FLECHA DOURADA, O GUERREIRO DO ARCO-ÍRIS - Porta do Sol
FLECHA DOURADA, O GUERREIRO DO ARCO-ÍRIS - Porta do Sol
FLECHA DOURADA, O GUERREIRO DO ARCO-ÍRIS - Porta do Sol
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
<strong>FLECHA</strong> <strong><strong>DO</strong>URADA</strong>, O <strong>GUERREIRO</strong> <strong>DO</strong> <strong>ARCO</strong>-<strong>ÍRIS</strong><br />
Lauro Lima<br />
INTRODUÇÃO<br />
Era o ano de 1993, em mea<strong>do</strong>s de abril. Tinha si<strong>do</strong><br />
uma semana difícil e cansativa, de muito trabalho e pouco sono. No<br />
sába<strong>do</strong> à noite cheguei em minha casa em Bragança Paulista, beijei<br />
meus filhos e minha esposa e tomei um relaxante banho. Jantei e<br />
depois fui para o meu quarto. Sentei-me na cama apoia<strong>do</strong> nos<br />
travesseiros e fiquei esperan<strong>do</strong> por minha mulher.<br />
Fechei os olhos e respirei devagar e profundamente,<br />
sem pensar em absolutamente nada. De repente, uma intensa luz<br />
surgiu aos pés da cama e assim que abri os olhos lá estava ele: um<br />
índio altíssimo, envolto em uma maravilhosa luz <strong>do</strong>urada. Sem<br />
pronunciar uma palavra me perguntou:<br />
- Você está disposto?<br />
Entendi a sua pergunta como uma proposta para<br />
que eu realizasse alguma tarefa, para a qual teria que me preparar<br />
convenientemente.<br />
Percebi que ele não se apresentava com to<strong>do</strong> o<br />
brilho de sua hierarquia espiritual, talvez para não me assustar,<br />
porém, a sua energia era tanta, que fiquei profundamente<br />
emociona<strong>do</strong> e, mesmo sem saber <strong>do</strong> que se tratava, mentalmente<br />
respondi que sim.<br />
Então, ele mostrou-me um livro de frontispício<br />
semelhante ao dessa obra e disse:<br />
- Você vai escrever sobre a história da minha vida!<br />
Em seguida, passei a ter uma série de rápidas<br />
visões que, como slides, mostravam os momentos mais importantes<br />
de sua última encarnação como indígena, em terras sul-americanas,<br />
especialmente no território hoje considera<strong>do</strong> brasileiro.<br />
Uma das visões que mais me impressionou foi a de<br />
vê-lo voan<strong>do</strong>, a poucos centímetros acima <strong>do</strong> solo e a mata se<br />
abrin<strong>do</strong> adiante, dan<strong>do</strong>-lhe passagem.<br />
Tratava-se da saga mística <strong>do</strong> primeiro heróiciviliza<strong>do</strong>r<br />
<strong>do</strong> povo tupi, inicialmente denomina<strong>do</strong> de Agnã e que<br />
recebeu inúmeros outros nomes, entre os quais Flecha Dourada e
Sumé, o mais conheci<strong>do</strong>. Nesse primeiro livro, retratarei a sua<br />
iniciação espiritual, passada há 500 anos a.C.<br />
Como eu não sabia nada a respeito da história<br />
indígena, mais <strong>do</strong> que havia aprendi<strong>do</strong> nos bancos das escolas (o que<br />
não era grande coisa para um estu<strong>do</strong> mais sério), tive que começar a<br />
pesquisar.<br />
Ao mesmo tempo, como sempre fui muito cético<br />
com to<strong>do</strong>s os tipos de manifestações paranormais, incluin<strong>do</strong> as<br />
minhas próprias, mesmo sen<strong>do</strong> membro e dirigente de uma ordem<br />
esotérica, buscava muito mais a certeza absoluta da existência<br />
concreta desse herói indígena.<br />
Uma tarefa difícil, ten<strong>do</strong> em vista que são poucas as<br />
obras de autores nacionais que retratam a vida <strong>do</strong>s índios brasileiros<br />
na época pré-colombiana. Em nenhuma encontrei um estu<strong>do</strong> que<br />
abordasse o assunto que me interessava. Per<strong>do</strong>em-me se cometi<br />
alguma injustiça.<br />
Quan<strong>do</strong> já estava quase desistin<strong>do</strong>, encontrei um<br />
livro empoeira<strong>do</strong> na prateleira de uma famosa livraria. O seu título A<br />
religião <strong>do</strong>s tupinambás, não me estimulou muito, pois o termo<br />
tupinambá, de certa forma, é recente, usa<strong>do</strong> pelos coloniza<strong>do</strong>res<br />
portugueses, muito mais para denominar o povo tupi da costa<br />
brasileira.<br />
Sinceramente, virei as costas e ia embora, quan<strong>do</strong><br />
aquela coisa, sim, “aquela coisa” que você sente surgir lá dentro,<br />
dizen<strong>do</strong> que você vai cometer uma enorme burrice se não voltar<br />
atrás, obrigou-me a dar uma olhadinha naquele livro meio<br />
amarela<strong>do</strong>.<br />
Que surpresa maravilhosamente arrepiante! Era<br />
uma obra de Alfred Métraux, um historia<strong>do</strong>r suíço, que se naturalizou<br />
norte-americano, editada pela Universidade de São Paulo, da época<br />
<strong>do</strong> reitor Waldyr Muniz Oliva e da Companhia Editora Nacional. O<br />
exemplar era da segunda edição.<br />
O prefácio <strong>do</strong> tradutor, professor Estêvão Pinto,<br />
mostra, por si só, a dificuldade que tive: “A vasta obra de Alfred<br />
Métraux, embora mundialmente conhecida, é pouco divulgada no<br />
Brasil.”<br />
Muito bem, logo de cara abro o livro na página 2 e<br />
vejo que o autor faz uma referência ao estu<strong>do</strong> de Thevet*, que se<br />
refere a um herói-civiliza<strong>do</strong>r que o povo tupinambá chamava de<br />
Maire-monan: ...um exímio feiticeiro: viven<strong>do</strong> num retiro, em jejum e
odea<strong>do</strong> de adeptos. E julgavam-no não somente <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de poderes<br />
ilimita<strong>do</strong>s, mas ainda senhor da ciência completa <strong>do</strong>s fenômenos<br />
naturais e <strong>do</strong>s mistérios ritual-religiosos. Foi Maire-monan quem<br />
instaurou várias práticas sagradas ou mágicas... . Impressionante,<br />
não é mesmo?<br />
* André Thevet ( 1502 - 1592 ), cosmógrafo e cronista francês. Acompanhou<br />
Villegaignom ao Brasil ( 1555 ) e, de volta à França, publicou Les singularitez de la<br />
France Antarctique ( As singularidades da França Antártica, 1558 ), sobre a flora e<br />
a fauna brasileiras, os índios e seus costumes. ( N. ? )<br />
Ainda segun<strong>do</strong> Thevet: Fora Maire-monan, diziam<br />
os índios, quem lhes desaconselhara a comer da carne <strong>do</strong>s animais<br />
pesa<strong>do</strong>s ou lentos... . Atitude muito comum <strong>do</strong>s inicia<strong>do</strong>s.<br />
Na página 3, Alfred é bem claro: Os tupinambás<br />
sentiam-se ainda deve<strong>do</strong>res a Maire-monan por sua organização<br />
social, ou seja, conforme a expressão de Thevet, por sua maneira de<br />
“distribuir o governo”.<br />
Tais foram, pois, os benefícios que Maire-monan<br />
espalhou entre os homens. Mas, sua atividade não se limitou só a<br />
isso. Passava, como já o disse, por um exímio “transforma<strong>do</strong>r”, isto<br />
é, atribuíram-lhe a maior parte das metamorfoses por meio das quais<br />
os silvícolas explicavam as características de certos animais ou<br />
coisas, ou, simplesmente, a sua existência.<br />
Na página 8 o autor estrangeiro cita um escrito <strong>do</strong><br />
conheci<strong>do</strong> padre Manuel da Nóbrega, que fala a respeito da história<br />
de um índio que os matos lhe faziam caminho por onde passasse... .<br />
Bom, para mim foi a gota d’água. Sentei-me em um banco da livraria<br />
e quase devorei as 224 páginas no mesmo dia.<br />
Segun<strong>do</strong> Métraux: A ação civiliza<strong>do</strong>ra desse herói<br />
ter-se-ia manifesta<strong>do</strong>, sobretu<strong>do</strong>, pelo fato de haver o mesmo<br />
introduzi<strong>do</strong> a agricultura entre os antepassa<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s tupinambás,<br />
trazen<strong>do</strong>-lhes to<strong>do</strong>s os vegetais que serviam de base para a<br />
alimentação de seus descendentes.<br />
Mais adiante: ...Maire-monan fez mais: ensinou aos<br />
homens a distinguir os vegetais úteis <strong>do</strong>s nocivos e mostrou-lhes o<br />
uso que podiam fazer de suas virtudes medicinais.<br />
Claro que decidi comprar o livro e tive outra<br />
surpresa! Ele estava há tanto tempo estoca<strong>do</strong>, embora fosse o único<br />
exemplar à venda, que ninguém sabia o seu preço. Tive que esperar
que, inutilmente, tentassem entrar em contato com a editora.<br />
Desistiram e acabaram oferecen<strong>do</strong>-me o livro por um valor simbólico.<br />
Você, caro leitor, com isso deve ter deduzi<strong>do</strong> o grande significa<strong>do</strong><br />
oculto de tão importante presente.<br />
As façanhas desse herói-civiliza<strong>do</strong>r foram narradas<br />
pelos índios aos jesuítas, no início da colonização e esses acabaram<br />
acreditan<strong>do</strong> que, na realidade, se tratava de São Tomé.<br />
O fato é que o nosso herói-civiliza<strong>do</strong>r realmente<br />
existiu e deu origem a inúmeras lendas, fican<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong> por nomes<br />
diferentes, conforme as tribos com que tinha contato: Mair-munhã,<br />
Pai <strong>Sol</strong>itário; Maire-monan, Pai Transforma<strong>do</strong>r; Irin-pajé, Feiticeiro<br />
Transforma<strong>do</strong>r; Maire-pochy, nome recebi<strong>do</strong> nos Andes,<br />
especialmente na região <strong>do</strong> Peru; Irin-magé; Zaguaguayu, Coroa de<br />
Plumas Amarelas, entre os guaraius; Zumi-Topana, para os Omaguas<br />
<strong>do</strong> Paraguai; Nanderuvuçu, Nosso Grande Pai, ou Nhaderamoitubixa,<br />
Nosso Grande Antepassa<strong>do</strong>, ou Nhandejara, Nosso Avô Grande, ou<br />
ainda Nanderu Mbaecuaá, Nosso Pai Conhece<strong>do</strong>r de Todas as Coisas,<br />
para os Apapocuva-guarani; Maira-atá, Feiticeiro Viajante, para os<br />
Tembé; e muitos outros nomes.<br />
Na Ordem <strong>do</strong> Arco-Íris, da qual sou membro, Flecha<br />
Dourada passou a ser chama<strong>do</strong> de Sun Paan, um nome místico que o<br />
identifica como um ser que não mais reencarna na Terra, mas que<br />
continua a trabalhar por ela e to<strong>do</strong>s os seus filhos. Com essa<br />
denominação, ele foi cita<strong>do</strong> no livro Todas As Vezes Que Dissemos<br />
Adeus - ORÉ AWÉ ROIRU'A MA, <strong>do</strong> Txukarramãe, Kaka Werá Jecupé.<br />
Por que Flecha Dourada quis que se narrasse a sua<br />
vida, só nesse fim de século? Acredito que há vários motivos, to<strong>do</strong>s<br />
importantes.<br />
Inúmeros acontecimentos marcantes mostram que<br />
estamos viven<strong>do</strong> dias muito diferentes, em que a consciência mundial<br />
está refletin<strong>do</strong> sobre <strong>do</strong>gmas até então intocáveis.<br />
Há alguns anos atrás, seria difícil imaginar fatos<br />
como a queda <strong>do</strong> muro de Berlim, a divisão da União Soviética, a<br />
democratização <strong>do</strong>s países <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> bloco socialista, a queda<br />
democrática de presidentes sul-americanos, um presidente negro na<br />
África <strong>do</strong> Sul etc.<br />
É inquestionável, porém, que vários tipos de<br />
movimentos têm uni<strong>do</strong> toda a humanidade, especialmente quan<strong>do</strong> se<br />
busca a preservação de todas as espécies vivas. Existe um consenso
generaliza<strong>do</strong> de que se não defendermos os bens que a natureza nos<br />
oferece não sobreviveremos.<br />
No Brasil, as atenções também se voltam contra as<br />
manifestações raciais e pela preservação <strong>do</strong>s costumes indígenas,<br />
quase extintos pela cultura <strong>do</strong> homem branco, em nome da religião e<br />
<strong>do</strong> progresso.<br />
Não haverá, em lugar nenhum <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, um<br />
melhor ecologista que o primitivo homem da terra. Ninguém a amará<br />
tanto quanto ele. Talvez seja essa uma das mensagens de Flecha<br />
Dourada. Está mais <strong>do</strong> que na hora de voltarmos às nossas origens.<br />
A sabe<strong>do</strong>ria milenar, que valoriza o homem como<br />
um ser divino, o faz curvar-se diante da natureza, também divina,<br />
uma vez que iniciou a sua caminhada evolutiva por meio dela. Ela é a<br />
nossa verdadeira mãe, que nos gerou e que nos fornece tu<strong>do</strong> aquilo<br />
de que precisamos para subsistir.<br />
Não seria um crime querer destruir quem nos deu a<br />
vida? Se qualquer pessoa se sente no direito de defender a mãeterra,<br />
o esoterista, o estudioso <strong>do</strong>s assuntos ocultistas, o<br />
espiritualista, esses têm o dever de tomar alguma atitude para evitar<br />
que ela seja vítima das atrocidades <strong>do</strong> progresso. Se a natureza for<br />
destruída, nada mais poderá ser gera<strong>do</strong> nesse mun<strong>do</strong>.<br />
O nosso herói ao referir-se à Atlântida mostrou<br />
como o homem-espírito foi esqueci<strong>do</strong> com o progresso<br />
inconseqüente, a ciência materialista. A poderosa nação seguiu por<br />
uma vereda de autodestruição. É mais um alerta para que evitemos o<br />
mesmo destino!<br />
A preocupação de Flecha Dourada não é à-toa, pois<br />
estamos passan<strong>do</strong> por um perío<strong>do</strong> evolutivo extremamente delica<strong>do</strong><br />
em que to<strong>do</strong>s os valores estão sen<strong>do</strong> testa<strong>do</strong>s. Assim, através de sua<br />
própria experiência, ele resgata os antigos ensinamentos<br />
despertan<strong>do</strong>-nos para a Consciência Cósmica.<br />
Outro ponto interessante é que a iniciação de Agnã<br />
pode se referir a qualquer um de nós. Certamente, em alguma coisa<br />
nos identificaremos: os problemas <strong>do</strong> orgulho, da vaidade, <strong>do</strong> poder,<br />
<strong>do</strong> sexo, <strong>do</strong>s princípios filosóficos postos à prova diante da vida real.<br />
Face aos vários ensinamentos esotéricos, facilmente<br />
passa<strong>do</strong>s em quase to<strong>do</strong>s os episódios, o estudante ocultista<br />
encontrará um farto material de estu<strong>do</strong> e pesquisa, seja um<br />
principiante ou um inicia<strong>do</strong> de longa data.
A par <strong>do</strong> seu conteú<strong>do</strong> mítico, é uma história cheia<br />
de aventuras e poesia. Você não tem a obrigação de ser um teósofo<br />
para entendê-la ou aceitá-la. Acredite ou não nos princípios<br />
espiritualistas, essa obra pode ser encarada simplesmente como a<br />
descrição de um mun<strong>do</strong> encanta<strong>do</strong>r e exótico que está ao seu<br />
alcance.<br />
Nas páginas desse livro, com certeza, você mesmo<br />
acabará encontran<strong>do</strong> as respostas para muitas de suas indagações e<br />
dúvidas.<br />
Evidentemente que usei uma linguagem<br />
contemporânea, não sen<strong>do</strong> fiel a uma escrita tipicamente indígena,<br />
nem poderia ser. Primeiro, porque não falo nenhuma língua tribal;<br />
segun<strong>do</strong>, penso que o estilo que escolhi, é de mais fácil<br />
compreensão. De qualquer maneira, acredito que os fundamentos<br />
foram passa<strong>do</strong>s como deveriam ser e da forma mais simples possível.<br />
Algumas vezes empreguei palavras <strong>do</strong> tupi arcaico e<br />
<strong>do</strong> tupi-guarani mais contemporâneo para ilustrar a história mas,<br />
para facilitar a leitura, to<strong>do</strong>s os termos se encontram em um<br />
glossário em anexo, embora a grande maioria das palavras sejam<br />
explicadas no decorrer da própria narrativa. Convém ressaltar que<br />
não se usa o plural ao se referir aos povos indígenas. <strong>Porta</strong>nto, não<br />
se fala “os homens tupis” e sim os “homens tupi”, por exemplo.<br />
Bem, agora solte-se e relaxe. Respire fun<strong>do</strong> e deixe<br />
a sua imaginação fazer viver uma história que não morreu. Será<br />
como uma linda música dan<strong>do</strong> alma às letras de uma bela poesia. Se<br />
assim for, você se tornará o principal personagem de uma aventura<br />
fascinante no mun<strong>do</strong> da magia...
PARTE I - TRADIÇÕES<br />
1 - ANTES <strong>DO</strong> INÍCIO<br />
O sol nascente parecia mais lin<strong>do</strong> <strong>do</strong> que nunca. Eu via os<br />
seus raios transpassan<strong>do</strong> as alvas nuvens que cobriam o céu,<br />
matizan<strong>do</strong>-as com um colori<strong>do</strong> sem igual, anuncian<strong>do</strong> um novo dia.<br />
Sob a mata pairava uma delicada neblina que se desvanecia<br />
lentamente diante <strong>do</strong> astro rei. O despertar de um novo dia surgia<br />
também no cântico <strong>do</strong>s pássaros e no movimento divino de cada<br />
animal.<br />
O tempo foi passan<strong>do</strong>, lentamente lin<strong>do</strong> em cada detalhe<br />
da criação.<br />
No entardecer, o sol escondia-se atrás das altas árvores,<br />
voltan<strong>do</strong> a pintar a natureza com suas cores de vida.<br />
Pude contemplar um maravilhoso arco-íris que bordava o<br />
céu entre uma cachoeira no alto de uma chapada e um lago sereno e<br />
tranqüilo que guardava os segre<strong>do</strong>s de um tesouro inatingível, real e<br />
imaginário.<br />
Veio a noite e passei a admirar as estrelas <strong>do</strong> firmamento.<br />
Seria a última vez que poderia saboreá-las com tanta liberdade, tocálas<br />
com os meus lábios, senti-las dentro de meu coração. Nessa <strong>do</strong>ce<br />
noite a lua não poderia se ocultar de mim; pelo menos por mais<br />
alguns minutos eu a veria despida de trevas, vestida apenas por uma<br />
luz encantada, como uma mulher misteriosa e arrebata<strong>do</strong>ramente<br />
sedutora.<br />
Pensei em todas as coisas que fiz nos anos to<strong>do</strong>s que se<br />
passaram, perío<strong>do</strong> tão longo e distante... Senti me<strong>do</strong> <strong>do</strong> que viria, de<br />
como iria reagir diante de uma outra responsabilidade, no maior<br />
desafio a mim reserva<strong>do</strong> até então.<br />
O receio não era apenas de enfrentar o desconheci<strong>do</strong> mas<br />
em não errar outra vez. Era também a oportunidade de uma<br />
realização interior que eu tanto havia deseja<strong>do</strong>.<br />
Vagavam os meus pensamentos entre as sombras da<br />
dúvida e a luz da confiança, da necessidade de concluir algo<br />
inacaba<strong>do</strong>, de alcançar o cume mais alto de onde partem as águas<br />
cristalinas em busca <strong>do</strong> lago sereno e translúci<strong>do</strong>.<br />
Subitamente, senti como se uma força irresistível<br />
arrastasse o meu espírito para algum lugar. Perdi a noção <strong>do</strong> tempo e
<strong>do</strong> espaço. A sensação desconfortável durou por alguns instantes.<br />
Logo após, recobrei a consciência.<br />
Aproximou-se de mim o meu grande amigo e<br />
companheiro, que naquele momento me dava assistência. Vesti<strong>do</strong> de<br />
uma toga branca, com o capuz recolhi<strong>do</strong> às costas, fitou-me com<br />
seus olhos transluzentes e penetrantes. Sem palavras, fez apenas um<br />
sinal com a cabeça e eu compreendi então que já era hora de partir.<br />
O meu coração apertou amargura<strong>do</strong> e minha alma encheu-se de<br />
lágrimas na despedida derradeira, embora, mais <strong>do</strong> que nunca, eu<br />
soubesse que ele e to<strong>do</strong>s aqueles companheiros de tantas jornadas e<br />
aventuras, permaneceriam sempre ao meu la<strong>do</strong>.<br />
Seriam eles a minha fortaleza nos momentos difíceis, a<br />
mão invisível, porém firme e segura, durante os caminhos incertos <strong>do</strong><br />
desconheci<strong>do</strong>. Os envia<strong>do</strong>s divinos que sustentariam a minha alma<br />
aflita e angustiada entregue a uma nova vida de lutas, sacrifícios e<br />
aprendiza<strong>do</strong>s.<br />
Outra vez... tive a mesma sensação desagradável. Uma<br />
força descomunal quase me tirava os senti<strong>do</strong>s mais amplos que<br />
possuía. Já não havia mais tempo. Ven<strong>do</strong> os amigos distantes, as<br />
estrelas sumin<strong>do</strong>, fui perden<strong>do</strong> a consciência e a<strong>do</strong>rmecen<strong>do</strong><br />
lentamente...<br />
Profunda paz...
2 - CHEGAN<strong>DO</strong> EM CASA<br />
To<strong>do</strong> o conhecimento acumula<strong>do</strong> durante os milênios<br />
permaneceria intacto. A experiência, no percurso das existências da<br />
alma, emergiria sempre que necessário nos momentos<br />
imprescindíveis.<br />
Não haveria plena consciência <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, mas no<br />
decorrer <strong>do</strong>s acontecimentos eu, de alguma forma, sentiria que<br />
muitas coisas não seriam tão estranhas e de alguma maneira teria<br />
uma certa noção de como agir, <strong>do</strong> que fazer.<br />
Seria, entretanto, incorreto afirmar que tu<strong>do</strong> já estivesse<br />
predestina<strong>do</strong> e que eu possuisse to<strong>do</strong> o controle <strong>do</strong>s acontecimentos<br />
que adviriam. Não haveria mérito para o aluno se ele soubesse,<br />
prematuramente, todas as respostas da prova à qual seria<br />
submeti<strong>do</strong>.<br />
A importância <strong>do</strong> teste está justamente na avaliação da<br />
capacidade <strong>do</strong> aprendiz de reter consigo os ensinamentos a ele<br />
ministra<strong>do</strong>s. Em se tratan<strong>do</strong> da alma, é a aferição de que as<br />
qualidades e virtudes alcançadas manifestam-se naturalmente, que o<br />
aprendiza<strong>do</strong>, no decurso das vidas, foi realmente assimila<strong>do</strong>.<br />
Repentinamente, quan<strong>do</strong> já supunha estar vivencian<strong>do</strong><br />
uma paz dura<strong>do</strong>ura, passei a sentir uma sufocante compressão como<br />
se o mun<strong>do</strong> inteiro estivesse sobre mim.<br />
A sensação desconfortável se repetia em determina<strong>do</strong>s<br />
intervalos de calmaria, até que se tornou contínua. Agora, me parecia<br />
estar no interior de um vulcão prestes a entrar em erupção. E<br />
entrou...<br />
Lá estava eu, novamente no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s homens, limita<strong>do</strong><br />
no interior de um corpinho tão frágil, sentin<strong>do</strong> muito frio. Logo em<br />
seguida, o meu pai cortou o cordão umbilical com os seus próprios<br />
dentes e depois banhou-me em um riacho. Um outro homem<br />
aproximou-se e achatou o meu nariz com o seu polegar.<br />
Chorei tu<strong>do</strong> o que podia chorar mas, quanto mais<br />
chorava, mais aquelas pessoas estranhas e malucas gritavam,<br />
festejan<strong>do</strong> o nascimento <strong>do</strong> novo membro da tribo tupi, uma das<br />
primeiras que daria origem a uma grande e poderosa nação.<br />
Finalmente, colocaram-me em uma redezinha, entre <strong>do</strong>is<br />
esteios de madeira, chamada de amy. Embora eu preferisse o<br />
aconchego da minha mãe, ninguém me dava ouvi<strong>do</strong>s.
Como oferenda cerimoniosa de bom presságio, ganhei<br />
unhas de onça, garras, asas e penas de cauda de gavião, mais um<br />
pequenino arco com pequeninas flechas.<br />
Durante muito tempo o meu pai permaneceu ao pé de<br />
minha mãe ou deita<strong>do</strong> em sua rede, não fazen<strong>do</strong> absolutamente<br />
nada, até o dia em que o meu umbigo secou e caiu. Foi uma grande<br />
festa em que a tribo toda participou.<br />
Em homenagem ao meu i<strong>do</strong>so avô, que havia si<strong>do</strong> o<br />
maior de to<strong>do</strong>s os guerreiros e em lembrança <strong>do</strong>s nossos ancestrais<br />
que viveram nos Andes, passaram a me chamar de Agnã, que<br />
significava O Temível, na alusão de que eu herdaria a fama de um<br />
terrível guerreiro, honran<strong>do</strong> os meus antepassa<strong>do</strong>s.
3 - BULIN<strong>DO</strong> COM SERPENTES<br />
As crianças em nossa tribo eram criadas com muita<br />
liberdade e nunca eram repreendidas. Todas as mulheres e to<strong>do</strong>s os<br />
homens se preocupavam com elas, que eram educadas no respeito<br />
aos mais velhos e na observação das tradições.<br />
Ainda muito pequeno, eu ficava com minha mãe, que me<br />
colocava dentro de um cesto que era preso em suas costas, dan<strong>do</strong>lhe<br />
liberdade para cuidar das plantações, colher os alimentos e se<br />
dedicar a outras tarefas <strong>do</strong>mésticas.<br />
Por volta <strong>do</strong>s meus quatro anos, dei o primeiro susto em<br />
minha família e em toda a tribo. Estava senta<strong>do</strong> no chão de barro de<br />
nossa oca a brincar sozinho com o meu maracá, quan<strong>do</strong><br />
sorrateiramente entrou ali uma jararaca de mais de um metro e meio<br />
de comprimento. Atenta, observou bem o que eu fazia. Quan<strong>do</strong> vi a<br />
cobra, larguei o maracá e aproximei-me dela. Olhei bem para os seus<br />
olhos, apontei-lhe o de<strong>do</strong> e disse:<br />
- Xerimawa! - o que significava animal de estimação.<br />
A cobra se assustou e ficou em posição de ataque. Não<br />
me intimidei e disse:<br />
- Minha xerimawa!<br />
A jararaca era orgulhosa e não admitiu que eu lhe<br />
apontasse o pequeno dedinho bem perto <strong>do</strong> seu nariz. Deu um bote<br />
em minha direção no exato instante em que a minha irmã mais velha<br />
entrava na oca. A tribo inteira correu para a palhoça com os<br />
frenéticos gritos que ela deu.<br />
Os que adentraram na oca também ficaram assusta<strong>do</strong>s. A<br />
cobra estava toda enrolada em meu corpo e eu segurava o seu<br />
pescoço. E que pescoço compri<strong>do</strong>!<br />
Alguns faziam gestos estranhos, uns falavam baixinho<br />
para que eu não me movesse e outros gritavam para que eu<br />
continuasse a segurar a jararaca. Sinceramente eu não entendia o<br />
porquê de tanta preocupação: pelo menos eu estava me divertin<strong>do</strong><br />
muito.<br />
Com uma mão eu segurava a jararaca, com a outra<br />
agitava o meu maracá. O maracá consistia em uma baga, fruta da<br />
cuieira ou cabaceira, que na oca servia como cuia. Quan<strong>do</strong><br />
colocávamos suas próprias sementes em seu interior e a<br />
tampávamos, a baga virava um chocalho, que era utiliza<strong>do</strong> como um<br />
instrumento musical ou brinque<strong>do</strong> de criança.
Agitan<strong>do</strong> o maracá, a serpente soltou-me, mas quan<strong>do</strong> o<br />
meu pai quis aproximar-se com uma vara para abatê-la, ela voltou a<br />
se enrolar em mim.<br />
Fiquei preocupa<strong>do</strong>. Não de que ela me ferisse, mas de<br />
que pudessem machucá-la. Pedi para que não lhe fizessem mal e<br />
agitei novamente o chocalho. Assim a serpente foi sain<strong>do</strong> pelo<br />
mesmo buraco na palhoça pelo qual havia entra<strong>do</strong>. Minha mãe, em<br />
seguida, pegou-me no colo e to<strong>do</strong>s passaram a me examinar para ver<br />
se eu havia si<strong>do</strong> pica<strong>do</strong>.<br />
Lá fora, a minha xerimawa não teve perdão: os outros<br />
homens a mataram com me<strong>do</strong> que assediasse outras crianças. To<strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> começou a chorar.<br />
Não fui pica<strong>do</strong>, mas fiquei muito triste ao saber que<br />
haviam mata<strong>do</strong> a minha cobra de estimação.<br />
No mesmo dia, organizaram uma enorme festa para<br />
agradecer a Munhã, o grande Deus cria<strong>do</strong>r, a proteção ao pequeno<br />
Agnã. Beberam e dançaram a noite inteira. Eu continuava aborreci<strong>do</strong>.<br />
No dia seguinte, to<strong>do</strong>s estavam exaustos e eu<br />
inconforma<strong>do</strong> pela terrível sorte de minha xerimawa. Fui então para a<br />
mata com o meu maracá, chacoalhan<strong>do</strong>-o várias vezes, chaman<strong>do</strong><br />
uma nova serpente.<br />
O tempo passou e, óbvio, a minha família deu por minha<br />
falta. To<strong>do</strong>s passaram a me procurar com me<strong>do</strong> de que os maus<br />
espíritos, como vingança da comemoração, tivessem me rapta<strong>do</strong>.<br />
Uma das mulheres ouviu o som <strong>do</strong> maracá no meio da<br />
mata. Não demorou muito para que me encontrassem em uma<br />
pequena clareira.<br />
Novamente ficaram aturdi<strong>do</strong>s a observar agora, não<br />
apenas uma, mas várias serpentes brincan<strong>do</strong> com o pequeno Agnã.<br />
Minha mãe e irmãs choravam muito e to<strong>do</strong>s faziam uma cara de<br />
desespero. Ao ver tanta gente, fiquei com me<strong>do</strong> que alguém pudesse<br />
fazer mal às xerimawas e, agitan<strong>do</strong> o maracá, mandei-as embora.<br />
Ao me encontrarem são e salvo, quiseram fazer uma nova<br />
festa para comemorar o acontecimento mas, temerosos, consultaram<br />
o pajé sobre a conveniência da mesma. Claro, não tinham a intenção<br />
de transformar a tribo toda em um serpentário.<br />
O pajé era o feiticeiro, o médico, o conselheiro, o chefe<br />
religioso da tribo. Era um homem bom e sério, que só se descontraía<br />
quan<strong>do</strong> bebia muito nas festas. Após fazer suas consultas espirituais<br />
no meio da mata, autorizou a festança e mais bebedeira.
Aliás, to<strong>do</strong>s os acontecimentos eram razão para<br />
comemorações, como o nascimento, a primeira menstruação, a<br />
puberdade <strong>do</strong>s meninos, as guerras etc. Havia muita dança e cauim.<br />
O cauim era uma bebida fermentada, espécie de vinho,<br />
que não deixava um único guerreiro sobriamente em pé por muito<br />
tempo.<br />
Podia-se extrair o cauim de diferentes plantas, mas<br />
normalmente era <strong>do</strong> aipim, uma espécie de mandioca <strong>do</strong>ce.<br />
Somente as mulheres preparavam a bebida, mascan<strong>do</strong> o<br />
aipim com penosa paciência e cuspin<strong>do</strong>-o no interior de um grande<br />
pote de barro. A mastigação era necessária para que a saliva<br />
ajudasse a sacarificação <strong>do</strong> ami<strong>do</strong>, pelo fermento. Era dessa forma<br />
que se fazia “ferver” a bebida e não o fogo propriamente dito a que<br />
era submetida. Esse detalhe é que dava ao cauim um sabor to<strong>do</strong><br />
especial e um poder alcoólico incrível.
4 - DESAFIAN<strong>DO</strong> AS FERAS<br />
Preocupa<strong>do</strong> com as minhas últimas companhias, meu pai<br />
decidiu que eu deveria acompanhá-lo a to<strong>do</strong>s os lugares que fosse,<br />
exceto nas campanhas de guerra. Assim, um pouco antes da idade<br />
necessária, passei a conhecer as montanhas, vales, rios, riachos e<br />
tantos outros lugares, sempre com o meu maracá.<br />
Não demorou muito, porém, e, numa breve distração <strong>do</strong><br />
meu pai, em uma de nossas expedições, saí furtivamente pelo mato<br />
desconheci<strong>do</strong>. Andei sozinho mais de um quarto de dia, quan<strong>do</strong> pude<br />
descobrir uma pequena furna escondida entre duas colinas.<br />
Encontrei ali, <strong>do</strong>is filhotes de yawara sozinhos e resolvi<br />
brincar com eles.<br />
Divertimo-nos muito, até aparecer a mãe deles. Era uma<br />
yawara pixuna, ou uma onça-preta, realmente enorme que resolvera<br />
voltar para a sua casa porque certamente sentira o cheiro de gente<br />
próxima <strong>do</strong> lar, o que poderia ser perigoso para os seus filhotes, mas<br />
certamente muito mais para quem ali estivesse. Eu, sinceramente,<br />
não dei muita importância, mas percebi a preocupação dela com os<br />
filhotes.<br />
Ensurdece<strong>do</strong>res rugi<strong>do</strong>s...<br />
A onça-mãe estava disposta a salvá-los de qualquer mal e<br />
sob qualquer risco.<br />
Veio em minha direção muito determinada. Fiquei para<strong>do</strong>,<br />
permanecen<strong>do</strong> de cócoras. Chegou bem perto de mim, mostran<strong>do</strong><br />
suas brilhantes presas, cheirou-me com muito cuida<strong>do</strong> e, quan<strong>do</strong> eu<br />
realmente não esperava, deu-me uma lavada de lambida na cara, o<br />
suficiente para que eu caísse de costas e ainda desse mais uma<br />
pirueta para trás. Ficamos grandes amigos.<br />
Evidentemente que a essa altura o meu pai e to<strong>do</strong>s os<br />
guerreiros estavam me procuran<strong>do</strong>.<br />
- Grande Anuaí, não quero desconsolá-lo, mas com to<strong>do</strong><br />
esse tempo já passa<strong>do</strong>, nessa região e quase anoitecen<strong>do</strong>, temo que<br />
seu filho tenha...<br />
- Grande Surukuá, ele está vivo, tenho certeza!<br />
- Mas onde ele estaria? Pelo seu tamanho não poderia ir<br />
tão longe e já nos dispersamos procuran<strong>do</strong> em vários lugares. Agnã<br />
não deixa rastros e nem mesmo Aguaraxaí consegue achar uma única<br />
pista.
- Ainda não fomos para as colinas de yawara - disse o<br />
meu pai.<br />
Os guerreiros se entreolharam.<br />
- Não desacredito que por lá esteja Agnã, porém é onde<br />
as onças pretas vivem em maior abundância. Seria muito perigoso<br />
para ele que, além de pequeno, nem sabe se defender.<br />
- Não resta outra alternativa. Sei que o mais bravo <strong>do</strong>s<br />
nossos valorosos homens temem o terrível jaguar, principalmente o<br />
pixuna. Dispenso a to<strong>do</strong>s e vou sozinho.<br />
- Anuaí, nós não o deixaremos só. Iremos contigo. Somos<br />
trinta guerreiros prontos para morrer, mas com a dignidade de um<br />
bravo destemi<strong>do</strong> - respondeu o altivo Surukuá.<br />
Ao chegarem na colina mais próxima da gruta, puderam<br />
escutar o som <strong>do</strong> meu maracá. Em poucos minutos já estavam me<br />
observan<strong>do</strong> de longe. Acredito que um tanto petrifica<strong>do</strong>s de espanto<br />
e de me<strong>do</strong> que nenhum guerreiro tem. Ao final de um tempo<br />
tomaram coragem e começaram a descer a colina, sempre pelo la<strong>do</strong><br />
contrário <strong>do</strong> vento.<br />
A onça-mãe, porém, não era somente boa de faro, mas<br />
tinha uma audição invejável e percebeu a sorrateira tentativa de<br />
aproximação. Ela ficou muito agitada e nervosa, dan<strong>do</strong> estron<strong>do</strong>sos<br />
urros.<br />
Os bravos agruparam-se em apenas um la<strong>do</strong> <strong>do</strong> caminho<br />
da furna, para dar espaço suficiente para a onça e os filhotes fugirem.<br />
Evitariam ao máximo atirar suas flechas. Endeusavam o jaguar<br />
porque já haviam presencia<strong>do</strong> uma pixuna matar <strong>do</strong>is homens depois<br />
de alvejada por flechas envenenadas.<br />
A tática estava dan<strong>do</strong> certo: a onça-mãe estava<br />
aborrecida mas levava consigo os <strong>do</strong>is filhotes para a mata. Porém,<br />
um <strong>do</strong>s guerreiros, ao chegar bem perto de mim, fez com que a<br />
temível pixuna acreditasse que eu seria ataca<strong>do</strong>.<br />
A onça deu então um fantástico salto, pulan<strong>do</strong> com as<br />
patas dianteiras sobre o peito <strong>do</strong> guerreiro. Ele era o homem mais<br />
forte <strong>do</strong>s que ali estavam, mas foi facilmente derruba<strong>do</strong> e antes que<br />
ela, em mais um simples golpe, tirasse a sua vida, chacoalhei o<br />
maracá. Ela parou imediatamente e veio para perto de mim,<br />
elegantemente mansinha.<br />
Pedi para que ninguém lançasse flechas. Acariciei a fera<br />
e, agitan<strong>do</strong> o maracá, mostrei-lhe o mato. Lepidamente ela se foi<br />
com os pequeninos filhotes.
O meu pai abraçou-me fortemente e quase to<strong>do</strong>s<br />
choraram muito. Aliás, em minha tribo chorava-se por qualquer coisa.<br />
- Agnã, você está feri<strong>do</strong>?<br />
- Não, meu pai, mas acho que o grande Tapiira está.<br />
Os outros guerreiros acudiram Tapiira que perdera os<br />
senti<strong>do</strong>s e tinha profun<strong>do</strong>s cortes no peito, que sangravam<br />
abundantemente.<br />
- Grande desgraça - gritou meu pai. - Maldita yawara<br />
pixuna!<br />
- Meu pai, ela não quis machucar Tapiira.<br />
- Mas ele está feri<strong>do</strong> e pode morrer.<br />
Cheguei perto <strong>do</strong> guerreiro desfaleci<strong>do</strong> e agitei o maracá.<br />
As feridas pararam de sangrar. To<strong>do</strong>s entreolharam-se, mas não<br />
disseram uma só palavra. Pedi para que jogassem água no peito <strong>do</strong><br />
bravo desmaia<strong>do</strong> e quan<strong>do</strong> fizeram isso notaram que as feridas não<br />
passavam de ligeiros arranhões. Agitei mais fortemente o maracá e<br />
disse:<br />
- Acorda, Tapiira, ela já foi embora e você está bem! - O<br />
guerreiro abriu os olhos e logo se levantou. Foi uma choradeira geral.
5 - A PAJELANÇA<br />
Quan<strong>do</strong> retornamos à tribo, já era noite e to<strong>do</strong>s estavam<br />
preocupa<strong>do</strong>s que estivéssemos em poder de nossos inimigos. Os<br />
valorosos guerreiros contaram o que havia aconteci<strong>do</strong> e to<strong>do</strong>s ficaram<br />
maravilha<strong>do</strong>s. A minha mãe, porém, ficou transtornada.<br />
- Anuaí, você precisa fazer alguma coisa. Esse menino vai<br />
acabar morren<strong>do</strong> - disse em prantos.<br />
- Tapiiti, já falei com Agnã, fiz de tu<strong>do</strong>, eu mesmo procuro<br />
cuidar dele, mas ele puxou a você: é ligeiro e esperto no mato.<br />
- Levem-no ao pajé - aconselhou o meu avô.<br />
- Iremos amanhã - respondeu respeitosamente o meu<br />
pai.<br />
No dia seguinte estávamos na oca <strong>do</strong> pajé. Meu pai,<br />
minha mãe e eu.<br />
- Pajé Marapuama, estamos muito preocupa<strong>do</strong>s com<br />
Agnã...<br />
- Estou saben<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s os acontecimentos. Vou fazer<br />
minhas consultas e depois conversaremos.<br />
À tarde voltamos à oca <strong>do</strong> feiticeiro.<br />
- Decidi chamar os outros pajés para expor o assunto.<br />
Acredito que Munhã está nos passan<strong>do</strong> uma mensagem que precisa<br />
ser compreendida.<br />
- Estou muito preocupada - disse a minha mãe. - As<br />
outras mães não querem mais que seus filhos se aproximem de<br />
Agnã. Acham que ele pode trazer perigo ou mau agouro.<br />
- Aguardem a grande reunião <strong>do</strong>s pajés - determinou<br />
Marapuama.<br />
No final da tarde começaram a chegar os maiores<br />
feiticeiros das tribos tupi. Mas, face à distância de algumas aldeias,<br />
somente no final <strong>do</strong> dia seguinte to<strong>do</strong>s estavam presentes.<br />
Senta<strong>do</strong>s em círculo, em torno de uma fogueira, fuman<strong>do</strong><br />
tabaco em canu<strong>do</strong>s, mais de trinta pajés encontravam-se na palhoça<br />
de Marapuama. O nosso feiticeiro expôs a situação e foram ouvidas<br />
as testemunhas <strong>do</strong>s fatos. Por fim me chamaram.<br />
Contei a eles o que tinha ocorri<strong>do</strong> e encheram-me de<br />
perguntas:<br />
- Sentiu me<strong>do</strong>?<br />
- Não.<br />
- Teve vontade de fugir?
- Não.<br />
- Teve a intenção de matar os animais?<br />
- Não.<br />
- Invocou Munhã?<br />
- Não.<br />
- Pediu socorro?<br />
- Não.<br />
- Alguma vez largou o seu maracá?<br />
- Não.<br />
Mais algumas perguntas e por fim decidiram dançar e<br />
invocar os espíritos. Era tanta fumaça <strong>do</strong> fumo que sopravam em<br />
minha cabeça que eu não enxergava mais nada e sorria à-toa.<br />
Gritavam aos berros, invocan<strong>do</strong> as entidades das matas.<br />
Após algumas horas, me dispensaram e disseram a meus<br />
pais que eu estava livre <strong>do</strong>s espíritos que haviam toma<strong>do</strong> conta <strong>do</strong><br />
meu corpo, mas o maracá deveria ficar com eles.<br />
Abriram o meu maracá e encontraram no seu interior<br />
sementes de yamaú.<br />
Passaram-se mais algumas horas e já íamos noite adentro<br />
quan<strong>do</strong> convocaram toda a tribo.<br />
- Munhã - disse Marapuama -, nos mostrou sua grande<br />
bondade. Fez surgir o maracá da natureza não apenas como um<br />
simples recipiente, não apenas como algo para carregar água ou para<br />
servir como instrumento musical, mas como expressão divina de seu<br />
poder sobre os espíritos. Daqui para a frente, cada guerreiro, cada<br />
mulher e cada jovem ou criança terá a sua cabaça e sementes<br />
consagradas em cerimonial. Os maracás serão símbolos religiosos -<br />
decretou.<br />
Assim, creditaram aos espíritos liga<strong>do</strong>s ao maracá a<br />
minha proteção e a <strong>do</strong>s guerreiros, bem como o <strong>do</strong>mínio sobre os<br />
animais.<br />
Na verdade, havia outro motivo oculto para que<br />
Marapuama procurasse conduzir os outros pajés e o resto da tribo a<br />
essa conclusão. Ele mesmo não acreditava piamente que fora o<br />
maracá o responsável pelos feitos incomuns, embora resolvesse<br />
mantê-lo em seu poder.<br />
Como já foi dito, o nosso pajé era um bom homem. Mas,<br />
o fato de ser bom ou ser um pajé não o tornava menos homem e,<br />
como tal, tinha as suas preocupações pessoais. Caso os feitos fossem<br />
atribuí<strong>do</strong>s exclusivamente a mim, ele correria o risco de perder a
confortável posição de poder e <strong>do</strong>mínio sobre a tribo para um simples<br />
mirim, cain<strong>do</strong> em desgraça e talvez perden<strong>do</strong> até a própria vida em<br />
razão disso. Era motivo mais <strong>do</strong> que suficiente para que procurasse<br />
desviar a atenção para o maracá.<br />
Com a cabaça, agora sagrada, qualquer conseqüência,<br />
boa ou ruim, poderia ser atribuída aos espíritos.<br />
Tal decisão influenciaria todas as demais gerações tupi.
6 - O GRANDE PEQUENO FLECHEIRO<br />
Após toda a confusão que acabou por santificar o meu<br />
maracá, achei que não poderia mais ter xerimbabos. Conformei-me<br />
com a situação, mas fiquei um pouco tristonho com esses fatos.<br />
Sem maracá, sem animais, sem amiguinhos para brincar<br />
e sem poder ir à mata, restava apenas a distração de observar a<br />
natureza ali mesmo. Gostava especialmente de apreciar o nascer e o<br />
pôr-<strong>do</strong>-sol.<br />
A<strong>do</strong>rava, ainda, ver as aves cruzan<strong>do</strong> o céu. Aliás, eu<br />
queria ser como elas, ter asas e voar. Sentir o prazer da liberdade,<br />
in<strong>do</strong> para onde quisesse, olhan<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> lá de cima...<br />
- Eu também já quis ser um pássaro - disse meu avô<br />
surpreenden<strong>do</strong>-me o pensamento absorto pelo vôo de uma ave de<br />
rapina.<br />
Com um olhar volta<strong>do</strong> para um passa<strong>do</strong> muito distante, o<br />
velho guerreiro passou a relembrar a sua história de grande valentia:<br />
- Um dia, ainda pequeno, mas já um excelente arqueiro,<br />
eu queria participar das campanhas de guerra e vingar a morte de<br />
nossos antepassa<strong>do</strong>s. O meu pai, entretanto, achava que eu ainda<br />
não estava prepara<strong>do</strong>. Teria que passar antes pelo ritual de iniciação<br />
de um guerreiro, porém, mesmo assim, eu não tinha a idade<br />
necessária.<br />
Apesar disso, estava convenci<strong>do</strong> de que não havia<br />
nenhum homem com a minha pontaria e nem com mais coragem <strong>do</strong><br />
que eu. O meu venerável pai tentava consolar-me dizen<strong>do</strong> que não<br />
bastava ser bom em arco e flecha e que o verdadeiro guerreiro só é<br />
valoriza<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> vence os seus inimigos com as próprias mãos.<br />
Na lua seguinte - continuou o meu avô conseguin<strong>do</strong><br />
cativar a minha mais absoluta atenção - os guerreiros saíram para<br />
enfrentar os inimigos. O nosso povo, há milênios, tem a tradição de<br />
seguir em longas expedições para novas conquistas e à procura de<br />
um lugar melhor para viver e naquela época toda a tribo estava em<br />
viagem para o sul, quan<strong>do</strong> nos deparamos com um povo hostil,<br />
primitivo e desorganiza<strong>do</strong>, os tapuia. Eles não permitiam o<br />
prosseguimento de nossa caminhada. O combate seria inevitável.<br />
Eram, porém, muito mais numerosos e teríamos que confiar na<br />
valentia de nossos guerreiros somada ao porte físico superior. Cada<br />
homem de nossa tribo valia por quatro <strong>do</strong>s nossos oponentes. O meu<br />
pai, grande guerreiro, era um <strong>do</strong>s líderes de nossa tribo, sen<strong>do</strong> muito
espeita<strong>do</strong> pelo povo. Em campanhas anteriores, lutou bravamente<br />
matan<strong>do</strong> e capturan<strong>do</strong> muitos inimigos. Alguns <strong>do</strong>s guerreiros,<br />
entretanto, estavam preocupa<strong>do</strong>s porque um deles havia sonha<strong>do</strong><br />
com uma nuvem de sangue sobre os nossos homens e um sol<br />
brilhante sobre os nossos inimigos. O feiticeiro, porém, não deu maior<br />
importância e exaltou os bravos à luta. Assim, após imponente festa<br />
e com a bênção <strong>do</strong> pajé, os heróis marcharam destemi<strong>do</strong>s para a<br />
glória de nossa gente. Nem bem saíram, as mulheres trataram de<br />
preparar o cauim para comemorar a vitória que certamente adviria.<br />
Mas, eu não estava contente. Eu, não. Que os nossos ancestrais<br />
possam eternamente me per<strong>do</strong>ar, porém, de tão aborreci<strong>do</strong> que<br />
fiquei, era o meu desejo que fossem derrota<strong>do</strong>s por não terem<br />
permiti<strong>do</strong> que fosse com eles. O dia passou e a expectativa era<br />
grande. A preocupação atravessou a noite inteira... O velho fez uma<br />
angustiante pausa e depois continuou: ...Passou-se mais um dia e<br />
mais uma noite se passou...... Os nossos guerreiros nunca haviam<br />
perdi<strong>do</strong> um combate e sempre retornavam com prisioneiros. As<br />
batalhas raramente estendiam-se por mais de um ou <strong>do</strong>is dias. No<br />
final da tarde <strong>do</strong> terceiro dia, quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s já estavam aflitos e<br />
temerosos, começaram a chegar os primeiros guerreiros. Muitos deles<br />
estavam feri<strong>do</strong>s e cansa<strong>do</strong>s. As mulheres, velhos e nós crianças,<br />
corremos ao seu encontro, apreensivos e chorosos.<br />
- Fomos covardemente massacra<strong>do</strong>s! - gritou um deles. -<br />
Ninguém acreditava.<br />
- Pegos de surpresa... no estreito <strong>do</strong> vale... eram<br />
milhares... - quase sem fala outro guerreiro tentava explicar o que<br />
havia aconteci<strong>do</strong>.<br />
- Lutamos corajosamente... cada um de nós conseguia<br />
derrubar muitos <strong>do</strong>s deles... mas surgiram mais... muito mais -<br />
manifestou-se um outro bravo muito feri<strong>do</strong>.<br />
- Matamos e ferimos centenas de tapuia... - continuou o<br />
primeiro choran<strong>do</strong> copiosamente - ...mas, a luta foi desigual na<br />
surpresa...<br />
Os nossos homens estavam acostuma<strong>do</strong>s a enfrentar os<br />
inimigos frente à frente. Procurei o meu pai, mas ele não estava<br />
entre os que retornaram. Adentramos no mato para acudir os que<br />
nem conseguiam chegar na aldeia. Perguntei sobre o meu pai,<br />
ninguém sabia...<br />
Meu avô continuou, após uma pausa mais prolongada:
Não podia acreditar: eram quase mil homens, fortes,<br />
altos. Os inimigos mal chegavam à altura <strong>do</strong> peito <strong>do</strong> mais baixo <strong>do</strong>s<br />
nossos. A minha família começou a entrar em desespero. Minha mãe,<br />
meus irmãos e eu gritávamos o nome de meu pai por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s,<br />
mas não havia resposta. Voltaram para a tribo não mais que<br />
trezentos homens, a maioria deles feri<strong>do</strong>s. Até o dia seguinte ainda<br />
chegaram alguns guerreiros. Disseram que eram os últimos e meu<br />
pai não estava entre eles. Entretanto, um <strong>do</strong>s homens o havia visto:<br />
- Destemi<strong>do</strong> o teu pai, digno de toda a honra. Quan<strong>do</strong><br />
batíamos em retirada, ele e mais vinte homens, apenas vinte,<br />
decidiram fazer nova frente contra os tapuia que continuavam vin<strong>do</strong><br />
sobre nós. Suas ordens ainda estão soan<strong>do</strong> em meus ouvi<strong>do</strong>s:<br />
“Voltem para a tribo com os feri<strong>do</strong>s, nós outros iremos retardar os<br />
inimigos”. Foi a última vez que o vi.<br />
Fiquei inconforma<strong>do</strong>, não poderia aceitar a possibilidade<br />
dele ter morri<strong>do</strong>, mesmo com grande honra. Naquele momento eu<br />
não via honra nenhuma na morte.<br />
- Temos que nos preparar, eles vão nos atacar em breve!<br />
- bra<strong>do</strong>u o único líder de guerra que sobrou.<br />
- Não teriam tanta coragem - duvi<strong>do</strong>u o incrédulo pajé.<br />
- Terão muito mais coragem <strong>do</strong> que você deveria<br />
descobrir. Nós subestimamos os inimigos no primeiro confronto,<br />
devemos sabiamente acreditar que estão eufóricos com a nossa<br />
desgraça e sabem que não representamos o total de nossa gente.<br />
Irão nos atacar - respondeu o líder com muita firmeza. A observação<br />
feita pelo bravo tinha fundamento. Não havia tempo suficiente para<br />
fugir. Tínhamos que nos aprontar para a luta derradeira e assim foi<br />
feito. To<strong>do</strong>s em condições de combate foram chama<strong>do</strong>s ao centro da<br />
taba. Dessa vez não me dispensaram. As instruções de luta foram<br />
cuida<strong>do</strong>samente passadas. Sabíamos bem qual a tática a ser<br />
empregada. Como eu era reconhecidamente um excelente arqueiro,<br />
fui escala<strong>do</strong> para o combate à distância, defenden<strong>do</strong> justamente o<br />
flanco mais vulnerável da aldeia. Éramos ao to<strong>do</strong> oitenta e três<br />
curumins, jovens arqueiros, e somente mais quatrocentos guerreiros<br />
capacita<strong>do</strong>s para a luta. To<strong>do</strong>s, homens, velhos, mulheres e crianças<br />
iniciaram os preparativos, produzin<strong>do</strong> as armas de guerra e<br />
construin<strong>do</strong> as caiçaras, estacas de proteção, à volta inteira da<br />
aldeia. Erguemos três cercas espalhan<strong>do</strong> espinhos envenena<strong>do</strong>s entre<br />
elas. O veneno era tão forte que um homem tombaria a menos de<br />
dez passos. Teriam que dar quarenta passos para o primeiro
confronto face a face. Ao me preparar vi uma ave de rapina cruzan<strong>do</strong><br />
o céu. Foi quan<strong>do</strong> desejei ser uma para ver aonde estava o meu pai.<br />
Queria ser intocável no ar para assenhorear-me da terra. Os<br />
arqueiros foram instruí<strong>do</strong>s a serem muito ligeiros e precisos. Quanto<br />
mais tapuia pudéssemos abater antes <strong>do</strong> confronto físico, melhor<br />
seria para nós. Ven<strong>do</strong> a ave passan<strong>do</strong> velozmente, disse a mim<br />
mesmo: “Serei mais certeiro e rápi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que qualquer guerreiro<br />
jamais foi”. Em um piscar de olhos, armei o arco e disparei<br />
impie<strong>do</strong>samente uma seta em direção da ave que caiu na terra com a<br />
flecha atravessada em seu pescoço. Os que puderam presenciar a<br />
cena gritaram as palavras de ordem <strong>do</strong>s grandes bravos. Retirei a<br />
flecha da ave e disse ao vento: “Essa será destinada ao primeiro<br />
tapuia em memória de meu valoroso pai”. Todas as minhas outras<br />
setas tiveram suas alhetas preparadas com as penas dessa ave.<br />
Tomamos posição e aguardamos o inimigo. Era um dia bonito e o sol<br />
estava a pino quan<strong>do</strong> começamos a ouvir os gritos estridentes vin<strong>do</strong><br />
da mata por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s. Os tapuia queriam nos incutir me<strong>do</strong><br />
antes <strong>do</strong> enfrentamento. Mas a maioria <strong>do</strong>s nossos homens estava<br />
com um grande sentimento de vingança e não viam o momento <strong>do</strong><br />
ajuste. Eu também tinha o mesmo desejo, mas não deixava de ter<br />
me<strong>do</strong>. Sabia muito bem que os tapuia não faziam prisioneiros. Temia<br />
pela minha família, minha mãe e meus irmãos.<br />
Ouvin<strong>do</strong> o meu avô contan<strong>do</strong> essa história, eu ficava de<br />
olhos arregala<strong>do</strong>s e de boca aberta. Em tom dramático ele<br />
prosseguiu:<br />
- Uma sentinela avançada retornou a nossa aldeia,<br />
passan<strong>do</strong> cuida<strong>do</strong>samente pelas armadilhas que preparamos para<br />
recepcionar os nossos oponentes.<br />
- São milhares! Provavelmente dez vezes mais <strong>do</strong> que nós<br />
to<strong>do</strong>s juntos! - disse, preocupa<strong>do</strong>.<br />
O chefe de guerra conclamou o povo para que lutasse<br />
bravamente. Começamos a gritar mais alto <strong>do</strong> que os inimigos e cada<br />
vez que eu gritava sentia mais força e coragem. Surgiram os tapuia<br />
fazen<strong>do</strong> grande alari<strong>do</strong>, avançan<strong>do</strong> como animais. Passaram o<br />
primeiro obstáculo pisotean<strong>do</strong> aqueles que caíam no chão sob o efeito<br />
<strong>do</strong> veneno. Eram muitos, parecia que a mata era feita de tapuia.<br />
Quan<strong>do</strong> alcançaram o segun<strong>do</strong> obstáculo recebemos ordens de lançar<br />
as flechas envenenadas. Procurei rapidamente o mais forte <strong>do</strong>s tapuia<br />
e disse ao disparar a seta guardada para aquele momento: “Morrerás<br />
pela honra <strong>do</strong> meu pai”. O disparo foi certeiro, bem no meio <strong>do</strong>
pescoço. O combate foi árduo e penoso e nós, os arqueiros, fizemos<br />
com que muitos inimigos tombassem antes de alcançar a última cerca<br />
que nos separava. Lancei quarenta e três flechas e derrubei quarenta<br />
e três tapuia, com todas as setas invariavelmente atravessadas no<br />
pescoço de cada um deles. Veio a feroz batalha corpo a corpo. Peguei<br />
o meu tacape e passei a golpear os inimigos que vinham sobre nós. A<br />
luta frenética estendeu-se por um tempo que parecia interminável.<br />
Os tapuia, sentin<strong>do</strong> que seriam inapelavelmente derrota<strong>do</strong>s, bateram<br />
em retirada para a nossa alegria. Mas, estávamos tão exaustos que<br />
não chegamos a persegui-los, deixan<strong>do</strong>-os ir embora. Eu, coberto de<br />
sangue <strong>do</strong>s primitivos, caí de joelhos e queria me deitar, mas não<br />
havia espaço, o chão estava repleto de corpos. Os tapuia mortos e<br />
gravemente feri<strong>do</strong>s, estavam espalha<strong>do</strong>s por toda a parte.<br />
O meu avô fez uma pausa para fumar o seu tabaco, o<br />
suficiente para que eu pudesse piscar novamente e continuou em voz<br />
mais grave:<br />
- Ficamos ainda um tempo para<strong>do</strong>s. As mulheres<br />
socorriam nossos feri<strong>do</strong>s, que eram muitos, mas dessa vez a vitória<br />
foi inteiramente nossa. Perdemos cerca de quarenta homens, porém,<br />
a vista <strong>do</strong> campo de batalha era triunfante... Centenas de corpos <strong>do</strong>s<br />
nossos inimigos sobre as cercas e por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s. Os que estavam<br />
vivos encontravam-se feri<strong>do</strong>s e foram mortos na mesma hora. Dessa<br />
vez não faríamos prisioneiros. Alguns <strong>do</strong>s primitivos ostentavam em<br />
seu pescoço os colares de nossos altivos guerreiros, provavelmente<br />
mortos no primeiro combate. Com tristeza encontrei o colar de meu<br />
pai com um deles. Tirei-o com muito cuida<strong>do</strong> para que não<br />
arrebentasse e em seguida esmaguei o crânio <strong>do</strong> miserável a golpes<br />
de tacape. Após todas as solenidades funerárias, enterramos os<br />
nossos mortos e festejamos a vitória. Os principais da nossa aldeia<br />
acharam conveniente que levantássemos acampamento e<br />
retornássemos para o oeste, aonde nos reagruparíamos com outras<br />
tribos para retornarmos à luta pela passagem no Vale da Morte.<br />
<strong>Sol</strong>tei um profun<strong>do</strong> suspiro. Via no brilho <strong>do</strong>s olhos <strong>do</strong><br />
meu avô a veracidade da sua história. Era uma entre inúmeras<br />
outras.<br />
- Eu estou muito preocupa<strong>do</strong> com sua segurança, Agnã. A<br />
qualquer momento você terá que se defender das feras ou <strong>do</strong>s<br />
inimigos. Por isso eu mesmo confeccionei um arco e flechas de acor<strong>do</strong><br />
com o seu tamanho. Você aprenderá também como preparar as suas<br />
próprias armas e como manejá-las.
Assim, passei alguns dias conhecen<strong>do</strong> os segre<strong>do</strong>s da<br />
manufatura de um excelente arco e flechas. O meu avô tinha não só<br />
a fama de ter si<strong>do</strong> um destemi<strong>do</strong> guerreiro e excepcional flecheiro,<br />
mas acumulava os feitos com a glória de ser o melhor de to<strong>do</strong>s os<br />
artesãos na confecção das armas de guerra.<br />
Diziam que os espíritos <strong>do</strong>s nossos antepassa<strong>do</strong>s haviam<br />
sopra<strong>do</strong> aos ouvi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ancião os mistérios da preparação das armas,<br />
ensinan<strong>do</strong>-lhe nas matas a arte que somente ele passou a <strong>do</strong>minar<br />
tão bem.<br />
O meu avô não confirmava a história, mas também não a<br />
desmentia. A única coisa que dizia era que o homem que quer usar<br />
algum instrumento tira<strong>do</strong> da terra, precisa conversar com os espíritos<br />
que cuidam dela.
7 - PESCAN<strong>DO</strong> UM <strong>ARCO</strong>-<strong>ÍRIS</strong><br />
Com a orientação <strong>do</strong> meu avô, não precisei de muito<br />
tempo para aprender to<strong>do</strong>s os misteriosos detalhes da confecção de<br />
arcos e flechas.<br />
O arco era constituí<strong>do</strong> de uma taquara especial, cujo tipo<br />
não era fácil de ser encontra<strong>do</strong>. Cortada com cuida<strong>do</strong>sa conveniência,<br />
tinha ainda que ser devidamente preparada, fican<strong>do</strong> de molho em<br />
uma solução de ervas. Posteriormente, era posta para secar à<br />
sombra. O processo tinha que ser repeti<strong>do</strong> algumas vezes para<br />
assegurar ao arco a resistência e a flexibilidade adequadas.<br />
A corda era feita das fibras de uma planta chamada<br />
karawa e também exigia um tratamento específico antes de ser<br />
usada.<br />
As flechas eram feitas de uma madeira difícil de<br />
encontrar, que lhes dava leveza e resistência. Suas pontas podiam<br />
ser de ossos humanos (<strong>do</strong>s tapuia, claro), de animais ou da própria<br />
madeira. As alhetas traseiras eram feitas de penas de águia, não<br />
simplesmente para embelezá-las, mas cuida<strong>do</strong>samente colocadas na<br />
correta posição, permitiriam que a seta girasse em torno de seu<br />
próprio eixo, manten<strong>do</strong> sua estabilidade de vôo, direção e<br />
aumentan<strong>do</strong> sua capacidade de perfuração.<br />
Havia, sem dúvida, o la<strong>do</strong> místico <strong>do</strong>s materiais<br />
emprega<strong>do</strong>s. A árvore da qual se retirava a madeira era a morada<br />
preferida <strong>do</strong> espírito <strong>do</strong> fogo. Segun<strong>do</strong> o meu avô, a flecha feita<br />
dessa árvore tinha o poder de liberar uma energia extremamente<br />
destrui<strong>do</strong>ra, quan<strong>do</strong> atingia o seu alvo.<br />
Os ossos humanos utiliza<strong>do</strong>s na ponta da flecha eram<br />
para atingir o espírito <strong>do</strong>s guerreiros inimigos, que somente eram<br />
feri<strong>do</strong>s mortalmente, quan<strong>do</strong> se usava a força <strong>do</strong> espírito de um<br />
guerreiro morto em batalha.<br />
As penas de águia eram para permitir que as setas<br />
ganhassem a velocidade dessas aves e a pontaria certeira, uma vez<br />
que o espírito da águia estaria dentro da própria flecha.<br />
A porção de ervas, na qual eram mergulha<strong>do</strong>s as setas, o<br />
arco e a corda, era uma essência <strong>do</strong>s espíritos da força e da<br />
resistência.<br />
To<strong>do</strong>s os membros da nossa tribo consideravam que as<br />
armas produzidas pelo meu avô eram possui<strong>do</strong>ras de grande magia,
pelos feitos de outrora. Eu também comecei a acreditar piamente<br />
nisso.<br />
Depois de aprender a confeccionar minhas próprias<br />
armas, o meu avô passou a me ensinar o seu correto manuseio.<br />
Dominei com facilidade a arte de armar e disparar as<br />
setas. Já nos primeiros treinamentos, conseguia fazer eficientes<br />
disparos e fui aprimoran<strong>do</strong> os lançamentos a cada arremesso.<br />
Tapiira e mais alguns guerreiros, ao me ver treinan<strong>do</strong> ao<br />
la<strong>do</strong> <strong>do</strong> meu avô, gritou:<br />
- Grande Agnã, sucessor <strong>do</strong> maior <strong>do</strong>s flecheiros!<br />
O quase setuagenário sorriu com altivez e disse:<br />
- Agnã será o orgulho de nossa nação e de nossos<br />
antepassa<strong>do</strong>s.<br />
Com o passar <strong>do</strong>s dias eu e o meu arco e flechas<br />
seríamos inseparáveis. Só havia um problema: as pessoas que<br />
inicialmente achavam graça, começaram a ficar um tanto<br />
incomodadas com tantas setas cruzan<strong>do</strong> a aldeia.<br />
Antes que surgissem maiores reclamações, o meu pai<br />
resolveu levar-me a uma expedição de pesca. Fiquei muito feliz.<br />
Desde os últimos acontecimentos eu não havia deixa<strong>do</strong> a taba.<br />
Reuniram-se a nós uns quarenta índios da família <strong>do</strong> meu<br />
pai e corremos para as margens de um portentoso rio. Logo<br />
colocaram as ubás, grandes e pesadas canoas, nas águas e<br />
começamos a remar rio abaixo.<br />
O meu pai, Igará, seus <strong>do</strong>is filhos e eu, fomos à frente<br />
<strong>do</strong>s outros dentro de uma yaratim, canoa especialmente feita para o<br />
uso <strong>do</strong>s chefes da tribo e que era mais leve e ligeira.<br />
Depois de um bom tempo paramos em uma determinada<br />
altura <strong>do</strong> rio, aonde se formava uma pequena bacia, e Igará,<br />
profun<strong>do</strong> conhece<strong>do</strong>r das águas fluviais e de pescaria, disse:<br />
- Aqui é um bom lugar para os mirins treinarem. Os<br />
homens irão comigo mais adiante.<br />
Igará passou para a outra embarcação, para acompanhar<br />
e orientar os outros pesca<strong>do</strong>res, permanecen<strong>do</strong> o meu pai conosco.<br />
Após uma série de explicações sobre o uso <strong>do</strong> arco e<br />
flecha para se atingir os peixes, o meu pai fez algumas<br />
demonstrações alvejan<strong>do</strong>-os com sucesso. Comecei a sentir aflição ao<br />
ver os peixes ainda se debaten<strong>do</strong> dentro da canoa.<br />
Os filhos de Igará foram os primeiros e não tiveram<br />
maiores dificuldades. Além de serem mais velhos <strong>do</strong> que eu, já
tinham ampla experiência no assunto, pois Igará os havia treina<strong>do</strong><br />
anteriormente.<br />
Chegou a minha vez. Em pé, sobre a yaratim, armei o<br />
arco. Ven<strong>do</strong> os peixes enormes ao la<strong>do</strong> da canoa, fiz o ângulo de<br />
correção, face a difração da luz na água, mas ao soltar a corda <strong>do</strong><br />
arco, desviei deliberadamente a pontaria, para que o peixe não fosse<br />
atingi<strong>do</strong>.<br />
Disparei várias setas para não desagradar o meu pai.<br />
Passavam todas de raspão e nenhuma certeira. Os outros meninos<br />
riam de mim, mas o meu pai mantinha a calma. Em um determina<strong>do</strong><br />
momento, ele jogou pó de timbó na água, que teve um efeito de<br />
sedativo nos peixes ali próximos, deixan<strong>do</strong>-os paralisa<strong>do</strong>s e assim<br />
uma grande quantidade de peixes começou a boiar <strong>do</strong> la<strong>do</strong> da<br />
yaratim.<br />
O meu pai disse:<br />
- Tente agora, os peixes estão para<strong>do</strong>s e boian<strong>do</strong>, vai ser<br />
mais fácil alvejá-los!<br />
Que situação, eu não queria matá-los e, principalmente,<br />
de uma forma tão indefesa, entretanto, também não poderia<br />
desapontar o meu pai, fazen<strong>do</strong>-o passar vergonha na frente <strong>do</strong>s filhos<br />
de Igará. Larguei o arco e a flecha e passei a pegar os peixes com as<br />
mãos.<br />
- O que está fazen<strong>do</strong>, filho?<br />
- Estou pescan<strong>do</strong> - respondi sem olhar para ele.<br />
- Mas com as mãos?<br />
- É perigoso? - perguntei, fazen<strong>do</strong>-me de desentendi<strong>do</strong>.<br />
O tempo começou a mudar e as nuvens negras<br />
formaram-se escurecen<strong>do</strong> o céu. Igará emitiu um som típico de<br />
reagrupamento. Nós gostávamos das chuvas, mas a maioria temia<br />
aquelas que viessem acompanhadas de trovões e raios, pois era a<br />
manifestação divina de Tupã, um deus temperamental, que poderia<br />
ajudar na agricultura ou destruí-la com suas tempestades, iluminar<br />
um guerreiro ou reduzi-lo a cinzas.<br />
Reunimo-nos à beira <strong>do</strong> grande rio e recolhemos as ubás,<br />
canoas de difícil navegação, sem quilha e sem banco, feitas<br />
normalmente de uma casca inteiriça de um tronco de árvore.<br />
Vieram os ventos trazen<strong>do</strong> a chuva, com muitos trovões e<br />
raios, porém não durou muito tempo. Logo o céu estava limpo, como<br />
se nada houvesse aconteci<strong>do</strong>.
Era tardezinha e despontava um lin<strong>do</strong> arco-íris matizan<strong>do</strong><br />
o céu de uma beleza sem par.<br />
To<strong>do</strong>s se reuniram para voltar à tribo. Ten<strong>do</strong> que remar<br />
rio acima, com as canoas repletas de peixes como o pirarucu e o<br />
surubim, os pesca<strong>do</strong>res queriam se apressar para não chegar de<br />
noite na aldeia.<br />
A pergunta <strong>do</strong> meu pai aos homens era inevitável:<br />
- Aonde está Agnã?<br />
Ninguém acreditava, de novo, não! Passaram a gritar o<br />
meu nome, procuran<strong>do</strong>-me por to<strong>do</strong>s os cantos da margem em que<br />
estavam.<br />
Procuraram no interior das ubás, nos galhos das árvores e<br />
mais uma vez nem sequer um único rastro. Nada.<br />
Igará foi até a margem <strong>do</strong> rio. Olhou bem para os la<strong>do</strong>s e<br />
ficou pensativo. Adentrou o rio até que as águas chegassem ao nível<br />
de sua cintura. Olhou para a subida e depois para a descida <strong>do</strong> rio e<br />
assim ficou por alguns instantes. Os pesca<strong>do</strong>res e principalmente o<br />
meu pai ficaram apreensivos, mas absolutamente em silêncio.<br />
- Desceu o rio, provavelmente a na<strong>do</strong>, na direção <strong>do</strong> arcoíris<br />
- afirmou.<br />
Os pesca<strong>do</strong>res voltaram para a aldeia com os <strong>do</strong>is filhos<br />
de Igará, mais a pesca, reman<strong>do</strong> rio acima. O meu pai e seu grande<br />
companheiro entraram na yaratim e remaram rapidamente rio<br />
abaixo, gritan<strong>do</strong> pelo meu nome.<br />
To<strong>do</strong>s tinham muita confiança em Igará, que era<br />
considera<strong>do</strong> o senhor das águas, face o profun<strong>do</strong> conhecimento que<br />
tinha de to<strong>do</strong>s os rios da região. Também era respeita<strong>do</strong> como o<br />
melhor jacumaíba, ou seja, um experiente condutor de canoa em<br />
pontos onde a navegação é arriscada.<br />
Em um determina<strong>do</strong> momento Igará parou de remar.<br />
- O que foi? - perguntou o meu pai.<br />
- Anuaí, você conhece bem essas bandas...<br />
O meu pai fechou os olhos e disse:<br />
- Não é possível!<br />
- Você sabe que o rio mais à frente divide-se. Seguin<strong>do</strong><br />
adiante está cheio de piraíba...<br />
- E <strong>do</strong> la<strong>do</strong> direito forma um igarapé, próximo de onde as<br />
pirains vermelhas costumam ficar e Agnã está cheiran<strong>do</strong> peixe bom<br />
para se comer.
