Maria Helena Santana - Universidade do Minho
Maria Helena Santana - Universidade do Minho
Maria Helena Santana - Universidade do Minho
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /<br />
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />
Os gentlemen visitam o sertão: imaginário colonial em Garrett, Eça e<br />
Agualusa<br />
<strong>Maria</strong> <strong>Helena</strong> <strong>Santana</strong><br />
(<strong>Universidade</strong> de Coimbra / CLP)<br />
A crítica e a história literárias, marcadas que são por um olhar retrospectivo,<br />
incorrem frequentemente em enviesamentos ideológicos. No passa<strong>do</strong>, acreditan<strong>do</strong> na<br />
bondade imanente da literatura, tendia-se a projectar nos autores valores éticos<br />
considera<strong>do</strong>s universais. O processo é conheci<strong>do</strong> e quase sempre bem-intenciona<strong>do</strong>:<br />
sublinhavam-se os aspectos mais conformes com os códigos vigentes, rasuravam-se<br />
os la<strong>do</strong>s incómo<strong>do</strong>s, desculpavam-se os erros de perspectiva. Nas últimas décadas, a<br />
critica literária tem-se empenha<strong>do</strong> na revisão <strong>do</strong> seu discurso apologético:<br />
desconstruin<strong>do</strong> a aura individual <strong>do</strong> autor, passou a atentar-se na forma como a<br />
literatura contribuiu para criar, difundir ou “naturalizar” mitos e estereótipos culturais.<br />
Esta linha de interpretação tem-nos permiti<strong>do</strong>, por exemplo, ganhar consciência da<br />
falácia eurocêntrica em que assenta o suposto humanismo ocidental. Não obstante, um<br />
excesso autopunitivo surge por vezes como contraponto à anterior atitude reverente:<br />
esquecemo-nos de que os valores evoluem; de que os escritores se inserem num<br />
tempo histórico que condiciona o conteú<strong>do</strong> e a forma <strong>do</strong> seu olhar.<br />
Na leitura que seguidamente vos proponho, tentarei acautelar as tentações<br />
afectivas. Limitar-me-ei a confrontar, com a possível distanciação, o imaginário de<br />
autores de gerações diferentes acerca <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> colonial oitocentista – um mun<strong>do</strong><br />
utópico e longínquo, que nenhum deles de facto conheceu. Almeida Garrett, que<br />
nunca saiu da Europa, situou no nordeste brasileiro a acção <strong>do</strong> seu último romance,<br />
1
VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /<br />
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />
<strong>Helena</strong>, infelizmente inacaba<strong>do</strong>; Eça de Queirós viveu em Cuba mas nunca visitou<br />
África nem o Brasil; verdade se diga que não se atreveu a romancear estas paragens,<br />
mas podia tê-lo feito, bastan<strong>do</strong>-lhe seguir o rasto <strong>do</strong> cosmopolita Fradique Mendes.<br />
Quem nos conduz nessa fantasiosa viagem é José Eduar<strong>do</strong> Agualusa, autor de Nação<br />
Crioula. O escritor angolano inspirou-se na personagem queirosiana para recriar um<br />
tempo colonial em que obviamente não viveu. A expressão ‘mun<strong>do</strong>s imagina<strong>do</strong>s’<br />
pode por conseguinte aplicar-se-lhes em senti<strong>do</strong> literal. Mas to<strong>do</strong>s sabemos que não é<br />
determinante ter experiência física de uma realidade para a representar<br />
ficcionalmente. É privilégio da literatura a liberdade de inventar.<br />
Deve dizer-se que não faltavam fontes de informação aos escritores<br />
oitocentistas. A partir <strong>do</strong> Iluminismo, o interesse pelas culturas e pelos povos<br />
“primitivos” <strong>do</strong>s trópicos começara a vulgarizar-se entre os europeus. No século XIX,<br />
um certo turismo romântico levou muitos intelectuais a visitar regiões menos<br />
acessíveis ao viajante comum; ao interesse científico aliava-se uma genuína<br />
curiosidade pelos tipos humanos, costumes e crenças de povos já conheci<strong>do</strong>s mas<br />
ainda exóticos aos olhos <strong>do</strong> europeu “civiliza<strong>do</strong>”. Os livros de viagens e os<br />
abundantes artigos das revistas divulgavam à gente letrada esse pitoresco e fantasia<strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> indígena, demasia<strong>do</strong> remoto para se tornar ameaça<strong>do</strong>r. Só mais tarde se<br />
desconstruiria o mito <strong>do</strong> bom selvagem, por influência <strong>do</strong>s relatos épicos provin<strong>do</strong>s<br />
de explora<strong>do</strong>res e sobretu<strong>do</strong> das campanhas militares africanas. O continente negro<br />
passou então a associar-se a imagens impressionantes de guerreiros ferozes, que as<br />
gravuras, as primeiras fotografias e os troféus humanos demonstravam de facto<br />
existirem. Mas não esqueçamos que este é também o século da expansão <strong>do</strong> Novo<br />
Mun<strong>do</strong>, marca<strong>do</strong> por intensa emigração colonial; o século <strong>do</strong>s movimentos<br />
independentistas, <strong>do</strong>s navios negreiros e <strong>do</strong> abolicionismo. Esta outra e controversa<br />
