi uma <strong>da</strong>s lutas mais<br />

sangrentas dos sertões do Ceará a que se travou entre estes dois grupos <strong>de</strong> homens, <strong>de</strong>siguais na<br />

fortuna e posição oficial, ambos embravecidos na prática <strong>da</strong>s violências”. 5 Naquele tempo,<br />

imperava a “lei do mais forte”. Uma certa feita, um tal Silvestre Rodrigues Veras, resi<strong>de</strong>nte no<br />

termo <strong>de</strong> Vila Nova, <strong>de</strong>clarou guerra <strong>de</strong> extermínio aos Maciéis ou Carlos. “Pertencente à<br />

po<strong>de</strong>rosa família dos Araújos, que controlava as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s locais, pôs em jogo a influência<br />

clânica, forçando os Maciéis a abandonarem a Vila Nova e virem para Quixeramobim”. 6 Silvestre<br />

conseguiu uma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> prisão e fez uma tentativa <strong>de</strong> pren<strong>de</strong>r os Maciéis que, avisados,<br />

reagiram, provocando a retira<strong>da</strong> dos ameaçadores. “Os inimigos dos Maciéis, não po<strong>de</strong>ndo<br />

prendê-los, convi<strong>da</strong>ram para auxiliá-los o capitão do mato José Joaquim Meneses, que, vindo <strong>de</strong><br />

Fortaleza, ia para o Piauí acompanhado <strong>de</strong> sicários e do terrível Vicente Lopes”. 7 Sem<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> reação, os Maciéis se entregaram. Essa atitu<strong>de</strong> não foi capaz <strong>de</strong> aplacar a fúria<br />

dos perseguidores. “Meneses passou os presos aos Araújos e Veras que, no dia 9 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong><br />

2833, entre as fazen<strong>da</strong>s Convento e Araras, entre Quixeramobim e Sobral, simulando um ataque à<br />

4 VILLA, Marco Antônio, Canudos, o povo <strong>da</strong> terra, São Paulo: Ática, 1995, p. 14.<br />

5 BENÍCIO, Manoel, O rei dos jagunços: crônica histórica e <strong>de</strong> costumes sertanejos sobre os acontecimentos <strong>de</strong><br />

Canudos, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Fun<strong>da</strong>ção Getúlio Vargas, 1997, p. 7. “Boa Viagem, pequena povoação, estava em<br />

gran<strong>de</strong> afini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> interesses, pela sua indústria pastoril, com Santa Quitéria, Vila Nova e Tamboril, cujos valentões<br />

tinham muita fama por esses tempos e influíram gran<strong>de</strong>mente nas lutas sertanejas. Era do número <strong>de</strong>les o célebre<br />

José Joaquim <strong>de</strong> Meneses, oriundo <strong>de</strong> Pernambuco, corajoso até a temeri<strong>da</strong><strong>de</strong>; o afamado Vicente Lopes; os<br />

Mourões; João <strong>da</strong> Costa Alecrim e outros”. Ibi<strong>de</strong>m.<br />

6 MONTENEGRO, Abelardo F, Fanáticos e cangaceiros..., p. 111.<br />

7 MONTENEGRO, Abelardo F, Fanáticos e cangaceiros..., p. 111.


escolta, os assassinaram”. 8 Dois irmãos, chefes <strong>de</strong> família dos Maciéis, tombaram: Manuel Carlos<br />

Maciel e Antônio Maciel.<br />

As famílias sem influências políticas e econômicas eram con<strong>de</strong>na<strong>da</strong>s ao silêncio ou a<br />

migrar para outras áreas, distantes dos coronéis do sertão. Nesse tempo, o Doutor Ibiapina, que<br />

posteriormente seria missionário católico, exercia o cargo <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Direito na Comarca <strong>de</strong><br />

Quixeramobim e protegia os Maciéis. Dr. Ibiapina foi famoso por ser um juiz justo e, por esta<br />

razão, uma outra família “valentona”, conheci<strong>da</strong> por Miguel, se sentia intimi<strong>da</strong><strong>da</strong>. Entretanto,<br />

Doutor Ibiapina era substituído pelo Juiz leigo Antônio Duarte <strong>de</strong> Queiroz, parente dos Araújos,<br />

que iniciou uma forte perseguição aos Maciéis. 9 Os mais fracos estavam entregues ao “Deus<br />

<strong>da</strong>rá”. Foi nesse ambiente familiar e social que Antônio foi formando a personali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil,<br />

agregando a isso posteriormente, a escola, a experiência religiosa e os enfrentamentos políticos.<br />

1.2- Formação religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro<br />

Mesmo sabendo-se que o homem não é somente produto do meio - no caso, o sertão -<br />

marcado pelos conflitos <strong>de</strong> terra, as brigas políticas, o abandono <strong>da</strong>s populações sertanejas e os<br />

conflitos familiares foi esse ambiente a primeira escola na vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Antônio Vicente Men<strong>de</strong>s<br />

Maciel. O pai <strong>de</strong> Antônio Vicente sonhava que o filho fosse padre. Procurou colocá-lo na escola<br />

do professor Manuel Antônio Ferreira Nobre, on<strong>de</strong> o menino teria uma base razoável <strong>de</strong><br />

português, latim e francês. Não se tem conhecimento dos motivos que <strong>de</strong>sencaminharam o<br />

menino <strong>da</strong> vocação sacerdotal. Abelardo Montenegro afirma que Antônio era filho <strong>de</strong> uma<br />

8 MONTENEGRO, Abelardo F, Fanáticos e cangaceiros..., p. 111. E. Moniz documenta o mesmo episódio: “A luta<br />

sangrenta, inicia<strong>da</strong> em 1833, <strong>de</strong> vinditas em vinditas entre os Macieis e os Araújos, ficou famosa no sertão cearense.<br />

Essa luta agravou-se com o massacre <strong>da</strong> família Maciel, <strong>de</strong>pois que se ren<strong>de</strong>u num confronto armado com os<br />

Araújos, sob a promessa não cumpri<strong>da</strong>, <strong>de</strong> que ninguém seria morto. No massacre, morreu Miguel Men<strong>de</strong>s Maciel,<br />

avô <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, cuja honesti<strong>da</strong><strong>de</strong> – segundo Manuel Ximenses – era reconheci<strong>da</strong> pelos próprios<br />

inimigos”: MONIZ, Edmundo, Canudos: a luta pela terra, São Paulo: Centro Editorial, 1982, p. 12.<br />

9 Cf. ibi<strong>de</strong>m, p. 112.<br />

19


20<br />

família tradicionalmente católica e recebia influências do catolicismo popular. Foi educado nos<br />

princípios <strong>da</strong> Igreja do seu tempo. “Ensinaram-lhe a sofrer com resignação, a esquecer as<br />

misérias terrenas para gozar as <strong>de</strong>lícias celestiais e a aceitar como provações divinas os golpes<br />

impiedosos do <strong>de</strong>stino. A leitura <strong>de</strong> obras sacras mostrava como os santos haviam sofrido e<br />

buscavam o sofrimento”. 10 Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha colheu informações significativas junto a amigos<br />

sobre o genitor <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, Vicente Men<strong>de</strong>s Maciel: irascível, <strong>de</strong> excelente caráter,<br />

meio visionário, <strong>de</strong>sconfiado, <strong>de</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> prática impressionante (mesmo sendo analfabeto).<br />

Ele negociava largamente em fazen<strong>da</strong>s, trazendo tudo perfeitamente contado e medido <strong>de</strong><br />

memória, sem mesmo ter escrita para os <strong>de</strong>vedores. Homem <strong>de</strong> honra<strong>de</strong>z. 11 Na concepção<br />

euclidiana, Antonio Vicente foi educado longe <strong>da</strong>s turbulências <strong>da</strong> família. Porém, as marcas <strong>da</strong><br />

personali<strong>da</strong><strong>de</strong> do velho pai, <strong>de</strong> rigi<strong>de</strong>z, serie<strong>da</strong><strong>de</strong>, ríspi<strong>da</strong> sisu<strong>de</strong>z e <strong>de</strong> honesti<strong>da</strong><strong>de</strong> ficaram<br />

crava<strong>da</strong>s na personali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>quele que se tornaria an<strong>da</strong>rilho pelo sertão. Assim Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong><br />

Cunha resume-lhe a infância: “Indicam testemunhas <strong>de</strong> vista, ain<strong>da</strong> existentes, como adolescente<br />

tranqüilo e tímido, sem o entusiasmo feliz dos que seguem as primeiras escalas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>; retraído,<br />

avesso à troça... coragem tradicional e rara”. 12 Sempre “revelava-se muito religioso, morigerado<br />

e bom, respeitoso para com os velhos. Protegia e acariciava as crianças. Sofria com as rusgas<br />

entre o pai e a madrasta. Ao longo <strong>da</strong> trajetória <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, internalizou o conteúdo <strong>de</strong> um<br />

cristianismo rústico, tradicional, <strong>de</strong> um Deus que castiga duramente os que erram. Consi<strong>de</strong>ravam-<br />

no a pérola <strong>de</strong> Quixeramobim, por ser um moço sério, trabalhador, honesto e religioso”. 13<br />

Acompanhou o pai no comércio, trabalhando como caixeiro. Conforme tradição oral, por ocasião<br />

do falecimento do pai em 1855, Antônio Maciel prosseguiu na mesma vi<strong>da</strong> corretíssima e<br />

10<br />

MONTENEGRO, Abelardo, F, Fanáticos e Cangaceiros, ..., p. 119.<br />

11<br />

Cf. CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Os sertões, São Paulo: Ediouro, 2003, p. 212.<br />

12<br />

Ibi<strong>de</strong>m.<br />

13<br />

MONTENEGRO, Abelardo F., Fanáticos e cangaceiros..., p. 114.


calma. 14 21<br />

Em sua biografia, não constam atos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sonesti<strong>da</strong><strong>de</strong> ou atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sabonadoras <strong>de</strong> sua<br />

conduta. 15 Ao contrário, ele revelou um caráter que não se <strong>de</strong>ixava abater. Viveu sempre<br />

trabalhando e resolvendo problemas <strong>de</strong>ixados pelo pai, inclusive “a tarefa <strong>de</strong> valer por três irmãs<br />

solteiras (após a morte do pai) revelou abnegação. Somente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tê-las casado procurou, por<br />

sua vez, um enlace que lhe foi nefasto”. 16<br />

Com 25 anos, assumiu a direção dos negócios, após a morte <strong>de</strong> seu genitor. Aos 7 <strong>de</strong><br />

janeiro <strong>de</strong> 1857, casou-se com Brasilina Laurentina <strong>de</strong> Lima, em Quixeramobim. Teve dois filhos<br />

<strong>de</strong>sse casamento. Nesse mesmo ano, sua casa comercial entra em falência. Segundo Abelardo<br />

Montenegro, Antônio não tinha vocação para o comércio. Os negócios não prosperavam, as<br />

dívi<strong>da</strong>s aumentavam e chegou a hipotecar imóveis para pagar dívi<strong>da</strong>s que não paravam <strong>de</strong><br />

crescer. 17 Marco Antônio Villa aponta, para justificar o fracasso <strong>de</strong> Maciel, a crise econômica<br />

cearense, especialmente <strong>de</strong>vi<strong>da</strong> às sucessivas secas. 18 O autor <strong>de</strong> “Os Sertões” indica 1858 como<br />

o início <strong>da</strong> transformação do caráter <strong>de</strong> Antônio Vicente Men<strong>de</strong>s Maciel. É a partir <strong>de</strong>sse<br />

momento que ele “Per<strong>de</strong> os hábitos se<strong>de</strong>ntários. Incompatibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gênio com a esposa ou, o<br />

que é mais verossímil, a péssima índole <strong>de</strong>sta torna instável a sua situação. Em poucos anos, vive<br />

em diversas vilas e povoados. Adotou diversas profissões”. 19 Ele se <strong>de</strong>sfaz completamente do<br />

comércio. Procurou mu<strong>da</strong>r <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> profissional. Passou a lecionar português, aritmética e<br />

geografia em uma fazen<strong>da</strong> vizinha. “Tenta sorte em Tamboril, <strong>de</strong>pois em Campo Gran<strong>de</strong>. É outra<br />

vez caixeiro. Passando algum tempo, o dono fecha a casa <strong>de</strong> comércio e <strong>de</strong> novo fica<br />

<strong>de</strong>sempregado”. 20 Chegou a militar no Fórum <strong>de</strong> Campo Gran<strong>de</strong> e Ipu como advogado<br />

14<br />

Ibi<strong>de</strong>m, p. 212-213.<br />

15<br />

Como conseqüências <strong>de</strong> sua opção, Antônio Conselheiro foi acusado <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> crimes não comprovados,<br />

tratados <strong>de</strong> forma aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong> no final do próximo capítulo.<br />

16<br />

Ibi<strong>de</strong>m, p. 313.<br />

17<br />

Ibi<strong>de</strong>m, 115.<br />

18<br />

VILLA, Marco Antônio, Canudos, o povo <strong>da</strong> Terra, São Paulo: Ática, 1995, p. 15.<br />

19<br />

CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Os sertões...,p. 213.<br />

20<br />

NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica, São Paulo: Nacional, 1974, p. 5. Para<br />

uma reflexão mais recente, cf.: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA/ CENTRO DE ESTUDOS EUCLIDES


provisionado. 21 Nesse período em Ipu, sua esposa foge com João <strong>da</strong> Mata, furriel <strong>da</strong> força pública<br />

<strong>da</strong> província. Em meio à instabili<strong>da</strong><strong>de</strong> econômica e afetiva, Antônio teve uma aventura com<br />

Joana Imaginária, gerando o último filho, Joaquim Aprígio, em Santa Quitéria. 22<br />

Essa vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> ambulante não era exclusiva <strong>de</strong> Antônio. A crise econômica <strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />

meta<strong>de</strong> do século XIX provocava <strong>de</strong>sespero na população pobre. Como muitos outros<br />

conterrâneos, ele não tinha medo <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>r <strong>de</strong> perspectivas e procurar outro meio <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, como<br />

única possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> continuar vivo. A vi<strong>da</strong> ambulante foi uma característica marcante na<br />

personali<strong>da</strong><strong>de</strong> do peregrino <strong>de</strong> Deus, que lutava pela melhoria <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> seus irmãos sertanejos.<br />

1.3- Antônio Conselheiro, Padre Ibiapina e Padre Cícero <strong>de</strong> Juazeiro<br />

Antônio Vicente Men<strong>de</strong>s Maciel (1830) conheceu Padre Ibiapina (1806) e Padre Cícero<br />

(1844), <strong>de</strong> Juazeiro. Mesmo com uma pequena diferença <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>, eles formaram um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro<br />

trio antológico no cenário nor<strong>de</strong>stino do século XIX, 23 embora sabendo-se que não houve um<br />

plano <strong>de</strong> ação pastoral em conjunto. As práticas religiosas entre Padre Ibiapina, o Conselheiro e<br />

Padre Cícero eram semelhantes, porém, nunca iguais. Existem diferenças significativas entre a<br />

missão <strong>de</strong> Antônio Conselheiro e a dos dois padres, que serão abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s a seguir.<br />

A CUNHA, Revista Canudos, v. 4, n. 1/2 (<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2000), Salvador: UNEB, 2000; BOAVENTURA, Edvaldo,<br />

O Parque Estadual <strong>de</strong> Canudos, Salvador: Secretaria <strong>de</strong> Cultura e Turismo, 1997; ÊNIO, José <strong>da</strong> Costa Brito e<br />

TENÓRIO, Wal<strong>de</strong>cy (org.), Milenarismos ontem e hoje, São Paulo: Loyola, 2001: SANTOS NETO, Manoel<br />

Antônio dos e DANTAS, Roberto (org.), Os intelectuais e Canudos: o discurso contemporâneo: história oral<br />

temática, Salvador, UNEB, 2002; ROSSI, Luiz Alexandre S, Messianismo e mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>: repensando o<br />

messianismo a partir <strong>da</strong>s vítimas, São Paulo: Paulus, 2002.<br />

21<br />

Advogado provisionado, ou advogado dos pobres: profissão sem diploma, muito comum no Nor<strong>de</strong>ste do Brasil, no<br />

século XIX.<br />

22<br />

Cf. MONTENEGRO, Abelardo F, Cangaceiros e fanáticos..., p. 116.<br />

23<br />

PINTO, Luis Araújo, O padre Ibiapina, precursor <strong>da</strong> opção pelos pobres na Igreja do Brasil, in: Perspectiva<br />

Teológica, Belo Horizonte: n. 93, p. 216, maio/agosto, 2002.<br />

22


1.3.1- Antônio Conselheiro e o Padre Ibiapina<br />

Há uma estreita relação entre Antônio Men<strong>de</strong>s Maciel e Padre Ibiapina, conhecido como<br />

“apóstolo <strong>da</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong>”. José Antônio Maria Ibiapina nasceu em 5 <strong>de</strong> agosto 1806, na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Sobral, no Ceará. Em 1832, formou-se em Advocacia pela Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> Pernambuco.<br />

Exerceu, por um curto período, a advocacia e a docência na aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Olin<strong>da</strong>. Em <strong>de</strong>zembro<br />

<strong>de</strong> 1833, foi nomeado juiz <strong>de</strong> Direito e chefe <strong>de</strong> polícia <strong>de</strong> Quixeramobim, terra <strong>de</strong> Antônio M.<br />

Maciel. O Doutor Ibiapina chegou a advogar para os Maciéis, período em que Antônio<br />

Conselheiro o conheceu, na região <strong>de</strong> Quixeramobim. 24 Tornou-se famoso pela sua opção <strong>de</strong><br />

vi<strong>da</strong>, pauta<strong>da</strong> na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, na honesti<strong>da</strong><strong>de</strong> e na justiça. Como professor, magistrado, advogado e<br />

<strong>de</strong>putado geral na legislatura <strong>de</strong> 1834/37, ficou famoso pela sua competência e serie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

profissional. No exercício <strong>da</strong> magistratura, acumulou larga experiência junto às cama<strong>da</strong>s menos<br />

favoreci<strong>da</strong>s do sertão nor<strong>de</strong>stino. Aos 44 anos, em 1850, abandonou a magistratura, comprou<br />

uma casa nos arredores <strong>de</strong> Recife, on<strong>de</strong> residiu por três anos, como retirante, <strong>de</strong>dicado à<br />

meditação, aos exercícios <strong>de</strong> pie<strong>da</strong><strong>de</strong>, às leituras e às ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s manuais. Foi um tempo <strong>de</strong><br />

revisão <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>de</strong> para<strong>da</strong> para repensar o <strong>de</strong>stino. Nesse entremeio, <strong>de</strong>cidiu abraçar o<br />

sacerdócio ministerial, tornando-lhe possível servir ao Reino <strong>de</strong> Deus como padre diocesano.<br />

Dom João <strong>da</strong> Purificação, conhecendo suas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s humanas e coerência <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, o dispensou<br />

<strong>da</strong>s formali<strong>da</strong><strong>de</strong>s canônicas. Aceitou o pedido <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nação para ingressar no clero secular.<br />

Houve agilização do processo: “entre as primeiras or<strong>de</strong>ns e a or<strong>de</strong>nação sacerdotal, transcorreu<br />

pouco mais <strong>de</strong> um mês – a tonsura se <strong>de</strong>u a 11 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1853 e a or<strong>de</strong>nação, a 3 <strong>de</strong> julho do<br />

mesmo ano”. 25 Em fevereiro <strong>de</strong> 1854, o novo padre foi nomeado professor <strong>de</strong> Eloqüência<br />

Sagra<strong>da</strong> no Seminário <strong>de</strong> Olin<strong>da</strong>, lecionando também, História Sagra<strong>da</strong> e Eclesiástica.<br />

24 MONTENEGRO, Abelardo F., Fanáticos e cangaceiros..., p. 112.<br />

25 PINTO, Luis Araújo, O Padre Ibiapina, precursor <strong>da</strong> opção pelos pobres na Igreja do Brasil..., p. 202.<br />

23


A vi<strong>da</strong> itinerante do Mestre Ibiapina, iniciou-se em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1855, no sertão <strong>da</strong><br />

Paraíba. Visitando diversos municípios pobres (como Campina Gran<strong>de</strong>, Pilar, Ingar e Araras)<br />

com a intenção <strong>de</strong> se encontrar com os pobres atingidos pela cólera, seguindo as pega<strong>da</strong>s do<br />

Salvador: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me conferiu a unção, para anunciar a<br />

boa nova aos pobres. Enviou-me para proclamar aos cativos a libertação...” (Lc 4,18-19). O<br />

sonho <strong>de</strong> missionar aos pobres, já era reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ain<strong>da</strong> na Paraíba, em 1866, ele fundou a<br />

primeira Casa <strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, conheci<strong>da</strong> por Santa Fé, no município <strong>de</strong> Araras. Sua missão tinha<br />

pelo menos dois objetivos: anunciar aos pobres a chega<strong>da</strong> do Reino <strong>de</strong> Deus e construir casas <strong>de</strong><br />

cari<strong>da</strong><strong>de</strong> para socorrer os <strong>de</strong>svalidos do interior. Para Padre Ibiapina, o Reino <strong>de</strong> Deus acontece<br />

concretamente on<strong>de</strong> há soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> e partilha dos bens. O amor aos pobres faz parte integrante<br />

<strong>da</strong> opção <strong>de</strong> Jesus. Padre Ibiapina sabia harmonizar o material e o espiritual. A pregação era<br />

bastante pragmática: “um chamado a romper o isolamento individualista, no qual se encontrava o<br />

povo, através do testemunho <strong>de</strong> sua ação social. Nisto residia a diferença entre Pe. Ibiapina e os<br />

missionários tradicionais”. 26 Para o teólogo José Comblin, as Casas <strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong> do Padre<br />

Ibiapina eram muito mais do que “obras <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong>”. Concretamente uniu os sertanejos com o<br />

objetivo <strong>de</strong> encarnar o Evangelho entre os pobres, alertando-os para a união. “As casas <strong>de</strong><br />

cari<strong>da</strong><strong>de</strong> vão ser núcleos ao redor dos quais o povo se constitui como comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> organiza<strong>da</strong>.<br />

Trata-se <strong>de</strong> implantar centros comunitários que vão mostrar a todos uma encarnação visível <strong>da</strong><br />

uni<strong>da</strong><strong>de</strong>”. 27 Para o missionário pai dos pobres, “Evangelizar era unir os <strong>de</strong>sbravadores dispersos,<br />

os pobres <strong>de</strong>sunidos para formarem um só povo”. 28 Daí a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ele construir várias<br />

casas <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, escolas, açu<strong>de</strong>s, igrejas, hospitais e cemitérios. “O filão teológico que perpassa<br />

26 PINTO, Luis Araújo, O Padre Ibiapina, precursor <strong>da</strong> opção pelos pobres <strong>da</strong> Igreja do Brasil..., p. 205.<br />

27 COMBLIN, José, Ibiapina, o missionário, in: CENTRO DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS<br />

(CEHILA), Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo: Paulinas, 1984, p. 123.<br />

28 Ibi<strong>de</strong>m, p. 122.<br />

24


25<br />

as obras <strong>de</strong> Ibiapina é <strong>de</strong> fato o <strong>da</strong> opção pelos pobres, e esta se expressa na ação civilizatória <strong>de</strong><br />

promoção humana motiva<strong>da</strong> pela cari<strong>da</strong><strong>de</strong> evangélica”. 29<br />

O contato <strong>de</strong> Antônio Conselheiro com o Padre Ibiapina seria importante para a vi<strong>da</strong> do<br />

Peregrino. José Calazans, estudioso proeminente <strong>de</strong> Canudos, professor emérito <strong>de</strong> história <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>da</strong> Bahia, afirma categoricamente: “Antônio Conselheiro se aproximou do<br />

notável pregador <strong>de</strong> missões (Padre Ibiapina), tendo trabalhado como irmão pedinte, angariando<br />

fundos para os projetos <strong>de</strong> construções do antigo magistrado”. 30<br />

A convivência com o missionário dos pobres o torna, <strong>de</strong> certa maneira, um exemplo a ser<br />

seguido: “mui justamente impressionado com o Pe. Ibiapina, procurou imitá-lo. Na humil<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

no vestuário, no uso do cajado, no combate ao luxo, na preocupação constante <strong>de</strong> fazer obras.<br />

Como o Pe. Ibiapina, queimava objetos consi<strong>de</strong>rados supérfluos”. 31 Para Alexandre Otten, a<br />

influência <strong>de</strong> Padre Ibiapina sobre o Conselheiro se confirma especialmente pelas semelhanças<br />

no pensamento teológico. “Ambos ligam a percepção do pecado com o fato <strong>da</strong> diluição do mundo<br />

sertanejo tradicional [...], os dois tornaram-se, aos olhos dos seus seguidores, imagens do Bom<br />

Jesus nesta terra”. 32 Na concepção <strong>de</strong> José Comblin, a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Padre Ibiapina foi marca<strong>da</strong> por<br />

uma opção <strong>de</strong> classe, materializa<strong>da</strong> na opção pelos pobres. 33 “O sentido <strong>da</strong> ação do padre<br />

Ibiapina, como a do padre Cícero, foi político: ele permitiu, mais do que estimulou, a emergência<br />

<strong>de</strong> um precário projeto popular (mutirão, resolver em comum os problemas) no nível <strong>da</strong>s<br />

instituições”. 34 Antônio Conselheiro, ao acompanhar o Padre Ibiapina e aproximar-se <strong>de</strong> Padre<br />

29 PINTO, Luis Araújo, O Padre Ibiapina, precursor <strong>da</strong> opção pelos pobres na Igreja do Brasil... p. 205.<br />

30 CALAZANS, José, O ciclo folclórico do Bom Jesus Conselheiro: contribuição ao estudo <strong>da</strong> companhia <strong>de</strong><br />

Canudos, Salvador: Tipografia Beneditina, 1950, p. 44.<br />

31 CALAZANS, José, O ciclo folclórico do Bom Jesus Conselheiro: contribuição ao estudo..., p. 44.<br />

32 OTTEN, Alexandre, Só Deus é Gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, São Paulo: Loyola,<br />

1990, p. 273.<br />

33 Cf. HOORNEART, Eduardo, Crônica <strong>da</strong>s Casas <strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong> do Padre Ibiapina, São Paulo: Loyola, 1981, p.<br />

13.<br />

34 HOORNEART, Eduardo, Ibiapina e os <strong>de</strong>sclassificados: à procura <strong>de</strong> uma chave interpretativa <strong>da</strong> cônica <strong>da</strong>s casas<br />

<strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, in: HOOENAERT, Eduardo e DESROCHERS, Georgette (org), Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres,<br />

São Paulo: Paulinas, 1984, p. 83.


26<br />

Cícero, percebeu que po<strong>de</strong>ria engrossar o cordão dos <strong>de</strong>fensores <strong>de</strong> sua gente. O jeito carinhoso<br />

<strong>de</strong> o lí<strong>de</strong>r maior <strong>de</strong> Juazeiro receber os pobres e as ações concretas do Padre Ibiapina marcariam a<br />

vi<strong>da</strong> do Peregrino e influenciariam seu pensamento nas an<strong>da</strong>nças pelo sertão brasileiro. Essas<br />

marcas permaneceram encrava<strong>da</strong>s na vi<strong>da</strong> do Peregrino durante suas an<strong>da</strong>nças pelos rincões<br />

sertanejos. Inspirando-se na vi<strong>da</strong> dos dois padres, Antônio Conselheiro percebeu, então, que era<br />

possível encontrar um novo caminho ao lado <strong>de</strong> sua gente.<br />

1.3.2- Antônio Conselheiro e Padre Cícero<br />

Um outro personagem que influenciou o pensamento <strong>de</strong> Antônio M. Maciel foi o Padre<br />

Cícero <strong>de</strong> Juazeiro, nascido aos 24 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1844, no Crato, na Chapa<strong>da</strong> do Araripe cearense.<br />

Cícero Romão Batista, filho <strong>de</strong> Joaquim Romão Batista e Joaquina Vicência Romana, viveu sete<br />

anos no seminário, saindo <strong>da</strong>li aos 30 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1870 or<strong>de</strong>nado padre, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> passar<br />

pelo crivo <strong>da</strong> formação dos padres <strong>da</strong> Congregação <strong>da</strong> Missão Lazarista, <strong>de</strong> origem francesa. 35<br />

Após o término dos estudos, o reitor do seminário, o francês Padre Pierre Chevalier,<br />

“<strong>de</strong>saconselhou a or<strong>de</strong>nação sacerdotal porque achava Cícero <strong>de</strong>masia<strong>da</strong>mente místico, cabeçudo<br />

e por vezes au<strong>da</strong>cioso em matéria doutrinal. No entanto, dom Luís tinha muita simpatia por<br />

Cícero e o or<strong>de</strong>nou”. 36 Logo, ele vai para Juazeiro, on<strong>de</strong> fica 60 anos, trabalhando com<br />

populações que viviam “numa situação <strong>de</strong> miséria tal, que não tinham sequer a consciência dos<br />

direitos mais elementares ao ser humano”. 37 An<strong>da</strong>va <strong>de</strong> povoado em povoado, pregando missões,<br />

celebrando novenas, promovendo terços, procissões e festas religiosas, como um an<strong>da</strong>rilho,<br />

cumprindo um chamado <strong>de</strong> Deus. Proibia as <strong>da</strong>nças, as bebi<strong>da</strong>s alcoólicas e lutava,<br />

implacavelmente, contra os vícios dos fiéis. Sua vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> pobreza e simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> cativava o povo,<br />

35 Cf. BARRETO, Francisco Murilo <strong>de</strong> Sá, Padre Cícero, São Paulo: Loyola, 2002, p. 14-19.<br />

36 COMBLIN, José, Padre Cícero <strong>de</strong> Juazeiro, São Paulo: Paulinas, 1991, p. 8.<br />

37 FACÓ, Rui, Cangaceiros e Fanáticos..., p. 136.


que procurava seguir as or<strong>de</strong>ns do novo padre. Reuniu um grupo <strong>de</strong> beatas <strong>de</strong>dica<strong>da</strong>s a uma vi<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> pie<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao estudo <strong>da</strong> doutrina católica e à participação em todos os ofícios e celebrações <strong>da</strong><br />

Igreja. Em 1889, o “milagre <strong>da</strong> hóstia” transforma<strong>da</strong> em sangue, foi marco divisor na vi<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

Padre Cícero. Esse acontecimento ocorreu no dia 2º <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1889, durante a distribuição <strong>da</strong><br />

comunhão. Na missa celebra<strong>da</strong> antes do café <strong>da</strong> manhã, em jejum, conforme <strong>de</strong>terminação <strong>da</strong><br />

Igreja, uma hóstia que padre Cícero entregou em comunhão à beata Maria <strong>de</strong> Araújo<br />

“intumesceu, sangrando”, criando um rebuliço no povo <strong>de</strong> Juazeiro. Na missa <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> julho,<br />

Domingo do Preciosíssimo Sangue <strong>de</strong> Cristo, Mons. Francisco Rodrigues Monteiro, durante a<br />

missa na Igreja Nossa Senhora <strong>da</strong>s Dores <strong>de</strong> Juazeiro, comentou para mais <strong>de</strong> três mil pessoas os<br />

fatos extraordinários <strong>de</strong> “sangue na hóstia”. A multidão que veio ao Crato entrou em <strong>de</strong>lírio. O<br />

povo se multiplicava e aumentavam as súplicas e romarias. Juazeiro crescia e atraía multidões.<br />

Padre Cícero acreditava no milagre e muitas autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s eclesiásticas também. Por causa do<br />

milagre, o povo migrava para Juazeiro. Segundo José Comblin, “Entre 1890 e 1898, a população<br />

passou <strong>de</strong> 2.000 a 5.000 habitantes. Em 1905 já era <strong>de</strong> 12.000 habitantes e em 1909 chegou a<br />

15.000”. 38 Em 1911, Juazeiro era emancipa<strong>da</strong>, tornando-se o maior centro urbano do Ceará,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>da</strong> Capital, Fortaleza. O Bispo suspen<strong>de</strong>u o Padre Cícero <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>m. Para o povo, o Padre<br />

estava sendo perseguido. “A questão religiosa <strong>de</strong> Juazeiro abriu uma fen<strong>da</strong> no coração <strong>de</strong>ste<br />

povo. Tantos estudos sérios, tantos livros, teses só chegaram a uma conclusão – Padre Cícero<br />

ganhou terreno”. 39 Para o teólogo Comblin, esse <strong>de</strong>lírio do povo sertanejo foi estimulado pela<br />

fama <strong>de</strong> Santo que Padre Cícero já tinha. Além disso, é preciso levar em conta que, no interior<br />

do Ceará, a proclamação <strong>da</strong> República foi acolhi<strong>da</strong> como o fim do mundo. Os republicanos eram<br />

tidos como inimigos e <strong>de</strong>struidores <strong>da</strong> Igreja <strong>de</strong> Cristo – eram anticristos. Maçons e republicanos<br />

38 COMBLIM, José, Padre Cícero <strong>de</strong> Juazeiro..., p. 18.<br />

39 BARRETO, Francisco Murilo <strong>de</strong> Sá, Padre Cícero..., p. 33.<br />

27


28<br />

eram tidos como “filhos do diabo”. “Muitas profecias vieram renovar a convicção <strong>de</strong> que o fim<br />

do mundo era iminente. Essa mesma fé apocalíptica ia animar Canudos alguns anos mais<br />

tar<strong>de</strong>”, 40 afirma José Comblin.<br />

Juazeiro cresceu rapi<strong>da</strong>mente e passou a ter gran<strong>de</strong> importância no interior do Ceará e<br />

objeto <strong>de</strong> disputa <strong>da</strong>s oligarquias <strong>da</strong> região do Cariri. Padre Cícero resolveu entrar na disputa<br />

política. Segundo José Comblin, com o objetivo <strong>de</strong> “evitar lutas ferozes e sangrentas. Era a única<br />

pessoa capaz <strong>de</strong> estabelecer certa uni<strong>da</strong><strong>de</strong> entre os partidos. De fato, padre Cícero conseguiu<br />

diversos pactos <strong>de</strong> não agressão entre partidos e coronéis que podiam muito bem ter<br />

<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ado guerras sangrentas”. 41 Padre Cícero ocupou também a vice-presidência do Ceará.<br />

Quando o presi<strong>de</strong>nte Cel. Franco Rabelo foi <strong>de</strong>posto pela revolução <strong>de</strong> 1924, ele responsabilizou<br />

seu amigo Doutor Floro Bartolomeu pelo acontecido. “Com a vitória <strong>da</strong> revolução, Padre Cícero<br />

reassumiu o cargo <strong>de</strong> Prefeito, do qual havia sido retirado pelo governo <strong>de</strong>posto, e seu prestígio<br />

cresceu”. 42 A missão do Padre Cícero na política <strong>de</strong> Juazeiro não significou novi<strong>da</strong><strong>de</strong>, nem<br />

melhoria na quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> dos menos favorecidos.<br />

Assim, o que Antônio Conselheiro tinha em comum com Padre Cícero era a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

com o povo sofrido e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> levar a mensagem cristã aos <strong>de</strong>svalidos e <strong>de</strong>sprotegidos pelo<br />

cruel sistema <strong>de</strong> marginalização. Entre Padre Cícero e Antônio Conselheiro havia muitos pontos<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sencontro, como veremos a seguir.<br />

1.4- Padre Ibiapina, Padre Cícero e Conselheiro: semelhanças e <strong>de</strong>ssemelhanças<br />

As práticas religiosas <strong>de</strong> Padre Cícero, Padre Ibiapina e Antônio Conselheiro foram em<br />

favor dos pobres. Padre Cícero, no entanto, esteve mais atrelado ao po<strong>de</strong>r: beneficiava-se <strong>de</strong>le e<br />

40<br />

COMBLIN, José, Padre Cícero <strong>de</strong> Juazeiro..., p.11.<br />

41<br />

Ibi<strong>de</strong>m, p. 25.<br />

42<br />

SITE DO GOOGLE, Biografia do Padre Cícero, acesso em 9 <strong>de</strong> agosto, 2005.


29<br />

não era capaz <strong>de</strong> contrariar as práticas e “normas estabeleci<strong>da</strong>s” na política vigente. A chama<strong>da</strong><br />

ação social, muito presente na missão <strong>de</strong> Antônio Conselheiro e <strong>de</strong> Padre Ibiapina, quase não<br />

aparece na vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Padre Cícero. Luís Araújo Pinto afirma: “A ação social <strong>de</strong>sse sacerdote (Padre<br />

Cícero) ain<strong>da</strong> é bastante discuti<strong>da</strong>. Há os que dizem que ele nunca fez na<strong>da</strong> pela educação <strong>de</strong><br />

Juazeiro, nem mesmo quando foi prefeito <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>”, 43 mesmo reconhecendo-se a relação<br />

solidária do Padre Cícero com os pobres, por meio <strong>de</strong> sábios conselhos 44 para a vi<strong>da</strong> prática dos<br />

humil<strong>de</strong>s, tais como curas, higiene, cultivo <strong>de</strong> plantas apropria<strong>da</strong>s ao clima, alternativas que lhes<br />

propiciariam conviver em tempos <strong>de</strong> secas. Para Rui Facó, o apostolado <strong>de</strong> Padre Cícero se<br />

distinguia dos outros padres: “não cobra em dinheiro os serviços religiosos. É o ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> sua populari<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao lado, é claro, <strong>de</strong> certas manifestações místicas coinci<strong>de</strong>ntes com as<br />

cama<strong>da</strong>s mais atrasa<strong>da</strong>s <strong>da</strong> população sertaneja local”. 45 Quanto às práticas <strong>de</strong> muitos padres no<br />

sertão, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha é implacável: “o missionário mo<strong>de</strong>rno é um agente prejudicialíssimo<br />

no agravar todos os <strong>de</strong>sequilíbrios do estado emocional dos tabaréus. [...] sua ação é negativa:<br />

<strong>de</strong>strói, apaga e perverte o que incutiram <strong>de</strong> bom naqueles espíritos ingênuos”. 46<br />

43 Ibi<strong>de</strong>m, p. 219.<br />

44 Cf. INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS, Almanaque <strong>de</strong> Canudos 1995, Paulo Afonso:<br />

Editora Fonte Viva, 2995, p. 64. São apresentados treze conselhos do Padre Cícero: “1- Ca<strong>da</strong> casa seja um oratório e,<br />

ao mesmo tempo, uma oficina; ca<strong>da</strong> quintal, uma horta. 2- Procure adquirir sua moradia. Quem tem uma casa para<br />

morar, tem um pe<strong>da</strong>cinho <strong>de</strong> céu aqui na terra. 3- Não <strong>de</strong>rrube a mata; é ela que atrai a chuva. 4- Não toque fogo na<br />

roça, porque senão a terra fica ca<strong>da</strong> vez mais fraca; plante feijão e fava <strong>de</strong>ntro dos garranchos. 5- Prepare o seu<br />

roçado. Choveu, plantou; nasceu, limpou; colheu guardou. 6- Não cace por brinca<strong>de</strong>ira, mas para comer. 7- Não crie<br />

o boi ou o bo<strong>de</strong> soltos; faça cercados e <strong>de</strong>ixe o pasto <strong>de</strong>scansar para se refazer. 8- Não plante <strong>de</strong> serra acima, nem<br />

faça roçado em la<strong>de</strong>ira muito em pé, para que a água não arraste a terra e não perca sua riqueza. 9- Nunca plante uma<br />

coisa só, varie as culturas. E se uma não <strong>de</strong>r, outra po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r. 10- Represe os riachos <strong>de</strong> 100 em 100 metros, ain<strong>da</strong> que<br />

seja com pedras soltas. 11- Plante, ca<strong>da</strong> vez que pu<strong>de</strong>r, um pé <strong>de</strong> algaroba, <strong>de</strong> caju, <strong>de</strong> sabiá ou outra árvore qualquer,<br />

até que o sertão todo seja uma mata só. 12- Apren<strong>da</strong> a tirar proveito <strong>da</strong>s plantas <strong>da</strong> caatinga, como a maniçoba, a<br />

favela e a jurema. Elas po<strong>de</strong>m aju<strong>da</strong>r vocês a conviver com a seca. 13- Faça uma cisterna no oitão <strong>de</strong> sua casa para<br />

guar<strong>da</strong>r a água <strong>da</strong> chuva”. Se o sertanejo obe<strong>de</strong>cer a estes conselhos, a seca irá, aos poucos, se acabando, o gado<br />

melhorando, e o povo terá sempre trabalho e o que comer. Mas se não obe<strong>de</strong>cer, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> pouco tempo, o sertão<br />

todo vai virar um <strong>de</strong>serto só”.<br />

45 FACO, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 135.<br />

46 CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Os sertões..., p. 296. Grifo do autor. “E alucina o sertanejo crédulo: alucina-o, <strong>de</strong>prime-o,<br />

perverte-o”. P. 198.


30<br />

Já o Padre Ibiapina, por outro lado, tem uma ação pastoral que vai além <strong>da</strong> prática <strong>de</strong><br />

Padre Cícero. O conhecido Mestre Ibiapina fazia diversas construções para amparar os pobres:<br />

hospitais, casas <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, cemitérios, igrejas e várias outras obras com o objetivo <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r<br />

aos <strong>de</strong>svalidos e abandonados pela política domina<strong>da</strong> pelos coronéis 47 , práticas ausentes na<br />

missão <strong>de</strong> Padre Cícero, que nem sequer passou por essa experiência peregrina junto ao povo,<br />

como aconteceu com Padre Ibiapina e Antônio Conselheiro. A única vez em que saiu <strong>de</strong> Juazeiro<br />

foi quando teve que ir explicar-se em Roma acerca <strong>de</strong> seus supostos milagres. Sua ação foi<br />

restrita a Juazeiro e teve como finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>r conselhos ao povo que o procurava. Além <strong>de</strong> um<br />

bom atendimento pessoal aos pobres, do atendimento sem cobrar dinheiro pelos sacramentos, <strong>da</strong>s<br />

bênçãos, ele <strong>da</strong>va orientações médicas (ensinava-lhes a preparar remédios caseiros) e <strong>da</strong>va-lhes<br />

outras orientações simples, porém muito significativas para um povo mergulhado na pobreza, na<br />

ignorância e na mais absoluta miséria. Eram populações <strong>de</strong>sprovi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> quaisquer possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> levante que pu<strong>de</strong>ssem significar interferência na or<strong>de</strong>m política. Foi acusado <strong>de</strong> ter adotado<br />

uma pastoral assistencialista. “Seria exigir-se muito <strong>de</strong> populações marginaliza<strong>da</strong>s secularmente<br />

num tão gran<strong>de</strong> atraso, num isolamento não menor, numa situação <strong>de</strong> miséria tal que não tinha<br />

sequer a consciência dos direitos mais elementares ao ser humano” 48 , afirma Rui Facó. Isso não<br />

<strong>de</strong>smerece a coerência <strong>da</strong> ação pastoral do Padre Cícero. De fato, a sua única preocupação era a<br />

peleja do dia-a-dia para suprir as necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s básicas do povo pobre.<br />

47 Para Dom Marcelo Pinto Cavaleira, hoje Arcebispo emérito <strong>da</strong> Arquidiocese <strong>da</strong> Paraíba, o povo simples se<br />

encantava pelas coisas concretas cria<strong>da</strong>s pelo Padre Ibiapina e se beneficiava do que acontecia: “nos fartos almoços<br />

<strong>de</strong> que todos os pobres participavam em missões do Padre Ibiapina; nos açu<strong>de</strong>s d’água que ele construía em mutirão<br />

com o povo do Nor<strong>de</strong>ste, fragelado pelas secas; nas 22 casas <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong> on<strong>de</strong> acolhia pobres e abrigava órfãs<br />

<strong>de</strong>sampara<strong>da</strong>s, educando-as para a vi<strong>da</strong>; nos hospitais que ele edificava com o povo para recolher os doentes tão<br />

numerosos do interior; nos cemitérios para sepultar com digni<strong>da</strong><strong>de</strong> os corpos <strong>de</strong> tantos mortos, sobretudo no tempo<br />

<strong>da</strong> peste... E o povo pensava também nas Igrejas que o padre Ibiapina, em mutirões, construía nos povoados.<br />

Sabendo, sem dúvi<strong>da</strong>s, que esses templos eram marcos vivos não apenas <strong>de</strong> uma fé <strong>de</strong>vocional, para o povo sempre<br />

necessária, mas também <strong>de</strong> uma fé prática, manifesta<strong>da</strong> nas obras <strong>da</strong> justiça e do amor fraterno. Ibiapina mostrava<br />

bem, em sua ação missionária, como a fé cristã articula inseparavelmente a religião com a vi<strong>da</strong>”. HOORNAERT,<br />

Eduardo e DESROCHERS, Georgette (org), Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo: Paulinas, 1984, p. 6.<br />

48 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos... p. 136.


31<br />

Diferentemente <strong>de</strong> Padre Ibiapina e Padre Cícero <strong>de</strong> Juazeiro, Antônio Conselheiro não se<br />

restringia a um trabalho <strong>de</strong> apaziguamento <strong>da</strong>s massas como fazia Padre Cícero, nem somente à<br />

criação <strong>de</strong> Casas <strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong> para amparar os pobres, como era a prática <strong>de</strong> Padre Ibiapina.<br />

Antônio Conselheiro imprimia práticas religiosas que iam além <strong>de</strong> tudo isso. Formava uma<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> alternativa, instruía o povo na oração, procurava conscientizar o sertanejo para<br />

mu<strong>da</strong>r o sistema agrário e transformar a política coronelista regional. Isso incomodou as elites<br />

agrárias e políticas. 49 Esse é o diferencial mais significativo <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> do Conselheiro. O<br />

Barão <strong>de</strong> Jeremoabo não escondia a preocupação com o crescimento <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> alternativa<br />

<strong>de</strong> Canudos e sua proposta inovadora, ao lamentar:<br />

Alguns lugares <strong>de</strong>sta comarca e <strong>de</strong> outras circunvizinhas e até do Estado <strong>de</strong> Sergipe,<br />

ficaram <strong>de</strong>sabitados, tal o aluvião <strong>de</strong> famílias que subiam para Canudos, local escolhido<br />

por Antônio Conselheiro para as suas operações. Causava dó ver exposta à ven<strong>da</strong> na feira<br />

a extraordinária quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gado cavalar, vacum, caprino, além <strong>de</strong> objetos, por preço<br />

nona<strong>da</strong> como terrenos, casas, etc. O anelo extremo era ven<strong>de</strong>r, apurar dinheiro e ir repartilo<br />

com o santo Conselheiro. 50<br />

O que diferenciava o leigo Conselheiro dos dois padres era sua ação social. De Padre<br />

Ibiapina, o Conselheiro herdou o impulso <strong>de</strong> construir. Ele levantava igrejas, construía<br />

cemitérios, acolhia os pobres, organizava a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> dos “<strong>de</strong>svalidos” e “sem sorte”. Luis<br />

Araújo, diferenciando o protagonismo dos três missionários, afirmava que a novi<strong>da</strong><strong>de</strong> era a forma<br />

como Antônio Conselheiro organizou seu povo, <strong>da</strong>ndo “uma resposta à situação <strong>de</strong> miséria em<br />

que jazia a maioria do povo sertanejo. Foi também uma resposta provocadora à socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

opressora republicana, um protesto radical expresso no não-pagamento <strong>de</strong> impostos e no não-<br />

reconhecimento <strong>da</strong> República e <strong>de</strong> sua moe<strong>da</strong>”. 51 Padre Cícero era conhecido como milagreiro.<br />

Padre Ibiapina fazia <strong>de</strong> tudo para que seu povo não lhe atribuísse esse po<strong>de</strong>r, “sua intenção era,<br />

49<br />

Esse ponto será mais bem <strong>de</strong>senvolvido no capítulo II, nos itens 2.4: A comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> Alternativa <strong>de</strong> Canudos e 2.5:<br />

Por que a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos se constituiu num perigo para a República?<br />

50<br />

Cit in: MONIZ, Edmundo, Canudos: a luta pela terra, São Paulo: Centro Editorial Latino-Americano, 1981, p.<br />

42.<br />

51<br />

JÚNIOR, Luis Araújo Pinto, O Padre Ibiapina, precursor <strong>da</strong> opção pelos pobres na Igreja do Brasil..., p. 219.


32<br />

sobretudo, a <strong>de</strong> que as pessoas se convertessem à cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, superando intrigas e aten<strong>de</strong>ndo aos<br />

mais necessitados”. 52<br />

Na concepção <strong>de</strong> Consuelo Novais, Canudos foi uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sertanejos que ousou<br />

criar uma forma própria <strong>de</strong> organização social, motivo principal que fez a elite política <strong>da</strong> época<br />

varrer do mapa tal experiência 53 , que foi criando uma nova estrutura agrária, conforme<br />

aprofun<strong>da</strong>mento a seguir 54 , na análise <strong>da</strong> conjuntura política do Nor<strong>de</strong>ste, no final do século XIX.<br />

Os três lí<strong>de</strong>res: Padre Ibiapina, Antônio Conselheiro e Padre Cícero exprimiram as lutas e<br />

esperanças do povo <strong>de</strong>sclassificado pelo sistema. Alexandre Otten afirma que é “provável que<br />

historicamente Pe. Ibiapina tenha aberto a brecha para o Conselheiro. Seguramente influenciou<br />

muito o beato. Este, porém, promove um projeto mais popular”. 55 Nesse sentido, eles são<br />

semelhantes, porém, ca<strong>da</strong> um a seu modo e com suas características. Afirmar, além disso, é<br />

projetar as categorias <strong>de</strong> análises sociais mo<strong>de</strong>rnas, num momento histórico em que não se<br />

dispunha <strong>de</strong> tais categorias.<br />

1.5- Contextualização do Nor<strong>de</strong>ste do Brasil no tempo <strong>de</strong> Antônio Conselheiro<br />

O final do século XIX foi <strong>de</strong> turbulências política e social. O advento <strong>da</strong> República,<br />

instala<strong>da</strong> em 1889, não alterou o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sigual do sertão nor<strong>de</strong>stino, nem resolveu os<br />

problemas na economia. A Igreja vivia o conflito <strong>de</strong> separação do Estado. O novo regime<br />

republicano não superou os problemas ligados à concentração <strong>da</strong> terra, ao <strong>de</strong>clínio do ciclo <strong>da</strong><br />

cana-<strong>de</strong>-açúcar, nem amenizou as conseqüências <strong>da</strong>s sucessivas secas. Os fazen<strong>de</strong>iros,<br />

“ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros donos <strong>da</strong>s terras”, não toleravam manifestações <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> homens livres,<br />

52 Ibi<strong>de</strong>m, p. 218.<br />

53 Cf. SAMPAIO, Consuelo Novais, Canudos: a construção do medo, in: SAMPAIO, Consuelo Novais (org),<br />

Canudos: cartas para o Barão, São Paulo: EDUSP, 2002, p. 31.<br />

54 A natureza <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> alternativa <strong>de</strong> Canudos será abor<strong>da</strong><strong>da</strong> no capítulo II, 2.4.<br />

55 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 380.


33<br />

<strong>de</strong> “status” inferior. “A hipertrofia do po<strong>de</strong>r privado e a atrofia do po<strong>de</strong>r político, assevera Costa<br />

Pinto, criavam condições propícias ao aparecimento <strong>da</strong> vingança priva<strong>da</strong> como modo típico <strong>de</strong><br />

controle social”, 56 especialmente no que diz respeito à luta pela terra. Na concepção <strong>de</strong> Rui Facó,<br />

esse monopólio <strong>da</strong> terra no Brasil, her<strong>da</strong>do <strong>da</strong>s capitanias hereditárias, e a subseqüente concessão<br />

<strong>da</strong>s sesmarias, <strong>de</strong>ram origem aos latifúndios atuais. 57 A <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao longo <strong>da</strong><br />

história do Brasil, vinha sendo feita, quase sempre “pelos próprios donos <strong>da</strong> terra”, se não com a<br />

conivência do aparelho do Estado, pelo menos com o silêncio do aparelho estatal. Imperava a “lei<br />

do mais forte”. No sertão, dominado pela ação dos donos <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s, valia um<br />

código <strong>de</strong> honra: “seria humilhante não se <strong>de</strong>sforçar, não exercer vindita. A pressão do grupo<br />

colocava o indivíduo no seguinte dilema: ou vingar-se e provar que respeitava a vonta<strong>de</strong> grupal,<br />

ou não se vingar e excluir-se do grupo”. 58 Era a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira lei <strong>de</strong> Talião. 59 As autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

consi<strong>de</strong>ravam-se impotentes ou, porque não afirmar, condizentes, diante <strong>de</strong> tal prática.<br />

Constatava-se que, “no sertão, a única força real era a do senhor rural. Havia mesmo um<br />

compromisso do Estado com a casa gran<strong>de</strong>: esta apoiava aquele na <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> seus interesses,<br />

enquanto o Estado transferia o po<strong>de</strong>r que pu<strong>de</strong>sse à casa gran<strong>de</strong>”. 60 Rui Facó vai mais longe: “O<br />

latifúndio se manteve intacto através <strong>da</strong> Monarquia e não se modificou com o advento <strong>da</strong><br />

República, que não tocou num fio <strong>de</strong> cabelo <strong>da</strong> gran<strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> territorial”. 61 A terra sempre<br />

fora uma questão agu<strong>da</strong> que vinha se arrastando ao longo <strong>da</strong> história do Brasil. Mesmo em meio<br />

às reações dos donos <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s, houve uma tentativa <strong>de</strong> interferir na legislação<br />

56 MONTENEGRO, Abelardo F, Fanáticos e cangaceiros, p. 110.<br />

57 Cf. FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 16.<br />

58 MONTENEGRO, Abelardo F..., Fanáticos e cangaceiros, p. 112<br />

59 No Antigo Testamento, a lei do “talião” era um princípio jurídico segundo o qual a pena <strong>de</strong>veria ser proporcional à<br />

ofensa: “Mas se acontecer <strong>da</strong>no grave, pagarás vi<strong>da</strong> por vi<strong>da</strong>, olho por olho, <strong>de</strong>nte, por <strong>de</strong>nte, mão por mão, pé por<br />

pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, contusão por contusão” (Ex 21,23-25). Cf. também Lv<br />

24,19 e Dt 19,21. No Brasil do final do século XIX, a justiça era feita pela elite rural, pelos coronéis e pelos barões.<br />

O povo era simplesmente <strong>de</strong>sprotegido com a quase total ausência do Estado.<br />

60 MONTENEGRO, Abelardo F, Fanáticos e cangaceiros..., p. 110.<br />

61 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 128.


34<br />

sobre a terra, não com o objetivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratizá-la, mas com o intuito <strong>de</strong> acolher os imigrantes,<br />

conforme o que segue:<br />

Para fortalecer a imigração e aumentar o trabalho agrícola, importa que seja convertido<br />

em lei, como julga vossa sabedoria, a proposta para o fim <strong>de</strong> regularizar a proprie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

territorial e facilitar a aquisição e cultura <strong>da</strong>s terras <strong>de</strong>volutas. Nessa ocasião resolvereis<br />

sobre a conveniência <strong>de</strong> conce<strong>de</strong>r ao governo o direito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sapropriar, por utili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

publica os terrenos marginais <strong>da</strong>s estra<strong>da</strong>s <strong>de</strong> ferro, que não são aproveitados pelos<br />

proprietários e po<strong>de</strong>m servir para núcleos coloniais. 62<br />

Somente a partir <strong>de</strong> 1940, com os primeiros planos <strong>de</strong> reforma agrária, lançados pelo<br />

Estado sem muito progresso que se percebe o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nças na or<strong>de</strong>m agrária do País. As<br />

déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> preparação para a proclamação <strong>da</strong> República foram marca<strong>da</strong>s por muitas tensões e<br />

crises. De 1864-1870, guerra do Paraguai; 1870-1889, o <strong>de</strong>clínio <strong>da</strong> Monarquia. “O que mais<br />

caracterizava a Monarquia era o predomínio, em todos os níveis, dos interesses dos gran<strong>de</strong>s<br />

proprietários <strong>de</strong> terra, <strong>de</strong> escravos e <strong>de</strong> capitais em prejuízo <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s populares”. 63 O poeta<br />

popular sintetiza bem a situação: “O Nor<strong>de</strong>ste <strong>de</strong>sta época/ era mais agonia/ pesado pela<br />

República/ Morto pela Monarquia/ Milhares <strong>de</strong> nor<strong>de</strong>stinos/ abandonados viviam”. 64 Os conflitos<br />

eram intensos. As transformações políticas e sociais iniciaram-se em 1850 e chegaram ao século<br />

seguinte, sem que se encontrassem soluções para minorar os problemas sociais.<br />

O movimento pela abolição <strong>da</strong> escravatura <strong>de</strong>ságua na assinatura <strong>da</strong> Lei Áurea, em 13 <strong>de</strong><br />

maio <strong>de</strong> 1888. Além <strong>da</strong>s pressões sociais contra o sistema escravocrata, este não respondia mais<br />

aos interesses <strong>da</strong>s elites rurais. No final do século XIX, o Nor<strong>de</strong>ste foi marcado pelo “incremento<br />

do banditismo, do fanatismo religioso e pelo <strong>de</strong>sânimo dos gran<strong>de</strong>s proprietários que se<br />

<strong>de</strong>sinteressavam com a sorte <strong>da</strong> Monarquia [...], à beira <strong>da</strong> efervescência revolucionária”. 65 O<br />

sistema imperial estava com os dias contados. O império monárquico não gozava mais <strong>de</strong><br />

62 FALAS DO TRONO, 1889, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Imprensa Nacional.<br />

63 CASALECCHI, José Enio, A Proclamação <strong>da</strong> República, São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 8.<br />

64 VIOLÃO, Zequinha do, cit. in: INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS, Canudos, uma história<br />

<strong>de</strong> luta e resistência, Paulo Afonso: Fonte Viva, 1993, p. 8.<br />

65 MONTEIRO, Hamilton <strong>de</strong> Matos, Nor<strong>de</strong>ste insurgente: 1850 – 1890, São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 23, 30.


35<br />

legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Liberais e conservadores atacavam impiedosamente o imperador. “O Estado erigido<br />

sobre os escombros <strong>da</strong>s revoltas <strong>de</strong> 1817, 1824, Balaia<strong>da</strong>, Sabina<strong>da</strong>, Cabanagem, Farroupilha e<br />

a Revolução Praieira <strong>de</strong> 1848 já não mais atendia às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>correntes <strong>da</strong> conjuntura do<br />

final do século XIX”. 66<br />

Com relação a esse momento, o Economista Celso Furtado constata que <strong>da</strong>dos <strong>da</strong>s duas<br />

últimas déca<strong>da</strong>s do século XIX apontam um crescimento <strong>da</strong> população nor<strong>de</strong>stina em cerca <strong>de</strong><br />

80%, enquanto a ren<strong>da</strong> real gera<strong>da</strong> pelo setor exportador não ultrapassou 54%. 67 Em fins <strong>de</strong> 1879,<br />

a população indigente, no Ceará, ultrapassava a casa dos 300 mil. Outras 300 mil pessoas haviam<br />

morrido ou emigrado. 68 A gran<strong>de</strong> seca <strong>de</strong> 1877/1879 <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou ações dos grupos <strong>de</strong><br />

cangaceiros mais famosos do século XIX: os Brilhantes, os Variatos e Calangros. Como<br />

conseqüência <strong>da</strong>s secas, aumenta o número <strong>de</strong> óbitos no Ceará e nas outras províncias<br />

sacrifica<strong>da</strong>s pelo flagelo causado pela estiagem, como a Paraíba e o Rio Gran<strong>de</strong> do Norte. Nesse<br />

mesmo período, cresce a migração com <strong>de</strong>stino à Amazônia. Levas e levas <strong>de</strong> infelizes<br />

procuravam a todo custo sobreviver à fome, sem querer aventurar-se aos seringais do Norte. 69<br />

As rebeliões nor<strong>de</strong>stinas anunciavam transformações na or<strong>de</strong>m política e econômica que<br />

não aconteciam. “Os conservadores eram <strong>de</strong>fensores <strong>da</strong> Monarquia, <strong>da</strong> centralização do po<strong>de</strong>r, <strong>da</strong><br />

administração e instituições do Império”. 70 As reformas liberais não apontavam para um cenário<br />

político que pu<strong>de</strong>sse superar os conflitos. “Os liberais pretendiam reformas: extinção do po<strong>de</strong>r<br />

mo<strong>de</strong>rador, do senador vitalício, a <strong>de</strong>scentralização do po<strong>de</strong>r, o Conselho <strong>de</strong> Estado, reforma<br />

eleitoral, etc.”. 71 Nota-se que não havia propostas significativas que alterassem, por exemplo, o<br />

conflito agrário e a crise econômica.<br />

66 VILLA, Marco Antônio, Canudos e o povo <strong>da</strong> Terra..., p. 90.<br />

67 Cf. FURTADO, Celso, Formação econômica do Brasil, São Paulo: Nacional, 1974, p. 147-149.<br />

68 BRASIL, Tomás Pompeu <strong>de</strong> Sousa, O Ceará no cenário <strong>da</strong> In<strong>de</strong>pendência, v. I, Fortaleza: 1922, p. 231.<br />

69 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 132.<br />

70 CASALECCHI, José Enio, A proclamação <strong>da</strong> República..., p. 18.<br />

71 CASALECCHI, José Enio, A proclamação <strong>da</strong> República..., p. 18.


36<br />

A monocultura <strong>da</strong> cana-<strong>de</strong>-açúcar, principal alavanca <strong>da</strong> região Nor<strong>de</strong>ste, estava em<br />

<strong>de</strong>clínio. Investia-se na cultura do café em São Paulo, Minas Gerais e Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, e no<br />

plantio <strong>da</strong> seringueira, na Região Norte, para on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>slocou o centro dos interesses<br />

econômicos. Do ponto <strong>de</strong> vista político e econômico, o Nor<strong>de</strong>ste foi per<strong>de</strong>ndo paulatinamente sua<br />

importância. A nova economia exigia mão-<strong>de</strong>-obra especializa<strong>da</strong>. O País estimulou a imigração,<br />

“tendo-se em vista a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> serem atendidos os interesses <strong>da</strong> lavoura cafeeira,<br />

amplamente processa<strong>da</strong> <strong>de</strong> braços (...) pelas alterações resultantes <strong>da</strong> recente abolição <strong>da</strong><br />

escravatura”. 72 O Norte, o Sul e o Su<strong>de</strong>ste, para on<strong>de</strong> se voltavam os interesses econômicos,<br />

recebiam os imigrantes. 73 Nesse período, as eleições eram cartas marca<strong>da</strong>s: “Os governadores<br />

impunham seus candi<strong>da</strong>tos, (...) transformando as eleições em ato formal e confirmatório dos<br />

acordos <strong>da</strong> oligarquia. Isso não significava inexistência <strong>de</strong> conflitos intra-oligárquicos”. 74<br />

O Nor<strong>de</strong>ste era carente <strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças significativas. Ca<strong>da</strong> um se “salvava como podia”. É<br />

nesse contexto <strong>de</strong> um Nor<strong>de</strong>ste em chamas que Antônio Conselheiro chegou para organizar o que<br />

não interessava às elites: o povo. A Igreja também passava por gran<strong>de</strong>s transformações, que<br />

interferiam no processo político e social, com <strong>de</strong>ficiências na hierarquia eclesiástica, o que fazia<br />

com que o povo criasse sua própria religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, como veremos a seguir.<br />

1.6- A conjuntura eclesial<br />

Com a proclamação <strong>da</strong> República (1889), a Igreja separou-se do Estado. O processo<br />

conflituoso <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência acarretou algumas per<strong>da</strong>s. O Estado criou o casamento civil,<br />

assumiu a administração dos cemitérios, etc. A Igreja católica já vivia em conflito com o sistema<br />

imperial. A questão religiosa se arrastou <strong>de</strong> 1872 a 1875, período no qual foram presos os bispos<br />

72<br />

VIANA, Hélio, História do Brasil: Monarquia e República, São Paulo: Melhoramentos, 1974, p. 293.<br />

73<br />

Cf. Ibi<strong>de</strong>m, 294-295.<br />

74<br />

VILLA, Marco Antônio Villa, Canudos, o povo <strong>da</strong> terra..., p. 113-114.


37<br />

<strong>de</strong> Olin<strong>da</strong>, Dom Vital e do Pará, Dom Macedo Costa. Esse conflito foi conseqüência do<br />

regalismo dominante na política imperial, <strong>da</strong> própria situação ambivalente em matéria religiosa<br />

gera<strong>da</strong> pela instituição do regime <strong>de</strong> padroado, do qual se beneficiavam os próprios bispos, em<br />

termos <strong>de</strong> sustentação econômica <strong>de</strong> suas respectivas igrejas. 75 D. Manoel Joaquim <strong>da</strong> Silveira,<br />

arcebispo <strong>da</strong> Bahia e primaz do Brasil, saiu em <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> um <strong>de</strong> seus colegas que havia sido<br />

preso, com uma <strong>de</strong>claração publica<strong>da</strong> no Diário <strong>de</strong> Notícias. 76 A Igreja do Brasil vivia o reflexo<br />

do que acontecia na Europa. A Barca <strong>de</strong> Pedro estava agita<strong>da</strong> pelos ventos do liberalismo que se<br />

confrontava com as <strong>de</strong>cisões <strong>da</strong> Igreja. Thales <strong>de</strong> Azevedo documentou a repercussão do conflito<br />

no Brasil entre Igreja e Império, nestes termos:<br />

Nos primeiros anos 70 do período imperial, ressoava na Bahia – aparentemente só nos<br />

jornais – a questão religiosa que envolveu os bispos D. Vital <strong>de</strong> Oliveira, <strong>de</strong> Pernambuco,<br />

e D. Antônio <strong>de</strong> Macedo Costa, do Pará. Suce<strong>de</strong> que o primeiro, uma vez pronunciado, foi<br />

preso, e ao ser levado para a Corte sob custódia <strong>de</strong> um general, e acompanhado por seu<br />

secretário, esteve no porto <strong>da</strong> Bahia a bordo <strong>da</strong> corveta <strong>de</strong> guerra Recife, sendo transferido<br />

para o transporte Bonifácio em que, ao cabo <strong>de</strong> três dias, prosseguiu viagem. Segundo<br />

instrução do governo central, o presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Província fez por evitar quaisquer<br />

manifestações na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, as quais, ao que se po<strong>de</strong> presumir dos noticiários, não se<br />

tentaram. Importa registrar que somente o arcebispo primaz, Dom Manoel Joaquim <strong>da</strong><br />

Silveira, frustrado seu pedido para hospe<strong>da</strong>r o colega, teve autorização para visitar D.<br />

Vital na companhia <strong>de</strong> seu secretário e <strong>de</strong> algumas outras pessoas; estas teriam sido um<br />

religioso franciscano, representações <strong>da</strong> Associação Católica, seminaristas e estu<strong>da</strong>ntes <strong>de</strong><br />

medicina, entre os quais Manoel Vitorino Pereira (vi<strong>de</strong> Diário <strong>de</strong> Notícias); porém, a não<br />

ser seu secretário e o referido franciscano, todos os <strong>de</strong>mais impedidos <strong>de</strong> subir a bordo,<br />

limitando-se a permanecer na pequena embarcação que até lá levava, on<strong>de</strong> sau<strong>da</strong>ram o<br />

homenageado. O periódico Crônica Religiosa, que acompanhava aqueles acontecimentos,<br />

com editoriais e notícias, protestou. 77<br />

75 Cf. AZZI, Riolando, A Sé Primacial <strong>de</strong> Salvador: a Igreja Católica na Bahia (1551-2001), Período imperial e<br />

republicano, Petrópolis: Vozes, 2002, p. 18-19.<br />

76 “Nós, D. Manoel Joaquim <strong>da</strong> Silveira, por mercê <strong>de</strong> Deus e <strong>da</strong> Santa Sé Apostólica, Arcebispo <strong>da</strong> Bahia,<br />

metropolitano e primaz <strong>da</strong> Brasil, con<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Salvador, do Conselho <strong>de</strong> S. M. o Imperador: Visitando nas águas <strong>da</strong><br />

capital <strong>de</strong>sta arquidiocese o nosso muito colega e irmão, o Exmo e Revmo. Sr. Bispo <strong>de</strong> Olin<strong>da</strong>, D. Frei Vital Maria<br />

Gonçalves <strong>de</strong> Oliveira, que segue para a Corte do Império preso por or<strong>de</strong>m do governo imperial, e reconhecendo a<br />

injúria que se faz com esse ato à sua sagra<strong>da</strong> pessoa, e se arroga à Igreja Católica, e a todo o seu episcopado,<br />

especialmente o do Brasil; protestamos solenemente perante os fiéis <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a Santa Igreja <strong>de</strong> Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, com especiali<strong>da</strong><strong>de</strong> os <strong>de</strong>ste Império, e perante o mesmo governo <strong>de</strong> S. M. o Imperador, contra essa violência,<br />

que tão cruelmente fere os sentimentos católicos e to<strong>da</strong> a população, do mesmo Império. Bahia, 8 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1874.<br />

Arcebispo. Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Salvador”. Cit in: Ibi<strong>de</strong>m, p. 20-21.<br />

77 AZEVEDO, Thales, A guerra aos Párocos, Salvador: EGBA, 1992, 65-66.


38<br />

Nesse período, as idéias do ultramontanismo influenciavam o pensamento conservador e<br />

agitava as elites letra<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Bahia. Em 1871, o Concílio Vaticano I <strong>de</strong>finiu o dogma <strong>da</strong><br />

infalibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do Papa, segundo o qual, o Sumo Pontífice é infalível to<strong>da</strong> vez que proferir<br />

<strong>de</strong>cisões, não somente em questão <strong>de</strong> fé, como também no domínio moral, acerca <strong>da</strong> religião com<br />

a socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong> Igreja com o Estado, e até <strong>da</strong>s instituições nacionais. 78 Portanto, cabe a “todos os<br />

católicos uma submissão absoluta e sem reservas; cumpre-lhes respeitá-las no falar e no proce<strong>de</strong>r.<br />

Daqui vem que, aos olhos do ultramontanismo, é completamente monárquico o po<strong>de</strong>r do papa<br />

sobre a Igreja, e não conhece nem tolera limites”. 79 Logo veio a reação dos intelectuais com<br />

tendência esquerdista. O livro O Papa e o Concílio do teólogo alemão J. J. Von Döllinger foi<br />

traduzido por Rui Barbosa e tornou-se uma obra que “po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> como um<br />

complemento <strong>da</strong> questão religiosa, mediante a <strong>de</strong>núncia do ultramontanismo”. 80 O <strong>de</strong>bate entre o<br />

clero ultramontano e os intelectuais liberais prolongou-se até as últimas déca<strong>da</strong>s do período<br />

imperial. Hugo Fragoso apresentou o contexto mais amplo em que ocorreu a questão religiosa:<br />

Esta questão religiosa representou o clímax do conflito entre a Igreja ultraconservadora<br />

(ultramontana) e o liberalismo, representado <strong>de</strong> maneira especial pela maçonaria. Tal<br />

conflito revelou que a aliança entre Altar e Trono era como um casamento híbrido:<br />

matrimônio <strong>de</strong> uma Igreja conservadora com um Estado liberal. Este fermento liberalmaçônico<br />

era também um fator <strong>de</strong> <strong>de</strong>sagregação <strong>da</strong> monarquia, pois, em última análise,<br />

era aquele uma extensão <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ologia republicana”.<br />

Todo esse conflito (ultramontano versus liberais) era uma transplantação <strong>de</strong> um conflito<br />

maior que agitava a Europa, sob cuja influência i<strong>de</strong>ológica estavam nossos políticos e<br />

nossos homens <strong>da</strong> Igreja. Sobretudo, refletia-se no Brasil, o que se passava na Itália em<br />

revolução pela uni<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional, em conflito com a Igreja <strong>de</strong> Pio IX. Também aqui no<br />

Brasil tivemos o eco <strong>de</strong>sse ‘grito’ na luta entre a maçonaria e a Igreja. 81<br />

78 Dois novos dogmas foram proclamados: 1) O primado <strong>de</strong> jurisdição do Papa: o Papa é a instância suprema <strong>da</strong><br />

Igreja, não há outra instância superior a quem se possa apelar. Compete ao sumo Pontífice a “plenitu<strong>de</strong>” e não<br />

somente a “primazia”, como opinava o galicanismo. A Sé apostólica e os sucessores <strong>de</strong> Pedro, vigários <strong>de</strong> Jesus<br />

Cristo <strong>de</strong>tém a plenitu<strong>de</strong> do po<strong>de</strong>r em questão <strong>de</strong> fé, <strong>de</strong> costumes, <strong>de</strong> organização e <strong>de</strong> governo <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a Igreja.<br />

Neste sentido, o Papa está acima do próprio Concílio; 2) A infalibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do magistério solene do papa: Essa<br />

“ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” <strong>de</strong> fé é <strong>de</strong>cisiva <strong>de</strong> todo serviço à uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Igreja. O que for <strong>de</strong>terminado pelo papa <strong>de</strong>ve ser seguido por<br />

to<strong>da</strong>s as igrejas particulares. Mesmo aceitando as novas <strong>de</strong>cisões solenes do romano pontífice, houve críticas no<br />

campo teológico. Um maior aprofun<strong>da</strong>mento <strong>de</strong>sse tema cf. MARTINA, Giocomo, História <strong>da</strong> Igreja, <strong>de</strong> Lutero<br />

aos nossos dias: III – a era do liberalismo, São Paulo: Loyola, 1996, 147-286.<br />

79 Ibi<strong>de</strong>m, p.51.<br />

80 AZZI, Riolando, A Sé Primacial <strong>de</strong> Salvador..., p. 21.<br />

81 FRAGOSO, Hugo, Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> restauração, I, Salvador, EPSSAL, 1993, p. 11-12.