Para os <strong>do</strong>is, quaisquer das alternativas não seria<br />
alenta<strong>do</strong>ra. O piraíba era um enorme peixe com o comprimento de<br />
<strong>do</strong>is homens e pesava o equivalente a cinco, temi<strong>do</strong> por engolir<br />
facilmente uma criança ou até mesmo um homem pequeno e<br />
descuida<strong>do</strong>. A piraim vermelha era bem menor, mas era mais temida<br />
que o piraíba, por ser uma das mais terríveis piranhas.<br />
Enquanto isso, eu realmente fui a na<strong>do</strong> até o igarapé.<br />
Ajustan<strong>do</strong> o arco em meu corpo e prenden<strong>do</strong> bem as flechas, nadei<br />
com muita desenvoltura. Nadar era uma das coisas que eu mais<br />
gostava de fazer. Às vezes minha mãe dizia que eu era peixe por<br />
natureza, de tanta água que saiu dela quan<strong>do</strong> a sua bolsa rompeu no<br />
meu nascimento.<br />
No igarapé, pude contemplar bem de perto o arco-íris e<br />
brinquei muito, justamente nas águas onde ele tocava. Muitos peixes<br />
se aproximaram de mim e nadavam a minha volta.<br />
Não demorou muito o meu pai e seu fiel amigo logo<br />
puderam me encontrar.<br />
Quan<strong>do</strong> os avistei, lembrei que havia me esqueci<strong>do</strong> de<br />
dizer aonde ia. Também, pudera, era muito raro uma criança ser<br />
repreendida e todas tinham quase que total liberdade. Mas acho que<br />
naquele dia eu seria um <strong>do</strong>s casos raros.<br />
Mas, ao contrário <strong>do</strong> que eu esperava, não percebi que os<br />
<strong>do</strong>is estivessem bravos. Conforme vinham se aproximan<strong>do</strong>, notei que<br />
só faltava um pequeno sorriso em seus semblantes.<br />
Acenei e gritei para eles. Até os peixes pulavam<br />
constantemente, inclusive sobre mim, e, no entanto, eles não<br />
respondiam. Comecei a achar que estavam mesmo bravos.<br />
Quan<strong>do</strong> chegaram bem perto eu disse:<br />
- Vocês não querem brincar comigo e meus novos<br />
xerimbabos, bem de baixo <strong>do</strong> arco-íris?<br />
Permaneceram mu<strong>do</strong>s e agora estavam também páli<strong>do</strong>s,<br />
de olhos estatela<strong>do</strong>s, quase não respiravam e não se mexiam de<br />
maneira alguma.<br />
Comecei a achar que haviam comi<strong>do</strong> algum peixe de<br />
carne ruim e estavam passan<strong>do</strong> mal ou haviam cheira<strong>do</strong> timbó por<br />
acidente.<br />
Pensei então que talvez o meu pai ficasse mais feliz se eu<br />
lhe entregasse alguns peixes e joguei-lhe uns <strong>do</strong>is em sua direção.<br />
Que susto tomei, parecia que eu havia joga<strong>do</strong> brasas dentro da
canoa. Os <strong>do</strong>is começaram a pular tanto que a yaratim acabou<br />
viran<strong>do</strong> e foram parar n’água. Dei muita risada.<br />
Quan<strong>do</strong> achei que eles iriam brincar comigo, nadaram<br />
rapidamente para a margem <strong>do</strong> rio, deixan<strong>do</strong> a canoa virada. Nunca<br />
vi alguém nadar tão rápi<strong>do</strong> assim. Tive que levar a yaratim para a<br />
margem, com muito esforço.<br />
Os <strong>do</strong>is guerreiros e pesca<strong>do</strong>res, quase não conseguiam<br />
falar direito. Estira<strong>do</strong>s no chão, só resmungavam e eu não entendia<br />
nada. Depois de um tempo Igará perguntou:<br />
- Anuaí, ainda estamos vivos?<br />
- Acho que sim - respondeu o meu pai.<br />
Acho que sim? Lógico que estavam vivos! - pensei eu.<br />
Os <strong>do</strong>is examinaram-se cuida<strong>do</strong>samente.<br />
- Há muitas luas passadas perdi <strong>do</strong>is homens aqui mesmo<br />
- disse Igará, para o meu espanto.<br />
- Eu sei - disse o meu pai.<br />
- Na tentativa de pescar com rede, a canoa deles virou.<br />
Eu mesmo vi. Eles tinham o cheiro <strong>do</strong>s peixes que já haviam pesca<strong>do</strong><br />
e quan<strong>do</strong> tentavam desvirar a canoa as pirains apareceram em<br />
grande número. Foram devora<strong>do</strong>s em pouco tempo e nós outros nada<br />
pudemos fazer.<br />
- Como pode? - perguntou. - As pirains costumam comer<br />
a si mesmas e seu filho brinca com elas dessa maneira e nada<br />
acontece. Como pode?<br />
- Não sei - respondeu o meu pai ainda sem fôlego e<br />
perguntan<strong>do</strong>-me em seguida:<br />
- Você está bem, Agnã?<br />
- Sim, meu pai.<br />
- Vamos improvisar outras yacumans - disse Igará,<br />
referin<strong>do</strong>-se aos remos - e partir o quanto antes. Tenho receio de<br />
navegar no escuro.<br />
Logo estávamos rio acima, mas escureceu bem antes de<br />
chegarmos na aldeia e Igará disse preocupa<strong>do</strong>:<br />
- Lembro-me perfeitamente bem da primeira vez que<br />
remei por esses la<strong>do</strong>s, em um <strong>do</strong>s afluentes desse rio. Sozinho,<br />
procuran<strong>do</strong> conhecer melhor os caminhos, fiquei empolga<strong>do</strong> de tanta<br />
curiosidade, não me dan<strong>do</strong> conta <strong>do</strong> tempo e quan<strong>do</strong> decidi voltar à<br />
aldeia já era noite. A certa altura senti como se algo batesse na ubá.<br />
Em princípio pensei que fosse algum galho de árvore solto e não me<br />
preocupei. Mais à frente, a ubá sofreu um forte impacto que quase
me jogou para fora. Achei que tivesse abalroa<strong>do</strong> algum tronco de<br />
árvore. Não demorou muito e a canoa chacoalhou novamente.<br />
Comecei a sentir um frio na espinha. Era uma noite muito escura,<br />
como essa, não conseguia enxergar bem, mas eu tinha certeza de<br />
que não havia jacarés. Outra sacudida, como se algo tocasse por<br />
baixo. A essa altura eu rezava a Munhã e pedia sua proteção.<br />
Continuei reman<strong>do</strong>, agora mais rápi<strong>do</strong>. Eu suava copiosamente. De<br />
repente um forte choque e a ubá partiu-se ao meio, como se fosse<br />
um fino graveto. Fui lança<strong>do</strong> a grande altura e caí na água próximo<br />
da margem. Nesse momento, eu vi um animal enorme: parecia um<br />
peixe gigantesco surgin<strong>do</strong> das profundezas. Suas mandíbulas<br />
dilaceraram facilmente parte da ubá. Caberia um homem em pé<br />
dentro de sua boca aberta. Nadei o mais rápi<strong>do</strong> possível, com me<strong>do</strong><br />
de que ele viesse atrás de mim e quan<strong>do</strong> alcancei a margem cheguei<br />
a senti-lo quase abocanhan<strong>do</strong> as minhas pernas...<br />
Havia muitas histórias como essa e certamente Igará era<br />
o campeão delas.<br />
Continuamos a navegar durante a noite, e, em um<br />
determina<strong>do</strong> momento, sentimos que algo havia bati<strong>do</strong> levemente na<br />
yaratim.<br />
- Sentiram? - perguntou Igará.<br />
- Deve ter si<strong>do</strong> algum pedaço de árvore - disse o meu pai,<br />
tentan<strong>do</strong> dissimular sua inquietação.<br />
Fosse ou não fosse eu tinha a nítida impressão de estar<br />
mais molha<strong>do</strong> dentro da canoa <strong>do</strong> que se estivesse na água.<br />
Sentimos mais um esbarrão, mas to<strong>do</strong>s nós<br />
permanecemos em silêncio durante um tempo até que Igará começou<br />
a falar novamente:<br />
- Outra vez, eu estava...<br />
- Igará... - interrompeu o meu pai.<br />
- O que foi Anuaí? Você viu alguma coisa?<br />
- Não, mas você poderia remar mais rápi<strong>do</strong> e cala<strong>do</strong>?<br />
Igará fez uma cara de quem não gostou e passou a remar<br />
ligeiro e em silêncio...
8 - CAÇAN<strong>DO</strong> CURUPIRAS<br />
Chegamos sãos e salvos, mas a tribo já estava<br />
preocupada. Ao ver a minha mãe, meu pai disse meio conforma<strong>do</strong>:<br />
- Vou passar outra noite acorda<strong>do</strong> com os choramingos.<br />
Com o passar <strong>do</strong>s dias, fui começan<strong>do</strong> a ter uma grande<br />
habilidade no manuseio <strong>do</strong> arco e flecha, pois o meu avô continuou a<br />
instruir-me. - Agnã, você está in<strong>do</strong> muito bem. Agora<br />
quero ver como consegue se sair procuran<strong>do</strong> acertar alvos em<br />
movimento - disse o velho guerreiro.<br />
Preparan<strong>do</strong> uma grande bola de palha e fazen<strong>do</strong>-a rolar<br />
pelo chão, o meu aryiá, o avô, man<strong>do</strong>u que eu a alvejasse. Não tive<br />
dificuldades em acertá-la.<br />
Começou a jogá-la cada vez mais rápi<strong>do</strong> e eu continuava<br />
acertan<strong>do</strong>. Decidiu então diminuir gradativamente o tamanho da bola<br />
a cada flechada certeira. Diante <strong>do</strong> meu sucesso ele sorria largo.<br />
- Muito bem, meu pequeno! Agora vamos fazer diferente.<br />
Você ficará de costas e eu jogo a bola. Ao meu grito você vira e tenta<br />
acertá-la.<br />
Não tive dificuldades, continuei in<strong>do</strong> bem. Alguns<br />
guerreiros passaram a assistir o meu treinamento, gritan<strong>do</strong> a cada<br />
flechada certeira.<br />
Eu estava feliz, divertia-me muito e meu avô ficava<br />
orgulhoso.<br />
- Esse mirim tem o meu sangue, meu arco e minhas<br />
flechas - disse vai<strong>do</strong>so aos homens que nos observavam.<br />
- Ele também tem a sua admirável pontaria, destemi<strong>do</strong><br />
senhor das flechas encantadas - comentou um deles.<br />
- Mas minha visão, as minhas mãos e meus braços já não<br />
me obedecem tanto - respondeu meio tristonho o aryiá.<br />
- Seus feitos, altivo combatente, jamais serão esqueci<strong>do</strong>s<br />
e os seus valorosos conhecimentos nos são de grande valia -<br />
procurava consolá-lo um outro bravo.<br />
- Seu neto - prosseguiu - será um grande e destemi<strong>do</strong><br />
guerreiro e logo honrará nossa gente e nossos antepassa<strong>do</strong>s.<br />
O ancião, olhan<strong>do</strong>-me visionariamente, respondeu:<br />
- Um bom guerreiro já nasce com o <strong>do</strong>m <strong>do</strong> combate.<br />
Sinto que ele tem qualidades e é abençoa<strong>do</strong> pelos espíritos <strong>do</strong>s<br />
nossos antepassa<strong>do</strong>s e talvez faça muito mais <strong>do</strong> que possamos
imaginar. Logo Agnã estará prepara<strong>do</strong> para qualquer confronto. É<br />
pequeno, mas a sua alma é grande e forte.<br />
Continuamos o treinamento. Dessa vez ele passou a jogar<br />
no ar as bolas de palha. Uma a uma. Acertei todas.<br />
- Fique de novo de costas, Agnã.<br />
- Já! - Tentan<strong>do</strong> testar a minha agilidade, o velho bravo<br />
jogou uma bola no ar e outra rolan<strong>do</strong> na terra.<br />
Virei-me rapidamente e lancei com sucesso uma seta na<br />
bola que estava rolan<strong>do</strong> e alvejei a outra antes que caísse no chão.<br />
Muitos gritaram. Mas o aryiá não se contentou.<br />
- Afastem-se - pediu a to<strong>do</strong>s.<br />
Pegou as minhas flechas e deixou-as sem pontas para<br />
que não viessem a ferir alguém por acidente.<br />
- Vai perder um pouco de velocidade e pontaria, mas<br />
lançada próxima <strong>do</strong> alvo ainda poderá ser certeira.<br />
Ven<strong>do</strong>u-me os olhos e disse:<br />
- Agnã, o verdadeiro flecheiro segue apenas o seu<br />
instinto, nunca apenas os seus olhos. Tente acertar a bola que vou<br />
jogar.<br />
Arremessou-a e deu um grito. Disparei incontinente.<br />
- A seta passou cinco palmos à direita - orientou-me.<br />
Fizemos nova tentativa e errei outra vez.<br />
- Pequeno Agnã, precisa confiar em seu espírito. Você<br />
tem que sentir to<strong>do</strong>s os movimentos, inclusive o meu e a trajetória<br />
da bola. Tem que lançar a seta como se ela fosse a extensão <strong>do</strong> seu<br />
próprio braço e acertar o alvo como se o tocasse com a sua própria<br />
mão. Tu<strong>do</strong> ao seu re<strong>do</strong>r tem que fazer parte <strong>do</strong> seu espírito. Só assim<br />
você saberá onde está o que queira atingir.<br />
Outra tentativa.<br />
- Dois palmos abaixo!<br />
Tentei novamente.<br />
- Um palmo acima e à direita.<br />
O meu avô aproximou-se de mim e dessa vez perguntou<br />
baixinho ao meu ouvi<strong>do</strong>:<br />
- Agnã, o que está haven<strong>do</strong>?<br />
- Há muito barulho, eu não consigo perceber bem o<br />
movimento da bola - respondi no mesmo tom de voz.<br />
- Meu neto, um <strong>do</strong>s segre<strong>do</strong>s está na mente. É necessário<br />
que se concentre. Esqueça tu<strong>do</strong> o que não faça parte <strong>do</strong> que tenha<br />
que fazer. Não deixe que nenhum outro pensamento lhe perturbe.
Faça de conta que não há mais ninguém ao seu la<strong>do</strong>. Só você, o arco,<br />
a flecha e a bola. O outro segre<strong>do</strong> é se integrar com a natureza.<br />
Deixe-se levar por ela, guia<strong>do</strong> apenas pelos senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> espírito.<br />
Novo disparo, incrivelmente certeiro. To<strong>do</strong>s gritaram.<br />
O meu pai nos observava de longe, juntamente com<br />
Guaraxaim.<br />
- Teu filho dará um excelente caça<strong>do</strong>r e guerreiro se<br />
continuar a atirar flechas assim.<br />
- Não se entusiasme tanto, o meu pai tem muitos truques<br />
que pode ter ensina<strong>do</strong> ao neto.<br />
- Se o que esse mirim faz é truque, eu não me arriscaria<br />
a desafiá-lo.<br />
- Nem será preciso, Guaraxaim. É no campo de batalha<br />
que se provam os verdadeiros bravos.<br />
- Agnã é um flecheiro nato, como o avô.<br />
- Acertar em um alvo que não lhe devolve o ataque é<br />
fácil, o difícil é continuar a acertar quan<strong>do</strong> as setas envenenadas<br />
também estão vin<strong>do</strong> em sua direção.<br />
- Qual é o problema meu amigo? Você não se orgulha <strong>do</strong><br />
seu filho?<br />
- Não, não é isso. Estou muito preocupa<strong>do</strong> com as coisas<br />
que aconteceram com ele e que fogem <strong>do</strong> nosso mo<strong>do</strong> natural de<br />
vida.<br />
- O que quer dizer, Anuaí?<br />
- Meu filho não tem as mesmas preocupações que nós<br />
tínhamos e temos, ele age como se desconhecesse o me<strong>do</strong>.<br />
- Mas isso não é bom? Já é valente por natureza, corajoso<br />
como o pai e o avô!<br />
- Ignorar o me<strong>do</strong> não o torna mais valente e nem mais<br />
corajoso. Pode simplesmente transformá-lo em um tolo.<br />
- Mas nós aprendemos desde pequenos a nunca ter<br />
me<strong>do</strong>...<br />
- Mas também é verdade que não o desconhecemos. O<br />
que nos faz ter coragem é saber que o me<strong>do</strong> existe e assim<br />
procuramos, por honra <strong>do</strong> orgulho, nunca demonstrá-lo. Agnã olha<br />
para o fogo e acha-o bonito. O meu receio é que ele aprenda tarde<br />
demais que ele também queima.<br />
- Agnã é pequeno e tem a felicidade de poder contar<br />
contigo e com o avô. Com o tempo essas questões não serão mais
motivo de sua preocupação. Por que não o leva à expedição de caça<br />
que faremos para a celebração <strong>do</strong> casamento de sua filha mais velha?<br />
- Não sei se devo...<br />
- Por que não? Ele já maneja muito bem o arco e flechas,<br />
ajudará a abater as caças e será uma oportunidade para ele treinar<br />
sozinho, sem os truques <strong>do</strong> avô.<br />
- Se ele se preocupar apenas em caçar não haverá<br />
problemas. Você sabe que ultimamente coisas misteriosas têm<br />
aconteci<strong>do</strong>.<br />
- Coisas de mirim. Leve-o à caça, <strong>do</strong> jeito que está tão<br />
empolga<strong>do</strong> no manuseio <strong>do</strong> seu pequeno arco, irá gostar muito de<br />
nos acompanhar e testar a sua pontaria. Não se aflija, deixe que eu<br />
tome conta dele. Agnã ficará bem à vontade e nem vai perceber que<br />
estarei a seu la<strong>do</strong> para protegê-lo, ajudá-lo e vigiá-lo.<br />
Meu pai ficou mais tranqüilo com o apoio <strong>do</strong> grande<br />
amigo.<br />
Dois dias após, com a bênção <strong>do</strong> pajé, partimos bem ce<strong>do</strong><br />
para a selva fechada. Guaraxaim ia à frente. Era chama<strong>do</strong> de<br />
Cachorro-<strong>do</strong>-Mato por ser astuto, inteligente e conhecer a mata como<br />
ninguém. Distinguia os animais e sabia aonde se encontravam apenas<br />
pelo o<strong>do</strong>r que exalavam ou pelos sons que emitiam.<br />
Tomamos o rumo noroeste, que já era conheci<strong>do</strong> e em<br />
cuja direção iríamos encontrar bons animais para a caça.<br />
Depois de boa caminhada, chegamos próximos de um<br />
lugar descampa<strong>do</strong>, ao la<strong>do</strong> de um rio que descia de uma montanha.<br />
Perceben<strong>do</strong> que eu estava com os olhos fixos em uma<br />
distante e estranha montanha, meu pai disse:<br />
- Nós a chamamos de montanha <strong>do</strong>s invencíveis, em<br />
lembrança <strong>do</strong> feroz ataque que sofremos quan<strong>do</strong> por lá passamos. A<br />
luta estendeu-se por vários dias, mas nossos inimigos não puderam<br />
nos derrotar e acabaram fugin<strong>do</strong>.<br />
Na parte baixa de onde nos encontrávamos, havia<br />
animais de extrema beleza, pássaros de uma plumagem lindíssima.<br />
Os homens foram dividi<strong>do</strong>s em sete grupos de quatro<br />
caça<strong>do</strong>res. Guaraxaim recomen<strong>do</strong>u muito silêncio para não<br />
espantarmos os bichos.<br />
- Andem com calma e cautela. Logo adiante o rio forma<br />
uma bacia onde os suaçus costumam beber água - disse referin<strong>do</strong>-se<br />
aos vea<strong>do</strong>s.
- Vamos encontrar ainda - continuou quase sussurran<strong>do</strong> -<br />
as tapiras e capivaras. Cuida<strong>do</strong> com algum jaguar ou jibóia que<br />
estejam à espreita para atacar a nossa caça.<br />
A cada grupo foi designada uma posição para começar o<br />
avanço, de tal forma que boa parte da área estaria cercada. Eu<br />
acompanhava o grupo lidera<strong>do</strong> por Guaraxaim.<br />
Ao sinal, avançamos com cuida<strong>do</strong>. Chegamos ao local que<br />
havia si<strong>do</strong> determina<strong>do</strong>. Ali realmente havia suaçutingas. Eram oito<br />
vea<strong>do</strong>s-brancos a bebericar e mais algumas tapiras.<br />
Quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s se posicionaram, veio a ordem para lançar<br />
os dar<strong>do</strong>s contra os bichos. Seis foram bem alveja<strong>do</strong>s e caíram, os<br />
demais conseguiram escapar. Eu não disparei uma única seta. Foi<br />
uma grande gritaria.<br />
Os animais mortos tiveram as suas patas amarradas e<br />
uma vara foi passada entre as pernas de cada bicho, permitin<strong>do</strong><br />
assim que os mesmos fossem carrega<strong>do</strong>s de tal maneira que<br />
ficassem com os pés para cima e de <strong>do</strong>rso para o chão.<br />
Quan<strong>do</strong> estava tu<strong>do</strong> pronto para retornarmos à aldeia,<br />
Guaraxaim convi<strong>do</strong>u-nos para subirmos a montanha <strong>do</strong>s invencíveis.<br />
Assim, os caça<strong>do</strong>res voltaram para a tribo com as presas<br />
e nós três seguimos para a montanha.<br />
Depois de ziguezaguearmos pela mata, chegamos à base<br />
da grande montanha. A água que formava o rio que havíamos<br />
atravessa<strong>do</strong> despencava <strong>do</strong> alto forman<strong>do</strong> uma linda paisagem.<br />
- Como pode um rio sair de dentro de uma montanha? -<br />
perguntei.<br />
- Vamos subir e eu lhe mostrarei - disse Guaraxaim.<br />
Em uma determinada altura da subida encontramos uma<br />
caverna, naturalmente iluminada. Algumas fendas permitiam que<br />
entrasse a luz <strong>do</strong> sol.<br />
- Aqui é a nascente - disse Guaraxaim, apontan<strong>do</strong> para<br />
uma espécie de lagoa.<br />
- Nesse lugar - prosseguiu - a água brota da terra e<br />
continua passan<strong>do</strong> por dentro da montanha, seguin<strong>do</strong> por um canal<br />
subterrâneo, até sair em uma pequena gruta mais adiante, de onde<br />
jorra para a mata.<br />
Aproximamo-nos para beber e, ao agachar-me, vi no<br />
reflexo da água algo como se fossem os vultos de três meninos bem<br />
atrás de mim. Virei-me rapidamente, mas não havia ninguém.<br />
- Alguma coisa, meu filho?
- Não, meu pai, pensei que tivesse visto alguém.<br />
Após saciarmos a nossa sede, saímos da caverna e<br />
começamos a dar a volta por fora da montanha em direção à gruta<br />
que ficava <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong>.<br />
Durante a caminhada, em determina<strong>do</strong> lugar, senti que<br />
algo me tocou as costas. Parei e ao olhar para trás percebi que<br />
algumas sombras estranhas se escondiam na mata.<br />
- O que foi filho? Está ven<strong>do</strong> algum bicho?<br />
- Não, pai, acho que é só impressão.<br />
- Impressão <strong>do</strong> quê?<br />
- Que tem gente nos seguin<strong>do</strong>.<br />
Ele olhou para Guaraxaim e o guia afirmou:<br />
- Agnã, se houvesse alguém que nos seguisse ou algum<br />
animal que fosse, eu saberia.<br />
Fiz de conta que havia me conforma<strong>do</strong> com a sua<br />
observação mas, na verdade, continuei cisma<strong>do</strong>.<br />
Alcançamos o ponto em que o rio voltava a surgir e logo<br />
em seguida desaguava. Ele vinha <strong>do</strong> interior de uma apoucada gruta,<br />
cujas paredes brilhavam como diamantes. Parecia uma pequena<br />
morada <strong>do</strong>s deuses.<br />
Ficamos ali por mais algum tempo, de cócoras, como<br />
costumávamos descansar. Depois de um tempo, como já era final <strong>do</strong><br />
terceiro quarto <strong>do</strong> dia, resolvemos voltar.<br />
Ao levantar-me senti que meu cabelo havia si<strong>do</strong> puxa<strong>do</strong><br />
para trás, mas nada pude ver.<br />
Na volta, Guaraxaim começou a perceber que certas<br />
coisas fora <strong>do</strong> comum estavam acontecen<strong>do</strong>: galhos de árvores se<br />
mexiam sem que houvesse vento ou animais que lhes tocassem e<br />
que alguns frutos caíam exatamente sobre nós, digo, sobre eles.<br />
- Anuaí - disse o Cachorro-<strong>do</strong>-Mato.<br />
- Sim - respondeu meu pai.<br />
- É melhor sairmos depressa, acho que os espíritos não<br />
gostaram da nossa companhia.<br />
- Vamos descer logo, então. Agnã, fique bem perto de<br />
mim.<br />
Quan<strong>do</strong> chegamos lá em baixo, Guaraxaim levantou o<br />
braço e pediu silêncio. Meu pai e eu ficamos como pedras.<br />
- Há outros homens aqui perto - disse o guia em voz<br />
rouca e baixa.<br />
- Aonde? - perguntou o meu pai.
- Trinta passos à frente.<br />
- Quantos?<br />
- Talvez mais que dez.<br />
- Amigos ou inimigos?<br />
- Não posso dizer, estamos a favor <strong>do</strong> vento, não estou<br />
conseguin<strong>do</strong> sentir o cheiro deles... espere! Acho que são nossos<br />
homens.<br />
Avançamos cuida<strong>do</strong>samente e constatamos que<br />
pertenciam mesmo a nossa tribo. Eram quinze homens, a maioria<br />
deitada no chão e sem fôlego.<br />
- O que estão fazen<strong>do</strong> aqui? - perguntou meu pai.<br />
- Grande Anuaí... - disse um deles quase sem fala - coisa<br />
terrível aconteceu...<br />
- O que foi? Foram ataca<strong>do</strong>s por preda<strong>do</strong>res ou inimigos?<br />
Diga, homem! - gritou Guaraxaim, impaciente.<br />
- Pior <strong>do</strong> que isso, com animais e inimigos nós lutaríamos<br />
até a morte, mas com demônios, o que fazer?<br />
- Quer nos dizer o que houve? - insistiu meu pai.<br />
- Quan<strong>do</strong> estávamos a caminho da taba, de repente,<br />
frutas, pedras e pedaços de árvores foram arremessa<strong>do</strong>s contra nós.<br />
Não era obra de homem e nem de macacos.<br />
- E o que era então? - perguntou o guia.<br />
- Não sabemos, mas não havia ninguém por perto.<br />
Estávamos determina<strong>do</strong>s a seguir em frente, mas foi impossível.<br />
Surgiram milhares de insetos queren<strong>do</strong> nos picar. Eram tantos que<br />
não conseguíamos nem enxergar. Mas quan<strong>do</strong> largamos a caça para<br />
fugir, eles desapareceram.<br />
Ao voltarmos a pegar as caças, novamente fomos<br />
ataca<strong>do</strong>s e então decidimos aban<strong>do</strong>ná-las ali mesmo e fugir de novo.<br />
- E o resto <strong>do</strong>s homens? - indagou o meu pai.<br />
- Não sei, talvez tenham consegui<strong>do</strong> voltar para a aldeia.<br />
- O que vamos fazer? - perguntou outro caça<strong>do</strong>r.<br />
Guaraxaim e meu pai olharam para os la<strong>do</strong>s,<br />
entreolharam-se e perguntaram ao mesmo tempo um para o outro:<br />
- Aonde está Agnã?<br />
Pronto, o mirim sumiu novamente. Gritaram o meu nome,<br />
mas não tiveram resposta.<br />
- Ele voltou para a montanha - disse o guia.<br />
- Como você sabe? Está sentin<strong>do</strong> o cheiro dele? -<br />
perguntou o meu pai.
- Não, dessa vez é puro palpite.<br />
- Vocês aguardam aqui, Guaraxaim e eu vamos procurar<br />
o meu filho.<br />
Era verdade, eles estavam certos. Encontrava-me<br />
justamente na fonte d’água, com dezenas de meninos <strong>do</strong> meu<br />
tamanho. Davam muita risada e não paravam no lugar. Entravam e<br />
saíam da furna, pulavam de árvore em árvore, corriam entre elas,<br />
entravam de novo na caverna e mergulhavam na fonte. Faziam<br />
muitas estripulias e sorriam para mim.<br />
Percebi que queriam que eu os acompanhasse até à<br />
pequena gruta. Fiz como desejavam e quan<strong>do</strong> lá cheguei a vista <strong>do</strong><br />
lugar era bem diferente. Havia um tom <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> no seu interior e as<br />
águas que de lá saíam tinham a mesma cor brilhante.<br />
Depois de um tempo brincan<strong>do</strong> nas águas que saíam da<br />
gruta, escutamos passos de mais alguém se aproximan<strong>do</strong>. No mesmo<br />
instante os meninos sumiram.<br />
- Agnã! Agnã! - chamavam-me.<br />
- Estou aqui, na gruta!<br />
- Mas o que aconteceu com você? - perguntou meu pai<br />
bastante assombra<strong>do</strong>.<br />
- O que você fez que está pinta<strong>do</strong> desse jeito? - indagou<br />
Guaraxaim também espanta<strong>do</strong>.<br />
Só então reparei que eu estava com uma cor <strong>do</strong>urada por<br />
to<strong>do</strong> o corpo, inclusive meu arco e as minhas sete flechas. O brilho da<br />
cor refletia-se nas paredes da gruta e nas águas.<br />
Fui banhar-me para tirar a tinta <strong>do</strong> corpo, mas Guaraxaim<br />
não deixou.<br />
- Agnã, coisas muito inexplicáveis ocorreram, diga para<br />
nós o que foi que aconteceu com você.<br />
Após eu ter conta<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que havia aconteci<strong>do</strong>, meu pai<br />
e o guia começaram a confabular, quase sussurran<strong>do</strong>:<br />
- Anuaí, seu filho viu os curupiras, espíritos da natureza,<br />
protetores <strong>do</strong>s animais e florestas que se apresentam sob a forma de<br />
crianças.<br />
- Foram eles que causaram os tais fatos estranhos com os<br />
homens.<br />
- Só pode ser e não querem que levemos a caça.<br />
- Sim, mas o que devemos fazer agora?<br />
- O seu filho conquistou a simpatia deles a ponto de ser<br />
pinta<strong>do</strong>. Acredito que se Agnã pedir irão nos deixar partir com a caça.
- Está bem, eu vou falar com ele.<br />
- Filho...<br />
- Eu já entendi meu pai - respondi de pronto.<br />
Falei então em voz alta:<br />
- Amiguinhos, amiguinhos, venham até aqui!<br />
Não apareceram.<br />
- Agnã - disse Guaraxaim -, talvez não queiram aparecer<br />
por causa de mim e <strong>do</strong> seu pai, mas certamente estão nos<br />
observan<strong>do</strong>. Fale normalmente que irão lhe escutar.<br />
- Amiguinhos da mata, permitam que possamos levar os<br />
animais abati<strong>do</strong>s para a nossa aldeia. O meu povo precisa da carne<br />
para sua alimentação. Prometemos que por um longo tempo não os<br />
incomodaremos, não caçan<strong>do</strong> mais nenhum outro animal nessa<br />
região.<br />
Os curupiras não se manifestaram.<br />
- Vamos voltar - disse o guia -, acho que agora não<br />
haverá mais problemas.<br />
Descemos a montanha e reencontramos o grupo que nos<br />
aguardava. Retomamos assim o caminho para a aldeia.<br />
Olhan<strong>do</strong> para trás, pela última vez, pude ver ainda as<br />
águas <strong>do</strong>uradas cain<strong>do</strong> da montanha e os curupiras saltitan<strong>do</strong> entre<br />
as árvores da mata.
9 - A PRIMEIRA INICIAÇÃO<br />
Na volta à aldeia os homens pegaram a caça que haviam<br />
aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> e prosseguimos sem maiores dificuldades.<br />
Quan<strong>do</strong> chegamos, to<strong>do</strong>s olharam para mim muito<br />
curiosos queren<strong>do</strong> saber como que eu havia me pinta<strong>do</strong>. O meu pai,<br />
antecipan<strong>do</strong>-se, apenas disse que era uma história muito comprida e<br />
que no momento ele queria descansar.<br />
Fui lavar-me no riacho. Toda a pintura saiu, mas o meu<br />
arco e flechas permaneceram <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s, por mais que eu tentasse<br />
limpá-los.<br />
Não escapei de outra pajelança, juntamente com to<strong>do</strong>s os<br />
caça<strong>do</strong>res.<br />
O tempo foi passan<strong>do</strong> e quan<strong>do</strong> eu cheguei aos sete anos,<br />
meu pai chamou-me para dar uma boa e importante notícia:<br />
- Filho, já é o momento de você passar pela primeira<br />
prova para se tornar um guerreiro valente e afama<strong>do</strong>. Tenho a<br />
certeza de que você estava ansioso por isso.<br />
Eu estava ansioso para não passar por isso. Permaneci<br />
cala<strong>do</strong>, só escutan<strong>do</strong>.<br />
- Vamos convidar to<strong>do</strong>s os familiares e amigos para a<br />
festa da colocação <strong>do</strong> seu tembetá.<br />
O tembetá era o primeiro significa<strong>do</strong>r de virilidade que<br />
antecedia o perío<strong>do</strong> da puberdade. Para a grande maioria <strong>do</strong>s mirins,<br />
era um fato extremamente importante: passariam a ser denomina<strong>do</strong>s<br />
curumins, ou seja, meninos próximos da puberdade. Mas, isso não<br />
me animava o suficiente para ter que me submeter ao ritual.<br />
Próximo ao dia marca<strong>do</strong>, já confina<strong>do</strong> na oca de meus<br />
pais, recebi a visita de muita gente. To<strong>do</strong>s me encorajavam a<br />
enfrentar o meu destino e faziam votos para que eu me tornasse um<br />
grande guerreiro. Estava conforma<strong>do</strong>, mas não o suficientemente<br />
encoraja<strong>do</strong>.<br />
A única visita que me alegrou mais foi a de Uiramirim.<br />
- Na sua celebração, eu cantarei em homenagem aos seus<br />
antepassa<strong>do</strong>s e às grandes lutas de seu avô e <strong>do</strong> seu pai, e cantarei<br />
também às vitórias destinadas a você - disse animada.<br />
- O seu canto será a consagração <strong>do</strong> meu sucesso -<br />
respondi, procuran<strong>do</strong> não deixar que ela tivesse a impressão de que<br />
eu estava com me<strong>do</strong>.
O grande dia chegou depois de uma noite inteira em que<br />
passei acorda<strong>do</strong> de preocupação e temor.<br />
A tribo toda estava reunida, os representantes de outras<br />
aldeias se faziam presentes e usavam os seus mais belos ornamentos<br />
de plumas.<br />
Fui to<strong>do</strong> pinta<strong>do</strong> de preto e vermelho pela minha mãe. A<br />
tinta preta vinha <strong>do</strong> suco de jenipapo e a vermelha <strong>do</strong> artio que<br />
envolve as sementes <strong>do</strong> urucum.<br />
- Tragam o mirim! - bra<strong>do</strong>u um <strong>do</strong>s índios pertencente ao<br />
conselho tribal, agora reuni<strong>do</strong>.<br />
Ah! Se eu pudesse voltar para a barriga da minha mãe...<br />
Um <strong>do</strong>s meus tios, que para aquela solenidade seria como<br />
um padrinho, foi até a minha oca, acompanha<strong>do</strong> de duas mulheres.<br />
Começamos a correr por um corre<strong>do</strong>r humano da palhoça até o<br />
centro da taba e pelo caminho to<strong>do</strong>s procuravam me incentivar.<br />
Fiquei diante <strong>do</strong> carbé, o conselho tribal. Um <strong>do</strong>s bravos<br />
se levantou e passou a fazer um discurso sobre o passa<strong>do</strong> heróico da<br />
minha família, que por mim teria continuidade.<br />
Um outro membro <strong>do</strong> conselho tribal ficou encarrega<strong>do</strong> da<br />
operação. Ele pegou uma cuia que continha três pequeninos e<br />
pontiagu<strong>do</strong>s chifres de cervo imersos em uma substância mágica e<br />
anti-séptica, preparada pelo feiticeiro, e se aproximou de mim. Eu<br />
olhava para ele terrivelmente preocupa<strong>do</strong> e nervoso, porém, ten<strong>do</strong><br />
que demonstrar absoluta tranqüilidade. Coisa praticamente<br />
impossível.<br />
Por fim, ele puxou o meu lábio inferior e sem maiores<br />
rodeios perfurou-o com o chifrezinho, deixan<strong>do</strong>-o no orifício.<br />
As reações de um garoto, nessas cerimônias, eram<br />
cuida<strong>do</strong>samente estudadas, principalmente as minhas, por eu ser<br />
filho de um chefe guerreiro. Não era admissível um grito de <strong>do</strong>r ou<br />
uma única lágrima sequer. Significaria que o curumim era medroso e<br />
que não serviria como um valente guerreiro.<br />
Como a minha nação vivia em constantes conflitos, to<strong>do</strong>s<br />
os meninos eram prepara<strong>do</strong>s para a guerra desde pequenos e assim<br />
os ritos de passagem serviam mais como uma prévia análise de como<br />
a criança reagiria se fosse submetida ao sofrimento físico, já que os<br />
homens, nos combates de verdade, mesmo feri<strong>do</strong>s com gravidade,<br />
deveriam lutar continuamente. Pelo menos era o que se esperava de<br />
um grande bravo.
A maioria <strong>do</strong>s curumins suportava os padecimentos com<br />
incrível serenidade, mas não era o meu caso.<br />
Mantive os dentes cerra<strong>do</strong>s tentan<strong>do</strong> conter a <strong>do</strong>r e a<br />
vontade de chorar, mas, <strong>do</strong>s meus olhos fecha<strong>do</strong>s, algumas gotas de<br />
lágrimas conseguiram rolar pelo rosto para se misturar com o<br />
abundante suor e com o sangue que saía pelo lábio trespassa<strong>do</strong>.<br />
Não gritei, mas as lágrimas denunciavam o quanto era<br />
difícil para mim resistir àquele padecimento.<br />
Embora descontente, o índio deu continuidade ao ritual.<br />
Pegou outro chifrezinho e o introduziu na ponta da minha orelha<br />
direita e mais um na orelha esquerda.<br />
Em respeito ao meu pai e avô, os integrantes <strong>do</strong> conselho<br />
abstiveram-se de fazer maiores observações sobre as lágrimas<br />
derramadas. Na verdade, isso nem precisaria ser feito. Os<br />
comentários posteriores feitos em surdina se encarregariam de me<br />
impingir aquela pecha. De qualquer forma, as lágrimas eram um sinal<br />
de mau agouro. Porém, a cerimônia prosseguiu normalmente<br />
terminan<strong>do</strong> em uma grande festança com direito a muito cauim.<br />
O meu avô, que já não enxergava bem, não me viu<br />
choran<strong>do</strong> e, como no momento ninguém comentou coisa alguma,<br />
posteriormente ele não acreditou que eu houvesse de fato chora<strong>do</strong>.<br />
Mas, em compensação, o meu pai estava um tanto desola<strong>do</strong>;<br />
entretanto, em nenhum instante me repreendeu ou fez qualquer<br />
comentário a respeito.<br />
Dois dias se passaram e as incisões não infeccionaram.<br />
Marcaram então para o dia seguinte a colocação <strong>do</strong> meu tembetá,<br />
que consistia em um pequeno rolete de madeira que era coloca<strong>do</strong> no<br />
orifício feito no lábio inferior e bem menor <strong>do</strong> que o botoque <strong>do</strong>s<br />
adultos, que o jovem recebia ao atingir a idade de guerreiro.<br />
No dia designa<strong>do</strong>, to<strong>do</strong> o cerimonial se repetiu<br />
novamente, mas agora o meu padecimento seria bem menor.<br />
No furo de minhas orelhas foram colocadas penas de<br />
gavião. No meu lábio inferior colocou-se o tembetá, que deveria ser<br />
troca<strong>do</strong> de tempos em tempos, com um diâmetro cada vez maior<br />
para que o orifício fosse se alargan<strong>do</strong> e, no momento adequa<strong>do</strong>, eu<br />
recebesse o botoque. Finalmente fui submeti<strong>do</strong> à tonsura, com a<br />
raspagem <strong>do</strong> meu cabelo da testa ao alto da cabeça.<br />
Passaram-se alguns anos.
10 - TESTEMUNHA DE GUERRA<br />
Um dia o carbé se reuniu com grande pompa. Era o<br />
conselho tribal composto pelos principais muruxauas, os chefes<br />
temporais de cada família, função exercida, normalmente, por<br />
aqueles guerreiros que mais se destacavam nos combates.<br />
As decisões <strong>do</strong> chefe familiar eram respeitadas, mas não<br />
incontestáveis. Indiscutíveis eram apenas as resoluções <strong>do</strong> carbé.<br />
Depois de <strong>do</strong>is dias, o conselho anunciou suas novas<br />
deliberações. Deveríamos nos preparar para prosseguirmos na<br />
marcha para o sul.<br />
A notícia causou um enorme alari<strong>do</strong> e não era para<br />
menos, pois não significaria simplesmente uma mudança de local. As<br />
nossas aldeias estavam cercadas de tapuia por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s a uma<br />
distância razoável, mas perigosa.<br />
Os tapuia, em nossa época, representavam uma geração<br />
de índios ferozes, repugnantes, bestiais, que andavam como um<br />
ban<strong>do</strong> de animais, sem aldeias ordenadas e sem plantações para<br />
manterem-se fixos em um lugar por muito tempo. Por essa razão<br />
achavam mais fácil furtar os nossos alimentos. Eram considera<strong>do</strong>s<br />
nossos inimigos naturais.<br />
Os embates com eles eram freqüentes, mas o<br />
deslocamento de toda a nossa tribo significaria um inevitável<br />
confronto de grandes proporções.<br />
Foi decidi<strong>do</strong> que uma expedição de guerreiros iria à<br />
frente, abrin<strong>do</strong> o caminho para o resto da tribo. Deveriam enfrentar<br />
os tapuia e manter posição para o avanço seguro de nossa gente.<br />
Seria o momento de maior glória para os combatentes: a<br />
oportunidade para demonstrar, no campo de batalha, sua bravura,<br />
como também a chance de honrar os antepassa<strong>do</strong>s mortos em<br />
confrontos anteriores.<br />
Iniciaram-se os aprontamentos para a expedição. To<strong>do</strong>s<br />
os homens guerreiros foram convoca<strong>do</strong>s; apenas os curumins, como<br />
eu, estariam dispensa<strong>do</strong>s da guerra, mas deveriam colaborar de<br />
alguma forma nos preparativos.<br />
Os pajés de nossas aldeias reuniram-se para abençoar os<br />
guerreiros e as armas de guerra.<br />
- To<strong>do</strong>s devem prestar atenção em seus sonhos - disse<br />
Marapuama, agitan<strong>do</strong> o maracá que um dia havia me pertenci<strong>do</strong>.
- Tenham sonhos de vitória e de aprisionamento <strong>do</strong>s<br />
nossos inimigos, para que amanhã vocês possam partir confiantes de<br />
que vencerão e farão muitos prisioneiros, vingan<strong>do</strong> a morte de<br />
nossos antepassa<strong>do</strong>s.<br />
Antes de <strong>do</strong>rmir to<strong>do</strong>s dançaram ao som <strong>do</strong> boré, uma<br />
espécie de trombeta, e <strong>do</strong>s maracás, toman<strong>do</strong> muito cauim.<br />
No dia seguinte reuniram-se novamente, comentan<strong>do</strong> o<br />
que haviam sonha<strong>do</strong>. Os pajés, bem como os muruxauas, entre os<br />
quais o meu pai, concluíram que os sonhos narra<strong>do</strong>s eram um bom<br />
presságio e que os homens poderiam se entregar à luta, sem nenhum<br />
temor.<br />
Bastaria um único sonho ruim, como a derrota ou a prisão<br />
de um <strong>do</strong>s nossos homens, para que a empreitada fosse adiada para<br />
um momento mais favorável.<br />
Partiram três mil homens com pinturas de guerra. Outros<br />
tantos permaneceram para proteger as aldeias. Parte <strong>do</strong>s bravos foi<br />
rio abaixo, navegan<strong>do</strong> nas ubás, e os demais seguiram por terra.<br />
Face ao porte avantaja<strong>do</strong> <strong>do</strong>s nossos homens e a nossa<br />
tradição guerreira, os tapuia sabiam que qualquer combate seria<br />
terrível e aqueles que caíssem nossos prisioneiros seriam devora<strong>do</strong>s<br />
ou manti<strong>do</strong>s vivos como escravos, fossem homens, mulheres ou<br />
crianças. Mesmo assim o final de to<strong>do</strong>s eles acabaria sen<strong>do</strong> o prato<br />
principal de uma festejada refeição.<br />
Dois dias se passaram. Foi quan<strong>do</strong> chegaram as primeiras<br />
notícias da expedição. O povo se reuniu na ocara, a praça da aldeia,<br />
para ouvir o mensageiro:<br />
- Após um dia de caminhada, os nossos bravos se<br />
defrontaram com os inimigos. A primeira batalha deu-se no rio e logo<br />
os tapuia foram obriga<strong>do</strong>s a recolher as suas canoas, face à enorme<br />
habilidade de nossos destemi<strong>do</strong>s homens no manejo <strong>do</strong>s arcos e<br />
flechas sobre as ubás.<br />
Seguiu-se a batalha por terra - prosseguiu no relato - sob<br />
setas envenenadas de ambos os la<strong>do</strong>s. Por fim veio a luta corpo-acorpo,<br />
com esmaga<strong>do</strong>ra vitória de nossa gente.<br />
O povo gritava de alegria.<br />
- Os inimigos recuaram e posteriormente tentaram o<br />
contra-ataque, mas os nossos valorosos já haviam solidifica<strong>do</strong> as<br />
posições conquistadas rechaçan<strong>do</strong>-os com facilidade.<br />
- Foram feitos muitos prisioneiros - continuou - e os que<br />
fugiram dispersaram-se, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> armas e mantimentos.
Tivemos alguns feri<strong>do</strong>s, mas apenas <strong>do</strong>ze homens morreram com<br />
grande honra contra mais de oitenta tapuias.<br />
To<strong>do</strong>s bradavam de felicidade, louvan<strong>do</strong> as vitórias.<br />
Imediatamente as mulheres começaram a preparar o cauim para<br />
comemorar a glória <strong>do</strong>s altivos guerreiros.<br />
No dia seguinte foram eles recebi<strong>do</strong>s com muita festa e<br />
cauim. O meu pai estava levemente feri<strong>do</strong> nos braços, mas, segun<strong>do</strong><br />
ele, foi de tantos golpes desferi<strong>do</strong>s nos inimigos, alardean<strong>do</strong> ainda<br />
que havia feito três prisioneiros sozinho.<br />
Os bravos voltaram com alguns de nossos homens feri<strong>do</strong>s<br />
e que logo foram trata<strong>do</strong>s. Conduziam também <strong>do</strong>ze prisioneiros.<br />
Outros sessenta inimigos captura<strong>do</strong>s permaneceram nas novas terras<br />
conquistadas, sob a guarda de parte de nossos combatentes.<br />
Os tapuia estavam amarra<strong>do</strong>s. Tinham o cabelo compri<strong>do</strong>,<br />
apresentavam um feio aspecto e estavam com um o<strong>do</strong>r insuportável.<br />
Foram exibi<strong>do</strong>s pelas aldeias como um troféu de guerra e os<br />
familiares <strong>do</strong>s bravos, que haviam morri<strong>do</strong> na batalha, precipitavamse<br />
sobre os presos, morden<strong>do</strong>-lhes parte <strong>do</strong> corpo, baten<strong>do</strong> neles e<br />
insultan<strong>do</strong>-os, como a vingar-se pela perda <strong>do</strong>s entes queri<strong>do</strong>s.<br />
Foi construída uma choça especialmente para<br />
permanecerem aprisiona<strong>do</strong>s.<br />
O meu pai conduziu-me até eles e, apontan<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s<br />
prisioneiros, disse:<br />
- Esse foi um <strong>do</strong>s que eu mesmo capturei. Será agora o<br />
seu prisioneiro.<br />
Os desventura<strong>do</strong>s receberam colares e durante alguns<br />
dias foram muito bem cuida<strong>do</strong>s ten<strong>do</strong> a melhor alimentação. Eu era<br />
responsável pelo homem que havia si<strong>do</strong> captura<strong>do</strong> pelo meu pai e por<br />
isso era a minha obrigação cuidar dele para que nada lhe faltasse. Os<br />
outros também tinham pessoas específicas para atendê-los em suas<br />
necessidades, normalmente os parentes <strong>do</strong>s nossos bravos que<br />
morreram em combate.<br />
Mas não tar<strong>do</strong>u muito para que a sorte deles fosse<br />
definitivamente selada. Um dia eles tiveram o cabelo raspa<strong>do</strong>, foram<br />
lava<strong>do</strong>s, tingi<strong>do</strong>s de jenipapo e receberam a<strong>do</strong>rnos de plumas.<br />
Cada um foi amarra<strong>do</strong> com a muçurana, uma corda<br />
especial feita apenas pelos muruxauas, e foram coloca<strong>do</strong>s em fila.<br />
Um guerreiro ostentava o seu tacape, um pedaço de pau<br />
que tinha, em uma de suas extremidades, uma cabeça mais ou<br />
menos elipsóide e achatada que se afinava até a ponta. Na outra
extremidade, a oito palmos, ficava a empunhadura. O tacape recebia<br />
ainda enfeites de plumas lindamente tecidas.<br />
Os prisioneiros receberam a sentença de morte. Alguns,<br />
preven<strong>do</strong> o destino que os aguardava, tentavam inutilmente escapar<br />
da muçurana, segura pelas pontas por outros guerreiros. Os demais<br />
aguardavam serenos e altivos o trágico final.<br />
O guerreiro, que portava o tacape, desferiu um golpe fatal<br />
na cabeça <strong>do</strong> primeiro cativo, que caiu imediatamente. Assim,<br />
sucessivamente, os prisioneiros iam sen<strong>do</strong> mortos sob a gritaria<br />
frenética e extasiada de um povo embriaga<strong>do</strong> pelo cauim. Quan<strong>do</strong><br />
chegou a vez <strong>do</strong> tapuia de quem eu havia cuida<strong>do</strong>, pedi ao meu pai:<br />
- Se aquele homem é meu prisioneiro, deixe-o vivo para<br />
que possa me servir.<br />
- Agnã, temos mais cativos nas terras que conquistamos.<br />
Ao chegarmos lá eu lhe darei outro, mas esses <strong>do</strong>ze representam os<br />
nossos <strong>do</strong>ze bravos que foram mortos e devem ser executa<strong>do</strong>s. Só<br />
assim os espíritos de nossos valentes encontrarão paz e não ficarão<br />
vagan<strong>do</strong> pelas matas.<br />
- Ele não poderia se tornar escravo de uma das viúvas<br />
para pagar em vida o que fez?<br />
- Meu filho - disse pacientemente o meu pai, porém com<br />
a sua habitual firmeza - o costume deve ser preserva<strong>do</strong>. As viúvas<br />
não poderiam contrair novas núpcias sem que seus mari<strong>do</strong>s fossem<br />
vinga<strong>do</strong>s.<br />
Sem poder contestar mais <strong>do</strong> que já havia feito, guardeime<br />
em silêncio até o final das execuções.<br />
Depois de mortos, os corpos <strong>do</strong>s presos foram<br />
esquarteja<strong>do</strong>s, suas vísceras retiradas e devoradas imediatamente<br />
pelos velhos e crianças e os quartos assa<strong>do</strong>s ao moquém,<br />
especialmente para os guerreiros. A cena era demasiadamente<br />
repulsiva para mim.<br />
Sempre os membros da minha tribo comentavam sobre<br />
esse tipo de antropofagia, mas eu nunca, até então, havia<br />
presencia<strong>do</strong> algo semelhante.<br />
Minha mãe, perceben<strong>do</strong> que eu me mantinha afasta<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s demais, se aproximou e disse:<br />
- Agnã, venha juntar-se a nós, eu reservei a sua parte.<br />
- Mãe, você sabe que eu não gosto de carne... - repliquei.<br />
Pouco depois que ela voltou para a ocara, o meu pai,<br />
contraria<strong>do</strong>, veio ao meu encontro e disse:
- Filho, to<strong>do</strong>s estão perguntan<strong>do</strong> por você. Afinal, é a<br />
primeira vez que você tem a felicidade de participar de uma refeição<br />
dessa importância, comen<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s heróis <strong>do</strong> nosso povo e<br />
festejan<strong>do</strong> uma grande vitória.<br />
- Pai, respeitosamente dispenso a oportunidade.<br />
- Agnã, hoje é um dia muito especial. Há muito tempo<br />
não tínhamos a glória de fazer prisioneiros.<br />
Nesse momento a minha mãe retornou e me disse:<br />
- Já que você não quis ir até lá, eu lhe trouxe algo de que<br />
vai gostar. Experimente, está delicioso!<br />
Assim que ela me mostrou o que havia trazi<strong>do</strong>, não pude<br />
agüentar. Virei o rosto e comecei a sofrer de um forte mal-estar.<br />
Calmamente o meu pai me encorajou a pôr para fora o<br />
que eu nem havia comi<strong>do</strong>. Depois tentou explicar o significa<strong>do</strong><br />
daquela refeição:<br />
- Agnã, esse nosso ritual tem um senti<strong>do</strong> to<strong>do</strong> especial.<br />
Não somente vingamos a morte <strong>do</strong>s nossos homens, mas mostramos<br />
aos inimigos qual o destino que lhes está reserva<strong>do</strong>, caso nos<br />
enfrentem e caiam prisioneiros. Também é uma forma de nos<br />
apoderarmos de suas forças.<br />
- Pai, quero honrar a nossa gente, mas não consigo<br />
comer qualquer tipo de carne, principalmente quan<strong>do</strong> é de gente,<br />
mesmo sen<strong>do</strong> de tapuia.<br />
- Filho, agora você pode não querer, mas quan<strong>do</strong> se<br />
tornar um guerreiro terá que aceitar isso como um fato normal e de<br />
grande honra, caso contrário envergonhará a mim, o teu avô e a<br />
to<strong>do</strong>s os nossos antecessores.<br />
O meu pai voltou para a ocara muito contrafeito.<br />
Encontrou a minha mãe e disse:<br />
- Agnã tem um comportamento muito diferente das<br />
outras crianças. Tenho receio de que o mau presságio de sua<br />
iniciação venha a se confirmar no futuro e ele nos decepcione.<br />
- Deixe-o esquivar-se, é apenas a primeira vez que ele<br />
presencia uma cerimônia como essa. Com o tempo ele se acostuma -<br />
disse a minha mãe tentan<strong>do</strong> consolá-lo.<br />
Cada vez mais me sentia um estranho entre os meus<br />
iguais e, lá da mata, em plena solidão, eu escutava os gritos<br />
frenéticos <strong>do</strong> povo.
11 - A CARAVANA<br />
Os nossos guerreiros continuaram a marchar avançan<strong>do</strong><br />
para o sul, procuran<strong>do</strong> melhores terras para a agricultura e a caça.<br />
Pelo caminho iam repelin<strong>do</strong>, com facilidade, to<strong>do</strong>s os tapuia,<br />
continuan<strong>do</strong> a fazer mais prisioneiros. A campanha durou<br />
vários dias até que novos mensageiros retornaram à tribo trazen<strong>do</strong><br />
boas novas: - Encontramos um bom lugar para a nossa<br />
gente - disse um deles ao povo reuni<strong>do</strong> - com muitos frutos, bons<br />
animais de caça e caudalosos rios. Os líderes da expedição aguardam<br />
<strong>do</strong>s pajés a homologação da mudança.<br />
Os sacer<strong>do</strong>tes reuniram-se e concluíram que os espíritos<br />
eram favoráveis à viagem.<br />
Não se perdeu mais tempo. Logo to<strong>do</strong>s trataram <strong>do</strong>s<br />
preparativos para a grande caminhada. Teríamos que ser ligeiros,<br />
pois aproximava-se a época das abundantes chuvas e grandes<br />
enchentes.<br />
Toda a tribo reunida formou uma caravana de cerca de<br />
dezessete mil índios. Algumas centenas ainda permaneceram nas<br />
antigas terras.<br />
Não tínhamos muitas bagagens, levávamos apenas o<br />
essencial. Basicamente os alimentos eram colhi<strong>do</strong>s pelo caminho,<br />
com certa fartura. Outros prisioneiros, que haviam si<strong>do</strong> leva<strong>do</strong>s à<br />
aldeia, agora na condição de escravos, carregavam os nossos<br />
pertences mais pesa<strong>do</strong>s.<br />
No meio <strong>do</strong> deslocamento uma das crianças acabou por<br />
perder-se na mata. Dessa vez não havia si<strong>do</strong> eu. Aliás, eu nunca me<br />
perdia, os adultos é que me perdiam.<br />
Os pais <strong>do</strong> mirim ficaram desespera<strong>do</strong>s. Passa<strong>do</strong> quase<br />
um dia inteiro o garoto não fora acha<strong>do</strong> e as pessoas começaram a<br />
acreditar que possivelmente teria si<strong>do</strong> ataca<strong>do</strong> por alguma fera ou<br />
rapta<strong>do</strong> pelos tapuia remanescentes.<br />
Guaraxaim foi chama<strong>do</strong> para ajudar na busca <strong>do</strong> mirim,<br />
mas, mesmo com sua extraordinária experiência, não pôde ser muito<br />
útil. Já havíamos anda<strong>do</strong> por um longo trecho até que se notou a<br />
falta <strong>do</strong> menino.<br />
O pajé Marapuama consultou os espíritos e disse aos pais<br />
da criança que apenas no dia seguinte poderia manifestar-se com<br />
mais clareza. Até lá...
Eu conhecia o garoto, era um <strong>do</strong>s proibi<strong>do</strong>s de brincar<br />
comigo. Afinal de contas as minhas companhias (cobras, onças etc.)<br />
não eram muito recomendáveis para a segurança dele. Mas algo me<br />
dizia que ele estava vivo.<br />
Procurei Guaraxaim.<br />
- Não resta mais nada a fazer por hoje - dizia ele aos<br />
angustia<strong>do</strong>s pais. - Está anoitecen<strong>do</strong>, teremos que aguardar até<br />
amanhã.<br />
- Mas ele certamente poderá morrer nessas matas<br />
desconhecidas antes <strong>do</strong> amanhecer - disse o pai inconforma<strong>do</strong>.<br />
Ao ver-me, Cachorro-<strong>do</strong>-Mato procurou consolar o casal:<br />
- Procurem acalmar-se, é possível que esteja mais<br />
próximo <strong>do</strong> que pensamos. Nessa mata fechada quarenta passos<br />
podem parecer uma eternidade. Não se afastem <strong>do</strong> nosso grupo.<br />
Mesmo apesar <strong>do</strong>s riscos voltarei pelo caminho que seguimos e se<br />
Munhã nos ajudar quem sabe eu o encontre brincan<strong>do</strong> com os<br />
curupiras em algum lugar seguro. - Assim que se viu livre, Guaraxaim<br />
puxou-me para longe e perguntou:<br />
- Agnã, você por acaso sabe aonde ele está?<br />
- Não, exatamente, mas sinto que ele está vivo.<br />
- Você não consegue descobrir em que direção?<br />
- É meio estranho, mas me parece que ele está a lesse e<br />
sob aflição.<br />
- Vou chamar alguns homens para nos acompanhar.<br />
- Mas quem iria acreditar em mim?<br />
- Eu acredito! - afirmou o guia com uma convicção maior<br />
<strong>do</strong> que a minha própria.<br />
A minha mãe foi devidamente avisada que eu estaria com<br />
Guaraxaim. Ficou um pouco preocupada mas deixou que eu partisse.<br />
Seguimos na direção que eu havia recomenda<strong>do</strong>,<br />
acompanha<strong>do</strong>s de mais cinco guerreiros meio contrafeitos por uma<br />
aventura sem a aprovação <strong>do</strong> pajé.<br />
A certa altura, Cachorro-<strong>do</strong>-Mato perguntou-me:<br />
- Agnã, tem certeza que é por esse caminho?<br />
- Sim, é o que sinto.<br />
- Mas logo à frente há um pântano ainda não explora<strong>do</strong>.<br />
- Não estamos longe.<br />
Os outros homens estavam começan<strong>do</strong> a ficar<br />
desconfia<strong>do</strong>s. Achavam que Guaraxaim estava louco em seguir um<br />
curumim recentemente de tembetá.
Chegamos perto <strong>do</strong> pântano. Aparentemente não havia<br />
um caminho seguro para continuar. O lugar estava infesta<strong>do</strong> de<br />
jacarés-açus, enormes répteis de mais de cinco metros de<br />
comprimento.<br />
- Honorável Guaraxaim, não pode estar levan<strong>do</strong> a sério<br />
esse curumim - disse um <strong>do</strong>s guerreiros.<br />
- Confio nele! - afirmou com veemência.<br />
- Mas como pode, não há como prosseguir! Está<br />
escurecen<strong>do</strong> e atravessar um pântano ainda desconheci<strong>do</strong> é muito<br />
arrisca<strong>do</strong>. Se o mirim veio para essas bandas já está morto.<br />
- Ele ainda está vivo! - afirmei.<br />
- Como você tem tanta certeza disso?<br />
- Agnã é amigo <strong>do</strong>s curupiras - respondeu por mim<br />
Guaraxaim.<br />
Os homens ensaiaram um sorriso de deboche.<br />
- Voltem, então. Não os quero conosco. Mas voltem como<br />
mulheres! - esbravejou Guaraxaim.<br />
- Não somos mulheres, você bem nos conhece, só<br />
estamos sen<strong>do</strong> realistas. Se fosse história de curumim o pajé já teria<br />
se manifesta<strong>do</strong>.<br />
- Muito bem, por mim não precisam mais nos<br />
acompanhar, voltem para os outros.<br />
Os homens ficaram um tanto sem jeito, mas tomaram o<br />
caminho de volta.<br />
- Agora, Agnã, estamos sozinhos. O que faremos? Por<br />
esse caminho não é possível continuar.<br />
Nessa hora vi um outro homem, extremamente diferente.<br />
Tinha pêlos compri<strong>do</strong>s no rosto, uma grande barba grisalha, como o<br />
pouco cabelo que possuía. Usava uma toga que lhe cobria os pés,<br />
com um capuz recolhi<strong>do</strong> às costas.<br />
Mesmo distante, pude ver a cor de seus olhos. Eram<br />
azuis, brilhantes e claros como o céu <strong>do</strong> meio-dia.<br />
- Veja Guaraxaim! - apontei para aquele homem no meio<br />
<strong>do</strong> pântano.<br />
- Ver o quê?<br />
- O homem de branco e rosto pelu<strong>do</strong>.<br />
- Não vejo ninguém.<br />
- Mas está nos chaman<strong>do</strong>!
Antes que Guaraxaim pudesse entender alguma coisa,<br />
segui em frente e reparei que, sob as águas <strong>do</strong> pântano, havia pedras<br />
a menos de um palmo da superfície que permitiam a passagem<br />
embora a travessia exigisse de nós saltos precisos sobre as pedras.<br />
O Cachorro-<strong>do</strong>-Mato, um tanto perplexo, foi atrás de<br />
mim, pulan<strong>do</strong> sobre as mesmas pedras submersas em que eu<br />
lepidamente saltitava.<br />
Já no meio <strong>do</strong> pântano, os jacarés-açus, com suas<br />
mandíbulas enormes, começaram a se aproximar.<br />
- Cuida<strong>do</strong>, Agnã! - gritou Guaraxaim.<br />
- Não se preocupe, siga-me. O velho está a mostrar-me o<br />
caminho.<br />
Continuamos e os jacarés cada vez mais perto de nós.<br />
Tive que ser mais ligeiro, não por causa <strong>do</strong>s ferozes répteis, mas se<br />
eu não saltasse mais rapidamente de uma pedra para outra, seria<br />
atropela<strong>do</strong> pelo guerreiro fareja<strong>do</strong>r.<br />
Logo atravessamos to<strong>do</strong> o pântano.<br />
Anoitecera de vez, mas fazia uma linda noite estrelada.<br />
O meu avô dizia que um <strong>do</strong>s nossos ancestrais havia<br />
caí<strong>do</strong> <strong>do</strong> céu em plena noite estrelada, trazen<strong>do</strong> ensinamentos que<br />
proporcionaram grande saber a nossa gente. Após um perío<strong>do</strong> de<br />
plenitude da luz <strong>do</strong> progresso, ele partiu. Para os seus segui<strong>do</strong>res<br />
afirmou que um dia iria voltar, e, enquanto isso, permaneceria no<br />
firmamento zelan<strong>do</strong> por nós.<br />
- Agnã, por onde seguiremos agora? - perguntou<br />
Guaraxaim interrompen<strong>do</strong> o meu devaneio.<br />
Ven<strong>do</strong> o ancião caminhan<strong>do</strong> pela mata a dentro respondi:<br />
- Por ali.<br />
- Então, vamos rápi<strong>do</strong>, mas cuida<strong>do</strong>, feras perigosas<br />
saem à noite para caçar, além <strong>do</strong> que podemos estar em território<br />
inimigo.<br />
Seguimos por um bom tempo. A uma certa altura o velho<br />
parou, olhou para mim e fez um gesto de silêncio.<br />
- Guaraxaim - falei quase sussurran<strong>do</strong> - devemos estar<br />
bem perto...<br />
- Quieto! - disse ele preocupa<strong>do</strong>. - Escute... está ouvin<strong>do</strong>?<br />
Está sentin<strong>do</strong> o cheiro?<br />
- Sim, estou.<br />
- São os tapuia.<br />
- Como sabe?
- Eles não tomam banho, como nós fazemos to<strong>do</strong>s os<br />
dias, e ficam com um o<strong>do</strong>r peculiar, difícil de suportar.<br />
- O que devem estar fazen<strong>do</strong>?<br />
- Parece que preparan<strong>do</strong> alguma festa.<br />
Aproximamo-nos mais um pouco e com muito cuida<strong>do</strong><br />
pudemos ver inúmeros tapuia gritan<strong>do</strong> e dançan<strong>do</strong>.<br />
- São muitos - disse Guaraxaim.<br />
- Mas o que estão fazen<strong>do</strong>?<br />
- Preparan<strong>do</strong> a comida.<br />
- Ah! Estou ven<strong>do</strong> o mirim amarra<strong>do</strong> em um tronco.<br />
- Ele é a comida.<br />
- Temos que tirá-lo de lá.<br />
- Agnã, você está deliran<strong>do</strong>!<br />
- Mas vão matá-lo em breve.<br />
- Sim, mas os nossos guerreiros estão longe, não haveria<br />
tempo para chamá-los e o que faria um único bravo com seu tacape e<br />
uma criança com um pequeno arco e sete flechas contra centenas de<br />
bárbaros?<br />
O velho apareceu novamente, fez um gesto mostran<strong>do</strong><br />
que eu deveria lançar uma flecha na direção da grande fogueira<br />
formada pelos tapuia, bem no centro da aldeia.<br />
- Guaraxaim, eu vou atirar uma seta e você livra o<br />
menino das cordas.<br />
- Você está mesmo desvaira<strong>do</strong>. Não sei como pude me<br />
deixar conduzir por um curumim. Os guerreiros estavam certos.<br />
- Mas é o que o aba morotinga está pedin<strong>do</strong> - repliquei,<br />
referin<strong>do</strong>-me ao ancião.<br />
- Agnã, nós seremos mortos, não compreende? Isso não é<br />
nenhuma visão, é a realidade...<br />
Antes que ele pudesse continuar, saí resoluto e fiz<br />
exatamente o que o velho me havia ordena<strong>do</strong>. Lancei uma flecha<br />
<strong>do</strong>urada bem no meio da fogueira.<br />
Houve uma enorme explosão. As madeiras<br />
incandescentes <strong>do</strong> fogaréu foram jogadas a grande distância,<br />
assustan<strong>do</strong> os tapuia. Corri para o centro da aldeia gritan<strong>do</strong> como um<br />
destemi<strong>do</strong> guerreiro. Vi os curupiras em toda a parte, emitin<strong>do</strong><br />
varia<strong>do</strong>s sons idênticos aos das feras, e os galhos das árvores<br />
agitan<strong>do</strong>-se intensamente como se houvesse uma enorme ventania.<br />
Os inimigos estavam desorienta<strong>do</strong>s. As cinzas lançadas ao<br />
ar pelo estouro não lhes permitia enxergar direito e assim corriam em
todas as direções sem saber para onde ir, tromban<strong>do</strong> uns contra os<br />
outros, gritan<strong>do</strong>, aterroriza<strong>do</strong>s.<br />
- Agnã! - gritou o meu amigo. - Estou com o mirim,<br />
venha por aqui, vamos embora. Depressa!<br />
Em meio à confusão, Guaraxaim conseguira libertar o<br />
pequeno menino. Apesar de maltrata<strong>do</strong> estava em condições de<br />
caminhar. Juntos procuramos fugir rapidamente.<br />
- Agnã, você ainda vê o aba morotinga?<br />
- Não.<br />
- Então teremos que voltar confian<strong>do</strong> apenas em meu<br />
senti<strong>do</strong> de direção.<br />
Chegamos até o pântano e Guaraxaim, agora carregan<strong>do</strong><br />
no colo o mirim, conseguiu encontrar o caminho das pedras<br />
submersas que nos permitiriam atravessá-lo. Eu o seguia, confiante<br />
em seus passos.<br />
Tão preocupa<strong>do</strong>s estávamos em fugir <strong>do</strong>s tapuia que nem<br />
nos incomodamos com os jacarés, ameaça<strong>do</strong>ramente próximos, e só<br />
depois percebemos que havíamos pisa<strong>do</strong> em uns três deles antes de<br />
chegarmos na margem seca.<br />
Quase antes de amanhecer alcançamos a caravana. Já<br />
próximos, fomos intercepta<strong>do</strong>s por guerreiros que montavam guarda.<br />
Em pouco tempo to<strong>do</strong> o povo estava desperto saudan<strong>do</strong> o grande<br />
feito. Choradeira e mais choradeira. Também, como de hábito,<br />
resolveram fazer uma grande festa para comemorar, com muito<br />
cauim.
PARTE II - O CHAMA<strong>DO</strong><br />
12 - NA CHAPADA <strong>DO</strong> <strong>ARCO</strong>-<strong>ÍRIS</strong><br />
Guaraxaim combinou comigo de não contar a ninguém<br />
sobre o auxílio <strong>do</strong> ancião e também de não fazer referências às<br />
demais coisas estranhas que haviam aconteci<strong>do</strong>. O pajé poderia ficar<br />
enciuma<strong>do</strong>. <strong>Porta</strong>nto, todas as glórias foram dadas ao meu amigo,<br />
mas não me aborreci com isso, apesar dele exagerar um pouquinho<br />
dizen<strong>do</strong> que havia abati<strong>do</strong> mais de quarenta homens sozinho, para<br />
nos salvar.<br />
A caravana continuou e, após muitos dias, passan<strong>do</strong> por<br />
numerosos perigos e diversas situações pitorescas, chegou-se ao<br />
destino final.<br />
O lugar era bem apropria<strong>do</strong> para a nossa gente. Um<br />
enorme rio e vários afluentes cruzavam pelas novas terras. As ocas<br />
foram construídas em um pequeno altiplano que nos permitiria ficar a<br />
salvo das grandes enchentes da época.<br />
Uma choça especial foi construída para os prisioneiros de<br />
guerra. Mas nem to<strong>do</strong>s permaneciam aprisiona<strong>do</strong>s; alguns já<br />
estavam integra<strong>do</strong>s ao nossos mo<strong>do</strong> de vida, embora fossem<br />
considera<strong>do</strong>s escravos. Cada família tinha de um a quatro cativos. As<br />
mulheres inimigas foram tomadas como concubinas <strong>do</strong>s principais<br />
guerreiros e as crianças tapuia também foram divididas. Entretanto, o<br />
destino para a maioria deles seria, implacavelmente, a morte no<br />
almoço ou no jantar.<br />
O meu pai designou um menino tapuia como meu<br />
escravo. No início ele era muito triste e chorava com a falta <strong>do</strong>s pais,<br />
mortos durante a batalha. Com o tempo nos tornamos amigos quase<br />
que inseparáveis, sen<strong>do</strong> que eu o tratava muito mais como a um<br />
irmão. Passei a chamá-lo de Jauarana por nadar como peixe e pular<br />
como cachorro. Juntos brincávamos nos rios e subíamos nas árvores<br />
mais altas. Ensinei a ele como atirar flechas certeiras e ele ensinoume<br />
a falar a língua <strong>do</strong>s tapuia.<br />
Muitos <strong>do</strong>s prisioneiros acabaram também por aprender a<br />
nossa língua.<br />
Quan<strong>do</strong> eu não brincava com Jauarana, costumava<br />
passear pela mata com Uiramirim a observar e a ouvir os pássaros.<br />
Apreciávamos o perfume das flores e, com enorme curiosidade,<br />
espiávamos os animais no perío<strong>do</strong> de acasalamento.
Tu<strong>do</strong> em nossas novas terras era muito bonito, mas nada<br />
se comparava com a beleza de Uiramirim. Era sem dúvida a menina<br />
mais linda e meiga da nossa tribo e logo se tornaria a mais cobiçada<br />
entre os jovens guerreiros.<br />
A estação das chuvas chegou e, para nós, os curumins,<br />
era motivo de grande festa. A<strong>do</strong>rávamos brincar de guerreiros em<br />
plena lama. Na verdade, tu<strong>do</strong> para o nosso povo era motivo de<br />
alegria e comemorações com danças, cantos e orações.<br />
Os anos foram passan<strong>do</strong> e eu já estava próximo da época<br />
de receber o meu botoque e ser ungi<strong>do</strong> como guerreiro, justamente<br />
durante um perío<strong>do</strong> em que havia muita tensão.<br />
Os nossos vigias mais avança<strong>do</strong>s notavam que os tapuia<br />
se aproximavam perigosamente e em grande número, provavelmente<br />
desejan<strong>do</strong> vingança e a retomada das terras perdidas. Não demorou<br />
muito para que alguns bate<strong>do</strong>res inimigos fossem surpreendi<strong>do</strong>s<br />
tentan<strong>do</strong> espionar os nossos movimentos.<br />
O carbé se reuniu e decretou esta<strong>do</strong> de guerra<br />
permanente e assim to<strong>do</strong>s começaram os preparativos para o<br />
provável confronto.<br />
Justamente nesse perío<strong>do</strong>, eu completava os meus<br />
dezessete anos de idade. A data era de grande importância para mim<br />
e para toda a minha família, principalmente para o meu pai, que teria<br />
o seu único filho homem consagra<strong>do</strong> como guerreiro, caso eu<br />
passasse por to<strong>do</strong>s os testes que poriam à prova a minha força e<br />
coragem.<br />
- Filho, na próxima lua, você voltará ao confinamento<br />
para preparar-se para o dia mais importante da sua vida, até agora.<br />
A cerimônia virá em tempo de você confirmar, no campo de batalha,<br />
que é valente e destemi<strong>do</strong>, que tem boa procedência a sua bravura.<br />
- Honrarei nossos ancestrais e lhe farei orgulhoso, meu<br />
pai! - afirmei com plena convicção para alegrá-lo, mas, dentro de<br />
mim, havia dúvidas terríveis, não com relação à minha bravura e<br />
coragem, e sim, com referência à luta e o conseqüente receio de ser<br />
responsável pela morte de várias pessoas.<br />
Eu entendia a necessidade de defender a nossa gente, o<br />
que resultaria em confrontos e mortes, mas me julgava incapaz de<br />
causar algum mal a alguém e vivia imaginan<strong>do</strong> alguma forma de lutar<br />
sem ter que necessariamente matar.<br />
A possibilidade da simples captura <strong>do</strong> inimigo, também<br />
não me animava, pois, com certeza, qualquer prisioneiro correria o
grande risco de ser sacrifica<strong>do</strong> de qualquer forma e a qualquer<br />
momento, mesmo depois de muitos anos no cativeiro.<br />
Interrompen<strong>do</strong> as minhas rápidas reflexões, o meu pai<br />
continuou:<br />
- Após as provas de bravura, você receberá o botoque <strong>do</strong>s<br />
adultos, sofrerá as incisões de honra, ganhará o seu estojo peniano e<br />
as armas de um verdadeiro guerreiro.<br />
Os seus olhos brilhavam altivos. Era a sua primeira<br />
conversa como pai de um futuro guerreiro.<br />
- Com a confiança de que você nos encherá de orgulho,<br />
tratei com o pajé Marapuama o enlace matrimonial da filha dele<br />
contigo. Uiramirim lhe será entregue como esposa após a sua<br />
consagração como bravo tupi. Sabemos que vocês <strong>do</strong>is se apreciam<br />
muito, o que nos dá a certeza de que honrarão as duas famílias.<br />
Abracei o meu pai e agradeci a ele as palavras de<br />
otimismo, e sua decisão que me trouxe muita alegria; porém, por<br />
trás de sua atitude sincera, também estava a intenção de agir de<br />
todas as formas para que um novo fiasco não ocorresse em minha<br />
iniciação, o que seria um derradeiro desastre para a nossa família.<br />
Próximo <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> estabeleci<strong>do</strong> para o início <strong>do</strong><br />
confinamento que antecede os testes <strong>do</strong>s futuros guerreiros, resolvi<br />
fazer um último passeio pela floresça.<br />
Como havia uma determinação para que ninguém se<br />
ausentasse da aldeia sozinho e sem autorização, face ao perigo de<br />
um iminente conflito, Jauarana acompanhou-me na pequena<br />
excursão com o consentimento <strong>do</strong> meu pai. Embora ele fosse um<br />
tapuia, era de minha extrema confiança, pois havia feito um<br />
juramento formal seguin<strong>do</strong> os rituais de sua gente, de me ser fiel e<br />
obediente, isso logo depois que consegui evitar que ele fosse servi<strong>do</strong><br />
ao moquém em uma das festas da aldeia.<br />
Ensinei a Jauarana os segre<strong>do</strong>s <strong>do</strong> manuseio <strong>do</strong> arco e<br />
flechas sob a condição de que não alvejasse os pássaros indefesos e<br />
os animais mais lentos, o que seria uma grande covardia. Ele se<br />
tornou um excelente arqueiro e eu passei a falar fluentemente a sua<br />
língua.<br />
Decidimos seguir rumo a uma chapada que não era tão<br />
distante de onde nos encontrávamos, mas que ainda não havia si<strong>do</strong><br />
explorada e que só poderia ser alcançada pelo rio.<br />
Embora sempre houvesse o risco de sermos ataca<strong>do</strong>s, o<br />
local que escolhemos era de difícil acesso para os tapuia.
