Artigo para download - CCMAR - Universidade do Algarve
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grande angular | kelp<br />
As florestas perdidas<br />
Podem medir uma dezena de metros e albergam grande<br />
biodiversidade. Aparecem e desaparecem de vastas regiões<br />
da costa portuguesa, mas não se sabe bem porquê.<br />
Junto desta Saccorhiza<br />
polyschides, uma das espécies<br />
que se encontram na costa<br />
portuguesa e que pode medir<br />
cinco metros, sobrevive uma<br />
imensidão de organismos.
grande angular | kelp<br />
texto e fotografias de luís quinta<br />
N<br />
as águas de Sesimbra, a boiar à superfície, olho <strong>para</strong><br />
o fun<strong>do</strong> a cerca de 12 metros de profundidade e vejo<br />
uma massa castanha, uniforme, a oscilar ao sabor<br />
da fraca ondulação. O movimento contraditório<br />
à deslocação subaquática provoca uma sensação de tontura.<br />
O fun<strong>do</strong> parece fugir debaixo de mim a uma velocidade impossível.<br />
Estamos em Julho de 1978 e este é um fenómeno raro, só<br />
observável na Primavera e nos meses de Verão, perío<strong>do</strong> em que<br />
as fron<strong>do</strong>sas florestas de kelp cobrem por completo vastas áreas<br />
<strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s marinhos de Portugal.<br />
Lembro-me também de Porto Covo durante a maré vazia,<br />
quan<strong>do</strong>, à partida <strong>para</strong> uma jornada de pesca submarina,<br />
se entrava na água gatinhan<strong>do</strong> por cima <strong>do</strong> kelp.<br />
Nos anos 1970, o fenómeno era recorrente, mas, de repente, como<br />
que fustigadas por uma onda de preguiça, as gigantescas florestas<br />
de algas entraram em declínio. Em poucos anos, quase desapareceram<br />
da costa portuguesa.<br />
Várias causas foram apontadas <strong>para</strong> explicar o fenómeno.<br />
Aliás, o decréscimo das grandes florestas de kelp não se limitou<br />
às fronteiras portuguesas. Existe mesmo um projecto europeu<br />
e sul-americano, o Ecokelp, dedica<strong>do</strong> à investigação <strong>do</strong> tema.<br />
O contributo português <strong>para</strong> essa empreitada global chama-se<br />
Findkelp, uma iniciativa <strong>do</strong> Centro de Ciências <strong>do</strong> Mar <strong>do</strong> <strong>Algarve</strong><br />
e <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Algarve</strong>, executada por Gobius Comunicação<br />
e Ciência e coordenada pelo biólogo marinho Jorge. Para<br />
já, porém, “os da<strong>do</strong>s recolhi<strong>do</strong>s sobre o decréscimo de kelp não<br />
estão de to<strong>do</strong> estuda<strong>do</strong>s”, diz Jorge Assis.<br />
Antecipo a sua pergunta: o que é o kelp? São as algas castanhas<br />
gigantescas das águas frias e ricas em nutrientes, que formam<br />
florestas subaquáticas de enorme dimensão e onde se concentra<br />
grande biodiversidade. Perguntará então por que motivo o<br />
seu desaparecimento não motivou campanhas de conservação,<br />
com peluches e posters, comunica<strong>do</strong>s e correntes electrónicas<br />
de amizade. Um especialista de marketing diria que o kelp tem<br />
um problema de imagem. Está escondi<strong>do</strong> debaixo da superfície,<br />
não se vê com facilidade, pelo que a sua magnitude não é<br />
tão icónica. Mas imagine uma floresta que se eleva a 12 metros<br />
desde o solo, com uma dinâmica muito semelhante às das florestas<br />
terrestres, por onde os preda<strong>do</strong>res circulam e fazem emboscadas<br />
<strong>para</strong> caçar e onde os juvenis de centenas de espécies<br />
procuram abrigo junto à sua base. Para pequenos organismos,<br />
estas funcionam mesmo como o único mun<strong>do</strong> que conhecem.<br />
E agora imagine que, no espaço de uma década, essas florestas<br />
desaparecem sem deixar rasto.<br />
national geographic • outubro 2009<br />
espécies em portugal<br />
Laminaria hyperborea<br />
Laminaria ochroLeuca<br />
Saccorhiza poLySchideS<br />
Saccharina LatiSSima<br />
phyLLariopSiS brevipeS<br />
phyLLariopSiS brevipeS VAr. purpuraScenS<br />
undaria pinnatifida<br />
Conhecem-se sete espécies<br />
de kelp em Portugal<br />
(ilustrações, à direita). Podem<br />
ser identificadas pelas suas<br />
cores, dimensões e texturas.<br />
A participação de voluntários<br />
ao longo da costa, notifican<strong>do</strong><br />
os biólogos de to<strong>do</strong>s os<br />
avistamentos, contribuiu <strong>para</strong><br />
o melhor conhecimento da<br />
distribuição destas florestas.<br />
À direita, depois de um temporal<br />
em Vila Chã, toneladas de algas<br />
afluem à praia.<br />
Poucos deram por isso, mas Jorge Assis foi um deles. As investigações<br />
produzidas por ele e outros investiga<strong>do</strong>res em re<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />
globo sugerem que as populações de kelp estão sujeitas a fenómenos<br />
de larga escala, “como as correntes de deriva continental<br />
que transportam os esporos na fase de recrutamento”. Além disso,<br />
há fenómenos locais como “tempestades anormais que poderão<br />
impedir a fixação de esporos num da<strong>do</strong> local”. E, naturalmente,<br />
“as variações de luminosidade e temperatura, que controlam a<br />
germinação <strong>do</strong>s esporos, poderão não ter, num determina<strong>do</strong> ano,<br />
