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Aconcagua – Expedição Polacos<br />

Dezembro 2010/Janeiro 2011.<br />

Arthur Estevez e Paulo Marim Junior.<br />

Escrito por Paulo Marim Junior<br />

Revisão: LH Moreira


Glaciar dos Polacos – parte 1 .................................................. 3<br />

Pisar nas encostas daquela montanha novamente me fazia automaticamente<br />

lembrar das circunstâncias da primeira experiência há quatro anos. Eu não<br />

podia deixar de sempre comparar com o que eu estava vivendo agora. No<br />

final, cheguei à conclusão de que fora...<br />

Pé na estrada – parte 2........................................................... 9<br />

No dia seguinte saímos para resolver a burocracia da permissão na Secretaria<br />

de Turismo e Caro nos acompanhou. Tive problemas para sacar dinheiro do<br />

cartão do meu “querido” banco Santander que insiste em bloquear minhas<br />

transações internacionais mesmo utilizando o...<br />

Muita neve – parte 3 ............................................................ 16<br />

Nesta noite nevou pesado sem interrupção. Para sair da barraca primeiro<br />

tivemos que desobstruir a entrada. Acordamos com meio metro de neve<br />

cobrindo tudo de branco. Mais tarde partimos para o campo um. Arthur me<br />

contou que ouvira de alguém, que...<br />

Expectativa – parte 4 ........................................................... 25<br />

No dia seguinte não fizemos o dia de descanso e movemos nosso<br />

acampamento do 1 para o 2. A subida foi um pouco menos dura, pois pelo<br />

menos eu já sabia que ela terminava e onde. Eu oltara a usar...<br />

A Escalada – parte 5 ............................................................. 31<br />

Acordei com o bip inaudível do alarme do meu relógio de pulso. Diferente dos<br />

dias de folga, que eu custava para levantar às nove da manhã, eram 4:30 da<br />

madrugada e fazia 21 graus negativos no termômetro. Chamei Arthur que...<br />

A Volta – parte final ............................................................. 43<br />

Não sei se era porque estava escuro, mas a descida me pareceu muito maior<br />

do que eu lembrava. Uma nova onda de medo bateu. Se eu não conseguisse<br />

forças para descer… A maioria das estórias que eu conhecia de acidentes...<br />

Cronograma ......................................................................... 66<br />

A Equipe .............................................................................. 67<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

2


Glaciar dos Polacos – parte 1<br />

Pisar nas encostas daquela montanha novamente me<br />

fazia automaticamente lembrar as circunstâncias da<br />

primeira experiência há quatro anos. Eu não podia deixar<br />

de sempre comparar com o que eu estava vivendo agora.<br />

No final, cheguei à conclusão de que fora quase outra<br />

montanha.<br />

De 2006 pra cá, subi algumas montanhas nevadas.<br />

Algumas com companhia. E uma delas foi o Tronador, na<br />

Argentina. Tive sorte de encontrar com Arthur Estevez na<br />

cidade de Bariloche querendo subir a mesma montanha e<br />

sem parceiro. No final conseguimos fazer cume e desde<br />

então combinávamos uma próxima escalada.<br />

Recebi alguns convites de amigos para voltar ao<br />

Aconcagua, mas já que era pra sofrer aquilo tudo<br />

novamente, eu gostaria de fazer algo bem diferente da rota<br />

normal, que eu já conhecia. Sentir a ansiedade que<br />

antecederia o que seria pra mim um novo desafio. Eu<br />

queria tentar o Glaciar dos Polacos, pela rota direta. A face<br />

do Glaciar dos Polacos tem um nível de dificuldade<br />

intermediário naquela montanha e a rota direta<br />

acrescentaria o fator aventura.<br />

O Glaciar dos Polacos fica na face nordeste da<br />

montanha ligeiramente oposta à rota normal na face<br />

noroeste. Esta última costuma ter bem menos neve, pois<br />

recebe a maior parte dos ventos que carregam a neve que<br />

se deposita na face sul e nos glaciares do leste.<br />

Em 2010, quando eu começava a planejar alguma<br />

montanha na Bolívia, Arthur me perguntou se eu não<br />

queria voltar ao Aconcagua.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

3


- Só se for pela Polacos Direta! - Respondi.<br />

Achamos que já estávamos prontos para encarar<br />

uma rota um pouco mais técnica na maior montanha das<br />

Américas e sugeri que nos preparássemos para a<br />

temporada de 2011. O negócio é que eu pensava em<br />

dezembro de 2011 e Arthur já planejava para janeiro.<br />

Quando percebi o que ele quis dizer, fiquei um pouco<br />

assustado com o pouco tempo que eu teria para treinar e<br />

organizar todos os detalhes da expedição, mas mesmo<br />

assim sugeri o período entre o natal e o meio de janeiro. E<br />

por que não fazer também alguma alta montanha no meio<br />

do ano? Seria um belo treino. O colega russo Alexey<br />

Maylibaev convidou para escalar no Peru e o treino estava<br />

acertado.<br />

Aos poucos Arthur foi chegando com as notícias de<br />

apoio das marcas representadas pelas empresas Proativa e<br />

Verticale. Pudemos então contar com equipamentos<br />

excelentes da Deuter, Princeton Tec, Lorpen e Edelweiss e<br />

eu ainda com o apoio da Associação da minha empresa, a<br />

Assiplan.<br />

Apesar de ter escalado três montanhas por volta dos<br />

6.000 m no Peru e estar com certo ritmo de treinamento,<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

4


eu tinha a impressão de que em 2006 estava muito<br />

melhor preparado. O que era uma pequena preocupação,<br />

visto que imaginava que o esforço seria muito maior desta<br />

vez. Eu não conseguia me imaginar na condição que eu<br />

anteriormente cheguei ao cume, sem agüentar dar um<br />

passo antes de respirar profundamente e tendo que<br />

escalar um lance de rocha de vinte metros que fosse. A<br />

quase 7.000 m de altura, com todo o peso do equipamento<br />

e mais alguma coisa (parafusos, estacas, corda,<br />

mosquetões, capacete), seria um esforço hediondo, mesmo<br />

para um terceiro grau. E os lances de 60 graus de<br />

inclinação? É a inclinação das paredes do Morro da<br />

Babilônia. Isso ia ser extremamente desgastante para<br />

progredir reto para cima por um trecho de 100 metros…<br />

Cruzar novamente a cordilheira dos Andes, na<br />

estrada de Santiago do Chile a Mendoza, me transportou<br />

no tempo também. Eu acompanhava cada detalhe da<br />

ferrovia abandonada que seguia paralelamente a estrada e<br />

que ainda resistia ao tempo. Por vezes desaparecida sob<br />

algum desmoronamento e outras vezes serpenteando<br />

intacta através dos numerosos túneis na rocha.<br />

Na fronteira, alcancei o ponto mais alto do percurso,<br />

por volta de 3.100 e a cabeça pesou. Ao sair do ônibus<br />

para os procedimentos de imigração, senti repentinamente<br />

o ar frio e seco doer as narinas e o vento frio em contraste<br />

com o calor abafado de Santiago. Na rodoviária de<br />

Mendoza, fui recebido pelo casal de amigos Sebastian e<br />

Caro que me acompanharam até o Hostel onde Arthur se<br />

hospedara. Larguei minhas coisas lá também e saímos<br />

para jantar. Sentados num restaurante de frente para<br />

uma praça com guarda-sóis vermelhos e mesas na<br />

calçada, onde em 2006 comi uma hamburguesa,<br />

contamos nosso primeiro perrengue com o aumento da<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

5


permissão de escalada em 50% (só para o governo de<br />

Mendoza, estávamos desembolsando 1.500,00 reais) e<br />

nossa pretensão de economizar ao máximo dali pra frente.<br />

Talvez por isso também, o casal tenha nos convidado para<br />

um assado em sua casa no dia seguinte e oferecido<br />

também uma pernoite lá antes de partirmos para a região<br />

do Aconcagua.<br />

Sebastian e Caro<br />

O assado argentino é uma espécie de churrasco com<br />

alguns legumes também feitos na brasa. Além disso,<br />

tínhamos uma piscina no quintal para aliviar do calor<br />

“mendocino” que só se diferenciava do carioca por ser<br />

extremamente seco. Aproveitamos bem com a consciência<br />

de que não veríamos banho e carne por quase um mês.<br />

Sebastian já esteve no topo do Aconcagua por três<br />

vezes e o conheci lá em 2006 em sua segunda vez. Depois<br />

voltou com uma equipe de cientistas para ajudar na<br />

manutenção dos equipamentos de medição que estão<br />

instalados no topo. Seba nos forneceu muitas informações<br />

importantes e contou algumas estórias curiosas a respeito<br />

do andinismo em Mendoza e no Aconcagua. Segundo ele,<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

6


esta estava sendo uma das temporadas mais frias e há<br />

dois dias tinham sido registrados ventos de 100 km/h no<br />

cume. De conhecimento desta última notícia, Arthur ficou<br />

um pouco apreensivo, pois optara em não levar os gogles<br />

(máscara de esqui). Soubemos de uma gigantesca<br />

expedição japonesa de uma empresa multinacional na<br />

década de 90 que ocupou o acampamento de Plaza de<br />

Mulas e consumiu todos os recursos de infraestrutura de<br />

mulas, porteadores para colocar uma grande equipe no<br />

topo com cinegrafistas espalhados pelo caminho para<br />

produção de um documentário. Conversamos sobre o<br />

acidente do mendocino Federico Campanini e Seba contou<br />

alguns detalhes. Seba estava se preparando para retornar<br />

em dois meses para ajudar a levar um equipamento<br />

chamado gravímetro, de 45 quilos, lá pra cima que serviria<br />

para um estudo sobre a força da gravidade no local. Os<br />

cientistas querem saber se a força da gravidade age com<br />

maior ou menor intensidade naquela altitude e se o<br />

enorme volume de massa da montanha também influi<br />

alterando a intensidade da atração gravitacional.<br />

Perguntei se ele sabia como ia levar o equipamento, que<br />

não podia ser desmontado, mas não havia sido decidido<br />

ainda. Talvez seja carregado por porteadores peruanos…<br />

Os porteadores nos Andes são os equivalentes aos<br />

sherpas no Himalaia. Trabalham como carregadores de<br />

altitudes levando até 30 quilos, subindo várias vezes ao<br />

dia entre um acampamento e outro, montando barraca,<br />

fazendo comida e ocasionalmente como guias ou<br />

assistentes para os clientes de expedições comerciais.<br />

Cada trecho feito por eles custa em torno de 100 dólares,<br />

seja subindo ou descendo. Isto, é claro, estava fora de<br />

nosso orçamento. E, segundo nosso plano de aclimatação,<br />

iríamos fazer cada trecho entre os acampamentos<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

7


superiores duas vezes. Uma para transporte de carga e<br />

outro definitivo. Isso nos possibilitava levar 15 quilos cada<br />

um em cada viagem, uma vez que nossa carga total era de<br />

60 kg incluindo equipamentos técnicos e comida.<br />

A aproximação de três dias até o acampamento base<br />

ainda não estava 100% decidida. Na noite anterior,<br />

conversamos sobre estes detalhes pendentes, ainda<br />

considerávamos uma pequena hipótese de não pagar o<br />

serviço de mulas para diminuir o nosso prejuízo total com<br />

os 500 dólares do aumento da taxa da escalada que juntos<br />

teríamos que pagar. As mulas no Vale de Vacas custam o<br />

dobro do preço do mesmo serviço no Vale de Horcones. A<br />

empresa mais barata que encontramos cobrou 290<br />

dólares. Além de o caminho ser mais longo, sessenta<br />

quilômetros até Plaza Argentina contra quarenta até Plaza<br />

de Mulas, muitos dos que contratam as mulas para Plaza<br />

Argentina fazem a travessia e voltam pelo outro vale.<br />

Assim as mulas fazem uma viagem somente com carga<br />

enquanto as outras do outro valem fazem ida e volta com<br />

clientes.<br />

Essa era nossa idéia também. Queríamos voltar pelo<br />

outro vale. Queríamos aproveitar que estaríamos mais<br />

leves, sem o peso da comida, combustível e descendo,<br />

para não contratar as mulas na volta. Por Horcones<br />

seriam somente dois dias. Seria mais interessante fazer<br />

um caminho diferente para voltar, para eu relembrar 2006<br />

e para Arthur conhecer o outro lado da montanha. Talvez<br />

uma visita à face sul…<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

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Pé na estrada – parte 2<br />