2
VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /<br />
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />
realidade, bem diferente da que fizera o encanto exótico da viagem romântica, deu<br />
origem a uma vaga literária de ín<strong>do</strong>le humanitária, empenhada em revelar as<br />
injustiças sociais da colonização.<br />
O tema da escravatura popularizou-se sobretu<strong>do</strong> com a publicação, em 1852,<br />
de Uncle Tom’s Cabin (A Cabana <strong>do</strong> Pai Tomás), de Harriett Beecher Stowe. A<br />
história pungente de Pai Tomás, mártir resigna<strong>do</strong> da tirania escravista, comoveu<br />
gerações de leitores em to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, transforman<strong>do</strong>-se num ícone da luta<br />
abolicionista. Mesmo assim a obra não está isenta de preconceitos raciais, censura que<br />
vem sen<strong>do</strong> enfatizada pela crítica pós-colonial: terá contribuí<strong>do</strong>, designadamente, para<br />
naturalizar a imagem sentimental <strong>do</strong> negro cristianiza<strong>do</strong>, virtuoso e feliz na sua<br />
submissão, ou o seu contraponto, o escravo alegre e desmiola<strong>do</strong> que entretém e<br />
parodia os europeus. 1<br />
Garrett, em 1853, já menciona na sua narrativa A Cabana <strong>do</strong> Pai Tomás, que<br />
certamente o inspirou na representação de ambientes e personagens; 2 no entanto<br />
distancia-se politicamente de Stowe (considerada demasia<strong>do</strong> esquerdista e radical),<br />
optan<strong>do</strong> por centrar o conflito na questão cultural/racial, o que confere a <strong>Helena</strong> um<br />
enfoque ideológico diferente, menos linear. Apesar de inacaba<strong>do</strong>, o texto apresenta<br />
uma estrutura sequencial – 24 capítulos completos e revistos pelo autor 3 – que nos<br />
permite ter uma noção bastante consistente <strong>do</strong> contexto romanesco que serve de<br />
suporte à intriga. Do que seria o seu possível desenvolvimento só podemos<br />
conjecturar, como fez Ofélia Paiva Monteiro, num estu<strong>do</strong> ilumina<strong>do</strong>r que<br />
1 Cf. G. Frederickson (1987), The Black Image in the White Mind. Apud HALL Stuart (ed.) (2003),<br />
Representation. Cultural Representations and Signifying Practices, p. 249.<br />
2 A 1º versão portuguesa da obra de Stowe é de 1853. De então para cá tem havi<strong>do</strong> sucessivas<br />
reedições e traduções (a base de da<strong>do</strong>s Porbase regista 25 entradas).<br />
3 A edição foi feita a partir <strong>do</strong> manuscrito autógrafo por Carlos Guimarães, genro <strong>do</strong> escritor. Trata-se<br />
da única versão disponível (e retocada) da obra, cuja edição crítica se encontra em preparação, sob a<br />
direcção de Ofélia Paiva Monteiro.<br />
3
VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /<br />
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />
recentemente lhe dedicou. 4 Mesmo assim o fragmento existente, que só veio a ser<br />
publica<strong>do</strong> em 1871, não deixa dúvidas de que <strong>Helena</strong> teria si<strong>do</strong> o nosso grande<br />
romance colonial – razão suficiente para ser resgata<strong>do</strong> <strong>do</strong> esquecimento.<br />
A acção é situada no ano de 1839, no Brasil, já depois da independência,<br />
portanto, mas recrian<strong>do</strong> um ambiente colonial idealiza<strong>do</strong> e utópico. Itahé é uma vasta<br />
propriedade <strong>do</strong> interior da Baía, afastada <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, onde coexistem, à maneira<br />
feudal, diferentes categorias sociais: a casa senhorial é habitada pelos viscondes de<br />
Itahé, o português Rodrigo Sousa e a brasileira <strong>Maria</strong> Teresa, e pela filha <strong>do</strong> casal,<br />
Isabel, uma jovem casa<strong>do</strong>ira de 15 anos; no espaço <strong>do</strong>méstico circula um número<br />
indefini<strong>do</strong> de serviçais dedica<strong>do</strong>s, representa<strong>do</strong>s por uma velha criada minhota e um<br />
mor<strong>do</strong>mo africano, Spiridião; pressupõe-se que muitos outros escravos trabalhariam<br />
no palácio e na parte agrícola da propriedade. Na velha aldeia adjacente vivem os<br />
índios, uma pequena comunidade livre, mas com ligações afectivas à casa-mãe. Deste<br />
grupo destacam-se Frei João, capelão <strong>do</strong> palácio e director <strong>do</strong> colégio indígena, e sua<br />
mãe, Moema, antiga ama de leite da senhora.<br />
Vive-se bem em Itahé, onde a Natureza e a Religião, esses grandes mitos<br />
românticos, a to<strong>do</strong>s envolvem no seu lastro de bondade intrínseca. A ordem patriarcal<br />
não se põe em causa porque é “natural” e garante o equilíbrio das relações entre as<br />
classes, as raças, as culturas. E algumas tensões emergentes (porque o ser humano não<br />
é perfeito) apaziguam-se no respeito pela civilidade e pela <strong>do</strong>utrina social <strong>do</strong>s<br />
Evangelhos. Pormenor não despicien<strong>do</strong>, há um equilíbrio também “natural” entre o<br />
