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Maria Helena Santana - Universidade do Minho

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VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /<br />

X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />

Os gentlemen visitam o sertão: imaginário colonial em Garrett, Eça e<br />

Agualusa<br />

<strong>Maria</strong> <strong>Helena</strong> <strong>Santana</strong><br />

(<strong>Universidade</strong> de Coimbra / CLP)<br />

A crítica e a história literárias, marcadas que são por um olhar retrospectivo,<br />

incorrem frequentemente em enviesamentos ideológicos. No passa<strong>do</strong>, acreditan<strong>do</strong> na<br />

bondade imanente da literatura, tendia-se a projectar nos autores valores éticos<br />

considera<strong>do</strong>s universais. O processo é conheci<strong>do</strong> e quase sempre bem-intenciona<strong>do</strong>:<br />

sublinhavam-se os aspectos mais conformes com os códigos vigentes, rasuravam-se<br />

os la<strong>do</strong>s incómo<strong>do</strong>s, desculpavam-se os erros de perspectiva. Nas últimas décadas, a<br />

critica literária tem-se empenha<strong>do</strong> na revisão <strong>do</strong> seu discurso apologético:<br />

desconstruin<strong>do</strong> a aura individual <strong>do</strong> autor, passou a atentar-se na forma como a<br />

literatura contribuiu para criar, difundir ou “naturalizar” mitos e estereótipos culturais.<br />

Esta linha de interpretação tem-nos permiti<strong>do</strong>, por exemplo, ganhar consciência da<br />

falácia eurocêntrica em que assenta o suposto humanismo ocidental. Não obstante, um<br />

excesso autopunitivo surge por vezes como contraponto à anterior atitude reverente:<br />

esquecemo-nos de que os valores evoluem; de que os escritores se inserem num<br />

tempo histórico que condiciona o conteú<strong>do</strong> e a forma <strong>do</strong> seu olhar.<br />

Na leitura que seguidamente vos proponho, tentarei acautelar as tentações<br />

afectivas. Limitar-me-ei a confrontar, com a possível distanciação, o imaginário de<br />

autores de gerações diferentes acerca <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> colonial oitocentista – um mun<strong>do</strong><br />

utópico e longínquo, que nenhum deles de facto conheceu. Almeida Garrett, que<br />

nunca saiu da Europa, situou no nordeste brasileiro a acção <strong>do</strong> seu último romance,<br />

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<strong>Helena</strong>, infelizmente inacaba<strong>do</strong>; Eça de Queirós viveu em Cuba mas nunca visitou<br />

África nem o Brasil; verdade se diga que não se atreveu a romancear estas paragens,<br />

mas podia tê-lo feito, bastan<strong>do</strong>-lhe seguir o rasto <strong>do</strong> cosmopolita Fradique Mendes.<br />

Quem nos conduz nessa fantasiosa viagem é José Eduar<strong>do</strong> Agualusa, autor de Nação<br />

Crioula. O escritor angolano inspirou-se na personagem queirosiana para recriar um<br />

tempo colonial em que obviamente não viveu. A expressão ‘mun<strong>do</strong>s imagina<strong>do</strong>s’<br />

pode por conseguinte aplicar-se-lhes em senti<strong>do</strong> literal. Mas to<strong>do</strong>s sabemos que não é<br />

determinante ter experiência física de uma realidade para a representar<br />

ficcionalmente. É privilégio da literatura a liberdade de inventar.<br />

Deve dizer-se que não faltavam fontes de informação aos escritores<br />

oitocentistas. A partir <strong>do</strong> Iluminismo, o interesse pelas culturas e pelos povos<br />

“primitivos” <strong>do</strong>s trópicos começara a vulgarizar-se entre os europeus. No século XIX,<br />

um certo turismo romântico levou muitos intelectuais a visitar regiões menos<br />

acessíveis ao viajante comum; ao interesse científico aliava-se uma genuína<br />

curiosidade pelos tipos humanos, costumes e crenças de povos já conheci<strong>do</strong>s mas<br />

ainda exóticos aos olhos <strong>do</strong> europeu “civiliza<strong>do</strong>”. Os livros de viagens e os<br />

abundantes artigos das revistas divulgavam à gente letrada esse pitoresco e fantasia<strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> indígena, demasia<strong>do</strong> remoto para se tornar ameaça<strong>do</strong>r. Só mais tarde se<br />

desconstruiria o mito <strong>do</strong> bom selvagem, por influência <strong>do</strong>s relatos épicos provin<strong>do</strong>s<br />

de explora<strong>do</strong>res e sobretu<strong>do</strong> das campanhas militares africanas. O continente negro<br />

passou então a associar-se a imagens impressionantes de guerreiros ferozes, que as<br />

gravuras, as primeiras fotografias e os troféus humanos demonstravam de facto<br />

existirem. Mas não esqueçamos que este é também o século da expansão <strong>do</strong> Novo<br />

Mun<strong>do</strong>, marca<strong>do</strong> por intensa emigração colonial; o século <strong>do</strong>s movimentos<br />

independentistas, <strong>do</strong>s navios negreiros e <strong>do</strong> abolicionismo. Esta outra e controversa<br />