No dia seguinte saímos para resolver a burocracia da<br />

permissão na Secretaria de Turismo e Caro nos<br />

acompanhou. Tive problemas para sacar dinheiro do<br />

cartão do meu “querido” Banco Santander que insiste em<br />

bloquear minhas transações internacionais mesmo<br />

utilizando-o assim várias vezes ao ano. Escolhemos a<br />

empresa que forneceria as mulas e aproveitamos para<br />

esticar até a Casa Orviz, na mesma avenida. Uma loja de<br />

venda e aluguel de equipamentos que eu conhecia por ter<br />

grande oferta de material e preços bons. Eu decidia ainda<br />

se comprava ou alugava uma jaqueta de penas de ganso,<br />

pois eu tinha uma de pluma sintética muito pesada – 1,6<br />

kg contra os 600 g da maioria dos modelos de pena de<br />

ganso. No final, decidi ir com a minha mesmo que apesar<br />

de pesada era muito quente. Compramos somente um refil<br />

de gás para levar para o cume junto com um pequeno<br />

fogareiro em caso de emergência. Conhecemos uma<br />

paulista que trabalhava na loja. A menina nos mostrou os<br />

dedos levemente atrofiados e contou que tivera<br />

congelamentos há alguns anos por não utilizar mitones<br />

(luvas de dois dedos, mais quentes do que as de dedos<br />

separados). Recomendou que levássemos hot-hands, uma<br />

espécie de sachê que, em contato com o ar, produz calor<br />

por até 12 horas. Concordamos prontamente e levamos<br />

um par para as mãos e um para os pés.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

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No dia seguinte, estávamos pegando o último ônibus<br />

para Los Puquios, base ao lado da rodovia de onde sairiam<br />

nossas mulas e onde acamparíamos ao lado de uma<br />

cabana que funcionava como restaurante também. Foi<br />

engraçado ver um grupo de alemães e americanos nos<br />

observando com cara de preocupação quando sacamos a<br />

barraca dentro da embalagem, ainda lacrada, e<br />

começamos a descobrir como montaríamos em meio a<br />

alguma leitura nas instruções. Eu namorava esse modelo<br />

de barraca há anos pela internet em uma loja chilena e<br />

algumas semanas antes de viajar, descobri que havia<br />

somente uma dela e em promoção. Comprei e pedi para<br />

entregar na casa de uma conhecida de Arthur que morava<br />

em Santiago. Depois de conversar com os gringos que<br />

também acampavam em Los Puquios, expliquei que<br />

somente a barraca era nova. Nós tínhamos alguma<br />

experiência! Os alemães foram muito gentis e ficaram<br />

empolgados depois que contamos que tínhamos o apoio da<br />

marca alemã Deuter no Brasil e que tentaríamos o<br />

Glaciar.<br />

Logo durante a noite, a barraquinha já tinha o seu<br />

batismo, suportando uma pesada chuva que diminuiu de<br />

intensidade somente pela manhã, se transformando em<br />

um sereno. Arrumamos nossas coisas, acompanhamos o<br />

empacotamento do equipamento que seguiria nas mulas e<br />

seguimos de van até a entrada do parque em Punta Vacas.<br />

Lá fizemos o “check-in” na tenda dos guarda parques e<br />

começamos o nosso primeiro dia de caminhada embaixo<br />

de uma chuva fina.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

10


GLACIAR DOS POLACOS<br />

11


Após 4 horas, mais ou menos, cheguei ao<br />

acampamento Pampa de Las Leñas e Arthur, que tinha se<br />

adiantado, já me aguardava. Neste primeiro dia as mulas<br />

chegaram depois de nós. No segundo dia, decidimos<br />

colocar a barraca que carregávamos na carga das mulas<br />

para ficarmos ainda mais leves e desta vez quase corremos<br />

por outras quatro horas até o acampamento Casa de<br />

Piedra. O caminho desde então, apesar de longo, com<br />

vinte quilômetros cada dia, tinha pouco desnível, mas o<br />

trecho seguinte nos reservava o dobro ou mais: mil metros<br />

até o acampamento Plaza Argentina.<br />

No acampamento Casa de Piedra, conhecemos um<br />

polonês que falava um pouco de português. Morou alguns<br />

meses no Brasil e nos contou de sua idéia de também<br />

entrar no glaciar conquistado por seus conterrâneos.<br />

Neste terceiro dia, acordamos muito cedo, às cinco<br />

da manhã, para as sete já estar atravessando um rio de<br />

degelo que corria ao lado do acampamento. Só de tirar o<br />

sapato e a meia, já dava uma tristeza sem fim. No primeiro<br />

passo dentro da água congelante, já não senti mais o pé. A<br />

partir daí era pisar com cuidado pra não machucar nas<br />

pedras e torcer pra acabar logo. O torpor virava uma dor<br />

aguda com o passar do tempo. Mesmo depois de calçar os<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

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sapatos novamente, ainda caminhamos um bom tempo<br />

com os pés gelados e dormentes.<br />

Combinamos de Arthur se adiantar, pois no dia<br />

anterior segui seu ritmo e achei que tinha me desgastado<br />

mais do que no primeiro. Além do mais eu parava para<br />

fotografar e filmar. Neste último dia, a beleza do Vale de<br />

Vacas continuava presente na vegetação rasteira até<br />

quase 4000m. Numa das paradas que fiz para descansar,<br />

sentei num tufo daquelas gramíneas e imediatamente<br />

senti as nádegas pegando fogo! Saltei com a sonoplastia<br />

de um berro. É claro que uma vegetação que nasceu a<br />

tanto custo naquela altitude e com aquele clima desértico,<br />

tinha que se proteger das mulas e espertinhos como eu<br />

com centenas de espinhos duros, com o comprimento de<br />

uma unha e afiados como agulhas, camuflados entre as<br />

pequenas folhas.<br />

Somente neste terceiro dia também é que tivemos a<br />

nossa primeira visão do gigante. Caminhando por um<br />

estreito cânion, depois de abandonar o Vale de Vacas, o<br />

primeiro que aparece é uma ponta branca de neve atrás<br />

de montes de rocha. Quando o glaciar se mostrou por<br />

inteiro e pude identificar, inclusive, a rota direta 4000 m<br />

acima de mim. Senti-me um insignificante arrogante e<br />

pretensioso. Eu tentava me imaginar formiguinha,<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

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arranhando o glaciar e pendurado em alguma parte da<br />

imensidão branca. Quem tinha inventado essa idéia? Mais<br />

uma enrascada! O glaciar parecia uma parede, visto dali<br />

onde estava. Quem disse que era o tempo todo 45 graus<br />

de inclinação? Restava-me ir lá e conferir…<br />

Neste dia reparamos numa equipe de oito<br />

montanhistas indonésios que traziam os dizeres “Seven<br />

Summits” nas bagagens. Seria o Aconcagua o primeiro ou<br />

o último cume dos de cada continente que eles estariam<br />

tentando? Por ser um grupo maior ou por estarem com<br />

mais peso, ultrapassei o pessoal, agradecendo a<br />

passagem.<br />

Horas depois cheguei ao acampamento base Plaza<br />

Argentina e encontrei Arthur já finalizando a montagem<br />

da nossa barraca. O esquema lá é parecido com o de Plaza<br />

de Mulas. O acampamento é todo loteado pelas empresas<br />

de expedições e de acordo com o fornecedor contratado,<br />

você acampa em um local determinado. Neste primeiro dia<br />

não fizemos mais nada a não ser beber água e urinar.<br />

Para gostar de alta montanha tem que ser meio<br />

doido. Deve-se gostar de andar mais que Cristo e de beber<br />

água até explodir, estilo tortura oriental. A consequência é<br />

a vontade de urinar a cada hora. Uma vontade que chega<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

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devastadora e de repente você tem poucos segundos para<br />

resolver. A solução é deixar uma garrafa com boa<br />

capacidade e boca larga dentro da barraca. E esvaziá-la de<br />

vez em quando lá fora.<br />

Era o último dia do ano, o segundo réveillon que eu<br />

passava dormindo sem comemorações e na companhia de<br />

Arthur. Quantas pessoas estariam se abraçando,<br />

desejando votos de felicidades numa onda que circundava<br />

o planeta a cada fuso? Naquele mome nto somente<br />

interessava me aninhar no saco de dormir e me entregar<br />

ao sono sem tomar conhecimento de nada.<br />

No dia seguinte, tiramos para descanso, pois no<br />

próximo faríamos nossa primeira subida com carga ao<br />

primeiro acampamento de altitude, o campo 1. No nosso<br />

dia de folga visitamos o médico para exames de rotina.<br />

Já vínhamos monitorando a oximetria com um oxímetro<br />

de bolso e sabíamos que estávamos com bons níveis.<br />

Arthur se mantinha com a porcentagem de oxigênio<br />

alguns pontos melhor que eu, mas no exame com o<br />

médico, apresentou a pressão arterial um pouco alta. Foi<br />

recomendado evitar sal e fazer uma nova visita depois.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

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O médico e a guarda parque Erica nos deram<br />

algumas informações e sugeriram que fizéssemos porteio<br />

em cada acampamento de altitude. Disseram que<br />

poderíamos conseguir informações com dois porteadores<br />

que haviam feito a mesma rota há algumas semanas, um<br />

deles chamado Mariano. Procurei a pessoa pelo<br />

acampamento, mas não o encontrei.<br />

Ocasionalmente, víamos montanhistas manipulando<br />

equipamentos técnicos: cordas, parafusos, estacas e<br />

capacetes. Isso confortava, pois sabíamos que existiriam<br />

outras equipes no glaciar, mas preocupava com a<br />

possibilidade de haver engarrafamento nos lances mais<br />

delicados, caso a rota fosse a mesma que a nossa.<br />

Tratamos de separar nossa tralha que subiria no dia<br />

seguinte.<br />

Muita neve<br />

Nesta noite nevou pesado sem interrupção. Para sair<br />

da barraca, primeiro tivemos que desobstruir a<br />

entrada. Acordamos com meio metro de neve cobrindo<br />

tudo de branco. Mais tarde partimos para o campo um.<br />

Arthur me contou que ouvira de alguém, que o ideal para<br />

sabermos se conseguiríamos fazer a Polacos era se<br />

conseguíssemos subir o trecho entre o acampamento base<br />

e o acampamento um em três horas e meia. Segundo<br />

informações na internet esse percurso era feito de 3 a 5<br />

horas.<br />

Ia ser a primeira vez que eu iria caminhar com<br />

aquelas minhas novas botas duplas. Novas porque eu<br />

estava estreando, mas eu as tinha comprado de segunda<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

16


mão. Foi meio em cima da hora e pela internet, pois as<br />

minhas antigas tinham começado a se esfarelar na última<br />

montanha que fiz no Peru. Não me preocupei muito com<br />

isto, pois elas eram do mesmo número da antiga e, apesar<br />

de serem de outra marca e modelo, já vinham amaciadas!<br />

Bolhas nos calcanhares<br />

Mas não é que as coisinhas começaram a fazer um<br />

atrito miserável nos calcanhares? Eu não estava nem na<br />

metade, Arthur já tinha disparado na frente com os “silver<br />

tape” enrolados nos bastões e agora eu ia pisando com<br />

cuidado e curtindo as dores das bolhas que começavam a<br />

se formar. Sempre costumo dizer que bolha se resolve no<br />

início. E a melhor solução pra mim é cobrir o local com<br />

“silver tape” antes de formar a bolha e não vi outra<br />

opção. Nem me lembro da última vez que tive bolhas nos<br />

pés e agora eu tinha mais uma coisa pra me preocupar. Se<br />

andar algumas horas estava me torturando, no dia do<br />

cume, com 10 horas de escalada e o pé já detonado há<br />

dias ia ser uma delícia, além de ficar mais suscetível a<br />

congelamentos nas áreas machucadas.<br />

Durante a subida, novamente ultrapassei uma<br />

turma que havia começado antes de nós e entre eles, os<br />

indonésios do grupo “Seven Summits”. Notei que um deles<br />

caminhava muito devagar com uma cara nada boa,<br />

acompanhado de perto por um guia. A dupla estava bem<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

17


distante do resto do grupo e parava com frequência para<br />

que o cliente se recuperasse. Acho que esse indonésio,<br />

infelizmente, retornou antes do campo 1.<br />

Vento branco no cume à esquerda,<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

subindo para o campo1<br />

Consegui chegar ao campo 1 com as 3:30h, mesmo<br />

parando algumas vezes e não caminhando a todo vapor.<br />

Arthur chegou com uma hora de antecedência e tiritava de<br />

frio me esperando abrigado do vento atrás de um muro de<br />

pedras construído rusticamente. Ensacamos os<br />

equipamentos que iam ficar lá dois dias até a nossa volta<br />

e os colocamos contra a parede de pedra com algumas<br />

rochas por cima. Um grupo que acabava de chegar, nos<br />

perguntou quando voltaríamos, pois queriam usar o<br />

espaço para a barraca deles. Com a nossa resposta,<br />

começaram a armar seu acampamento por ali, já que<br />

pensavam em deixar o campo 1 logo no dia seguinte,<br />

antes de retornarmos.<br />

O campo 1 me era muito exposto, pois fica na borda<br />

de um despenhadeiro bem íngreme e rochoso, mas as<br />

barracas se aglomeravam dali para cima ao longo de uma<br />

canaleta estreita que parecia mais abrigada dos ventos<br />

que vinham do alto.<br />

18


Começamos a descida que foi desgastante, mas bem<br />

rápida – em torno de uma hora e meia.<br />

No resto do dia tivemos Sol, vento forte, neve, Sol de<br />

novo, vento, neve outra vez…<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

