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1 FESTA DO SENHOR DO BONFIM EM MURITIBA – BA ... - NEER

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<strong>FESTA</strong> <strong>DO</strong> <strong>SENHOR</strong> <strong>DO</strong> <strong>BONFIM</strong> <strong>EM</strong> <strong>MURITI<strong>BA</strong></strong> <strong>–</strong> <strong>BA</strong>: UMA MANI<strong>FESTA</strong>ÇÃO<br />

POPULAR MERCANTILIZADA 1<br />

RODRIGUES, Maria da Paz de Jesus<br />

Universidade do Estado da Bahia <strong>–</strong> Campus V<br />

Graduanda em Licenciatura em Geografia<br />

Endereço: Rua Roque Franco Sobrinho, S/N - Centro<br />

CEP: 44340- 000<br />

Muritiba - <strong>BA</strong><br />

pazrodrigues2@yahoo.com.br<br />

pazrodrigues2@hotmail.com<br />

Resumo: O espaço urbano pode ser analisado sob diversas perspectivas, constituindo-se a<br />

dimensão cultural uma delas, ultimamente bastante empregada pelos geógrafos com o intuito<br />

de tornar compreensíveis as complexas relações entre cultura e o urbano e as suas diferentes<br />

formas de manifestações. Nesta pesquisa buscou-se analisar a dinâmica espacial da Festa do<br />

Senhor do Bonfim na cidade de Muritiba-Ba, bem como o processo de mercantilização da<br />

festa popular, que vem promovendo e/ou intensificando a comercialização no/do espaço<br />

público, a inserção de novos elementos e a resignificação dos já existentes. Pretende-se<br />

também, suscitar discussões relacionadas as manifestações culturais no espaço urbano e as<br />

especulações capitalistas que visam torná-las espetacularizações para turistas.<br />

Palavras <strong>–</strong> chaves: espaço urbano, festas, espaço sagrado e espaço profano.<br />

Abstract: The urban space can be analyzed under several perspectives, being constituted, the<br />

cultural dimension one of them, lately plenty used by the geographers with the intention of<br />

turning comprehensible the complex relationships between culture and the urban and your<br />

different forms of manifestations. In this research, it was looked for to analyzed the special<br />

dynamics of the party of the Mister of Bonfim in the Muritiba city, as well as of the process of<br />

trade popular party, that is promoting and intensifying the commercialization in the space. I<br />

publish the insert of new elements and resignificação of the already existent. It is also<br />

intended, to raise related discussions the cultural manifestations in the urban space and the<br />

capitalist shows that seek to turn them parties for tourists.<br />

Words <strong>–</strong> keys: I space urban, parties, sacred space and I space profane.<br />

I <strong>–</strong> INTRODUÇÃO<br />

Na contemporaneidade os municípios brasileiros concentram no espaço urbano a parcela mais<br />

significativa dos habitantes e a quase totalidade das atividades política, econômicas e<br />

culturais. Assim, o espaço urbano pode ser analisado por variadas dimensões, constituindo-se<br />

1 Pesquisa monográfica ainda em fase de desenvolvimento, tendo como orientadores os professores Msc. Jânio<br />

Roque Barros de Castro e Msc. Marco Antonio M. Martins.<br />

1


a dimensão cultural uma delas, ultimamente bastante empregada pelos geógrafos com o<br />

intuito de tornar compreensíveis as espacialidades, territorialidades e temporalidades<br />

expressas na cidade, bem como as complexas relações entre cultura e o urbano e as suas<br />

diferentes formas de manifestações.<br />

A heterogeneidade cultural brasileira, resultado de longos, complexos e espaciais processos<br />

envolvendo sociedade e natureza tornou o Brasil um excepcional e privilegiado campo de<br />

estudos para a Geografia Cultural (CORRÊA e ROSENDAHL, 2003), em decorrência da<br />

existência de inúmeras manifestações culturais que se expressam e reproduzem no espaço<br />

urbano. Neste contexto multicultural, insere-se a Festa do Senhor do Bonfim do município de<br />