39<br />

A conheci<strong>da</strong> atitu<strong>de</strong> antiliberal <strong>de</strong> Pio IX, a partir <strong>de</strong> 1850, aumentou o abismo entre<br />

Igreja e a Era Mo<strong>de</strong>rna, <strong>de</strong> um lado, e <strong>da</strong> real ameaça política aos Estados Pontifícios, <strong>de</strong> outro.<br />

Em 1864, Pio IX publicou o Silabo, documento magisterial polêmico, que fazia uma síntese dos<br />

erros mais comuns do laicismo que se alastrava. O Silabo criou um forte rebuliço entre os<br />

próprios teólogos, bispos, e teóricos <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>. O referido documento papal, julgado por<br />

muitos como con<strong>de</strong>nação pontifícia a to<strong>da</strong>s as formas <strong>de</strong> liberalismo, atingiu não somente o<br />

liberalismo imanentista e radical, como também o liberalismo católico, <strong>de</strong>spertando reações <strong>de</strong><br />

teólogos que adotavam uma postura <strong>de</strong> diálogo com os mo<strong>de</strong>rnistas.<br />

A Igreja no Brasil vivia um processo <strong>de</strong> romanização. Ocorria, assim, uma política <strong>de</strong><br />

hierarquização ampara<strong>da</strong> nas <strong>de</strong>cisões romanas, com o objetivo <strong>de</strong> formar bispos e sacerdotes<br />

obedientes às regras vin<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Roma, distintas do povo e do mo<strong>de</strong>lo do catolicismo popular luso-<br />

brasileiro. Eram duas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> catolicismos. Se, por um lado, o sertão vivia um<br />

catolicismo popular, predominantemente laical, <strong>da</strong>s novenas, procissões, e sem muito “controle”<br />

<strong>da</strong> hierarquia – que fazia aliança com o governo imperial - por outro, surge um novo projeto<br />

pastoral para a Igreja do Brasil, que se preparava para enfrentar o liberalismo cuja característica<br />

principal era o anticlericalismo. “É a Igreja que se fecha sobre si mesma para organizar-se e,<br />

posteriormente, reiniciar a luta no campo político; é a época dos bispos reformadores”. 82<br />

Riolando Azzi <strong>de</strong>screveu as características <strong>de</strong>sse novo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Igreja entre os sertanejos,<br />

afirmando que ele é romano, clerical, tri<strong>de</strong>ntino e sacramentalista, com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> do controle<br />

hierárquico sobre a vi<strong>da</strong> religiosa dos fiéis. Os bispos fazem, então, uma opção por uma<br />

europeização <strong>da</strong>s Igrejas Particulares, como forma <strong>de</strong> obediência às or<strong>de</strong>ns emana<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Cúria<br />

Romana.<br />

A formação européia recebi<strong>da</strong> por gran<strong>de</strong> parte dos bispos reformadores em São Sulpício,<br />

na França, ou em Roma, e as novas congregações européias que se estabelecem no país<br />

82 PINHEIRO, José Francisco, Dependência e marginali<strong>da</strong><strong>de</strong>, in: HOORNAERT, Eduardo e DESRECHERS,<br />

Georgette (org.), Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo: Paulinas, 1984, p. 49.


passam a pesar fortemente na Igreja do Brasil [...] Os novos valores religiosos importados<br />

<strong>da</strong> Europa trazem to<strong>da</strong>s as marcas do romanismo, ou seja, <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>clara<strong>da</strong> vinculação<br />

com a Cúria Romana. 83<br />

40<br />

Três grupos <strong>de</strong> missionários se <strong>de</strong>stacavam entre os sertanejos: os lazaristas franceses que,<br />

posteriormente, assumiram a função nos seminários; os padres diocesanos que exerciam forte<br />

influência na organização <strong>da</strong>s missões, e os capuchinhos italianos, i<strong>de</strong>ntificados fortemente com<br />

o povo do sertão. 84 Esses “novos institutos religiosos trazem novos santos, novas <strong>de</strong>voções, novas<br />

práticas religiosas que, progressivamente, se sobrepõem à vi<strong>da</strong> do catolicismo tradicional”. 85<br />

Mesmo com as iniciativas <strong>de</strong> apoio aos pobres, como construções <strong>de</strong> casas <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

mutirões comunitários, sacramentalização, etc., a Igreja Católica não respondia às reais<br />

expectativas do povo. “O sertanejo, por sua vez, é vítima <strong>de</strong> um contato fugidio, mecânico,<br />

formal, sempre apressado, irregular e, afinal <strong>de</strong> contas, pouco orgânico por parte <strong>da</strong> Igreja oficial.<br />

Por isso, ele cria um cristianismo próprio, alimentado pelas santas missões”. 86 A migração<br />

provoca<strong>da</strong> pela crise dilacerava a estrutura familiar, criando uniões fora do casamento e outros<br />

problemas pastorais. 87 Havia um dúbio comportamento do clero. “Os vigários não correspondiam<br />

ao i<strong>de</strong>al do caboclo: não praticavam nem a pobreza, nem o <strong>de</strong>sprendimento, nem a casti<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

muitas vezes nem a cari<strong>da</strong><strong>de</strong>”. 88 A chega<strong>da</strong> <strong>de</strong> um padre numa locali<strong>da</strong><strong>de</strong> “é um horror para o<br />

pobre, rapa todo o dinheiro”, 89 afirma o beato Pedro Batista. A agitação política, a crise <strong>de</strong><br />

valores, os problemas do clero, a separação entre a Igreja e o Estado, a implantação do projeto <strong>de</strong><br />

romanização aumentam ain<strong>da</strong> mais a insegurança do sertanejo, “entregue ao Deus <strong>da</strong>rá”.<br />

83<br />

AZZI, Riolando, O episcopado brasileiro frente ao catolicismo popular, Petrópolis: Vozes, 1977, p. 112.<br />

84<br />

Cf. HOORNAERT, Eduardo, O cristianismo moreno do Brasil, Petrópolis: Vozes, 1990, p. 50-51.<br />

85<br />

AZZI, Riolando, O episcopado brasileiro frente ao catolicismo popular..., p. 115.<br />

86<br />

Ibi<strong>de</strong>m, p. 49.<br />

87<br />

Cf. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira <strong>de</strong>, O messianismo no Brasil e no mundo, São Paulo: Alfa-Ômega, 1977, p.<br />

327.<br />

88<br />

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira <strong>de</strong>, O messianismo no Brasil e no mundo..., p. 317.<br />

89<br />

Cit. in: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira <strong>de</strong>, O Messianismo no Brasil e no mundo..., p. 317.


41<br />

O povo foi criando uma experiência própria, a partir <strong>da</strong> religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> popular, com<br />

características especiais, alimenta<strong>da</strong> pelas Santas Missões. A Igreja oficial atendia aos fiéis<br />

ocasionalmente, ora quando o padre diocesano aparecia para as <strong>de</strong>sobrigas, ora quando os<br />

missionários chegavam para as Missões ocasionais, que se constituem num método reconhecido<br />

pelo Concílio <strong>de</strong> Trento no século XVI, para atingir populações rurais mal assisti<strong>da</strong>s pelo sistema<br />

paroquial. Esse método foi usado “por jesuítas, carmelitas ou franciscanos do século 17 e<br />

primeira meta<strong>de</strong> do século 18, oratorianos portugueses e capuchinhos italianos, lazaristas<br />

franceses e grupos <strong>de</strong> sacerdotes seculares do tipo Ibiapina ou Herculano”. 90 As idéias <strong>de</strong> Trento<br />

começaram a ser aplica<strong>da</strong>s no Brasil no final do século XVIII e no início do século XIX. A<br />

romanização do catolicismo brasileiro se realizou em oposição ao sistema do Padroado, centrado<br />

em Lisboa, a partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XIX. Nesse período, as Santas Missões criaram<br />

dinamismos que perduram até hoje.<br />

O cristianismo trazido pelos missionários portugueses continha misturas <strong>de</strong> conteúdos.<br />

Junto com os sacramentos e as <strong>de</strong>voções aos santos, apareciam as gran<strong>de</strong>s pregações sobre o céu,<br />

o inferno e o purgatório. O povo abraçou esse cristianismo <strong>de</strong>vocional, segundo Eduardo<br />

Hoornaert, <strong>de</strong> caráter penitencial, sacramentalista, profun<strong>da</strong>mente social e laical. Era um<br />

cristianismo que trazia o medo, como método para conquistar a<strong>de</strong>ptos. As marcas <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong>s pelas<br />

Santas Missões eram inesquecíveis para o povo pobre. 91 Por on<strong>de</strong> a hierarquia eclesiástica foi<br />

90 HOORNAERT, Eduardo, O cristianismo moreno do Brasil…, p. 49.<br />

91 Eduardo Hoornaert chama a atenção para a influência dos dias <strong>de</strong> missões para o povo. Para ele, “as Santas<br />

Missões tiveram igualmente um aspecto profun<strong>da</strong>mente social, não só no sentido <strong>de</strong> unir o povo que normalmente<br />

vivia tão isolado nas imensidões do sertão, mas sobretudo realizando obras <strong>de</strong> máxima importância para as<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s interioranas, como pontes, estra<strong>da</strong>s, canais <strong>de</strong> irrigação, açu<strong>de</strong>s, cemitérios, igrejas, tanques, ou<br />

cacimbas. Uma obra que marca em todo canto a realização <strong>da</strong>s Santas Missões é o cruzeiro erguido em mutirão na<br />

praça central <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. (...) Po<strong>de</strong>mos dizer que as Santas Missões eram momentos <strong>de</strong> ‘administração popular’ <strong>da</strong><br />

coisa publica e que elas <strong>de</strong>sta forma contribuíram muito para criar no povo um senso comunitário e público. Isso<br />

tanto é ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que se dizia dos missionários que eles eram os ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros ‘governadores’ do povo sertanejo, e eles<br />

em conseqüência disso recebiam missões oficiais por parte <strong>de</strong> um governo que não se aventurava em penetrar no<br />

interior, por exemplo, a missão <strong>de</strong> apaziguar o povo em momentos <strong>de</strong> revoltas e rebeliões, como no caso <strong>de</strong> Canudos,<br />

on<strong>de</strong> Frei João Evangelista <strong>de</strong> Monte Marciano atuou como conciliador entre o povo <strong>de</strong> Canudos e o governo <strong>da</strong><br />

Bahia”. Ibi<strong>de</strong>m, p. 52.


42<br />

construindo “igrejas e catedrais, conventos e mosteiros, a <strong>de</strong>voção construiu uma multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> santuários que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os santuários domésticos (os oratórios com enorme varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

santos) até os centros <strong>de</strong> romarias que hoje congregam milhares e milhares <strong>de</strong> <strong>de</strong>votos”. 92<br />

Sabemos que a “<strong>de</strong>voção freqüentemente é marginaliza<strong>da</strong> socialmente, mas eclesialmente ela<br />

po<strong>de</strong> apresentar documentos <strong>de</strong> veraci<strong>da</strong><strong>de</strong> insuspeita. Ela constitui um legítimo mo<strong>de</strong>lo<br />

eclesial”. 93 Eduardo Hoornaert fala em duas forças sociais que mo<strong>de</strong>laram o modo <strong>de</strong> pensar dos<br />

brasileiros no final do século XIX: “a força <strong>da</strong> instituição oficial (a missão) e a <strong>de</strong>voção”. 94<br />

A fé do sertanejo foi motiva<strong>da</strong> por orações, benditos, procissões e novenas aos santos.<br />

Esse catolicismo popular e <strong>de</strong>vocional não era exclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong> do leigo, embora ser leigo fosse uma<br />

característica marcante. Faziam parte <strong>de</strong>ssa corrente <strong>de</strong> espirituali<strong>da</strong><strong>de</strong> os padres Cícero <strong>de</strong><br />

Juazeiro, Ibiapina e outras li<strong>de</strong>ranças como Pedro Batista, em Santa Brígi<strong>da</strong> e o Beato Lourenço,<br />

em Pau <strong>de</strong> Colher, que exerceram forte influência na vi<strong>da</strong> religiosa e social do sertanejo, a partir<br />

do final do século XIX, até nossos dias. O século XIX foi fértil no cultivo <strong>de</strong> <strong>conselheiro</strong>s e<br />

beatos. 95 Eles participavam ativamente <strong>da</strong>s Santas Missões, eram confirmados pelo povo, a partir<br />

do envolvimento nas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s religiosas, como responsáveis pela continui<strong>da</strong><strong>de</strong> dos trabalhos,<br />

após a <strong>de</strong>spedi<strong>da</strong> dos missionários. A realização <strong>da</strong>s missões tornava-se ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira escola prática<br />

<strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças leigas que continuavam os trabalhos nas comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s sertanejas, especialmente<br />

aon<strong>de</strong> o padre diocesano <strong>de</strong>morava a retornar. Os momentos <strong>de</strong> mutirões, celebrações,<br />

confissões, casamentos comunitários, bênçãos, pregações e benditos <strong>da</strong>s missões funcionavam no<br />

92 HOORNAERT, Eduardo, O cristianismo moreno no Brasil...,p. 67.<br />

93 HOORNAERT, Eduardo, O cristianismo moreno no Brasil..., p. 67.<br />

94 HOORNEART, Eduardo, O cristianismo moreno no Brasil..., p. 67.<br />

95 CALAZANS, José, Quase biografia <strong>de</strong> jagunços: o séquito <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, Salvador: Centro <strong>de</strong><br />

Estudos Baianos/UFBA, 1986, p. 13: “Ao beato cabia a missão <strong>de</strong> tirar rezas, contar la<strong>da</strong>inhas, pedir esmolas para as<br />

obras <strong>da</strong> Igreja. O Conselheiro ia além disso, porque, mais bem preparado sobre os temas religiosos, pregava, <strong>da</strong>va<br />

conselhos”.


43<br />

imaginário religioso do sertanejo como uma avalanche <strong>de</strong> conteúdos, no processo <strong>da</strong><br />

continui<strong>da</strong><strong>de</strong> dos trabalhos, agora coor<strong>de</strong>nados pelas próprias li<strong>de</strong>ranças leigas.<br />

Antônio Conselheiro, vivendo nesse contexto, fez parte <strong>de</strong>ssa experiência popular do<br />

catolicismo sertanejo que, mesmo com a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> romanização, continua existindo até hoje. Os<br />

gran<strong>de</strong>s centros <strong>de</strong> romarias no Nor<strong>de</strong>ste, como as romarias <strong>de</strong> Canudos, <strong>da</strong> Juventu<strong>de</strong> em<br />

Adustina, Patamuté, Bom Jesus <strong>da</strong> Lapa e Senhor do Bom Fim, na Bahia; Nossa Senhora Divina<br />

Pastora, em Sergipe; Juazeiro e Canindé, no Ceará; Zumbi dos Palmares, em Alagoas e outros<br />

pequenos centros <strong>de</strong> romarias alimentam essa religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>. 96<br />

1.7- De Antônio Vicente Men<strong>de</strong>s Maciel a Antônio Conselheiro: história <strong>de</strong> um<br />

Beato Conselheiro<br />

Inicialmente, é preciso consi<strong>de</strong>rar a figura do beato e <strong>da</strong> beata no sertão nor<strong>de</strong>stino do<br />

século XIX. Eduardo Hoornaert <strong>de</strong>fine o beato como um “Tipo <strong>de</strong> cristão engajado na ‘via<br />

peregrina’ ou no cristianismo itinerante. É também chamado ‘<strong>de</strong>voto’ ou ‘romeiro’. Foi<br />

marginalizado pela romanização”. 97 Esta estabeleceu as gran<strong>de</strong>s linhas postas em prática pelos<br />

bispos reformadores, <strong>de</strong> formação européia: ela é romana, clerical, tri<strong>de</strong>ntina e sacramentalista.<br />

Tudo <strong>de</strong>via ser enquadrado no “institucional” e <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>s normas do Direito Canônico. Padre<br />

Ibiapina, por exemplo, teve que orientar a vi<strong>da</strong> religiosa <strong>de</strong> suas beatas, à revelia <strong>da</strong>s orientações<br />

vin<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Roma. 98 Hugo Fragoso fez um paralelo entre as irmãs <strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong> do Padre Ibiapina e<br />

as irmãs trazi<strong>da</strong>s pelos bispos reformadores. Aquelas, além <strong>de</strong> serem nativas, tinham o pé no chão<br />

do próprio Nor<strong>de</strong>ste; estas, porém, estavam liga<strong>da</strong>s às instituições religiosas, tinham a cabeça<br />

96 Um excelente estudo sobre o discernimento <strong>da</strong> fé foi feito por Pedro Rubens. Cf. BUBENS, Pedro, Discerner la<br />

foi <strong>da</strong>ns <strong>de</strong>s contextes religieux ambigus: enjeus d’ une théologie du croire, Paris: Cerf, 2004.<br />

97 HOORNAERT, Eduardo, O Cristianismo Moreno do Brasil..., p. 170.<br />

98 Cf. FRAGOSO, Hugo, As beatas do Pe. Ibiapina: uma forma <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> religiosa para os sertões do Nor<strong>de</strong>ste, in:<br />

HOORNAERT, Eduardo e DESROCHERS, Georgette (org.), O Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres..., p. 85-<br />

106.


volta<strong>da</strong> para a Europa e faziam parte do projeto <strong>de</strong> romanização. 99 44<br />

As Beatas do Padre Ibiapina<br />

“teriam mais o cheiro do sertão sem ranços <strong>de</strong> aca<strong>de</strong>mismos; teriam mais o sabor dos interiores<br />

nor<strong>de</strong>stinos sem gosto <strong>de</strong> frutas estrangeiras”. 100 As “Irmãs <strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong>m ter sido<br />

excogita<strong>da</strong>s como uma tradução sertaneja <strong>da</strong>s SOEURS DE CHARITÉ DE SAINT VINCENT<br />

DE PAUL”. 101 Nessa época, as beneméritas Filhas <strong>de</strong> São Vicente estavam chegando <strong>da</strong> França,<br />

solicita<strong>da</strong>s zelosamente pelos bispos reformadores, “para <strong>de</strong>senvolverem suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s nas<br />

capitanias e gran<strong>de</strong>s centros urbanos. Ao invés disso, Padre Ibiapina plantou suas beatas lá no<br />

mato, on<strong>de</strong> vivia todo um povo <strong>de</strong>samparado”. 102<br />

Antônio Vicente conhecia a mística dos Beatos e Beatas do Nor<strong>de</strong>ste. Primeiro, ele é um<br />

Beato, seguidor dos missionários e puxador <strong>de</strong> rezas; quando recebe o título <strong>de</strong> Conselheiro é<br />

com uma missão específica. “Parece que se sente obrigado a pregar. Por nenhum preço larga suas<br />

prédicas”. 103 Conselheiro é aquele que fala, que dá conselhos. Um penitente ou Beato não prega.<br />

Nos três anos, <strong>de</strong> 1871 a 1874, não se têm notícias seguras sobre o para<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Antônio<br />

Vicente. Foi esse o período em que ele rompeu com os laços familiares e sociais, abandonou as<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s materiais e fez uma intensa experiência religiosa, 104 como um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro peregrino.<br />

Ouviu o chamado do Senhor, à semelhança <strong>de</strong> João Batista, pregador no <strong>de</strong>serto <strong>da</strong> Judéia:<br />

“Convertei-vos, porque o Reino do Céu está próximo” (Mt 3,2) e do Padre Ibiapina. Aliás, o<br />

distanciamento estratégico <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> família, foi uma prática implanta<strong>da</strong> pelo próprio<br />

Cristo e inspirou diversas práticas ao longo <strong>da</strong> história <strong>da</strong> Igreja: “Quem tiver a própria vi<strong>da</strong><br />

99<br />

Cf. FRAGOSO, Hugo, As Beatas <strong>de</strong> Pe. Ibiapina: uma forma <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> religiosa nos sertões do Nor<strong>de</strong>ste..., p.<br />

94-101.<br />

100<br />

FRAGOSO, Hugo, As Beatas <strong>de</strong> Pe. Ibiapina: uma forma <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> religiosa nos sertões do Nor<strong>de</strong>ste..., p. 94.<br />

101<br />

FRAGOSO, Hugo, As Beatas <strong>de</strong> Pe. Ibiapina: uma forma <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> religiosa nos sertões do Nor<strong>de</strong>ste..., p. 95-<br />

96.<br />

102<br />

FRAGOSO, Hugo, As Beatas <strong>de</strong> Pe. Ibiapina: uma forma <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> religiosa nos sertões do Nor<strong>de</strong>ste..., p. 96.<br />

103<br />

OTTEN, Alexandre, Só Deus é Gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 145.<br />

104<br />

Também, antes ser or<strong>de</strong>nado sacerdote, o Mestre Ibiapina passou um tempo retirado, preparando-se para uma vi<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> intensa missão. Quanto a Jesus, o Espírito o conduziu ao <strong>de</strong>serto para ser tentado pelo diabo. Foi durante a<br />

experiência do <strong>de</strong>serto, que Jesus superou as tentações. Cf. Mt 4, 1-11; Mc 2, 12-13; Lc 4,1-13.


45<br />

assegura<strong>da</strong> perdê-la-á e quem per<strong>de</strong>r a vi<strong>da</strong> por minha causa vai achá-la” (Mt, 10,39) ou, ain<strong>da</strong>:<br />

“E todo aquele que houver <strong>de</strong>ixado casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos ou campos por causa do<br />

meu Nome, receberá muito mais e, em herança, a vi<strong>da</strong> eterna” (Mt 19,29). 105<br />

A essa altura, a vi<strong>da</strong> itinerante já tinha se consoli<strong>da</strong>do. Durante suas an<strong>da</strong>nças pelo Sul do<br />

Ceará, em Paus Brancos, em direção do Crato, “fere com ímpeto <strong>de</strong> alucinado, à noite, um<br />

parente, que o hospe<strong>da</strong>. Fazem-se breves inquirições policiais, tolhi<strong>da</strong>s logo pela própria vítima,<br />

reconhecendo a não-culpabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do agressor”. 106 Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha fala que Antônio V. Maciel<br />

<strong>de</strong>sapareceu por um período <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos, <strong>de</strong> todo esquecido 107 , sem que houvesse notícias<br />

confirma<strong>da</strong>s. Manoel Benício fala em seis anos sem notícias <strong>de</strong> Maciel. Em 1865, ele esteve na<br />

pequena ci<strong>da</strong><strong>de</strong> cearense <strong>de</strong> Campo Gran<strong>de</strong> e, em segui<strong>da</strong>, visitou a ex-mulher, a quem<br />

recomendou, pela ultima vez, o filho. “É provável que, engrossando o número dos peregrinos que<br />

acautelavam os missionários, ele atravesse os sertões do Norte até a Bahia, nesta <strong>da</strong>ta do seu<br />

<strong>de</strong>saparecimento do Ceará, 1867 a 1868”. 108 Em 1873, foi encontrado em Itapicuru, Estado <strong>da</strong><br />

Bahia. Para Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha, Antônio Vicente percorreu os sertões <strong>de</strong> Pernambuco e apareceu<br />

na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> sergipana <strong>de</strong> Itabaiana em 1874. De fato, o jornal semanário O Rabudo, <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

sergipana <strong>de</strong> Estância, noticiou sua passagem por Sergipe, na edição <strong>de</strong> 22 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1874,<br />

qualificando-o <strong>de</strong> Antônio dos Mares. Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha traça as características do an<strong>da</strong>rilho<br />

Antônio, durante a passagem por Sergipe. Era um <strong>de</strong>sconhecido, suspeito e trajes esquisitos:<br />

camisolão azul, sem cintura, chapéu com abas largas e <strong>de</strong>rruba<strong>da</strong>s, e sandálias. Levava nas costas<br />

105<br />

Ao longo <strong>da</strong> história do cristianismo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Jesus, passando pela Europa Medieval, quando “alguém <strong>de</strong>cidia<br />

tornar-se um pregador itinerante, ortodoxo ou dissi<strong>de</strong>nte, muitas vezes começava por afastar-se para uma floresta,<br />

vivendo durante algum tempo como eremita. Durante esse período <strong>de</strong> retiro ascético, adquiria o po<strong>de</strong>r espiritual para<br />

a sua missão, po<strong>de</strong>ndo, ain<strong>da</strong> adquirir também a fama <strong>de</strong> santo e atrair os seus primeiros seguidores”. COHN,<br />

Norman, Na sen<strong>da</strong> do milênio, Lisboa: Presença, 1981, p. 35. Isso aconteceu com Antônio Vicente. Possivelmente,<br />

Padre Ibiapina tenha sido exemplo.<br />

106<br />

CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Os Sertões..., p. 114.<br />

107<br />

Ibi<strong>de</strong>m, p. 214.<br />

108<br />

BENÍCIO, Manoel, O rei dos jagunços: crônicas históricas e <strong>de</strong> costumes sertanejos sobre os acontecimentos<br />

<strong>de</strong> Canudos..., p. 22.


46<br />

um surrão <strong>de</strong> couro, com papel, pena e tinta, dois livros intitulados a Missão Abrevia<strong>da</strong> e as<br />

Horas Marianas. 109<br />

Ataliba Nogueira <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a tese segundo a qual, a partir do fechamento do comércio por<br />

falta <strong>de</strong> vocação e <strong>da</strong> fuga <strong>da</strong> mulher, que fugiu com João <strong>da</strong> Mata, furriel <strong>da</strong> força pública <strong>da</strong><br />

província, Antônio mudou inteiramente a vi<strong>da</strong> e sentiu-se livre para realizar seu sonho <strong>de</strong><br />

missionar junto aos sertanejos <strong>de</strong>svalidos. É a partir <strong>de</strong>sses episódios que ele entrou numa crise<br />

aparentemente profun<strong>da</strong>. Alexandre Otten enten<strong>de</strong> que a crise pessoal “se torna, tudo indica, seio<br />

para uma vi<strong>da</strong> nova. Começaria uma nova fase na vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Antônio. Ele perambula pelos sertões<br />

como peregrino penitente”. 110 Ataliba Nogueira divi<strong>de</strong> a história <strong>de</strong> Antônio Vicente em duas<br />

etapas bastante distintas. 111 A primeira, foi um período <strong>de</strong> profun<strong>da</strong> instabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, migração,<br />

mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> empregos e ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s em locais diferentes. Des<strong>de</strong> a liqui<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> casa comercial,<br />

ascen<strong>de</strong>u a profissões <strong>de</strong> maior status: escrivão, solicitador e advogado provisionado. Há os que<br />

supõem que ele procurava a mulher e seu sedutor para uma possível vingança, por terem<br />

maculado a honra <strong>de</strong> sua família. “Não há outra explicação para a vi<strong>da</strong> an<strong>de</strong>ja. Sua presença é<br />

nota<strong>da</strong> em muitos pontos do Ceará. Tudo, porém, em vão. Não os encontrou nunca”. 112 É uma<br />

hipótese que não tem consistência. Talvez a hipótese mais provável seja a crise econômica que<br />

produzia uma leva <strong>de</strong> migrantes em busca <strong>de</strong> sobrevivência. Antônio fazia parte <strong>de</strong>ssa leva. Na<br />

segun<strong>da</strong> etapa <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>, após comprovação <strong>de</strong> sua competência e criativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, ele passou a<br />

construir cemitérios, capelas e igrejas, com muita eficiência. Nessa fase, o An<strong>da</strong>rilho passa pelos<br />

sertões baianos <strong>de</strong> Curaçá, estacionando-se em Chorrochó (1877), cuja movimenta<strong>da</strong> feira<br />

juntava a maioria dos habitantes dos lugarejos do Médio São Francisco. O autor <strong>de</strong> Os sertões<br />

109 Cf. CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Os sertões..., p. 217.<br />

110 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 144.<br />

111 Cf. NOGURIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica..., p. 5-6.<br />

112 NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica..., p. 5.


adjetivava as Igrejas, construí<strong>da</strong>s por Antônio Vicente, <strong>de</strong> “Capela Elegante”, 113 47<br />

como é o caso <strong>da</strong><br />

Igreja <strong>de</strong> Chorrochó, que existe até hoje.<br />

O Jornal <strong>de</strong> Notícia 114 <strong>da</strong> capital baiana publicou um artigo <strong>de</strong> Durval Vieira Aguiar, <strong>de</strong><br />

26/6/1893, no qual constatava a forte li<strong>de</strong>rança do Conselheiro, seguindo “sertão a<strong>de</strong>ntro”<br />

acompanhado por um enorme séquito, gente inofensiva que só se assanhava em <strong>de</strong>fesa do<br />

Conselheiro. Ele atraía para si as mesmas honras, as mesmas práticas e o mesmo apoio dos<br />

missionários. Ele “aconselha o casamento, os batizados, as orações e os bons costumes, se bem<br />

que em linguagem menos correta”. 115 O professor José Calazans reconhece que nenhuma outra<br />

pessoa, diante dos volumosos problemas dos sertanejos, tenha prestado maiores serviços aos<br />

pobres como Antônio Conselheiro. 116 Em 1893, um jornal <strong>de</strong> Salvador noticiou que um certo<br />

Antônio Vicente Men<strong>de</strong>s Maciel, conhecido por Antônio Conselheiro, acompanhado <strong>de</strong> um<br />

numerosíssimo séquito, “faz pregações públicas sobre religião, a modo <strong>da</strong>s missões feitas por<br />

capuchinhos ou lazaristas nas paróquias rurais”. 117 Por essa altura, sua populari<strong>da</strong><strong>de</strong> era<br />

incontestável. Alguns serviços que o Estado e a Igreja não conseguiam realizar, Antônio<br />

Conselheiro os fazia com o povo em mutirões. É claro que isso criaria conflitos com a Igreja<br />

instituição e o ineficiente Estado, como veremos na seqüência <strong>de</strong>ste trabalho.<br />

113 Cf. CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Os Sertões..., p. 222. O Peregrino, “De 1877 a 1887 erra por aqueles sertões, em todos<br />

os sentidos, chegando mesmo até o litoral, em Villa do Con<strong>de</strong> (2887). Em to<strong>da</strong> esta área não há, talvez, uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

ou povoado on<strong>de</strong> não tenha aparecido. Alagoinha, Iambupe, Bom Conselho, Jeremoabo, Cumbe e outros, viram-no<br />

chegar acompanhado <strong>da</strong> frândula <strong>de</strong> fiéis. Em quase to<strong>da</strong>s <strong>de</strong>ixava um traço <strong>de</strong> passagem: aqui um cemitério<br />

arruinado, além uma igreja renova<strong>da</strong>; adiante uma capela que erguia, elegante sempre”. Ibi<strong>de</strong>m, p. 222-223.<br />

114 Um bom documentário sobre o papel <strong>da</strong> imprensa na cobertura <strong>da</strong> Guerra <strong>de</strong> Canudos, cf. GALVÃO, Walnice<br />

Nogueira, No calor <strong>da</strong> hora: a guerra <strong>de</strong> Canudos nos jornais, 4ª expedição, São Paulo: Ática, 1974.<br />

115 Cit in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 150.<br />

116 CALAZANS, José, Antônio Conselheiro: construtor <strong>de</strong> Igrejas e cemitérios, in: Revista Brasileira <strong>de</strong> Cultura,<br />

26 (1973), p. 71.<br />

117 Jornal <strong>de</strong> Notícias, Salvador, 16/6/1893.


Conclusão<br />

O primeiro acesso à Guerra <strong>de</strong> Canudos, após mais <strong>de</strong> cem anos do final do<br />

acontecimento, continua sendo o clássico Os Sertões, <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha. Antes <strong>de</strong> escrever<br />

Os Sertões, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha tratou, pela primeira vez, <strong>da</strong> Guerra <strong>de</strong> Canudos no artigo A nossa<br />

Vendéia, publicado no jornal O Estado <strong>de</strong> São Paulo, em 24 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1897, motivado pelo<br />

revés sofrido pela Expedição Moreira Cezar, no enfrentamento com os seguidores <strong>de</strong> Antônio<br />

Conselheiro, como se verá com mais <strong>de</strong>talhe na segun<strong>da</strong> parte <strong>de</strong>sta pesquisa. Porém, como se<br />

po<strong>de</strong> perceber neste primeiro capítulo <strong>de</strong>ste trabalho, há uma série <strong>de</strong> novos autores que ampliam<br />

a visão <strong>de</strong> Os Sertões. Criticam-no ele e vão muito além <strong>de</strong> sua visão marca<strong>da</strong> pela filosofia<br />

positivista e pelos condicionamentos próprios <strong>de</strong> um jornalista que acompanhou as tropas<br />

oficiais. Isso, evi<strong>de</strong>ntemente, não <strong>de</strong>smerece o papel fun<strong>da</strong>mental <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha e a<br />

quali<strong>da</strong><strong>de</strong> literária <strong>de</strong> Os Sertões, mas redimensiona essa gran<strong>de</strong> obra <strong>da</strong> literatura brasileira.<br />

Po<strong>de</strong>-se perceber, a partir <strong>da</strong> releitura histórica <strong>da</strong> Guerra <strong>de</strong> Canudos, 118 <strong>da</strong>dos que não<br />

são encontrados no referido autor como, por exemplo, a <strong>da</strong>ta correta do nascimento <strong>de</strong> Antônio<br />

Conselheiro, a superação <strong>de</strong> certos preconceitos no que diz respeito ao povo nor<strong>de</strong>stino, tratado<br />

<strong>de</strong> raça inferior ou sub-raça, etc.<br />

Mesmo sem ter oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> passar por um maior aprofun<strong>da</strong>mento formal nos estudos,<br />

Antônio Conselheiro teve uma formação consistente, capaz <strong>de</strong> assumir com clareza uma opção <strong>de</strong><br />

classe, ameaçar a República e questionar a prática dos cristãos, especialmente <strong>da</strong> alta hierarquia<br />

eclesiástica. Canudos não foi uma Igreja paralela, nem um movimento <strong>de</strong> revoltosos no seio <strong>da</strong><br />

Igreja Católica, mas uma voz profética, inspira<strong>da</strong> pelo próprio Espírito <strong>de</strong> Deus, capaz <strong>de</strong> formar<br />

uma Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> irmãos, cuja orientação maior era a Palavra <strong>de</strong> Deus (a Bíblia Sagra<strong>da</strong>) e os<br />

118 Uma releitura <strong>da</strong> Guerra <strong>de</strong> Canudos, foi feita por Vargas Llosa, cf. LLOSA, Mario Vargas, A Guerra do fim do<br />

mundo: a saga <strong>de</strong> Antônio Conselheiro na maior aventura literária do nosso tempo, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Francisco<br />

Alves, 1982.<br />

48


49<br />

ensinamentos <strong>da</strong> Igreja. Antônio Conselheiro não era contra a Igreja, mas reagia a certas práticas<br />

<strong>de</strong> muitas li<strong>de</strong>ranças eclesiásticas, que se beneficiavam do padroado, distanciando-se ca<strong>da</strong> vez<br />

mais do ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro sentido <strong>da</strong> fé cristã.<br />

Com a crise econômica, política e social do final do século XIX, Antônio Conselheiro<br />

ocupou um espaço significativo, junto às classes menos favoreci<strong>da</strong>s dos sertões nor<strong>de</strong>stinos. Ele<br />

experimentou na vi<strong>da</strong> familiar a luta pela terra, que causou per<strong>da</strong>s significativas no seio <strong>de</strong> sua<br />

família. Além disso, sua conversão à missão religiosa foi uma arma po<strong>de</strong>rosa, tanto para suas<br />

convicções pessoais, quanto para sua aceitação no meio dos pobres. Nesse sentido, ter participado<br />

<strong>da</strong>s missões com o Padre Ibiapina, assegurou-lhe a facili<strong>da</strong><strong>de</strong> necessária para enten<strong>de</strong>r as massas,<br />

trabalhar com elas e respon<strong>de</strong>r às suas reais aspirações. Para o povo, não havia alternativas nem<br />

no campo político e econômico e, tampouco, na dimensão religiosa. A Igreja oficial estava<br />

distante dos reais interesses <strong>da</strong>s classes menos favoreci<strong>da</strong>s, tentando resolver a crise do padroado,<br />

como forma <strong>de</strong> se preparar para enfrentar sua in<strong>de</strong>pendência financeira e política. O movimento<br />

<strong>de</strong> Canudos foi a via possível, para atingir tal fim num momento <strong>de</strong> crise social. A romanização<br />

se contrapôs ao Catolicismo Popular, causando <strong>de</strong>sdobramentos, tanto para a classe política,<br />

quanto para a Igreja institucional, o que aprofun<strong>da</strong>remos no próximo capítulo.


CAPÍTULO II<br />

UNIVERSO RELIGIOSO DE ANTÔNIO CONSELHEIRO<br />

Este capítulo é consagrado a uma apresentação <strong>da</strong> natureza concernente ao universo religioso do<br />

principal fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos, Antônio Conselheiro. A <strong>de</strong>scrição do universo<br />

religioso <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Belo Monte 1 será feita a partir <strong>de</strong> fontes <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong>s pelo próprio<br />

Conselheiro, com o auxílio <strong>de</strong> elementos <strong>da</strong> própria historiografia sobre o fato Canudos,<br />

especialmente <strong>de</strong> autores que optaram pela revisão histórica do referido acontecimento. Não se<br />

esgotam to<strong>da</strong>s as questões apresenta<strong>da</strong>s para a compreensão <strong>da</strong> Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> belo-montense: 2<br />

surgimento, organização, <strong>de</strong>struição, a função <strong>da</strong>s elites rurais, políticas, religiosas e o papel do<br />

Estado brasileiro no episódio que mais preocupou o mundo político e a própria Igreja Católica,<br />

no alvorecer <strong>da</strong> República, início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1890.<br />

Antônio Conselheiro não chegou a Canudos por acaso. A organização <strong>de</strong> sua comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

foi fruto do planejamento e efetivação <strong>de</strong> um projeto religioso, com dimensão claramente<br />

política. Há estreita relação <strong>da</strong>s dimensões política e religiosa no projeto do Peregrino. Muitos<br />

estudiosos afirmam que o religioso aparece em Canudos como passo necessário para chegar a<br />

fins políticos e econômicos. O que revelou a prática do Peregrino? Ele foi um agente político ou<br />

procurava implantar o reino <strong>de</strong> Deus na terra? A nossa proposta parte <strong>da</strong> experiência <strong>de</strong> Canudos.<br />

A motivação foi <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m meramente político-social ou <strong>de</strong> natureza religiosa? Paira uma dúvi<strong>da</strong><br />

1 Além <strong>de</strong> Canudos, a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> que abrigou o povo peregrino, li<strong>de</strong>rado por Antônio Conselheiro, também foi<br />

batiza<strong>da</strong> por Belo Monte. No Estado <strong>de</strong> Alagoas há uma pequena ci<strong>da</strong><strong>de</strong> chama<strong>da</strong> Belo Monte. Porém,<br />

provavelmente Antônio Conselheiro tenha se inspirado no mundo bíblico, na Jerusalém do Alto, ou na Terra<br />

Prometi<strong>da</strong>.<br />

2 Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha batizou a vila conselheirista como a “Jerusalém <strong>de</strong> Taipa”.


51<br />

que não foi totalmente esclareci<strong>da</strong> ao longo dos estudos históricos, antropológicos e teológicos.<br />

Procuraremos analisar essa questão, ao longo <strong>de</strong>ste segundo capítulo.<br />

2.1- As fontes do projeto <strong>de</strong> Antônio Conselheiro<br />

Sempre houve controvérsias entre os estudiosos <strong>de</strong> Canudos quanto ao caráter do seu<br />

movimento. Para uns, o movimento <strong>de</strong> Canudos foi exclusivamente político: Antônio<br />

Conselheiro teria como objetivo <strong>de</strong>rrubar a República. O aspecto religioso seria apenas uma<br />

apropriação do sagrado com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> fortalecer o projeto político-transformador <strong>de</strong><br />

Antônio Conselheiro e sua gente, no sertão brasileiro. Para outros, o discurso teológico tem<br />

incidência política, mas a ciência teológica tem seu objeto próprio <strong>de</strong> pesquisa, distinto <strong>da</strong> ciência<br />

política. O discurso teológico tem impacto político transformador. A revelação <strong>de</strong> Deus é<br />

histórica e é recebi<strong>da</strong> pelo homem, num <strong>de</strong>terminado contexto histórico. O Deus cristão escuta os<br />

clamores <strong>de</strong> seu povo e vem libertá-lo (cf. Ex 3,7-9).<br />

Não é tão simples fazer uma distinção entre os interesses políticos e religiosos, mesmo<br />

sabendo, <strong>de</strong> antemão, que são coisas distintas, e com implicações às vezes mútuas. Reduzir o<br />

campo religioso-teológico ao sociopolítico, provoca uma espécie <strong>de</strong> confusão semântica. Reduzir<br />

atrapalha a compreensão <strong>da</strong> relação entre o religioso e o sociopolítico, suas mútuas implicações e<br />

as <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>s especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Faz-se necessário superar os preconceitos dicotômicos, os enfoques<br />

reducionistas, a interpretação puramente positivista, segundo a qual o conhecimento teológico é<br />

um estágio pré-filosófico, o filosófico, pré-científico e o científico, o estágio mais avançado e<br />

<strong>de</strong>finitivo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana e que, portanto, os conhecimentos teológicos e filosóficos <strong>de</strong>vem ser<br />

superados, para se estabelecer a era <strong>da</strong> ciência positiva. A interpretação <strong>de</strong> Canudos recebeu<br />

influência <strong>de</strong>ssa visão cientificista.


Des<strong>de</strong> o início <strong>da</strong> teologia <strong>da</strong> esperança <strong>de</strong> J. Moltmann (1964), 3 52<br />

passando pela teologia<br />

política <strong>de</strong> J. Baptist Metz (1928) 4 e a teologia <strong>da</strong> libertação <strong>de</strong> G. Gutiérrez (1968-72?) 5 , tanto no<br />

âmbito <strong>da</strong> produção teológica católica quanto na <strong>da</strong> protestante, a reviravolta política <strong>da</strong> teologia<br />

vem procurando um diálogo com as várias ciências, especialmente políticas e sociais. Essa<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> nasce nos encontros do jovem teólogo católico J. B. Metz, com seu mestre Karl<br />

Rahner. A partir <strong>da</strong>í, Metz usou a expressão “teologia política”, com a elaboração <strong>de</strong> um novo<br />

projeto teológico, publicado no livro Sobre a teologia do mundo, em 1968. Por essa altura, o<br />

pensamento Europeu já havia superado o dogmatismo positivista. Entretanto, foi a teologia<br />

latino-americana <strong>da</strong> libertação que melhor se serviu <strong>da</strong>s ciências sociais e políticas como<br />

instrumentais teóricos para uma melhor compreensão <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s históricas. Isso nunca<br />

significou fusão semântica. To<strong>da</strong> reflexão teológica, conservadora ou progressista, tem dimensão<br />

sociopolítica <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nça ou <strong>de</strong> preservação do “status quo”. Para ser coerente com o Deus dos<br />

cristãos, a reflexão teológica leva o cristão à transformação <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong> pessoal e social. A<br />

religião tem um papel importante e, em alguns casos, prepon<strong>de</strong>rante na transformação social.<br />

Os historiadores e os sociólogos <strong>de</strong> filiação marxista, ao adotarem a revisão histórica,<br />

afirmam que Antônio Conselheiro fundou uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> socialista e sua inspiração foi<br />

predominantemente marxista. Eles não encontram documentação histórica para sustentar essa<br />

tese. Mesmo reconhecendo que “Antônio Conselheiro imaginou a criação <strong>de</strong> uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

3 Cf. MOLTMANN, Jürgen, Teologia <strong>de</strong> la esperanza, Salamanca: Sígueme, 1969 e MOLTMANN, Jürgem, Il Dio<br />

crocifisso: la Croce di Cristo, fun<strong>da</strong>mento e critica <strong>de</strong>lla teologia cristiana, Brescia: Queriniana, 1973.<br />

4 São duas obras clássicas <strong>de</strong> Metz, sobre a teologia política: METZ, Johann Baptista, Sulla teologia <strong>de</strong>l mundo,<br />

Brescia: Queriniana, 1969 e La “Teologia Política” in discussione, in: Debattito sulla “teologia política”, Brescia:<br />

Queriniana, 1971, p. 231-276; METZ, Johann Baptista, Sulla teologia <strong>de</strong>l mundo, Brescia: Queriniana, 1969.<br />

5 Cf. GUTIERRZ, Gustavo, Teologia <strong>de</strong>lla liberazione: perspectivas, Brescia: Queriniana, 1971. Esta obra<br />

apresenta o conteúdo programático para uma teologia propriamente latino-americana <strong>da</strong> libertação. G. Gutiérrez<br />

formula com clareza seu projeto como um novo modo <strong>de</strong> fazer teologia e não como um tema a mais. Segundo J. B.<br />

Libanio, “A proposta teológica <strong>de</strong> Gutiérrez fun<strong>da</strong>menta-se num trípo<strong>de</strong>: a intenção <strong>de</strong> valorizar a teologia como<br />

reflexão crítica sobre a praxes; o papel <strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos pobres e fiéis como objeto e <strong>de</strong>stinatário original na<br />

história, na Igreja e na teologia; e a articulação entre libertação histórica e salvação divina”. LIBANIO, João Batista,<br />

Gustavo Gutiérrez, São Paulo: Loyola, 2004, p. 13.


em que prevalecesse a igual<strong>da</strong><strong>de</strong> cristã dos primeiros séculos <strong>da</strong> nossa era”, 6 53<br />

Edmundo Muniz<br />

afirma ser Antônio Conselheiro “um socialista utópico, que tentou organizar uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

igualitária. Há uma profun<strong>da</strong> semelhança entre as suas idéias e as idéias <strong>de</strong> Thomas Münzer tais<br />

como Engels as apresenta”. 7 E vai mais além: “Ninguém, realmente po<strong>de</strong> duvi<strong>da</strong>r do socialismo<br />

<strong>de</strong> Antônio Conselheiro que foi reconhecido por muitos <strong>de</strong> seus contemporâneos. [...] Apesar <strong>de</strong><br />

se apegar aos Evangelhos, o movimento que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou no interior <strong>da</strong> Bahia teve mais um<br />

caráter social do que religioso”. 8 Para justificar sua tese, atribui a Antônio Conselheiro o uso <strong>da</strong><br />

Utopia <strong>de</strong> Tomás More [Thomas Morus] 9 pois na experiência <strong>de</strong> Canudos, existiu “a fusão <strong>da</strong>s<br />

idéias que promoveram, no campo, os levantes igualitários dos séculos XVI, XVII e XVIII com<br />

as utopias do renascimento e do século XIX”. 10 Quando Edmundo Moniz afirma: “Apesar <strong>de</strong> se<br />

apegar ao Evangelho”, o movimento <strong>de</strong> Canudos “teve um caráter mais social do que religioso”,<br />

ele não fun<strong>da</strong>menta sua afirmação. Mais na frente, até admite, falando sobre o Conselheiro: “Não<br />

tinha nem tivera nenhuma ligação política com os monarquistas. Defen<strong>de</strong>ra Canudos sem seu<br />

auxílio, apenas com seus próprios recursos”. 11 Ao contrário, a literatura usa<strong>da</strong> por Antônio<br />

Conselheiro e a prática <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> do Belo Monte 12 não confirmam essa versão. A<br />

6 MONIZ, Edmundo, A guerra social <strong>de</strong> Canudos..., p. 30.<br />

7 MONIZ, Edmundo, A guerra social <strong>de</strong> Canudos..., p. 264. “Sua doutrina política proce<strong>de</strong> diretamente do seu<br />

pensamento religioso revolucionário e adiantava-se à situação social e política <strong>de</strong> sua época, <strong>da</strong> mesma forma que<br />

sua teologia também ia além <strong>da</strong>s idéias e conceitos existentes... Em seu programa, o resumo <strong>da</strong>s reivindicações<br />

plebéias aparece menos importante do que a antecipação genial <strong>da</strong>s condições <strong>de</strong> emancipação do elemento<br />

proletário que acabava <strong>de</strong> aparecer entre os plebeus. Tal programa exigia o estabelecimento imediato do reino <strong>de</strong><br />

Deus, <strong>da</strong> era milenária <strong>de</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong> tantas vezes anuncia<strong>da</strong> pela volta <strong>da</strong> Igreja às suas origens, e pela supressão <strong>de</strong><br />

to<strong>da</strong>s as instituições que se achassem em contradição com este cristianismo que se dizia primitivo e que, em<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, era sumamente mo<strong>de</strong>rno. Segundo Münzer, porém, este reino <strong>de</strong> Deus não significava outra coisa senão<br />

uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> sem diferença <strong>de</strong> classe, sem proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> e sem po<strong>de</strong>r estatal in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e alheio aos seus próprios<br />

membros. Todos os po<strong>de</strong>res existentes que não se conformassem com a revolução seriam <strong>de</strong>struídos. Tornavam-se<br />

comuns os trabalhos e os bens, estabelecendo-se a igual<strong>da</strong><strong>de</strong> completa”. Ibi<strong>de</strong>m, p. 264-265.<br />

8 MONIZ, Edmundo, A guerra social <strong>de</strong> Canudos, p. 265.<br />

9 Cf. MORE, Thomas, A Utopia, São Paulo: Nova Cultural, 2004.<br />

10 MONIZ, Edmundo, A guerra social <strong>de</strong> Canudos..., p. 30.<br />

11 MONIZ, Edmundo, A guerra social <strong>de</strong> Canudos..., p. 255.<br />

12 A comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, organiza<strong>da</strong> por Antônio Conselheiro, recebeu diversas <strong>de</strong>signações ao longo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>: Canudos, a<br />

Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos, a Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> do Belo Monte, a Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> do Belo Monte <strong>de</strong> Canudos, a Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

do Bom Jesus, a Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, a Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> igualitária <strong>de</strong> Canudos, a Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

solidária <strong>de</strong> Canudos, etc.


54<br />

tese fun<strong>da</strong>mental <strong>de</strong> Alexandre Otten inverte a afirmação <strong>de</strong> Edmundo Moniz. A vi<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos gravita em função <strong>da</strong> religião.<br />

A vi<strong>da</strong> apostólica será o berço <strong>da</strong> nova comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> [...] A entra<strong>da</strong> no arraial era liga<strong>da</strong> à<br />

conversão. Não bastava o batismo cristão. Para pertencer aos fiéis do Bom Jesus, ao povo<br />

do Conselheiro, era necessário converter e emen<strong>da</strong>r-se, a<strong>de</strong>rir e professar a ‘ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira<br />

Religião’ [...] Devem seguir minuciosamente a lei <strong>de</strong> Deus [...] A conversão e a vi<strong>da</strong> nova<br />

exprimem-se também no apelo do beato <strong>de</strong> viver uma vi<strong>da</strong> santa [...] A religião<br />

predominava em tempos <strong>de</strong> paz [...] regulava a vi<strong>da</strong> social e econômica. Com esse regime<br />

a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Belo Monte se situava fora do espaço do domínio do Estado, do coronel<br />

e <strong>da</strong> Igreja oficial. 13<br />

Marco Villa também sai em <strong>de</strong>fesa do caráter predominantemente religioso do<br />

movimento nor<strong>de</strong>stino, ao afirmar: Edmundo Moniz, “seguindo a tradição do marxismo<br />

brasileiro, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rou a influência religiosa como se a religião fosse somente um invólucro<br />

que encobrisse as razões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m material. Assim, a religião não passa <strong>de</strong> uma interpretação<br />

<strong>de</strong>sfoca<strong>da</strong> <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>”. 14 Moniz imputou “a Antônio Conselheiro aquilo que ele nunca foi e<br />

tudo indica que nem preten<strong>de</strong>u ser. Sua insistência em tentar provar que a leitura <strong>de</strong> A utopia <strong>de</strong><br />

Thomas Morus tenha servido <strong>de</strong> inspiração para fun<strong>da</strong>r Belo Monte é um gran<strong>de</strong> equívoco”. 15<br />

Uma análise mais cui<strong>da</strong>dosa <strong>da</strong> citação <strong>de</strong> Thomas Morus, presente nos manuscritos <strong>de</strong> Antônio<br />

Conselheiro, indica que ela se <strong>de</strong>u num contexto exclusivamente religioso, e não serve como<br />

fonte para afirmar o uso ou manuseio <strong>de</strong> A Utopia, no projeto político <strong>de</strong> Canudos. Comentando<br />

os chamados Textos extraídos <strong>da</strong>s escrituras, Antônio Conselheiro se refere a Thomas Morus<br />

como vítima dos protestantes, na Inglaterra, e não no contexto político. O professor Calazans não<br />

concor<strong>da</strong> com a tese <strong>da</strong> utilização do referido texto <strong>de</strong> Thomas Morus. Não “há na<strong>da</strong> que indique<br />

haver o Conselheiro lido a obra <strong>de</strong> More. A nosso ver, essa é mais uma <strong>de</strong>dução infun<strong>da</strong><strong>da</strong> para<br />

tentar mostrar que Canudos foi planeja<strong>da</strong> como socie<strong>da</strong><strong>de</strong> igualitária”. 16<br />

13 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 345-347.<br />

14 VILLA, Marco Antônio, Canudos: o povo <strong>da</strong> terra..., p. 237.<br />

15 VILLAS, Marco Antônio, Canudos: o povo <strong>da</strong> terra..., p. 237.<br />

16 CALAZANS, José, Soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong>, sim; igual<strong>da</strong><strong>de</strong>, não: <strong>aspectos</strong> controvertidos do episódio <strong>de</strong> Canudos, in:<br />

INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS - BLOCH, Didier (org.) Canudos, 100 anos <strong>de</strong> produção:


55<br />

É fato. O povo sertanejo não precisou importar do além-mar mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> transformação<br />

social. A bem <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não se tem conhecimento <strong>da</strong> circulação <strong>de</strong>ssas idéias nos sertões<br />

pobres e <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> condições econômicas e educacionais. “A razão do surgimento, <strong>da</strong><br />

existência e <strong>da</strong> resistência <strong>de</strong> Canudos <strong>de</strong>ve ser encontra<strong>da</strong> no mundo sertanejo, nas relações<br />

sociais, na vivência religiosa e na luta cotidiana pela sobrevivência. Não cabe incluir Canudos na<br />

linha evolutiva seqüencial <strong>da</strong>s revoluções oci<strong>de</strong>ntais”. 17 Aliás, não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconhecer a<br />

dimensão solidária <strong>da</strong> cultura sertaneja, as práticas <strong>de</strong> mutirões, esmolas, aju<strong>da</strong>s entre os pobres,<br />

o sistema <strong>de</strong> compadrio, e outras formas <strong>de</strong> aju<strong>da</strong> mútua em tempo <strong>de</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Dessa<br />

espécie <strong>de</strong> “comunitarismo, produto <strong>da</strong> tradição sertaneja, <strong>de</strong>pendia a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>svalidos em uma área pobre em recursos naturais”, 18 e não <strong>da</strong> transla<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> experiências<br />

extemporâneas ao povo sertanejo.<br />

Seguindo a mesma linha <strong>de</strong> interpretação marxista <strong>de</strong> Edmundo Muniz, Rui Facó <strong>de</strong>fen<strong>de</strong><br />

semelhante tese na obra clássica Cangaceiros e Fanáticos, afirmando: “A epopéia <strong>de</strong> Canudos<br />

ficará em nossa história como um patrimônio <strong>da</strong>s massas pobres do campo e uma glória do<br />

movimento revolucionário pela libertação”. 19 E acrescenta: “os fenômenos do messianismo ou<br />

misticismo, que se convencionou chamar <strong>de</strong> fanatismo, disseminados pelos sertões em nosso<br />

passado ain<strong>da</strong> recente, têm um fundo perfeitamente material e servem apenas <strong>de</strong> cobertura a esse<br />

fundo. É uma exteriorização”. 20 Marco Villa não comunga com os historiadores e sociólogos <strong>de</strong><br />

filiação marxista. Eles procuraram interpretar o movimento <strong>de</strong> Canudos sob a ótica marxista.<br />

Sendo assim, “a religião nunca passou <strong>de</strong> uma facha<strong>da</strong> que encobria as razões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m material:<br />

era a falsa consciência. Curiosamente, assim como o Estado brasileiro nunca soube reconhecer e<br />

vi<strong>da</strong> cotidiana e economia dos tempos do Conselheiro até os dia atuais, Paulo Afonso (BA): Fonte Viva, 1997, p.<br />

44.<br />

17 VILLA, Marco Antônio, Canudos: o povo <strong>da</strong> terra..., p. 237-238.<br />

18 VILLA, Marco Antônio, Canudos, o povo <strong>da</strong> terra..., p. 237.<br />

19 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 122.<br />

20 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 9.


conviver com a diferença, esses pesquisadores agiram <strong>da</strong> mesma forma”. 21 56<br />

Parece grave não<br />

reconhecer a originali<strong>da</strong><strong>de</strong> no movimento <strong>de</strong> Canudos. Os marxistas não admitem algo próprio e<br />

capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> revolucionária, a partir <strong>da</strong>s próprias condições do homem sertanejo, como se a<br />

referi<strong>da</strong> experiência tivesse sido uma cópia autentica<strong>da</strong> <strong>de</strong> outros mo<strong>de</strong>los revolucionários<br />

antece<strong>de</strong>ntes. O “entendimento <strong>de</strong> Canudos por aquilo que realmente foi era tão complexo e<br />

exigia tamanha invasão analítica que optaram por ignorar estas especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s, preferindo repetir<br />

a cantilena <strong>de</strong> que a religião não passa <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ologia típica <strong>de</strong> movimentos pré-políticos”, 22<br />

<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rando-se a força histórica do povo <strong>da</strong> Bíblia, <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s primitivas e do próprio<br />

movimento em questão.<br />

Interpretar o movimento <strong>de</strong> Canudos como uma experiência <strong>de</strong> lastro predominantemente<br />

materialista e <strong>de</strong> inspiração marxista, <strong>de</strong>smerece o potencial revolucionário do estilo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> do<br />

povo sertanejo, <strong>da</strong> influência <strong>da</strong> Bíblia Sagra<strong>da</strong> na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Belo Monte,<br />

especialmente as fontes utiliza<strong>da</strong>s por Antônio Conselheiro, tais como os livros do Êxodo, os<br />

quatro evangelhos, os Atos dos Apóstolos e outras obras <strong>de</strong> autores religiosos, que serão<br />

analisa<strong>da</strong>s a seguir. 23<br />

Não parece sustentável a tese segundo a qual o lí<strong>de</strong>r maior <strong>de</strong> Canudos tenha usado outras<br />

obras <strong>de</strong> cunho mais político que religioso. Levando-se em consi<strong>de</strong>ração o estilo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> interno<br />

<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> belo-montense, não se po<strong>de</strong> afirmar que Canudos foi uma experiência coletivista.<br />

“Não é plausível afirmar que Canudos era uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> socialista. [...] havia proprie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

priva<strong>da</strong>, a acumulação priva<strong>da</strong> <strong>de</strong> parte dos lucros e <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong>s sociais”. 24 José Calazans<br />

prefere afirmar: “Se Canudos não foi uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> igualitária, ele foi, sem dúvi<strong>da</strong>s, uma<br />

21<br />

VILLA, Marco Antônio, Canudos: a luta pela terra..., p. 238-239.<br />

22<br />

VILLA, Marco Antônio, Canudos: a luta pela terra, p. 239.<br />

23<br />

A importância do uso <strong>da</strong> Bíblia e <strong>de</strong> outras publicações no projeto religioso <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, serão objeto<br />

<strong>de</strong> análise ain<strong>da</strong> neste capítulo.<br />

24<br />

VILLA, Marco Antônio, Canudos: o povo <strong>da</strong> terra..., p. 237.


socie<strong>da</strong><strong>de</strong> solidária – não <strong>de</strong>vemos confundir soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> com socialismo”. 25 57<br />

Calazans afirma<br />

haver<br />

diversos documentos, escritos e orais relatando que Antônio Conselheiro recebia bens e<br />

dinheiro <strong>de</strong> pessoas abasta<strong>da</strong>s e os redistribuía. Em Canudos, o mutirão era prática<br />

comum. Também, podia-se plantar na terra dos outros e os necessitados eram atendidos<br />

pelas esmolas, feitas muitas vezes em gêneros (feijão, farinha, etc.)” 26<br />

Canudos, então, não foi uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> socialista nos mol<strong>de</strong>s marxistas, mas uma<br />

experiência solidária, com características sertanejas e inspiração cristã. O sertanejo sempre portou<br />

marcas <strong>de</strong> soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> e aju<strong>da</strong> mútua. No Nor<strong>de</strong>ste, adotar criança pobre ou <strong>de</strong> pai e mãe<br />

<strong>de</strong>sconhecidos, com o argumento <strong>de</strong> “on<strong>de</strong> comem nove, comem <strong>de</strong>z”, mutirões entre os pobres<br />

para construção <strong>de</strong> pequenas casas, capinar roças, comprar ou fazer remédios <strong>da</strong>s ervas para<br />

pessoas carentes, etc. são práticas corriqueiras do povo ain<strong>da</strong> hoje. Essa forma <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> na<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> do Conselheiro po<strong>de</strong> encontrar explicações na própria experiência do povo e não em<br />

filosofias, muito mais presentes na mente <strong>de</strong> intelectuais, do que no cotidiano do povo pobre.<br />

Isso, no entanto, não inviabiliza a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> elementos do marxismo ortodoxo na<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Antônio Conselheiro. Ao narrar a vi<strong>da</strong> interna <strong>de</strong> Canudos, Maria Isaura <strong>de</strong><br />

Queiroz sustenta a tese segundo a qual to<strong>da</strong> ela ostentava características religiosas. Em Canudos<br />

havia um conjunto <strong>de</strong> regras bem <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>s, apoia<strong>da</strong>s em um substrato <strong>de</strong> crenças religiosas.<br />

Quanto a Antônio Conselheiro, “vemo-lo ocupado em resolver também questões práticas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

diária, solucionando problemas socioeconômicos e políticos, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver seu papel <strong>de</strong><br />

chefe religioso e <strong>de</strong> enviado divino”. 27 Para Maria Isaura <strong>de</strong> Queiroz, o “<strong>de</strong>stino terrestre” era<br />

levado muito a sério pelo Conselheiro, que instituíra uma série <strong>de</strong> normas <strong>de</strong>stina<strong>da</strong>s a<br />

regulamentá-lo, a fim <strong>de</strong> que realmente em Canudos se realizasse o Paraíso Terrestre”. 28 E<br />

25<br />

CALAZANS, José, Soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong>, sim; igual<strong>da</strong><strong>de</strong>, não: <strong>aspectos</strong> controvertidos..., p. 44-45.<br />

26<br />

CALAZANS, José, Soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong>, sim; igual<strong>da</strong><strong>de</strong>, não: <strong>aspectos</strong> controvertidos..., p. 44.<br />

27<br />

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira <strong>de</strong>, O messianismo no Brasil e no mundo, São Paulo: Alfa-Omega, 1977, p.<br />

236.<br />

28<br />

QURIROZ, Maria Isaura Pereira <strong>de</strong>, O messianismo no Brasil e no mundo..., p. 236.


58<br />

acrescenta, ain<strong>da</strong>: “Tais instituições ou são copia<strong>da</strong>s <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> rústica circun<strong>da</strong>nte, ou surgem<br />

<strong>de</strong>vido a problemas novos que a predominância gran<strong>de</strong> <strong>da</strong> religião, a vonta<strong>de</strong> do lí<strong>de</strong>r e a<br />

aglomeração <strong>de</strong> povo em quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>, criavam”. 29 Prevaleciam características religiosas quanto às<br />

formas <strong>de</strong> organização, encontros comunitários, celebrações e procissões. É o que <strong>de</strong>monstra nas<br />

conclusões do sério estudo <strong>de</strong> Otten: “A partir <strong>da</strong> biografia <strong>de</strong> Antônio Vicente Men<strong>de</strong>s Maciel,<br />

ressalta-se o fato <strong>de</strong> que ele foi, não obstante o choque <strong>da</strong>s interpretações proferi<strong>da</strong>s por amigos e<br />

inimigos, uma personali<strong>da</strong><strong>de</strong> marca<strong>da</strong> pela religião”, 30 e não pela política, ain<strong>da</strong> que esta tenha<br />

sido uma dimensão fun<strong>da</strong>mental do seu projeto <strong>de</strong> inspiração religiosa. Os textos usados por<br />

Conselheiro, em quase sua totali<strong>da</strong><strong>de</strong>, foram religiosos. Isso é possível provar a partir <strong>da</strong> análise<br />

<strong>de</strong> documentos usados. Alexandre Otten confirmou a tese <strong>da</strong> sociologia religiosa, segundo a qual<br />

o berço dos movimentos religiosos <strong>de</strong> protesto social seria o catolicismo rústico. Por isso, a<br />

motivação <strong>de</strong> Antônio Conselheiro foi impulsiona<strong>da</strong> pela sua espirituali<strong>da</strong><strong>de</strong>. 31 A Bíblia Sagra<strong>da</strong>,<br />

autores <strong>da</strong> Patrística, citações <strong>de</strong> vários santos, e <strong>de</strong> outros pensadores cristãos <strong>de</strong>monstram que o<br />

Conselheiro esteve mais familiarizado com a literatura religiosa que com autores do campo<br />

político ou sociológico.<br />

2.1.1- Alcance e limites <strong>da</strong> interpretação marxista<br />

Reconhece-se, inicialmente, a interpretação marxista <strong>da</strong> história como um legado <strong>da</strong><br />

sociologia contemporânea. Não se po<strong>de</strong>ria fazer uma análise sociológica profun<strong>da</strong> <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

históricas, nem enten<strong>de</strong>r a existência e os reais interesses <strong>da</strong>s classes sociais nas relações do<br />

trabalho sem se usar o instrumental teórico <strong>da</strong> análise marxista. Com a teoria <strong>da</strong> mais-valia, Marx<br />

29 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira <strong>de</strong>, O messianismo no Brasil e no mundo..., p. 236-237.<br />

30 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 201.<br />

31 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro...p. 202. No capítulo<br />

quarto <strong>de</strong>ssa obra, Otten confirma, sociologicamente, a tese segundo a qual Antônio Conselheiro teve motivações<br />

religiosas. Cf. p. 203-355.