Placas solares<br />

O dia seguinte era mais um dia de folga e novamente<br />

passamos o dia bebendo água e urinando. Começava a<br />

ficar chato ter que ir tantas vezes ao rio para buscar água<br />

e revezávamos. Como desde 2006 não havia mais o sinal<br />

chileno de celular na montanha, começamos a nos<br />

distrair, pra não morrer de tédio, com os joguinhos do<br />

meu celular, que eu carregava com umas plaquinhas<br />

solares. Arthur começou a reclamar de uma dor de cabeça<br />

resistente à aspirina e atribuiu a ela a sua subida muito<br />

rápida. Talvez ele tivesse bebido pouca água. Sugeri a ele<br />

que não tomasse a aspirina diária que ele vinha tomando<br />

para ajudar a afinar o sangue, pois isso poderia mascarar<br />

qualquer falta de hidratação. Eu usava a minha dor de<br />

cabeça como alarme. Quando ela começava de leve, eu<br />

bebia alguns litros de água e em pouco tempo ela<br />

desaparecia.<br />

19


Chegou o dia em que deixaríamos o acampamento<br />

base e esse dia começou com um vento aterrador. Fomos<br />

dar uma última olhada na previsão do tempo e tiramos<br />

uma foto da tela do “netbook” da barraca de uma<br />

expedição comercial, para podermos consultar depois.<br />

Tínhamos planejado tentar o cume nos dias 9 ou 10 de<br />

janeiro. A previsão mostrava até somente o dia nove, com<br />

neve neste último dia. Imaginando uma melhora dia 10 ou<br />

11, desmontamos a barraca, com muita dificuldade – pois<br />

ela teimava em achar que era um paraquedas - e<br />

partimos.<br />

Agora eu usava as botas de “trekking”, pois vi que na<br />

subida anterior não estava tão frio e nem<br />

foi necessário usar crampons. Tinha feito uns baitas<br />

remendos com “silver tape” e esparadrapo nas bolhas dos<br />

calcanhares e nas novas bolhas dos dedos mínimos que<br />

surgiram na descida. Como eu sabia que era capaz de<br />

fazer o caminho em três horas e meia, não me preocupei e<br />

demorei um pouco mais parando no caminho para comer<br />

algumas barras de cereais. Comecei a subir a última<br />

ladeira antes do acampamento e à medida que eu ganhava<br />

altura, o vento se tornava mais violento. O último trecho<br />

antes do platô, que é o campo 1, era bem íngreme e, ainda<br />

no barranco, faltando um metro para alcançá-lo, pude ver<br />

as primeiras barracas do acampamento. Tomei então uma<br />

rajada de vento tão forte que tive que me agarrar com as<br />

duas mãos nas pedras ao meu lado e esperar um<br />

momento para não voar ladeira abaixo. Ao chegar, lá<br />

estava Arthur, quase roxo de frio, se abrigando atrás de<br />

outra parede de pedras. O grupo da barraca que ocupou o<br />

nosso lugar, não tinha desmontado acampamento e<br />

aguardava ainda ali pela melhora do tempo. Arthur tinha<br />

começado a levantar outra parede de pedra que abrigaria<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

20


nossa barraca e, depois de descarregar minha mochila,<br />

ajudei-o a montar a nossa tenda. Vesti o casaco pesado de<br />

pluma para poder continuar o trabalho do muro no meio<br />

da ventania e ficou razoável.<br />

No resto do dia, a turbina continuou ligada e<br />

nevando. No dia seguinte, o vento continuou forte e<br />

passamos boa parte do tempo tomando mate argentino – o<br />

chimarrão brasileiro. Era o nosso dia de folga antes do<br />

porteio para o campo 2. A diversão dos nossos vizinhos de<br />

barraca deve ter sido contar as vezes que saíamos para<br />

urinar. O chato de urinar no vento forte é que se tem que<br />

se preocupar em fazer o xixi e se esquivar dele ao mesmo<br />

tempo. Depois passamos a usar as garrafas dentro da<br />

barraca. Se com a urina, resolvíamos com garrafa, com o<br />

resto não tinha escolha. Era abaixar a bunda nua no<br />

vento e na neve e tentar ser o mais rápido possível. Arthur<br />

começou com um papo de que ia fazer dentro da barraca,<br />

mas discordei com veemência! Desagradável por<br />

desagradável, achei mais sensato continuarmos sentindo<br />

o frio na bunda do que o cheiro na barraca!<br />

Pegar água no rio, quase sempre congelado, também<br />

era um castigo, o que ia lá sempre voltava com os dedos<br />

duros e doendo de frio. Mesmo com luvas.<br />

Neste dia chegaram muitas barracas e conversamos<br />

com um dos guias dos indonésios. Seu nome era Abu e ele<br />

era peruano, de Huaraz. Arthur fez uma média<br />

comentando então que o camarada deveria ser bem forte e<br />

Abu se empolgou contando suas façanhas. Disse que<br />

havia feito a Polacos direta de um tiro só desde a entrada<br />

da rodovia em Punta Vacas e saiu por Horcones.<br />

Comentamos do Tocllaraju, montanha que escalamos em<br />

Huaraz e Abu se amarrou relembrando e simulando com<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

21


as mãos os movimentos com o piolet do lance negativo de<br />

gelo sobre uma grande greta. Disse, então, que não<br />

teríamos dificuldades na rota direta, pois os lances<br />

técnicos eram mais simples do que os do Tocllaraju. Abu<br />

também comentou sobre a bota de Arthur, pedindo para<br />

ele tomar cuidado, pois ela era bem fria. Disse que já<br />

havia escalado com ela lá e que ele tinha que ser rápido,<br />

sem parar, usar um sache de esquenta pés e recomendou<br />

levar um par de meias secas pra trocar quando as outras<br />

ficassem úmidas. Disse que o Aconcagua era a montanha<br />

mais fria que ele conhecia.<br />

Durante a noite continuou nevando.<br />

Caminho para o campo 2<br />

No dia do porteio, pra variar, o vento continuava bem<br />

forte e arrumamos as coisas devagar. Quando finalmente<br />

deixamos o acampamento, uma fila indiana de vários<br />

grupos se espalhava por uma linha que era o caminho<br />

na encosta nevada. Alcançamos o último grupo e<br />

descobrimos que todos seguiam por uma bifurcação rumo<br />

ao acampamento Guanacos, para o que chamam de<br />

Travessia da Polacos, Polacos Transversa ou Duas Faces.<br />

Neste ponto, os grupos saem para encontrar a rota normal<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

22


mais ou menos na altura de Berlim ou Cólera, com uma<br />

parada no acampamento Guanacos que também é<br />

conhecido como campo 3.<br />

Tomamos o caminho da esquerda e começamos uma<br />

subida interminável. A altitude começava a fazer<br />

diferença. No final alcançaríamos os 5.800 m do<br />

acampamento 2. Somente mais um grupo de três homens<br />

e três meninas dos Estados Unidos seguiram conosco e<br />

também se instalaram aos pés da imensa geleira. A visão<br />

daquela massa de gelo que agora sumia lá no topo entre<br />

nuvens escuras era ao mesmo tempo incrível e<br />

assustadora. O belo e liso tapete branco visto desde os<br />

3000 m de altitude agora se transformava num oceano<br />

encrespado de seracs, gretas e rimalhas como cicatrizes<br />

ou rugas que se franziam por causa da nossa<br />

proximidade. Pelo menos a inclinação parecia menor.<br />

Uma das meninas me ofereceu biscoitos<br />

amanteigados, mas recusei, num gesto de educação<br />

irracional. Perguntei qual o caminho que eles fariam e me<br />

disseram que seguiriam para Cólera, numa variação da<br />

Rota Duas Faces. Esta opção usa um trecho de<br />

aproximadamente duas horas para ligar o campo dois com<br />

a rota normal e que também é chamada de Falsa Polacos<br />

quando a aproximação é feita pela rota normal, porém o<br />

ataque ao cume é feito pelo glaciar, no sentido inverso.<br />

Este caminho nós utilizaríamos em parte da nossa<br />

descida.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

23


O Glaciar visto do campo 2<br />

A menina então perguntou qual a nossa rota.<br />

Apontei para o Glaciar e disse:<br />

-The Polish Direct.<br />

-The glaciar? Good Luck! – Respondeu em inglês<br />

desejando boa sorte.<br />

Que surpresa. Tanta gente nos acampamentos<br />

inferiores e somente eu e Arthur pra entrar nesse mar de<br />

gelo…<br />

Iniciamos a descida para o campo 1 junto com o<br />

grupo de americanos. No campo 2 nenhuma viva alma,<br />

somente nossos equipamentos.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

24


Expectativa<br />

No dia seguinte não fizemos o dia de descanso e<br />

movemos nosso acampamento do 1 para o 2. A subida foi<br />

um pouco menos dura, pois pelo menos eu já sabia que<br />

ela terminava e aonde. Eu voltara a usar as botas duplas,<br />

administrando as bolhas com fitas, esparadrapos e<br />

guardando para o dia do cume uns curativos próprios<br />

para bolhas que Arthur trouxera e me ofereceu. Era uma<br />

espécie de adesivo de espuma em forma de círculos de<br />

vários tamanhos e vazados no meio para acomodar a<br />

bolha.<br />

Depois de montar a barraca, fomos nos abastecer<br />

com benzina deixada lá pelos grupos que voltavam mais<br />

leves. Nossos dois litros iniciais já estavam no final e<br />

garantimos mais um litro.<br />

De acordo com nosso planejamento, precisaríamos<br />

ficar dois dias no campo 2 aclimatando antes de tentar o<br />

topo no dia 9. Mas este dia era o dia da neve pela tarde.<br />

Aguardaríamos um pouco mais para, na véspera,<br />

contatar o acampamento base via rádio e nos informar<br />

sobre o clima. Cheguei a cogitar a hipótese de, por conta<br />

da meteorologia, antecipar a tentativa de cume para o dia<br />

8, mas Arthur discordou, com razão. Não seria suficiente<br />

para nos acostumarmos com a altitude. Precisávamos ter<br />

certeza que estaríamos em perfeitas condições físicas para<br />

a escalada.<br />

Meses antes, eu havia mandado “email” para as<br />

listas de discussão sobre montanhismo de que faço parte<br />

buscando opiniões de quem por ventura houvesse<br />

escalado esta rota. Recebi uma resposta de Rudah, do Rio<br />

Grande do Sul, que definiu a diretissima como mais<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

25


tranquila para subir, porém mais complicada em caso de<br />

abandono e retorno devido a alguns trechos mais<br />

íngremes.<br />

Quando conversamos com o guia peruano Abu,<br />

tivemos esta definição:<br />

- O Glaciar dos Polacos é fácil, mas muito perigoso!<br />

Complicado para desistir e voltar por ele.<br />

Além dessas informações, eu já tinha conhecimento<br />

de pelo menos uns dois relatos na internet sobre acidentes<br />

fatais ali. Um ao tentar retornar e outros numa<br />

tempestade no próprio acampamento. Além disso, na<br />

semana anterior, havia morrido uma americano que subiu<br />

pela Polacos. Provavelmente se esforçou além do que podia<br />

para sair por cima e morreu na descida, pela rota normal,<br />

após chegar ao cume. Foi vítima de edema pulmonar e<br />

graves congelamentos devido à tempestade que o<br />

surpreendeu na volta.<br />

O maratonista e escalador carioca Fernando Vieira,<br />

conhecido por sua força e velocidade na escalada, também<br />

tem uma estória na direta da Polacos. Encontrou um<br />

parceiro na montanha para acompanhá-lo, mas este veio a<br />

falecer na tentativa. Fernando chegou ao topo, saindo da<br />

rota, escalando lances de rocha ao invés de seguir pela<br />

neve. Ouvi a estória pelo Flávio Carneiro - o Bagre - e<br />

Arthur pôde saber dos detalhes quando pegou o piolet<br />

emprestado do próprio Fernando.<br />

Em 2009, um vídeo repercutiu pela internet e TV,<br />

Mundo afora, mostrando o resgate frustrado do guia<br />

argentino Federico Campanini que acompanhava um<br />

grupo de clientes pela rota normal. Os montanhistas<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