Muritiba, situada na micro-região do Recôncavo Sul da Bahia, a 130 km da capital Salvador.<br />

É centrado nas discussões relacionadas as manifestações de festas populares no espaço<br />

urbano, que este trabalho possui como objetivos principais analisar se a ocorrência da Festa<br />

do Senhor do Bonfim na cidade de Muritiba provoca alteração da dinâmica espacial local ou<br />

se as modificações são ínfimas, assim como, enfatizar o processo de mercantilização da festa<br />

popular, que vem promovendo e/ou intensificando a comercialização das manifestações<br />

culturais, a inserção de novos elementos e a resignificação dos já existentes, enfim, a<br />

transformação em eventos espetacularizados.<br />

II <strong>–</strong> CONCEITOS DE ANÁLISE DA <strong>FESTA</strong> POPULAR<br />

As atividades e manifestações referentes ao festejo em louvor ao Senhor do Bonfim em<br />

Muritiba, concentra-se no âmbito da cidade, entendida, segundo o geógrafo Corrêa, como<br />

espaço urbano.<br />

Fragmentada, articulada, reflexo e condicionante social, a cidade é<br />

também o lugar onde as diversas classes sociais vivem e se reproduzem. Isto<br />

envolve o quotidiano e o futuro próximo, bem como as crenças, valores, mitos<br />

criados no bojo da sociedade de classes e, em partes, projetadas nas formas<br />

espaciais: monumentos, lugares sagrados, uma rua especial, etc. O espaço<br />

urbano assume assim uma dimensão simbólica... (CORRÊA, 1995, p. 9)<br />

O espaço urbano apresenta diversificadas vertentes de análise, desde a abordagem como<br />

forma espacial em suas conexões com estrutura, processos e funções, perpassando o<br />

paradigma de consenso ou de conflito, e ainda o viés cultural e da percepção dos seus<br />

habitantes. As festas populares constituem-se, desta maneira, como um dos variados<br />

2


elementos que compõem a dimensão simbólica produzida e/ou reproduzida com base nas<br />

relações e materialidades do urbano.<br />

Alguns teóricos interpretam as festas como uma ruptura do cotidiano, à medida que, durante<br />

sua realização a transgressão é aceita e permitida. Para o antropólogo Roberto Da Matta, “ na<br />

festa (...) rimos e vivemos o mito ou utopia da ausência da hierarquias, poder, dinheiro e<br />

esforço físico. Aqui, todos se harmonizam por meio de conversas amenas...” (DA MATTA,<br />

2001, p. 69).<br />

Contrapondo a concepção de festas enquanto rompimento momentâneo entre as diferenças<br />

sociais, Canclini é enfático ao caracterizar as festas populares como extensão e reprodução<br />

das relações de desigualdade existente no seio da sociedade capitalista.<br />

A festa continua a tal ponto, a existência cotidiana que reproduz no<br />

seu desenvolvimento as contradições da sociedade. Ela não pode ser o lugar<br />

da subversão e da livre expressão igualitária, ou só consegue sê-lo de<br />

maneira fragmentada, porque não é apenas um movimento de unificação<br />

coletiva: as diferenças sociais e econômicas nelas se repetem...<br />

(CANCLINI, 1983, p. 55)<br />

As conceituações de festas apresentadas são extremamente divergentes, tendo em vista, as<br />

diferenciadas abordagens adotadas pelos teóricos. Porém, a definição sugerida por Nestor<br />

Canclini adequa-se com propriedade a realidade percebida durante o período da Festa do<br />