59<br />

percebeu a causa <strong>da</strong> exploração capitalista, mostrou as contradições internas do capitalismo e a<br />

força revolucionária do proletariado. Mediante as “teorias do valor do trabalho e <strong>da</strong> mais-valia,<br />

Marx interpreta o capitalismo como um sistema <strong>de</strong> exploração do trabalhador pelo capitalista, o<br />

qual guar<strong>da</strong> para si a mais-valia cria<strong>da</strong> pelo primeiro”. 32<br />

A sociologia marxista, como instrumental teórico, contribuiu para a compreensão do<br />

conflito dos protagonistas <strong>da</strong> República com os movimentos <strong>de</strong> resistência em todo o Nor<strong>de</strong>ste,<br />

especialmente o <strong>de</strong> Canudos. Ela i<strong>de</strong>ntificou, na prática <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos, elementos<br />

do comunismo primitivo, a exemplo <strong>de</strong> Rui Facó, ao assumir o testemunho narrado por Eucli<strong>de</strong>s.<br />

A “apropriação pessoal <strong>de</strong> objetos móveis e <strong>da</strong>s casas, comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> absoluta <strong>da</strong> terra, <strong>da</strong>s<br />

pastagens, dos rebanhos e dos produtos <strong>da</strong>s culturas, cujos donos recebiam exíguas cota-parte<br />

revertendo o resto para a companhia”. 33 São visíveis os elementos <strong>da</strong> prática coletivista dos bens,<br />

conforme apontam com tanta proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> Rui Facó e Edmundo Moniz, ao interpretarem Canudos<br />

no viés marxista. Antônio Conselheiro, com certeza, não conheceu a teoria do marxismo<br />

ortodoxo, porém sua prática revela sintonia com as idéias do autor do “manifesto comunista”.<br />

Rui Facó não acreditava que o potencial revolucionário do povo <strong>de</strong> Canudos fosse capaz<br />

sequer <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar o inimigo <strong>da</strong> luta, quanto mais <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>r o sistema semifeu<strong>da</strong>l baseado nas<br />

gran<strong>de</strong>s proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s rurais, causa principal <strong>de</strong> todo o atraso no campo:<br />

Naquele atraso medieval, a reação <strong>da</strong> classe potencialmente revolucionária – os semiservos<br />

<strong>da</strong> gleba – é <strong>de</strong> nível correspon<strong>de</strong>nte <strong>da</strong>s forças produtivas: uma reação primária<br />

em que o inimigo <strong>de</strong> classe não é percebido claramente, em que as <strong>de</strong>sgraças parecem cair<br />

do céu, como castigos, e é mesmo necessário implorar as bênçãos do céu, em que o<br />

individualismo campesino prevalece e a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> grupal é bem limita<strong>da</strong>. 34<br />

José <strong>de</strong> Souza Martins rejeita o evolucionismo mecânico apresentado por interpretação<br />

que leva em conta uma força <strong>de</strong> “fora” ou <strong>de</strong> “cima” para tornar o movimento camponês<br />

32 Marxismo, In: BRUGGER, Walter, Dicionário <strong>de</strong> filosofia, São Paulo: EPU, 1977, p. 258.<br />

33 Cit. in: FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 97.<br />

34 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 43.


60<br />

legitimamente político, como se houvesse algo pré-<strong>de</strong>terminado, em uma seqüência evolutiva e<br />

<strong>de</strong>terminista. O “messianismo, como aconteceu em Canudos e no Contestado; banditismo social,<br />

como aconteceu no Nor<strong>de</strong>ste com Antônio Silvino e Lampião; associativismo e sindicalismo,<br />

como aconteceu com as Ligas Camponesas e com os sindicatos dos trabalhadores rurais”. 35 A<br />

religião seria suplanta<strong>da</strong> pela política. Para J. <strong>de</strong> Souza Martins, é “significativo que o movimento<br />

messiânico e o movimento sindical se entrecruzem com freqüência, sem causar nos seus<br />

participantes o mesmo choque que tal cruzamento causa nos guardiães <strong>da</strong> pureza política <strong>da</strong>s<br />

lutas populares”. 36<br />

Mais problemática ain<strong>da</strong> para os marxistas ortodoxos é a questão <strong>da</strong> religião. Quando Rui<br />

Facó e Edmundo Moniz escreveram sobre Canudos, a religião continuava sendo “ópio do povo”,<br />

como “parte <strong>da</strong> superestrutura <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> econômica” ou, ain<strong>da</strong>, superável pelo<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> ciência positiva. Não seria possível <strong>de</strong>tectar qualquer outro capital<br />

revolucionário, capaz <strong>de</strong> promover a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira libertação. 37 No caso <strong>de</strong> Canudos, a motivação<br />

religiosa seria apenas uma tendência natural <strong>da</strong>s massas rurais espolia<strong>da</strong>s, em <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s<br />

condições, para criar uma religião própria, que lhes servisse <strong>de</strong> instrumento em sua luta pela<br />

libertação social, como o cristianismo foi, em seus primórdios, religião <strong>de</strong> escravos e proletários<br />

<strong>da</strong> época. Nesse tempo, não havia estudos do catolicismo popular do pós-concílio, especialmente<br />

os realizados na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1970 e o potencial libertador <strong>da</strong>s CEBs. Autores como Alexandre<br />

Otten e Eduardo Hoornaert reconhecem que é preciso uma leitura mais sistemática <strong>da</strong> mensagem<br />

religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, para superar certos mitos sobre a religião do povo (catolicismo<br />

popular), quase sempre trata<strong>da</strong> como se fosse uma seita. 38 Canudos não po<strong>de</strong> ser reduzido a uma<br />

seita! Para Hoornaert, “a própria construção do imponente edifício <strong>de</strong> uma igreja nova, logo em<br />

35<br />

MARTINS, José <strong>de</strong> Souza, Os camponeses e a política no Brasil, Petrópolis: Vozes, 1982, p. 27.<br />

36<br />

MARTINS, José <strong>de</strong> Souza, Os camponeses e a política no Brasil..., p. 30.<br />

37<br />

Docunto <strong>de</strong> Puebla (DP), 281.<br />

38<br />

Cf. HOORNAERT, Eduardo, Os anjos <strong>de</strong> Canudos: uma revisão histórica..., p. 122-125.


61<br />

1893, quando o povoado se organiza, e na qual to<strong>da</strong> a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> se empenha, é um sinal do<br />

mo<strong>de</strong>lo-igreja existente no imaginário dos canu<strong>de</strong>nses”. 39<br />

João B. Libanio afirma que a religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> popular é “o elemento mais importante para a<br />

vi<strong>da</strong> cotidiana do pobre e lhe dá resistência, coragem, esperança, futuro. Ela tem força enorme em<br />

fazer a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira face <strong>de</strong> Deus, como um Deus <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e também em <strong>de</strong>squalificar muitos<br />

projetos, como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro ‘sindicato <strong>da</strong> morte’”. 40 Quando os autores marxistas ofereceram suas<br />

publicações sobre o ocorrido em Canudos acreditava-se que a “evolução intelectual iria suplantar<br />

o papel <strong>da</strong> religião, a função <strong>de</strong>sta é limita<strong>da</strong> e será supera<strong>da</strong>”. 41 Ela não passa <strong>de</strong> elemento<br />

i<strong>de</strong>ológico <strong>da</strong> “superestrutura” e “ópio do povo”. Rubens Alves sintetiza essa mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao<br />

afirmar: “A religião, como reflexo invertido, como efeito, é reduzi<strong>da</strong> à insignificância. Dedicar-se<br />

à investigação <strong>da</strong> religião implica um perigoso <strong>de</strong>svio teórico e prático [...] Por que não<br />

abandonar a religião, simplesmente, e atacar o problema <strong>da</strong>s relações <strong>de</strong> produção numa<br />

abor<strong>da</strong>gem frontal?”. 42<br />

Para Rui Facó a religião não po<strong>de</strong> ocupar o foco principal em Canudos e os que o fazem é<br />

por motivos i<strong>de</strong>ológicos:<br />

Não é por acaso que historiadores, mesmo os mais honestos, exageram o misticismo<br />

religioso dos habitantes <strong>de</strong> Canudos e o transformam no móvel único <strong>de</strong> sua luta.<br />

Procuram assim escon<strong>de</strong>r as causas que a geraram, os ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros motivos <strong>de</strong> sua<br />

resistência maravilhosa e <strong>de</strong> suas arranca<strong>da</strong>s heróicas: a opressão semifeu<strong>da</strong>l do<br />

latifúndio, a miséria e a fome, frutos <strong>da</strong> posse monopolista <strong>da</strong> terra por uma minoria <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong>s fazen<strong>de</strong>iros. Desta forma, tratam também <strong>de</strong> amesquinhar a resistência<br />

inquebrantável dos homens <strong>de</strong> Canudos diante <strong>da</strong> esmagadora superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s forças<br />

arma<strong>da</strong>s com que os governos representantes dos latifundiários tentavam esmagá-los. 43<br />

39 HOORNAERT, Eduardo, Os Anjos <strong>de</strong> Canudos: revisão histórica..., p. 122.<br />

40 LIBANIO, João Batista, I- Panorama <strong>da</strong> teologia <strong>da</strong> América Latina nos últimos anos – 1999; II- Teologia <strong>da</strong><br />

libertação (textos inéditos: <strong>de</strong>stinados a uma enciclopédia italiana), 2001, p. 40. Belo Horizonte: agosto 2002.<br />

Apostila mimeografa<strong>da</strong>.<br />

41 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 66.<br />

42 Cit. in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 64.<br />

43 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 120.


62<br />

Mesmo com essa insistência <strong>de</strong> Rui Facó em focar os motivos <strong>da</strong> resistência dos<br />

canu<strong>de</strong>nses exclusivamente a partir do viés material: opressão feu<strong>da</strong>l do latifúndio, a miséria e a<br />

fome, etc., pergunta-se: a força <strong>da</strong> resistência <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos foi somente <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m<br />

material? A mística religiosa não teve papel relevante? Porque Antônio Conselheiro insistiu tanto<br />

na espirituali<strong>da</strong><strong>de</strong>, com orações diárias e catequese sistemática? Se o próprio Rui Facó reconhece<br />

que Antônio Conselheiro nunca cogitou filiação política, 44 não seria interessante um estudo<br />

imparcial sobre o papel <strong>da</strong> religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> popular, na formação <strong>da</strong> mística que sustentou a<br />

resistência do povo <strong>de</strong> Canudos? Para os cristãos, os “mártires latino-americanos, <strong>de</strong> fato, foram<br />

mortos por <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a mesma causa <strong>de</strong> Jesus, o reino <strong>de</strong> Deus para os pobres, e foram<br />

ameaçados, perseguidos e mortos pelo anti-reino. [...] Não são mártires <strong>da</strong> Igreja, embora vivam e<br />

morram na Igreja, mas mártires do reino <strong>de</strong> Deus, <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong>”. 45 Analisando o<br />

relacionamento do Conselheiro com fazen<strong>de</strong>iros <strong>da</strong> região, E. Hoornaert observa: “nos esquemas<br />

marxistas fica incompreensível: diversos fazen<strong>de</strong>iros aju<strong>da</strong>vam o povoado <strong>de</strong> Canudos, com<br />

leal<strong>da</strong><strong>de</strong> e franqueza. O relacionamento entre o Conselheiro e os habitantes <strong>de</strong> Canudos era<br />

<strong>de</strong>certo paternalista e hierárquico”. 46 Porém, sem per<strong>de</strong>r a dimensão ética. Com isso, não se <strong>de</strong>ve<br />

<strong>de</strong>scartar a análise marxista. Ao contrário. Os autores <strong>de</strong> filiação marxista <strong>de</strong>ram uma<br />

contribuição incomensurável ao episódio <strong>de</strong> Canudos. Frei Beto costuma dizer: “O comunista é<br />

cristão sem saber e o cristão é comunista sem querer”. Po<strong>de</strong> haver sintonia, especialmente nos<br />

<strong>aspectos</strong> que os unem.<br />

Finalmente, o que ocorreu em Canudos, especialmente no “mundo simbólico”, não po<strong>de</strong><br />

ser mensurado pelas ciências sociais. No que diz respeito aos atos celebrativos, à vivência <strong>da</strong> fé, à<br />

invocação do bom Jesus, às práticas <strong>de</strong> penitência, à salvação como iniciativa <strong>de</strong> Deus, que exige<br />

44 Cf. FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 84.<br />

45 SOBRINO, Jon, Jesus, o Libertador: I- a história <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong> Nazaré..., p. 385.<br />

46 HOORNAERT, Eduardo, Os anjos <strong>de</strong> Canudos: uma revisão histórica..., p. 99.


esposta humana: com a palavra a teologia. Compreen<strong>de</strong>r, portanto, Canudos hoje, exige do<br />

pesquisador interdisciplinari<strong>da</strong><strong>de</strong>, especialmente entre História, Sociologia, Antropologia,<br />

Teologia, Psicologia e Arqueologia.<br />

2.1.2- A utilização <strong>da</strong> Bíblia Sagra<strong>da</strong><br />

A Bíblia Sagra<strong>da</strong> exerceu gran<strong>de</strong> influência na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos. Serviu<br />

para fun<strong>da</strong>mentar a luta dos conselheiristas, como primeira e mais importante fonte <strong>de</strong> inspiração<br />

do Conselheiro. Há uma longa discussão sobre a utilização <strong>da</strong> Bíblia na organização <strong>da</strong><br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> canu<strong>de</strong>nse. Antônio Conselheiro copiou trechos do livro do Êxodo, o Evangelho <strong>de</strong><br />

Mateus, partes <strong>da</strong>s Cartas <strong>de</strong> São Paulo e do livro do Apocalipse <strong>de</strong> São João. Esse fato,<br />

possivelmente, se <strong>de</strong>u pela dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> o cristão leigo <strong>de</strong> ter acesso ao Livro Sagrado. Não se<br />

tinha facili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> adquirir um exemplar <strong>da</strong> Bíblia. Daí uma <strong>da</strong>s explicações <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

copiar partes do Livro Sagrado. É provável que Antônio Conselheiro não possuísse um exemplar<br />

<strong>da</strong> Bíblia, mas que a tenha pedido emprestado para transcrever ou copiar trechos <strong>de</strong> maior<br />

utilização nas suas prédicas. O professor José Calazans, especialista no assunto, julga provável<br />

que o Cônego Agripino, vigário <strong>de</strong> Itapicuru, muito próximo do Conselheiro, tenha emprestado<br />

muitas vezes a Bíblia a ele, para a transcrição <strong>de</strong> partes <strong>da</strong> Palavra <strong>de</strong> Deus. Já para Edmundo<br />

Moniz, Antônio Conselheiro sempre teve consigo a Bíblia. As prédicas estão marca<strong>da</strong>s por<br />

citações diretas do Livro Sagrado. “Além <strong>de</strong> um <strong>de</strong>staque à figura <strong>de</strong> Paulo e aos evangelhos, no<br />

manuscrito inédito, são várias as histórias bíblicas narra<strong>da</strong>s pelo Conselheiro, e no meio <strong>de</strong>las,<br />

[...] há um alongamento sugestivo sobre os episódios do êxodo e dos inícios do povo <strong>de</strong> Israel”. 47<br />

47 VASCONCELOS, Pedro Lima, Terras <strong>da</strong>s promessas, Jerusalém maldita: memórias bíblicas sobre Belo<br />

monte..., p. 214.<br />

63


64<br />

A Bíblia não parece confirmar argumentos <strong>de</strong> forma apologética, como po<strong>de</strong>ria ser praxe. Temas<br />

bíblicos são transformados em reflexões e conselhos para o povo, <strong>de</strong> forma natural e prática.<br />

Um estudo amplo e <strong>de</strong> bastante quali<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre a utilização <strong>da</strong> Bíblia por Antônio<br />

Conselheiro foi feito por Pedro Lima. “O recurso <strong>da</strong> Bíblia nessas circunstâncias teve<br />

implicações profun<strong>da</strong>s: impactou na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> territórios, na nomeação e qualificação <strong>de</strong><br />

lugares, na estigmatização ou engran<strong>de</strong>cimento <strong>de</strong> pessoas e instituições”. 48 É possível perceber,<br />

por exemplo, no contato com seus manuscritos que a “ seleção do material bíblico encontra<strong>da</strong> em<br />

alguns ca<strong>de</strong>rnos que levam o nome <strong>de</strong> Antônio Conselheiro não é fortuita, e configura a visão que<br />

ele imprimia ao vilarejo que li<strong>de</strong>rava”. 49 A Bíblia não é um livro neutro. Seu uso evi<strong>de</strong>nciou o<br />

“confronto entre o Conselheiro e seu povo, <strong>de</strong> um lado, e a instituição eclesiástica com seus<br />

missionários e as forças republicanas, do outro... aliados, aqui, não têm necessariamente a mesma<br />

leitura dos acontecimentos, nem a mesma apropriação <strong>de</strong> referenciais bíblicas”. 50<br />

2.1.3- A Missão Abrevia<strong>da</strong> como livro <strong>de</strong> cabeceira<br />

Em Canudos, conforme argumentos apresentados, os <strong>aspectos</strong> religiosos se sobressaíram<br />

aos político-partidários. Essa afirmação não são ilações, se levarmos em consi<strong>de</strong>ração a formação<br />

cristã <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, as relações com os padres Cícero e Ibiapina, a influência do<br />

Catolicismo Popular, o envolvimento nas missões e a enorme literatura religiosa usa<strong>da</strong> ao longo<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do Beato. O mesmo não se po<strong>de</strong> afirmar <strong>de</strong> seu envolvimento político. Analisando<br />

cui<strong>da</strong>dosamente os textos <strong>de</strong> Edmundo Moniz e Rui Facó, que mais insistem na tese <strong>da</strong><br />

sociologia <strong>de</strong> orientação marxista, não se encontra qualquer alusão documental que prove, por<br />

48 VASCONCELOS, Pedro Lima, Terra <strong>da</strong>s promessas, Jerusalém maldita: memórias bíblicas sobre o Belo<br />

Monte (Canudos), 2004. Tese <strong>de</strong> doutoramento, PUC, São Paulo, p. 12.<br />

49 VASCONCELOS, Pedro Lima, Terra <strong>da</strong>s promessas, Jerusalém Maldita: memórias bíblicas..., p. 12.<br />

50 VASCONCELOS, Pedro Lima, Terra <strong>da</strong>s promessas, Jerusalém maldita: memórias bíblicas sobre Belo<br />

Monte (Canudos), 2004. Tese <strong>de</strong> doutoramento, Pontifícia Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, São Paulo, p. 12.


exemplo, que Antônio Conselheiro, ou alguém do seu grupo, tenha freqüentado grupos <strong>de</strong><br />

orientação político-partidária (republicano ou monarquista), com a intenção <strong>de</strong> apoiar ou<br />

<strong>de</strong>sestabilizar o governo republicano. Ao contrário, seu envolvimento sempre foi no âmbito<br />

eclesial. O fato <strong>de</strong> ter feito duras críticas à República, não cre<strong>de</strong>ncia ninguém concluir pela sua<br />

ligação a esse ou àquele partido político, mesmo sabendo-se que ele não era uma pessoa ingênua<br />

politicamente. “O Conselheiro antagonizou a República, não porque fosse <strong>de</strong> um então propalado<br />

partido monárquico, [...] mas porque adotava a teocracia. O po<strong>de</strong>r, que só pertencia aos príncipes,<br />

vinha <strong>de</strong> Deus. Política e religião nele se unem indissoluvelmente”. 51 Na concepção <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s<br />

<strong>da</strong> Cunha, o<br />

profetismo, como se vê, na sua boca, o mesmo tom com que <strong>de</strong>spontou na Frígia,<br />

avançando para o Oci<strong>de</strong>nte. Anunciava idêntico, o juízo <strong>de</strong> Deus, a <strong>de</strong>sgraça dos<br />

po<strong>de</strong>rosos, o esmagamento do mundo profano, o reino <strong>de</strong> mil anos e suas <strong>de</strong>lícias. A<br />

exemplo <strong>de</strong> seus comparsas do passado, Antônio Conselheiro era um pietista ansiando<br />

pelo reino <strong>de</strong> Deus, prometido, <strong>de</strong>longando sempre e, ao cabo, <strong>de</strong> todo esquecido pela<br />

Igreja ortodoxa do século II. 52<br />

Ao falar <strong>de</strong> Canudos, <strong>de</strong>ve-se consi<strong>de</strong>rar a profun<strong>da</strong> ligação <strong>de</strong> seu representante maior<br />

com a Igreja do Nor<strong>de</strong>ste, dos valores cristãos recebidos pelo lí<strong>de</strong>r, do povo e <strong>da</strong> forma <strong>de</strong> vi<strong>da</strong><br />

interna <strong>de</strong> sua comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Observando as fontes nas quais Antônio Conselheiro bebeu, é<br />

fun<strong>da</strong>mental para enten<strong>de</strong>rmos quais eram mesmo os reais interesses do lí<strong>de</strong>r carismático. Um<br />

marxista ortodoxo não <strong>de</strong>staca tanto a teoria do Peregrino, mas sua prática revela elementos <strong>da</strong><br />

teoria marxista.<br />

A Missão Abrevia<strong>da</strong>, 53 redigi<strong>da</strong> por um padre português, circulou em gran<strong>de</strong> escala nos<br />

sertões nor<strong>de</strong>stinos e se tornou um texto <strong>de</strong> muita valia <strong>de</strong>ixado pelos missionários para a<br />

continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s missões populares, através <strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças leigas. Os historiadores são unânimes<br />

51<br />

NUNES, Benedito, A ci<strong>da</strong><strong>de</strong> sagra<strong>da</strong>, in: FERNANDES, O clarim e a oração: cem anos <strong>de</strong> Os Sertões..., p. 249.<br />

52<br />

CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s, Os Sertões..., p. 229.<br />

53<br />

Cf. COUTO, José Gonçalves, Missão Abrevia<strong>da</strong> para <strong>de</strong>spertar os <strong>de</strong>scui<strong>da</strong>dos, converter os pecadores<br />

sustentar o fruto <strong>da</strong>s missões: Porto [22ª ed.], 1878. A 11ª edição é melhora<strong>da</strong>, não significando, porém, alteração<br />

no teor <strong>da</strong> obra. Será indicado por 11ª ou 9ª edição, <strong>de</strong> 1873. Missão Abrevia<strong>da</strong>, manual útil para os párocos, vigários<br />

e capelães do interior e para qualquer li<strong>de</strong>rança católica. Era uma espécie <strong>de</strong> “Catecismo <strong>da</strong> doutrina católica”.<br />

65


66<br />

ao afirmarem que o Peregrino usou a Missão Abrevia<strong>da</strong> como manual orientativo na mística <strong>de</strong><br />

sua comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Não há dúvi<strong>da</strong>s quanto ao uso <strong>da</strong> Missão Abrevia<strong>da</strong> pelo Conselheiro. Foi um<br />

livro <strong>de</strong>vocional por excelência, dos sertões nor<strong>de</strong>stinos, pois sua “forma acessível e concreta <strong>de</strong><br />

catequização facilitou o entendimento, também, <strong>da</strong> gente simples e permitiu que o livro se<br />

apresentasse como a suma doutrinal e catequética”. 54 Com 993 páginas, 211 meditações,<br />

instruções titula<strong>da</strong>s, 21 vi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> santos, apartados <strong>de</strong> práticas e <strong>de</strong>voções, a Missão Abrevia<strong>da</strong><br />

apresenta aquilo <strong>de</strong> que o padre ou qualquer missionário leigo <strong>de</strong>ve fazer uso nos trabalhos <strong>da</strong><br />

pós-missão. 55 A finali<strong>da</strong><strong>de</strong> do livro encontra-se no próprio título: <strong>de</strong>spertar os <strong>de</strong>scui<strong>da</strong>dos,<br />

converter os pecadores e sustentar o fruto <strong>da</strong>s missões. De ampla circulação e assimilação <strong>de</strong> seu<br />

conteúdo pelas cama<strong>da</strong>s menos letra<strong>da</strong>s, Eduardo Hoornaert classifica o livro <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong><br />

“bíblia do povo sertanejo”. 56 Joaquim Cabral atesta a gran<strong>de</strong> utili<strong>da</strong><strong>de</strong> para to<strong>da</strong>s as pessoas pela<br />

“extração <strong>de</strong> noventa e dois mil exemplares em tão pouco tempo; uma gran<strong>de</strong> multidão <strong>de</strong><br />

pecadores ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente convertidos e emen<strong>da</strong>dos; muitas confissões gerais que se têm feito e<br />

se fazem por to<strong>da</strong> parte, só por ter lido, ou ouvido ler este livro”. 57 Vilanova, sobrevivente <strong>da</strong><br />

guerra <strong>de</strong> Canudos, conviveu <strong>de</strong> perto com Antônio Conselheiro e <strong>de</strong>ixou este <strong>de</strong>poimento sobre<br />

Missão Abrevia<strong>da</strong>:<br />

O livro do Peregrino era a Missão Abrevia<strong>da</strong>, on<strong>de</strong> muito se fala <strong>da</strong> morte, do inferno, do<br />

juízo final, dos açoites e espinhos e <strong>da</strong> Paixão <strong>de</strong> Nosso Senhor Jesus Cristo. Os fra<strong>de</strong>s<br />

pregadores <strong>da</strong>quele tempo conduziam sempre este livro, que <strong>de</strong> tão cru, nas palavras,<br />

fechava sem pie<strong>da</strong><strong>de</strong> as portas do céu. Também o Peregrino amava esse livro e varava o<br />

dia e a noite lendo ou copiando as Meditações e os Exemplos dos Santos. Quando a mão<br />

do Peregrino estava cansa<strong>da</strong>, escrevia por ele Leão <strong>de</strong> Natuba, que tinha boa caligrafia e<br />

era muito <strong>de</strong>voto. 58<br />

54 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>, a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 274.<br />

55 Cf. COUTO, José Gonçalves, Missão Abrevia<strong>da</strong>...,p. 21.<br />

56 Cf. HOORNAERT, Eduardo, Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira e falsa religião no Nor<strong>de</strong>ste, Salvador: Beneditina, 1972, p. 77-87.<br />

57 Cabral, Joaquim, “Missão Abrevia<strong>da</strong>”: Da pobreza <strong>de</strong> uma teologia... ao Estigma funesto <strong>de</strong> uma moral,<br />

dissertação <strong>de</strong> licenciatura em Teologia Moral na Aca<strong>de</strong>mia Afonsiana, Pontifícia Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Lateranense, Roma:<br />

1986, p. 5.<br />

58 MACEDO, Nertan, Memorial <strong>de</strong> Vilanova..., p. 49.


67<br />

Alexandre Otten confirma o conteúdo <strong>de</strong>scrito por Vilanova. A Missão Abrevia<strong>da</strong> fala <strong>de</strong><br />

Céu, Inferno, Purgatório, Vi<strong>da</strong>, Paixão, morte, Ressurreição e traz belos relatos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

diversos santos. 59 Como manual <strong>de</strong> espirituali<strong>da</strong><strong>de</strong>, Missão Abrevia<strong>da</strong> mostrava a mentali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

teológica presente na Igreja. Apresentava uma visão dicotômica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> espiritual: céu – inferno,<br />

vi<strong>da</strong> – morte, bem - mal, pecado - raça, Deus – diabo, salvação - con<strong>de</strong>nação. Essa visão<br />

teológica, comum aos pregadores <strong>de</strong> missões, iria influenciar a fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong> teologia<br />

subjacente ao pensamento religioso <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> canu<strong>de</strong>nse.<br />

Missão Abrevia<strong>da</strong> refletia o esquema teológico <strong>da</strong> época. Apresentava um Deus<br />

vingativo e castigador, implacável com o pecador. Eduardo Hoornaert fez <strong>da</strong> obra uma análise<br />

bastante crítica, mostrando as lacunas teológicas e os avanços para uma pastoral renova<strong>da</strong>, na<br />

perspectiva <strong>da</strong> Missão Abrevia<strong>da</strong>. “Esta Bíblia do Nor<strong>de</strong>ste, confronta<strong>da</strong> com a Sagra<strong>da</strong><br />

Escritura, nos revela as gran<strong>de</strong>s lacunas <strong>da</strong> mensagem missionária, e ao mesmo tempo, os pontos<br />

<strong>de</strong> apoio <strong>de</strong> uma pastoral renova<strong>da</strong>”. 60 O pecado é o elemento estruturante <strong>de</strong> todo o conteúdo<br />

doutrinal teológico, exortativo e ascético, formando o eixo condutor <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a obra. O ser<br />

humano, visto como pecador <strong>de</strong>via temer os riscos pessoais que corria, a gravi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

con<strong>de</strong>nação, as penas do inferno. Sem o arrependimento e a confissão não é possível conter a ira<br />

<strong>de</strong> Deus. Hoornaert aponta pelo menos três lacunas na visão teológica do <strong>de</strong>vocionário.<br />

Em primeiro lugar, a mensagem cristã era reduzi<strong>da</strong> ao âmbito estritamente individual e<br />

moral. 61 Seu autor, o Padre Couto, seguia a linha <strong>da</strong> teologia do pecado original <strong>de</strong> Santo<br />

Agostinho, construí<strong>da</strong> nas discussões com Pelágio. Os argumentos <strong>de</strong> Agostinho, produto <strong>de</strong> uma<br />

disputa apaixona<strong>da</strong>, assumem posições dialéticas diante do seu interlocutor como acontece em<br />

59 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>, a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 273-287.<br />

60 Cf. HOORNAERT, Eduardo, Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira e falsa religião no Nor<strong>de</strong>ste, Salvador: Beneditina, 1972, p. 77-87. O<br />

autor faz uma análise crítica do conteúdo teológico <strong>da</strong> Missão Abrevia<strong>da</strong>, <strong>de</strong>stacando, principalmente, as lacunas<br />

teológicas.<br />

61 Cf. HOORNAERT, Eduardo, Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira e Falsa religião no Nor<strong>de</strong>ste..., p. 78-80.


68<br />

discussões acirra<strong>da</strong>s. O futuro Bispa <strong>de</strong> Hipona fora, antes <strong>de</strong> sua conversão, durante um longo<br />

tempo, maniqueu: acentuou certos <strong>aspectos</strong> do maniqueísmo e influenciou a antropologia<br />

católica, especialmente a teologia sobre o pecado. 62<br />

Essa visão, um tanto dualista, <strong>da</strong> Antropologia Cristã assumiu posição central na pregação<br />

popular <strong>da</strong> Igreja no oci<strong>de</strong>nte cristão. A insistência pela salvação <strong>da</strong> alma dominava a pregação<br />

dos missionários na época do Conselheiro. Ao comentar a Missão Abrevia<strong>da</strong>, E. Hoornaert<br />

chama a atenção do leitor para a procura quase exclusiva <strong>da</strong> religião cristã com a intenção <strong>de</strong><br />

salvação <strong>da</strong> alma. Essa “perspectiva reduz tudo: o evangelho se torna uma coleção <strong>de</strong> histórias<br />

edificantes, a moral engole a mensagem do Reino <strong>de</strong> Deus, Cristo se torna instrumento no<br />

caminho <strong>da</strong> salvação individual, a Igreja nem entra em consi<strong>de</strong>ração”. 63 O tema do “poucos se<br />

salvam” perpassa todo o livro, com advertências quase sempre dirigi<strong>da</strong>s ao pecador. Por isso, o<br />

cristão necessitava converter-se, confessar-se e comungar, para livrar-se do castigo eterno. A<br />

pregação dos missionários e as orientações do manual entregue às li<strong>de</strong>ranças, orientador dos<br />

participantes <strong>da</strong>s missões, adotavam uma pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> sensibilização pelo medo, intimi<strong>da</strong>ção<br />

pelos castigos. O inferno seria o <strong>de</strong>stino dos <strong>de</strong>sobedientes e malfeitores.<br />

Em segundo lugar, a Missão Abrevia<strong>da</strong> fazia uma exaltação unilateral <strong>da</strong> obediência e<br />

penitência como virtu<strong>de</strong>s cristãs. 64 A mortificação e as várias formas <strong>de</strong> penitência ocupavam o<br />

lugar do Reino <strong>de</strong> Deus. “No século XIX, a penitência se chama mortificação. Esta mortificação<br />

não prepara o advento do Reino <strong>de</strong> Deus como a penitência (conversão, metanóia) prega<strong>da</strong> por<br />

João Batista (Mt. 3, Mc 2,3), mas prepara a morte”. 65 Só pelo caminho <strong>da</strong> mortificação e<br />

62 MANIQUEÍSMO, in: BRUGGER, Walter, Dicionário <strong>de</strong> Filosofia, São Paulo: EPU, 1977, p. 257: “O mundo é<br />

explicado por dois princípios : um bom, o <strong>da</strong> luz; outro mau, o <strong>da</strong>s trevas (<strong>da</strong> matéria)”. Ain<strong>da</strong>, segundo a concepção<br />

maniqueísta, o universo foi criado e dominado por dois princípios antagônicos e irredutíveis: Deus ou o bem<br />

absoluto, e o mal absoluto ou o Diabo.<br />

63 HOORNAERT, Eduardo, Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira e falsa religião no Nor<strong>de</strong>ste..., p. 79.<br />

64 HOORNAERT, Eduardo, Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira e falsa religião no Nor<strong>de</strong>ste..., p. 80-84.<br />

65 HOORNAERT, Eduardo, Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira e falsa religião no Nor<strong>de</strong>ste..., p. 80-81.


69<br />

penitência chegava-se ao céu. “Para o céu não se vai por meio <strong>de</strong> solturas, divertimentos e bailes.<br />

Para o céu se vai, sim, mas é por meio <strong>de</strong> muitas mortificações e jejuns”. 66 O <strong>de</strong>staque <strong>da</strong><br />

pregação voltava-se para o pecado e o castigo, em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong> graça <strong>de</strong> Deus e o amor<br />

misericordioso <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong> Nazaré. Isso se comprova pela importância que o autor <strong>de</strong>u ao inferno,<br />

pelo fato <strong>de</strong> ter atribuído um capítulo inteiro ao tema, intitulado Uma visão do inferno que tem<br />

convertido a muitos e gran<strong>de</strong>s pecadores.<br />

A confissão limitava-se à “lista” dos pecados pessoais e domésticos. Os “pecados <strong>de</strong><br />

âmbito social ou político (a não-colaboração na construção <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>) não eram sentidos<br />

como tais [...] “fazer cari<strong>da</strong><strong>de</strong>” na linguagem do confessionário significava “<strong>da</strong>r esmolas”. A<br />

moral do confessionário é uma redução <strong>da</strong> moral cristã”. 67 O man<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> Igreja <strong>de</strong> confessar-<br />

se, ao menos uma vez ao ano, era rigorosamente observado para o bem do fiel. O pecado <strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>sobediência quase sempre funcionou como controle social. O povo, atingido por essa visão <strong>de</strong><br />

pecado, penitência e obediência, ficou preso a uma Igreja atrela<strong>da</strong> ao po<strong>de</strong>r do Estado e pouco<br />

comprometi<strong>da</strong> com as mu<strong>da</strong>nças sociais efetivas para os pobres. Diante <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças, a Igreja<br />

não conseguia assumir uma posição <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência.<br />

A terceira <strong>de</strong>formação do cristianismo apresenta<strong>da</strong> pela Missão Abrevia<strong>da</strong>, consistia na<br />

quase-i<strong>de</strong>ntificação entre vi<strong>da</strong> cristã e “vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> pie<strong>da</strong><strong>de</strong>” (pietismo). 68 A vi<strong>da</strong> cristã se restringia<br />

ao âmbito <strong>da</strong>s <strong>de</strong>voções e <strong>da</strong> recepção dos sacramentos. A Igreja não cria <strong>de</strong>voções. Elas eram<br />

conseqüências <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> pregação, do conteúdo teológico, <strong>de</strong> liturgias celebra<strong>da</strong>s e<br />

<strong>de</strong>codifica<strong>da</strong>s pela experiência do povo sertanejo, <strong>de</strong> influência indígena e negra. “Milhões <strong>de</strong><br />

escravos africanos foram sumariamente importados e ain<strong>da</strong> mais sumariamente introduzidos no<br />

cristianismo através do batismo e quase sem catequese senão a <strong>de</strong>claração mecânica <strong>de</strong> algumas<br />

66 COUTO, José Gonçalves, Missão Abrevia<strong>da</strong>...,p. 562 (9ª ed.).<br />

67 HOORNAERT, Eduardo, Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira e falsa religião no Nor<strong>de</strong>ste..., p. 82.<br />

68 HOORNAERT, Eduardo, Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira e falsa religião no Nor<strong>de</strong>ste..., p. 84-87.


fórmulas estereotipa<strong>da</strong>s”. 69 70<br />

O cristianismo lusitano, <strong>de</strong>vocional, em processo <strong>de</strong> romanização,<br />

encontrou-se com a vitali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s religiões indígena e africana. No encontro do cristianismo com<br />

essas culturas, quase não houve inculturação <strong>da</strong> fé, nem respeito pela experiência <strong>da</strong>s<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s locais, mas transla<strong>da</strong>ção e imposição cultural. Cultura européia e evangelho<br />

tornaram-se dois lados <strong>da</strong> mesma moe<strong>da</strong>. A vi<strong>da</strong> cristã foi reduzi<strong>da</strong> à assimilação <strong>da</strong> cultura<br />

européia, muitas vezes em simbiose com o evangelho. O índio, o negro, o sertanejo “iletrados”, e<br />

“sem cultura”, foram ressignificando e reprocessando a mensagem cristã a partir do paradigma<br />

indígena, africano e sertanejo, criando o que Eduardo Hoornaert batizou <strong>de</strong> cristianismo moreno<br />

do Brasil ou cristianismo rústico.<br />

Missão Abrevia<strong>da</strong> também <strong>da</strong>va um <strong>de</strong>staque especial à <strong>de</strong>voção mariana, com<br />

características feu<strong>da</strong>is. 70 De nossa parte, somos servos ou escravos <strong>de</strong> Maria. Essa <strong>de</strong>voção<br />

“provém <strong>de</strong> uma visão medieval do Reino <strong>de</strong> Deus, como um Reino que se realiza aqui na terra<br />

pela cristan<strong>da</strong><strong>de</strong>”. 71 As festas <strong>de</strong> Cristo-Rei, Nossa Senhora-Rainha, causavam incidência na<br />

espirituali<strong>da</strong><strong>de</strong> do povo. Havia uma ligação natural com a vi<strong>da</strong> prática. Assim como Maria-<br />

Rainha obe<strong>de</strong>cia ao Cristo Rei, o povo <strong>de</strong>veria obe<strong>de</strong>cer às autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Quem quisesse ser<br />

cristão ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro <strong>de</strong>veria obe<strong>de</strong>cer às or<strong>de</strong>ns <strong>da</strong> Igreja e a seus ministros. Por isso, precisava<br />

observar as principais práticas religiosas. As “as orações <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> dia, a santificação dos domingos<br />

e dias santos, a observação <strong>da</strong> abstinência e jejuns <strong>da</strong> Igreja, a freqüência dos sacramentos, numa<br />

palavra, a obediência a tudo quanto nos é man<strong>da</strong>do por parte <strong>da</strong> Igreja”. 72<br />

Essa espirituali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> submissão foi reinterpreta<strong>da</strong> pelo Conselheiro na perspectiva <strong>da</strong><br />

libertação <strong>de</strong> sua comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Não a repetiu pura e simplesmente, mas trouxe algo novo, como<br />

69 HOORNAERT, Eduardo, O cristianismo moreno do Brasil..., p.37.<br />

70 Cf. HOORNAERT, Eduardo, Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira e falsa religião no Nor<strong>de</strong>ste..., p. 85.<br />

71 HOORNAERT, Eduardo, Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira e falsa religião no Nor<strong>de</strong>ste..., p. 85.<br />

72 COUTO, José Gonçalves, Missão Abrevia<strong>da</strong>... [9ª ed.], p. 180.


71<br />

veremos no último capítulo. Antônio Conselheiro estava <strong>de</strong> acordo com essa doutrina. Porém,<br />

obe<strong>de</strong>cer plenamente, só a Deus. A todo o momento ele repetia: “Só Deus é gran<strong>de</strong>”. Ele<br />

inaugurou uma nova maneira <strong>de</strong> agir na Igreja, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final do século XIX.<br />

2.1.4- Obra manuscrita por Antônio Conselheiro<br />

As Prédicas ou manuscritos <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, examina<strong>da</strong>s cui<strong>da</strong>dosamente, são<br />

indispensáveis para se formular um julgamento aproximado, porém, sério, do pensamento e <strong>da</strong><br />

conduta do lí<strong>de</strong>r maior <strong>de</strong> Canudos. Foram poucos os que se <strong>de</strong>bruçaram sobre o aspecto<br />

religioso <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> interna <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos. Talvez o preconceito sobre religião, até<br />

recentemente vista no meio acadêmico como o “ópio do povo”, e a influência do materialismo<br />

histórico <strong>de</strong> K. Marx tenham impedido análise mais apura<strong>da</strong> e isenta <strong>da</strong> religião, como força<br />

motora e <strong>de</strong>terminante na resistência do povo <strong>de</strong> Canudos frente à arrogância irracional do Estado<br />

brasileiro. “Certamente concorreu para tal a pouca importância <strong>da</strong><strong>da</strong> à religião na abor<strong>da</strong>gem dos<br />

fenômenos sociais, ti<strong>da</strong> que era como expressão <strong>de</strong> uma consciência atrasa<strong>da</strong>, ou apenas refluxo<br />

(ou encobrimento) <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s e conflitos situados na base socioeconômica <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>”. 73<br />

Outros condicionamentos foram a força <strong>da</strong> ditadura militar e a falta <strong>de</strong> investimento do Estado<br />

para um estudo mais profundo dos movimentos sociais, especialmente o ocorrido no sertão <strong>da</strong><br />

Bahia.<br />

Des<strong>de</strong> o Concílio Vaticano II, a Teologia <strong>da</strong> Libertação, a expansão do pluralismo<br />

religioso, o advento <strong>da</strong>s ciências <strong>da</strong> religião, os estudos <strong>da</strong> religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> popular, o empenho por<br />

uma melhor compreensão <strong>da</strong> religião ou do fenômeno religioso nas transformações sociais, vêm<br />

aumentando sempre mais o interesse por movimentos como Canudos. Os estudos mais recentes<br />

73 VASCONCELOS, Pedro Lima, Terra <strong>da</strong>s Promessas, Jerusalém maldita: memórias bíblicas sobre Belo<br />

Monte..., p. 210.


sobre o movimento em questão constituem um <strong>de</strong>sses exemplos. 74 72<br />

Ataliba Nogueira, jurista e<br />

escritor, fez publicar o ca<strong>de</strong>rno contendo manuscritos <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, <strong>da</strong>tados <strong>de</strong> 22 <strong>de</strong><br />

janeiro <strong>de</strong> 1897. 75 “[...] a caligrafia do texto e a assinatura são suas, as mesmas que se po<strong>de</strong>m ver<br />

em duas cartas emoldura<strong>da</strong>s e suspensas na pare<strong>de</strong>, no Instituto Geográfico e Histórico <strong>da</strong><br />

Bahia”. 76 Não há qualquer suspeita quanto à autoria do texto:<br />

O volume é enca<strong>de</strong>rnado, conta com 628 páginas, numera<strong>da</strong>s e sem margem. Ca<strong>da</strong> página<br />

com 24 linhas. Tinta preta, letra bela e sempre igual. Formato 10 x 14. Diz na folha <strong>de</strong><br />

rosto:<br />

‘A presente obra mandou subscrever o peregrino<br />

Antônio Vicente Men<strong>de</strong>s Maciel<br />

No povoado do<br />

Belo Monte, província <strong>da</strong> Bahia<br />

Em 12 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong>’ ‘897’. 77<br />

Para Ataliba Nogueira, a expressão “mandou subscrever”, na primeira página, não põe em<br />

dúvi<strong>da</strong> a veraci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> autoria, mas confirma a humil<strong>da</strong><strong>de</strong> do autor. 78 Alexandre Otten se refere a<br />

um “outro” manuscrito, não conhecido pelo público, também <strong>de</strong> autoria do Conselheiro: “O<br />

manuscrito não publicado não apresenta as últimas prédicas, mas oferece uma transcrição do<br />

Evangelho <strong>de</strong> Mateus, tira<strong>da</strong> <strong>da</strong> Bíblia Vulgata, na tradução <strong>de</strong> Pe. Antônio Pereira <strong>de</strong><br />

Figueiredo”. 79 Esse outro manuscrito foi encontrado em 1972, na preparação do inventário <strong>de</strong><br />

Aloísio <strong>de</strong> Carvalho, senador e professor <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> Salvador. Atualmente a<br />

relíquia encontra-se na posse <strong>da</strong> família do saudoso professor José Calazans. 80<br />

74 Des<strong>de</strong> o início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1990, Canudos não é mais um acontecimento marginal <strong>da</strong> historiografia brasileira.<br />

Além dos filmes, publicações <strong>de</strong> livros e jornais sobre o acontecido em Belo Monte, há diversas teses <strong>de</strong> doutorado e<br />

dissertações <strong>de</strong> mestrado sobre o significado <strong>de</strong> Canudos.<br />

75 Cf. NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos...,p. 46-290. A paginação contém um erro. Da página<br />

569 salta-se para a 600. Entretanto, não há <strong>de</strong>scontinui<strong>da</strong><strong>de</strong> no discurso. O manuscrito termina na página 628.<br />

Mesmo usando a referi<strong>da</strong> publicação <strong>de</strong> Ataliba Nogueira, a citação seguirá do ca<strong>de</strong>rno manuscrito, pela sigla MAC<br />

(Manuscritos <strong>de</strong> Antônio Conselheiro), segui<strong>da</strong> <strong>da</strong> página do original. A ortografia é do século passado e difere <strong>da</strong><br />

nossa; será manti<strong>da</strong> conforme o texto manuscrito, publicado por Ataliba Nogueira.<br />

76 Cf. NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos...,p. 23.<br />

77 NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos, p. 23<br />

78 Cf. NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos..., p. 23<br />

79 OTEEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 203.<br />

80 Cf. NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos..., p. 23. A prova concreta <strong>da</strong> autentici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra é<br />

o texto na página que prece<strong>de</strong> à folha <strong>de</strong> rosto: “No dia 5 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1897, em que as tropas legais sob o comando<br />

do general Artur <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Guimarães se assenhoraram vitoriosa e <strong>de</strong>cidi<strong>da</strong>mente do arraial <strong>de</strong> Canudos, <strong>da</strong>ndo


73<br />

As chama<strong>da</strong>s Prédicas <strong>de</strong> Antônio Conselheiro estão organiza<strong>da</strong>s em quatro partes e um<br />

discurso sobre a República, conforme índice abaixo:<br />

PRIMEIRA PARTE<br />

Esquema geral do Manuscrito <strong>de</strong> Antônio Conselheiro<br />

I. Tempesta<strong>de</strong>s que se levantam no coração <strong>de</strong> Maria (até a página 223), com 29 mistérios,<br />

divididos em três pontos, ca<strong>da</strong> um.<br />

1. Tempesta<strong>de</strong>s que se levantam no coração <strong>de</strong> Maria por ocasião do mistério <strong>da</strong> anunciação (p. 3-9).<br />

2. Sentimento <strong>de</strong> Maria por causa <strong>da</strong> pobreza em que se achava, por ocasião do nascimento <strong>de</strong> seu divino<br />

filho (p. 10-16).<br />

3. Dor <strong>de</strong> Maria na circuncisão <strong>de</strong> seu Filho (p. 17-23).<br />

4. Humilhação <strong>de</strong> Maria no Mistério <strong>da</strong> apresentação (p. 24-29).<br />

5. Dor <strong>de</strong> Maria na profecia <strong>de</strong> Simeão (p. 30-37).<br />

6. Dor <strong>de</strong> Maria por ocasião <strong>de</strong> sua fugi<strong>da</strong> para o Egito (p. 38-46).<br />

7. Dor <strong>de</strong> Maria na morte dos inocentes (p. 47-55).<br />

8. Desolação <strong>de</strong> Maria durante o seu <strong>de</strong>sterro do Egito (p. 56-62).<br />

9. Aflição <strong>de</strong> Maria na sua volta do Egito (p. 63-70).<br />

10. Dor <strong>de</strong> Maria na per<strong>da</strong> <strong>de</strong> seu Filho no Templo (p. 71-77).<br />

11. Sentimento <strong>de</strong> Maria na morte <strong>de</strong> seus pais (p. 78-85).<br />

12. Dor <strong>de</strong> Maria durante a vi<strong>da</strong> particular <strong>de</strong> Jesus em Nazaré (p. 86-92).<br />

13. Sentimento <strong>de</strong> Maria quando seu Filho se retirou para o <strong>de</strong>serto (p. 93-101).<br />

14. Dor <strong>de</strong> Maria por causa <strong>da</strong>s injúrias proferi<strong>da</strong>s contra seu Filho (p. 102-109).<br />

15. Dor <strong>de</strong> Maria por ocasião <strong>da</strong> permissão que Jesus lhe pediu para suportar a morte (p. 110-117).<br />

16. Dor <strong>de</strong> Maria na prisão <strong>de</strong> seu Filho (p. 118-124).<br />

17. Dor <strong>de</strong> Maria na flagelação <strong>de</strong> seu Filho (p. 125-133).<br />

18. Dor <strong>de</strong> Maria quando seu Filho foi apresentado por Pilatos ao povo (p. 134-139).<br />

busca do lugar <strong>de</strong>nominado Santuário, em que morou o célebre Antônio Conselheiro, foi este livro encontrado em<br />

uma velha caixa <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, por mim, que me achava como médico em comissão do governo estadual e que fiz parte<br />

<strong>da</strong> junta <strong>de</strong> peritos que no dia 6 exumou e reconheceu a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> do cadáver do gran<strong>de</strong> fanático. Submetido ao<br />

testemunho <strong>de</strong> muitos conselheiristas, este livro foi reconhecido ser o mesmo que, em vi<strong>da</strong>, acompanhava nos<br />

últimos dias a Antônio Maciel, o ‘Conselheiro’. Bahia, março <strong>de</strong> 2898, João Pondé”. Cit. in: ibi<strong>de</strong>m, p. 22 e 51.<br />

JoãoPondé (1874-1974), natural <strong>de</strong> Itapicuru <strong>de</strong> Cima Na infância, beijou a mão <strong>de</strong> Antônio Conselheiro. Cf. Ibi<strong>de</strong>m<br />

p. 22.<br />

74


19. Dor <strong>de</strong> Maria encontrando seu Filho com a Cruz aos ombros (p. 140-147).<br />

20. Dor <strong>de</strong> Maria na agonia <strong>de</strong> Jesus (p. 148-155).<br />

21. Dor <strong>de</strong> Maria quando os sol<strong>da</strong>dos repartiam entre si os vestidos <strong>de</strong> seu Filho (p. 156-163).<br />

22. Compaixão <strong>de</strong> Maria na se<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu Filho pregado na Cruz (p. 164-171).<br />

23. Dor <strong>de</strong> Maria na agonia <strong>de</strong> Jesus (172-179).<br />

24. Dor <strong>de</strong> Maria quando seu Filho lhe falou <strong>da</strong> Cruz (p. 180-187).<br />

25. Martírio <strong>de</strong> Maria na morte <strong>de</strong> seu Filho (p. 188-194).<br />

26. Dor <strong>de</strong> Maria quando o lado <strong>de</strong> seu Filho foi aberto com uma lança (p. 195-202).<br />

27. Dor <strong>de</strong> Maria no <strong>de</strong>scimento <strong>da</strong> cruz e funeral do cadáver <strong>de</strong> seu Filho (p. 203-209).<br />

28. Dor <strong>da</strong> Senhora em sua sole<strong>da</strong><strong>de</strong> (p. 210-216).<br />

29. Maria, Rainha dos Mártires (p. 217-223).<br />

SEGUNDA PARTE<br />

2. Exposição sobre os <strong>de</strong>z man<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> lei <strong>de</strong> Deus (p. 224-426). Reflexão sobre ca<strong>da</strong><br />

man<strong>da</strong>mento<br />

1º Man<strong>da</strong>mento (p. 224-250).<br />

2º Man<strong>da</strong>mento (p. 251-270).<br />

3º Man<strong>da</strong>mento (p. 271-292).<br />

4º Man<strong>da</strong>mento (p. 293-318).<br />

5º Man<strong>da</strong>mento (p. 319-342).<br />

6º Man<strong>da</strong>mento (p. 343-362).<br />

7º Man<strong>da</strong>mento (p. 363-380).<br />

8º Man<strong>da</strong>mento (p. 381-403).<br />

9º Man<strong>da</strong>mento (p. 404-415).<br />

10º Man<strong>da</strong>mento (p. 416-426).<br />

TERCEIRA PARTE<br />

3. Textos extraídos <strong>da</strong> Sagra<strong>da</strong> Escritura (p. 427-485), sem divisão.<br />

Quarta parte<br />

4. Prédicas <strong>de</strong> circunstâncias e discursos, (p. 486-559), com 7 subdivisões.<br />

75


1. Sobre a Cruz (486-508).<br />

2. Sobre a Missa (509-516).<br />

Sobre a República (p. 560-623) e com duas partes.<br />

3. Sobre a confissão (517-528).<br />

4. Sobre as maravilhas <strong>de</strong> Jesus (529-530).<br />

5. Construção e edificação do templo <strong>de</strong> Salomão (531-536).<br />

6. Sobre o recebimento <strong>da</strong> chave <strong>da</strong> Igreja <strong>de</strong> Santo Antônio, padroeiro <strong>de</strong> Belo Monte (p. 537-553).<br />

7. Sobre a parábola do semeador (p. 554-559).<br />

Sobre a República (p. 560-623).<br />

A companhia <strong>de</strong> Jesus – O casamento civil – A família imperial – A libertação dos escravos (p. 560-523).<br />

Despedi<strong>da</strong> (p. 624-628).<br />

2.2. Descrição do imaginário religioso <strong>de</strong> Antônio Conselheiro<br />

Mesmo não sendo um manual <strong>de</strong> teologia sistemática, é possível fazer uma leitura<br />

sistemática do pensamento <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, a partir dos referidos manuscritos. Seria<br />

exigir muito <strong>de</strong> um cristão leigo no Brasil, no final do século XIX, radicado nos sertões do Ceará<br />

e Bahia, um conteúdo sistemático no sentido estrito do termo. Esta capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> nem estava<br />

presente no manuscritos dos ministros or<strong>de</strong>nados. Ele foi teólogo, sem sequer cursar teologia, um<br />

teólogo por intuição. Desenvolveu muito mais os <strong>aspectos</strong> práticos <strong>da</strong> fé cristã, que os <strong>de</strong><br />

natureza sistemática. Encontramos intuições teológicas muito concretas no seu pensamento,<br />

i<strong>de</strong>ntificando-se um fio condutor nas suas reflexões. A forma <strong>de</strong> citar textos bíblicos, os Padres<br />

<strong>da</strong> Igreja e a Missão Abrevia<strong>da</strong> <strong>de</strong>smentem o preconceito <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha sobre a pouca<br />

formação do Peregrino. Tomando por base o conteúdo e a forma a respeito <strong>da</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong> literária<br />

e conceitual “<strong>da</strong> leitura dos sermões o que surge, entretanto, é a figura <strong>de</strong> um sertanejo letrado,<br />

capaz <strong>de</strong> exprimir-se correta e claramente na <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> suas concepções políticas e sociais, e <strong>de</strong>


suas crenças religiosas”. 81 A fé é um ato primeiro. Na concepção dos teólogos clássicos, Teologia<br />

é a ciência <strong>da</strong> fé. Ao pensar a fé, ao envolver-se na vivência comunitária, produzir textos <strong>de</strong><br />

próprio punho para orientar sua comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, Antônio Conselheiro fazia teologia. Suas prédicas<br />

estão marca<strong>da</strong>s pelas fontes essenciais <strong>da</strong> ciência teológica: A Bíblia, Tradição e Magistério. Seu<br />

discurso teológico <strong>de</strong>ve ser lido e interpretado no contexto <strong>da</strong> teologia <strong>da</strong> Contra-Reforma na<br />

Europa e <strong>da</strong> Reforma Católica no Brasil (1840-1920). “Foi nesse período que se gestou o<br />

pensamento <strong>de</strong> Antônio Conselheiro. A preocupação dominante por parte <strong>da</strong> hierarquia católica<br />

era mu<strong>da</strong>r o tradicional mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Igreja <strong>da</strong> Cristan<strong>da</strong><strong>de</strong>, vinculado à cultura lusitana, pelo<br />

mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Igreja hierárquica, conforme fora formulado pelo Concílio <strong>de</strong> Trento”. 82<br />

A cosmovisão <strong>de</strong> Antônio Conselheiro não se diferenciava <strong>da</strong> concepção teológica <strong>de</strong> seu<br />

tempo. As pregações seguiam um tripé teológico ensinado nos seminários: purgatório, céu e<br />

inferno. São as três possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>stina<strong>da</strong>s aos mortais. Esse esquema teológico estava<br />

presente no conteúdo <strong>da</strong>s pregações dos próprios missionários, párocos e <strong>conselheiro</strong>s,<br />

continuadores <strong>da</strong>s missões. A diferença residia na prática. Conselheiro se apossou <strong>de</strong> manuais<br />

reprodutores do pensamento teológico medieval. Não inventou um novo sistema. Sendo um filho<br />

fiel <strong>de</strong> seu tempo, viveu as contradições políticas e religiosas, conseguindo, porém, propor novos<br />

caminhos para uma alternativa <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, organiza<strong>da</strong> em comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Antônio Conselheiro não foi<br />

um mero reprodutor do pensamento teológico medieval. Os manuais <strong>da</strong> Igreja, os ensinamentos e<br />

sacramentos eram recebidos e reinterpretados, à luz <strong>da</strong> praxe comunitária. O amor a Deus e a<br />

cari<strong>da</strong><strong>de</strong> aos irmãos, especialmente aos mais necessitados, tornaram-se regras <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> na<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

81 MONTEIRO, Duglas Teixeira, Um confronto entre Juazeiro, Canudos e Contestado, in: FAUSTO, Bores (org.),<br />

História geral <strong>da</strong> civilização brasileira, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, t. 3, v. 2, p. 65.<br />

82 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual <strong>de</strong> passagem para um final <strong>de</strong> mundo..., p. 67.<br />

76


As Prédicas são “um eco amortecido <strong>de</strong> suas concepções religiosas e políticas. São, com<br />

certeza, apontamentos para suas pregações em <strong>de</strong>terminados momentos. Mas não dão a clara<br />

noção <strong>da</strong> maneira envolvente com que se dirigia aos seus fiéis seguidores”. 83 As Prédicas revelam<br />

um nível teológico, cujo vocabulário nem sempre condiz com o <strong>de</strong> pessoas <strong>de</strong> pouca instrução.<br />

Estava em sintonia com as fontes essenciais <strong>da</strong> teologia cristã. Tinha facili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> conjugar<br />

citações <strong>da</strong> palavra <strong>de</strong> Deus e autores <strong>da</strong> Patrística. Textos do Êxodo, evangelhos, cartas <strong>de</strong><br />

Paulo, João, Apocalipse, foram facilmente comentados pelo Conselheiro, com citações ou<br />

referências aos Santos Padres.<br />

2.2.1- As dores <strong>de</strong> Nossa Senhora<br />

Os manuscritos trazem 29 reflexões sobre as consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s “Dores <strong>de</strong> Nossa Senhora”, em um<br />

total <strong>de</strong> 221 páginas. Ca<strong>da</strong> meditação parte <strong>de</strong> textos ou pequenas histórias bíblicas sobre a<br />

Virgem Maria, com as <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>s consi<strong>de</strong>rações teológicas, mesmo sabendo que não eram<br />

exposições com interesses teológicos, mas orientações <strong>de</strong> espirituali<strong>da</strong><strong>de</strong>, com a intenção <strong>de</strong><br />

animar a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> nos momentos difíceis. O conjunto do texto “As Dores <strong>de</strong> Nossa Senhora”<br />

apresenta excelente embasamento bíblico, conjugado com a lógica do pensamento teológico do<br />

Conselheiro. 84 Alexandre Otten afirma: “São <strong>de</strong>scrições vivas do sofrimento <strong>de</strong> Cristo e <strong>da</strong>s dores<br />

<strong>de</strong> Maria que têm a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> comover os ouvintes, apelando aos seus sentimentos, a fim <strong>de</strong><br />

levá-los à conversão <strong>de</strong> suas atitu<strong>de</strong>s diante <strong>de</strong> Maria e do Filho”. 85 As “Dores <strong>de</strong> Nossa Senhora”<br />

é uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira teologia marial; eram instrumentais pe<strong>da</strong>gógicos para levar o povo ao<br />

seguimento do Jesus Cristo. O <strong>de</strong>staque recaía para os verbos “ver”, “contemplar”, “imitar” e<br />

“sentir” o amor e a misericórdia <strong>da</strong> Mãe e do Filho para com os pecadores. “Convi<strong>da</strong> os ouvintes<br />

83<br />

Cf. MONIZ, Edmundo, A guerra social <strong>de</strong> Canudos..., p. 247.<br />

84<br />

Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>..., p. 204-211. Otten faz um comentário teológico <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> dor <strong>de</strong><br />

Maria, a partir do manuscrito do Peregrino.<br />

85<br />

OTTEN. Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>...,p. 210.<br />

77


a “associarem-se” ao Filho e à Mãe e aos seus sofrimentos, a “acolhê-los”, a “consolar” Nossa<br />

Senhora, chorando com ela ou chorando os próprios pecados, arrepen<strong>de</strong>ndo-se e emen<strong>da</strong>ndo as<br />

suas vi<strong>da</strong>s para assim serem dignos do amor do Filho e <strong>da</strong> Mãe”. 86 Com facili<strong>da</strong><strong>de</strong>, i<strong>de</strong>ntificam-se<br />

palavras-chave no imaginário mariológico <strong>de</strong> Antônio Conselheiro. Artur Peregrino, do atual<br />

grupo <strong>de</strong> Peregrinos do Nor<strong>de</strong>ste, <strong>de</strong>senvolve “Uma Teologia marial”, tendo como base “As<br />

Dores <strong>de</strong> Nossa Senhora”. 87 I<strong>de</strong>ntificou 85 vezes a palavra Dor/Dolorosa; 83 vezes, Coração; 51,<br />

Lágrimas/Chorar; 51, Amor/Compaixão/Cari<strong>da</strong><strong>de</strong>; 18, Morte/Crime; 16, Cruz; 14, Martírio; 11,<br />

Misericórdia/Penitência; 10, Terra/Céu e 9, Pobreza. 88 Artur Peregrino faz uma ligação <strong>da</strong> dor <strong>da</strong><br />

mãe com os filhos sofredores <strong>de</strong> Canudos: “Através do sofrimento <strong>de</strong> Maria o próprio<br />

Conselheiro ia, com certeza, ligando o sofrimento, a dor e a morte tantas vezes presenciados nos<br />

sofrimentos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s parcelas <strong>da</strong> população dos sertões nor<strong>de</strong>stinos”. 89<br />

Em meio a uma cultura marca<strong>da</strong> pelo machismo, a mulher ocupava um lugar central nas<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s comunitárias. Não seria esse o motivo principal para tanto <strong>de</strong>staque à figura <strong>de</strong> Maria<br />

Santíssima? Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha, nos relatos sobre a guerra, foi acusado <strong>de</strong> preconceito contra as<br />

mulheres. Silvio Rabelo, biógrafo <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>screve sua vi<strong>da</strong> sem amor e vazia <strong>de</strong> afeição<br />

feminina, ao afirmar: “A presença do outro sexo na<strong>da</strong> acrescentava ao homem seco e triste que<br />

ele era, em conforto pessoal, em gosto do mundo, em pletora <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. O outro sexo, ele trazia<br />

narcisicamente em si mesmo”. 90 Um estudo <strong>de</strong> Os Sertões, a partir do viés <strong>da</strong> mulher, realizado<br />

por José Calazans, comprova essa lacuna na vi<strong>da</strong> do literato, no que diz respeito ao sexo oposto:<br />

“Uma experiência como a <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha, tão pobre <strong>de</strong> amor e tão vazia <strong>de</strong> mulheres,<br />

haveria <strong>de</strong> refletir, necessariamente e <strong>de</strong> modo especial, na sua atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> escritor em face do<br />

86 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 210.<br />

87 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual <strong>de</strong> passagem para um final <strong>de</strong> mundo..., p. 62-64.<br />

88 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual <strong>de</strong> passagem para um final <strong>de</strong> mundo..., p. 62.<br />

89 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual <strong>de</strong> passagem para um final <strong>de</strong> mundo..., p. 63.<br />

90 RABELO, Sílvio, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha, Rio <strong>de</strong> Janeiro, C.E.B., 1948, p. 453.<br />

78


mundo feminino”. 91 O professor Calazans observa a forma <strong>de</strong>preciativa com que as mulheres são<br />

trata<strong>da</strong>s em Os Sertões: “Causa pena vê-las. Estão terrivelmente marca<strong>da</strong>s, duramente<br />

estigmatiza<strong>da</strong>s. São feias, magras, bruxas, viragos, zanagas. Uma autêntica caqueira<strong>da</strong> humana,<br />

que o autor parece ter tido o prazer <strong>de</strong> <strong>de</strong>buxar”. 92 E levanta uma in<strong>da</strong>gação: “Acreditamos que<br />

não será <strong>de</strong>spropositado in<strong>da</strong>gar, termina<strong>da</strong> a leitura do trecho acima, se na imputação feita ao<br />

Bom Jesus Conselheiro não estaria também o biógrafo se projetando no pensamento do<br />

biografado?” 93 . O Conselheiro não maltratava as mulheres. Ao contrário, elas tiveram um papel<br />

prepon<strong>de</strong>rante em todos os trabalhos internos <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, inclusive no final <strong>da</strong> guerra.<br />

Ao falar <strong>de</strong> Maria, Conselheiro <strong>de</strong>staca também a importância <strong>da</strong>s mulheres na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> irmãos e irmãs. “A mulher, na pessoa <strong>de</strong> Maria, tem um lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque nas Prédicas <strong>de</strong><br />

Antônio Conselheiro. Há um olhar para a mãe <strong>de</strong> Jesus como se fosse um olhar para ele mesmo e<br />

a situação vivi<strong>da</strong> naquele momento”. 94 Ao escutar as Prédicas, as mulheres se i<strong>de</strong>ntificavam logo<br />

com Maria, mulher alegre e sofredora, mas forte e vencedora. “Bendita seja Maria em suas dores.<br />

Quando, à força <strong>de</strong> martela<strong>da</strong>s, os cravos iam penetrando as mãos e pés do Salvador, as dores que<br />

ele sofria se unificavam com as <strong>da</strong> Virgem Maria”. 95 O coração <strong>de</strong> Maria, “como a cera junto ao<br />

91<br />

CALAZANS, José, As mulheres <strong>de</strong> Os Sertões, in: RINALDO, <strong>de</strong> Fernan<strong>de</strong>s, O clarim e a oração: cem anos <strong>de</strong><br />

Os Sertões, São Paulo: 2002, p. 191.<br />

92<br />

CALAZANS, José, As mulheres <strong>de</strong> Os Sertões..., in: RINALDO, <strong>de</strong> Fernan<strong>de</strong>s, o Clarim e a oração: cem anos<br />

<strong>de</strong> Os Sertões, p. 192. “Ali estavam”, inicia Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha a <strong>de</strong>scrição, “gafa<strong>da</strong>s <strong>de</strong> pecados velhos,<br />

serodiamente penitenciados, as beatas – êmulos <strong>da</strong>s bruxas <strong>da</strong>s igrejas – revesti<strong>da</strong>s <strong>da</strong> capona preta, lembrando a<br />

holandilha fúnebre <strong>da</strong> Inquisição; as solteiras, termo que nos sertões tem o pior dos significados, <strong>de</strong>senvoltas e<br />

<strong>de</strong>spoja<strong>da</strong>s, soltas na garridice sem freios; as moças donzelas ou moças <strong>da</strong>mas, recata<strong>da</strong>s e tími<strong>da</strong>s; e honestas mães<br />

<strong>de</strong> famílias, nivelando-se pelas mesmas rezas. E prossegue – “faces murchas <strong>de</strong> velhas – esgrouviados viragos em<br />

cuja boca <strong>de</strong>ve ser um pecado mortal a prece; - rostos austeros <strong>de</strong> matronas simples, fisionomias ingênuas <strong>de</strong><br />

raparigas crédulas, misturavam-se em conjunto estranho’. Mais ain<strong>da</strong> – “To<strong>da</strong>s as i<strong>da</strong><strong>de</strong>s, todos os tipos, to<strong>da</strong>s as<br />

cores”. E Depois – Grenhas maltrata<strong>da</strong>s <strong>de</strong> crioulas retintas, cabelos corredios e duros <strong>de</strong> cablocas; trunfas<br />

escan<strong>da</strong>losas, <strong>de</strong> africanas; ma<strong>de</strong>ixas castanhas e louras <strong>de</strong> brancas legítimas, embaralhavam-se, sem uma fita, sem<br />

um grampo, sem uma flor, o toucado ou a coifa mais nobre. Nos vestuários singelos <strong>de</strong> algodão ou chita,<br />