26


chegaram muito tarde ao cume e o guia vinha subindo<br />

distante, mais atrás, já sofrendo sintomas de edema<br />

pulmonar. Cansados, confusos e com o tempo fechado, os<br />

clientes tomaram a direção do Glaciar dos Polacos na<br />

descida. Somente após duas noites esperando socorro, um<br />

grupo de resgate alcançou os montanhistas. A<br />

italiana Elena Senin já havia falecido, vítima de uma<br />

queda de centenas de metros por não ter equipamentos<br />

técnicos para o glaciar. Os outros três clientes italianos<br />

foram salvos, mas Federico foi deixado ainda com um<br />

sopro de vida depois de infrutíferas tentativas de arrastálo<br />

de volta para cima.<br />

O pai teve acesso então ao chocante material que<br />

trazia registrados os últimos instantes do filho e desde<br />

então lutou para provar que houve negligência na<br />

condução, deste que foi o resgate de maior mobilização da<br />

estória da montanha. Aliado à comoção pública,<br />

conseguiu que o chefe da equipe de resgate fosse<br />

exonerado do cargo. O pai faleceu no ano seguinte.<br />

A família da italiana doou recursos para a<br />

construção de um novo abrigo de emergência na rota<br />

normal, no acampamento Cólera, que passou a se chamar<br />

refúgio Elena.<br />

Todas essas estórias me traziam a certeza de que<br />

uma vez começado a escalada, ela teria de acabar no topo.<br />

Então que esperemos pelo dia 10 ou 11.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

27


Mas esperar confinados num espaço de 2×2 sem ter<br />

muito o que fazer e ante tamanho desafio e riscos fazem a<br />

mente trabalhar contra nós. Ou a favor de nossa<br />

integridade. É esperando pela batalha, que muitos<br />

exércitos se acovardam. É preciso ter muito equilíbrio<br />

para afastar os pensamentos paranóicos sem perder o<br />

bom senso. Passávamos o tempo lendo, jogando conversa<br />

fora, fazendo pequenos reparos nos equipamentos, com os<br />

jogos do celular e com as tarefas diárias de derreter gelo,<br />

fazer comida e tomar líquidos.<br />

Neste primeiro dia de folga no acampamento, vimos<br />

uma dupla descendo pela nossa rota e fomos ao encontro<br />

deles para saber as condições. Eram dois russos, um<br />

falava muito mal o inglês e o outro sabia algumas palavras<br />

de espanhol. Depois de muita dificuldade, entendemos<br />

que eles tinham subido somente 200 m e comentaram que<br />

não havia muita neve. No máximo até a canela. Contaram<br />

que estavam aguardando alguém subir antes deles para<br />

abrir o caminho…<br />

Mais tarde, um grupo maior, mas microscópico pela<br />

distância, descia, desta vez, pela rota clássica, menos<br />

inclinada e acompanhando a borda esquerda do glaciar<br />

numa grande curva. Mesmo assim o grupo parecia descer<br />

lentamente e com dificuldade, usando corda em alguns<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

28


lances. Não conseguimos encontrá-los para colher<br />

informações.<br />

Neste dia também fizemos contato com o<br />

Acampamento Base, via rádio, mas nem precisava.<br />

Estávamos no dia 8 e a neve nem esperou pela tarde do<br />

dia 9 para cair. Com o entardecer, começou cair<br />

pesadamente e assim permaneceu a noite toda e o<br />

próximo dia inteiro.<br />

Após novo contato com os guarda parques de Plaza<br />

Argentina, ficamos sabendo que o dia seguinte seria de<br />

céu azul, mas com ventos de 50 km/h. O dia 11 teria<br />

somente 20 km/h e isso é uma brisa no Aconcagua.<br />

Tínhamos que torcer para durante o dia anterior ventar<br />

bastante e fazer calor para soprar ou derreter a neve do<br />

glaciar e durante a noite fazer bastante frio para<br />

endurecer o que restasse. Ou…<br />

Talvez no dia 12 tivéssemos mais um dia propício,<br />

sem nuvens e pouco vento. Não seria melhor esperar mais<br />

um dia ainda pra garantir melhores condições no glaciar?<br />

Pedi a Arthur que perguntasse sobre o prognóstico do dia<br />

12 enquanto ainda estava no rádio com os guardas. Mas<br />

Arthur não ouviu ou não achou necessário. Talvez não<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

29


conseguisse se imaginar mais um dia de expectativa,<br />

enfurnado na gaiola de nylon. Nós dois já não víamos a<br />

hora de começar o retorno. Não precisar urinar na garrafa<br />

a alguns centímetros do parceiro. Respirar ar puro ao<br />

invés do ar malcheiroso da barraca de dois marmanjos, 15<br />

dias sem banho e usando as mesmas roupas. Usar uma<br />

privada limpa ao invés de evacuar atrás de uma pequena<br />

rocha, indignamente, quase em praça pública sob os<br />

olhares dos outros montanhistas. Comer um lomo - o filé<br />

mignon argentino - em Mendoza. Tomar um suco de fruta<br />

real, ao invés de pó químico…<br />

Outra vantagem também é que se o dia 12 fosse de<br />

bom tempo também, seria um dia de novo intento caso a<br />

tentativa do dia 11 fosse fracassada.<br />

O dia seguinte foi extremamente azul, com o sol<br />

derretendo um pouco da camada de meio metro de neve<br />

que se formou pelo acampamento. Conversamos com um<br />

guia argentino chamado Julio que nos deu cereais,<br />

biscoitos e capeletti que estavam sobrando nos<br />

mantimentos de sua expedição. Isto foi bem providencial,<br />

pois nossa comida começava a ficar na conta certa, com<br />

os dias a mais além do planejado. Seu grupo sairia à tarde<br />

para a travessia e acamparia nas proximidades de Cólera.<br />

Julio nos incentivou dizendo que a direta seria fácil e<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

30


detalhou cada parte da rota, segundo havia ouvido falar.<br />

Julio nunca teve oportunidade de fazê-la.<br />

Esta seria a grande noite, preparamos os<br />

equipamentos e os colocamos nas mochilas de ataque.<br />

Vestimos todas as roupas de baixo que usaríamos durante<br />

a escalada e nos aninhamos no saco de dormir. No início<br />

da noite a temperatura estava igual aos outros dias: -18º.<br />

Fomos dormir antes das 22 h, torcendo para<br />

descansar o máximo possível até as 4:30 h. Antes de cair<br />

no sono, pedi à vovó, à bisa, ao sensei e a mais quem<br />

conseguisse me ouvir que eu tivesse muita força,<br />

perseverança e bom senso no dia seguinte.<br />

A Escalada<br />

Acordei com o bip inaudível do alarme do meu<br />

relógio de pulso. Diferente dos dias de folga, que eu<br />

custava para levantar às nove da manhã, eram 4:30 h da<br />

madrugada e fazia 21 graus negativos no termômetro.<br />

Chamei Arthur que começou os preparativos. Apesar de<br />

ter adiantado alguma coisa na noite anterior, vários<br />

detalhes ainda eram necessários. Colei os curativos de<br />

Arthur nas bolhas dos meus pés, passamos protetor solar<br />

fator 60, derretemos gelo, pois, antes de partir,<br />

precisávamos de água para beber e para levar nas<br />

garrafas térmicas. Engolimos alguns biscoitos, fixamos as<br />

lanternas nos capacetes, regulamos os bastões, ajustamos<br />

as cadeirinhas, vestimos balaclava, gorro, luva. Colocamos<br />

as botas e alguns minutos depois das seis, já estávamos<br />

dando os primeiros passos em direção à grande geleira<br />

com o tilintar dos metais pendurados.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

31


Na atmosfera violeta de fim de noite, uma fila<br />

indiana de dez ou mais montanhistas caminhava<br />

lentamente a distância de um braço um do outro na<br />

encosta da montanha rumo à face noroeste. Outro grupo<br />

deixava o acampamento e seguia junto conosco por<br />

algumas dezenas de metros até desviar em direção a<br />

travessia também. Procurei alguma luz de lanterna à<br />

nossa frente, mas a verdade era que seríamos os únicos<br />

naquela parede. Esta nossa ascensão teria ao todo 1200<br />

m de desnível e achávamos que oito a dez horas seria um<br />

tempo aceitável para completar a empreitada.<br />

Decidimos que após subirmos 600 m, verificaríamos<br />

nosso tempo. Este deveria ser a metade também.<br />

Na tarde anterior, também contatamos o<br />

acampamento base para informar nossos planos de<br />

ataque para o dia seguinte. Foi-nos pedido novo contato<br />

para avisarmos quando chegássemos ao cume.<br />

A caminhada foi ficando levemente inclinada e, com<br />

a luz dos primeiros feixes de Sol, paramos na rampa para<br />

colocar os crampons. O Sol já iluminava o dia e agora<br />

procurávamos os trechos de gelo, onde fazíamos menos<br />

esforço do que nos dois palmos de neve fofa. Logo no<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

32


início, estranhei o fato de não ser mais fácil pisar nas<br />

pegadas de Arthur. Eu afundava do mesmo jeito e às vezes<br />

me atolava mais do que quando usava um caminho<br />

diferente. Decidimos não subir encordados, mas<br />

levávamos a corda.<br />

No tempo em que passamos observando a rota do<br />

acampamento, identificamos alguns pontos estratégicos.<br />

Primeiro dividimos o glaciar em dois. Até a sua metade<br />

seria uma bela rampa de 45 graus. Ali havia uma ilha de<br />

rocha pequena. Daquele ponto em diante dividimos a<br />

segunda metade em três outras partes, mais ou menos<br />

com o mesmo tamanho. A primeira era da Ilha de Rocha<br />

até o Cuello de La Botella, uma espécie de gargalo, como o<br />

nome mesmo diz, formado por uma rampa íngreme<br />

espremida entre uma ponta da parede rochosa limítrofe da<br />

direita e um bloco de gelo dos seracs à esquerda. A<br />

segunda parte seria uma grande rampa que ia dos 45 aos<br />

60 graus até logo abaixo da chaminé rochosa. Este seria o<br />

trecho mais íngreme. E a última parte seria o caminho até<br />

o cume. Cinquenta metros bem inclinados e depois uma<br />

caminhada pela crista de mais ou menos duas horas até o<br />

ponto culminante.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

33


Aproximamo-nos da ilha de pedra ainda sem saber<br />

qual lado usaríamos para contorná-la. Nesse ponto a<br />

rampa ficou mais íngreme e tivemos os primeiros<br />

problemas com a neve fofa. Arthur tomou o lado esquerdo,<br />

o que eu acreditava ser melhor também, mas um pouco<br />

mais afastado da rocha.<br />

- Vai pela direita! Ele então gritou que eu tentasse o<br />

lado oposto, pois havia escalado um lance negativo para<br />

alcançar um platô formado pela neve da rampa,<br />

acumulada no topo da porção de pedra. Dali, Arthur me<br />

lançou uma ponta da corda para dar segurança, uma vez<br />

que eu começava a afundar e brigar com a neve fofa<br />

naquele lance mais inclinado. Alternando piolet e grandes<br />

agarras, subi. Mas não sem bufar um monte e sentir o<br />

coração disparar. Ali era o ponto onde teríamos que<br />

decidir se continuaríamos. Olhei o altímetro do GPS e<br />

marcava em torno dos 600 m de diferença do<br />

acampamento 2. Estávamos na metade! E tínhamos feito<br />

nas quatro horas que queríamos! Se continuasse assim,<br />

mesmo com aquela quantidade de neve, conseguiríamos<br />

chegar a tempo. Sentíamo-nos bem e decidimos, sem<br />

muita dificuldade, continuar.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

34


A inclinação voltou aos 45 graus e a quantidade de<br />

neve aumentou um pouco. O ritmo caiu, pois em alguns<br />

momentos, nos vimos desajeitados pisando naquele chão<br />

instável que cedia com o nosso peso. Agora a neve chegava<br />

aos joelhos.<br />

Em determinado momento, não acreditei no que<br />

meus olhos estavam vendo. Uma avalanche descia como<br />

uma cachoeira pelo Cuello de La Botella. A neve vertia<br />

como água numa cascata, por sobre os seracs, a rampa e<br />

a massa de rochas. Estático e com todos os sentidos<br />

ligados, esperei uma reação de Arthur que estava uns 30<br />

m à frente para confirmar o que eu vi. Arthur continuava<br />

suas passadas. Olhei com mais cuidado para ter certeza,<br />

pois era bem onde teríamos que passar. Continuei com os<br />

olhos vidrados para me certificar de que uma massa de<br />

neve maior não nos alcançaria. E depois que cessou tudo,<br />

perguntei:<br />

-Arthur, você viu aquilo? A avalanche no gargalo?<br />

Arthur respondeu com uma negativa e deve ter<br />

achado que eu estava delirando ou impressionado. Mas o<br />

fenômeno continuou, com menor intensidade. Descargas<br />

de neve despencavam hora como água, hora como pó,<br />

dissolvendo ao vento.<br />

Ok! Não chegavam até nós, cem metros abaixo. Não<br />

era tão forte, mas aquilo ligou o alerta. Um deslizamento<br />

maior parecia agora não ser tão impossível.<br />

Para nos aproximarmos do gargalo foi uma luta.<br />

Arthur tentou subir reto, mas a neve estava tão fofa que<br />

teve que se desviar para o lado direito, fazendo um<br />

ziguezague e passando bem abaixo da rampa de neve, que<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