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realidade, bem diferente da que fizera o encanto exótico da viagem romântica, deu<br />

origem a uma vaga literária de ín<strong>do</strong>le humanitária, empenhada em revelar as<br />

injustiças sociais da colonização.<br />

O tema da escravatura popularizou-se sobretu<strong>do</strong> com a publicação, em 1852,<br />

de Uncle Tom’s Cabin (A Cabana <strong>do</strong> Pai Tomás), de Harriett Beecher Stowe. A<br />

história pungente de Pai Tomás, mártir resigna<strong>do</strong> da tirania escravista, comoveu<br />

gerações de leitores em to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, transforman<strong>do</strong>-se num ícone da luta<br />

abolicionista. Mesmo assim a obra não está isenta de preconceitos raciais, censura que<br />

vem sen<strong>do</strong> enfatizada pela crítica pós-colonial: terá contribuí<strong>do</strong>, designadamente, para<br />

naturalizar a imagem sentimental <strong>do</strong> negro cristianiza<strong>do</strong>, virtuoso e feliz na sua<br />

submissão, ou o seu contraponto, o escravo alegre e desmiola<strong>do</strong> que entretém e<br />

parodia os europeus. 1<br />

Garrett, em 1853, já menciona na sua narrativa A Cabana <strong>do</strong> Pai Tomás, que<br />

certamente o inspirou na representação de ambientes e personagens; 2 no entanto<br />

distancia-se politicamente de Stowe (considerada demasia<strong>do</strong> esquerdista e radical),<br />

optan<strong>do</strong> por centrar o conflito na questão cultural/racial, o que confere a <strong>Helena</strong> um<br />

enfoque ideológico diferente, menos linear. Apesar de inacaba<strong>do</strong>, o texto apresenta<br />

uma estrutura sequencial – 24 capítulos completos e revistos pelo autor 3 – que nos<br />

permite ter uma noção bastante consistente <strong>do</strong> contexto romanesco que serve de<br />

suporte à intriga. Do que seria o seu possível desenvolvimento só podemos<br />

conjecturar, como fez Ofélia Paiva Monteiro, num estu<strong>do</strong> ilumina<strong>do</strong>r que<br />

1 Cf. G. Frederickson (1987), The Black Image in the White Mind. Apud HALL Stuart (ed.) (2003),<br />

Representation. Cultural Representations and Signifying Practices, p. 249.<br />

2 A 1º versão portuguesa da obra de Stowe é de 1853. De então para cá tem havi<strong>do</strong> sucessivas<br />

reedições e traduções (a base de da<strong>do</strong>s Porbase regista 25 entradas).<br />

3 A edição foi feita a partir <strong>do</strong> manuscrito autógrafo por Carlos Guimarães, genro <strong>do</strong> escritor. Trata-se<br />

da única versão disponível (e retocada) da obra, cuja edição crítica se encontra em preparação, sob a<br />

direcção de Ofélia Paiva Monteiro.<br />

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recentemente lhe dedicou. 4 Mesmo assim o fragmento existente, que só veio a ser<br />

publica<strong>do</strong> em 1871, não deixa dúvidas de que <strong>Helena</strong> teria si<strong>do</strong> o nosso grande<br />

romance colonial – razão suficiente para ser resgata<strong>do</strong> <strong>do</strong> esquecimento.<br />

A acção é situada no ano de 1839, no Brasil, já depois da independência,<br />

portanto, mas recrian<strong>do</strong> um ambiente colonial idealiza<strong>do</strong> e utópico. Itahé é uma vasta<br />

propriedade <strong>do</strong> interior da Baía, afastada <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, onde coexistem, à maneira<br />

feudal, diferentes categorias sociais: a casa senhorial é habitada pelos viscondes de<br />

Itahé, o português Rodrigo Sousa e a brasileira <strong>Maria</strong> Teresa, e pela filha <strong>do</strong> casal,<br />

Isabel, uma jovem casa<strong>do</strong>ira de 15 anos; no espaço <strong>do</strong>méstico circula um número<br />

indefini<strong>do</strong> de serviçais dedica<strong>do</strong>s, representa<strong>do</strong>s por uma velha criada minhota e um<br />

mor<strong>do</strong>mo africano, Spiridião; pressupõe-se que muitos outros escravos trabalhariam<br />

no palácio e na parte agrícola da propriedade. Na velha aldeia adjacente vivem os<br />

índios, uma pequena comunidade livre, mas com ligações afectivas à casa-mãe. Deste<br />

grupo destacam-se Frei João, capelão <strong>do</strong> palácio e director <strong>do</strong> colégio indígena, e sua<br />

mãe, Moema, antiga ama de leite da senhora.<br />

Vive-se bem em Itahé, onde a Natureza e a Religião, esses grandes mitos<br />

românticos, a to<strong>do</strong>s envolvem no seu lastro de bondade intrínseca. A ordem patriarcal<br />

não se põe em causa porque é “natural” e garante o equilíbrio das relações entre as<br />

classes, as raças, as culturas. E algumas tensões emergentes (porque o ser humano não<br />

é perfeito) apaziguam-se no respeito pela civilidade e pela <strong>do</strong>utrina social <strong>do</strong>s<br />

Evangelhos. Pormenor não despicien<strong>do</strong>, há um equilíbrio também “natural” entre o<br />

elemento masculino, por tradição associa<strong>do</strong> ao poder e à razão, e o feminino,<br />

conota<strong>do</strong> com a sensibilidade e o afecto. Garrett (ou o narra<strong>do</strong>r por ele) subscreve em<br />

geral estes tópicos românticos, o que lhe permite introduzir no discurso ideológico<br />