Senhor do Bonfim, em virtude de não ser perceptível ares de integração ou relações<br />

harmoniosas entre as diferentes classes da sociedade muritibana, mas sim revela as<br />

disparidades econômicas e reafirma as diferenças sociais.<br />

A complexidade das discussões relacionadas as festas populares não se restringe apenas a<br />

definição conceitual e ideológica, sendo ampliada quando se propõe estender as considerações<br />

para as dimensões do sagrado e do profano, intrínsecas as festas de origem religiosa em<br />

homenagem ao santo de devoção, como é o exemplo do objeto de estudo da presente<br />

pesquisa.<br />

Na atualidade, mesmo em detrimento de muitos valores religiosos, o catolicismo ainda<br />

permanece ativo em muitas camadas da população brasileira, que continuam promovendo<br />

rezas e festejos em louvor aos santos, fazendo penitencias e pagando promessas.<br />

3


O espaço sagrado é um campo de forças e de valores que eleva o<br />

homem religioso acima de si mesmo, que o transporta para um meio distinto<br />

daquele no qual, transcorre sua existência. É por meio dos símbolos, dos<br />

mitos e dos ritos que o sagrado exerce sua função de mediação entre o homem<br />

e a divindade (ROSENDAHL, 1996, p. 30)<br />

Neste sentido, a festa em devoção ao milagroso (segundo os fiéis) Sr. do Bonfim continua<br />

atraindo multidões, vindas não apenas do núcleo urbano de Muritiba- <strong>BA</strong>, mas da zona rural e<br />

cidades circunvizinhas com o intuito da participar das novenas, missas, procissões e, também,<br />

das atividades ligadas a parte profana.<br />

A reflexão sobre o sagrado é indissociável de considerações sobre o profano, pois as duas<br />

dimensões coexistem no mesmo espaço, porém Rosendahl (1996) ressalta que apesar de<br />

existir conexões, os espaços sagrados e profanos jamais se misturam, havendo limites de<br />

distinção entre um e outro, bem como oposições.<br />

Barracas de comidas, bebidas, prendas, jogos, dança, construídos no<br />

espaço aberto, nas imediações do templo (...) Este lugar é reconhecido como o<br />

“espaço profano da festa” e é tão indispensável quanto o espaço religioso,<br />

sagrado. A festa é justamente esta bricolagem de ritos, festejos, devoção e,<br />

também, espaços de pura diversão. (SANTANA, 2002, p. 46)<br />

A festa do Bonfim enquadra-se entre as festas de largo, por apresentar além da dimensão<br />

sagrada, uma dimensão profana muito expressiva, para Serra (1999, p.62) “numa festa de<br />

largo, os eventos decorridos na praça e no templo pertencem a um mesmo conjunto de<br />

sucessos, a uma contraditória unidade ritual”. No entanto na referida festa, às vezes, as<br />

práticas religiosas são ofuscadas, em função das atenções estarem dirigidas para as atividades<br />

e elementos do profano. Essa afirmação pode ser confirmada pelo fato da maioria dos<br />

freqüentadores não participarem dos ritos que ocorrem no interior da igreja, limitando-se a<br />

experienciar apenas as manifestações profanas.<br />

Vale salientar, que a parte profana da festa passou por modificações muito mais intensas e<br />

visíveis, em comparação à religiosa, que praticamente não as sofreu. Provavelmente, esse<br />

acontecimento se explica, por ser a festa profana constituída de manifestações mais sujeitas a<br />

alterações, principalmente por ser a mesma alvo de maiores especulações por parte dos<br />

poderes públicos e capitalistas.<br />

4


III. PROCEDIMENTOS METO<strong>DO</strong>LÓGICOS<br />

Para a viabilização e excussão do projeto de pesquisa é imprescindível a adoção de uma<br />

metodologia coerente e que ajude a definir os encaminhamentos e a articular todos os<br />

questionamentos.<br />

Assim, como procedimentos metodológicos orientadores para a realização da pesquisa com<br />

eficácia foram utilizados, inicialmente, pesquisas bibliográficas, documentais e cartográficas.<br />