Remamos rio acima cruzan<strong>do</strong> com os uruarus, enormes<br />
jacarés de poderosas mandíbulas capazes de estraçalhar uma canoa<br />
leve como a nossa, com as sucuris que espreitavam alguma presa<br />
distraída para arrastá-la ao fun<strong>do</strong> das águas, com as pirains prontas<br />
a devorar o que fosse em um piscar de olhos e sempre<br />
acompanhadas pelas mais diversas e lindas aves que faziam vôos<br />
rasantes sobre as nossas cabeças.<br />
Choveu pelo caminho, mas continuamos a remar e logo<br />
pudemos avistar a chapada coberta por uma densa mata.<br />
No cume <strong>do</strong> planalto havia uma lindíssima cachoeira. As<br />
águas escorregavam entre pedras coloridas, de varia<strong>do</strong>s tons,<br />
acaban<strong>do</strong> por despencar em um grande e translúci<strong>do</strong> lago.<br />
Resolvemos passar por debaixo da queda d'água. Foi uma<br />
experiência fascinante, porém, com a força <strong>do</strong> impacto das águas, a<br />
canoa virou. Nadamos em direções diferentes e a yaratim tombada<br />
foi parar na margem oposta àquela que eu alcancei.<br />
Em pé, próximo da cachoeira, eu não conseguia ver<br />
Jauarana. Gritei o seu nome. Entretanto, o barulho ensurdece<strong>do</strong>r das<br />
águas encobria os meus gritos e também não me permitia ouvir se<br />
ele me respondia.<br />
Subi parte da chapada para melhor observar o lago e<br />
então localizar o meu amigo. Não demorou muito para vê-lo<br />
desviran<strong>do</strong> a canoa. Gritei tu<strong>do</strong> o que podia, mas ele não me<br />
escutava. Desci rapidamente até a margem em que Jauarana se<br />
encontrava. Entretanto, quan<strong>do</strong> cheguei, ele não estava mais lá.<br />
Tive a idéia de lançar uma flecha para o alto. Talvez o<br />
meu amigo pudesse vê-la e saber onde eu estava. Disparei a seta e<br />
ela subiu a grande altura, mas, quan<strong>do</strong> caiu bem perto de mim,<br />
transformou-se em um intenso ponto luminoso. Fiquei assombra<strong>do</strong>.<br />
Ao ver a cintilante luz e seus rápi<strong>do</strong>s e bruscos<br />
movimentos, quis acreditar que era o meu amigo que estaria<br />
produzin<strong>do</strong> aquele misterioso brilho, queren<strong>do</strong> brincar comigo. Segui<br />
na mesma direção em que ia a luz, acaban<strong>do</strong> por subir toda a<br />
chapada sem, entretanto, conseguir alcançar nem avistar meu amigo.<br />
Por um momento os raios <strong>do</strong> sol irromperam entre as<br />
nuvens e clarearam o dia chuvoso. Imediatamente formou-se um<br />
arco-íris lindíssimo entre as águas que despencavam da chapada e o<br />
lago que afetuosamente as acolhia.<br />
De repente, passei a escutar um som incomum e a luz<br />
passou a brilhar mais intensamente. Como a fugir de mim, ela
embrenhava-se na mata lepidamente. Continuei em seu encalço e<br />
assim caminhei por três dias e três noites...
13 - OS SETENÁRIOS<br />
...sem comer e sem beber, senti que estava passan<strong>do</strong> por<br />
uma espécie de depuração que iria me preparar para uma experiência<br />
profundamente mística.<br />
Na noite <strong>do</strong> terceiro dia, quan<strong>do</strong> continuava a seguir o<br />
pequeno ponto lucilante, passei a escutar uma série de sons que<br />
nunca havia ouvi<strong>do</strong> antes, e que ressoavam continuamente, um após<br />
outro. Eram sete tons diferentes e harmônicos, <strong>do</strong> agu<strong>do</strong> ao grave.<br />
Cada vez que um tom soava, fazia a terra tremer e tu<strong>do</strong> o<br />
que havia nela. Durante as repercussões nenhum outro som se fazia<br />
ouvir, nem <strong>do</strong>s animais, nem das árvores. Nada se manifestava. No<br />
mais absoluto silêncio, era como se a natureza respeitosamente<br />
emudecesse para ouvir.<br />
A pequena luz desapareceu em meio a minha<br />
perplexidade. Passei a caminhar na direção que julguei ser a origem<br />
enigmática daquela expressão sonora.<br />
Após alguns passos ansiosos e temerosos, logo pude<br />
notar uma claridade mais à frente. Algo luzia entre a densa mata e<br />
tornava a noite em dia. Até as estrelas desapareceram no céu diante<br />
de tanta luminosidade.<br />
Senti muito me<strong>do</strong>, mas a minha curiosidade era<br />
incontrolável. Até então não conhecera nenhum fenômeno<br />
semelhante.<br />
O que mais me causava estranheza era o fato de que,<br />
embora sentisse que estava muito perto daquela fonte de luz e som,<br />
por mais que andasse não conseguia encontrá-la.<br />
Cansa<strong>do</strong>, resolvi sentar no chão e encostar-me em uma<br />
árvore. Fechei os olhos e <strong>do</strong>rmi profundamente.<br />
De repente, algo me fez acordar tão bruscamente que<br />
meu coração disparou de susto e o que eu vi assustou-me ainda<br />
mais. Havia uma intensa luz, bem diante de mim, que brilhava como<br />
um sol, tão forte que eu não podia olhar para ela. Aos poucos foi<br />
diminuin<strong>do</strong> a sua intensidade e o que pude ver causou-me um<br />
espanto ainda maior.<br />
Sete homens enormes estavam ao re<strong>do</strong>r de uma fogueira,<br />
senta<strong>do</strong>s no chão, de pernas cruzadas. A pele deles era um pouco<br />
avermelhada e os cabelos brilhavam à luz <strong>do</strong> fogo. De olhos fecha<strong>do</strong>s<br />
e com os braços descansa<strong>do</strong>s sobre as pernas <strong>do</strong>bradas uma sobre a<br />
outra, permaneciam indiferentes a minha presença.
Vestiam um traje bem diferente <strong>do</strong> que até então eu<br />
havia visto alguém usar. Começava pelas sandálias <strong>do</strong>uradas das<br />
quais partiam fios também <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s na forma de pequeninas<br />
serpentes que se entrelaçavam nas pernas até um pouco abaixo <strong>do</strong>s<br />
joelhos. Vestiam uma espécie de tanga na mesma cor, com abas de<br />
couro compridas na frente e atrás que chegavam até a metade das<br />
coxas. Usavam ombreiras, também de couro, com abas que desciam<br />
até o meio <strong>do</strong> peito e das costas com finos detalhes em ouro.<br />
No pescoço usavam um colar pratea<strong>do</strong> com um medalhão<br />
também de prata que continha, no seu centro, um seixo. Cada um<br />
desses homens tinha no medalhão uma pedra de cor diferente da <strong>do</strong><br />
outro. A <strong>do</strong> primeiro que eu avistara era rosa; a <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> era<br />
vermelha; a <strong>do</strong> terceiro, laranja; a <strong>do</strong> quarto, amarela; a <strong>do</strong> quinto,<br />
verde; a <strong>do</strong> sexto, azul e a <strong>do</strong> sétimo era violeta.<br />
Cada homem ainda ostentava em sua cabeça uma espécie<br />
de pequena coroa <strong>do</strong>urada aonde estavam encravadas sete pedras<br />
nas cores mencionadas.<br />
Quan<strong>do</strong> os sons estranhos eram emiti<strong>do</strong>s por esses<br />
homens, sem que abrissem a boca ou tocassem algum objeto, a<br />
chama da fogueira aumentava, não em labaredas e sim em luz que<br />
variava de cor entre o azul, violeta, laranja e amarelo.<br />
Receoso em perturbá-los decidi afastar-me, mas antes de<br />
me virar, um deles, o de medalhão com a pedra rosa, abriu os olhos<br />
e fitou-me fixamente. Parei e permaneci petrifica<strong>do</strong> sem conseguir<br />
me mexer diante daquele olhar tão magnetizante.<br />
Embora ele não abrisse a boca, pude ouvir claramente a<br />
frase dita com serenidade:<br />
- Agnã... Não tema. Aproxime-se e sente-se ao nosso<br />
la<strong>do</strong>.<br />
Era impossível não atender ao seu pedi<strong>do</strong>. Uma força<br />
incrível e estranha me atraía em sua direção.<br />
Quan<strong>do</strong> sentei ao la<strong>do</strong> daqueles homens, fican<strong>do</strong> de<br />
frente com aquele que me olhava e certamente me convocava para<br />
ali estar, percebi que das mãos dele encostadas em seu peito, em<br />
forma de conchas, uma sobre a outra, emanava uma pequena luz.<br />
No momento seguinte em que afastou as mãos para os<br />
la<strong>do</strong>s, aquela luz surgiu mais reluzente, chegan<strong>do</strong> a ficar como o<br />
senhor <strong>do</strong> dia, quase me cegan<strong>do</strong>. Logo em seguida ela diminuiu de<br />
intensidade e voltou a se tornar apenas um ponto brilhante. Agora,
mais claramente, podia ver que a luz vinha da pedra de seu<br />
medalhão.<br />
Foi também nesse momento que percebi que havia a<br />
mesma luz nas pedras <strong>do</strong>s demais homens e, para a minha surpresa,<br />
no centro <strong>do</strong> meu peito também luzia um pequeno ponto, embora eu<br />
não usasse nenhum colar.<br />
Logo depois to<strong>do</strong>s os pontos luminosos se uniram de tal<br />
forma que formou-se uma fulgurante aliança multicolorida entre nós.<br />
Depois, esses mesmos pontos cintilantes também estenderam a sua<br />
luz em direção ao centro <strong>do</strong> círculo, aonde ardia a fogueira, e dessa<br />
fusão gerou-se um clarão tão irradiante e quente quanto o sol <strong>do</strong><br />
meio-dia. Agora, entretanto, já não mais me ofuscava a vista.<br />
Senti uma profunda paz e, ao fechar os meus olhos, pude<br />
ver as estrelas <strong>do</strong> céu tão lindas quanto nunca as vira antes.<br />
Após alguns instantes de serenidade e contemplação a<br />
mesma voz fez-me abrir os olhos:<br />
- Estávamos lhe aguardan<strong>do</strong>, grande guerreiro.<br />
A imensa luz havia desapareci<strong>do</strong> e a noite era apenas<br />
iluminada pelo clarão da fogueira.<br />
- Quem são os senhores? - indaguei respeitosamente.<br />
- Somos os sete peregrinos - respondeu o senhor da<br />
pedra rosa, o mesmo que havia olha<strong>do</strong> para mim. Dessa vez, porém,<br />
pronunciava normalmente as palavras.<br />
- E de onde vieram? - perguntei curioso.<br />
- De terras muito distantes e desconhecidas.<br />
- O que fazem nessa noite?<br />
- Mantemos a comunhão com to<strong>do</strong>s os seres <strong>do</strong> Universo<br />
através <strong>do</strong> fogo sagra<strong>do</strong>.<br />
Notan<strong>do</strong> que a chama <strong>do</strong> fogaréu não consumia a lenha<br />
ali posta, perguntei:<br />
- Que fogo é esse que não consome a madeira?<br />
- É a chama que arde sem queimar.<br />
Fiquei um pouco confuso. Aproximei minha mão para<br />
verificar a intensidade <strong>do</strong> calor produzi<strong>do</strong> e acabei por introduzir to<strong>do</strong><br />
o braço no meio das labaredas. Era estranho, embora sentisse um<br />
calor morno, as chamas não me queimavam. Nunca havia visto nada<br />
igual.<br />
- Como pode existir um fogo que não queima? -<br />
perguntei, intriga<strong>do</strong>.<br />
- Ele é tão real quanto você o vê.
- Então, eu o vejo, ele existe, mas não pode queimar?<br />
- Você está ven<strong>do</strong>-o com o seu espírito, portanto, só<br />
poderá senti-lo também com o espírito e não com a carne.<br />
- Mas por que é assim?<br />
- Há muitos mistérios <strong>do</strong> espírito que só se expressam e<br />
podem ser entendi<strong>do</strong>s de forma simbólica.<br />
- E o que o fogo representa?<br />
- Ele tem o poder transforma<strong>do</strong>r, tornan<strong>do</strong> aquilo que<br />
queima a sua essência primitiva. Quan<strong>do</strong> você busca sinceramente a<br />
verdade, o seu espírito consegue ver a luz <strong>do</strong> verdadeiro<br />
conhecimento e assim você volta a sua própria essência. Esse é um<br />
processo de transformação interior em que você adquire a<br />
consciência de que a razão de todas as coisas está dentro de si<br />
mesmo. Isso faz parte da lei da evolução e nenhum ser evolui sem se<br />
transformar. Alcançan<strong>do</strong> a consciência perfeita dessa necessidade -<br />
prosseguiu - a chama arde sem queimar. Porém, muitos <strong>do</strong>s que<br />
estão no mun<strong>do</strong> vêem apenas a matéria que os envolve e a<br />
incompreensão das verdades <strong>do</strong> espírito pode gerar sofrimento. No<br />
momento em que a ignorância escurece os olhos da alma a chama<br />
pode provocar o ar<strong>do</strong>r para que se veja o que se precisa transformar.<br />
<strong>Porta</strong>nto, o fogo para uns se torna a luz <strong>do</strong> caminho na escuridão e o<br />
calor que espanta o frio, mas para outros apenas significa <strong>do</strong>r. Para o<br />
homem de coração puro, essa chama sagrada só traz satisfação ao<br />
espírito e liberdade para seguir em qualquer direção, no entanto,<br />
para aquele que vive na ignorância <strong>do</strong>s sentimentos <strong>do</strong> egoísmo e da<br />
maldade o fogo só pode causar temor e submissão. Venha conosco e<br />
conheça o fogo sagra<strong>do</strong> que alimenta a sua alma. Quan<strong>do</strong> buscamos<br />
a luz e a alcançamos verdadeiramente também nos transformamos<br />
nela própria e assim a nossa essência se identifica com to<strong>do</strong>s os seres<br />
<strong>do</strong> universo adquirin<strong>do</strong>, dessa forma, o maior de to<strong>do</strong>s os poderes...<br />
... somos então, os verdadeiros filhos da luz.
14 - EVOLUÇÃO ANÍMICA<br />
Fiquei, por alguns instantes, refletin<strong>do</strong> sobre o que me<br />
dissera aquele homem. O seu mo<strong>do</strong> de falar era muito tranqüilo, a<br />
sua voz era madura, dan<strong>do</strong> a impressão de ser um i<strong>do</strong>so, embora<br />
tivesse uma aparência muito jovial.<br />
Depois de algum tempo, ele mesmo se levantou e pediu<br />
que eu o acompanhasse. Os outros permaneceram de olhos fecha<strong>do</strong>s<br />
na posição em que se encontravam.<br />
- Agnã, aqui há frutos e raízes com os quais pode se<br />
alimentar - disse, apontan<strong>do</strong> para uma cessa de vime.<br />
Durante a minha refeição perguntei ao grande homem:<br />
- Como sabe o meu nome?<br />
- Nós o temos segui<strong>do</strong> já há algum tempo, sem que nos<br />
percebesse.<br />
- E como devo lhes chamar?<br />
- Não temos nomes, pode nos denominar da forma que<br />
quiser.<br />
- Então vou chamá-los de cheroupi, que significa “meus<br />
pais”, e a você especialmente chamarei de Choam, que quer dizer<br />
aurora, porque é o primeiro a trazer-me a luz de um novo dia em<br />
minha vida.<br />
- Então, meu filho, agora repouse, amanhã teremos um<br />
longo dia.<br />
Seguin<strong>do</strong> a sua recomendação carinhosa, deitei-me na<br />
relva macia e <strong>do</strong>rmi profundamente.<br />
Na manhã seguinte acordei com o canto melodioso <strong>do</strong><br />
uirapuru. Nada se compara à beleza <strong>do</strong> seu cantar. Até os outros<br />
pássaros emudecem para escutá-lo. A não ser durante os quinze dias<br />
em que constrói o seu ninho, o resto <strong>do</strong> ano só é possível ouvi-lo<br />
pelas manhãs, não mais que alguns minutos.<br />
Os cheroupi já estavam de pé. Eles eram realmente<br />
grandes. O meu povo era de gente muito alta, mas eles, os<br />
Setenários, eram muito maiores e mais fortes. Mas não era só isso<br />
que impressionava: eles também tinham um semblante em que<br />
transparecia uma nítida formação superior. Altivos e serenos, davam<br />
a impressão de estarem sempre a examinar alguma coisa diferente.<br />
Tu<strong>do</strong> o que faziam e tocavam era com muita delicadeza, apesar <strong>do</strong><br />
porte avantaja<strong>do</strong>.
Não conversavam entre si. Pelo menos por meio de<br />
palavras, porém davam a impressão de que se entendiam muito bem<br />
com apenas um olhar e agora, durante o dia, eu conseguia ver a cor<br />
de seus olhos. Alguns tinham olhos verdes que às vezes ficavam<br />
castanhos. Outros tinham olhos azuis.<br />
Choam, sem maiores explicações, pediu-me para que não<br />
falasse com os demais Setenários sem que eles me dirigissem a<br />
palavra primeiro e disse o que faríamos em seguida:<br />
- Agnã, nós vamos subir às montanhas.<br />
Foi nesse instante que me dei conta de que estava em um<br />
lugar completamente diferente daquele onde eu me encontrava no<br />
dia anterior. Estávamos mais a nordeste e rumávamos para o<br />
noroeste, muito próximos de uma cadeia de montanhas.<br />
Os Setenários venciam as escarpas com grande<br />
habilidade e logo chegamos ao topo de uma das montanhas mais<br />
altas.<br />
Lá de cima pude admirar uma paisagem magistral.<br />
Sentia-me como um deus aprecian<strong>do</strong> a natureza. Nesse momento,<br />
Choam, olhan<strong>do</strong> para a planície distante, disse:<br />
- O seu povo ensinou-lhe que Munhã foi o grande cria<strong>do</strong>r<br />
de tu<strong>do</strong> o que existe.<br />
- É verdade.<br />
- Estan<strong>do</strong> ciente de que tu<strong>do</strong> o que vemos e tocamos<br />
deve-se a um Supremo Cria<strong>do</strong>r, não importan<strong>do</strong> o nome que lhe<br />
possamos dar, e de que somos as criaturas que mais podem<br />
aproveitar as suas obras, compreenderemos melhor o respeito que<br />
Lhe devemos e a importância que temos para Ele como parte de sua<br />
criação. Em gratidão por sua generosidade - prosseguiu - devemos<br />
velar por tu<strong>do</strong> o que esse grande Pai nos tem oferta<strong>do</strong>, para que<br />
sempre possamos desfrutar de sua benevolência. Respeitar a<br />
natureza, cuidan<strong>do</strong> das plantas, das matas, <strong>do</strong>s animais, ven<strong>do</strong><br />
também no semelhante a expressão divina de sua maior realização, é<br />
uma das maneiras de reconhecimento <strong>do</strong> seu profun<strong>do</strong> amor por nós.<br />
Quanto mais conscientes dessas verdades, mais responsáveis<br />
deveremos ser. O Pai é Luz e, como filhos Dele, somos filhos da Luz.<br />
<strong>Porta</strong>nto, trazemos em nosso âmago os atributos divinos <strong>do</strong> nosso<br />
Cria<strong>do</strong>r. Começamos a nossa evolução justamente no momento de<br />
nossa criação. Como uma centelha divina, viemos ao plano da<br />
matéria, mergulhan<strong>do</strong> nesse mun<strong>do</strong> denso e inicialmente sombrio.<br />
Em momento algum, porém, durante a nossa jornada, perdemos a
nossa essência de luz que se originou da própria Luz. Mas<br />
vivencian<strong>do</strong> e experiencian<strong>do</strong> no plano físico, a centelha divina vai<br />
descobrin<strong>do</strong> o quanto divina ela é. Não poderíamos compreender<br />
melhor o Pai que nos criou se apenas permanecêssemos como<br />
essência. Aqui, manifestan<strong>do</strong>-se nas condições que nos encontramos,<br />
é que aprendemos também a criar. Mas assim como nos é da<strong>do</strong> o<br />
poder cria<strong>do</strong>r, aquele que não compreender a importância da criação<br />
divina, corre o risco de causar grande destruição. Destruirá a mata,<br />
secará os rios e os mares, extinguirá os animais, fará cair as estrelas<br />
<strong>do</strong> céu, apagará a luz da Lua e <strong>do</strong> <strong>Sol</strong> para finalmente destruir a si<br />
mesmo. Mas na angústia <strong>do</strong> sofrimento auto-infligi<strong>do</strong>, aprenderá<br />
amargamente a usar os <strong>do</strong>tes divinos que recebeu. Faça o que fizer,<br />
aja como queira agir, uma lei é imutável e presente em to<strong>do</strong> o<br />
Universo: a lei da evolução. Tu<strong>do</strong> tem que evoluir, como já lhe disse,<br />
e isso significa que o ser deverá passar por uma série progressiva de<br />
transformações. Série, porque é uma seqüência ordenada de<br />
mudanças, uma após outra, o que permite o acréscimo de<br />
conhecimento e o aperfeiçoamento íntimo <strong>do</strong> ser. Progressiva, porque<br />
são dispostas, de tal forma, que uma mudança seja melhor e mais<br />
importante <strong>do</strong> que a outra. As transformações são as conseqüências<br />
das profundas mudanças no ser. Tu<strong>do</strong> o que o homem fizer -<br />
continuou Choam - que despreze as obras divinas e que queira<br />
incorrer contra a lei da evolução, só lhe trará imensos sofrimentos<br />
por conseqüência. No entanto, através <strong>do</strong> castigo a si mesmo<br />
aplica<strong>do</strong>, voltará a respeitar a criação e a buscar um caminho sem<br />
maiores <strong>do</strong>res.<br />
- Então nós deveríamos respeitar to<strong>do</strong>s os demais seres<br />
porque a essência da criação também manifesta-se neles? Porque<br />
também estão em processo de evolução? - perguntei.<br />
- Isso mesmo.<br />
- Vejo os pássaros, as onças, as cobras e to<strong>do</strong>s os bichos<br />
e é claro que têm vida. As árvores e as flores e todas as formas de<br />
vegetais mostram também que têm vida. Mas aonde mais existe esse<br />
princípio <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de essência divina?<br />
- Nessas montanhas que subimos. - Diante <strong>do</strong> meu olhar<br />
cheio de dúvidas, continuou:<br />
- Quan<strong>do</strong> fomos cria<strong>do</strong>s, as nossas essências, em<br />
primeiro lugar, penetraram nos elementos mais sóli<strong>do</strong>s como os<br />
minerais. Com o passar <strong>do</strong>s milhões de anos as essências foram
evoluin<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> material passan<strong>do</strong> a ter formas mais bem<br />
organizadas, como ocorrem nos cristais. Veja essas pedras.<br />
Choam mostrou-me um conjunto de diamantes crava<strong>do</strong>s<br />
em uma rocha e disse:<br />
- Perceba como estão bem forma<strong>do</strong>s. Esculpi<strong>do</strong>s pelas<br />
mãos <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r, têm uma consistência melhor elaborada e as suas<br />
partes estão perfeitamente ordenadas.<br />
- Há vida nisso? - perguntei ainda incrédulo.<br />
- Em suas pequenas partes não, mas no conjunto,<br />
durante a sua formação, sim. Tu<strong>do</strong> o que o Pai toca deixa algo<br />
de sua essência. Essa essência, também chamada de espírito,<br />
inicialmente de forma inconsciente, se desenvolve na matéria,<br />
organizan<strong>do</strong>-a, e assim evoluin<strong>do</strong>. Dessa maneira, logo que cria<strong>do</strong>, o<br />
espírito já começa também a fazer parte da criação de outras coisas,<br />
como os minerais, por exemplo. Por essa razão, que os primeiros<br />
antigos tão bem conheciam, é que se costuma falar que as<br />
montanhas têm vida.<br />
- Mas os espíritos das montanhas ficarão eternamente<br />
presos a elas?<br />
- Não, as montanhas formam-se e desfazem-se<br />
constantemente, durante milhões de anos e, da mesma maneira, é o<br />
que ocorre com to<strong>do</strong>s o minerais que estão em lenta, mas contínua<br />
mudança. Adquirida a experiência necessária, a essência divina,<br />
posteriormente, irá animar os vegetais onde aprenderá a desenvolver<br />
a sua capacidade de estruturação orgânica, apuran<strong>do</strong> melhor sua<br />
sensibilidade. Chegará aos animais, surgin<strong>do</strong> o instinto forma<strong>do</strong> pelas<br />
constantes experiências de conservação da espécie, nutrição e<br />
reprodução entre outras coisas. Prosseguin<strong>do</strong>, a essência passará por<br />
uma transição no meio elemental, manifestan<strong>do</strong>-se como os<br />
curupiras, e finalmente emergirá no homem, para alcançar, no plano<br />
da matéria, o seu mais alto grau evolutivo. Venha, há um lugar aqui<br />
perto onde você poderá entender melhor o que estamos conversan<strong>do</strong>.<br />
Descemos parte da montanha e chegamos a um lugar<br />
aonde havia uma vertente. Choam parou e raspou o solo com as<br />
mãos. Vi lindas pedras verdes que estavam escondidas por uma fina<br />
camada de terra.<br />
- Agnã, coloque suas mãos no chão e feche os seus olhos.<br />
Fiz como me mandara.<br />
- O que está sentin<strong>do</strong>?<br />
- Só o frio das pedras - respondi.
- Aguce a sua sensibilidade. Procure sentir o que há bem<br />
mais abaixo <strong>do</strong> solo. O que percebe?<br />
- Sinto-me como um gigante, enorme, forte, vivo, mas<br />
a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong>.<br />
- Levante-se. É assim que permanece a essência divina<br />
nas substâncias minerais. Estruturada, organizada, mas como se<br />
estivesse em profun<strong>do</strong> sono. Agora, acompanhe-me.<br />
Descemos a montanha e demos em uma paragem<br />
ornamentada por lindas flores que eu ainda não conhecia.<br />
- Toque em qualquer delas e procure senti-las dentro de<br />
você.<br />
Encostei as mãos em uma planta que tinha uma flor de<br />
pétalas na cor lilás e pólen no interior sobre compridas hastes<br />
amarelas, sen<strong>do</strong> suas folhas verdes, pequenas e grandes.<br />
- O que sente?<br />
- Vida.<br />
- Além disso?<br />
- Parece que ela reage ao meu toque. É como se ela<br />
sentisse as minhas mãos.<br />
- Muito bem. A essência, quan<strong>do</strong> se encontra nos<br />
vegetais, começa a despertar a sua sensibilidade. Reage de<br />
determinada forma, de acor<strong>do</strong> com os perío<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ano, com o clima<br />
da região e outros fatores. Continuemos a andar.<br />
Chegamos próximos de um pequeno lago, onde havia<br />
inúmeras aves.<br />
- Sente-se, Agnã e fique observan<strong>do</strong> os animais.<br />
Fiquei olhan<strong>do</strong> para os suaçuetês, os cervos, algumas<br />
antas e outros bichos.<br />
- Perceba, Agnã, como alguns machos cortejam as<br />
fêmeas, como outros animais cuidam <strong>do</strong>s seus filhotes. É a primeira<br />
manifestação de carinho e amor da centelha divina. Na forma <strong>do</strong>s<br />
animais que conhecemos - continuou - a essência vai desenvolven<strong>do</strong><br />
e aperfeiçoan<strong>do</strong> o seu la<strong>do</strong> mais sensível. Assim é a caminhada <strong>do</strong><br />
espírito, transforman<strong>do</strong>-se continuamente sempre em busca de seu<br />
aprimoramento até atingir a plena consciência de sua origem divina.<br />
É a lei da evolução.
15 - O CONHECIMENTO OCULTO<br />
O dia foi passan<strong>do</strong>... as nuvens fican<strong>do</strong> novamente<br />
coloridas e no suspiro <strong>do</strong> ocaso vieram as estrelas, inicialmente<br />
tímidas, mas, depois, arrebata<strong>do</strong>ramente graciosas, desenhan<strong>do</strong> no<br />
céu as figuras mais exóticas.<br />
Ao contemplá-las tinha sempre a impressão de que<br />
também era observa<strong>do</strong> por elas. Dessa forma, mantínhamos uma<br />
relação silenciosa, mas profunda.<br />
Interrompen<strong>do</strong> meu rápi<strong>do</strong> devaneio, Choam pediu-me<br />
para que preparasse uma fogueira, no local onde nós estávamos.<br />
Os Setenários, com exceção <strong>do</strong> cheroupi que conversava<br />
comigo, haviam permaneci<strong>do</strong> cala<strong>do</strong>s o dia inteiro. Não suportan<strong>do</strong> a<br />
curiosidade, perguntei ao mestre da pedra rosa no medalhão:<br />
- Por que os outros vivem tão quietos?<br />
- É apenas impressão. Na verdade, como você ainda irá<br />
constatar, tagarelam até demais. Além disso, estão sempre<br />
compenetra<strong>do</strong>s nas coisas que fazem.<br />
- Mas por que só você conversa comigo? Só você sabe a<br />
minha língua?<br />
- To<strong>do</strong>s nós sabemos muitas línguas, inclusive a sua. É<br />
que, em princípio, coube a mim a tarefa de fazer os contatos com os<br />
homens da sua espécie. Embora possamos compartilhar a mesma<br />
sabe<strong>do</strong>ria, temos atribuições diferentes. Com o passar <strong>do</strong> tempo,<br />
conforme você vá se tornan<strong>do</strong> apto a adquirir novos conhecimentos,<br />
obterá deles mais ensinamentos.<br />
- Poderei aprender a voar como os pássaros?<br />
- Você poderá fazer muito mais <strong>do</strong> que imagina -<br />
respondeu o Setenário, para depois continuar:<br />
- Não se esqueça de que a essência divina não pertence à<br />
matéria, e somente a utiliza como meio de evolução. Para o homem<br />
que não possui o esclarecimento das verdades espirituais, o corpo<br />
físico é mera prisão para a sua essência, limitan<strong>do</strong> a sua liberdade.<br />
Mas o espírito ilumina<strong>do</strong>, mesmo vesti<strong>do</strong> pela carne <strong>do</strong>s mortais, não<br />
encontrará nenhuma barreira que possa tolher os seus senti<strong>do</strong>s e a<br />
sua ação. Verá e ouvirá muito além <strong>do</strong> que o físico poderia permitir,<br />
percorrerá distâncias com a velocidade <strong>do</strong> pensamento e muito mais<br />
poderá fazer.<br />
- E como eu conseguiria realizar essas façanhas? -<br />
perguntei, curiosíssimo.
- Agnã - prosseguiu, em um tom ainda mais sério - você<br />
está começan<strong>do</strong> a se preparar para uma importante missão em sua<br />
vida. Muitas coisas lhe serão ensinadas, mas você deverá manter<br />
segre<strong>do</strong> de boa parte delas. Os mistérios <strong>do</strong> oculto não podem ser<br />
revela<strong>do</strong>s a qualquer um.<br />
- É como o pajé?<br />
- De certa forma sim, e, como você sabe, ele só passa os<br />
seus mistérios para uma pessoa escolhida, se houver algum sinal de<br />
que ela é realmente merece<strong>do</strong>ra disso e, mesmo assim, tal fato só<br />
ocorre, na maioria das vezes, quan<strong>do</strong> o feiticeiro está muito velho e<br />
pressente o fim da sua vida. Mas o conhecimento que lhe será<br />
oferta<strong>do</strong> é inacessível a muitos feiticeiros. Por isso a sua<br />
responsabilidade será muito maior.<br />
- Mas por que esse conhecimento não pode ser divulga<strong>do</strong>?<br />
- Porque o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> saber oculto possibilita um poder<br />
quase ilimita<strong>do</strong> sobre quase tu<strong>do</strong> e isso é extremamente perigoso. Se<br />
o indivíduo não estiver suficientemente prepara<strong>do</strong> acabará usan<strong>do</strong><br />
esse poder para o seu exclusivo prazer. Aí começará uma triste<br />
jornada que poderá conduzi-lo a um terrível fim. Achan<strong>do</strong>-se um<br />
deus, único e absoluto, forçará as pessoas a atenderem a sua<br />
vontade, submeten<strong>do</strong>-as ao me<strong>do</strong> e ao pavor. Na verdade passará a<br />
ser um escravo de si mesmo, preso em seu próprio egoísmo. Um<br />
escravo é um escravo. Chegará o momento em que o falso místico<br />
verá que não alcançou coisa alguma de concreto para a sua felicidade<br />
e tu<strong>do</strong> o que acumulou foi ódio e maldade, as únicas coisas que o<br />
acompanharão além <strong>do</strong> seu túmulo.<br />
- Só farei o bem para os outros! - disse, resoluto.<br />
- Mesmo aquele que tenha ajuda<strong>do</strong> muitas pessoas, se foi<br />
devidamente recompensa<strong>do</strong> com bens materiais por isso, não terá<br />
mais nada a receber no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s espíritos, senão as trevas.<br />
- Jamais me desviarei <strong>do</strong> caminho por qualquer tentação!<br />
- afirmei, altivo.<br />
- Não se iluda! Inclusive aquele que se prepara<br />
convenientemente para a grande revelação, está sujeito a usá-la<br />
erroneamente e, por muitas vezes, acabará desejan<strong>do</strong> voltar atrás e<br />
esquecer tu<strong>do</strong> o que aprendeu.<br />
- E o que fazer para que isso não aconteça? - perguntei,<br />
mais humildemente.<br />
- Nunca deverá se afastar <strong>do</strong>s princípios superiores <strong>do</strong><br />
bem, que se resume em uma única tarefa: usar os conhecimentos e
os poderes adquiri<strong>do</strong>s para ajudar as pessoas a encontrar a mesma<br />
luz que brilha em seu coração.<br />
Choam sorriu serenamente e antes de se reunir com os<br />
outros cheroupis, complementou:<br />
- Mas seja como for, um espírito mais esclareci<strong>do</strong> sempre<br />
compreenderá que tu<strong>do</strong> faz parte de um grande aprendiza<strong>do</strong>,<br />
inclusive os erros.<br />
Os Setenários voltaram a sentar em círculo, ao re<strong>do</strong>r da<br />
fogueira. Eu não conseguia entender como eles podiam <strong>do</strong>rmir<br />
naquela posição a noite inteira.<br />
Encostei-me em um tronco de árvore, um pouco distante<br />
deles e antes de fechar os olhos para <strong>do</strong>rmir, olhei para as estrelas<br />
<strong>do</strong> firmamento e perguntei a mim mesmo, em pensamento: “ - Serei<br />
digno de tanta sabe<strong>do</strong>ria?”.<br />
Em seguida, escutei Choam como se falasse ao pé <strong>do</strong>s<br />
meus ouvi<strong>do</strong>s:<br />
- Não se trata de perfeição. Você é com quem podemos<br />
contar.<br />
Assusta<strong>do</strong>, procurei o cheroupi, pensan<strong>do</strong> que ele tivesse<br />
se aproxima<strong>do</strong> de mim sorrateiramente sem que eu o percebesse,<br />
mas, para a minha surpresa, ele permanecia senta<strong>do</strong> entre os<br />
Setenários, olhan<strong>do</strong>-me e sorrin<strong>do</strong> serenamente.
16 - AS VIDAS DE UM HOMEM<br />
Na manhã seguinte fui acorda<strong>do</strong> por Choam. To<strong>do</strong>s os<br />
cheroupis já estavam fazen<strong>do</strong> alguma atividade.<br />
- Hoje terei novas lições? - perguntei ansiosamente.<br />
- Sim - respondeu o Setenário.<br />
- Venerável orienta<strong>do</strong>r, eu tenho receio de não conseguir<br />
aprender to<strong>do</strong>s os conhecimentos que vocês sábios possuem.<br />
- Saber tu<strong>do</strong> é algo muito difícil. Há lições que só se<br />
aprende com o passar <strong>do</strong>s anos ou das vidas. - Diante <strong>do</strong> meu olhar<br />
interroga<strong>do</strong>r, ele continuou:<br />
- Como nós já conversamos, a essência divina exige<br />
muito tempo para a sua evolução. São muitas experiências a serem<br />
somadas ao longo de milhares de anos.<br />
- Mas haverá um fim para isso?<br />
- Você, como to<strong>do</strong>s nós e to<strong>do</strong>s os espíritos, somos<br />
eternos. Uma vez criada, a essência divina jamais deixará de existir.<br />
- Então o corpo que tenho, não sou eu?<br />
- Você é a sua essência. É aquilo que, por enquanto, não<br />
vê. É o seu espírito que existe verdadeiramente e que é a razão pela<br />
qual o seu corpo vive. Quan<strong>do</strong> a essência passa a ter as suas<br />
experiências no plano <strong>do</strong>s homens, o corpo físico é apenas uma forma<br />
apropriada que usa para se manifestar nesse mesmo plano. Após a<br />
desencarnação, ela se desliga <strong>do</strong> corpo material, que vem a falecer. A<br />
essência divina, entretanto, permanece intacta. Logo em seguida,<br />
todas as suas atitudes em vida são analisadas por espíritos de imensa<br />
luz e às vezes pelo próprio desencarna<strong>do</strong>, caso tenha esclarecimento<br />
suficiente para isso. O retorno <strong>do</strong> espírito a uma nova vida ocorrerá<br />
de acor<strong>do</strong> com suas necessidades evolutivas, levan<strong>do</strong>-se em<br />
consideração suas experiências em vidas passadas.<br />
- Então, quan<strong>do</strong> eu morrer, o meu espírito voltará em<br />
outro corpo?<br />
- Isso mesmo. É o que se chama de reencarnação. Até<br />
que o espírito alcance a plenitude de sua luz, no plano material, ele<br />
deverá reencarnar.<br />
- O espírito sabe quan<strong>do</strong> tem que reencarnar?<br />
- O momento <strong>do</strong> retorno a esse mun<strong>do</strong> é de certa forma<br />
pressenti<strong>do</strong> por ele, como um ancião sente que está próximo da<br />
morte e esse fato pode ser até exatamente conheci<strong>do</strong>, conforme o<br />
grau de sua evolução. Quanto mais evoluí<strong>do</strong>, mais consciência o
espírito terá de suas necessidades. Às vezes, a reencarnação não<br />
ocorre tão imediatamente, pois também o estágio evolutivo <strong>do</strong> ser<br />
influencia no tempo em que poderá permanecer no mun<strong>do</strong> espiritual.<br />
Quanto mais ilumina<strong>do</strong>, mais tempo ficará nesse plano, quanto<br />
menos luz tiver, mais rapidamente terá que retornar à vida material<br />
para completar o aprendiza<strong>do</strong> não concluí<strong>do</strong>.<br />
Pode, entretanto, acontecer de que o espírito tenha pleno<br />
entendimento de que deverá reencarnar, mas não deseje isso.<br />
- E por quê?<br />
- Há vários motivos. Normalmente é porque não se sente<br />
totalmente confiante de que não cometerá os mesmos erros <strong>do</strong><br />
passa<strong>do</strong> e quer se preparar melhor para enfrentar as mesmas<br />
dificuldades.<br />
- E assim o espírito poderá adiar a sua reencarnação?<br />
- É possível, mas não por um tempo indetermina<strong>do</strong>.<br />
Inevitavelmente, o espírito terá que retornar ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s homens<br />
para prosseguir em seu aprendiza<strong>do</strong>. A volta ao corpo físico é tão<br />
imprescindível que não terá como evitá-la, por mais que queira. A<br />
necessidade de evoluir é como a necessidade de respirar para o<br />
encarna<strong>do</strong>: ele não poderá ficar muito tempo sem ar. Da mesma<br />
forma que respiran<strong>do</strong> é que se vive, é reencarnan<strong>do</strong> que o espírito<br />
realmente irá evoluir. É no mun<strong>do</strong> material que obterá<br />
verdadeiramente o aprendiza<strong>do</strong> de que necessita. É onde também ele<br />
será submeti<strong>do</strong> a testes em que se verificará se as lições foram<br />
efetivamente assimiladas. Além disso, somente quan<strong>do</strong> está<br />
reencarna<strong>do</strong>, o espírito pode, de fato, corrigir os erros <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>.<br />
Referente a esse último particular, a reencarnação faz parte da<br />
misericórdia divina que nos permite, sempre, uma nova oportunidade<br />
de resgate das dívidas assumidas com os males que causamos a<br />
outras pessoas.<br />
- É o espírito que escolhe a tribo e a família na qual<br />
viverá?<br />
- Também dependerá <strong>do</strong> seu nível de evolução. Às vezes,<br />
ele tem amplas condições de analisar as suas vidas anteriores,<br />
levan<strong>do</strong> em consideração tu<strong>do</strong> o que aprendeu e tu<strong>do</strong> o que ainda<br />
deve aprender. Poderá distinguir erros de acertos e assim elaborar o<br />
plano da futura vida, conforme as suas necessidades evolutivas e, em<br />
to<strong>do</strong> esse contexto, os relacionamentos que terá. Entretanto, na<br />
grande maioria das vezes, o espírito não tem a mínima condição de<br />
ponderar esses aspectos de forma tão abrangente.
- E o que acontece nesse caso?<br />
- Ele é ampara<strong>do</strong> por outros espíritos mais ilumina<strong>do</strong>s que<br />
têm amplas condições de examinar to<strong>do</strong>s esses fatores e elaborar por<br />
ele um plano de vida.<br />
- Esse plano de vida significa que a próxima existência é<br />
sempre preconcebida? Que tu<strong>do</strong> o que devemos fazer já está<br />
determina<strong>do</strong> antes <strong>do</strong> nosso nascimento?<br />
- Não, isso seria fatalismo, o que é inconcebível quan<strong>do</strong><br />
se refere à essência espiritual <strong>do</strong>tada de livre-arbítrio. O plano de<br />
vida é um roteiro, uma seqüência de coisas que o espírito precisaria<br />
realizar, um ordenamento <strong>do</strong>s fatos imprescindíveis a sua evolução<br />
espiritual. Não quer dizer, necessariamente, que será cumpri<strong>do</strong> à<br />
risca tu<strong>do</strong> o que foi planeja<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> um índio quer ir caçar,<br />
normalmente ele idealiza um plano daquilo que quer fazer. Escolhe o<br />
dia, a hora e o local mais adequa<strong>do</strong>, prepara os instrumentos e as<br />
coisas necessárias para a sua empreitada e decide se vai<br />
acompanha<strong>do</strong> de outros índios ou não. Mas, mesmo tomadas todas<br />
as decisões preparatórias, não significa que ele realizará tu<strong>do</strong> o que<br />
planejou. Inúmeros fatores podem alterar completamente a sua<br />
intenção. Até mesmo a sua vontade de fazer outra coisa, no<br />
momento exato de sair para a caça.<br />
- Porém, como eu consigo seguir um plano que não me<br />
lembro que tenha si<strong>do</strong> elabora<strong>do</strong>?<br />
- Na verdade, você o cumpre mesmo assim. Porque o seu<br />
desejo normalmente corresponde a isso e alguns fatos que ocorrem<br />
são como diretrizes que conduzem a um certo caminho. Além disso, o<br />
espírito encarna<strong>do</strong> sempre contará com o apoio <strong>do</strong>s espíritos de luz,<br />
para que consiga seguir o seu caminho, como foi idealiza<strong>do</strong>.<br />
- E por que nós não lembramos <strong>do</strong> que foi planeja<strong>do</strong><br />
antes de reencarnarmos e nem das outras vidas que já tivemos?<br />
- Há inúmeros motivos para que a lembrança não ocorra.<br />
Especialmente se o espírito está passan<strong>do</strong> por uma vida expiatória,<br />
purgan<strong>do</strong> os erros <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. A lembrança poderia reacender os<br />
mesmos problemas, sem que houvesse alguma possibilidade de<br />
reparação.<br />
- Mas a recordação <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> não poderia ajudar mais<br />
<strong>do</strong> que dificultar?<br />
- Na grande maioria das situações, em que a pessoa não<br />
se recorda, é porque não tem estrutura interior para isso: ela não<br />
está preparada para entender plenamente a verdade sobre si mesma.
Assim, a inconsciência <strong>do</strong>s fatos pretéritos é uma forma de<br />
autodefesa que a protege de sofrer mais <strong>do</strong> que poderia suportar. Se<br />
há coisas nessa vida que você não deseja recordar e procura sempre<br />
esquecer, imagine o que os acontecimentos desagradáveis de outras<br />
vidas poderiam lhe causar? Outro motivo, que poderia justificar a<br />
não-lembrança, seriam as provas, às quais o espírito é<br />
constantemente submeti<strong>do</strong>, para alcançar mais luz. Nesse caso, os<br />
testes só teriam real importância se suas atitudes fossem naturais, se<br />
tu<strong>do</strong> o que houvesse conquista<strong>do</strong> em vidas passadas, estivesse<br />
realmente assimila<strong>do</strong>, de tal forma, que o seu comportamento não<br />
fosse altera<strong>do</strong> em situações adversas. A recordação de fatos<br />
passa<strong>do</strong>s poderia tirar o mérito das novas conquistas. De uma coisa<br />
não tenha dúvida: dificilmente, em vidas passadas, fomos melhores,<br />
em termos espirituais, <strong>do</strong> que somos hoje.<br />
- Isso em razão de que em cada vida se evolui mais <strong>do</strong><br />
que na outra passada?<br />
- Exatamente, Agnã. É claro, entretanto, que mais uma<br />
vez tu<strong>do</strong> também está condiciona<strong>do</strong> à evolução <strong>do</strong> ser, <strong>do</strong><br />
esclarecimento espiritual que tenha. A recordação <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> é<br />
possível e você mesmo terá essa experiência, mas é preciso estar<br />
ciente de que é necessário um certo preparo interior, para que não<br />
surjam traumas irreparáveis posteriormente.
17 - OS ELEMENTAIS DAS ÁGUAS<br />
O sol forte <strong>do</strong> meio-dia e o cheiro de tapuia fizeram-me<br />
lembrar de que há dias eu não tomava banho.<br />
- Venerável Choam.<br />
- Sim, Agnã.<br />
- Estou precisan<strong>do</strong> me lavar. Vou procurar algum lugar<br />
aqui perto que tenha água corrente.<br />
- Não será difícil encontrar. Em qualquer direção em que<br />
possa ir haverá algum rio ou riacho, mas tome cuida<strong>do</strong>, você está em<br />
terras desconhecidas e estranhas.<br />
Após o conselho <strong>do</strong> cheroupi saí, em desabalada carreira<br />
e, não muito distante, escutei o barulho das águas corren<strong>do</strong> em meio<br />
às pedras.<br />
Logo cheguei a um pequeno lago de águas límpidas e<br />
transparentes. Estan<strong>do</strong> com sede, abaixei-me junto à margem para<br />
beber, porém, quan<strong>do</strong> olhei para a água, vi o meu rosto disforme, um<br />
tanto monstruoso. Como não havia ondas para alterar a imagem,<br />
olhei para trás e para cima procuran<strong>do</strong> encontrar algo que justificasse<br />
o que era refleti<strong>do</strong>. Não achei nada.<br />
Olhei novamente para as águas e dessa vez vi meu rosto<br />
fielmente espelha<strong>do</strong>, apenas as minhas orelhas estavam compridas e<br />
pontiagudas, como as de um tapiti. Era muito estranho. Passei as<br />
mãos pelas orelhas e olhei para os la<strong>do</strong>s e nada encontrei que<br />
justificasse aquela imagem.<br />
Mas quan<strong>do</strong> fixei novamente os olhos, levei um tremen<strong>do</strong><br />
susto e pulei para trás. Eu havia visto, além das orelhas de coelho,<br />
chifres em minha cabeça.<br />
Havia alguma coisa de erra<strong>do</strong>. Pus as mãos na cabeça e<br />
nada encontrei de anormal. Olhei de novo ao derre<strong>do</strong>r e só pude ver<br />
uma suindara trepada em um <strong>do</strong>s galhos de uma árvore, na outra<br />
margem <strong>do</strong> lago.<br />
Andan<strong>do</strong> de quatro, fui me aproximan<strong>do</strong> devagarzinho.<br />
Espiei um pouquinho e senti um alívio. A imagem <strong>do</strong> meu rosto era<br />
perfeitamente refletida.<br />
Decidi então abaixar-me para finalmente beber água,<br />
mas, para a minha surpresa, acabei é toman<strong>do</strong> um outro grande<br />
susto. Nem bem encostei as mãos na água e ela jorrou tão<br />
fortemente no meu rosto que me fez cair para trás.
Duas suindaras piavam sem parar na outra margem da<br />
lagoa.<br />
Não era possível! Será que eu estava sonhan<strong>do</strong>? Não<br />
havia nenhum peixe perto da margem que pudesse ter feito aquilo!<br />
Curioso e intriga<strong>do</strong> voltei a olhar cuida<strong>do</strong>samente para a<br />
água no mesmo lugar. Nada aconteceu. A minha imagem era<br />
nitidamente perfeita e não havia nenhum peixe.<br />
Temeroso, comecei a tomar água vagarosamente e,<br />
quan<strong>do</strong> terminei, percebi que havia novamente alguma coisa errada.<br />
Reparei que a minha imagem não estava mais sen<strong>do</strong><br />
refletida. Eu não acreditava no que estava acontecen<strong>do</strong>. Mexia na<br />
água e não via o meu rosto.<br />
Olhei de novo e dessa vez vi o meu reflexo, no entanto,<br />
não demorou muito e ele começou a mudar surgin<strong>do</strong> a figura de uma<br />
menina. Voltei-me rápi<strong>do</strong>, olhan<strong>do</strong> para os la<strong>do</strong>s e para trás e não vi<br />
mais ninguém. Só eu, a água com aquela imagem e três corujas<br />
trepadas na árvore.<br />
Comecei a achar que estava deliran<strong>do</strong>, talvez algum<br />
inseto tivesse me pica<strong>do</strong> e o seu veneno estaria me causan<strong>do</strong><br />
alucinações.<br />
A figura da menina mostrava que ela sorria<br />
debochadamente. Mexi nas águas e o reflexo desapareceu, surgin<strong>do</strong><br />
a imagem <strong>do</strong> meu rosto.<br />
Fiquei um bom tempo olhan<strong>do</strong> fixamente para o pequeno<br />
lago e nada mais aconteceu. Por fim, respirei fun<strong>do</strong> e achei que eu<br />
estava melhor e que não teria mais aquelas estranhas visões.<br />
Decidi<strong>do</strong> a tomar banho, entrei na lagoa, mas ainda<br />
cauteloso. Estava tu<strong>do</strong> in<strong>do</strong> bem. Em <strong>do</strong>is demora<strong>do</strong>s passos eu já<br />
estava com a água baten<strong>do</strong> na altura <strong>do</strong> peito e, no tempo de duas<br />
rápidas piscadas, eu já havia si<strong>do</strong> arremessa<strong>do</strong> para fora das águas,<br />
cain<strong>do</strong> de nádegas em uma pequena poça de lama.<br />
Não, isso não podia estar acontecen<strong>do</strong> comigo! Mas<br />
estava. Eu queria apenas lavar-me e acabei toman<strong>do</strong> um banho de<br />
lama.<br />
Eu não podia entender o que estava se passan<strong>do</strong>. Não<br />
havia mais ninguém por perto e, mesmo que houvesse, seria difícil<br />
que tivesse uma força tão grande para lançar-me das águas daquela<br />
forma. Também seria muito pouco provável que algum animal muito<br />
grande se aproximasse sem que eu percebesse.
Levantei-me e procurei me certificar de que estava<br />
absolutamente sozinho. Nada, apenas havia quatro corujas trepadas<br />
na árvore, uma ao la<strong>do</strong> da outra, que piavam sem parar.<br />
Eu queria achar alguma explicação. Os sustos que aquelas<br />
coisas estranhas me causavam não conseguiam evitar o meu<br />
interesse em descobrir a razão de tu<strong>do</strong> aquilo.<br />
Decidi entrar novamente na água, com muito cuida<strong>do</strong>. O<br />
primeiro passo foi sem problemas. O segun<strong>do</strong> passo também. Olhei<br />
bem para o fun<strong>do</strong> e podia enxergar claramente os meus pés sobre a<br />
areia branca e nada mais havia <strong>do</strong> que água. Permaneci para<strong>do</strong>,<br />
observan<strong>do</strong> atentamente tu<strong>do</strong> ao derre<strong>do</strong>r.<br />
Logo após, comecei a lavar-me bem devagar, achan<strong>do</strong><br />
estranho toda aquela calmaria. Quan<strong>do</strong> terminei, resolvi sair da água,<br />
mas, por mais que quisesse, não conseguia mexer as minhas pernas.<br />
Insisti, insisti e insisti, porém não pude dar nem meio passo.<br />
- Quero sair daqui! - gritei aos berros.<br />
Não sei, mas acho que teria si<strong>do</strong> melhor se eu não<br />
dissesse nada.<br />
Instantaneamente, fui novamente arremessa<strong>do</strong> para a<br />
lama e dessa vez de cabeça.<br />
Decidi ficar senta<strong>do</strong> ali mesmo. Eu, a lama, a lagoa e<br />
cinco barulhentas suindaras. Uma delas, que estava deitada de costas<br />
no tronco, era a que mais fazia estardalhaço, pian<strong>do</strong> e baten<strong>do</strong> as<br />
asas sem parar.<br />
Por fim, levantei-me, limpei o rosto sujo com as mãos<br />
sujas e fui até a margem. Supon<strong>do</strong> que tu<strong>do</strong> aquilo era obra de forças<br />
misteriosas, perguntei:<br />
- Quem está brincan<strong>do</strong> comigo? Por que não me deixa em<br />
paz? Só quero tomar um banho e nadar um pouco. Que mal há nisso?<br />
Silêncio total, até as corujas se calaram observan<strong>do</strong>-me<br />
atentamente. Em seguida, a superfície da lagoa começou a mudar e<br />
em várias partes surgiram inúmeros rostos de crianças, fazen<strong>do</strong><br />
incríveis caretas.<br />
- Muito bem, agora vocês são as <strong>do</strong>nas <strong>do</strong> pedaço! -<br />
gritei, revolta<strong>do</strong>.<br />
Sem que obtivesse alguma resposta, as caretas<br />
aumentaram.<br />
- Escutem bem. Eu estou novamente sujo e quero lavarme.<br />
Vamos combinar o seguinte: eu entro aí, tomo um banho e<br />
depois nós brincamos um pouco. Está bem?
Mesmo sem resposta, entrei na água resoluto e lavei-me<br />
rapidamente. Depois, para o meu posterior arrependimento,<br />
perguntei:<br />
- Então, <strong>do</strong> que vocês querem brincar?<br />
Segun<strong>do</strong>s após à minha ingênua pergunta eu estava<br />
senta<strong>do</strong> de novo na lama.<br />
Olhei para os la<strong>do</strong>s, para a lagoa e para as seis corujas e<br />
disse:<br />
- Se uma de vocês der um único pio, eu vou perder a<br />
paciência!<br />
Em pé, desisti de entrar na água:<br />
- Vou ficar assim mesmo. Afinal a lama é boa para a pele.<br />
- Pode se lavar, Agnã. - Surpreso e assusta<strong>do</strong>, identifiquei<br />
a voz de Choam.<br />
Olhei para a mata e vi surgin<strong>do</strong> entre as árvores a figura<br />
<strong>do</strong> cheroupi.<br />
- Venerável Choam, você tinha razão sobre as coisas<br />
estranhas. - Contei-lhe o que houvera aconteci<strong>do</strong>.<br />
O Setenário mostrava-se pouco impressiona<strong>do</strong> com o meu<br />
relato. Concluin<strong>do</strong>, eu disse:<br />
- Se não bastassem as brincadeiras sem graça <strong>do</strong>s<br />
espíritos das águas, ainda tive que agüentar o deboche de seis<br />
impertinentes corujas! - afirmei indigna<strong>do</strong>.<br />
Choam ficou me olhan<strong>do</strong>.<br />
- O venerável... gosta de coruja? - perguntei sem jeito,<br />
desconfia<strong>do</strong> de que sob as penas das suindaras havia pêlos de<br />
cheroupis.<br />
- Agnã - disse por fim após mais algum tempo - o que<br />
você viu não foram espíritos propriamente ditos. São os elementais<br />
das águas.<br />
- Como assim?<br />
- Você está lembra<strong>do</strong> <strong>do</strong>s curupiras?<br />
- Sim.<br />
- Eles também são elementais liga<strong>do</strong>s à terra, chama<strong>do</strong>s<br />
de gnomos.<br />
- Mas o que isso significa?<br />
- Como você já sabe, a essência divina, depois de suas<br />
experiências no reino mineral, vegetal e animal, passa por um<br />
perío<strong>do</strong> de adaptação para iniciar suas encarnações entre os homens.<br />
Isso ocorre em uma espécie de mun<strong>do</strong> paralelo ao plano físico,
chama<strong>do</strong> de plano elemental. Tem esse nome por que nesse plano a<br />
essência atrai, condensa e organiza as partículas necessárias para a<br />
composição <strong>do</strong>s corpos que o espírito deverá utilizar para as suas<br />
novas experiências como homem. Tais corpos serão estuda<strong>do</strong>s<br />
posteriormente. Agora só importa saber que é no plano elemental<br />
que a essência finalmente agrupa cada parte de um to<strong>do</strong> necessário<br />
para a sua formação espiritual primitiva. Nesse plano, a essência<br />
vagarosamente se desliga <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> animal e se prepara para se<br />
tornar efetivamente um espírito em condições de encarnar como<br />
homem. Ten<strong>do</strong> em vista que o plano elemental está muito liga<strong>do</strong> ao<br />
mun<strong>do</strong> físico, é comum que os elementais façam muitas incursões<br />
nesse meio. No começo, eles são animais um pouco mais evoluí<strong>do</strong>s,<br />
por isso ainda agem de mo<strong>do</strong> instintivo, sem muita vontade própria e<br />
às vezes se comportam como crianças temperamentais, ora alegres,<br />
ora aborrecidas...<br />
- Ora peraltas! - complementei.<br />
- É uma de suas características. Mas, muito ao contrário<br />
<strong>do</strong> que pode parecer, eles são muito mais conduzi<strong>do</strong>s, induzi<strong>do</strong>s e<br />
comanda<strong>do</strong>s.<br />
- Como assim?<br />
- Os espíritos de luz, que não precisam mais reencarnar,<br />
são responsáveis pela sua adaptação evolutiva, uma vez que,<br />
inicialmente, ainda estão desenvolven<strong>do</strong> sua individualidade. Mas, os<br />
elementais também desempenham uma importante tarefa no mun<strong>do</strong><br />
material. Sob o coman<strong>do</strong> <strong>do</strong>s espíritos superiores, eles são<br />
responsáveis por inúmeros fenômenos físicos, muitos <strong>do</strong>s quais<br />
incompreendi<strong>do</strong>s pelos homens. Isso em razão de terem melhores<br />
condições de agir no meio material. Em princípio, eles cuidam da<br />
natureza, das formas básicas de vida que eles já tiveram no passa<strong>do</strong>,<br />
como minerais, vegetais e animais. Assumem uma atitude protetora,<br />
agin<strong>do</strong> na defesa <strong>do</strong> meio físico onde estejam mais liga<strong>do</strong>s. Por isso<br />
assustam, incomodam e, de certa forma, atacam aqueles que causem<br />
algum dano à natureza ou que a coloque em perigo. Embora estejam<br />
sob ordens superiores, nem sempre são tão obedientes e, às vezes,<br />
essa desobediência é até aceitável e necessária para que comecem a<br />
desenvolver a sua personalidade e individualidade. Aí surge o la<strong>do</strong><br />
brincalhão, amistoso e carinhoso como um xerimbabo.<br />
- Mas nem to<strong>do</strong>s podem vê-los.<br />
- Entretanto, como você presenciou, se não é possível vêlos<br />
é possível senti-los. Os homens que não conseguem vê-los
assustam-se até mais, por não saber a origem das coisas anormais<br />
que acontece com eles.<br />
- O homem não pode controlá-los?<br />
- Pode, se tiver o conhecimento apropria<strong>do</strong>.<br />
- Seria o conhecimento oculto?<br />
- Sim, porque é restrito a poucas pessoas.<br />
- Esses elementais das águas têm formas variadas.<br />
- Sim. As ondinas, como são chama<strong>do</strong>s esses elementais<br />
das águas, podem ter as mais diversas formas. Normalmente os<br />
elementais adquirem a fisionomia <strong>do</strong>s animais que mais protegem.<br />
No caso das ondinas, podem tomar a forma de peixes, conchas, meio<br />
peixe e meio forma humana, cobras d'água, plantas aquáticas etc. Os<br />
elementais também podem causar ilusões, crian<strong>do</strong> imagens irreais,<br />
como o espelho d'água que você mesmo viu. Há determinadas<br />
regiões aonde eles se manifestam mais ativamente, agin<strong>do</strong> como<br />
ondas, correntes submersas, redemoinhos e o homem descuida<strong>do</strong><br />
pode correr sérios riscos, se não respeitar a natureza e não souber<br />
como agir. Mas para o indivíduo esclareci<strong>do</strong> no conhecimento<br />
esotérico, não haverá maiores problemas, pois saberá como se<br />
relacionar com os elementais.<br />
- E quem não tiver esse conhecimento, o que deverá<br />
fazer?<br />
- Seria necessário que pelo menos tivesse muita luz<br />
dentro de si mesmo, proveniente de sua moral elevada, virtudes<br />
cultivadas e a prática <strong>do</strong> bem. To<strong>do</strong>s os elementais respeitam e<br />
obedecem a qualquer espírito ilumina<strong>do</strong>.<br />
Caminhan<strong>do</strong> de volta ao acampamento, continuamos a<br />
conversar. As seis corujas seguiam logo atrás de nós, voan<strong>do</strong> a baixa<br />
altitude e pian<strong>do</strong>... pian<strong>do</strong>...
18 - A LUZ INTERIOR<br />
Embeveci<strong>do</strong> com os ensinamentos de Choam, o dia, para<br />
mim, passou rapidamente. No início da noite, os Setenários já<br />
estavam senta<strong>do</strong>s novamente em círculo, ao re<strong>do</strong>r da fogueira e eu<br />
encosta<strong>do</strong> no tronco de uma árvore, caída no chão.<br />
Sentia-me muito feliz, mas agora, pela primeira vez, a<br />
saudade batia forte no meu peito. A lembrança <strong>do</strong>s meus pais, a<br />
recordação das histórias <strong>do</strong> meu avô, <strong>do</strong>s amigos guerreiros e <strong>do</strong><br />
olhar brejeiro de Uiramirim, transportavam o meu coração para o<br />
meu povo.<br />
Uiramirim e eu estávamos prometi<strong>do</strong>s em casamento.<br />
Assim, ela só iria sair de seu confinamento com o meu retorno.<br />
Quan<strong>do</strong>? Não sabia responder.<br />
Também, a preocupação com Jauarana aumentava. Como<br />
ele estava? O que teria aconteci<strong>do</strong> com ele? Será que havia<br />
consegui<strong>do</strong> voltar para a aldeia?<br />
Dormi com muitas dúvidas atormentan<strong>do</strong> o meu espírito.<br />
No dia seguinte, voltei para as montanhas,<br />
acompanhan<strong>do</strong> Choam.<br />
Senta<strong>do</strong>s no mesmo local em que estivemos pela primeira<br />
vez e após apreciar novamente a linda paisagem ao re<strong>do</strong>r, o<br />
Setenário finalmente falou:<br />
- Uma das atitudes que ajuda o homem a resolver os seus<br />
problemas e a encontrar o caminho para o seu progresso evolutivo, é<br />
a reflexão.<br />
Como se conhecesse os meus silenciosos pensamentos,<br />
prosseguiu:<br />
- Refletir é voltar a consciência para si mesmo,<br />
procuran<strong>do</strong> analisar alguma coisa, seja os próprios sentimentos,<br />
desejos ou idéias. Para a reflexão, portanto, em primeiro lugar, é<br />
preciso definir o que será analisa<strong>do</strong>. Você tem alguma coisa que<br />
gostaria de submeter a esse processo?<br />
- Sim - respondi, sem dizer o que era.<br />
- Muito bem - prosseguiu o cheroupi, sem demonstrar<br />
maior interesse pelo objeto de minha reflexão. - Agora procure<br />
encontrar a melhor posição possível para poder relaxar.<br />
Achei melhor me deitar de costas para a relva. Após<br />
acomodar-me, Choam continuou:
- Agora feche os olhos e respire tranqüilamente, sentin<strong>do</strong><br />
o ar enchen<strong>do</strong> o peito. Segure um pouco a respiração e depois solte o<br />
ar bem devagar. Ao mesmo tempo, procure deixar os músculos<br />
soltos, eliminan<strong>do</strong> qualquer tensão. Em sua mente há diversos<br />
pensamentos. Como nos interessa que a atenção se volte apenas<br />
para um único assunto, procure abstrair-se <strong>do</strong>s demais pensamentos,<br />
retiran<strong>do</strong> da mente tu<strong>do</strong> o que não seja, exclusivamente, o que mais<br />
lhe preocupa. Você vai se concentrar somente no que quer analisar,<br />
ou seja, a sua atenção será unicamente dirigida a esse restrito<br />
objetivo, e tu<strong>do</strong> o mais deverá ser posto de la<strong>do</strong>, esqueci<strong>do</strong><br />
temporariamente. Deixe de franzir a testa e de fazer caretas -<br />
chamou-me a atenção. O ato de concentração não é um esforço físico<br />
e sim mental. O corpo tem que estar relaxa<strong>do</strong> e não tenso para que a<br />
atividade mental seja somente direcionada para o fim pretendi<strong>do</strong>.<br />
Choam, ven<strong>do</strong> que eu agora procurava seguir as suas<br />
instruções, continuou:<br />
- Deixe fluir apenas o pensamento sobre o assunto<br />
inicialmente proposto.<br />
Depois de um bom tempo nessa fase, calmamente ele<br />
prosseguiu:<br />
- Comece a analisar o assunto, pensan<strong>do</strong> em todas as<br />
alternativas, to<strong>do</strong>s os sentimentos envolvi<strong>do</strong>s, um por um, sem<br />
pressa.<br />
Passou-se mais um tempo considerável.<br />
- Escolha as coisas que julgue mais coerentes com o seu<br />
espírito que possam lhe proporcionar maior tranqüilidade interior.<br />
Fiz várias considerações a respeito da minha maior<br />
preocupação. Vi que, desde pequeno, muitas coisas inexplicáveis<br />
aconteciam comigo, e somente com os cheroupis eu estava realmente<br />
encontran<strong>do</strong> as explicações mais coerentes para to<strong>do</strong>s esses<br />
fenômenos.<br />
Em conseqüência, aguçava-se ainda mais a minha<br />
vontade de saber sobre os mistérios <strong>do</strong> espírito. Se eu voltasse para<br />
a tribo, deixaria de aprender tu<strong>do</strong> o que queria. Com o meu retorno,<br />
eu atenderia ao meu desejo de estar com as pessoas de quem<br />
gostava, mas eu deveria submeter-me ao ritual de guerreiro e teria<br />
que lutar e prender inimigos que seriam devora<strong>do</strong>s posteriormente.<br />
Isso não correspondia a minha vontade e eu seria infeliz.
Permanecen<strong>do</strong> com os cheroupis, embora eu sofresse<br />
pela falta <strong>do</strong>s que amava, o meu espírito acabaria encontran<strong>do</strong>, pelo<br />
saber, a melhor forma de superar as minhas secretas dificuldades.<br />
Em minha reflexão, comecei a entender que talvez<br />
algumas dificuldades fossem necessárias para provar que, realmente,<br />
eu seria capaz de merecer os sábios ensinamentos; que para se<br />
alcançar alguma coisa importante nessa vida, o espírito deveria<br />
demonstrar o seu valor. Isso não significava, necessariamente, que<br />
todas as outras coisas que eu desejasse, estariam condenadas ao<br />
esquecimento. Mas talvez eu as conquistasse, de uma maneira mais<br />
ampla e completa, através da consciência de sua verdadeira<br />
importância.<br />
Sim, resignar-me à <strong>do</strong>r que sentia, iria fazer com que ela<br />
<strong>do</strong>esse menos. A compreensão das minhas mais importantes<br />
necessidades acalmaria o meu coração aflito e a saudade seria a força<br />
motriz que me impulsionaria a seguir em frente, para que logo eu<br />
pudesse estar com as pessoas a quem mais amava, sem os riscos<br />
que me atormentavam a alma.<br />
Em seguida, vi uma luz extremamente brilhante e senti<br />
um alívio muito grande, como se um peso enorme saísse das minhas<br />
costas.<br />
- Contemple as suas soluções - disse Choam, como se<br />
estivesse acompanhan<strong>do</strong> os meus pensamentos - e aprecie esse<br />
momento ilumina<strong>do</strong> em que o seu espírito encontrou-se a si mesmo,<br />
em que a sua essência divina pôde manifestar.<br />
Fiquei mais um tempo absorto, em contemplação.<br />
- Abra os olhos e sente-se - disse o Setenário.<br />
- O processo pelo qual você acabou de passar chama-se<br />
meditação. Ela sempre lhe será útil em todas as situações de sua<br />
vida. Em princípio você irá meditar em relaxamento, mas o ideal é<br />
que você consiga meditar em qualquer circunstância e com muito<br />
mais rapidez. Quanto maiores as dificuldades para o relaxamento,<br />
maior deverá ser o seu poder de concentração. Isso significa<br />
disciplina no direcionamento da atenção que deverá unicamente<br />
abranger o assunto sobre o qual você deseja refletir. A disciplina<br />
mental é inseparável da concentração. Na meditação mais profunda,<br />
você usará o corpo mental.
19 - OS CORPOS <strong>DO</strong> HOMEM<br />
- Corpo? Como assim? Corpo mental?<br />
- A essência divina, como você sabe, é pura luz,<br />
aparentemente sem forma definida e, nessa condição, não consegue<br />
atuar diretamente na matéria. Por isso ela se reveste de<br />
determina<strong>do</strong>s corpos que exercem a função de intermediários para a<br />
sua ação no meio físico. Os corpos possuem uma densidade variável<br />
que se apresentam como camadas. Os mais próximos <strong>do</strong> espírito são<br />
muito sutis, de uma constituição muito mais afinada com a luz da<br />
essência. Os outros, mais perto <strong>do</strong> corpo físico, são mais densos.<br />
To<strong>do</strong>s eles, além de servirem como de permeio entre o espírito e a<br />
matéria, também possuem outras funções. O primeiro corpo que<br />
reveste o espírito, sem lhe dar no entanto uma forma mais definida, é<br />
o corpo divino. Nele o ser manifesta-se na plenitude de sua essência<br />
cria<strong>do</strong>ra, repleto <strong>do</strong>s atributos herda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Pai Maior. Uma das<br />
inúmeras faculdades que o espírito expressa nesse corpo, é a<br />
intuição. Por isso também é chama<strong>do</strong> de corpo intuitivo.<br />
Depois de uma pausa, Choam continuou:<br />
- Muitas vezes, pela meditação, a essência divina se<br />
manifesta por esse corpo. Por alguns instantes, você tem a sensação<br />
estranha de ser um deus, de conhecer coisas impossíveis de serem<br />
entendidas, de saber sem ter estuda<strong>do</strong>, de ver sem olhar, de sentir<br />
sem tocar, de estar em muitos lugares sem se mexer, de encontrar o<br />
caminho a ser trilha<strong>do</strong> e seguir sem a menor hesitação e contestação.<br />
O segun<strong>do</strong> revestimento <strong>do</strong> espírito chama-se corpo causal, também<br />
denomina<strong>do</strong> de mental superior, de onde surgem os pensamentos<br />
abstratos, subjetivos, simbólicos etc. Esse corpo conduz o espírito a<br />
buscar o seu aperfeiçoamento pela união com os outros seres e se<br />
manifesta sempre que você pensa no coletivo. Por exemplo, quan<strong>do</strong><br />
você reflete no que um índio deve fazer para ser feliz, na verdade<br />
você está pensan<strong>do</strong> não em alguém específico, mas no que uma tribo<br />
toda deveria fazer para ser feliz. O terceiro corpo é o mental, onde o<br />
espírito manifesta as suas idéias e transmite as ordens e impulsos <strong>do</strong><br />
livre-arbítrio e da vontade. Diferencia-se <strong>do</strong> mental superior por<br />
expressar pensamentos concretos, analíticos, objetivos e lógicos. Por<br />
exemplo, quan<strong>do</strong> você reflete como o seu pai deve fazer para<br />
construir uma oca, você está pensan<strong>do</strong> em uma determinada pessoa<br />
e sobre uma atividade específica. É nesse corpo que o plano de vida<br />
fica indelevelmente registra<strong>do</strong>. O quarto envoltório que reveste o
espírito é o corpo astral, que projeta e registra as emoções e<br />
sentimentos. A essência, revestida com esse corpo, já adquire uma<br />
forma mais definida e semelhante ao físico. O último corpo, que serve<br />
de intermediário entre o espírito e o corpo físico, é o etéreo, também<br />
chama<strong>do</strong> de vital ou duplo etéreo. Esse veículo somente é usa<strong>do</strong><br />
quan<strong>do</strong> o ser está encarna<strong>do</strong>. É o mais denso de to<strong>do</strong>s e idêntico ao<br />
físico em todas as suas partes. Sua constituição é essencialmente<br />
energética e é ele que capta, gera, armazena, condensa e distribui<br />
boa parte da energia necessária ao organismo humano. Muito<br />
maleável, a parte <strong>do</strong> duplo etéreo, que está próxima <strong>do</strong> corpo astral,<br />
possui partículas mais sutis e a que está ligada ao físico é mais<br />
densa. Esse corpo se forma momentos antes <strong>do</strong> corpo físico ser<br />
gera<strong>do</strong> e apesar das características físicas que o homem pode herdar<br />
<strong>do</strong>s seus pais, é o duplo etéreo que dá forma final ao físico. Outra<br />
finalidade <strong>do</strong> invólucro vital é a de transmitir aos outros corpos os<br />
estímulos que o organismo físico capta <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> terrestre. Todas as<br />
sensações que o corpo humano tem, são passadas ao duplo etéreo<br />
que as repassa ao corpo astral que, por sua vez, as retransmite ao<br />
envoltório mental e esse ao mental superior que, por fim, as<br />
transporta ao corpo divino para a ciência <strong>do</strong> espírito.<br />
- Mas isso não é muito demora<strong>do</strong>?<br />
- Com a explicação detalhada parece que sim, porém, as<br />
informações auditivas, visuais, as de tato, de paladar, de olfato, de<br />
temperatura, de <strong>do</strong>r e tantas outras são conduzidas ao espírito de<br />
uma forma muitíssimo rápida. Muitas vezes, bem mais rápida <strong>do</strong> que<br />
um piscar de olhos, instantaneamente. Por sua vez, todas as ordens<br />
<strong>do</strong> espírito são enviadas ao corpo físico pelo caminho inverso,<br />
começan<strong>do</strong> pelo corpo divino e in<strong>do</strong> até ao duplo etéreo, antes de<br />
chegar ao organismo. To<strong>do</strong>s os seus desejos, as suas vontades,<br />
iniciam-se no espírito. Quan<strong>do</strong> você corre, sobe em uma árvore, lança<br />
uma flecha etc., o seu corpo físico só está cumprin<strong>do</strong> as ordens <strong>do</strong><br />
espírito, que se manifesta através <strong>do</strong>s corpos menciona<strong>do</strong>s.<br />
- Mas são muitos envoltórios!<br />
- Na verdade, alguns desses invólucros possuem outras<br />
tantas divisões, que em outra oportunidade serão melhor estudadas.<br />
- E quan<strong>do</strong> o homem morre, o que acontece com esses<br />
corpos?<br />
- Quan<strong>do</strong> o espírito se afasta <strong>do</strong> organismo inerte, leva<br />
consigo to<strong>do</strong>s os outros corpos espirituais, menos o duplo etéreo.