4 O. P. Monteiro (1999), “<strong>Helena</strong>: os da<strong>do</strong>s e as incógnitas de um enigma romanesco”.<br />

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uma certa nuance feminista. D. <strong>Maria</strong> Teresa é não só a herdeira da terra como<br />

descendente <strong>do</strong> povo autóctone; é brasileira de criação e de sangue, o que lhe confere<br />

– tal como à filha – “natural” legitimidade entre os índios da região. Estes atribuem-<br />

lhe uma genealogia ancestral e vêem-na como uma espécie de santa, resgatan<strong>do</strong>-a<br />

assim <strong>do</strong> ódio vota<strong>do</strong> aos coloniza<strong>do</strong>res, ou seja, o sangue índio que lhe corre nas<br />

veias e o “instinto selvagem” compensam o facto de ter casa<strong>do</strong> com um português<br />

(“um aventureiro <strong>do</strong> reino velho”) e de ter a<strong>do</strong>pta<strong>do</strong> uma cultura “invasora”.<br />

Já o catolicismo não fora senti<strong>do</strong> como usurpa<strong>do</strong>r naquela comunidade, que se<br />

habituara há muito a integrá-lo no seu sistema de crenças e práticas; segun<strong>do</strong> o texto,<br />

o povo índio encarava como “calamidades históricas” quer a descoberta <strong>do</strong> Brasil<br />

quer a expulsão <strong>do</strong>s Jesuítas (p. 465). Além <strong>do</strong> mais, a religião recebe uma marca<br />

caritativa feminina: a Viscondessa criou um colégio e uma obra assistencial para o seu<br />

povo; Frei João tornou-se frade camilo por sua influência, e guarda-lhe um respeito<br />

incondicional. Ela por seu turno protege-o maternalmente e não se esquecerá de o<br />

recomendar à filha, pouco antes de morrer:<br />

Ele custa a sofrer; é como to<strong>do</strong>s os de sua desgraçada raça, mole no<br />

bem e no mal. Mas é honra<strong>do</strong>, fiel, sacer<strong>do</strong>te exemplar [...] Tem dó dele,<br />

Isabel, e atura-o com paciência. As suas desconfianças visionárias, as suas<br />

superstições absurdas, nem sempre são para desprezar (p. 439).<br />

A indulgência de <strong>Maria</strong> Teresa não escamoteia os preconceitos rácicos, como<br />

se vê. Aliás, diz-nos ainda o narra<strong>do</strong>r que «só por via da sua religião se curvou a amar<br />

o Negro» e que nunca conseguiu vencer uma íntima desconfiança pelo mari<strong>do</strong><br />

português (p. 465). Mas a religião também não obnubila a consciência política da<br />

enferma, no que diz respeito aos negros que estão na posse da família. A viscondessa<br />

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defende a tese, partilhada pelo mari<strong>do</strong>, de que a escravatura é «uma necessidade<br />

absoluta e inevitável», e que deve ser regulada por quem tem capacidade económica,<br />

intelectual e moral de proteger os mais fracos. O discurso abolicionista <strong>do</strong>s<br />

“filonegros”, como lhes chama, reduz-se, na sua perspectiva, a uma<br />

irresponsabilidade social:<br />

To<strong>do</strong>s os nossos escravos são bons, porque nós temos si<strong>do</strong> bons com<br />

eles. Sei que o teu desejo é libertá-los to<strong>do</strong>s [...]. Tal não faças, minha filha.<br />

Não dês alforria senão aos que tiverem juízo e indústria para usar da sua<br />

liberdade. As beatas e os hipócritas ingleses têm causa<strong>do</strong> tantos desgraça<strong>do</strong>s<br />

com as suas declamações contra o tráfico <strong>do</strong>s negros, tantos, pelo menos,<br />

como os que mercadejam no infame negócio (p. 438).<br />

Sintomaticamente, os negros não têm voz própria no romance, ao contrário<br />

<strong>do</strong>s índios, aos quais se atribui alguma densidade psico-sociológica. Quem fala em<br />

nome <strong>do</strong>s negros é Isabel, empenhada que está na sua libertação: o seu progressismo<br />

cristão levá-la-á inclusivamente a proclamar, no final <strong>do</strong> texto, que “o Evangelho é<br />

socialista”. Mas Isabel não passa de uma jovem idealista, pelo que o seu discurso tem<br />

pouco acolhimento; destina-se, acima de tu<strong>do</strong>, a exprimir a opinião radical (anglo-<br />

americana) que o romance irá rebater, em nome de um humanitarismo (católico e<br />

português) modera<strong>do</strong>. Se, no plano <strong>do</strong>s princípios, Garrett defendia o abolicionismo,<br />

nesta obra parece inclinar-se para uma posição ponderada, em sintonia com as<br />

personagens avisadas. 5<br />

A morte de <strong>Maria</strong> Teresa, elo de coesão de toda a comunidade, vem perturbar<br />

a vários níveis a anterior harmonia desta grande família tropical. Pai e filha voltam-se<br />