A pesquisa bibliográfica norteou o embasamento teórico e fundamentação científica às<br />

análises realizadas, já as pesquisas documentais e cartográficas disponibilizaram informações<br />

específicas a respeito do objeto de estudo, facilitando o entendimento das dinâmicas históricas<br />

e sócio-espaciais.<br />

No que tange a coleta de dados referentes a Festa do Senhor do Bonfim em Muritiba - <strong>BA</strong>,<br />

aplicou-se entrevistas aos principais agentes (membros da Igreja, Poder Público local,<br />

comerciantes e participantes do festejo), afim de obter informações com maior riqueza de<br />

detalhes, visto que as publicações sobre a manifestação em foco são escassas.<br />

Durante o período de ocorrência da festa foram empregados como instrumentos de coletas de<br />

dados: visitação in loco; leitura e análise da paisagem por meio da observação, aplicação de<br />

questionários por amostragem aleatória, com o intuito de detectar a procedência e perfil dos<br />

participantes da festa popular e das lavagens “segregadoras”, além de registros fotográficos.<br />

IV - ESPECIFICIDADES DA <strong>FESTA</strong> <strong>DO</strong> SR. <strong>DO</strong> <strong>BONFIM</strong> <strong>EM</strong> <strong>MURITI<strong>BA</strong></strong> <strong>–</strong> <strong>BA</strong><br />

A realização da festa do Senhor do Bonfim não é um fenômeno restrito apenas a cidade de<br />

Muritiba, em escala estadual, acontece também em Salvador, Santo Amaro da Purificação,<br />

Amargosa e Nagé (distrito de Maragogipe), no entanto, a manifestação religiosa - cultural em<br />

Muritiba, assim como nas outras localidades citadas, possui especificidades que devem ser<br />

analisadas isoladamente, uma vez que apresentam espacialidades e dinâmicas próprias.<br />

Há aproximadamente dois séculos Muritiba sedia e vivência o festejo em louvor ao Senhor do<br />

Bonfim <strong>–</strong> realizado sempre na semana que antecede o carnaval e tendo duração de onze dias -<br />

5


sendo um evento religioso de forte apelo popular, consagrado como uma das manifestações<br />

culturais mais ricas e significativas da cidade, tornando-se ao longo dos anos uma tradição<br />

que, apesar de ter alguns elementos resignificados, resiste até a atualidade e faz parte do<br />

calendário festivo da Bahia.<br />

A Festa do Bonfim, como é popularmente denominada, é constituída por duas partes distintas,<br />

que são ao mesmo tempo divergentes e complementares: a festa religiosa (organizada pelo<br />

cônego local em conjunto com uma comissão religiosa) composta pelo novenário, missa<br />

festiva, missas penitenciais e procissões 2 ; a festa popular e/ou profana (promovida pela<br />

Prefeitura Municipal e agentes capitalistas) formada por Bandeira 3 , Pregão 4 , cortejos,<br />

lavagens 5 , atrações musicais, parque de diversões e barracas de largo.<br />

A ocorrência da Festa do Senhor do Bonfim na cidade de Muritiba-Ba provoca a<br />

alteração da dinâmica espacial local, por intensificar os fluxos de pessoas e veículos que<br />

circulam pela cidade, o que requer a interdição temporária de algumas ruas do circuito da<br />

festa para a transitação com segurança dos pedestres, a modificação efêmera do trânsito nas<br />

ruas inclusas nos percursos das lavagens e procissões, transformação de ruas, praças e escolas<br />

localizadas nas proximidades da festa em estacionamentos, além de promover uma<br />

reconfiguração e modificação da funcionalidade da Praça do Bonfim que concentra as<br />

atividades profanas.<br />

No que tange a atuação dos agentes capitalistas, a Festa do Sr. do Bonfim vem sofrendo<br />

interferências que promovem e/ou intensificam o processo de mercantilização da<br />

manifestação em questão. A título de ilustração de tal realidade serão elencados dois<br />

exemplos:<br />

- Nos últimos anos os patrocinadores da festa não restringem a divulgação da imagem de seus<br />

produtos apenas ao circuito profano, transgridem o espaço sagrado e vinculam as propagandas<br />

até mesmo durante a realização da procissão em louvor ao Senhor do Bonfim (ver anexo: fig.<br />