- E o que acontece com esse duplo?<br />
- Como a sua principal função é de permitir que o espírito<br />
se manifeste no físico, com a morte ele perde a sua importância, por<br />
isso se decompõe logo em seguida ao desligamento <strong>do</strong> espírito.<br />
- Quanto tempo demora?<br />
- Se for um espírito muito apega<strong>do</strong> ao mun<strong>do</strong> físico, a<br />
desintegração pode durar até noventa dias, aproximadamente.<br />
- E se for um espírito mais ilumina<strong>do</strong>?<br />
- Nesse caso, o duplo etéreo pode desintegrar-se na<br />
mesma hora.<br />
- Como isso acontece?<br />
- Outros espíritos de luz auxiliam no desencarne, atuan<strong>do</strong><br />
diretamente nas partículas <strong>do</strong> corpo vital, fazen<strong>do</strong> com que elas se<br />
condensem. Quan<strong>do</strong> isso ocorre, as partículas entram em atrito tão<br />
forte que geram um calor muito intenso, chegan<strong>do</strong>, às vezes, até<br />
mesmo a produzir um facho de fogo. Assim, o duplo vital se desfaz.<br />
Depois de uma pausa, o Setenário disse:<br />
- Venha comigo.<br />
Andamos calmamente por outras paragens, também<br />
desconhecidas para mim, em que havia construções muito antigas e<br />
aban<strong>do</strong>nadas.<br />
Chegamos a um lugar muito bonito. Hortaliças, flores, frutos<br />
que eram agradáveis aos olhos e que despertavam a vontade de<br />
saboreá-los. Não existia um único fruto estraga<strong>do</strong>, nem mesmo era<br />
possível encontrar alguma folha atacada por pragas ou envelhecida.<br />
Com exceção das abelhas, nenhum outro inseto voava por perto.<br />
Choam apanhou <strong>do</strong> chão uma fruta verde e enorme, que eu não<br />
conhecia, três vezes maior que a cabeça de um homem. Usan<strong>do</strong> uma<br />
lâmina brilhante, de finíssimo corte, partiu-a ao meio. Por dentro, ela<br />
tinha uma polpa vermelha, com sementes, e na extremidade interna,<br />
perto da casca, havia uma parte branca e estreita.<br />
- É uma melancia. Experimente.<br />
Logo que abocanhei um pedaço que ele havia me ofereci<strong>do</strong>, a<br />
polpa dissolveu-se na boca, liberan<strong>do</strong> uma água <strong>do</strong>ce e deliciosa.<br />
A parte branca era mais dura e de gosto amargo, por isso a<br />
joguei fora.<br />
- Essa fruta é muito boa para tratar de problemas urinários e de<br />
reumatismo, como você estudará futuramente com mais propriedade.<br />
Por hora, o que mais interessa entender é que a água <strong>do</strong>ce da<br />
melancia encontra-se em pequenos casulos na sua parte vermelha,
que é a mais macia, muito sutil, pois qualquer espremida libera a<br />
água. A parte vermelha une-se com a parte branca, que não é<br />
saborosa ao paladar, mas que serve de interligação com a casca da<br />
melancia, que é a parte mais dura. Se você reparar, irá perceber que<br />
essa parte branca é mais mole perto da polpa vermelha e mais dura<br />
próxima da casca. Assim como a água da melancia não está solta na<br />
terra, precisan<strong>do</strong> da polpa vermelha para se alojar e da parte branca<br />
para se prender à casca, o espírito também necessita de corpos<br />
intermediários para se manifestar no meio físico. O duplo etéreo atua<br />
como a parte branca da melancia, servin<strong>do</strong> como uma interligação<br />
final entre o corpo astral e o corpo físico. Quan<strong>do</strong> você comeu o<br />
pedaço da fruta que eu lhe dei, você jogou fora a parte branca com a<br />
casca e, com o tempo, ela apodrecerá mais rapidamente que a casca.<br />
Também isso ocorre com o etéreo - continuou. - Com a morte, ele se<br />
desprende <strong>do</strong>s outros corpos mais sutis <strong>do</strong> espírito e se desfaz<br />
juntamente com o corpo físico, mas com maior rapidez.<br />
Caminhan<strong>do</strong> até o final <strong>do</strong> dia por aquele lugar interessante,<br />
Choam mostrou-me muitas outras plantas, explican<strong>do</strong> o seu valor<br />
medicinal.
20 - A PERCEPÇÃO<br />
No dia seguinte acordei muito bem disposto. Estava sentin<strong>do</strong>me<br />
cada vez melhor naquele lugar.<br />
- Você está com uma ótima aparência, Agnã - disse o cheroupi.<br />
- Venerável, há alguma coisa diferente nos alimentos que tenho<br />
comi<strong>do</strong>?<br />
- Toda a alimentação aqui tem valor terapêutico. Decerto você<br />
já recuperou todas as suas energias.<br />
- Hoje eu estou com uma disposição incrível. Tenho vontade de<br />
correr sem parar pela mata adentro.<br />
- Então corra. Dê um passeio pelos arre<strong>do</strong>res.<br />
O sorriso maroto <strong>do</strong> Setenário deixou-me preocupa<strong>do</strong>.<br />
- Há mais coisas por aí que eu ainda não compreenda? -<br />
perguntei por cautela.<br />
- Você está em processo de aprendiza<strong>do</strong>. Aliás, isso é uma<br />
coisa freqüente para quem busca o seu auto-aperfeiçoamento. Por<br />
isso, sempre esteja pronto para adquirir mais conhecimentos.<br />
Antes que eu saísse em desabalada carreira, o Setenário fez<br />
apenas uma última recomendação:<br />
- Se você for em direção das montanhas, não ultrapasse a<br />
terceira.<br />
- Há algum perigo por lá?<br />
- Talvez...<br />
Corren<strong>do</strong>, logo cheguei à primeira montanha. Além da beleza<br />
exuberante da mata e <strong>do</strong>s animais exóticos, não havia outras coisas<br />
que me fizessem permanecer ali. Segui então para a segunda<br />
montanha. Era tão linda quanto a primeira. Depois de subir em<br />
árvores enormes e saborear os mais diversos frutos, caminhei na<br />
direção da terceira montanha.<br />
Lembran<strong>do</strong>-me da advertência de Choam, no começo evitei<br />
ultrapassá-la, porém, a minha curiosidade era muito grande e, com<br />
cuida<strong>do</strong>, fui seguin<strong>do</strong>, passo a passo, acaban<strong>do</strong> por descê-la até o<br />
fim. Como durante to<strong>do</strong> o tempo em que eu caminhei nada pude<br />
encontrar de perigoso, sen<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> perfeitamente normal, acabei<br />
despreocupan<strong>do</strong>-me.<br />
Depois de uma hora de caminhada, cheguei a uma região mais<br />
árida, de pequenas colinas. Passan<strong>do</strong> pelas colinas, a terra ficava<br />
cada vez mais seca, com pouca vegetação.
Em certa altura, pude ver ao longe uma pequena área<br />
arborizada, e, no entanto, por mais que andasse, não conseguia<br />
alcançá-la.<br />
Olhei para trás e quase não podia ver as montanhas. Nem<br />
acreditei que tivesse anda<strong>do</strong> tanto. O calor era terrível, o solo<br />
arenoso ardia em brasa e mesmo com a sola <strong>do</strong> pé grossa e quase<br />
insensível por andar sempre descalço, já não estava mais agüentan<strong>do</strong><br />
pisar naquele chão.<br />
Com sede, comecei a pensar que seria muito bom se Choam<br />
viesse ao meu encontro, trazen<strong>do</strong> uma cabaça cheia de água.<br />
Repentinamente, para a minha surpresa, eu vejo o Setenário a<br />
minha frente, carregan<strong>do</strong> uma vasilha. Mas ele estava bem diferente.<br />
A cor de sua pele, <strong>do</strong>s seus olhos, <strong>do</strong>s seus cabelos e de sua roupa<br />
era toda esbranquiçada, até mesmo a cabaça.<br />
- Choam! Que bom revê-lo! - exclamei, anima<strong>do</strong>.<br />
O cheroupi sorria para mim e, sem dizer nada, ofereceu-me o<br />
vasilhame.<br />
Peguei a cabaça e, ao levá-la à boca, vi que o líqui<strong>do</strong> em seu<br />
interior parecia com leite. Quan<strong>do</strong> procurei bebê-lo, não consegui.<br />
Achan<strong>do</strong> que havia alguma coisa errada, tentei derramá-lo no chão e,<br />
para a minha surpresa, ele sumia assim que era verti<strong>do</strong>.<br />
- Venerável! O que está acontecen<strong>do</strong>?<br />
Sem me responder, ele permanecia sorrin<strong>do</strong> para mim.<br />
Quan<strong>do</strong> comecei a me sentir enfraqueci<strong>do</strong>, notei que Choam e a<br />
vasilha começaram a desaparecer, até que sumiram completamente.<br />
- Choam! Choam! Não vá embora! - gritei.<br />
De nada adiantou, ele se foi.<br />
A sede aumentava e comecei a ficar angustia<strong>do</strong>. Achei que<br />
estava sen<strong>do</strong> castiga<strong>do</strong> por não ter segui<strong>do</strong> a advertência <strong>do</strong><br />
Setenário.<br />
Tentei meditar, mas os meus pensamentos não eram<br />
conclusivos, nem sequer eu conseguia ordená-los. Indeciso, eu não<br />
sabia se deveria continuar marchan<strong>do</strong> em direção da pequena mata,<br />
que continuava a avistar de longe, ou se retornava para o<br />
acampamento, ten<strong>do</strong> que percorrer uma distância muito maior.<br />
Com o raciocínio lento, finalmente decidi voltar, pois se aquilo<br />
era um castigo, os Setenários veriam, na minha atitude, to<strong>do</strong> o meu<br />
arrependimento e viriam salvar-me.<br />
Para o meu desespero, entretanto, quan<strong>do</strong> dei meia-volta, não<br />
tinha certeza de que aquela era a direção <strong>do</strong> acampamento, pois já
não avistava mais as montanhas. O sol alto parecia não se mover e<br />
nenhuma outra referência eu tinha para encontrar o caminho de<br />
volta. Consegui me perder.<br />
- Munhã! Ó grande pai! Tenha piedade de mim! - Comecei a<br />
orar, mas não obtive qualquer resposta divina e me julguei<br />
completamente aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>.<br />
Continuei a caminhar sem saber para onde ir e cada passo era<br />
muito sofri<strong>do</strong> com o calor e com a sede insustentável.<br />
Lembrei-me da abundância d’água das terras em que a minha<br />
tribo se encontrava. Recordei-me <strong>do</strong>s amigos, de Uiramirim e de<br />
meus pais.<br />
Não demorou muito e comecei ver ao longe uma mulher, vin<strong>do</strong><br />
em minha direção. Ao aproximar-se, vi que era a minha mãe<br />
carregan<strong>do</strong> um recipiente.<br />
- Mãe, o que está fazen<strong>do</strong> aqui?<br />
- Vim lhe trazer água para saciar a sua sede - respondeu,<br />
oferecen<strong>do</strong>-me a vasilha transbordante <strong>do</strong> líqui<strong>do</strong> tão precioso.<br />
Tentei pegar a caneca, mas não conseguia: a minha mão a<br />
transpassava sem tocá-la.<br />
- Mãe, não consigo pegar, sirva-me por favor.<br />
Porém, quan<strong>do</strong> ela entornou a caneca em minha boca, para a<br />
minha agonia, a água caía no chão, sem sequer molhar os meus<br />
lábios.<br />
Em um ato de desespero, tentei inutilmente tomar-lhe a cuia.<br />
Entretanto, as minhas mãos continuavam a atravessá-la sem<br />
conseguir pegá-la.<br />
Ven<strong>do</strong> a água derramada sobre a areia, caí de boca no chão,<br />
para tentar sugar ao menos uma única gota. Tu<strong>do</strong> em vão. A água, a<br />
caneca e a minha mãe sumiram.<br />
Decidi<strong>do</strong> a prosseguir, levantei-me e, cambaleante, continuei<br />
caminhan<strong>do</strong> para lugar nenhum.<br />
De repente, outro alento. Vi uma poça d'água, não muito<br />
distante. Fazen<strong>do</strong> emergir as minhas últimas forças, consegui correr<br />
e joguei-me sobre ela. Quan<strong>do</strong> dei por mim, mais uma vez eu estava<br />
beben<strong>do</strong> areia.<br />
Fiquei estendi<strong>do</strong> ali mesmo, com os lábios feri<strong>do</strong>s e desola<strong>do</strong>. Vi<br />
Uiramirim se aproximan<strong>do</strong> de mim, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Meu ama<strong>do</strong>, vim cantar para aliviar a sua <strong>do</strong>r.<br />
Não sabia se aquilo era realidade, uma visão ou um sonho. Em<br />
seguida, surgiu o meu avô dizen<strong>do</strong>:
- Agnã, eu lhe trouxe cauim, mas como você não bebe, vou<br />
jogar fora.<br />
Depois, veio o meu pai:<br />
- Filho, vamos para a guerra capturar os inimigos e depois<br />
devorá-los! - e dava sonoras gargalhadas.<br />
Por fim, surgiram sete urubus, voan<strong>do</strong> sobre mim. Sentia que o<br />
meu destino estava próximo. Era o aviso da morte.<br />
Nos meus últimos momentos de agonia, uma sombra cobriu o<br />
meu corpo em chagas. Era um homem com vestes brancas e<br />
encapuza<strong>do</strong>. Os seus olhos eram azuis como o céu e sua barba era<br />
grisalha.<br />
Quan<strong>do</strong> ele retirou o capuz eu o identifiquei. Era o aba<br />
morotinga, o mesmo homem que surgira tempos atrás, orientan<strong>do</strong>me<br />
a encontrar o mirim que havia si<strong>do</strong> rapta<strong>do</strong> pelos tapuia durante<br />
a caravana.<br />
No meu delírio, perdi a consciência.
21 - O SENSITIVO<br />
Quan<strong>do</strong> abri os olhos, o aba morotinga não estava mais ao meu<br />
la<strong>do</strong>.<br />
- Levante-se, Agnã!<br />
Para o meu alívio, era Choam quem se aproximava de mim,<br />
sorrin<strong>do</strong>.<br />
- É você mesmo, Choam? - perguntei, não acreditan<strong>do</strong> muito<br />
que fosse real.<br />
- Sim, Agnã. Você está melhor?<br />
Olhei para o meu corpo e não havia uma única ferida sequer.<br />
Até os meus lábios estavam normais.<br />
- As minhas feridas sumiram e não estou mais com sede! -<br />
disse, espanta<strong>do</strong>.<br />
Pon<strong>do</strong>-me de pé e me sentin<strong>do</strong> plenamente revigora<strong>do</strong>, olhei ao<br />
derre<strong>do</strong>r, perceben<strong>do</strong> que estávamos em um outro lugar, muito<br />
arboriza<strong>do</strong>.<br />
- Choam, desculpe-me, estou arrependi<strong>do</strong>, eu deveria ter<br />
segui<strong>do</strong> a sua recomendação.<br />
- Não há de que se desculpar.<br />
- Mas você deve estar aborreci<strong>do</strong> e desaponta<strong>do</strong> comigo.<br />
- Não se julgue pelo que os outros possam estar pensan<strong>do</strong>.<br />
Você é o seu próprio juiz, esteja consciente ou não <strong>do</strong>s seus atos ou<br />
<strong>do</strong> seu autojulgamento. Tu<strong>do</strong> o que se faz na vida, certo ou erra<strong>do</strong>, é<br />
uma experiência a mais que se adquire. O importante é que se saiba<br />
tirar o melhor proveito possível dessas oportunidades de aprendiza<strong>do</strong>,<br />
para não estar sujeito novamente às mesmas provas.<br />
O venerável começou a caminhar pela mata e eu o segui logo<br />
atrás.<br />
Não demorou muito e chegamos em um lugar muito<br />
enigmático. Em meio a inúmeras flores e rodea<strong>do</strong> de umeris, árvores<br />
de um perfume muito agradável, havia um local em que quatro varas<br />
estavam dispostas na forma de uma pirâmide, sem nada que lhe<br />
servisse de parede. Do chão até o vértice superior, dava a altura de<br />
três homens.<br />
Dentro da pirâmide havia um pedaço de tronco de madeira,<br />
com o diâmetro de <strong>do</strong>is braços, disposto no centro, como uma<br />
pequena mesa re<strong>do</strong>nda. O miolo <strong>do</strong> tronco era oco e no seu interior<br />
destacava-se um cristal lilás, de muitas pontas.
Ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> tronco, um pouco mais afasta<strong>do</strong>s, estavam<br />
dispostos sete pequenos bancos de madeira arre<strong>do</strong>nda<strong>do</strong>s e sem pés.<br />
O chão era coberto por uma grama bem aparada e muito verde.<br />
- Chamamos esse lugar de Refúgio <strong>do</strong> Eremita - disse Choam.<br />
Entramos na pirâmide. O Setenário me fez sentar em um<br />
banquinho, acomodan<strong>do</strong>-se em um outro, bem de frente para mim,<br />
<strong>do</strong> la<strong>do</strong> oposto <strong>do</strong> tronco maior que servia como uma mesa.<br />
Olhan<strong>do</strong> bem para os meus olhos, ele perguntou:<br />
- Por que você seguiu além da terceira montanha?<br />
- Não sei, acho que fui atraí<strong>do</strong> pela curiosidade.<br />
- A curiosidade, para os indivíduos não esclareci<strong>do</strong>s e sem<br />
maiores pretensões no mun<strong>do</strong> ocultista, é válida para despertar o<br />
interesse por assuntos místicos, mas é muito perigosa para uma<br />
aventura sem que se obedeça aos princípios e às regras a ele<br />
inerentes. Além disso, o correto aprendiza<strong>do</strong> esotérico pode facultar<br />
o despertar <strong>do</strong>s poderes paranormais e isso pode trazer paz,<br />
felicidade e crescimento espiritual, mas a simples e inadvertida<br />
curiosidade, bem como o desvaira<strong>do</strong> uso de tal conhecimento, pode<br />
redundar em sofrimento, <strong>do</strong>r, tristeza e na loucura. Melhor seria que<br />
nada soubesse.<br />
- E quais são essas normas?<br />
- Entre muitas, uma delas é o preceito que exige uma vontade<br />
sincera de buscar a melhoria interior, o aperfeiçoamento próprio, o<br />
desejo verdadeiro de alcançar um nível maior de compreensão da<br />
importância da vida espiritual, o seu real significa<strong>do</strong>. O outro é a<br />
disciplina. Para o perfeito funcionamento de to<strong>do</strong> o sistema celeste,<br />
as leis <strong>do</strong> Universo impõem a ordem, mesmo onde se acredite haver<br />
o caos. Fica, então, mais fácil compreender que, se o conjunto das<br />
criações divinas possui determinadas características, as pequenas e<br />
ínfimas partes, nas quais nos incluímos, e que formam o to<strong>do</strong>,<br />
também devem apresentar as mesmas particularidades. Ou seja, o<br />
ordenamento universal requer a disciplina individual para que tu<strong>do</strong><br />
funcione adequadamente. Para o ser ilumina<strong>do</strong>, a disciplina não<br />
significa severidade, e sim seriedade. Se você quer conquistar alguma<br />
coisa em sua vida, deve estar disposto a se submeter às regras<br />
inerentes a esse processo. Caso desobedeça a algum preceito, algo<br />
acontecerá para que saiba que isso não deve ocorrer. Outra norma<br />
diz respeito aos testes a que você será sempre submeti<strong>do</strong> para<br />
provar a sua vontade, disciplina, assimilação <strong>do</strong>s conhecimentos e o
om uso deles. Alguns ocorrerão durante o aprendiza<strong>do</strong>, outros, mais<br />
importantes e difíceis, virão no final.<br />
- Eu fui submeti<strong>do</strong> a provas?<br />
- Sim.<br />
- Então eu falhei?<br />
- O seu teste era simples. Bastava ser obediente ao conselho. A<br />
sua inicial indisciplina favoreceu todas as suas falhas.<br />
- Mas por que eu não podia ir além das montanhas?<br />
- Para certas experiências místicas é preciso estar bem<br />
prepara<strong>do</strong> e você ainda não estava. Pouco você sabe sobre a sua<br />
capacidade paranormal e os seus desígnios.<br />
- Por que nem todas as pessoas têm essa faculdade?<br />
- Normalmente, o homem está limita<strong>do</strong> à percepção que seus<br />
órgãos físicos lhe permitem, como a visão, a audição, o paladar, o<br />
olfato, o tato e outras mais essencialmente físicas e não tem<br />
consciência de tu<strong>do</strong> o que seu espírito pode fazer. Mas há indivíduos,<br />
como você, que conseguem perceber coisas que vão além da<br />
capacidade <strong>do</strong> homem comum e que muitas vezes dizem respeito ao<br />
mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s espíritos. Por isso são chama<strong>do</strong>s de sensitivos.<br />
Invariavelmente, porém, isso não é um simples privilégio, como<br />
acredita a maioria <strong>do</strong>s pajés.<br />
- Por quê?<br />
- Por causa da responsabilidade que se deve assumir pelo bom<br />
uso dessa capacidade, que pode conferir ao indivíduo poderes<br />
incalculáveis. Muitas vezes também é necessário que essa<br />
paranormalidade seja convenientemente desenvolvida, com plena<br />
consciência. Isso ocorre de uma maneira mais fácil quan<strong>do</strong> o<br />
indivíduo possui o necessário conhecimento esotérico. O saber oculto<br />
propicia ainda, um uso mais conveniente da hipersensibilidade.<br />
- E como um sensitivo faria um sábio uso de seus poderes?<br />
- Dedican<strong>do</strong>-se não apenas a sua evolução, mas ao bem de<br />
todas as pessoas, o que por si só já lhe faculta um grande<br />
crescimento interior. Não se esqueça de que, para o homem de bem,<br />
o conhecimento oculto mostra o caminho correto da evolução e a<br />
capacidade paranormal torna-se um instrumento muito útil que<br />
servirá como asas para se atingir mais rapidamente o objetivo maior.
22 - OS FANTASMAS<br />
- Ainda estou um pouco confuso. Não consegui entender o que<br />
aconteceu comigo.<br />
- Então comece a meditar a respeito.<br />
Seguin<strong>do</strong> a orientação <strong>do</strong> venerável, fechei os meus olhos<br />
e respirei profundamente, procuran<strong>do</strong> relaxar cada músculo <strong>do</strong> meu<br />
corpo.<br />
Pensei sobre a primeira visão que tive, na qual vi Choam<br />
com o seu corpo to<strong>do</strong> pinta<strong>do</strong> de branco, oferecen<strong>do</strong>-me uma cabaça<br />
branca que continha um líqui<strong>do</strong> também na mesma cor.<br />
- Era eu mesmo? - perguntou Choam, acompanhan<strong>do</strong> o<br />
meu pensamento.<br />
- Agora, analisan<strong>do</strong>, acho que a imagem era sua, mas não<br />
era você. Não sei o que poderia ser, mas...<br />
- Você viu uma imagem plasmática criada e direcionada<br />
pelos seus próprios pensamentos.<br />
- Plasmática? Criada por mim?<br />
- Você, como algumas pessoas, possui abundância de<br />
energia vital que é aquela que anima o corpo etéreo. Esse excesso,<br />
quan<strong>do</strong> não é devidamente emprega<strong>do</strong>, principalmente em curas,<br />
fica, em termos, disponível e pode facilmente transformar-se em<br />
matéria etérica, aumentan<strong>do</strong> o volume <strong>do</strong> duplo vital. Com a vontade<br />
consciente ou inconsciente <strong>do</strong> indivíduo, a matéria <strong>do</strong> corpo etéreo<br />
pode ser expelida pelos poros e pelos orifícios <strong>do</strong> corpo físico,<br />
forman<strong>do</strong> uma massa cuja densidade pode variar desde uma simples<br />
nuvem branca, até uma substância mais consistente, tão dura quanto<br />
qualquer rocha e, portanto, bem visível ao olho humano. A forma<br />
dessa substância vital, também pode ser moldada de acor<strong>do</strong> com a<br />
intenção consciente ou inconsciente <strong>do</strong> sensitivo. Os movimentos <strong>do</strong><br />
que foi materializa<strong>do</strong> obedecem, da mesma maneira, à intenção<br />
explícita ou implícita <strong>do</strong> paranormal. A matéria vital é plasmática<br />
porque tem essa propriedade de ser muito maleável. Quan<strong>do</strong> você<br />
desejou me ver com uma cabaça cheia de água, a sua força mental<br />
fez com que uma porção da sua matéria vital saísse <strong>do</strong> corpo etéreo e<br />
tomasse a forma que você idealizou. Ocorreu o chama<strong>do</strong> efeito físico.<br />
- Por que tinha essa cor leitosa?<br />
- Porque é a cor natural <strong>do</strong> corpo etéreo. Às vezes, ela<br />
pode ter um tom mais azula<strong>do</strong> ou violáceo.<br />
- E para onde foi essa matéria quan<strong>do</strong> desapareceu?
- Voltou para o seu próprio duplo vital, uma vez que não<br />
pode desligar-se efetivamente desse e nem pode permanecer por<br />
muito tempo exposta, sem causar grande fraqueza ao sensitivo.<br />
- Por isso eu me senti tão debilita<strong>do</strong>?<br />
- Sem dúvida.<br />
- Alguns homens e mulheres da minha tribo contam<br />
muitas histórias sobre fantasmas, espíritos to<strong>do</strong>s de branco, vagan<strong>do</strong><br />
pela floresta ou pelas ocas onde moravam antes de morrer. O que<br />
eles viam era a materialização de matéria etérica?<br />
- Se inclusive a cor da pele das pessoas que eles viram<br />
tinha a cor leitosa, provavelmente poderia ser, porém, nesse caso,<br />
em se tratan<strong>do</strong> de espíritos de morte recente, o mais comum seria<br />
que a matéria etérica fosse <strong>do</strong> próprio morto e não da pessoa que o<br />
viu.<br />
- Como assim?<br />
- Eu lhe disse que quan<strong>do</strong> o indivíduo morre o seu corpo<br />
vital também se decompõe. Às vezes, entretanto, pode acontecer que<br />
o duplo se desprenda <strong>do</strong> físico e fique por algum tempo vagan<strong>do</strong> sem<br />
destino, até se desfazer. Se a energia vital <strong>do</strong> morto era muito forte<br />
na hora <strong>do</strong> seu falecimento, é capaz que chegue a se materializar.<br />
- Mas, nesse caso, seria uma forma vazia, sem espírito,<br />
sem vontade própria?<br />
- Exatamente. E desse jeito não poderia fazer mal algum,<br />
apenas causaria um grande susto em quem a avistasse. Em alguns<br />
dias, porém, ela perderia gradativamente a sua força de<br />
materialização e logo deixaria de ser visível. Agora volte a meditar.<br />
Lembrei-me da minha mãe. Mas como, na minha visão,<br />
ela tinha uma aparência normal, muito diferente de como eu havia<br />
visto Choam, falan<strong>do</strong> inclusive comigo, descartei a hipótese de que<br />
tivesse si<strong>do</strong> uma materialização plasmática. E o que seria então?<br />
- Ela foi o resulta<strong>do</strong> de suas criações mentais - disse o<br />
Setenário, acompanhan<strong>do</strong> novamente a minha reflexão silenciosa.<br />
Abri os olhos e, diante <strong>do</strong> meu olhar interrogativo, ele<br />
prosseguiu:<br />
- Tu<strong>do</strong> o que se pensa, cria uma determinada forma no<br />
mun<strong>do</strong> mental. A sua capacidade paranormal permitiu-lhe ver o que<br />
você criou com a sua mente. <strong>Porta</strong>nto, não se tratava de uma<br />
materialização física, apenas mental e, dessa forma, não poderia<br />
intervir no meio físico.<br />
- Mas ela falou comigo!
- A criação mental também faz aquilo que você deseja,<br />
consciente ou inconscientemente. No seu caso, era o que você<br />
esperava ouvir.<br />
- E a poça d'água que eu vi logo em seguida?<br />
- Isso já era uma simples miragem. Você viu a reflexão da<br />
luz solar na superfície quente da areia, o que dá a impressão de se<br />
ver um lençol d'água. Não há nada de paranormal nisso.<br />
- Depois, a visão de Uiramirim, <strong>do</strong> meu avô e de meu pai,<br />
também foram criações mentais?<br />
- Correspondiam aos seus problemas interiores que<br />
emergiram em seu delírio. Há problemas que temos e que às vezes<br />
procuramos esquecer, fugir deles, mas que voltam à tona durante os<br />
sonhos ou semidesmaios. Volte a meditar.<br />
Passou em minha mente a cena com o aba morotinga.<br />
Refletin<strong>do</strong>, concluí que ele não era uma manifestação etérea, pois sua<br />
pele, embora mais branca <strong>do</strong> que a minha, não era leitosa. As suas<br />
vestes eram brancas, mas diferentes das roupas que Choam usava.<br />
Eram de um branco mais alvo, brilhante, e os seus olhos azuis<br />
mostravam claramente a vida <strong>do</strong> seu espírito. Sim, era o espírito <strong>do</strong><br />
aba morotinga.<br />
- Muito bem - disse o cheroupi, prosseguin<strong>do</strong>:<br />
- Trata-se de um espírito muito liga<strong>do</strong> a você que se<br />
tornou visível aos seus olhos espirituais, usan<strong>do</strong> o corpo astral. Esse<br />
corpo pode adquirir a forma que o espírito desejar, consciente ou<br />
inconscientemente e, normalmente, corresponde à mesma fisionomia<br />
que ele tinha em sua última encarnação.<br />
- As coisas que aconteceram comigo foram algum tipo de<br />
castigo?<br />
- Você teve o livre-arbítrio de escolher para onde ir. O<br />
que você sofreu foi apenas conseqüência de sua escolha. Não existe<br />
nenhum sofrimento pior <strong>do</strong> que aquele a si mesmo aplica<strong>do</strong>. Sempre,<br />
de qualquer forma, o que se vivencia traz mais sabe<strong>do</strong>ria. Você<br />
aprendeu alguma coisa? - perguntou o Setenário, sorrin<strong>do</strong>.<br />
Não precisei responder.<br />
Anoitecen<strong>do</strong>, as estrelas <strong>do</strong> céu vieram nos fazer<br />
companhia, no Refúgio <strong>do</strong> Eremita.
PARTE III - AS VIAGENS INICIÁTICAS<br />
23 - VOAN<strong>DO</strong> COM OS SILFOS<br />
Após permanecermos naquela região enigmática por alguns<br />
meses, Choam deu-me a notícia da nossa partida:<br />
- Agnã, já é hora de irmos embora desse lugar. Gostaríamos<br />
que você nos acompanhasse, pois muitas outras coisas você ainda<br />
precisa aprender.<br />
- Sim, venerável. É o meu desejo acompanhá-los. E para onde<br />
iremos?<br />
- Na direção leste-sudeste, depois para o sul.<br />
- São terras desconhecidas para o meu povo e provavelmente<br />
nos depararemos com os tapuia.<br />
- Sim, e esperamos encontrar outros povos.<br />
Peguei o meu arco e flechas, que continuavam pinta<strong>do</strong>s na cor<br />
<strong>do</strong>urada e me apresentei a Choam:<br />
- Estou pronto!<br />
- Ótimo, então venha sentar-se conosco.<br />
- Sentar? Mas nós não iríamos partir?<br />
- Sim, é o que iremos fazer, só que esse é um lugar cujas<br />
fronteiras estão entre a realidade e a ilusão, entre o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
homens e o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s espíritos. Não se entra ou sai daqui<br />
simplesmente andan<strong>do</strong>. Acompanhe-me.<br />
Seguin<strong>do</strong> o Setenário, reunimo-nos com os demais cheroupis e<br />
sentamo-nos em círculo ao re<strong>do</strong>r de uma fogueira. To<strong>do</strong>s<br />
permaneceram de olhos fecha<strong>do</strong>s, menos eu, que os mantinha<br />
ligeiramente abertos.<br />
Vi uma pequena luz cintilar no peito de cada um deles, menos<br />
no meu.<br />
- Agnã, por favor, concentre-se. Deixe que a sua mente se una<br />
a nossa.<br />
Sutilmente adverti<strong>do</strong>, esforcei-me por relaxar e concentrar-me,<br />
pois estava muito ansioso.<br />
Mesmo de olhos fecha<strong>do</strong>s, percebi que surgiu um forte clarão e<br />
comecei a sentir uma leveza sem igual: parecia que eu flutuava entre<br />
as nuvens.<br />
Continuei com essa sensação por mais algum tempo e em<br />
seguida a luz foi diminuin<strong>do</strong> e fui sentin<strong>do</strong> um peso enorme sobre o<br />
corpo.
Quan<strong>do</strong> abri os olhos, ainda pude ver as cintilantes luzes<br />
sumin<strong>do</strong> no centro <strong>do</strong> peito de cada um deles, inclusive <strong>do</strong> meu.<br />
Olhan<strong>do</strong> ao derre<strong>do</strong>r, notei que a paisagem era outra, bem<br />
diferente. Estávamos em plena selva de mata fechada.<br />
A experiência era fascinante. Logo nos colocamos em pé.<br />
- Choam, como atravessaremos essa mata, sem pelo menos<br />
uma faca de couro de jibóia para abrir caminho? - perguntei<br />
preocupa<strong>do</strong>.<br />
O Setenário não me respondeu. Apenas fez um gesto, pedin<strong>do</strong><br />
silêncio.<br />
Os cheroupis se posicionaram um atrás <strong>do</strong> outro, fican<strong>do</strong><br />
Choam por último e eu, logo depois, espian<strong>do</strong> o que eles faziam.<br />
O Setenário que usava um colar com a pedra violeta no<br />
medalhão, se colocou na frente. Ele empunhava um pequeno caja<strong>do</strong><br />
que continha uma pequena bola de cristal na sua parte posterior,<br />
mais larga.<br />
- Agnã, dê-me a sua mão e segure firme - pediu o cheroupi.<br />
Os Setenários passaram a emitir alguns sons. Segun<strong>do</strong>s após,<br />
surgiu uma luz <strong>do</strong>urada dentro da bola de cristal <strong>do</strong> caja<strong>do</strong>,<br />
empunha<strong>do</strong> pelo que estava à frente.<br />
Quan<strong>do</strong> ele ergueu o bastão, apontan<strong>do</strong>-o para a mata, a<br />
pequena luz se projetou adiante e adquiriu uma grande intensidade.<br />
Como por encanto, a mata foi-se abrin<strong>do</strong>, forman<strong>do</strong> uma passagem.<br />
Começamos a caminhar bem devagar, passo a passo. Mesmo<br />
assim eu sentia alguma dificuldade, pois eles eram homens enormes<br />
e seus passos, naturalmente, mais largos <strong>do</strong> que os meus.<br />
Aos poucos, eles foram aumentan<strong>do</strong> as passadas, para a minha<br />
preocupação, pois, enquanto andavam, eu tinha que correr.<br />
Mas não demorou muito para que o meu esforço deixasse de<br />
ser tão grande. Fagulhas brilhantes surgiram ao re<strong>do</strong>r e sob os<br />
nossos pés. Quan<strong>do</strong> dei por mim, já não estávamos mais andan<strong>do</strong>,<br />
mas voan<strong>do</strong> em meio à floresta.<br />
A poucos palmos <strong>do</strong> solo, sem tocarmos os pés no chão,<br />
voávamos em grande velocidade. Logo atrás de nós, as fagulhas se<br />
dispersavam e a mata ia se fechan<strong>do</strong>.<br />
A sensação era incrível: eu não conhecia nenhum animal que<br />
pudesse atingir aquela velocidade, nenhuma onça ou ave andaria<br />
mais rápi<strong>do</strong>.<br />
Logo em seguida, surgiram figuras exóticas que nos<br />
acompanharam durante to<strong>do</strong> o trajeto. Eram seres ala<strong>do</strong>s, de
pequeninas dimensões, que também soltavam fagulhas brilhantes<br />
durante o vôo.<br />
No final da tarde, após vencer uma longa distância, passan<strong>do</strong><br />
por rios e riachos sem a menor dificuldade, paramos em um local<br />
muito apropria<strong>do</strong>, ao la<strong>do</strong> de uma pequena cascata.<br />
Paramos é o mo<strong>do</strong> de dizer. Eles conseguiram parar, mas eu,<br />
achan<strong>do</strong> que com a diminuição da velocidade poderia largar da mão<br />
de Choam, me desgarrei <strong>do</strong> grupo e acabei seguin<strong>do</strong> à frente, in<strong>do</strong><br />
parar no meio de umas urtigas.<br />
Meio zonzo eu via os pequeninos seres ala<strong>do</strong>s voan<strong>do</strong> em<br />
círculo pouco acima da minha cabeça. Refeito <strong>do</strong> susto, corri para<br />
debaixo da cascata, para ver se conseguia acabar com a coceira que<br />
sentia pelo corpo to<strong>do</strong>.<br />
Depois, tentan<strong>do</strong> manter as aparências, procurei Choam e<br />
perguntei:<br />
- Como foi possível voar dessa forma?<br />
Sem deixar de demonstrar um sorriso picante, ele respondeu:<br />
- Foi uma combinação de fatores que facilitaram o nosso<br />
deslocamento. Em primeiro lugar, quan<strong>do</strong> emitimos aqueles sons que<br />
você ouviu, nós estávamos informan<strong>do</strong> aos elementais da natureza<br />
que iríamos cruzar a mata e demos ordens a eles para que<br />
facilitassem a nossa passagem.<br />
- Por isso aqueles seres com asas voavam ao nosso la<strong>do</strong>?<br />
- Sim, mas esses são os elementais liga<strong>do</strong>s ao ar, chama<strong>do</strong>s de<br />
silfos. Comanda<strong>do</strong>s por espíritos superiores, eles são responsáveis<br />
pelas condições <strong>do</strong> tempo e pelo clima. Depois, concentramos a nossa<br />
energia etérica para atuar no meio físico. Assim conseguimos voar<br />
sem destruir a vegetação.<br />
- E as fagulhas de luz que surgiram durante o caminho?<br />
- Era o resulta<strong>do</strong> da movimentação energética. A energia<br />
etérica condensada, produzida por nós, entrava em contato com o<br />
campo energético <strong>do</strong>s vegetais, <strong>do</strong> solo e até mesmo <strong>do</strong> ar, para<br />
provocar o deslocamento. O atrito causava as fagulhas que você viu.<br />
Não existe nada de sobrenatural para aquele que possui o verdadeiro<br />
conhecimento <strong>do</strong>s mistérios universais - concluiu.<br />
A sua explicação satisfez em parte a minha habitual<br />
curiosidade, mas a coceira me obrigou a voltar corren<strong>do</strong> para a<br />
cascata. Atrás de mim seguiam os seres ala<strong>do</strong>s, deixan<strong>do</strong> cair<br />
fagulhas <strong>do</strong>uradas pelo caminho.
24 - A VIAGEM ASTRAL<br />
Continuamos a nossa viagem, sob as mesmas condições.<br />
Choam explicou-me que preferiam voar por dentro da mata e não<br />
sobre ela, para não chamar a atenção e para não assustar os índios<br />
que nos avistassem.<br />
Após quatro dias de viagem, alcançamos uma chapada<br />
lindíssima.<br />
Encontramos um local muito propício para estabelecermos um<br />
acampamento provisório. Na verdade tratava-se de um pequeno<br />
abrigo, mais destina<strong>do</strong> para mim mesmo, <strong>do</strong> que para os cheroupis.<br />
Eles preferiam <strong>do</strong>rmir ao céu aberto e nem mesmo ligavam para as<br />
chuvas torrenciais.<br />
Era interessante observá-los em dias de chuva, pois eles nunca<br />
ficavam molha<strong>do</strong>s, nem os cabelos e nem as roupas. Parecia que<br />
eram impermeáveis.<br />
Logo depois <strong>do</strong> abrigo estar prepara<strong>do</strong>, os Setenários passaram<br />
a se dedicar aos seus afazeres, que eu continuava não entenden<strong>do</strong><br />
bem, mas tomava o cuida<strong>do</strong> para não atrapalhar. Seguin<strong>do</strong> a<br />
recomendação de Choam, eu não conversava com os demais<br />
cheroupis, aguardan<strong>do</strong> que tomassem alguma iniciativa. Nem o nome<br />
deles ainda sabia.<br />
Durante to<strong>do</strong> o tempo em que permanecia com eles, não<br />
trocavam entre si uma única palavra. Só gestos e olhares.<br />
Enquanto isso, somente ficava observan<strong>do</strong> as suas atividades.<br />
O que tinha a pedra verde no medalhão vivia olhan<strong>do</strong>, tocan<strong>do</strong> e<br />
estudan<strong>do</strong> as plantas, desde as espécies minúsculas até as enormes<br />
árvores. Colhia amostras de quase tu<strong>do</strong> o que via e as colocava em<br />
uma pequena mochila que nunca enchia.<br />
O de pedra vermelha no medalhão examinava a terra e as<br />
águas. Possuía uma vareta brilhante, de <strong>do</strong>is palmos de<br />
comprimento, que constantemente fincava no solo.<br />
Já o de pedra laranja observava o comportamento de to<strong>do</strong>s os<br />
animais que encontrasse. Era impressionante como conseguia se<br />
aproximar <strong>do</strong>s bichos mais perigosos e comumente tocá-los, sem<br />
nunca ser ataca<strong>do</strong> por eles. Nenhum animal fugia <strong>do</strong> seu contato e se<br />
comportavam como xerimawas.<br />
O Setenário com a pedra azul no medalhão examinava o céu,<br />
as estrelas e as condições climáticas. Usava pequenos instrumentos.<br />
Eu não entendia o que eram.
O de pedra amarela parecia observar exclusivamente o sol e a<br />
lua, e também usava alguns instrumentos.<br />
Choam parecia ter uma única preocupação: eu.<br />
Mas o outro cheroupi, o de pedra violeta no medalhão, não<br />
exercia nenhuma atividade. Ficava senta<strong>do</strong> praticamente o tempo<br />
to<strong>do</strong>, de olhos fecha<strong>do</strong>s. Nem bem chegamos e ele arrumou um<br />
cantinho e ali ficou, como uma rocha.<br />
Não suportan<strong>do</strong> a curiosidade, perguntei a Choam:<br />
- Já estamos juntos há muitas luas. Por que esse venerável é o<br />
único que não faz absolutamente nada?<br />
- Engano seu, ele trabalha tanto quanto to<strong>do</strong>s nós.<br />
- Como, se fica nessa posição o dia inteiro?<br />
- Você tem essa falsa impressão porque apenas vê o seu corpo<br />
físico e não o seu espírito.<br />
- Quer dizer que ele trabalha com o espírito? Fazen<strong>do</strong> o quê?<br />
- Ele viaja por diversos lugares nesse planeta e pelo mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
espíritos, executan<strong>do</strong> tarefas que você ainda não pode compreender.<br />
É a chamada viagem astral ou des<strong>do</strong>bramento.<br />
- Eu também posso fazer isso?<br />
- Claro, quer tentar?<br />
Sem esperar alguma orientação <strong>do</strong> Setenário, pus-me senta<strong>do</strong><br />
na posição habitual de meditação e fechei os olhos. Em seguida abri<br />
um olho e disse a Choam:<br />
- Acho que não vou conseguir.<br />
- Por que?<br />
- Estou sem sono.<br />
- Não, Agnã. O des<strong>do</strong>bramento nada tem a haver com o sono.<br />
Quan<strong>do</strong> você <strong>do</strong>rme há uma suspensão da consciência, o que já não<br />
ocorre durante uma viagem astral. Para realizá-la, o seu espírito tem<br />
que sair conscientemente <strong>do</strong> corpo físico, ou seja, acorda<strong>do</strong>, em<br />
esta<strong>do</strong> de vigília. Dessa maneira, você terá muito mais facilidade de<br />
relembrar o que fez fora da matéria. Você não perderá o contato com<br />
o corpo humano, poden<strong>do</strong>, inclusive, relatar através dele, tu<strong>do</strong> o que<br />
se passa consigo, mesmo que possa estar muitíssimo distante.<br />
- Mas como eu vou conseguir fazer isso?<br />
- Feche os olhos, respire fun<strong>do</strong> calmamente e relaxe. Durante o<br />
tempo to<strong>do</strong> nós estaremos conversan<strong>do</strong>. Faça exatamente o que eu<br />
lhe disser.
Obedecen<strong>do</strong> às orientações de Choam, passei a relaxar. Alguns<br />
instantes após, comecei a sentir um peso muito grande nos braços,<br />
nas pernas e nas costas.<br />
- Essa sensação, não muito agradável, indica que o seu espírito<br />
está sentin<strong>do</strong> o seu corpo físico. - Choam começou a explicar,<br />
acompanhan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o processo. - Isso acontece porque o seu<br />
organismo é constituí<strong>do</strong> de uma matéria, obviamente, muito mais<br />
densa <strong>do</strong> que o seu espírito.<br />
Em seguida, passei a sentir uma grande leveza.<br />
- Agora o seu espírito conseguiu desprender-se um pouco <strong>do</strong><br />
físico. Mantenha a sua concentração. Deseje sair <strong>do</strong> corpo e ficar em<br />
pé ao seu la<strong>do</strong>.<br />
Seria muito difícil tentar traduzir as incríveis sensações que eu<br />
estava sentin<strong>do</strong>, mas era fascinante. Fiz precisamente o que ele me<br />
pedira.<br />
Abrin<strong>do</strong> os meus olhos fiquei impressiona<strong>do</strong>. Podia ver tu<strong>do</strong> ao<br />
re<strong>do</strong>r com perfeita nitidez e notava que as cores de certas plantas<br />
possuíam tons que eu jamais havia visto com os olhos humanos.<br />
O único susto que tomei foi ao olhar para o la<strong>do</strong> e ver o meu<br />
corpo inerte. Será que eu era tão feio assim?<br />
Porém, eu, fora <strong>do</strong> meu corpo, estava fisicamente <strong>do</strong> mesmo<br />
jeito que era. Entretanto, a minha pele brilhava e havia alguns<br />
filamentos pratea<strong>do</strong>s que se estendiam de mim até o físico. Na altura<br />
da barriga, um cordão mais grosso e na mesma cor, ligava-se ao<br />
umbigo <strong>do</strong> corpo material.<br />
- É o cordão umbilical - explicou Choam. - Ele, como os outros<br />
filamentos, tem a finalidade de manter a vida física. Por onde você for<br />
com o seu espírito, esses cordões se esticarão automaticamente. Eles<br />
só poderão romper-se com a morte <strong>do</strong> organismo material.<br />
- São ligações <strong>do</strong> corpo etéreo? - perguntei, fican<strong>do</strong> abisma<strong>do</strong><br />
ao perceber que podia falar pelo meu corpo físico, mesmo a <strong>do</strong>is<br />
passos de distância.<br />
- Perfeitamente. Você está usan<strong>do</strong> o seu corpo astral que<br />
mantém contato com o corpo etéreo, através desses cordões<br />
plasmáticos. O duplo permanece sobre o físico, controlan<strong>do</strong> as<br />
atividades físicas e, pelo mesmo caminho, envia todas as sensações<br />
materiais ao espírito. Agora, ande livremente e depois voe.<br />
Andar, tu<strong>do</strong> bem. Mas voar? Como eu voaria?
- Pela sua vontade - respondeu Choam, ouvin<strong>do</strong> os meus<br />
pensamentos. - Da mesma maneira que você tem desejo de andar e<br />
anda, também pode flutuar. Tente.<br />
Realmente, era incrível. No exato instante em que desejei voar,<br />
os meus pés deixaram o solo. Fui ganhan<strong>do</strong> altitude e, olhan<strong>do</strong> para<br />
baixo, pude ver Choam, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> meu corpo físico, sumin<strong>do</strong> na<br />
mata.<br />
- Como está se sentin<strong>do</strong>?<br />
- Ótimo, agora eu sei o que é ser um pássaro!<br />
- Nesse esta<strong>do</strong>, você é muito mais que um pássaro.<br />
Experimente, desloque-se em qualquer senti<strong>do</strong>.<br />
Em pouco tempo já estava fazen<strong>do</strong> acrobacias fantásticas e<br />
voava velozmente.<br />
- Agnã, agora volte para o seu corpo.<br />
- Choam, é tão bom que não dá vontade de voltar.<br />
- Sim, mas há outras coisas que temos que fazer. Retorne<br />
devagar.<br />
Ao voltar ao corpo, não consegui controlar a velocidade. A<br />
sensação foi horrível. Sofri um grande choque e o meu corpo recebeu<br />
um tranco tão grande que o coração disparou. Parecia ainda, que as<br />
minhas pernas estavam fora <strong>do</strong> lugar. Abrin<strong>do</strong> os olhos, sentia-me<br />
um pouco zonzo, ten<strong>do</strong> a impressão de que havia si<strong>do</strong> esmaga<strong>do</strong> a<br />
golpes de tacape.<br />
- Logo se sentirá melhor, Agnã.<br />
- Preciso treinar esse retorno - respondi, suan<strong>do</strong> muito.<br />
- Não pode se esquecer que é a sua mente que determina to<strong>do</strong>s<br />
os movimentos. Nessa sua primeira experiência, você deveria voltar<br />
mais devagar, para um encaixe sincroniza<strong>do</strong> com o físico. Com o<br />
tempo você fará isso de uma forma mais rápida e sem nenhum<br />
transtorno.<br />
- Qualquer pessoa pode praticar o des<strong>do</strong>bramento?<br />
- Em termos, sim, mas poucos efetivamente o conseguem. O<br />
des<strong>do</strong>bramento não deve ser tenta<strong>do</strong> sem uma adequada preparação<br />
e sem o acompanhamento de um orienta<strong>do</strong>r experiente. Por<br />
enquanto, evite fazer alguma viagem astral, sem que eu esteja ao<br />
seu la<strong>do</strong>.<br />
Fiquei olhan<strong>do</strong> para o outro cheroupi que continuava em transe,<br />
imaginan<strong>do</strong> quantas coisas ele poderia fazer e em quantos lugares<br />
diferentes ele poderia ir. Daquele dia em diante, passei a chamá-lo de<br />
Ibapora, o habitante <strong>do</strong> céu.
25 - O MUN<strong>DO</strong> <strong>DO</strong> ESPÍRITO<br />
No dia seguinte, os cheroupis continuaram com as sua tarefas.<br />
Apenas Choam, como sempre, ficava mais livre para conversar<br />
comigo.<br />
- Venerável, para onde vai o Senhor <strong>do</strong> Astral em suas viagens?<br />
- São lugares que você ainda não conhece, mas que hoje irá<br />
começar a conhecer.<br />
Nem acreditei no que ouvira. Seguin<strong>do</strong> as recomendações <strong>do</strong><br />
cheroupi, voltei a me des<strong>do</strong>brar. Choam permaneceu ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> meu<br />
corpo físico.<br />
Logo que saí <strong>do</strong> corpo, Ibapora, também des<strong>do</strong>bra<strong>do</strong>, veio ao<br />
meu encontro para a minha surpresa e disse:<br />
- Agnã, hoje você terá um exercício prático <strong>do</strong>s ensinamentos<br />
que tem recebi<strong>do</strong>. Você já aprendeu que o espírito se reveste de<br />
corpos apropria<strong>do</strong>s para se manifestar no mun<strong>do</strong> físico. Agora, você<br />
aprenderá que existem outros planos de vida no mun<strong>do</strong> espiritual,<br />
em que o espírito pode se manifestar. Além <strong>do</strong> etérico, foi-lhe fala<strong>do</strong><br />
sobre os corpos astral, mental, mental superior e divino. Na verdade,<br />
com exceção <strong>do</strong> duplo vital, to<strong>do</strong>s os outros envoltórios também se<br />
subdividem.<br />
- Choam comentou isso. - Afirmei, queren<strong>do</strong> mostrar que tal<br />
assunto já era <strong>do</strong> meu conhecimento.<br />
- Eu sei, mas o seu estu<strong>do</strong> será mais aprofunda<strong>do</strong>. Cada corpo<br />
corresponde a um plano <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> espiritual e as divisões de cada<br />
envoltório também dizem respeito a subdivisões de cada plano. Em<br />
princípio, para o seu melhor entendimento, eu diria que um plano<br />
está sobreposto a outro, ou seja, o astral está acima <strong>do</strong> físico e logo<br />
abaixo <strong>do</strong> mental. O mental superior está acima <strong>do</strong> mental e logo<br />
abaixo <strong>do</strong> divino. O espírito, após o seu desencarne, passa a viver em<br />
um plano compatível com o seu grau evolutivo. Quanto mais<br />
ilumina<strong>do</strong>, mais próximo estará <strong>do</strong> plano divino. Quanto mais<br />
apega<strong>do</strong> ao mun<strong>do</strong> material, mais perto estará <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> físico. Em<br />
algum lugar <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> espiritual, ele encontrará um nível afina<strong>do</strong><br />
com a luz que está emitin<strong>do</strong>. <strong>Porta</strong>nto, um plano difere <strong>do</strong> outro pela<br />
evolução espiritual que apresentam os seus habitantes. Mas, na<br />
verdade, os planos não estão sobrepostos e sim intrapostos, ou seja,<br />
um permeia o outro sem que haja maiores interferências.<br />
- Como? Os planos de vida no mun<strong>do</strong> espiritual ocupam o<br />
mesmo lugar?
- Procure entender. A matéria, que compõe cada plano, é<br />
sensivelmente diferente. Os planos apresentam densidades diversas<br />
um <strong>do</strong> outro, embora de certa forma interliga<strong>do</strong>s.<br />
- Para facilitar, lembre-se <strong>do</strong> arco-íris. Choam já lhe explicou<br />
que ele é um fenômeno resultante da dispersão da luz solar em<br />
gotículas de água suspensas no ar. <strong>Porta</strong>nto, a luz <strong>do</strong> sol é<br />
subdividida em determinadas cores. Embora você não perceba isso,<br />
elas existem. A luz solar dá a impressão de estarem misturadas, mas,<br />
na verdade, são luzes distintas, aparentemente ocupan<strong>do</strong> o mesmo<br />
espaço. É que a diferença entre elas permite isso. O plano espiritual<br />
seria como a luz <strong>do</strong> sol, subdividi<strong>do</strong> em outros níveis que ocupam,<br />
em termos, o mesmo espaço. Por essa razão, o deslocamento entre<br />
os planos e subplanos espirituais não requer que se percorra grandes<br />
distâncias; exige, sim, uma afinada sintonização.<br />
- E como se consegue isso?<br />
- Com a mente. É preciso concentrar-se e desejar. No início,<br />
você irá passar de um plano para outro, sucessivamente, e um tanto<br />
devagar. Com a prática, fará isso mais rapidamente. É como começar<br />
a andar. No começo você engatinha, logo estará corren<strong>do</strong>. Agora,<br />
observe o corpo que você está usan<strong>do</strong>. É o primeiro invólucro <strong>do</strong><br />
corpo astral, extremamente liga<strong>do</strong> ao duplo vital. Muitíssimo pareci<strong>do</strong><br />
com o corpo físico, permite-lhe sensações muito semelhantes. Por<br />
causa dele, estamos no mun<strong>do</strong> físico. Olhe para o corpo material, o<br />
que vê?<br />
- Vejo o que acredito ser o duplo vital, na mesma posição que o<br />
físico.<br />
- Isso mesmo. Ele mantém a vida <strong>do</strong> corpo material e se liga ao<br />
primeiro envoltório <strong>do</strong> corpo astral através <strong>do</strong>s filamentos pratea<strong>do</strong>s<br />
que você está ven<strong>do</strong>. <strong>Porta</strong>nto, qualquer coisa que acontecer com o<br />
físico, você será imediatamente informa<strong>do</strong>. Agora, vamos visitar uma<br />
aldeia aqui perto.<br />
O cheroupi passou a se deslocar, voan<strong>do</strong> <strong>do</strong>is palmos acima <strong>do</strong><br />
solo. Seguin<strong>do</strong>-o, fiz o mesmo.<br />
Logo chegamos em um lugarejo muito simples.<br />
- Observe, despreocupadamente, o comportamento desses<br />
índios, pois eles não podem nos ver, embora alguns possam sentir a<br />
nossa presença.<br />
Após algum tempo, o Setenário perguntou:<br />
- O que você notou de diferente?
- Ao la<strong>do</strong> de alguns homens que estão toman<strong>do</strong> uma bebida<br />
que desconheço, há outros que, desesperadamente, tentam fazer o<br />
mesmo, mas não conseguem.<br />
- Por que?<br />
- Acredito que seja em razão de não estarem mais vivos.<br />
- Como você chegou a essa conclusão?<br />
- Não vejo os filamentos <strong>do</strong> duplo vital.<br />
- Muito bem. O que mais percebeu?<br />
- Também há mulheres desencarnadas que estão<br />
acompanhan<strong>do</strong> o trabalho de outras que estão vivas.<br />
Inesperadamente, um grupo de homens desencarna<strong>do</strong>s veio<br />
em nossa direção, com gritos de guerra, para nos atacar.<br />
- Não é possível! Como puderam nos ver? - perguntei, aflito.<br />
- Eles usam o mesmo corpo astral que nós. Mas não se<br />
preocupe.<br />
Antes que pudessem nos tocar, o Senhor <strong>do</strong> Astral ergueu a<br />
mão direita e fez surgir uma luz tão forte que até eu mesmo não<br />
podia fixar o olhar.<br />
Imediatamente, os guerreiros desencarna<strong>do</strong>s caíram por terra.<br />
Em seguida, o cheroupi emitiu uma luz rosa azulada.<br />
Embriaga<strong>do</strong>s pela luz, os espíritos levantaram-se e se<br />
afastaram, sem tentar mais nos molestar. Não hesitei em perguntar:<br />
- Como eles, sen<strong>do</strong> espíritos, podem querer agir da mesma<br />
forma como se estivessem vivos?<br />
- Porque é costume desse povo não aceitar o desligamento <strong>do</strong><br />
espírito após a morte. Para esses homens, os mortos permanecem<br />
liga<strong>do</strong>s à tribo, tanto que são enterra<strong>do</strong>s dentro da própria oca em<br />
que moravam. Eles não acreditam em um mun<strong>do</strong> espiritual. Venha,<br />
vamos examinar uma sepultura recente.<br />
Entramos em uma oca na qual não havia ninguém e o Senhor<br />
<strong>do</strong> Astral disse:<br />
- O cadáver está debaixo da terra. Vamos observá-lo.
26 - SUBTERRÂNEOS <strong>DO</strong> ALÉM<br />
Para o meu espanto, o Setenário afun<strong>do</strong>u na terra, como se<br />
mergulhasse dentro d'água. Como eu não o segui, ele pôs a cabeça<br />
para fora <strong>do</strong> solo e perguntou:<br />
- O que está esperan<strong>do</strong>?<br />
- Como pode fazer isso?<br />
Sain<strong>do</strong> de corpo inteiro <strong>do</strong> subsolo, ele passou a explicar:<br />
- Os corpos espirituais são constituí<strong>do</strong>s de minúsculas<br />
partículas. A forma como essas partículas se agrupam determina a<br />
densidade de cada corpo. Quanto maiores forem e mais próximas<br />
estiverem umas das outras, mais denso será o envoltório espiritual.<br />
Quanto menores e mais distantes estiverem as partículas entre si,<br />
mais sutil ele será. <strong>Porta</strong>nto, os corpos usa<strong>do</strong>s nos planos superiores<br />
são muito mais sutis que os correspondentes aos níveis inferiores.<br />
Essa característica permite que um espírito que esteja usan<strong>do</strong> um<br />
envoltório de um plano superior, possa se manifestar em um plano<br />
inferior, sem ter a menor dificuldade de locomoção.<br />
Perceben<strong>do</strong> que eu ainda tinha que me esforçar para entender<br />
o que ele falava, o cheroupi continuou:<br />
- Se você derramar água em uma peneira, o que acontece?<br />
- A água irá vazar - respondi.<br />
- Claro. Poderíamos dizer, então, que a água é constituída por<br />
partículas extremamente maleáveis. A peneira não é obstáculo<br />
suficiente para impedir a sua passagem. É assim que um espírito, que<br />
está usan<strong>do</strong> um corpo de um nível superior, veria a matéria <strong>do</strong> plano<br />
inferior.<br />
- Quer dizer que nós, usan<strong>do</strong> esse corpo astral, não<br />
encontraremos qualquer obstáculo ao nos deslocarmos pelo mun<strong>do</strong><br />
material?<br />
- Exatamente.<br />
- Mas por que então alguns espíritos que eu observei, não<br />
conseguiam passar pelas paredes das ocas ou pelo meio das coisas<br />
materiais que se posicionavam à frente?<br />
- Pelo simples fato de que é necessário ter consciência dessa<br />
capacidade. Caso contrário, o espírito tornará qualquer obstáculo<br />
material uma realidade.<br />
- Estou compreenden<strong>do</strong>, mas como se faz para entrar debaixo<br />
da terra?<br />
- Vontade, Agnã, basta ter vontade. Siga-me.
O Setenário sumiu no subsolo. Desejei fazer a mesma coisa e<br />
foi incrível. Afundei no chão tão rápi<strong>do</strong> quanto pensei. Mesmo no<br />
meio da terra, eu podia ver claramente tu<strong>do</strong> ao re<strong>do</strong>r, sem precisar<br />
de nenhuma luz.<br />
- A luz só é necessária para os olhos humanos - explicou o<br />
cheroupi, perceben<strong>do</strong> a minha indagação mental. - Para o espírito,<br />
consciente de suas possibilidades, a ausência de claridade também<br />
não é nenhum obstáculo. Observe agora o cadáver e diga-me o que<br />
pode ver.<br />
O cenário era um tanto assusta<strong>do</strong>r, porém, tentan<strong>do</strong> me<br />
controlar, respondi:<br />
- O corpo físico está em esta<strong>do</strong> de decomposição. O duplo<br />
etéreo também mostra-se deteriora<strong>do</strong>, uma vez que já não possui a<br />
cor natural <strong>do</strong>s encarna<strong>do</strong>s. O espírito, manifesto em seu corpo<br />
astral, aparentemente sobreposto ao etéreo e ao físico, está se<br />
contorcen<strong>do</strong> to<strong>do</strong>. Parece sofrer bastante.<br />
- Perfeitamente. O nosso amigo, embora faleci<strong>do</strong>, ainda está<br />
preso à matéria e recusa-se a largar o corpo físico. Em razão disso e,<br />
ten<strong>do</strong> em vista que, o duplo etéreo não se desfez totalmente, o seu<br />
espírito também não consegue desvencilhar-se das sensações<br />
horríveis da putrefação. O homem mais esclareci<strong>do</strong> ou que esteja<br />
mais desprendi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s vícios materiais, como o fumo e a bebida<br />
alcoólica, dificilmente padecerá desses problemas.<br />
- Mas, se o povo é ignorante nos conhecimentos superiores,<br />
to<strong>do</strong>s sofrerão as mesmas agruras?<br />
- No caso deles, não. A maioria, após o desencarne, recebe o<br />
amparo de espíritos mais evoluí<strong>do</strong>s e superam mais facilmente a fase<br />
pós-morte. Mesmo assim, muitos ainda retornam ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
homens, para acompanhar as atividades <strong>do</strong> seu povo.<br />
- E por que esse infeliz está sozinho? Aonde estão os espíritos<br />
de luz para auxiliá-lo?<br />
- A situação dele é outra. Observe os utensílios que foram<br />
enterra<strong>do</strong>s com ele.<br />
Notei que no meio de muitos objetos pessoais havia alguns que<br />
seriam exclusivos de um feiticeiro.<br />
- Ele foi o pajé da tribo - disse o Setenário. - Possuía um bom<br />
entendimento espiritual, entretanto, usou o seu saber de acor<strong>do</strong><br />
apenas com os seus próprios interesses egoísticos, chegan<strong>do</strong> a causar<br />
muito malefício. Mesmo quan<strong>do</strong> anteviu a sua morte, negou-se a<br />
passar alguns <strong>do</strong>s seus valiosos conhecimentos medicinais ou
espirituais para alguém. Ainda que sofren<strong>do</strong> muito, está tão preso a<br />
si mesmo, que não é possível, por enquanto, ajudá-lo. Nem os seus<br />
ascendentes espirituais conseguem se aproximar <strong>do</strong> seu coração e de<br />
sua mente. Assim, ele impede qualquer ação de socorro e limita o<br />
auxílio <strong>do</strong>s espíritos mais evoluí<strong>do</strong>s que querem ajudá-lo.<br />
- E ficará desse jeito até quan<strong>do</strong>?<br />
- Ele permanecerá, sentin<strong>do</strong> as agruras da <strong>do</strong>r da carne, por<br />
mais noventa dias, depois, com a total desintegração <strong>do</strong> duplo<br />
etérico, o seu sofrimento será menor, duran<strong>do</strong> até momentos antes<br />
de sua próxima encarnação, que virá em breve, daqui a oito ou nove<br />
anos.<br />
Diante <strong>do</strong> meu olhar surpreso, ele concluiu:<br />
- Nesse estágio evolutivo, os espíritos reencarnam muito<br />
rápi<strong>do</strong>.<br />
Rápi<strong>do</strong>? - pensei comigo mesmo.<br />
- Considere, entretanto, que um caso é diferente <strong>do</strong> outro. Não<br />
existe uma regra que sirva a to<strong>do</strong>s: tu<strong>do</strong> vai depender de uma série<br />
de fatores que você irá conhecer melhor em um momento mais<br />
apropria<strong>do</strong>.<br />
Ibapora colocou sua mão direita sobre a cabeça <strong>do</strong> índio. Vi<br />
surgir, logo em seguida, uma tênue luz azul-clara, envolven<strong>do</strong> o aflito<br />
ser. No mesmo instante, ele foi se acalman<strong>do</strong>, até permanecer<br />
completamente sereno.<br />
- Ele ficará melhor? - perguntei.<br />
- Apenas temporariamente. Eu só lhe apliquei um sedativo, que<br />
age sobre o efeito, mas não sobre a causa. Fizemos o que foi<br />
possível, vamos deixá-lo repousar. Siga-me.<br />
Acompanhan<strong>do</strong> o Setenário, continuei a passear por debaixo da<br />
terra, até encontrar um lugar interessante.<br />
Era como se fosse uma aldeia subterrânea, cercada de mata e<br />
de animais. Porém, as cores eram escuras e tristes. Os bichos eram<br />
ferozes e de aspecto repulsivo. Enormes aves estranhas e<br />
ameaça<strong>do</strong>ras voavam ao re<strong>do</strong>r.<br />
- Que lugar é esse? - perguntei, intriga<strong>do</strong>.<br />
- É onde um grande número de espíritos vivem. Tu<strong>do</strong> o que<br />
você está ven<strong>do</strong> é o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> conjunto de suas criações mentais,<br />
que por sua vez é conseqüência de suas crendices.<br />
- Então, é possível criar-se um lugar no mun<strong>do</strong> espiritual<br />
através da mente?
- Sem dúvida, a força mental é que cria e molda o que foi<br />
cria<strong>do</strong>, mesmo de uma forma inconsciente, como é o caso desses<br />
espíritos, que não têm a menor noção <strong>do</strong> que eles mesmos fizeram.<br />
Parecia uma tribo normal, sem muita diferença <strong>do</strong>s costumes<br />
que tinham quan<strong>do</strong> vivos.<br />
No centro da ocara, algumas mulheres trançavam palhas,<br />
outras preparavam a refeição, enquanto outras ainda cuidavam das<br />
crianças. Alguns homens tratavam da terra e perto dali, em meio à<br />
mata, grupos rivais se hostilizavam.<br />
- Embora estejamos aparentemente embaixo da terra, esse<br />
lugar corresponde ao primeiro subplano astral. Mas nem todas as<br />
regiões desse subplano são iguais - explicou o cheroupi.<br />
- No primeiro subplano - continuou - as atividades <strong>do</strong>s espíritos<br />
não divergem muito das realizadas em vida. Aqui, eles acreditam que<br />
precisam comer e beber. Agem como se estivessem vivos. Na<br />
verdade, o espírito não tem nenhuma necessidade física.<br />
- E o que comem e bebem?<br />
- Eles acreditam que a alimentação é a mesma <strong>do</strong>s encarna<strong>do</strong>s,<br />
porém, a consistência <strong>do</strong> que comem é unicamente matéria astral,<br />
sem nenhum valor nutritivo. O sabor que sentem <strong>do</strong>s alimentos é<br />
decorrente da lembrança <strong>do</strong> que já provaram em vida. É verdade que<br />
esses alimentos imaginários poderiam conter alguma energia que<br />
atuasse nos corpos astrais, mas um espírito, consciente de suas<br />
condições, dispensaria normalmente tu<strong>do</strong> isso. O processo de<br />
sustentação de qualquer corpo espiritual é automático, sem a<br />
necessidade de se comer coisa alguma.
27 - NOS PLANOS SUPERIORES<br />
- Por hoje é o bastante - disse o Senhor <strong>do</strong> Astral. - Retorne ao<br />
corpo físico e não se esqueça de fazê-lo com controle.<br />
Dessa vez, tive o cuida<strong>do</strong> de fazer as coisas com mais calma.<br />
Primeiro, posicionei-me ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpo material e depois fui<br />
encaixan<strong>do</strong> o meu corpo astral bem devagar.<br />
- Melhorou muito! - observou Choam, no meu retorno.<br />
- Estou aprenden<strong>do</strong>, grande venerável?<br />
- Sim, você está in<strong>do</strong> muito bem.<br />
Passei o resto <strong>do</strong> dia refletin<strong>do</strong> sobre tu<strong>do</strong> o que havia<br />
vivencia<strong>do</strong>. Na manhã seguinte, apresentei-me rapidamente a<br />
Choam, para realizar uma nova viagem astral.<br />
Quan<strong>do</strong> des<strong>do</strong>brei, o Senhor <strong>do</strong> Astral já estava esperan<strong>do</strong> por<br />
mim.<br />
- Hoje você irá conhecer os outros planos espirituais. Vamos<br />
sair <strong>do</strong> primeiro subplano astral e passar para o segun<strong>do</strong>.<br />
- E como faremos isso?<br />
- Simples, será só desejar.<br />
Quan<strong>do</strong> mentalizei a saída <strong>do</strong> primeiro corpo astral, senti uma<br />
leve tontura. Em seguida vi uma luz brilhante por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s e<br />
tive a impressão de passar por um portal muito ilumina<strong>do</strong>.<br />
O que comecei a ver, impressionou-me mais <strong>do</strong> que na primeira<br />
vez. Ainda estava na mata, mas tu<strong>do</strong> tinha muito mais vida. Outras<br />
cores diferentes podiam ser notadas e o meu campo de visão ficou<br />
bem mais amplo.<br />
- Como está se sentin<strong>do</strong>? - perguntou Ibapora.<br />
- Ótimo, muito mais leve.<br />
Andan<strong>do</strong> pela floresta, passamos por riachos que tinham, não<br />
somente uma água cristalina, mas brilhante. As quedas d’água<br />
formavam pequenas bolhinhas cintilantes e que se espalhavam por<br />
toda a parte.<br />
Alguns espíritos caminhavam pela mata, em uma atitude mais<br />
serena que as <strong>do</strong> primeiro subplano astral. Encontramos aldeias mais<br />
bem organizadas, em que seus habitantes conviviam em plena<br />
ordem.<br />
Não encontrei ninguém comen<strong>do</strong> ou beben<strong>do</strong> alguma coisa e os<br />
animais eram <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>s, inclusive as feras.<br />
- Nessa região, os desencarna<strong>do</strong>s compreendem melhor a vida<br />
espiritual - começou a explicar o Setenário. - Já não têm as
necessidades básicas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> físico. Entretanto, ainda estão<br />
limita<strong>do</strong>s em determinadas coisas, como em sua capacidade de<br />
deslocamento. Acreditam que é necessário andar para ir a algum<br />
lugar. O primeiro subplano, na verdade, é mais um plano<br />
intermediário entre o mun<strong>do</strong> físico e astral. Nele, os espíritos se<br />
preparam para se desligar ou se depurar das coisas que os prendem<br />
ainda ao mun<strong>do</strong> material. Ampara<strong>do</strong>s por espíritos superiores, eles<br />
encontram, no segun<strong>do</strong> subplano, um lugar mais adequa<strong>do</strong> a seu<br />
esta<strong>do</strong> espiritual.<br />
Seguin<strong>do</strong> o cheroupi, conheci muitas coisas interessantes <strong>do</strong><br />
segun<strong>do</strong> nível astral. Depois de um bom tempo de permanência ali,<br />
por sua determinação, voltei ao meu corpo físico.<br />
Na noite <strong>do</strong> dia seguinte, des<strong>do</strong>brei novamente, conforme<br />
orientação <strong>do</strong> Senhor <strong>do</strong> Astral. Mais uma vez ele já estava me<br />
aguardan<strong>do</strong>.<br />
- Agnã, iremos para o segun<strong>do</strong> subplano e em seguida para o<br />
terceiro. As sensações serão semelhantes, porém mais suaves.<br />
Realmente, dessa vez foi uma experiência mais tranqüila e não<br />
menos interessante.<br />
A tontura diminuiu bastante e as luzes surgiram e<br />
desapareceram mais rapidamente, no entanto, com muito mais<br />
intensidade.<br />
Chegan<strong>do</strong> ao terceiro nível astral, a primeira coisa que me<br />
chamou a atenção foi o fato de que, embora fosse noite de lua nova,<br />
não havia propriamente escuridão. Era possível ver tão bem como se<br />
fosse de dia.<br />
Só era possível saber que era noite porque não havia sol e as<br />
estrelas pre<strong>do</strong>minavam garbosamente. Além disso, as plantas, as<br />
árvores, o mato to<strong>do</strong> parecia que tinha uma luz própria.<br />
Mais impressiona<strong>do</strong> fiquei, ao ver o Senhor <strong>do</strong> Astral. Não<br />
obstante o seu perfil estivesse claramente bem defini<strong>do</strong>, muitas cores<br />
o envolviam da cabeça aos pés, e se irradiavam ao seu re<strong>do</strong>r.<br />
Com espanto, notei que eu também tinha um campo de luzes<br />
coloridas à minha volta, embora muito menor e de menos intensidade<br />
<strong>do</strong> que as que envolviam o cheroupi.<br />
- Que luzes são essas? - perguntei, intriga<strong>do</strong>.<br />
- Logo você estudará a respeito. O que importa, no momento, é<br />
apenas conhecer os planos existenciais.<br />
Ao longe, avistei um grupo de espíritos conversan<strong>do</strong><br />
animadamente. Com a autorização <strong>do</strong> Setenário, corri em direção a
eles. Como havia uma enorme árvore no caminho, achei melhor<br />
atravessar bem no meio dela.<br />
Foi uma decepção. Gravei a minha testa iluminada no tronco<br />
ilumina<strong>do</strong> da árvore iluminada. Cheguei a ver estrelinhas, mas não<br />
senti <strong>do</strong>r alguma. Estatela<strong>do</strong> no chão, escutei o cheroupi dan<strong>do</strong><br />
risadas, como uma coruja branca.<br />
Logo que me pus em pé, perguntei, inconforma<strong>do</strong>:<br />
- Se estou usan<strong>do</strong> o meu corpo astral, por que não consegui<br />
passar pelo meio da árvore?<br />
- Você esqueceu que está usan<strong>do</strong> um corpo correspondente ao<br />
terceiro subplano e se moven<strong>do</strong> em um lugar em que toda a matéria<br />
astral tem a mesma consistência; conseqüentemente, as coisas aqui<br />
são tão reais quanto você mesmo. Caso estivesse se utilizan<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
corpo correspondente ao quarto nível e se manifestasse nesse<br />
terceiro, passaria sem a menor dificuldade por meio de tu<strong>do</strong> o que<br />
quisesse. Agora vamos ver o que aquelas pessoas estão fazen<strong>do</strong>.<br />
Sen<strong>do</strong> bem recebi<strong>do</strong>s, ficamos um bom tempo conversan<strong>do</strong>.<br />
Fiquei saben<strong>do</strong> que eles pertenciam a uma mesma “família” espiritual<br />
e estavam traçan<strong>do</strong> planos para a próxima reencarnação.<br />
Depois que nos afastamos <strong>do</strong> grupo, fomos para o quarto<br />
subplano astral.<br />
O cenário já era bem diferente. Não estávamos mais no meio<br />
de uma floresta, mas aparentemente próximos das nuvens. Eu me<br />
sentia muito mais leve. O campo luminoso <strong>do</strong> meu corpo astral<br />
estava muito mais intenso, porém, o <strong>do</strong> cheroupi era dez vezes mais<br />
<strong>do</strong> que o meu.<br />
Caminhan<strong>do</strong> por esse nível astral, encontramos muitos artistas.<br />
Em um da<strong>do</strong> momento, um certo homem chamou-me a<br />
atenção. Ele possuía tênues cordões pratea<strong>do</strong>s, idênticos aos meus.<br />
Calmamente aproximou-se de um pintor e ficou observan<strong>do</strong> a obra<br />
que ele criava.<br />
Voltei-me para o Setenário e perguntei:<br />
- Esse homem é um ser encarna<strong>do</strong>?<br />
- Sim, repare nos filamentos encarnatórios.<br />
- O que ele faz aqui?<br />
- Como você, também ele veio para aprender. Só que o<br />
interesse dele é exclusivamente pela pintura.<br />
- Então ele aprendeu a fazer a viagem astral.<br />
- Não, no caso dele houve o natural deslocamento <strong>do</strong> seu<br />
espírito, durante o esta<strong>do</strong> de sono. Amanhã, ele poderá acordar
disposto a reproduzir o quadro que está ven<strong>do</strong>, achan<strong>do</strong> que teve um<br />
sonho revela<strong>do</strong>r. É muito comum que isso aconteça com os<br />
encarna<strong>do</strong>s. Cada um é atraí<strong>do</strong> pelo plano com que estiver mais<br />
afina<strong>do</strong>.<br />
Deixan<strong>do</strong> o quarto nível astral, passamos para o quinto. Agora,<br />
duas coisas me chamavam mais a atenção. A primeira era o fato de<br />
que eu podia enxergar em to<strong>do</strong>s os ângulos ao mesmo tempo, a<br />
segunda era o de ver o <strong>Sol</strong> e a Lua ao mesmo tempo, em um brilho<br />
sem igual. Será que a noite na Terra teria passa<strong>do</strong> tão rápi<strong>do</strong>?<br />
- Não estranhe - disse o Senhor <strong>do</strong> Astral, len<strong>do</strong> os meus<br />
pensamentos. - Aqui, o <strong>Sol</strong>, a Lua e as estrelas convivem<br />
diariamente.<br />
Continuan<strong>do</strong> a mudar de subplanos, chegamos ao sétimo e<br />
último nível astral.<br />
- Desse plano em diante, Agnã, os espíritos desenvolvem um<br />
grande trabalho em favor da humanidade.<br />
Por fim, aban<strong>do</strong>namos o corpo astral e entramos no primeiro<br />
subplano mental.<br />
Indescritível. Os nossos corpos em nada lembravam o corpo<br />
humano. Eu não tinha pernas, mas podia me locomover facilmente.<br />
Não tinha ouvi<strong>do</strong>s e nem boca, mas ouvia e falava com o Setenário<br />
perfeitamente bem. Estava desprovi<strong>do</strong> de olhos, mas enxergava<br />
melhor <strong>do</strong> que nunca.<br />
Eu e o cheroupi éramos pouco mais que uma bola de luz. A dele<br />
muito maior, é claro!<br />
- Tu<strong>do</strong> o que fizermos nesse nível mental, nós o faremos com a<br />
mente - explicou. - Agora - continuou - nós não voamos mais.<br />
Podemos ir aonde quisermos, instantaneamente, com um simples<br />
desejo. Lembre-se de que o pensamento é insuperável, muito mais<br />
rápi<strong>do</strong> que um simples piscar de olhos. Prepare-se para retornar.<br />
Faremos o caminho inverso. Tenha calma.<br />
- Mas nós não visitaremos os demais planos superiores?<br />
- Você ainda não está prepara<strong>do</strong>, jovem aprendiz. Saiba ter<br />
paciência.<br />
Seguin<strong>do</strong> a orientação <strong>do</strong> cheroupi, em pouco tempo eu estava<br />
de volta ao físico. O regresso, porém, provocou em mim uma<br />
sensação muito desagradável.<br />
Logo que voltei, Choam passou a massagear-me a sola <strong>do</strong>s pés<br />
e disse:
- É normal o que você está sentin<strong>do</strong>. A essência, quan<strong>do</strong> se<br />
despe das camadas mais densas, próximas da matéria, sente-se<br />
muito mais livre e leve, e quan<strong>do</strong> volta ao plano físico, ten<strong>do</strong> que se<br />
revestir <strong>do</strong>s envoltórios, sente-se sufocada. Com o tempo e com a<br />
prática você se acostuma.<br />
Quan<strong>do</strong> olhei para o céu, notei que as estrelas pouco tinham se<br />
desloca<strong>do</strong>. Achan<strong>do</strong> estranho, perguntei ao Setenário:<br />
- Pensei que havia passa<strong>do</strong> um enorme tempo no mun<strong>do</strong><br />
espiritual, mas vejo que não passei lá nem um minuto. Como isso<br />
pode acontecer?<br />
- A noção de tempo e espaço difere grandemente <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
físico para o espiritual. Você compreenderá melhor futuramente.<br />
Deitei-me em uma esteira de palha que eu mesmo trançara e<br />
naquela noite sonhei que estava sonhan<strong>do</strong> um sonho, em que muito<br />
feliz eu era, e na minha desvairada ilusão, mais <strong>do</strong> que tu<strong>do</strong>, sabia<br />
que nunca fora tão feliz, quanto feliz eu era.