<strong>de</strong>selegantes e escorridos, não havia obrigar-se a garridice menos pretensiosa: um xale <strong>de</strong> lã, uma mantilha ou um<br />

lenço <strong>de</strong> cor, atenuando a monotonia <strong>da</strong>s vestes encardi<strong>da</strong>s quase reduzi<strong>da</strong>s a saias e camisas estraçoa<strong>da</strong>s, <strong>de</strong>ixando<br />

expostos os peitos cobertos <strong>de</strong> rosários, <strong>de</strong> verônicas, <strong>de</strong> cruzes, <strong>de</strong> figas, <strong>de</strong> amuletos, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> animais, <strong>de</strong><br />

bentinhos ou <strong>de</strong> nôminas encerrando cartas santas, únicos atavios que perdoava a ascese exigente do evangelizador”.<br />

Cit in: ibi<strong>de</strong>m, p. 195-196. Grifos do autor.<br />

93<br />

CALAZANS, José, As mulheres <strong>de</strong> Os Sertões..., p. 193.<br />

94<br />

PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual <strong>de</strong> passagem para um final <strong>de</strong> mundo..., p. 62.<br />

95 MAC, p. 153.<br />

79


fogo, se <strong>de</strong>rrete <strong>de</strong> pura dor, a qual causando estragos no interior pôs sinais visíveis e seus traços<br />

naquele rosto santíssimo completamente <strong>de</strong>sfigurado”. 96 O pesquisador José Calazans não<br />

alimenta dúvi<strong>da</strong>s quanto à bravura <strong>da</strong>s mulheres <strong>de</strong> Canudos, especialmente no momento <strong>da</strong><br />

guerra: “Acreditamos, também, que morreram muitas mulheres. Eram mais corajosas que os<br />

homens, por serem mais religiosas e terem mais convicções”. 97<br />

As meditações sobre Maria “acentuaram-se no genocídio a que foram submetidos os<br />

canu<strong>de</strong>nses. O seu testemunho é suportar com amor o martírio, assim como fez Jesus”. 98 Assim<br />

como Maria venceu o sofrimento, a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> vai celebrar a vitória contra o inimigo. “A<br />

teologia marial <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> nas prédicas (naturalmente cem anos atrás) revela uma correta<br />

compreensão <strong>da</strong> teologia cristã. Maria é aquela que nos leva a Jesus”. 99 Essa é a principal<br />

intuição mariológica do Conselheiro: “Que gran<strong>de</strong> diferença entre o procedimento <strong>de</strong>sta e o <strong>da</strong><br />

primeira mãe? Em Eva sobressai a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> e a <strong>de</strong>sobediência a Deus; em Maria, o amor e a<br />

obediência a levam ao pé <strong>da</strong> cruz e on<strong>de</strong> está a vonta<strong>de</strong> do Senhor”. De fato, na teologia católica,<br />

Maria é apresenta<strong>da</strong> como a Nova Eva e a Mãe dos viventes. Em Canudos, Maria foi mãe dos<br />

mártires e mãe <strong>de</strong> todos os que proclamam com confiança: “vi<strong>da</strong> doçura, esperança nossa,<br />

salve!”.<br />

2.2.2- Os Dez Man<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> lei <strong>de</strong> Deus<br />

A segun<strong>da</strong> parte ocupa 213 páginas dos manuscritos 100 e revela o <strong>de</strong>staque que o Peregrino<br />

<strong>de</strong>u aos Dez Man<strong>da</strong>mentos. Comentou ca<strong>da</strong> man<strong>da</strong>mento; fun<strong>da</strong>mentou com fatos dos primeiros<br />

96 MAC, 153-154.<br />

97 CALAZANS, José e NÓBREGA, José Dionísio, Soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong>, sim; igual<strong>da</strong><strong>de</strong>, não: <strong>aspectos</strong> controvertidos do<br />

episódio <strong>de</strong> Canudos, in: INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS, BLOCH, Didier (org.), Canudos,<br />

100 anos <strong>de</strong> produção..., p. 45.<br />

98 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual <strong>de</strong> passagem para um final <strong>de</strong> mundo..., p. 63.<br />

99 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual <strong>de</strong> passagem para um final <strong>de</strong> mundo..., p. 64.<br />

100 Cf. MAC, p. 224-426.<br />

80


séculos; referiu-se a diversos autores <strong>da</strong> Patrística. “Antônio Conselheiro tinha um conhecimento<br />

fabuloso <strong>da</strong> patrística. Cita com facili<strong>da</strong><strong>de</strong> Padres <strong>da</strong> Igreja, santos, como também uma<br />

enormi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> figuras bíblicas, <strong>da</strong> tradição <strong>da</strong> Igreja e <strong>da</strong> Grécia Antiga”. 101 Entre os Padres <strong>da</strong><br />

Igreja citados aparecem: São João Crisóstomo, 102 São Basílio, 103 São Jerônimo, 104 São Gregório<br />

(papa?), 105 São Dionísio Areopagita. 106 Santo Agostinho. 107 Santos e santas como: Santa<br />

Ma<strong>da</strong>lena <strong>de</strong> Pazis, 108 São Boaventura, 109 Santo Tomás <strong>de</strong> Aquino, 110 São Pedro Damião, 111 Santa<br />

Luzia, 112 São Bernardo, 113 Santa Brígi<strong>da</strong>, 114 Santo Antônio. 115<br />

Outros personagens importantes referidos: O Papa Urbano IV, 116 Papa Eugênio IV 117 ,<br />

Henrique VIII, 118 Thomas Moro, Luís (Rei <strong>da</strong> França) 119 e Car<strong>de</strong>al Hugo. 120 Quase to<strong>da</strong>s essas<br />

referências foram feitas nas meditações sobre os Dez Man<strong>da</strong>mentos, <strong>de</strong>monstrando o <strong>de</strong>staque<br />

dos ensinamentos divinos para organizar a vi<strong>da</strong> comunitária. Antônio Conselheiro se mostra um<br />

conhecedor não só <strong>da</strong> história <strong>da</strong> Igreja, mas também <strong>da</strong> história universal. 121<br />

Nas Prédicas sobre os Dez Man<strong>da</strong>mentos, o autor se apropriava <strong>da</strong> resposta <strong>de</strong> Jesus ao<br />

doutor <strong>da</strong> lei: “Amarás o Senhor teu Deus <strong>de</strong> todo o teu coração e <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a tua alma e <strong>de</strong> todo o<br />

101 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual <strong>de</strong> passagem para um final <strong>de</strong> mundo...,p. 64.<br />

102 MAC, p. 227, 368, 397, 422, 483.<br />

103 MAC, p. 398.<br />

104 MAC, p. 356, 419.<br />

105 MAC, p. 348.<br />

106 MAC, p. 464.<br />

107 MAC, p. 335, 236, 258, 353, 383, 513.<br />

108 MAC, p. 322.<br />

109 MAC, p. 233, 247.<br />

110 MAC, p. 228, 246, 279, 320, 321,353, 369, 421.<br />

111 MAC, p. 231.<br />

112 MAC, p. 303.<br />

113 MAC, p. 313-314.<br />

114 MAC, p. 313.<br />

115 MAC, p. 537, 539.<br />

116 MAC, p. 514.<br />

117 MAC, p. 514.<br />

118 MAC, p. 514.<br />

119 MAC, p. 479.<br />

120 MAC, p. 226, 245.<br />

121 Cf. PEREGRINO, Artur, Canudos: Um ritual <strong>de</strong> passagem para um final <strong>de</strong> mundo..., p. 65.<br />

81


teu entendimento. Esse é o máximo e o primeiro man<strong>da</strong>mento (Mat., cap. 22, v. 38)” 122 e<br />

percebe a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> para pôr em prática este man<strong>da</strong>mento. “A maior parte dos homens não<br />

observa este preceito, cuja ver<strong>da</strong><strong>de</strong> não necessita <strong>de</strong> prova. [...] Mas ah! Que ingratidão <strong>da</strong>queles<br />

que assim proce<strong>de</strong>m! Até quando viverão na tibieza e indiferentismo?” 123 Como a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Canudos não tinha Constituição, Leis Orgânicas ou Código Civil, os Dez Man<strong>da</strong>mentos<br />

funcionavam como uma espécie <strong>de</strong> legislação <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma forma <strong>de</strong> estabelecer limites e<br />

respeito nas relações humanas. Daí a justificativa para o uso tão intenso dos man<strong>da</strong>mentos, nas<br />

pregações igualmente intensas do Conselheiro. Os membros <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> acreditavam na força<br />

<strong>da</strong> graça <strong>de</strong> Deus, veementemente anuncia<strong>da</strong> pelo Conselheiro. Na concepção do Beato, a<br />

salvação é Dom <strong>de</strong> Deus. É preciso crer na misericórdia infinita <strong>de</strong> Deus que envia seu próprio<br />

Filho como nosso Salvador. “Quem po<strong>de</strong>rá jamais compreen<strong>de</strong>r o excesso <strong>de</strong>sse amor, pelo qual<br />

para resgatar o escravo quisestes <strong>da</strong>r vosso Filho Unigênito? Deus nos <strong>de</strong>u seu próprio Filho e<br />

porque motivo? Unicamente por amor”. 124 Segundo A. Otten, [...] “as prédicas sobre os<br />

man<strong>da</strong>mentos são muito caracteriza<strong>da</strong>s pela necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> o homem nutrir o temor <strong>de</strong> Deus.<br />

Mesmo assim o amor <strong>de</strong> Deus e o amor a Deus permanecem presentes. Para o peregrino é este<br />

amor que salva o homem”. 125 O temor a Deus criava vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver o amor em comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. É<br />

o <strong>de</strong>sejo <strong>da</strong> salvação que forçava os moradores <strong>de</strong> Canudos a evitarem o mal e praticarem o bem.<br />

A vi<strong>da</strong> correta é <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> Deus. Através <strong>de</strong> sua graça, Deus auxilia o homem pecador. Só a graça<br />

po<strong>de</strong> domar e reprimir os instintos mais selvagens dos pecadores. Insistia na necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> o<br />

pecador recorrer a Deus, nos momentos <strong>de</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>: “Deus abandona os que escon<strong>de</strong>m os<br />

seus crimes e perdoa aos que os acusam. Movido <strong>de</strong> compaixão a favor dos pecadores, instituiu<br />

Jesus Cristo o sacramento <strong>da</strong> penitência, que os regenera no sangue do cor<strong>de</strong>iro e os reveste <strong>da</strong><br />

122 MAC, p. 224.<br />

123 MAC, p. 225.<br />

124 MAC, p. 228.<br />

125 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 219.<br />

82


inocência primitiva”. 126 83<br />

Deus reconhece nossa fraqueza e perdoa aqueles que, na auto-entrega <strong>da</strong><br />

fé, se curvam diante do Senhor compassivo do universo. O Peregrino admirava aqueles que se<br />

confessavam ao menos uma vez a ca<strong>da</strong> ano, conforme <strong>de</strong>terminava o man<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> Igreja. Para<br />

os que ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente se arrependiam, há a certeza do perdão divino. Essa prática consciente<br />

dos integrantes <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos reatava a amiza<strong>de</strong> com Deus e a convivência fraterna<br />

com os irmãos <strong>de</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. A vi<strong>da</strong> interna na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> organizava-se à luz <strong>da</strong> lei divina. O<br />

ato extremo <strong>de</strong> matar era duramente reprovado pelo Peregrino, ao comentar o quinto<br />

man<strong>da</strong>mento. Não<br />

se <strong>de</strong>ve proteger o assassino, que <strong>de</strong>ve expiar o seu crime na ca<strong>de</strong>ia para não sair <strong>de</strong>la,<br />

para servir <strong>de</strong> exemplo àqueles que o queiram imitar. Para que foi constituí<strong>da</strong> a lei se não<br />

para garantir o direito do homem? Aquele porém que não quer sofrer injúrias por Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo, cujo exemplo <strong>de</strong>ve imitar, então recorra à lei para punir aquele que<br />

lhe (sic) injuriou, porque só assim evitará <strong>de</strong> tirar a existência do próximo e arrancar<br />

tantas lágrimas <strong>de</strong> uma família. 127<br />

Mesmo tendo consciência do valor <strong>da</strong> misericórdia <strong>de</strong> Deus pelo pecador, o Peregrino<br />

reprovava o falso juramento, como também o furto <strong>de</strong> qualquer objeto do próximo. Ele <strong>de</strong>fendia<br />

a punição dura para os que insistiam no erro: “Se o primeiro passo <strong>da</strong>do pelo ladrão na carreira<br />

do crime fosse logo rigorosamente punido, a ponto <strong>de</strong> não sair <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia, não havia <strong>de</strong> ver tantas<br />

<strong>de</strong>sgraças”. 128 E foi mais exigente, ao citar o pensamento <strong>de</strong> Santo Agostinho, para quem não se<br />

perdoa o pecado sem restituir o furto. 129 O ladrão não merece proteção. Ao contrário, a<br />

impuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>quele que comete o furto anima aos outros no mesmo procedimento. 130<br />

126 MAC, p. 519 e 520.<br />

127 MAC, p. 325 e 326.<br />

128 MAC, p. 363 e 364.<br />

129 Cf. MAC, p. 364.<br />

130 Cf. MAC, p. 367.


2.2.3- Textos tirados <strong>da</strong> Sagra<strong>da</strong> Escritura<br />

Mesmo sem certa sistematização, essa parte dos manuscritos 131 se divi<strong>de</strong> em dois<br />

momentos: primeiro, <strong>de</strong>staca o amor <strong>de</strong> Jesus Cristo pelo ser humano e sua aplicação para a vi<strong>da</strong><br />

do povo <strong>de</strong> Canudos. 132 Começa com a anunciação do Anjo a Maria (cf. Lc 1,28). Para ele, Jesus<br />

veio ao mundo com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> única <strong>de</strong> “trazer às almas o fogo do divino amor, e que não tinha<br />

outro <strong>de</strong>sejo senão <strong>de</strong> ver esta santa chama acen<strong>de</strong>r em todos os corações dos homens”. 133 Inicia<br />

sempre fazendo uma citação do evangelho ou outro texto do Novo Testamento em latim, seguido<br />

<strong>de</strong> seu próprio comentário. Em muitos casos, há comentários <strong>de</strong>sconexos. Os <strong>de</strong>staques recaem<br />

nos textos sobre o sofrimento <strong>de</strong> Jesus e sua capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> superação, em função do amor aos<br />

homens e mulheres. 134 Em muitos casos, assume textos bíblicos em seus comentários, como se<br />

fossem seus. 135 E afirma: “Todo aquele, pois, que me confessar diante dos homens também eu o<br />

confessarei diante <strong>de</strong> meu Pai que está nos céus”. 136 Para o Conselheiro, amor aos inimigos fazia<br />

parte do testemunho dos que querem salvar-se. 137 Assim como os discípulos <strong>de</strong>ixaram tudo para<br />

seguir ao Cristo, os que querem pertencer ao Senhor <strong>de</strong>veriam entregar tudo o que possuem para<br />

serem seus discípulos. Os que tivessem essa coerência receberiam sua recompensa: a vi<strong>da</strong> eterna,<br />

o atendimento dos seus pedidos e o <strong>de</strong>scanso <strong>de</strong> suas almas. Aqueles que negassem o Cristo<br />

seriam negados; os que o confessassem seriam confessados. São esses que formariam a Igreja <strong>de</strong><br />

Cristo, sobre a qual as portas do inferno não prevalecerão, enquanto os outros seriam<br />

surpreendidos pelo fim do mundo.<br />

131<br />

Cf. MAC, p. 427-485.<br />

132<br />

Cf. MAC, p. 427-458.<br />

133<br />

MAC, p. 429.<br />

134<br />

Cf. MAC, p. 430-431.<br />

135<br />

Cf. Como exemplos, MAC, p. 345, 438, 441-442.<br />

136<br />

MAC, p. 441.<br />

137<br />

Cf. MAC, p. 444.<br />

84


Na Segun<strong>da</strong> parte dos manuscritos, Antônio Conselheiro revela um caráter discursivo e<br />

apologético <strong>de</strong> suas prédicas. 138 Diferentemente <strong>da</strong> primeira, foram poucas as citações bíblicas,<br />

ain<strong>da</strong> segui<strong>da</strong>s dos referidos comentários. Constituíam-se <strong>de</strong> pequenos comentários e tentativa <strong>de</strong><br />

aplicação na vi<strong>da</strong> concreta <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. O gênero literário continua sendo catequético e<br />

<strong>de</strong>monstra um amor muito gran<strong>de</strong> pela revelação <strong>de</strong> Deus, por intermédio <strong>de</strong> sua palavra.<br />

Ao retomar as palavras do Apóstolo Paulo (2Cor 2,4), Antônio Conselheiro mostrava que<br />

seu interesse não era <strong>de</strong>ste mundo e suas palavras não eram palavras meramente humanas: “Os<br />

meus sermões (diz o santo Apóstolo) não se fun<strong>da</strong>m em palavras vãs <strong>da</strong> humana sabedoria, mas<br />

sim em espírito e virtu<strong>de</strong>”. 139 Em tais palavras, con<strong>de</strong>nava a eloqüência humana e inculcava a<br />

eficácia necessária para repreen<strong>de</strong>r os vícios e mover o coração ao santo temor <strong>de</strong> Deus. 140<br />

2.2.4- Prédicas <strong>de</strong> circunstâncias e discursos<br />

Mesmo sendo discursos esparsos, é o texto mais bem elaborado <strong>da</strong>s prédicas. 141 Quase<br />

não tem citações diretas <strong>da</strong> Bíblia. Mesmo assim, são comentários nos quais Antônio Conselheiro<br />

se apropriou <strong>de</strong> pequenas perícopes ou versículos <strong>da</strong> Bíblia e transmitiu sua mensagem aos fiéis.<br />

Em compensação, aí foram citados, por diversas vezes, os Santos Padres. Havia uma opção na<br />

escolha <strong>de</strong> certos temas, em que o texto vem seguido <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira reflexão teológica. Foram sete<br />

temas trabalhados intensamente pelo Peregrino, durante suas prédicas, o que <strong>de</strong>monstra o<br />

interesse na escolha e na abor<strong>da</strong>gem ao longo <strong>de</strong> suas pregações: a cruz, 142 a missa, 143 a<br />

confissão, 144 sobre as maravilhas <strong>de</strong> Jesus, 145 construção e edificação do templo <strong>de</strong> Salomão, 146 o<br />

138 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio <strong>conselheiro</strong>..., p. 219-221.<br />

139 MAC, p. 459-460.<br />

140 Cf. MAC, p. 264-266.<br />

141 Cf. MAC, p. 486-559.<br />

142 Cf. MAC, p. 486-508.<br />

143 Cf. MAC, p. 509-516.<br />

144 Cf. MAC, p. 527-528.<br />

145 Cf. MAC, p. 529-530.<br />

146 Cf. MAC, p. 531-536.<br />

85


ecebimento <strong>da</strong> chave <strong>da</strong> Igreja <strong>de</strong> Santo Antônio, 147 sobre a Parábola do Semeador, 148 a<br />

República 149 e uma <strong>de</strong>spedi<strong>da</strong>. 150 Em ca<strong>da</strong> tema, ele <strong>de</strong>senvolveu pura teologia, articulando textos<br />

<strong>da</strong> Bíblia, citações dos Santos Padres e outras fontes do magistério eclesiástico. Eram ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras<br />

homilias, ou aulas <strong>de</strong> catequese, com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> animar a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> eclesial, sob sua<br />

direção, com <strong>de</strong>staque na ortodoxia magisterial.<br />

Analisando as Prédicas <strong>de</strong> Antônio Conselheiro po<strong>de</strong>mos observar o quanto ele é<br />

respeitoso e obediente às normas e doutrina <strong>da</strong> Igreja. Algumas vezes ele faz menção aos<br />

bispos e arcebispos <strong>de</strong> maneira positiva. Vemos o quanto ele era equilibrado<br />

emocionalmente. A severa perseguição do arcebispo <strong>da</strong> Bahia não lhe tiraria a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> discernir as “coisas <strong>de</strong> Deus” <strong>da</strong>s “coisas do mundo”. 151<br />

As prédicas, portanto, estão baliza<strong>da</strong>s pela Palavra <strong>de</strong> Deus e ensinamentos do magistério<br />

eclesial. Não eram reflexão à parte, <strong>de</strong> um grupo à revelia <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> eclesial. Trata-se <strong>de</strong><br />

uma experiência em busca <strong>da</strong> supressão <strong>da</strong>s <strong>de</strong>ficiências <strong>da</strong> Igreja. Para melhor compreensão <strong>da</strong>s<br />

prédicas <strong>de</strong> circunstâncias, retornar-se-ão os sete pontos abor<strong>da</strong>dos pele Peregrino.<br />

2.2.4.1- Sobre a Cruz<br />

A cruz recebeu <strong>de</strong>staque na quarta parte dos manuscritos com 23, <strong>da</strong>s 74 páginas. 152 O<br />

sofrimento <strong>de</strong> Jesus é mo<strong>de</strong>lo para os que queriam trilhar os caminhos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> eterna. Por isso,<br />

“Se alguém quer vir em meu seguimento, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mt<br />

26,24), retoma o Peregrino. Foi prático na aplicação do texto sagrado: “O homem <strong>de</strong>ve carregar<br />

sua cruz <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> qualquer forma que se apresente, <strong>de</strong>ve penetrar-se assim <strong>de</strong> júbilo, sabendo<br />

que em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong>la vai ao céu”. 153 A humilhação passa<strong>da</strong> por Jesus foi por amor à humani<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

A cruz purifica o cristão <strong>da</strong>s paixões <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>na<strong>da</strong>s. “A cruz reconciliou o céu com a terra, que<br />

147 Cf. MAC, p. 537-553.<br />

148 Cf. MAC, p. 554-559.<br />

149 Cf. MAC, p. 560-623.<br />

150 Cf. MAC, p. 624-628.<br />

151 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual <strong>de</strong> passagem para um final <strong>de</strong> mundo..., p. 69.<br />

152 Cf. MAC, p. 486-508.<br />

153 MAC, p. 486-487.<br />

86


estava em guerra. Da árvore <strong>da</strong> cruz brota o pomo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> que se per<strong>de</strong>u no paraíso terreal”. 154<br />

Segundo a mentali<strong>da</strong><strong>de</strong> teológica <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, o fato <strong>de</strong> um Deus morrer na cruz<br />

revela um mistério profundo, perante o qual a razão humana se inclina sem enten<strong>de</strong>r. 155 Quem<br />

<strong>de</strong>seja a salvação procura a cruz, não como maldição, mas como “doce cruz! Por mim <strong>de</strong>seja<strong>da</strong> e<br />

agora prepara<strong>da</strong> para esta alma que por ela tão ar<strong>de</strong>ntemente suspira!” 156 A cruz é mais que um<br />

símbolo. É o<br />

estan<strong>da</strong>rte <strong>da</strong> glória, símbolo <strong>da</strong> fé, chave do paraíso, divino arco-íris <strong>da</strong> paz entre Deus e<br />

os homens, terror do inferno, espa<strong>da</strong> contra o <strong>de</strong>mônio, alegria dos cristãos, esforço dos<br />

fracos, escudo dos fortes justificados na graça <strong>de</strong> Deus, cruz bendita, sempre estima<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

Deus, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio do mundo, no fim do qual haveis <strong>de</strong> aparecer como estan<strong>da</strong>rte real<br />

nas mãos do ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro Deus, castigando com a sua justiça os maus, e triunfando <strong>de</strong> glória<br />

para os bem-aventurados. 157<br />

No cristianismo, a cruz teve significado paradoxal, escan<strong>da</strong>loso e soteriológico. A morte<br />

<strong>de</strong> Jesus na cruz, presente nas tradições evangélicas, surpreen<strong>de</strong>u Antônio Conselheiro. Sua vi<strong>da</strong>,<br />

marca<strong>da</strong> pela cruz do sofrimento, <strong>da</strong> migração força<strong>da</strong>, do conflito <strong>de</strong> terra, do povo machucado,<br />

encontra inspiração no Cristo, Servo Sofredor. Trata-se <strong>da</strong> coerência com a tradição sertaneja do<br />

cristianismo moreno, <strong>da</strong> Via Peregrina, do Cristo <strong>da</strong> Sexta-feira Santa, <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ntificação com o<br />

sofrimento do Crucificado. Ao comentar a morte <strong>de</strong> Jesus na cruz, obediente até a morte, o<br />

Peregrino transcreveu o texto do Profeta Isaías 50,6: “Eu entreguei o meu corpo aos que me<br />

feriam, minha face aos que <strong>de</strong>spe<strong>da</strong>çavam, não <strong>de</strong>sviei a minha face dos que me diziam<br />

impropérios e cobriam <strong>de</strong> escárnios”. 158 Facilmente relacionava a cruz <strong>de</strong> Cristo com o<br />

sofrimento <strong>de</strong> seu povo. Perguntava: “Quem po<strong>de</strong>rá fugir às ignomínias vendo a Jesus tratado<br />

154 MAC, p. 503.<br />

155 Cf. MAC, p. 502. Um aprofun<strong>da</strong>mento bastante sério sobre o emblema <strong>da</strong> cruz foi feito por SOBRINO, Jon,<br />

Jesus Cristo Libertador: I- A história <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong> Nazaré, São Paulo: Vozes, 2994. Especialmente a terceira<br />

parte: A Cruz <strong>de</strong> Jesus, p. 285-390. Um outro trabalho pioneiro em teologizar os povos do Terceiro Mundo como<br />

povos crucificados, foi feito por: I. ELLACURÍA, El pueblo crucificado: ensaio <strong>de</strong> soteriología histórica, RLT, 18<br />

(1989, p. 303-333 ( publicado pela primeira vez in: vários, Cruz y resurrección, México, 1978, p. 49-82).<br />

156 MAC, p. 503.<br />

157 MAC, p. 506-507.<br />

158 MAC, p. 438.<br />

87


88<br />

como louco, como rei <strong>de</strong> teatro, como malfeitor escarnecido, coberto <strong>de</strong> escarros e preso a um<br />

patíbulo?”. 159 São gran<strong>de</strong>s os bens espirituais para os que meditam os mistérios <strong>de</strong> Deus na cruz<br />

<strong>de</strong> seu Filho. Para chegar a um amor perfeito <strong>de</strong> Deus, era preciso meditar sobre a cruz<br />

salvadora. 160 O povo sertanejo se i<strong>de</strong>ntifica com o sofrimento <strong>de</strong> Cristo. Alexandre Otten não tem<br />

dúvi<strong>da</strong>s: “A prédica (sobre a cruz) é uma <strong>da</strong>s revelações mais autênticas <strong>da</strong> espirituali<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

peregrino. Numa situação <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s tribulações e confrontos escatológicos, ele interpreta o<br />

mundo pela cruz, tendo nela orientação e segurança que transmite aos seus”. 161 Na cruz <strong>de</strong> Cristo,<br />

a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos encontrava sentido para superar a morte e a dor. Dela proviam a<br />

mística <strong>da</strong> resistência <strong>da</strong> Igreja dos pobres do Belo Monte. Para crescer no amor a Deus, não<br />

havia “exercício mais útil que meditar muitas vezes na sua Paixão (<strong>de</strong> Cristo)”. 162 Insistia, ain<strong>da</strong>,<br />

“ são tão gran<strong>de</strong>s os bens que resultam <strong>da</strong> veneração <strong>de</strong>vi<strong>da</strong> à Santa Cruz, que a missa, sendo tão<br />

excelente sacrifício que Deus fez, não se po<strong>de</strong> celebrar sem assistência <strong>da</strong> Cruz”. 163<br />

2.2.4.2- Sobre a missa<br />

Antônio Conselheiro atuou em Canudos na quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> autêntico catequista. Desenvolveu uma<br />

catequese sobre a missa. Quem <strong>de</strong>scobrir os bens advindos <strong>da</strong> missa, <strong>de</strong>ixa todos os afazeres para<br />

não faltar a este tão gran<strong>de</strong> bem espiritual. Ensinava aos fiéis que “a missa é a melhor cousa e<br />

mais sagra<strong>da</strong> que Deus <strong>de</strong>ixou à sua Igreja, por ser a representação <strong>da</strong> paixão e morte <strong>de</strong> Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo”. 164 Tinha uma compreensão clara <strong>da</strong> Eucaristia e a transmitia ao povo: “E<br />

quando se está à missa, é o tempo mais oportuno que há para a oração e para falar com Deus,<br />

pedir-lhe mercês em companhia <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> anjos, que Lhe assistem, aju<strong>da</strong>ndo-o: por ser a<br />

159 MAC, p. 488.<br />

160 MAC, p. 489.<br />

161 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 223.<br />

162 MAC, p. 489.<br />

163 MAC, p. 490.<br />

164 MAC, p. 509-510.


oração um dos maiores remédios que há para <strong>de</strong>struir os vícios e chegarmos a Deus”. 165 E<br />

continuava: “Se bem soubera um cristão o que lucra em assistir e ouvir a missa todos os dias,<br />

<strong>de</strong>ixaria os maiores negócios <strong>de</strong>ste mundo para não faltar a tão gran<strong>de</strong> bem espiritual”. 166 A<br />

missa “é a melhor obra, <strong>de</strong> mais proveito, e não há palavra, nem sinal, nem cerimônia nela que<br />

não tenha significações e mistérios”. 167 Além <strong>da</strong>s diversas indulgências garanti<strong>da</strong>s pelos romanos<br />

pontífices para os que participam <strong>da</strong> missa, “os papas Urbano IV, Martinho V e Eugênio IV,<br />

conce<strong>de</strong>ram duzentos anos <strong>de</strong> indulgência a quem <strong>de</strong>votamente ouve a missa, ou a diz, ou dá<br />

esmola para ela, como consta em suas bulas”. 168 Na missa “se acha para os aflitos alívio, para os<br />

tristes consolação, para os atribulados remédio, para os combatidos socorro, para os consolados<br />

esperança e to<strong>da</strong> mais paciência, fortaleza, graça, [...] indulgência para os vivos e também para as<br />

almas do purgatório”. 169 Sobre a interpretação do mistério eucarístico na óptica <strong>de</strong> Antônio<br />

Conselheiro, afirma Alexandre Otten: “ A missa, aos olhos do Beato, tem valor porque é um forte<br />

meio para a santificação: para o amor e serviço a Deus, para a conversão dos pecados, para o<br />

cumprimento <strong>da</strong>s obras meritórias; ela dá fortaleza em tempos difíceis”. 170 Suas idéias sobre a<br />

missa eram claras. Com facili<strong>da</strong><strong>de</strong>, ensinava isso ao povo, estimulando-o a participar<br />

fervorosamente <strong>da</strong> missa. Era um bem inestimável <strong>de</strong> revigoramento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>de</strong> salvação.<br />

2.2.4.3- Sobre a confissão<br />

Nesta prédica, Conselheiro conjugou os sacramentos <strong>da</strong> eucaristia e <strong>da</strong> penitência. 171 Na<br />

sua óptica, o católico confessava-se para ir à comunhão. O ser humano carrega <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si o<br />

165 MAC, p. 50-511.<br />

166 MAC, p. 509.<br />

167 MAC, p. 511-512.<br />

168 MAC, p. 514.<br />

169 MAC, p. 515-516.<br />

170 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 223.<br />

171 Cf. MAC, p. 517-528.<br />

89


germe do mal, sementes <strong>de</strong> morte: a soberba atrevi<strong>da</strong> e violenta, apetites insaciáveis, o ódio, a<br />

inveja e a avareza. São heranças do pecado original. Somente a graça <strong>de</strong> Deus po<strong>de</strong>ria mais ou<br />

menos, domar e reprimir. 172 “Deus abandona os que escon<strong>de</strong>m os crimes e perdoa aos que os<br />

acusam. Movido <strong>de</strong> compaixão a favor dos pecadores, instituiu Jesus Cristo o sacramento <strong>da</strong><br />

penitência, que os regenera no sangue do cor<strong>de</strong>iro e os reveste <strong>da</strong> inocência primitiva”. 173 O<br />

Conselheiro reprovava o procedimento <strong>da</strong>queles que <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> confessar-se ao menos uma vez a<br />

ca<strong>da</strong> ano. 174 A confissão combatia a tríplice concupiscência:<br />

Uma soberba ora atrevi<strong>da</strong> e violenta, ora disfarça<strong>da</strong> e astuciosa, uma curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>smedi<strong>da</strong>, apetites insaciáveis, o ódio acompanhado <strong>de</strong> injúria, do ultraje e <strong>da</strong> calúnia, a<br />

inveja, mãe do homicídio, avareza que diz continuamente: traze, traze; a dureza <strong>da</strong> alma,<br />

as alegrias culpáveis do espírito. 175<br />

Des<strong>de</strong> o pecado original, a humani<strong>da</strong><strong>de</strong> fora afeta<strong>da</strong> pela tríplice concupiscência cita<strong>da</strong><br />

pelo Conselheiro. Ele tinha consciência <strong>da</strong> fraqueza do ser humano, <strong>da</strong>s conseqüências do pecado<br />

original e sua incidência na natureza do homem. Somente pela graça e misericórdia <strong>de</strong> Deus, o<br />

homem po<strong>de</strong>ria recuperar o “estado original”. Foi para isso que Jesus instituiu o sacramento <strong>da</strong><br />

penitência e <strong>da</strong> reconciliação. Na concepção do Peregrino, a confissão era o único remédio para<br />

curar o pecado e combater a concupiscência. O sacramento do perdão serviria <strong>de</strong> alívio e alegria<br />

para os oprimidos, necessitados <strong>da</strong> misericórdia do Filho <strong>de</strong> Deus:<br />

Vós que an<strong>da</strong>is oprimidos com o peso <strong>de</strong> vossos pecados, <strong>da</strong>i-vos pressa, i<strong>de</strong>, com dor<br />

sincera e amorosa esperança, aliviar-vos aos pés <strong>da</strong>quele que faz as vezes do Filho <strong>de</strong><br />

Deus; i<strong>de</strong> e humilhai-vos, i<strong>de</strong> e chorai-vos; a mão divina enxugará vossas lágrimas, e<br />

restabelecidos em graça com Deus, em paz convosco cantareis com alegria o hino do<br />

perdão. Ditosos aquele cujas iniqüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s foram perdoa<strong>da</strong>s e cobertos seus pecados! Feliz<br />

aquele a quem o Senhor não imputou seu crime e cujo coração não é fraudulento. 176<br />

O Beato indicava ao penitente uma forma catequética prática para a confissão. Devia<br />

percorrer os man<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> lei <strong>de</strong> Deus, os pecados mortais, as obras <strong>de</strong> misericórdia, os<br />

172 MAC, p. 519.<br />

173 MAC, p. 519-520.<br />

174 MAC, p. 521.<br />

175 MAC, p. 518.<br />

176 MAC, p. 520-521.<br />

90


pecados <strong>de</strong> omissão, especialmente quando se tinha algum cargo ou po<strong>de</strong>r. Em segui<strong>da</strong>, <strong>de</strong>via<br />

<strong>de</strong>clarar os pecados ao confessor, sem omissão – por mais grave que fosse – crer na bon<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

misericordiosa <strong>de</strong> Deus, compenetrar-se na dor <strong>de</strong> tê-los cometido, assumir o firme propósito <strong>de</strong><br />

não voltar a cometê-los e, finalmente, cumprir a penitência imposta pelo confessor. 177 Sem a<br />

confissão não haveria salvação eterna. 178 Após a recepção do sacramento <strong>da</strong> penitência, agora<br />

com o coração purificado e a consciência tranqüila, o fiel se aproximava <strong>da</strong> mesa <strong>da</strong> eucaristia,<br />

on<strong>de</strong> se dá o maior encontro do cristão com Deus.<br />

2.2.4.4- Sobre as maravilhas <strong>de</strong> Jesus<br />

Neste pequeno trecho, <strong>de</strong> apenas duas páginas, 179 Antônio Conselheiro não escon<strong>de</strong>u sua<br />

satisfação, ao contemplar a entra<strong>da</strong> triunfante <strong>de</strong> Jesus em Jerusalém, subentendido o texto <strong>de</strong><br />

Lucas (cf. Lc 29, 29-40). A única novi<strong>da</strong><strong>de</strong> foi o caráter otimista pinçado <strong>da</strong> narrativa. Durante o<br />

acontecimento, os discípulos estavam “transportados <strong>de</strong> gosto”, cheios <strong>de</strong> “chusma a louvar a<br />

Deus pelas maravilhas” e diziam: Bendito o reino que vem em nome do Senhor, paz no céu e<br />

glória nas alturas. 180 Nem sequer o apelo dos fariseus para Jesus repreen<strong>de</strong>r os discípulos foi<br />

atendido: “Seguro-vos que se eles se calarem, clamarão as mesmas pedras”. 181 Constata-se um<br />

gran<strong>de</strong> amor do Peregrino no manuscrito dos textos bíblicos, não <strong>de</strong>ixando dúvi<strong>da</strong>s quanto ao seu<br />

caráter inspirado.<br />

177<br />

Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 225.<br />

178<br />

Cf. MAC, p. 525.<br />

179<br />

Cf. MAC, p. 529-530.<br />

180<br />

MAC, p. 529. Ele trocou a palavra rei do texto <strong>de</strong> Lc 29,38, por reino: “Bendito seja aquele que vem, o rei,...”;<br />

por “Bendito seja aquele que vem, o reino...”. Teria sido um mero engano na transcrição do texto evangélico, ou ele<br />

i<strong>de</strong>ntificava, <strong>de</strong> fato, Jesus com o Reino <strong>de</strong> Deus?<br />

181<br />

MAC, p. 530.<br />

91


2.2.4.5- Construção e edificação do templo <strong>de</strong> Salomão<br />

Com uma prédica <strong>de</strong> seis páginas, 182 ele <strong>de</strong>screveu em <strong>de</strong>talhes a construção do templo <strong>de</strong><br />

Salomão. Destacou a multidão <strong>de</strong> fiéis que trabalhou durante a edificação. Foram 70 000<br />

carregadores <strong>de</strong> material; 80 000 cortadores <strong>de</strong> pedra; 3 600 inspecionadores e 2 000 cortadores<br />

<strong>de</strong> cedro no Líbano. 183 A construção era majestosa. Foram 60 côvados <strong>de</strong> comprimento; 20 <strong>de</strong><br />

largura; 30 <strong>de</strong> altura; um espaçoso alpendre em volta. Além disso, gran<strong>de</strong>s odres para os<br />

sacerdotes e o povo. 184 Por <strong>de</strong>ntro, as pare<strong>de</strong>s eram forra<strong>da</strong>s <strong>de</strong> cedros, representando querubins,<br />

palmas <strong>de</strong> flores varia<strong>da</strong>s. Havia belíssimos altares para o culto: 10 mesas; 100 taças ou cálices<br />

<strong>de</strong> ouro puríssimo; o Santuário e o Santo dos Santos eram chapeados <strong>de</strong> lâminas <strong>de</strong> ouro. 185<br />

Descreveu a inauguração solene do templo: estavam presentes os Príncipes e anciãos,<br />

transla<strong>da</strong>ndo a Arca <strong>da</strong> Aliança. Os levitas tocavam atabales, saltérios e cítares; 220 sacerdotes<br />

embocavam suas trombetas e romperam to<strong>da</strong>s as vozes nesse festim o seguinte cântico: “Bendizei<br />

ao Senhor porque ele é bom e sua misericórdia é eterna”. 186 Ao entrar no templo com a Arca,<br />

Salomão adorou ao Senhor, fez uma oração e foi atendido por ele: “Ouvi a tua oração, santifiquei<br />

esta casa e meus olhos e meu coração aqui estarão sempre atentos para todos os que<br />

invocaram”. 187<br />

A façanha <strong>da</strong> construção do templo <strong>de</strong> Salomão tinha similar: o sonho <strong>da</strong> construção <strong>da</strong>s<br />

várias capelas, por on<strong>de</strong> o Peregrino an<strong>da</strong>va. A escolha do relato <strong>da</strong> construção do templo <strong>de</strong><br />

Salomão não foi aleatória. Antônio Conselheiro foi construtor <strong>de</strong> belas igrejas, como a <strong>de</strong> Monte<br />

Santo, Chorrochó, Iambupe, existentes até hoje. Traça logo a relação: “O Templo <strong>de</strong> Salomão é,<br />

182 Cf. MAC, p. 531-536.<br />

183 Cf. MAC, p. 531.<br />

184 Cf. MAC, p. 532.<br />

185 Cf. MAC, p. 532-533.<br />

186 MAC, p. 534.<br />

187 MAC, p. 536.<br />

92


como o antigo Tabernáculo, uma figura <strong>da</strong>s nossas Igrejas”. 188 Zeloso pelas igrejas, tinha bom<br />

gosto pelas construções: “uma autori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Itapicuru acusou o beato com seus superiores em<br />

Salvador pelo <strong>de</strong>sperdício <strong>de</strong> dinheiro que traz a construção <strong>de</strong> uma capela”. 189 Inclusive, o<br />

suposto motivo do <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento <strong>da</strong> guerra foi a busca <strong>da</strong> ma<strong>de</strong>ira para a construção <strong>da</strong> igreja<br />

nova <strong>de</strong> Canudos. Matéria abor<strong>da</strong><strong>da</strong> ain<strong>da</strong> neste capítulo.<br />

2.2.4.6- Sobre o recebimento <strong>da</strong> chave <strong>da</strong> Igreja <strong>de</strong> Santo Antônio, padroeiro do Belo<br />

Monte<br />

O relato <strong>de</strong> sua prédicas, em 17 páginas, 190 é uma comemoração <strong>da</strong> inauguração <strong>da</strong> igreja<br />

do Patrono <strong>de</strong> sua comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Primeiro, o novo templo, recebido pelo povo como dádiva do<br />

Bom Jesus, tocou o coração dos fiéis a prestarem esmolas e seus braços durante os mutirões. Aos<br />

colaboradores, ficava a certeza <strong>da</strong> recompensa generosa do Bom Jesus. O Peregrino sabia <strong>da</strong><br />

importância <strong>da</strong> nova igreja <strong>de</strong> Santo Antônio para agregar o povo, na casa <strong>de</strong> Deus. Consi<strong>de</strong>rava-<br />

se indigno encarregado <strong>da</strong> construção. O novo templo <strong>de</strong> Canudos foi objeto <strong>de</strong> júbilo para o<br />

Conselheiro. 191 Não restavam dúvi<strong>da</strong>s. Chegou o momento <strong>de</strong> reconhecer as contribuições dos<br />

doadores e comemorar em comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Convidou o povo para se alegrar e contemplar “com<br />

júbilo as maravilhas que o Onipotente Senhor está fazendo aqui, por tanta glória, louvor e honra<br />

ao nosso amável Jesus”. 192<br />

Teceu, ain<strong>da</strong>, duras críticas aos ju<strong>de</strong>us, protestantes, maçons e republicanos. 193 Eles <strong>de</strong>ram<br />

um triste testemunho <strong>de</strong> increduli<strong>da</strong><strong>de</strong>, assemelhando-se aos ju<strong>de</strong>us que só acreditam na Lei <strong>de</strong><br />

Moisés. Os ju<strong>de</strong>us, maçons, protestantes e republicanos espalham doutrinas falsas e errôneas:<br />

188 MAC, p. 536.<br />

189 MAC, p. OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 226.<br />

190 Cf. MAC, p. 537-553.<br />

191 Cf. MAC, p. 536.<br />

192 MAC, p. 538.<br />

193 Cf. MAC, p. 548.<br />

93<br />

93


além <strong>da</strong>s perseguições que fazem à religião do Bom Jesus, nunca eles vão triunfar porque Deus<br />

protege sua obra. 194 Eles eram ingratos. Não havia dúvi<strong>da</strong>s quanto à ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira Igreja. “Foi<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo, fiéis, que fundou a sua Igreja, cujo ensino vem do Senhor: nela não<br />

há erro, porque o seu fun<strong>da</strong>dor é a fonte <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a sabedoria, santi<strong>da</strong><strong>de</strong> e perfeição”. 195 Se Jesus é<br />

o fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> Igreja, quem tem coragem <strong>de</strong> não contribuir para a construção <strong>de</strong> um novo templo?<br />

in<strong>da</strong>gou o Peregrino, acrescentando: “Vejam, fiéis, se não é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> utili<strong>da</strong><strong>de</strong> e agradável aos<br />

olhos divinos do nosso Bom Jesus a construção dos templos. [...] certamente não <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong><br />

concorrer com suas esmolas e com seus braços para a construção <strong>de</strong> tão belas obras”. 196<br />

Sua crítica aos ju<strong>de</strong>us, maçons e protestantes advinha do processo <strong>de</strong> romanização, tão<br />

marcante na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> Igreja. A visão eclesiológica do Peregrino era a <strong>de</strong> uma única Igreja, fun<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

pelo próprio Cristo, <strong>de</strong>tentora <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>: não erra, pois seus ensinamentos proce<strong>de</strong>m do próprio<br />

Cristo, única porta pela qual passam as ovelhas. E comentou Jo 10,9: “Eu sou a porta e se algum<br />

por mim entrar será salvo. Acreditem pois, fiéis, na lei <strong>da</strong> graça que é a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira lei que <strong>de</strong>vem<br />

observar irrepreensivelmente para vossa salvação”. 197 Para ele, não restam dúvi<strong>da</strong>s, <strong>de</strong> que só<br />

existia uma única Igreja: a Católica, Apostólica, Romana.<br />

2.2.4.7- Sobre a parábola do semeador<br />

O autor <strong>da</strong>s prédicas contou, com suas palavras, a parábola do semeador (Lc 8,4-18) e o<br />

convite aos pobres para o jantar (Lc 4, 2-14), em forma <strong>de</strong> resenha. 198 Parecia i<strong>de</strong>ntificar-se com<br />

o semeador sertão afora. Teve consciência <strong>da</strong> priori<strong>da</strong><strong>de</strong> do convite aos pobres. Estes <strong>de</strong>veriam<br />

ser chamados para as refeições, respeitando a lógica do evangelho: “quando <strong>de</strong>res um festim,<br />

194 Cf. MAC, p. 548.<br />

195 MAC, p. 550.<br />

196 MAC, p. 552.<br />

197 MAC, p. 549.<br />

198 Cf. MAC, p. 554-559.<br />

94


convi<strong>da</strong> os pobres, aleijados, coxos e cegos, e serás feliz porque eles não têm com que retribuir:<br />

com efeito, isso será retribuído na ressurreição dos justos” (Lc 14,13). A palavra <strong>de</strong> Jesus era<br />

norma, Alexandre Otten acredita que o “trecho <strong>de</strong> Lc 24,12-14, alu<strong>de</strong>, no entanto, no gosto do<br />

<strong>conselheiro</strong>, que seguindo a palavra <strong>de</strong> Jesus, acolhe em sua companhia sobretudo os mais<br />

miseráveis, que, segundo o Evangelho, não têm como retribuir. Canudos torna-se refúgio dos<br />

pobres, coxos, aleijados e cegos”. 199 O Evangelho precisava ser semeado no meio <strong>da</strong> gente<br />

maltrata<strong>da</strong> pela República.<br />

2.2.4.8- Sobre a República, o casamento civil, a família imperial, a libertação dos<br />

escravos<br />

Com uma longa prédica <strong>de</strong> 34 páginas, 200 Antônio Conselheiro comentou três temas<br />

distintos: A Companhia <strong>de</strong> Jesus, o casamento civil, a família imperial e a libertação dos<br />

escravos. Com um discurso eminentemente político, o Peregrino externou sua posição contra o<br />

sistema republicano. Do ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, a República era um assunto assombroso.<br />

Ele não mediu as conseqüências e disparou contra o chefe <strong>da</strong> Nação: “O presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> República,<br />

porém, (é) movido pela increduli<strong>da</strong><strong>de</strong> que tem atraído sobre ele to<strong>da</strong> sorte <strong>de</strong> ilusões, enten<strong>de</strong> que<br />

po<strong>de</strong> governar o Brasil como se fosse um monarca legitimamente constituído por Deus; tanta<br />

injustiça os católicos contemplam amargamente”. 201 Em segui<strong>da</strong>, atacou o sistema republicano.<br />

Por ter uma base sobre um princípio falso, <strong>de</strong>le não se po<strong>de</strong>ria tirar conseqüências legítimas. 202 A<br />

República era um gran<strong>de</strong> mal para o Brasil. Seus governantes chegaram à increduli<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

proibir até a Companhia <strong>de</strong> Jesus, <strong>de</strong> oprimir a Igreja e os fiéis do Bom Jesus. 203 Os republicanos<br />

199 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 228.<br />

200 Cf. MAC, p. 560-623. Da página 569, há um salto para a página 600. Porém, não se constata <strong>de</strong>scontinui<strong>da</strong><strong>de</strong> no<br />

texto.<br />

201 MAC, p. 564.<br />

202 Cf. MAC, p. 567.<br />

203 Cf. MAC, p. 560-569.<br />

95


também querem acabar com o casamento religioso. Por essas atitu<strong>de</strong>s políticas, Antônio<br />

Conselheiro posicionou-se contra a instituição: “A República é o ludíbrio <strong>da</strong> tirania para os fiéis.<br />

Não se po<strong>de</strong> qualificar o procedimento <strong>da</strong>queles que têm concorrido para que a República<br />

produza tão horroroso efeito! Homens que olham por um prisma, quando <strong>de</strong>viam impugnar<br />

generosamente a República”. 204 As práticas exclu<strong>de</strong>ntes dos republicanos acirravam os ânimos <strong>de</strong><br />

Antônio Conselheiro diante <strong>da</strong> crise política e do conflito entre Igreja e Estado. Não <strong>de</strong>ixou seus<br />

li<strong>de</strong>rados à revelia <strong>da</strong> corrupção dos republicanos. Apelou para a morali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> família. Animou<br />

o povo diante <strong>da</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m: “Vamos com coragem combater os nossos inimigos com os olhos<br />

fixos em Jesus Cristo, que pelos merecimentos <strong>da</strong> sua paixão nos oferece a vitória e a coroa”. 205<br />

Conselheiro não conseguiu superar a visão teocrática do po<strong>de</strong>r. Em seu entendimento,<br />

somente a família imperial teria legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> para governar o Brasil. Um juiz <strong>de</strong>sse sistema tirava<br />

o direito <strong>de</strong> quem tem para <strong>da</strong>r a quem não tem: “Negar estas ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s seria o mesmo que dizer<br />

que a aurora não veio <strong>de</strong>scobrir um novo dia”. 206 Os que receberam legitimamente o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

Deus, somente a ele <strong>de</strong>vem obediência: pontífice, o pai <strong>de</strong> família e os ministros <strong>de</strong> Deus para o<br />

bem do povo. Quem, por direito divino, <strong>de</strong>veria governar legitimamente o Brasil é o Príncipe, D.<br />

Pedro . Ele atribuiu o ódio dos republicanos à família real, porque sua alteza, a senhora Dona<br />

Isabel, libertou os escravos <strong>da</strong>s senzalas. Por isso, os republicanos guar<strong>da</strong>vam ressentimento<br />

<strong>de</strong>sse ato <strong>de</strong> bon<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Interpretando a visão maniqueísta e a teocrática presentes nos manuscritos do Peregrino,<br />

José Luiz Fiorin conclui sobre sua cosmovisão:<br />

204 MAC, p. 562.<br />

205 MAC, p. 613.<br />

206 MAC, p. 569.<br />

A cosmovisão conselheirista insere-se num esquema axiológico maniqueísta: bem vs mal.<br />

Ao bem pertence os semas <strong>da</strong> cosmovisão exposta acima. Ao mal, seus contrários. O<br />

tempo histórico é, pois, uno, uma vez que a história se reduz à peleja entre o bem e o mal,<br />

96


ou seja, entre a Igreja católica, encarnação do bem, e os seus inimigos, que representam o<br />

mal. 207<br />

Essa visão teocrática inci<strong>de</strong>, <strong>de</strong>terminantemente, nos organismos sociais e produz ou<br />

confirma uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> forma <strong>de</strong> conceber a organização <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> humana. A idéia<br />

medieval atribui os semas englobante e englobado, respectivamente, às or<strong>de</strong>ns espiritual e<br />

temporal. “Os semas pertencentes a essa visão são, pais: / teocratismo/, cosmopolitismo/,<br />

naturali<strong>da</strong><strong>de</strong>/, estatici<strong>da</strong><strong>de</strong>/, masculini<strong>da</strong><strong>de</strong>/”. 208<br />

Antônio Conselheiro saiu em <strong>de</strong>fesa do casamento religioso. Pediu aos pais <strong>de</strong> família que<br />

não apoiassem as atitu<strong>de</strong>s do governo contra o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro casamento religioso, único <strong>de</strong>ixado por<br />

Deus. Diante <strong>de</strong> Deus, o casamento civil não tem qualquer valor. Sendo a união religiosa um<br />

contrato entre duas pessoas liga<strong>da</strong>s por amor, os casados na Igreja “são justificados com a graça<br />

que lhes <strong>de</strong>u Nosso Senhor Jesus Cristo e autoriza<strong>da</strong> com a cerimônia que lhes juntou a santa<br />

madre Igreja”. 209 O casamento entre homem e mulher, elevado pelo próprio Cristo à digni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

sacramento, seria puramente <strong>de</strong> responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Igreja e só seus ministros teriam po<strong>de</strong>r para<br />

celebrá-lo. 210 O po<strong>de</strong>r temporal não <strong>de</strong>via exercer qualquer tipo <strong>de</strong> interferência nos atos<br />

sagrados. O casamento cristão é <strong>da</strong> lei <strong>de</strong> Cristo, “figurando nele a sua união com a santa Igreja,<br />

como diz São Paulo. Assim, pois, é pru<strong>de</strong>nte e justo que os pais <strong>de</strong> família não obe<strong>de</strong>çam à lei do<br />

casamento civil, evitando a gravíssima ofensa em matéria religiosa que toca diretamente a<br />

consciência e a alma”. 211 Se o casamento civil foi inventado pelos republicanos que, por sua vez,<br />

eram contra a Igreja, logo, não <strong>de</strong>veria ser seguido pelos membros <strong>de</strong> sua comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Não<br />

<strong>de</strong>veria haver medo. Deus protegeria sua Igreja, porque era obra-prima <strong>de</strong> suas mãos. O<br />

207 FIORIN, José Luiz, A ilusão <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> discursiva: uma análise <strong>da</strong>s prédicas <strong>de</strong> Antônio Conselheiro.<br />

Dissertação <strong>de</strong> mestrado apresenta<strong>da</strong> na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1999, p. 154.<br />

208 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

209 MAC, p. 605.<br />

210 Cf. MAC, p. 607.<br />

211 MAC, p. 607-608.<br />

97


Peregrino apelou para o Evangelho: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e a<br />

Potência <strong>da</strong> morte não terá força contra ela” (Mt, 16,18). No cumprimento do direito divino<br />

estava garanti<strong>da</strong> a certeza <strong>da</strong> vitória. A Igreja e seus fiéis encontravam-se protegidos por vonta<strong>de</strong><br />

divina.<br />

No final <strong>de</strong>ssa prédica, Antônio Conselheiro dirigiu uma reflexão sobre a escravidão<br />

negra e sua abolição. 212 O ato <strong>da</strong> Princesa Isabel não foi mais do que cumprir a or<strong>de</strong>m vin<strong>da</strong> do<br />

céu. Era “chegado o tempo marcado por Deus para libertar esse povo <strong>de</strong>sse semelhante estado, o<br />

mais <strong>de</strong>gra<strong>da</strong>nte a que podia ver reduzido o ente humano”. 213 Muitos escravos morriam <strong>de</strong>baixo<br />

dos açoites, outros oprimidos do peso <strong>da</strong> fome e do trabalho. Alguns já não suportavam com<br />

paciência tanta cruel<strong>da</strong><strong>de</strong> e, revoltados, se matavam! 214 Os senhores <strong>de</strong> engenhos não sabiam que<br />

era <strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus libertar os escravos. Deus agiu em socorro <strong>de</strong> seu povo nas senzalas:<br />

“Chegou enfim o dia em que Deus tinha <strong>de</strong> pôr termo a tanta cruel<strong>da</strong><strong>de</strong>, movido <strong>de</strong> compaixão a<br />

favor <strong>de</strong> seu povo e or<strong>de</strong>na para que se liberte <strong>de</strong> tão penosa escravidão”. 215 Na concepção<br />

religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, o po<strong>de</strong>r que <strong>de</strong>srespeita o ser humano, o oprime e o escraviza<br />

não vem <strong>de</strong> Deus, mas <strong>de</strong> satanás. Até mesmo os clérigos aliados ao po<strong>de</strong>r republicano, não<br />

foram poupados pelo Beato <strong>de</strong> Canudos. Eles não passavam <strong>de</strong> falsos cristãos.<br />

2.2.4.9- Prédica <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedi<strong>da</strong><br />

O chamado discurso <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedi<strong>da</strong> 216 revela o otimismo <strong>de</strong> um homem satisfeito com a<br />

missão recebi<strong>da</strong>, agra<strong>de</strong>cido <strong>de</strong> ter cumprido a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Pelo <strong>de</strong>senrolar dos<br />

acontecimentos, tinha consciência <strong>da</strong> proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> morte. Já com i<strong>da</strong><strong>de</strong> avança<strong>da</strong>, saú<strong>de</strong><br />

212 Cf. MAC, p. 619.<br />

213 MAC, p. 619.<br />

214 Cf. MAC, p. 623.<br />

215 MAC, p. 623.<br />

216 Cf. MAC, p. 624-628.<br />

98


99<br />

bastante fragiliza<strong>da</strong>, ficou chocado com as invasões militares a Canudos e o massacre ao seu<br />

povo. No final <strong>da</strong> guerra, em outubro <strong>de</strong> 1897, <strong>de</strong>sejou que seus conselhos produzissem<br />

abun<strong>da</strong>ntes frutos. Encorajou seus seguidores: “po<strong>de</strong>is entretanto estar certos <strong>de</strong> que a paz <strong>de</strong><br />

Nosso Senhor Jesus Cristo, nossa luz e força, permanecerá em vosso espírito”. 217 Lembrou-se <strong>de</strong><br />

pedir perdão dos erros cometidos: “Antes <strong>de</strong> fazer-vos minha <strong>de</strong>spedi<strong>da</strong>, peço-vos perdão se nos<br />

conselhos vos tenho ofendido. [...] to<strong>da</strong>via não concebam que eu nutrisse o mínimo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

macular a vossa reputação”. 218 De forma poética e dramática, sente que é hora <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedir-se <strong>de</strong><br />

sua comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Cheio <strong>de</strong> vivos sentimentos, pronuncia as últimas palavras, <strong>de</strong>monstrando as<br />

gratas recor<strong>da</strong>ções, que jamais se apagarão <strong>de</strong> sua lembrança: “A<strong>de</strong>us povo, a<strong>de</strong>us árvore, a<strong>de</strong>us<br />

campos, aceitai a minha <strong>de</strong>spedi<strong>da</strong>, que bem <strong>de</strong>monstra as gratas recor<strong>da</strong>ções que levo <strong>de</strong> vós,<br />

que jamais se apagarão <strong>da</strong> lembrança <strong>de</strong>ste Peregrino”. 219 Finalmente, este Peregrino “aspira<br />

ansiosamente à vossa salvação e ao bem <strong>da</strong> Igreja. Praza aos céus que tão ar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sejo seja<br />

correspondido com aquela conversão sincera que tanto <strong>de</strong>ve cativar o vosso afeto”. 220 Foi o final<br />

emocionado do seu discurso, dias antes <strong>da</strong> morte!<br />

2.3- Tentativa <strong>de</strong> uma leitura sistemática do pensamento teológico do Conselheiro<br />

Como ficou evi<strong>de</strong>nte, Antônio Conselheiro produziu um discurso teológico possível <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>tectar uma linha <strong>de</strong> reflexão ou pensamento sistemático. Na quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> lí<strong>de</strong>r leigo, não foi<br />

um cristão qualquer. O Peregrino não teve formação teológica para tal tarefa. Po<strong>de</strong>-se garimpar<br />

nos seus escritos, elementos teológicos, enriquecedores, dos que se propõem compreen<strong>de</strong>r em<br />

profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> a contribuição que Antônio Conselheiro <strong>de</strong>ixou para a história do Brasil,<br />

especialmente para a Igreja Católica. “Não é <strong>de</strong> se esperar que o Conselheiro, como uma simples<br />

217 MAC, p. 624.<br />

218 MAC, p. 625-626.<br />

219 MAC, p. 267-268.<br />

220 MAC, p. 628.


pessoa religiosa leiga, <strong>de</strong>senvolva todo um sistema teológico coeso”. 221 Com olhar mais atento<br />

sobre seus manuscritos <strong>de</strong>tectam-se ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros filões teológicos. 222 Com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> animar,<br />

libertar e salvar o povo do Nor<strong>de</strong>ste, Antônio Conselheiro oferecia algo que o historiador não<br />

consegue mensurar na experiência do povo <strong>de</strong> Canudos: o aspecto religioso. Este <strong>de</strong>u sustentação<br />

à organização sociológica do acampamento. Prevaleceu o interesse <strong>de</strong> alimentar a resistência dos<br />

canu<strong>de</strong>nses, a convivência respeitosa entre os membros <strong>de</strong> sua comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> eclesial, inspira<strong>da</strong> nos<br />

ensinamentos <strong>da</strong> fé cristã. Os Dez Man<strong>da</strong>mentos foram assumidos <strong>de</strong> forma concreta, tornando-<br />

se a ética <strong>de</strong> sustentação <strong>da</strong> conduta dos integrantes do Arraial. Das prédicas sobre os<br />

man<strong>da</strong>mentos, emergem três tipos <strong>de</strong> pecados: mácula, transgressão <strong>da</strong> lei divina e sujeição à<br />

carne.<br />

O Conselheiro <strong>de</strong>monstra conhecer razoavelmente Santo Agostinho; acreditava na força<br />

<strong>da</strong> graça <strong>de</strong> Deus como superação do pecado. Por isso, para superar o pecado, faz-se necessário a<br />

ascese. Ele <strong>de</strong>ixa claro a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> não infringir, <strong>de</strong> modo algum, nem mesmo por causa <strong>de</strong><br />

extrema necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> material, as or<strong>de</strong>nações divinas. “A ética ensina<strong>da</strong> pelo Conselheiro tem um<br />

traço qualificacional bastante nítido, a juridici<strong>da</strong><strong>de</strong>. Há uma preocupação, corrente na época, com<br />

a lei. [...] O conjunto doutrinário torna-se, então, lei, cuja violação é puni<strong>da</strong> com a ira divina”. 223<br />

Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha, com sua cultura letra<strong>da</strong>, fez duras críticas ao conteúdo <strong>da</strong>s pregações<br />

do Beato do sertão nor<strong>de</strong>stino. Não escon<strong>de</strong> a arrogância do letrado, <strong>de</strong>tentor <strong>da</strong> ciência positiva,<br />

fora <strong>da</strong> qual não existe ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. E dispara contra o conteúdo <strong>da</strong>s prédicas:<br />

Uma oratória bárbara e arripiadora, feita <strong>de</strong> excertos truncados <strong>da</strong>s Horas marianas,<br />

<strong>de</strong>sconexas, abstrusas, agrava<strong>da</strong>s, às vezes, pela ousadia extrema <strong>da</strong>s citações latinas;<br />

transcorrendo em frases sacudi<strong>da</strong>s; misto inextricável e confuso <strong>de</strong> conselhos dogmáticos,<br />

preceitos vulgares <strong>da</strong> moral cristã e profecia esdrúxula... Era truanesco e era pavoroso.<br />

Imagine-se um bufão arrebatado numa visão do Apocalipse... Parco <strong>de</strong> gestos, falava largo<br />

221 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 232.<br />

222 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 232.<br />

223 FIORIN, José Luiz, A ilusão <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> discursiva: uma análise <strong>da</strong>s prédicas <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p.<br />

158.<br />

100<br />

100


tempo, olhos em terra, sem encarar a multidão abati<strong>da</strong> sob a algaravia, que <strong>de</strong>rivava<br />

<strong>de</strong>mora<strong>da</strong>mente, ao arrepio do bom senso, em melopéia fatigante. 224<br />

O ataque <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha ao Conselheiro não encontrou respaldo nas multidões que<br />

acompanhavam o Peregrino. O literato não entendia como as pessoas <strong>da</strong>vam ouvidos a tanta<br />

“futili<strong>da</strong><strong>de</strong>”, a um discurso atrasado, uma “moral ultrapassa<strong>da</strong>” e “sem base científica”. De sua<br />

boca saía apenas “uma ou outra frase incisiva. Enunciava-a e emu<strong>de</strong>cia: alevantava a cabeça,<br />

<strong>de</strong>scerrava <strong>de</strong> golpe as pálpebras; viam-se-lhe então os olhos extremamente negros e vivos, e o<br />

olhar – uma cintilação ofuscante... Ninguém ousava contemplá-lo”. 225 O mais intrigante: “A<br />

multidão sucumbi<strong>da</strong> abaixa, por sua vez, as vistas, fascina<strong>da</strong>, sob o estranho hipnotismo <strong>da</strong>quela<br />

insânia formidável”. 226 Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha percebeu a reação positiva do povo às prédicas <strong>de</strong><br />

Antônio Conselheiro e uma “vitoriosa concorrência aos capuchinhos vagabundos <strong>da</strong>s missões,<br />

esta<strong>de</strong>ava o sistema religioso incongruente e vago. Ora, quem os ouvia não se forra a<br />

aproximações históricas sugestivas”. 227<br />

Não era <strong>de</strong> esperar <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha uma reação <strong>de</strong> admiração ao Peregrino. Eram<br />

representantes <strong>de</strong> dois brasis. O Brasil do litoral e o do sertão. Um representava o “letrado”; o<br />

outro, o “ignorante”. Aquele, representava a “ciência”, o “homem civilizado” e o “Estado <strong>de</strong><br />

direito”; este, o “analfabeto”, o “homem atrasado”, “sem cultura” e a reação ao “Estado <strong>de</strong><br />

direito”. Não se podia exigir <strong>de</strong> um literato, um homem pautado pela ciência militar, formado nos<br />

ditames <strong>da</strong> filosofia positiva, compreen<strong>de</strong>r um catolicismo enraizado na vi<strong>da</strong> do povo, sem base<br />

científica, li<strong>de</strong>rado por um lí<strong>de</strong>r sem qualquer contato com o positivismo francês. Eucli<strong>de</strong>s não<br />

foi capaz <strong>de</strong> perceber a base contestadora <strong>de</strong>sse catolicismo, sem a qual a resistência não<br />

encontraria explicação.<br />

224 CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Os Sertões..., p. 223-224.<br />

225 CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Os Sertões..., p. 224.<br />

226 CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Os Sertões..., p, 224.<br />

227 CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Os Sertões..., p. 224.<br />

101


Eduardo Hoornaert nos faz enten<strong>de</strong>r o papel <strong>de</strong>sempenhado por esse catolicismo, na<br />

religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> cultiva<strong>da</strong> pelas principais li<strong>de</strong>ranças eclesiais e suas marcas na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s. “O povo tem uma cultura própria e po<strong>de</strong>mos mesmo afirmar que o catolicismo<br />

popular constitui a cultura mais original e mais rica que o Brasil já produziu”. 228 Rubens Alves<br />

preencheu a lacuna <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong> por Eucli<strong>de</strong>s, quando não percebeu o caráter contestador e próprio<br />

<strong>de</strong>ssa religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Esta funciona como “um protesto contra uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> estranha (cultural,<br />

econômica e política) que é imposta <strong>de</strong> cima para baixo [...] O arcaico se transfigura em utópico,<br />

a aparente presença do passado se transforma em anúncio do futuro, a memória torna-se<br />

profecia”. 229 A nosso ver, faltou essa percepção ao literato. Com isso, comprometeu sua visão<br />

religiosa correta do discurso do Conselheiro. Eucli<strong>de</strong>s enten<strong>de</strong>u como “excertos truncados <strong>da</strong>s<br />

Horas marianas” e ousa<strong>da</strong>s “citações latinas”. 230 O olhar do teólogo <strong>de</strong>tecta como uso <strong>de</strong> fontes<br />

<strong>da</strong> ciência teológica.<br />

Os fun<strong>da</strong>mentos teológicos <strong>de</strong> Antônio Conselheiro foram bem sedimentados pela<br />

experiência adquiri<strong>da</strong> no contato com os padres Ibiapina, Cícero e os diversos manuais <strong>de</strong><br />

religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> popular circulantes no seu meio. A teologia encontra<strong>da</strong> nos seus manuscritos não<br />

difere do pensamento teológico presente nos manuais <strong>de</strong> teologia <strong>de</strong> seu tempo. Antônio<br />

Conselheiro não incorreu em heresias. Ao contrário, suas homilias concorrem com os<br />

missionários capuchinhos e vigários <strong>da</strong> região. Salta aos olhos a ligação <strong>de</strong> seu pensamento com<br />

a Tradição <strong>da</strong> Igreja, o uso freqüente <strong>da</strong> Bíblia; recorreu diversas vezes aos Santos Padres. O fato<br />

<strong>de</strong> reconhecer essa ortodoxia nas prédicas do Conselheiro não o abdica <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> para criticar<br />

o sistema eclesiástico, distante do povo, a exigir compromisso <strong>da</strong> República e repulsa ao sistema<br />

coronelista, causadores dos males no sertão.<br />

228 HOORNAERT, Eduardo, A formação do catolicismo brasileiro..., p. 99.<br />

229 ALVES, Rubens, A volta do sagrado, in: O suspiro dos oprimidos, São Paulo: Paulinas. 1992, p. 139.<br />

230 Cf. CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Os sertões..., p. 223.<br />

102


A fé no Deus presente ao lado do povo <strong>da</strong> Bíblia, na escravidão, o amor misericordioso <strong>de</strong><br />