01);<br />

2 Procissão dos motoristas em homenagem a São Cristóvão e procissão do Senhor do Bonfim.<br />

3 Trata-se da abertura das festividades ocorrida, impreterivelmente, no dia primeiro de janeiro.<br />

4 Cortejo que ocorre quinze dias antes da festa maior, no qual carros alegóricos e cavaleiros caracterizados ou<br />

fantasiados percorrem a cidade distribuindo a programação do festejo em louvor ao santo.<br />

5 Refere-se as lavagens abertas ao público em geral composta por fanfarra e símbolos folclóricos e as lavagens<br />

“segregadoras” de corda, trio elétrico e com camisas padronizadas.<br />

.<br />

6


- A inserção, a aproximadamente nove anos, de um novo padrão de lavagens, que serão<br />

denominadas lavagens “segregadoras”, pois destoam das lavagens tradicionais abertas para o<br />

povo em geral e assemelham-se aos blocos de carnaval da capital Salvador.<br />

V <strong>–</strong> DA LAVAG<strong>EM</strong> DAS ESCADARIAS AS LAVAGENS “SEGREGA<strong>DO</strong>RAS”<br />

Em 1875, o Partido Conservador muritibano, que possuía Senhor do Bonfim como patrono,<br />

promoveu e custeou a reforma da pequena igreja com somente uma porta, transformando-a no<br />

templo de consideráveis proporções e beleza que é hoje. (ver anexo: fig. 02 e 03) Com a<br />

reconstrução da igreja, surgiu o hábito de lavar as escadarias da igreja do Sr. do Bonfim, que<br />

ao longo dos anos tornou-se uma coisa de fé e ganhou muitos adeptos. As lavagens<br />

começavam após a primeira novena, que ocorria no primeiro sábado da festa, e prosseguiam<br />

por toda à noite até o seu término no domingo ao meio dia, participavam da lavagem grupos<br />

organizados por bairros, caboclos, afoxés, baianas, mães e filhos de santos e eram encerradas<br />

pelos aguadeiros 6 com os animais ricamente enfeitados. Seu Adalberto 7 relata com<br />

saudosismo:<br />

E lamenta:<br />

As lavagens eram do povo, sem qualquer espécie de discriminação, mesmo<br />

os integrantes de entidades do candomblé eram tidos como importante<br />

referencial de brilhantismo da festa e nunca foram molestados pelos<br />

dirigentes da Igreja.<br />

Com o perpassar do tempo acabou a tradição, as pessoas que efetivamente<br />

tinham fé foram desaparecendo e não houve sucessão pelas gerações que<br />

vieram... Muita coisa perdeu sua origem, hoje ocupam a frente da igreja com<br />

barracas e se fossemos resgatar tudo isso, o povo não ia entender. (Entrevista<br />

realizada no dia 02/02/2007)<br />

Haviam também os cortejos que saiam pelas ruas nos domingos, acompanhados pelas<br />

famílias, com senhoras e raparigas 8 vestidas de baianas, conduzindo estandartes e fazendo<br />

coreografias ao som das fanfarras chamadas Ternos de Mombaça. Devido a proximidade da<br />

festa com o carnaval, surgiram os mascarados como reprodução das figuras carnavalescas,<br />

tinham as máscaras luxuosas chamadas de cabeçorra e os mandús, modelos simples feitos de<br />

lençol. O historiador muritibano Anfilôfio de Castro descreve os cortejos:<br />

6<br />

Homens que transportavam água das fontes para as residências, pois na época não existia sistema de<br />

abastecimento domiciliar.<br />

7<br />

Adalberto Oliveira,muritibano, escritor, professor e membro da Academia de Letras do Recôncavo.<br />