35


possuía um desnível de dois metros. Parecia feito para um<br />

caminhão encostar a caçamba ali e abastecer-se de gelo<br />

em pó. Aquele funil natural era o caminho óbvio para<br />

grande parte da neve que descia. Infelizmente também era<br />

o único para nós que subíamos. Tentávamos,<br />

inocentemente, nos mover na areia movediça branca.<br />

Tentei seguir meio para a esquerda e atolei mais ainda<br />

com neve pela cintura. Arthur parecia que se saía um<br />

pouco melhor, talvez uns dez quilos a menos fizessem<br />

diferença na consistência da neve. Eu continuava sem<br />

saber qual o melhor: se era pisar em neve virgem ou usar<br />

as marcas dos passos de Arthur. Após um longo tempo<br />

para vencer menos de dez metros, nos reunimos na lateral<br />

esquerda da rampa, junto ao serac.<br />

Prosseguiríamos pelo gelo, uma vez que o caminho<br />

pela canaleta estava impossível. Nesse lance, Arthur<br />

ofereceu que eu seguisse na frente. Eu disse a ele que eu<br />

preferia que ele fosse. Imaginei que ele estivesse menos<br />

desgastado. E o lance requeria cuidado. Atamo-nos cada<br />

um a um ponta da corda e Arthur iniciou a subida<br />

vencendo o balcão de gelo daquela rimalha. Tínhamos dois<br />

parafusos e três estacas e Arthur levou todos. Começou a<br />

subir cravando a ponta frontal dos crampons e as<br />

piquetas na íngreme e reluzente parede de gelo. Alguns<br />

metros depois fixou um parafuso para “costurar” a corda.<br />

Enquanto eu fazia a segurança de baixo, novas descargas<br />

de neve caiam sobre nós, como uma ducha. Arthur<br />

continuou a escalada e dessa vez esticou vários metros até<br />

finalmente fixar outro parafuso. Depois de algum tempo, a<br />

corda esticou e comecei a subir simultaneamente. Tive um<br />

pouco de dificuldade na saída com o gelo e a neve<br />

desmoronando sob meus pés e deixando a greta da<br />

rimalha cada vez mais visível. Não entendi como eu<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

36


conseguia encontrar algum lugar sólido naquilo que<br />

parecia ser bem o centro da boca da greta, mas consegui<br />

sair dali. Escalei 30 metros da parede lateral do serac até<br />

encontrar com Arthur fazendo minha segurança.<br />

Agora tínhamos a rampa íngreme até chegar à<br />

chaminé de rocha. Sugeri a Arthur que subíssemos<br />

encordados a partir dali, pois Abu mencionara um<br />

acidente fatal, com uma pessoa que não usava corda no<br />

momento de um escorregão. Arthur não achava vantagem,<br />

pois disse que se um escorregasse, cairiam os dois. Mas<br />

falei que poderíamos usar as estacas entre a gente.<br />

Subiríamos simultaneamente e, quando eu chegasse à<br />

estaca, avisaria Arthur para fixar outra antes que eu<br />

retirasse a primeira. Desta forma teríamos sempre uma<br />

proteção entre nós e com somente três estacas poderíamos<br />

avançar três vezes o comprimento da corda. Assim<br />

fizemos, mas após a terceira estaca, víamos que<br />

progredíamos muito mais lentamente. Me desencordei e<br />

continuamos outra vez sem a segurança da corda.<br />

O glaciar, que recebeu a luz direta do Sol a maior<br />

parte do dia, começava a receber sombras na altura da<br />

chaminé. O Sol estava completando o seu ciclo e se<br />

posicionava atrás da montanha agora. O medo veio de<br />

estalo! Eram quatro horas da tarde e ainda faltava muito!<br />

Pelo menos um terço do trajeto. Já tínhamos estourado<br />

nosso horário planejado de chegada, que era às 14hs, o<br />

limite para o cume, que era as 15 e provavelmente faltaria<br />

uma hora antes de alcançar a crista e mais duas até o<br />

cume!<br />

Progredir na neve fofa, cada vez mais alta, consumia<br />

muito o nosso tempo e energia. Aquelas condições<br />

estavam fazendo uma diferença absurda. Levávamos<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

37


muito tempo lutando para avançar poucos metros. Agora,<br />

já havíamos chegado à região sombreada e, por sorte, não<br />

recebíamos ventos que, provavelmente, sopravam vindos<br />

da direção oposta. Com a aproximação da chaminé, a<br />

inclinação aumentava e cada vez mais nos afundávamos<br />

na neve. Em outro momento, tentei usar as pegadas<br />

compactadas por Arthur, mas parecia pior para mim, pois<br />

elas cediam mais ainda e depois era mais difícil de sair do<br />

buraco em que eu afundava. Em outra situação, não<br />

consegui sair do lugar, pois a cada movimento, o chão se<br />

desmanchava, revelando uma greta abaixo de mim. Tentei<br />

cravar a piqueta acima, mais a neve se esvaía e a<br />

ferramenta não fixava. Nessa hora, lamentei não estar<br />

encordado. Quando finalmente golpeei fundo algo mais<br />

sólido, pude dar um impulso e sair da borda do buraco,<br />

torcendo e rogando para a piqueta não soltar. A inclinação<br />

estava forte, mas só percebíamos quando olhávamos para<br />

o lado e víamos o perfil da parede em contraste com o céu<br />

e o horizonte. Algo como as escaladas de 3° ou 4º grau da<br />

Urca.<br />

Pouco depois, notei que os meus dedões de cada pé<br />

estavam dormentes. Movimentei-os dentro da bota, mas<br />

soube que pouco podia fazer. A inclinação foi<br />

aumentando, Arthur já tinha chegado à base da chaminé<br />

e preparava uma ancoragem com o parafuso e a piqueta.<br />

Enquanto isso, lutei uns dez minutos para me mover seis<br />

metros para a direita e alcançá-lo. Arthur novamente<br />

jogou a corda, mais com a finalidade de me desatolar do<br />

que dar segurança tradicional. Ancorei-me nas fitas e fiz<br />

novamente o nó de correr, o UIAA, na corda e no meu<br />

mosquetão para assegurar a subida de Arthur. Este<br />

começou a se deslocar para a esquerda, se afastando de<br />

mim na horizontal para ficar na direção da chaminé.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

38


Arthur se movimentava cravando os crampons e os piolets<br />

quando a neve cedeu e ele deslizou somente um metro,<br />

parando na corda. Foi pouco, mas o suficiente para um<br />

pequeno susto. Arthur ainda teve tempo de gritar me<br />

pedindo:<br />

- Segura! Segura!<br />

Acho que respondi:<br />

- Claro!<br />

A chaminé era uma vão na rocha da largura de uma<br />

pessoa. Arthur subiu e depois armou uma ancoragem<br />

para me assegurar. Escalei o trecho relativamente fácil,<br />

alternando o piolet na neve do fundo desta canaleta, as<br />

agarras na rocha e os pés nos degraus das paredes<br />

laterais. Depois de vinte metros encontrei Arthur. A<br />

atmosfera já tomava a mesma cor violeta do amanhecer e<br />

a borda da crista brilhava com os últimos raios de Sol em<br />

contraluz. Arthur enrolava a corda enquanto eu<br />

desenroscava o parafuso somente com a luva de polartec.<br />

Havia tirado a grande e desajeitada luva de dois dedos<br />

chamada mitone para executar algumas tarefas mais<br />

delicadas, como já havia feito antes. Depois de terminado,<br />

não senti mais o dedo polegar da mão direita. Estava<br />

gelado, sem sensibilidade, como se simplesmente ele não<br />

estivesse ali. Enfiei a mão embaixo do braço por algum<br />

tempo, esfreguei o dedo e coloquei-o junto com os outros<br />

dedos na mitone. Alguns minutos depois ele voltou à vida<br />

e passei a senti-lo novamente.<br />

Tínhamos transposto o último obstáculo da rota,<br />

agora viria a parte fácil! Mas o cansaço não nos deixou<br />

este gostinho. Continuamos encordados, subindo pelos<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

39


últimos lances inclinados, que pareciam levar uma<br />

eternidade. Arthur subia mais devagar agora e achei que<br />

me esperava para a corda não esticar. Perguntei-me se ele<br />

estaria com frio e torci para que chegasse logo na crista e<br />

fosse banhado pela luz do Sol, mas este parecia fugir de<br />

nós na mesma velocidade em que avançávamos. Quando<br />

alcancei a crista da montanha, tive a sensação de estar<br />

num sonho. Depois de tantos dias rodeados por cadeias<br />

de montanhas, agora não havia nada mais alto do que<br />

nós, no horizonte. E este desaparecia no infinito. À nossa<br />

frente, uma pequena colina branca, para o qual<br />

seguíamos lentamente, pé após pé, sem emitir nenhuma<br />

palavra. Além dele, o céu quase negro caía sobre o tom de<br />

lilás e uma estreita linha alaranjada e brilhante se<br />

estendia no horizonte. Para completar o cenário, o vento<br />

trazia um lençol de neve fina deslizando a um palmo do<br />

chão formando um efeito de fumaça de gelo seco. Fiquei<br />

muito assustado. Era noite! E eu estava chegando ao<br />

cume do Aconcagua! Eu sabia que tinha que ligar o piloto<br />

automático agora e só parar quando chegasse ao<br />

acampamento. A passos de zumbi, comecei a me<br />

aproximar de Arthur e fui recolhendo a corda lentamente e<br />

enrolando-a na mão. Estávamos caminhando agora em<br />

uma parte bem suave e com neve mais firme! Então me<br />

assustei novamente quando vi Arthur simplesmente parar<br />

e tombar a cabeça. Ficou somente alguns segundos como<br />

se estivesse dormindo em pé, mas era a primeira vez que<br />

eu o via assim tão esgotado! Temi que ele não tivesse<br />

forças para caminhar, esta seria uma situação terrível<br />

para nós, pois certamente eu não conseguiria arrastá-lo<br />

nem com a ajuda de mais três pessoas. Passar uma noite<br />

ali provavelmente seria fatal. Continuei enrolando a corda<br />

até passar a sua frente para dar algum apoio moral. Após<br />

o primeiro monte, avistamos novo falso cume, mas a<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

40


subida deste foi um pouco mais penosa, pois a neve<br />

estava fofa, chegando à metade da canela com o pisar.<br />

Cume (foto com brilho aumentado)<br />

A superfície era bem lisa aparentando ser firme, mas<br />

afundava com um som de gemido tal quais passos nas<br />

areias finas da Barra da Tijuca. No topo deste novo monte<br />

pudemos avistar agora um grande e alvo chapadão.<br />

Começaram a surgir as primeiras rochas negras<br />

salpicadas na neve e a paisagem começou a ficar familiar.<br />

Paramos ao lado de alguns blocos maiores para guardar a<br />

corda e colocar os casacos de pluma. A confirmação do<br />

cume veio com a visão de um aparelho de medição, a vista<br />

do cume sul, mais afiado do que nunca, e de algum objeto<br />

na escuridão que deveria ser a cruz. Que visual<br />

maravilhoso e ao mesmo tempo aterrador. A cadeia de<br />

montanhas toda aos nossos pés, negras pela noite, mas<br />

com muita neve ainda refletindo um resquício de<br />

iluminação. Que diferença da primeira vez, com Sol e<br />

tempo de sobra pra curtir e descansar!<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

41


A noite estava incrivelmente clara, podíamos avistar<br />

muito longe com nitidez. Tivemos muita sorte de haver<br />

somente uma brisa, já que, sem Sol, o frio aumentava a<br />

cada minuto. Eu só procurava o caminho da descida e<br />

Arthur foi quem se lembrou de sacar a câmera para fazer<br />

duas fotos e me pedir para filmar. Puxei a filmadora, mas<br />

esta só filmou dois segundos. A bateria se esgotou pelo<br />

frio.<br />

Achamos a descida com facilidade, estava bem<br />

marcada de pisadas. Mas ao olhar pra baixo vi que<br />

estávamos diante de um novo desafio. Uma longa descida<br />

na escuridão...<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

42


A Volta<br />

Não sei se era porque<br />

estava escuro, mas a descida me<br />

pareceu muito maior do que eu<br />

lembrava. Uma nova onda de<br />

medo bateu. Se eu não<br />

conseguisse forças para<br />

descer… A maioria das estórias<br />

que eu conhecia de acidentes<br />

envolvia a chegada ao cume muito tarde, problemas na<br />

descida e pernoite lá em cima. Acho que Arthur se<br />

lembrou de me saudar pelo nosso feito com um toque de<br />

mão, mas eu só conseguia pensar em sair dali. Logo no<br />

início da descida, percebi que a neve que tanto nos<br />

atrapalhou para subir, agora dava uma ajuda<br />

incomparável para descer. Os quatrocentos metros finais<br />

da rota normal seguem “espremidos” entre grandes<br />

massas e pilares de rocha.<br />

Espremidos para a<br />

proporção da montanha, pois,<br />

para nós, é como uma auto<br />

estrada com uns 50 m de<br />

largura. Um caminho de<br />

milhares de rochas de um<br />

desmoronamento de milhões de<br />

anos. A neve pisada formava<br />

uma rampa estreita seguindo rente à lateral, por cima<br />

daquele terreno irregular que eu bem me lembrava. Arthur<br />

já recuperava as energias e disparava caminho abaixo. Eu<br />

ficava mais atrás e, de vez em quando, sentava em uma<br />

pedra maior para descansar as pernas da forte e contínua<br />

descida. Não tardei em chegar à “Cueva”, uma cavidade na<br />

parede do início da canaleta, usada como abrigo em<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