28 - DESTINA<strong>DO</strong>S À MORTE<br />
No dia seguinte, acompanhei os Setenários até uma taba<br />
situada entre afluentes de um rio imponente. Seria o nosso primeiro<br />
contato físico com alguém, após tanto tempo.<br />
Eu estava ansioso e tinha a curiosidade de ver como os outros<br />
índios reagiriam, ao ver seres estranhos como os cheroupis.<br />
Ao nos aproximarmos, constatei que a tribo era grande. A<br />
nossa presença causou um enorme alvoroço.<br />
Não demorou muito para que um grupo de trezentos guerreiros,<br />
com suas armas de guerra, nos cercassem ameaça<strong>do</strong>ramente.<br />
Os bravos tinham uma feição toda particular. O nariz era<br />
grande e aquilino, muito pareci<strong>do</strong> com os tucanos, razão pela qual eu<br />
passei a denominá-los de Tucantim.<br />
Os Setenários, mesmo de mãos vazias, pelo porte avantaja<strong>do</strong>,<br />
fariam uma boa briga, porém não estavam dispostos a um confronto.<br />
Choam tentou conversar com os guerreiros, falan<strong>do</strong> na mesma<br />
língua deles; entretanto, to<strong>do</strong>s continuavam vociferan<strong>do</strong>.<br />
Muitos armaram os seus arcos e permaneceram prontos para o<br />
ataque. Se eles usassem setas envenenadas, não teríamos a menor<br />
chance.<br />
Comecei a ficar mais preocupa<strong>do</strong>. Havíamos perdi<strong>do</strong> a<br />
oportunidade de agir rapidamente no início, pon<strong>do</strong>-os para correr.<br />
Agora a situação era-nos desfavorável.<br />
Choam fez um gesto para que eu mantivesse a calma.<br />
Exaspera<strong>do</strong>, o líder <strong>do</strong>s guerreiros lançou a primeira flecha.<br />
Mais duas dezenas vieram em nossa direção.<br />
Não havia como escapar. Certamente seríamos ao menos<br />
feri<strong>do</strong>s e se os dar<strong>do</strong>s tivessem si<strong>do</strong> prepara<strong>do</strong>s com alguma<br />
substância letal, a morte se tornaria apenas uma questão de tempo.<br />
Em uma atitude de defesa, quero dizer, de puro me<strong>do</strong>, agacheime<br />
e coloquei as mãos sobre a cabeça. Como se passaram alguns<br />
segun<strong>do</strong>s sem que nada acontecesse, abri os olhos e vi os bravos<br />
muito mais agita<strong>do</strong>s. Não havia entendi<strong>do</strong> nada. Aonde estavam as<br />
flechas que tinham lança<strong>do</strong>?<br />
Talvez eles também estivessem inconforma<strong>do</strong>s, pois<br />
arremessaram novos dar<strong>do</strong>s. Foi aí que eu reparei que Choam<br />
permanecia com os braços estendi<strong>do</strong>s para o alto e com as mãos<br />
espalmadas. Quan<strong>do</strong> as flechas chegaram perto de nós, queimaram<br />
em pleno ar, instantaneamente.
Não tive dúvidas. Levantei-me e pus as mãos na cintura e<br />
assim permaneci, altivo.<br />
Logo em seguida, Choam começou a espalmar as mãos na<br />
direção <strong>do</strong>s guerreiros, fazen<strong>do</strong> com que os seus instrumentos de<br />
ataque fossem imediatamente incinera<strong>do</strong>s.<br />
O único índio que permaneceu na taba era um i<strong>do</strong>so e cego.<br />
To<strong>do</strong>s os demais fugiram para a mata.<br />
Choam voltou a falar com eles na língua nativa. A sua possante<br />
voz repercutia em to<strong>do</strong>s os cantos.<br />
Os homens, mulheres e crianças começaram a voltar, embora<br />
muito temerosos, e passaram a nos tratar como deuses. Muitos<br />
vieram trazer-nos os seus pertences, mas Choam recusou<br />
carinhosamente.<br />
O Setenário, após conversar em particular com o líder <strong>do</strong>s<br />
tucantim, voltou satisfeito para o nosso grupo.<br />
- Expliquei a ele que a nossa vinda aqui era exclusivamente<br />
para ajudar a sua gente - disse o cheroupi. - Muitos <strong>do</strong> seu povo<br />
estão a<strong>do</strong>enta<strong>do</strong>s e permanecem isola<strong>do</strong>s da tribo em um outro local.<br />
- E o pajé da tribo? Ele não está cuidan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s <strong>do</strong>entes?<br />
- Não; segun<strong>do</strong> os nativos, foi possuí<strong>do</strong> pelos demônios e sumiu<br />
pela floresta. Assim, esses índios se dizem agoura<strong>do</strong>s e destina<strong>do</strong>s à<br />
morte.<br />
Fomos conduzi<strong>do</strong>s até onde se encontravam muitos homens,<br />
mulheres, crianças e i<strong>do</strong>sos de quarentena. O aspecto <strong>do</strong> local e das<br />
pessoas era desola<strong>do</strong>r.<br />
Após examinar a maioria <strong>do</strong>s <strong>do</strong>entes, Choam afirmou:<br />
- Trata-se de uma <strong>do</strong>ença muito grave e contagiosa, que o seu<br />
povo tupi chama de emaciayba.<br />
Fiquei assusta<strong>do</strong> com a notícia.<br />
- Segun<strong>do</strong> fui informa<strong>do</strong> - continuou o cheroupi - alguns<br />
estrangeiros passaram por aqui e, em troca da boa hospitalidade,<br />
deixaram alguns presentes para os líderes da tribo e especialmente<br />
para o pajé, que havia cuida<strong>do</strong> de um deles, que estava muito febril.<br />
Quan<strong>do</strong> foram embora, o povo começou a a<strong>do</strong>ecer. Esse tipo de<br />
emaciayba aparece facilmente nas águas putrefatas. Leva de dez a<br />
quatorze dias para se manifestar. A princípio, os sintomas são leves,<br />
não atrapalhan<strong>do</strong> o cotidiano das pessoas infectadas, mas se<br />
agravam progressivamente.<br />
O cheroupi explicou ainda:
- Primeiro, surge um mal-estar geral, com fadiga, falta de<br />
apetite, boca amarga e uma leve febre. Depois, sobrevêm as<br />
perturbações nervosas, os delírios e a apatia, seguin<strong>do</strong> as diarréias<br />
contínuas ou a total prisão de ventre, acompanhadas de febre mais<br />
elevada e já mais constante. Por fim, não demoram a aparecer as<br />
erupções cutâneas <strong>do</strong>lorosas e que não cicatrizam. É uma agonia sem<br />
fim, até a morte. Como um <strong>do</strong>s líderes da aldeia informou que os<br />
estrangeiros banharam-se nas águas estagnadas <strong>do</strong> igapó, forma<strong>do</strong><br />
no perío<strong>do</strong> das últimas enchentes, provavelmente a maioria <strong>do</strong>s que<br />
a<strong>do</strong>eceram, também fizeram uso dessas águas, especialmente para<br />
beber.<br />
Choam determinou que os <strong>do</strong>entes mais graves fossem<br />
separa<strong>do</strong>s em ocas distintas. To<strong>do</strong>s os que estavam sãos não<br />
deveriam ter contato com os enfermos e ninguém poderia mais usar<br />
as águas <strong>do</strong> igapó. Inclusive novas ocas foram construídas bem longe<br />
dali.<br />
Os Setenários passaram a cuidar <strong>do</strong>s <strong>do</strong>entes, usan<strong>do</strong> ervas<br />
que traziam consigo e eu passei a trabalhar também, auxilian<strong>do</strong>-os.<br />
Seguin<strong>do</strong> as orientações de Choam, eu preparei um chá <strong>do</strong><br />
caule da caapiá macerada, para ser ministra<strong>do</strong> em perío<strong>do</strong>s<br />
contínuos.<br />
A caapiá era uma planta herbácea de flores e frutos<br />
pequeninos, agrupa<strong>do</strong>s num receptáculo carnoso, altamente<br />
medicinal.<br />
Durante <strong>do</strong>is dias, os a<strong>do</strong>enta<strong>do</strong>s deveriam beber água da fonte<br />
e suco de limão em abundância. Depois, poderiam comer apenas<br />
frutas frescas, continuan<strong>do</strong> a tomar limonada.<br />
Nos casos em que a febre era muito alta, eu aplicava<br />
compressas no abdômen <strong>do</strong>s enfermos.<br />
Em um momento de descanso, perguntei ao Setenário:<br />
- Não há perigo de sermos também contamina<strong>do</strong>s pela mesma<br />
emaciayba, já que ela é contagiosa?<br />
- Ninguém está livre de todas as <strong>do</strong>enças, mas a primeira<br />
oportunidade para ela surgir, estará na disposição interior da própria<br />
pessoa. Uma alma abatida, fraca, sujeita facilmente ao desânimo, à<br />
tristeza, à depressão, deixará o corpo físico muito mais exposto a<br />
qualquer mal orgânico. Foi assim que a maioria ficou, depois que o<br />
pajé foi toma<strong>do</strong> pela loucura. O espírito, que seria a fonte de luz, não<br />
gera a força necessária para a sua própria manifestação. Outro fator<br />
fundamental, é a alimentação. Um corpo sadio e livre de impurezas,
como a carne vermelha, as bebidas alcoólicas e o fumo, terá muito<br />
mais resistência a muitas enfermidades. Por isso, há pessoas que até<br />
foram contaminadas por certas <strong>do</strong>enças contagiosas, mas mantêm-se<br />
sadias, sem desenvolvê-las.<br />
- Venerável, tenho repara<strong>do</strong> que raramente vocês comem<br />
alguma coisa e quan<strong>do</strong> comem é muito pouco, só algumas folhas,<br />
raízes e frutas. Acho isso estranho. Pelo porte físico que possuem,<br />
deveriam comer três vezes mais <strong>do</strong> que eu. Como vocês conseguem<br />
sobreviver assim?
29 - FORÇAS INVISÍVEIS<br />
- É que nós não necessitamos tanto da comida material que<br />
você vê. Hoje, a nossa alimentação é muito mais espiritual.<br />
Observan<strong>do</strong> o meu olhar interrogativo, continuou:<br />
- Os alimentos materiais são importantes para a manutenção<br />
<strong>do</strong> sistema orgânico, e principalmente, no seu caso, que ainda está<br />
em pleno crescimento. Quan<strong>do</strong> os alimentos são digeri<strong>do</strong>s, eles se<br />
transformam na energia necessária para que o indivíduo possa<br />
executar todas as suas atividades diárias, inclusive a <strong>do</strong> pensamento.<br />
Mas há outras formas de alimentação, tão importantes quanto essa.<br />
Existem energias no mun<strong>do</strong> espiritual que são captadas pelos corpos<br />
espirituais e transmitidas ao físico. A passagem energética entre os<br />
envoltórios espirituais e o humano, também é utilizada pelo espírito<br />
para a sua atuação no meio material e para receber dele as<br />
informações próprias desse mun<strong>do</strong>.<br />
- E quais são essas energias que não se vê?<br />
- Existem vários tipos de energia em to<strong>do</strong> o Universo, mas<br />
poderíamos dizer que uma delas é a principal e a mãe de todas. É a<br />
energia universal, também chamada de energia cósmica. Ela é a<br />
responsável pela coesão ou dispersão de todas as partículas que<br />
formam to<strong>do</strong>s os planos existenciais. É o elo vital e construtora <strong>do</strong><br />
cosmo, originária diretamente da suprema e divina Luz, força cria<strong>do</strong>ra<br />
<strong>do</strong> Universo. É sempre benéfica e dela derivam todas as outras<br />
energias, que só se diferenciam de acor<strong>do</strong> com as circunstâncias de<br />
sua manifestação. Do <strong>Sol</strong>, nós recebemos a energia solar, que é<br />
subdividida em sete raios, graus ou energias diferentes, cada uma<br />
com a sua própria cor: azul, verde, rosa, vermelho, laranja, violeta e<br />
amarelo.<br />
- É como surgem no arco-íris?<br />
- Há uma sutil diferença na cor e na função da energia. A luz <strong>do</strong><br />
<strong>Sol</strong>, que se vê no arco-celeste, atua mais diretamente no meio físico<br />
e é essencial para a manutenção de toda a vida na Terra. A energia<br />
solar, a que me refiro, possui uma densidade ligeiramente diferente,<br />
agin<strong>do</strong> primeiramente no plano espiritual e depois no meio físico, mas<br />
tem igual importância na sustentação da vida física. Também se trata<br />
de uma fonte de força muito benéfica. Há outra energia que provém<br />
<strong>do</strong> interior <strong>do</strong> planeta Terra e flui para a crosta, que também é muito<br />
importante. É a energia ígnea ou kundalínica. Ela possui um alto<br />
poder transforma<strong>do</strong>r e criativo, mas é muito perigosa de ser
manuseada. A energia cósmica tem o poder de propiciar a estrutura<br />
<strong>do</strong>s planos existenciais, a solar possibilita a manifestação de vida em<br />
cada plano e a ígnea atua como o fator impulsivo dessa<br />
manifestação. Em razão disso, é uma energia que precisa ser<br />
sabiamente manipulada, principalmente pelo sensitivo, uma vez que<br />
ela é a principal responsável pelos poderes paranormais.<br />
Choam, usan<strong>do</strong> uma vara, desenhou na terra a figura de um<br />
homem e de uma serpente que se contorcia a sua volta, com a<br />
cabeça ao la<strong>do</strong> da dele.<br />
- No conhecimento oculto - disse, explican<strong>do</strong> - representamos a<br />
energia kundalínica como um fogo serpentino. Ao sábio e sensato ela<br />
sempre será submissa, mas para o imprudente e desavisa<strong>do</strong>, que<br />
queira usá-la sem estar devidamente prepara<strong>do</strong>, facilmente o tornará<br />
sua presa, esmagan<strong>do</strong>-o com sua força descomunal e desconhecida.<br />
- Mas como isso ocorre?<br />
- Venha comigo e verá.<br />
Investimos mata adentro. Após uma razoável caminhada,<br />
começamos a ouvir horripilantes gritos de <strong>do</strong>r. Olhei para Choam e<br />
ele me fez sinais de silêncio e calma. Conforme nos aproximávamos,<br />
os berros eram mais estridentes e davam a impressão de que alguém<br />
estava sen<strong>do</strong> tortura<strong>do</strong> com extrema crueldade.
30 - OS CHACRAS<br />
Aos poucos, fui poden<strong>do</strong> notar a figura de um índio, agarra<strong>do</strong> a<br />
um tronco de árvore.<br />
- É o pajé da tribo - explicou Choam, em voz baixa.<br />
- Ele está toma<strong>do</strong> pelos delírios da febre?<br />
- Não. Ele conhecia a medicação correta para combater a<br />
emaciayba, tanto que curou o estrangeiro que por aqui passou. A sua<br />
loucura tem outra razão.<br />
- Mas, se ele sabia como tratar da <strong>do</strong>ença, por que ficou dessa<br />
maneira e não cui<strong>do</strong>u <strong>do</strong> seu povo?<br />
- Depois que ele conseguiu a recuperação <strong>do</strong> homem que veio<br />
de fora, ficou muito eufórico, principalmente porque recebera dele<br />
muitos presentes, como recompensa. Sabia que seria apenas uma<br />
questão de tempo para que a <strong>do</strong>ença atingisse o seu povo e<br />
provavelmente os seus desafetos políticos. Seria então, a sua<br />
oportunidade de fazer as exigências que bem entendesse.<br />
- E o que ele queria?<br />
- Mais poder. Ser o chefe absoluto de sua tribo.<br />
- E o que o impediu?<br />
- Para diagnosticar e tratar <strong>do</strong> problema de saúde, ele ativou os<br />
seus centros energéticos, usan<strong>do</strong> a energia ígnea. A primeira vez foi<br />
um sucesso, mas quan<strong>do</strong> tentou novamente, acabou perden<strong>do</strong> o<br />
<strong>do</strong>mínio sobre ela. Em conseqüência, a sua paranormalidade foi<br />
totalmente ativada e ficou incontrolável, levan<strong>do</strong>-o à loucura.<br />
- Porém, o que são os centros energéticos?<br />
- Eles são os principais canais de ligação entre os corpos<br />
espirituais e o físico. Situa<strong>do</strong>s em determinadas regiões <strong>do</strong> corpo<br />
astral e <strong>do</strong> duplo etéreo, os centros ou chacras exercem o controle<br />
sobre a fluidez de todas as energias que eu já lhe citei, captan<strong>do</strong>,<br />
estocan<strong>do</strong>, condensan<strong>do</strong> e distribuin<strong>do</strong>-as conforme a necessidade<br />
desses envoltórios e <strong>do</strong> organismo humano. São eles também<br />
responsáveis pela intensidade de toda a manifestação paranormal <strong>do</strong><br />
sensitivo, poden<strong>do</strong> ser manipula<strong>do</strong>s para receber mais energias,<br />
aumentan<strong>do</strong> a capacidade perceptiva. A isso chamamos de reativação<br />
<strong>do</strong>s chacras, que ocasiona o despertar da kundalini, o que requer<br />
cuida<strong>do</strong>s e instruções específicas. Exatamente o que o pajé não teve.<br />
Porém, independentemente de uma manipulação consciente, os<br />
centros podem desenvolver-se naturalmente, o que seria mais<br />
correto. É o caso das pessoas que conseguem alcançar mais luz em
sua jornada evolutiva. Quan<strong>do</strong> as energias incidem sobre os centros,<br />
elas entram na forma de redemoinhos, por isso eles também<br />
poderiam ser chama<strong>do</strong>s de ierês.<br />
Da mesma forma que os redemoinhos das águas, a energia, ao<br />
entrar nos ierês, a<strong>do</strong>ta a forma de ondas, sen<strong>do</strong> que cada centro tem<br />
um número específico de ondas ou raios.<br />
Depois de uma pausa, choam continuou:<br />
- São muitos os chacras, todavia, os principais não passam de<br />
oito. Os <strong>do</strong> corpo astral estão sobrepostos aos <strong>do</strong> etéreo e exercem<br />
controle sobre eles. Os <strong>do</strong> duplo vital, por sua vez, estão liga<strong>do</strong>s ao<br />
corpo físico em determinadas regiões, chamadas de plexos nervosos,<br />
por onde dirigem as atividades orgânicas. Com a passagem<br />
energética, os canais permitem que o corpo astral atue sobre o<br />
etérico e esse sobre o físico, transmitin<strong>do</strong> as ordens <strong>do</strong> espírito e<br />
levan<strong>do</strong> a ele todas as sensações <strong>do</strong> meio material. Cada centro<br />
possui, normalmente, o diâmetro da palma de sua mão, mas pode<br />
chegar a duas vezes esse tamanho, apresentan<strong>do</strong> uma luz que varia<br />
entre a opaca à mais brilhante, conforme o seu desempenho, o que,<br />
em muitas vezes, corresponde também ao grau de luz <strong>do</strong> próprio<br />
indivíduo. Os ierês <strong>do</strong> corpo etéreo dissolvem-se ou desintegram-se<br />
com a morte <strong>do</strong> físico, porém os <strong>do</strong> corpo astral permanecem em<br />
atividade, durante todas as vidas que o espírito ainda tenha pela<br />
frente. Quan<strong>do</strong> o ser não tiver mais a necessidade de reencarnar e<br />
termine a sua série de manifestações nos subplanos astrais,<br />
passan<strong>do</strong> a vivenciar apenas no plano mental, aí finalmente esses<br />
canais irão se desfazer. O centro localiza<strong>do</strong> na base da coluna<br />
vertebral recebe a denominação de fundamental, básico ou sacro. Ele<br />
possui quatro raios e as principais cores que apresenta são o<br />
vermelho e o laranja. É a sede da energia ígnea, captan<strong>do</strong> e<br />
retransmitin<strong>do</strong>-a aos demais centros, com muito mais intensidade<br />
que os demais chacras. Também é sua função disciplinar o<br />
funcionamento orgânico. No homem espiritualiza<strong>do</strong>, essa energia, ao<br />
invés de descer para o centro inferior, sobe aos superiores,<br />
provocan<strong>do</strong> a seguinte transmutação: a energia de cor laranja passa<br />
para o amarelo puro, ativan<strong>do</strong> as faculdades mentais; o vermelho<br />
transforma-se em carmesim, estimulan<strong>do</strong> a afeição, e o vermelho<br />
mais escuro torna-se violeta, agin<strong>do</strong> sobre a tendência espiritual <strong>do</strong><br />
ser. Quan<strong>do</strong> esse chacra é indevidamente ativa<strong>do</strong>, pode despertar a<br />
poderosa força ígnea. Mesmo que não imediatamente, ela ficará sem<br />
controle e acarretará um enorme desequilíbrio ao desajuiza<strong>do</strong>,
fazen<strong>do</strong> emergir a animalidade e to<strong>do</strong>s os sentimentos de ordem<br />
inferior, levan<strong>do</strong>-o a praticar uma série de desman<strong>do</strong>s. As<br />
conseqüências são tão nefastas, que o indivíduo pode levar duas ou<br />
mais reencarnações para reequilibrar-se.<br />
- O pajé está nessa situação? - perguntei, impressiona<strong>do</strong>.<br />
- Sim, é notório observar que ele perdeu completamente o<br />
controle sobre esse ierê e está sob o <strong>do</strong>mínio da força kundalínica.<br />
Mas, há outros centros <strong>do</strong> pajé que estão fora de controle. O centro<br />
genésico, localiza<strong>do</strong> sobre o baixo ventre, possui seis raios e a sua<br />
principal cor é o vermelho escuro. Ele regula as funções <strong>do</strong>s órgãos<br />
sexuais e boa parte <strong>do</strong> metabolismo humano. É naturalmente ativa<strong>do</strong><br />
durante a gestação, atuan<strong>do</strong> no organismo da mãe e <strong>do</strong> feto. Esse<br />
centro só deveria ser reativa<strong>do</strong> em raríssimos casos, mas o pajé se<br />
aventurou a fazê-lo funcionar indiscriminadamente. Ao contrário <strong>do</strong><br />
que se possa imaginar, ele não tornará o homem um exímio produtor<br />
de espermas e nem permitirá à mulher inúmeros orgasmos múltiplos.<br />
O mais provável é também a exacerbação da animalidade. Uma de<br />
suas simples conseqüências, é a fácil vulnerabilidade às <strong>do</strong>enças<br />
venéreas e distúrbios da função sexual. Para alguém que tem a<br />
função de levar luz às pessoas, isso significaria uma vertiginosa<br />
queda a um abismo sem fim. O chacra gástrico, também chama<strong>do</strong> de<br />
umbilical, é outro que está fora de controle. Possui dez raios e está<br />
situa<strong>do</strong> na altura <strong>do</strong> umbigo. O verde e um pouco <strong>do</strong> vermelho são<br />
suas cores básicas. Ele atua sobre o aparelho digestivo, na<br />
manipulação <strong>do</strong>s alimentos e sua assimilação. Tem ainda a facilidade<br />
de captar as irradiações energéticas emitidas pelas outras pessoas,<br />
passan<strong>do</strong> ao sensitivo sensações semelhantes que elas estejam<br />
sentin<strong>do</strong>. É a chamada sensação empática. Às vezes, essas<br />
percepções são tão fortes que dão a impressão física da sensação e<br />
quan<strong>do</strong> o chacra está descontrola<strong>do</strong>, o sensitivo realmente sente em<br />
si mesmo o que o outro está sentin<strong>do</strong>. Isso pode se tornar um grande<br />
aborrecimento. Veja o esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> pajé. Com o uso incorreto da<br />
energia ígnea, ele passou a sentir to<strong>do</strong>s os sintomas das pessoas que<br />
estava atenden<strong>do</strong>, o que se tornou insuportável. Além disso, ele<br />
também captou a energia negativa dessas pessoas que facilmente se<br />
afinava com a sua. Outros problemas podem surgir, como distúrbios<br />
digestivos, por exemplo.<br />
- Então o sensitivo nunca deve fazer uso desse chacra?<br />
- Com o devi<strong>do</strong> conhecimento e boa preparação, não há com<br />
que se preocupar. O sensitivo consciente, sabe que pode perceber o
que uma pessoa esteja sentin<strong>do</strong>, sem ter que passar mal por causa<br />
disso. Outro ierê, muito importante e sensível, é o esplênico,<br />
localiza<strong>do</strong> na região <strong>do</strong> baço. Ele possui seis raios e, embora<br />
pre<strong>do</strong>mine a cor rosa, outras cores também se manifestam, como o<br />
verde, vermelho, amarelo, azul, laranja e violeta. De to<strong>do</strong>s os<br />
centros, é esse o que mais capta a energia solar e que tem a função<br />
de decompô-la, separan<strong>do</strong> as energias derivadas <strong>do</strong> <strong>Sol</strong>. Em seguida,<br />
essas forças secundárias são distribuídas da seguinte forma: as de<br />
cor rosa penetram no sistema nervoso; as de cor verde vão para o<br />
gástrico; o vermelho e laranja para o básico e as demais para os<br />
centros superiores. Parte da energia que não é absorvida sai pelos<br />
poros <strong>do</strong> corpo físico e pelos próprios centros <strong>do</strong> duplo etéreo e<br />
corpo astral. As partículas energéticas expelidas pelo etérico formam<br />
uma nuvem de cor cinza-claro ou azul-violáceo em torno <strong>do</strong> corpo<br />
físico, a que chamamos de aura da saúde. Se o homem estiver em<br />
bom equilíbrio orgânico ela terá uma cor clara e forte, caso contrário,<br />
ficará opaca e muito tênue, como a <strong>do</strong> feiticeiro. Quan<strong>do</strong> esse centro<br />
está em desequilíbrio pode ocasionar anemia, profun<strong>do</strong> abatimento e<br />
esgotamento nervoso. É como o pajé está fican<strong>do</strong>. Logo, como<br />
resulta<strong>do</strong>, o sensitivo passa a se tornar uma espécie de vampiro das<br />
pessoas sadias.<br />
- Como assim?<br />
- Com a perda constante de energia, os chacras não conseguem<br />
suprir as necessidades <strong>do</strong> indivíduo, então ele passa a sugar das<br />
outras pessoas a energia de que precisa. É por isso que, às vezes,<br />
alguém que está ao la<strong>do</strong> de uma pessoa assim, sente uma fraqueza<br />
sem explicação aparente.<br />
- E o que se pode fazer para se evitar que uma pessoa, nessas<br />
condições, roube a nossa energia?<br />
- Em primeiro lugar, é preciso entender que o simples convívio<br />
entre as pessoas, estabelece uma correlação energética, cujo senti<strong>do</strong><br />
depende das circunstâncias. Quan<strong>do</strong> alguém está feliz, pode<br />
contagiar as outras pessoas com a sua felicidade. Houve aí, uma<br />
transmissão de energia. Sem dúvidas, o seu centro esplênico também<br />
liberou uma força contagiante e positiva. Quan<strong>do</strong> uma pessoa triste<br />
deixa as outras deprimidas, ela repartiu a sua tristeza. Se isso, de<br />
alguma forma, a deixou aliviada, é porque recebeu das outras<br />
pessoas, alguma energia de sustentação. Em to<strong>do</strong>s os casos, o centro<br />
esplênico foi ativa<strong>do</strong>. Ora para <strong>do</strong>ar energia, ora para recebê-la. Isso<br />
é o normal <strong>do</strong> dia-a-dia. É claro que você pode não se deixar envolver
pela tristeza de alguém e nem pela sua felicidade. Da mesma forma<br />
ocorre com a força reinante no ierê. <strong>Porta</strong>nto, a possibilidade de ser<br />
vampiriza<strong>do</strong> também é uma questão das circunstâncias e da sua<br />
vontade, quan<strong>do</strong> mais consciente.<br />
Eu não perdia uma só palavra. Choam prosseguir:<br />
- Entretanto, tenha sempre em mente uma coisa. Todas às<br />
vezes que você <strong>do</strong>ar sua energia para quem está precisan<strong>do</strong>, ela<br />
nunca lhe fará falta. Automaticamente o centro esplênico é ativa<strong>do</strong> e<br />
recupera, imediatamente, a energia que foi passada. A luz gera a luz,<br />
sempre.<br />
O cardíaco é o outro ierê - explicou. - Ele está situa<strong>do</strong> sobre o<br />
coração. Tem <strong>do</strong>ze raios e suas cores são o amarelo brilhante e o<br />
rosa. Sua função é controlar o funcionamento <strong>do</strong> coração e da<br />
circulação sangüínea, e receber a energia amarela, azul e violeta <strong>do</strong><br />
esplênico e redistribui-las aos demais centros. Também é sensível à<br />
percepção de emoções e sentimentos das outras pessoas. No caso <strong>do</strong><br />
pajé, esse chacra não está receben<strong>do</strong> corretamente as energias e<br />
poderá ocasionar um distúrbio em sua pressão circulatória. Além<br />
disso, claramente, ele está captan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os sentimentos de ordem<br />
inferior. Acima <strong>do</strong> cardíaco, fica o ierê laríngeo, na altura da<br />
garganta. Possui dezesseis raios e tem uma cor azul-pratea<strong>do</strong>. É o<br />
responsável pelo funcionamento <strong>do</strong> aparelho fona<strong>do</strong>r e das glândulas<br />
dessa região física, que futuramente você estudará. A sua função<br />
astral é captar os sons <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s espíritos. O seu mau<br />
funcionamento poderá acarretar um desequilíbrio no metabolismo<br />
orgânico e permitir uma captação descontrolada <strong>do</strong>s mais diversos<br />
sons astrais. É o que está acontecen<strong>do</strong> com o feiticeiro, que escuta<br />
dia e noite inúmeras vozes que o levam à loucura. Sobre os<br />
supercílios, nós temos o canal chama<strong>do</strong> de frontal. Ele possui noventa<br />
e seis raios e suas cores básicas são o amarelo e o azul. Aglutina e<br />
dissemina as energias para o funcionamento normal <strong>do</strong> sistema<br />
nervoso, controlan<strong>do</strong> ainda as percepções físicas. É também<br />
responsável pela visão hiperfísica ou, como chamamos, clarividência.<br />
Usa<strong>do</strong> indevidamente, poderá acarretar distúrbios nervosos e<br />
provocar uma vidência incontrolável. O pajé não pára de ver<br />
inúmeros espíritos inferiores e zombeteiros. Inutilmente tenta se<br />
esconder na mata: por onde possa ir ele sempre os verá. Por fim, o<br />
coronário é o chacra que está no alto da cabeça e possui <strong>do</strong>ze<br />
vértices centrais e novecentos e sessenta, ao derre<strong>do</strong>r desses. Entre<br />
muitas cores, pre<strong>do</strong>minam o <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> e o violeta. Sua função principal
é a captação mais intensa da energia cósmica e sua redistribuição<br />
para os demais centros. É o grande ierê coordena<strong>do</strong>r das atividades<br />
<strong>do</strong>s outros chacras e o mais importante canal por meio <strong>do</strong> qual a<br />
essência divina se manifesta. Ele ainda permite to<strong>do</strong> o contato<br />
espiritual <strong>do</strong> ser. Todas as manifestações sensitivas ocorrem sob o<br />
coman<strong>do</strong> maior desse chacra. Uma vez desequilibra<strong>do</strong> ou<br />
erroneamente reativa<strong>do</strong>, poderá comprometer todas as funções<br />
orgânicas e espirituais. Fica evidente que esse ierê <strong>do</strong> pajé está<br />
completamente fora de controle. Para o sensitivo, que possui<br />
sabe<strong>do</strong>ria e uma moral ilibada, o correto emprego das energias<br />
espirituais permitirá um desenvolvimento paranormal sadio. Sem<br />
dúvida que se o corpo físico estiver livre das impurezas da carne<br />
vermelha, <strong>do</strong> fumo e das bebidas alcoólicas, facilitará em muito esse<br />
desenvolvimento, pois elas estão impregnadas de energias negativas<br />
que não estão afinadas com o funcionamento <strong>do</strong>s centros e, em<br />
conseqüência, dificultam as suas atividades.
31 - A VIDÊNCIA<br />
- Venerável, como sabe que os ierês <strong>do</strong> feiticeiro estão<br />
desajusta<strong>do</strong>s?<br />
- Basta olhar para eles.<br />
- Mas eu não estou conseguin<strong>do</strong>. Às vezes, eu posso ver os<br />
curupiras e algumas outras coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s espíritos, mas não é<br />
sempre.<br />
- A sua vidência está em desenvolvimento, por isso ela fica<br />
inconstante. Você já sabe que o chacra frontal é o responsável pela<br />
visão espiritual. Não são to<strong>do</strong>s os sensitivos que a desenvolvem;<br />
aqueles que apresentam condições para isso, precisam passar por um<br />
bom treinamento para não sofrer limitações em sua percepção. Não<br />
basta apenas desenvolver a clarividência, é preciso ter absoluto<br />
controle sobre ela e o bom senso necessário para respeitar a<br />
liberdade das pessoas. Vou ajudá-lo em sua vidência, mas logo você<br />
mesmo irá exercitá-la.<br />
O Setenário colocou a sua mão direita na altura das minhas<br />
sobrancelhas e disse:<br />
- Mentalize o ierê <strong>do</strong> frontal giran<strong>do</strong> intensamente, em muita<br />
luz amarela e azul. Agora, imagine que a energia ígnea sai <strong>do</strong> centro<br />
básico e é transferida diretamente para o frontal. O que está<br />
sentin<strong>do</strong>?<br />
- Uma pressão muito forte na testa.<br />
- A sensação física é resultante da ativação desse canal. A força<br />
da energia kundalínica é tão intensa que dá a impressão de que a sua<br />
pele é tocada. O fenômeno, entretanto, se dá apenas no corpo astral<br />
e etérico. O que você está ven<strong>do</strong>?<br />
- Um redemoinho de cores, em uma velocidade incrível.<br />
- Você está enxergan<strong>do</strong> o próprio ierê. Procure ver ao seu<br />
re<strong>do</strong>r.<br />
- Não consigo. Vejo tu<strong>do</strong> distorci<strong>do</strong>.<br />
- Agnã, a única semelhança entre a visão astral e a física é a<br />
focalização daquilo que se quer ver. Se você colocasse o de<strong>do</strong><br />
indica<strong>do</strong>r a três palmos <strong>do</strong> rosto e olhasse apenas para ele, poderia<br />
vê-lo nitidamente, mas tu<strong>do</strong> o que estivesse atrás dele estaria<br />
“borra<strong>do</strong>”, pois você não poderia ver as outras coisas com a mesma<br />
clareza. Se dirigisse o olhar para aquilo que estivesse atrás <strong>do</strong> de<strong>do</strong>,<br />
veria tu<strong>do</strong> perfeitamente bem, mas o indica<strong>do</strong>r é que ficaria com a<br />
sua imagem "borrada". <strong>Porta</strong>nto, procure ver mais à frente.
Seguin<strong>do</strong> as recomendações <strong>do</strong> cheroupi, tive uma surpresa<br />
agradável no início e aterra<strong>do</strong>ra posteriormente.<br />
Pude ver o corpo astral <strong>do</strong> pajé e os seus centros de força.<br />
Estavam, no meu entender, bem piores <strong>do</strong> que Choam havia me<br />
descrito. Muitos espíritos trevosos e cobertos de chagas na forma<br />
humana cercavam-no por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s.<br />
- Venerável, por que essas entidades o envolvem?<br />
- Uma de suas intenções era a de expulsar os espíritos da<br />
febre, que, na verdade, não existiam, mas tinham que ser inventa<strong>do</strong>s<br />
para causar mais me<strong>do</strong> aos outros. Esses espíritos acabaram sen<strong>do</strong><br />
atraí<strong>do</strong>s em sintonização ao seu desejo. As formas cobertas de<br />
chagas foram criadas pela sua força de vontade. Como se trata de<br />
um homem fraco e de conhecimento ainda incipiente, acabou<br />
deixan<strong>do</strong> que as suas criações se tornassem mais fortes e reais <strong>do</strong><br />
que ele poderia imaginar. Assim, as criaturas voltaram-se contra o<br />
seu cria<strong>do</strong>r. Claro que também indiretamente manipuladas, mesmo<br />
que inconscientemente, pelos seus adversários. A ausência <strong>do</strong>s<br />
princípios superiores, também o tornou vulnerável aos espíritos<br />
inferiores. Em decorrência, passou a ter incontroláveis alucinações.<br />
Enquanto Choam falava, eu ia me lembran<strong>do</strong> da minha própria<br />
experiência, na região mágica da qual havíamos saí<strong>do</strong>.<br />
- Perceba - prosseguiu - que a alma <strong>do</strong> pajé já estava enferma,<br />
antes de tu<strong>do</strong>, pelos seus desejos mesquinhos. Interiormente<br />
debilita<strong>do</strong>, perdeu as defesas da moral ilibada.<br />
- E que conhecimento lhe faltou?<br />
- O de saber que sem desejos e atitudes iluminadas, o sensitivo<br />
está sujeito a subjugar-se à força da animalidade, criada pelos seus<br />
próprios e escuros pensamentos e emoções. Perden<strong>do</strong> o controle das<br />
energias que manipula, o paranormal será esmaga<strong>do</strong> pela poderosa<br />
força que inconseqüentemente faz surgir. É importante nunca<br />
esquecer que as forças da natureza só se curvam verdadeiramente<br />
diante da luz <strong>do</strong> bem. Ao contrário, dão ao insensato a falsa<br />
impressão de serem facilmente controláveis para, posteriormente,<br />
<strong>do</strong>miná-lo por completo.<br />
- E o que será dele?<br />
Choam aproximou-se e colocou a sua mão direita no coronário<br />
e a esquerda no frontal <strong>do</strong> feiticeiro. Logo em seguida, ele foi se<br />
acalman<strong>do</strong> e a<strong>do</strong>rmecen<strong>do</strong>.
Vi surgir uma imensa luz <strong>do</strong>urada que queimou todas as formas<br />
chaguentas que astralmente estavam ao la<strong>do</strong> e, no mesmo instante,<br />
os caraíbas, espíritos maus, fugiram assusta<strong>do</strong>s.<br />
O pajé foi carrega<strong>do</strong> pelo Setenário até uma oca, na nova taba<br />
e recebeu o atendimento necessário para o seu caso. Depois de<br />
alguns dias, já apresentava boa melhora, porém, perdera toda a sua<br />
credibilidade diante <strong>do</strong> seu povo.<br />
Os silvícolas locais, naturalmente, elegeram-nos como seus<br />
novos pajés, mas Choam, em nosso nome, declinou <strong>do</strong> título em<br />
favor de um nativo, que apresentava boas qualificações para o cargo.<br />
Permanecemos na aldeia por mais três luas. Após a<br />
recuperação de to<strong>do</strong>s os enfermos, os Setenários decidiram<br />
prosseguir viagem.<br />
Os tucantim não queriam nos deixar partir, mas entenderam a<br />
nossa necessidade de continuarmos a nossa jornada.<br />
Fiz amizade com eles e com facilidade aprendi a língua local. Na<br />
despedida, ofereceram-nos muitos presentes. Para não descontentálos,<br />
Choam aceitou apenas os mantimentos, recusan<strong>do</strong>, gentilmente,<br />
as mulheres e os objetos pessoais.<br />
Novamente posicionamo-nos em fila, um atrás <strong>do</strong> outro. O<br />
Senhor <strong>do</strong> Astral à frente, eu por último, atrás de Choam.<br />
Os Setenários entoaram os sons mágicos, invocan<strong>do</strong> os<br />
elementais da natureza. O Senhor <strong>do</strong> Astral apontou o seu bastão<br />
para frente. A luz brilhante voltou a surgir na bola de cristal <strong>do</strong> seu<br />
caja<strong>do</strong>.<br />
Levitamos <strong>do</strong>is palmos <strong>do</strong> chão e iniciamos o nosso vôo,<br />
lentamente. A luz se projetou adiante e a mata foi se abrin<strong>do</strong> mais<br />
uma vez, dan<strong>do</strong>-nos passagem.<br />
Os tucantim, meio assusta<strong>do</strong>s e curiosos, gritavam na nossa<br />
partida.<br />
Um rastro de fagulhas cintilantes ficou para trás.
32 - KARMA E DHARMA<br />
Após quatro dias de viagem, chegamos a uma região em que<br />
havia uma grande abundância de araçás, frutas silvestres de sabor<br />
muito agradável. Passei a chamar o local de Araçatuba, o “lugar <strong>do</strong>s<br />
araçás”.<br />
Andan<strong>do</strong> por aquela região, logo fizemos contato com uma<br />
pequena tribo. No começo, o povo ficou um pouco assusta<strong>do</strong>, em<br />
virtude da altura e da postura <strong>do</strong>s Setenários, mas nos receberam<br />
bem, acreditan<strong>do</strong> que fôssemos deuses.<br />
Choam, que era o encarrega<strong>do</strong> de fazer as aproximações, logo<br />
cativou os nativos, com sua atitude amistosa. Era impressionante<br />
como ele falava fluentemente a língua daquele povo.<br />
Depois de uma boa prosa, ele voltou-se para o nosso grupo e<br />
comentou:<br />
- Eles estão muito tristes.<br />
- Conosco? - perguntei.<br />
- Não, é que um de seus membros acabou de perder sua<br />
esposa e o filho recém-nasci<strong>do</strong>, em parto prematuro.<br />
Fomos até a oca em que as lágrimas eram incontidas. O<br />
homem, desconsola<strong>do</strong>, chorava debruça<strong>do</strong> sobre o corpo de sua<br />
mulher.<br />
- Agnã, faça as suas observações pela visão astral.<br />
Como a minha vidência havia se desenvolvi<strong>do</strong> mais<br />
rapidamente, não tive dificuldades em ver o corpo astral da mulher<br />
estendi<strong>do</strong> no solo. Ao seu la<strong>do</strong> estava um espírito de luz, na figura de<br />
um índio, que inutilmente tentava ajudá-la a se desvencilhar da<br />
matéria.<br />
A índia dava a impressão de ficar indecisa, entre sair <strong>do</strong> corpo<br />
faleci<strong>do</strong> e seguir a entidade ou permanecer ali, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>.<br />
- Os prantos <strong>do</strong> homem não a deixam partir. Ele quer que ela<br />
volte à vida - explicou Choam.<br />
- E o que vai acontecer?<br />
- Ela pode sofrer ainda mais <strong>do</strong> que já sofreu.<br />
- Até quan<strong>do</strong>?<br />
- Isso é relativo. No caso dela, em face de seu grande apego à<br />
família, talvez demore mais. As vibrações <strong>do</strong>s parentes e amigos<br />
também dificultam o seu desligamento da vida física.<br />
- E a criança?<br />
- Olhe para ela.
Notei que o seu espírito já havia se afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpinho.<br />
- Para onde ele foi?<br />
- Procure focalizar melhor.<br />
Logo surgiram as imagens. Vi o espírito <strong>do</strong> pequenino sen<strong>do</strong><br />
carrega<strong>do</strong> por outros espíritos de luz, também na forma de índios.<br />
Levaram-no para um lugar lindíssimo, cheio de árvores, plantas, rios,<br />
riachos, lago e pequenas montanhas. Em toda a parte havia inúmeros<br />
outros espíritos na forma de crianças, de várias idades.<br />
Impressionei-me ao ver que aquele corpinho miudinho, sob a<br />
ação daquelas entidades, ia transforman<strong>do</strong>-se lentamente em um<br />
corpo de um menino mais cresci<strong>do</strong>.<br />
- O espírito toma a forma astral que quiser. No caso dele,<br />
outras entidades estão ajudan<strong>do</strong>-o nisso, uma vez que ele ainda tem<br />
alguma dificuldade, devi<strong>do</strong> ao recente desencarne - explicou o<br />
Setenário.<br />
- Vejo que ele está feliz. Por que não sofre como os pais?<br />
- Porque, praticamente, não viveu o tempo suficiente para<br />
apegar-se às coisas materiais e às pessoas. A sua família continua<br />
sen<strong>do</strong> a <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> espiritual.<br />
- Qual a razão disso tu<strong>do</strong> acontecer? Por que motivo uma<br />
pessoa nasce e logo desencarna, causan<strong>do</strong> a morte da mãe e terríveis<br />
sofrimentos às outras pessoas?<br />
Choam deu o seu singelo e conheci<strong>do</strong> sorriso e explicou:<br />
- Há inúmeras razões para que isso ocorra, sempre sob a<br />
vontade de Deus.<br />
- Você não disse que Munhã é um Pai misericordioso, cheio de<br />
amor e bondade? Como pode desejar assim o sofrimento das<br />
pessoas?<br />
- Muitas vezes, os seus desígnios são desconheci<strong>do</strong>s <strong>do</strong> homem<br />
comum, mas o ser esclareci<strong>do</strong> sempre verá que tais fatos podem<br />
significar a verdadeira misericórdia divina.<br />
- Como assim? - continuava a perguntar, muito indigna<strong>do</strong>.<br />
- Vamos estudar melhor a vida espiritual dessa família, talvez<br />
possamos entender, de uma forma mais clara, algumas leis divinas.<br />
Por quem você quer começar?<br />
- Pela mulher.<br />
- Muito bem, vamos examinar o seu plano de vida, registra<strong>do</strong><br />
em seu corpo mental. Procure ajustar a sua vidência para ver da<br />
melhor forma possível.
Concentrei-me ao máximo. Comecei a sentir-me como uma<br />
bola de luz que caía em um poço escuro e sem fim, de uma forma<br />
muito lenta. Conforme ia descen<strong>do</strong>, podia ver inúmeras imagens em<br />
minha volta.<br />
A seqüência delas mostrava o seguinte: uma índia cuidava de<br />
outra que estava grávida, já com as <strong>do</strong>res de parto. Em um certo<br />
momento, ela preparou uma poção, conten<strong>do</strong> ervas extremamente<br />
tóxicas e disse à grávida que se tratava de um sedativo, para<br />
amenizar o seu sofrimento e fazer com que a criança logo saísse <strong>do</strong><br />
seu ventre.<br />
Confiante, a mulher, já prestes a dar à luz, tomou a falsa<br />
medicação. Em conseqüência, as suas <strong>do</strong>res pioraram, mas as<br />
contrações foram interrompidas. Gritava desesperadamente, não<br />
porque fosse parir naquele momento e sim em razão <strong>do</strong> efeito<br />
devasta<strong>do</strong>r <strong>do</strong> veneno. Em mais alguns instantes, morreu com os<br />
olhos abertos e cheios de lágrimas.<br />
O feto também não resistiu e faleceu antes de sair <strong>do</strong> ventre da<br />
mãe.<br />
A índia que agiu criminosamente sorria em plena felicidade,<br />
entretanto, quan<strong>do</strong> o mari<strong>do</strong> da falecida adentrou na oca, chorou<br />
copiosamente, para demonstrar sofrimento.<br />
Interrompen<strong>do</strong> a minha visão, perguntei a Choam:<br />
- Não estou entenden<strong>do</strong>, quem são essas mulheres, o que elas<br />
têm a haver com essa família?<br />
- Você viu cenas da vida anterior dessa mulher. Naquela<br />
oportunidade, ela era a irmã da grávida prestes a parir.<br />
- Mas por que então a envenenou, causan<strong>do</strong> também a morte<br />
<strong>do</strong> sobrinho, antes mesmo que pudesse respirar?<br />
- Ela estava apaixonada pelo mari<strong>do</strong> da irmã e possuía um<br />
ciúme secreto, porém <strong>do</strong>entio. Como havia si<strong>do</strong> preterida quan<strong>do</strong> ele<br />
escolheu a irmã dela para se casar, prometeu a si mesma que faria<br />
tu<strong>do</strong> para torná-lo infeliz. O seu plano havia si<strong>do</strong> preconcebi<strong>do</strong>, ela<br />
aguardava aquele momento com muita ansiedade. Ninguém chegou a<br />
descobrir o seu crime e ela ficou impune perante os homens <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>. Entretanto, perante a lei divina, hoje ela pagou pelos seus<br />
erros. Passou muitos anos desejan<strong>do</strong> dar à luz um filho, e agora, que<br />
conseguiu ficar grávida, desencarnou sem que sequer pudesse vê-lo.<br />
- Que lei é essa que a pune em outra vida?<br />
- É a Lei da Ação e Reação, que estabelece que to<strong>do</strong> o efeito<br />
tem uma causa, que a toda atitude corresponde uma outra, de igual
intensidade, força e direção. Os homens <strong>do</strong> Oriente chamam isso de<br />
Karma. Segun<strong>do</strong> ela, tu<strong>do</strong> o que for feito por alguém, de bom ou de<br />
ruim, deverá ser recebi<strong>do</strong> em troca, passe o tempo que passar. Um<br />
dia haverá o resgate das dívidas ou os benefícios <strong>do</strong>s créditos<br />
adquiri<strong>do</strong>s pela conduta baseada nos princípios <strong>do</strong> bem. É uma Lei<br />
Universal que estabelece o equilíbrio e a harmonia entre os<br />
relacionamentos; são as regras divinas <strong>do</strong> comportamento.<br />
- E o livre-arbítrio?<br />
- A sua liberdade de ação está diretamente relacionada com o<br />
respeito que tenha pelos direitos das outras pessoas. Se você<br />
interferir na liberdade de alguém, estará permitin<strong>do</strong> que interfiram na<br />
sua.<br />
- Só é possível pagar o Karma, passan<strong>do</strong> pelas mesmas<br />
circunstâncias <strong>do</strong> mal pratica<strong>do</strong>?<br />
- Não, tu<strong>do</strong> é relativo. O arrependimento que o indivíduo sente,<br />
depois <strong>do</strong> erro cometi<strong>do</strong>, é o primeiro passo para diminuir o seu<br />
débito e tu<strong>do</strong> o que ele fizer, de vontade própria, para reparar o erro,<br />
será leva<strong>do</strong> em consideração. Veja que há nisso a verdadeira<br />
manifestação da misericórdia divina que, além de possibilitar o<br />
resgate das dívidas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, permite ainda, a todas as pessoas,<br />
uma nova oportunidade de reformar as atitudes erradas.<br />
- E a criança, qual foi o crime que ela cometeu em vidas<br />
passadas?<br />
- Veja por si mesmo.<br />
Sintonizan<strong>do</strong> o mental <strong>do</strong> espírito da criança, que já se<br />
encontrava no plano astral, pude vê-la na figura de homem muito<br />
i<strong>do</strong>so, na vida anterior.<br />
Vivia sozinho, andan<strong>do</strong> pelo mato, e tinha um aspecto de muita<br />
infelicidade. Quan<strong>do</strong> chegou no alto de um despenhadeiro atirou-se,<br />
morren<strong>do</strong> com o impacto no solo.<br />
- Então ele praticou o suicídio? - perguntei a Choam.<br />
- Sim. Na verdade, ele iria morrer naturalmente no mesmo dia,<br />
porém, não suportan<strong>do</strong> a solidão, resolveu tirar a própria vida. Em<br />
conseqüência, teve que voltar agora para cumprir com o tempo que<br />
lhe faltava e que deveria ser respeita<strong>do</strong>.<br />
- Não estou entenden<strong>do</strong>. Ele não fez nada de ruim a ninguém.<br />
O Karma não deveria se referir apenas ao mal causa<strong>do</strong> a outrem?<br />
- Agora você está ven<strong>do</strong> que o Karma também abrange o mal<br />
causa<strong>do</strong> a si mesmo. Será mais fácil você entender isso, se refletir<br />
que to<strong>do</strong> o mal que possamos causar a alguém, na verdade, afeta
mais a nós mesmos, ainda que de uma maneira indireta. Mas não<br />
fiquemos limita<strong>do</strong>s a isso. Veja o que estava delinea<strong>do</strong> no plano de<br />
vida.<br />
As imagens eram claras. Pude vê-lo nas circunstâncias de uma<br />
morte natural. Ele, cansa<strong>do</strong>, encostou em uma árvore. Depois de<br />
algum tempo um jovem caça<strong>do</strong>r encontrou-o ali senta<strong>do</strong>.<br />
Penaliza<strong>do</strong> pela situação <strong>do</strong> velho, ele permaneceu em sua<br />
companhia e preparou a sua última refeição. O i<strong>do</strong>so, em retribuição,<br />
entregou-lhe a sua mochila, conten<strong>do</strong> várias ervas e antes que viesse<br />
a falecer, explicou ao bon<strong>do</strong>so moço todas as suas propriedades<br />
medicinais.<br />
Fiquei impressiona<strong>do</strong>.<br />
- Então, se ele não cometesse o suicídio, não morreria sozinho<br />
e ainda poderia passar os seus ensinamentos a outra pessoa? -<br />
perguntei ao Setenário.<br />
- Isso mesmo. E aquele jovem iria curar muitas pessoas de<br />
vários males e salvar outras tantas. Isso possibilitaria ao ancião, um<br />
aumento <strong>do</strong> seu Dharma e não acréscimos karmáticos.<br />
- Dharma? O que seria o Dharma?<br />
- Cada vez que reencarnamos, trazemos conosco todas as<br />
condições necessárias para cumprirmos com o nosso Karma. O<br />
Dharma é isso, o conjunto de todas as possibilidades positivas que<br />
favorecem a nossa vida. Mesmo não estan<strong>do</strong> muito conscientes disso,<br />
acontecem-nos muitos fatos decorrentes <strong>do</strong> Dharma. Por exemplo:<br />
quan<strong>do</strong> se recebe um favor oportuno, uma ajuda inesperada, quan<strong>do</strong><br />
se possui alguma capacidade incomum para realizar determinadas<br />
atividades, quan<strong>do</strong> a família ou os amigos oferecem as condições<br />
necessárias para se fazer algo, e muito mais.<br />
- Estou entenden<strong>do</strong>, mas e o homem que perdeu a família? Que<br />
mal fez em vidas passadas para sofrer dessa maneira?<br />
- Nenhum.<br />
- Nenhum?<br />
- O caso dele é diferente: não está expian<strong>do</strong> nenhum mal<br />
cometi<strong>do</strong>, está passan<strong>do</strong> por provas. Ele está sen<strong>do</strong> testa<strong>do</strong> na<br />
fortaleza de seu espírito. Agora, ou se entrega ao desânimo e à<br />
tristeza, perden<strong>do</strong> a motivação para viver, ou se esforça para<br />
transformar toda o sofrimento que teve, em motivo para formar uma<br />
nova família e buscar novamente a sua felicidade. É uma prova muito<br />
difícil, mas que lhe proporcionará muita luz se conseguir suportá-la.<br />
Não lhe faltará amparo, de amigos encarna<strong>do</strong>s e desencarna<strong>do</strong>s.
Nunca ninguém fica totalmente só diante de suas provas. Quan<strong>do</strong><br />
parece que tu<strong>do</strong> está perdi<strong>do</strong>, de alguma forma, surge uma mão<br />
amiga, mesmo que invisível, pronta para ajudar. De qualquer<br />
maneira, o Karma ou as provas fazem parte da Lei da Evolução, na<br />
qual também se insere a Lei da Misericórdia.<br />
Choam aconselhou o pajé da tribo a tratar o viúvo histérico com<br />
a raiz <strong>do</strong> urubucaá, que significa folha de urubu.<br />
A raiz deveria ser usada em decocção, ou seja, deveria ser<br />
picada em pedacinhos e colocada em uma vasilha, verten<strong>do</strong>-se água<br />
fria em cima, pon<strong>do</strong>-a para cozinhar por pouco tempo. Após tirá-la <strong>do</strong><br />
fogo, conservan<strong>do</strong>-a tampada por mais algum tempo, poderia servi-la<br />
coada.<br />
O urubucaá é uma planta trepadeira que tem um grande poder<br />
sedativo nos casos de histerias, entre outros valores terapêuticos,<br />
mas precisa ser cuida<strong>do</strong>samente ministrada para não causar efeitos<br />
colaterais, pois é tóxica, sen<strong>do</strong> perigosamente prejudicial às grávidas.<br />
O pajé fez como lhe fora instruí<strong>do</strong> e o viúvo logo ficou mais<br />
calmo.<br />
- Já que ele está sob o efeito da erva, podemos ajudar à mulher<br />
- disse Choam.<br />
O cheroupi projetou uma linda luz de um azul-rosa<strong>do</strong> sobre o<br />
espírito dela, que logo conseguiu se desprender <strong>do</strong> corpo físico, sen<strong>do</strong><br />
imediatamente amparada por outros espíritos, que também se<br />
apresentavam na forma de índios.<br />
Logo que o trabalho terminou, eu perguntei a Choam:<br />
- Venerável, como as pessoas com provas e expiações<br />
diferentes, podem conviver na mesma família?<br />
- Na vida, tu<strong>do</strong> se amolda para o cumprimento da Lei da<br />
Evolução. Todas as circunstâncias são aproveitadas, conforme a<br />
vontade de Deus.
33 - A AURA<br />
Prosseguimos em nossa viagem, alcançan<strong>do</strong> uma região em<br />
que de longe se ouvia o rumor das garças. Passei a chamá-la de<br />
Guarapuava.<br />
A minha clarividência aumentava a cada dia e comecei a notar<br />
que as plantas, além das suas cores naturais, apresentavam uma<br />
silhueta colorida, ausente nos vegetais mortos. Os animais também<br />
apresentavam um envoltório luminoso, mais forte que aquele <strong>do</strong>s<br />
vegetais, mas bem menos intenso <strong>do</strong> que o meu.<br />
A luminosidade que partia <strong>do</strong>s Setenários era intensa, muito<br />
mais <strong>do</strong> que a minha. Eles, porém, tinham praticamente a mesma<br />
coloração.<br />
Na altura <strong>do</strong> peito <strong>do</strong>s cheroupis, um rosa-violáceo expandia-se<br />
a grande distância, esverdean<strong>do</strong>-se gradualmente. A luz emitida pelo<br />
chacra frontal e coronário era tanta que ambos pareciam ser um<br />
único centro. Neles, a cor <strong>do</strong>urada pre<strong>do</strong>minava. No alto da cabeça,<br />
os vértices centrais <strong>do</strong> coronário formavam uma espécie de coroa,<br />
muito brilhante.<br />
- Que luz é essa que vejo nos seres vivos? - perguntei,<br />
intriga<strong>do</strong>, a Choam.<br />
- É o que chamamos de aura propriamente dita. Você chegou a<br />
ver a aura da saúde, referente ao corpo etérico; a aura, em um<br />
senti<strong>do</strong> mais amplo, representa a emanação fluídica e colorida <strong>do</strong>s<br />
seres anima<strong>do</strong>s. É a luz emitida pelos envoltórios <strong>do</strong> espírito. É o<br />
espelho da alma, pois seus corpos astral e mental, emitem radiações<br />
luminosas, correspondentes às emoções e aos pensamentos. Ao olhar<br />
para a aura, é possível observar o indivíduo como ele realmente é.<br />
Por ela o espírito mostra a sua verdadeira identidade. Como você já<br />
deve ter percebi<strong>do</strong>, a aura tem uma forma ovóide, sen<strong>do</strong><br />
normalmente mais estreita na altura da cabeça e mais larga junto aos<br />
membros inferiores. As pessoas que apresentam um formato inverso<br />
a esse, com a parte larga na altura superior, demonstram possuir<br />
uma condição espiritual mais elevada. Vamos até às margens <strong>do</strong> rio,<br />
conhecer o povo que aqui vive. Aproveitaremos para aprofundar o<br />
nosso estu<strong>do</strong> acerca da aura.<br />
O nosso encontro com o povo local foi pacífico, embora com<br />
muito estardalhaço. Depois de algum tempo, já andávamos pela<br />
aldeia, acompanha<strong>do</strong>s de vários curiosos, a maioria meninos. Choam,<br />
mais uma vez, demonstrava falar fluentemente a língua deles.
- Agnã - disse o Setenário - comece a prestar atenção na aura<br />
dessas pessoas.<br />
A maioria daqueles que estavam a nossa volta, possuíam uma<br />
aura de um braço e meio de diâmetro.<br />
- O espaço ocupa<strong>do</strong> pela emanação fluídica <strong>do</strong>s envoltórios<br />
espirituais chama-se campo áurico. Observe a aura desse índio a<br />
nossa frente: há um certo limite em que a luz colorida é projetada.<br />
- Sim, estou ven<strong>do</strong> uma espécie de película.<br />
- É a membrana fluídica que delimita o campo áurico, chamada<br />
de película áurica. O que você está ven<strong>do</strong> na aura dele?<br />
- Faixas ondulantes, umas movimentan<strong>do</strong>-se mais lentamente<br />
e outras mexen<strong>do</strong>-se intensamente, além de alguns pontos escuros e<br />
estrias coloridas.<br />
- As faixas podem representar a situação <strong>do</strong> espírito com<br />
relação às experiências que esteja passan<strong>do</strong> na presente encarnação.<br />
As ondas mais lentas são as manifestações de uma vida inteira e as<br />
que se agitam um pouco mais, demonstram o que ele está passan<strong>do</strong><br />
nesses últimos meses. Os pontos e estrias são indica<strong>do</strong>res <strong>do</strong> que<br />
está ocorren<strong>do</strong> no presente, os esta<strong>do</strong>s emocionais e mentais de<br />
curta duração. Observe melhor a borda da aura: O que você<br />
consegue ver?<br />
- Há um fun<strong>do</strong> colori<strong>do</strong>, mais estável que as outras emanações.<br />
- É o que se chama de fun<strong>do</strong> de aura, que demonstra a<br />
condição espiritual <strong>do</strong> ser, após inúmeras reencarnações.<br />
Um menino aproximou-se <strong>do</strong> homem que observávamos e<br />
começou a importuná-lo com uma faquinha de bambu.<br />
Imediatamente surgiram na aura <strong>do</strong> índio adulto, estrias levemente<br />
avermelhadas.<br />
- As pequenas estrias nessa cor significam que ele está fican<strong>do</strong><br />
irrita<strong>do</strong> - explicou Choam.<br />
O garoto foi embora e as cores foram desaparecen<strong>do</strong>.<br />
Porém, não demorou muito e o menino voltou a incomodar<br />
novamente o homem, chegan<strong>do</strong> a quase espetá-lo com a faquinha.<br />
Dessa vez, surgiram pequenos raios, muito mais vermelhos, na aura<br />
<strong>do</strong> adulto, que logo começou a vociferar contra o garoto que saiu<br />
corren<strong>do</strong>, ao perceber que o homem tomaria alguma atitude mais<br />
drástica, se continuasse amolan<strong>do</strong>-o.<br />
Em pouco tempo a sua aura voltou ao normal.
- É evidente que o adulto ficou com mais raiva, mas também<br />
passageira. Observe agora o fun<strong>do</strong> de aura <strong>do</strong> nosso amigo - disse o<br />
cheroupi.<br />
Notei que na parte superior havia um amarelo-claro, muito<br />
fraco.<br />
- É a sua expressão mental pouco desenvolvida. Repare o rosa<br />
opaco na parte central. Isso demonstra pouca afetividade. O amor<br />
dele ainda não surgiu na sua forma mais humana. O seu afeto é<br />
ainda meio animalesco. A mulher, para ele, serve apenas para a<br />
satisfação de suas necessidades físicas e para cuidar <strong>do</strong>s afazeres<br />
peculiares a ela atribuí<strong>do</strong>s. Visitemos agora a oca ao la<strong>do</strong>.<br />
No interior da oca havia três mulheres em seus afazeres e um<br />
homem de uma certa idade. Elas, quan<strong>do</strong> nos viram, correram para<br />
perto daquele homem. Ele, preocupa<strong>do</strong>, pegou um tacape e nos<br />
olhou fixamente. A cor pre<strong>do</strong>minante de sua aura era o rosa opaco,<br />
com tons marrons.<br />
- O marrom-claro denota egoísmo - explicou Choam. - No caso<br />
dele, é uma afeição egoísta. Não é sua intenção perder alguma de<br />
suas mulheres.<br />
Na cor marrom surgiram pigmentos vermelhos e o cheroupi<br />
logo considerou:<br />
- O ciúme dele está fican<strong>do</strong> mais intenso. Vamos nos retirar<br />
antes que surjam os raios vermelhos.<br />
Logo que saímos, aproximou-se de nós um outro homem, mais<br />
afável e simpático, oferecen<strong>do</strong>-nos algumas peças artesanais. A cor<br />
de sua aura era rosa-claro e verde, também claro.<br />
Aceitamos os seus presentes, demonstran<strong>do</strong> muito<br />
contentamento.<br />
- Repare que o fun<strong>do</strong> da aura desse agradável amigo é de um<br />
amarelo intenso. Isso representa grande capacidade mental para criar<br />
- explicou Choam. O rosa, que impregna o amarelo, mostra que suas<br />
criações são realizadas com amor. É a aura <strong>do</strong> artista.<br />
Continuan<strong>do</strong> a caminhar pela taba, logo vimos o guri que havia<br />
incomoda<strong>do</strong> o primeiro homem que encontramos. Agora, ele estava<br />
aborrecen<strong>do</strong> uma mulher. Na aura dela formou-se uma nuvem<br />
vermelha e dentro dela surgiram pequenas bolas na mesma cor e<br />
mais escuras.<br />
Ven<strong>do</strong> que a mulher não reagia diante da amolação, o garoto<br />
foi embora. Aos poucos o campo áurico dela foi voltan<strong>do</strong> ao normal.
- É o nervosismo conti<strong>do</strong>, que não é demonstra<strong>do</strong> para as<br />
outras pessoas, mas que existe - disse Choam. - Não deixa de ser<br />
perigoso, pois acumulan<strong>do</strong>-se cada vez mais, pode explodir em um<br />
acesso de raiva incontrolável.<br />
Em um determina<strong>do</strong> momento, surgiu um jovem gritan<strong>do</strong><br />
alucinadamente. A sua aura estava com um tom cinza-claro.<br />
- É a cor <strong>do</strong> me<strong>do</strong> - esclareceu o Setenário.<br />
O povo logo se reuniu ao seu re<strong>do</strong>r e Choam foi traduzin<strong>do</strong> para<br />
mim o que ele falava para os outros.<br />
Os membros de uma tribo rival surgiram, quan<strong>do</strong> ele e mais<br />
<strong>do</strong>is garotos brincavam no meio da mata. Os meninos foram<br />
aprisiona<strong>do</strong>s e ele conseguiu fugir.<br />
Começou uma gritaria geral. Um <strong>do</strong>s líderes conclamou os<br />
demais homens para que formassem um grupo de busca. Ele tinha,<br />
naquele momento, uma aura escura, chegan<strong>do</strong> ao preto com faixas<br />
vermelhas.<br />
- É a expressão <strong>do</strong>s sentimentos de ódio e vingança - eluci<strong>do</strong>u o<br />
cheroupi.<br />
Havia uns oitenta guerreiros, prontos para a expedição. O<br />
venerável pediu que eu observasse alguns deles.<br />
Um bravo tinha, como cor pre<strong>do</strong>minante em sua aura, o<br />
laranja-escuro.<br />
- Indica ambição - disse Choam. - Ele quer aproveitar a<br />
oportunidade de uma possível luta para alcançar uma posição de<br />
liderança em sua tribo. Esse outro, com vermelho-claro na aura,<br />
mostra-se orgulhoso de poder enfrentar os inimigos. O seguinte,<br />
embora procure demonstrar calma, está mentalmente nervoso, o que<br />
vemos pelo matiz amarelo com manchas vermelhas na parte superior<br />
<strong>do</strong> campo áurico.<br />
Os homens saíram em busca <strong>do</strong>s meninos. Após um bom<br />
tempo, retornaram sem os garotos, mas com cinco prisioneiros.<br />
Quan<strong>do</strong> as mães <strong>do</strong>s curumins perceberam que eles não<br />
haviam si<strong>do</strong> trazi<strong>do</strong>s pelos guerreiros, ficaram desesperadas. Uma<br />
delas ficou com a aura toda em marrom-escuro.<br />
- Ela entrou em profunda depressão. - Explicou o cheroupi. A<br />
outra - continuou - que está oran<strong>do</strong> aos espíritos <strong>do</strong>s antepassa<strong>do</strong>s<br />
para protegerem o seu filho, apresenta essa cor azul-clara.<br />
O pai de um <strong>do</strong>s garotos entrou em desespero e profun<strong>do</strong><br />
abatimento. A sua aura adquiriu um tom cinza-escuro. O pai <strong>do</strong> outro<br />
menino desapareci<strong>do</strong> gritava com os outros presos e tinha a cor
áurica de um vermelho-escuro, com pontos pretos. Choam disse que<br />
isso mostrava que ele estava com raiva e com desejos de fazer algum<br />
mal contra os aprisiona<strong>do</strong>s, para se vingar.<br />
A aura de um <strong>do</strong>s prisioneiros era pre<strong>do</strong>minantemente preta, o<br />
que, segun<strong>do</strong> o Setenário, indicava sentimentos inferiores e<br />
pensamentos de maldade.<br />
Os membros da tribo fustigaram os inimigos, queren<strong>do</strong> que<br />
falassem onde estavam os meninos, mas a maioria mostrava uma<br />
aura amarelo-acinzenta<strong>do</strong>, mais claro.<br />
- Eles não querem dizer nada, porque estão com muito me<strong>do</strong><br />
de trair o seu próprio povo.<br />
No dia seguinte, os homens captura<strong>do</strong>s foram mortos e os<br />
guerreiros decidiram voltar a procurar os meninos.<br />
O líder tentou consolar os pais <strong>do</strong>s curumins, transmitin<strong>do</strong>-lhes<br />
a certeza de que iria encontrá-los. A cor de sua aura apresentava um<br />
laranja-claro. Uma das mães permanecia impassível, pre<strong>do</strong>minan<strong>do</strong><br />
em sua aura o amarelo matiza<strong>do</strong> de marrom-escuro. A sua mente<br />
estava depressiva, conforme Choam.<br />
O pajé passou a invocar os espíritos da natureza. Surgiu na sua<br />
aura uma cor azul-escuro e tons marrons.<br />
- O que significam essas cores? - perguntei.<br />
- O feiticeiro está buscan<strong>do</strong> realmente uma ligação espiritual,<br />
mas não exclusivamente para ajudar as crianças desaparecidas. Ele<br />
busca obter apoio divino também para obter mais prestígio pessoal.<br />
- Não há outro pajé com uma melhor intenção?<br />
- Venha comigo. Há um grupo de índios dessa tribo, que vive<br />
isola<strong>do</strong> em um local não muito distante daqui.<br />
Chegan<strong>do</strong> no alto de um morro, logo pudemos avistar um grupo<br />
de cinco homens, senta<strong>do</strong>s em círculo.<br />
- Vamos nos aproximar em silêncio, pois eles estão em<br />
profunda meditação - pediu o cheroupi.<br />
Permanecemos ao la<strong>do</strong> daqueles homens. Quan<strong>do</strong> eles abriram<br />
os olhos, voltan<strong>do</strong> <strong>do</strong> transe, não se espantaram com a nossa<br />
presença, e Choam comentou:<br />
- A luz clara e azulada que parte <strong>do</strong> grupo, é indica<strong>do</strong>ra de<br />
grande espiritualidade. Misturada com a luz violeta, é sinal de que<br />
eles estavam desempenhan<strong>do</strong> alguma tarefa humanitária.<br />
- Por que estão distantes <strong>do</strong>s outros?<br />
- Observe que a aura de um deles apresenta um amarelo-claro,<br />
com tons violáceos. Isso significa capacidade para os trabalhos
humanitários. Em tempos atrás, as suas atitudes demonstravam que<br />
era possui<strong>do</strong>r de poderes paranormais e se tornou um concorrente<br />
<strong>do</strong> pajé, mesmo não queren<strong>do</strong> ser um muruxaua, e acabou sen<strong>do</strong><br />
persegui<strong>do</strong> pelo feiticeiro. Para evitar um mal maior, decidiu viver<br />
isola<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu povo.<br />
Os outros homens são seus segui<strong>do</strong>res e muitos ainda o<br />
procuram secretamente para resolver problemas de <strong>do</strong>enças ou para<br />
receber alguma orientação.<br />
Logo que acabamos de falar a mãe de um <strong>do</strong>s garotos<br />
desapareci<strong>do</strong>s aproximou-se humildemente <strong>do</strong> grupo.<br />
- Quase sem esperança, ela buscava o verdadeiro auxílio<br />
espiritual - disse o Setenário. - Repare que, em meio <strong>do</strong> amareloescuro<br />
de sua aura, que indica uma mente ainda inferior, agora há<br />
uma fresta azulada.<br />
- Sim, mas há também um cinza-escuro, matizan<strong>do</strong> o amarelo.<br />
- Isso mostra os pensamentos de tristeza que essa mulher<br />
ainda possui.<br />
O líder <strong>do</strong> grupo colocou-a sentada ao la<strong>do</strong> deles e voltaram a<br />
se concentrar. O azul da aura da mulher começou a aumentar e as<br />
cores escuras cederam lugar a um verde-claro. Em seguida<br />
começaram a cair sobre ela pétalas azuis, amarelas e rosas.<br />
- O que está acontecen<strong>do</strong>, Choam?<br />
- O verde-claro em sua aura mostra que ela está ten<strong>do</strong> mais<br />
esperança. As outras cores, que caem em forma de pétalas,<br />
representam as vibrações positivas que ela está receben<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
espíritos de luz.
34 - FORMAS-PENSAMENTO<br />
- Jovem Agnã, agora temos que partir.<br />
- Venerável, e os meninos?<br />
- Estarão a salvo até o final <strong>do</strong> dia. Isso, porém, não está a<br />
nosso encargo.<br />
Voltamos para onde se encontravam os Setenários e logo<br />
partimos em direção ao sul. Voan<strong>do</strong> entre a mata, em <strong>do</strong>is dias<br />
chegamos às margens de um grande rio. Notei que ela estava repleta<br />
de caracóis. Passei então, a chamar o lugar de Uruguay, o “rio <strong>do</strong>s<br />
caramujos”.<br />
Logo que atravessamos o rio e chegamos à outra margem,<br />
percebemos que um grupo de índios estava nos observan<strong>do</strong>. Não<br />
demorou muito para que o pajé da tribo viesse ao nosso encontro. Ele<br />
procurou diretamente Choam e ficaram por algum tempo,<br />
conversan<strong>do</strong> na língua nativa. Depois o cheroupi explicou:<br />
- Esse povo já nos conhece, porém, o pajé não é o mesmo. Ele<br />
morreu há alguns anos. O atual convi<strong>do</strong>u-nos para irmos a sua<br />
aldeia.<br />
Enquanto caminhávamos, olhei para a aura <strong>do</strong> feiticeiro e vi um<br />
verde lo<strong>do</strong>so e um amarelo forte e escuro.<br />
- O que representam essas cores que vejo na aura <strong>do</strong> pajé?<br />
- Ele está tentan<strong>do</strong> nos enganar.<br />
- Mas ele pareceu tão amistoso!<br />
- Só na aparência. Observe o corpo mental dele.<br />
- Vejo uma espécie de garra verde-marrom. Para onde quer<br />
que se vá, a figura aponta para a nossa direção.<br />
- Isso se chama forma-pensamento. É o aspecto <strong>do</strong>s elementos<br />
mentais que surgem e que são produzi<strong>do</strong>s pelo pensamento.<br />
- São criações mentais?<br />
- Sim, é o aspecto da matéria mental, segun<strong>do</strong> a elaboração<br />
mental <strong>do</strong> espírito.<br />
- Quer dizer que, de acor<strong>do</strong> com a vontade <strong>do</strong> espírito, ele age<br />
na matéria mental, dan<strong>do</strong>-lhe uma determinada forma?<br />
- Exatamente. As formas-pensamento falam pela pessoa,<br />
denuncian<strong>do</strong> suas reais intenções.<br />
- O que o pajé planeja?<br />
- Ele é esperto, receoso que saibamos o que pensa, não definiu<br />
o que pretende fazer. Mas descobriremos.