elemento masculino, por tradição associa<strong>do</strong> ao poder e à razão, e o feminino,<br />
conota<strong>do</strong> com a sensibilidade e o afecto. Garrett (ou o narra<strong>do</strong>r por ele) subscreve em<br />
geral estes tópicos românticos, o que lhe permite introduzir no discurso ideológico<br />
4 O. P. Monteiro (1999), “<strong>Helena</strong>: os da<strong>do</strong>s e as incógnitas de um enigma romanesco”.<br />
4
VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /<br />
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />
uma certa nuance feminista. D. <strong>Maria</strong> Teresa é não só a herdeira da terra como<br />
descendente <strong>do</strong> povo autóctone; é brasileira de criação e de sangue, o que lhe confere<br />
– tal como à filha – “natural” legitimidade entre os índios da região. Estes atribuem-<br />
lhe uma genealogia ancestral e vêem-na como uma espécie de santa, resgatan<strong>do</strong>-a<br />
assim <strong>do</strong> ódio vota<strong>do</strong> aos coloniza<strong>do</strong>res, ou seja, o sangue índio que lhe corre nas<br />
veias e o “instinto selvagem” compensam o facto de ter casa<strong>do</strong> com um português<br />
(“um aventureiro <strong>do</strong> reino velho”) e de ter a<strong>do</strong>pta<strong>do</strong> uma cultura “invasora”.<br />
Já o catolicismo não fora senti<strong>do</strong> como usurpa<strong>do</strong>r naquela comunidade, que se<br />
habituara há muito a integrá-lo no seu sistema de crenças e práticas; segun<strong>do</strong> o texto,<br />
o povo índio encarava como “calamidades históricas” quer a descoberta <strong>do</strong> Brasil<br />
quer a expulsão <strong>do</strong>s Jesuítas (p. 465). Além <strong>do</strong> mais, a religião recebe uma marca<br />
caritativa feminina: a Viscondessa criou um colégio e uma obra assistencial para o seu<br />
povo; Frei João tornou-se frade camilo por sua influência, e guarda-lhe um respeito<br />
incondicional. Ela por seu turno protege-o maternalmente e não se esquecerá de o<br />
recomendar à filha, pouco antes de morrer:<br />
Ele custa a sofrer; é como to<strong>do</strong>s os de sua desgraçada raça, mole no<br />
bem e no mal. Mas é honra<strong>do</strong>, fiel, sacer<strong>do</strong>te exemplar [...] Tem dó dele,<br />
Isabel, e atura-o com paciência. As suas desconfianças visionárias, as suas<br />
superstições absurdas, nem sempre são para desprezar (p. 439).<br />
A indulgência de <strong>Maria</strong> Teresa não escamoteia os preconceitos rácicos, como<br />
se vê. Aliás, diz-nos ainda o narra<strong>do</strong>r que «só por via da sua religião se curvou a amar<br />
o Negro» e que nunca conseguiu vencer uma íntima desconfiança pelo mari<strong>do</strong><br />
português (p. 465). Mas a religião também não obnubila a consciência política da<br />
enferma, no que diz respeito aos negros que estão na posse da família. A viscondessa<br />
5
VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /<br />
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />
defende a tese, partilhada pelo mari<strong>do</strong>, de que a escravatura é «uma necessidade<br />
absoluta e inevitável», e que deve ser regulada por quem tem capacidade económica,<br />
intelectual e moral de proteger os mais fracos. O discurso abolicionista <strong>do</strong>s<br />
“filonegros”, como lhes chama, reduz-se, na sua perspectiva, a uma<br />
irresponsabilidade social:<br />
To<strong>do</strong>s os nossos escravos são bons, porque nós temos si<strong>do</strong> bons com<br />
eles. Sei que o teu desejo é libertá-los to<strong>do</strong>s [...]. Tal não faças, minha filha.<br />
Não dês alforria senão aos que tiverem juízo e indústria para usar da sua<br />
liberdade. As beatas e os hipócritas ingleses têm causa<strong>do</strong> tantos desgraça<strong>do</strong>s<br />
com as suas declamações contra o tráfico <strong>do</strong>s negros, tantos, pelo menos,<br />
como os que mercadejam no infame negócio (p. 438).<br />
Sintomaticamente, os negros não têm voz própria no romance, ao contrário<br />
<strong>do</strong>s índios, aos quais se atribui alguma densidade psico-sociológica. Quem fala em<br />
nome <strong>do</strong>s negros é Isabel, empenhada que está na sua libertação: o seu progressismo<br />
cristão levá-la-á inclusivamente a proclamar, no final <strong>do</strong> texto, que “o Evangelho é<br />
socialista”. Mas Isabel não passa de uma jovem idealista, pelo que o seu discurso tem<br />
pouco acolhimento; destina-se, acima de tu<strong>do</strong>, a exprimir a opinião radical (anglo-<br />
americana) que o romance irá rebater, em nome de um humanitarismo (católico e<br />
português) modera<strong>do</strong>. Se, no plano <strong>do</strong>s princípios, Garrett defendia o abolicionismo,<br />
nesta obra parece inclinar-se para uma posição ponderada, em sintonia com as<br />
personagens avisadas. 5<br />
A morte de <strong>Maria</strong> Teresa, elo de coesão de toda a comunidade, vem perturbar<br />
a vários níveis a anterior harmonia desta grande família tropical. Pai e filha voltam-se<br />