Jesus, alimentado pela oração diária, a participação nos sacramentos – especialmente do batismo,<br />

reconciliação e eucaristia – uniam a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> num único objetivo: viver a fé cristã na oração,<br />

na fraterni<strong>da</strong><strong>de</strong>, no trabalho, no cui<strong>da</strong>do aos pobres e in<strong>de</strong>fesos que chegavam a Canudos. A<br />

presença <strong>de</strong> Jesus na vivência dos sacramentos, a certeza <strong>de</strong> um Deus compassivo e<br />

misericordioso para com os pobres, presença do Cristo libertador e o exemplo <strong>de</strong> Maria e dos<br />

santos, forma uma espécie <strong>de</strong> “núcleo duro” do pensamento <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, são o “fio<br />

condutor” <strong>de</strong> sua reflexão teológica, conforme a análise dos principais pontos, a seguir.<br />

2.3.1- O Deus Criador, Misericordioso e Onipotente<br />

É o ponto mais significativo <strong>da</strong>s prédicas <strong>de</strong> Antônio Conselheiro. Ele trata do primeiro<br />

man<strong>da</strong>mento: “Amarás o Senhor teu Deus <strong>de</strong> todo o teu coração e <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a tua alma e <strong>de</strong> todo o<br />

teu entendimento. Este é o máximo e o primeiro man<strong>da</strong>mento (Mat., cap. 22, v. 38)”. 231 O Beato<br />

levanta uma pergunta sobre Deus, num tom <strong>de</strong> admiração, contemplando a bon<strong>da</strong><strong>de</strong> do Pai, ao<br />

enviar seu Filho para resgatar o homem do pecado: “Ah! Que maior amor podia Deus mostrar-<br />

nos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nar à morte seu Filho inocente para salvar miseráveis pecadores como<br />

nós?” 232 E contrapõe o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus ao po<strong>de</strong>r dos po<strong>de</strong>rosos <strong>da</strong> República e coronéis do sertão:<br />

“Só Deus é gran<strong>de</strong>”. Expressão que ficou consagra<strong>da</strong> no pensamento do Peregrino. Na<strong>da</strong> neste<br />

mundo está acima do Criador: “Deus é rico e Todo-Po<strong>de</strong>roso, Senhor do céu e <strong>da</strong> terra, do mar e<br />

<strong>de</strong> todos os bens e haveres <strong>de</strong>ste mundo”. 233 Somente diante <strong>de</strong> Deus, Eterno Pai, o homem <strong>de</strong>ve<br />

dobrar seus joelhos. Po<strong>de</strong>r supremo, só Deus. O Peregrino revelava isso, através <strong>da</strong> oração: “ó<br />

Criador Supremo, o plano <strong>da</strong> vossa providência: Maria é nossa co-re<strong>de</strong>ntora; isto basta para<br />

231 MAC, p. 224<br />

232 MAC, p. 241.<br />

233 MAC, p. 477.<br />

103


convencer-nos <strong>de</strong> que ela tem <strong>de</strong> ser a mais atribula<strong>da</strong> <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as mães, porque Jesus, seu Filho,<br />

vai ser o mais humilhado <strong>de</strong> todos os homens”. 234<br />

Antônio Conselheiro <strong>de</strong>senvolveu uma reflexão segura e teologicamente correta ao tratar<br />

<strong>da</strong>s três pessoas trinitárias e suas relações entre si. Ain<strong>da</strong>, comentando o primeiro man<strong>da</strong>mento, o<br />

Peregrino se alegra. Reconhece a proteção <strong>de</strong> Deus diante <strong>de</strong> Isaac, prestes a ser sacrificado por<br />

vonta<strong>de</strong> divina. Deus acudiu, man<strong>da</strong>ndo-lhe o anjo suspen<strong>de</strong>r o golpe, provando seu amor para<br />

com Abraão, seu Pai. 235 Impressiona a forma <strong>de</strong> dirigir-se a Deus, parafraseando São João<br />

Crisóstomo:<br />

Oh! Maravilhosa con<strong>de</strong>scendência <strong>de</strong> vossa ternura! Oh! rasgo incomparável <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong>!<br />

Para resgatar o escravo entregastes o Filho! Deus infinito! Como pu<strong>de</strong>stes usar <strong>de</strong> ternura<br />

tão amável. Quem jamais po<strong>de</strong>rá compreen<strong>de</strong>r o excesso <strong>de</strong>sse amor, pelo qual para<br />

resgatar o escravo quisestes <strong>da</strong>r vosso Filho Unigênito? 236<br />

A linguagem utiliza<strong>da</strong> pelo Peregrino sobre Deus-Pai-Criador revela a visão <strong>de</strong> um Deus<br />

amoroso. Valorizou o aspecto do amor divino, a ternura <strong>de</strong> Deus, a graça recebi<strong>da</strong> sem<br />

merecimento humano, instala<strong>da</strong> com a morte vicária <strong>de</strong> Cristo. Recebeu influência <strong>da</strong> teologia do<br />

pecado original <strong>de</strong> Santo Agostinho. Deus tem, ain<strong>da</strong>, características bem <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>s: “Há uma<br />

tendência <strong>de</strong> enfocar no Onipotente Todo-Po<strong>de</strong>roso o Eterno Pai, no Deus infinito o Deus <strong>de</strong><br />

amável ternura, no Ser supremo sem sofrimento o Deus <strong>da</strong> compaixão, no Deus Criador soberano<br />

o Deus que quer habitar em meio do seu povo”. 237 Apresentou um argumento tomista sobre o<br />

Deus Uno e Trino, ao referir-se a Santo Tomás <strong>de</strong> Aquino:<br />

“Ora o Dom que o Eterno Pai nos fez <strong>de</strong> seu Filho foi ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro dom gratuito e sem<br />

merecimento algum <strong>de</strong> nossa parte; é por isso que se diz que a Encarnação do verbo teve<br />

lugar pela operação do Espírito Santo, isto é, unicamente pelo amor, como se exprime o<br />

mesmo doutor”. 238<br />

234 MAC, p. 144-145.<br />

235 MAC, p. 225.<br />

236 MAC, p. 287-228.<br />

237 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 236.<br />

238 MAC, p. 229-230.<br />

104


O Deus Uno e Trino <strong>de</strong>monstra seu amor, enviando-nos seu único Filho. Nota-se, <strong>de</strong> certa<br />

maneira, a insistência no aspecto <strong>da</strong> ternura do Pai e uma visão <strong>de</strong> Deus distinta <strong>da</strong>quela prega<strong>da</strong><br />

pelos missionários: um Deus vingativo e castigador dos pecadores. Visão que ficará mais níti<strong>da</strong><br />

quando ele fala sobre o sacramento do perdão. Quem é ingrato a Deus vive cego. Quem conhece<br />

Deus abandona o pecado e mu<strong>da</strong> <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>”. 239 Após exame do pensamento do Car<strong>de</strong>al Hugo,<br />

afirma que Deus enviou Jesus para <strong>da</strong>r o último golpe e ferir <strong>de</strong> amor os corações humanos. “Na<br />

antiga lei podia o homem duvi<strong>da</strong>r se Deus o amava com ternura, mas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o ter visto<br />

<strong>de</strong>rramar o seu sangue num suplício e morrer, como po<strong>de</strong>mos duvi<strong>da</strong>r se nos ama com to<strong>da</strong><br />

ternura do seu coração? 240 Mesmo pregando sobre o amor misericordioso <strong>de</strong> Deus, não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong><br />

chamar a atenção para os que não seguiam seus man<strong>da</strong>mentos e insistiam no <strong>de</strong>sprezo a Deus e<br />

na ofensa aos irmãos. Todos os homens <strong>de</strong>vem temor a Deus e precisam acertar contas em<br />

qualquer cargo ou po<strong>de</strong>r em que se vêem constituídos. 241 Quem não respeita a vi<strong>da</strong> humana está<br />

sujeito às penas divinas: “Ação digna <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> castigo e repressão, tanto pela ofensa a Deus,<br />

como do próximo”. 242 O Peregrino não tolerava a injustiça aos filhos <strong>de</strong> Deus. Sempre insistia na<br />

prática <strong>da</strong> Palavra <strong>de</strong> Deus.<br />

Alexandre Otten é categórico no que diz respeito à linha <strong>de</strong> pensamento <strong>de</strong> Antônio<br />

Conselheiro: “Este centro do pensamento teológico do Conselheiro – o Pai amoroso que entrega<br />

o próprio Filho para salvar os homens – é pelo beato representado e atualizado para seus<br />

seguidores”. 243 No tempo certo, Deus libertou os escravos <strong>da</strong> dura servidão. 244 O fim <strong>de</strong>sta<br />

humilhação tornou-se possível por amor <strong>de</strong> Deus ao seu povo sofrido.<br />

239 MAC, p. 243-244.<br />

240 MAC, p. 226.<br />

241 MAC, p. 263.<br />

242 MAC, p. 265.<br />

243 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 235.<br />

244 Cf. MAC, p. 616 e 623.<br />

105


2.3.2- Concepção sobre Jesus Cristo<br />

Antônio Conselheiro não <strong>de</strong>ixava dúvi<strong>da</strong>s: Jesus Cristo, o Filho <strong>de</strong> Deus encarnado, é o<br />

Bom Jesus, o Divino Re<strong>de</strong>ntor. 245 Oferecendo-se por nossos pecados, o Bom Jesus se fez amável<br />

Re<strong>de</strong>ntor, segun<strong>da</strong> pessoa <strong>da</strong> Santíssima Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>. 246 Dirigindo-se ao Bom Jesus, externava sua<br />

total confiança: “Oh! Bom Jesus, que fazendo tantos prodígios <strong>de</strong> amor, não po<strong>de</strong> ain<strong>da</strong> ganhar os<br />

nossos corações? [...] Oh! Se todos os homens pensassem no amor que Jesus Cristo nos<br />

testemunhou morrendo na cruz por nós [...]”. 247<br />

Jesus, por ser o Rei dos mártires, cujo po<strong>de</strong>r está acima <strong>de</strong> qualquer outro, tornou-se<br />

homem sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser Deus, foi uma vítima <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> ao sacrifício, para o bem do gênero<br />

humano. Jesus Cristo nos alcançou mais bem por sua morte do que o <strong>de</strong>mônio nos fez mal pelo<br />

pecado <strong>de</strong> Adão. 248 Jesus veio tomar a natureza humana, concebi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Maria, nasci<strong>da</strong> em Belém,<br />

“<strong>de</strong>spachando do Poço <strong>da</strong> Santíssima Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>, trazendo o po<strong>de</strong>r, o saber e o amor. Foi assistido<br />

dos anjos, adorado dos reis e visitado dos homens”. 249 Como Filho do Eterno Pai, nasceu pobre,<br />

“viveu in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, morreu <strong>de</strong>spido e partiu para sua pátria com muitas enchentes <strong>de</strong> graças;<br />

pelos merecimentos que fez na terra em todo o tempo do seu bom governo, levando o título <strong>de</strong><br />

rei”. 250 Morreu na cruz para nos salvar; no fim do mundo ele voltará vitorioso.<br />

Po<strong>de</strong>mos encontrar diversos títulos cristológicos sobre o Deus encarnado: Filho <strong>de</strong><br />

Deus, 251 Nosso Senhor Jesus Cristo, 252 O Bom Jesus, 253 Adorável Jesus, 254 Amado Filho. 255<br />

245 Cf. MAC, p. 224 e 239.<br />

246 MAC, p. 229-230.<br />

247 MAC, p. 233.<br />

248 Cf. MAC, p. 244.<br />

249 MAC, p. 268.<br />

250 MAC, p. 269.<br />

251 Cf. MAC, p. 10.<br />

252 Cf. MAC, p. 268.<br />

253 Cf. MAC, p. 239.<br />

254 Cf. MAC, p. 133.<br />

255 Cf. MAC, p. 134.<br />

106


Enfim, “O mais gentio dos filhos dos homens entre os brutos e na mais completa pobreza”. 256<br />

Po<strong>de</strong>r-se-ia <strong>de</strong>senvolver uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira cristologia, a partir <strong>de</strong>sses títulos.<br />

2.3.3- A idéia sobre o Espírito Santo<br />

Antônio Conselheiro pouco ocupou-se <strong>da</strong> pessoa do Espírito Santo. Refere-se à terceira<br />

pessoa <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>, por ocasião <strong>da</strong> visita do anjo à Maria, na encarnação do Verbo <strong>de</strong> Deus<br />

dizendo: “O Espírito Santo <strong>de</strong>scerá sobre ti e a virtu<strong>de</strong> do Altíssimo te cobrirá com sua sombra<br />

[...]. 257 Lembra Santo Tomás <strong>de</strong> Aquino: “é por isso que se diz que a encarnação do verbo teve<br />

lugar pela operação do Espírito Santo, isto é, unicamente pelo amor, como se exprime o mesmo<br />

doutor”. 258 Não se po<strong>de</strong>ria esperar uma longa reflexão do Conselheiro sobre a pessoa do Espírito<br />

Santo. É a partir do <strong>de</strong>senvolvimento do pentecostalismo evangélico e católico, pouco antes do<br />

Concílio Vaticano II, nos Estados Unidos, que a terceira pessoa <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong><strong>de</strong> passou a ocupar<br />

lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na pneumatologia oci<strong>de</strong>ntal. Foi uma lacuna no pensamento <strong>de</strong> Antônio<br />

Conselheiro.<br />

2.3.4- A idéia sobre a Igreja Católica<br />

Ao predicar sobre a Igreja, o Conselheiro apresentou sua <strong>de</strong>finição sobre ela,<br />

aconselhando seus membros ao <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> permanecerem unidos ao Deus Criador: “a Igreja é a<br />

congregação dos fiéis que, por <strong>de</strong>ver in<strong>de</strong>clinável, <strong>de</strong>vem curvar-se reverentemente diante <strong>de</strong><br />

Deus, ren<strong>de</strong>ndo-lhe as <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>s adorações, invocando seu nome com amorosa confiança, tendo<br />

por certo que Deus lhe será propício”. 259 É <strong>de</strong> origem divina, nasceu <strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> do Salvador. Não<br />

tem medo <strong>de</strong> dirigir-se aos fiéis para comunicar esta ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> fé: “Foi Nosso Senhor Jesus<br />

256 MAC, p. 10.<br />

257 MAC, p. 428.<br />

258 MAC, p. 229-230.<br />

259 MAC, p, 550 -551.<br />

107


Cristo, fiéis, que fundou a sua Igreja”. 260 Ele fundou uma única Igreja. Se ela é uma obra-prima<br />

<strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> do Bom Jesus, “conseqüentemente só ela é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira, cujo ensino vem do mesmo<br />

Senhor: nela não há erro, porque seu fun<strong>da</strong>dor é a fonte <strong>de</strong> to<strong>da</strong> sabedoria, santi<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

perfeição”. 261 A salvação <strong>de</strong> Cristo realiza-se através <strong>da</strong> Igreja Católica, Apostólica Romana. A<br />

única Igreja ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira é constituí<strong>da</strong> “pelos santos e convertidos, por aqueles que puseram o amor<br />

<strong>de</strong> Deus e a busca <strong>da</strong> salvação em primeiro lugar, que seguem a Lei divina e os preceitos <strong>da</strong> Santa<br />

Igreja e <strong>da</strong> Santa Religião com pertinência e assidui<strong>da</strong><strong>de</strong>”. 262 Conselheiro não acha normal, nem<br />

<strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> do Bom Jesus, o aparecimento <strong>de</strong> Igrejas protestantes e outras atitu<strong>de</strong>s que<br />

contestavam a soberania <strong>de</strong> Deus e o trabalho <strong>da</strong> Igreja Católica. Pelo menos com os protestantes<br />

não estava disposto ao diálogo. Colocava os ju<strong>de</strong>us, maçons e republicanos na vala comum dos<br />

que atrapalhavam a missão <strong>da</strong> Igreja:<br />

Quem teria nunca imaginado que no século <strong>de</strong>zenove, cujo povo foi educado nos santos<br />

salutares princípios <strong>da</strong> religião cristã, que muitos <strong>de</strong>les <strong>de</strong>ixassem <strong>de</strong> se nutrir do<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro sentimento do amor <strong>de</strong> Deus; além <strong>de</strong> terem tão triste testemunho, ocorre que<br />

se movem pela increduli<strong>da</strong><strong>de</strong>, imitando assim os ju<strong>de</strong>us, idéia horrorosa, pensamento<br />

ingrato; que eles não ligam a menor importância pela sua salvação, como são os maçons,<br />

protestantes e republicanos, porque eles também só acreditam na Lei <strong>de</strong> Moisés,<br />

espalhando doutrinas falsas e erronias aos ignorantes, arrastando assim tantas almas para o<br />

inferno, além <strong>da</strong>s perseguições que eles fazem à religião do Bom Jesus, nunca eles hão <strong>de</strong><br />

triunfar, porque Deus protege a sua obra. 263<br />

Conselheiro não estava fora do seu tempo. Seu pensamento sobre o protestantismo, os<br />

ju<strong>de</strong>us, a maçonaria e a República se coadunava com a Igreja Católica, do final do século XIX.<br />

Dos próprios ensinamentos <strong>da</strong> Igreja oficial nasceram, no coração do Peregrino, o amor à Igreja e<br />

a reação a seus opositores.<br />

A ojeriza ao protestantismo e ju<strong>da</strong>ísmo talvez <strong>de</strong>corresse mais dos livros <strong>de</strong> pie<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

escritos na Europa (especialmente em Portugal e Roma), do que <strong>de</strong> um confronto com igrejas<br />

260 MAC, p. 550.<br />

261 MAC, p. 550.<br />

262 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 242.<br />

263 MAC, p. 547-548.<br />

108


diferentes, no contexto sertanejo. O protestantismo só começa ter influência no Brasil, a partir do<br />

início do século XX, com a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong>s primeiras convenções ao País, com os imigrantes<br />

europeus. Francisco Rolim <strong>da</strong>ta <strong>de</strong> 1910 e 191 a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong>s igrejas Assembléia <strong>de</strong> Deus e<br />

Congregação Cristã no Brasil, respectivamente. 264 Nesse período, o Nor<strong>de</strong>ste não recebia<br />

qualquer influência religiosa, além <strong>da</strong> Igreja Católica, tão queri<strong>da</strong> pelo Peregrino e <strong>da</strong>s religiões<br />

indígenas e afro. Na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos, havia uma gran<strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> índios e negros.<br />

Aliás, diga-se <strong>de</strong> passagem, não há registro <strong>de</strong> conflitos entre o Conselheiro e as religiões dos<br />

índios e negros; se existiram, não foram significativos, a ponto <strong>de</strong> atrapalhar a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Tudo<br />

leva a crer que havia uma tolerância às diferentes experiências religiosas, trazi<strong>da</strong>s pelos membros<br />

que chegavam à comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Prevalecia, é claro, o catolicismo.<br />

2.3.5- A idéia sobre o papa, os car<strong>de</strong>ais e os bispos<br />

Nos textos extraídos <strong>da</strong> Sagra<strong>da</strong> Escritura, mesmo sem muitos comentários, Antônio<br />

Conselheiro não se esqueceu <strong>de</strong> citar Mt 16,18. Como <strong>de</strong> costume, primeiro transcreve a citação<br />

em latim (prática que irritou Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha), segui<strong>da</strong> <strong>da</strong> tradução: “Tu és Pedro e sobre esta<br />

pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”. 265 Reconhecia<br />

a li<strong>de</strong>rança do Papa, afirmando: “Na vara do sumo pontífice se vêem expressamente estas três<br />

cruzes, símbolo do supremo po<strong>de</strong>r <strong>da</strong>quele supremo ministro <strong>de</strong> Deus”. Não cita o outro texto <strong>de</strong><br />

Mt. 18,15-18, (sobre a correção fraterna), interpretado teologicamente à luz <strong>de</strong> Mt 16,18, que<br />

amplia o peso <strong>da</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong> individual <strong>de</strong> Pedro, à luz <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. 266 Ele não se colocava<br />

contra a Igreja ou suas autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Só fazia críticas quando os prelados abandonavam os pobres<br />

e optavam pelos ricos e po<strong>de</strong>rosos, muitos <strong>de</strong>les contra a Igreja do Bom Jesus e seus pobres. O<br />

Conselheiro superou a média <strong>de</strong> conscientização entre os excluídos do sistema político e<br />

264 Cf. ROLIM, Francisco Cartaxo, Pentecostalismo: Brasil e América Latina, Petrópolis: Vozes, 1994, p. 15.<br />

265 MAC, p. 435.<br />

266 MAC, p. 500-501.<br />

109


110<br />

religioso. Conseguiu perceber as <strong>de</strong>ficiências <strong>da</strong> Igreja e <strong>da</strong> República. Papas, car<strong>de</strong>ais, 4<br />

arcebispos e bispos <strong>de</strong>vem estar a serviço <strong>de</strong> Deus e, através <strong>da</strong>s bênçãos, dirigir o povo para o<br />

bem:<br />

Estas bênçãos se vêem lançar os papas, car<strong>de</strong>ais, bispos e to<strong>da</strong>s mais pessoas constituí<strong>da</strong>s<br />

em digni<strong>da</strong><strong>de</strong> eclesiástica, no fim <strong>da</strong> missa e mais cerimônias <strong>da</strong> Igreja, quando abençoam<br />

os cristãos, invocando as três pessoas <strong>da</strong> Santíssima Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>, que as formou e dirigiu<br />

para nosso bem. 267<br />

Antônio Conselheiro, como leigo, não celebrava os sacramentos <strong>da</strong> Igreja. Ao falar <strong>da</strong><br />

investidura dos papas, dos car<strong>de</strong>ais, dos arcebispos, dos bispos e <strong>de</strong> outras pessoas “constituí<strong>da</strong>s<br />

em digni<strong>da</strong><strong>de</strong> eclesiástica”, o Peregrino <strong>de</strong>ixa enten<strong>de</strong>r a prática do uso <strong>da</strong> aspersão dos fiéis com<br />

água benta, por cristãos leigos. Não havia recomen<strong>da</strong>ções em contrário por parte <strong>da</strong> Igreja,<br />

mesmo sabendo do forte uso, pelos missionários or<strong>de</strong>nados, <strong>de</strong> bênçãos com aspersão, durante as<br />

missões populares. O Beato afirmava venerar os Santos Padres, porque eram colunas <strong>da</strong> Igreja<br />

Católica Apostólica Romana. 268 Essa veneração aos Santos Padres levou Antônio Conselheiro a<br />

assumir, ao lado <strong>da</strong> Bíblia e dos documentos eclesiais, uma <strong>da</strong>s fontes essenciais <strong>da</strong> ciência<br />

teológica. Por isso, justifica o conteúdo teológico <strong>de</strong> suas prédicas como corretos no ponto <strong>de</strong><br />

vista <strong>da</strong> tradição teológica. Facilmente, li<strong>da</strong>va com autores <strong>da</strong>s principais fontes eclesiais: Bíblia,<br />

Santos Padres, papas e diversos santos e santas (doutores <strong>da</strong> Igreja).<br />

A partir <strong>de</strong>sses temas teológicos concretos, os atores políticos e religiosos <strong>da</strong> República<br />

perceberam a gran<strong>de</strong>za prática do projeto <strong>de</strong> Antônio Conselheiro. A comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos<br />

cresceu rapi<strong>da</strong>mente e, por isso, a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> impedir a proliferação <strong>da</strong> experiência foi uma<br />

atitu<strong>de</strong> <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> não <strong>de</strong>ixar essa forma <strong>de</strong> organização social prosperar. A partir <strong>da</strong>í,<br />

vêm as <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> reprimir <strong>de</strong> qualquer jeito, a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> solidária <strong>de</strong> Antônio Conselheiro.<br />

267 MAC, p. 500.<br />

268 Cf. MAC, p. 474-475.


2.4- O enfrentamento <strong>de</strong> Masseté<br />

Antes <strong>de</strong> chegar a Canudos, em 1893, durante a passagem por Bom Conselho, 269 no<br />

distrito <strong>de</strong> Soure, Antônio Conselheiro reagiu às altas taxas <strong>de</strong> impostos. Os editais eram<br />

afixados, por <strong>de</strong>terminação <strong>da</strong> Câmara <strong>de</strong> Vereadores. Em dia <strong>de</strong> feira livre, o Conselheiro reuniu<br />

o povo e, entre foguetes e aplausos, mandou arrancar <strong>da</strong>s pare<strong>de</strong>s e queimar os editais, como<br />

forma <strong>de</strong> protesto para não pagá-los. Durante o ato, não houve vítimas. Num lugarejo chamado<br />

Messeté, entre Tucano e Cube as forças policiais atacam duramente o povo do Conselheiro. A<br />

resposta do grupo do Conselheiro foi a altura. Os sol<strong>da</strong>dos bateram em retira<strong>da</strong>. Pressiona<strong>da</strong>s<br />

pelas li<strong>de</strong>ranças políticas e pelos comerciantes <strong>da</strong> região, as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s locais, entre elas, o juiz<br />

Arlindo Leone, posteriormente transferido para Juazeiro, não tiveram como reagir. Antônio<br />

Conselheiro, sem ser incomo<strong>da</strong>do, pô<strong>de</strong> sair <strong>de</strong> Bom Conselho para Monte Santo. A <strong>de</strong>núncia do<br />

ocorrido chegou a Salvador, pelo citado juiz. A “vingança” chegará. Mesmo transferido para<br />

Juazeiro, Dr. Arlindo Leone espera um dia encontrar o Conselheiro.<br />

2.5- A comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> solidária <strong>de</strong> Canudos<br />

Pelo caminho já percorrido, foi possível mostrar os fun<strong>da</strong>mentos políticos e religiosos <strong>da</strong><br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos. Mesmo partindo <strong>de</strong> uma cosmovisão teocrática (Deus é o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro rei<br />

e <strong>de</strong>le emanam todos os po<strong>de</strong>res <strong>de</strong>ste mundo), Antônio Conselheiro <strong>de</strong>u passos significativos na<br />

organização <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> solidária. O projeto <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> em Canudos escapa à racionali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

sociológica, não segue as leis que os sociólogos consi<strong>de</strong>ram constitutivas para a edificação <strong>de</strong><br />

uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Assim como essa forma <strong>de</strong> organizar a vi<strong>da</strong> em Canudos se recusa a ser nivela<strong>da</strong><br />

pela i<strong>de</strong>ologia funcionalista e <strong>de</strong>senvolvimentista, do mesmo modo não <strong>de</strong>ve ser enquadra<strong>da</strong> num<br />

processo dialético <strong>de</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. A experiência vivi<strong>da</strong> em Canudos se inspirava no mo<strong>de</strong>lo<br />

269 Atual Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Cícero Dantas.<br />

111


evangélico simples <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> apostólica. Como profeta <strong>de</strong> Deus, Conselheiro sentia-se or<strong>de</strong>nado a<br />

criar uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> alternativa, orienta<strong>da</strong> por outras leis, capaz <strong>de</strong> abrir aos <strong>de</strong>siludidos as<br />

portas do céu e, com elas, um caminho a uma vi<strong>da</strong> digna nesta terra. 270 A sociologia <strong>de</strong>ve admitir<br />

a “inércia” <strong>da</strong> fé no processo formativo <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> do Belo Monte, e não <strong>de</strong>dicar a ala<br />

atenção secundária. Para Otten, “é pouco dizer que era um passo para a conscientização <strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> classe. A base transcen<strong>de</strong>ntal do projeto preten<strong>de</strong> o “outro” ou o “novo” e quer mais<br />

do que a eliminação <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> classista”. 271<br />

Canudos foi-se formando aos poucos. O País tinha superado a escravidão oficial, parte <strong>da</strong><br />

população negra migrara para Canudos; aumentava o séquito <strong>de</strong> Antônio Conselheiro. As altas<br />

taxas <strong>de</strong> impostos inviabilizavam a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas; o <strong>de</strong>semprego, a migração interna no<br />

Nor<strong>de</strong>ste e as sucessivas secas provocavam na população a busca <strong>de</strong> novas formas <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. O<br />

Barão <strong>de</strong> Jeremoabo não escondia sua preocupação ao perceber o <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> pessoas,<br />

<strong>de</strong>ixando os povoados, lugarejos e fazen<strong>da</strong>s, para acompanharem o Conselheiro. Sintetizou a<br />

angústia dos gran<strong>de</strong>s proprietários rurais: “O povo em massa abandonava suas casas a afazeres<br />

para acompanhá-lo. Com a abolição do elemento servil, ain<strong>da</strong> mais se fizeram sentir os efeitos <strong>da</strong><br />

propagan<strong>da</strong> pela falta <strong>de</strong> braços livres para o trabalho”. 272 Na visão do Barão, o abandono do<br />

trabalho nas fazen<strong>da</strong>s e comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s, não era fruto <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong><strong>de</strong>. “A população vivia como<br />

que em <strong>de</strong>lírio ou êxtase e tudo quanto não fosse útil e agradável ao inculcado enviado <strong>de</strong> Deus<br />

(A. Conselheiro) facilmente não prestava”. 273 E não atraía somente os pobres, <strong>de</strong>sempregados e<br />

sem terra, mas “famílias inteiras, algumas abasta<strong>da</strong>s, vendiam o que possuíam, reuniam os<br />

parentes afastados e marchavam para a Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>-Sagra<strong>da</strong>”, 274 afirma o combatente oficial tenente<br />

270 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 362-363.<br />

271 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 362.<br />

272 Cit. in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 153.<br />

273 Cit. In: OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 153.<br />

274 SOARES, Henrique Duque-Estra<strong>da</strong> <strong>de</strong> Macedo, A Guerra <strong>de</strong> Canudos, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Altina, 2903, p. 36.<br />

112


Macedo Soares. Belo Monte tornou-se a única alternativa capaz <strong>de</strong> vislumbrar dias melhores para<br />

o povo. Além do sonho <strong>de</strong> encontrar um lugar durante a peregrinação pelo sertão para fun<strong>da</strong>r uma<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> e po<strong>de</strong>r alimentar a esperança <strong>de</strong> sua gente, o Conselheiro carregava a fama <strong>de</strong><br />

construtor <strong>de</strong> Igrejas, cemitérios, pequenos açu<strong>de</strong>s, coor<strong>de</strong>nar trabalhos <strong>de</strong> mutirão, organizar<br />

rezas e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os pobres. A passagem pelo interior do Ceará, Sergipe e Bahia, fez ampliar o<br />

horizonte <strong>da</strong> escolha <strong>de</strong> uma locali<strong>da</strong><strong>de</strong> certa (Canudos) às margens do rio Vaza-Barris, tendo<br />

como principais afluentes os riachos Mauruquem, Umburana, do Mato, <strong>da</strong> Providência e o rio<br />

Sargento, para instalar sua comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. A região <strong>de</strong>sfrutava <strong>de</strong> posição privilegia<strong>da</strong>: passagem<br />

para Cumbe, Camboio, Calumbir ou Rosário, Massacará e Jeremoabo; caminhos abertos à<br />

penetração do Rio São Francisco <strong>de</strong> um lado, Juazeiro e do outro, Paulo Afonso; saí<strong>da</strong>s para<br />

Aracaju, via Jeremoabo e Salvador, pela estra<strong>da</strong> <strong>de</strong> Monte Santo. Ao chegar a Canudos, sua<br />

li<strong>de</strong>rança já tinha sido consoli<strong>da</strong><strong>da</strong> nas estra<strong>da</strong>s. No início <strong>da</strong> aventura, Antônio Conselheiro disse<br />

ao povo reunido, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vinha sua façanha:<br />

- Sim, meus irmãos, obe<strong>de</strong>cei à Igreja e aos man<strong>da</strong>mentos <strong>de</strong> Deus Nosso Senhor, nosso<br />

pai e salvador eterno, <strong>de</strong> quem sou na terra um miserável apóstolo, porque ele me<br />

apareceu uma noite e disse: - Antônio, sairás pelos sertões, como seu xará <strong>de</strong> Lisboa, a<br />

fazer penitência, pregando o meu Evangelho e as Escrituras Sagra<strong>da</strong>s; sofrerás<br />

perseguições dos maus e dos hereges, que retribuirás com benefícios <strong>de</strong>rramados por on<strong>de</strong><br />

passares; terás como Pedro, Paulo e todos os meus santos discípulos, o teu povo que te<br />

seguirá e <strong>de</strong> que serás o guia; encher-te-ei <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r na terra e serás tu e serão os teus<br />

a<strong>de</strong>ptos cheios <strong>de</strong> graça na vi<strong>da</strong> eterna. 275<br />

Batizado, pelo próprio Peregrino, <strong>de</strong> Belo Monte, o local, até então conhecido como<br />

fazen<strong>da</strong> Umburana, serviu como chão para o início do sonho dos cerca <strong>de</strong> 800 seguidores <strong>de</strong><br />

Antônio Conselheiro, em meados <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1893. A ocupação teve início <strong>de</strong> forma organiza<strong>da</strong>.<br />

O historiador observou a preocupação do Peregrino com os que chegavam sem que houvesse casa<br />

para todos. Já bem próximo a Canudos, na Freguesia <strong>de</strong> Itapicuru, o Conselheiro havia man<strong>da</strong>do<br />

construir “um barracão para abrigar os romeiros e cavou um tanque, on<strong>de</strong> os habitantes iam<br />

275 BENÍCIO, Manoel, O Rei dos Jagunços: crônicas históricas e <strong>de</strong> costumes..., p. 51.<br />

113


114<br />

buscar água. Batizou o arraial com o nome <strong>de</strong> Bom Jesus e tratou <strong>de</strong> edificar a capela sob sua<br />

invocação, <strong>de</strong>fronte <strong>da</strong> qual ergueu um imponente cruzeiro”. 276 Não foi Antônio Conselheiro<br />

sozinho quem construiu Canudos. Em pouco tempo a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> se estruturou. Não per<strong>de</strong>ram<br />

tempo. Muita gente precisava se organizar, plantar e comer. O entusiasmo pela terra motivou a<br />

imaginação do trabalhador sertanejo. Terra boa, água do rio Vaza-Barris, sol e coragem <strong>de</strong><br />

trabalhar. A comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> iniciou imediatamente as plantações:<br />

As margens frescas do rio eram cultiva<strong>da</strong>s com plantações <strong>de</strong> diversos legumes, milho,<br />

feijão, grogotuba, favas, batatas, melancias, jerimuns, melões, canas, etc. Nos terrenos<br />

arenosos, vinham-se milhares <strong>de</strong> matombos, grelando o talo tenro <strong>da</strong>s mandiocas e outros<br />

com estacas <strong>de</strong> diversos tamanhos. Pela vizinhança, os pequenos cultores <strong>da</strong> terra<br />

(pequenos agricultores), em Canudos, possuíam sítios, pomares, fazendolas <strong>de</strong> criação <strong>de</strong><br />

bo<strong>de</strong>s, animais vacuns e cavalares [...]. 277<br />

A “plantação obe<strong>de</strong>cia a um plano preestabelecido para garantir à ci<strong>da</strong><strong>de</strong> o seu auto-<br />

abastecimento. A produção ultrapassava o consumo, e o exce<strong>de</strong>nte era armazenado ou vendido<br />

em locali<strong>da</strong><strong>de</strong>s vizinhas como Jeremoabo e Monte Santo”. 278 Tudo sob a coor<strong>de</strong>nação do<br />

Conselheiro. Ele não permitia que seus colaboradores “cometessem abusos nem tão pouco que os<br />

encarregados <strong>da</strong> fiscalização se exce<strong>de</strong>ssem no exercício <strong>de</strong> suas funções. Ninguém ousava<br />

<strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cer-lhe. Para manter a or<strong>de</strong>m, Antônio Conselheiro não po<strong>de</strong>ria fraquejar”. 279 Em menos<br />

<strong>de</strong> quatro anos, Canudos recebeu mais <strong>de</strong> 25 mil peregrinos. 280<br />

Honório Vilanova recebeu tal confiança do Peregrino que chegou a ser encarregado <strong>de</strong><br />

receber as esmolas oferta<strong>da</strong>s e dividi-las para os pobres e mendigos. “Ele era para o Conselheiro<br />

276<br />

CALAZANS, José, Antônio Conselheiro: construtor <strong>de</strong> Igrejas e cemitérios, in: Revista Brasileira <strong>de</strong> Cultura,<br />

26 (1973), p. 75.<br />

277<br />

Cit in: BLOCH, Didier (org.), Canudos, 200 anos <strong>de</strong> produção, vi<strong>da</strong> cotidiana e economia..., p. 82.<br />

278<br />

MONIZ, Edmundo, A guerra social <strong>de</strong> Canudos..., p. 121.<br />

279<br />

MONIZ, Edmundo, A guerra social <strong>de</strong> canudos..., p. 121.<br />

280<br />

Cf. VILLA, Marco Antônio, Canudos: o povo <strong>da</strong> terra...p. 220. Há divergências quanto ao número <strong>de</strong> habitantes<br />

em Canudos. A Comissão <strong>de</strong> Engenharia do Exército, no final <strong>da</strong> guerra, fala em 5 200 casas. Cerca <strong>de</strong> 25 mil<br />

habitantes. Marco A. Villa duvi<strong>da</strong> que três oficiais do Exército, em poucas horas tenham contado casa por casa e<br />

chegado a 5 200. A Capital do Estado <strong>da</strong> Bahia, contava com 174 mil habitantes. Santo Amaro, o maior município<br />

do interior, tinha cerca <strong>de</strong> 66 mil habitantes. O mapa divulgado amplamente pelo Exército brasileiro, apresenta as<br />

casas do acampamento com uma extensão <strong>de</strong> aproxima<strong>da</strong>mente mil metros quadrados <strong>de</strong> comprimento por mil<br />

metros <strong>de</strong> largura. Canudos “nunca se aproximou <strong>de</strong> 25 mil habitantes, possuindo no máximo 20 mil pessoas”,<br />

afirma Marco Vila. Ibi<strong>de</strong>m, p. 220.


115<br />

o que um médium é para o organizador ou o que os compadres são para os mágicos<br />

ambulantes”. 281<br />

Na estruturação <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, levou-se em conta a aptidão <strong>de</strong> seus moradores,<br />

estabelecendo-se uma ética fun<strong>da</strong><strong>da</strong> nos Dez Man<strong>da</strong>mentos, no temor ao Deus Amor, no<br />

seguimento a Jesus Cristo, na vivência dos sacramentos (especialmente Batismo, Reconciliação e<br />

Eucaristia) e na vi<strong>da</strong> fraterna, inspira<strong>da</strong> na experiência dos primeiros cristãos, alicerçados nos<br />

cinco primeiros capítulos dos Atos dos Apóstolos, etc. Trabalhavam febrilmente, <strong>de</strong>ntro do<br />

lugarejo e nas cercanias. Rapi<strong>da</strong>mente foram levanta<strong>da</strong>s cerca <strong>de</strong> duas mil casas <strong>de</strong> pau-a-pique,<br />

cobertas <strong>de</strong> telha. A construção <strong>da</strong> Igreja ocupou o ponto central <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Vilanova, um dos moradores, sobrevivente <strong>da</strong> Guerra <strong>de</strong> Canudos, <strong>de</strong>ixou suas impressões<br />

sobre a vi<strong>da</strong> no Arraial: “Era um formigueiro <strong>de</strong> gente, zelosa e or<strong>de</strong>ira nos seus bons costumes,<br />

on<strong>de</strong> não havia uma só mulher prostituta”. 282 E ain<strong>da</strong>, o Peregrino respeitava a profissão e as<br />

aptidões <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> membro <strong>da</strong> nova comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>:<br />

Gran<strong>de</strong> era o Canudos do meu tempo. Quem tinha gado tratava do gado. Quem tinha<br />

mulher e filhos tratava <strong>da</strong> mulher e dos filhos. Quem gostava <strong>de</strong> rezar ia rezar. De tudo se<br />

tratava porque a nenhum pertencia e era <strong>de</strong> todos, pequenos e gran<strong>de</strong>s, na regra ensina<strong>da</strong><br />

pelo Peregrino. 283<br />

Havia uma forte presença do Conselheiro. Vilanova confirmou sua saudável li<strong>de</strong>rança:<br />

“Reinava o Peregrino. A sua palavra era ouro <strong>de</strong> lei. A sua mão, suave. O bastão era apenas para<br />

apoiar o corpo moído <strong>de</strong> tantos sacrifícios e rezas. Isto. Mais na<strong>da</strong>”. 284 Não se tem notícia <strong>de</strong><br />

abuso <strong>de</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong> por parte do Peregrino. Houve casos <strong>de</strong> pequenos proprietários rurais que<br />

ven<strong>de</strong>ram bens e as entregaram ao Conselheiro. Alguns gran<strong>de</strong>s proprietários fizeram o mesmo.<br />

De todos os lados chegavam aju<strong>da</strong>. E assim, a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> se fortalecia.<br />

281 BENÍCIO, Manoel, O Rei dos jagunços, crônicas históricas e <strong>de</strong> costumes..., p. 47.<br />

282 MACEDO, Nertan, Memorial <strong>de</strong> Vilanova, 2. ed., Rio <strong>de</strong> Janeiro: Renis; INL, 1983, p. 67.<br />

283 MACEDO, Nertan, Memorial <strong>de</strong> Vilanova..., p. 67.<br />

284 MACEDO, Nertan, Memorial <strong>de</strong> Vilanova..., p. 67.


Canudos era um campo experimental. E tudo corria bem sem que ninguém usasse <strong>da</strong><br />

esperteza para usufruir proveitos individuais. Antônio Conselheiro agia com rigoroso<br />

critério e exercia constante vigilância por meio <strong>de</strong> seus colaboradores. 285<br />

Aos poucos, os visitantes iam recebendo as orientações do seu lí<strong>de</strong>r maior. A oração<br />

alimentava diariamente os moradores <strong>da</strong> Nova Canaã.<br />

Ao fim <strong>da</strong> tar<strong>de</strong>, quando soavam os sinos <strong>da</strong> Ave-Maria, no santuário on<strong>de</strong> se via uma<br />

pequena mesa <strong>de</strong> pinho, coberta por uma toalha <strong>de</strong> linho branco, ele (Antônio<br />

Conselheiro), <strong>de</strong> túnica azul, aparecia diante dos fiéis e pregava durante uma hora ou<br />

mais, às vezes duas ou três, conforme a importância do assunto, examinando os fatos<br />

ocorridos, ditando um bom comportamento cristão baseado no amor ao próximo e na<br />

prática do bem, assinalando a santa obrigação <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r Canudos em caso <strong>de</strong> agressão.<br />

Todos o ouviam silenciosos, magnetizados pelas suas palavras convincentes. Não<br />

ousavam <strong>de</strong>sviar-se do caminho que o Conselheiro traçava. 286<br />

O povo via em Canudos o que J. B. Libanio afirmou a respeito dos movimentos<br />

religiosos, especialmente <strong>de</strong> caráter messiânico:<br />

Por sua vez, a religião cristã lhes fala <strong>da</strong> digni<strong>da</strong><strong>de</strong> dos filhos <strong>de</strong> Deus. Promete-lhes<br />

aquilo para que foram chamados. Há, portanto, no capital religioso <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s populares<br />

esse elemento riquíssimo <strong>de</strong> um chamado <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong> um projeto divino para os pobres,<br />

on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rão realizar-se como pessoas dignas. [...] O contraste entre as promessas <strong>de</strong><br />

Deus e a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> vivi<strong>da</strong> pelo povo, vivido pela pregação <strong>de</strong> um lí<strong>de</strong>r religioso,<br />

<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia facilmente movimento <strong>de</strong> reivindicação. 287<br />

Caminhar conforme o ritmo <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> era uma questão <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> ou morte. Canudos<br />

tornou-se a única alternativa possível para enfrentar a crise. 288 Para os que chegavam, Belo<br />

Monte era um oásis no sertão. Antônio Conselheiro “impunha espontaneamente um respeito<br />

religioso. Sua autori<strong>da</strong><strong>de</strong> sustentava-se não só na razão e na fé, mas também na força <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong>.<br />

[...] sabia ouvir as sugestões dos companheiros <strong>de</strong> confiança”. 289 As principais reuniões com as<br />

li<strong>de</strong>ranças mais influentes realizavam-se no santuário.<br />

285 MONIZ, Edmundo, A guerra social <strong>de</strong> Canudos..., p. 121.<br />

286 MONIZ, Edmundo, A guerra social <strong>de</strong> Canudos..., p. 121.<br />

287 LIBANIO, João Batista e BINGEMER, Maria Clara, L., Escatologia cristã, Petrópolis: Vozes, 1985, p. 45.<br />

288 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 362-367.<br />

289 MONIZ, Edmundo, A guerra social <strong>de</strong> Canudos..., p. 122.<br />

116


2.6- Por que a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos constituiu-se um perigo para a República?<br />

As elites políticas e agrárias logo perceberam que não po<strong>de</strong>riam subestimar o movimento<br />

<strong>de</strong> Belo Monte. Para a burguesia rural e as elites urbanas, Canudos passou a ser uma espécie <strong>de</strong><br />

movimento separatista, um cisto instalado no coração <strong>da</strong> República. Procurava-se um motivo<br />

para justificar a <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> um foco crescente, ca<strong>da</strong> vez mais referencial para os injustiçados<br />

<strong>da</strong> região. Essa forma <strong>de</strong> organização social não interessava aos proprietários <strong>de</strong> terra e li<strong>de</strong>ranças<br />

políticas. Acabar com o séquito <strong>de</strong> Antônio Conselheiro era indispensável para a “paz social”. A<br />

migração para o arraial não parava. O acampamento virou um formigueiro humano. Os<br />

proprietários temem a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> mão-<strong>de</strong>-obra barata nas fazen<strong>da</strong>s. A preocupação era real. O povo<br />

não queria saber do trabalho nas gran<strong>de</strong>s fazen<strong>da</strong>s. “Assim foi escasseando o trabalho agrícola, e<br />

é atualmente com suma dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> que uma ou outra proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> funciona. O povo em massa<br />

abandona suas casas e afazeres para acompanhá-lo”. 290 Os donos <strong>de</strong> latifúndios organizaram as<br />

primeiras reações, soma<strong>da</strong>s às li<strong>de</strong>ranças políticas <strong>da</strong> Bahia e do Brasil.<br />

Fazia-se urgente <strong>de</strong>squalificar os membros <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> ali instala<strong>da</strong>, como também<br />

seu principal coman<strong>da</strong>nte, Antônio Conselheiro. Os raivosos necessitavam <strong>da</strong> opinião pública a<br />

seu favor. O recuo <strong>da</strong>s forças militares durante o confronto <strong>de</strong> Masseté, em maio <strong>de</strong> 2893, após a<br />

queima dos editais <strong>de</strong> cobrança <strong>de</strong> imposto, ficou entalado na garganta do alto comando <strong>da</strong><br />

Polícia Militar <strong>da</strong> Bahia e, mais ain<strong>da</strong>, no Juiz <strong>da</strong> Comarca <strong>de</strong> Bom Conselho, Dr. Arlindo Leoni.<br />

Mesmo <strong>de</strong> longe, Antônio Conselheiro vinha sendo acompanhado pelas autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s regionais e<br />

fe<strong>de</strong>rais. Os adjetivos usados, para <strong>de</strong>squalificar o Beato e as principais li<strong>de</strong>ranças, foram os<br />

piores. O tenente <strong>de</strong> infantaria, Henrique Duque-Estra<strong>da</strong> <strong>de</strong> Macedo Soares, com seu testemunho<br />

voraz, sob o ponto <strong>de</strong> vista militar, <strong>de</strong>squalificou os integrantes <strong>de</strong> Canudos, começando pelo<br />

Conselheiro: Assim, “ a forma dos milagres do Conselheiro, sempre crescente, a vi<strong>da</strong> patriarcal e<br />

290 Cit. in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 153.<br />

117


preguiçosa que levavam seus asseclas [...] fora <strong>da</strong> ação <strong>da</strong>s leis, atraíram para Canudos,<br />

inúmeras famílias <strong>de</strong> pontos mais ou menos remotos”. 291 Antônio Conselheiro foi acusado <strong>de</strong><br />

vi<strong>da</strong> patriarcal e <strong>de</strong> agitador, <strong>de</strong> ser acompanhado pelos mais famigerados valentões, os mais<br />

truculentos bandidos com armas e munições. 292 E mais: aleijados, doentes, cegos e macróbios,<br />

também para lá convergiam. “Em pouco tempo se viam seis mil e quinhentas habitações, e trinta<br />

mil seres nelas se agitavam promiscuamente”. 293 O policial procurou, ain<strong>da</strong>, <strong>de</strong>squalificar os<br />

lí<strong>de</strong>res dos principais comandos <strong>de</strong> Belo Monte, especialmente os comerciantes, encarregados <strong>de</strong><br />

regular a oferta <strong>de</strong> alimentos. “Antônio Vilanova, João Aba<strong>de</strong>, Joaquim Macambira, Senhorinho<br />

e outros, locupletavam-se com o produto do trabalho <strong>da</strong>queles <strong>de</strong>sventurados e sobre eles<br />

exerciam <strong>de</strong>cidi<strong>da</strong> influência”. 294 Aos poucos, os jornais iniciavam uma campanha para <strong>de</strong>struir<br />

Canudos.<br />

O início <strong>da</strong> guerra <strong>de</strong>u-se em 21 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1896, a partir <strong>de</strong> um fútil pretexto. A<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> iniciara a construção <strong>de</strong> uma igreja maior no arraial. O Conselheiro precisava <strong>de</strong><br />

ma<strong>de</strong>ira para a cobertura <strong>da</strong> igreja nova. A compra foi feita ao Coronel João Evangelista Pereira<br />

Melo, na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> vizinha <strong>de</strong> Juazeiro, com pagamento antecipado. Na <strong>da</strong>ta combina<strong>da</strong> para o<br />

envio <strong>da</strong> ma<strong>de</strong>ira, o coronel alegou falta <strong>de</strong> homens para o transporte. Com pressa para terminar a<br />

construção, Conselheiro sugeriu que sua gente po<strong>de</strong>ria aju<strong>da</strong>r no transporte. Nesse período, Dr.<br />

Leoni havia sido transferido para a Comarca <strong>de</strong> Juazeiro. Com ressentimento do ocorrido no Bom<br />

Conselho, o Juiz espalhou a notícia <strong>de</strong> que a gente <strong>de</strong> Antônio Conselheiro po<strong>de</strong>ria invadir a<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, saquear o comércio e se vingar do Juiz, com quem o Beato teve <strong>de</strong>savença em Bom<br />

Conselho. Ele solicitou ao governador Luiz Viana tropas policiais, para garantirem a or<strong>de</strong>m <strong>da</strong><br />

291 SOARES, Duque-Estra<strong>da</strong> <strong>de</strong> Macedo, A Guerra <strong>de</strong> Canudos..., p. 35. Grifei.<br />

292 SOARES, Duque-Estra<strong>da</strong> <strong>de</strong> Macedo, A Guerra <strong>de</strong> Canudos..., p. 35.<br />

293 SOARES, Duque-Estra<strong>da</strong> <strong>de</strong> Macedo, A Guerra <strong>de</strong> Canudos..., p. 37. Grifei. O autor reconheceu, em segui<strong>da</strong> ,<br />

uma virtu<strong>de</strong> no aglomerado: “Contudo, raríssimos eram os crimes e as disputas, que o Conselheiro castigava<br />

inexoravelmente com a expulsão dos seus autores”.<br />

294 SOARES, Duque-Estra<strong>da</strong> <strong>de</strong> Macedo, A Guerra <strong>de</strong> Canudos..., p. 37.<br />

118


ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. O governador cumpriu o pedido. Enviou a chama<strong>da</strong> Primeira Expedição, com um efetivo<br />

<strong>de</strong> 113 sol<strong>da</strong>dos, 3 oficiais, 1 médico e 2 guias, chefiados pelo Tenente Pires Ferreira. Em um<br />

único confronto em Uauá, o saldo foi <strong>de</strong> 10 mortos (1 oficial, 7 sol<strong>da</strong>dos, 2guias) e 17 feridos. A<br />

expedição logo se retirou para Juazeiro.<br />

A Segun<strong>da</strong> Expedição chegou a Monte Santo em 29 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro, com um combinado <strong>de</strong><br />

forças fe<strong>de</strong>rais e <strong>da</strong> polícia do estado: 609 sol<strong>da</strong>dos, 10 oficiais, 1 médico, 1 farmacêutico, 1<br />

enfermeiro, 2 canhões Krupp e três metralhadoras Nor<strong>de</strong>felt. Houve violentos combates na Serra<br />

do Cambaio e na Lagoa do Sangue. As tropas foram recebi<strong>da</strong>s a bala e obriga<strong>da</strong>s a recuar. O<br />

saldo: 10 sol<strong>da</strong>dos mortos e 70 feridos.<br />

A Terceira Expedição partiu <strong>de</strong> Salvador e <strong>de</strong>sembarcou em Queima<strong>da</strong>s, 7 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong><br />

1897, com reforço <strong>de</strong> 6 canhões Krupp e 1 300 sol<strong>da</strong>dos, conduzindo 15 milhões <strong>de</strong> cartuchos,<br />

sob o comando do coronel Moreira César. Dia 13 <strong>de</strong> março, a expedição estava próxima a<br />

Canudos. Logo no início do confronto, o Coronel Moreira César morreu, atingido por tiros. O<br />

Coronel Tamarindo assumiu o comando e, logo em segui<strong>da</strong>, também foi assassinado. Com as<br />

tropas em pânico, o Major Cunha Matos tomou a direção. Houve <strong>de</strong>ban<strong>da</strong><strong>da</strong>s pelas estra<strong>da</strong>s entre<br />

os sol<strong>da</strong>dos. Ficou um triste saldo: 116 mortos, inclusive 13 oficiais e 120 feridos. As notícias<br />

incendiavam o País. Diante <strong>da</strong> ousadia do sertanejo, <strong>de</strong>struir Canudos passou a ser uma questão<br />

<strong>de</strong> honra para o Exército e as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> República. O governo não poupou esforços para<br />

consegui-lo.<br />

Em 5 <strong>de</strong> abril, foi envia<strong>da</strong> a Quarta Expedição, agora com mobilização <strong>de</strong> tropas<br />

envolvendo 14 estados: Bahia, Rio Gran<strong>de</strong> do Norte, Paraíba, Piauí, Maranhão, Pará, Espírito<br />

Santo, Minas Gerais, São Paulo, Rio <strong>de</strong> Janeiro e Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, e um reforço posterior do<br />

Amazonas, do Ceará e <strong>de</strong> Pernambuco. O comando organizou o ataque. Um composto <strong>de</strong> 6<br />

briga<strong>da</strong>s, em 2 colunas por direções opostas, entrou em ação. O general Artur Oscar assumiu o<br />

119


comando geral <strong>da</strong> expedição. A primeira coluna, coman<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo General Silva Barbosa, partiu<br />

<strong>de</strong> Queima<strong>da</strong>s, passando por Monte Santo, com disposição <strong>de</strong> enfrentar os canu<strong>de</strong>nses: 3 415<br />

homens, 180 mulheres; 12 canhões Kruppp e um canhão Withorth 32, apeli<strong>da</strong>do pelos<br />

canu<strong>de</strong>nses <strong>de</strong> mata<strong>de</strong>ira. O 5º corpo <strong>de</strong> Polícia <strong>da</strong> Bahia conduzia 750 mil quilos <strong>de</strong><br />

mantimentos e munições, com 388 jagunços contratados no interior do Estado. A segun<strong>da</strong> coluna<br />

coman<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo General Cláudio Savaget, saiu <strong>de</strong> Aracaju, passando por Jeremoabo (BA), pelo<br />

Raso <strong>da</strong> Catarina, em direção a Canudos. Eram 2 340 homens, 512 mulheres e 72 crianças (duas<br />

nasci<strong>da</strong>s na viagem). A or<strong>de</strong>m do presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> República, Pru<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Morais, “é <strong>de</strong> não ficar<br />

pedra sobre pedra”. Tem que ser a Expedição vingadora <strong>da</strong>s três <strong>de</strong>rrotas. De fato, os ataques<br />

foram tão intensos que no final <strong>da</strong> guerra, em 5 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1897, Canudos estava<br />

completamente <strong>de</strong>struí<strong>da</strong>.<br />

Uma legião <strong>de</strong> corpos carbonizados misturava-se com as cinzas <strong>da</strong>s casas <strong>de</strong> taipas e<br />

palhas. Estima-se que cerca <strong>de</strong> 25 mil vi<strong>da</strong>s truci<strong>da</strong><strong>da</strong>s durante os ataques sangrentos <strong>da</strong>s 4<br />

expedições militares, em um ano <strong>de</strong> lutas intermitentes. As três primeiras expedições foram<br />

fragorosamente <strong>de</strong>rrota<strong>da</strong>s. Os <strong>de</strong>fensores <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos <strong>de</strong>safiavam as forças do<br />

governo. Bem-humorados, diziam: “- Avança, fraqueza do governo!” Era o seu grito <strong>de</strong> guerra.<br />

“Durante um ano inteiro Canudos resistiu a quatro expedições regulares <strong>de</strong> forças do exército e<br />

<strong>da</strong> polícia militar, incluindo tropas <strong>de</strong> infantaria, cavalaria e artilharia, num total <strong>de</strong> 12 mil<br />

homens”. 295 Uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira carnificina! Cerca 5 000 sol<strong>da</strong>dos, oficiais e generais <strong>da</strong>s tropas<br />

governistas morreram. 296<br />

Um banho <strong>de</strong> sangue coroou a companhia em que o Brasil se confrontou com o Brasil; a<br />

civilização contra o atraso, a ciência positiva contra a sub-raça; o zelo e a <strong>de</strong>dicação dos<br />

295 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 121.<br />

296 Cf. FACÓ, Rui, Cangaceiros e Fanáticos..., p. 121.<br />

120


121<br />

republicanos, contra o fanatismo irracional! Uma guerra entre brasileiros, o Estado contra o povo.<br />

Muitos guerreiros sobreviventes foram <strong>de</strong>golados, jovens e crianças, estupra<strong>da</strong>s, outras dividi<strong>da</strong>s<br />

entre membros <strong>da</strong>s altas patentes do exército. Muitas meninas foram entregues aos prostíbulos<br />

em Salvador, algumas com até 9 anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>. A opinião pública reprovou o acontecido no pós-<br />

guerra.<br />

E o para<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Antônio Conselheiro? Mesmo sendo o alvo principal <strong>da</strong> guerra,<br />

possivelmente o exército não o tenha atingido. Existem pelo menos três versões sobre a morte do<br />

Peregrino. Segundo a tradição oral, o Conselheiro morreu <strong>de</strong> uma disenteria. A segun<strong>da</strong><br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> é que diante do massacre <strong>de</strong> seu povo, ele ficou muito triste e, abalado, morreu <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sgosto. A terceira versão é a dos vencedores. Para a elite do exército, o Conselheiro teria sido<br />

atingido por estilhaços <strong>de</strong> uma grana<strong>da</strong>, durante o bombar<strong>de</strong>io <strong>da</strong> igreja, proporcionando-lhe a<br />

morte em 22 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1897. No dia seguinte ao término <strong>da</strong> guerra, 6 <strong>de</strong> outubro, seu corpo,<br />

sepultado na casa on<strong>de</strong> morava perto <strong>da</strong> igreja, foi exumado. A cabeça leva<strong>da</strong> para Salvador para<br />

estudos pelo médico legista, Nina Rodrigues. Para surpresa dos que sempre afirmavam que o<br />

Peregrino era um louco e débil mental, a conclusão dos exames foi a <strong>de</strong> um cérebro normal. 297 O<br />

que se questiona até hoje são os motivos pelos quais Nina Rodrigues não se tenha pronunciado<br />

oficialmente sobre a causa <strong>da</strong> morte do examinado. Oficialmente não se sabe se Antônio<br />

Conselheiro morrera <strong>de</strong> morte natural ou se fora, conforme a versão militar, atingido por<br />

estilhaços <strong>de</strong> balas. Talvez, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> não fosse <strong>de</strong> interesse <strong>da</strong>s forças militares e <strong>da</strong> opinião<br />

pública. Po<strong>de</strong>r-se-ia pensar: uma guerra tão brutal e não se conseguiu chegar ao principal alvo!<br />

Isso <strong>de</strong>ixou margem para as elites <strong>de</strong>scaracterizarem a figura histórica <strong>de</strong> Antônio Vicente<br />

Men<strong>de</strong>s Maciel, ao longo dos tempos.<br />

297 Cf. RODRIGUES, Nina, As coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s anormais, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira, 1939, p. 50-77.


122<br />

Ain<strong>da</strong> hoje, boa parte do povo sertanejo, como também alguns segmentos <strong>da</strong> Igreja<br />

Católica, acreditam na versão oficial sobre Conselheiro. Em 1993, por ocasião do centenário <strong>da</strong><br />

chega<strong>da</strong> <strong>de</strong> Antônio Conselheiro a Canudos, o professor Fernando Pinto, psiquiatra e psicanalista<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>da</strong> Bahia, explicitou esse pensamento, num polêmico artigo e recuperou<br />

afirmações historicamente supera<strong>da</strong>s pela historiografia sobre o Conselheiro. Antônio “entrou na<br />

história pelas portas sangrentas <strong>de</strong> Canudos. [...] foi Messias justamente por causa <strong>da</strong> patologia<br />

psiquiátrica e, apesar <strong>de</strong>la, conquista o respeito dos fiéis, e a admiração dos historiadores”. 298 Ao<br />

<strong>de</strong>screver sobre o núcleo patogênico <strong>da</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong> do lí<strong>de</strong>r em questão, afirma ser isso<br />

<strong>de</strong>corrente dos traumas não resolvidos na infância, “em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong> abrangência e patologia dos<br />

elementos constitutivos <strong>de</strong> seu complexo <strong>de</strong> Édipo mal resolvido”. 299 Essa concepção, monta<strong>da</strong><br />

pelos que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a versão para justificar o massacre, sempre apela para uma fun<strong>da</strong>mentação<br />

positivista. Os argumentos mais usados são oriundos <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha, mesmo sabendo-se<br />

que a historiografia evoluiu e incorporou novos <strong>da</strong>dos históricos sobre Canudos, superando o<br />

paradigma euclidiano. Para eles, Eucli<strong>de</strong>s continua sendo quase a última palavra sobre a Guerra<br />

<strong>de</strong> Canudos. Baseado em afirmações do autor <strong>de</strong> Os Sertões, o referido psiquiatra enten<strong>de</strong> que a<br />

patologia do Conselheiro <strong>de</strong>corre <strong>da</strong> estruturação <strong>da</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong>. E elenca, no seu diagnóstico,<br />

elementos, no mínimo curiosos, do ponto <strong>de</strong> vista psiquiátrico, com o objetivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scaracterizar<br />

o Beato: orfan<strong>da</strong><strong>de</strong> precoce <strong>de</strong> mãe, madrasta castradora e psicótica, rejeição afetiva pela<br />

madrasta, maus tratos e humilhações na infância, pai alcoólatra (irritável, agressivo, perdulário,<br />

narcisista e <strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong> triunfo social, economicamente fracassado após ter <strong>de</strong>sfrutado <strong>de</strong> boa<br />

situação financeira), psicótico (portador <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>mência intermitente, hoje diagnostica<strong>da</strong> como<br />

298 PINTO, Luiz Fernando, A personali<strong>da</strong><strong>de</strong> carismática <strong>de</strong> Antônio Conselheiro: <strong>aspectos</strong> psicanalíticos, in:<br />

Centenário <strong>de</strong> Belo Monte, REVISTA DA FAEB/Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual <strong>da</strong> Bahia, ano II, esp., Salvador<br />

(janeiro/junho), 1993, p. 44-45.<br />

299 PINTO, Luiz Fernando, A personali<strong>da</strong><strong>de</strong> carismática <strong>de</strong> Antônio Conselheiro: <strong>aspectos</strong> psicanalíticos..., p.<br />

34.


psicose “maníaco-<strong>de</strong>pressiva”), ambiente familiar <strong>de</strong>sajustado e <strong>de</strong>sagregado, carência afetiva. 300<br />

É uma visão <strong>da</strong> pessoa humana do Conselheiro bastante reducionista, que <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra o legado<br />

do Beato e seu equilíbrio na condução <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

No momento, essa forma <strong>de</strong> analisar a personali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Antônio Conselheiro e seu<br />

movimento, não tem encontrado respaldo no meio científico entre historiadores, cientistas<br />

sociais, nem tão pouco, no meio psiquiátrico. Ao contrário, Canudos não é visto mais como um<br />

acontecimento marginal, nem po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>scaracterizado, como se tentou fazer no <strong>de</strong>correr do<br />

século passado entre os que afirmaram que o Peregrino foi um louco, débil mental e <strong>de</strong><br />

personali<strong>da</strong><strong>de</strong> doentia. Uma pergunta vem orientando os estudos dos que documentam a história<br />

<strong>de</strong> Antônio Conselheiro e Canudos: por que comparar um lí<strong>de</strong>r como o Conselheiro altamente<br />

reconhecido, objeto <strong>de</strong> veneração coletiva e <strong>de</strong> sábios estudiosos, a um louco ou débil mental?<br />

Antônio Conselheiro foi um místico internado, segundo as normas <strong>da</strong> época, com a etiqueta do<br />

<strong>de</strong>lírio. Para sempre, ele permanecerá fichado na série “doentes”. Faz-se necessário tirá-lo <strong>de</strong>sse<br />

fichário e restituí-lo à história dos místicos, a qual não o retém entre os seus preferidos, tampouco<br />

nas bibliotecas o encontraremos no índice dos santos.<br />

Para melhor enten<strong>de</strong>r a personali<strong>da</strong><strong>de</strong> carismática do lí<strong>de</strong>r principal <strong>de</strong> Canudos, faz-se<br />

necessário retomar a via mística, como elemento constitutivo <strong>da</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong> do Beato<br />

Conselheiro. “Dos muitos caminhos <strong>de</strong> transformação interior conhecidos pelo homem, a via<br />

mística é talvez uma <strong>da</strong>s mais antigas, universais e altamente consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s, mesmo que seus<br />

praticantes muitas vezes tenham vivido uma paz difícil”. 301 Sigmund Freud fala em “mo<strong>de</strong>los<br />

energéticos”. Os cristãos sentem uma “força interior”, emana<strong>da</strong> <strong>da</strong> espirituali<strong>da</strong><strong>de</strong> cristã: “há<br />

realmente neste tipo <strong>de</strong> pessoas místicas uma espécie <strong>de</strong> energia, um po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> atração que emana<br />

300<br />

PINTO, Luiz Fernando, A personali<strong>da</strong><strong>de</strong> carismática <strong>de</strong> Antônio Conselheiro: <strong>aspectos</strong> psicanalíticos..., p.<br />

34.<br />

301<br />

KAKAR, Sudhir, Ramakrishna e a experiência mística, in: CLEMENT, Catherine e KAKAR, Sudhir, A louca e o<br />

Santo, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Relume-Dumaré, 1997, p. 103.<br />

123


124<br />

<strong>de</strong>las. Chamamos ou não <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r carismático, trata-se <strong>da</strong> manifestação corporal <strong>de</strong> uma energia<br />

interior”, 302 afirma Sudhir Kakar. O objetivo <strong>de</strong> um místico não po<strong>de</strong> ser mensurado pelos<br />

ciências positivas, não é <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m sóli<strong>da</strong> nem objetiva. Antônio Conselheiro superou suas<br />

<strong>de</strong>ficiências e seus problemas familiares pela mística cristã. O que o fez lí<strong>de</strong>r, ser ousa<strong>da</strong> para o<br />

seu tempo foi a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> auto superação, a mística <strong>da</strong> justiça, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> um mundo melhor<br />

para todos, o sonho <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mais humana, mais justa e solidária. Ele sublimou as<br />

<strong>de</strong>ficiências pessoais, apren<strong>de</strong>u do Cristo, sentiu o apoio dos irmãos, viu seu sonho se<br />

concretizando, alimentou a utopia <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> igualitário. A suposta loucura, os traumas<br />

mal resolvidos ou, na expressão do psiquiatra Luiz Fernando Pinto, a “patologia dos elementos<br />

constitutivos <strong>de</strong> seu complexo <strong>de</strong> Édipo mal resolvido”, foram sublimados nas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

altruístas, pela utopia <strong>de</strong> tornar Canudos a Jerusalém Celeste.<br />

A dimensão espiritual, alia<strong>da</strong> à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver em um momento no qual não havia<br />

alternativas econômicas viáveis, fez o povo perseverar na luta. Foi uma questão <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> ou morte.<br />

A comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> percebeu a presença do Deus <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, iluminando os irmãos <strong>de</strong> caminha<strong>da</strong>. A<br />

força <strong>da</strong> perseverança vinha do alto. Conselheiro sobe captá-la.<br />

2.7- A participação <strong>da</strong> Igreja Católica na <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> Canudos<br />

A hierarquia católica não teve um posicionamento honroso na Guerra <strong>de</strong> Canudos. O<br />

Arcebispo <strong>da</strong> Bahia sempre se colocou contrário à ação <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> por Antônio Conselheiro.<br />

Diversas cartas foram expedi<strong>da</strong>s, proibindo as pregações do Peregrino e o apoio que lhe <strong>da</strong>vam<br />

os vigários <strong>da</strong>s paróquias do sertão. O Peregrino sempre respeitou as orientações <strong>da</strong> Igreja,<br />

porém, sem concor<strong>da</strong>r com certas posturas <strong>da</strong> hierarquia, em fogo cruzado com o Estado, que se<br />

proclamava laico. Ao ser proibido, nunca <strong>de</strong>srespeitava. Não invadia paróquias, nem usurpava<br />

302 CLÉMENT, Catherine, Conversação entre Sudhir Kakar, psicanalista e Catherine Clément, filósofo in:<br />

CLÉMENT, Catherine e KAKAR, Sudhir, A louca e o Santo, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Relume-Dumaré, 1997, p. 161.