Chegamos na aldeia e uma oca já estava designada para nós.<br />
Ao anoitecer, o pajé e os principais líderes reuniram toda a tribo ao<br />
re<strong>do</strong>r de uma fogueira, onde to<strong>do</strong>s permaneceram senta<strong>do</strong>s, inclusive<br />
os Setenários e eu.<br />
As formas-pensamento <strong>do</strong> feiticeiro já estavam mais definidas.<br />
Impressiona<strong>do</strong>, pude ver a imagem de um caldeirão e dentro dele<br />
estavam as cabeças <strong>do</strong>s cheroupi e a minha.<br />
- Choam...<br />
- Estou ciente, fique calmo.<br />
Os índios dançaram em nossa homenagem e, em seguida,<br />
começaram a servir uma sopa. Quan<strong>do</strong> eu ia tomá-la, o Setenário<br />
impediu-me:<br />
- Espere, Agnã. - Colocou discretamente um pó na minha<br />
vasilha e disse:<br />
- A sopa foi preparada com um forte sonífero. Para mim e para<br />
os demais cheroupis não causará o menor efeito, mas se você ingerila,<br />
irá <strong>do</strong>rmir antes <strong>do</strong> último gole. Esse pó possui uma mistura de<br />
ervas que anulam o efeito da droga.<br />
- Por que o pajé quer nos matar?<br />
- Quan<strong>do</strong> ele matou o antigo feiticeiro, acreditou que tivesse<br />
adquiri<strong>do</strong> os seus poderes. Agora, saben<strong>do</strong> da nossa capacidade<br />
hiperfísica, pretende nos sacrificar para tornar-se imortal.<br />
- O que faremos?<br />
- Por enquanto, nada.<br />
O tempo passou e chegou a hora de nos recolhermos à nossa<br />
oca. Oito mulheres, jovens e formosas, já estavam no interior da<br />
palhoça para <strong>do</strong>rmir conosco.<br />
Fiquei anima<strong>do</strong>. A idéia de <strong>do</strong>rmir com elas mexia com o meu<br />
metabolismo. Choam, entretanto, recusou amigavelmente a<br />
companhia das belas moças.<br />
- Venerável cheroupi, que mal fariam essas mulheres?<br />
- Se ao invés de olhar para o corpo delas você observasse os<br />
seus pensamentos, seria mais previdente.<br />
Olhei para uma das índias, justamente a que mais me<br />
agradara, e a sua forma-pensamento mostrava-a esfaquean<strong>do</strong>-me no<br />
peito, durante o sono. Engoli em seco.<br />
Dentro da oca, permanecemos senta<strong>do</strong>s em círculo. No início da<br />
madrugada, escutei uma série de estalos. Uma grossa fumaça<br />
anunciava o pior. O fogo surgiu por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s.<br />
A única entrada fora obstruída por troncos e galhos em chamas.
- Mantenha a calma - disse Choam.<br />
- Mas não temos como fugir!<br />
- Então de que adianta você ficar apavora<strong>do</strong>?<br />
- Venerável, a fumaça está aumentan<strong>do</strong>, já não consigo respirar<br />
direito, logo o teto irá ceder e nos atingirá! Como é que você quer<br />
que eu fique calmo?<br />
- Confie em nós e permaneça senta<strong>do</strong>. É uma ótima<br />
oportunidade para você treinar.<br />
- Treinar o quê? Como ser servi<strong>do</strong> ao moquém?<br />
- Agnã, feche a boca, feche os olhos e concentre-se. - Pela<br />
primeira vez, o Setenário era incisivo, não ousei contestar.<br />
O calor era insuportável e a fumaça me queimava a garganta e<br />
me sufocava, mas me esforcei em seguir a determinação de Choam.<br />
O teto acabou ruin<strong>do</strong> sobre nós. Lá fora, to<strong>do</strong>s gritavam,<br />
incentiva<strong>do</strong>s pelo pajé. Felizes, comemoravam a nossa morte.<br />
- Levante-se, Agnã! - ouvi a voz <strong>do</strong> Setenário.<br />
Fiquei admira<strong>do</strong> ao ver toda a oca destruída pelo fogo. Mais<br />
espanta<strong>do</strong> ficou o povo ao nosso re<strong>do</strong>r, ao ver-nos andan<strong>do</strong> sobre as<br />
cinzas e sobre algumas partes ainda incandescentes, sem a menor<br />
queimadura.<br />
Depois de algum tempo, o pajé percebeu que somente ele e<br />
mais quatro líderes da tribo ainda estavam ali. Os demais fugiram,<br />
aterroriza<strong>do</strong>s.<br />
Quan<strong>do</strong> tentaram também empreender a fuga, Choam<br />
espalmou a mão direita na direção deles e fez surgir lanças de fogo<br />
que os cercaram, impedin<strong>do</strong> qualquer escapatória.<br />
Apavora<strong>do</strong>s, imploravam por clemência. Logo que o Setenário<br />
fez desaparecer o fogo, eles se atiraram aos seus pés.<br />
Choam disse-lhes alguma coisa e man<strong>do</strong>u-os embora.<br />
- Venerável, o que aconteceu? Como não fomos atingi<strong>do</strong>s pelo<br />
fogo e nem a fumaça nos asfixiou?<br />
- Formamos uma bolha etérea bem condensada que expulsou a<br />
fumaça, manten<strong>do</strong> o ar no seu interior para que pudéssemos respirar<br />
normalmente. A bolha também impediu que o fogo nos atingisse bem<br />
como qualquer armação da oca.<br />
- Como fez surgir as lanças de fogo?<br />
- Foi simples! Convoquei os elementais <strong>do</strong> fogo, chama<strong>do</strong>s de<br />
salamandras e determinei a eles que produzissem o fenômeno que<br />
eles viram.<br />
- Então, era um fogo que não queimaria?
- Depende. A imaginação deles poderia somatizar um efeito<br />
ilusório e assim, por acreditarem piamente nisso, poderiam ferir-se.<br />
- O que disse a eles?<br />
- Que renunciassem ao título que ostentavam e que fugissem o<br />
quanto antes, porque provavelmente seriam executa<strong>do</strong>s pelo povo,<br />
temerosos da nossa ira.<br />
Aban<strong>do</strong>namos o local, no raiar de um novo dia, e, durante a<br />
caminhada feita em passos lentos, Choam foi explican<strong>do</strong>:<br />
- Ver apenas uma forma-pensamento, não é suficiente para<br />
saber o que a pessoa está pensan<strong>do</strong>. É preciso também decifrá-la<br />
convenientemente.<br />
- Como assim?<br />
- Há quatro princípios gerais que se referem à formapensamento.<br />
Primeiro, a qualidade <strong>do</strong> pensamento determina a cor.<br />
Assim, pensamentos bons, sempre terão uma cor mais clara e<br />
agradável, enquanto que os maus terão uma cor mais escura.<br />
Segun<strong>do</strong>, a natureza <strong>do</strong> pensamento determina a sua forma, ou seja,<br />
os pensamentos concretos, que se referem a coisas determinadas,<br />
são mais bem defini<strong>do</strong>s. Os abstratos, que representam as idéias,<br />
terão formas mais indefinidas. Terceiro, a clareza e a precisão <strong>do</strong><br />
pensamento também determinam a clareza e a precisão de<br />
contornos. Isso indica o grau de concentração da pessoa, mostran<strong>do</strong><br />
se é grande ou não a sua determinação. Quarto, a intensidade ou<br />
força <strong>do</strong> pensamento e da emoção determinam a dimensão da<br />
forma-pensamento e o seu tempo de duração. Seguin<strong>do</strong> essas<br />
diretrizes básicas, fica mais fácil entender as imagens mentais.<br />
Existem, entretanto, formas com características inteiramente<br />
próprias, expressan<strong>do</strong> os sentimentos de seu cria<strong>do</strong>r.<br />
- Pelo que observei, uma forma-pensamento pode ser criada<br />
conscientemente ou não.<br />
- Normalmente, as pessoas não têm a menor consciência <strong>do</strong><br />
que a sua mente é capaz de fazer. Mas há outras características<br />
importantes. A forma-pensamento pode ser fixa, permanecen<strong>do</strong> onde<br />
foi criada. Assim, se o chefe de uma família invoca os espíritos e<br />
mentaliza uma proteção para a sua oca, a forma-pensamento que ele<br />
criou, ali ficará. Pode ser móvel, deslocan<strong>do</strong>-se continuamente. É o<br />
caso <strong>do</strong> bravo que vai à luta e a sua mulher deseja que ele seja<br />
protegi<strong>do</strong>. Ela criará uma forma-pensamento que irá acompanhar o<br />
guerreiro por onde ele for.<br />
- E teria realmente condições de protegê-lo?
- Em princípio, sempre protege. Embora seja uma matéria<br />
mental, não deixa de ser pura energia condensada. Essa matéria, no<br />
momento certo, pode transformar-se em energia. Como pertence ao<br />
elemento mental, poderá atuar na mente da pessoa amparada,<br />
dan<strong>do</strong>-lhe muito mais confiança, pela certeza de que está protegida,<br />
ou mais agilidade nas idéias para conseguir enfrentar os momentos<br />
difíceis. Também pode agir na mente <strong>do</strong>s opositores, atrapalhan<strong>do</strong><br />
suas idéias, dificultan<strong>do</strong>, assim, as suas ações. Diga-se ainda, que a<br />
forma-pensamento atrairá outras tantas afins que podem formar uma<br />
força extremamente poderosa.<br />
- Mas se o inimigo tiver a mesma força de pensamento?<br />
- Em toda a correlação energética a nível astral e mental,<br />
sempre prevalece a força que possui a luz <strong>do</strong> bem. Simplesmente<br />
porque não pode haver trevas onde há luz. <strong>Porta</strong>nto, prevaleceria<br />
aquela que tivesse a melhor intenção.<br />
- Estou entenden<strong>do</strong>.<br />
- Para completar, a forma-pensamento pode ser fixa e<br />
posteriormente móvel. É o caso <strong>do</strong> pajé, quan<strong>do</strong> cria, pelas suas<br />
orações, formas mentais de proteção para a tribo. Ela é inicialmente<br />
fixa, porém, quan<strong>do</strong> a tribo muda de lugar, a força protetora também<br />
acompanha o deslocamento.<br />
- Uma forma-pensamento pode ser criada por mais de uma<br />
pessoa?<br />
- Sim, se as pessoas mentalizam a mesma coisa, podem criar<br />
uma forma-pensamento em comum e que certamente será muito<br />
mais forte. Agnã, a mente é muito poderosa e é preciso saber como<br />
empregá-la. Usada inconscientemente, já representa uma grande<br />
força invisível, mas aplicada com consciência, produz resulta<strong>do</strong>s<br />
formidáveis. É preciso, porém, muita disciplina e concentração.<br />
- É por isso que a ilusão pode ser realidade, porque<br />
mentalmente ela existe - complementei.<br />
- E é por essa razão que a realidade, para alguns, não passa de<br />
pura ilusão para outros.<br />
- Mas o homem com consciência saberia distinguir uma coisa da<br />
outra?<br />
- Como não há limites defini<strong>do</strong>s e absolutamente seguros entre<br />
elas, talvez fosse mais prudente nunca confiar cegamente no que se<br />
considere realidade e nem desacreditar totalmente <strong>do</strong> que possa ser<br />
julga<strong>do</strong> ilusão. Para o espírito verdadeiramente esclareci<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong><br />
pode ser possível, até o impossível...
35 - BAJÉ, O CURANDEIRO<br />
Após a interessante elucidação de Choam, continuamos a nossa<br />
viagem rumo ao sul, voan<strong>do</strong> pela mata.<br />
Chegamos em um pequeno, mas agita<strong>do</strong> povoa<strong>do</strong>. Inúmeras<br />
pessoas se aglomeravam em to<strong>do</strong>s os cantos e muitos mais se<br />
aproximavam dali. Logo que começamos a andar normalmente, os<br />
Setenários se afastaram fican<strong>do</strong> apenas Choam comigo.<br />
A movimentação no lugarejo era tanta, que ninguém deu muita<br />
importância a nossa presença. No máximo, alguém olhava para<br />
Choam e aparentava estranhar o seu avantaja<strong>do</strong> porte físico, porém<br />
logo voltava o olhar para um <strong>do</strong>s caminhos que levava à aldeia.<br />
- O que está haven<strong>do</strong>? - perguntei ao cheroupi.<br />
- Nesse perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> ano, um curandeiro costuma visitar esse<br />
lugar, atrain<strong>do</strong> várias pessoas de outras tribos, que vêm ao seu<br />
encontro, à procura de tratamento para as suas <strong>do</strong>enças. Muitos<br />
percorrem uma grande distância para chegar aqui.<br />
- E onde está o curandeiro?<br />
- Ainda não chegou, mas não deverá demorar muito.<br />
Era tanta gente que ficava difícil caminhar pela aldeia. Com<br />
muito esforço, conseguimos chegar perto de uma oca, destinada ao<br />
pajé itinerante, e que estava cercada por uma enorme multidão.<br />
Havia tochas de fogo ao re<strong>do</strong>r da palhoça. Ao la<strong>do</strong> da sua<br />
entrada estavam posicionadas vinte e duas jovens índias. Cada uma<br />
segurava alguma coisa, entre xaxins, plantas, cuias com água e<br />
pequenos archotes.<br />
- As índias são virgens que irão auxiliar o curandeiro em seu<br />
trabalho.<br />
- Por que virgens e não guerreiros?<br />
- O mais correto seria dizer que são meninas que ainda não<br />
menstruaram e são escolhidas porque a energia vital delas é latente,<br />
portanto, em melhores condições para auxiliar em um trabalho de<br />
cura. Além disso, normalmente são mais meigas e carinhosas,<br />
qualidades que não se coadunam com as de um guerreiro, mas<br />
imprescindíveis no atendimento que se fará. A idade imatura também<br />
colabora para uma mente mais pura e, conseqüentemente, mais em<br />
sintonia com as vibrações que se farão necessárias, ten<strong>do</strong> ainda mais<br />
facilidade para captar as energias indispensáveis para o tratamento<br />
aos <strong>do</strong>entes.
- Após a primeira menstruação, elas não poderão mais realizar<br />
esse tipo de trabalho?<br />
- Depende. Algumas vezes, já estão muito habituadas e<br />
experientes, e continuam a participar <strong>do</strong> atendimento, inclusive<br />
ensinan<strong>do</strong> as meninas mais novas.<br />
Não demorou muito e o alvoroço aumentou. Em várias partes<br />
ouvimos os gritos:<br />
- Bajé!! Bajé!! Bajé!!<br />
- O curandeiro está se aproximan<strong>do</strong> da aldeia - disse Choam.<br />
A agitação aumentou, até que em da<strong>do</strong> momento, to<strong>do</strong>s<br />
permaneceram no mais absoluto silêncio.<br />
Pude vê-lo surgin<strong>do</strong> ao longe, entre a massa humana que se<br />
aglomerava, mas que nem sequer o tocava, em respeito. Apenas<br />
jogavam flores pelo seu caminho.<br />
À medida que se aproximava, a sua figura ia surpreenden<strong>do</strong>me.<br />
Eu esperava ver um índio i<strong>do</strong>so, encurva<strong>do</strong> pela idade e com um<br />
andar lento e penoso. Ele não era assim. Vi um jovem índio, de olhos<br />
verde-claros, cabelos pretos e compri<strong>do</strong>s, com uma fita verde na<br />
cabeça. Usava uma manta marrom sem mangas, que descia até os<br />
seus pés descalços.<br />
Com uma sacola pendurada no ombro, o curandeiro avançava<br />
sereno entre a multidão quieta e olhares de admiração.<br />
A sua aura era magnífica. Entre inúmeras cores claras, que se<br />
expandiam a grande distância, pre<strong>do</strong>minavam os tons de verde e<br />
rosa e matizes <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s e pratea<strong>do</strong>s. Sua aura era muito semelhante<br />
à <strong>do</strong>s Setenários.<br />
Ao passar por nós, ele olhou para Choam com um leve sorriso.<br />
Antes de entrar na oca, especialmente preparada para ele,<br />
voltou-se para o povo e fez algumas considerações na língua nativa.<br />
- Ele está explican<strong>do</strong> que as crianças serão atendidas em<br />
primeiro lugar, depois os i<strong>do</strong>sos, as mulheres e por fim os homens -<br />
traduziu Choam.<br />
Havia inúmeros <strong>do</strong>entes, de várias idades e com as mais<br />
diversas enfermidades: cegos, pessoas com chagas, paralíticos, entre<br />
tantos outros.<br />
Logo após as suas recomendações, o Bajé fez um gesto para<br />
que Choam entrasse na palhoça.<br />
- Vamos, Agnã, você terá a oportunidade de um grande<br />
aprendiza<strong>do</strong>.<br />
Extremamente feliz pela honra, segui incontinente.
O interior da oca era muito simples e dividia-se em três<br />
cômo<strong>do</strong>s.<br />
- Aqui - começou a explicar Choam, que parecia muito<br />
familiariza<strong>do</strong> com o trabalho - os enfermos serão prepara<strong>do</strong>s para a<br />
consulta. Ali, logo atrás, os <strong>do</strong>entes permanecerão por algum tempo,<br />
após serem atendi<strong>do</strong>s e nos fun<strong>do</strong>s, o Bajé realizará o seu trabalho.<br />
- Companheiro Choam, seria importante que o jovem aprendiz<br />
fizesse a reativação <strong>do</strong>s seus centros energéticos - disse o curandeiro<br />
em minha língua, deixan<strong>do</strong>-me perplexo.<br />
O Setenário concor<strong>do</strong>u e falou em seguida:<br />
- Agnã, a reativação <strong>do</strong>s ierês permite um maior acúmulo<br />
energético e é às vezes necessário, principalmente nos casos de cura.<br />
O <strong>do</strong>a<strong>do</strong>r de energias deve sempre estar equilibra<strong>do</strong>,<br />
energeticamente, para não sentir mal-estar durante e após o<br />
tratamento.<br />
- Mas eu também vou fornecer alguma energia?<br />
- Claro, é difícil ficar indiferente quan<strong>do</strong> se acompanha um<br />
trabalho como esse!<br />
- Como se faz a reativação?
36 - A REATIVAÇÃO <strong>DO</strong>S CHACRAS<br />
- É simples, mas como iremos usar a energia ígnea, não se<br />
esqueça de que terá de manter uma boa concentração mental para<br />
manipulá-la, convenientemente. O caminho natural dessa energia é<br />
subir pela planta <strong>do</strong>s pés, ir para o centro básico e esvair-se pelo<br />
coronário. Para aumentar a sua captação, você deverá apontar os<br />
de<strong>do</strong>s das mãos para o solo, manten<strong>do</strong>-os ligeiramente entreabertos.<br />
Fiz o que ele dissera. Depois, ele continuou a instruir-me:<br />
- Agora mantenha a mão direita apontada para o chão. Feche a<br />
mão esquerda e abra-a sobre a base da coluna vertebral, onde está o<br />
centro básico. Assim, você fechará um circuito energético, reativan<strong>do</strong><br />
mais intensamente esse ierê. O que está sentin<strong>do</strong>?<br />
- Sinto o corpo quente e meio pesa<strong>do</strong>. O calor é mais forte nos<br />
pés e nas mãos.<br />
- Na verdade, a sua captação está sen<strong>do</strong> tão intensa que chega<br />
a lhe dar a impressão de ser física. Feche a mão direita e abra-a, em<br />
forma de concha sobre o esplênico. Com isso, você irá passar a<br />
energia ígnea, acumulada no básico, para esse chacra. Não é<br />
necessário encostar a mão no corpo, pois os ierês não estão na pele e<br />
sim um pouco acima dela. Mentalize-os giran<strong>do</strong> como um<br />
redemoinho, intensamente. Passe a mão direita para a altura <strong>do</strong><br />
umbigo. Imagine que a energia ígnea sai <strong>do</strong> básico e vai para o<br />
gástrico, ativan<strong>do</strong>-o. Siga, ainda com a mão direita, para o cardíaco;<br />
posteriormente, com pequenas paradas, reative o laríngeo, frontal e<br />
coronário.<br />
Quan<strong>do</strong> cheguei no coronário, senti uma leve tontura e Choam<br />
logo explicou:<br />
- No começo essa sensação é normal, pois você nunca havia<br />
feito isso antes, mas com o tempo deixará de ocorrer. Agora, feche a<br />
mão direita, ainda com ela sobre o coronário, e desça-a, fechada,<br />
abrin<strong>do</strong> somente sobre o esplênico. Faça tu<strong>do</strong> novamente, até o<br />
coronário, mentalizan<strong>do</strong> os centros nas cores normais, porém, com<br />
maior intensidade energética.<br />
Fiz exatamente o que Choam me orientara. Quan<strong>do</strong> concluí a<br />
segunda reativação, o venerável perguntou:<br />
- Como se sente?<br />
- Muito bem, mas por que às vezes há que se fechar a mão?<br />
- É para não desperdiçar a energia.<br />
- O venerável e o pajé não vão reativar os chacras?
- A nossa reativação é feita naturalmente, apenas com o<br />
simples desejo de empregar as forças <strong>do</strong> espírito. Em breve, isso<br />
também acontecerá com você.<br />
O Bajé começou a atender aos <strong>do</strong>entes, inician<strong>do</strong> com as<br />
crianças, como havia determina<strong>do</strong>. Ele tratava-as com especial<br />
carinho e elas mostravam-se tranqüilas e confiantes. Mesmo as mais<br />
irrequietas logo se acalmavam.<br />
Choam, com a sua habitual paciência, ia explican<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que<br />
o curandeiro fazia.<br />
Em um determina<strong>do</strong> momento, uma mulher entrou com o seu<br />
filho, de tenra idade, no colo, acompanhada de seu mari<strong>do</strong>. A criança<br />
tinha muita dificuldade de respirar.<br />
O Bajé começou a fazer uma série de advertências aos<br />
genitores. O Setenário comentou:<br />
- Normalmente, se os mirins nessa idade, ficam gravemente<br />
<strong>do</strong>entes, ou é por causa karmática ou é por causa <strong>do</strong>s pais. É o caso<br />
dessa criança, que não possuin<strong>do</strong> a mesma estrutura de defesa<br />
espiritual e física <strong>do</strong>s pais, ficou enferma, em razão da energia<br />
negativa que eles atraíram. A mãe está depressiva por que o seu<br />
mari<strong>do</strong> arrumou outra mulher.<br />
- Mas isso é tão normal!<br />
- Para os homens, mas não para todas as mulheres. Olhe para<br />
a aura dela.<br />
Pude vê-la envolta por barras marrons que demonstravam um<br />
esta<strong>do</strong> emocional grandemente abati<strong>do</strong>.<br />
- Mas essa expressão áurica não é em razão <strong>do</strong> filho<br />
moribun<strong>do</strong>?<br />
- Veja as formas-pensamento dela.<br />
Sobre a cabeça da amargurada mãe havia a imagem de uma<br />
índia, muito jovem, <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> de seu esposo e a forma da<br />
garra, típica <strong>do</strong> ciúme. Choam explicou:<br />
- Assim que uma nova mulher passou a conviver na mesma<br />
oca, a mãe que aqui está, começou a perder toda a atenção <strong>do</strong><br />
mari<strong>do</strong>. Ten<strong>do</strong>, recentemente, da<strong>do</strong> à luz, sente-se enjeitada,<br />
justamente em um perío<strong>do</strong> em que carece de amparo. Além <strong>do</strong> que,<br />
sen<strong>do</strong> bem mais velha que a outra, acredita que é impossível ter de<br />
volta a mesma dedicação <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>.<br />
- Mas não deveria ela a<strong>do</strong>ecer no lugar <strong>do</strong> garoto?<br />
- Ela está efetivamente enferma. O seu coração está feri<strong>do</strong>,<br />
causan<strong>do</strong> a morbidez de sua alma. A enfermidade física é uma
questão de tempo, se continuar assim, e o primeiro reflexo de seu<br />
esta<strong>do</strong> emocional abala<strong>do</strong> já foi passa<strong>do</strong> na produção e na qualidade<br />
<strong>do</strong> leite forneci<strong>do</strong> ao filho, que diminuíram sensivelmente. O<br />
diagnóstico físico <strong>do</strong> menino mostra que está anêmico, em razão <strong>do</strong><br />
leite escasso e pouco nutritivo, servi<strong>do</strong> pela mãe. A anemia, somada<br />
à sufocação que sofre pela energia depressiva liberada pela genitora,<br />
é que está causan<strong>do</strong> a insuficiência respiratória.<br />
Olhei para a aura <strong>do</strong> guri e percebi que estava impregnada das<br />
mesmas energias ruins da progenitora.<br />
- Toda mãe não apenas cuida fisicamente <strong>do</strong> filho, mas também<br />
o protege de vibrações negativas, mesmo que não saiba disso.<br />
Quan<strong>do</strong> ela se enche de tristeza e, principalmente, quan<strong>do</strong> ela<br />
mesma emite as energias ruins ao próprio rebento, deixa-o<br />
vulnerável aos problemas espirituais, que facilmente podem se tornar<br />
físicos. Isso causa maior preocupação se acontece durante o início <strong>do</strong><br />
desenvolvimento orgânico e da personalidade.<br />
- É interessante como uma enfermidade, que parece ser<br />
tipicamente física, envolve outras variantes, até então impensáveis.<br />
- A grande maioria das <strong>do</strong>enças tem fun<strong>do</strong> emocional, mental<br />
ou espiritual, e, muitas vezes, tu<strong>do</strong> isso junto. É o que se chama de<br />
somatização, ou seja, é o surgimento de uma <strong>do</strong>ença orgânica, em<br />
razão de um distúrbio <strong>do</strong> espírito.<br />
O Bajé determinou ao pai que desse a mesma atenção a to<strong>do</strong>s<br />
os membros da família. Para a mãe, disse que deveria deixar de usar<br />
o filho como forma de conseguir mais atenção <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Eles<br />
ouviram, cabisbaixos, concordan<strong>do</strong> com tu<strong>do</strong>.<br />
A aura deles realmente demonstrava vergonha e<br />
arrependimento.<br />
O curandeiro entregou ao homem um extrato de muirapuama,<br />
com o qual ele deveria fazer um chá, toman<strong>do</strong>-o quatro vezes ao dia,<br />
diminuin<strong>do</strong> a <strong>do</strong>se a cada três dias. Porém, o tratamento só deveria<br />
se iniciar após oito luas. Choam, em seguida, explicou:<br />
- O chefe da família estava preocupa<strong>do</strong> em não poder satisfazer<br />
sexualmente as duas mulheres com a mesma desenvoltura. Como a<br />
primeira esposa é bem mais velha e já tem filhos, ele acreditava que<br />
ela se acomodaria com o fato dele passar a <strong>do</strong>rmir mais com a outra,<br />
que se mostrava muito mais exigente. Durante oito luas, é provável<br />
que ele tenha condições de repartir com as duas, a mesma<br />
dedicação, após isso, talvez não consiga o mesmo desempenho e aí<br />
poderá novamente voltar-se para a jovem esposa. Por isso, é que o
tratamento dele está programa<strong>do</strong> para essa época o que lhe auxiliará<br />
a manter, de certa maneira, a mesma forma.<br />
O curandeiro recomen<strong>do</strong>u ainda ao homem, que fizesse a outra<br />
mulher tomar suco de maracujá-açu, um calmante de primeira<br />
ordem.<br />
A esposa presente também deveria beber o mesmo suco e<br />
ainda passar a comer castanhas para melhorar a produção <strong>do</strong> leite,<br />
muito embora a alteração positiva de seu esta<strong>do</strong> emocional, já<br />
propiciasse isso.
37 - SOB A LUZ <strong>DO</strong> PASSE<br />
Após essas recomendações iniciais, o curandeiro man<strong>do</strong>u que a<br />
mulher colocasse o seu filho em uma kyçaba, próxima dali. Passou<br />
então a fazer uma série de movimentações com as mãos, como se<br />
estivesse limpan<strong>do</strong> o corpinho <strong>do</strong> menino de uma invisível sujeira.<br />
No astral, eu via que das mãos <strong>do</strong> Bajé saíam fagulhas<br />
luminosas que desintegravam as placas escuras que impregnavam o<br />
corpo astral <strong>do</strong> mirim. O Setenário logo explicou:<br />
- É a limpeza de aura. Uma vez que as energias negativas da<br />
mãe chegaram a atingir o próprio filho, agora é necessário que se<br />
faça uma providencial depuração áurica. Perceba que há, ainda,<br />
pontos e estrias marrons na altura <strong>do</strong> peito <strong>do</strong> menino.<br />
- E estão se desfazen<strong>do</strong> com a ação <strong>do</strong> curandeiro.<br />
- A isso chamamos de passe, ou seja, a transmissão de<br />
energias. O Bajé está usan<strong>do</strong> a energia cósmica para dissolver as<br />
impregnações formadas no corpo astral <strong>do</strong> menino.<br />
- Choam, estou perceben<strong>do</strong> que o corpo etéreo <strong>do</strong> mirim, na<br />
altura <strong>do</strong> peito, está menos brilhante e que a aura da vitalidade<br />
também se encontra tênue, no mesmo lugar.<br />
- As energias negativas que atingiram o corpo astral<br />
delechegaram a passar para o corpo vital e esse, face ao tempo<br />
decorri<strong>do</strong> sem tratamento, acabou por permitir que o físico fosse<br />
ataca<strong>do</strong>, advin<strong>do</strong> o mau funcionamento <strong>do</strong> sistema respiratório.<br />
- Observo ainda, que o ponto mais frágil <strong>do</strong> duplo está na base<br />
da nuca.<br />
- É porque, na verdade, é aí que se concentraram as energias<br />
maléficas. Nesse ponto é onde se encontra o bulbo, órgão influente<br />
na atividade respiratória. Se você observar mais atentamente, verá o<br />
bulbo <strong>do</strong> corpo etéreo mais enfraqueci<strong>do</strong>. Procure entender que a<br />
ação de energias negativas impedem a circulação das energias vitais.<br />
É o que está acontecen<strong>do</strong>. Nesse caso, mesmo que o leite materno<br />
voltasse à mesma qualidade e quantidade, a recuperação física <strong>do</strong><br />
guri levaria um tempo bem maior sem o passe. O Bajé, primeiro,<br />
limpou a aura <strong>do</strong> menino das influências negativas; agora ele irá<br />
restabelecer a movimentação da energia vital <strong>do</strong> duplo para o corpo<br />
físico - concluiu o cheroupi.<br />
Foi exatamente o que aconteceu. O curandeiro fez uma<br />
imposição de mãos, inicialmente na nuca <strong>do</strong> pequeno atendi<strong>do</strong>,<br />
depois passou para o peito.
De suas mãos saíam raios multicolori<strong>do</strong>s, pre<strong>do</strong>minan<strong>do</strong> as<br />
cores prata, verde e laranja, que não somente atuavam no elo vital,<br />
mas penetravam no corpo físico.<br />
- O prata repara a camada etérea mais danificada; o verde<br />
também atua no corpo vital, especialmente no centro esplênico,<br />
amplian<strong>do</strong> a captação <strong>do</strong>s glóbulos de vitalidade. O laranja concentrase<br />
no ierê <strong>do</strong> básico, aumentan<strong>do</strong> a força energética de to<strong>do</strong> o corpo<br />
físico - explicou Choam.<br />
Após, o curandeiro aplicou um azul-claro, tão serenamente, que<br />
o mirim <strong>do</strong>rmiu no mesmo instante.<br />
A intensidade <strong>do</strong> tratamento foi tão grande, que o corpo físico<br />
parecia reagir no ato. Logo o menino respirava sem a menor<br />
dificuldade e o seu rostinho deixou de ficar páli<strong>do</strong>, voltan<strong>do</strong> à cor<br />
natural.<br />
Em um determina<strong>do</strong> momento, fiquei um pouco assusta<strong>do</strong>, pois<br />
vi minúsculas formas mexen<strong>do</strong>-se intensamente no corpo da criança.<br />
- Essas são as células - eluci<strong>do</strong>u o Setenário. - São as menores<br />
formas de vida <strong>do</strong> organismo humano. Elas se agrupam, forman<strong>do</strong> os<br />
órgãos <strong>do</strong> corpo físico. Essa é uma das vantagens da clarividência,<br />
que também permite ao sensitivo treina<strong>do</strong>, a visão microscópica.<br />
Choam passou a me dar uma verdadeira aula de anatomia,<br />
enquanto Bajé cuidava <strong>do</strong> pequeno.<br />
- Para fazer o bem - disse o cheroupi - basta desejá-lo. Quan<strong>do</strong><br />
uma mãe abraça carinhosamente o filho <strong>do</strong>ente, com muito amor e<br />
deseja vê-lo melhor, já estará dan<strong>do</strong>-lhe um passe. O nobre<br />
sentimento age no corpo astral, harmonizan<strong>do</strong>-o e deixan<strong>do</strong>-o em<br />
melhores condições para que a energia cósmica atue no corpo etéreo.<br />
A vitalidade que ela transmite inconscientemente, se une à força<br />
poderosa de luz e, assim, tem mais facilidade de amparar o físico<br />
enfraqueci<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> ela oferece um chá recupera<strong>do</strong>r ao filho, com<br />
certeza, nele também se encontram partículas poderosas <strong>do</strong> seu<br />
amor e, na maioria das vezes, é esse o fator determinante para a<br />
melhora da criança. Entretanto, quan<strong>do</strong> se tem pleno conhecimento<br />
das forças energéticas e <strong>do</strong> funcionamento de to<strong>do</strong>s os meios de<br />
manifestação <strong>do</strong> espírito, o tratamento torna-se mais fácil e profícuo.<br />
- Então, para o melhor resulta<strong>do</strong> de um atendimento, o amor é<br />
fundamental?<br />
- Sem dúvida, quan<strong>do</strong> o amor é emprega<strong>do</strong> com sabe<strong>do</strong>ria, no<br />
tratamento das pessoas enfermas, os efeitos são bem mais amplos.
- Porém, nem to<strong>do</strong>s os pajés atendem as pessoas com o<br />
mesmo amor de uma mãe.<br />
- É isso que faz a diferença entre os verdadeiros curandeiros<br />
que realmente possuem o poder <strong>do</strong> caém e aqueles que se limitam a<br />
tratar das <strong>do</strong>enças por mera obrigação. Mas qual foi a principal<br />
medicação empregada pelo Bajé?<br />
- Seria a advertência feita aos pais?<br />
- Isso mesmo. Ele encontrou a causa <strong>do</strong> problema. Não bastaria<br />
apenas aumentar o leite materno, receitar os tratamentos e aplicar os<br />
passes. Estaria apenas tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s efeitos da <strong>do</strong>ença. Logo eles<br />
voltariam a ocorrer. O importante era a consciência da causa <strong>do</strong>s<br />
problemas, para evitar que retornassem.<br />
Após a limpeza de aura <strong>do</strong> mirim e também <strong>do</strong>s seus pais, o<br />
curandeiro atendeu muitas outras crianças. Uma das últimas que<br />
entrou na oca, acompanhada de sua avó, estava com uma febre<br />
muito alta, um sinal de alerta <strong>do</strong> organismo.<br />
Ninguém na tribo sabia o que era. Nem o pajé da taba<br />
conseguiu deixá-la melhor e a menina já estava apresentan<strong>do</strong><br />
vômitos e diarréia.<br />
A aura da saúde mostrava o abatimento físico e os centros <strong>do</strong><br />
corpo etéreo inutilmente captavam o máximo de energia para tentar<br />
manter a estabilidade orgânica. Não havia, porém, alguma cor que<br />
anunciasse uma enfermidade originária <strong>do</strong> seu próprio espírito.<br />
No campo áurico da avó da mirim pre<strong>do</strong>minavam as cores azul<br />
e laranja-claro que demonstravam a fé que ela possuia de ver a sua<br />
neta curada.<br />
O curandeiro logo identificou o problema. A menina havia<br />
comi<strong>do</strong> uma fruta muito saborosa, mas altamente tóxica. Ele tirou de<br />
sua mochila, um pequeno arbusto, que em minha tribo chamávamos<br />
de tararucu, de folhas grandes e amarelas, cuja vagem continha<br />
sementes escuras, duras e lisas.<br />
- A raiz deste arbusto - explicou Choam - é amarga, porém se<br />
trata de um antí<strong>do</strong>to de grandes poderes.<br />
O decocto da raiz foi servi<strong>do</strong> à menina. Os primeiros sinais de<br />
sua melhora foram imediatos.<br />
- Normalmente, levaria um maior tempo para a recuperação,<br />
mas a substância preparada contém algo a mais - disse Choam.<br />
Olhei para o líqui<strong>do</strong> que havia em uma cuia e notei que brilhava<br />
como prata. O Setenário não deixou dúvidas:
- São as forças imantadas da cura, adicionadas pelo curandeiro.<br />
Isso também torna esse remédio diferente de qualquer outro<br />
prepara<strong>do</strong> com a mesma planta.<br />
Em seguida, o Bajé passou a ministrar as energias terapêuticas,<br />
porém, ao invés de aplicá-las com as mãos, ele simplesmente<br />
assoprou a cabeça da indiazinha e, depois, o corpo to<strong>do</strong>.<br />
A imagem astral era clara e mostrava que aquilo não era um<br />
sopro comum. O ar que era exala<strong>do</strong> continha energia vitalizante, na<br />
cor verde-folha com nuanças prateadas.<br />
O duplo etéreo se recompôs imediatamente e, em seguida, a<br />
febre cedeu por completo. O Setenário explicou:<br />
- O passe, como você está ven<strong>do</strong>, pode ser ministra<strong>do</strong> de<br />
diversas formas e mesmo a grandes distâncias. A manipulação física<br />
ajuda a melhor condução energética, mas não é imprescindível.<br />
O dia passou rapidamente. Todas as crianças foram tratadas e<br />
quase to<strong>do</strong>s os que as acompanhavam também receberam<br />
tratamento.<br />
À noite, interrompeu-se o atendimento e tomamos uma leve<br />
sopa de mandioca. Eu me deitei, mas Choam e o Bajé permaneceram<br />
senta<strong>do</strong>s, em profunda meditação.<br />
- Jecoema! Jecoema! Abacaem mongarayba marabora!<br />
Acordei com uma das índias anuncian<strong>do</strong>, estranhamente em<br />
minha língua, que amanhecera e o “homem que cura” benzeria os<br />
<strong>do</strong>entes. Levantei-me apressadamente, notan<strong>do</strong> que, ao clarear da<br />
manhã, to<strong>do</strong>s já estavam prontos para continuar o atendimento.<br />
Era a vez <strong>do</strong>s adultos mais velhos e o primeiro a ser atendi<strong>do</strong><br />
era um abeaçaba. Um homem, completamente cego, era conduzi<strong>do</strong><br />
pelo seu neto já a<strong>do</strong>lescente.<br />
O ancião relatou ao curandeiro que começara a perder a visão<br />
havia quatro meses. Julgava que fosse em razão <strong>do</strong>s maus-olha<strong>do</strong>s<br />
de seus desafetos.<br />
O abacaem falou com o abeaçaba que logo começou a chorar.<br />
Choam esclareceu:<br />
- O Bajé está dizen<strong>do</strong> ao velho que sabe que ele passou a vida<br />
inteira procuran<strong>do</strong> sempre ver as coisas erradas que os outros<br />
faziam. Enciuma<strong>do</strong>, sempre buscava apontar os defeitos das pessoas<br />
e criticar pejorativamente as coisas boas que elas faziam. Não via,<br />
porém, as suas próprias imperfeições e muito menos sequer corrigia<br />
as suas falhas. No coração guardava um profun<strong>do</strong> desprezo pelo<br />
sucesso de qualquer um e, em razão disso, procurava os mais ínfimos
deslizes para denunciá-los aos demais e assim desmoralizar os seus<br />
semelhantes. Muitos foram prejudica<strong>do</strong>s pelas infames acusações.<br />
Mais uma vez nos deparamos com as energias maléficas <strong>do</strong> ser,<br />
causan<strong>do</strong> sua própria desgraça.<br />
- Quer dizer que os desejos ruins que ele teve, voltaram-se<br />
para si mesmo na forma de cegueira? Mas por que exatamente<br />
assim?<br />
- Observe o corpo etéreo <strong>do</strong> ancião. Onde a energia vital se<br />
mostra mais fraca?<br />
- Em geral to<strong>do</strong> o duplo parece enfraqueci<strong>do</strong>, mas é na altura<br />
<strong>do</strong>s olhos que a vitalidade se apresenta mais escassa.<br />
- Sim, antes da <strong>do</strong>ença se apresentar, o corpo vital já estava<br />
debilita<strong>do</strong>, em parte pela idade e em parte face a energia ter si<strong>do</strong><br />
consumida pelas emanações negativas, produzidas durante tantos<br />
anos. Os olhos etéreos é que foram mais usa<strong>do</strong>s para as emissões<br />
malfazejas, e, em conseqüência, perderam quase totalmente a sua<br />
capacidade energética, deixan<strong>do</strong> de transmiti-la ao corpo material,<br />
ocasionan<strong>do</strong> a cegueira física.<br />
- Como é perigoso permanecer em um esta<strong>do</strong> tão negativo!<br />
Mas haverá alguma coisa que o abacaem possa fazer?<br />
- A primeira coisa ele já fez, que é o esclarecimento ao ancião,<br />
da verdadeira razão pela qual está cego. Se o abeaçaba conseguir<br />
conscientizar-se disso, estará encontran<strong>do</strong> a causa <strong>do</strong> problema,<br />
fican<strong>do</strong> mais fácil resolver o seu efeito. Quan<strong>do</strong> o problema apenas<br />
se encontra no corpo etéreo, às vezes, basta uma harmonização<br />
energética: porém, quan<strong>do</strong> um mau funcionamento desse corpo<br />
atinge o físico, o tratamento precisa ser realiza<strong>do</strong> nos <strong>do</strong>is corpos. É<br />
necessário que se entenda, no entanto, que em certas situações o<br />
duplo vital fica tão decomposto pela perda energética, que acaba<br />
causan<strong>do</strong> uma <strong>do</strong>ença irreversível. Vejamos como o Bajé atuará<br />
nesse caso.<br />
A aura <strong>do</strong> abeaçaba, conforme ele ouvia as palavras <strong>do</strong><br />
curandeiro, ia começan<strong>do</strong> a ficar com alguns fachos rosas e verdes.<br />
No seu corpo mental surgiam formas-pensamento que demonstravam<br />
sua verdadeira intenção de mudar o seu comportamento.<br />
O abacaem colocou sua mão direita sobre os olhos <strong>do</strong> ancião e<br />
disse mais algumas palavras. Após alguns instantes, o homem estava<br />
cura<strong>do</strong>. Chorou como uma criança, beijan<strong>do</strong> as mãos e os pés <strong>do</strong><br />
curandeiro. Voltan<strong>do</strong>-me para Choam, perguntei:<br />
- O i<strong>do</strong>so poderá ficar cego novamente?
- Se não seguir as recomendações que lhe foram feitas, é<br />
possível que a cegueira volte.<br />
O dia prosseguiu com muitos atendimentos. Na manhã<br />
seguinte, o Bajé passou a tratar das mulheres e depois <strong>do</strong>s homens.<br />
Quan<strong>do</strong> o atendimento terminou, já era tarde da noite. Muitas<br />
pessoas lhe ofereceram presentes, mas ele só aceitou alguma comida<br />
para levar em sua viagem no dia seguinte.
38 - A CURA IMPOSSÍVEL<br />
Na manhã seguinte, na hora <strong>do</strong> abacaem partir, surgiu um<br />
grande tumulto. Um jovem índio, carrega<strong>do</strong> pelos seus pares, foi<br />
apresenta<strong>do</strong> ao curandeiro.<br />
Era o filho <strong>do</strong> pajé local, que havia acaba<strong>do</strong> de cair de uma<br />
árvore de uma grande altura. Em conseqüência da queda, não<br />
conseguia se mexer.<br />
O curandeiro, rapidamente examinou o curumim.<br />
- Ele não poderá fazer muita coisa pelo rapaz - afirmou Choam.<br />
- Por quê? - perguntei.<br />
- O moço sofreu uma grave fratura na coluna vertebral que o<br />
deixou paralítico.<br />
- Mas isso não pode ser reverti<strong>do</strong> usan<strong>do</strong> a energia vital?<br />
- Em alguns casos é até possível, porém, neste, são<br />
pouquíssimas as chances. Há determinadas lesões, tanto no duplo<br />
como no corpo físico, que se tornam irreversíveis. No caso dele, para<br />
mudar o quadro, ele teria que ter uma profunda mudança interior, <strong>do</strong><br />
seu próprio espírito, mas, no momento, não apresenta a menor<br />
disposição para isso.<br />
O pajé ficou inconforma<strong>do</strong> ao saber que o tratamento <strong>do</strong> seu<br />
filho poderia ser longo e que dificilmente voltaria a movimentar-se<br />
novamente. Esbravejou o que pôde e saiu da oca transtorna<strong>do</strong>.<br />
Lá fora, reuniu homens e mulheres e passou a culpar o<br />
curandeiro pela desgraça em sua família. Afirmou que se a cura das<br />
pessoas custasse o infortúnio de outras, então de nada valeria. Os<br />
que ouviam davam-lhe razão.<br />
Quan<strong>do</strong> fomos cientifica<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que estava ocorren<strong>do</strong>, perguntei<br />
a Choam:<br />
- Mas será que eles não percebem que o Bajé não tem nada a<br />
haver com a queda <strong>do</strong> filho <strong>do</strong> pajé?<br />
- Às vezes é assim mesmo, jovem Agnã. Saiba que, por mais<br />
que você procure demonstrar amor, bondade e caridade, sempre<br />
haverá descontentes e entre eles os aproveita<strong>do</strong>res. No fun<strong>do</strong>, o pajé<br />
encontrou uma oportunidade de se passar por vítima para resgatar o<br />
seu prestígio junto ao povo. A isso se soma o ódio cego que faz o<br />
coração emudecer.<br />
- Mas por que ele não faz alguma coisa boa para ser bem visto,<br />
ao invés de querer destruir um trabalho tão bonito?
- Porque acredita que é mais fácil alcançar uma posição de<br />
destaque, critican<strong>do</strong> os que são competentes <strong>do</strong> que se esforçar por<br />
demonstrar os seus próprios valores.<br />
O pajé começou a incentivar o povo a matar o abacaem, em<br />
vingança por sua grande infelicidade. Em pouco tempo, a oca estava<br />
cercada com to<strong>do</strong>s falan<strong>do</strong> impropérios.<br />
- Choam, como é que essa gente pode ser tão ingrata? O Bajé<br />
atendeu a muitos dessa aldeia e ninguém reconhece o seu trabalho?<br />
- Não se perturbe com isso: a ingratidão convive com to<strong>do</strong>s<br />
aqueles que buscam fazer alguma coisa boa para alguém.<br />
- E como iremos sair daqui? Estamos cerca<strong>do</strong>s e o povo<br />
exalta<strong>do</strong> não demorará a nos atacar.<br />
- Mantenha a calma e fique confiante.<br />
O Bajé reuniu as virgens, também recomendan<strong>do</strong> a elas<br />
tranqüilidade.<br />
- Agnã - disse o Setenário - nós vamos sair com o Bajé. As<br />
virgens terão que ir conosco, pois, certamente, serão mortas se<br />
ficarem.<br />
Apesar da recomendação de Choam, era difícil não ficar<br />
preocupa<strong>do</strong>. Embora houvéssemos enfrenta<strong>do</strong> outras situações<br />
difíceis, com extrema facilidade, eu tinha dúvidas de que o cheroupi<br />
conseguisse nos livrar da turba disposta a qualquer coisa, sem a<br />
presença <strong>do</strong>s outros Setenários.<br />
Mas ele se mostrava muito sereno, como sempre. Pelos meus<br />
cálculos, nós poderíamos enfrentar uns treze homens. O cheroupi<br />
ficaria com dez; o Bajé com um e eu com mais <strong>do</strong>is. O único<br />
problema, é que havia cento e trinta homens lá fora. O Setenário<br />
teria que usar os seus poderes mágicos para derrotá-los.<br />
Assim que saímos da palhoça, fomos impedi<strong>do</strong>s de prosseguir.<br />
Os nativos locais apontaram suas lanças e flechas para nós. O pajé<br />
começou a falar e Choam foi traduzin<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> para mim:<br />
- Nós e as virgens podemos partir em paz, mas ele quer que o<br />
sangue <strong>do</strong> Bajé seja servi<strong>do</strong> a seu filho.<br />
O Setenário, responden<strong>do</strong> ao pajé, disse que o curandeiro iria<br />
partir conosco e que não haveria nenhum confronto.<br />
O pajé ficou ainda mais arredio e foi taxativo: ou entregávamos<br />
o Bajé, ou to<strong>do</strong>s seríamos mortos.<br />
Diante da insistência <strong>do</strong> cheroupi, o povo, incita<strong>do</strong> pelo<br />
feiticeiro, avançou em nossa direção, mas antes que pudessem nos<br />
fazer algum mal, algo de assusta<strong>do</strong>r aconteceu.
Ouviu-se um estron<strong>do</strong> maior que to<strong>do</strong>s os rugi<strong>do</strong>s de Tupã e a<br />
terra tremeu de tal forma que algumas ocas vieram abaixo e muitos<br />
guerreiros não conseguiram permanecer em pé.<br />
To<strong>do</strong>s ficaram amedronta<strong>do</strong>s, inclusive eu, menos Choam e o<br />
Bajé.<br />
- O que foi isso? - perguntei ao Setenário.<br />
- Deslocamento <strong>do</strong> ar.<br />
- O quê?<br />
Não houve mais tempo para qualquer outra explicação. Surgiu<br />
no céu uma imensa bola de fogo alada. Ela começou a fazer uma<br />
série de evoluções sobre a taba. Os guerreiros correram<br />
aterroriza<strong>do</strong>s, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> suas armas. Eu, serenamente<br />
apavora<strong>do</strong>, grudei em Choam.<br />
- Agora podemos ir - disse tranqüilamente o cheroupi.<br />
Partimos sem maiores problemas e, assim que pude, perguntei<br />
a Choam:<br />
- O que era aquilo?<br />
- Você ainda não compreenderia, mas, em princípio, seria a<br />
manifestação de uma força que zela por nós.<br />
Realmente não entendi, mas estava certo de que não demoraria<br />
muito tempo para descobrir.
39 - A FORÇA <strong>DO</strong> PERDÃO E O PODER DA FÉ<br />
Aban<strong>do</strong>namos a aldeia e seguimos a descida de um rio, até<br />
chegarmos perto de uma colina pontuda, que denominei Camacuã,<br />
que significa “bico de seio”, face à semelhança que evocava. Ali<br />
próximo havia uma tribo amiga que acolheu as jovens.<br />
Prosseguimos em nossa caminhada. O Bajé permaneceu<br />
conosco.<br />
- Para onde vamos? - perguntei a Choam.<br />
- Ao encontro <strong>do</strong>s demais Setenários. Até lá, o curandeiro irá<br />
nos acompanhar.<br />
Andan<strong>do</strong> normalmente, em seis dias alcançamos o litoral. Era a<br />
primeira vez que eu via o mar. Achei-o fascinante.<br />
Enquanto o Bajé e Choam relaxavam em meditação, eu andava<br />
pela praia, catan<strong>do</strong> conchinhas e distrain<strong>do</strong>-me com as ondas. Mas<br />
ainda estava desgostoso e inconforma<strong>do</strong> com tu<strong>do</strong> o que havia<br />
ocorri<strong>do</strong>.<br />
Quan<strong>do</strong> dei por mim, percebi que estava muito longe de onde<br />
havia deixa<strong>do</strong> os meus amigos.<br />
Decidi retornar e, justamente nesse momento, percebi que<br />
havia algo estranho que me incomodava. Em seguida, escutei o som<br />
de uma flecha sen<strong>do</strong> arremessada e assim que voltei-me para a<br />
mata, fui alveja<strong>do</strong> no peito por uma seta envenenada.<br />
Sentin<strong>do</strong> uma profunda <strong>do</strong>r, perdi parte da respiração e caí de<br />
joelhos. Logo, dez índios, aos gritos de vitória, aproximaram-se de<br />
mim, entre eles, o pajé que havia tenta<strong>do</strong> impedir a nossa saída da<br />
aldeia.<br />
Eufórico, ele mostrava para os outros o sangue que escorria<br />
pelo meu peito, como a demonstrar que eu não era nenhum deus.<br />
Alguns homens fizeram menção de atirar mais flechas para pôr<br />
fim a minha vida, porém, o pajé tomou-lhes a frente, impedin<strong>do</strong><br />
qualquer ação.<br />
Com a respiração mais afetada e já cuspin<strong>do</strong> sangue, tombei de<br />
la<strong>do</strong>. O feiticeiro acabou de virar-me de costas para o chão. Ergueu o<br />
seu tacape, decidi<strong>do</strong> ele mesmo a me matar, mas antes que pudesse<br />
desferir o impie<strong>do</strong>so golpe, os guerreiros começaram a gritar<br />
alvoroça<strong>do</strong>s.<br />
Eram Choam e o Bajé que estavam se aproximan<strong>do</strong>. O pajé<br />
largou o seu tacape, pegou um arco e disparou uma flecha na direção
deles. Os demais bravos fizeram a mesma coisa; porém, todas as<br />
setas se desviaram antes que pudessem atingi-los.<br />
Os guerreiros, ven<strong>do</strong> que as suas ações eram inúteis, fugiram<br />
desordenadamente, mas o pajé, nervoso e apressa<strong>do</strong> em armar outra<br />
flecha, feriu-se com a sua ponta. Ele nem teve tempo de fazer o<br />
disparo, cain<strong>do</strong> no chão.<br />
Enquanto isso, eu quase não podia me mover. As minhas<br />
pernas estavam paralisadas, a visão foi turvan<strong>do</strong>-se e aos poucos fui<br />
perden<strong>do</strong> os senti<strong>do</strong>s e comecei a delirar.<br />
Depois de um tempo indetermina<strong>do</strong>, vi um túnel <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> a<br />
minha frente. Quan<strong>do</strong> comecei a caminhar por ele, encontrei o aba<br />
morotinga. De sua veste, polvilhada de prata, derramava-se pelo<br />
chão o brilho <strong>do</strong>s diamantes.<br />
- Você que me ensinou o caminho pelo pântano e pelo deserto,<br />
agora vai me mostrar a vereda <strong>do</strong>s espíritos? - perguntei<br />
emociona<strong>do</strong>.<br />
- Ainda não. Estou aqui para lhe apontar o caminho de volta,<br />
pois a sua hora ainda não é chegada.<br />
- Mas o meu corpo foi feri<strong>do</strong> de morte.<br />
- O seu peito foi feri<strong>do</strong> pelo veneno da mágoa, <strong>do</strong><br />
inconformismo e da ingratidão.<br />
- O que devo fazer?<br />
- Per<strong>do</strong>ar, para que a sua vida tenha senti<strong>do</strong> de ser! Não serão<br />
as atitudes de despeito <strong>do</strong>s outros que lhe impedirão de realizar o seu<br />
aprendiza<strong>do</strong> e a sua obra, que não é só sua. Confiar que o amor<br />
paciente revelará, no tempo certo, ao seu algoz, a compreensão <strong>do</strong><br />
bem e <strong>do</strong> entendimento <strong>do</strong>s ideais superiores da alma. Per<strong>do</strong>ar, para<br />
libertar-se da <strong>do</strong>r <strong>do</strong> sentimento nocivo que escurece a visão<br />
daqueles que buscam a luz. Per<strong>do</strong>ar, para que aqueles que lhe<br />
fizeram mal encontrem a paz para as suas almas aflitas e assim<br />
tenham a oportunidade de crescer consigo, no mesmo caminho, pois,<br />
se é verdade que sempre evoluímos, também será verdade que não o<br />
faremos sozinhos!<br />
Compreendi a necessidade da mudança <strong>do</strong>s meus sentimentos<br />
e disse para o aba morotinga, a quem passei a chamar de Tapeyara,<br />
o Senhor <strong>do</strong>s Caminhos:<br />
- Grande mestre, não tenho a quem per<strong>do</strong>ar, pois nenhum mal<br />
sofri que não tenha me mostra<strong>do</strong> o caminho da luz.
- A sua humildade o fará mais forte <strong>do</strong> que nunca. Volte meu<br />
filho, porque há muito o que fazer - disse Tapeyara, sumin<strong>do</strong> em<br />
meio a uma névoa brilhante.<br />
Profundamente emociona<strong>do</strong>, percebi que os filamentos que me<br />
ligavam ao corpo físico tornavam-se mais ilumina<strong>do</strong>s.<br />
Senti que começava a ser puxa<strong>do</strong> para o corpo material, com<br />
uma força incrivelmente irresistível.<br />
- Agnã!<br />
Abri os olhos e, com alguma dificuldade, vi o rosto <strong>do</strong> Bajé.<br />
- Isso vai <strong>do</strong>er um pouquinho - disse.<br />
O abacaem quebrou a flecha bem perto <strong>do</strong> peito. Virou-me de<br />
la<strong>do</strong> e começou a puxar a seta pela sua ponta, que havia transfixa<strong>do</strong><br />
as costas.<br />
Sob o efeito paralisante <strong>do</strong> veneno, quase não senti <strong>do</strong>r.<br />
Depois, o curandeiro colocou a sua mão direita próxima <strong>do</strong> meu peito,<br />
a esquerda nas minhas costas e disse cantarolan<strong>do</strong>:<br />
- Aê... aê... aêea... aêea...<br />
Surgiu uma chama de sua mão direita, que atravessou o meu<br />
peito, passan<strong>do</strong> pela ferida, até alcançar a sua mão esquerda.<br />
Contorci-me por alguns instantes, diante <strong>do</strong> ar<strong>do</strong>r e, assim que<br />
acabou, senti um grande alívio, mas ainda estava sob o efeito <strong>do</strong><br />
veneno.<br />
O abacaem pegou uma cuia e jogou dentro dela um pó de<br />
ervas. Bateu palmas três vezes, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Hummm... ôhummm... eôoo... ôhummm...<br />
Depois, abriu os braços e continuou a trautear. Os elementais<br />
da mata começaram a aparecer, sen<strong>do</strong> que cada um trazia um tipo<br />
de erva diferente que, quan<strong>do</strong> era colocada na cuia, misturava-se ao<br />
pó, na forma de luz em variadas cores, com o pre<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> verde.<br />
O curandeiro cuspiu várias vezes na cuia, transforman<strong>do</strong> o pó,<br />
energiza<strong>do</strong> pela essência das ervas medicinais trazidas pelos gnomos,<br />
em uma pasta, aplican<strong>do</strong>-a em minhas feridas.<br />
Adicionou água no recipiente, que ainda continha o resto da<br />
pasta, dissolven<strong>do</strong>-a, e serviu-me. O gosto era amargo e picante. Em<br />
pouco tempo comecei a me sentir melhor.<br />
- Você está bem? - perguntou Choam.<br />
Mexen<strong>do</strong> as pernas e respiran<strong>do</strong> normalmente, respondi:<br />
- Sim, venerável. Mas o que aconteceu com o pajé?<br />
- Está sob o efeito <strong>do</strong> veneno da sua própria flecha, porém<br />
ainda não morreu.
- Gostaria que ele sobrevivesse.<br />
- Por quê?<br />
- Para dizer a ele que enten<strong>do</strong> a sua <strong>do</strong>r.<br />
- E por que você não diz? O corpo dele está imóvel, no entanto,<br />
o seu espírito mantém a lucidez e a sua mente irá traduzir,<br />
perfeitamente bem, as suas palavras.<br />
Choam carregou-me no colo e colocou-me ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> pajé, que<br />
permanecia de olhos fecha<strong>do</strong>s.<br />
Meio sem jeito, eu disse:<br />
- Pajé, eu compreen<strong>do</strong> as suas atitudes e queria agradecer-lhe<br />
pela oportunidade <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong> que você pôde me proporcionar.<br />
Agora eu estou em paz e gostaria muito que você compartilhasse<br />
comigo dessa divina sensação.<br />
De repente, começamos a ouvir gritos que vinham de longe.<br />
- Eu já volto - disse Choam, partin<strong>do</strong> em direção <strong>do</strong>s bra<strong>do</strong>s.<br />
Em pouco tempo o cheroupi retornou, carregan<strong>do</strong> nos braços o<br />
filho <strong>do</strong> pajé, que estava paralítico. O Setenário explicou:<br />
- O jovem estava sozinho, caí<strong>do</strong> na mata. Os homens que o<br />
carregavam, fugiram com os outros guerreiros, ao encontrá-los pelo<br />
caminho e saberem o que havia aconteci<strong>do</strong>. Ele negou-se a ir<br />
embora, por isso foi aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>.<br />
- E o que ele quer? - perguntei.<br />
- Ele ficou saben<strong>do</strong> das intenções <strong>do</strong> seu pai, e, por essa razão,<br />
resolveu ir atrás dele para impedir que ele e os guerreiros nos<br />
matassem.<br />
O jovem, ven<strong>do</strong> o pai desacorda<strong>do</strong>, ficou muito abala<strong>do</strong> e foi<br />
cientifica<strong>do</strong> <strong>do</strong> que havia aconteci<strong>do</strong>. Tristonho, perguntou ao<br />
curandeiro se algo podia ser feito para salvar o seu pai.<br />
O abacaem explicou que sim, mas que em primeiro lugar ele<br />
precisaria desejar viver, para facilitar a ação das ervas curativas.<br />
O rapaz olhou para o seu pai e disse em sua língua, o que me<br />
foi traduzi<strong>do</strong> por Choam:<br />
- Pai, eu preciso que viva, para que a minha vida não seja pior<br />
que a própria morte.<br />
Fisicamente o pajé permanecia impassível, mas o seu espírito já<br />
se mostrava disposto a recobrar a consciência material.<br />
O Bajé preparou uma nova porção, à base das mesmas ervas<br />
com as quais me tratou. Fez as suas invocações e aplicou-a na ferida<br />
<strong>do</strong> antebraço <strong>do</strong> pajé. Colocou a mão esquerda no centro coronário e<br />
a direita na base da nuca. Vi uma luz intensa passan<strong>do</strong> entre elas.
O pajé abriu os olhos e em seguida ingeriu o antí<strong>do</strong>to.<br />
Recomposto, abraçou o filho com lágrimas abundantes.<br />
Depois de um tempo, o feiticeiro, arrependi<strong>do</strong>, voltou-se para o<br />
Bajé e ambos começaram uma agradável conversa. Choam pediu-me<br />
que fixasse o olhar no campo mental de ambos, para que pudesse<br />
entender o que falavam.<br />
- O que devo fazer? - perguntou o pajé, humildemente.<br />
- Tenha fé - respondeu o curandeiro.<br />
- E o meu filho?<br />
- Deve ter a mesma fé que o pai.<br />
- Abacaem, ensina-nos essa desconhecida força <strong>do</strong> espírito.<br />
- A fé é a total concentração de forças direcionadas em um<br />
mesmo senti<strong>do</strong> e quan<strong>do</strong> a ela adicionamos o poder <strong>do</strong> amor, tu<strong>do</strong><br />
torna-se possível. Assim, volte-se ao seu filho e não apenas acredite<br />
que ele será cura<strong>do</strong>, mas principalmente confie que o seu amor é a<br />
mais poderosa força curativa. O jovem deverá expressar o mesmo<br />
pensamento e abrir o seu coração para a divina manifestação <strong>do</strong><br />
maior de to<strong>do</strong>s os sentimentos.<br />
Pai e filho entreolharam-se. Vi que entre eles uma luz de tom<br />
amarelo-rosa<strong>do</strong> demonstrava o perfeito entendimento de suas<br />
mentes e de seus corações. Suas auras refletiam as mesmas luzes,<br />
pre<strong>do</strong>minan<strong>do</strong> os tons violeta e verde-folha. Várias bolinhas <strong>do</strong>uradas<br />
circulavam cada vez mais rápi<strong>do</strong> em torno de seus campos áuricos,<br />
como pequenos cometas, deixan<strong>do</strong> um belíssimo rastro cintilante.<br />
O corpo etéreo <strong>do</strong> jovem ficou banha<strong>do</strong> por uma cor violeta<br />
com matizes pratea<strong>do</strong>s e a sua coluna vertebral etérea, que se<br />
apresentava seccionada em energia pelo trauma físico, começou a<br />
recompor-se.<br />
Em seguida, os neurônios da medula vital também<br />
reestabeleceram suas sinapses, permitin<strong>do</strong> o retorno da ligação com<br />
o sistema nervoso central etéreo.<br />
O corpo físico <strong>do</strong> curumim não demorou muito para demonstrar<br />
o resulta<strong>do</strong> dessa operação espiritual. A coluna e a medula nervosa<br />
voltaram ao mesmo esta<strong>do</strong> em que estavam antes <strong>do</strong> acidente.<br />
Vi que <strong>do</strong> céu descia um facho luminoso e brilhante que<br />
banhava os <strong>do</strong>is.<br />
O abacaem aproximou-se <strong>do</strong> jovem e disse:<br />
- Agora você também está cura<strong>do</strong>. Levante-se.
O garoto, sem maiores dificuldades, ficou em pé e, choran<strong>do</strong><br />
abundantemente, abraçou o seu pai e ambos ajoelharam-se aos pés<br />
<strong>do</strong> curandeiro, que também se ajoelhou, abraçan<strong>do</strong>-os com carinho.<br />
Voltei-me para Choam e perguntei:<br />
- Que cura é essa, em que o Bajé não aplicou nenhum passe?<br />
- Essa é a verdadeira cura da alma. Se os homens soubessem<br />
quanta luz efetivamente há dentro de si e que tu<strong>do</strong> ela é capaz de<br />
transformar, não precisariam de médicos e nem de remédios.<br />
As nuvens, pintadas de vermelho e laranja, agasalhavam o sol<br />
no horizonte. As aves faziam os seus últimos vôos rasantes em meio<br />
a uma brisa morna e as ondas da praia já batizavam os nossos pés,<br />
com suas cândidas espumas, como a abençoar aquele momento de<br />
transformação, em que os nossos passos se encontravam no caminho<br />
da luz.<br />
Tu<strong>do</strong> tem o seu tempo certo e assim chamei aquele lugar<br />
ilumina<strong>do</strong> de Arambaí, “coisas <strong>do</strong> tempo”.
40 - ITAYARA, O SENHOR DAS PEDRAS<br />
O pajé e o seu filho voltaram para a sua aldeia. O Bajé decidiu<br />
ficar por ali mesmo. Choam e eu, após nos despedirmos <strong>do</strong><br />
curandeiro, seguimos para o norte, pela costa litorânea.<br />
Chegamos a um lugar desabita<strong>do</strong> e cheio de pedras.<br />
- Procure um abrigo aqui por perto - disse Choam. - Eu vou ao<br />
interior <strong>do</strong> continente e retornarei com os demais cheroupis.<br />
No final da tarde, encontrei uma gruta, onde improvisei uma<br />
rede para passar a noite. Armei uma pequena fogueira e deitei-me.<br />
A noite avançou e <strong>do</strong>rmi profundamente, até o momento em<br />
que fui acorda<strong>do</strong> por um zumbi<strong>do</strong> alucinante, decorrente de uma<br />
forte ventania.<br />
Comecei a escutar uma série de gemi<strong>do</strong>s que vinham de fora da<br />
furna. Levantei-me e cuida<strong>do</strong>samente fui até a entrada onde<br />
encontrei três homens curva<strong>do</strong>s no chão, sob cobertas que<br />
escondiam suas cabeças.<br />
- Ah! Que <strong>do</strong>r! - disse um deles, na minha língua.<br />
- Não suporto mais! - falou o outro.<br />
- Que mal eu fiz para merecer tanto sofrimento? - perguntou o<br />
terceiro.<br />
Perceben<strong>do</strong> a agonia em que se encontravam, propus-me a<br />
auxiliá-los:<br />
- Amigos, posso fazer alguma coisa por vocês?<br />
Quan<strong>do</strong> os três ergueram a cabeça, descobrin<strong>do</strong>-a, vi que os<br />
seus olhos estavam em sangue que escorria pelas faces. Choca<strong>do</strong>, dei<br />
um pulo para trás.<br />
Os homens, lentamente levantaram-se, deixan<strong>do</strong> cair o manto,<br />
mostran<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o corpo coberto de chagas. Um deles perguntou:<br />
- Você é Itayara?<br />
- Não - respondi trêmulo. - Sou Agnã, O Terrível.<br />
- Encontramos mais um trouxa - um deles comentou com os<br />
outros <strong>do</strong>is.<br />
- Sabe onde ele está? - o que me indagava voltou a perguntar.<br />
- Não, eu não o conheço.<br />
- Vamos, estamos perden<strong>do</strong> tempo. Esse rapaz não pode nos<br />
ajudar - disse um terceiro.<br />
Decepciona<strong>do</strong>s, os três homens partiram, lamentan<strong>do</strong> suas<br />
<strong>do</strong>res.<br />
Voltei para a minha kyçaba, mas não consegui mais <strong>do</strong>rmir.
Após algum tempo, quan<strong>do</strong> estava quase pegan<strong>do</strong> no sono,<br />
escutei passos vin<strong>do</strong>s em minha direção. Em seguida, uma forte<br />
ventania fez o fogo se apagar. A escuridão era completa, nada eu<br />
podia enxergar, só podia ouvir aqueles passos, cada vez mais<br />
próximos.<br />
- Quem está aí? - perguntei, receoso que aqueles três homens<br />
tivessem volta<strong>do</strong>.<br />
- Choam, é você? - indaguei novamente sem ter nenhuma<br />
resposta.<br />
De repente, surgiu uma luz vermelha na gruta, tão intensa que<br />
eu não podia olhar para ela. As estacas que seguravam a rede<br />
cederam e eu caí no chão. Quan<strong>do</strong> a luz chegou bem perto de mim,<br />
ela se apagou.<br />
Em seguida, uma pequena tocha se acendeu, permitin<strong>do</strong> ver<br />
quem ali estava. Antes não tivesse visto.<br />
Era uma criatura tão horrenda que fiquei estarreci<strong>do</strong>. Não<br />
conseguia piscar, respirar e nem me mexer.<br />
Era um homem corcunda, de baixa estatura, de cabelos<br />
quebradiços que chegavam até os seus pés descalços. O nariz era<br />
deforma<strong>do</strong> e compri<strong>do</strong>. A testa tinha rugas profundas. Os olhos<br />
escuros e o rosto enrugadíssimo, com duas enormes verrugas,<br />
davam-lhe a aparência de ter duzentos anos.<br />
Os de<strong>do</strong>s das mãos encolhi<strong>do</strong>s, com as unhas bem compridas e<br />
tortas, pareciam garras. Alguns de<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s pés eram gruda<strong>do</strong>s.<br />
Seminu, o seu corpo era coberto por longos pêlos.<br />
Perceben<strong>do</strong> o meu susto, ele deu uma horripilante gargalhada,<br />
mostran<strong>do</strong> os solitários dentes escuros, espalha<strong>do</strong>s pela boca.<br />
Tive a impressão de que os meus corpos espirituais haviam<br />
fugi<strong>do</strong>, deixan<strong>do</strong> o meu espírito sozinho, em um corpo frio e<br />
totalmente arrepia<strong>do</strong>.<br />
Quan<strong>do</strong> ele estendeu a sua mão direita para me tocar, saí<br />
corren<strong>do</strong> para o interior da caverna. Sem enxergar quase nada, face<br />
à escuridão, tropecei várias vezes.<br />
Depois de andar bastante, já cansa<strong>do</strong>, sentei-me para<br />
recuperar o fôlego. As paredes daquele lugar eram estreitas e o teto<br />
era baixo, o que indicava que a gruta devia fechar-se por ali e talvez<br />
não houvesse como escapar, em caso de emergência.<br />
Permaneci ali para<strong>do</strong>, conforman<strong>do</strong>-me com a idéia de ter que<br />
voltar, até que senti que algo estranho estava acontecen<strong>do</strong>: sem
outro aviso, o solo abriu-se e eu escorreguei por um túnel sinuoso,<br />
esborrachan<strong>do</strong>-me, como um tomate, no chão de uma outra furna.<br />
Meio moí<strong>do</strong>, fui recuperan<strong>do</strong>-me da tontura. Após cuspir terra e<br />
algumas pedrinhas que entraram em minha boca, percebi que aquela<br />
caverna era diferente. Muito grande, não tinha tochas que a<br />
iluminassem. A intensa luz que tornava tu<strong>do</strong> muito claro vinha pelas<br />
paredes de cristal.<br />
Assim que me levantei, ouvi passos em minha direção. Sem<br />
saber o que fazer, permaneci para<strong>do</strong>.<br />
Surgiu a minha frente, um homem de estatura mediana,<br />
vesti<strong>do</strong> com uma toga escura, de mangas compridas e largas e com a<br />
cabeça encoberta por um capuz.<br />
Aproximan<strong>do</strong>-se de mim, ele abaixou-se, pegou uma das<br />
pequenas pedrinhas que eu havia cuspi<strong>do</strong> e perguntou em minha<br />
língua:<br />
- O seu nome é Agnã?<br />
- Sim - respondi, vacilante.<br />
- Onde eu estou? Por um acaso essa é uma tabanga? -<br />
perguntei, pensan<strong>do</strong> que teria entra<strong>do</strong>, sem querer, em uma aldeia<br />
das almas.<br />
O homem recolheu o seu capuz às costas.<br />
A sua feição não tinha nada de assusta<strong>do</strong>ra, mas era diferente.<br />
O seu rosto era afila<strong>do</strong> e os seus olhos eram mais puxa<strong>do</strong>s que o<br />
normal para um índio e usava uma fita vermelha no pescoço.<br />
- Você está em Iby Apiterepe - respondeu, referin<strong>do</strong>-se ao<br />
centro da Terra.<br />
- Como sabe o meu nome?<br />
Erguen<strong>do</strong> a pedrinha que havia apanha<strong>do</strong> e, observan<strong>do</strong>-a<br />
atentamente falou:<br />
- Você é da tribo tupi. O seu pai chama-se Anuaí e sua mãe<br />
Tapiiti. O pajé de sua aldeia é Marapuama e uma linda jovem, que lhe<br />
aguarda para ser sua esposa, chama-se Uiramirim.<br />
- Então você passou pela minha aldeia? - perguntei ansioso por<br />
saber todas as novidades.<br />
- Não, nunca estive lá.<br />
- Encontrou algum membro da taba?<br />
- Também não.<br />
- E como pode saber essas coisas?<br />
- O espírito é uma luz que não apenas ilumina, mas que<br />
também deixa as fagulhas de sua luzerna, por onde quer que passe.