8<br />

Terno usado pelo senhor Adalberto para se referir as mulheres jovens ou solteiras.<br />

7


As ruas fervedouras de raparigas de saias redondas, torço de cetim, xale de<br />

seda ajustado à cintura, com punhos, pescoços e orelhas carregados de ouro,<br />

cada qual mais ardente de alegria, cantando, requebrando ao som da<br />

zabumba, sobressaindo as porta-bandeiras no repisado e requebro das chulas,<br />

no miudinho leve e ligeiro do ponteado da dança (Castro, 2001, p.6)<br />

Existiam, ainda, os ternos do silêncio ou da madrugada, que ocorriam todos os dias ao final da<br />

festa profana, antes do raiar do sol, quando as pessoas saiam arrastando latas e pulando atrás<br />

da fanfarra acordando a cidade.<br />

No entanto, os anos trouxeram modificações, algumas profundas, outras quase imperceptíveis.<br />

Assim, houve exclusão e esquecimento de tradições, incorporação de novos elementos,<br />

alteração de denominações, foi impossível deixar de agregar novos significados. Mas, em<br />

meio as mudanças também existem permanências e afirmações.<br />

Hoje, as lavagens das escadarias são conhecidas como cortejos e restringiram-se a<br />

participação de alguns grupos de baianas, adeptas do candomblé ou não, que saem domingo<br />

pela manhã de pontos estratégicos da cidade, seguidas por dezenas de pessoas e se dirigem à<br />

igreja do Sr. do Bonfim, local onde utilizam a água de cheiro 9 , normalmente, transportada em<br />

moringas 10 para abençoar os crédulos e lavar as escadarias (ver anexo: fig. 04 e 05). Alguns,<br />

principalmente os mais idosos, persistem em trazer água para lavar as escadarias no sábado<br />

após a novena, sendo um grupo restrito e não maciço como antes.<br />

Os cortejos, descritos anteriormente, permanecem apenas na memória daqueles que<br />

vivenciaram e experienciaram a sua ocorrência em anos remotos. Os ternos da madrugada<br />

extinguiram-se em decorrência dos altos índices de violência e vandalismo, muitas vezes,<br />

provocados por embriagados. Em seus lugares emergiram as lavagens, não as das escadarias<br />

da igreja, e sim uma nova expressão de manifestação popular, repleta de simbologia<br />

representada nos elementos que a compõe.<br />

Essa nova configuração assumida pela lavagem mobiliza e arrasta multidões, que aguardam<br />

ansiosamente o ano todo, para pular e dançar ao som das fanfarras e suas músicas de embalo<br />

pelas ruas da cidade, ou então, para apenas observa-la nas praças e esquinas. Durante os sete<br />

9 Água aromatizada com alfazema, flores de Angélica e folhas de são gonçalinho.<br />

10 Vasos pequenos feitos de barro.<br />

8


dias em se realizam as lavagens, pode-se notar a presença de elementos simbólicos e<br />

folclóricos como:<br />

- As caretas: apesar de já existirem mascarados nos cortejos fazendo analogia ao carnaval, as<br />

caretas atuais assumiram uma nova roupagem, ao invés de cabeçorras e mandús, mortalhas 11 e<br />

máscaras horrendas são usadas pelos garotos para brincar nas lavagens e assustar criancinhas<br />