125<br />

serviços sacerdotais. Tinha bem claro o caráter leigo <strong>de</strong> seu ministério. Se a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

Conselheiro crescia, <strong>de</strong>spertando simpatia <strong>de</strong> seus moradores, atraindo as populações vizinhas,<br />

não era por acaso. Já em 1886, Conselheiro causava preocupação a uma parte do clero. Padre<br />

Paranhos recorreu ao vigário capitular em Salvador, pedindo providências para impedir o<br />

crescimento do séquito do Conselheiro: “A V. Exa. Recorro para que tome providência enérgica,<br />

e quanto antes, <strong>de</strong> acordo com o Dr. Chefe <strong>de</strong> polícia, a fim <strong>de</strong> ser retirado <strong>de</strong>sta freguesia um<br />

homem que se inculca penitente, e que acompanhado <strong>de</strong> três mulheres e um ou dois a<strong>de</strong>ptos,<br />

percorre este centro <strong>da</strong> Província <strong>da</strong> Bahia, sem que em lugar nenhum <strong>de</strong>clare seu fim”. 303<br />

Des<strong>de</strong> 1894, o <strong>de</strong>putado José Justiniano sugeriu ao parlamento baiano o diálogo, como<br />

forma <strong>de</strong> impedir a proliferação <strong>de</strong> Canudos. O <strong>de</strong>putado não acreditava em motivos políticos do<br />

Beato. Logo, se os interesses <strong>de</strong> Antônio Conselheiro e sua gente eram mais religiosos que<br />

políticos, “se ele em todo caso é um homem virtuoso, um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro asceta, não um hipócrita,<br />

mas um fanático, incontestavelmente, <strong>de</strong>vem-se empregar outros recursos antes dos meios<br />

violentos”. 304 Se houvesse um acordo entre o Arcebispo Dom Jerônimo Tomé <strong>da</strong> Silva e o<br />

governador Rodrigues Lima, po<strong>de</strong>r-se-ia “combater” Canudos por meios diplomáticos e<br />

religiosos, acreditava José Justiniano. Mesmo sabendo <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s diplomáticas entre Igreja<br />

e Estado, o arcebispo encaminharia uma missão religiosa, com missionários “que tenham<br />

influência sobre o povo e que, empregando as mesmas doutrinas <strong>de</strong> paz e <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m, pu<strong>de</strong>ssem<br />

dissolver aquele grupo por meios suasórios”. 305 Po<strong>de</strong>ria ser uma oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> para o po<strong>de</strong>r civil<br />

reatar os laços com a Igreja. O que acabou acontecendo.<br />

Em abril <strong>de</strong> 2895, a Arquidiocese <strong>da</strong> Bahia enviou a Canudos, por solicitação do<br />

governador, os fra<strong>de</strong>s capuchinhos, freis João Evangelista <strong>de</strong> Monte Marciano e Caetano <strong>de</strong> S.<br />

303 Cit in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 145.<br />

304 Cit. in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: A mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 180.<br />

305 Cit. in: ibid, p. 180-182.


Léo, 306 em companhia do Pe. Sabino, vigário <strong>de</strong> Cumbe, com o objetivo <strong>de</strong> dissolver a<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> do Conselheiro. A missão só chegou ao Arraial a 23 <strong>de</strong> maio, em razão <strong>da</strong>s imensas<br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> estra<strong>da</strong>s, transporte, hospe<strong>da</strong>gem e guias - conhecedores <strong>da</strong> região - conforme<br />

relato minucioso apresentado após a visita ao Arcebispo <strong>da</strong> capital baiana. 307 O texto do frei<br />

capuchinho provocou diversas reações e <strong>de</strong>punha contra a Igreja, pela visão negativa que teve do<br />

acampamento. De fato, sua visita não foi para admirar ou contemplar a experiência dos<br />

sertanejos. Nem para i<strong>de</strong>ntificar os “sinais do Reino” na experiência <strong>da</strong>quele povo. Sua i<strong>da</strong> a<br />

Canudos tinha um único objetivo: dispersar as pessoas, aconselhando-as o caminho <strong>de</strong> volta para<br />

suas casas. Ao referir-se ao povo <strong>de</strong> Canudos, o religioso, com pouca diplomacia, usou<br />

expressões, no mínimo, curiosas, sobre os moradores do Belo Monte: “gente estranha” aos olhos<br />

do missionário, “povo simples e ignorante” dos nossos sertões, “acampamento <strong>de</strong> beduínos”,<br />

“perturbadores <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m pública”, “turba <strong>de</strong>sorienta<strong>da</strong>”, “<strong>de</strong>svairados”, “seita político-religiosa”,<br />

“milícia fanática”, “infeliz locali<strong>da</strong><strong>de</strong>”, etc.” 308 Durante uma <strong>de</strong> suas homilias dirigi<strong>da</strong>s aos<br />

canu<strong>de</strong>nses, frei J. Evangelista foi direto ao alvo: “Nós mesmos aqui no Brasil, a principiar pelos<br />

bispos até o último católico, reconhecemos o governo atual; somente vós não vos quereis<br />

sujeitar? É mau pensar esse, é uma doutrina erra<strong>da</strong> a vossa”. 309<br />

A gente <strong>de</strong> Antônio Conselheiro sentiu-se ofendi<strong>da</strong> com palavras tão duras do<br />

representante <strong>da</strong> Arquidiocese. Diante <strong>da</strong> reação <strong>da</strong> multidão, frei João lamentou ter sido<br />

interrompido por “um dos <strong>da</strong> turba, gritando com arrogância: V. revm. é que tem uma doutrina<br />

306 Frei João Evangelista, como ficou conhecido, natural <strong>da</strong> Itália, nasceu em 1843. Chegou a Salvador como<br />

missionário capuchinho, em 1871, on<strong>de</strong> viveu 49 anos. Morreu em 12 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1921. Frei Caetano chegou à Bahia<br />

em 1894, participou <strong>de</strong> 212 missões. Faleceu em Salvador a 4 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1923.<br />

307 Cf. MARCIANO, Frei João Evangelista <strong>de</strong> Monte, Relatório apresentado pelo Revê. Frei João Evangelista <strong>de</strong><br />

Monte Marciano, ao Arcebispo <strong>da</strong> Bahia sobre Antônio Conselheiro e seu séqüito no Arraial <strong>de</strong> Canudos,<br />

1895, (apresentação <strong>de</strong> José Calazans), Salvador: Centro <strong>de</strong> Estudos Baianos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>da</strong> Bahia,<br />

1987, p. 3. Citado por: Relatório do Frei João Evangelista, seguido do número <strong>de</strong> página. Atualizo o português.<br />

308 Cf. Relatório do Frei João Evangelista..., p. 4, 6, 7, 8.<br />

309 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 4.<br />

126


falsa, e não o nosso Conselheiro”. 310 127<br />

Antônio Conselheiro pediu silêncio. O frei baixou o tom e<br />

não insistiu no assunto. Percebeu um ambiente hostil à sua pregação e resolveu <strong>de</strong>sistir <strong>da</strong><br />

missão. O seu relatório <strong>de</strong>squalifica o Beato. “Antônio Conselheiro, inculcando zelo religioso,<br />

disciplina e ortodoxia católica, não tem na<strong>da</strong> disso; pois contesta o ensino, transgri<strong>de</strong> as leis e<br />

<strong>de</strong>sconhece as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s eclesiásticas”. 311 Nesta pequena frase do relatório se encontram os<br />

dois principais argumentos do capuchinho, para impedir a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Antônio Conselheiro: contesta o ensino <strong>da</strong> Igreja, não aceita as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s eclesiásticas e<br />

transgri<strong>de</strong> as leis.<br />

Os manuscritos do Peregrino, analisados anteriormente, não corroboram os argumentos do<br />

frei Evangelista. Ao contrário, como já foi <strong>de</strong>monstrado, os textos usados na catequese do Arraial<br />

eram a Bíblia Sagra<strong>da</strong>, A Missão Abrevia<strong>da</strong> e as Horas Marianas. Em to<strong>da</strong>s as prédicas, o<br />

Peregrino transcrevia ou parafraseava as obras <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong>s pelos missionários, no final <strong>da</strong>s semanas<br />

missionárias, em nome <strong>da</strong> Igreja. Quando não o fazia, inspirava-se nelas. Os textos <strong>da</strong> Patrística,<br />

citações <strong>de</strong> papas e diversos autores cristãos confirma a ortodoxia <strong>da</strong> mensagem do Peregrino.<br />

O frei João Evangelista, externou sua visão <strong>de</strong> ortodoxia e obediência muito comuns na<br />

Igreja. De certa maneira, ele foi incapaz <strong>de</strong> li<strong>da</strong>r com o dissenso e a alternativa. A “hierarquia<br />

(em sua quase totali<strong>da</strong><strong>de</strong>) via no arraial conselheirista uma grave ameaça a seus interesses”. 312<br />

Por essas razões, o seu relatório recomen<strong>da</strong>va providências <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s eclesiástica e civil. Se<br />

Canudos era uma seita religiosa, um Estado <strong>de</strong>ntro do Estado, então ele recomen<strong>da</strong>va uma ação<br />

enérgica <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s: “O <strong>de</strong>sagravo <strong>da</strong> religião, o bem social e a digni<strong>da</strong><strong>de</strong> do po<strong>de</strong>r civil<br />

pe<strong>de</strong>m uma providência que restabeleça no povoado <strong>de</strong> Canudos o prestígio <strong>da</strong> lei, as garantias<br />

310 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5. Grifo do autor.<br />

311 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5.<br />

312 VASCONCELLOS, Pedro Lima, Terra <strong>da</strong>s promessas, Jerusalém maldita: memórias bíblicas sobre o Belo<br />

Monte..., p. 181.


do culto católico e os nossos foros <strong>de</strong> povo civilizado”. 313 Todo o texto do relatório estava eivado<br />

<strong>de</strong> um certo ódio do frei, revelando uma missão fracassa<strong>da</strong>.<br />

No seu relatório, mesmo que <strong>de</strong> forma secundária, o missionário capuchinho <strong>de</strong>ixou<br />

escapar informações que <strong>de</strong>punham a favor <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> do Belo Monte e revelam o apreço do<br />

Peregrino pelos representantes <strong>de</strong> Cristo, agindo em nome <strong>da</strong> Igreja. O Conselheiro não permitiu<br />

alguém do meio <strong>da</strong> turba, conforme expressão do missionário, interromper a pregação do frei<br />

capuchinho. 314 Este não percebeu confusão nas atribuições leigas do lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Canudos,<br />

respeitando o ministério or<strong>de</strong>nado: “Quanto a <strong>de</strong>veres e práticas religiosas, Antônio Conselheiro<br />

não se arroga nenhuma função sacerdotal”. 315 Cita a reação do Peregrino: “Esta vez ain<strong>da</strong> o velho<br />

impôs silêncio”. 316 E tranqüilizou o frei João Evangelista, abalado por sentir reação ao seu<br />

sermão: “mas também não estorvo a santa missão”. 317<br />

Nas entrelinhas do relatório, fica patente o <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> missão. O frei<br />

capuchinho não foi capaz <strong>de</strong> dissolver o povo. Ao contrário. O aspecto <strong>de</strong> fracasso <strong>da</strong> missão não<br />

apareceu claramente no relatório. Segundo relata, houve um inci<strong>de</strong>nte. João Aba<strong>de</strong> organizou um<br />

protesto geral contra os fra<strong>de</strong>s. Frei J. Evangelista, responsável pela missão, batizou o protesto <strong>de</strong><br />

estripitoso do grupo arregimentado. [...], erguendo vivas ao Bom Jesus, ao Divino Espírito<br />

Santo e a Antônio Conselheiro, e <strong>de</strong> lá vieram até nossa casa, <strong>da</strong>ndo foras aos<br />

republicanos, maçons e protestantes, e gritando que não precisavam <strong>de</strong> padres para se<br />

salvar, porque tinham seu Conselheiro. 318<br />

O frei João ficou ofendido: “mostrei que tinha sido aquilo um <strong>de</strong>sacato sacrilégio à<br />

religião e ao sagrado caráter sacerdotal e que, portanto, ponho termo à santa missão”. 319 A missão<br />

capuchinha foi interpreta<strong>da</strong> pela gente <strong>de</strong> Canudos como uma enaltecimento <strong>da</strong> República, que<br />

313 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 8.<br />

314 Cf. Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5.<br />

315 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5.<br />

316 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5.<br />

317 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5.<br />

318 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 6. Grifo do autor.<br />

319 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 6.<br />

128


em na<strong>da</strong> colaborava para melhorar a vi<strong>da</strong> do sertanejo, há tanto tempo abandonado à “própria<br />

sorte”. O frei não se <strong>de</strong>u por vencido e tentou encontrar populari<strong>da</strong><strong>de</strong> na <strong>de</strong>cisão:<br />

A suspensão repentina <strong>da</strong> santa missão produziu nos circunstantes o efeito <strong>de</strong> um raio,<br />

<strong>de</strong>ixando-os atônitos e impressionados; os que ain<strong>da</strong> não haviam se alistado na companhia<br />

do Bom Jesus, que não recebiam do Conselheiro a comi<strong>da</strong> e a roupa, e não <strong>de</strong>pendiam<br />

<strong>de</strong>le, portanto, <strong>de</strong>ram-me plena razão, e, reprovando formalmente os <strong>de</strong>svarios <strong>de</strong> tal<br />

gente, começaram a sair do povoado, já queixosos e completamente <strong>de</strong>siludidos <strong>da</strong>s<br />

virtu<strong>de</strong>s do Antônio Conselheiro. 320<br />

Não há registro histórico comprovando <strong>de</strong>sistências <strong>de</strong> canu<strong>de</strong>nses ou aplausos às atitu<strong>de</strong>s<br />

do missionário. Após a apresentação do relatório do frei João Evangelista, houve forte reação no<br />

parlamento fe<strong>de</strong>ral, pelo <strong>de</strong>putado Érico Coelho. Qualquer parlamentar, tendo acesso ao relatório<br />

do fra<strong>de</strong>, ficaria “surpreso com as expressões amorosas que ele prodigaliza à República [...] pois<br />

ao pretexto <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a or<strong>de</strong>m pública e as instituições republicanas, a intenção do clero foi<br />

mover a guerra religiosa”. 321<br />

Por outro lado, uma parte do clero do interior sempre apoiou Antônio Conselheiro,<br />

mesmo com orientações contrárias do Arcebispo Dom Jerônimo. Isso revela que Antônio<br />

Conselheiro e seu povo não eram o que as elites pintavam, não causava unanimi<strong>da</strong><strong>de</strong> contra, nem<br />

a favor. O vigário <strong>de</strong> Aporá, Pe. João Barbosa propôs ao Conselheiro a reza do terço, mas proibiu<br />

as prédicas. Ele se retirou para os limites distantes <strong>da</strong> Paróquia e pregava nos sítios e povoados.<br />

“Aí nenhum pároco lhe impe<strong>de</strong> a prédica. On<strong>de</strong> há povo, ele fala”. 322 O Cônego Agripino <strong>da</strong><br />

Silva Borges, vigário <strong>de</strong> Cumbe, tinha gran<strong>de</strong> apreço pelo Conselheiro. Era um dos maiores<br />

amigos <strong>de</strong>le. “Pe. Agripino <strong>de</strong>ixou o Conselheiro agir como quisesse, até o <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u na Câmara<br />

dos Deputados”. 323 Pela boa conduta do Peregrino, ficava até difícil o padre falar abertamente<br />

contra o Conselheiro. “Uns não se opuseram, até pediram a sua vin<strong>da</strong> à freguesia para<br />

320<br />

Relatório do Frei João Evangelista..., p. 7. grifo do autor.<br />

321<br />

VILLA, Marco Antônio, Canudos: o povo <strong>da</strong> terra..., p. 85 (apud MONTENEGRO, Abelardo, Antônio<br />

Conselheiro, Fortaleza, s. ed., 1954, p. 37).<br />

322<br />

OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: A mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 145.<br />

323<br />

OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: A mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 156.<br />

129


construções e missões. Em Iambupe, Pe. Ramos lhe prepara uma acolhi<strong>da</strong> calorosa, com incenso<br />

e repique <strong>de</strong> sinos”. 324 O povo distante <strong>da</strong> se<strong>de</strong> paroquial estava se<strong>de</strong>nto <strong>da</strong> mensagem cristã e<br />

vivia na mais absoluta ignorância religiosa, tornando-se “presa fácil” para o Conselheiro. Só que<br />

muitos párocos aproveitavam-se <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> o Conselheiro arrebanhar fiéis e o convi<strong>da</strong>vam<br />

para missões. O <strong>de</strong>sabafo parte do Pe. Passos, ao Monsenhor Santos Pereira: “Quase todos os<br />

párocos vizinhos o têm chamado instantemente para as suas freguesias”. 325<br />

O que mais incomo<strong>da</strong>va a muitos padres era o exercício do direito <strong>de</strong> Antônio<br />

Conselheiro predicar. Aliás, direito adquirido pelo batismo, que incorpora os fiéis ao múnus <strong>de</strong><br />

Cristo e à Igreja: “Estes fiéis pelo batismo foram incorporados a Cristo, constituídos no povo <strong>de</strong><br />

Deus e a seu modo feitos partícipes do múnus sacerdotal, profético e régio <strong>de</strong> Cristo, pelo que<br />

exercem sua parte na missão <strong>de</strong> todo o povo cristão na Igreja e no mundo”. 326 Com muita<br />

habili<strong>da</strong><strong>de</strong>, respeitando os limites <strong>da</strong>s li<strong>de</strong>ranças <strong>da</strong> Igreja <strong>de</strong> seu tempo, Antônio Conselheiro não<br />

fazia na<strong>da</strong> além do que é facultado ao cristão leigo. Algumas autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s eclesiásticas tiveram<br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s para o enten<strong>de</strong>r.<br />

Conclusão<br />

As prédicas <strong>de</strong> Antônio Conselheiro são fontes escritas <strong>de</strong> seu próprio punho e provas <strong>de</strong><br />

sua fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> aos ensinamentos <strong>da</strong> Igreja. Foi possível <strong>de</strong>monstrar interesses religiosos<br />

prevalecentes aos sociopolíticos, tão propalados por sociólogos e historiadores <strong>de</strong> interpretação<br />

marxista, na organização <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> solidária dos canu<strong>de</strong>nses.<br />

Partindo <strong>de</strong> sua formação religiosa, do envolvimento com li<strong>de</strong>ranças <strong>da</strong> Igreja, dos<br />

documentos usados por Antônio Conselheiro, foi possível esclarecer dúvi<strong>da</strong>s levanta<strong>da</strong>s por<br />

afirmações não <strong>de</strong>monstráveis ao longo <strong>da</strong> historiografia brasileira. Os escritos <strong>de</strong> Antônio<br />

324 OTTEN, Alexandre, Só <strong>de</strong>us é gran<strong>de</strong>: A mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 157.<br />

325 Cit in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: A mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 158.<br />

326 Gaudium et Spes, 3,1.<br />

130


Conselheiro partem <strong>de</strong> fontes religiosas, <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong>s por missionários, com o objetivo <strong>de</strong> continuar<br />

as missões, especialmente por li<strong>de</strong>ranças leigas. O lí<strong>de</strong>r maior <strong>de</strong> Canudos não teve acesso a<br />

documentos <strong>de</strong> natureza estritamente política, que pu<strong>de</strong>ssem provar que ele tivesse usado o<br />

religioso para colher objetivos políticos, como foi acusado. A tese <strong>de</strong> que ele usou a Utopia <strong>de</strong> T.<br />

More não tem sustentação histórica. Também não se sustenta a tese <strong>de</strong> que Antônio Conselheiro<br />

era um monarquista e tinha por objetivo organizar um movimento para <strong>de</strong>rrubar o regime<br />

republicano. Ao chegar a Canudos, teve uma vi<strong>da</strong> eminentemente liga<strong>da</strong> ao seu povo.<br />

Acompanhou a chega<strong>da</strong>, a instalação e o <strong>de</strong>senvolvimento do arraial, até a sua <strong>de</strong>struição.<br />

A análise <strong>da</strong>s prédicas <strong>de</strong>smentem também acusações <strong>de</strong> heterodoxia católica do Beato ou<br />

<strong>de</strong>sconhecimento dos principais ensinamentos <strong>da</strong> fé cristã e <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ração, frente às<br />

autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s eclesiásticas. Foi possível <strong>de</strong>monstrar, através <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> ponto dos manuscritos, <strong>de</strong> uma<br />

leitura sistemática do pensamento <strong>de</strong>le, a escolha <strong>de</strong> certos temas que garantiram soli<strong>de</strong>z nos<br />

fun<strong>da</strong>mentos bíblicos e teológicos <strong>de</strong> seu pensamento, ao longo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Canudos. O contato<br />

individual com os a<strong>de</strong>ptos do arraial, os encontros diários durante as orações comunitárias através<br />

<strong>da</strong>s prédicas, animavam os que chegavam a Canudos na esperança <strong>de</strong> dias melhores. Antônio<br />

Conselheiro preencheu lacunas <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong>s por <strong>de</strong>ficiências <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> Igreja e do Estado, nos<br />

recônditos mais isolados do interior do Nor<strong>de</strong>ste.<br />

O Beato soube se integrar, <strong>de</strong> maneira bastante singular, aos <strong>aspectos</strong> religiosos, aos<br />

sociopolíticos, garantindo à fé cristã um compromisso concreto na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Isso assegurou o<br />

crescimento tão acelerado <strong>da</strong> população do Belo Monte. O pensamento e a prática <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>,<br />

<strong>de</strong>senvolvidos ao longo <strong>da</strong> experiência do povo <strong>de</strong> Canudos, foram expressão <strong>da</strong> <strong>de</strong>ficiência do<br />

Estado e <strong>da</strong> impotência <strong>da</strong> Igreja, diante <strong>da</strong> extensão do Nor<strong>de</strong>ste e <strong>da</strong> escassez <strong>de</strong> sacerdotes à<br />

disposição <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s e lugarejos mais distantes <strong>da</strong>s se<strong>de</strong>s paroquiais.<br />

131


Portanto, o projeto religioso e a organização social <strong>de</strong> Canudos compatibilizaram-se com<br />

os anseios dos pobres excluídos por uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> justa e fraterna. A Bíblia, textos como A<br />

Missão Abrevia<strong>da</strong>, Horas Marianas, e outros ensinamentos <strong>da</strong> Igreja acompanharam Antônio<br />

Conselheiro, <strong>da</strong>ndo base <strong>de</strong> sustentação à Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos. O massacre <strong>de</strong> Canudos<br />

envergonhou o Estado brasileiro. Canudos tornou-se uma <strong>de</strong>sculpa para justificar a disputa<br />

política no início <strong>da</strong> cambaleante República, instituí<strong>da</strong> sem legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> e capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

encontrar respostas políticas para resolver os problemas sociais e econômicos. Da mesma forma,<br />

os argumentos do arcebispo <strong>da</strong> Bahia, especialmente o Relatório do frei João Evangelista <strong>de</strong><br />

Monte Marciano, sobre Antônio Conselheiro, não justificam a atitu<strong>de</strong> <strong>da</strong> Igreja naquela<br />

conjuntura. Finalmente, Canudos foi vítima <strong>de</strong> um setor <strong>da</strong> Igreja e <strong>de</strong> um Estado sem<br />

compromissos com os sertanejos <strong>de</strong>ser<strong>da</strong>dos e excluídos do “progresso”, trazido pelo novo<br />

regime republicano.<br />

Analisando-se os manuscritos <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, não restam dúvi<strong>da</strong>s do valor<br />

literário, histórico e teológico <strong>de</strong> um lí<strong>de</strong>r que continua sendo um enigma para a historiografia<br />

brasileira e um convite para os protagonistas <strong>da</strong> Igreja dos pobres nele se inspirarem. Impedindo<br />

o crescimento <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s republicanas e eclesiásticas cometeram<br />

um erro histórico. Tanto no ponto <strong>de</strong> vista do po<strong>de</strong>r republicano, quanto por parte <strong>da</strong> Igreja,<br />

faltou uma autocrítica diante <strong>da</strong> conjuntura política e eclesial do final do século XIX. Antônio<br />

Conselheiro não foi um herege, nem um fanático. Foi, sim, um cristão leigo que procurava<br />

respon<strong>de</strong>r ao chamado <strong>de</strong> Deus para uma missão junto aos nor<strong>de</strong>stinos, vítimas do <strong>de</strong>sacerto<br />

político <strong>da</strong> República e <strong>da</strong> ineficiência e falta <strong>de</strong> diálogo <strong>de</strong> setores <strong>da</strong> Igreja.O legado <strong>da</strong><br />

experiência <strong>de</strong> Canudos inspira atitu<strong>de</strong>s novas, diante <strong>da</strong> ação legítima <strong>de</strong> leigos conscientes,<br />

<strong>de</strong>sejosos <strong>de</strong> cumprir sua missão <strong>de</strong> batizados. Na vivência do povo <strong>de</strong> Canudos, haurimos<br />

132


elementos sólidos que estimulam uma Igreja a qual valoriza a ação dos leigos, acolhe os pobres e<br />

reconhece seus limites históricos. Aspectos que serão analisados na terceira parte <strong>de</strong>sta pesquisa.<br />

133


CAPÍTULO III<br />

ELEMENTOS ECLESIOLÓGICOS DA COMUNIDADE DE CANUDOS<br />

Após uma apresentação histórica sobre a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Antônio Conselheiro e seus seguidores, a<br />

<strong>de</strong>scrição do universo religioso do lí<strong>de</strong>r maior <strong>de</strong> Canudos, a partir <strong>de</strong> seus manuscritos, o<br />

objetivo <strong>de</strong>ste capítulo é pontuar os elementos <strong>eclesiológicos</strong> propriamente ditos <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Canudos. Antônio Conselheiro ensaiou uma experiência diferente e mais engaja<strong>da</strong> <strong>da</strong> Igreja<br />

Católica no final do século XIX. Sobre Canudos, muita coisa já foi dita. Antônio Conselheiro tem<br />

sido objeto <strong>de</strong> estudo por antropólogos, sociólogos, poetas e, mais recentemente por teólogos.<br />

A prática <strong>de</strong> Antônio Conselheiro repercutiu na Igreja do século XIX. Antônio<br />

Conselheiro fez sua experiência <strong>de</strong> fé <strong>de</strong>ntro e não fora <strong>da</strong> Igreja católica, mesmo não sendo<br />

compreendido por setores significativos <strong>de</strong>la. Por isso, neste capítulo serão analisados seus<br />

manuscritos, visando encontrar características <strong>da</strong> eclesiologia subjacente na Igreja <strong>de</strong> Canudos.<br />

Qual a novi<strong>da</strong><strong>de</strong> na experiência religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro? Por que o representante do<br />

Arcebispo <strong>da</strong> Bahia, frei João Evangelista, teve ação tão enérgica com o Conselheiro e seu povo?<br />

O que havia <strong>de</strong> “novo” na Igreja <strong>de</strong> Canudos? Canudos foi uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> eclesiológica nova? Em<br />

que sentido po<strong>de</strong>mos falar em nova eclesiologia no Belo Monte? Qual a relação do Peregrino<br />

com as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s religiosas? Antônio Conselheiro teria antecipado uma Igreja comprometi<strong>da</strong><br />

com os pobres, integrando fé e compromisso social? O que ele pensava sobre temas fun<strong>da</strong>mentais


135<br />

<strong>da</strong> teologia: Santíssima Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>, Jesus – sua morte na cruz, ressurreição – os sacramentos,<br />

salvação, os Dez Man<strong>da</strong>mentos, Igreja, sucessão apostólica? Canudos oferece várias lições para<br />

firmarmos o compromisso com a opção pelos pobres, tema tão caro a Jesus <strong>de</strong> Nazaré e colocado<br />

hoje como secundário pela teologia oficial. Procuramos respon<strong>de</strong>r, ao longo <strong>de</strong>ste terceiro<br />

capítulo, a to<strong>da</strong>s essas in<strong>da</strong>gações.<br />

3. 1- Natureza eclesial do movimento <strong>de</strong> Canudos<br />

Uma <strong>da</strong>s <strong>de</strong>ficiências <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem sociológica <strong>de</strong> Canudos foi não se analisar à exaustão<br />

os manuscritos <strong>de</strong> Antônio Conselheiro e a literatura religiosa por ele usa<strong>da</strong>. Caracterizar<br />

Canudos como um movimento eclesial é levar em consi<strong>de</strong>ração sua experiência <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> religiosa,<br />

os contatos diretos com Padre Ibiapina e Padre Cícero e o compromisso com as lutas dos<br />

sertanejos, especialmente a partir <strong>da</strong> primeira meta<strong>de</strong> do século XIX. Em Canudos, se<br />

concretizou uma experiência eclesial eminentemente leiga, sacramental, engaja<strong>da</strong>, comprometi<strong>da</strong>,<br />

capaz <strong>de</strong> harmonizar a vivência <strong>da</strong> fé e a transformação social entre os pobres. Essa Igreja<br />

animou a experiência do povo pobre. Antônio Conselheiro reuniu “um projeto on<strong>de</strong> são<br />

satisfeitos interesses divinos e humanos, necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s sobrenaturais e naturais. Não conhece a<br />

dicotomia entre Deus e homem, salvação eterna e bem-estar na terra, indivíduo e comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>”. 1<br />

Em Canudos, estabeleceu-se uma simbiose entre fé e vi<strong>da</strong>, doutrina e prática, amor a Deus e<br />

amor ao próximo (cf. Mt 22,37 e 22,39). A Igreja carecia <strong>de</strong>ssa síntese. No momento <strong>de</strong> conflito<br />

com o Estado, suas energias eram coloca<strong>da</strong>s na busca <strong>de</strong> superação <strong>da</strong> agitação. O Conselheiro<br />

preencheu um vazio <strong>de</strong>ixado pela Igreja oficial. Em Canudos, nas palavras <strong>de</strong> Otten, “O Projeto<br />

(<strong>de</strong> Deus) toma a sério a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> evangélica <strong>de</strong> que o Reino <strong>de</strong> Deus começa neste mundo, mas<br />

1 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 380.


não é <strong>de</strong>ste mundo. Desiludidos com o governo do homem sobre a terra, os cristãos pobres<br />

procuram um lugar on<strong>de</strong> possam viver sob a ‘Lei <strong>de</strong> Deus’”. 2<br />

Antônio Conselheiro parece não encontrar respostas para os volumosos problemas sociais<br />

na classe política; nem percebeu na forma como a Igreja Católica estava organiza<strong>da</strong>, a<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> para aten<strong>de</strong>r à <strong>de</strong>man<strong>da</strong> religiosa <strong>da</strong>s populações sertanejas espalha<strong>da</strong>s pelo interior<br />

do Nor<strong>de</strong>ste. Procurou organizar uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> para criar alternativas para que seus<br />

integrantes pu<strong>de</strong>ssem viver dignamente como filhos <strong>de</strong> Deus e encontrar meios para vivenciar o<br />

batismo cristão na quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> leigos, conhecedores <strong>de</strong> suas atribuições batismais. As atitu<strong>de</strong>s<br />

do Conselheiro emergiram do batismo cristão, mesmo que as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s eclesiásticas não o<br />

tenham percebido. O exemplo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> dos primeiros cristãos inspirou a nova comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

Conselheiro. Historiadores, sociólogos e, até mesmo teólogos, são unânimes na <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong><br />

semelhança <strong>de</strong> Canudos com as comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s primitivas. A força <strong>da</strong> experiência <strong>de</strong> Canudos<br />

vinha <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s primitivas, do carisma profético do Conselheiro, <strong>da</strong> leitura atenta <strong>da</strong><br />

palavra <strong>de</strong> Deus, dos sacramentos <strong>da</strong> Igreja, especialmente <strong>da</strong> Eucaristia, <strong>da</strong>s orações diárias na<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong> observância exigente dos Dez Man<strong>da</strong>mentos e <strong>da</strong> aju<strong>da</strong>s fraternas. Em sintonia<br />

com as aspirações do catolicismo popular, a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos sonhava por melhor<br />

convivência humana neste mundo, nos mol<strong>de</strong>s como viviam as comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s cristãs primitivas.<br />

A<strong>de</strong>mais, como ficou <strong>de</strong>monstrado por A. Otten: “Que este projeto está longe <strong>de</strong> ser suspeito <strong>de</strong><br />

sobrenaturalismo <strong>de</strong>sencarnado fica comprovado pelo entusiasmo com que os i<strong>de</strong>alistas<br />

socialistas recorrem a ele como mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> i<strong>de</strong>al”. 3 As necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s religiosas<br />

eram satisfeitas pela prática acentua<strong>da</strong> do catolicismo popular, <strong>de</strong> caráter leigo e <strong>de</strong>vocional. É<br />

uma Igreja leiga, que não rejeita o clero nem suas orientações, mesmo aparecendo eventualmente<br />

2 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 379.<br />

3 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 381.<br />

136


para as <strong>de</strong>sobrigas ou semanas missionárias. O dia-a-dia <strong>de</strong> Canudos era cui<strong>da</strong>do pelas li<strong>de</strong>ranças<br />

religiosas locais, especialmente pelo Conselheiro. A Igreja instituição estava distante <strong>da</strong>s<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s materiais e espirituais do povo <strong>de</strong> Canudos, que procurava respostas para suprir às<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s por iniciativas e criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> próprias. Cansado <strong>da</strong> ineficiência <strong>da</strong>s instituições, o<br />

povo foi se organizando como podia; vai criando um mo<strong>de</strong>lo social e eclesial diferentes <strong>da</strong>s<br />

existentes no século XIX. Não havia outro caminho. A <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> viver do povo <strong>de</strong> Canudos, que<br />

ia além <strong>da</strong>s organizações políticas, <strong>da</strong>s instituições do Estado republicano e <strong>da</strong> própria Igreja<br />

oficial merece algumas interrogações. Organizar uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> totalmente in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>da</strong><br />

organização política e eclesiástica não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um sonho e uma ilusão.<br />

Um sonho, porque o Estado, manipulado e apropriado pelas oligarquias não inspirava<br />

confiança. Fazia-se urgente a busca <strong>de</strong> alternativas para manter a peleja pela vi<strong>da</strong>. Aliás, o povo<br />

sertanejo vivia, por muito tempo, à revelia do Estado e a Igreja não conseguia aten<strong>de</strong>r às<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do povo nas comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s e lugarejos, nos rincões sertanejos. Uma alternativa ao<br />

político e ao religioso vigentes era inevitável.<br />

Uma ilusão, porque seria possível sustentar a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos, completamente<br />

<strong>de</strong>svincula<strong>da</strong> ou in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> organização do Estado republicano? A fé cristã po<strong>de</strong> ter a<br />

pretensão <strong>de</strong> ser a única resposta para os problemas sociais e políticos? O cristianismo po<strong>de</strong> ter a<br />

pretensão <strong>de</strong> açambarcar a estruturação política e partidária <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> humana e se<br />

apresentar como única via? O religioso po<strong>de</strong> se reduzir ao sociopolítico? Mesmo constatando o<br />

crescimento <strong>de</strong> Canudos, sua organização interna, a estruturação do atendimento religioso<br />

dispensado pelo Conselheiro, a presença esporádica do sacerdote na região, era possível sustentar<br />

por muito tempo aquela experiência? Ou ain<strong>da</strong>, a organização <strong>de</strong> Canudos teria encontrado o<br />

ponto <strong>de</strong> equilíbrio entre fé e o compromisso com a prática social do cristianismo, <strong>de</strong>scobrindo o<br />

segredo <strong>da</strong> vivência <strong>da</strong> fé em comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>?<br />

137


A Igreja, historicamente, vem tendo dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> para harmonizar, <strong>de</strong> forma duradoura, a<br />

fé e o compromisso com as transformações políticas. Historicamente, ou ela fica indiferente ao<br />

aspecto político transformador <strong>da</strong> fé, ou confun<strong>de</strong> o religioso com o sociopolítico. J. Comblin<br />

acredita que a “Igreja tem um papel limitado nas transformações do mundo. Esse papel, no<br />

entanto, po<strong>de</strong> ser eficaz e significativo. Po<strong>de</strong> servir eficazmente ao advento do reino <strong>de</strong> Deus.<br />

Po<strong>de</strong> também passar ao lado <strong>de</strong>le e per<strong>de</strong>r chances históricas”. 4 Canudos, talvez, não tenha ficado<br />

imune a esse dilema. Não se po<strong>de</strong> prever qual teria sido o <strong>de</strong>sfecho <strong>de</strong> Canudos, se não tivesse<br />

havido a violência do Estado brasileiro e, portanto, sua <strong>de</strong>struição. Também não <strong>de</strong>vemos<br />

minimizar a experiência dos sertanejos, nem no aspecto político, nem no militar e nem no<br />

eclesiológico. Não há dúvi<strong>da</strong>s. Canudos <strong>de</strong>ixou-nos um legado, mas não é um tema esgotado.<br />

Que a experiência popular <strong>da</strong> Igreja em Canudos não foi bem aceita pela Arcebispo <strong>da</strong><br />

Bahia, é um fato. O relatório <strong>de</strong> frei Evangelista comprova a intenção oficial: man<strong>da</strong>r dispersar os<br />

moradores do acampamento. O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Igreja mais circular e participativo do Belo Monte,<br />

apontava para uma situação nova na qual os mo<strong>de</strong>los anteriores já não serviam para a conjuntura<br />

<strong>de</strong> então. As li<strong>de</strong>ranças eclesiásticas <strong>de</strong>moraram a enten<strong>de</strong>r o apelo para uma nova conjuntura.<br />

Em Canudos, além <strong>de</strong> alternativa ao mo<strong>de</strong>lo político, nascia um novo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Igreja,<br />

claramente percebido pelo frei João Evangelista, pelo relatório apresentado ao Arcebispo <strong>da</strong><br />

Bahia. Antônio Conselheiro não tinha a intenção <strong>de</strong> contrariar a or<strong>de</strong>m vigente e tampouco as<br />

instituições republicanas, aliás, por muito tempo distantes do homem do campo. 5 Ele não possuía<br />

tal conhecimento, nem capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> teórica para implantar um novo mo<strong>de</strong>lo eclesiológico, que<br />

pu<strong>de</strong>sse se contrapor ao oficial. Não constituía sua intenção. Sua vi<strong>da</strong> foi <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> aos problemas<br />

4 COMBLIN, José, Cristãos rumo ao século XXI: nova caminha<strong>da</strong> <strong>de</strong> libertação, São Paulo: Paulus, 1996, p. 17.<br />

5 A intenção do Frei João encontra-se logo no primeiro parágrafo <strong>de</strong> seu relatório: “[...] a fim <strong>de</strong> procurar pela<br />

pregação <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> evangélica, e, apelando para os sentimentos <strong>da</strong> fé católica que esse indivíduo (Conselheiro) diz<br />

professar, chamá-lo e a seus infelizes asseclas aos <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> católicos e <strong>de</strong> ci<strong>da</strong>dãos, que <strong>de</strong> todo esqueceram e<br />

violam habitualmente com as práticas e as mais extravagantes e con<strong>de</strong>náveis, ofen<strong>de</strong>ndo a religião e perturbando a<br />

or<strong>de</strong>m pública”. Relatório do Frei João Evangelista..., p. 3.<br />

138


139<br />

<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, aliás, não poucos. O frei teve um conceito a respeito <strong>da</strong> fé cristã e a or<strong>de</strong>m<br />

estabeleci<strong>da</strong> bastante diferente dos membros <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos. O Conselheiro foi<br />

acusado por setores significativos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>srespeitar a religião e a or<strong>de</strong>m pública. Na<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, Antônio Conselheiro contrariava fortes interesses. Canudos foi constituído <strong>de</strong> um povo<br />

or<strong>de</strong>iro, sempre guiado pelos ensinamentos <strong>da</strong> fé cristã. Muito mais que Antônio Conselheiro,<br />

ficaram preocupa<strong>da</strong>s as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s religiosas, políticas e as oligarquias rurais <strong>da</strong> região. O<br />

acampamento <strong>de</strong> Canudos teve um papel <strong>de</strong>cisivo na subsistência do povo. Foi o que<br />

<strong>de</strong>monstrou-se em todo o capítulo anterior.<br />

3.2- A Eclesiologia subjacente em Canudos<br />

Antes <strong>de</strong> um aprofun<strong>da</strong>mento maior sobre o mo<strong>de</strong>lo eclesiológico presente em Canudos,<br />

fazem-se necessárias algumas consi<strong>de</strong>rações sobre eclesiologia, a fim <strong>de</strong> melhor se enten<strong>de</strong>r que<br />

tipo <strong>de</strong> experiência <strong>de</strong> Igreja aconteceu em Canudos. A Igreja nunca foi uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

monolítica. Des<strong>de</strong> o seu início, já no mundo do Primeiro Testamento, entre os Padres Apostólicos<br />

e os Padres <strong>da</strong> Igreja, haviam experiências eclesiais bastante diversas. Sempre houve um veio <strong>da</strong><br />

Igreja dos pobres, ao longo <strong>da</strong> vivência <strong>da</strong> fé. A tensão na Igreja entre carisma e po<strong>de</strong>r,<br />

comunhão e participação, fé e vi<strong>da</strong>, concentração <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e abertura para investimento em<br />

li<strong>de</strong>ranças leigas vem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as suas origens. A Igreja Católica vem tentando harmonizar carisma<br />

e po<strong>de</strong>r, comunhão e participação, dimensão hierárquica e ministério leigo, quase sempre<br />

pressiona<strong>da</strong> pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> os leigos vivenciarem o batismo, no exercício <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong><br />

própria instituição. O povo vem procurando <strong>de</strong> forma criativa conviver com o clero, cuja<br />

autori<strong>da</strong><strong>de</strong> muitas vezes afugenta iniciativas <strong>de</strong> uma vivência mais ministerial e circular na


comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> eclesial. 6 140<br />

Não poucas são as tensões. Mesmo assim, há possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> o povo<br />

resistir na caminha<strong>da</strong>.<br />

No início do cristianismo, on<strong>de</strong> o Conselheiro buscou inspiração, o carisma prevalecia aos<br />

<strong>aspectos</strong> mais institucionais. Ele procurava envolver os leigos na organização e <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> sua<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, contrariando, <strong>de</strong> certa maneira, o mo<strong>de</strong>lo eclesiológico do seu tempo. Em Canudos,<br />

a participação era regra. Conselheiro se <strong>de</strong>fronta com um mo<strong>de</strong>lo eclesial centrado no papa, em<br />

Roma, no arcebispo, na capital <strong>da</strong> Bahia, e no pároco, na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do interior. A dinâmica <strong>da</strong> Igreja<br />

<strong>de</strong> Canudos não foi uma invenção <strong>de</strong> seu lí<strong>de</strong>r. Encontra respaldo na Bíblia Sagra<strong>da</strong> e na<br />

Tradição eclesial, conforme veremos a seguir.<br />

Na concepção do teólogo Comblin, a Igreja quer <strong>da</strong>r a impressão, pela literatura “oficial”<br />

(documentos magisteriais, Direito Canônico, história <strong>da</strong> Igreja e interpretação teológica oficial)<br />

“<strong>de</strong> que a eclesiologia vertical, que se chama também hierarcologia, cresceu harmoniosamente<br />

com os aplausos do povo católico e sempre prevaleceu, vencendo to<strong>da</strong>s as heresias que a<br />

ameaçavam”. 7 Ao tomar os documentos magisteriais, a primeira impressão é que existe uma<br />

única eclesiologia ortodoxa possível. “Fora <strong>de</strong>la somente havia as heresias. Não foi bem assim.<br />

Não se po<strong>de</strong> dizer que a hierarcologia tenha sido sempre doutrina unanimemente aceita”. 8 A<br />

“Igreja mais popular”, ministerial e leiga sempre sobreviveu ao longo <strong>da</strong> história, em muitos<br />

momentos à revelia <strong>da</strong> hierarquia ou com apoio <strong>de</strong> parte <strong>de</strong>la:<br />

Durante 10 séculos tivemos, por conseguinte, uma Igreja clerical apoia<strong>da</strong> pelas forças<br />

dominantes <strong>da</strong> cristan<strong>da</strong><strong>de</strong>, o império, as monarquias, o feu<strong>da</strong>lismo, e, por outro lado, uma<br />

Igreja mais popular, <strong>da</strong> base, sem apoios. Esta não era necessariamente anticlerical. [...] O<br />

momento culminante no antagonismo ocorreu no século XIX – e esse antagonismo<br />

diminuiu no século XX não porque aja mais paz, mas é porque a Igreja está muito<br />

enfraqueci<strong>da</strong>, estando na <strong>de</strong>fensiva, tratando <strong>de</strong> salvar o que ain<strong>da</strong> po<strong>de</strong> salvar. 9<br />

6 Uma análise bastante crítica <strong>da</strong> Igreja, a partir dos pobres foi feita por Leonardo Boff, que lhe custou um processo<br />

na Sagra<strong>da</strong> Congregação para a doutrina <strong>da</strong> Fé. Cf. BOFF, Leonardo, Igreja: carisma e po<strong>de</strong>r: ensaio <strong>de</strong><br />

eclesiologia militante, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 2005. Os documentos do processo sobre o referido livro aparecem<br />

num apêndice, sob o título: O processo doutrinário a Igreja: Carisma e po<strong>de</strong>r, p. 331-446.<br />

7 COMBLIN, José, O povo <strong>de</strong> Deus, São Paulo: Paulus, 2002, p. 58.<br />

8 COMBLIN, José, O povo <strong>de</strong> Deus..., p. 58.<br />

9 COMBLIN, José, O povo <strong>de</strong> Deus..., p. 59.


141<br />

Conselheiro viveu no auge <strong>da</strong> hierarcologia <strong>da</strong> Igreja, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>a<strong>da</strong> no Brasil pelo<br />

processo <strong>de</strong> romanização, <strong>da</strong> “moralização” do clero e <strong>da</strong> centralização dos “bens” religiosos em<br />

<strong>de</strong>trimento <strong>da</strong> pulverização <strong>da</strong>s experiências religiosas liga<strong>da</strong>s ao catolicismo popular <strong>de</strong> tradição<br />

portuguesa e caráter leigo, etc. 10 Antônio Conselheiro viveu sob o pontificado <strong>de</strong> Leão XIII (papa<br />

<strong>de</strong> 20 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1878 a 20 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1903). Consi<strong>de</strong>rado o primeiro dos papas mo<strong>de</strong>rnos a<br />

estimular o diálogo <strong>da</strong> Igreja com o mundo mo<strong>de</strong>rno, Leão XIII criou uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira revolução<br />

na área social ao publicar a Rerum novarum (em 1901), após a <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> Canudos. O povo <strong>de</strong><br />

Canudos não se beneficiou <strong>da</strong>s idéias novas <strong>de</strong> Leão XIII. Passaram déca<strong>da</strong>s para que chegassem<br />

ao Brasil as idéias papais ou conciliares. Prevalecia o esforço <strong>da</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong> eclesiástica para<br />

controlar as manifestações do catolicismo popular no sertão nor<strong>de</strong>stino. Apesar do esforço, o<br />

povo, orientado por seus lí<strong>de</strong>res leigos (beatos e <strong>conselheiro</strong>s) continuava com inércia própria,<br />

com uma prática eclesial batiza<strong>da</strong> por Comblin <strong>de</strong> “Igreja mais popular”. 11<br />

Esta “Igreja mais popular” prevaleceu em Canudos. Não era uma Igreja paralela, mas a<br />

possível na atual conjuntura eclesial. Foi naquela que o povo encontrou orientação segura para<br />

enfrentar às intempéries <strong>da</strong> época. Pelo fato <strong>de</strong> usar intensamente a Bíblia, conhecer textos dos<br />

Santos Padres e outras literaturas religiosas, Antônio Conselheiro percebeu que era possível, pela<br />

tradição eclesial, organizar uma Igreja mais popular, leiga, comprometi<strong>da</strong> com os pobres, com<br />

10 A religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> popular e a romanização foram amplamente abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s no capítulo I. Porém, para um maior<br />

aprofun<strong>da</strong>mento, cf.: SUESS, Paulo Guenter, O catolicismo popular no Brasil: tipologia <strong>de</strong> uma religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

vivi<strong>da</strong>, São Paulo: Loyola, 1979. O Instituto Nacional <strong>de</strong> Pastoral, a pedido <strong>da</strong> CNBB, publicou em Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong><br />

Teologia e Pastoral, o resultado <strong>da</strong> reflexão <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> teólogos e outros especialistas sobre Evangelização e<br />

comportamento religioso. Cf. Evangelização e comportamento religioso popular, Petrópolis: 1978, n. 8. No artigo<br />

<strong>de</strong> Pedro Ribeiro (O catolicismo do povo), o autor apresenta um ensaio <strong>de</strong> interpretação sociológica do catolicismo<br />

popular. Cf. p. 10-40. O texto <strong>de</strong> Edênio Valle (Psicologia e religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> popular: pistas para uma reflexão<br />

pastoral) abor<strong>da</strong> o mesmo tema, a partir do viés psicológico, conforme sugere o título do artigo. Cf. p. 41-70. E,<br />

finalmente, o artigo <strong>de</strong> Alberto Antoniazzi (Evangelização e cultura), introduz-nos no estudo teológico <strong>da</strong>s relações<br />

entre Evangelização e cultura. Cf. p. 71-102. Uma outra publicação abor<strong>da</strong> exclusivamente os <strong>aspectos</strong> históricos do<br />

catolicismo popular no Brasil. Dividido em oito partes: I- Cruzes e cruzeiros; II- Oratórios; III- Ermi<strong>da</strong>s e<br />

capelinhas; IV- Santuários; V- Romarias; VI- Confrarias; VII- Festas; VIII Procissões. O texto documenta a riqueza<br />

simbólica no mundo popular do povo simples. Cf. AZZI, Riolando, O Catolicismo popular no Brasil, Petrópolis:<br />

Vozes, 1987.<br />

11 COMBLIN, José, O povo <strong>de</strong> Deus..., p. 59.


força para combater os males causados pela República, “ludíbrio <strong>da</strong> tirania dos fiéis.” 12 A Bíblia,<br />

portanto, foi seu primeiro manual <strong>de</strong> inspiração.<br />

Importa vasculhar na Bíblia e na tradição eclesial os “vestígios” <strong>de</strong>ssa “Igreja mais<br />

popular” no dizer <strong>de</strong> Comblin, abraça<strong>da</strong> por Antônio Conselheiro e sua gente, não menos<br />

importante na vivência eclesial que a Igreja clerical.<br />

A palavra grega ekklesia <strong>de</strong>signa a assembléia do povo como força política. Paulo usou o<br />

termo ekklesia no Segundo Testamento, que, embora assinalasse uma continui<strong>da</strong><strong>de</strong> entre Israel e<br />

o povo cristão, era muito apropriado para receber um conteúdo novo. Reunidos em assembléia<br />

(ou Igreja), os primeiros cristãos já experimentavam divisões (cf. 1Cor 11,18). A nova<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus, <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> também <strong>de</strong> Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> Escatológica <strong>de</strong> Deus ou Igreja, cujo<br />

alicerce é Pedro: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra eu edificarei a minha Igreja” (Mt 16,18), foi<br />

traduzi<strong>da</strong> pela Septuaginta como ekklesia. Em João, a Igreja aparece com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> “reunir<br />

na uni<strong>da</strong><strong>de</strong> os filhos <strong>de</strong> Deus que estão dispersos” (Jo 11,52). Nos Atos dos Apóstolos, a Igreja é<br />

a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> dos que louvam a Deus e se beneficiam <strong>da</strong> salvação em Jesus Cristo (cf. At 2,47).<br />

Paulo a chama <strong>de</strong> “nós, os alvos” (1Cor 1,18) e prepara<strong>da</strong> por Deus “antes <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção do mundo<br />

para sermos santos e irrepreensíveis sob o seu olhar, no amor”(Ef 1,4). Embora os textos do<br />

Primeiro Testamento não tragam um tratado exaustivo sobre eclesiologia, fica claro que a Igreja<br />

nasce na Páscoa <strong>de</strong> Cristo, ao passar <strong>de</strong>ste mundo ao Pai (cf. Jo 13,1), cujo corpo eclesial só se<br />

torna visível a partir <strong>da</strong> efusão do Espírito Santo, em Pentecostes (cf. At 2,1-13). São aceitos na<br />

Igreja, os que acolhem a palavra dos Apóstolos e recebem o batismo. Nos Atos dos Apóstolos já<br />

aparece uma certa regra <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> entre os membros <strong>da</strong> Igreja. Os que a<strong>de</strong>riam à fé, “eram assíduos<br />

ao ensinamento dos Apóstolos e à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações” (At 2,42).<br />

12 MAC, p. 562.<br />

142


Nos Atos dos Apóstolos, o <strong>de</strong>staque recai sobre o número <strong>de</strong> fiéis que aumentava a ca<strong>da</strong><br />

dia, permanecendo em comunhão. “Todos unidos, unânimes, eram assíduos à oração, com<br />

algumas mulheres, entre as quais Maria, a mãe <strong>de</strong> Jesus, e com os irmãos <strong>de</strong> Jesus” (At 1, 14).<br />

Logo em segui<strong>da</strong>, foram apresentados José e Matias. “Fez-se o sorteio e a sorte caiu sobre<br />

Matias, que foi <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então incluído entre os onze apóstolos (cf. At 1, 16). A Igreja <strong>de</strong> Jerusalém<br />

já reunia “um grupo <strong>de</strong> mais ou menos cento e vinte pessoas” (At 1, 15), chegando a 3 000 (cf. At<br />

2,41). Após a explosão <strong>de</strong> Pentecostes (cf. At 2,1-13), o número dos fiéis crescia repentinamente:<br />

“Os que acolheram a palavra <strong>de</strong> Pedro receberam o batismo. E neste dia uniram-se a eles cerca <strong>de</strong><br />

três mil pessoas” (At 2,42) e, mais ain<strong>da</strong>: “muitos haviam abraçado a fé; o número <strong>de</strong>les se<br />

elevava a cerca <strong>de</strong> cinco mil pessoas”(At 4,4). A prática <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> cristã<br />

proporcionava novas a<strong>de</strong>sões: “E a ca<strong>da</strong> dia o Senhor acrescentava à comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> outras pessoas<br />

que iam aceitando a salvação” (At 2, 47).<br />

O termo mais importante e freqüente no Segundo Testamento para <strong>de</strong>signar Igreja é<br />

ekklesia, sempre com dimensões comunitária e participativa. Nesse contexto, Álvaro Barreiro<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> pelo menos três níveis <strong>de</strong> significados em ekklesia: “É usa<strong>da</strong> para <strong>de</strong>signar ora a<br />

assembléia cultual, ora a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> local ou comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s locais, ora a Igreja universal”. 13<br />

A reflexão eclesiológica aparece embrionariamente nos Padres Apostólicos, sempre com a<br />

presença <strong>da</strong> “Igreja mais popular”. Referindo-se à Igreja, Inácio <strong>de</strong> Antioquia <strong>de</strong>staca o aspecto<br />

cósmico, que abrange o céu e a terra; 14 Hipólito <strong>de</strong> Roma preconiza uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> santa, que<br />

aponta para uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> escatológica; 15 Irineu <strong>de</strong> Lião fala <strong>da</strong> Igreja fun<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo Espírito<br />

Santo, do qual <strong>de</strong>rivam suas marcas; 16 Cipriano <strong>de</strong> Cartago justifica a existência <strong>da</strong> Igreja em<br />

função <strong>da</strong> salvação, com forte acento na autori<strong>da</strong><strong>de</strong> do bispo diocesano, legítimo sucessor dos<br />

13 BARREIRO, Álvaro, Igreja, povo santo e pecador, São Paulo: Loyola, 2001, p. 53.<br />

14 Cf. INÁCIO DE ANTIOQUIA, Carta aos Efésios, 9,1; Carta aos Esmirniotas, 7,2.<br />

15 Cf. HIPÒLITO DE ROMA, Comentário <strong>de</strong> Daniel, 1,14-18.<br />

16 Cf. IRINEU DE LIÃO, Contra as heresias, III, 24.<br />

143


apóstolos. 17 144<br />

Somente com Santo Agostinho aparece a distinção entre Igreja visível e Igreja<br />

invisível. 18<br />

Essa época foi marca<strong>da</strong> por diversas eclesiologias, revelando estruturas eclesiais varia<strong>da</strong>s.<br />

Nem mesmo os concílios dos primeiros séculos, fixaram <strong>de</strong>finitivamente uma ou outra<br />

eclesiologia. No Símbolo <strong>de</strong> Constantinopla, no ano <strong>de</strong> 382, os Padres Conciliares procuravam<br />

uma forma <strong>de</strong> contribuir para chegar à uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Igreja, ao reconhecerem a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s<br />

experiências. Professaram a fé na Igreja una, santa, católica e apostólica, como proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

essenciais <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira Igreja <strong>de</strong> Cristo. 19 O reconhecimento do pluralismo eclesial não<br />

dificultou a riqueza dos diversos elementos específicos em ca<strong>da</strong> Igreja particular. Ao contrário,<br />

trouxe riqueza <strong>de</strong> experiências e <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> se construir permanentemente a comunhão. O<br />

fun<strong>da</strong>mental para todos sempre foi viver a apostolici<strong>da</strong><strong>de</strong>, a comunhão com as outras Igrejas e<br />

celebrar os sacramentos, especialmente a eucaristia.<br />

No Oriente, a reflexão eclesiológica mais sistemática surgiu com a unificação do Direito<br />

Canônico por Graciano, século XII, quando apareceram os primeiros tratados teológicos<br />

completos consagrados à eclesiologia. João <strong>de</strong> Torquema<strong>da</strong>, dominicano espanhol, se <strong>de</strong>stacou<br />

com a publicação <strong>da</strong> Suma <strong>de</strong> ecclesia, em 1450. Posteriormente, as eclesiologias <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s<br />

pela Reforma trazem um viés mais dogmático e catequético, polariza<strong>da</strong> com os reformadores.<br />

Até Santo Tomás, só havia fragmentos ou pequenas reflexões sobre a Igreja, num viés<br />

mais apologético. A eclesiologia só aparece mesmo como um tratado autônomo na Teologia, a<br />

partir do século XVI. Até então, prevaleciam os <strong>aspectos</strong> <strong>de</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> perfeita e infalível. Aos<br />

poucos, a eclesiologia foi ocupando seu espaço no conjunto maior <strong>da</strong> teologia dogmática. São<br />

17 Cf. CIPRIANO DE CARTAGO, De ecclesie catholicae unitate, 6 e 17.<br />

18 Cf. AGOSTINHO DE IPONA, De civitate Dei, 11-22.<br />

19 Cf. Denzinger-Schönmetzer (=DS), 86; DS, 150.


145<br />

Francisco <strong>de</strong> Assis e Santo Anselmo representaram o veio <strong>da</strong> “Igreja mais popular” e próxima ao<br />

povo, na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média.<br />

Depois do século XVII, foi-se <strong>de</strong>senvolvendo uma visão eclesiológica, apontando para<br />

uma Igreja como instrumento <strong>de</strong> transmissão <strong>da</strong> revelação divina. Os temas em <strong>de</strong>staque foram a<br />

origem <strong>da</strong> Igreja, “sua natureza, suas estruturas e sua organização, suas tarefas e sua missão, suas<br />

mediações, seus sacramentos e seus ministérios, seu culto, sua liturgia, sua pregação sua pie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e seu futuro (escatologia)”. 20<br />

Ao longo <strong>da</strong> história <strong>da</strong> Igreja, não faltaram os que arriscassem <strong>de</strong>finições apressa<strong>da</strong>s<br />

sobre ela. Belarmino, num contexto <strong>de</strong> combate ao protestantismo, motivado pelo clima <strong>de</strong><br />

polêmica, marcou época com sua clássica <strong>de</strong>finição: “A Igreja é uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> composta <strong>de</strong><br />

homens unidos entre si pela profissão <strong>de</strong> uma única e idêntica fé cristã e pela comunhão aos<br />

mesmos sacramentos, sob a jurisdição <strong>de</strong> pastores legítimos, sobretudo do Pontífice romano”. 21<br />

Ressaltando, ain<strong>da</strong>, o aspecto jurídico e a <strong>da</strong> presença marcante <strong>da</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong>, Pio XII não me<strong>de</strong><br />

as palavras: “Como membros <strong>da</strong> Igreja contam-se realmente só aqueles que receberam o lavacro<br />

<strong>da</strong> regeneração e professam a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira fé, nem se separam voluntariamente do organismo do<br />

corpo, ou não foram <strong>de</strong>le cortados pela legítima autori<strong>da</strong><strong>de</strong> em razão <strong>de</strong> culpa gravíssima”. 22 Essa<br />

visão juridicista <strong>da</strong> Igreja, presente nos conceitos <strong>de</strong> Belarmino e Pio XII, marcou profun<strong>da</strong>mente<br />

os estudos <strong>eclesiológicos</strong>.<br />

O Concílio Vaticano I teve a intenção <strong>de</strong> apresentar uma eclesiologia única e global. Em<br />

meio às polêmicas, foi possível aprovar o capítulo IX <strong>de</strong> seu Shema <strong>de</strong> Ecclesia. A constituição<br />

20<br />

ECLESIOLOGIA, in: LACOSTE, Jean-Yves, Dicionário crítico <strong>de</strong> teologia, São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004,<br />

p. 590.<br />

21<br />

Cit in: MONDIN, Batista, As novas eclesiologias: uma imagem atual <strong>da</strong> Igreja, São Paulo: Paulinas, 1984, p.<br />

15.<br />

22<br />

PIO XII, Papa, Mystici Corporis, n. 21. Um excelente comentário sobre esse conceito <strong>de</strong> Pio XII, foi feito<br />

amplamente por Libanio, no contexto <strong>de</strong> uma análise dos critérios para se conhecer a autentici<strong>da</strong><strong>de</strong> do catolicismo<br />

popular ou oficial. Cf. LIBANIO, João Batista, Critérios <strong>de</strong> autentici<strong>da</strong><strong>de</strong> do catolicismo, in: Catolicismo popular,<br />

Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis: Vozes, v. XXXVI, 1976, p. 43-81.


dogmática Pastor Aeternus recebeu aprovação em 1870. 23 146<br />

Juntamente com os movimentos<br />

litúrgico e bíblico, duas encíclicas marcaram o <strong>de</strong>bate eclesiológico no alvorecer do Concílio<br />

Vaticano II: Satis cognitum <strong>de</strong> Leão XIII (1896) 24 e a Mystici Corporis, <strong>de</strong> Pio XII (1943).<br />

Estava feito o caminho para o Vaticano II apresentar suas constituições, <strong>de</strong>cretos e<br />

<strong>de</strong>clarações. Esse Concílio propôs o caminho para a elaboração do primeiro tratado, no campo <strong>da</strong><br />

teologia católica sobre eclesiologia, autorizado pelo magistério: a constituição dogmática sobre a<br />

Igreja, Lumen Gentium. 25 Na tentativa <strong>de</strong> melhor esclarecer o papel <strong>da</strong> Igreja como mistério e<br />

sinal <strong>de</strong> salvação, os Padres Conciliares recorreram a imagens muito concretas <strong>da</strong> Igreja, tira<strong>da</strong>s<br />

<strong>da</strong> palavra <strong>de</strong> Deus e trabalha<strong>da</strong>s pelos Santos Padres. A Igreja aparece como “o povo <strong>de</strong> Deus na<br />

uni<strong>da</strong><strong>de</strong> do Pai, e do Filho e do Espírito Santo”, 26 é redil, sendo Cristo a única e necessária porta<br />

(Jo 10,1-10)”; a grei <strong>da</strong> qual Deus é o próprio pastor (cf. Is 40,11; Ez 34,11); a lavoura ou o<br />

campo <strong>de</strong> Deus (1Cor 3,9); construção <strong>de</strong> Deus (1Cor 3,9); casa <strong>de</strong> Deus na qual mora sua<br />

família, templo santo; Jerusalém celeste e nossa Mãe (Gal 4,26; cf. Apoc 12,17); esposa<br />

imacula<strong>da</strong> do Cor<strong>de</strong>iro imaculado (Apoc 19,7; 21,2,9; 22,17). 27 e “Corpo Místico <strong>de</strong> Cristo”. 28<br />

No primeiro capítulo <strong>da</strong> Constituição Dogmática Lumen Gentium, 29 o Concílio apresentou<br />

a Igreja, por um lado, como um mistério que não po<strong>de</strong> ser esgotado por conceito algum. Mas, por<br />

outro, diante <strong>da</strong>s in<strong>da</strong>gações e cobranças do mundo mo<strong>de</strong>rno, os Padres Conciliares retomaram<br />

noções eclesiológicas <strong>da</strong> primitiva Igreja, apresenta<strong>da</strong>s como comunhão e sacramento: “a Igreja é<br />

em Cristo como que o sacramento ou o sinal e instrumento <strong>da</strong> íntima união com Deus e <strong>da</strong><br />

uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> todo o gênero humano”. 30 Para superar a abor<strong>da</strong>gem excessivamente jurídica, o<br />

23 DS, 3.050.<br />

24 Cf. DS, p. 3.300.<br />

25 Cf. ECLESIOLOGIA, LACOSTE, Jean-Yves, Dicionário crítico <strong>de</strong> teologia..., p. 590.<br />

26 LG, 4.<br />

27 Cf. LG, 6.<br />

28 LG, 7.<br />

29 Cf. Cf. LG, 1-8.<br />

30 LG, 1.


147<br />

Concílio apresentou dois princípios norteadores no contexto <strong>da</strong> construção <strong>da</strong> Igreja comunhão:<br />

a) O cristocentrismo e as dimensões sacramental e missionária <strong>da</strong> Igreja; b) A relação <strong>da</strong> Igreja<br />

com o mistério trinitário, com uma reflexão <strong>da</strong> Igreja enquanto mistério, segundo a vonta<strong>de</strong><br />

salvífica <strong>de</strong> Deus. 31 Com essa atitu<strong>de</strong> do Concílio, a<br />

eclesiologia supera o âmbito imediato do direito para situar-se no âmbito <strong>da</strong> teologia. No<br />

horizonte mais amplo do mistério trinitário, fora <strong>da</strong>s relações imediatas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r,<br />

explicita<strong>da</strong>s justamente pelo direito, é que se po<strong>de</strong> ver sob luz nova a relação <strong>da</strong> Igreja<br />

com o mundo, a relação entre hierarquia e fiéis e a relação entre a dimensão universal <strong>da</strong><br />

Igreja e sua realização local. 32<br />

Há um <strong>de</strong>slocamento <strong>da</strong> Igreja centra<strong>da</strong> na hierarquia, no jurídico e no po<strong>de</strong>r para acentuar<br />

uma Igreja Povo <strong>de</strong> Deus, mais circular, on<strong>de</strong> os ministérios ocupam lugar, não <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, mas <strong>de</strong><br />

serviço a to<strong>da</strong> a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. O Concílio Vaticano II, especialmente a Lumen Gentium, 33 abriu<br />

um enorme leque na compreensão <strong>da</strong> Igreja, na missão dos leigos e no papel dos ministérios <strong>de</strong><br />

serviço, no interior <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> eclesial. De uma eclesiologia “hieracológica” passou-se a uma<br />

Igreja Povo <strong>de</strong> Deus. Era uma eclesiologia <strong>da</strong> parte pelo todo (pars pro toto).<br />

O que nos interessa nesta discussão sobre a Lumen Gentium é a inversão <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m dos<br />

seus capítulos II e III. Os Padres Conciliares, pela influência <strong>de</strong> assessores hábeis, optaram pelo<br />

<strong>de</strong>slocamento do Povo <strong>de</strong> Deus do III para o II capítulo e a Hierarquia para o lugar do Povo <strong>de</strong><br />

Deus. Com isso, a categoria teológica “povo <strong>de</strong> Deus” tornou-se chave eclesiológica <strong>de</strong> leitura do<br />

31 Cf. LG, 1. Cf. também: CALIMAN, Cleto, A eclesiologia do Vaticano II e a Igreja do Brasil, in: GONÇALVES,<br />

Paulo Sergio Lopes e BOMBONATTO, Vera Ivanise (orgs.), Concílio Vaticano II: análise e prospectivas, São<br />

Paulo: Paulinas, 2004, p. 229-248. O autor comenta os principais <strong>de</strong>slocamentos <strong>eclesiológicos</strong> do Concílio Vaticano<br />

II.<br />

32 CALIMAN, Cleto, A eclesiologia do Vaticano II..., p. 230-231.<br />

33 Uma Comissão Teológica foi <strong>de</strong>signa<strong>da</strong> para elaborar um anteprojeto <strong>de</strong> Constituição sobre a Igreja. O primeiro<br />

texto chegou ao Concílio, intitulado De Eclésia; apresentava a seguinte or<strong>de</strong>m dos capítulos: I- Igreja como mistério;<br />

II- A Constituição hierárquica <strong>da</strong> Igreja; III- Igreja Povo <strong>de</strong> Deus; IV- Chamado à santi<strong>da</strong><strong>de</strong>. A Comissão teológica<br />

que elaborou o esquema viu o texto ser duramente criticado na Aula Conciliar, em sua estrutura, método,<br />

argumentação, conteúdo e espírito. Sugeriu-se a elaboração <strong>de</strong> um outro texto, incorporando as sugestões dos Padres<br />

Conciliares. O novo texto voltou ao plenário com quatro capítulos, faltando os atuais capítulos sobre o Povo <strong>de</strong> Deus,<br />

os Religiosos, a índole escatológica <strong>da</strong> Igreja e sobre Nossa Senhora. Novamente as críticas não se amenizaram. A<br />

mu<strong>da</strong>nça mais importante, pelo incidência na eclesiologia foi a inversão dos capítulos II e III. Após receber diversas<br />

emen<strong>da</strong>s, o texto <strong>de</strong>finitivo, agora com oito capítulos, foi apresentado ao plenário, presidido pelo Papa Paulo VI e,<br />

em 21-11-1964, aprovado por 2.151 votos, contra apenas 5 Padres Conciliares.