- Não estou entenden<strong>do</strong>.<br />
- Por to<strong>do</strong>s os lugares ou coisas que toque, você deixa<br />
impregnações das energias que lhe dizem respeito. Em razão disso, é<br />
possível identificar sua condição vital, seus sentimentos e seus<br />
pensamentos, ou seja, a sua história.<br />
- Você pode saber o que sinto e to<strong>do</strong> o meu passa<strong>do</strong> por essa<br />
pedrinha?<br />
- Sim, é uma das formas. Os objetos, conforme a sua<br />
composição, possuem maior ou menor capacidade de retenção das<br />
energias. Há pedras que conseguem conservar a força vital de uma<br />
pessoa por um longo tempo e ainda possuem a capacidade de<br />
multiplicá-la.<br />
O homem enfiou a mão no interior de sua manta e retirou três<br />
pedras.<br />
- Esta é um jaspe - disse, mostran<strong>do</strong> uma pedra avermelhada.<br />
- É extremamente revitalizante.<br />
Esta, verde, é um quartzo que reflete o poder mais calmante da<br />
vitalidade. Esta outra, também verde, chama-se malaquita, e tem a<br />
propriedade de reproduzir a energia etérea, de tal forma, que chega a<br />
aliviar as <strong>do</strong>res. Quan<strong>do</strong> um curandeiro, com grande poder vital,<br />
manipula essas pedras, elas absorvem intensamente o seu<br />
magnetismo humano, transferin<strong>do</strong>-o facilmente às pessoas que<br />
estejam com baixa força vital. A transferência energética ocorre<br />
quan<strong>do</strong> a pedra é posicionada sobre determinadas partes <strong>do</strong> corpo ou<br />
simplesmente quan<strong>do</strong> é tocada pela pessoa enferma. Em razão disso,<br />
também é possível verificar a condição vital de quem manipula a<br />
pedra e em que esta<strong>do</strong> orgânico se encontra. Se a pedra energizada,<br />
ao ser tocada, aumentar ainda mais o seu poder energético, indica<br />
que a pessoa que a tocou está com boa vitalidade. Porém, se a<br />
energia da pedra é transferida para o indivíduo, demonstra que ele<br />
estava debilita<strong>do</strong>. É possível ainda, saber qual o tipo de fraqueza, em<br />
que órgão e por que motivo. Caso a pedra não perca e nem aumente<br />
o seu magnetismo, indica que o indivíduo está em equilíbrio vital. Ela<br />
pode perder parte da energia armazenada se for lavada; ou ampliar a<br />
sua capacidade, ao ser exposta ao <strong>Sol</strong>, uma vez que os raios solares<br />
são a fonte energética vital planetária. Quan<strong>do</strong> a energia que está<br />
contida no objeto se refere às condições emocionais <strong>do</strong> ser, ela estará<br />
relacionada à manifestação astral. Por isso, para saber o que estava<br />
sentin<strong>do</strong> uma pessoa ao tocá-la, o sensitivo terá que sintonizar a<br />
mesma faixa vibratória. Se uma pessoa que está depressiva, tocar
uma pedra, o seu esta<strong>do</strong> emocional fica ali registra<strong>do</strong>. Se outra<br />
pessoa, que esteja triste, tocar a mesma pedra, é muito possível que<br />
tenha também sentimentos depressivos. Mas, se não for essa a<br />
condição emocional <strong>do</strong> ser, dificilmente as impregnações negativas<br />
lhe farão mal, pois não está predisposto a captá-las, a menos que<br />
deseje realmente fazê-lo. Caso o indivíduo tenha vontade de perceber<br />
que tipo de emoção está contida em um objeto, ele talvez a perceba,<br />
mesmo não sen<strong>do</strong> um sensitivo propriamente dito. Entretanto, há<br />
uma diferença sutil e importante entre “perceber”, conhecen<strong>do</strong> a<br />
manifestação energética, e “assimilá-la”. Quem percebe, não<br />
necessariamente precisa senti-la em si mesmo, porque se fizer isso,<br />
estará sujeito às emanações emocionais que podem não ser nada<br />
agradáveis. O bom sensitivo deve saber identificar as manifestações e<br />
analisá-las, sem contu<strong>do</strong> correr o risco de absorvê-las.<br />
- Há pedras que melhor sintonizam os eflúvios emocionais?<br />
- Sim.<br />
O estranho amigo tirou de dentro de sua larga manga<br />
esquerda, mais três pequenas pedras e continuou:<br />
- A turmalina e o quartzo rosa irradiam o amor, alivian<strong>do</strong> as<br />
mágoas, aumentan<strong>do</strong> o entusiasmo pela vida. A hematita, de cor<br />
castanha e brilhante, multiplica as emoções positivas, harmônicas e<br />
otimistas.<br />
- E o que deve ser feito para expulsar as vibrações emocionais<br />
negativas que possam estar contidas nas pedras?<br />
- No caso dessas energias, como não são simplesmente<br />
magnéticas, não basta apenas lavar as pedras com sal; a melhor<br />
forma para eliminar as forças negativas astrais é substituí-las pelas<br />
positivas. As energias emocionais inferiores são escuras e densas por<br />
natureza. As superiores são claras e sutis, ten<strong>do</strong> a propriedade de<br />
penetrar nessas primeiras e diluí-las com facilidade. Assim, se um<br />
objeto está impregna<strong>do</strong> de vibrações de ódio e o sensitivo percebe<br />
isso, a melhor maneira de desfazer essa energia é passar a imantar o<br />
objeto com vibrações de amor.<br />
- E a ação da mente? Há pedras que poderiam ampliar ou<br />
facilitar a expressão <strong>do</strong> pensamento?<br />
- Sim. - Retiran<strong>do</strong> mais duas pequenas pedras da manga,<br />
continuou:<br />
- A ágata, a de cor laranja, e a sodalita, essa azul, permitem<br />
uma expressão mais afinada da mente pelo cérebro etéreo e físico.<br />
Tiran<strong>do</strong> outras pedras da manga, prosseguiu:
- As atividades espirituais também podem ser refletidas nos<br />
corpos <strong>do</strong> etéreo e <strong>do</strong> físico pela ametista, essa pedra roxa, que<br />
facilita o desenvolvimento da espiritualidade. A turmalina preta, bem<br />
como o topázio e o ônix, pode ampliar a proteção contra energias<br />
negativas. Há várias outras que atuam nos mais diversos senti<strong>do</strong>s.<br />
- Então seria importante andar com uma pedra que nos<br />
beneficie?<br />
- As pedras e inúmeros outros objetos, podem ser o canal de<br />
variadas energias, mas nunca se esqueça de que a manifestação <strong>do</strong><br />
espírito supera qualquer outro meio de condução energética. As<br />
forças que ele pode concentrar e direcionar, nenhuma outra forma<br />
poderia fazê-lo em igual condição, a não ser que fosse por outro<br />
espírito. Os meios materiais só são emprega<strong>do</strong>s por aqueles que não<br />
são capazes de produzir os mesmos fenômenos.<br />
- Mas você usa essas pedras!<br />
- É verdade, mas para pessoas que ainda acreditam que elas<br />
são imprescindíveis. Você deve tratar <strong>do</strong> seu paciente, conforme o<br />
seu estágio de compreensão, respeitan<strong>do</strong> as suas convicções.<br />
Entretanto, o espírito, conforme vá descobrin<strong>do</strong> e aprenden<strong>do</strong> a usar<br />
o seu incalculável poder, menos se apoiará em meios intermediários<br />
de transmissão energética.<br />
- Mas na essência, não somos divinos, sejamos minerais,<br />
vegetais, animais irracionais ou humanos?<br />
- Na essência, nada nos diferencia, mas na evolução espiritual<br />
da mônada celeste, a sua condição humana já revela uma imensa<br />
superioridade diante de sua primeira manifestação material que se<br />
deu no reino mineral.<br />
Acabei por render-me diante de sua argumentação.<br />
- Venha comigo, Agnã, você presenciará alguns <strong>do</strong>s trabalhos<br />
que realizamos nesse lugar.<br />
- Estou curioso, mas como devo chamá-lo?<br />
- Sri.<br />
Achei o nome esquisito, mas não fiz nenhum comentário.<br />
Seguin<strong>do</strong> o meu anfitrião, fomos descen<strong>do</strong> cada vez mais para o<br />
centro da Terra.<br />
Chegamos a uma parte muito larga e alta da caverna. Havia<br />
muitas pessoas, algumas deitadas sobre lajes coloridas e<br />
transparentes, que refletiam uma luz interior. Outras, todas<br />
mulheres, se postavam de pé, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s que estavam deita<strong>do</strong>s,<br />
dan<strong>do</strong> a impressão de que lhes prestavam alguma assistência.
- O que está acontecen<strong>do</strong>? - perguntei.<br />
- A maioria <strong>do</strong>s que estão deita<strong>do</strong>s são feiticeiros e feiticeiras<br />
ou tiveram alguma experiência com as forças espirituais e por não<br />
terem feito bom uso de suas faculdades, agora estão em tratamento.<br />
- Mas o que aconteceu com eles?<br />
- Embora os problemas sejam diferentes, to<strong>do</strong>s estão passan<strong>do</strong><br />
pela síndrome da jemoacangayba. É o poder incontrolável da magia<br />
que leva o guayupiáuara ao enlouquecimento.<br />
- Já vi um pajé nessas circunstâncias.<br />
- Temos três recém-chega<strong>do</strong>s em condições deploráveis. Venha<br />
vê-los.<br />
Deita<strong>do</strong>s sobre macas de cristal estavam os mesmos homens<br />
cobertos de chagas que eu havia encontra<strong>do</strong> anteriormente. A aura<br />
deles era praticamente a mesma, sen<strong>do</strong> que o vermelho, o laranja e<br />
o cinza se misturavam em um amarelo desbota<strong>do</strong> pre<strong>do</strong>minante. O<br />
meu anfitrião foi explican<strong>do</strong>:<br />
- Combina<strong>do</strong> com o amarelo opaco, o tom laranja passa a ser a<br />
expressão mental da ambição. O vermelho mostra a irritação mental.<br />
O cinza-escuro, nesse mesmo amarelo, é a manifestação mental da<br />
tristeza. As outras manchas vermelhas com pigmentos pretos<br />
denotam uma mente voltada para a maldade.<br />
- O que houve com eles?<br />
- Disputaram o poder paranormal de tal forma que chegaram a<br />
esse esta<strong>do</strong>. Um enviava ao outro vibrações negativas, cheias de ódio<br />
e ciúmes. As energias tornaram-se tão intensas que se<br />
transformaram em tumores de pele.<br />
- Mas se desejam tanto mal um ao outro, como permanecem<br />
uni<strong>do</strong>s?<br />
- É a afinidade <strong>do</strong> mal que não os separa. Agora, já estão<br />
cansa<strong>do</strong>s pelo sofrimento de se castigarem continuadamente e,<br />
juntos, buscam alguma melhora.<br />
- E não havia entre eles alguém mais forte que escapasse <strong>do</strong>s<br />
males?<br />
- No começo um tinha pre<strong>do</strong>minância sobre os outros, mas logo<br />
também era venci<strong>do</strong> pelas energias ruins que ele mesmo produzia.<br />
Nas emanações negativas, as pessoas acabam se igualan<strong>do</strong>. A única<br />
forma de se evitar isso seria por um sentimento mais nobre. O<br />
verdadeiro amor nunca pode ser destruí<strong>do</strong> e tem sempre o poder<br />
transforma<strong>do</strong>r. Transforma o feio em belo, a irritação em paciência, a
evolta em resignação, o desespero em esperança, a tristeza em<br />
consolo, as trevas em luz.<br />
- Se essas pessoas agiram tão erroneamente, não sen<strong>do</strong> dignas<br />
<strong>do</strong> conhecimento que receberam, por que são atendi<strong>do</strong>s aqui?<br />
- Não há ninguém que tenha se comporta<strong>do</strong> de forma tão<br />
condenável que não mereça piedade. O erro faz parte da natureza<br />
humana. Você foi um <strong>do</strong>s últimos escolhi<strong>do</strong>s para desenvolver um<br />
árduo trabalho entre os povos dessa imensa região. Se for bem<br />
sucedi<strong>do</strong>, outro trabalho maior lhe aguardará. Para isso, será<br />
submeti<strong>do</strong> às mais severas provas que testarão sua qualidade moral,<br />
seus desejos mais íntimos, seus conhecimentos mais avança<strong>do</strong>s e os<br />
seus poderes ocultos. Esperamos que não volte para cá necessitan<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> mesmo amparo que esses outros.<br />
Por alguns instantes, senti um géli<strong>do</strong> frio corren<strong>do</strong> pela espinha.<br />
Conforme íamos caminhan<strong>do</strong>, examinan<strong>do</strong> outros casos, eu<br />
fixava a minha vidência astral na aura de Sri, mas não conseguia ver<br />
perfeitamente bem. Achei que talvez, com to<strong>do</strong>s aqueles<br />
acontecimentos, a minha paranormalidade tivesse si<strong>do</strong> afetada. Mas<br />
quan<strong>do</strong> ficamos ao la<strong>do</strong> de um homem em tratamento, eu pude ver<br />
perfeitamente bem a sua aura. Voltei a olhar para Sri e novamente a<br />
minha visão ficou embaçada.<br />
- Nem sempre é possível sondar livremente uma aura - disse o<br />
meu novo amigo, para o meu espanto. Possuin<strong>do</strong>, em princípio, os<br />
mesmos poderes, os sensitivos, se quiserem, podem impedir<br />
qualquer observação de suas auras por outros paranormais. Só há<br />
uma exceção, a diferença evolutiva entre eles. O paranormal em grau<br />
evolutivo superior, pode facilmente verificar as condições espirituais<br />
daqueles que estão em grau inferior, sem que, necessariamente seja<br />
observa<strong>do</strong> por eles.<br />
Prosseguin<strong>do</strong> o nosso passeio por aquele lugar fascinante, notei<br />
que só havia mulheres tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s <strong>do</strong>entes e antes que eu fizesse<br />
alguma pergunta, Sri esclareceu:<br />
- Ao contrário <strong>do</strong> que muitos pajés acreditam, as mulheres são<br />
muito mais sensíveis aos fenômenos hiperfísicos. Normalmente o<br />
homem é bruto, guerreiro, ten<strong>do</strong> os seu sentimentos mais<br />
controla<strong>do</strong>s pela necessidade de manter uma postura inabalável e<br />
altiva. Porém, nenhum grande guerreiro existe antes de se formar no<br />
ventre de sua mãe. Só esse fato sagra<strong>do</strong> da natureza faculta à<br />
mulher uma condição sublime. O seu afeto, carinho e amor estão
longe de serem compreendi<strong>do</strong>s pelos homens ignorantes em sua<br />
brutalidade.<br />
Continuan<strong>do</strong> a andar pelo local, assustei-me ao<br />
verificar que a luz da parede mudava de cor, ora ficava azul por um<br />
bom tempo, ora passava para o amarelo, ora rosa e assim por diante.<br />
- De onde vêm essas luzes? - perguntei.<br />
- Já irá descobrir.<br />
Seguin<strong>do</strong> Sri, desci por uma escada de cristal, cravada na<br />
parede e chegamos a outro salão extremamente ilumina<strong>do</strong>, onde<br />
pre<strong>do</strong>minava a cor rosa.<br />
No centro, havia uma mesa re<strong>do</strong>nda de cristal e <strong>do</strong>ze mulheres<br />
estavam ao seu re<strong>do</strong>r, com as mãos sobre a sua superfície.<br />
A mesa apoiava-se no chão por um único bloco, também de<br />
cristal e re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>.<br />
- O que estão fazen<strong>do</strong>? - indaguei em voz baixa para não<br />
atrapalhar a concentração das moças.<br />
- O rosa-claro e brilhante é sempre a expressão <strong>do</strong> amor. Olhe<br />
para elas.<br />
Sim, na aura delas pre<strong>do</strong>minava o rosa.<br />
- Os tons azula<strong>do</strong>s - continuou - significam devoção espiritual e<br />
os violáceos amor humanitário. Através dessa mesa, elas transmitem<br />
esse amor a to<strong>do</strong>s os que aqui estão sen<strong>do</strong> atendi<strong>do</strong>s. Toda a luz que<br />
você vê pelas paredes, escadas, piso, teto e as outras lajes onde se<br />
encontram os atendi<strong>do</strong>s, é emitida por elas, que se revezam com<br />
outras colabora<strong>do</strong>ras. Voltemos ao salão principal.<br />
Depois de uma pequena pausa, em que ficou olhan<strong>do</strong> fixamente<br />
para uma das paredes, Sri disse:<br />
- Agnã, está na hora de voltar. Em breve as pessoas que você<br />
segue irão procurá-lo.<br />
Sri levou-me até a saída da furna. Por algum tempo ficou<br />
olhan<strong>do</strong> as pedras ao derre<strong>do</strong>r e falou com o poder <strong>do</strong>s poucos<br />
homens que conhecem os segre<strong>do</strong>s da natureza:<br />
- Quanta história há nesse lugar!<br />
- E o que aconteceu nesse deserto de pedras?<br />
- Muita coisa. Toque qualquer dessas pedras que estão a sua<br />
volta.<br />
Abaixei-me e apanhei um seixo escureci<strong>do</strong> e sujo pelo tempo.<br />
Fiquei alguns minutos seguran<strong>do</strong>-o em minhas mãos, mas não<br />
percebi nada.<br />
Sri, notan<strong>do</strong> a minha dificuldade, disse:
- O simples toque físico nada lhe informará. O verdadeiro<br />
contato dá-se a nível astral ou mental. Somente dessa forma é<br />
possível captar as energias emocionais e as expressões mentais,<br />
próprias apenas <strong>do</strong>s espíritos. Imagine que o seu campo áurico se<br />
expande a ponto de “tocar” as projeções emocionais que impregnam<br />
a pedra que pegou.<br />
Fiz como ele me havia orienta<strong>do</strong> e logo imagens fascinantes<br />
começaram a surgir em minha mente.<br />
Vi uma paisagem bem diferente daquela na qual nos<br />
encontrávamos. As árvores eram bem maiores e as rochas estavam<br />
intactas, forman<strong>do</strong> um conjunto muito mais harmonioso. O mar<br />
estava mais recua<strong>do</strong>, porém mais agita<strong>do</strong>. As nuvens eram mais<br />
espessas e o <strong>Sol</strong> parecia um pouco mais perto da Terra.<br />
Havia um grupo de homens e mulheres muito pelu<strong>do</strong>s, agin<strong>do</strong><br />
quase como animais, não muito diferentes <strong>do</strong>s macacos e usavam<br />
ossos de animais como instrumentos.<br />
Não pronunciavam frases entre si, apenas emitiam ruí<strong>do</strong>s que<br />
ora eram gritos estridentes, ora eram gemi<strong>do</strong>s que se iniciavam em<br />
murmúrios e terminavam em agu<strong>do</strong>s assobios.<br />
- São os primeiros homens dessas terras - explicou Sri,<br />
acompanhan<strong>do</strong> as minhas visões.<br />
No alto de uma montanha próxima, havia outros seres, muito<br />
diferentes, pareci<strong>do</strong>s com os Setenários, que observavam aquelas<br />
criaturas.<br />
- São os semea<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Universo, acompanhan<strong>do</strong> o progresso<br />
evolutivo desses primitivos homens - eluci<strong>do</strong>u Sri.<br />
- E de onde eles vieram?<br />
A minha pergunta ficou no vazio. Desconcentrei-me, sain<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
transe em que estava e não vi mais Sri ao meu la<strong>do</strong>.<br />
Foi quan<strong>do</strong> escutei uma horrorosa gargalhada que soava em<br />
toda a parte. Olhei para o alto das pedras e vi o mesmo velho<br />
deforma<strong>do</strong> que havia encontra<strong>do</strong> na noite anterior. Ele jogou uma<br />
pedra em minha direção, que veio cair sobre os meus pés.<br />
Apanhei-a <strong>do</strong> chão e vi que era um rubi que refletia a força da<br />
terra, a energia ígnea. Quan<strong>do</strong> voltei o olhar para o alto, o ancião já<br />
não estava mais lá.<br />
Logo escutei o meu nome sen<strong>do</strong> pronuncia<strong>do</strong> por Choam. Corri<br />
em sua direção, reencontran<strong>do</strong> também os demais Setenários.<br />
- Por onde esteve, jovem Agnã?<br />
Olhan<strong>do</strong> para trás, respondi:
- Em Itanhaém, “o lugar das pedras que falam”.
41 - UYARA, A SENHORA DAS ÁGUAS<br />
Contei a Choam o que havia aconteci<strong>do</strong>. Embora ele prestasse<br />
uma educada atenção, não ficou admira<strong>do</strong> com os fatos<br />
inacreditáveis que narrei.<br />
Continuamos, no dia seguinte, a nossa jornada pelo litoral, até<br />
chegarmos em um pequeno povoa<strong>do</strong>.<br />
Causamos, novamente, surpresa e curiosidade, mas sem a<br />
agitação costumeira.<br />
Depois de algum tempo entre aqueles novos índios, percebi que<br />
agiam de uma forma muito diferente. Suas atitudes e seus<br />
movimentos eram serenos. Fala mansa e demorada. Era um povo<br />
calmo, tranqüilo ao extremo. Passei a denominá-lo de Muriqui, que<br />
significa “gente vagarosa”.<br />
No final da tarde, afastei-me da aldeia, procuran<strong>do</strong> um canto<br />
solitário, entre as pedras gentilmente acariciadas pelas ondas <strong>do</strong> mar.<br />
O <strong>Sol</strong> ia se esconden<strong>do</strong> entre as montanhas e a Lua já se fazia<br />
presente no firmamento.<br />
Com a saudade de Uiramirim <strong>do</strong>en<strong>do</strong> no coração, comecei a<br />
falar em voz alta, as coisas que sentia, como se precisasse<br />
confidenciar as angústias da alma aos ouvi<strong>do</strong>s da natureza:<br />
- Águas que vão e vêm, por que não trazem o meu amor<br />
consigo?<br />
Oh! Grande mar!<br />
Se a mulher que amo,<br />
por magia estivesse escondida<br />
na sua profundeza inatingível,<br />
mergulharia destemi<strong>do</strong>,<br />
até o mais fun<strong>do</strong> de seus mistérios<br />
para arrebatá-la de suas entranhas.<br />
Se o sacrifício da minha vida não bastasse,<br />
lhe entregaria a própria alma,<br />
por um momento inesquecível de amor,<br />
<strong>do</strong> amor invencível,<br />
<strong>do</strong> mais puro amor da alma.<br />
A Lua margeava as águas, forman<strong>do</strong> uma vereda prateada.<br />
Surgiu pelo caminho ilumina<strong>do</strong>, a figura luminosa e impressionante,<br />
de uma linda mulher.<br />
Andan<strong>do</strong> sobre o mar, como se pisasse em terra firme, veio em<br />
minha direção.
Ao aproximar-se, notei que o seu vesti<strong>do</strong> translúci<strong>do</strong> era feito<br />
de espuma branca, com um decote pronuncia<strong>do</strong> e com um corte à<br />
frente, que permitia ver as suas belas pernas.<br />
Os seus cabelos eram negros, longos e encaracola<strong>do</strong>s. Os olhos<br />
azuis brilhavam como diamantes. Usava brincos de itã e carregava<br />
em sua mão esquerda uma itãguassu. Em voz cantarolada disse:<br />
- Venha comigo.<br />
O seu convite era irresistível e deixei-me conduzir. Aos poucos<br />
fomos sumin<strong>do</strong> nas águas e, mesmo submerso, respirava<br />
normalmente.<br />
Um número incalculável de belíssimos peixes, de diferentes<br />
tamanhos, nadavam ao nosso re<strong>do</strong>r. Alguns chegavam a roçar-me a<br />
pele.<br />
Dois peixes maiores e brincalhões, com barbatanas no <strong>do</strong>rso,<br />
aconchegaram-se a nós.<br />
- São golfinhos - ela disse. - Segure-se em um deles e deixe<br />
que o leve.<br />
Assim, em grande velocidade, avançamos para o fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> mar.<br />
Chegamos em um rossio reluzente, onde tu<strong>do</strong> brilhava por si<br />
só, desde os pequenos peixes, até a própria areia.<br />
Logo apareceram <strong>do</strong>is estranhos homens. Eram cobertos por<br />
escamas, com uma barbatana nas costas. Cada um segurava um<br />
tridente.<br />
Mais duas outras exóticas criaturas surgiram. Tinham a parte<br />
superior <strong>do</strong> corpo igual ao de uma mulher e a parte inferior idêntica à<br />
cauda de um peixe. Uma delas trazia um cetro <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>, em cuja<br />
parte mais larga havia uma bola de cristal. A outra carregava uma<br />
coroa, também <strong>do</strong>urada, com várias pedras brilhantes encravadas.<br />
Conduziram-nos até um trono forma<strong>do</strong> por conchas maiores e<br />
menores, que se justapunham harmonicamente, dan<strong>do</strong> mais beleza<br />
ao que já era belo.<br />
A mulher sentou-se no trono e recebeu o cetro e a coroa. Os<br />
homens postaram-se la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong> da soberana.<br />
Com um gesto, ela pediu que eu me aproximasse. Diante dela<br />
eu perguntei:<br />
- Quem é você?<br />
- Sou Uyara e esse é o meu reino.<br />
- Por que me trouxe para esse lugar?<br />
- Escutei a sua voz perdida e solitária. Suas palavras<br />
encantaram o meu coração e fiquei compadecida de sua lamúria.
- Por que vive aqui?<br />
- Há muito tempo atrás, traída por um sentimento falso,<br />
entreguei-me ao abismo <strong>do</strong>s mares. Desde então, to<strong>do</strong> o homem que<br />
se dispusesse a amar-me, deveria viver comigo nesse mun<strong>do</strong><br />
submerso.<br />
- E onde está o seu ama<strong>do</strong>?<br />
- Nenhum <strong>do</strong>s homens que aqui veio provou o seu verdadeiro<br />
amor.<br />
- Voltaram para a terra?<br />
- Não, permaneceram aqui como meus servos.<br />
- E o que quer fazer comigo?<br />
- As suas juras tornaram-no o próximo candidato a<br />
compartilhar comigo <strong>do</strong> meu reino.<br />
- Mas eu não a amo. O meu amor está prometi<strong>do</strong> a outra<br />
mulher! - tentei explicar, muito preocupa<strong>do</strong>.<br />
- Eu sou todas as mulheres prometidas. Represento qualquer<br />
mulher que aguarda o amor jura<strong>do</strong>, que espera ansiosamente pelo<br />
ama<strong>do</strong> que possui o desejo sincero de ter e pertencer. Provarei se o<br />
seu amor é verdadeiro.<br />
Encostan<strong>do</strong> o cetro em meu peito, disse com firmeza, sem<br />
perder o cântico melodioso:<br />
- Aos olhos que tu<strong>do</strong> vê, nada pode ser oculto. Que o seu real<br />
sentimento seja revela<strong>do</strong>!<br />
O cristal <strong>do</strong> cetro foi tornan<strong>do</strong>-se colori<strong>do</strong> e brilhante. A luz<br />
aumentou de intensidade e um calor, quase insuportável, fez a água<br />
em volta ferver.<br />
- Agnã, o seu amor por Uiramirim é puro, inocente, sincero e<br />
belo, mas não é ela o exclusivo amor de sua vida.<br />
- Como assim? - perguntei, espanta<strong>do</strong>.<br />
- O seu amor não pertence apenas a sua prometida, mas a<br />
todas as criaturas. O seu sentimento é genuíno, porém, ainda é<br />
apenas um facho <strong>do</strong> muito amor que possui.<br />
Uyara ergueu a mão direita e uma outra mulher-peixe<br />
aproximou-se conduzin<strong>do</strong> uma ostra sobre uma almofada.<br />
A senhora das águas alisou carinhosamente o molusco que<br />
acabou se abrin<strong>do</strong> e expon<strong>do</strong> uma belíssima pérola.<br />
- Esse é o valor simbólico <strong>do</strong> amor gera<strong>do</strong> pelo tempo, em<br />
segre<strong>do</strong>, e que agora deverá ser revela<strong>do</strong> para que to<strong>do</strong>s vejam o<br />
quanto é belo e resistente.
Com outro gesto, Uyara fez surgir um caminho pratea<strong>do</strong>.<br />
Entregan<strong>do</strong>-me a pérola, disse:<br />
- Volte ao mun<strong>do</strong> a que pertence, mas tenha cuida<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> o<br />
sangue <strong>do</strong> homem comum pulsar pela primeira vez dentro de você,<br />
qualquer mulher que despertar a sua natureza animal poderá<br />
transformar-se em uma paixão cega e incontrolável. Será um grande<br />
sofrimento.<br />
- Não se preocupe, isso não irá acontecer.<br />
- Mas acontecen<strong>do</strong>, será um escravo de si mesmo. Guarde<br />
sempre essa lembrança consigo e esteja prepara<strong>do</strong>, pois não há amor<br />
verdadeiro que não exija algum sacrifício.<br />
Quan<strong>do</strong> pisei na estrada iluminada, não precisei dar nenhum<br />
outro passo. Subitamente, já estava deita<strong>do</strong> de bruços sobre a areia<br />
da praia. Tossi algumas vezes, pois havia engoli<strong>do</strong> um pouco d'água.<br />
Ao desvirar-me, percebi que os Setenários estavam a minha volta.<br />
Abri a mão direita e a pérola brilhou intensamente.
42 - O MESTRE DA DANÇA<br />
- Parece que você ganhou um belo presente <strong>do</strong> mar, Agnã -<br />
disse Choam.<br />
- Sim, mas não foi <strong>do</strong> mar, foi de Uyara, a senhora...<br />
Não cheguei a completar a minha explicação, pois os Setenários<br />
posicionaram-se para voar. Levantei-me apressadamente e fiquei<br />
atrás da fila. Em breve tempo, estávamos em outras paragens.<br />
Choam e eu fizemos contato com uma nova tribo e fomos<br />
convida<strong>do</strong>s a permanecer ali por algum tempo. Os demais Setenários<br />
preferiram permanecer afasta<strong>do</strong>s. Depois de alguns dias, eu já falava<br />
fluentemente a língua local.<br />
Reparei que o pajé não morava junto <strong>do</strong> povo. Segun<strong>do</strong><br />
comentavam, era um velho solitário que se refugiava nas montanhas<br />
e que só duas vezes por ano descia para o atendimento das pessoas.<br />
Quan<strong>do</strong> isso acontecia, faziam uma grande festa. O feiticeiro era o<br />
próprio símbolo da festança, sen<strong>do</strong> denomina<strong>do</strong> de Bayá.<br />
Achan<strong>do</strong> estranho o comportamento <strong>do</strong> pajé, perguntei ao<br />
cheroupi:<br />
- Por que Bayá vive em reclusão na maior parte <strong>do</strong> ano?<br />
- Ele não pertence a essa gente. Era um peregrino solitário que<br />
encontrou carinho e hospitalidade com esse povo. Os seus<br />
conhecimentos, porém, eram muito avança<strong>do</strong>s para essa gente.<br />
Achan<strong>do</strong> que poderia acabar interferin<strong>do</strong> nos costumes dessas<br />
pessoas, decidiu isolar-se e só se comunicar com elas através da<br />
dança. Em breve ele irá descer das montanhas para o habitual<br />
atendimento e bênçãos.<br />
No dia seguinte, os membros principais da tribo reuniram-se e<br />
planejaram a semana da pajelança. Toda a aldeia participou <strong>do</strong>s<br />
preparativos, sen<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> cuida<strong>do</strong>samente elabora<strong>do</strong>, desde os<br />
alimentos e bebida, até as vestimentas.<br />
As ocas foram ornamentadas e, inclusive, as árvores receberam<br />
enfeites.<br />
Uma palhoça simples foi reservada para o pajé, só que no lugar<br />
mais alto da aldeia, em sinal de respeito. Ten<strong>do</strong> em vista que não<br />
usavam redes para <strong>do</strong>rmir, uma esteira de palha foi feita<br />
especialmente para ele.<br />
Logo pela manhã, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, inclusive Choam e eu, estava<br />
pinta<strong>do</strong> para as cerimônias. A maioria <strong>do</strong>s homens andava ao re<strong>do</strong>r
da aldeia, fuman<strong>do</strong> tymbuaba. Outros baforavam a fumaça <strong>do</strong><br />
cachimbo pelas ocas.<br />
- O que estão fazen<strong>do</strong>? - perguntei.<br />
- Segun<strong>do</strong> as suas crendices, estão expulsan<strong>do</strong> os espíritos<br />
maus e protegen<strong>do</strong> a aldeia das energias ruins.<br />
Ao cair da noite, prepararam uma enorme fogueira, na qual<br />
jogaram ervas aromáticas e serviram um chá para to<strong>do</strong>s os<br />
presentes, feito à base <strong>do</strong> extrato de um cipó, de efeitos semelhantes<br />
ao caapi.<br />
Em um determina<strong>do</strong> momento, começaram a usar os seus<br />
instrumentos de percussão, num ritmo contagiante. Até mesmo<br />
Choam, sempre comedi<strong>do</strong>, balançava a cabeça.<br />
Subitamente, ocorreu um barulho estridente que fez com que<br />
to<strong>do</strong>s se imobilizassem. Em meio a uma fumaça branca de o<strong>do</strong>r acre,<br />
surgiu uma figura singular e exótica.<br />
O seu rosto era pinta<strong>do</strong> de branco e preto, os cabelos e o resto<br />
<strong>do</strong> corpo eram tingi<strong>do</strong>s de vermelho. O cocar era de penas<br />
alaranjadas, como toda a plumagem que o enfeitava.<br />
Em cada tornozelo havia um guizo que soava forte a cada<br />
pisada, na mesma cadência com que agitava o seu maracá.<br />
Os batuques <strong>do</strong>s percussionistas passaram a acompanhar a<br />
tocada firme <strong>do</strong> homem alegórico que começou a dançar em torno da<br />
fogueira.<br />
Logo em seguida, iniciou-se a bebedeira. A noite prosseguiu<br />
assim, até que Bayá recolheu-se em sua ocaybaté.<br />
Depois de algum tempo, Choam e eu fomos até lá para uma<br />
conversa reservada.<br />
No interior da palhoça havia muitos alimentos oferta<strong>do</strong>s pelos<br />
representantes da aldeia. Com o pajé, saboreamos deliciosa mujeca,<br />
batata-<strong>do</strong>ce, beiju e chibé, comida típica <strong>do</strong>s tupi.<br />
O diálogo foi muito agradável, com o muruxaua falan<strong>do</strong><br />
fluentemente a minha língua.<br />
- Esses serão os últimos dias que estarei com esse povo -<br />
informou o feiticeiro para a minha tristeza.<br />
- E como o povo viverá sem o seu pajé? - perguntei.<br />
- Certamente, algum membro da tribo assumirá as minhas<br />
funções.<br />
- Para onde irá?<br />
- Viajarei para um lugar muito distante daqui.<br />
- Por que partir agora?
- Para tu<strong>do</strong> há um tempo certo. Sinto que é o momento de<br />
mudar. Por falar nisso, está na hora de <strong>do</strong>rmir. Amanhã teremos um<br />
dia de muita atividade.<br />
Logo que amanheceu, toda a tribo estava de pé.<br />
Fizemos um grande círculo, homens, mulheres e crianças.<br />
To<strong>do</strong>s permaneceram em silêncio para ouvir o homem santo:<br />
- Iremos reverenciar Cy Yby, a Mãe Terra. A mãe que nos dá os<br />
frutos, as ervas, a alimentação básica de nossas vidas, as flores que<br />
embelezam os nosso dias, o material para construirmos nossas ocas,<br />
nossos instrumentos musicais e to<strong>do</strong>s os utensílios. Nossa dança é<br />
um agradecimento a Cy Yby e, sen<strong>do</strong> gratos, ela ficará alegre com a<br />
nossa atitude e continuará a fartar-nos com suas dádivas.<br />
Cada um de nós pegou duas folhas de palmeira e abraçamo-nos<br />
com elas, o que representava o abraço da Mãe Terra.<br />
Bayá começou a fazer com que o círculo girasse. Ora para a<br />
direita, ora para a esquerda. Com os guizos em seus calcanhares,<br />
mantinha um som harmônico com as passadas. Entre um movimento<br />
e outro, ele dizia prolongadamente, sen<strong>do</strong> segui<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s nós:<br />
- Aeh... aeh... aeh...<br />
Em tom mais grave e baten<strong>do</strong> o pé esquer<strong>do</strong> no chão:<br />
- Cy yby aeh... Cy yby aeh... Cy yby aeh...<br />
Depois, repetia o mesmo refrão com mais força, para voltar ao<br />
tom inicial. Cada vez que batíamos os pés no chão, tínhamos a<br />
impressão de que a terra respondia com um eco distante. O conjunto<br />
produzia um efeito magnetizante.<br />
Em seguida, Bayá desfez o círculo, adentran<strong>do</strong> a mata e sen<strong>do</strong><br />
segui<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s nós. Imitan<strong>do</strong>-o, começamos a passar as mãos<br />
pelas plantas, árvores, pedras, pelo chão, em tu<strong>do</strong> o que havia na<br />
terra e que pudéssemos tocar.<br />
Retornamos à taba e fizemos um novo círculo. Cada um havia<br />
trazi<strong>do</strong> algo da mata, uma flor, pedrinhas, algum fruto e outras<br />
coisas. Após dançarmos mais uma vez, um ofereceu ao outro aquilo<br />
que havia coleta<strong>do</strong>.<br />
Continuamos com outras danças, específicas para os produtos<br />
que a terra oferecia. Só terminamos ao anoitecer, sen<strong>do</strong> então<br />
servida muita comida e bebida.<br />
No dia posterior, a dança, que na língua <strong>do</strong> meu povo<br />
significava yeroqui, foi uma saudação a Coaracyguassú, o grande <strong>Sol</strong>.<br />
Em círculo, de mãos erguidas, cantamos repetidas vezes:<br />
- Aeh... aeh... aeh...
- Co-a-ra-cy-gua-ssú aeh...<br />
No final da tarde, a chuva trouxe o arco-íris e assim voltamos a<br />
dançar em agradecimento à luz visível <strong>do</strong> <strong>Sol</strong>, que respondia aos<br />
nossos cânticos.<br />
Quan<strong>do</strong> chegou a noite, a Lua apareceu com to<strong>do</strong> o seu<br />
esplen<strong>do</strong>r. Dançamos então, a yeroqui de Jacy-guassu, a grande Lua.<br />
Ao alvorecer, foi a vez da fertilidade. Dançou-se pelas sementes<br />
e frutos da terra. Reverenciou-se a chuva, que voltou a cair sobre<br />
nós.<br />
Antes de terminarem as festividades, algo imprevisível causou<br />
uma grande preocupação entre os nativos.<br />
Foram avista<strong>do</strong>s próximos da aldeia, alguns índios não<br />
conheci<strong>do</strong>s portan<strong>do</strong> armas de guerra. Quan<strong>do</strong> perceberam que<br />
haviam si<strong>do</strong> nota<strong>do</strong>s, fugiram para a mata.<br />
Dois membros da tribo que nos acolhia foram designa<strong>do</strong>s para<br />
sondar a re<strong>do</strong>ndeza. Na madrugada, retornaram aflitos:<br />
- É uma turma de cinqüenta guerreiros, prontos para a luta -<br />
disse um <strong>do</strong>s bate<strong>do</strong>res.<br />
Imediatamente, os líderes locais reuniram os homens para a<br />
preparação <strong>do</strong> possível confronto. Em pouco tempo, havia mais de<br />
oitenta bravos de prontidão para a defesa.<br />
O fato aborreceu nitidamente a Bayá que, por sua natureza, era<br />
avesso à defrontação belicosa e recolheu-se em sua ocaybaté.<br />
Fiz menção de ajudar os nativos, mas fui conti<strong>do</strong> por Choam:<br />
- Não devemos interferir nos assuntos desse povo. Estamos<br />
aqui apenas para um aprendiza<strong>do</strong>.<br />
Permaneci, então, na angustiante posição de especta<strong>do</strong>r.<br />
A tribo inimiga aproximou-se da aldeia e não tar<strong>do</strong>u o embate<br />
corporal. A luta travava-se a pouca distância e podíamos assistir a<br />
tu<strong>do</strong>.<br />
Os invasores, embora em menor número, pareciam muito mais<br />
bem condiciona<strong>do</strong>s fisicamente e com facilidade conseguiam avançar.<br />
Os nossos nativos não lutavam com determinação, mesmo porque<br />
não tinham a ín<strong>do</strong>le aguerida e, talvez por isso, ao menor ferimento,<br />
aban<strong>do</strong>navam o confronto, voltan<strong>do</strong> apavora<strong>do</strong>s para o centro da<br />
aldeia.<br />
Em pouco tempo, tínhamos mais de cinqüenta feri<strong>do</strong>s e a<br />
situação estava cada vez mais crítica. Insisti em partir para a luta.<br />
Entretanto, Choam ainda não me permitia:<br />
- Agnã, aguarde os acontecimentos.
- Mas venerável, em breve os nossos anfitriões serão<br />
derrota<strong>do</strong>s. Essa gente não está preparada para a guerra.<br />
- Você também não está.<br />
- Choam, você sabe o que pode acontecer a eles se perderem a<br />
luta?<br />
- Sei.<br />
- E o que se fará?<br />
Antes que ele respondesse, quan<strong>do</strong> as mulheres e crianças<br />
gritavam desesperadas, anteven<strong>do</strong> o infortúnio, Bayá saiu da<br />
ocaybaté, em pintura de guerra, seguran<strong>do</strong> um maracá.<br />
Choam olhou para mim e respondeu:<br />
- Magia!<br />
Arrepiei-me por completo, estremecen<strong>do</strong> até os ossos.<br />
Determina<strong>do</strong>, o homem sagra<strong>do</strong> começou a dançar a yeroqui <strong>do</strong><br />
maramonhangara ou guarani, a dança <strong>do</strong> grande guerreiro.<br />
Impressionantemente, no mesmo instante, os índios locais<br />
começaram a lutar como valentes e destemi<strong>do</strong>s guerreiros. Estavam<br />
agora em menor número que os inimigos, mas suas armas pareciam<br />
que agitavam-se sozinhas no ar, desarman<strong>do</strong> facilmente os<br />
oponentes.<br />
Quanto mais forte Bayá fazia com que os seus guizos e maracá<br />
soassem pela aldeia, em cadência de batalha, mais forte ficavam os<br />
nativos e mais inimigos capturavam.<br />
- Observe com os olhos da alma - disse Choam.<br />
Usan<strong>do</strong> a minha clarividência, vi uma multidão de espíritos<br />
guerreiros ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s poucos nativos que restavam no combate. Ao<br />
coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> pajé, levas e levas de bravos saíam das profundezas e<br />
<strong>do</strong> interior das matas, tornan<strong>do</strong> cada silvícola local, um homem<br />
valen<strong>do</strong> por muitos outros.<br />
- A poderosa energia desses espíritos, tradicionais em seus<br />
embates em vidas passadas, é transferida para os nossos amigos<br />
que, assim, sentem-se possui<strong>do</strong>res de uma força sobrenatural e<br />
invencível que lhes confere agora, confiança absoluta na vitória -<br />
explicou o cheroupi.<br />
Em pouco tempo, os inimigos estavam subjuga<strong>do</strong>s. Não havia<br />
mortos, mas muitos feri<strong>do</strong>s, alguns em esta<strong>do</strong> grave, que poderiam<br />
morrer a qualquer momento.<br />
Bayá determinou que to<strong>do</strong>s aqueles com risco de vida, inclusive<br />
os prisioneiros, fossem reuni<strong>do</strong>s na ocara e sentenciou:
- Vou executar a dança da vida e da morte. Quem tiver que<br />
morrer, morrerá, mas quem tiver que viver, viverá.<br />
Durante quase uma hora, Bayá an<strong>do</strong>u em baila<strong>do</strong> ritma<strong>do</strong>, ao<br />
som <strong>do</strong> maracá e <strong>do</strong>s guizos, entre os feri<strong>do</strong>s das duas tribos. Ao final<br />
da yeroqui, to<strong>do</strong>s sobreviveram.<br />
Começou então a dança para a cura <strong>do</strong>s feri<strong>do</strong>s, fuman<strong>do</strong><br />
tymbuaba e baforan<strong>do</strong> a fumaça nos horríveis ferimentos.<br />
Quan<strong>do</strong> terminou o baila<strong>do</strong>, to<strong>do</strong>s os ferimentos haviam<br />
cicatriza<strong>do</strong> e mais nenhum gemi<strong>do</strong> de <strong>do</strong>r se ouvia.<br />
To<strong>do</strong>s ficaram exultantes e os próprios inimigos regozijaram-se<br />
com a pajelança.<br />
O pajé, falan<strong>do</strong> a língua <strong>do</strong>s invasores, indagou de seus líderes<br />
a razão pela qual haviam lança<strong>do</strong> um ataque contra um povo pacífico.<br />
Choam também entendia o que conversavam e foi-me explican<strong>do</strong>:<br />
- O guerreiro está imploran<strong>do</strong> perdão ao feiticeiro, alegan<strong>do</strong><br />
que somente atacou a aldeia em busca de comida. Justifica que onde<br />
a sua tribo se encontra não há alimentos para to<strong>do</strong>s e que somente<br />
nessas paragens a terra é abençoada.<br />
A uma ordem de Bayá, os prisioneiros foram liberta<strong>do</strong>s.<br />
- O que está acontecen<strong>do</strong>? - perguntei ao Setenário.<br />
- O pajé acatou as desculpas <strong>do</strong>s agressores e permitiu que<br />
retornassem para sua gente, sob uma condição.<br />
- Qual?<br />
- Que voltassem para cá, com to<strong>do</strong>s os membros da tribo.<br />
- Para serem escravos?<br />
- Não, para serem hóspedes. Deverão permanecer aqui, onde<br />
há bom sustento, até aprenderem a cultivar a terra.<br />
Assim foi feito. Em <strong>do</strong>is dias, os anteriormente inimigos<br />
trouxeram suas mulheres, velhos e crianças famintas.<br />
Foram to<strong>do</strong>s bem recebi<strong>do</strong>s e alimenta<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong> construídas<br />
três oguassus para abrigá-los temporariamente.<br />
À noite, Bayá reuniu a to<strong>do</strong>s na ocara para a sua última dança.<br />
Formou-se um enorme círculo. Um de braço da<strong>do</strong> com o outro,<br />
la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>, amigos e ex-inimigos, acompanhan<strong>do</strong> os passos de Bayá.<br />
Ora avançávamos ao centro, ora nos afastávamos. Pés bati<strong>do</strong>s à<br />
direita, pés bati<strong>do</strong>s à esquerda, dançamos o yeroqui <strong>do</strong> perdão.<br />
Posteriormente, continuamos em outro baila<strong>do</strong> que terminou<br />
com to<strong>do</strong>s entrelaça<strong>do</strong>s, curvan<strong>do</strong>-se à frente. Era a dança da união e<br />
da despedida.
Bayá saiu da formação, aproximou-se da grande fogueira e<br />
começou a correr cada vez mais rapidamente em torno dela, e,<br />
quan<strong>do</strong> menos se esperava, jogou-se no meio <strong>do</strong> fogo, para o<br />
espanto de to<strong>do</strong>s.<br />
Seguiu-se uma ensurdece<strong>do</strong>ra explosão. Chispas de madeira<br />
voaram por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s. Rolos de fumaça branca subiram até às<br />
estrelas e fagulhas começaram a chover sobre nós, mas quan<strong>do</strong><br />
tocavam a nossa pele, ao invés de nos fustigar, transformavam-se<br />
em pequenos pontos <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s que logo desapareciam ao contato.<br />
Perguntei a Choam:<br />
- Como isso é possível?<br />
O meu cheroupi fechou os olhos, ergueu a cabeça e inspirou<br />
profundamente. Exalan<strong>do</strong> lentamente o ar, olhou para o infinito e<br />
respondeu:<br />
- Magia...
43 - OS ESPÍRITOS OBSESSORES<br />
To<strong>do</strong>s acharam que Bayá havia morri<strong>do</strong>. Em sua homenagem, o<br />
local <strong>do</strong> seu desaparecimento passou a ser considera<strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>,<br />
receben<strong>do</strong> o nome de Caraíva.<br />
Sain<strong>do</strong> <strong>do</strong> povoa<strong>do</strong>, Choam e eu passamos próximos das<br />
montanhas em que o grande pajé havia mora<strong>do</strong>. Durante a<br />
caminhada, surpreendi o cheroupi admiran<strong>do</strong> um belíssimo monte ali<br />
perto.<br />
- Está aprecian<strong>do</strong> a beleza <strong>do</strong> lugar? - perguntei ao Setenário.<br />
- Nos séculos vin<strong>do</strong>uros, homens de outra raça, de terras<br />
distantes, além desse mar, chegarão aqui. Avistarão primeiro esse<br />
monte. Trarão para os nativos um conhecimento mais avança<strong>do</strong>,<br />
porém sob alto custo. Milhares morrerão.<br />
Sobressalta<strong>do</strong> pela previsão sombria, perguntei:<br />
- Não haverá nada que se possa fazer para evitar isso?<br />
- Acredito que não. Se os homens dessa terra não forem<br />
dizima<strong>do</strong>s pelas armas <strong>do</strong>s estrangeiros, morrerão pelas <strong>do</strong>enças que<br />
eles irão trazer consigo. Certamente, você estará entre esses<br />
viajantes de além-mar.<br />
- Mas como? Eu não iria lutar contra a minha gente!<br />
- Não, Agnã. Você fará parte de um grupo de homens que terá<br />
o poder de salvá-los de uma desgraça maior.<br />
- E o que irei fazer?<br />
Choam sorriu, bateu em meu ombro e respondeu:<br />
- Magia.<br />
Após a preocupante profecia <strong>do</strong> cheroupi, afastamo-nos daquele<br />
povoa<strong>do</strong> e <strong>do</strong> litoral, seguin<strong>do</strong> nossa caminhada para o interior <strong>do</strong><br />
continente.<br />
Atingimos um altiplano, de onde podia-se ver uma vasta<br />
paisagem. Chamei o local de Araripe, que significa “por sobre o<br />
mun<strong>do</strong>”. Os demais Setenários estavam a nossa espera.<br />
No final da tarde, Choam disse:<br />
- Agnã, você quer fazer uma viagem astral?<br />
Feliz com a idéia, prontifiquei-me na hora.<br />
Assim que des<strong>do</strong>brei, Ibapora já estava me aguardan<strong>do</strong>.<br />
- Jovem aprendiz, vamos até uma aldeia não muito distante<br />
daqui - falou com seriedade, o homem da pedra violeta.
Os nossos espíritos voaram descen<strong>do</strong> a chapada, seguin<strong>do</strong> para<br />
o norte, onde encontramos uma pequena taba, situada em um vale<br />
ermo e silencioso ao qual dei o nome de Cariri.<br />
O povo estava reuni<strong>do</strong> em torno da oca <strong>do</strong> pajé. Lá dentro, o<br />
feiticeiro tentava afastar alguns espíritos maléficos que perturbavam<br />
um jovem guerreiro.<br />
- Nos últimos dias, o rapaz tem-se comporta<strong>do</strong> estranhamente,<br />
toman<strong>do</strong> atitudes absurdas, como a de tentar matar os pais e amigos<br />
da aldeia, sem o menor motivo - explicou Ibapora.<br />
Olhei para o rapaz e fiquei atônito. Os seus olhos permaneciam<br />
esbugalha<strong>do</strong>s, olhan<strong>do</strong> para lugar nenhum. Vociferava<br />
incontrolavelmente, falan<strong>do</strong> impropérios. Quatro espíritos ruins<br />
cercavam-no e um outro parecia agir no seu corpo físico. O espírito<br />
<strong>do</strong> jovem, na verdade, permanecia ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpo material, em um<br />
esta<strong>do</strong> de <strong>do</strong>rmência.<br />
- Ele está possuí<strong>do</strong> por espíritos inferiores - continuou<br />
esclarecen<strong>do</strong> o cheroupi.<br />
- O que isso quer dizer? - perguntei.<br />
- Significa que o espírito dele não está mais controlan<strong>do</strong> os atos<br />
voluntários <strong>do</strong> seu próprio corpo. O espírito que você vê sobre o físico<br />
<strong>do</strong> jovem é que mantém o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> seu organismo.<br />
- E como isso pode ser feito?<br />
- A entidade malévola aproveita as oportunidades de grande<br />
fraqueza da pessoa para assediá-la. Com o tempo, se o indivíduo não<br />
reagir, acaba permitin<strong>do</strong> uma grave interferência em seu corpo<br />
mental. Agin<strong>do</strong> nesse envoltório, o espírito mal<strong>do</strong>so começa a<br />
insuflar-lhe idéias negativas, pensamentos ruins e depressivos. Age<br />
também no corpo astral, influencian<strong>do</strong> seus sentimentos, alteran<strong>do</strong> o<br />
seu esta<strong>do</strong> emocional. Assim, o indivíduo deixa-se levar por<br />
pensamentos contrários ao bem geral e por sentimentos que o podem<br />
conduzir ao extremo nervosismo ou ao profun<strong>do</strong> abatimento. É<br />
comum que, nesse caso, as expressões emocionais oscilem<br />
freqüentemente, in<strong>do</strong> de um oposto a outro. Quan<strong>do</strong> a atuação<br />
negativa de uma entidade espiritual está apenas no começo,<br />
podemos dizer que o indivíduo está sofren<strong>do</strong> uma ligeira perturbação.<br />
É um tipo de encosto espiritual. Conforme a ação <strong>do</strong> espírito ruim<br />
aumenta, alteran<strong>do</strong> muito mais a personalidade <strong>do</strong> ser encarna<strong>do</strong>, ele<br />
vai conseguin<strong>do</strong> então obsediá-lo. Caso continue a agir livremente,<br />
sem reação da pessoa obsediada, o espírito malfeitor pode chegar a
ponto de manipular o corpo etéreo dela, passan<strong>do</strong> a <strong>do</strong>minar os atos<br />
físicos. É a chamada possessão.<br />
Ven<strong>do</strong> o espírito <strong>do</strong> rapaz ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu corpo físico,<br />
totalmente impassível, cheguei à conclusão de que ele já estava no<br />
último estágio de uma interferência espiritual negativa.<br />
- Perceba que o espírito <strong>do</strong> jovem mantém-se liga<strong>do</strong> ao físico,<br />
pelos seus centros energéticos e filamentos que lhe permitem ainda<br />
viver, mas quase todas as ligações corpóreas estão sob a intervenção<br />
direta da entidade possessiva - eluci<strong>do</strong>u o cheroupi.<br />
De fato, havia impregnações escuras por toda a parte <strong>do</strong>s<br />
corpos espirituais e <strong>do</strong> corpo material <strong>do</strong> guerreiro, com filamentos<br />
pretos que se estendiam até à entidade maléfica.<br />
- O que fazem os outros espíritos envoltos em sombras? -<br />
indaguei.<br />
- Agem como auxiliares da entidade que está atacan<strong>do</strong><br />
diretamente o rapaz.<br />
- O pajé pode vê-los?<br />
- Não tão facilmente, mas está perceben<strong>do</strong> que estão<br />
presentes. Esforce-se por captar as mensagens mentais entre eles e<br />
você entenderá perfeitamente o que estão dizen<strong>do</strong>.<br />
O pajé ordenava aos espíritos ruins que aban<strong>do</strong>nassem o corpo<br />
<strong>do</strong> jovem. Eles relutavam e queriam permanecer. O diálogo<br />
prosseguiu de forma impressionante:<br />
- Saiam desse corpo! Estou ordenan<strong>do</strong>! - disse o pajé.<br />
- Não sairemos! - respondeu o líder das entidades, usan<strong>do</strong> o<br />
corpo físico <strong>do</strong> jovem. Entretanto, o som de sua voz era<br />
completamente deforma<strong>do</strong> e assusta<strong>do</strong>r.<br />
- Não me forcem a usar os meus poderes. Saiam agora!<br />
- Não podemos.<br />
- Por que não?<br />
- Por que ele também nos quer - respondeu o espírito referin<strong>do</strong>se<br />
ao rapaz.<br />
- Vocês estão engana<strong>do</strong>s, ele não os quer.<br />
- Quer, sim.<br />
- E por que ele iria consentir com isso?<br />
- Porque ele é igual a nós. Deseja-nos tanto quanto nós a ele.<br />
- No que ele é igual a vocês, se sua vida é honrada e não fez<br />
mal a ninguém?<br />
- Ele é um guerreiro que tem prazer na morte de seus inimigos.<br />
- Mas é normal um bravo orgulhar-se de seus feitos.
- Entretanto, ele não mata pela honra da batalha e sim apenas<br />
para se comprazer pelo sofrimento alheio. Seu real desejo é ver o<br />
oponente agonizan<strong>do</strong> lentamente, enquanto o sangue aflora<br />
escorren<strong>do</strong> pelas partes feridas.<br />
- Como vocês têm tanta certeza disso?<br />
- Fomos vítimas de suas atrocidades. Fôssemos nós abati<strong>do</strong>s no<br />
campo de luta, com a dignidade de um guerreiro, não ficaríamos tão<br />
perturba<strong>do</strong>s. Mas ele agiu muito mais como um assassino cruel,<br />
atacan<strong>do</strong> a cada um de nós traiçoeiramente, quan<strong>do</strong> já estávamos<br />
feri<strong>do</strong>s e já subjuga<strong>do</strong>s. Além de tu<strong>do</strong>, deixou-nos com os corpos<br />
expostos ao tempo e aos animais carniceiros. Eu ainda estava vivo<br />
quan<strong>do</strong> uma ave arrancou-me os olhos.<br />
- Deixem o guerreiro, pois será feito o que é justo para<br />
remediar esse grande mal.<br />
- Nada mais pode ser feito, não insista!<br />
- Não ousem desobedecer-me. Você mesmo afirmou que ele é<br />
igual a vocês: o que poderiam então esperar de suas vidas?<br />
A entidade permaneceu calada e não se afastou <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong><br />
rapaz. O pajé, cantarolan<strong>do</strong>, começou a invocar os espíritos<br />
protetores de sua tribo e eles vieram. Eram seres ilumina<strong>do</strong>s que<br />
passaram a emitir fulgurosos raios nas cores rosa e amarelo na<br />
direção das entidades maléficas.<br />
Em pouco tempo, as manchas escuras <strong>do</strong>s filamentos que se<br />
prendiam ao espírito <strong>do</strong> jovem e a seu corpo físico foram se<br />
dissolven<strong>do</strong> e as entidades começaram a se afastar, embora a<br />
contragosto.<br />
O guerreiro foi mudan<strong>do</strong> a sua expressão facial, fican<strong>do</strong> mais<br />
calmo e sereno, até cair desmaia<strong>do</strong> no solo.<br />
- A tensão espiritual esgotou fisicamente o rapaz que agora<br />
está em sono profun<strong>do</strong> - explicou Ibapora.<br />
O pajé chamou os pais <strong>do</strong> mancebo, que a tu<strong>do</strong> assistiram, e<br />
determinou que, na manhã <strong>do</strong> dia seguinte, fossem com o filho nos<br />
locais onde ele havia deixa<strong>do</strong> expostos os corpos <strong>do</strong>s inimigos.<br />
Deveriam recolher os seus restos mortais, trazen<strong>do</strong>-os para a tribo<br />
para serem homenagea<strong>do</strong>s e crema<strong>do</strong>s.<br />
Logo em seguida, o pajé abriu os braços, fechou os olhos e,<br />
cantan<strong>do</strong>, começou a estremecer. Vi então, o seu espírito afastar-se<br />
<strong>do</strong> corpo físico e etéreo; enfim, uma entidade de luz, ligada àquela<br />
tribo, passan<strong>do</strong> a usar o corpo <strong>do</strong> pajé, disse aos presentes:
- Um guerreiro só é honra<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> o principal motivo de sua<br />
batalha se baseia nos princípios sagra<strong>do</strong>s de sua tribo...<br />
O espírito continuou o seu discurso moraliza<strong>do</strong>r, enquanto<br />
Ibapora explicava:<br />
- Quan<strong>do</strong> um espírito desencarna<strong>do</strong> se manifesta no mun<strong>do</strong><br />
físico, através de uma pessoa encarnada, chamamos isso de<br />
incorporação. Conforme seja o sensitivo, ele poderá permanecer<br />
consciente, semiconsciente ou totalmente inconsciente durante a<br />
manifestação espiritual. A incorporação, nesse caso, é a comunicação<br />
de um espírito ilumina<strong>do</strong> através de um sensitivo, usan<strong>do</strong> os seus<br />
canais perceptivos, sem causar mal nenhum. A possessão, ao<br />
contrário, é um ataque espiritual que provoca um grave distúrbio nas<br />
faculdades paranormais <strong>do</strong> obsedia<strong>do</strong>, que não precisa ser,<br />
necessariamente, um sensitivo.
44 - O SONHO<br />
Retornamos aos nossos corpos, na chapada <strong>do</strong> Araripe. Eu<br />
estava bastante impressiona<strong>do</strong> com as coisas que tinha visto.<br />
No dia seguinte, prosseguimos viagem. In<strong>do</strong> mais em direção<br />
ao norte, alcançamos um lugar próximo de onde o maior de to<strong>do</strong>s os<br />
rios desaguava no mar.<br />
Ali improvisamos um acampamento, ao la<strong>do</strong> de uma árvore<br />
muito fron<strong>do</strong>sa, que se destacava das outras. Era enorme e parecia<br />
muito velha.<br />
Logo que anoiteceu, deitei-me e fiquei contemplan<strong>do</strong> as<br />
inúmeras estrelas <strong>do</strong> firmamento. Assim que fechei os olhos, comecei<br />
a sentir que alguma coisa corria em volta <strong>do</strong> meu corpo.<br />
Quan<strong>do</strong> abri os olhos, vi que as raízes da enorme árvore se<br />
enrolavam em mim. Amedronta<strong>do</strong>, tentei desvencilhar-me delas, mas<br />
já haviam amarra<strong>do</strong> as minhas pernas e não era possível parti-las<br />
com as mãos. Gritei, pedin<strong>do</strong> ajuda aos Setenários, mas nenhum<br />
deles acor<strong>do</strong>u.<br />
Sen<strong>do</strong> lentamente arrasta<strong>do</strong>, peguei uma pedra pelo caminho e<br />
passei a golpear aquelas raízes, mas ainda assim elas não se<br />
soltaram.<br />
Tentei fazer de tu<strong>do</strong> para evitar ser puxa<strong>do</strong>; entretanto, fui<br />
chegan<strong>do</strong> cada vez mais próximo dela.<br />
De repente, o chão se abriu e acabei sen<strong>do</strong> traga<strong>do</strong> pela terra.<br />
Sem ar, fiquei sufoca<strong>do</strong> e perdi os senti<strong>do</strong>s.<br />
Acordei em pleno dia, com as nuvens cruzan<strong>do</strong> o céu<br />
velozmente. Achei que tinha sonha<strong>do</strong> e, olhan<strong>do</strong> ao re<strong>do</strong>r, percebi<br />
que a paisagem era outra, completamente diferente.<br />
À minha esquerda, uma mulher branca, nua, de cabelos<br />
<strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s e compri<strong>do</strong>s, estava deitada sobre uma laje de mármore<br />
branco, no meio da mata. Enrolada no alto de sua cabeça estava uma<br />
serpente que tinha, no lugar da cauda, outra cabeça.<br />
A mulher segurava uma fruta na mão esquerda e uma cuia,<br />
conten<strong>do</strong> cauim, na mão direita. A sua frente, no chão, havia dez<br />
cabeças de homens recém decapita<strong>do</strong>s, pois o sangue ainda escorria<br />
por elas e os seus olhos e bocas estavam abertos.<br />
Uma onça preta andava, sorrateiramente, atrás da mulher a<br />
espiar os movimentos.<br />
Do meu la<strong>do</strong> direito, vi o meu arco e flechas pendura<strong>do</strong>s no alto<br />
de uma árvore gigantesca.
A mulher olhou para mim e perguntou com uma voz<br />
masculinizada:<br />
- Você está com fome?<br />
Assusta<strong>do</strong>, com a barriga vazia roncan<strong>do</strong>, balancei a cabeça<br />
positivamente.<br />
- Também tem sede?<br />
- Sim - respondi com dificuldade, sentin<strong>do</strong> uma secura<br />
angustiante na boca.<br />
- Dê-me o arco e flechas que eu te darei de comer e de beber.<br />
Depois, poderá descansar em minha cama.<br />
Passei a sentir-me estranho, com o coração descompassa<strong>do</strong> e<br />
uma leve tontura.<br />
Antes, porém, que eu pudesse responder, o solo estremeceu e,<br />
ao olhar para trás, vi uma rocha gigante rolan<strong>do</strong> em minha direção.<br />
Comecei a correr desesperadamente, porém, por onde quer que eu<br />
fosse, aquela enorme bola de pedra me seguia. Tropeçan<strong>do</strong>, acabei<br />
cain<strong>do</strong> em uma ribanceira que dava em um precipício.<br />
A rocha pulou sobre mim e caiu no abismo. Eu fiquei pendura<strong>do</strong><br />
apenas pelas pontas <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s e não conseguin<strong>do</strong> sustentar-me por<br />
muito tempo, acabei despencan<strong>do</strong> <strong>do</strong> despenhadeiro.<br />
Levantei-me, sobressalta<strong>do</strong>, suan<strong>do</strong> abundantemente e com o<br />
coração dispara<strong>do</strong>. Depois, senti um grande alívio, pois havia si<strong>do</strong><br />
apenas um sonho.<br />
O <strong>Sol</strong> já se tinha se ergui<strong>do</strong> no horizonte. Procurei os<br />
Setenários, mas eles não estavam ali por perto. Com sede procurei<br />
por água. Logo encontrei uma nascente.<br />
Mesmo sacia<strong>do</strong>, não conseguia parar de tomar água, quan<strong>do</strong><br />
reparei que algo acontecia de diferente. Ela começou a brotar com<br />
mais força e, posteriormente, jorrou sem parar. Em pouco tempo, o<br />
pequeno córrego transformou-se em um riacho, o riacho em um rio, o<br />
rio em um lago e o lago em um mar.<br />
Tu<strong>do</strong> foi engoli<strong>do</strong> pelas águas, não haven<strong>do</strong> nada em que eu<br />
pudesse me segurar. Nadei por um tempo incontável, sem chegar a<br />
lugar nenhum. Exausto, fui afundan<strong>do</strong>. A sensação era horrível e<br />
acabei perden<strong>do</strong> os senti<strong>do</strong>s.<br />
Ao recobrar a consciência, era noite. A fogueira estava acesa e<br />
os Setenários <strong>do</strong>rmiam ao re<strong>do</strong>r. Eu fiquei confuso. Será que tu<strong>do</strong><br />
aquilo que se passara fazia parte de um grande sonho?<br />
Levantei-me e notei que os Setenários estavam totalmente<br />
cobertos por um manto, o que nunca eu havia visto.
Tentei acordá-los, todavia, ninguém me escutou. Então, puxei a<br />
coberta de um deles e fiquei estarreci<strong>do</strong>. Só havia o seu esqueleto.<br />
Fui tiran<strong>do</strong> o manto <strong>do</strong>s demais e só encontrei enormes esqueletos.<br />
Não, aquilo não podia estar acontecen<strong>do</strong>! Preparei uma tocha e<br />
comecei a andar pela mata. Em da<strong>do</strong> momento, tropecei, derruban<strong>do</strong><br />
no chão o archote. Imediatamente, tu<strong>do</strong> começou a se incendiar.<br />
Toda a mata ardia em chamas, não haven<strong>do</strong> mais para onde ir. O<br />
calor ficou insuportável e a fumaça começou a me asfixiar. Acabei<br />
perden<strong>do</strong> os senti<strong>do</strong>s.<br />
- Agnã! Agnã!<br />
Abri os olhos e voltei a ver a figura conhecida de Tapeyara.<br />
- O que está acontecen<strong>do</strong>? Estou morto afinal? - perguntei.<br />
- Não - respondeu, sorrin<strong>do</strong>. - Você apenas teve uma seqüência<br />
de sonhos.<br />
- Contu<strong>do</strong>, as sensações foram muito nítidas.<br />
- O mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s sonhos é profundamente enigmático e, para<br />
entender os seus mistérios, às vezes é preciso refletir bastante. O<br />
perío<strong>do</strong> de sono não interrompe o ciclo de experiências <strong>do</strong> espírito, ao<br />
contrário. No momento em que o físico repousa, é que a alma<br />
consegue libertar-se um pouco mais da matéria e, no plano espiritual,<br />
continua ten<strong>do</strong> oportunidades de aprendiza<strong>do</strong>.<br />
- Que experiências tão reais foram essas que eu tive?<br />
- Durante o sono, podemos estar sujeitos aos mais diversos<br />
tipos de situações. Todas têm uma razão de ser. Em geral, podem<br />
referir-se aos problemas interiores não resolvi<strong>do</strong>s e que não<br />
gostaríamos de resolver; não obstante, eles emergem durante a<br />
atividade onírica, como alerta da importância de serem ao menos<br />
analisa<strong>do</strong>s conscientemente. Existem sonhos semelhantes a esses e<br />
que representam os nossos desejos ocultos, que não revelamos a<br />
ninguém, nem a nós mesmos. Outros sonhos dizem respeito às coisas<br />
que fazemos, sentimos e desejamos sem complexos de culpa e que<br />
se referem ao nosso dia-a-dia. Há ainda aqueles que tratam da nossa<br />
vida espiritual, quer como aprendiza<strong>do</strong> ou como algum tipo de<br />
atividade que no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s espíritos venhamos a desenvolver,<br />
naquele momento. Podem ser relaciona<strong>do</strong>s inúmeros outros tipos de<br />
sonhos. Às vezes se apresentam simbolicamente, conten<strong>do</strong> uma<br />
mensagem que precisa ser interpretada.<br />
- E por que não pode ser mais clara e compreensível?<br />
- Por muitas razões. Algumas vezes, o simbolismo é cria<strong>do</strong><br />
porque a nossa consciência não deseja entender o sonho nesse
momento, em razão <strong>do</strong> me<strong>do</strong> de que nos revele alguma coisa que<br />
nos fira o sentimento, contrarie a nossa vontade ou nos cause grande<br />
sofrimento. O simbolismo pode também ser decorrente de uma<br />
experiência no plano mental, onde pre<strong>do</strong>minam as idéias que não<br />
possuem formas definidas. Nesse caso, no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> pensamento, os<br />
sonhos se apresentam como figuras simbólicas e muito mais místicas,<br />
que podem, inclusive, tratar <strong>do</strong> plano de vida <strong>do</strong> sonha<strong>do</strong>r.<br />
- Como assim?<br />
- Todas as suas necessidades evolutivas, tu<strong>do</strong> o que você<br />
precisa aprender, está grava<strong>do</strong> no seu corpo mental, que<br />
constantemente faz uma comparação entre as coisas que você<br />
realizou ou ainda não concretizou e aquilo que deveria ter feito ou<br />
deixa<strong>do</strong> de fazer. Disso tu<strong>do</strong> pode surgir uma representação<br />
simbólica no sonho, ou seja, o verdadeiro Eu, que representa a<br />
consciência da essência divina, se manifesta em uma linguagem<br />
codificada, avalian<strong>do</strong> a sua caminhada espiritual.<br />
- E o que deve ser feito para se entender essa linguagem<br />
simbólica?<br />
- Meditação.<br />
Perceben<strong>do</strong> a minha fisionomia de desânimo, continuou:<br />
- É preciso que você entenda que, para decifrar um enigma, é<br />
necessário pensar sobre ele. Com a meditação, você conseguirá<br />
refletir melhor sobre o assunto e, quan<strong>do</strong> fizer isso, conseguirá<br />
permitir que o seu Eu se manifeste. Dessa forma, entenderá o que<br />
lhe foi passa<strong>do</strong> em sonho.<br />
- Você não poderia interpretar o que sonhei?<br />
- Sim, mas o ideal é que você mesmo se esforce para conseguir<br />
isso, além <strong>do</strong> que a interpretação <strong>do</strong> sonho é essencialmente<br />
individual. Os significa<strong>do</strong>s que se apresentam a você dizem respeito a<br />
sua vida. Ninguém melhor <strong>do</strong> que você para conhecê-los.<br />
- Então não existe uma interpretação <strong>do</strong>s sonhos igual para<br />
todas as pessoas?<br />
- Pode existir uma forma que facilite o entendimento <strong>do</strong>s<br />
sonhos, mas os valores exatos de cada simbologia podem ser<br />
extremamente diversos um <strong>do</strong> outro, porque somos diferentes em<br />
sentimentos e idéias. Se você sonha, ven<strong>do</strong> a si mesmo no alto de<br />
uma montanha, pode significar que você alcançará os seus objetivos.<br />
Para outra pessoa que tenha o mesmo sonho, pode significar que ela<br />
precise de recolhimento, que poderá ainda ser apenas de uma<br />
maneira psíquica ou por meio de uma viagem, ou os <strong>do</strong>is.
- Estou entenden<strong>do</strong>, somente com a minha reflexão eu vou<br />
saber o que, para mim, o meu sonho representa.<br />
- Perfeitamente.<br />
- Ensine-me então, a forma que possa facilitar essa reflexão.<br />
- A primeira coisa a fazer, quan<strong>do</strong> acordar, é imediatamente<br />
recordar o sonho por inteiro. Repasse-o várias vezes, se aten<strong>do</strong>-se a<br />
to<strong>do</strong>s os detalhes, pois cada coisa vista e sentida pode ter um<br />
simbolismo próprio, principalmente as cores em que se apresentam.<br />
Depois, faça uma análise conjunta de to<strong>do</strong>s os pormenores. Feito<br />
isso, passe a considerá-los em relação a sua vida. Quais foram as<br />
coisas que surgiram no sonho que dizem respeito ao que você sente<br />
agora ou sentiu antes? Algo que você sonhou, você já havia pensa<strong>do</strong><br />
ou está pensan<strong>do</strong> agora? O sonho refere-se a algo que tenha feito ou<br />
deixa<strong>do</strong> de fazer? Diz respeito às pessoas de seu relacionamento?<br />
Passei a fazer o que Tapeyara me dissera. Depois que relembrei<br />
to<strong>do</strong>s os sonhos que tivera, comecei a analisá-los por partes.<br />
Lembrei-me das raízes da árvore que amarraram as minhas<br />
pernas e passei a meditar sobre isso.<br />
A raiz é algo que permite que a árvore permaneça em pé, presa<br />
ao solo, de onde colhe água e substâncias minerais. Também significa<br />
origem.<br />
As pernas são os membros que nos permitem ficar em pé e nos<br />
locomover.<br />
Cheguei à conclusão que algo desconheci<strong>do</strong> desejava que eu<br />
me voltasse para as minhas raízes, minha origem e que isso seria<br />
importante para me manter firme, em pé diante de mim mesmo e em<br />
condições de caminhar, prosseguin<strong>do</strong> a minha jornada.<br />
- Talvez, conscientemente, você não se dispusesse a fazer isso,<br />
razão pela qual foi força<strong>do</strong> - disse Tapeyara, len<strong>do</strong> os meus<br />
pensamentos.<br />
- Mas o que seria essa coisa tão forte, irresistível?<br />
- Para onde você foi leva<strong>do</strong>?<br />
- Fui traga<strong>do</strong> pela terra... para o seu interior, suas<br />
profundezas... Claro! Para dentro de mim mesmo, por isso me senti<br />
sufoca<strong>do</strong>, eu não queria fazê-lo! - concluí muito feliz.<br />
- E foi por força de quem?<br />
- Do meu próprio Eu!<br />
- Excelente! - exclamou, sorrin<strong>do</strong>.<br />
- Isso quer dizer que era o momento de passar por uma<br />
experiência interior importante.
- Parece que sim. Prossiga.<br />
- Mulher branca... - pensei em voz alta - seria uma mulher de<br />
outra raça.<br />
Nua... em minha tribo, é normal to<strong>do</strong>s andarem despi<strong>do</strong>s,<br />
entretanto, o meu avô falava de uma raça de brancos que tinham o<br />
costume de andar vesti<strong>do</strong>s, só tiran<strong>do</strong> as roupas na hora de tomar<br />
um banho ou no momento de ter uma relação sexual.<br />
Pode então, representar a completa intimidade entre duas<br />
pessoas.<br />
O mármore branco pode significar uma pureza que é bela,<br />
contu<strong>do</strong> fria, sem amor.<br />
A mata é onde está a vida, de onde se colhe os frutos, onde se<br />
vive.<br />
A serpente é um ofídio rastejante.<br />
- A cobra também representa o conhecimento oculto ou o<br />
próprio poder que dele emana - interveio o aba morotinga.<br />
- De duas cabeças - continuei. - Um conhecimento ou poder de<br />
senti<strong>do</strong>s opostos.<br />
- O la<strong>do</strong> bom e ruim da magia.<br />
- Enrolada no alto da cabeça da mulher... pode ser a dualidade<br />
de pensamentos místicos.<br />
As cabeças <strong>do</strong>s homens poderiam significar que ela era uma<br />
guerreira cruel.<br />
A onça espreita<strong>do</strong>ra seria o la<strong>do</strong> felino que toda a mulher pode<br />
possuir.<br />
O arco e flecha, a arma de caça e luta. No alto da uma árvore<br />
gigantesca, inacessível para aquela mulher.<br />
A voz masculinizada seria a expressão semelhante a de um<br />
homem?<br />
A minha fome e sede, as necessidades naturais de um homem?<br />
Sua oferta condicional...<br />
O solo que estremeceu, o que poderia ser?<br />
- To<strong>do</strong> o terremoto, por menor que seja, vem <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> da terra<br />
- explicou Tapeyara.<br />
- Então seria o meu interior que, se manifestan<strong>do</strong> novamente,<br />
fez com que uma pedra gigante forçasse a minha saída de lá.<br />
- Acrescente-se que a bola que gira, no conhecimento oculto,<br />
significa o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> indivíduo que está mudan<strong>do</strong>, o seu destino que<br />
está giran<strong>do</strong>, poden<strong>do</strong> parar em qualquer lugar.<br />
- Tapeyara, ajude-me a entender tu<strong>do</strong> isso!