os timings certos”. Mas é preciso saber mais.<br />
Sobreposta aos mapas antigos de distribuição de kelp, a cartografia<br />
mais recente mostra a redução destas florestas nas costas<br />
sul, su<strong>do</strong>este e oeste de Portugal continental. Na zona costeira<br />
setentrional, por ora, o cenário é mais estável.<br />
IlustrAções de João t. tAVAres (GobIus ComunICAção e CIênCIA)
grande angular | kelp<br />
Será que existe um ponto de retorno <strong>para</strong> as florestas de kelp<br />
nos territórios mais meridionais <strong>do</strong> país? Jorge Assis mostra-se<br />
céptico: “Penso que há alguma incerteza relativamente a esse<br />
ponto. É verdade que nada é como há 50 anos. No entanto, estas<br />
populações são conhecidas por terem flutuações à escala <strong>do</strong>s<br />
decénios. Quem sabe se dentro de 50 anos voltaremos a recuperar<br />
esse cenário.” Do ponto de vista <strong>do</strong> conhecimento científico,<br />
só agora se começou a olhar e a registar o que se vê no oceano.<br />
Os ciclos de longa duração permanecem envoltos em neblina.<br />
Os estu<strong>do</strong>s continuam no terreno, contan<strong>do</strong> com um forte impulso<br />
de voluntários. Em toda a costa desenvolvem-se actividades<br />
<strong>para</strong> potenciar a monitorização <strong>do</strong> kelp e estão em curso projectos<br />
de genética de paisagem, capazes de fornecer respostas sobre a<br />
national geographic • outubro 2009<br />
As regulamentações <strong>do</strong> Parque<br />
marinho luiz saldanha, junto à<br />
serra da Arrábida, têm possibilita<strong>do</strong><br />
a recuperação da vida animal<br />
e selvagem naquelas águas.<br />
As florestas de kelp são um bom<br />
indica<strong>do</strong>r da recuperação ou<br />
regressão de um ecossistema.<br />
diversidade entre espécies e a forma como os factores físicos influenciam<br />
a diversidade, abundância e densidade destas florestas.<br />
O Centro de Ciências <strong>do</strong> Mar <strong>do</strong> <strong>Algarve</strong> fez, na verdade, um<br />
bom trabalho de divulgação e, em 2008, vários mergulha<strong>do</strong>res,<br />
pesca<strong>do</strong>res submarinos, biólogos e curiosos inscreveram-se no<br />
site findkelp.org <strong>para</strong> deixar o seu testemunho de um avistamento.<br />
Os da<strong>do</strong>s compila<strong>do</strong>s forneceram um conhecimento inédito sobre<br />
a dinâmica de distribuição das sete espécies que ocorrem em<br />
Portugal. E por isso o projecto prolonga-se durante este ano.<br />
A12 metros de profundidade, tento evoluir pela cerrada<br />
floresta de algas. Não é fácil progredir com to<strong>do</strong> o equipamento<br />
de mergulho por entre este emaranha<strong>do</strong> de<br />
vegetação e vem-me à memória a imagem de um explora<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />
século XIX desbravan<strong>do</strong> à catanada um trilho rouba<strong>do</strong> a custo à<br />
floresta amazónica. Só que eu estou dentro de água.<br />
Os pequenos peixes sentem-se seguros e observam-me com<br />
curiosidade, no limiar da visibilidade. Entre os caules passa um<br />
robalo com cerca de <strong>do</strong>is quilos. Parece andar à caça, mas não o<br />
faz com convicção. O território de caça é perfeito, o menu é vasto<br />
e o cenário é bastante favorável a um preda<strong>do</strong>r deste calibre. Talvez<br />
ele não precise de tanto empenho como noutras águas.<br />
Quan<strong>do</strong> o Sol está a pique nos dias de Verão, muitos peixes<br />
pairam à sombra das grandes algas. Se a água estiver mais quente<br />
<strong>do</strong> que o habitual, parece que entram em letargia, uma verdadeira<br />
sesta à moda <strong>do</strong>s humanos. A sombra é procurada por animais<br />
de maior porte, enquanto outros, mais pequenos, refugiam-se em<br />
orifícios e reentrâncias na base da laminária <strong>para</strong> aí descansar ou<br />
criar esconderijos. Inúmeras espécies de pequenos invertebra<strong>do</strong>s,<br />
como nudibrânquios ou caracóis <strong>do</strong> mar, escolhem as grandes<br />
algas castanhas <strong>para</strong> fazer as suas posturas.<br />
Em mea<strong>do</strong>s de Setembro, as algas perdem solidez, e os primeiros<br />
temporais no mar partem maciçamente estas gigantescas<br />
florestas. Após um forte temporal, o fun<strong>do</strong> submarino outrora<br />
coberto de algas assemelha-se a um campo devasta<strong>do</strong> por um<br />
grande furacão onde apenas restam bolbos e talos. Em dispersão<br />
por novos territórios, os esporos procuram condições favoráveis<br />
<strong>para</strong> recolonizar outras áreas.<br />
Volto a falar com Jorge Assis no início <strong>do</strong> Verão de 2009.<br />
O biólogo está entusiasma<strong>do</strong> com as novidades. “Os da<strong>do</strong>s estão<br />
a chegar e parece haver mais algas <strong>do</strong> que em 2008, principalmente<br />
na região entre o cabo Espichel e a serra da Arrábida e<br />
a costa su<strong>do</strong>este de Porto Covo-Sines”, diz. Na verdade, ainda<br />
sabemos pouco sobre os motivos <strong>para</strong> o aparecimento e desaparecimento<br />
das florestas de kelp. Resta-nos fazer ciência e<br />
continuar a estudá-las até compreendermos os seus segre<strong>do</strong>s<br />
mais íntimos.