148<br />

Concílio e o “Povo <strong>de</strong> Deus” ocupou seu <strong>de</strong>vido lugar na Igreja. A Igreja passou <strong>de</strong> “Socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sigual”, cujo acento recaía sobre a hierarquia e coloca os leigos, agora, em igual<strong>da</strong><strong>de</strong> radical,<br />

pela graça do batismo. Quem opera a diferenciação não é o cargo, mas “a ação do Espírito Santo<br />

que convoca ca<strong>da</strong> batizado a ser sujeito na Igreja conforme a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> vocações, carismas,<br />

e ministérios. Assim, todos são chamados a serem sujeitos no gran<strong>de</strong> sujeito que é a Igreja, Povo<br />

<strong>de</strong> Deus peregrino”. 34 O Concílio assumiu uma prática muito antiga na caminha<strong>da</strong> do povo <strong>de</strong><br />

Deus.<br />

A categoria Povo <strong>de</strong> Deus na Igreja, na concepção <strong>de</strong> Congar, é a forma mais feliz <strong>de</strong><br />

expressar a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> entre o antigo Povo <strong>de</strong> Deus, o Israel histórico, e o Povo <strong>de</strong> Deus hoje, a<br />

Igreja. 35 Modificou-se completamente o conceito <strong>de</strong> Igreja. De certa maneira, Antônio<br />

Conselheiro antecipou na prática eclesial no Brasil essa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Igreja, Povo <strong>de</strong> Deus, que<br />

<strong>de</strong>saguou na Lumen Gentium. 36 Ele <strong>de</strong>ixou um legado para os que se convertem à Igreja, nasci<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> do Criador, cuja pertença se dá pelo batismo. Não se po<strong>de</strong> pensar que a mentali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

hierárquica tenha <strong>de</strong>saparecido com o Concílio. Na prática eclesial, as duas reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s: Igreja,<br />

Povo <strong>de</strong> Deus e hierarquia, convivem <strong>de</strong> forma dialética, dinâmica e, quase sempre, conflitiva.<br />

Ain<strong>da</strong> mais diante <strong>da</strong> on<strong>da</strong> conservadora e <strong>da</strong> volta à gran<strong>de</strong> disciplina, que invadiram a Igreja, a<br />

partir dos anos oitenta, e a transportam para o conservadorismo, enfraquecendo muitos avanços<br />

trazidos pelo Vaticano II e tão presentes nas comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s eclesiais, como aconteceu em<br />

Canudos. É um retrocesso para o Povo <strong>de</strong> Deus.<br />

34 CALIMAN, Cleto, A eclesiologia do Concílio Vaticano II e a Igreja do Brasil..., p. 234.<br />

35 Cf. CONGAR, Yves, A Igreja como Povo <strong>de</strong> Deus, in: Concílium, n.1, 1965, p. 13.<br />

36 Cf. LG, 24-43.


3.3- A relação <strong>de</strong> Antônio Conselheiro com as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s eclesiásticas<br />

Não se tem <strong>da</strong>dos <strong>de</strong> conflitos provocados pelo Conselheiro com as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

eclesiásticas. Ele era semelhante ao Padre Cícero, obe<strong>de</strong>cia às orientações superiores, menos<br />

abdicar do direito batismal <strong>de</strong> participar <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> aju<strong>da</strong>r organizá-la e cumprir sua missão<br />

nasci<strong>da</strong> do batismo, para a qual julgava ter sido chamado, <strong>de</strong> pregar o Evangelho e aconselhar<br />

para o bem seus seguidores. Pelo acesso à literatura sobre esse assunto, o problema parece ser<br />

mais <strong>da</strong> parte <strong>da</strong> hierarquia católica que <strong>de</strong> Antônio Conselheiro. Pelas circulares emiti<strong>da</strong>s pelo<br />

Arcebispo <strong>da</strong> Bahia, proibindo o Conselheiro pregar nas igrejas e por muitas cartas <strong>de</strong> párocos,<br />

dirigi<strong>da</strong>s ao Arcebispo <strong>da</strong> Bahia, relatando preocupações em relação à passagem do Peregrino em<br />

<strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s paróquias, po<strong>de</strong>-se perceber o quanto a missão do Peregrino incomo<strong>da</strong>va à<br />

instituição eclesiástica em crise. O Conselheiro preferia mu<strong>da</strong>r <strong>de</strong> freguesia a reagir publicamente<br />

às proibições <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s religiosas. Em muitos casos, respeitou a reação dos vigários e<br />

evitou o confronto direto, migrando para outros lugares. O Padre Agripino Borges, vigário <strong>de</strong><br />

Itapicuru, não teve dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s em perceber valores evangélicos na missão do Conselheiro.<br />

Mesmo assim, uma análise mais apura<strong>da</strong> <strong>da</strong>s cartas <strong>de</strong> alguns vigários envia<strong>da</strong>s às autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

(religiosas e do Estado) mostra a natureza do conflito. A preocupação <strong>de</strong> muitos padres era a<br />

per<strong>da</strong> <strong>de</strong> espaço. Antônio Conselheiro os ameaçava: “O que gerou, pelas cartas dos vigários, o<br />

confronto entre Igreja e Conselheiro era o fato <strong>de</strong> que o Conselheiro reclamava para si o direito<br />

<strong>da</strong> prédica”. 37 Padre Leopoldo Antônio Guia reconhece valores no Peregrino, mas <strong>de</strong>monstra<br />

preocupação, ao dirigir-se à Arquidiocese, com os conselhos sem ciência, a um povo ignorante:<br />

“Este homem que se diz penitente, conquanto tenha alguma utili<strong>da</strong><strong>de</strong> para levantar pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

capelas e <strong>de</strong> cemitérios, tudo <strong>de</strong>sfaz com os tais conselhos que, falta <strong>de</strong> to<strong>da</strong> ciência, prega ao<br />

37 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 157.<br />

149


povo [...]”. 38 150<br />

Tornava-se até mesmo impossível combater as heresias. Muitos padres, não somente<br />

aceitavam a presença do Peregrino, como o convi<strong>da</strong>vam para predicar nas Paróquias, divulgando<br />

ain<strong>da</strong> mais as superstições. E lamenta: “como não haverá esta superstição se há sacerdotes que<br />

consentiram ao mesmo Antônio pregar <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> própria Matriz, <strong>de</strong> maneira que quando<br />

convencidos do papel ridículo que representam, querem reagir, é sempre tar<strong>de</strong> [...]”. 39<br />

Visitando as Prédicas do Conselheiro, não aparece qualquer resposta a essas reações. Ao<br />

contrário, quando alguns <strong>de</strong> seu grupo reagiram durante a homilia do frei João Evangelista,<br />

emissário do Arcebispo <strong>da</strong> Bahia, o missionário reconheceu o respeito do Peregrino: “Este os fez<br />

calar“. 40 E, em outro momento: “Desta vez ain<strong>da</strong> o velho impôs silêncio”. 41 Pelas prédicas, nota-<br />

se um certo equilíbrio e amor <strong>de</strong> Antônio pela Igreja. Evitou respon<strong>de</strong>r às acusações que lhe<br />

foram imputa<strong>da</strong>s, <strong>de</strong> “inculto”, “herege”, “supersticioso”, “<strong>de</strong>sobediente”, “sem ciência” e “débil<br />

mental”. Tomara a mesma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Padre Cícero <strong>de</strong> respeito às normas do Arcebispo. Não as<br />

criticava publicamente mesmo não sendo possível praticá-las. Ele não se perdia no que julgava<br />

secundário. Cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, procurar superar as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s internas e conversar com os<br />

que estavam chegando lhe era mais importante que qualquer discussão com autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

religiosas, quase sempre distantes do povo <strong>de</strong> Canudos. Muitos problemas surgiam no<br />

aglomerado do Belo Monte, exigindo maturi<strong>da</strong><strong>de</strong> e capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação dos lí<strong>de</strong>res.<br />

Percebe-se, portanto, que o problema não estava nas atitu<strong>de</strong>s do Conselheiro, e sim na<br />

conjuntura eclesial nebulosa <strong>da</strong> Igreja. Mesmo sendo acusado pelo frei João Evangelista <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>srespeito à República e à doutrina cristã, 42 seus manuscritos mostram sintonia com os<br />

38 Cit. in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 156.<br />

39 Cit, in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 157.<br />

40 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 4.<br />

41 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5<br />

42 Cf. Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5.


ensinamentos <strong>da</strong> Igreja. 43 151<br />

A questão era outra. A resposta <strong>da</strong> crise <strong>da</strong> Igreja não <strong>de</strong>veria ser<br />

encontra<strong>da</strong> na repressão a Canudos. O povo do Conselheiro foi vítima <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong><br />

Padroado causador <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras mu<strong>da</strong>nças <strong>da</strong> Igreja, no início <strong>da</strong> República. Nesse caso<br />

concreto, o que fazer quando as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s eclesiásticas não percebem ou não estão atentas ao<br />

sopro do Espírito que indica novos ventos na Igreja? As autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s religiosas não percebiam as<br />

mu<strong>da</strong>nças que indicavam abertura para maior participação do leigo na Igreja, um compromisso<br />

maior com os pobres e não um enrijecimento e hostili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

O Peregrino, mesmo sabendo que a participação do leigo na Igreja era restrita, apren<strong>de</strong>u<br />

com o Mestre Ibiapina o segredo <strong>da</strong> participação criativa no ministério profético, sacerdotal e<br />

régio <strong>de</strong> Cristo, herança do batismo. Pela consciência do batismo, estimulado pela Missão<br />

Abrevia<strong>da</strong> 44 (obra aprova<strong>da</strong> pelo Car<strong>de</strong>al <strong>de</strong> Lisboa, pelo Arcebispo primaz <strong>de</strong> Braga, pelo<br />

Car<strong>de</strong>al do Porto e pelo Bispo Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra) e interpelado pela carência <strong>de</strong> seu povo,<br />

Antônio Conselheiro “Estava bem amparado, num tempo em que o apostolado dos leigos não<br />

havia cobrado a extensão que tem hoje”. 45 Não basta acusar o Conselheiro <strong>de</strong> herege: “Para se<br />

aquilatar <strong>da</strong> genuini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> doutrina <strong>de</strong> suas prédicas, o melhor é lê-las uma a uma.<br />

Absolutamente ortodoxas. São elas instrutivas e persuasivas” 46 , analisa Ataliba Nogueira. Em<br />

Canudos, estava em gestação o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> maior participação do leigo na Igreja. Decerto,<br />

observando atentamente suas prédicas, “não hão <strong>de</strong> encontrar nenhuma <strong>da</strong>s tolices ou crendices<br />

ou infantili<strong>da</strong><strong>de</strong>s que se lhe atribuem, basea<strong>da</strong>s em simples ‘papeluchos <strong>de</strong> algum ouvinte<br />

ignorante’”. 47 A atenção do Peregrino frente ao magistério <strong>da</strong> Igreja na Bahia encontra<br />

43<br />

Os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> catequese ensina<strong>da</strong> pelo Conselheiro estavam na Bíblia Sagra<strong>da</strong>, nas Horas Marianas, na<br />

Missão Abrevia<strong>da</strong> e outros manuais circulantes entre os vigários e cristãos leigos.<br />

44<br />

A Missão Abrevia<strong>da</strong>, por ser um livro <strong>de</strong> continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> missão e direcionado às li<strong>de</strong>ranças leigas, foi uma obra<br />

basilar na prática missionária <strong>de</strong> Conselheiro.<br />

45<br />

NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica..., p. 76.<br />

46<br />

NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica..., p. 76.<br />

47<br />

NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica..., p. 76.


152<br />

semelhança na atitu<strong>de</strong> toma<strong>da</strong> pelo Padre Cícero: respeito sem confronto direto e público. O<br />

mesmo não foi feito por parte <strong>de</strong> muitas autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s religiosas que preferiram seguir os ditames<br />

do projeto <strong>de</strong> romanização, 48 a respeitar as iniciativas <strong>de</strong> leigos <strong>de</strong>dicados. Antônio Conselheiro<br />

percebeu o chamado <strong>de</strong> Deus e, orientado pela sua palavra, procurou reunir o povo para antecipar<br />

os sinais do Reino dos céus aqui na terra. Sempre o fez na quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> leigo comprometido, não<br />

ousando apropriar-se <strong>de</strong> funções exclusivas do clero.<br />

O movimento <strong>de</strong> Canudos foi eminentemente transformador, não teve interesse <strong>de</strong><br />

manutenção do status quo. Seu principal lí<strong>de</strong>r agiu impulsionado pela missão (estritamente) <strong>de</strong><br />

competência <strong>de</strong> qualquer leigo. Apren<strong>de</strong>u na escola do Padre Ibiapina, acompanhou o Mestre <strong>da</strong><br />

Cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, participou <strong>de</strong> diversas missões, usou manuais <strong>de</strong> <strong>de</strong>voções oferecidos pela sua Igreja,<br />

divulgados pelos missionários no final <strong>da</strong>s missões populares. Diante <strong>da</strong>s atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> vários<br />

lí<strong>de</strong>res <strong>da</strong> Igreja, Antônio Conselheiro <strong>de</strong>monstrou consciência na missão, respeito pelas<br />

autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s religiosas, mesmo não sendo possível aceitar certas proibições, a seu juízo,<br />

incompatíveis com a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus.<br />

3.4- Canudos: Igreja pobre acolhendo os pobres<br />

Os estudiosos <strong>de</strong> Canudos, historiadores, sociólogos e religiosos concor<strong>da</strong>m a respeito dos<br />

moradores <strong>de</strong> Canudos: fugitivos <strong>da</strong>s secas, ex-escravos, mendigos, <strong>de</strong>sempregados, sem-terras,<br />

índios, pequenos proprietários e trabalhadores vindos <strong>de</strong> fazen<strong>da</strong>s nos arredores <strong>de</strong> Belo Monte.<br />

Na missa do centenário <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> <strong>de</strong> Antônio Conselheiro a Canudos, em 1993, durante a<br />

homilia, Dom Pedro Casaldáliga , bispo Emérito <strong>de</strong> São Félix do Araguaia, afirmou: “Canudos<br />

foi o primeiro acampamento <strong>de</strong> sem-terra do Brasil”. Então, que mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Igreja existiu em<br />

Canudos? Qual o papel <strong>da</strong> Igreja Católica na gestação <strong>da</strong> experiência eclesial do povo <strong>de</strong> Belo<br />

48 Assunto <strong>de</strong>senvolvido amplamente no Capítulo I, 1.6.


Monte? Por que a instituição mandou emissário a Canudos com o objetivo <strong>de</strong> dispersar os que lá<br />

viviam, se a motivação maior era <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m religiosa? Na pós-missão ela mesma não estimulava<br />

as li<strong>de</strong>ranças leigas, por meio <strong>de</strong> manuais religiosos para continuar o avivamento religioso no<br />

sertão? A Igreja não po<strong>de</strong>ria ter assumido uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> diálogo ao invés <strong>de</strong> confronto? São<br />

questões chaves para se enten<strong>de</strong>r o “novo jeito <strong>de</strong> ser Igreja pobre”, no meio dos pobres <strong>de</strong><br />

Canudos.<br />

O surgimento <strong>de</strong> um novo jeito <strong>de</strong> ser Igreja em Canudos <strong>de</strong>corre, inicialmente, pelo<br />

distanciamento <strong>da</strong> instituição eclesiástica do pobre, mas presente que era entre os ricos e classe<br />

média; também <strong>da</strong> crise do Padroado, <strong>da</strong> separação entre Igreja e Estado e do processo <strong>de</strong><br />

romanização. A Igreja não conseguia ser presença e, portanto, satisfazer às reais necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

religiosas do sertanejo. O povo tinha se<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. A Igreja dos pobres em Canudos, não foi uma<br />

“outra Igreja” paralela. Foi a Igreja reinventa<strong>da</strong> no meio dos pobres <strong>de</strong> Canudos. Antônio<br />

Conselheiro fez com que os pobres em Canudos se apropriassem <strong>da</strong> Bíblia, dos valores<br />

evangélicos, <strong>da</strong> doutrina cristã, <strong>da</strong> ética dos Dez Man<strong>da</strong>mentos, <strong>da</strong>s orações diárias, dos manuais<br />

<strong>de</strong> espirituali<strong>da</strong><strong>de</strong>, do respeito pelas autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s eclesiásticas e trouxe a Igreja, refém <strong>de</strong> uma<br />

cúpula e <strong>de</strong>sencontra<strong>da</strong> no fogo cruzado com o Estado, para o meio dos pobres.<br />

Pablo Richard ensaiou algumas <strong>de</strong>finições sobre a Igreja dos pobres que po<strong>de</strong>m ser<br />

aplica<strong>da</strong>s no caso Canudos: “é um movimento <strong>de</strong> renovação eclesial <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> Igreja instituição<br />

existente e em comunhão com ela”. 49 Sendo um movimento <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> própria Igreja, a Igreja dos<br />

pobres é uma reação à inércia e ao distanciamento <strong>da</strong> instituição, com relação aos pobres e à falta<br />

<strong>de</strong> opção evangélica por eles. Não é um movimento <strong>de</strong> ruptura com a instituição, como pensava<br />

frei Evangelista. Antônio Conselheiro e sua gente aceitavam a Igreja, sua doutrina, seus<br />

ensinamentos e seus lí<strong>de</strong>res. Procuravam trazê-la para seu meio. Daí a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> reinventar<br />

49 RICHARD, Pablo, A espirituali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Igreja dos pobres, Petrópolis: Vozes, 1989, p. 28. Grifo do autor.<br />

153


154<br />

a Igreja, renovar suas práticas e refazê-la em seu mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Padroado ultrapassado, sem<br />

compromisso com os pobres. O povo sentia a ausência <strong>da</strong> Igreja no acampamento e reagia ao<br />

atendimento superficial, sem soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> com suas lutas. Sua presença era meramente<br />

sacramentalista. Jesus“ foi tomado <strong>de</strong> compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor, e pôs-<br />

se a ensinar-lhes muitas coisas" (Mc 6,34).<br />

A compaixão <strong>de</strong> Jesus é motiva<strong>da</strong> pela carência do povo. O Mestre não admite seu povo<br />

abandonado. A imagem bíblica do rebanho sem pastor estigmatiza a incúria dos lí<strong>de</strong>res políticos<br />

e religiosos no seu tempo (cf. Mt 9,36). Na perspectiva <strong>de</strong> Mateus, Jesus equivale ao enviado <strong>de</strong><br />

Deus para as ovelhas perdi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> casa <strong>de</strong> Israel (cf. Mt 15,26; 10,6; Lc 19,10). Para a<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Mateus, Jesus proce<strong>de</strong> como o pastor messiânico (cf. Ez 34,23; 37,24). No<br />

Primeiro Testamento Deus pronuncia uma sentença para os pastores infiéis: “Ai dos pastores <strong>de</strong><br />

Israel que apascentam a si mesmos! Não é o rebanho que eles <strong>de</strong>vem apascentar? Não<br />

fortalecestes os animais fracos, não curastes o doente, não tratastes o que quebrou a pata, não<br />

reconduzistes o que se per<strong>de</strong>u, mas exercestes a vossa autori<strong>da</strong><strong>de</strong> pela violência e a opressão”(Ez<br />

34, 2.4). Deus reclama para Si o pastoreio <strong>de</strong> suas ovelhas: “Eu mesmo vou buscar meu rebanho<br />

para cui<strong>da</strong>r <strong>de</strong>le. Eu mesmo farei meu rebanho pastar, eu mesmo o levarei ao repouso. A ovelha<br />

perdi<strong>da</strong>, eu a buscarei; a que quebrou a pata, eu a tratarei; a enferma, eu a fortalecerei” (Ez<br />

34,11.15.16.).<br />

Por <strong>de</strong>ficiência <strong>da</strong> Igreja e pela insuficiência do clero <strong>da</strong> época, o povo <strong>de</strong> Canudos sentia-<br />

se “ovelhas sem pastor”(Mc 6,34). A Igreja não conseguia chegar até Canudos. O Conselheiro,<br />

então, trouxe a Igreja dos pobres para Belo Monte, sem <strong>de</strong>sprezar ou fazer oposição à instituição<br />

eclesiástica. Para Pablo, “a Igreja dos pobres <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia contradições, mas são justamente as<br />

contradições próprias <strong>da</strong> renovação e <strong>da</strong> conversão que a Igreja dos pobres provoca na Igreja


atualmente existente”. 50 155<br />

De fato, a experiência <strong>de</strong> Canudos questionou o distanciamento <strong>da</strong> Igreja<br />

no meio dos pobres. Ao falar do caráter escatológico dos movimentos populares, entre eles está<br />

Canudos, João B. Libanio não <strong>de</strong>ixou dúvi<strong>da</strong>s:<br />

E como pano <strong>de</strong> fundo está o mo<strong>de</strong>lo <strong>da</strong> Igreja primitiva, como relatam os Atos, on<strong>de</strong> os<br />

homens todos eram consi<strong>de</strong>rados iguais, sem distinções <strong>de</strong> fortuna. Repartiam-se os bens,<br />

colocando-os em comum. Aspirava-se a um retorno a tal comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> carismática. As<br />

reivindicações religiosas e sociais misturavam-se. 51<br />

A estruturação <strong>da</strong> Igreja em Canudos era muito simples e pragmática. Havia uma divisão<br />

social <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Gente para cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong> roça, os que plantavam e colhiam, os comerciantes <strong>da</strong><br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, os que estabeleciam relações comerciais com ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s vizinhas, pessoas para<br />

selecionar e exportar o coro do bo<strong>de</strong> para a Alemanha. Tudo acontecia em nome <strong>da</strong> Igreja, sob a<br />

coor<strong>de</strong>nação do Peregrino, chamado por Deus para esse serviço.<br />

3.5- Os colaboradores diretos na Igreja dos pobres em Belo Monte<br />

Em Canudos, o po<strong>de</strong>r era partilhado, as li<strong>de</strong>ranças naturais. Antônio Conselheiro logo<br />

percebia o dom <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um. Com sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> ia i<strong>de</strong>ntificando lí<strong>de</strong>res e confiando tarefas. Tudo<br />

muito rápido, pois a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> crescia vertiginosamente. Nas conversas individuais, o Beato<br />

procurava saber o que ca<strong>da</strong> pessoa gostava <strong>de</strong> fazer. Diversos ministérios foram <strong>de</strong>legados pelo<br />

Conselheiro e reconhecidos pela comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Belo Monte. Havia espaço para todos. Eucli<strong>de</strong>s<br />

<strong>da</strong> Cunha i<strong>de</strong>ntificou diversas <strong>de</strong>ssas li<strong>de</strong>ranças. Muitos colocavam os dons a serviço <strong>de</strong> todos.<br />

José Calazans classifica os ministérios <strong>de</strong> serviço em: beatos, combatentes, negociantes,<br />

proprietários e outras figuras <strong>da</strong>s redon<strong>de</strong>zas. 52 Ca<strong>da</strong> lí<strong>de</strong>r tinha função <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> e corrobora<strong>da</strong><br />

pelos moradores, com anuência do Beato. A triagem era feita na chega<strong>da</strong> ao arraial, na entrevista<br />

com Antônio Conselheiro.<br />

50 RICHARD, Pablo, A força espiritual <strong>da</strong> Igreja dos pobres..., p. 28.<br />

51 LIBANIO, João B., BINGEMER, Maria Clara L., Escatologia cristã..., p. 45.<br />

52 Cf. CALAZANS, José, Quase biografia <strong>de</strong> jagunços: o séquito <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 11-87.


156<br />

O autor <strong>de</strong> Os Sertões nomeou diversas pessoas, com funções específicas e li<strong>de</strong>ranças<br />

consagra<strong>da</strong>s. 53 A povoação <strong>de</strong> Canudos <strong>de</strong>ixou Eucli<strong>de</strong>s surpreso, pois recebia pessoas <strong>de</strong><br />

“To<strong>da</strong>s as i<strong>da</strong><strong>de</strong>s, todos os tipos, to<strong>da</strong>s as cores”. 54 Não havia restrição <strong>de</strong> qualquer or<strong>de</strong>m. Ali<br />

havia velhos penitentes, beatas crava<strong>da</strong>s <strong>de</strong> pecados, mulheres solteiras, fisionomias ingênuas <strong>de</strong><br />

raparigas crédulas, formando uma estranha comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> ou uma população multiforme:<br />

constituí<strong>da</strong> dos mais díspares elementos, do crente fervoroso abdicando <strong>de</strong> si to<strong>da</strong>s as<br />

comodi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> noutras paragens, ao bandido solto que lá chegava <strong>de</strong> clavinote ao<br />

ombro em busca <strong>de</strong> novo campo <strong>de</strong> façanhas, se faz a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> homogênea e uniforme,<br />

massa inconsciente e bruta, crescendo sem evolver, sem órgãos e sem funções<br />

especializa<strong>da</strong>s, pela justaposição mecânica <strong>de</strong> levas sucessivas, à maneira <strong>de</strong> um polipeiro<br />

humano. 55<br />

To<strong>da</strong> essa gente estava imersa no sonho religioso. “Os jagunços errantes ali armavam pela<br />

<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira vez as ten<strong>da</strong>s, na romaria miraculosa para os céus. [...] Não cogitava <strong>de</strong> instituições<br />

garantidoras <strong>de</strong> um <strong>de</strong>stino na terra. Eram-lhes inúteis. Canudos era o cosmos”. 56 Mesmo no meio<br />

<strong>de</strong>ssa massa humana, “inconsciente” e “a crítica”, Eucli<strong>de</strong>s i<strong>de</strong>ntificava uma série <strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças<br />

capazes <strong>de</strong> ocupar cargos <strong>de</strong> direção na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Um aluvião <strong>de</strong> lí<strong>de</strong>res estava ao lado <strong>de</strong><br />

Antônio Conselheiro, proporcionando a direção partilha<strong>da</strong> <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s comunitárias, sem a<br />

qual não seria possível o crescimento or<strong>de</strong>nado <strong>da</strong> Canudos do povo. José Calazans afirma que<br />

estavam subordinados ao Conselheiro “alguns beatos, como o beato Paulo, José Beatinho,<br />

Antônio Beatinho, além <strong>de</strong> outros que não foi possível i<strong>de</strong>ntificar”. 57 Uns cui<strong>da</strong>vam <strong>da</strong>s<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s religiosas (orações, benditos, terços, ofício <strong>de</strong> Nossa Senhora, procissões, Trezenas <strong>de</strong><br />

Santo Antônio), outros do plantio no campo (milho, feijão, mandioca, gergelim, arroz, abóbora,<br />

etc.). Não faltava quem cui<strong>da</strong>sse do criatório (bo<strong>de</strong>s, carneiros, vacas, porcos), articuladores do<br />

53 Cf. CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s, Os Sertões..., p. 262-267.<br />

54 CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Os Sertões..., p. 262.<br />

55 CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Os Sertões..., p. 250-251. O português <strong>de</strong> Os Sertões soa um tanto arcaico. Porém,<br />

conservamos o original do texto <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha.<br />

56 CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Os Sertões..., p. 251.<br />

57 CALAZANS, José, Quase biografias <strong>de</strong> Jagunços: o séqüito <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 13.


157<br />

comércio (exportação do couro do bo<strong>de</strong>, comercialização <strong>de</strong> cereais com ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s vizinhas,<br />

compra <strong>de</strong> outros produtos não produzidos no arraial) e <strong>da</strong> agricultura familiar.<br />

Um personagem que ficou na história foi Antônio Beato, mais conhecido por Antônio<br />

Beatinho. No final do massacre, quando o Arraial estava dominado, dia 2 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1897, ele<br />

apareceu agitando uma ban<strong>de</strong>ira branca, em sinal <strong>de</strong> paz. Antônio Beatinho foi “zelador <strong>de</strong><br />

imagens, encarregado <strong>de</strong> tomar conta <strong>da</strong>s coisas <strong>da</strong> igreja, com o direito <strong>de</strong> morar no Santuário,<br />

perto do Santo Conselheiro”, 58 afirma o historiador José Calazans. E continua: “Antônio<br />

Beatinho, cujo nome <strong>de</strong> família não se guardou, foi o mais comentado dos gran<strong>de</strong>s jagunços. O<br />

único que ficou para a história na hora crepuscular <strong>da</strong> sua gente”. 59 Eucli<strong>de</strong>s traça, com <strong>de</strong>talhes,<br />

o perfil <strong>de</strong> Antônio Beato:<br />

mulato espigado, magríssimo, a<strong>de</strong>lgaçado, pelos jejuns, muito <strong>da</strong> privança do<br />

Conselheiro; meio sacristão, meio sol<strong>da</strong>do, misseiro <strong>de</strong> bacamarte, espiando, observando,<br />

in<strong>da</strong>gando, insinuando-se jeitosamente pelas casas, esquadriando todos os recantos do<br />

arraial, e transmitindo a todo instante ao chefe supremo, que raro abandonava o santuário,<br />

as novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s existentes. 60<br />

José Félix, apeli<strong>da</strong>do Taramela, foi companheiro <strong>de</strong> Antônio Beatinho, com função<br />

semelhante na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>: “quinhoneiro <strong>da</strong> mesma predileção, guar<strong>da</strong> <strong>da</strong>s igrejas, chaveiro e<br />

mordomo do Conselheiro, tendo sob as or<strong>de</strong>ns as beatas <strong>de</strong> vestidos azuis cingi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> cor<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />

linho, encarrega<strong>da</strong>s <strong>da</strong> roupa, <strong>da</strong> refeição exígua <strong>da</strong>quele e <strong>de</strong> acen<strong>de</strong>rem diariamente as fogueiras<br />

para as rezas”. 61 Diversas informações dão conta ain<strong>da</strong>, <strong>de</strong> um certo Leão <strong>de</strong> Natuba, compadre<br />

do Conselheiro, que o acompanhava como secretário, a quem o Conselheiro ditava ou man<strong>da</strong>va<br />

copiar trechos <strong>de</strong> caráter religioso. Homem muito <strong>de</strong>voto <strong>de</strong> bela caligrafia. Morreu durante a<br />

guerra, quando também pereceram quatro irmãos seus: Roseno, José, Manuel e Saturnino.<br />

58 CALAZANS, José, Quase biografias <strong>de</strong> jagunços: o séquito <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 16.<br />

59 CALAZANS, José, Quase biografias <strong>de</strong> jagunços: o séquito <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 17.<br />

60 CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Os Sertões..., p. 265. Grifo do autor.<br />

61 CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Os Sertões..., p. 265.


158<br />

Manuel Quadrado recebeu a função <strong>de</strong> curan<strong>de</strong>iro, agindo na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos<br />

como um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro médico. Ocupava o dia-a-dia, “vivendo num investigar perene pelas<br />

drogarias primitivas <strong>da</strong>s matas”. 62 Durante o final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1890, circulou em larga escala o<br />

Lunário Perpétuo, manual <strong>de</strong> medicina popular, possivelmente usado por Manoel Quadrado, na<br />

preparação dos remédios caseiros. O povo não tinha acesso a qualquer benefício <strong>da</strong> saú<strong>de</strong><br />

especializa<strong>da</strong>. As ervas eram as drogarias do povo e Manoel Quadrado prestava esse serviço na<br />

grei conselheirista.<br />

Timóteo Bispo <strong>de</strong> Oliveira, apeli<strong>da</strong>do por Timotinho, também compadre <strong>de</strong> Antônio<br />

Conselheiro, tinha a tarefa <strong>de</strong> tocar o sino, para lembrar os horários <strong>da</strong>s orações e encontros<br />

comuns. Durante a guerra, duas crianças <strong>de</strong> Timotinho foram recolhi<strong>da</strong>s pelos sol<strong>da</strong>dos do<br />

batalhão paulistano e leva<strong>da</strong>s para São Paulo, conforme <strong>de</strong>núncia do Comitê Patriótico. Nunca<br />

mais se teve notícia <strong>da</strong>s criancinhas! Timotinho também foi “morto heroicamente no <strong>de</strong>sempenho<br />

<strong>de</strong> sua tarefa cotidiana, é uma <strong>da</strong>s mais famosas figuras <strong>da</strong> guerra sertaneja <strong>de</strong> 1897. [...] atingido<br />

por uma bala <strong>de</strong> canhão, na torre <strong>da</strong> igreja, que liquidou o sineiro e jogou longe o sino”. 63<br />

Tornou-se um dos mártires <strong>de</strong> Canudos. Francisco Cardoso <strong>de</strong> Macedo lamentou o sumiço do<br />

sino, no final <strong>de</strong> tudo: “Nos últimos dias, eu estava no reduto, vi o gran<strong>de</strong> sino se arrebentar<br />

<strong>de</strong>baixo <strong>da</strong>s balas, batendo no chão entre as pedras. Hoje ninguém sabe ao certo o <strong>de</strong>stino do<br />

sino, que se ouvia a uma légua por to<strong>da</strong>s estas redon<strong>de</strong>zas”. 64 Percebe-se uma reação <strong>de</strong> lamento<br />

pelo sumiço do sino, revestido <strong>de</strong> simbolismo na vi<strong>da</strong> do sertanejo. Quantas vezes o repique<br />

sinalizava o início <strong>da</strong>s orações e encontros do Peregrinos com a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> eclesial! O sino<br />

<strong>de</strong>sapareceu!<br />

62 CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Os Sertões..., p. 265.<br />

63 CALAZANS, José, Quase biografias <strong>de</strong> jagunços: o séquito <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 19-20.<br />

64 Cit. in: CALAZANS, José, Quase biografias <strong>de</strong> jagunços: o séquito <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 20 (apud:<br />

TAVARES, Odorico, Bahia: imagem <strong>da</strong> terra e do povo, Rio <strong>de</strong> Janeiro: J. Olímpio, 1952, p. 273).


159<br />

José Félix, conhecido na grei por Taramela, oriundo <strong>de</strong> Nova Soure, encontrava-se no<br />

séqüito <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>da</strong> façanha, em 1893. Homem <strong>de</strong> to<strong>da</strong> confiança <strong>de</strong> Antônio Conselheiro,<br />

Taramela gostava <strong>de</strong> relatar para as pessoas os “milagres” do Peregrino. De imaginação fértil,<br />

passava horas contando estórias, à modo sertaneja. Não era capaz <strong>de</strong> inventar. Porém, tinha<br />

capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> aumentar os “casos” do Arraial, proporcionando momentos agradáveis a todos. Há<br />

várias informações sobre ele. Para Eucli<strong>de</strong>s, foi uma espécie <strong>de</strong> sacristão, chaveiro <strong>da</strong> Igreja e<br />

guardião do Santo Conselheiro. 65 Para Agostinho, sobrevivente ao massacre, o apelido Taramela<br />

vinha do fato <strong>de</strong> lhe caber a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> abrir as portas para a passagem <strong>de</strong> Antônio<br />

Conselheiro. 66 A informação <strong>de</strong> Calazans é divergente: “Taramela ou tramela quer dizer falador,<br />

contador <strong>de</strong> estórias. A alcunha caía bem”. 67 É a versão mais próxima do regionalismo<br />

nor<strong>de</strong>stino. Taramelar significa tagarelar, falar sem parar. Taramela vem <strong>de</strong> tramela <strong>de</strong> pren<strong>de</strong>r<br />

porta sem fechadura. A tramela se movimenta rapi<strong>da</strong>mente, à semelhança dos faladores ou com<br />

“tramela na língua”.<br />

Com poucos <strong>de</strong>talhes, Eucli<strong>de</strong>s lembra outros lí<strong>de</strong>res com serviços especificados,<br />

fun<strong>da</strong>mentais na vi<strong>da</strong> funcional do arraial: “Quinquim <strong>de</strong> Coiqui, um crente abnegado que<br />

alcançaria a primeira vitória sobre a tropa legal; Antônio Fogueteiro, do Pau Ferro, incansável<br />

aliciador <strong>de</strong> prosélitos (Animava os momentos festivos, soltando foguetes). José Gamo; Fabrício<br />

<strong>de</strong> Cocobocó”. 68 O <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Vilanova confirma a força <strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças no acampamento:<br />

“Compadre Antônio, tanto quanto João Aba<strong>de</strong>, ou Quinquim <strong>de</strong> Coiqui, o Major Sariema ou<br />

Joaquim Tranca-Pés, foi um autêntico ‘chefe do povo’, um coman<strong>da</strong>nte <strong>de</strong> rua, um guerrilheiro<br />

famoso <strong>de</strong> Canudos”. 69<br />

65 Cf. CUNHS, Eucli<strong>de</strong>s, Os Sertões..., p. 265.<br />

66 Cf. CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Canudos: diário <strong>de</strong> uma expedição, Rio <strong>de</strong> Janeiro: J. Olímpio, 1939.<br />

67 CALAZANS, José, Quase biografias <strong>de</strong> Jagunços: o séqüito <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 23.<br />

68 CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Os Sertões..., p. 264.<br />

69 MACEDO, Nertan, Memorial <strong>de</strong> Vilanova..., p. 22.


160<br />

E como a vi<strong>da</strong> gravitava em torno <strong>da</strong> religião, dividiam-se os afazeres; uns cui<strong>da</strong>vam <strong>da</strong>s<br />

orações em comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> pela manhã, ao meio dia e ao cair <strong>da</strong> tar<strong>de</strong> – momento no qual o<br />

Conselheiro dirigia a palavra a todos; outros encarregavam-se do toque do sino nos momentos<br />

festivos, <strong>de</strong> entusiasmo e os que puxavam as excelências. i Tudo no Arraial podia ser visto a partir<br />

<strong>de</strong> uma inspiração puramente sagra<strong>da</strong> <strong>da</strong> existência, orientando os seguidores numa<br />

direção <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> na linha <strong>de</strong> santificá-la com ritos religiosos, com predominância <strong>de</strong><br />

valores religiosos, buscava-se instaurar na terra o reino <strong>de</strong> Deus, reino <strong>de</strong> paz e harmonia,<br />

com melhores condições <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> para o povo. 70<br />

Eucli<strong>de</strong>s <strong>de</strong>screve um gesto <strong>de</strong> profun<strong>da</strong> religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> envolvendo Antônio Beatinho,<br />

diante <strong>da</strong> imagem do Cristo crucificado, seguido pelos fiéis, comprimidos no Santuário, durante a<br />

celebração <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>:<br />

Antônio Beatinho, o altaneiro, tomava <strong>de</strong> um crucifixo; contemplava-o com o olhar<br />

diluído <strong>de</strong> um faquir em êxtase; aconchegava-o do peito, prostrando-se profun<strong>da</strong>mente;<br />

imprimia-lhe ósculo prolongado; e entregava-o, com gesto amolentado, ao fiel mais<br />

próximo, que lhe copiava, sem variante, a mímica reverente. Depois erguia uma virgem<br />

santa, reeditando os mesmos atos; <strong>de</strong>pois o Bom Jesus. E lá vinham, sucessivamente,<br />

todos os santos, e registros e verônicas, e cruzes, vagarosamente, entregues à multidão<br />

sequiosa, passando, um a um, por to<strong>da</strong>s as mãos, por to<strong>da</strong>s as bocas e por todos os peitos.<br />

Ouviam-se os beijos chirriantes inúmeros e, num crescente, extinguindo-lhes a assonância<br />

sur<strong>da</strong>, o vozear indistinto <strong>da</strong>s prédicas balbucia<strong>da</strong>s à meia voz, dos mea-culpas<br />

ansiosamente socados nos peitos arfantes e <strong>da</strong>s primeiras exclamações abafa<strong>da</strong>s e<br />

reprimi<strong>da</strong>s ain<strong>da</strong>, para que não se perturbasse a soleni<strong>da</strong><strong>de</strong>. 71<br />

Com a colaboração <strong>de</strong> diversas li<strong>de</strong>ranças, a guia do Conselheiro, a Igreja em Canudos se<br />

concretizava e se fortalecia a ca<strong>da</strong> dia, no meio dos pobres e com os pobres. 72 Porém, sem faltar o<br />

respeito para com li<strong>de</strong>ranças eclesiais que investiam para <strong>de</strong>sfazer a experiência <strong>de</strong> uma Igreja <strong>de</strong><br />

pobre no meio dos pobres.<br />

A forma <strong>de</strong> organização dos ministérios <strong>de</strong> serviços na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos encontra<br />

fun<strong>da</strong>mentos teológicos nas Igrejas do Segundo Testamento e no batismo cristão. O batismo<br />

incorpora o fiel a Cristo. O batizado, como membro <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> eclesial, faz parte do Corpo<br />

70 LIBANIO, João B., e BINGEMER, Maria Clara L. Escatologia cristã..., p. 52.<br />

71 CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong>, Os Sertões..., p. 266.<br />

72 No centro <strong>de</strong> Belo Monte, havia duas igrejas e um cemitério. A pequena igreja velha e a igreja nova. Esta não<br />

chegou ao término por causa <strong>da</strong> guerra.


161<br />

Místico <strong>de</strong> Cristo que é a Igreja. Como membros <strong>de</strong>sse corpo, participantes do múnus profético,<br />

sacerdotal e real do Filho <strong>de</strong> Deus encarnado. Os lí<strong>de</strong>res em Canudos puseram em prática o que é<br />

“específico dos leigos, por sua própria vocação, procurar o Reino <strong>de</strong> Deus exercendo funções<br />

temporais e or<strong>de</strong>nando-as segundo Deus.” 73 Cabe aos leigos, afirma a Lumen Gentium, “<strong>de</strong><br />

maneira especial iluminar e or<strong>de</strong>nar <strong>de</strong> tal modo to<strong>da</strong>s as coisas temporais, às quais estão<br />

intimamente unidos, que elas continuamente se façam e cresçam segundo Cristo, para louvor do<br />

Criador e Re<strong>de</strong>ntor”. 74 Sem a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos serviços em Canudos, sem o empenho <strong>da</strong>s<br />

li<strong>de</strong>ranças, não seria possível organizar uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> com tanta gente. A missão <strong>de</strong> Antônio<br />

Conselheiro sempre foi em nome <strong>da</strong> Igreja e, segundo o Vaticano II, “O apostolado dos leigos é<br />

participação na própria missão salvífica <strong>da</strong> Igreja”, 75 mesmo que uma parte dos representantes <strong>da</strong><br />

Igreja não tenha sido capaz <strong>de</strong> interpretar a ação do Espírito <strong>de</strong> Deus na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> solidária <strong>de</strong><br />

Canudos.<br />

Na Igreja <strong>de</strong> Canudos foi formando o que Alberto Parra chamou <strong>de</strong> ministeriali<strong>da</strong><strong>de</strong> “<strong>de</strong><br />

baixo” ou “<strong>de</strong> base”. “Essa ministeriali<strong>da</strong><strong>de</strong> “<strong>de</strong> baixo” e “<strong>de</strong> base” é claramente eclesial porque<br />

o batismo e a vocação cristã estão gerando uma irrefreável potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong> ativa no seguimento<br />

histórico <strong>de</strong> Jesus para a transformação <strong>da</strong> Igreja e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>”. 76 Isso foi quantificado em Belo<br />

Monte. A distância do Arcebispo <strong>da</strong> Bahia testemunhava um <strong>de</strong>sequilíbrio próprio numa<br />

arquitetura pirami<strong>da</strong>l <strong>de</strong> Igreja, com a cúpula obviamente em cima e a base em baixo. A Igreja <strong>da</strong><br />

época <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, “fraca no interior <strong>de</strong> suas próprias quadras, navegava entre crise e<br />

reforma. Fecha<strong>da</strong> no seu transcen<strong>de</strong>ntalismo estava muito distante do povo. Ignorava as<br />

73 LG, 32.<br />

74 LG, 32.<br />

75 LG, 33.<br />

76 PARRA, Alberto, Os ministérios na Igreja dos pobres..., p. 64.


162<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>le como também a sua fé, até <strong>de</strong>monstrava – como as elites seculariza<strong>da</strong>s – pudor<br />

e horror às formas religiosas populares”. 77<br />

Na perspectiva <strong>da</strong> teologia do laicato, a ministeriali<strong>da</strong><strong>de</strong> emergente do povo <strong>de</strong> Canudos<br />

“é profun<strong>da</strong>mente eclesial e radicalmente sacerdotal porque as comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> pobres e <strong>de</strong><br />

crentes são os batizados e consagrado pelo Espírito do Crucificado Ressuscitado”. 78 Em Canudos<br />

havia a prática do batismo cristão. Lá os ministérios <strong>da</strong> “base”, isto é, a Igreja que acontece em<br />

plenitu<strong>de</strong> no acampamento, eram eclesiais porque os pobres e crentes recuperaram sua digni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

sacerdotal e leiga. To<strong>da</strong> a ação pastoral do Conselheiro foi realiza<strong>da</strong> em nome <strong>da</strong> Igreja, mesmo<br />

sem ser reconheci<strong>da</strong> em <strong>de</strong>terminados momentos por alguns <strong>de</strong> seus setores condicionados por<br />

fatores políticos e conjunturais republicanos. O que caracterizava a Igreja “<strong>da</strong> base” em Canudos<br />

era o fato <strong>de</strong> ter sido priva<strong>da</strong> <strong>de</strong> um futuro próprio, pois o po<strong>de</strong>r “<strong>de</strong> cima” não lhe permitia criar<br />

sua própria história mas, ao contrário, a mantinha em condição <strong>de</strong> objeto ou subjuga<strong>da</strong>. Não<br />

obstante certa incompreensão, a Igreja em Canudos esteve uni<strong>da</strong> com profun<strong>da</strong> convicção <strong>de</strong> fé<br />

do Conselheiro à gran<strong>de</strong> Tradição eclesial. Como obra do amor <strong>de</strong> Deus à humani<strong>da</strong><strong>de</strong>, tem sua<br />

origem na vi<strong>da</strong> e obra <strong>de</strong> Jesus Cristo, anima<strong>da</strong> por seu Espírito. 79 Ela nasceu uma vez por to<strong>da</strong>s<br />

do ministério e do <strong>de</strong>stino histórico <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong> Nazaré, <strong>da</strong> cruz, do sepulcro aberto do<br />

Ressuscitado, <strong>da</strong> obra <strong>da</strong> graça <strong>de</strong> Pentecostes e continua nascendo on<strong>de</strong> as pessoas estiveram<br />

reuni<strong>da</strong>s em Seu nome. A Igreja é uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> continuamente cria<strong>da</strong> por Jesus, recria<strong>da</strong> pelo<br />

Ressuscitado e acompanha<strong>da</strong> pelo Espírito Santo. Não é algo estático. É o povo <strong>de</strong> Deus em<br />

marcha, agindo em ca<strong>da</strong> momento histórico, dinamizado pelo Ressuscitado.<br />

A Igreja <strong>de</strong> Canudos <strong>de</strong>parou-se, <strong>de</strong> certo modo, com o que Comblin caracteriza <strong>de</strong><br />

“mo<strong>de</strong>lo hierárquico (<strong>de</strong> Igreja) que era o mo<strong>de</strong>lo dominante no segundo milênio – pelo menos<br />

77 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 374.<br />

78 PARRA, Alberto, Os ministérios na Igreja dos pobres..., p. 62.<br />

79 Cf. DP, 237; 250.


na Igreja do Oci<strong>de</strong>nte, e quase unanimemente aceito até 1940”. 80 163<br />

Frei João Evangelista, pelo<br />

relatório apresentado ao Arcebispo <strong>da</strong> Bahia, Dom Jerônimo Tomé, em visita a Canudos, revelou<br />

uma visão <strong>de</strong> Igreja do po<strong>de</strong>r, distante do serviço aos pobres. Mesmo assim, a reação do<br />

Conselheiro foi pru<strong>de</strong>nte e respeitosa.<br />

Para Comblin, “diante <strong>da</strong> recusa <strong>da</strong> hierarquia e do clero, a consciência <strong>de</strong> povo<br />

emancipou-se, secularizou-se e, no final, <strong>de</strong>clarou-se contra uma Igreja hierárquica que lhe fazia<br />

oposição”. 81 E é enfático: “Essa Igreja hierárquica sentiu-se rejeita<strong>da</strong>. Con<strong>de</strong>nou, con<strong>de</strong>nou e<br />

con<strong>de</strong>nou, até que João XXIII veio dizer que o caminho <strong>da</strong>s con<strong>de</strong>nações não leva a na<strong>da</strong>”. 82 É<br />

sempre importante que os membros <strong>da</strong> hierarquia eclesiástica estejam atentos à ação do Espírito<br />

<strong>de</strong> Deus que sopra na sua Igreja, apesar <strong>da</strong> nossa presença <strong>de</strong> clérigos. A<br />

Igreja, constituí<strong>da</strong> e organiza<strong>da</strong> neste mundo como uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, subsiste na Igreja<br />

Católica governa<strong>da</strong> pelo sucessor <strong>de</strong> Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele, embora<br />

fora <strong>de</strong> sua visível estrutura se encontrem vários elementos <strong>de</strong> santificação e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Estes elementos, como dons próprios à Igreja <strong>de</strong> Cristo, impelem à uni<strong>da</strong><strong>de</strong> católica. 83<br />

Não foi esse fenômeno, reconhecido pelo Concílio, que se <strong>de</strong>u em Canudos: “fora <strong>de</strong> sua<br />

visível estrutura se encontram vários elementos <strong>de</strong> santificação e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>”. Acolher os leigos<br />

proporcionar-lhes espaço na missão não é uma concessão <strong>da</strong> parte <strong>da</strong> hierarquia, mas direito e<br />

<strong>de</strong>ver batismais. O Concílio Vaticano II esclareceu o papel dos leigos na Igreja e reconheceu que<br />

eles “são especialmente chamados para tornarem a Igreja presente e operosa naqueles lugares e<br />

circunstâncias on<strong>de</strong> apenas através <strong>de</strong>les ela po<strong>de</strong> chegar como sal <strong>da</strong> terra”. 84 Quando os Padres<br />

Conciliares expuseram a teologia do povo <strong>de</strong> Deus <strong>de</strong>stacaram a missão dos leigos <strong>de</strong>riva<strong>da</strong><br />

diretamente do Salvador. Os leigos participam diretamente do sacerdócio <strong>de</strong> Cristo, 85 do seu<br />

80 COMBLIN, José, O povo <strong>de</strong> Deus, São Paulo: Paulus, 2002, p. 52.<br />

81 COMBLIN, José, O povo <strong>de</strong> Deus..., p. 64.<br />

82 COMBLIN, José, O povo <strong>de</strong> Deus..., p. 64.<br />

83 LG, 8.<br />

84 LG, 33.<br />

85 Cf. LG, 34.


múnus profético, 86 e do múnus <strong>de</strong> reger sua Igreja. 87 164<br />

Por isso, os pastores <strong>da</strong> Igreja “reconheçam<br />

e promovam a digni<strong>da</strong><strong>de</strong> e a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> dos leigos na Igreja. De boa vonta<strong>de</strong> utilizem-se do<br />

seu pru<strong>de</strong>nte Conselho. Com confiança, entreguem-lhes ofícios no serviço <strong>da</strong> Igreja. E <strong>de</strong>ixem-<br />

lhes liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e raio <strong>de</strong> ação”. 88<br />

Mesmo quase um século antes, Antônio Conselheiro tinha clareza <strong>de</strong>sse compromisso na<br />

edificação <strong>da</strong> Igreja, <strong>de</strong> sua participação e co-responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> na missão. O problema é que ele<br />

não dispunha <strong>de</strong> instrumentos garantidores <strong>de</strong>sses direitos na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos. A visita<br />

do frei João Evangelista teve como objetivo oficializar a posição do arcebispo <strong>da</strong> Bahia contrária<br />

ao movimento sertanejo e por fim ao entusiasmo catequético <strong>da</strong>s li<strong>de</strong>ranças <strong>de</strong> Canudos. Antônio<br />

Conselheiro assumiu uma postura <strong>de</strong> silêncio e contemplação diante do comportamento do<br />

capuchinho. Diante <strong>da</strong> impotência dos leigos frente a autori<strong>da</strong><strong>de</strong> dos “sagrados pastores”.<br />

Comblin lança uma pergunta: “o que acontece se os “sagrados pastores” não seguem essas boas<br />

recomen<strong>da</strong>ções (do Concílio)? Vê-se aí que os leigos estão totalmente impotentes. Não há meios<br />

<strong>de</strong> obrigar o “sagrado pastor” a cumprir o seu <strong>de</strong>ver. Isso não foi previsto pelo Concílio”. 89 O<br />

caminho mais sensato <strong>de</strong> Antônio Conselheiro diante do representante do Arcebispo <strong>da</strong> Bahia foi<br />

o “silêncio obsequioso”.<br />

Movimentos eclesiais como Canudos, a Ação Católica, as Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s Eclesiais <strong>de</strong> Base<br />

(CEBs) e outros movimentos no interior <strong>da</strong> Igreja aju<strong>da</strong>m na convivência familiar e colaboração<br />

no crescimento <strong>da</strong> Igreja, entre leigos e pastores. A partir <strong>de</strong>ssa convivência fraterna e <strong>de</strong><br />

cooperação mútua, “se reforça o senso <strong>da</strong> própria responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, é favorecido seu entusiasmo e<br />

mais facilmente, os talentos dos leigos se unirão aos esforços dos Pastores. Estes, por sua vez,<br />

aju<strong>da</strong>dos pela experiência dos leigos, po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>cidir-se mais clara e competentemente tanto nas<br />

86 Cf. LG, 35.<br />

87 Cf. LG, 36.<br />

88 LG, 37.<br />

89 COMBLIN, José, O povo <strong>de</strong> Deus..., p. 47.


coisas espirituais como nas temporais”. 90 165<br />

Se isso tivesse ocorrido em Canudos, evi<strong>de</strong>ntemente,<br />

haveria outro <strong>de</strong>sdobramento. Um posicionamento <strong>da</strong> Igreja em <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> Canudos certamente<br />

teria inviabilizado a guerra.<br />

3.6- Outras manifestações religiosas em Canudos<br />

A comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> conselheirista reuniu pessoas <strong>de</strong> religiões diferentes. Lá conviveram<br />

brancos católicos, afro-<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes e índios. Ain<strong>da</strong> não se <strong>de</strong>senvolveram estudos, por exemplo,<br />

sobre a presença dos índios Kaimbé <strong>de</strong> Massacoará, Kiriri <strong>de</strong> Miran<strong>de</strong>la, Tuxá <strong>de</strong> Ro<strong>de</strong>las e um<br />

grupo significativo <strong>de</strong> caboclos <strong>de</strong> Natuba (Nova Soure), em Canudos. Há uma lacuna no<br />

aprofun<strong>da</strong>mento sistemático sobre à etinici<strong>da</strong><strong>de</strong> específica dos índios do Nor<strong>de</strong>ste. É uma página<br />

a ser escrita. Não se tem notícia <strong>de</strong> conflitos religiosos no acampamento belo-montense, mesmo<br />

vivendo na mesma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> brancos, negros e índios. Os motivos <strong>de</strong>ssa paz religiosa são<br />

<strong>de</strong>sconhecidos. Talvez a ausência <strong>de</strong> protestantes justifique a convivência tão harmônica entre os<br />

conselheiristas. Não havia dúvi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> predominância quase absoluta do catolicismo. Supõe-se<br />

que os negros e índios, como na época <strong>da</strong> colonização, manifestavam sua religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, cultuando<br />

seus <strong>de</strong>uses e exercendo suas práticas religiosas. Nesse tempo, o protestantismo não tinha<br />

chegado ao sertão. Segundo Francisco Cartaxo Rolim, as duas primeiras comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

protestantes só chegaram ao Brasil no início do século XX. A Assembléia <strong>de</strong> Deus chegou ao<br />

Pará, em 1920. A Congregação Cristã no Brasil instalou-se no País em 1922 no Bairro do Bexiga,<br />

em São Paulo. O missionário italiano Luís Francescon tornou-se o primeiro protagonista com o<br />

objetivo <strong>de</strong> “transmitir aos imigrantes italianos a experiência pentecostal trazi<strong>da</strong> dos Estados<br />

Unidos”. 91 Dados estatísticos <strong>da</strong> passagem do século XIX paro o XX revelam pouca influência<br />

90 LG, 37.<br />

91 ROLIM, Francisco Cartaxo, Pentecostalismo: Brasil e América Latina..., p. 49.


166<br />

dos protestantes no País, conforme levantamento do censo <strong>da</strong> época, apresentado por Rolim, em<br />

1890: “os evangélicos perfaziam 1% <strong>da</strong> população total; em 1900, 1,1%.” 92<br />

Essa influência protestante foi ain<strong>da</strong> menor no alto e médio São Francisco. Surge uma<br />

interrogação. Se a protestantismo não teve tanta influência nos meios sertanejos, por que Antônio<br />

Conselheiro os elegeu entre seus inimigos? Ele os equiparou aos maçons e aos republicanos,<br />

como inimigos <strong>de</strong> Deus, que confundiam o povo. Eles “também só acreditam na Lei <strong>de</strong> Moisés,<br />

espalhando doutrinas falsas e errôneas aos ignorantes, arrastando assim tantas almas para o<br />

inferno, além <strong>da</strong>s perseguições que eles fazem à religião do Bom Jesus; nunca eles vão triunfar,<br />

porque Deus protege a sua obra”, 93 que é a Igreja ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira.<br />

Seguramente essa ojeriza aos protestantes vem <strong>da</strong> doutrina católica, propugna<strong>da</strong> pelo<br />

Concílio <strong>de</strong> Trento e reafirma<strong>da</strong> pelo Concílio Vaticano I e bastante divulga<strong>da</strong> na Europa. O<br />

Conselheiro seguiu, à risca, as doutrinas conciliares. Não existe outra explicação. Aliás, ele se<br />

referiu poucas vezes com hostili<strong>da</strong><strong>de</strong> aos protestantes. 94 Rolim afirma que muitos protestantes<br />

não <strong>de</strong>claravam sua igreja “como estratégia para se pouparem às perseguições, claras ou vela<strong>da</strong>s,<br />

movi<strong>da</strong>s pelo catolicismo clerical”. 95 Antônio Conselheiro não se sentiu incomo<strong>da</strong>do pelos<br />

protestantes. Combatê-los interessava ao clero e missionários pregadores <strong>de</strong> missão. Isso não<br />

fazia parte do conteúdo dos ensinamentos do Peregrino. Não há informações sobre a existência <strong>de</strong><br />

evangélicos no acampamento conselheirista que pu<strong>de</strong>ssem se contrapor ao pensamento do<br />

Conselheiro; nem se encontram relatos que comprovem conflitos entre católicos, afro-<br />

<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes e índios. Significa que havia tolerância religiosa no interior <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. No<br />

acampamento <strong>de</strong> Canudos, existiu um número significativo <strong>de</strong> índios e negros, sem maiores<br />

problemas <strong>de</strong> convivência entre eles.<br />

93 MAC, p. 548.<br />

94 Cf. MAC, p. 548.<br />

95 ROLIM, Francisco, Cartoxo, Pentecostalismo: Brasil e América Latina..., p. 32.


3.7- Características fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> Igreja <strong>de</strong> Canudos<br />

3.7.2- Uma Igreja fun<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo Bom Jesus<br />

A Igreja <strong>de</strong> Canudos não <strong>de</strong>ve ser entendi<strong>da</strong> como antitética à Igreja Católica, Apostólica<br />

Romana, como se fosse uma outra “igreja paralela” ou um movimento à revelia <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira<br />

Igreja. Antônio Conselheiro sempre agiu em nome <strong>da</strong> Igreja fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por Jesus Cristo, “obra <strong>de</strong><br />

Aquele que diz não ter vindo <strong>de</strong>struir a lei, mas aperfeiçoá-la”. 96 Na sua concepção a Igreja é<br />

obra do Bom Jesus, é protegi<strong>da</strong> por Deus Pai. 97 Como a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> do povo <strong>de</strong> Deus do Belo<br />

Monte, a Igreja sempre foi protegi<strong>da</strong> pelo Bom Jesus, provando “os tesouros <strong>da</strong> sua infinita<br />

bon<strong>da</strong><strong>de</strong> e misericórdia”. 98 Para os membros <strong>da</strong> Igreja <strong>de</strong> Jesus Cristo, presente plenamente na<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos, o Bom Jesus não falta aos que recorrem à sua graça, agindo na Igreja<br />

militante. Diante do crescimento <strong>da</strong> Igreja, comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos, Antônio Conselheiro<br />

assumiu uma atitu<strong>de</strong> contemplativa, <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cimento e louvor ao seu fun<strong>da</strong>dor: “Cabe-me ain<strong>da</strong><br />

o prazer <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar-vos que já rendi as <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>s graças ao Bom Jesus por me ter prestado o seu<br />

po<strong>de</strong>roso auxílio a fim <strong>de</strong> eu levar a efeito a obra do seu servo, que a não ser tão belíssima<br />

pessoa, certamente não conseguiria realizá-la”. 99 É pela graça <strong>de</strong> Cristo que a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

prosperava. Se a Igreja Católica, Apostólica Romana é a única fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por Jesus Cristo, então,<br />

“nela não há erro, porque o seu fun<strong>da</strong>dor é a fonte <strong>de</strong> to<strong>da</strong> sabedoria, santi<strong>da</strong><strong>de</strong> e perfeição”. 100<br />

O Peregrino <strong>de</strong> Canudos trouxe para seus manuscritos a citação <strong>de</strong> Mt 16, 18, que confere<br />

a Pedro uma posição especial no círculo dos doze, precedi<strong>da</strong> por um reclame aos inimigos <strong>da</strong><br />

Igreja: “Não ten<strong>de</strong>s paciência para esperar a promessa que o adorável Jesus fez a São Pedro,<br />

dizendo: tu és Pedro e sobre esta pedra eu edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não<br />

96 MAC, p. 542. Português diferente do atual.<br />

97 Cf. MAC, p. 550.<br />

98 Cf. MAC, p. 553.<br />

99 MAC, p. 552-553.<br />

100 MAC, p. 550.<br />

167


prevalecerão contra ela”. 101 168<br />

Jesus, ao fun<strong>da</strong>r sua Igreja, <strong>de</strong>u autori<strong>da</strong><strong>de</strong> para seus seguidores<br />

agirem em seu nome. Ele “é a única esperança <strong>da</strong> nossa salvação; fora <strong>de</strong>le não há salvação em<br />

parte alguma. [...] Eu sou a porta e se alguém por mim entrar será salvo. Acreditem pois, fiéis, na<br />

lei <strong>da</strong> graça, que é a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira lei que <strong>de</strong>vem observar irrepreensivelmente para vossa<br />

salvação”. 102 A construção <strong>da</strong> Igreja <strong>de</strong> Santo Antônio <strong>de</strong> Canudos foi <strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus e para<br />

o bem dos moradores do Belo Monte.<br />

3.7.2- Uma Igreja alicerça<strong>da</strong> na sucessão apostólica<br />

O i<strong>de</strong>ário do Beato foi ortodoxo, atribuiu a origem divina <strong>da</strong> Igreja, 103 reconheceu a<br />

li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong> Pedro na quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sucessor dos Apóstolos, coor<strong>de</strong>nador <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

apostólica, na quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Pedra, sobre a qual a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira Igreja <strong>de</strong> Cristo estaria alicerça<strong>da</strong>. 104<br />

Nos Textos extraídos <strong>da</strong> Sagra<strong>da</strong> Escritura 105 o Beato fun<strong>da</strong>mentou a autori<strong>da</strong><strong>de</strong> doutrinal <strong>da</strong><br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> apostólica, que age em nome <strong>de</strong> Cristo, articulando seu pensamento com Mt 18,18:<br />

“tudo o que vós ligar<strong>de</strong>s sobre a terra será ligado também na céu; e tudo que vós <strong>de</strong>satar<strong>de</strong>s sobre<br />

a terra será <strong>de</strong>satado também no céu”. 106<br />

Motivava suas prédicas com os argumentos <strong>da</strong>s escrituras, apelava para a autori<strong>da</strong><strong>de</strong> dos<br />

apóstolos e a confirmação dos evangelistas. Um dos exemplos é quando fala <strong>da</strong> ressurreição<br />

gloriosa <strong>de</strong> Jesus:<br />

101 MAC, p. 614.<br />

102 MAC, p. 549.<br />

103 Cf. MAC, 550<br />

104 Cf. MAC, p, 614.<br />

105 Cf. MAC, 427-485.<br />

106 MAC, p. 454-455.<br />

107 MAC, p. 468-469.<br />

foi Nosso Senhor Jesus Cristo morto e sepultado: e ao terceiro dia ressuscitou com<br />

brilhante resplendor e majesta<strong>de</strong> e glória, e foi visto, por muitas vezes, <strong>de</strong> sua santíssima<br />

mãe e <strong>de</strong>pois apareceu a seus discípulos e às santas mulheres. E tudo isto que vos tenho<br />

dito o confirmaram vários autores; e os santos evangelistas o confirmam como<br />

testemunhas <strong>de</strong> vista (Mat. 28, Mar. 15, Luc. 24, J0. 21). 107


169<br />

Nos mesmos Textos extraídos <strong>da</strong> Sagra<strong>da</strong> Escritura, trabalhou com citações dos quatro<br />

evangelhos, <strong>da</strong>s cartas <strong>de</strong> Paulo, Pedro, Apocalipse <strong>de</strong> São João, etc., e articulou citações do<br />

profeta Isaías, para não <strong>de</strong>ixar dúvi<strong>da</strong>s a respeito <strong>da</strong> messiani<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus. 108 Além disso, usa<br />

citações dos Salmos, Eclesiástico e <strong>de</strong> Jó. Po<strong>de</strong>mos dizer, ain<strong>da</strong>, que a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos<br />

foi uma Igreja <strong>da</strong> Palavra ou centra<strong>da</strong> na Palavra <strong>de</strong> Deus revela<strong>da</strong>. Antônio Conselheiro venerou<br />

os Apóstolos como sucessores legítimos <strong>da</strong> continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> missão <strong>de</strong> Jesus; os Santos Padres,<br />

como “colunas <strong>da</strong> Igreja Católica, Apostólica Romana e luz do cristianismo” 109 ; os bispos e<br />

li<strong>de</strong>ranças comunitárias eram continuadores <strong>da</strong> missão apostólica, entregue por Jesus. O<br />

Peregrino <strong>de</strong> Canudos <strong>de</strong>monstrou, pelos manuscritos, a sucessão apostólica <strong>da</strong> Igreja, o<br />

embasamento evangélico <strong>de</strong> suas pregações, a utilização relativamente bem articula<strong>da</strong> <strong>de</strong> autores<br />

cristãos, corroborando, por um lado, o domínio <strong>da</strong> linguagem teológica e religiosa e, por outro,<br />

contradizendo os que o acusavam <strong>de</strong> ignorante, sem autori<strong>da</strong><strong>de</strong> religiosa. E, o mais importante: à<br />

semelhança do Mestre <strong>de</strong> Nazaré, “Antônio Conselheiro <strong>de</strong>monstrava uma invejável segurança<br />

em se comunicar com os pobres do campo, <strong>de</strong> sorte que as multidões o seguiam como quem<br />

segue um lí<strong>de</strong>r, pois o povo percebia que estava diante <strong>de</strong> alguém que trazia uma novi<strong>da</strong><strong>de</strong> para<br />

os “mal-aventurados””, 110 e pouco letrados do sertão, ponto fraco <strong>da</strong> linguagem teológica do<br />

clero.<br />

Antônio Conselheiro teve um profundo senso <strong>de</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> na Igreja. Não promovia<br />

divisões; suas convicções revelavam preocupação com a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> única Igreja <strong>de</strong> Jesus Cristo.<br />

Não há outra. Por isso, sofria com os que caluniavam a Igreja. Eles são inimigos do Bom Jesus. 111<br />

108 Cf. MAC. 471-472. Pela importância do sentido <strong>de</strong> esperança que estas citações do profeta representam para o<br />

contexto <strong>de</strong> sofrimento do povo <strong>de</strong> Canudos, transcrevo a íntegra dos citações, <strong>da</strong> própria Bíblia. 471: Is 25,9: “Dirse-á<br />

nesse dia: É ele o nosso Deus. Nós esperamos nele e ele nos liberta. É o Senhor em quem pusemos nossa<br />

esperança. Exultemos, jubilosos, pois ele nos salva”. Is 35,4: Dizei àqueles que estão conturbados: Se<strong>de</strong> fortes, não<br />

tenhais medo. Eis o vosso Deus: é a vingança que vem, a retribuição <strong>de</strong> Deus. Ele mesmo vem salvar-nos”. Is 45,15:<br />

Seguramente, tu és um Deus que se mantém escondido, o Deus <strong>de</strong> Israel, aquele que salva”.<br />

109 MAC, 474-475.<br />

110 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual <strong>de</strong> passagem para um final <strong>de</strong> mundo..., p. 67.<br />

111 Cf. MAC, p. 560-563.


170<br />

Portanto, partindo dos manuscritos <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, <strong>de</strong> sua prática eclesial e<br />

coerência <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, fica claro, não se po<strong>de</strong> acusá-lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>spreparado, sem conhecimento doutrinal<br />

e contra a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Igreja. De fato, segundo Congar, a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Igreja é apostólica. A<br />

catolici<strong>da</strong><strong>de</strong> está liga<strong>da</strong> à uni<strong>da</strong><strong>de</strong>, à apostolici<strong>da</strong><strong>de</strong> liga<strong>da</strong> à obra <strong>de</strong> Jesus Cristo. Assim, “existe<br />

uma espécie <strong>de</strong> presença e <strong>de</strong> interiori<strong>da</strong><strong>de</strong> mútua, <strong>de</strong> “circuminsessão” <strong>da</strong>s notas entre si, um<br />

pouco como as diversas funções <strong>de</strong> Cristo não são mais do que as emanações <strong>de</strong> sua unção pelo<br />

Espírito Santo e <strong>de</strong> sua plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> graça, <strong>de</strong> maneira que sua realeza é profética e sacerdotal;<br />

seu sacerdócio, profético e real; seu profetismo, real e sacerdotal”. 112<br />

Para Antônio Conselheiro, a única Igreja ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira é a Católica, que nasceu do Bom<br />

Jesus, entregue à direção dos Apóstolos, que passa pelos Santos Padres e continua pelos bispos e<br />

cristãos crentes que professam, com palavras e obras: Jesus Cristo é a luz <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro Re<strong>de</strong>ntor e Salvador do gênero humano. 113 Apesar <strong>de</strong> ser acusado pelo frei João<br />

Evangelista <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> ortodoxia católica e ser contra as autori<strong>da</strong><strong>de</strong> civis e religiosas, 114 Antônio<br />

Conselheiro reconheceu a legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> hierarquia católica e sua ação pastoral em nome <strong>da</strong><br />

Igreja. Os ministros or<strong>de</strong>nados <strong>da</strong> Igreja do Bom Jesus abençoaram o povo:<br />

Estas bênçãos se vêm lançar os papas, car<strong>de</strong>ais, bispos e to<strong>da</strong>s mais pessoas constituí<strong>da</strong>s<br />

em digni<strong>da</strong><strong>de</strong> eclesiástica, no fim <strong>da</strong> missa e mais cerimônias <strong>da</strong> Igreja, quando abençoa o<br />

povo cristão, invocando nela as três Pessoas <strong>da</strong> Santíssima Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>, que as formou e<br />

dirigiu para nosso bem. Na vara do sumo pontífice se vêem expressamente estas três<br />

cruzes, símbolo do supremo po<strong>de</strong>r <strong>da</strong>quele supremo ministro <strong>de</strong> Deus. Esta cruz se vê<br />

levarem todos os arcebispos e bispos diante <strong>de</strong> si nos seus arcebispados: aos primazes por<br />

todo o reino on<strong>de</strong> o são. 115<br />

112<br />

CONGAR, Yves, Proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s essenciais <strong>da</strong> Igreja, in: Mysterium Salutis, IV/3, Petrópolis: Vozes, 1976, p. 9.<br />

113<br />

Cf. MAC, p. 474-475.<br />

114<br />

Relatório do Frei João Evangelista...,p. 5.<br />

115<br />

MAC, p. 500-501<br />

.