5 Sobre o pensamento político de Garrett a este respeito cf. O. Paiva Monteiro, art. cit., p. 150 e 152.<br />

Note-se que a abolição da escravatura só se oficializou em 1869, em Portugal, e em 1888, no Brasil.<br />

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para dentro de si mesmos, devasta<strong>do</strong>s pela <strong>do</strong>r; os subalternos sofrem os efeitos da<br />

desagregação familiar; e os índios, órfãos da sua protectora, conspiram na aldeia<br />

velha, dan<strong>do</strong> expressão aos conflitos até aí apenas latentes. O ódio racial toma então a<br />

forma de um violento protesto anti-colonialista, que o narra<strong>do</strong>r coloca na voz de<br />

Moema:<br />

O Índio nasceu para ser livre e não para o trabalho, nasceu para a caça<br />

e para a guerra. Branco e o Preto que façam o açúcar, que cavem a terra, e que<br />

levem o oiro das nossas minas, que nós lho damos, e nos deixem a nossa<br />

liberdade e os nossos bosques (p. 467)<br />

O confronto não chega porém a eclodir, pelo menos por enquanto: modera o<br />

fanatismo de Moema o discurso apologético de Frei João, a lembrar que “Diante <strong>do</strong><br />

Deus <strong>do</strong>s Cristãos, não há Índio, nem Português nem Africano, há homens” (468). O<br />

debate ideológico permite inferir que a religião universal triunfará como o verdadeiro<br />

elemento agrega<strong>do</strong>r. A obra ficou truncada, mas tu<strong>do</strong> indica que o ressentimento<br />

deverá ser ultrapassa<strong>do</strong> no decorrer da intriga. Herdeira natural da casa, da bondade e<br />

<strong>do</strong> sangue da mãe, Isabel desenha-se como a futura senhora de negros e índios,<br />

asseguran<strong>do</strong> a convivência racial. Entretanto viajará para a Europa, onde a esperam<br />

novas e ameaça<strong>do</strong>ras realidades. Irá conhecer Fernan<strong>do</strong> e <strong>Helena</strong>, estrangeira<strong>do</strong>s e<br />

dividi<strong>do</strong>s como ela; e irá conhecer o Velho Mun<strong>do</strong>, essa civilização virtual que<br />

modelou a sua formação. Não sabemos que destino previa o autor para esta viagem de<br />

iniciação.<br />

Mas há um outro aspecto que merece destaque no romance, que se prende<br />

justamente com o binómio Natureza/Cultura. Como seria de esperar numa obra<br />

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romântica, os primeiros capítulos são dedica<strong>do</strong>s à descrição da paisagem natural, o<br />

cenário luxuriante e edénico <strong>do</strong> sertão. Toda esta longa parte introdutória chega ao<br />

leitor em focalização interna, através <strong>do</strong> olhar extasia<strong>do</strong> de um viajante estrangeiro –<br />

um aristocrata europeu, apaixona<strong>do</strong> pela Botânica. Com ele somos conduzi<strong>do</strong>s de<br />

canoa, lentamente, a Itahé, como num filme. O narra<strong>do</strong>r vai-nos revelan<strong>do</strong> aspectos<br />

parcelares desta enigmática personagem, mas só saberemos ulteriormente (no capítulo<br />

VI) que se trata <strong>do</strong> conde de Bréssac, um general francês, legitimista e liberal, que<br />

combatera romanticamente pela libertação da Grécia e que deixara a França<br />

desiludi<strong>do</strong> com a situação política <strong>do</strong> país.<br />

A chegada de Bréssac a Itahé, depois da floresta virgem <strong>do</strong> sertão, causar-lhe-<br />

ia a mais extraordinária surpresa:<br />

Um imenso parque inglês, corta<strong>do</strong> de sinuosas e bem saibradas ruas,<br />

com lagos e pontes, quiosques e estátuas, templos e ruínas, com to<strong>do</strong>s os<br />

vários e disparata<strong>do</strong>s acidentes e ornamentos que são de rigor em tais casos, e<br />

que a arte europeia imitou <strong>do</strong>s caprichos da chinesa.<br />

O francês pasmava <strong>do</strong> que via: – e a ideia de se ver transporta<strong>do</strong>, por<br />

um golpe de varinha de condão, de pleno Brasil para Windsor, para Eagley-<br />

park ou para Sionhouse, ia-lhe parecen<strong>do</strong> menos absurda de momento para<br />

momento. Sonho, visão, ilusão <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s!... (p. 415).<br />

A aldeia tropical assim camuflada inspirara-se na paisagem alpina, com chalés<br />

suíços a fingir de choupanas e com pinheiros nórdicos ao la<strong>do</strong> de araucárias e<br />

coqueiros. Ver-se-á mais tarde, à luz <strong>do</strong> dia, que, por singular capricho arquitectónico,<br />

as supostas casas da aldeia são afinal uma só, pois comunicam entre si forman<strong>do</strong> as<br />

várias dependências <strong>do</strong> palácio; e que toda a área de serviço fica oculta <strong>do</strong> exterior,<br />

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para se desfrutar das “necessidades materiais da vida” sem ter de lhe “presenciar a<br />

prosaica elaboração” (p. 433). O parque ostenta idêntico artifício de trompe l’oeil.<br />