43


situações de emergência. Lá havia dois tambores de<br />

plástico azul provavelmente com água, comida, remédios,<br />

mantimentos e a frequência de rádio dos guarda parques<br />

escrita na parte externa: 142.800 MHz. Arthur descansava<br />

lá também e decidimos passar um rádio para avisar que<br />

estava tudo bem.<br />

Na face em que nos encontrávamos, só conseguimos<br />

contato com o acampamento base Plaza de Mulas, da rota<br />

normal. Demos detalhes de nossa situação e eles pediram<br />

que avisássemos o acampamento base Plaza Argentina, no<br />

lado leste, quando chegássemos à barraca.<br />

Noite turbulenta<br />

Normalmente uma grande montanha não fica<br />

próxima de centros urbanos e poucas têm sinal de celular<br />

ou alguma estrutura de resgate. Gosto de imaginar esse<br />

tipo de escalada como uma apresentação para o qual você<br />

se prepara por muito tempo, mas na hora não há nenhum<br />

público para te assistir. Não funciona o: “Mãe, olha aqui<br />

onde eu estou!”.<br />

Bem que seria legal, talvez num futuro distante, uma<br />

transmissão ao vivo do que os nossos olhos vêem… Além<br />

dos amigos distantes poderem acompanhar em tempo real<br />

nossos grandes momentos, seria mais seguro em caso de<br />

problemas. Um diálogo como este poderia ser comum:<br />

- O que você vai fazer hoje?<br />

- Mais tarde vou acompanhar a entrevista de<br />

emprego de minha filha que mora na Austrália. Ah e<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

44


amanhã tem o ataque ao cume do Toinho que está lá no<br />

Himalaia! Assiste lá em casa que é 3D…<br />

Mas não precisou nem tanta tecnologia assim…<br />

Fomos assistidos com um equipamento já conhecido há<br />

séculos. Sem que soubéssemos, o pessoal<br />

de Plaza Argentina acompanhou toda nossa escalada por<br />

telescópio e transmitiam entre eles informações na<br />

frequência 142.800, frequência ouvida por muitos dentro<br />

e fora do parque. Nossa situação então era repassada para<br />

outras frequências também como as das expedições<br />

comerciais e empresas diversas no entorno. Estava criada<br />

a novela brasileira no Aconcagua.<br />

Enquanto a médica Gabriela e as guardas Erica e<br />

Ruth torciam para que chegássemos ao cume antes de<br />

escurecer, outros apostavam quando morreríamos. Há<br />

poucos dias, por causa do último acidente, acontecera um<br />

treinamento para o pessoal do parque que trabalhava em<br />

Plaza Argentina e, vendo dois “brasileños” atolados na<br />

neve e movimentando-se tão lentamente no glaciar, já tão<br />

tarde, era compreensível esperarem que muito em breve,<br />

teriam que se por ao trabalho para resgatar algo lá de<br />

cima…<br />

Os guarda parques estavam tendo uma noite<br />

daquelas. Um pouco antes de chegarmos ao cume, os<br />

funcionários receberam um rádio que os deixaram ainda<br />

mais alertas. Um grupo com dois guias havia chegado bem<br />

tarde no cume e um dos clientes tinha sintomas de edema<br />

pulmonar. Na descida, devido à piora do estado de saúde<br />

do montanhista, um dos guias resolveu descer direto com<br />

ele para Nido de Condores, para buscar um resgate ou<br />

médico, enquanto o outro grupo seguiu para Cólera, o<br />

acampamento onde estavam estabelecidos.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

45


GLACIAR DOS POLACOS<br />

46


O grupo de guardas, que já estava alarmado, sem<br />

saber se teria que resgatar os brasileiros, agora precisava<br />

mobilizar pessoal para esta outra situação. Foi quando<br />

recebeu novo rádio com a notícia de que um desses<br />

clientes havia se perdido na descida! Mais tarde, recebeu<br />

novo chamado informando sobre dois corpos encontrados<br />

nas proximidades do campo Cólera. Estava configurado o<br />

cenário de confusão. Teria a novela brasileira terminado<br />

com um final triste? Seriam clientes do grupo guiado?<br />

Seria outro grupo ainda? O dia amanheceria com meia<br />

dúzia de corpos lá em cima? Gabriela contou, mais tarde,<br />

que por causa dessa noite turbulenta, os funcionários do<br />

acampamento base quase não dormiram. Foi combinado<br />

que, no dia seguinte, um guarda parque de Nido de<br />

Condores subiria até Cólera e faria a travessia, descendo<br />

até Plaza Argentina para verificar esse chamado.<br />

Antes de retomarmos nossa descida perguntei,<br />

achando improvável, se Arthur ainda possuía água, pois<br />

eu tinha sede desde as cinco ou seis da tarde, quando a<br />

minha terminara. Pra minha surpresa Arthur ainda tinha.<br />

Fiquei um pouco preocupado, pois ele havia trazido ainda<br />

menos água do que eu. Ele tinha bebido muito pouco!<br />

Recomeçamos a andar e me preocupei em manter a<br />

direita, para começar a contornar a montanha rumo à face<br />

leste ao invés de perder a saída e continuar seguindo .<br />

pelo Gran Acarreo, uma ladeira sem fim de 2000 m de<br />

desnível que eu tinha usado em 2006 para chegar direto a<br />

Nido sem passar por Berlin. Lá embaixo as luzes dos<br />

acampamentos Nido de Condores e Plaza de Mulas<br />

brilhando na escuridão da noite lembravam as cidades do<br />

Vale do Paraíba vistas das montanhas da Serra da<br />

Mantiqueira. Lembrei-me de quando eu estava lá embaixo,<br />

na rota normal e vi, assustado, duas luzes descendo do<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

47


cume a noite. Estaria agora mais alguém nos observando<br />

também?<br />

Chegamos rapidamente ao Independência, um<br />

refúgio em forma de chalé, em ruínas, sem teto.<br />

Estávamos chegando perto do desvio para a Polacos e<br />

acompanhávamos no GPS, onde eu tinha marcado um<br />

ponto com as coordenadas do acampamento. Estávamos<br />

na direção, mas havia sempre uma dúvida quanto ao<br />

caminho que agora nenhum dos dois conhecia. Depois de<br />

algumas bifurcações, comecei a ver luzes lá em baixo.<br />

Aquela nova “cidadezinha” que agora avistávamos<br />

provavelmente era o campo 2! Estávamos na reta final.<br />

Mas este trecho era tão longo, reto e enfadonho que<br />

Arthur chegou a perguntar se realmente estávamos certos.<br />

Só faltava essa! Errarmos de acampamento e ficarmos<br />

vagando exaustos pela montanha naquela noite fria!<br />

Também me preocupei com isso e só tive certeza que era o<br />

campo 2 mesmo, quando cheguei.<br />

Lá estava Arthur sinalizando para mim com a luz da<br />

lanterna. Mesmo a poucas dezenas de metros do<br />

acampamento ele ainda não tinha reconhecido o local e<br />

me aguardava para confirmar. Em seguida, fomos<br />

recebidos por uma dupla de noruegueses que nos trazia<br />

água, comida e nos acompanhou até nossa barraca.<br />

Foram muito gentis nos oferecendo chá quente, biscoitos e<br />

chocolate. Perguntei duas vezes que horas eram até ter<br />

certeza de que compreendi: 1:30 h da madrugada!<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

48


Considerando que escurece por<br />

volta de 10:00h da noite –<br />

provavelmente o horário que<br />

chegamos ao topo -, levamos três<br />

horas e meia para descer. Naquela<br />

noite, logo que Arthur tirou as botas e<br />

meias, comentou que não tinha<br />

sensibilidade nos dedos dos pés e também notou uma<br />

coloração anormal. Eles estavam esbranquiçados nas<br />

pontas e escurecidos no meio. Eu também sentia os meus<br />

dedos dormentes e não acreditamos que nenhum dos<br />

casos fosse grave.<br />

No dia seguinte, acordamos bem tarde e Arthur<br />

novamente examinou os dedos. Comentei:<br />

- Não deve ser nada grave, Arthur. Não há bolhas.<br />

Da última vez, fiquei com um dedo da mão sem<br />

sensibilidade por mais de um mês.<br />

Ainda pela manhã, passamos um rádio para Plaza<br />

Argentina, para avisar que estava tudo bem conosco.<br />

Arthur explicou que fizemos cume tarde e só chegamos na<br />

barraca 1:30 h da manhã.<br />

- Está tudo bem. Agora vamos levantar<br />

acampamento e partir para Nido de Condores para descer<br />

pela face noroeste e Vale de Horcones. Somente os meus<br />

dedos dos pés que estão um pouco queimados.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

49


Ao término desta frase, a guarda que estava do outro<br />

lado da transmissão, respondeu prontamente que<br />

deveríamos descer para Plaza Argentina. Arthur tentou<br />

argumentar, disse que não era nada grave, mas não teve<br />

jeito. A mulher se mostrava convicta de que Arthur teria<br />

que descer por lá mesmo para ser examinado. Arthur<br />

então disse que aguardaríamos para descer no dia<br />

seguinte, pois estávamos cansados e desligou.<br />

Discutimos então o que fazer.<br />

Ignorar a guarda e descer por Plaza Mulas? Arthur<br />

desceria por um lado e eu por outro? Arthur desceria e eu<br />

aguardaria ele voltar já que provavelmente não era um<br />

congelamento grave? Eu acreditava nisso, mas eu não<br />

poderia saber. Quem estava sentindo o pé era Arthur.<br />

Para mim, descer para Plaza Argentina significava deixar<br />

de conhecer um caminho novo, significava também levar<br />

um dia a mais dentro do parque, deixar de rever os<br />

lugares por onde passei em 2006. Para Arthur, seguir por<br />

onde eu queria poderia significar danos permanentes em<br />

seus pés e nem de longe seria justo que eu influísse nessa<br />

decisão.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

50


Recepção<br />

Arhur decidiu seguir<br />

as instruções de Erica<br />

naquele dia mesmo e<br />

começamos a organizar as<br />

tralhas para partir. Agora<br />

teríamos que descer tudo<br />

de uma vez e as mochilas<br />

pesavam quase trinta<br />

quilos cada uma. Como<br />

ele tinha pressa, me deixou terminando de arrumar as<br />

coisas e iniciou a descida quase uma hora antes de<br />

mim. Despedi-me do campo 2, agora deserto, e comecei a<br />

descer também. Eu usava minhas botas de “trekking”<br />

para dar um descanso aos meus pés e não me preocupei<br />

nem em encher minha garrafa com água, uma vez que a<br />

descida não levaria mais de duas horas até o campo 1.<br />

Logo no início do<br />

caminho, enfrentei um trecho<br />

da trilha coberta de neve e com<br />

uma bela ribanceira de<br />

centenas de metros pedregosos<br />

abaixo. O peso da mochila e o<br />

solado inapropriado na<br />

neve escorregadia quase me<br />

colocaram em apuros e soltei<br />

alguns grunhidos enquanto fazia força nos bastões para<br />

não vazar lá pra baixo. Decidi colocar os crampons<br />

automáticos sobre as botas de “trekking” mesmo e perdi<br />

um tempão tentando adaptá-los, já que a bota não tem os<br />

encaixes para isto. Depois de muito apertar com os<br />

próprios cadarços da bota, agora envergada, me coloquei<br />

de pé e constatei que não funcionou. Com o peso da<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

51


mochila e o terreno pendendo para a esquerda, os pés<br />

sambavam em cima dos crampons. O jeito foi colocar as<br />

botas duplas.<br />

Nesse meio tempo dois grupos passaram por mim<br />

subindo. Algumas horas depois, um destes grupos me<br />

alcançou quando já desciam. Eram dois caras e uma<br />

garota da República Tcheca e mostraram uma foto que<br />

tiraram de mim e Arthur no meio do Glaciar. Fiquei<br />

entusiasmado, dei meus e-mails e pedi que me enviassem,<br />

mas tal qual no Mont Blanc, estou esperando até hoje por<br />

isso! Eles se adiantaram e mais um tempo depois um<br />

casal me alcançou também. Faltando menos de uma hora<br />

para chegar ao campo 1, eu realmente descia devagar por<br />

causa do peso e da falta de água e comida. A dupla me<br />

perguntou se eu estava bem, pois eu estava muito lento e<br />

pesado, parando frequentemente para descansar.<br />

- Sim, eu estou bem. – Respondi, mostrando um<br />

sorriso.<br />

- Tem certeza? Não precisa de alguma coisa? –<br />

Insistiu a mulher em inglês.<br />

- Talvez um pouco de água…<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

52


- Quando foi a última vez que você bebeu e comeu? –<br />

Perguntou a mulher em tom de bronca, já puxando o seu<br />

reservatório de água de uma grande pochete para encher<br />

minha garrafa.<br />

- Por volta de duas da tarde. – Menti, já que eu tinha<br />

saído do campo 2 antes disso e mesmo lá não tinha<br />

bebido água.<br />

A mulher continuou o pito me dizendo que se tem<br />

que beber de hora em hora e bla, blá, blá. Não liguei e<br />

aproveitei a ajuda deles para encher a barriga de água e<br />

barra de proteínas que me empurravam.<br />

- Não se preocupe, eu estou acostumado a carregar<br />

peso e passar estes perrengues… – Tentei me explicar.<br />

“Não há lugar na montanha para heróis”, disse a<br />

braba menina de nacionalidade canadense. “O sujeito não<br />

tem mais nem direito de passar um perrengue em paz”,<br />

pensei. Depois desta sessão de broncas e depois de<br />

convencê-los de que eu não precisava de ajuda com minha<br />

carga, o casal se adiantou e eu pude continuar com muito<br />

mais energia, quase acompanhando os dois, que levavam<br />

somente uma pochete cada um.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