(ver anexo: fig. 06).<br />

- Os cães: organizados, inicialmente, pelo líder religioso do candomblé Sr. Ricardo Benedito<br />

dos Santos, popularmente conhecido como Ricardo do Bilhete. Segundo relatos, no início<br />

eram apenas sete componentes, posteriormente, elevando-se a vinte e um, desfilavam pela<br />

cidade, separados da lavagem, usando roupas pretas, capas vermelhas, parte do corpo pintada<br />

de óleo queimado e para completar o figurino; ganchos. Hoje, dispensaram a roupa e pintam<br />

todo o corpo com óleo queimado, são inúmeros e saem junto às lavagens de quarta, sexta e<br />

sábado, sujando a todos, sem exceções (ver anexo: fig. 07).<br />

- As muquiranas: introduzidas há pouco tempo nas lavagens, são reproduções das que existem<br />

no carnaval de Salvador.<br />

Nos últimos nove anos, lavagens com novos aspectos foram inseridas na parte profana da<br />

festa do Sr. do Bonfim, que como tantas outras sofreu interferência pelo poder do capitalismo,<br />

promovendo ou intensificando o processo de mercantilização da festa popular. Assim, nos<br />

domingos acontecem lavagens, que não são abertas para o povo em geral, mas para aqueles<br />

que podem pagar por camisas padronizadas, segurança das cordas, cordeiros e batedores da<br />

polícia, jatos d’ água de carros-pipa para refrescar e a diversão promovida por trios elétricos 12<br />

(ver anexo: fig. 8 e 9). A estrutura de tais lavagens assemelha-se muito aos blocos de carnaval<br />

de Salvador, e de acordo com o depoimento dos organizadores da lavagem Vila Nova, essa<br />

reprodução é intencional.<br />

Queremos dar a oportunidade aos muritibanos de conhecer um pouco do<br />

carnaval, porque nem todos podem sair de Muritiba para pular o carnaval.<br />

Várias pessoas do bloco me disseram que se sentiram em Salvador. Nossa<br />

intenção não é mudar a tradição, e sim fazer uma mistura. (entrevista<br />

realizada em 13/02/2007)<br />

Essas lavagens “segregadoras” começaram de forma tímida com pequenos grupos, no entanto,<br />

vem atingindo proporções consideráveis, existindo atualmente três “blocos” dominantes, o<br />

11 Roupas feitas com retalhos coloridos de tecidos.<br />

12 Exceto a lavagem do Clube dos Trinta que permanecem com as fanfarras.<br />

9


Clube dos Trinta, Escolinha Vila Nova e Jagunça 13 , que a cada ano ampliam os investimentos<br />

em estrutura, marketing e inovações com o intuito de atrair mais participantes e, óbvio, obter<br />

maior lucratividade.<br />

VI <strong>–</strong> CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

O desenvolvimento de estudos culturais no urbano sob uma perspectiva geográfica é<br />

indispensável à medida que a cultura não é concebida isoladamente, mas associada a<br />

economia, a política e ao social. Assim, o pesquisador sobre festas Carlos Eduardo Maia<br />

afirma que:<br />

Um olhar geográfico sobre a festa desvelando fronteiras existenciais, a<br />

projeção espacial das práticas rituais, a emoção enquanto fundamento<br />

construtivo de espacialidade e as marcas da tradição no espaço podem<br />

contribuir bastante para uma melhor compreensão do significado de ser<br />

humano (MAIA, 2001, p. 196).<br />

Neste intuito, a abordagem feita sobre a temática proposta não contempla apenas seus<br />

aspectos culturais, enquanto pesquisa com o enfoque geográfico, são analisadas também suas<br />

dimensões espacial e econômica.<br />

Durante a realização da pesquisa constatou-se que, além dos agentes capitalistas, o Poder<br />

Público local também vem contribuindo com a descaracterização e mercantilização da festa<br />

popular, através da cobrança de taxas pela ocupação 14 do espaço público e para que os<br />

diversos vendedores ambulantes possam ter acesso ao circuito oficial da festa, bem como<br />

promove a incorporação de elementos alheios a festa do Sr. do Senhor do Bonfim, a exemplo<br />

da participação do grupo de afoxés Filhos de Gandhi 15 em cortejos realizados nos anos de<br />