Com a ajuda de um jardineiro escocês conseguira-se o prodígio de mondar,<br />

<strong>do</strong>mestican<strong>do</strong>-a, a pujança da flora tropical: um rio fora transforma<strong>do</strong> em lago e as<br />

florestas selvagens em tufos. A imaginação da viscondessa - brasileira de coração mas<br />

“anglo-gala” de espírito – fizera o resto: aqui um quiosque turco, ali uma torre gótica,<br />

além um mirante chinês. Tu<strong>do</strong> é imitação e magia barroca no parque internacional de<br />

Itahé: A Arte e a Natureza – ou seja, a Europa e o Brasil – conjugaram-se para criar a<br />

mais bizarra invenção da mestiçagem cultural 6 .<br />

Já no interior da casa principal o estrangeiro depara-se com um verdadeiro<br />

“palácio encanta<strong>do</strong>”, que mimetiza “o casto esplen<strong>do</strong>r da elegância britânica” (416).<br />

A descrição pretende suscitar admiração mas não podemos deixar de ser sensíveis à<br />

marca hiperbólica <strong>do</strong>s pormenores: para além <strong>do</strong>s livros e objectos europeus, nas<br />

mesas há jornais de quase todas as línguas, nas estantes bibelots e raridades da mais<br />

variada arte mundial. Transposta para os trópicos, a Civilização resplandece na sua<br />

máxima grandiosidade mas em forma condensada, miniatural, volven<strong>do</strong>-se assim em<br />

paródia de si mesma – como se o palácio sertanejo fosse uma caixa chinesa onde cabe<br />

a Europa e dentro desta o globo inteiro. É por isso com certa ironia que vemos o<br />

gentleman “já enfastia<strong>do</strong>, já gasto e cansa<strong>do</strong> das maravilhas <strong>do</strong> Velho Mun<strong>do</strong>,<br />

rejuvenescer agora para admirar...” – esse mesmo mun<strong>do</strong> familiar de onde partiu (p.<br />

446).<br />

Por outro la<strong>do</strong>, to<strong>do</strong> este requinte miscigena<strong>do</strong> transporta uma sugestão de<br />

artificialismo que parece colidir com a tese rousseauniana acerca <strong>do</strong> carácter anti-<br />

natural da “civilização” (europeia). Se a sociedade corrompe o homem – tese<br />

6<br />

Sobre esta problemática vale a pena cf. a interpretação de Sérgio Nazar David, “Da natureza agreste<br />

no último Garrett” (David, 2007: 28-32).<br />

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subscrita por Garrett – também a cultura e a arte deveriam impregnar-se <strong>do</strong> mesmo<br />

vírus. Todavia o autor e Bréssac evitam encarar a questão sob esse prisma, preferin<strong>do</strong><br />

qualificar a desordem decorativa de “pitoresca” e “poética”. Talvez assim suceda<br />

porque a cultura foi aqui absorvida de forma filtrada, sem os defeitos inerentes à<br />

sociedade que a gerou. Aliás, as personagens conseguem permanecer até certo ponto<br />

imunes à artificialidade cultural desta surreal casa luso-brasileira, onde o at home<br />

britânico se combina com a elegância parisiense. O narra<strong>do</strong>r faz mesmo questão de<br />

sublinhar a simplicidade <strong>do</strong>s <strong>do</strong>nos da casa, totalmente distinta <strong>do</strong> novo-riquismo<br />

burguês; e o general reforça a ideia: “os parvenus que vira em toda a parte não eram<br />

assim”. Dir-se-ia que os viscondes reúnem o melhor <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is continentes – a cultura<br />

da Europa e a natureza da América. O leitor é convida<strong>do</strong> a aderir, mas não deixará de<br />

sorrir ao ouvir Isabel discutin<strong>do</strong>, no interior <strong>do</strong> sertão, os méritos relativos de Racine,<br />

Lamartine, Shakespeare e Walter Scott...<br />

Em relação aos subalternos o aspecto paródico é explicitamente referi<strong>do</strong>. A<br />

receber o ilustre visitante aprumam-se duas alas de lacaios farda<strong>do</strong>s com to<strong>do</strong> o<br />

requinte dum palácio europeu; são negros, mas têm cabeleiras polvilhadas de branco; 7<br />

mais adiante surgem duas mulatas a acompanhar a <strong>do</strong>ente, “brancas em toda a<br />

aparência – vestidas com a mais apurada coqueteria de uma soubrette francesa” (p.<br />

424). O mimetismo atinge o excesso caricatural com a figura ridícula <strong>do</strong> mor<strong>do</strong>mo<br />

africano, Spiridião Cassiano di Mello i Matôss (como se apresenta no seu típico<br />

linguajar) traja<strong>do</strong> em pleno sertão com “a faustosa elegância de um butler <strong>do</strong> West<br />

End”.<br />

Esta personagem grotesca, destinada a imprimir uma nota humorística ao<br />

romance, não é uma invenção de Garrett: Spiridião encarna o estereótipo <strong>do</strong> negro<br />

7 O espanto de Bréssac exprime-se em termos ingenuamente raciais: “... pois não eram disformes as<br />

feições: – de negros, só tinham ser negros.” (p. 415).<br />

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feliz e infantiliza<strong>do</strong>, admira<strong>do</strong>r servil <strong>do</strong> seu amo, já presente no romance de Harriet<br />