3.7.3- Uma Igreja <strong>de</strong> pobre e para os pobres<br />

Os pobres foram protagonistas na Igreja <strong>de</strong> Canudos. As alegrias e as esperanças, as<br />

tristezas e as angústias do povo sofredor foram assumi<strong>da</strong>s pela Igreja dos pobres no Belo Monte.<br />

Em Canudos, os pobres sentiram-se acolhidos. Os leigos foram protagonistas em uma Igreja que<br />

assumiu as dores e as alegrias, as esperanças e as tristezas, as angústias e os sonhos dos<br />

sertanejos. A Igreja i<strong>de</strong>ntificou-se com as causas do sertanejo e o sertanejo sentiu-se acolhido<br />

pela Igreja.<br />

Um <strong>de</strong>safio que sempre acompanhou a Igreja tem sido harmonizar o binômio fé e vi<strong>da</strong>, fé<br />

e compromisso social, amor a Deus e ao próximo, por em prática a proposta do evangelho <strong>de</strong><br />

implantar o reino <strong>de</strong> Deus aqui na terra. Jesus advertiu seus seguidores <strong>da</strong> incoerência: “Não<br />

basta dizer: ‘Senhor, Senhor!’ para entrar no Reino dos céus; é preciso fazer a vonta<strong>de</strong> do Pai que<br />

está nos céus” (Mt 7,21). O cristianismo é a religião <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, do coletivo, <strong>da</strong><br />

responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> pelo “outro”, do “amor a Deus “<strong>de</strong> todo o teu coração , com to<strong>da</strong> a tua alma e<br />

com todo o teu pensamento” Mt, 22, 37; cf. Dt 65; Js 22,5) e do amor ao “teu próximo como a ti<br />

mesmo” (Mt 22, 39; cf. Lv 19,18; Mt 5, 43; 19,9).<br />

Seguindo a linha <strong>da</strong> construção do Reino <strong>de</strong> Deus, Reino que não é <strong>de</strong>ste mundo, mas<br />

começa aqui, não é só comi<strong>da</strong>, bebi<strong>da</strong> o Concílio ampliou o conceito <strong>de</strong> Igreja; <strong>de</strong>stacou o papel<br />

do coletivo, <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> humana, do povo <strong>de</strong> Deus, ao introduzir novos conceitos sobre a<br />

Igreja. Foi <strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> do Pai “santificar e salvar os homens não singularmente, sem nenhuma<br />

conexão uns com os outros, mas constituí-los num povo, que O conhecesse na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

santamente O servisse”. 116 A nova eclesiologia emergente do Vaticano II estimulou a reflexão<br />

teológica, a partir do viés eclesiológico laical, <strong>de</strong> comunhão, repensando as estruturas <strong>da</strong> Igreja, o<br />

116 LG, 9.<br />

171


compromisso com os pobres, missão e inserção no mundo. A Igreja, Corpo Místico <strong>de</strong> Cristo, 117<br />

povo santo, reunido em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, 118 povo <strong>de</strong> Deus, 119 é<br />

sacramento universal <strong>de</strong> salvação. 120<br />

A Igreja em Canudos se organizou a partir dos leigos, numa simbiose entre fé e vi<strong>da</strong>, sem<br />

que uma ou outra fosse subestima<strong>da</strong>. Em Belo Monte os cristãos leigos, sob a guia do Peregrino,<br />

harmonizaram as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s terrenas e a construção do Reino <strong>de</strong> Deus, conforme preconiza a<br />

Lumen Gentium. Conciliar “ambas harmoniosamente entre si, lembrados <strong>de</strong> que em qualquer<br />

situação temporal <strong>de</strong>vem conduzir-se pela consciência cristã, uma vez que nenhuma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

humana, nem mesmo nas coisas temporais, po<strong>de</strong> ser subtraí<strong>da</strong> ao domínio <strong>de</strong> Deus”. 121 A prática<br />

<strong>de</strong> vi<strong>da</strong> em Canudos foi orienta<strong>da</strong> pela mística do amor a Deus e ao próximo(cf. Mt 22,37-39). O<br />

amor ao próximo se concretizou na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> pela acolhi<strong>da</strong> aos pobres e mal-aventurados que<br />

lá chegavam. Ao mesmo tempo em que o Beato con<strong>de</strong>nava a escravidão, acolhia os ex-escravos<br />

vindos <strong>da</strong>s senzalas; criticava a República, porém, acolhia os empobrecidos por ela na<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> solidária; orientava a todos para o trabalho e ensinava a virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong> partilha com os<br />

necessitados; sabia conciliar oração e trabalho, seguindo à fileira <strong>da</strong> tradição nor<strong>de</strong>stina e Padre<br />

Ibiapina: orar e trabalhar. A or<strong>de</strong>m estabeleci<strong>da</strong> pela República não correspondia à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Deus. “Neste caso, para manter-se fiel a Deus era necessário <strong>de</strong>dicar-se a orações, mas também à<br />

prática social <strong>de</strong> contestações no sentido <strong>de</strong> abrir e criar novos espaços on<strong>de</strong> reine a comunhão <strong>de</strong><br />

bens e a vivência fraterna”. 122 Foi implacável com os que se apropriavam dos bens alheios. O<br />

homem, por mais pobre que fosse, não podia justificar o roubo. O Peregrino aplicou o<br />

pensamento <strong>de</strong> São João Crisóstomo para os que enriqueciam ilicitamente. Os “que furtam os<br />

117<br />

Cf. LG, 7.<br />

118<br />

LG, 4.<br />

119<br />

Cf. LG, 24-43.<br />

120<br />

Cf. Ad Gentes, 5. Citado por AD.<br />

121<br />

LG, 36.<br />

122<br />

PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual <strong>de</strong> passagem para um final <strong>de</strong> mundo…, p. 61.<br />

172


173<br />

bens alheios são piores que as feras e que os <strong>de</strong>mônios; e como tais os <strong>de</strong>viam riscar do catálogo<br />

dos homens. Porque as feras, quando acometem aos outros animais, estando satisfeitos os<br />

<strong>de</strong>ixam; porém os que furtam, <strong>de</strong> nenhum roubo ficam satisfeitos, porque ficam com fome para<br />

fazerem outro: e quanto mais roubam mais se<strong>de</strong> têm <strong>de</strong> furtar”. 123<br />

A Igreja <strong>de</strong> Canudos foi samaritana com os caídos, misericordiosa com os necessitados e<br />

exigente com os que insistiam na acumulação <strong>de</strong>sonesta <strong>de</strong> riquezas, em <strong>de</strong>trimento dos<br />

necessitados. Nos textos seletos, extraídos <strong>da</strong>s escrituras, aplicava a sentença <strong>de</strong> Jesus aos<br />

aproveitadores <strong>da</strong> República: “É mais fácil um camelo passar pelo fundo <strong>de</strong> uma agulha do que<br />

um rico se salvar” 124 (cf. Mt 19,24). E mais na frente: “Buscai primeiro o Reino <strong>de</strong> Deus e sua<br />

justiça e tudo o mais vos será <strong>da</strong>do por acréscimo” 125 (Mt 3,33). Também ensinava: “Amai a<br />

vossos inimigos, fazei o bem a quem vos tem ódio e orai pelos que vos perseguem e caluniam” 126<br />

(cf. Mt 5,44). Esse espírito cristão tornou-se o fio que costurou as relações humanas na<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> canu<strong>de</strong>nse.<br />

A conferência <strong>de</strong> Puebla advertiu a Igreja <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer as causas <strong>da</strong> miséria<br />

na América Latina. “A situação interna <strong>de</strong> nossos países encontram, em muitos casos, sua origem<br />

e apoio em mecanismos que, por estarem impregnados não <strong>de</strong> autêntico humanismo, mas <strong>de</strong><br />

materialismo, produzem, em nível internacional, ricos ca<strong>da</strong> vez mais ricos às custas <strong>de</strong> pobres<br />

ca<strong>da</strong> vez mais pobres”. 127 Padre Ibiapina e Antônio Conselheiro procuravam combater a miséria;<br />

aquele, no início do século XIX; este, no final. A prática libertadora <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos,<br />

vista com <strong>de</strong>sconfiança por setores <strong>da</strong> Igreja, foi reconheci<strong>da</strong> em Puebla. A Igreja “<strong>de</strong>ve fazer<br />

123 MAC, p, 368.<br />

124 MAC, p. 442-443.<br />

125 MAC, p. 443.<br />

126 MAC, p. 444.<br />

127 Cit. in: DP, 30.


174<br />

ouvir a sua voz, <strong>de</strong>nunciando e con<strong>de</strong>nando estas situações, sobretudo quando os governos ou<br />

responsáveis se confessam cristãos”. 128<br />

Canudos preconizou o novo jeito <strong>de</strong> ser Igreja, praticado pelas Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s Eclesiais <strong>de</strong><br />

Base (CEBs), a partir <strong>de</strong> 2960, no Brasil e na América Latina. As CEBs só foram reconheci<strong>da</strong>s<br />

por um documento pontifício na Evangelii Nuntiandi, <strong>de</strong> Paulo VI, falando “<strong>de</strong>stas “pequenas<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s” ou “comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Base””. 129 As CEBs “brotam e <strong>de</strong>senvolvem-se, salvo<br />

algumas exceções, no interior <strong>da</strong> Igreja, e são solidárias com a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> mesma Igreja e<br />

alimenta<strong>da</strong>s pela sua doutrina e conservam-se uni<strong>da</strong>s aos seus pastores”. 130 São comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

semelhantes à experiência <strong>de</strong> Canudos: “reúnem os cristãos <strong>da</strong>queles lugares em que a escassez<br />

<strong>de</strong> sacerdotes não favorece a vi<strong>da</strong> ordinária <strong>de</strong> uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> paroquial”. 131 Para Leonardo<br />

Boff, assessor <strong>da</strong>s CEBs, elas “são mais que extensões <strong>da</strong>s tradicionais instituições <strong>da</strong> Igreja,<br />

como as paróquias e associações pias. Elas significam a presença <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a Igreja na base, quer<br />

dizer, a Igreja <strong>de</strong>ntro do povo pobre e humil<strong>de</strong>”. 132 O povo <strong>de</strong> Canudos tinha amor à Igreja,<br />

sentia-se responsável, não somente pela construção <strong>da</strong>s igrejas velha e nova, como também pelas<br />

diversas outras capelas nas cercanias do arraial belo-montense. No Belo Monte, o povo pobre<br />

apropriou-se <strong>da</strong> liturgia, coor<strong>de</strong>nava as liturgias <strong>da</strong> Palavra, participava <strong>da</strong>s missas, fazia<br />

procissões, cantava os benditos, animava pela oração a vi<strong>da</strong> machuca<strong>da</strong>.<br />

3.8- Fun<strong>da</strong>mentos bíblicos e teológicos <strong>da</strong> eclesiologia <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Canudos<br />

Antônio Conselheiro <strong>de</strong>stacou os pontos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Igreja: origem<br />

divina, sucessão apostólica, Tradição eclesial, referência aos Santos Padres, bispos, sacerdotes e<br />

128<br />

Puebla, 42.<br />

129<br />

Evangelii Nuntiandi, 58. Cit. por EN.<br />

130<br />

EN, 58.<br />

131<br />

EM, 58.<br />

132<br />

BOFF, Leonardo, Novas fronteiras <strong>da</strong> Igreja: o futuro <strong>de</strong> um povo a caminho, Campinas (SP): Verus Editora,<br />

2004, p. 66-67.


175<br />

diversas outra li<strong>de</strong>ranças cristãs. Essa é a conclusão dos que têm acesso aos seus manuscritos.<br />

Eles revelam um autêntico católico orientado pelos ensinamentos <strong>da</strong> fé cristã. Eduardo Hoornaert<br />

não <strong>de</strong>ixa dúvi<strong>da</strong>s ao falar dos manuscritos do Conselheiro, utilizados na sua catequese. As<br />

“prédicas do Beato apresentavam uma doutrina católica perfeitamente ortodoxa”. 133 Não <strong>de</strong>ixou<br />

dúvi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> que a Igreja é <strong>de</strong> instituição divina: “Foi Nosso Senhor Jesus Cristo, fiéis, que fundou<br />

a sua Igreja”. 134 Sentiu-se indigno <strong>de</strong> ser encarregado <strong>de</strong> construir a igreja <strong>de</strong> Santo Antônio <strong>de</strong><br />

Canudos. 135 A Igreja é obra <strong>de</strong> Jesus, que veio aperfeiçoar a lei antiga e apresentar as novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

do Reino <strong>de</strong> Deus. 136 Trabalhou com textos bíblicos, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u a sucessão apostólica, estimulou a<br />

prática dos sacramentos do batismo. Não escapou ao fun<strong>da</strong>mento evangélico <strong>da</strong> regeneração<br />

batismal: “para fazê-lo mais patente vejam o que diz Nosso Senhor Jesus Cristo [...] O que crer e<br />

for batizado será salvo, o que porém não crer será con<strong>de</strong>nado”. 137 Procurava instruir os membros<br />

<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> ao sacramento <strong>da</strong> penitência. 138 Transmitia aos fiéis: “O apóstolo diz aos<br />

romanos: não foi tão gran<strong>de</strong> o pecado como o benefício. On<strong>de</strong> o pecado abundou, superabundou<br />

a graça”. 139 A confissão só seria incontestavelmente necessária para a salvação 140 se houvesse<br />

arrependimento e reconciliação. Os pecadores “<strong>de</strong>vem penetrar-se <strong>de</strong> viva dor <strong>de</strong> haver cometido<br />

tantas misérias, e <strong>da</strong>í por diante fazerem firme propósito <strong>de</strong> emen<strong>da</strong>, assim como satisfizeram a<br />

penitência que for imposta pelo confessor”. 141<br />

O Beato usou o texto evangélico <strong>da</strong> sucessão <strong>de</strong> Pedro (cf. Mt 16,18); 142 apresentou os<br />

Santos Padres como colunas <strong>da</strong> Igreja, na continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> sucessão apostólica; ensinou a seus<br />

133<br />

DOORNAERT, Eduardo, Os anjos <strong>de</strong> Canudos: uma revisão histórica..., p. 115.<br />

134<br />

MAC, p. 550.<br />

135<br />

Cf. MAC, p. 537.<br />

136<br />

Cf. MAC, p. 542.<br />

137<br />

Cf. MAC, p. 565. Os textos tirados <strong>da</strong> Bíblia não aparecem entre aspas. Porém, acompanha sempre a citação<br />

antes e <strong>de</strong>pois do texto.<br />

138 MAC, 565.<br />

139 MAC, 432.<br />

140 Cf. MAC, p. 525.<br />

141 MAC, p. 527-528.<br />

142 Cf. MAC, 435.


fiéis que quando a Igreja, por meio <strong>de</strong> seus ministros legitimamente or<strong>de</strong>nados, abençoa o povo<br />

<strong>de</strong> Deus, invocando a Trin<strong>da</strong><strong>de</strong> Santíssima, essa bênção chega até Deus. 1 Antônio Conselheiro<br />

cultivou a Igreja em Canudos sem <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar suas notas fun<strong>da</strong>mentais: Igreja Una, Santa<br />

Católica e Apostólica. Admitiu a hierarquia, instruiu o povo para os sacramentos, especialmente<br />

eucaristia, Batismo e Penitência. Para ele, participar <strong>da</strong> eucaristia era a melhor obra do cristão. A<br />

missa é carrega<strong>da</strong> <strong>de</strong> significações e mistérios. 2 Era uma Igreja, portanto, alimenta<strong>da</strong> pelos<br />

sacramentos. Não faltaram os elementos essenciais <strong>da</strong> Igreja <strong>de</strong> Cristo. Foi uma Igreja<br />

samaritana, acolhia os pobres; uma Igreja misericordiosa, tolerante com os fracos; uma Igreja<br />

pobre, organiza<strong>da</strong> pelos pobres, alimenta<strong>da</strong> pelos sacramentos e pela mística dos Dez<br />

Man<strong>da</strong>mentos. Canudos continua sendo uma luz para iluminar a experiência <strong>da</strong> Igreja dos pobres<br />

hoje. É cantado hoje pelo povo nas romarias do Nor<strong>de</strong>ste, nas missas e celebrações populares,<br />

conforme Roberto Malveze (Gogó), ao compor o hino <strong>da</strong> Romaria do centenário do massacre <strong>de</strong><br />

Canudos, em 1997: 3<br />

Levantei cedo Eu também peguei a estra<strong>da</strong>. Hoje eu não perco por na<strong>da</strong>. A romaria <strong>de</strong><br />

Canudos. Fiz a oração. Pedi bênção, pedi luz. Vou à gran<strong>de</strong> romaria. Do arraial do bom<br />

Jesus.<br />

Vou, vou a Canudos. Do Conselheiro. E <strong>de</strong> tantos meus irmãos. Vou, vou celebrar.<br />

Esses cem anos <strong>de</strong> paixão e ressurreição.<br />

Cheguei a Canudos. E fiquei emocionado. É gente <strong>de</strong> todo lado. Que se achega no sertão.<br />

Lembrei <strong>da</strong> guerra. E <strong>de</strong> Antônio Conselheiro. E <strong>de</strong> tantos sertanejos. Que morreram neste<br />

chão.<br />

Já faz cem anos. E o sertão não mudou na<strong>da</strong>. Continua abandonado. Na miséria e solidão.<br />

Já faz cem anos. Eu tô na mesma caminha<strong>da</strong>. Tô na luta pela terra.. Pelo pão e pela água.<br />

Do nosso povo. Roubam tudo o que ele tem. Roubam terra, roubam sonhos. Roubam a<br />

vi<strong>da</strong> também. E é movido. Por tanta necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> que o povo segue em frente. Atrás <strong>de</strong><br />

FELICIDADE.<br />

1 Cf. MAC, 500-501.<br />

2 Cf. MAC, 509-512.<br />

3 COMISSÃO DA ROMARIA E INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS, Canudos, 100 anos do<br />

massacre no sertão: Cantos, Paulo Afonso (BA): Fonte Viva, 1997, p.1<br />

176


Conclusão<br />

A formação religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, sua experiência nas an<strong>da</strong>nças com Padre<br />

Ibiapina e Padre Cícero, garantiram-lhe um legado útil ao trabalho <strong>de</strong>senvolvido no Belo Monte,<br />

especialmente nos três anos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> comunitária. Percebemos a natureza eclesial <strong>da</strong> experiência<br />

<strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> em Canudos: a intensa vi<strong>da</strong> comunitária, a vivência dos sacramentos, o amor à<br />

Igreja, admissão <strong>da</strong> hierarquia eclesiástica e o entusiasmo dos integrantes do movimento.<br />

Este terceiro capítulo nos possibilitou um aprofun<strong>da</strong>mento maior do pensamento <strong>de</strong><br />

Antônio Conselheiro. Ele escreveu e <strong>de</strong>senvolveu, nas prédicas ao povo, temas como os<br />

sacramentos (batismo, penitência e eucaristia), a Bíblia, a Igreja, a sucessão apostólica, os Santos<br />

Padres. Teceu duras críticas ao sistema republicano, reagiu ao latifúndio, não aceitou estabelecer<br />

relações com parte do clero omisso diante <strong>da</strong>s injustiças e subserviente às oligarquias rurais.<br />

Canudos se aproximou <strong>da</strong> harmonização entre carisma e po<strong>de</strong>r, fé e vi<strong>da</strong>, conhecimento<br />

doutrinal e vivência <strong>da</strong> fé. Antônio Conselheiro adotou como regra reagir às formas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que<br />

não estivessem a serviço dos moradores <strong>de</strong> Canudos: <strong>de</strong>svalidos, fracos, pobres e excluídos. Ele<br />

adotou como regra em sua prática pastoral, a primazia do carisma sobre o po<strong>de</strong>r, a prática sobre a<br />

teoria, a ortopráxis <strong>da</strong> fé sobre a ortodoxia doutrinal – mesmo sabendo que a doutrina <strong>da</strong> Igreja<br />

ensina<strong>da</strong> pelo Beato não se diferenciava <strong>da</strong> adota<strong>da</strong> pelos padres do sertão. Com um diferencial:<br />

havia exigências e proibições na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Eram proibidos: uso <strong>de</strong> bebi<strong>da</strong>s alcoólicas, prostituição, viver por conta própria sem se<br />

preocupar com os pobres. Essa novi<strong>da</strong><strong>de</strong> aconteceu sem que o Conselheiro adotasse uma postura<br />

polêmica. Seu envolvimento com a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, o cui<strong>da</strong>do com os ministérios, a luta para<br />

plantar, comercializar, prover as necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s básicas <strong>da</strong> população e superar os problemas<br />

internos não permitiam margem para disputas i<strong>de</strong>ológicas. A vi<strong>da</strong> do Conselheiro foi ocupa<strong>da</strong><br />

com as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s no acampamento. As reações partiram <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> República, <strong>da</strong><br />

177


178<br />

imprensa oficial, <strong>de</strong> coronéis <strong>da</strong> região, <strong>de</strong> setores <strong>da</strong> Igreja e do Juiz <strong>de</strong> Juazeiro. O último ano<br />

<strong>de</strong> vi<strong>da</strong> em Canudos foi <strong>de</strong> luta intensa para se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r <strong>da</strong> ação do governo republicano, do<br />

governador <strong>da</strong> Bahia, dos coronéis do sertão e dos que se sentiam ameaçados pelo que acontecia<br />

em Canudos.


CONCLUSÃO GERAL<br />

Não é preciso enfatizar a importância <strong>de</strong> se “revisitar” Canudos. Ca<strong>da</strong> estudo sobre o Belo<br />

Monte e Antônio Conselheiro contribui para <strong>de</strong>mitologizar e <strong>de</strong>smistificar o caráter incruento e as<br />

tensões que fizeram com que Canudos ressurgisse, não obstante a ação violenta do Estado. Do<br />

ponto <strong>de</strong> vista objetivo, a Guerra <strong>de</strong> Canudos foi uma perversi<strong>da</strong><strong>de</strong> humana. Mesmo com os<br />

argumentos usados pelos patrocinadores <strong>da</strong> carnificina, realiza<strong>da</strong> há mais <strong>de</strong> cem anos<br />

(“justificativas injustificáveis”), Canudos <strong>de</strong>safia às ciências criminalista, sociais, políticas e a<br />

própria ciência teológica.<br />

O massacre ocorrido na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Antônio Conselheiro precisa continuar passando<br />

por uma a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> reavaliação histórica. “Revisitar Canudos” é aprimorar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> histórica do<br />

ponto <strong>de</strong> vista dos “vencidos” e eluci<strong>da</strong>r o que po<strong>de</strong>mos apren<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sse episódio que provocou<br />

uma mancha nas páginas <strong>da</strong> historiografia brasileira. O pluralismo nessa abor<strong>da</strong>gem revela a<br />

importância que Canudos <strong>de</strong>ixou para os religiosos, acadêmicos, pesquisadores e escritores. Um<br />

gran<strong>de</strong> passo foi <strong>da</strong>do.<br />

Somente a partir <strong>da</strong>s últimas déca<strong>da</strong>s, as ciências sociais estão conseguindo ultrapassar o<br />

preconceito dos chamados movimentos “messiânicos”. 1 Essa “<strong>de</strong>mora” po<strong>de</strong> ser atribuí<strong>da</strong> às<br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos acadêmicos em <strong>de</strong>spertar o interesse pela religião ou o fenômeno religioso,<br />

1 Cf. Rossi, Luis Alexandre S, Messianismo e mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>: repensando o messianismo..., p. 17-61.


como objeto <strong>de</strong> estudos pelas universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. A preocupação com a religião na aca<strong>de</strong>mia quase<br />

sempre ficou “esqueci<strong>da</strong>” ou relega<strong>da</strong> a plano secundário.<br />

O positivismo francês, o marxismo ortodoxo e seus continuadores no Brasil quase sempre<br />

tiveram um olhar “atravessado” para o fenômeno religioso e a religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> popular. A história <strong>da</strong><br />

positivismo nasceu com o empirista inglês D. <strong>de</strong> Hume, mas teve como seu principal<br />

representante o francês Augusto Conte, <strong>de</strong> quem nossos intelectuais brasileiros são her<strong>de</strong>iros. A<br />

idéia <strong>da</strong> religião como “ópio do povo” ou a ser supera<strong>da</strong> pela “ciência positiva”, marcou o<br />

pensamento acadêmico no Brasil e atrasou a compreensão do papel <strong>da</strong> religião na história<br />

humana.<br />

Para o professor <strong>de</strong> ciências <strong>da</strong> religião, no curso <strong>de</strong> Pós-Graduação na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Metodista (SP), Dr. Antônio G. Mendonça, a “pesquisa científica <strong>da</strong> religião no Brasil, segundo a<br />

concepção mais ou menos generaliza<strong>da</strong>, ganha corpo com os trabalhos <strong>de</strong> Emílio Willems (1967),<br />

Beatriz Muniz <strong>de</strong> Souza Camargo (1969), Cândido Procópio F. <strong>de</strong> Camargo (1973) e Valdo<br />

César (1973) antes dos anos 80”. 2 Surgiram muitas dúvi<strong>da</strong>s quanto à necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ocupar a<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> com a Ciência <strong>da</strong> Religião, enquanto objeto científico. Como a Ciência <strong>da</strong> Religião<br />

vem se afirmando como área <strong>de</strong> conhecimento, ain<strong>da</strong> há uma certa busca <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>. Em 1981,<br />

Donald Wiebe lança um livro, traduzido no Brasil em 1998, fazendo diferenciação entre ciências<br />

<strong>da</strong> religião e ciência <strong>da</strong> religião. Donald Wiebe trabalha com a distinção semântica:<br />

Por via <strong>de</strong> regra, em discussões metodológicas antigas e recentes, distingue-se <strong>de</strong> maneira<br />

bastante clara a expressão “ciência <strong>da</strong> religião” <strong>da</strong>s expressões “as ciências <strong>da</strong> religião e<br />

“o estudo científico <strong>da</strong> religião”. Enten<strong>de</strong>-se, em geral, que as últimas referem-se à<br />

aplicação aos fenômenos religiosos <strong>da</strong>s metodologias e técnicas <strong>da</strong>s várias ciências sociais<br />

(por exemplo, psicologia, antropologia, sociologia etc.), juntamente com suas presunções<br />

e pressupostas concomitantes. Por outro lado, enten<strong>de</strong>-se que a expressão “ciência <strong>da</strong><br />

religião” indica uma disciplina totalmente diferente, que é, em termos metodológicos,<br />

2 MENDONÇA, Antônio Gouvêa, Dois pioneiros e um passeur <strong>de</strong> frontières, in: TEIXEIRA, Faustino (org.), A(s)<br />

Ciência(s) <strong>da</strong> religião no Brasil: afirmação <strong>de</strong> uma área acadêmica, São Paulo: Paulinas, 2002, p. 235.<br />

180


distinta <strong>da</strong>s outras ciências e que, por conseguinte, é completamente autônoma ain<strong>da</strong> que<br />

se utilize “resultados” obtidos pelas ciências sociais. 3<br />

181<br />

O mesmo acontece com os movimentos messiânicos e milenaristas. É do início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> 2960 que surgem as primeiras obras, a exemplo <strong>de</strong> O Messianismo no Brasil e no mundo, <strong>de</strong><br />

Maria Isaura <strong>de</strong> Queiroz, com primeira edição em 1963 e o livro <strong>de</strong> Douglas Teixeira Monteiro,<br />

<strong>de</strong> 1974. 4 Esses dois autores abriram uma discussão profícua sobre os movimentos messiânicos e<br />

milenaristas, na universi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Um outro fator foram os estudos a respeito do catolicismo popular no campo teológico,<br />

sua tipologia e relação com o catolicismo oficial. Nesse contexto eclodiram também as pesquisas<br />

sobre o movimento <strong>de</strong> Canudos, a valorização <strong>da</strong> religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> popular e a força revolucionária<br />

<strong>da</strong> mística cristã.<br />

Aos poucos a religião vai <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> ser objeto <strong>de</strong> alienação e <strong>da</strong>ndo lugar à força<br />

revolucionária. A Teologia <strong>da</strong> Libertação, as CEBs – com seus encontros Intereclesiais – o<br />

Centro <strong>de</strong> Estudos Bíblicos (CEBI), os encontros <strong>de</strong> Conjuntura Nacional, a fun<strong>da</strong>ção do Partido<br />

dos Trabalhadores, etc., tiveram uma função prepon<strong>de</strong>rante na compreensão do papel <strong>da</strong><br />

religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> popular na transformação social. A teologia <strong>da</strong> Libertação estabeleceu uma conexão<br />

com as CEBs e suas implicações mútuas. As reflexões <strong>de</strong> Leonardo Boff sobre Teologia <strong>da</strong><br />

Libertação e CEBs são reveladoras: “as comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s eclesiais representam a prática <strong>da</strong> libertação<br />

popular e a teologia <strong>da</strong> libertação, a teoria <strong>de</strong>sta prática”. 5<br />

O estudo sobre Canudos, na perspectiva dos vencidos, beneficiou-se <strong>de</strong>sse movimento na<br />

área <strong>da</strong>s ciência humanas, sociais e teológica, <strong>de</strong>ntro e fora <strong>da</strong> Igreja. No tocante ao<br />

acontecimento <strong>da</strong> guerra contra o povo do Conselheiro, o início <strong>da</strong>s Romarias, a partir <strong>de</strong> 1983,<br />

3 DREHER, Luís Henrique, Ciência(s) <strong>da</strong> religião: teoria e Pós-Graduação no Brasil, in: TEIXEIRA, Faustino (org.),<br />

A(s) Ciências <strong>da</strong> religião no Brasil..., p. 272-272.<br />

4 Cf. Bibliografia no final.<br />

5 BOFF, Leonardo, Novas Fronteiras <strong>da</strong> Igreja: o futuro <strong>de</strong> um povo a caminho, Campinas (SP): Verus Editora,<br />

2004, p. 145.


182<br />

<strong>de</strong>u um novo impulso à versão <strong>da</strong> história ao reverso e a popularização <strong>da</strong>s causas do massacre. A<br />

história <strong>da</strong>s romarias iniciou em 1983, com o envolvimento <strong>de</strong> dioceses do sertão <strong>da</strong> Bahia:<br />

Senhor do Bonfim, Rui Barbosa, Juazeiro e Paulo Afonso. A partir <strong>de</strong> 1993, ano do centenário <strong>da</strong><br />

chega<strong>da</strong> <strong>de</strong> Antônio Conselheiro em Canudos, a Comissão <strong>da</strong> Romaria ampliou abriu-se, para<br />

outras enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Foram convi<strong>da</strong><strong>da</strong>s para fazer parte <strong>da</strong> coor<strong>de</strong>nação amplia<strong>da</strong> <strong>da</strong> Romaria<br />

Centenária diversas enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s: a Comissão Pastoral <strong>da</strong> Terra (CPT), Sub-regionais 6 e 7 <strong>da</strong><br />

CNBB, Conselho Indigenista Missionário (CIME), Igreja Batista Nazarth (Salvador), Instituto<br />

Regional <strong>da</strong> Pequena Agricultura Apropria<strong>da</strong> (IRPAA), Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Sergipe (UFS) e<br />

Grupo <strong>de</strong> Peregrinos do Nor<strong>de</strong>ste. Nesse mesmo ano do centenário, a Comissão Amplia<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

Romaria criou o Instituto Popular Memorial <strong>de</strong> Canudos, com o objetivo <strong>de</strong> estimular a reflexão<br />

sobre o exemplo histórico <strong>de</strong> Canudos, revelar a viabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los sociais e <strong>da</strong> luta nos dias<br />

atuais e preservar o acervo histórico que vier a ser adquirido sobre Canudos.<br />

Alexandre Otten reconheceu o valor <strong>da</strong>s ciências sociais e humanas na reflexão sobre<br />

Canudos. As “ciências humanas e sociais, em suas pesquisas sobre os movimentos por elas<br />

chamados “messiânicos”, <strong>de</strong>sfizeram o preconceito social que pesava sobre os integrantes <strong>de</strong>sses<br />

movimentos”. 6 Com isso a pesquisa sobre Canudos ganhou o impulso merecido. Esta dissertação<br />

vem na esteira <strong>de</strong>sse movimento e procurou contribuir para a história dos “vencidos”, mas,<br />

principais protagonistas, mesmo sendo vítimas na história.<br />

Será que este trabalho abriu pistas novas na discussão sobre a experiência religiosa e<br />

sociopolítica <strong>de</strong> Canudos? Canudos foi mais que um acontecimento qualquer. Foi um fato<br />

histórico ain<strong>da</strong> não esgotado no meio científico. Prevaleceu nele a experiência <strong>de</strong> um povo<br />

in<strong>de</strong>feso e vítima do jogo <strong>da</strong>s elites <strong>da</strong>quele tempo.<br />

6 OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro..., p. 357.


183<br />

Fizemos um caminho. No primeiro capítulo, apresentamos a figura histórica <strong>de</strong> Antônio<br />

Conselheiro, sua família, vi<strong>da</strong>, formação, conversão, influências dos padres Ibiapina e Cícero <strong>de</strong><br />

Juazeiro. Mostramos a relação entre Antônio Conselheiro e os dois padres: semelhanças e<br />

especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s. O Beato <strong>de</strong>u um passo além. Enquanto os padres Ibiapina e Cícero cui<strong>da</strong>vam dos<br />

pobres, criavam estruturas (Casas <strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, etc.), não “incomo<strong>da</strong>vam” às elites políticas e ao<br />

latifúndio. A prática <strong>de</strong> Antônio Conselheiro e a forma <strong>de</strong> organização social incomo<strong>da</strong>ram as<br />

estruturas políticas e eclesiais. Antônio Conselheiro antecipou a opção preferencial pelos pobres,<br />

protagoniza<strong>da</strong> por Me<strong>de</strong>lín (1968), aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong> em Puebla (1979) e explicita<strong>da</strong> pela Teologia <strong>da</strong><br />

Libertação. Conclui-se o primeiro capítulo com uma reflexão crítica sobre a contextualização do<br />

Nor<strong>de</strong>ste brasileiro no tempo <strong>de</strong> Antônio Conselheiro: a problemática política, a que<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

Monarquia, a crise econômica, a separação entre a Igreja e o Estado, a questão religiosa, o<br />

processo <strong>de</strong> romanização e o catolicismo popular <strong>de</strong> tradição portuguesa.<br />

No segundo capítulo, através dos Manuscritos <strong>de</strong>ixados pelo Conselheiro, fez-se uma<br />

leitura do universo religioso do Beato. Fontes como a Bíblia Sagra<strong>da</strong>, a Missão Abrevia<strong>da</strong>, As<br />

Horas Marianas aju<strong>da</strong>ram na compreensão <strong>da</strong> formação <strong>de</strong> Antônio Conselheiro e a soli<strong>de</strong>z <strong>de</strong><br />

seu projeto pastoral. A partir <strong>de</strong>ssas fontes e do aprendizado nos conflitos <strong>de</strong> terra, pobreza e<br />

crise econômica no Nor<strong>de</strong>ste, <strong>de</strong>senvolvemos uma leitura sistemática do pensamento teológico <strong>de</strong><br />

Antônio Conselheiro.<br />

No terceiro capítulo, aprofun<strong>da</strong>mos a eclesiologia propriamente dita. Partindo dos<br />

Manuscritos do Peregrino muitos mitos po<strong>de</strong>m ser superados. O primeiro foi a acusação feita<br />

pelo Frei João Evangelista, emissário do Arcebispo <strong>da</strong> Bahia: “É meu pesar esse, é uma doutrina<br />

erra<strong>da</strong> a vossa” 7 , afirma o capuchinho. Tanto as fontes usa<strong>da</strong>s por ele (Bíblia, Missão Abrevia<strong>da</strong>,<br />

etc.), quanto os Manuscritos revelam o contrário. A doutrina ensina<strong>da</strong> por Antônio Conselheiro à<br />

7 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 4.


184<br />

sua gente, não se diferenciava <strong>da</strong> que a Igreja doutrinava seus fiéis. Os manuscritos revelaram<br />

uma doutrina sistemática (sobre Deus, Jesus Cristo, Espírito Santo, sacramentos, man<strong>da</strong>mentos,<br />

fé, etc.), ortodoxa, coerente e clara.<br />

A Pergunta fun<strong>da</strong>mental que foi trabalha<strong>da</strong> nesta pesquisa foi: se Antônio Conselheiro<br />

apropriou-se <strong>da</strong> doutrina oficial <strong>da</strong> Igreja, qual a novi<strong>da</strong><strong>de</strong> na sua experiência eclesial? Eis a<br />

questão fun<strong>da</strong>mental. O Peregrino trabalhou em sua comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> eclesial um gargalo que sempre<br />

<strong>de</strong>safiou à Igreja: a doutrina cristã e sua prática. Ao visitar as Prédicas do Conselheiro foi<br />

possível perceber que não há dois tipos <strong>de</strong> discurso – um religioso e o outro político – que se<br />

justaponham. Mesmo sem querer fundir os discursos – semanticamente são diferentes – o<br />

discurso <strong>de</strong> Antônio Conselheiro foi religioso. Neste estava embuti<strong>da</strong> uma proposta política. Frei<br />

Beto esclarece:<br />

não é tanto pelo objeto ou pela temática que abor<strong>da</strong> que o discurso religioso se<br />

distingue do discurso político. É a estrutura <strong>de</strong> um e outro discurso que difere. As<br />

regras que coman<strong>da</strong>m o discurso religiosos não são as mesmas regras que<br />

coman<strong>da</strong>m o discurso político. O primeiro se dá a partir <strong>da</strong> esfera do sagrado,<br />

supõe a a<strong>de</strong>são <strong>da</strong> fé a uma revelação sobrenatural, fala sobretudo do <strong>de</strong>ve ser. O<br />

segundo se dá a partir <strong>da</strong> esfera do real, <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> científica, fala<br />

sobretudo do que é e visa a transformação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. 8<br />

O viés do Conselheiro sempre foi o sagrado. Fiorim também faz uma distinção entre o<br />

discurso religioso e o discurso político. “No primeiro aparecem os semas /universali<strong>da</strong><strong>de</strong>/,<br />

transcendência/, eterni<strong>da</strong><strong>de</strong>/; no outro estão presentes /contingenciali<strong>da</strong><strong>de</strong>/, /imanência/,<br />

temporali<strong>da</strong><strong>de</strong>/, com to<strong>da</strong>s as marcas-morfo-sintáticas que isso implica”. 9 O discurso religioso e o<br />

discurso político procura, ao seu modo, dá uma resposta ao mistério <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. O discurso religioso<br />

do Conselheiro era militante e, portanto, prático e transformador. Ele acreditava que a Igreja tinha<br />

8<br />

BETO, (Frei), Da prática <strong>da</strong> pastoral popular: encontros com a civilização brasileira, Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Civilização Brasileira, 1978, p. 99.<br />

9<br />

FIORIN, José Luis, A ilusão <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> discursiva..., p. 260. Segundo o dicionarista Aurélio, sema vem do<br />

grego (sêma, atos) e significa “Traço semântico mínimo não possível <strong>de</strong> ocorrência in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”. In: Sema,<br />

FERREIRA, Aurélio, Novo Aurélio século XXI: o dicionário <strong>da</strong> língua portuguesa, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova<br />

Fronteira, 1999, p. 1832.


185<br />

um papel <strong>de</strong>terminante na construção <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> libertação do povo. Canudos foi uma<br />

resposta religiosa a um problema que extrapolava o âmbito meramente religioso. O discurso<br />

religioso em Canudos tinha como objetivo:<br />

oferecer ao homem parâmetros para a compreensão <strong>da</strong> História, por meio <strong>de</strong> um sentido<br />

meta-histórico. O meio <strong>de</strong> o ser humano suportar a história, numa socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> classes, é<br />

proclamar o seu fim, projetando numa utopia a realização do i<strong>de</strong>al cristão <strong>de</strong> igual<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e fraterni<strong>da</strong><strong>de</strong>, que é intrínseco à doutrina do cristianismo, uma vez que todos<br />

são filhos do mesmo Pai e irmãos em Cristo. 10<br />

A Igreja em Canudos uniu os sertanejos, abriu espaço para os ministérios <strong>de</strong> serviços,<br />

alimentou a utopia e trouxe sentido para a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> quem chegava. Em Canudos, o povo encontrou<br />

esperança. A projeção <strong>da</strong> resolução dos problemas em Deus, não levava o povo ao comodismo.<br />

Ao contrário, ca<strong>da</strong> pessoa tinha uma função na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Antônio Conselheiro, à semelhança<br />

dos santos, intuiu a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> libertação do sertanejo. Boff afirma:<br />

Não é sem razão que os gran<strong>de</strong>s movimentos renovadores, as novas formas <strong>de</strong> pie<strong>da</strong><strong>de</strong>, os<br />

gran<strong>de</strong>s profetas, santos e místicos irromperam do meio popular, on<strong>de</strong> a experiência <strong>de</strong><br />

Deus e <strong>de</strong> Jesus Cristo, livre do superegos <strong>da</strong> doutrina oficial, podia ensaiar uma nova<br />

mediação. Sem o catolicismo popular não vive o catolicismo oficial, sem o catolicismo<br />

oficial não se legitima em seu caráter católico o catolicismo popular. 11<br />

A Igreja em Canudos favoreceu criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> ao povo, <strong>de</strong>u vazão para a experiência<br />

religiosa e alimentou o sonho <strong>de</strong> uma Igreja comprometi<strong>da</strong> com as causas do povo. O silêncio <strong>de</strong><br />

Antônio Conselheiro frente às autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s eclesiásticas revelou um homem consciente <strong>de</strong> sua<br />

missão, crente que estava vivendo o Batismo cristão e continuador <strong>da</strong> missão aprendi<strong>da</strong> com o<br />

Padre Ibiapina. Ao tentar proibir a ação missionário <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, a Igreja Católica no<br />

Brasil per<strong>de</strong>u a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> apoiar uma iniciativa genuinamente leiga, <strong>de</strong> fortalecer o laicato<br />

e encontrar um caminho novo, diante do imobilismo eclesial do final do século XIX, trazido pela<br />

10 FIORIN, José Luis, A ilusão <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> discursiva..., p. 290.<br />

11 BOFF, Leonardo, Igreja, Carisma e po<strong>de</strong>r: ensaios <strong>de</strong> eclesiologia militante, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 2005, p.<br />

181.


186<br />

separação entre Igreja e Estado e aprofun<strong>da</strong>do pela romanização. A experiência <strong>de</strong> Canudos era<br />

uma luz que ia se ascen<strong>de</strong>ndo, no coração <strong>da</strong> Igreja.<br />

Mesmo que a experiência <strong>de</strong> Antônio Conselheiro tenha sido <strong>de</strong> pouca duração, Canudos<br />

<strong>de</strong>ixou alguns exemplos para nossa história. Diante dos conflitos <strong>de</strong>vemos ter prudência. Por falta<br />

<strong>de</strong> cautela, a Igreja comemorou em vários lugares a massacre <strong>de</strong> Canudos. Além <strong>de</strong> o Relatório<br />

do capuchinho ter sido favorável aos militares, a hierarquia católica apoiou o alto comando <strong>da</strong><br />

guerra e comemorou a vitória do Exército sobre os brasileiros <strong>de</strong> Canudos, em vários estados:<br />

O general Savaget, quando voltou ferido <strong>de</strong> Canudos, ficou hospe<strong>da</strong>do no palácio<br />

do arcebispo, em Salvador. Em agosto or<strong>de</strong>nou a realização <strong>de</strong> preces públicas em<br />

todo o Estado <strong>da</strong> Bahia apoiando a ação do Exército. No Pará, antes do embarque<br />

<strong>da</strong> milícia paraense para a Bahia, houve uma missa campal, com o arcebispo<br />

<strong>da</strong>ndo as bênçãos <strong>da</strong> Igreja aos sol<strong>da</strong>dos. Quando do retorno <strong>da</strong>s tropas foi reza<strong>da</strong><br />

uma missa campal em Salvador, na Praça Duque <strong>de</strong> Caxias, ao lado do<br />

monumento aos heróis <strong>de</strong> 2 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1823. Também em São Paulo, o batalhão<br />

policial paulista foi recebido com uma missa na igreja <strong>da</strong> Sé. 12<br />

Essa marca na Igreja po<strong>de</strong>rá servir para alimentar nosso discernimento diante <strong>da</strong><br />

voraci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s forças do Estado ao <strong>de</strong>struir o povo do próprio País. Faltou um pouco mais <strong>de</strong><br />

percepção diante <strong>da</strong>s causas <strong>da</strong> guerra. Canudos foi vítima <strong>de</strong> um sistema político em <strong>de</strong>cadência.<br />

A bravura, os trabalhos <strong>de</strong> mutirão, a mística <strong>da</strong> luta, a experiência <strong>da</strong> Igreja <strong>de</strong> pobre para<br />

pobres, são exemplos <strong>de</strong>ixados pelo povo <strong>de</strong> Antônio Conselheiro. Finalmente, Canudos continua<br />

contado na alegria dos romeiros durante ca<strong>da</strong> ano na Romaria <strong>de</strong> Canudos: 13<br />

ALEGRIA POVO MEU, POIS CANUDOS NÃO MORREU ESTÁ VIVO NA UNIÃO,<br />

TÁ NA FÉ NO CORAÇÃO, NO CORAÇÃO.<br />

12 VILLA, Marco Antônio, Canudos: o povo <strong>da</strong> terra..., p. 222-223.<br />

13 COMISSÃO DA ROMARIA E INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS, Canudos, 100 anos do<br />

massacre no sertão: cantos..., p. 5.


Tá no homem na mulher, tá na flor <strong>da</strong> minha fé. Tá na terra na alegria no amor, na<br />

rebeldia. Pois Canudos é uma paixão, uma luta um sonho bom. Um caminho, um<br />

sacrifício pra vencer o Precipício. Tá na dor, tá no tormento, tá na vi<strong>da</strong> que irradia, tá na<br />

coragem e amamenta a criança que se cria. Tá na terra reparti<strong>da</strong>, tá na fé que vai crescer tá<br />

na vi<strong>da</strong> tão sofri<strong>da</strong> tá na dor que vai morrer.<br />

187


I- Fontes<br />

BIBLIOGRAFIA 1<br />

BENÍCIO, Manoel, O rei dos jagunços: crônicas históricas e <strong>de</strong> costumes sertanejos sobre<br />

os acontecimentos <strong>de</strong> Canudos, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Fun<strong>da</strong>ção Getúlio Vargas, 2. ed. [2 ed. 1899],<br />

1997.<br />

MACIEL, Antônio Vicente Men<strong>de</strong>s (Antônio Conselheiro), Tempesta<strong>de</strong>s que se levantam no<br />

Coração <strong>de</strong> Maria por ocasião do mistério <strong>da</strong> Anunciação: a presente obra mandou<br />

subscrever o Peregrino Antônio Vicente Men<strong>de</strong>s Maciel no povoado do Belo Monte,<br />

Província <strong>da</strong> Bahia em 12 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1887 (manuscrito publicado por Ataliba Nogueira).<br />

MARCIANO, Frei João Evangelista <strong>de</strong> Monte, Relatório apresentado pelo Reve. Frei João<br />

Evangelista <strong>de</strong> Monte Marciano, ao Arcebispo <strong>da</strong> Bahia sobre Antônio Conselheiro e seu<br />

séquito no Arraial <strong>de</strong> Canudos, 1895, [apresentação <strong>de</strong> José Calazans], Salvador: Centro <strong>de</strong><br />

Estudos Baianos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>da</strong> Bahia, 1987.<br />

MACEDO, Nertan, Memorial <strong>de</strong> Vilanova, 2.ed., Rio <strong>de</strong> Janeiro: Renes [Brasília]: INL, 1983.<br />

SAMPAIO, Consuelo Novais (org.), Canudos: cartas para o Barão, 2.ed., São Paulo: USP,<br />

2001.<br />

1 A divisão que se segue é principalmente <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m prática, visto que tantos títulos po<strong>de</strong>riam ocupar outro lugar que<br />

aquele que aqui se segue. Ela indica principalmente a perspectiva com que foram usados no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong>ste trabalho.


II. História <strong>de</strong> Canudos e Antônio Conselheiro<br />

BLOCH, Didier (org.), Canudos, 100 anos <strong>de</strong> produção: vi<strong>da</strong> cotidiana e economia dos<br />

tempos do Conselheiro até os dias atuais, Paulo Afonso [BA]: Fonte Viva, 1997.<br />

BOAVENTURA, Edvaldo, O Parque Estadual <strong>de</strong> Canudos, Salvador: Secretaria <strong>de</strong> Cultura e<br />

Turismo, 1997.<br />

CALAZANS, José, Antônio Conselheiro: construtor <strong>de</strong> igrejas e cemitérios, in: Revista<br />

Brasileira <strong>de</strong> Cultura, n. 16, 1973.<br />

__________,As mulheres <strong>de</strong> Os Sertões, in: RINALDO, <strong>de</strong> Fernan<strong>de</strong>s, O Clarim e a oração:<br />

cem anos <strong>de</strong> Os Sertões, São Paulo: Geração Editorial, 2002.<br />

__________,O Ciclo folclórico do Bom Jesus Conselheiro: contribuição ao estudo <strong>da</strong><br />

companhia <strong>de</strong> Canudos, Salvador: Tipografia Beneditina, 1950.<br />

__________, Quase Biografias <strong>de</strong> jagunços: o séquito <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, Salvador:<br />

UFBA, Centro <strong>de</strong> Estudos Baianos, n. 122, 1986.<br />

CALAZANS, José e NÓBREGA, José Dionísio, Soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong>, sim; igual<strong>da</strong><strong>de</strong>, não: <strong>aspectos</strong><br />

controvertidos do episódio <strong>de</strong> Canudos, in: INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE<br />

CANUDOS, BLOCH, Didier (org.), Canudos, 100 anos <strong>de</strong> produção: vi<strong>da</strong> cotidiana e<br />

economia dos tempos do Conselheiro até os dias atuais, Paulo Afonso (BA): Fonte Viva,<br />

1997.<br />

CUNHA, Eucli<strong>de</strong>s, Os sertões; [introdução M. Cavalcanti Proença; col. Prestígio], São Paulo:<br />

Ediouro, 2003.<br />

DOBRORUKA, Vicente, História e milenarismo: ensaios sobre tempo, história e milênio,<br />

Brasília: Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília, 2004.<br />

FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos; 2ª ed., [1.ed. 1959], Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira,<br />

1965.<br />

FIORIN, José Luis, A ilusão <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> discursiva: uma análise <strong>da</strong>s prédicas <strong>de</strong> Antônio<br />

Conselheiro. Dissertação <strong>de</strong> mestrado apresenta<strong>da</strong> na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1999.<br />

HOORNAERTE, Eduardo, Os anjos <strong>de</strong> Canudos: uma revisão histórica, Petrópolis: Vozes,<br />

1998.<br />

189


190<br />

INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS, Canudos: uma história <strong>de</strong> luta e<br />

resistência, 2. ed., Paulo Afonso [BA]: 1993.<br />

__________, Almanaque <strong>de</strong> Canudos 2002, Juazeiro [BA]: Gráfica Franciscana, 2002.<br />

LLOSA, Mario Vargas, A Guerra do fim do Mundo: a saga <strong>de</strong> Antônio Conselheiro na<br />

maior aventura literária do nosso tempo, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Francisco Alves, 1982.<br />

MONIZ, Edmundo, A Guerra social <strong>de</strong> Canudos, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.<br />

_________, Canudos: a luta pela terra, São Paulo: Centro Editorial latino-americano, 1981.<br />

MONTENEGRO, Abelardo F., Fanáticos e cangaceiros, Fortaleza: Henrique Galeno, 1973.<br />

NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica, São Paulo:<br />

Nacional [Brasiliana, v. 355], 1974.<br />

OTTEN, Alexandre, Só Deus é gran<strong>de</strong>: a mensagem religiosa <strong>de</strong> Antônio Conselheiro, São<br />

Paulo: Loyola, 1990.<br />

PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual <strong>de</strong> passagem para um final <strong>de</strong> mundo, in: Estudos<br />

Bíblicos, n. 59, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 53-73.<br />

PINHEIRO, José Francisco, Dependência e marginali<strong>da</strong><strong>de</strong>: Conselheiro e Ibiapina no contexto<br />

<strong>da</strong> história econômica do Nor<strong>de</strong>ste, in: CENTRO DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-<br />

AMERICANOS (CEHILA), Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo: Paulinas, 1984.<br />

PINTO, Luiz Fernando, A personali<strong>da</strong><strong>de</strong> carismática <strong>de</strong> Antônio Conselheiro: <strong>aspectos</strong><br />

psicanalíticos, in: Centenário <strong>de</strong> Belo Monte, revista <strong>da</strong> FAEBA/Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual <strong>da</strong><br />

Bahia, ano II, esp., Salvador (janeiro/junho), 1993.<br />

QUEIROZ, Maria Isaura <strong>de</strong>, O messianismo no Brasil e no mundo, São Paulo: Alfa-Omega,<br />

1977.<br />

RODRIGUES, Nina, As coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s anormais, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira, 1939.<br />

SOARES, Henrique-Estra<strong>da</strong> <strong>de</strong> Macedo, A Guerra <strong>de</strong> Canudos, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Altina, 1 ed.<br />

1902 [?], 1903.<br />

VASCONCELOS, Pedro Lima, Terra <strong>da</strong>s promessas, Jerusalém maldita: memórias bíblicas<br />

sobre Belo Monte (Canudos), 2004. Tese <strong>de</strong> doutorado apresenta<strong>da</strong> na Pontifícia Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Católica <strong>de</strong> São Paulo, 2004.


VILLA, Marco Antônio, Canudos, o povo <strong>da</strong> terra, São Paulo: Ática, 1995.<br />

III- Religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> popular<br />

ANTONIAZZI, Alberto, Evangelização e cultura, in: INSTITUTO NACIONAL DE<br />

PASTORAL, Evangelização e comportamento religioso popular, Petrópolis: Vozes, 1978, p.<br />

71-102.<br />

AZZI, Riolando, O catolicismo popular no Brasil, Petrópolis: Vozes, 1987.<br />

__________, O episcopado brasileiro frente ao catolicismo popular, Petrópolis: 1977.<br />

BARRETO, Francisco Murilo <strong>de</strong> Sá, Padre Cícero, São Paulo: Loyola, 2002.<br />

BETO, (Frei), Da prática <strong>da</strong> pastoral popular, encontros com a civilização brasileira, Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.<br />

CABRAL, Joaquim, “Missão Abrevia<strong>da</strong>”: <strong>da</strong> pobreza <strong>de</strong> uma teologia... ao estigma funesto<br />

<strong>de</strong> uma moral. Dissertação <strong>de</strong> licenciatura em teologia moral na Aca<strong>de</strong>mia Afonsiana, Pontifícia<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Lateranense, Roma: 1986.<br />

CENTRO DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS (CEHILA), Padre<br />

Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo: Paulinas, 1984.<br />

CLEMENT, Catherine e KAKAR, Sudhir, A louca e o santo, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Relume-Dumaré,<br />

1997.<br />

COMBLIN, José, Ibiapina, o missionário, in: CENTRO DE ESTUDOS HISTÓRICOS<br />

ATINO-AMERICANOS (CEHLA), Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo:<br />

Paulinas, 1984, p. 119-126.<br />

__________, Padre Cícero <strong>de</strong> Juazeiro, São Paulo: Paulinas, 1991.<br />

COSTA E SILVA, Cândido <strong>da</strong>, Roteiro <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e morte: um estudo do catolicismo <strong>da</strong> Bahia,<br />

São Paulo: Ática, 1882.<br />

COUTO, Padre José Gonçalves, Missão Abrevia<strong>da</strong> para <strong>de</strong>spertar os <strong>de</strong>scui<strong>da</strong>dos, converter<br />

os pecadores e sustentar o fruto <strong>da</strong>s missões, Porto: (11º ed.), 1878. – 25ª ed. 1900.<br />

FRAGOSO, Hugo, Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> restauração, I, Salvador, EPSSAL, 1993.<br />

191


192<br />

__________, As Beatas do Pe. Ibiapina: uma forma <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> religiosa para os sertões do Nor<strong>de</strong>ste,<br />

in: HOONAERT, Eduardo e GEORGETTE, Derochers (orgs.), O Padre Ibiapina e a Igreja<br />

dos pobres, São Paulo: Paulinas, 1984.<br />

HOORNEART, Eduardo, Crônicas <strong>da</strong>s Casas <strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Padre Ibiapina, São Paulo:<br />

Loyola, 1981.<br />

__________, O Cristianismo moreno no Brasil, Petrópolis: Vozes, 1990.<br />

__________, Ibiapina e os <strong>de</strong>sclassificados: à procura <strong>de</strong> uma chave interpretativa <strong>da</strong> crônica <strong>da</strong>s<br />

Casas <strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, in: CENTRO DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS,<br />

Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo: Paulinas, 1984, p. 69-84.<br />

__________, Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira e falsa religião no Nor<strong>de</strong>ste, Salvador: Beneditina, 1973. – (col.<br />

E.P.N).<br />

LIBANIO, João Batista, Critérios <strong>de</strong> autentici<strong>da</strong><strong>de</strong> do catolicismo, in: Catolicismo popular,<br />

Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis: v. XXXVI, 1976<br />

OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro <strong>de</strong>, O catolicismo do povo, in: INSTITUTO NACIONAL DE<br />

PASTORAL, Evangelização e comportamento religioso popular, Petrópolis: Vozes, 1978, p.<br />

11-40.<br />

PARRA, Alberto, Os ministérios na Igreja dos pobres, São Paulo: Vozes, 1991.<br />

RICHARD, Pablo, A espirituali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Igreja dos pobres, Petrópolis: Vozes, 1989.<br />

ROLIM, Francisco Cartaxo, Pentecostalismo: Brasil e América Latina, Petrópolis: Vozes [col.<br />

Teologia e Libertação, n.6], 1994.<br />

SITE DO GOOGLE, Bibliografia do Padre Cícero, 9 <strong>de</strong> agosto, 2005.<br />

SUESS, Paulo Güenter, Catolicismo popular no Brasil: tipologia <strong>de</strong> uma religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> vivi<strong>da</strong>,<br />

São Paulo: Loyola, 1979.<br />

VALLE, Edênio, Psicologia e religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> popular: pistas para uma reflexão pastoral, in:<br />

INSTITUTO NACIONAL DE PASTORAL, Evangelização e comportamento religioso<br />

popular, Petrópolis: Vozes, 1978, p. 41-67.


IV- Documentos do Magistério<br />

KLOPENBURG, Boaventura e VIER, Fre<strong>de</strong>rico (org.), Constituição Dogmática “Lumen<br />

Gentium”, in: Compêndio do Vaticano II: constituições, <strong>de</strong>cretos, <strong>de</strong>clarações, 15 ed.,<br />

Petrópolis: Vozes, 1983.<br />

__________, Decreto “Ad Gentes”, in: Compêndio do Vaticano II: constituições, <strong>de</strong>cretos,<br />

<strong>de</strong>clarações, 15. ed., Petrópolis: Vozes, 1983.<br />

COSENSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO, A evangelização no presente e no<br />

futuro <strong>da</strong> América-Latina, Conclusões <strong>da</strong> III Conferência Geral do Episcopado Latino-<br />

Americano, Puebla, São Paulo: Paulinas, 1986.<br />

IV- Outros escritos<br />

AGOSTINHO DE IPONA, De civitate Dei, 11-22.<br />

ALVES, Rubens, O suspiro dos oprimidos, São Paulo: Paulinas, 1992.<br />

__________, A volta do sagrado, in: O suspiro dos oprimidos, São Paulo: Paulinas, 1992.<br />

AZEVEDO, Thales, A guerra aos párocos, Salvador: EGBA, 1992.<br />

AZZI, Riolando, A Sé primacial <strong>de</strong> Salvador: Igreja católica na Bahia: Período imperial e<br />

republicano, Petrópolis: Vozes/Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Católica <strong>de</strong> Salvador, 2001.<br />

BARREIRO, Álvaro, Igreja, povo santo e pecador, São Paulo: Loyola, 2001.<br />

BOFF, Leonardo, A Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>, a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e a libertação, Petrópolis: Vozes, 1986.<br />

__________Igreja: Carisma e po<strong>de</strong>r, ed. rev., Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 2005.<br />

__________, Novas fronteiras <strong>da</strong> Igreja: o futuro <strong>de</strong> um povo a caminho, Campinas (SP):<br />

Verus Editora, 2004.<br />

BRUGER, Walter, Dicionário <strong>de</strong> Filosofia, São Paulo: EPU, 1977.<br />

BRASIL, Tomás Pompeu <strong>de</strong> Sousa, O Ceará no cenário <strong>da</strong> in<strong>de</strong>pendência, v. I, Fortaleza:<br />

1922.<br />

CALIMAN, Cleto, A eclesiologia do Vaticano II e a Igreja do Brasil, in: GONÇALVES, Paulo<br />

Sergio Lopes e BOMBONATTO, Vera Ivanise (orgs.), A eclesiologia do Vaticano II: análise e<br />

prospectivas, São Paulo: Paulinas, 2004, p. 229-248.<br />

193


CASALECCHI, José Enio, A proclamação <strong>da</strong> República, São Paulo: Brasiliense, 1982.<br />

CIPRIANO DE CARTAGO, De ecclesia catholicae unitate, 6,17.<br />

CONGAR, Yves, A Igreja como povo <strong>de</strong> Deus, in: Concílium, n. 1, 1965.<br />

__________, Proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s essenciais <strong>da</strong> Igreja, in: Mysterium Salutis, IV/3, Petrópolis: Vozes,<br />

1976,<br />

COMBLIN, José, Cristãos rumo ao século XXI, São Paulo: Paulus, 1996.<br />

__________, O povo <strong>de</strong> Deus, São Paulo: Paulus, 2002. – (col. Temas <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>).<br />

COMISSÃO DA ROMARIA E INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS,<br />

Canudos, 200 anos do massacre no sertão: Cantos, Paulo Afonso (BA): Fonte Viva, 1997.<br />

FALAS DO TRONO, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imprensa Nacional, 1889.<br />

ELLACUEÍA, I., El Pueblo crucificado: ensaio <strong>de</strong> soteriologia histórica, México:RLT, n.18,<br />

1984, p. 303-333.<br />

FAUSTINO, Teixeira (org.), A(s) ciência(s) <strong>da</strong> religião no Brasil: afirmação <strong>de</strong> uma área<br />

acadêmica, São Paulo: Paulinas, 2001.<br />

FURTADO, Celso, Formação econômica do Brasil, São Paulo: Nacional, 1974.<br />

GUTIERREZ, Gustavo, Teologia <strong>de</strong>lla liberazione: perspectivas, Brescia: Queriniana, 1971.<br />

HOORNAERT, Eduardo e DESROCHERS, Georgette (org.), Padre Ibiapina e a Igreja dos<br />

pobres, São Paulo: Paulinas, 1984.<br />

INÁCIO DE ANTIOQUIA, Carta aos Efésios, 9,1.<br />

IRINEU DE LIÃO, Contra as heresias, III, 24.<br />

IPÓLITO DE ROMA, Comentário <strong>de</strong> Daniel, 1,14-28.<br />

JORNAL DE NOTÍCIAS, Salvador, 16/6/1893.<br />

LACOSTE, Jean-Yves, Dicionário crítico <strong>de</strong> teologia, São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004.<br />

LIBANIO, João Batista, Gustavo Gutierrez, São Paulo: Loyola, 2004. – (col. Teologia do<br />

século XX, n.1).<br />

LIBANIO, João Batista e BINGEMER, Maria Clara L., Escatologia cristã, Petrópolis: Vozes,<br />

1985.<br />

194


195<br />

MARTINA, Giocomo, História <strong>da</strong> Igreja, <strong>de</strong> Lutero aos nossos dias: III – a era do<br />

liberalismo, São Paulo: Loyola, 1996.<br />

METZ, Johann Baptista, Sulla teologia Del mundo, Brescia: Queriniana, 1969.<br />

__________, Já “teologia política” in discussione, in: Debatito sulla sulla “teologia política”,<br />

Brescia: Queriniana, 1972, p. 232-176.<br />

MOLTMANN, Jürgen, Teologia <strong>de</strong> la esperanza, Salamanca: 1969.<br />

__________, Il Dio crocifisso: la Croce di Cristo, fun<strong>da</strong>mento e critica <strong>de</strong>lla teologia<br />

cistiana, Brescia: Quiriniana, 1973.<br />

MONDIN, Batista, As novas eclesiologias: uma imagem atual <strong>da</strong> Igreja, São Paulo: Paulinas,<br />

1984.<br />

MONTEIRO, Douglas Teixeira, Um confronto entre Juazeiro, Canudos e Contestado, in:<br />

FAUSTO, Bores (org.), História geral <strong>da</strong> civilização brasileira Rio <strong>de</strong> Janeiro: Bertrand Brasil<br />

[t. 3, v. 1], 1990.<br />

MONTEIRO, Hamilton <strong>de</strong> Matos, Nor<strong>de</strong>ste insurgente (1850-1890), São Paulo: Brasiliense,<br />

1981.<br />

MORE, Thomas, Utopia, São Paulo: Nova Cultural, 2004.<br />

PIO XII, Papa, Mystici corporis, in: Documentos <strong>de</strong> Pio XII (doc. Igreja, n. 5, trad. Poliglota<br />

Vaticana), São Paulo: Paulus, 1998.<br />

PINTO, Luís Araújo Junior, O Padre Ibiapina, precursor <strong>da</strong> opção pelos pobres na Igreja do<br />

Brasil, in: Perspectiva Teológica, Belo Horizonte: O lutador, n. 93, maio/agosto, 2002, p. 197-<br />

222.<br />

RABELO, Sílvio, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha, Rio <strong>de</strong> Janeiro: C.E.B., 1948.<br />

PAULO VI, Papa, Evangelii Nuntiandi.<br />

ROSSI, Luiz Alexandre S, Messianismo e mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>: repensando o messianismo a partir<br />

<strong>da</strong>s vítimas, São Paulo: Paulus, 2002.<br />

RUBENS, Pedro, Discerner la foi <strong>da</strong>ns <strong>de</strong>s contextes relieux ambigues: enjeux d’ une théologie<br />

du croire, Paris: Cerf, 2004.SOBRINO, Jon, Jesus, O Libertador: I. A história <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong> Nazaré,<br />

São Paulo: Vozes, 1994.<br />

VIANA, Hélio, História do Brasil: Monarquia e República, São Paulo: 1974.


196<br />

ZUURMOND, Rochus, Procurais o Jesus histórico? (tradução <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>ricus A. Stein,<br />

apresentação Johon Konings), São Paulo: Loyola, 1998 (col. Bíblica Loyola).

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!