5 Sobre o pensamento político de Garrett a este respeito cf. O. Paiva Monteiro, art. cit., p. 150 e 152.<br />
Note-se que a abolição da escravatura só se oficializou em 1869, em Portugal, e em 1888, no Brasil.<br />
6
VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /<br />
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />
para dentro de si mesmos, devasta<strong>do</strong>s pela <strong>do</strong>r; os subalternos sofrem os efeitos da<br />
desagregação familiar; e os índios, órfãos da sua protectora, conspiram na aldeia<br />
velha, dan<strong>do</strong> expressão aos conflitos até aí apenas latentes. O ódio racial toma então a<br />
forma de um violento protesto anti-colonialista, que o narra<strong>do</strong>r coloca na voz de<br />
Moema:<br />
O Índio nasceu para ser livre e não para o trabalho, nasceu para a caça<br />
e para a guerra. Branco e o Preto que façam o açúcar, que cavem a terra, e que<br />
levem o oiro das nossas minas, que nós lho damos, e nos deixem a nossa<br />
liberdade e os nossos bosques (p. 467)<br />
O confronto não chega porém a eclodir, pelo menos por enquanto: modera o<br />
fanatismo de Moema o discurso apologético de Frei João, a lembrar que “Diante <strong>do</strong><br />
Deus <strong>do</strong>s Cristãos, não há Índio, nem Português nem Africano, há homens” (468). O<br />
debate ideológico permite inferir que a religião universal triunfará como o verdadeiro<br />
elemento agrega<strong>do</strong>r. A obra ficou truncada, mas tu<strong>do</strong> indica que o ressentimento<br />
deverá ser ultrapassa<strong>do</strong> no decorrer da intriga. Herdeira natural da casa, da bondade e<br />
<strong>do</strong> sangue da mãe, Isabel desenha-se como a futura senhora de negros e índios,<br />
asseguran<strong>do</strong> a convivência racial. Entretanto viajará para a Europa, onde a esperam<br />
novas e ameaça<strong>do</strong>ras realidades. Irá conhecer Fernan<strong>do</strong> e <strong>Helena</strong>, estrangeira<strong>do</strong>s e<br />
dividi<strong>do</strong>s como ela; e irá conhecer o Velho Mun<strong>do</strong>, essa civilização virtual que<br />
modelou a sua formação. Não sabemos que destino previa o autor para esta viagem de<br />
iniciação.<br />
Mas há um outro aspecto que merece destaque no romance, que se prende<br />
justamente com o binómio Natureza/Cultura. Como seria de esperar numa obra<br />
7
VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /<br />
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />
romântica, os primeiros capítulos são dedica<strong>do</strong>s à descrição da paisagem natural, o<br />
cenário luxuriante e edénico <strong>do</strong> sertão. Toda esta longa parte introdutória chega ao<br />
leitor em focalização interna, através <strong>do</strong> olhar extasia<strong>do</strong> de um viajante estrangeiro –<br />
um aristocrata europeu, apaixona<strong>do</strong> pela Botânica. Com ele somos conduzi<strong>do</strong>s de<br />
canoa, lentamente, a Itahé, como num filme. O narra<strong>do</strong>r vai-nos revelan<strong>do</strong> aspectos<br />
parcelares desta enigmática personagem, mas só saberemos ulteriormente (no capítulo<br />
VI) que se trata <strong>do</strong> conde de Bréssac, um general francês, legitimista e liberal, que<br />
combatera romanticamente pela libertação da Grécia e que deixara a França<br />
desiludi<strong>do</strong> com a situação política <strong>do</strong> país.<br />
A chegada de Bréssac a Itahé, depois da floresta virgem <strong>do</strong> sertão, causar-lhe-<br />
ia a mais extraordinária surpresa:<br />
Um imenso parque inglês, corta<strong>do</strong> de sinuosas e bem saibradas ruas,<br />
com lagos e pontes, quiosques e estátuas, templos e ruínas, com to<strong>do</strong>s os<br />
vários e disparata<strong>do</strong>s acidentes e ornamentos que são de rigor em tais casos, e<br />
que a arte europeia imitou <strong>do</strong>s caprichos da chinesa.<br />
O francês pasmava <strong>do</strong> que via: – e a ideia de se ver transporta<strong>do</strong>, por<br />
um golpe de varinha de condão, de pleno Brasil para Windsor, para Eagley-<br />
park ou para Sionhouse, ia-lhe parecen<strong>do</strong> menos absurda de momento para<br />
momento. Sonho, visão, ilusão <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s!... (p. 415).<br />
A aldeia tropical assim camuflada inspirara-se na paisagem alpina, com chalés<br />
suíços a fingir de choupanas e com pinheiros nórdicos ao la<strong>do</strong> de araucárias e<br />
coqueiros. Ver-se-á mais tarde, à luz <strong>do</strong> dia, que, por singular capricho arquitectónico,<br />
as supostas casas da aldeia são afinal uma só, pois comunicam entre si forman<strong>do</strong> as<br />
várias dependências <strong>do</strong> palácio; e que toda a área de serviço fica oculta <strong>do</strong> exterior,<br />
8
VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /<br />
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />
para se desfrutar das “necessidades materiais da vida” sem ter de lhe “presenciar a<br />