Stowe. Com nuances diferentes, o mor<strong>do</strong>mo negro tornar-se-ia figura recorrente na<br />

literatura oitocentista. Reencontramo-lo, por exemplo, em versão europeizada e<br />

discreta, n’A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós: o Grilo, com a sua eterna<br />

complacência, é a sombra de Jacinto, uma espécie de superego cultural, servin<strong>do</strong> de<br />

contraponto aos seus desvarios excêntricos. N’A Correspondência de Fradique<br />

Mendes já caberá a um branco (escocês!), exercer esta função socializa<strong>do</strong>ra – o<br />

impecável Smith, siné<strong>do</strong>que de uma distinção britânica ambiguamente admirada e<br />

desdenhada.<br />

Fradique Mendes, a face cosmopolita <strong>do</strong> gentleman, é apresenta<strong>do</strong> como um<br />

cidadão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> – aquele que, ao invés <strong>do</strong> touriste convencional, se despia <strong>do</strong><br />

entranha<strong>do</strong> europeísmo para se transformar em “cidadão das cidades que visitava”<br />

(Queirós [1900] : 67) . Tal como Bréssac, desloca-se a regiões exóticas por interesse<br />

científico, mas o seu olhar dirige-se à realidade humana. Pertence a uma geração<br />

diferente, supostamente humanista, que aprendeu a apreciar a diversidade cultural.<br />

Por isso lhe desagrada a modernidade, a globalização <strong>do</strong>s costumes sob o modelo<br />

europeu; de África prefere os cafres e <strong>do</strong> Brasil os índios, e rir-se-ia com gosto da<br />

requintada Itahé que tanto impressionou Bréssac. Diz-nos o seu biógrafo que o<br />

incansável viajante sente “carinhosa simpatia por to<strong>do</strong>s os povos [...] fundin<strong>do</strong>-se com<br />

eles no seu mo<strong>do</strong> de pensar e de sentir” (Queirós [1900] : 77). Na verdade não se trata<br />

propriamente de humanismo, mas de “necessidade de certeza”, ou seja, de se<br />

confrontar com a alteridade para compor o seu livro de ideias (ou o armazém,<br />

consoante a perspectiva).<br />

Eça de Queirós tinha convicções muito firmes sobre a superioridade da cultura<br />

europeia – considerava-a a grande produtora de arte e de ideias <strong>do</strong> Ocidente, a única<br />

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de facto interessante. 8 Fradique não partilha este entusiasmo, mas o amor a outros<br />

povos não lhe retira o etnocentrismo. A curiosidade etnográfica leva-o a civilizações<br />

diferentes para enriquecer o espírito e depois regressar ao seu espaço cultural, em<br />

Paris. De resto não passa de um céptico, conforma<strong>do</strong> com os males <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> (que<br />

deplora) e com as contradições da natureza humana. Por isso mesmo desenvolveu um<br />

certo fatalismo que o ensinou a conviver com as injustiças sociais: tal como as<br />

personagens de <strong>Helena</strong>, mostra-se convicto de que as sociedades sempre encontrarão<br />

formas de perpetuar a escravidão.<br />

José Eduar<strong>do</strong> Agualusa captou muito bem o espírito e as limitações da<br />

personagem queirosiana 9 . Nação Crioula – A Correspondência Secreta de Fradique<br />

Mendes é um pastiche quase perfeito <strong>do</strong> seu modelo, quer nas ideias quer no estilo. O<br />

romance epistolar relata a experiência colonial de Fradique, primeiro em Angola,<br />

depois no Brasil, já na fase final da vida. O desembarque em Luanda, em 1868, feito<br />

de forma humilhante às costas de um negro, causou-lhe desde logo “o sentimento<br />

inquietante de que havia deixa<strong>do</strong> para trás o próprio mun<strong>do</strong>” (p. 11). E de facto será<br />

sempre um estrangeiro nos trópicos, apesar de naturaliza<strong>do</strong> pelo amor africano de<br />

<strong>Maria</strong> Olímpia, a sua grande paixão tardia.<br />

O viajante cosmopolita, que se move à vontade em todas as latitudes, não pode<br />

deixar de sentir-se incomoda<strong>do</strong> na sociedade colonial luandense, paródia camiliana<br />

duma Lisboa afrancesada que em tempos satirizou. Incómo<strong>do</strong> que se repetirá mais<br />

tarde em Pernambuco, outra réplica provinciana e decadente <strong>do</strong> Velho Mun<strong>do</strong>, “onde<br />

à noite se dançam românticos bailes, enquanto os negros <strong>do</strong>rmem exaustos em<br />

8 Cf. Eça de Queirós, “A <strong>do</strong>utrina de Monroe e <strong>do</strong> nativismo”, pp. 1295 e ss. Este texto, de 1896, é um<br />

autêntico manifesto em defesa da supremacia intelectual da Europa face à América.<br />

9 Do mesmo tema se ocuparam recentemente Osval<strong>do</strong> Sivestre e Graça Abreu, autores de excelentes<br />

leituras, em chave pós-colonial (Silvestre, 2002); (Abreu, 2004).<br />

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casebres de palha” (p. 79). “O que faço eu aqui?”, interroga-se Fradique, em carta a<br />