53


A algumas dezenas de metros das primeiras barracas<br />

do campo 1, um dos tchecos me aguardava com uma<br />

garrafa de isotônico morno. Uma espécie de chá de<br />

gatorade. Agradeci e sorvi quase metade da garrafa. O<br />

tcheco me acompanhou por mais alguns metros,<br />

insistindo em repartir o meu peso, quando fui abordado<br />

por mais pessoas. Dois guias de uma expedição<br />

perguntaram se era eu o brasileiro que estava com Arthur,<br />

pois ele me esperava já em Plaza Argentina e tinham<br />

mandado um recado por rádio para que me avisassem<br />

quando eu chegasse ali. Outro grupo de noruegueses<br />

também se mostrou preocupado comigo, pois eram sete<br />

horas e temiam que eu não chegasse ao acampamento<br />

base antes de escurecer. Eu explicava que tinha que<br />

descer tudo, pois Arthur estava lá me esperando com<br />

metade da barraca. Ofereceram vaga em alguma barraca.<br />

Mais a frente, um americano se aproximou e ofereceu<br />

sopa. Sentei, tirei a mochila e aceitei. Eu estava perto da<br />

barraca dos canadenses e a menina braba novamente<br />

apareceu com uma embalagem de paella liofilizada<br />

fumegando! Não pude recusar. Mais alguém trouxe uma<br />

garrafa com refresco e logo eu estava quase explodindo de<br />

tanta comida e bebida!<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

54


Lamentei ter que deixar aquele acampamento de<br />

gente tão amistosa. Um dos noruegueses se ofereceu para<br />

me acompanhar na descida até o acampamento base e na<br />

metade do caminho encontramos com dois guardas<br />

parque enviados para me encontrar e me acompanhar até<br />

Plaza Argentina. Perguntei do estado dos pés de Arthur e<br />

me responderam “assim, assim”. Agradeci ao norueguês e<br />

me despedi quando este retornou para o campo 1.<br />

Enquanto eu tentava acompanhar o ritmo dos guardas<br />

parque, um novo guarda nos alcançava descendo. O rapaz<br />

me parabenizou pela escalada. Era o guarda de Nido,<br />

designado a procurar os dois corpos avistados na noite<br />

anterior. Misteriosamente não encontrara nada.<br />

Chegamos ao campo base pouco depois de escurecer.<br />

Fui direto para a enfermaria, onde Arthur já se encontrava<br />

jantando, sentado na única cama do lugar e com as<br />

pernas enfiadas no seu saco de dormir. Além dele, a<br />

médica Gabriela, as guardas Erica e Ruth, um espanhol<br />

com um dedo congelado e um argentino buscando<br />

remédios para um amigo. Cheguei fazendo piada e<br />

filmando até começar a me inteirar do que aconteceu.<br />

Arthur contou que ao tirar as botas lá em baixo, as<br />

malditas bolhas apareceram. Tínhamos que separar<br />

equipamentos para voltar de mulas e uma mochila<br />

pequena com artigos essenciais leves, pois iríamos embora<br />

amanhã, na parte da manhã, no helicóptero! Quase não<br />

acreditei, pois normalmente o helicóptero é deixado para<br />

os casos extremos…<br />

Dormi junto com os congelados na enfermaria,<br />

depois de um belo jantar que incluía sopa, macarronada e<br />

chá, tudo oferecido pelos guardas, que foram todos<br />

sempre extremamente gentis e atenciosos. Acordamos no<br />

frio das seis horas da manhã do dia seguinte e engolimos<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

55


alguns biscoitos. Deixamos macarrão, cereais e os<br />

biscoitos que sobraram dos nossos mantimentos para os<br />

funcionários e aguardamos o “helicóptero das sete”. O<br />

primeiro que pousou era particular, contratado por uma<br />

expedição para deixar os montanhistas diretamente no<br />

campo base. O nosso veio em seguida. Arthur foi auxiliado<br />

por dois guardas e caminhou com dificuldade, apoiando<br />

somente os calcanhares pelo solo pedregoso até o<br />

heliporto demarcado na morena.<br />

Vindo mais atrás, perguntei a um guarda sobre o<br />

estado de Arthur. O conselho que recebi foi que<br />

tomássemos muito cuidado com o local onde Arthur fosse<br />

tratado.<br />

- Já vi pessoas na situação dele que se recuperaram<br />

totalmente e outros que… Fipt! – Fez um gesto com a mão,<br />

decepando dedos invisíveis!<br />

Fiz nova consulta com a médica Gabriela, que pôde<br />

me passar detalhes.<br />

- Existem quatro tipos de congelamento: 1º grau:<br />

superficial. 2º grau: quando surgem bolhas de coloração<br />

clara. 2º grau profundo: quando surgem bolhas de sangue<br />

e 3º grau: quando há necrose e só o que resta é a<br />

amputação. Arthur tem vários dedos com bolhas e dois<br />

deles com bolha de sangue. Por isso classificamos de<br />

forma geral o congelamento dele como 2º grau profundo.<br />

Só conseguiremos saber como vai se desenvolver daqui a<br />

uma semana. Talvez tenha que remover tecido e fiquem<br />

algumas sequelas.<br />

Gabriela recomendou uma médica particular em<br />

Mendoza, especializada em congelamentos. Erica me<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

56


perguntou como eu estava e respondi que estava triste por<br />

Arthur. Em outra situação eu estaria radiante pelo cume e<br />

por sobrevoar o parque…<br />

Entramos no helicóptero, que manteve o rotor ligado,<br />

provocando um vento que resfriava ainda mais o<br />

ambiente. Fomos acomodados no banco de trás e um dos<br />

guardas também embarcou, sentando-se no banco da<br />

frente. A porta foi fechada e a aeronave subiu tão<br />

suavemente que só percebi que estava voando já a<br />

dezenas de metros do chão, quando as pessoas<br />

começaram a ficar anãzinhas. Despedimo-nos com um<br />

aceno de mão e já imediatamente começamos a tentar<br />

absorver o máximo possível do que estávamos vendo. O<br />

piloto fez uma curva para manobrar e tomar altitude antes<br />

de apontar para a cadeia de montanhas que separa Plaza<br />

Argentina de Plaza Francia. Plaza Francia é o<br />

acampamento base aos pés da grande Parede Sul.<br />

Lentamente subíamos para vencer este passo e o vôo não<br />

parecia tão suave e controlado agora que alcançava os<br />

5.000 m de altitude. O helicóptero saía de lado como se<br />

derrapasse na pista molhada e trepidava um pouco, talvez<br />

pela falta de sustentação no ar rarefeito ou por rajadas de<br />

vento. Apesar de minha irmã ter trabalhado numa<br />

empresa de voos turísticos de helicóptero no Rio de<br />

Janeiro e ter oferecido várias vezes uma carona, eu nunca<br />

tinha aproveitado estes convites. Nunca poderia imaginar<br />

que o primeiro voo seria naquelas condições. Quando<br />

finalmente ultrapassamos a muralha de pedra, tivemos a<br />

bela visão da íngreme face sul e todo o vale que leva à<br />

Confluência, que foram descortinados repentinamente.<br />

Depois de estranhar o caminho feito de cima, finalmente<br />

consegui identificar o rastro de formiga que era a trilha<br />

que saía de Confluência para Plaza Francia! Logo<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

57


sobrevoávamos a pequena cidadela de barracas multicores<br />

que era o campo Confluência. Um minuto depois<br />

avistamos Horcones e as instalações dos guarda parques.<br />

Levamos três minutos para percorrer tudo aquilo que<br />

levaríamos três dias a pé. Ao descer em Horcones, reparei<br />

que estava tudo reformado, pavimentado. As instalações<br />

de recepção e check-in não eram mais as tendas de lona<br />

azul semicilíndricas e sim casas pré-construídas.<br />

Fomos fazer o “check-out” e encontrei o amigo Rubén<br />

Massarelli, guarda parque que conheci em 2006 e<br />

reencontrei em Itatiaia, em 2008, quando foi trabalhar<br />

num intercâmbio com o Parque Nacional. Ele contou o<br />

motivo da reforma na entrada do parque: em agosto de<br />

2009, uma avalanche de neve e lama se precipitou sobre o<br />

refúgio da entrada do parque onde jantavam Rubén e mais<br />

três guardas, dois guias e uma médica. Com algumas<br />

escoriações e hipotermia, o grupo conseguiu sair do<br />

refúgio e chegar à autoestrada, onde foram socorridos. A<br />

avalanche destruiu tudo e foi quase um milagre terem<br />

escapados todos com vida.<br />

Refúgio dos guarda<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

parques soterrado<br />

Antes de partirmos, Rubén me presenteou com um<br />

belo pôster. Nosso transporte nos levou à Ponte Inca. No<br />

caminho, o rapaz que dirigia e se chamava Emanuel,<br />

58


perguntou sobre os pés de Arthur, pois havia<br />

acompanhado tudo por rádio. Combinamos com ele que<br />

iríamos a Mendoza no primeiro ônibus, às 11:40 h e eu<br />

voltaria no dia seguinte para reaver nosso equipamento,<br />

que só chegaria de mula às sete da noite. Aguardamos o<br />

ônibus na Hosteria Puente del Inca, onde tomamos café da<br />

manhã. Lá também conhecemos o gerente geral da<br />

empresa de Expedições Aymará, que nos contou que<br />

também acompanhara nossa “epopéia” via rádio e explicou<br />

que a temporada havia estado extremamente seca até<br />

então, quando a neve toda de um período desabou em<br />

poucos dias.<br />

Reflexões<br />

Em uma mesa, Arthur, que já evitava caminhar com<br />

aqueles pés inchados, enfaixados e cheios de bolhas,<br />

encontrara tempo para recapitular os acontecimentos dos<br />

últimos dias, passando os olhos nas fotos e vídeos das<br />

câmeras, recolhendo-se sob a aba de seu boné. Aproveitei<br />

o tempo que tínhamos agora para pensar em tudo que<br />

aconteceu e me afastei, já com lágrimas nos olhos, para ir<br />

ao banheiro chorar um pouco. Eu e ele sabíamos que, na<br />

melhor das hipóteses, Arthur teria tempos difíceis daqui<br />

pra frente. Meu parceiro começara a imaginar como<br />

conseguiria escalar em rocha novamente se tivesse que<br />

amputar dedos dos pés e eu tentava animá-lo dizendo que<br />

todo mundo se adapta e que ele provavelmente voltaria a<br />

escalar até melhor, se fosse o caso. Mas era uma barra<br />

bem pesada e me permiti derramar algumas lágrimas na<br />

frente do espelho do banheiro. Que porcaria de esporte de<br />

maluco era aquele que matava e mutilava! Qual era o<br />

sentido de tudo aquilo? Questionei-me com o pensamento<br />

do leigo. Perguntas que provavelmente sempre ecoarão<br />

sem resposta.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

59


Limpei o rosto e saí para tentar resolver algumas<br />

coisas por telefone. Passei quase uma hora ocupado com a<br />

tarefa de trocar o dinheiro em moedas e procurar<br />

encontrar o único telefone público do lugarejo para discar<br />

pro Seba e perguntar se podíamos ir para sua casa. Numa<br />

destas tentativas, liguei por engano para o celular de sua<br />

namorada, Caro, que naquele exato momento estava em<br />

Machu Picchu. Gastei minhas moedas, mas valeu ouvir o<br />

entusiasmo em sua voz. Também consegui falar com a<br />

médica recomendada por Gabriele, que cobrou cem<br />

dólares a consulta. Fiquei de decidir com Arthur e tornar a<br />

ligar pra ela de Mendoza.<br />

Ao retornar para a Hosteria onde estava Arthur,<br />

encontrei-o conversando com três turistas brasileiros que<br />

estavam por lá de passagem.<br />

- Cara, você não sabe quem morreu…<br />

Esse tipo de pergunta é só pra dar mais angústia,<br />

pois eu realmente não vou conseguir imaginar se foi um<br />

parente ou o Barack Obama. Perguntei, temendo a<br />

resposta: “Quem?”.<br />

-Bernardo.<br />

-Bernardo Collares? – A voz embargou. Arthur<br />

contou o ocorrido, descritos pelos brasileiros que, apesar<br />

de não serem montanhistas, sabiam detalhes e até os<br />

nomes dos escaladores. Estava difícil ter esperança de que<br />

não fosse o nosso pessoal. Tentei disfarçar o abatimento,<br />

mas estava sendo difícil com uma porrada atrás de outra.<br />

Nem tivemos muito tempo de conjecturar, pois o ônibus<br />

estava de saída. Os brasileiros fizeram questão de, um por<br />

um, tirar foto conosco. Será que nunca viram um sujeito<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