prosaica elaboração” (p. 433). O parque ostenta idêntico artifício de trompe l’oeil.<br />
Com a ajuda de um jardineiro escocês conseguira-se o prodígio de mondar,<br />
<strong>do</strong>mestican<strong>do</strong>-a, a pujança da flora tropical: um rio fora transforma<strong>do</strong> em lago e as<br />
florestas selvagens em tufos. A imaginação da viscondessa - brasileira de coração mas<br />
“anglo-gala” de espírito – fizera o resto: aqui um quiosque turco, ali uma torre gótica,<br />
além um mirante chinês. Tu<strong>do</strong> é imitação e magia barroca no parque internacional de<br />
Itahé: A Arte e a Natureza – ou seja, a Europa e o Brasil – conjugaram-se para criar a<br />
mais bizarra invenção da mestiçagem cultural 6 .<br />
Já no interior da casa principal o estrangeiro depara-se com um verdadeiro<br />
“palácio encanta<strong>do</strong>”, que mimetiza “o casto esplen<strong>do</strong>r da elegância britânica” (416).<br />
A descrição pretende suscitar admiração mas não podemos deixar de ser sensíveis à<br />
marca hiperbólica <strong>do</strong>s pormenores: para além <strong>do</strong>s livros e objectos europeus, nas<br />
mesas há jornais de quase todas as línguas, nas estantes bibelots e raridades da mais<br />
variada arte mundial. Transposta para os trópicos, a Civilização resplandece na sua<br />
máxima grandiosidade mas em forma condensada, miniatural, volven<strong>do</strong>-se assim em<br />
paródia de si mesma – como se o palácio sertanejo fosse uma caixa chinesa onde cabe<br />
a Europa e dentro desta o globo inteiro. É por isso com certa ironia que vemos o<br />
gentleman “já enfastia<strong>do</strong>, já gasto e cansa<strong>do</strong> das maravilhas <strong>do</strong> Velho Mun<strong>do</strong>,<br />
rejuvenescer agora para admirar...” – esse mesmo mun<strong>do</strong> familiar de onde partiu (p.<br />
446).<br />
Por outro la<strong>do</strong>, to<strong>do</strong> este requinte miscigena<strong>do</strong> transporta uma sugestão de<br />
artificialismo que parece colidir com a tese rousseauniana acerca <strong>do</strong> carácter anti-<br />
natural da “civilização” (europeia). Se a sociedade corrompe o homem – tese<br />
6<br />
Sobre esta problemática vale a pena cf. a interpretação de Sérgio Nazar David, “Da natureza agreste<br />
no último Garrett” (David, 2007: 28-32).<br />
9
VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /<br />
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />
subscrita por Garrett – também a cultura e a arte deveriam impregnar-se <strong>do</strong> mesmo<br />
vírus. Todavia o autor e Bréssac evitam encarar a questão sob esse prisma, preferin<strong>do</strong><br />
qualificar a desordem decorativa de “pitoresca” e “poética”. Talvez assim suceda<br />
porque a cultura foi aqui absorvida de forma filtrada, sem os defeitos inerentes à<br />
sociedade que a gerou. Aliás, as personagens conseguem permanecer até certo ponto<br />
imunes à artificialidade cultural desta surreal casa luso-brasileira, onde o at home<br />
britânico se combina com a elegância parisiense. O narra<strong>do</strong>r faz mesmo questão de<br />
sublinhar a simplicidade <strong>do</strong>s <strong>do</strong>nos da casa, totalmente distinta <strong>do</strong> novo-riquismo<br />
burguês; e o general reforça a ideia: “os parvenus que vira em toda a parte não eram<br />
assim”. Dir-se-ia que os viscondes reúnem o melhor <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is continentes – a cultura<br />
da Europa e a natureza da América. O leitor é convida<strong>do</strong> a aderir, mas não deixará de<br />
sorrir ao ouvir Isabel discutin<strong>do</strong>, no interior <strong>do</strong> sertão, os méritos relativos de Racine,<br />
Lamartine, Shakespeare e Walter Scott...<br />
Em relação aos subalternos o aspecto paródico é explicitamente referi<strong>do</strong>. A<br />
receber o ilustre visitante aprumam-se duas alas de lacaios farda<strong>do</strong>s com to<strong>do</strong> o<br />
requinte dum palácio europeu; são negros, mas têm cabeleiras polvilhadas de branco; 7<br />
mais adiante surgem duas mulatas a acompanhar a <strong>do</strong>ente, “brancas em toda a<br />
aparência – vestidas com a mais apurada coqueteria de uma soubrette francesa” (p.<br />
424). O mimetismo atinge o excesso caricatural com a figura ridícula <strong>do</strong> mor<strong>do</strong>mo<br />
africano, Spiridião Cassiano di Mello i Matôss (como se apresenta no seu típico<br />
linguajar) traja<strong>do</strong> em pleno sertão com “a faustosa elegância de um butler <strong>do</strong> West<br />
End”.<br />
Esta personagem grotesca, destinada a imprimir uma nota humorística ao<br />
romance, não é uma invenção de Garrett: Spiridião encarna o estereótipo <strong>do</strong> negro<br />
7 O espanto de Bréssac exprime-se em termos ingenuamente raciais: “... pois não eram disformes as<br />
feições: – de negros, só tinham ser negros.” (p. 415).<br />
10
VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /<br />
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />
feliz e infantiliza<strong>do</strong>, admira<strong>do</strong>r servil <strong>do</strong> seu amo, já presente no romance de Harriet<br />
Stowe. Com nuances diferentes, o mor<strong>do</strong>mo negro tornar-se-ia figura recorrente na<br />
literatura oitocentista. Reencontramo-lo, por exemplo, em versão europeizada e<br />
discreta, n’A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós: o Grilo, com a sua eterna<br />
complacência, é a sombra de Jacinto, uma espécie de superego cultural, servin<strong>do</strong> de<br />
contraponto aos seus desvarios excêntricos. N’A Correspondência de Fradique<br />
Mendes já caberá a um branco (escocês!), exercer esta função socializa<strong>do</strong>ra – o<br />
impecável Smith, siné<strong>do</strong>que de uma distinção britânica ambiguamente admirada e<br />
desdenhada.<br />
Fradique Mendes, a face cosmopolita <strong>do</strong> gentleman, é apresenta<strong>do</strong> como um<br />
cidadão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> – aquele que, ao invés <strong>do</strong> touriste convencional, se despia <strong>do</strong><br />
entranha<strong>do</strong> europeísmo para se transformar em “cidadão das cidades que visitava”<br />
(Queirós [1900] : 67) . Tal como Bréssac, desloca-se a regiões exóticas por interesse<br />
científico, mas o seu olhar dirige-se à realidade humana. Pertence a uma geração<br />
diferente, supostamente humanista, que aprendeu a apreciar a diversidade cultural.<br />
Por isso lhe desagrada a modernidade, a globalização <strong>do</strong>s costumes sob o modelo<br />
europeu; de África prefere os cafres e <strong>do</strong> Brasil os índios, e rir-se-ia com gosto da<br />
requintada Itahé que tanto impressionou Bréssac. Diz-nos o seu biógrafo que o<br />
incansável viajante sente “carinhosa simpatia por to<strong>do</strong>s os povos [...] fundin<strong>do</strong>-se com<br />
eles no seu mo<strong>do</strong> de pensar e de sentir” (Queirós [1900] : 77). Na verdade não se trata<br />
propriamente de humanismo, mas de “necessidade de certeza”, ou seja, de se<br />
confrontar com a alteridade para compor o seu livro de ideias (ou o armazém,<br />
consoante a perspectiva).<br />
Eça de Queirós tinha convicções muito firmes sobre a superioridade da cultura<br />
europeia – considerava-a a grande produtora de arte e de ideias <strong>do</strong> Ocidente, a única<br />
11
VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /<br />
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />
de facto interessante. 8 Fradique não partilha este entusiasmo, mas o amor a outros<br />
povos não lhe retira o etnocentrismo. A curiosidade etnográfica leva-o a civilizações<br />
diferentes para enriquecer o espírito e depois regressar ao seu espaço cultural, em<br />
Paris. De resto não passa de um céptico, conforma<strong>do</strong> com os males <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> (que<br />
deplora) e com as contradições da natureza humana. Por isso mesmo desenvolveu um<br />
certo fatalismo que o ensinou a conviver com as injustiças sociais: tal como as<br />
personagens de <strong>Helena</strong>, mostra-se convicto de que as sociedades sempre encontrarão<br />
formas de perpetuar a escravidão.<br />
José Eduar<strong>do</strong> Agualusa captou muito bem o espírito e as limitações da<br />
personagem queirosiana 9 . Nação Crioula – A Correspondência Secreta de Fradique<br />
Mendes é um pastiche quase perfeito <strong>do</strong> seu modelo, quer nas ideias quer no estilo. O<br />
romance epistolar relata a experiência colonial de Fradique, primeiro em Angola,<br />
depois no Brasil, já na fase final da vida. O desembarque em Luanda, em 1868, feito<br />
de forma humilhante às costas de um negro, causou-lhe desde logo “o sentimento<br />
inquietante de que havia deixa<strong>do</strong> para trás o próprio mun<strong>do</strong>” (p. 11). E de facto será<br />
sempre um estrangeiro nos trópicos, apesar de naturaliza<strong>do</strong> pelo amor africano de<br />
<strong>Maria</strong> Olímpia, a sua grande paixão tardia.<br />
O viajante cosmopolita, que se move à vontade em todas as latitudes, não pode<br />
deixar de sentir-se incomoda<strong>do</strong> na sociedade colonial luandense, paródia camiliana<br />
duma Lisboa afrancesada que em tempos satirizou. Incómo<strong>do</strong> que se repetirá mais<br />
tarde em Pernambuco, outra réplica provinciana e decadente <strong>do</strong> Velho Mun<strong>do</strong>, “onde<br />
à noite se dançam românticos bailes, enquanto os negros <strong>do</strong>rmem exaustos em<br />
8 Cf. Eça de Queirós, “A <strong>do</strong>utrina de Monroe e <strong>do</strong> nativismo”, pp. 1295 e ss. Este texto, de 1896, é um<br />
autêntico manifesto em defesa da supremacia intelectual da Europa face à América.<br />
9 Do mesmo tema se ocuparam recentemente Osval<strong>do</strong> Sivestre e Graça Abreu, autores de excelentes<br />
leituras, em chave pós-colonial (Silvestre, 2002); (Abreu, 2004).<br />
12
VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /<br />
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />
casebres de palha” (p. 79). “O que faço eu aqui?”, interroga-se Fradique, em carta a<br />
Madame de Jouarre, a quem pede novidades frescas de Paris, em troca das suas<br />
saborosas ane<strong>do</strong>tas coloniais. Só a diferença etnográfica seduz o viajante pós-<br />
romântico, enfastia<strong>do</strong> da sua vulgarizada “civilização”: ou a palhota <strong>do</strong> negro, no<br />
meio da selva africana, ou o Brasil brasileiro, no interior <strong>do</strong> sertão. Fradique descobre<br />
este lugar primitivo durante a visita a uma fazenda baiana, não longe, portanto, da<br />
antiga Itahé, mas agora transforma<strong>do</strong> em idílico paraíso colonial:<br />
Ocorreu-me pela primeira vez a ideia de que poderia instalar-me num<br />
lugar assim, realmente longe <strong>do</strong> fragor <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, ven<strong>do</strong> pouco a pouco a terra<br />
a des<strong>do</strong>brar-se em frutos, acompanhan<strong>do</strong> ao crepúsculo o canto <strong>do</strong>s negros em<br />
volta das fogueiras, caçan<strong>do</strong> e pescan<strong>do</strong>, beben<strong>do</strong> da água fresca <strong>do</strong>s riachos,<br />
comen<strong>do</strong> o feijão preto e a carne seca, a tapioca, as mangas e as bananas <strong>do</strong><br />
meu pomar. (p. 81).<br />
Uma fazenda brasileira seria o espaço perfeito para o descanso mereci<strong>do</strong> de<br />
Fradique, depois da romântica libertação da sua companheira. Mas Agualusa destinou<br />
outras inquietações à personagem queirosiana. O sofrimento de <strong>Maria</strong> Olímpia e a<br />
viagem num navio negreiro tornaram-no mais consciente da condição <strong>do</strong>s escravos,<br />
bem como das responsabilidades que lhe cabem enquanto homem livre. Reconverti<strong>do</strong><br />
em fazendeiro, o gentleman vê-se obriga<strong>do</strong>, malgré lui, a tomar posição no<br />
movimento anti-esclavagista: desaparece o “touriste de fato de linho branco em busca<br />
de exotismo e emoções fortes” (p. 56) para surgir o intelectual empenha<strong>do</strong>, ou seja,<br />
com “uma nova causa com que entreter o espírito e afastar o ócio” (p. 99).<br />
O debate racial e colonial que encontrámos no romance de Garrett toma agora<br />
novos e polémicos contornos políticos (a crioulização, vg.), que não irei explorar.<br />
13
VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /<br />
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />
Apenas saliento a coincidência curiosa de ser mais uma vez uma jovem mulher,<br />
letrada, culturalmente dividida, a catalisar a questão. A educação inverosímil de<br />
<strong>Maria</strong> Olímpia Vaz de Caminha faz dela um clone moderno de Isabel: também pelos<br />
15 anos já lera to<strong>do</strong>s os grandes autores franceses, no original; estudava as línguas<br />
autóctones com o saber de um filólogo; e ainda discutia Darwin, Proudhon, e<br />
Bakunin, com os convida<strong>do</strong>s <strong>do</strong> seu salão colonial. Em suma: viven<strong>do</strong> em África,<br />
conhecia a Europa “como se sempre tivesse vivi<strong>do</strong> no centro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>” (p. 39). 10<br />
Do ponto de vista ideológico a personagem segue um percurso paralelo mas<br />
inverso ao da sua congénere garrettiana: Isabel, já o vimos, era a porta-voz <strong>do</strong><br />
abolicionismo, no entanto a ingenuidade dá-lhe pouco crédito; tu<strong>do</strong> indica, aliás, que<br />
o seu radicalismo virá a temperar-se da “sensatez” <strong>do</strong> pai, que encara a escravatura<br />
como um mal, mas por enquanto necessário à paz social. <strong>Maria</strong> Olímpia, protegida<br />
pelo casamento com um negreiro excêntrico, desfruta de uma situação de privilégio<br />
que a mantém alienada; apenas compreende o valor da liberdade depois de sentir na<br />
pele a dureza da escravidão. A sua história ilustra assim uma das principais teses <strong>do</strong><br />
romance – decerto a menos controversa – segun<strong>do</strong> a qual a consciência só se<br />
desenvolve a partir da experiência; ou, recorren<strong>do</strong> a um provérbio africano: “uma<br />
pedra debaixo da água não sabe que está a chover” (p. 152).<br />
Faz portanto to<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong> que seja a mulher liberta e não o liberta<strong>do</strong>r a<br />
empunhar a bandeira da emancipação. <strong>Maria</strong> Olímpia voltará a Angola, algo<br />
melancólica, é certo, mas amadurecida e politizada. Fradique regressa a casa,<br />
cumpri<strong>do</strong> o seu papel, deixan<strong>do</strong>-se impregnar <strong>do</strong> habitual cepticismo. Segun<strong>do</strong><br />
informa o texto epilogal, citan<strong>do</strong> Eça, os seus derradeiros anos decorrem “cheios de<br />
ideias, de delicadas ocupações e de obras amáveis”. Nem outra coisa seria de esperar.<br />
10 A extraordinária biblioteca <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, Vitorino Vaz de Caminha, constitui também uma curiosa<br />
versão da casa de Itahé, bem como da sua globalização cultural. Cf. Agualusa: 149.<br />
