Guardados da Memória - Machado de Assis
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Oliveira Lima<br />
aconselhado para evitar as <strong>de</strong>monstrações do sentimento popular avesso à retira<strong>da</strong>,<br />
não encontrou para o receber personagem algum e, a fim <strong>de</strong> não patinhar<br />
na lama, teve que atravessar o charco sobre pranchas mal postas, sustentado<br />
por dois cabos <strong>de</strong> polícia.<br />
Estes pormenores do embarque <strong>de</strong> Dom João são <strong>da</strong>dos pela Duquesa <strong>de</strong><br />
Abrantes, cujo <strong>de</strong>poimento não é contudo completamente merecedor <strong>de</strong> crédito,<br />
e contrastam com a versão <strong>de</strong> uma gravura inglesa coeva, a qual reveste a<br />
parti<strong>da</strong> <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a soleni<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>stacando-se o coche do Paço entre magotes <strong>de</strong><br />
gente <strong>da</strong> corte e do povo que com respeito o circun<strong>da</strong>. Além <strong>da</strong> ma<strong>de</strong>ira e do<br />
cobre receberem sem protesto quaisquer burila<strong>da</strong>s, os ingleses eram interessados<br />
nesta variante porquanto o seu governo fôra no momento <strong>de</strong>cisivo o mais<br />
forte advogado <strong>da</strong> trasla<strong>da</strong>ção.<br />
Os cronistas portugueses guar<strong>da</strong>m sobre os transes <strong>da</strong> parti<strong>da</strong> <strong>da</strong> corte um<br />
silêncio curioso. Lamentam-na todos, censuram-na muitos, <strong>de</strong>sculpam-na alguns<br />
raros, mas calam no geral as peripécias que a acompanharam. Uma <strong>de</strong>scrição<br />
quase única feita pelo Viscon<strong>de</strong> do Rio Seco, particular do regente e a<br />
quem este incumbira especialmente dos aprestos <strong>da</strong> travessia, não <strong>de</strong>ixa entretanto<br />
dúvi<strong>da</strong>s sobre os genuínos sentimentos <strong>da</strong> população <strong>da</strong> capital e abonam<br />
a versão Abrantes em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong> versão inglesa:<br />
“O muito nobre e sempre leal povo <strong>de</strong> Lisboa, não podia familiarizar-se<br />
com a idéia <strong>da</strong> saí<strong>da</strong> d’El-Rei para os Domínios Ultramarinos... Vagando<br />
tumultuariamente pelas praças, e ruas, sem acreditar o mesmo, que via, <strong>de</strong>safogava<br />
em lágrimas, e imprecações a opressão dolorosa, que lhe abafava na<br />
arca do peito o coração inchado <strong>de</strong> suspirar: tudo para ele era horror; tudo<br />
mágoa; tudo sau<strong>da</strong><strong>de</strong>; e aquele nobre caráter <strong>de</strong> sofrimento, em que tanto<br />
tem realçado acima dos Outros povos, quase <strong>de</strong>generava em <strong>de</strong>sesperação!<br />
Era neste estado <strong>de</strong> frenesi popular, que ele [o Viscon<strong>de</strong> do Rio Seco] no seu regresso<br />
para o cais <strong>de</strong> Belém foi envolvido em uma nuvem <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros filhos,<br />
que <strong>de</strong>sacor<strong>da</strong><strong>da</strong>mente lhe pediam contas do seu chefe, do seu príncipe,<br />
do seu pai, como se ele fora o autor <strong>de</strong> um expediente, que tanto os fla-<br />
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