60


com pé congelado?! A viagem até Mendoza foi só tristeza.<br />

Arthur esteve presente na temporada anterior de El<br />

Chalten, convivendo e escalando com o pessoal lá e era<br />

muito amigo de Bernardo há anos. Eu realmente o<br />

admirava por sua habilidade na escalada, dedicação ao<br />

montanhismo, simpatia e simplicidade. Queríamos chegar<br />

logo em Mendoza para buscar notícias pela internet, mas,<br />

além disso, tínhamos nossos próprios problemas para<br />

resolver.<br />

Sebastian foi novamente muito gentil em nos<br />

receber. Mal dava para acreditar que na madrugada do dia<br />

anterior estávamos descendo do cume do Aconcagua e<br />

agora estávamos tomando um banho quente em Mendoza<br />

às três e meia da tarde. Ao sair do banheiro, Arthur<br />

desabafou perdendo a esperança, ante o aumento das<br />

bolhas e do inchaço do pé, já deformado:<br />

- Junior, o pé está ficando cada vez pior. Cara, acho<br />

que não vai ter jeito…<br />

Respondi, ao estilo da canadense brava:<br />

- Que nada! Vai ficar bom. Não pensa nisso não! –<br />

Era impossível não pensar, com aqueles dedos iguais a<br />

uma ameixa roxa, cada um era quase como uma bolha só.<br />

Vendo o nosso desespero, Seba contou que na primeira<br />

vez que foi ao Aconcagua também ficou com um dedo<br />

parecido. Mas no acampamento base fizeram uma punção<br />

e depois tratou com pomadas e comprimidos. Seu dedo<br />

parecia tão normal como qualquer outro! Segundo ele,<br />

amputação era coisa do passado, hoje em dia é só tratar<br />

com uma “pomadinha”. Olhamos o seu dedão e não havia<br />

sequela alguma. Somente uma tatuagem naquele local<br />

pouco convencional. Seria para esconder alguma cicatriz?<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

61


Quase dei um abraço de felicidade em Seba pelo alento<br />

que nos deu, quando já começávamos a perder toda a<br />

nossa esperança.<br />

A médica Carina chegou logo e, após examinar os pés de<br />

Arthur e confirmar o diagnóstico de Gabriela, receitou<br />

realmente a pomadinha antibiótica, vasodilatadores,<br />

comprimidos antibióticos, além de um cuidadoso<br />

tratamento de assepsia duas ou três vezes ao dia. A<br />

alegria veio mesmo quando a mulher finalmente disse que<br />

Arthur voltaria a escalar logo depois de um mês! Meio<br />

incrédulos, quase não nos contivemos com o alívio que<br />

aquelas palavras trouxeram. Mas Arthur ainda teria um<br />

martírio pela frente. Não poder se locomover nas primeiras<br />

semanas e, principalmente, não poder escalar tão logo.<br />

Arthur cancelara seus planos de viajar pelo Chile e<br />

Argentina e antecipou a data de sua passagem de retorno<br />

pro Rio.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

62


A recuperação de Arthur foi impressionante. Na<br />

primeira semana os dedos pareciam ameixas maduras. Na<br />

segunda, já no Rio, pareciam ameixas secas. Na terceira, o<br />

pé estava totalmente desinchado, mas alguns dedos<br />

estavam assustadoramente pretos e pareciam<br />

envernizados. Na última semana, a casca preta começou a<br />

cair e revelar um dedo rosado novinho em folha. Somente<br />

a unha permanecia escura. Ao todo, foram vinte sessões<br />

de câmara hiperbárica. Apenas um mês depois, com a<br />

definitiva confirmação de que ele permaneceria com todos<br />

os dedinhos é que realmente pudemos comemorar a<br />

escalada e reunir a galera para mostrar as fotos e vídeos.<br />

Fazer parte de um grupo de montanhistas é um<br />

grande motivo de orgulho. Olhando para cada figura ao<br />

meu lado tento imaginar quantas dificuldades e<br />

conquistas o indivíduo já viveu e, muitas vezes, somente<br />

com um parceiro como testemunha. Quanta força forjada<br />

pelo sacrifício, cansaço e dor. Quantas pessoas realmente<br />

se aproximaram dos seus limiares? E estes limites são<br />

parecidos com as fronteiras geográficas. Só conseguimos<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

63


expandi-los quando vamos lá lutar para ultrapassá-los!<br />

Ter amigos dos quais se orgulha e admira é também um<br />

privilégio. Poderia ser este um dos muitos motivos que<br />

busco para justificar o gosto pelas montanhas e a filosofia<br />

do montanhismo. A habilidade de tomar decisões e<br />

exercitar o bom senso, tentando prever as inúmeras<br />

variáveis que se ramificam numa escalada ou na nossa<br />

vida é algo que acredito que o montanhismo desenvolve de<br />

forma grandiosa. Nos Andes é muito comum se desejar<br />

“suerte!”. Realmente, no alpinismo, o fator sorte começa a<br />

fazer diferença, além de habilidade e conhecimento. É<br />

quando exigimos mais ainda de outras habilidades para<br />

tentar “adivinhar” o clima, as condições do gelo ou, talvez<br />

o mais difícil, as condições do nosso próprio corpo para<br />

tentar minimizar as probabilidades da “mala suerte”.<br />

Sigo assim, procurando desculpas para justificar a<br />

minha atração pelas montanhas. Respostas para questões<br />

que eu já acreditava respondidas. O que realmente<br />

consigo saber é que até agora o montanhismo me deu<br />

muito mais momentos de satisfação do que de tristeza.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

64


FIM<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

65


Cronograma estimado<br />

Época e tempo máximo estimado para a expedição<br />

22 dias (no período de 19 de dezembro de 2010 a 20 de janeiro de 2011)<br />

ETAPAS DIAS PERÍODO<br />

1 Planejamento, treinamento físico e pesquisa de informações. 240 10/04 a 10/12<br />

2 Organização de equipamento 9 10/12 a 24/12<br />

3 Transporte 1 a 2 24/12 a 25/12<br />

4 Acomodação, compra de equipamentos e provisões. 2 25/12 a 26/12<br />

5 Transporte para Punta Vacas 1 26/12<br />

6 Aproximação do acampamento base 3 27/12 a 30/12<br />

7 Descanso e aclimatação no acampamento base 5 30/12 a 03/01<br />

8 Subida ao cume e retorno 7 03/01 a 9/01<br />

9<br />

Tempo livre, margem para espera de tempo bom, descanso,<br />

recuperação, retorno.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

5 9/01 a 14/01<br />

Fonte:<br />

http://expedicaopolacosnoaconcagua.wordpress.com/projeto/<br />

66


A Equipe<br />

Arthur Estevez<br />

Faz parte da nova geração de montanhistas brasileiros. Ele é um raro<br />

exemplo de um montanhista que se adaptou as mais distintas modalidades do<br />

esporte, desde o Big Wall à escalada alpina. Apesar de seu perfil de montanha,<br />

ele é um bom escalador esportivo e ama bouldering. Arthur começou a escalar<br />

quando era muito jovem, 12 anos de idade e está agora com 25 anos.<br />

Formando em turismo, é guia de montanha pela Associação de Guias<br />

Profissionais do Rio de Janeiro (AGUIPERJ). Louco por escalada em fendas e<br />

nevados, tem a Patagônia como um destino anual. Agora com o apoio da Deuter<br />

Brasil pretende superar seus maiores desafios.<br />

Entusiasta por natureza e pela natureza, faz desse cenário sua área de<br />

trabalho e lazer com respeito e dedicação. Apaixonado não só pelo<br />

montanhismo, mas também por qualquer atividade ao ar livre, participou de<br />

remadas de longos percursos, pedaladas e outros.<br />

De 2003 a 2004, colaborou na produção dos<br />

filmes Cariocando e Terras de Gigantes. No ano de<br />

2006 foi convidado por Sabiá e Flavio Carneiro, o<br />

Bagre, para participar do filme 3, 2, 1, Fui! exibido no<br />

Festival de Filmes de Montanha de 2006. Em 2009<br />

fez parte do elenco de Caminho Teixeira,<br />

documentário que reconstruiu a estória da conquista<br />

do Dedo de Deus, exibido na 9ª Mostra de Filmes de<br />

Montanha. Desde 2008 vem colaborando com o portal<br />

AdventureZone, onde escreve sobre escalada e<br />

montanhismo. Nesse mesmo ano entrou para a equipe<br />

de dublês “Só Ação”.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

67


Responsável pelo Cumes – www.cumes.com.br, curso onde ministra<br />

seus conhecimentos de escalada em rocha para os futuros escaladores.<br />

Algumas escaladas:<br />

Bolívia – Pirâmide Blanca, Huayna Potosi e Pequeno<br />

Alpamayo<br />

Argentina – Cerro Tronador (Cume Argentino) e Cerro Solo<br />

em Solitário, entre outras escaladas mistas na Patagônia e escalada<br />

em rocha em Arenales e no Frey.<br />

Peru – Esfinge, Tocllaraju, Vallunaraju, Maparaju, Ishinca<br />

Brasil – Escaladas de longa duração na região de<br />

Salinas, Serra dos Orgãos e BigWalls como o Tragados Pelo Tempo<br />

na Face Sul do Corcovado.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

68


Junior<br />

Montanhista desde 1989, quando começou a fazer trilhas em<br />

Teresópolis e no Parque Nacional da Tijuca com 14 anos. Os anos foram<br />

passando, os trekkings foram ficando mais longos, as trilhas tornaram-se mais<br />

íngremes e a escalada veio naturalmente para possibilitar alcançar o topo de<br />

novas montanhas. As montanhas também começaram a ficar mais altas com o<br />

seu interesse no ambiente alpino. Subiu o Aconcagua pela rota normal em 2006<br />

e produziu o filme “Aconcagua Sin Mulas”, vencedor de dois prêmios como<br />

melhor filme na 7ª mostra do Festival de Filmes de Montanha em 2007.<br />

Responsável pelo site Trilha & Cia. www.trilhaecia.com.br desde 2001<br />

onde reúne relatos, mapas e croquis e artigos sobre montanhismo e<br />

aventura. Participou como navegador da equipe Trilha & Cia, campeã nas<br />

categorias Expedição e Duplas do circuito Carioca Adventure de corrida de<br />

aventura de 2006. Trabalhou no mapeamento das trilhas do Hotel do Frade em<br />

Angra e coordenação da equipe de resgate da<br />

competição BG Challenge em 2009.<br />

Seu gosto por esportes ajuda a manter<br />

o preparo físico naturalmente, mas reconhece<br />

os anos de treinamento no Karate como os<br />

maiores responsáveis pelo seu<br />

condicionamento. Junior é faixa preta 3° dan<br />

e coleciona algumas medalhas em nacionais<br />

da Shotokan Karate (SKICB) e Confederação<br />

de Karate Interestilos do Brasil (CKIB).<br />

Outras atividades que pratica: canoagem, mountain bike, caça<br />

submarina, corrida.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

69


Algumas escaladas:<br />

Escalou também o Huayna Potosi 6.088m na Bolivia com<br />

Emilia Takahashi em 2007;<br />

Vulcão Osorno no Chile com 2.652m em solo em 2007;<br />

Mont Blanc 4.810m na França em solo (2008);<br />

Tronador 3.491m, Bariloche, em 2009, com Arthur, ocasião<br />

em que o conheceu (relato no AdventureZone e relato no Trilha &<br />

Cia.);<br />

Pico Humboldt 4.940m na Venezuela com Emilia em 2009;<br />

Pequeno Alpamayo na Bolivia em solo com 5.370m em<br />

2009;<br />

Tentativa do Aneto 3.404m invernal (Espanha, Pirineus) em<br />

2009 com Nuria Cirauqui . Cancelada por alerta de avalanches de<br />

nível 5 (de 1 a 5);<br />

Pisco 5.750m no Peru com Nuria Cirauqui em 2010;<br />

E com Arthur novamente os nevados Ishinca 5.530m e<br />

Tocllaraju 6.032m no Peru em 2010.<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

70


Apoio:<br />

GLACIAR DOS POLACOS<br />

71


www.trilhaecia.com.br<br />

polacosnoaconcagua.wordpress.com

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