14
VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /<br />
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />
Alguns leitores de Nação Crioula criticaram a adesão <strong>do</strong> autor à personagem<br />
queirosiana. Acusa<strong>do</strong>, entre outras razões, de ser condescendente em relação ao<br />
colonialismo português, Agualusa explica-se:<br />
Eu queria um olhar como o dele, de um europeu, carrega<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
preconceitos próprios da época, mas ao mesmo tempo interessa<strong>do</strong> no outro. O<br />
Fradique <strong>do</strong> Eça já é assim. O meu, evidentemente, é ainda mais aberto, quase<br />
um anacronismo. 11<br />
Com efeito, a literatura não tem de transmitir injunções éticas compatíveis com<br />
a <strong>do</strong>xa cultural de outra época: cabe ao leitor o necessário exercício de<br />
descentramento. No caso de Garrett, a distância impõe-se por si própria; já o romance<br />
de Agualusa exige um esforço acresci<strong>do</strong>, na medida em que o romance se dirige aos<br />
leitores de hoje, mas para ser li<strong>do</strong> à luz de códigos mistos – os nossos e os <strong>do</strong> tempo de<br />
Eça. Ora Fradique é o que é, um europeu dépaysé, pese embora a consciência política<br />
<strong>do</strong> seu novo autor. Poder-se-ia aceitar um gentleman momentaneamente converti<strong>do</strong> a<br />
valores humanitários; mas um Fradique militante, moderno e democrático seria um<br />
filistinismo imper<strong>do</strong>ável.<br />
11<br />
Agualusa defende-se desta e de outras críticas numa entrevista ao jornal O Esta<strong>do</strong> de São Paulo, em<br />
14/2/2007: Cf. Brasil (2007).<br />
“O livro não é apenas uma crítica ao sistema colonial, ou à escravatura - o que seria tão tolo<br />
quanto espancar um cadáver -, o livro pretende ser sobretu<strong>do</strong> uma crítica irônica à atual sociedade<br />
angolana, que em muitos aspectos é herdeira direta da sociedade escravocrata. Em Angola, muitos<br />
leitores reconheceram certos personagens e situações. O livro abriu uma polêmica sobre a questão da<br />
crioulidade e <strong>do</strong> seu alcance em Angola. A acusação que me fazem em Angola, isso sim, é a de<br />
defender um modelo crioulo para o país, o que também não corresponde à verdade. O que eu defen<strong>do</strong> é<br />
a existência de um segmento crioulo, de língua materna portuguesa, uma minoria muito expressiva de<br />
angolanos brancos, mestiços e negros, que têm o direito de exprimir a sua cultura, a par com todas as<br />
outras.” (Brasil, 2007).<br />
15
Bibliografia<br />
VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /<br />
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />
ABREU, Graça (2004), “História, texto, devir: reescreven<strong>do</strong> impérios”, in Actas <strong>do</strong><br />
IV Congresso Internacional da APLC, www.eventos.uevora.pt/comparada/VolumeI/<br />
AGUALUSA, José Eduar<strong>do</strong> (2004), Nação Crioula. A Correspondência Secreta de<br />
Fradique Mendes, Lisboa, Dom Quixote , 4ª ed. [1ª ed. 1997].<br />
BRASIL, Ubiratan (2007), “A volta de Nação Crioula, 10 anos depois”, in O Esta<strong>do</strong><br />
de São Paulo, 14/2/2007: www.esta<strong>do</strong>.com.br/editorias/2007/02/14/cad-<br />
1.93.2.20070214.9.1.xml<br />
DAVID, Sérgio Nazar (2007), O Século de Silvestre da Silva. Estu<strong>do</strong>s sobre Garrett,<br />
A.P. Lopes de Men<strong>do</strong>nça, Camilo C. Branco e Júlio Dinis, Lisboa, Prefácio.<br />
FREDERICKSON, G. (1987), The Black Image in the White Mind, Hanover, NH,<br />
Wesleyan University Press.<br />
GARRETT, Almeida (1963), <strong>Helena</strong>, in Obras de A. Garrett, vol. I, Porto, Lello &<br />
Irmão [1ª ed. 1871].<br />
HALL, Stuart (ed.) (2003), Representation. Cultural Representations and Signifying<br />
Practices, Lon<strong>do</strong>n, The Open University / Sage Publications.<br />
16
VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /<br />
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />
MONTEIRO, Ofélia Paiva (1999), “<strong>Helena</strong>: os da<strong>do</strong>s e as incógnitas de um enigma<br />
romanesco”, in Leituras. Revista da Biblioteca Nacional, 4, pp. 147-174.<br />
QUEIRÓS, Eça de (s.d.), A Correspondência de Fradique Mendes, Lisboa, Livros <strong>do</strong><br />
Brasil [1ª ed. 1900].<br />
_ _ (s.d.) “A <strong>do</strong>utrina de Monroe e <strong>do</strong> nativismo”, in Cartas Familiares e Bilhetes de<br />
Paris, Obras de Eça de Queiroz, vol. II, Porto Lello & Irmão [texto de 1896].<br />
SILVESTRE, Osval<strong>do</strong> (2002), “Um turista nos trópicos: o devir-pós-colonial de<br />
Fradique Mendes”, in Congresso de Estu<strong>do</strong>s Queirosianos. IV Encontro Internacional<br />
de Queirosianos, Coimbra, Almedina / ILLP- Faculdade de Letras da Univ. de<br />
Coimbra, vol I, pp. 221-239.<br />
STOWE, Harriet Beecher (s.d.), A Cabana <strong>do</strong> Pai Tomás, trad. de Ricar<strong>do</strong> Alberty,<br />
Lisboa, Verbo [1ª ed. 1851].<br />
17