2006 e 2007. De acordo com o secretário de Cultura do município de Muritiba-Ba, a inserção<br />

de novos elementos é uma forma de propiciar mais um atrativo para engrandecer a festa<br />

popular, almeja ainda, torná-la atrativo para turistas e, assim, aquecer o comércio local<br />

13 Esse tipo de lavagem começou a ser organizada por associações de jogadores de futebol a fim de obterem<br />

recursos para investir em infra-estrutura, primeiro o Clube dos Trinta (jogadores acima dos 30 anos), depois a<br />

Escolinha Vila Nova (jogadores infanto-juvenis), ultimamente são organizadas, também, por promotores de<br />

eventos com o Jagunça.<br />

14 Os comerciantes que montam barracas e parque de diversões pagam taxas de acordo com a área ocupada.<br />

15 Originários de Salvador desfilam caracterizados durante o carnaval cantando e dançando e distribuído colares<br />

de miçangas.<br />

10


durante sua ocorrência, gerando empregos diretos e indiretos e contribuindo para<br />

desenvolvimento sócio-econômico do município.<br />

Faz-se necessário destacar que as manifestações culturais não são imutáveis, e estando<br />

inseridas em contextos sócio-econômicos historicamente determinados são passíveis a<br />

transformações e incorporação de novos elementos e significados. “Cultura é um processo<br />

dinâmico, transformações ocorrem, mesmo quando intencionalmente, se visa congelar o<br />

tradicional para impedir a sua deterioração” (ARANTES, 2004, p. 21). O preocupante é que<br />

tais modificações vêm ocorrendo de forma abrupta, e em função de interesses capitalista que<br />

visam tornar a festa do Senhor do Bonfim de Muritiba-Ba em mais uma espetacularização<br />

padronizada.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense, 2004.<br />

CANCLINI, Nestor Garcia. As culturas populares no capitalismo. Ed. Brasiliense, 1983.<br />

CASTRO, Anfilôfio de. História e estrelas de Muritiba. Informativo 5 de março.Muritiba-<br />

Ba. Janeiro a abril de 2001. Ano IV. Nº 8.<br />

CORRÊA, Roberto Lobato O espaço Urbano. São Paulo. Editora Ática, 1995.<br />

CORRÊA, R. L., ROSENDAHL, Z. Geografia Cultural: Introduzindo a temática, os textos e<br />

uma agenda. In: Introdução a Geografia Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.<br />

DA MATTA, Roberto. O que faz do brasil, Brasil? 12ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.<br />

MAIA, Carlos Eduardo Santos. O retorno para a festa e a transformação mágica do mundo:<br />

nos caminhos da emoção. In: CORRÊA, R. L., ROSENDAHL, Z. (orgs). Religião,<br />

Território e Identidade. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001. ( p 177 a 199)<br />

ROSENDAHL, Zeny. Espaço e religião: uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro: UERJ,<br />

NEPEC, 1996.<br />

SANTANA, Mariely Cabral de. Alma e festa de uma cidade: devoção e construção da colina<br />

do Bonfim. Salvador: UF<strong>BA</strong>, 2002.<br />

SERRA, Ordep. Rumores de Festa: O Sagrado e o Profano na Bahia.Salvador: EDUF<strong>BA</strong>,<br />

1999.<br />

11


ANEXOS<br />

12


Fig. 01: Transgressão do espaço sagrado pelos Fig. 02: Fachada da Igreja do<br />

Senhor do patrocinadores do evento. Bonfim<br />

Fig. 03: Interior da Igreja do Senhor do Fig. 04: Cortejo de baianas<br />

Bonfim.<br />

Fig. 05: Benção com água de cheiro Fig. 06: Caretas nas lavagens<br />

13


Fig. 07: Cães nas lavagens Fig. 08: Lavagem do Clube dos<br />

Trinta<br />

Fig. 09: Lavagem da Vila Nova Fig. 10: Lavagem do Jagunça<br />

14

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