Madame de Jouarre, a quem pede novidades frescas de Paris, em troca das suas<br />

saborosas ane<strong>do</strong>tas coloniais. Só a diferença etnográfica seduz o viajante pós-<br />

romântico, enfastia<strong>do</strong> da sua vulgarizada “civilização”: ou a palhota <strong>do</strong> negro, no<br />

meio da selva africana, ou o Brasil brasileiro, no interior <strong>do</strong> sertão. Fradique descobre<br />

este lugar primitivo durante a visita a uma fazenda baiana, não longe, portanto, da<br />

antiga Itahé, mas agora transforma<strong>do</strong> em idílico paraíso colonial:<br />

Ocorreu-me pela primeira vez a ideia de que poderia instalar-me num<br />

lugar assim, realmente longe <strong>do</strong> fragor <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, ven<strong>do</strong> pouco a pouco a terra<br />

a des<strong>do</strong>brar-se em frutos, acompanhan<strong>do</strong> ao crepúsculo o canto <strong>do</strong>s negros em<br />

volta das fogueiras, caçan<strong>do</strong> e pescan<strong>do</strong>, beben<strong>do</strong> da água fresca <strong>do</strong>s riachos,<br />

comen<strong>do</strong> o feijão preto e a carne seca, a tapioca, as mangas e as bananas <strong>do</strong><br />

meu pomar. (p. 81).<br />

Uma fazenda brasileira seria o espaço perfeito para o descanso mereci<strong>do</strong> de<br />

Fradique, depois da romântica libertação da sua companheira. Mas Agualusa destinou<br />

outras inquietações à personagem queirosiana. O sofrimento de <strong>Maria</strong> Olímpia e a<br />

viagem num navio negreiro tornaram-no mais consciente da condição <strong>do</strong>s escravos,<br />

bem como das responsabilidades que lhe cabem enquanto homem livre. Reconverti<strong>do</strong><br />

em fazendeiro, o gentleman vê-se obriga<strong>do</strong>, malgré lui, a tomar posição no<br />

movimento anti-esclavagista: desaparece o “touriste de fato de linho branco em busca<br />

de exotismo e emoções fortes” (p. 56) para surgir o intelectual empenha<strong>do</strong>, ou seja,<br />

com “uma nova causa com que entreter o espírito e afastar o ócio” (p. 99).<br />

O debate racial e colonial que encontrámos no romance de Garrett toma agora<br />

novos e polémicos contornos políticos (a crioulização, vg.), que não irei explorar.<br />

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Apenas saliento a coincidência curiosa de ser mais uma vez uma jovem mulher,<br />

letrada, culturalmente dividida, a catalisar a questão. A educação inverosímil de<br />

<strong>Maria</strong> Olímpia Vaz de Caminha faz dela um clone moderno de Isabel: também pelos<br />

15 anos já lera to<strong>do</strong>s os grandes autores franceses, no original; estudava as línguas<br />

autóctones com o saber de um filólogo; e ainda discutia Darwin, Proudhon, e<br />

Bakunin, com os convida<strong>do</strong>s <strong>do</strong> seu salão colonial. Em suma: viven<strong>do</strong> em África,<br />

conhecia a Europa “como se sempre tivesse vivi<strong>do</strong> no centro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>” (p. 39). 10<br />

Do ponto de vista ideológico a personagem segue um percurso paralelo mas<br />

inverso ao da sua congénere garrettiana: Isabel, já o vimos, era a porta-voz <strong>do</strong><br />

abolicionismo, no entanto a ingenuidade dá-lhe pouco crédito; tu<strong>do</strong> indica, aliás, que<br />

o seu radicalismo virá a temperar-se da “sensatez” <strong>do</strong> pai, que encara a escravatura<br />

como um mal, mas por enquanto necessário à paz social. <strong>Maria</strong> Olímpia, protegida<br />

pelo casamento com um negreiro excêntrico, desfruta de uma situação de privilégio<br />

que a mantém alienada; apenas compreende o valor da liberdade depois de sentir na<br />

pele a dureza da escravidão. A sua história ilustra assim uma das principais teses <strong>do</strong><br />

romance – decerto a menos controversa – segun<strong>do</strong> a qual a consciência só se<br />

desenvolve a partir da experiência; ou, recorren<strong>do</strong> a um provérbio africano: “uma<br />

pedra debaixo da água não sabe que está a chover” (p. 152).<br />

Faz portanto to<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong> que seja a mulher liberta e não o liberta<strong>do</strong>r a<br />

empunhar a bandeira da emancipação. <strong>Maria</strong> Olímpia voltará a Angola, algo<br />

melancólica, é certo, mas amadurecida e politizada. Fradique regressa a casa,<br />

cumpri<strong>do</strong> o seu papel, deixan<strong>do</strong>-se impregnar <strong>do</strong> habitual cepticismo. Segun<strong>do</strong><br />

informa o texto epilogal, citan<strong>do</strong> Eça, os seus derradeiros anos decorrem “cheios de<br />

ideias, de delicadas ocupações e de obras amáveis”. Nem outra coisa seria de esperar.<br />

10 A extraordinária biblioteca <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, Vitorino Vaz de Caminha, constitui também uma curiosa<br />

versão da casa de Itahé, bem como da sua globalização cultural. Cf. Agualusa: 149.<br />

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Alguns leitores de Nação Crioula criticaram a adesão <strong>do</strong> autor à personagem<br />

queirosiana. Acusa<strong>do</strong>, entre outras razões, de ser condescendente em relação ao<br />

colonialismo português, Agualusa explica-se:<br />

Eu queria um olhar como o dele, de um europeu, carrega<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />

preconceitos próprios da época, mas ao mesmo tempo interessa<strong>do</strong> no outro. O<br />

Fradique <strong>do</strong> Eça já é assim. O meu, evidentemente, é ainda mais aberto, quase<br />

um anacronismo. 11<br />

Com efeito, a literatura não tem de transmitir injunções éticas compatíveis com<br />

a <strong>do</strong>xa cultural de outra época: cabe ao leitor o necessário exercício de<br />

descentramento. No caso de Garrett, a distância impõe-se por si própria; já o romance<br />

de Agualusa exige um esforço acresci<strong>do</strong>, na medida em que o romance se dirige aos<br />

leitores de hoje, mas para ser li<strong>do</strong> à luz de códigos mistos – os nossos e os <strong>do</strong> tempo de<br />

Eça. Ora Fradique é o que é, um europeu dépaysé, pese embora a consciência política<br />

<strong>do</strong> seu novo autor. Poder-se-ia aceitar um gentleman momentaneamente converti<strong>do</strong> a<br />

valores humanitários; mas um Fradique militante, moderno e democrático seria um<br />

filistinismo imper<strong>do</strong>ável.<br />

11<br />

Agualusa defende-se desta e de outras críticas numa entrevista ao jornal O Esta<strong>do</strong> de São Paulo, em<br />

14/2/2007: Cf. Brasil (2007).<br />

“O livro não é apenas uma crítica ao sistema colonial, ou à escravatura - o que seria tão tolo<br />

quanto espancar um cadáver -, o livro pretende ser sobretu<strong>do</strong> uma crítica irônica à atual sociedade<br />

angolana, que em muitos aspectos é herdeira direta da sociedade escravocrata. Em Angola, muitos<br />

leitores reconheceram certos personagens e situações. O livro abriu uma polêmica sobre a questão da<br />

crioulidade e <strong>do</strong> seu alcance em Angola. A acusação que me fazem em Angola, isso sim, é a de<br />

defender um modelo crioulo para o país, o que também não corresponde à verdade. O que eu defen<strong>do</strong> é<br />

a existência de um segmento crioulo, de língua materna portuguesa, uma minoria muito expressiva de<br />

angolanos brancos, mestiços e negros, que têm o direito de exprimir a sua cultura, a par com todas as<br />

outras.” (Brasil, 2007).<br />

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Bibliografia<br />

VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /<br />

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IV Congresso Internacional da APLC, www.eventos.uevora.pt/comparada/VolumeI/<br />

AGUALUSA, José Eduar<strong>do</strong> (2004), Nação Crioula. A Correspondência Secreta de<br />

Fradique Mendes, Lisboa, Dom Quixote , 4ª ed. [1ª ed. 1997].<br />

BRASIL, Ubiratan (2007), “A volta de Nação Crioula, 10 anos depois”, in O Esta<strong>do</strong><br />

de São Paulo, 14/2/2007: www.esta<strong>do</strong>.com.br/editorias/2007/02/14/cad-<br />

1.93.2.20070214.9.1.xml<br />

DAVID, Sérgio Nazar (2007), O Século de Silvestre da Silva. Estu<strong>do</strong>s sobre Garrett,<br />

A.P. Lopes de Men<strong>do</strong>nça, Camilo C. Branco e Júlio Dinis, Lisboa, Prefácio.<br />

FREDERICKSON, G. (1987), The Black Image in the White Mind, Hanover, NH,<br />

Wesleyan University Press.<br />

GARRETT, Almeida (1963), <strong>Helena</strong>, in Obras de A. Garrett, vol. I, Porto, Lello &<br />

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HALL, Stuart (ed.) (2003), Representation. Cultural Representations and Signifying<br />

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MONTEIRO, Ofélia Paiva (1999), “<strong>Helena</strong>: os da<strong>do</strong>s e as incógnitas de um enigma<br />

romanesco”, in Leituras. Revista da Biblioteca Nacional, 4, pp. 147-174.<br />

QUEIRÓS, Eça de (s.d.), A Correspondência de Fradique Mendes, Lisboa, Livros <strong>do</strong><br />

Brasil [1ª ed. 1900].<br />

_ _ (s.d.) “A <strong>do</strong>utrina de Monroe e <strong>do</strong> nativismo”, in Cartas Familiares e Bilhetes de<br />

Paris, Obras de Eça de Queiroz, vol. II, Porto Lello & Irmão [texto de 1896].<br />

SILVESTRE, Osval<strong>do</strong> (2002), “Um turista nos trópicos: o devir-pós-colonial de<br />

Fradique Mendes”, in Congresso de Estu<strong>do</strong>s Queirosianos. IV Encontro Internacional<br />

de Queirosianos, Coimbra, Almedina / ILLP- Faculdade de Letras da Univ. de<br />

Coimbra, vol I, pp. 221-239.<br />

STOWE, Harriet Beecher (s.d.), A Cabana <strong>do</strong> Pai Tomás, trad. de Ricar<strong>do</strong> Alberty,<br />

Lisboa, Verbo [1ª ed. 1851].<br />

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