- Agora que analisou as partes, vá juntan<strong>do</strong>-as e compreenderá<br />
melhor a primeira mensagem.<br />
Voltei a pensar no sonho, desde o começo.<br />
Depois de um tempo, disse:<br />
- Acho que entendi! Trata-se de algo referente ao meu futuro!<br />
- Sim, e o que representa no to<strong>do</strong>?<br />
- Encontrarei na selva, uma mulher de outra raça. Sedutora,<br />
também saberá se expressar como um homem. Ela possuirá um<br />
conhecimento e poder que pode ser aplica<strong>do</strong> para o bem ou para o<br />
mal. Terá coragem para matar qualquer homem que não atenda as<br />
suas vontades. Eu verei o resulta<strong>do</strong> de suas lutas e isso me<br />
assustará.<br />
A onça significa a força extra e agilidade que ela possui,<br />
vigilante e pronta para ser usada a qualquer momento.<br />
Entretanto, ela precisará de mim e não hesitará em tentar<br />
seduzir-me com seus encantos, aproveitan<strong>do</strong> os meus desejos e<br />
necessidades de um homem comum.<br />
- Se aceitar, as suas faculdades paranormais e a sua noção da<br />
realidade estarão comprometidas.<br />
- Mas, na derradeira hora, surgirão acontecimentos que<br />
mudarão o meu destino.<br />
- Muito bem! Mas explique por que você acha que se trata de<br />
acontecimentos futuros?<br />
- Porque tão logo recobrei a consciência, de um momento para<br />
o outro, já era dia e as nuvens seguiam velozmente.<br />
- Parabéns! Embora haja outros itens interpretativos, nesse<br />
primeiro sonho, acho que você abor<strong>do</strong>u bem o seu senti<strong>do</strong>. Em vista<br />
disso, não se esqueça de algo importantíssimo!<br />
- O quê?<br />
- Se você está receben<strong>do</strong> um alerta <strong>do</strong> seu Eu, é porque os<br />
acontecimentos serão extremamente relevantes e podem significar<br />
uma grande prova em seu caminho.<br />
Mordi os lábios e concordei, silenciosamente.<br />
- Agnã, tenho que ir.<br />
- Mas e os outros sonhos? - perguntei contraria<strong>do</strong>.<br />
- Você os compreenderá, eu tenho certeza.<br />
- Mas pelo menos, diga-me o que significa esotericamente a<br />
água, o fogo e os esqueletos?<br />
- No primeiro sonho, você manteve contato com os elementos<br />
terra e ar. No segun<strong>do</strong> com a água e no terceiro com o fogo. Os
quatro elementos possibilitam o equilíbrio no meio da manifestação<br />
física e resultam das quatro forças cósmicas primárias, que,<br />
respectivamente, são a coesiva, expansiva, fluente e radiante. Dentro<br />
das inúmeras variáveis interpretativas, no seu caso, a água pode<br />
representar os ensinamentos superiores que devem ser assimila<strong>do</strong>s<br />
na medida certa da necessidade e não incontrolavelmente. O fogo<br />
pode dizer respeito ao poder desse conhecimento, que deve ser<br />
emprega<strong>do</strong> com sabe<strong>do</strong>ria e cuida<strong>do</strong>, para não fugir ao controle e<br />
causar grande dano e a própria destruição. O esqueleto, no senti<strong>do</strong><br />
oculto, não significa, necessariamente, a morte física e sim as<br />
transformações <strong>do</strong> ser. Com referência a você, talvez tenha que<br />
caminhar sozinho, sem a ajuda <strong>do</strong>s Setenários, e os acontecimentos<br />
que advirão transformarão muito a sua vida.<br />
Logo em seguida, o Senhor <strong>do</strong>s Caminhos foi sumin<strong>do</strong>, sem<br />
mais nada dizer. Meio inconforma<strong>do</strong>, tive que acabar compreenden<strong>do</strong><br />
que algumas coisas devemos descobrir por nós mesmos.<br />
Durante a minha reflexão, começou a chover intensamente e o<br />
solo ficou coberto de água. Como já era noite, resolvi subir na velha<br />
árvore e ali pernoitar, aguardan<strong>do</strong> que os Setenários retornassem.<br />
A chuva parou depois de algum tempo. Assim que fechei os<br />
olhos para <strong>do</strong>rmir, escutei:<br />
- Agnã! Agnã!<br />
Abri os olhos e para a minha surpresa, já era dia. Olhei para<br />
baixo e lá estavam os meus pais a<strong>do</strong>tivos.<br />
- Desça! Está na hora de partirmos!<br />
Meio confuso, arrisquei a pergunta:<br />
- Onde vocês foram?<br />
- A lugar nenhum. Não saímos daqui.<br />
- E a chuva?<br />
- Que chuva, Agnã?<br />
Olhei para mim mesmo e ao re<strong>do</strong>r. Não havia sinais de ter<br />
chovi<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> olhei para cima, uma gota de orvalho pingou em<br />
meu rosto.<br />
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou o cheroupi, com um<br />
olhar maroto.<br />
- Não, venerável, não aconteceu nada.<br />
Suspiran<strong>do</strong> profundamente, concluí:<br />
- Só tive um longo sonho.
45 - A MONTANHA SAGRADA<br />
Partimos logo que eu desci da árvore. Seguimos em direção <strong>do</strong><br />
pôr-<strong>do</strong>-sol, passan<strong>do</strong> por inúmeros afluentes <strong>do</strong> maior de to<strong>do</strong>s os<br />
rios <strong>do</strong> continente. A uma certa altura, cruzamos o grande rio e nos<br />
dirigimos para o norte.<br />
- Agnã - disse Choam - iremos agora entrar em contato com<br />
um povo de grande cultura.<br />
- Como são denomina<strong>do</strong>s?<br />
- Karib.<br />
Após cruzarmos um rio de águas negras, encontramos o<br />
povoa<strong>do</strong> karib. Os habitantes já conheciam os Setenários e fomos<br />
recebi<strong>do</strong>s com festa. Logo aprendi a língua desse povo, que me foi<br />
muito útil em inúmeras outras viagens que fiz.<br />
Em uma das noites que lá permanecemos, sonhei com um<br />
gavião diferente, que eu nunca havia visto antes. Ele tinha o <strong>do</strong>rso<br />
par<strong>do</strong>-acinzenta<strong>do</strong>, peito vermelho e listras brancas na barriga. A sua<br />
cauda era cinzenta e listrada de preto.<br />
No meu sonho, o pássaro voava sobre a minha cabeça e depois<br />
seguia para uma montanha que se perdia nas nuvens. Suas penas<br />
iam cain<strong>do</strong> pelo caminho e eu ia pegan<strong>do</strong>-as, uma a uma.<br />
Depois de um dia inteiro sem conseguir interpretar o sonho,<br />
contei-o ao Setenário.<br />
- O pássaro com que você sonhou é um yapakanim, típico<br />
dessa região - disse o Setenário.<br />
- Parece que ele queria que eu o seguisse.<br />
- Não muito longe daqui, há uma montanha que é a mais alta<br />
da região.<br />
- Será que devo ir para lá?<br />
Antes que Choam respondesse, uma ave, idêntica àquela com<br />
que eu havia sonha<strong>do</strong>, fez um vôo rasante, passan<strong>do</strong> por sobre a<br />
minha cabeça, seguin<strong>do</strong> em frente, deixan<strong>do</strong> cair algumas penas pelo<br />
caminho.<br />
- Parece que sim - respondeu o cheroupi - já que o pássaro está<br />
voan<strong>do</strong> na direção dela.<br />
Preparei-me para a caminhada que teria que fazer sozinho, pois<br />
nenhum <strong>do</strong>s Setenários ou nativos iria me acompanhar.<br />
Antes de me despedir, Choam fez um alerta:
- Meu filho, tenha cuida<strong>do</strong>. A região é realmente perigosa e os<br />
seus valores podem estar à prova. Só quem busca a luz, consegue<br />
vencer as trevas.<br />
O cheroupi, de pedra vermelha no medalhão, que estava ao<br />
la<strong>do</strong> de Choam, pela primeira vez falou comigo, fazen<strong>do</strong> também<br />
uma advertência:<br />
- Agnã, em breve a terra irá tremer de tal forma que poderá<br />
causar uma grande destruição. Não se tratará de nenhuma magia. É<br />
um fenômeno natural que ocorre nessa região, de tempos em<br />
tempos. Não suba na montanha enquanto isso não acontecer. Porém,<br />
alguns dias depois desse sismo, haverá outro, pior ainda. <strong>Porta</strong>nto,<br />
desça da montanha antes <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> terremoto.<br />
Apesar <strong>do</strong> risco, parti confian<strong>do</strong> que alguma coisa,<br />
extremamente revela<strong>do</strong>ra, estaria me aguardan<strong>do</strong>.<br />
Seguin<strong>do</strong> na direção recomendada, após um dia de caminhada,<br />
já podia avistar, ao longe, a Ibitirama, nome que dei ao pico mais<br />
eleva<strong>do</strong>.<br />
Como a noite já estava surgin<strong>do</strong>, procurei uma árvore próxima<br />
para <strong>do</strong>rmir.<br />
Acordei durante a madrugada, sentin<strong>do</strong> a árvore balançar.<br />
Começou suavemente, contu<strong>do</strong>, logo em seguida, tremeu tanto que<br />
eu caí no chão. Escutei um grande estron<strong>do</strong> e o solo tremeu de tal<br />
forma que não consegui ficar em pé.<br />
O tremor parou, mas eu permaneci assusta<strong>do</strong>. Não <strong>do</strong>rmi mais,<br />
esperan<strong>do</strong> o dia clarear.<br />
Quan<strong>do</strong> amanheceu, segui o meu caminho e logo encontrei<br />
uma enorme pedra, que parecia ter tomba<strong>do</strong> da encosta, devi<strong>do</strong> ao<br />
abalo sísmico. De trás da imensa rocha, vinha o som estridente de<br />
um gavião.<br />
Aproximan<strong>do</strong>-me, notei que era um yapakanim e que estava<br />
com a ponta de uma de suas asas presa pela pedra.<br />
- Como você foi parar aí? Só sen<strong>do</strong> um gavião muito tolo para<br />
andar pela terra quan<strong>do</strong> ela treme.<br />
A ave olhava-me desconfiada e piava intensamente.<br />
Procurei livrá-la, mas apesar disso, ela tentava me bicar.<br />
- Escute, seu gavião sonso, se você me bicar, eu não poderei<br />
tirá-lo daí.<br />
- Isso porque você não sente a <strong>do</strong>r que eu sinto!<br />
Olhei para os la<strong>do</strong>s e perguntei:<br />
- Quem disse isso?
- A pedra é que não foi!<br />
Olhei para a rocha e depois para o gavião.<br />
- É você que está falan<strong>do</strong> comigo? - perguntei estupefato ao<br />
yapakanim.<br />
- E por acaso você acha que pedra sente <strong>do</strong>r? - perguntou a ave<br />
inconformada.<br />
- Não, mas também nunca soube que um pássaro pudesse<br />
falar!<br />
- E você não está falan<strong>do</strong> comigo?<br />
- Estou, mas...<br />
- E depois diz que eu é que sou sonso.<br />
- Não acredito. Deve ser alguma alucinação! - afirmei.<br />
- Olhe aqui, você pode ficar alucina<strong>do</strong> o quanto quiser,<br />
entretanto, sou eu quem está preso nessa pedra. Vai me tirar daqui<br />
ou não?<br />
- Eu quero puxá-lo, porém você me bica!<br />
- Está <strong>do</strong>en<strong>do</strong> muito, se você puxar desse jeito, acabarei sem a<br />
asa.<br />
- Mas a pedra é muito pesada para ser erguida.<br />
- Suprema inteligência! Se você cavar embaixo <strong>do</strong> meu corpo,<br />
ficará mais fácil me tirar daqui.<br />
- Claro! - concordei, envergonha<strong>do</strong>.<br />
Em pouco tempo o gavião estava solto, todavia, com a ponta da<br />
asa muito machucada.<br />
Usan<strong>do</strong> as ervas locais, fiz um curativo temporário para ele.<br />
- Agora terá que me carregar - disse o pássaro.<br />
- Carregá-lo? E para onde você quer ir?<br />
- Para o meu ninho, claro!<br />
- E em que lugar ele fica?<br />
- No alto da grande montanha.<br />
- É para lá que estou in<strong>do</strong>.<br />
- Ótimo, então leve-me junto que eu lhe ajudarei a chegar até o<br />
cume, pois o caminho esconde muitas armadilhas e eu conheço todas<br />
elas.<br />
- Muito bem, então vamos.<br />
- Ainda não.<br />
- Por quê?<br />
- Quan<strong>do</strong> a rocha caiu sobre mim, eu estava pronto para pegar<br />
um roe<strong>do</strong>r. Tive que passar a noite toda sem comer nada e ainda<br />
estou com fome.
Vesti um poncho que havia ganho <strong>do</strong>s karib e coloquei a ave<br />
em meu ombro esquer<strong>do</strong>. Colhi algumas raízes e pequenos frutos que<br />
ofereci a ela.<br />
- Você não quer que eu coma essa porcaria? - perguntou o<br />
pássaro, indigna<strong>do</strong>.<br />
- Qual o problema? É saudável e irá ajudá-lo a recuperar-se<br />
mais rapidamente.<br />
- Seu miolo mole, eu sou uma ave de rapina!<br />
- E eu sou vegetariano - respondi dan<strong>do</strong> risada.<br />
- Isso mesmo, você pode comer esse lixo, eu quero carne!<br />
- Olhe aqui, sua ave metida, se eu não caço para mim, não vou<br />
caçar para você. Entendeu?<br />
- Então eu vou morrer de fome?<br />
- Não, é só comer o que lhe ofereço, uma vez ou outra não lhe<br />
fará mal.<br />
O pássaro torceu o pescoço várias vezes e acabou concordan<strong>do</strong>:<br />
- Está bem, dê-me as folhas.<br />
Assim que ele pôs a erva no bico, jogou-a fora, estremecen<strong>do</strong><br />
to<strong>do</strong>.<br />
- É muito ruim! - resmungou.<br />
- Mas lhe fará bem.<br />
- Você não tem pelo menos um pó de tutano nessa sua<br />
mochila?<br />
- Seu yapakanim, eu quero continuar a minha caminhada. Se<br />
você quiser procurar o alimento que deseja, eu o deixo aqui mesmo,<br />
porém, vou partir agora, com ou sem você.<br />
- Muito bem, muito bem, você venceu! Mas só vou comer as<br />
frutinhas.<br />
Durante o caminho, a rabugenta ave ia dizen<strong>do</strong>:<br />
- Custa tanto tempo para aparecer alguém por aqui e tem que<br />
ser um sujeito que só gosta de comer mato... onde já se viu! Um<br />
gavião como eu virar vegetariano?!<br />
Pelo trajeto, encontramos uma pequena palhoça. Nela havia um<br />
ancião karib a preparar um chá, no meio de inúmeras ervas colhidas<br />
e animais engaiola<strong>do</strong>s. Quan<strong>do</strong> me viu disse:<br />
- Um guerreiro tupi por essas terras!<br />
- Ainda não sou guerreiro.<br />
- Mas logo será. A lenda diz que to<strong>do</strong> jovem que conseguir<br />
andar com um yapakanim no ombro, se tornará um guerreiro<br />
poderoso e temi<strong>do</strong>. E o que busca nesse lugar longínquo, o bravo
com o seu belo espécime de amuleto? Veio até aqui para provar o chá<br />
da felicidade?<br />
- Não, vim subir a grande montanha.<br />
- Ah! Um jovem aventureiro! Mas entre, venha provar uma<br />
bebida especial.<br />
- Que bebida é essa?<br />
- É um chá de propriedades mágicas.<br />
- E quais os seus efeitos?<br />
- Ele permite que você faça uma viagem ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s sonhos.<br />
Muitos apreciam isso, principalmente os jovens que buscam uma<br />
experiência transcendental.<br />
- Eu lhe agradeço, porém devo seguir para o alto da montanha.<br />
- Ora, experimente. Quem provar essa bebida, nunca mais<br />
deixará de tomá-la.<br />
- Mas eu não quero viajar pelo mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s sonhos.<br />
- Entretanto, ela tem outras características - insistia o velho.<br />
- Quais?<br />
- Faz você sentir-se melhor, mais bem disposto, alegre. Assim,<br />
suportará bem os problemas de altitude.<br />
- O senhor é muito generoso, todavia, não preciso disso.<br />
Quan<strong>do</strong> eu já estava sain<strong>do</strong> da oca, o velho segurou-me pelo<br />
braço e disse:<br />
- Escute, você pretende mesmo subir a grande montanha?<br />
- Sim, é para isso que eu vim.<br />
- Então tome o chá.<br />
- Por quê?<br />
- Você enfrentará perigosas ilusões que terão a finalidade de<br />
impedir a sua caminhada. A bebida permitirá que você entre no<br />
mun<strong>do</strong> da ilusão. Só assim conseguirá vencer os obstáculos que lhe<br />
aguardam.<br />
Peguei a cuia com cuida<strong>do</strong>. Estava quente e uma leve fumaça,<br />
inebriante, espalhava-se pelo ar. Meio indeciso, olhei para o pássaro.<br />
Ele torcia continuamente o pescoço.<br />
Quan<strong>do</strong> fui levar a cuia até a boca, o yapakanim bateu as asas<br />
fortemente. Uma de suas penas caiu no recipiente. Comecei a ver<br />
imagens se forman<strong>do</strong> sobre o líqui<strong>do</strong>. Vi um jovem transforman<strong>do</strong>-se<br />
em um velho, sempre com a cuia na mão.<br />
Devolvi a caneca ao ancião que, decepciona<strong>do</strong>, perguntou:<br />
- O que houve?<br />
- Agradeço-lhe a gentileza, mas eu não preciso de sua bebida.
- Mas por quê?<br />
- É uma droga alucinógena que causa dependência.<br />
- Entretanto, é a bebida de to<strong>do</strong>s os feiticeiros.<br />
- Aprendi que um verdadeiro feiticeiro não precisa disso para<br />
usar os seus poderes e conhecer o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s espíritos.<br />
Coloquei a cuia no chão e saí em seguida. O pássaro ficou<br />
inconforma<strong>do</strong> e disse:<br />
- Volte para lá!<br />
- Por quê? Pela sua atitude você parecia não querer que eu<br />
ficasse ali.<br />
- Não é disso que estou falan<strong>do</strong>. Você não viu?<br />
- Sim, claro que vi as imagens na cuia...<br />
- Não, seu cabeça mole! Estou me referin<strong>do</strong> aos animais<br />
roe<strong>do</strong>res que estavam presos nas gaiolas.<br />
- Sim, e daí?<br />
- Você poderia voltar e pedir ao gentil velho que ceda um deles<br />
para uma sadia refeição.<br />
- Não, você sabe que eu sou vegetariano - disse sorrin<strong>do</strong>.<br />
- Penumbra de inteligência! Não é para você, é para mim! -<br />
exclamou o pássaro, muito irrita<strong>do</strong>.<br />
- Então, você quer que eu volte para a palhoça <strong>do</strong> ancião?<br />
- Quero!<br />
- Está bem. É capaz que o i<strong>do</strong>so me ofereça um daqueles<br />
animaizinhos, assim eu poderia devolvê-lo para a mata. É verdade<br />
que, em troca, ele talvez queira algumas penas ou garras de gavião<br />
para a sua coleção, ou precise de um yapakanim inteiro para preparar<br />
novas magias...<br />
- Pensan<strong>do</strong> melhor, nós já nos afastamos e temos um longo<br />
caminho antes de anoitecer. Vamos em frente e, por favor, apanhe<br />
aquelas saborosas frutinhas.<br />
Logo chegamos à base da Ibitirama. Quan<strong>do</strong> íamos começar a<br />
subida, surgiu uma figura estranhíssima. Era um homem gigante,<br />
maior que os Setenários e muito pelu<strong>do</strong>.<br />
Impedin<strong>do</strong> a nossa passagem, ele disse:<br />
- Volte, você não pode seguir por esse caminho!<br />
- Mas é o la<strong>do</strong> da montanha com a subida menos íngreme.<br />
- O melhor caminho não deixa de ser o mais difícil. Volte!<br />
- Se eu tiver que dar a volta, vou perder muito tempo.<br />
- Por aqui você não pode passar - disse, taxativo.
- Procure compreender, eu tenho que ganhar tempo, pois um<br />
novo terremoto irá acontecer.<br />
- O que você busca? - perguntou.<br />
- Ainda não sei ao certo, contu<strong>do</strong>, devo subir.<br />
- Então terá que me enfrentar - afirmou o gigante, cerran<strong>do</strong> os<br />
dentes, mostran<strong>do</strong> presas semelhantes às das feras.<br />
- Não quero lutar...<br />
Não consegui completar a frase. Um tapa de <strong>do</strong>rso de mão<br />
lançou-me a grande distância. O pássaro, que estava em meu ombro,<br />
deu várias cambalhotas no ar e caiu ao meu la<strong>do</strong>.<br />
- Agnã - disse o yapakanim, sem conseguir ficar em pé.<br />
- Sim? - respondi, verifican<strong>do</strong> se os meus dentes ainda<br />
permaneciam inteiros.<br />
- Ele acabou de me convencer. Vamos procurar outro caminho,<br />
só perderemos mais <strong>do</strong>is dias.<br />
- Não, <strong>do</strong>is dias podem significar muito tempo!<br />
No meio da conversa, o gigante aproximou-se.<br />
- Fique longe! - disse a ele.<br />
- Vá embora! - insistiu.<br />
- Olha, eu não quero machucá-lo... - Comecei a falar quan<strong>do</strong> o<br />
homenzarrão, não toman<strong>do</strong> conhecimento da minha advertência,<br />
ergueu-me com um <strong>do</strong>s braços e lançou-me a grande distância.<br />
Com dificuldades, levantei novamente.<br />
O pássaro aproximou-se de mim e disse:<br />
- Agnã, ainda não posso voar, mas eu vou correr, acompanheme<br />
se puder.<br />
Quan<strong>do</strong> a ave ia embora, sorrateiramente, arranquei-lhe uma<br />
das penas da cauda.<br />
Após um estron<strong>do</strong>so grito, ela voltou-se para mim e disse<br />
nervosa:<br />
- Agora eu vou ficar, só para ver você sen<strong>do</strong> esmaga<strong>do</strong> como<br />
um inseto!<br />
O gigante chegou mais perto.<br />
- Nem mais um passo! - disse, apontan<strong>do</strong>-lhe a pena.<br />
- E o que o anão vai fazer com essa pena? - perguntou o<br />
enorme homem, com uma barulhenta gargalhada.<br />
- É, o que você pensa que vai fazer com a minha pena? -<br />
também perguntou o yapakanim.<br />
- Não me obrigue a usar os meus poderes - adverti o gigante,<br />
mais uma vez.
O grande homem arrancou uma árvore <strong>do</strong> chão e veio para<br />
golpear-me.<br />
A ave escondeu a cabeça entre as asas.<br />
Mentalizei os meus ierês sen<strong>do</strong> plenamente ativa<strong>do</strong>s. Senti-me<br />
possui<strong>do</strong>r de uma força incomum. Quan<strong>do</strong> o gigante desferiu o golpe,<br />
criei uma barreira etérica protetora, como um escu<strong>do</strong> invisível.<br />
No impacto, a árvore quebrou-se ao meio e nenhum arranhão<br />
me causou.<br />
O gigante não acreditou, a ave também não.<br />
- Vou esmagá-lo como a um verme! - insistiu furioso o meu<br />
atacante.<br />
Com a ativação <strong>do</strong>s meus chacras, a minha clarividência<br />
aumentou. Observan<strong>do</strong> o grande homem, reparei que ele era<br />
destituí<strong>do</strong> de corpo etéreo e astral. Percebi então que não se tratava<br />
de um homem encarna<strong>do</strong> e nem mesmo de um espírito<br />
materializa<strong>do</strong>. Era somente uma forma-pensamento, criada para me<br />
assustar. Seus efeitos eram reais apenas porque eu acreditava que<br />
fossem verdadeiros.<br />
- Você não pode causar mal nenhum - respondi convicto.<br />
- Então, veremos!<br />
Quan<strong>do</strong> ele se aproximou, eu balancei a pena no ar e disse:<br />
- Com as forças da luz, desfaço o que foi feito e o transformo<br />
em uma miniatura <strong>do</strong> que foi cria<strong>do</strong>!<br />
Uma onda colorida envolveu o gigante que, urran<strong>do</strong>, foi<br />
encolhen<strong>do</strong> pouco a pouco, até ficar <strong>do</strong> tamanho de um palmo de<br />
mão.<br />
O gavião disse satisfeito:<br />
- Que ótimo, agora eu tenho almoço!<br />
Porém, quan<strong>do</strong> ele pulou em cima <strong>do</strong> minúsculo ser, ele<br />
desapareceu.<br />
- Onde ele está? Para onde foi? - perguntou a ave.<br />
- Simplesmente sumiu - respondi.<br />
- Mas como? Justamente agora que eu ia deixá-lo em<br />
pedacinhos e devorá-lo!<br />
- Não poderia fazer isso: ele era apenas uma criação mental.<br />
- Se era uma fantasia, por que então usou a minha pena?<br />
- Porque você também é uma ilusão. Combati fogo com fogo.<br />
- Ah é! Pois então fique saben<strong>do</strong> que a imaginária pena que<br />
você ainda está seguran<strong>do</strong>, está fazen<strong>do</strong> falta na minha cauda e que
essa ilusão cheia de penas que você está ven<strong>do</strong>, está sentin<strong>do</strong> <strong>do</strong>r no<br />
traseiro. E já que sou uma fantasia, vou desaparecer. Está bem?<br />
- Calma, não se ofenda.<br />
Coloquei a ave carinhosamente em meu ombro e disse:<br />
- Precisamos prosseguir.<br />
- Bom, depois de eu ter feito o gigante desaparecer e você<br />
reconhecer o meu feito, sigamos em frente - disse o pássaro, sem o<br />
mínimo de humildade.<br />
O yapakanim foi mostran<strong>do</strong> o caminho mais seguro pela<br />
encosta e a uma certa altura, encontramos um filete de água<br />
brotan<strong>do</strong> de uma rocha.<br />
- Paremos para beber - disse o meu guia.<br />
Quan<strong>do</strong> me ajoelhei para que o gavião pudesse matar a sua<br />
sede, usei a minha clarividência e pude ver que a água tinha uma cor<br />
escura.<br />
- Espere! - gritei, antes que a ave mergulhasse o bico na água.<br />
- O que foi?<br />
- Dê-me uma pena.<br />
- Não, senhor, de jeito nenhum! Se continuar assim, além de<br />
virar um vegetariano, vou acabar me tornan<strong>do</strong> o primeiro gavião<br />
pela<strong>do</strong> dessa região. Lá em cima faz muito frio, sabia?<br />
- Quer que eu arranque?<br />
- Está bem, não precisa ser mais convincente.<br />
O pássaro bateu as asas e uma pena soltou-se.<br />
Mergulhei-a na água e ela imediatamente perdeu a sua<br />
coloração.<br />
- Está ven<strong>do</strong>? - perguntei.<br />
- Sim, a pena desbotou.<br />
- Não é uma água comum, se a ingerirmos poderemos morrer.<br />
O pássaro engoliu em seco e disse:<br />
- Continuemos em frente, há outras fontes mais seguras.<br />
Após algum tempo de subida, começou a ventar muito forte e o<br />
gavião falou:<br />
- Um momento!<br />
- O que foi?<br />
- Estamos em um lugar da montanha, onde habitam os<br />
espíritos sem mun<strong>do</strong>.<br />
- Como assim? - perguntei.<br />
- São espíritos que não puderam permanecer em suas tribos,<br />
mas que também não podem alcançar a região <strong>do</strong>s espíritos
escolhi<strong>do</strong>s, onde se vive em paz. Não são merece<strong>do</strong>res disso, então,<br />
ficam nesse lugar, vagan<strong>do</strong> e perturban<strong>do</strong> os vivos que por aqui<br />
passam. Alguns aventureiros, de tão aterroriza<strong>do</strong>s, pulam dessa<br />
altura, morren<strong>do</strong> na queda.<br />
Não demorou muito e uma legião de espíritos surgiu por to<strong>do</strong>s<br />
os la<strong>do</strong>s. O aspecto da maioria deles era horroroso e queriam com<br />
isso me amedrontar.<br />
O pássaro, notan<strong>do</strong> que eu iria ativar os meus centros<br />
energéticos, advertiu-me:<br />
- Não faça isso.<br />
- Por quê?<br />
- Irá assustá-los mais <strong>do</strong> que eles querem atemorizá-lo. Passe<br />
sem me<strong>do</strong> que nada vai acontecer.<br />
Continuei a caminhar. O yapakanim abriu as suas asas e as<br />
entidades deram passagem.<br />
- Está ven<strong>do</strong>? Por aqui um gavião ainda tem prestígio.<br />
- E por que eles o respeitam?<br />
- Acreditam que sou o espírito de um feiticeiro.<br />
- Então, se você não é uma ilusão, é um Guipajé.<br />
- O que você quer dizer?<br />
- Que você é um pássaro-feiticeiro.
46 - O REGISTRO AKÁSICO<br />
Conforme íamos subin<strong>do</strong> a Ibitirama, o frio aumentava e a<br />
diferença de pressão atmosférica dificultava a minha respiração.<br />
O Guipajé não se conformava com a dificuldade que eu<br />
enfrentava:<br />
- Você não é um pajé?<br />
- Não.<br />
- Mas dentro das coisas que você aprendeu, não ficou saben<strong>do</strong><br />
como lidar com esses problemas?<br />
- Choam, o meu mestre, já me explicou, mas ainda tenho<br />
alguma dificuldade.<br />
- Só podia ser comigo mesmo, além de tu<strong>do</strong>, ainda tenho que<br />
ensinar um aprendiz de feiticeiro.<br />
- E o que tenho que fazer?<br />
- Ative o ierê etérico <strong>do</strong> básico, manten<strong>do</strong>-o funcionan<strong>do</strong> além<br />
<strong>do</strong> normal. Assim, haverá um aumento da circulação energética que<br />
não somente lhe dará mais força, como mais calor. Combine isso à<br />
ativação <strong>do</strong> esplênico e <strong>do</strong> cardíaco. Faça uma respiração cadenciada.<br />
Concentre-se e logo sentirá calor. Veja que eu não reclamo <strong>do</strong> frio e<br />
não é exclusivamente por causa das minhas penas.<br />
Em seguida o pássaro espirrou com tanta força que algumas<br />
penas voaram para to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s.<br />
- Acho que estou fican<strong>do</strong> velho! - observou contraria<strong>do</strong>.<br />
Chegan<strong>do</strong> a uma determinada altura, a ave man<strong>do</strong>u parar:<br />
- É aqui - disse.<br />
- Devemos parar aqui? - perguntei.<br />
- Não. Este é o lugar em que vou ficar. Você deve seguir<br />
sozinho.<br />
- O que há mais adiante?<br />
- Mais conhecimento para o jovem iniciante.<br />
Olhei para cima e as nuvens estavam próximas.<br />
- Vou vê-lo na volta? - indaguei.<br />
- Talvez antes, mas dessa montanha só volta quem realmente<br />
consegue provar sua verdadeira intenção.<br />
- Eu voltarei.<br />
- Espero que sim, pois nos últimos quatro séculos, to<strong>do</strong>s<br />
falharam.<br />
- E o que aconteceu a eles?
- Alguns enlouqueceram e a grande maioria morreu antes<br />
mesmo de conseguir descer a montanha, por frio ou por acidentes.<br />
- Quantos aqui vieram nesse perío<strong>do</strong>?<br />
- Trinta e <strong>do</strong>is pajés.<br />
Foi a minha vez de engolir em seco.<br />
- Dê-me uma de suas penas - pedi ao gavião.<br />
- Para que a quer?<br />
- Para me dar sorte. Serviria como um amuleto.<br />
- Dessa vez, não. O jovem aprendiz deve saber que, por mais<br />
que as minhas penas ou alguma outra coisa possam ter muita<br />
energia positiva que venham a ajudá-lo, nada é superior a sua<br />
própria condição espiritual. A sua essência divina está acima dessas<br />
coisas. Você pode fazer o que quiser, invocar a maior de todas as<br />
forças e produzir os mais espetaculares fenômenos, desde que,<br />
dentro de si, se manifeste a sua verdadeira luz, a luz interior. Não há<br />
sorte, o que existe é a manifestação suprema <strong>do</strong> espírito que, com<br />
sua luz, atrairá mais luz, não apenas vinda de emanações limitadas<br />
de certos objetos, mas sim, e principalmente, <strong>do</strong> próprio Universo, da<br />
fonte infinita e fecunda <strong>do</strong> Supremo Ser Cria<strong>do</strong>r. Ele que nos ama, vai<br />
dar-lhe muito mais proteção e poder, <strong>do</strong> que qualquer outra coisa<br />
que possa existir.<br />
Afastei-me silenciosamente, continuan<strong>do</strong> a subida. Atingi o<br />
ponto em que as nuvens pre<strong>do</strong>minavam. Logo pude ver duas tochas<br />
de fogo branco, ladean<strong>do</strong> a entrada de uma caverna.<br />
Aproximei-me devagar, à espera de que alguma coisa de<br />
sobrenatural acontecesse.<br />
Quan<strong>do</strong> entrei, tu<strong>do</strong> estava escuro. Absolutamente nada eu<br />
podia enxergar, nem mesmo a saída da caverna. Em seguida, escutei<br />
alguém, com uma voz cava perguntar:<br />
- O que busca, jovem aprendiz?<br />
Antes de responder, lembrei-me das lições <strong>do</strong> pássaro e<br />
também <strong>do</strong> conselho de Choam.<br />
- Meu senhor, eu sou Agnã e venho à procura de luz - respondi,<br />
humildemente.<br />
- E qual a luz que deseja?<br />
- A luz da sabe<strong>do</strong>ria para guiar o meu espírito.<br />
No mesmo instante, a caverna se iluminou e percebi um vulto<br />
atrás de mim. Virei-me sobressalta<strong>do</strong>.<br />
Era um homem vesti<strong>do</strong> de branco e encapuza<strong>do</strong> de tal forma,<br />
que eu não podia ver o seu rosto. A veste era muito parecida com a
de Tapeyara, porém, o porte físico <strong>do</strong> meu anfitrião era muito mais<br />
avantaja<strong>do</strong>.<br />
Curvou-se ligeiramente à frente, cumprimentan<strong>do</strong>-me. Fiz o<br />
mesmo.<br />
- Você acaba de passar pelo último teste, estan<strong>do</strong> qualifica<strong>do</strong><br />
para o conhecimento superior. Siga-me.<br />
Acompanhei o meu novo mestre, ansioso em saber o que iria<br />
aprender.<br />
Adentramos uma sala em que nada havia e cujas paredes eram<br />
de cristal.<br />
- Senhor, que lugar é esse? - perguntei.<br />
- É uma das câmaras <strong>do</strong> conhecimento.<br />
- Qual conhecimento?<br />
- Do passa<strong>do</strong>, presente e futuro. É a câmara <strong>do</strong> tempo.<br />
- Então, esse lugar nos permite conhecer as coisas que<br />
aconteceram e que irão acontecer? - perguntei abisma<strong>do</strong>.<br />
- Não é o local que possibilita isso, apenas reservo esse lugar<br />
para essa finalidade. Tu<strong>do</strong> irá depender de uma série de fatores que<br />
iremos conhecer. Você já sabe que os corpos <strong>do</strong> astral e mental<br />
registram todas as experiências pelas quais o espírito passa. Em<br />
razão disso, to<strong>do</strong>s os fatos que lhe dizem respeito, suas emoções e<br />
pensamentos passa<strong>do</strong>s permanecem refleti<strong>do</strong>s no campo áurico e<br />
grava<strong>do</strong>s na película áurica. Por essa razão, ela é a memória<br />
temporal <strong>do</strong> indivíduo. Em terras distantes, também é chamada,<br />
pelos grandes mestres, de registro akásico individual. <strong>Porta</strong>nto,<br />
quan<strong>do</strong> queremos ver o passa<strong>do</strong> de alguém, basta usar a<br />
clarividência, visualizar a película áurica e captar as imagens da<br />
época que nos interessa e que permanecem ali intatas.<br />
- Então, é por isso que alguns pajés conseguem falar com<br />
detalhes, sobre o passa<strong>do</strong> de uma pessoa?<br />
- Sim, mesmo que não estejam conscientemente observan<strong>do</strong> a<br />
película, conseguem ver os acontecimentos sem maiores dificuldades.<br />
Embora a maioria não conheça o processo, ou seja, a forma como<br />
ocorre a percepção <strong>do</strong>s fatos passa<strong>do</strong>s, eles o fazem empiricamente.<br />
Parece complica<strong>do</strong>, mas na verdade é bem simples. Ten<strong>do</strong> o indivíduo<br />
condições paranormais, basta usar a vontade. Não se esqueça de que<br />
estamos tratan<strong>do</strong> das experiências temporais referentes ao espírito.<br />
O seu pensamento é como os braços e as pernas <strong>do</strong> corpo físico. Para<br />
as coisas se realizarem no plano espiritual, é preciso que você deseje<br />
que aconteçam. Assim, para você saber alguma coisa de alguma
determinada época, expresse sua vontade pelo pensamento<br />
disciplina<strong>do</strong>, ou seja, com uma razoável capacidade de concentração.<br />
Nos planos astral e mental, a vontade <strong>do</strong> espírito age com muitíssimo<br />
mais intensidade e eficácia. A consciência desse processo permite um<br />
melhor aproveitamento <strong>do</strong>s recursos disponíveis. Todavia, há regras<br />
que são de bom alvitre seguir. Um sensitivo consciencioso, jamais<br />
examinará o passa<strong>do</strong> de alguém por mera curiosidade. Ele deverá<br />
usar os seus poderes paranormais, sempre para um fim justo. Devem<br />
ser usa<strong>do</strong>s com sabe<strong>do</strong>ria. Outra coisa importante, é ter em mente<br />
que nem sempre se deve dizer tu<strong>do</strong> o que foi capta<strong>do</strong> para a pessoa<br />
que está sen<strong>do</strong> observada. É preciso ser criterioso, pois nem to<strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> está em condições emocionais de saber o que de fato ocorreu<br />
consigo no passa<strong>do</strong>. Ao contrário de se fazer um bem, pode-se causar<br />
um grande mal.<br />
- E como discernir isso?<br />
- Tu<strong>do</strong> dependerá da situação evolutiva <strong>do</strong> indivíduo. Quanto<br />
mais esclareci<strong>do</strong> for, mais fácil será o seu entendimento e<br />
compreensão de sua própria história, sem que haja traumas que o<br />
perturbem.<br />
- E para saber o passa<strong>do</strong> de uma tribo inteira? Qual o melhor<br />
procedimento?<br />
- Vamos des<strong>do</strong>brar para você entender melhor.<br />
Seguin<strong>do</strong> a determinação <strong>do</strong> mestre, saí <strong>do</strong> meu corpo físico.<br />
- Livre, temporariamente, <strong>do</strong> corpo material, teremos mais<br />
facilidade de examinar o que você precisa estudar - disse o mago.<br />
- O que faremos agora?<br />
- Vamos subir.<br />
Em questão de minutos, deixamos a Ibitirama para trás. A<br />
enorme montanha foi tornan<strong>do</strong>-se pequena à medida que nos<br />
afastávamos.<br />
Logo vi a forma esférica <strong>do</strong> planeta, seus continentes e seus<br />
oceanos. Era lindíssimo.<br />
A uma certa altura, nós paramos.<br />
- Agnã, observe que o mun<strong>do</strong> possui um campo energético<br />
espiritual. Ele é forma<strong>do</strong> pelo conjunto de todas as auras.<br />
- É como se o planeta possuísse uma grande aura.<br />
- Exatamente, e da mesma forma que na aura individual, há<br />
uma película que limita o campo energético <strong>do</strong> planeta. Nela ficam<br />
grava<strong>do</strong>s os acontecimentos da história da humanidade. Ela também
é conhecida como o registro temporal coletivo, ou, na denominação<br />
de outras tradições esotéricas, o registro akásico propriamente dito.<br />
- Quer dizer que, para saber o que aconteceu com um povo, em<br />
uma determinada época, bastaria des<strong>do</strong>brar e buscar o contato com o<br />
registro temporal coletivo, referente à película áurica planetária onde<br />
as impregnações desse povo se encontram gravadas?<br />
- Sim, mas não é imprescindível que se des<strong>do</strong>bre e nem é<br />
primordial que, des<strong>do</strong>bra<strong>do</strong>, o sensitivo tenha que se posicionar sobre<br />
o território ocupa<strong>do</strong> pelo povo, cuja história queira estudar. O contato<br />
com os anais akásicos se dá por simples sintonização. Você pode<br />
estar <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> planeta e não sair de lá e, mesmo assim, será<br />
possível verificar os antecedentes históricos <strong>do</strong> seu povo que se<br />
encontra distante. A explicação para essa magia é muito simples.<br />
To<strong>do</strong>s nós, de uma forma ou de outra, fazemos parte <strong>do</strong> mesmo<br />
processo evolutivo nesse mun<strong>do</strong>. Nossa história não é um caso<br />
isola<strong>do</strong>, e sim integrada em uma manifestação coletiva. Só o fato de<br />
você ter si<strong>do</strong> gera<strong>do</strong> por duas pessoas, já mostra que a sua<br />
individualidade está, obrigatoriamente, ligada à história de outros<br />
indivíduos, os quais também estão liga<strong>do</strong>s a outros tantos seres.<br />
Quan<strong>do</strong> nós transcendemos <strong>do</strong> “eu sou” para o “nós somos”,<br />
conseguimos a interligação planetária e o contato com a consciência<br />
cósmica, que tu<strong>do</strong> conhece. Aproveitan<strong>do</strong> o nosso esta<strong>do</strong><br />
dimensional, vamos atravessar o oceano e conhecer um outro<br />
continente.<br />
A nossa viagem foi hiper-rápida. Quan<strong>do</strong> paramos, o meu<br />
preceptor disse:<br />
- Essas terras pertencem a uma nação chamada Egito. Observe<br />
a radiação luminosa e colorida que parte dessa região. Integre-se a<br />
essa energia, desejan<strong>do</strong> que o tempo volte para trás, dia-a-dia, mês<br />
a mês, século a século.<br />
Não tar<strong>do</strong>u e logo vi um túnel luminoso. Senti como se<br />
estivesse caminhan<strong>do</strong> por ele. Dessa forma, comecei a minha viagem<br />
no tempo, passan<strong>do</strong> rapidamente pelos acontecimentos pretéritos.<br />
Em um da<strong>do</strong> momento, o mago pediu que eu parasse, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Cada um tem uma experiência própria quan<strong>do</strong> faz esse tipo de<br />
contato com o registro akásico. Alguns têm a mesma sensação pela<br />
qual você acabou de passar, outros se vêem ultrapassan<strong>do</strong> uma porta<br />
de luz, outros ainda sentem que estão cain<strong>do</strong> em um abismo sem<br />
fim. Estamos observan<strong>do</strong> um perío<strong>do</strong> anterior a nossa época - há três<br />
milênios atrás, nesta mesma região. Nesse perío<strong>do</strong>, o povo egípcio já
formava uma civilização muito adiantada. Como você está ven<strong>do</strong>,<br />
eles já tinham um calendário, um sistema de escrita, o <strong>do</strong>mínio da<br />
tecelagem, um avança<strong>do</strong> conhecimento agrário e astronômico e um<br />
poderoso saber das ciências ocultas.<br />
Imagens incríveis surgiram na minha frente, como a construção<br />
das grandes pirâmides de Gizé.<br />
- Como eles conseguiram tanto desenvolvimento? - perguntei.<br />
- Herdaram a grande parte <strong>do</strong> seu saber <strong>do</strong> maior de to<strong>do</strong>s os<br />
povos, cuja raça foi extinta há milênios atrás, quan<strong>do</strong> suas terras<br />
foram engolidas pelo fogo e pelas águas <strong>do</strong> mar. Os sobreviventes<br />
espalharam-se pelo mun<strong>do</strong> e uma boa parte acabou vin<strong>do</strong> para essa<br />
região. O conhecimento oculto, face ao enorme poder que confere ao<br />
seu possui<strong>do</strong>r, ficou restrito apenas aos sacer<strong>do</strong>tes e aos chama<strong>do</strong>s<br />
faraós, dirigentes políticos e religiosos. O perío<strong>do</strong> que estamos<br />
observan<strong>do</strong> refere-se à quarta dinastia <strong>do</strong>s faraós Quéops, Quéfren e<br />
Miquerinos. O antigo império não era militarista, porque não havia tal<br />
necessidade, uma vez que sua superioridade espiritual era<br />
incontestável. Assim permaneceram por quase mil anos, só ocorren<strong>do</strong><br />
uma desestabilização no fim <strong>do</strong> império, por desvirtuamento <strong>do</strong><br />
eleva<strong>do</strong> saber esotérico. Pelo momento é o bastante, retornemos aos<br />
nossos corpos.<br />
De volta à câmara <strong>do</strong> tempo, o mago completou:<br />
- A escolha das coisas a serem vistas e a velocidade com que<br />
são apresentadas dependem exclusivamente de sua vontade, não se<br />
esqueça. Agora, deite-se, amanhã continuaremos.<br />
O mago saiu em seguida da sala. Durante to<strong>do</strong> o tempo não<br />
pude ver o seu rosto, encoberto pelo capuz. Acomodei-me no chão.<br />
Estava muito cansa<strong>do</strong> pelo dia longo que tivera.<br />
Mesmo com os olhos fecha<strong>do</strong>s, continuava a ver as cenas<br />
extraordinárias que tinha assisti<strong>do</strong>.<br />
A minha mente não parava de funcionar, quan<strong>do</strong> o meu<br />
espírito, durante o repouso físico, foi acorda<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> espiritual.
47 - OS SEMEA<strong>DO</strong>RES <strong>DO</strong> ESPAÇO<br />
- Vamos seu preguiçoso! Saia logo desse corpo!<br />
- Quem está falan<strong>do</strong>? - perguntei, assim que passei para o<br />
plano astral.<br />
- Sou eu, aqui no teto.<br />
Olhei para cima e lá estava o Guipajé flutuan<strong>do</strong>.<br />
- O que você está fazen<strong>do</strong> aí? - indaguei.<br />
- Exercitan<strong>do</strong> a paciência.<br />
- Até durante o meu sono você aparece?<br />
- O espírito nunca <strong>do</strong>rme, mesmo sen<strong>do</strong> um pássaro. Venha, há<br />
coisas a serem vistas.<br />
Fui voan<strong>do</strong>, logo atrás dele. Em pouco tempo, alcançamos uma<br />
elevada altitude, bem distante <strong>do</strong> planeta que, meio escuro, meio<br />
ilumina<strong>do</strong>, girava lentamente. Permanecemos nesse lugar até que eu<br />
perguntei:<br />
- Guipajé, o que estamos fazen<strong>do</strong> aqui?<br />
- Esperan<strong>do</strong>.<br />
- O que estamos esperan<strong>do</strong>?<br />
- Eles chegarem.<br />
- Eles, quem?<br />
- Os visitantes <strong>do</strong> Universo.<br />
Resolvi ficar cala<strong>do</strong> e aguardar os acontecimentos, antes que a<br />
ave perdesse a paciência.<br />
Não demorou muito e um ponto cintilante começou a surgir no<br />
meio das estrelas. Destacava-se pela velocidade com que se<br />
distanciava <strong>do</strong>s luminares <strong>do</strong> espaço e pelas rápidas manobras<br />
radicais que realizava.<br />
Em breve a luz se aproximou e foi toman<strong>do</strong> uma forma mais<br />
definida. Era muito parecida com uma cabaça gigantesca, dez vezes<br />
maior que a minha aldeia, com a parte mais estreita voltada para<br />
baixo.<br />
Dos la<strong>do</strong>s, refletia-se continuamente um conjunto de luzes, nas<br />
cores azul, amarela, verde, violeta e outras tantas, não identificáveis<br />
em nosso mun<strong>do</strong>.<br />
Estacionou a certa altitude e de dentro dela partiram outras<br />
sete formas, também coloridas, mas bem menores que desceram em<br />
diferentes partes da superfície terrestre.<br />
Acabei não agüentan<strong>do</strong> e perguntei:<br />
- O que são essas coisas?
- São naves espaciais, veículos que servem de condução para<br />
seres de outros mun<strong>do</strong>s, muitíssimo distantes daqui. A maior é a<br />
nave-mãe, que é interplanetária, e as de menor porte são naves<br />
auxiliares, para curta distância.<br />
- Como conseguem se deslocar por esses meios e tão<br />
rapidamente?<br />
- Eles possuem um conhecimento avançadíssimo e realizam<br />
muitas coisas inimagináveis que o homem atual só atingirá após<br />
alguns milênios.<br />
- E o que eles vieram fazer?<br />
- Diversas coisas. Normalmente eles vêm acompanhar, mais de<br />
perto, o desenvolvimento <strong>do</strong>s homens, ou para estudá-los ou para<br />
ajudá-los a progredir. Também é comum visitarem seres originários<br />
de sua própria raça que aqui permaneceram.<br />
- Essas visitas são freqüentes?<br />
- Sim, por vezes passam um grande perío<strong>do</strong> ausentes, mas<br />
logo retomam o contato.<br />
- Há muitos deles?<br />
- Sim; e procedem de lugares diferentes <strong>do</strong> Universo.<br />
- E por que alguns deles permanecem nesse planeta?<br />
- Talvez fosse melhor examinarmos o registro temporal<br />
coletivo. As imagens vão facilitar-lhe o entendimento.<br />
Em contato com o registro akásico, voltamos no tempo até os<br />
primeiros momentos que antecederam a origem da vida.<br />
O mun<strong>do</strong> era vazio de pessoas, somente as turbulências<br />
geológicas e climáticas pre<strong>do</strong>minavam. O aspecto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> era<br />
completamente diferente e os raios <strong>do</strong> <strong>Sol</strong> ainda começavam a<br />
transpassar as nuvens ácidas e espessas que enegreciam o dia. Foi,<br />
talvez, o primeiro momento em que foram separadas a luz das<br />
trevas.<br />
- Guipajé, se os anais akásicos formam-se pelo conjunto de<br />
auras, como é possível ver um passa<strong>do</strong> em que não existia o ser<br />
vivo?<br />
- Em princípio é necessário que você compreenda o que nós<br />
chamamos de vida - a luz eterna <strong>do</strong> espírito divino - que está em<br />
toda a parte e em tu<strong>do</strong> penetra. Todas as coisas criadas pelo<br />
Supremo Ser contêm vida. Mesmo nas coisas em que você não possa<br />
identificá-la, existe vida latente. As mudanças estruturais <strong>do</strong> mais<br />
bruto mineral não poderiam ocorrer se o princípio ativo, o ser divino,<br />
não estivesse ali, manifestan<strong>do</strong>-se por obra e ordem <strong>do</strong> Grande
Cria<strong>do</strong>r. Você nasce, cresce, desenvolve-se e morre em algumas<br />
décadas. Os minerais precisam de milhares de anos para isso. Por<br />
essa razão, as pessoas ignoram que eles possam viver; entretanto, o<br />
espírito está ali, dan<strong>do</strong>-lhes forma adequada, diferencian<strong>do</strong>-os de<br />
outras espécies. Em razão disso, também emitem luz, a luz da<br />
manifestação cria<strong>do</strong>ra, a aura de suas vidas.<br />
Depois desse oportuno esclarecimento, passei a observar a<br />
seqüência de imagens que se seguiam com incrível rapidez, mas<br />
perfeitamente compreensíveis. O Guipajé ia narran<strong>do</strong>:<br />
- Vin<strong>do</strong> <strong>do</strong>s confins <strong>do</strong> Universo, uma esfera de grandes<br />
proporções aproximou-se da Terra. Ao entrar em sua órbita veio a<br />
explodir. Inúmeros fragmentos, ricos em aminoáci<strong>do</strong>s - elementos<br />
essenciais à vida propriamente dita -, espalharam-se por todas as<br />
partes <strong>do</strong> planeta, cain<strong>do</strong> incandescentes na superfície ainda instável.<br />
Sob a ação das descargas <strong>do</strong>s raios e da radiação ultravioleta <strong>do</strong> <strong>Sol</strong>,<br />
os constituintes básicos da vida foram interagin<strong>do</strong> nos oceanos para<br />
gerar as primeiras formas de vida, isso há seiscentos milhões de anos<br />
atrás. Esses primeiros seres vivos - <strong>do</strong>s quais descenderam os<br />
animais marinhos - não passavam de microorganismos, mas eram<br />
capazes de realizar a fotossíntese. Deram origem aos sistemas<br />
bioquímicos, possibilitan<strong>do</strong> a formação da atmosfera, tornan<strong>do</strong>-a rica<br />
em oxigênio. As combinações gasosas geraram a camada de ozônio,<br />
o filtro natural <strong>do</strong>s raios ultravioletas, forman<strong>do</strong> o escu<strong>do</strong> protetor<br />
planetário, de vital importância para que a vida pudesse expandir-se<br />
à terra firme. Como você pode ver, o que permitiu o surgimento das<br />
primeiras formas orgânicas veio <strong>do</strong> espaço, por intervenção <strong>do</strong>s seres<br />
dissemina<strong>do</strong>res da vida pelo cosmo. Continuan<strong>do</strong> a ver as imagens, o<br />
pássaro-feiticeiro explicava:<br />
- Quatrocentos milhões de anos atrás, após to<strong>do</strong> o processo<br />
inicial, uma vegetação rala foi o primeiro sinal de vida na Terra. O<br />
reino vegetal desenvolveu-se, surgin<strong>do</strong> as florestas gigantes; os<br />
animais terrestres logo começaram a desenvolver-se, oriun<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s<br />
seres marinhos primitivos. Enormes e estranhas criaturas surgiram e<br />
desapareceram, dan<strong>do</strong> lugar a formas de vida mais aprimoradas.<br />
Tu<strong>do</strong> isso, em meio a inúmeras variações climáticas e geológicas,<br />
concomitantes com os violentos choques de certos corpos celestes,<br />
na superfície terrestre. Seres mais adianta<strong>do</strong>s, em seus veículos<br />
estelares, continuamente acompanhavam a evolução da vida na<br />
Terra, como jardineiros <strong>do</strong> espaço. As primeiras criaturas, que<br />
andaram erguidas e que foram os ancestrais <strong>do</strong> homem, apareceram
há mais de dez milhões de anos atrás, em quase mais nada<br />
distinguin<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>s outros animais, no seu comportamento. O<br />
homem, como hoje é conheci<strong>do</strong>, começou a surgir apenas há cem mil<br />
anos, mas o seu admirável desenvolvimento não poderia ser<br />
consegui<strong>do</strong>, sem a contínua intervenção das inteligências superiores<br />
<strong>do</strong> Universo.<br />
Ouvin<strong>do</strong> o Guipajé e ven<strong>do</strong> as imagens desenrolan<strong>do</strong>-se na<br />
minha frente, sentia-me verdadeiramente abençoa<strong>do</strong> pelas<br />
maravilhosas revelações, mas, para mim, não causavam tanta<br />
estranheza, pois pareciam-me muito familiares.<br />
O gavião prosseguiu:<br />
- O mais importante fato desencadeante da evolução da espécie<br />
humana ocorreu há mais de setecentos mil anos atrás. Veja as<br />
imagens.
48 - OS DEUSES QUE CAÍRAM CÉU<br />
E o Guipajé explicou:<br />
- Um planeta, da órbita de uma estrela dupla, milhares de anos<br />
distante daqui, passava por um perío<strong>do</strong> importante de mudanças,<br />
fundamentadas na evolução espiritual. Embora seus habitantes, de<br />
aspecto físico semelhante aos homens da Terra, possuíssem<br />
elevadíssimo conhecimento e grande poder, havia entre eles alguns<br />
díspares em termos morais e que não tinham mais condições de ali<br />
continuar a viver. As autoridades responsáveis pelo orbe decidiram<br />
deportá-los para esse planeta, onde, sob condições extremamente<br />
adversas, teriam que sobreviver em companhia <strong>do</strong>s primitivos seres<br />
humanos e, desta forma, purgar os seus erros para poder retornar ao<br />
adianta<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que não valorizaram. Seria a nova oportunidade de<br />
mudança interior, pelo suor <strong>do</strong> rosto com o trabalho árduo <strong>do</strong> dia-adia.<br />
Deveriam aban<strong>do</strong>nar o orgulho, a prepotência, a vaidade e o<br />
egoísmo, à medida que auxiliavam os homens ignorantes a progredir.<br />
Os exila<strong>do</strong>s se tornariam os anjos vela<strong>do</strong>res que permaneceriam<br />
nesse planeta. Dessa forma, astronaves cruzaram o cosmo trazen<strong>do</strong><br />
levas de criaturas que passaram a viver e reencarnar nessas terras,<br />
lamentan<strong>do</strong> o paraíso perdi<strong>do</strong> nas estrelas <strong>do</strong> firmamento.<br />
- E o que aconteceu a eles? - perguntei ansioso, quan<strong>do</strong> as<br />
imagens deram uma parada.<br />
- Veja por si mesmo.<br />
Seqüências espetaculares seguiram-se. O primeiro grupo de<br />
seres extraterrenos veio por uma nave flamejante. Eram duzentos<br />
homens de grandes proporções, quase gigantes, de porte físico<br />
semelhante aos Setenários. Suas vestes brilhavam como o próprio<br />
<strong>Sol</strong>.<br />
- Os vela<strong>do</strong>res - começou a explicar o Guipajé - embora<br />
criminosos invetera<strong>do</strong>s em seu mun<strong>do</strong> distante, proferiram um<br />
juramento de regeneração, comprometen<strong>do</strong>-se a também ajudar o<br />
desenvolvimento <strong>do</strong>s povos da Terra. O local onde fizeram essa<br />
promessa passou a ser conheci<strong>do</strong> como o Monte Hermon, que na<br />
língua deles significava o Monte <strong>do</strong> Juramento. Os primitivos ficaram<br />
tão impressiona<strong>do</strong>s com a nave e com o aspecto irradiante <strong>do</strong>s<br />
exila<strong>do</strong>s, que passaram a considerá-los “Filhos <strong>do</strong> Fogo”, tratan<strong>do</strong>-os<br />
como deuses. Outros desembarcaram em um continente chama<strong>do</strong><br />
Lemúria, habita<strong>do</strong> por homens de pele escura, denomina<strong>do</strong>s de rutas.<br />
Mais naves pousaram em diferentes cantos da Terra. Com o
extraordinário conhecimento acerca de todas as ciências e mistérios,<br />
dariam um vigoroso impulso ao progresso da humanidade. Os deuses<br />
que caíram <strong>do</strong> céu não eram habitua<strong>do</strong>s às necessidades comuns <strong>do</strong><br />
homem terreno e tiveram muita dificuldade para se adaptar ao novo<br />
ambiente. Mesmo assim tinham um perío<strong>do</strong> de vida muito longo,<br />
sen<strong>do</strong> que alguns chegaram a viver por quase mil anos. Por essa<br />
razão, foram considera<strong>do</strong>s imortais pelos terráqueos.<br />
Depois de uma pausa, o Guipajé continuou:<br />
- Conviven<strong>do</strong> com as mulheres da Terra, geraram filhos muito<br />
pareci<strong>do</strong>s consigo mesmos, porém, o desenvolvimento mais completo<br />
<strong>do</strong> organismo e <strong>do</strong> físico humano, só foi possível, na maioria <strong>do</strong><br />
planeta, com o passar <strong>do</strong>s milênios. As contínuas mudanças<br />
climáticas e geológicas que iam alteran<strong>do</strong> o aspecto <strong>do</strong> orbe terrestre,<br />
também colaboravam para o surgimento de uma raça humana mais<br />
aprimorada. Em muitos lugares porém, permaneciam habita<strong>do</strong>s por<br />
homens ainda muito primitivos. A grande maioria <strong>do</strong>s deuses cumpriu<br />
fielmente a sua pena e, após alguns milênios, puderam retornar ao<br />
planeta de origem. Outros, entrementes, cederam aos mesmos erros<br />
que os levaram ao desterro. Isso obrigou as hostes estelares a<br />
intervir algumas vezes na história da Terra. Em duas cidades, o<br />
conhecimento foi tão desvirtua<strong>do</strong>, que, face ao grande risco que<br />
poderia advir para a humanidade, não restou outra alternativa aos<br />
responsáveis pelos degreda<strong>do</strong>s, senão destruí-las por completo, em<br />
um piscar de olhos. Apenas um exila<strong>do</strong>, de nome Ló, foi poupa<strong>do</strong>,<br />
juntamente com as suas duas filhas. Entretanto, as providenciais<br />
ações <strong>do</strong>s seres guardiões <strong>do</strong> espaço não puderam evitar que o<br />
sagra<strong>do</strong> saber fosse usa<strong>do</strong> indignamente, o que deu origem ao la<strong>do</strong><br />
negro da força, denomina<strong>do</strong> de magia negra. O objetivo básico deste<br />
segmento negativo era o emprego materialista das ciências ocultas,<br />
sempre para a obtenção exclusiva <strong>do</strong> poder, da riqueza, das<br />
satisfações imediatistas, causan<strong>do</strong> grande mal a muitas pessoas. A<br />
magia branca, ao contrário, representava o emprego correto <strong>do</strong><br />
ensinamento esotérico, jamais usada para fins egoísticos. Os mestres<br />
da força branca alcançavam o poder naturalmente, muito mais como<br />
líderes espirituais, <strong>do</strong> que como meros governantes. Qualquer um <strong>do</strong>s<br />
la<strong>do</strong>s da força era transmiti<strong>do</strong> de forma reservada a seus segui<strong>do</strong>res,<br />
escolhi<strong>do</strong>s a de<strong>do</strong>, submeti<strong>do</strong>s a uma iniciação oculta e rigorosa.<br />
Ainda hoje a dualidade existe e por muito tempo assim permanecerá,<br />
tanto a nível <strong>do</strong>s encarna<strong>do</strong>s como a nível <strong>do</strong>s desencarna<strong>do</strong>s. O la<strong>do</strong><br />
negro é muito mais tenta<strong>do</strong>r, pois nada exige e oferece tu<strong>do</strong> o que
pertence ao plano material para o inicia<strong>do</strong>. Entretanto, as suas<br />
propostas são ilusórias, imediatistas, passageiras e acabam por levar<br />
o incauto à desgraça moral e ao infortúnio espiritual. Já a força<br />
branca, muito exige e só uma coisa oferece aos que a buscam: a luz.<br />
Porém, o suficiente para que de nada mais o inicia<strong>do</strong> necessite, e, por<br />
isso, sempre é vitoriosa sobre a outra.<br />
- E quais são as condições para obtê-la? - perguntei.<br />
- Desejar o bem e fazer o bem. Parece simples, mas não é. O<br />
aprendiz que se dispuser a seguir esse caminho, será submeti<strong>do</strong> a<br />
inúmeras provas que testarão a sua verdadeira aspiração e também<br />
as suas reais conquistas. Para superá-las, deverá ter força de<br />
vontade, fé, capacidade de concentração, muita disciplina e<br />
paciência.<br />
As imagens começaram a perder a sua nitidez.<br />
- O que está acontecen<strong>do</strong>? - indaguei.<br />
- Está na hora de voltarmos.<br />
- Mas tenho muitas perguntas a fazer...<br />
O Guipajé, desaparecen<strong>do</strong> lentamente, disse uma única<br />
palavra:<br />
- Paciência...
49 - VEN<strong>DO</strong> O FUTURO<br />
Comecei a cair lentamente, deixan<strong>do</strong> as estrelas para trás.<br />
Quan<strong>do</strong> despertei, vi que o mago estava ao meu la<strong>do</strong>, ainda com a<br />
sua cabeça encoberta pelo capuz.<br />
- Agnã, está pronto para continuarmos?<br />
Levantei-me e respondi:<br />
- Sim.<br />
- Hoje nós vamos conhecer os segre<strong>do</strong>s <strong>do</strong> futuro.<br />
O Mestre <strong>do</strong> Tempo fez uma pequena pausa e continuou:<br />
- Você já sabe que, antes de um indivíduo reencarnar, é<br />
elabora<strong>do</strong> um completo e detalha<strong>do</strong> plano de vida que diz respeito a<br />
todas as experiências necessárias para o seu aprendiza<strong>do</strong> evolutivo,<br />
inclusive o seu karma. Também aprendeu que, embora haja inúmeras<br />
variáveis nesse plano, elas podem ser previsíveis. O fato de o plano<br />
de vida ser registra<strong>do</strong> no corpo mental muitas vezes causa a<br />
impressão de que certas coisas que acontecem já tenham ocorri<strong>do</strong><br />
anteriormente, não se tratan<strong>do</strong> de coisas tão estranhas. Uma vez<br />
elabora<strong>do</strong> o plano reencarnatório, ele estará permanentemente<br />
grava<strong>do</strong> no corpo mental e automaticamente refleti<strong>do</strong> na aura <strong>do</strong><br />
indivíduo.<br />
- Estou entenden<strong>do</strong>: pela aura pode-se ver as probabilidades<br />
futuras <strong>do</strong> ser, em razão <strong>do</strong> plano de vida - observei.<br />
- Sim, e todas as alterações e variáveis que possam ocorrer<br />
com o ser encarna<strong>do</strong>, por menor que sejam, implicam no seu plano<br />
que é imediatamente reajusta<strong>do</strong> às novas condições. É importante<br />
salientar também que o plano reencarnatório é prepara<strong>do</strong>, levan<strong>do</strong>-se<br />
em consideração o relacionamento <strong>do</strong> indivíduo com as outras<br />
pessoas: familiares, amigos ou desafetos.<br />
- Isso quer dizer que o meu plano estará liga<strong>do</strong> ao de outras<br />
pessoas? - perguntei.<br />
- Mas é claro!<br />
- Entretanto, não seria muito complexo tu<strong>do</strong> isso?<br />
- Você não pode querer que coisas tão importantes sejam tão<br />
simples!<br />
- Então também é possível conhecer o provável futuro relativo a<br />
um grupo de pessoas e até de uma tribo inteira?<br />
- Da mesma forma que o passa<strong>do</strong> fica registra<strong>do</strong> na película<br />
áurica <strong>do</strong> planeta, o conjunto <strong>do</strong>s planos de vida também estarão ali<br />
projeta<strong>do</strong>s.
- Basta, portanto, consultar o registro temporal coletivo.<br />
- Sim. Quer experimentar?<br />
- Já estou pronto para des<strong>do</strong>brar!<br />
- Não, dessa vez não iremos fazer uma viagem astral. Como eu<br />
já lhe havia afirma<strong>do</strong>, isso não é uma condição imprescindível para o<br />
contato com o registro akásico.<br />
- E o que faremos?<br />
- Contato mental. Feche os olhos, respire profunda e<br />
calmamente. Procure acompanhar-me em pensamento. Lembre-se de<br />
que to<strong>do</strong>s os seres fazem parte da história da humanidade, portanto,<br />
to<strong>do</strong>s nós estamos interliga<strong>do</strong>s de alguma forma. Nossos planos de<br />
vida seguem na mesma direção, pois temos que evoluir<br />
conjuntamente. Ciente dessa grande verdade, os mistérios para os<br />
nossos espíritos já não existem e somos conhece<strong>do</strong>res <strong>do</strong> plano maior<br />
que rege o mun<strong>do</strong>. É o plano evolutivo planetário, ao qual estamos<br />
vincula<strong>do</strong>s.<br />
Deixei a minha mente fluir no desejo <strong>do</strong> saber. Uma sucessão<br />
impressionante de imagens seguiu-se.<br />
Vi uma enorme porta <strong>do</strong>urada com uma inscrição que não pude<br />
identificar. Mas a voz <strong>do</strong> mago surgiu dentro da minha mente,<br />
explican<strong>do</strong> o que era visto:<br />
- A inscrição significa: O reino <strong>do</strong>Rei <strong>do</strong>s Reis.<br />
Passei pelo imenso portal e logo vi um homem emitin<strong>do</strong> uma<br />
luz belíssima de imensa intensidade. Seres ala<strong>do</strong>s que o rodeavam,<br />
passaram a vesti-lo com várias túnicas, uma sobre a outra. Cada<br />
vestidura encobria parte de sua poderosa luz.<br />
Mesmo vesti<strong>do</strong>, ainda assim seu rosto brilhava mais que o <strong>Sol</strong>.<br />
Uma voz angelical anunciou:<br />
- Esse é o Divino!<br />
Logo em seguida, eu me vi em um deserto, em hora avançada.<br />
Havia uma grande multidão, to<strong>do</strong>s vesti<strong>do</strong>s, a maioria usava túnicas.<br />
Muitos entre eles louvavam ao Cria<strong>do</strong>r por terem si<strong>do</strong> cura<strong>do</strong>s pelo<br />
Divino.<br />
O povo já estava com fome, mas não havia comida para to<strong>do</strong>s,<br />
pois restava apenas cinco pães e <strong>do</strong>is peixes.<br />
O Ilumina<strong>do</strong>, de veste branca, ergueu os olhos para o céu e<br />
abençoou a comida, multiplican<strong>do</strong>-a. Alimentou, dessa forma,<br />
milhares de pessoas, sen<strong>do</strong> que muitas levaram sobras para as suas<br />
casas.<br />
Ouvi a mesma voz dizen<strong>do</strong>:
- Esse é o Cordeiro Divino, filho <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r, que alimenta o<br />
corpo e a alma <strong>do</strong> seu povo.<br />
Na imagem seguinte, o Ilumina<strong>do</strong> aproximou-se de mim. Vi<br />
nitidamente o seu rosto e essa visão causou-me grande impressão.<br />
Fiquei toma<strong>do</strong> por um sentimento indescritível. Ele estendeu os seus<br />
braços e mostrou-me as suas mãos feridas.<br />
A emoção foi tão forte que me desconcentrei, abrin<strong>do</strong> os olhos<br />
lacrimejantes.<br />
O mago, antecipan<strong>do</strong>-se às minhas indagações, esclareceu:<br />
- Você viu o Mestre <strong>do</strong>s Mestres, o Governante maior desse<br />
mun<strong>do</strong>. As túnicas, que lhe colocavam, eram os envoltórios<br />
necessários para a reencarnação. Como se trata <strong>do</strong> espírito <strong>do</strong> mais<br />
alto grau hierárquico, encontra-se desprovi<strong>do</strong> das vestimentas<br />
espirituais que usamos. Para voltar a viver entre os homens, terá que<br />
se preparar para isso, revestin<strong>do</strong>-se das camadas intermediárias,<br />
entre a pura luz e a grosseira matéria. No meio físico, viven<strong>do</strong> como<br />
um homem comum, virá a se submeter a um grande martírio, mas o<br />
seu maior sofrimento virá antes, com essa necessidade de ocultar a<br />
sua imensa luz para poder nascer entre os mortais. A sua missão será<br />
levar à humanidade o maior de to<strong>do</strong>s os ensinamentos, para salvá-la<br />
<strong>do</strong> pior de to<strong>do</strong>s os destinos. A sua vida trará um lega<strong>do</strong> de luz para<br />
os homens que vivem nas trevas. O mun<strong>do</strong> será diferente, depois que<br />
os seus santos pés tocarem a terra.<br />
- Ele fará tu<strong>do</strong> isso sozinho?<br />
- Não, ele é o realiza<strong>do</strong>r maior, todavia, sob as suas ordens,<br />
muitos outros estarão a serviço da humanidade. Encarna<strong>do</strong>s e<br />
desencarna<strong>do</strong>s. Há muito que a sua vinda é esperada e preparada.<br />
Muitos espíritos ilumina<strong>do</strong>s irão precedê-lo, outros viverão na sua<br />
época, tantos mais continuarão a sua obra de amor, verdade e<br />
justiça. Uma poderosa organização espiritual foi formada para dar<br />
total apoio ao Divino, a Grande Fraternidade Branca. To<strong>do</strong>s os que<br />
vão participar desse imenso trabalho estão sen<strong>do</strong> devidamente<br />
seleciona<strong>do</strong>s e prepara<strong>do</strong>s.<br />
Na noite seguinte, o mago levou-me a outra câmara.
50 - AMAUTÉRIO, O JOGO <strong>DO</strong> DESTINO<br />
Era um local completamente escuro. Quan<strong>do</strong> adentramos, ele<br />
pronunciou, em cântico nasal:<br />
- Sunnn...<br />
Imediatamente uma luz branca partiu <strong>do</strong> teto e iluminou uma<br />
pequena mesa re<strong>do</strong>nda, a pouca distância <strong>do</strong> chão. Incensos<br />
incandescentes, dispostos em treze turíbulos, fixa<strong>do</strong>s nas paredes<br />
irregulares da câmara, espalhavam um aroma místico.<br />
- Sente-se - disse o mago.<br />
O mestre sentou-se a minha frente, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> oposto da mesa.<br />
Havia um desenho lindíssimo, dentro de um círculo sobre a<br />
superfície daquela mesa, com inúmeros detalhes e de um colori<strong>do</strong><br />
brilhante.<br />
- O que é isso? - perguntei.<br />
- Chama-se amautério, que significa “a linguagem <strong>do</strong> Amauta”.<br />
- E o que é Amauta?<br />
- Quer dizer “O Sábio”. O amautério é um jogo esotérico que<br />
representa o plano de vida da pessoa que o está consultan<strong>do</strong>. É<br />
originário da Atlântida, um continente que já não existe, e usa<strong>do</strong><br />
pelos Amautas, que não possuíam aguçadas faculdades perceptivas<br />
para estudar o passa<strong>do</strong>, o presente e o futuro das pessoas que os<br />
procuravam.<br />
- Mas como? Um mestre não possui naturalmente os poderes<br />
paranormais?<br />
- Não, necessariamente. Nem to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tem o privilégio, ou a<br />
prova, ou a expiação de possuir <strong>do</strong>ns psíquicos. Há muitas pessoas<br />
iluminadas que não desenvolvem as suas faculdades latentes.<br />
- E por que motivo?<br />
- Existem inúmeros motivos. Um deles, é que tal capacidade<br />
gera poder e o poder é a grande fraqueza e tentação <strong>do</strong> homem que<br />
vive na Terra. Alguns grandes inicia<strong>do</strong>s preferem não desenvolver os<br />
seus <strong>do</strong>ns para não ficarem sujeitos a cometer abusos.<br />
- Eu pensava que um mestre fosse uma pessoa já preparada<br />
para enfrentar qualquer impulso inferior.<br />
- Erro seu. Absolutamente nada garante uma vida santificada.<br />
Se o indivíduo vive em um mun<strong>do</strong> como esse, ele é humano,<br />
portanto, sujeito a falhas. Caso ele atinja um grau de grande<br />
evolução, a ponto de estar acima das fraquezas humanas, então ele<br />
não precisará mais reencarnar. Deixará de ser humano. <strong>Porta</strong>nto, o
amautério era usa<strong>do</strong> por Amautas que tinham um grande<br />
conhecimento, mas eram desprovi<strong>do</strong>s da habilidade hiperfísica. Esse<br />
jogo foi desenvolvi<strong>do</strong> para fornecer uma orientação superior mais<br />
simples, de fácil compreensão e era joga<strong>do</strong> apenas para os outros<br />
mestres.<br />
- Não estou entenden<strong>do</strong>. Se o indivíduo é um mestre no<br />
conhecimento esotérico, sabe que tu<strong>do</strong> o que precisa descobrir está<br />
dentro de si mesmo. Basta meditar, permitin<strong>do</strong> que a sua essência<br />
divina se manifeste. Por que precisaria consultar um outro mentor?<br />
Seria em razão de não possuir o mesmo saber?<br />
- É outro preceito incorreto. Muitas vezes, por incrível que<br />
pareça, um sensitivo com o nível de mestra<strong>do</strong>, não consegue<br />
descobrir os seus próprios mistérios.<br />
- Mas por que razão?<br />
- Também há vários motivos. Às vezes ele está envolvi<strong>do</strong><br />
emocionalmente com alguma coisa, de tal forma, que perde, mesmo<br />
temporariamente, a sua capacidade de concentração e discernimento,<br />
fican<strong>do</strong> dispersivo para os assuntos íntimos. Pode acontecer que<br />
esteja tão acostuma<strong>do</strong> a atender as outras pessoas que não se sente<br />
em condições de analisar a si mesmo. Há ainda preceptores que<br />
simplesmente não têm condições de examinar os próprios problemas.<br />
E por que disso?<br />
- Porque são humanos - respondi.<br />
O mago mostrou-se satisfeito com a minha reflexão e disse em<br />
seguida:<br />
- Vamos estudar o amautério e você compreenderá melhor.<br />
Observe o desenho.<br />
Na borda interna <strong>do</strong> círculo, estavam desenhadas montanhas<br />
maiores e menores, vales, altiplanos, uma caverna, um abismo, um<br />
lago, um mar, ilhas, um vulcão, um cemitério, floresta, nuvens,<br />
pássaros, arco-íris, estrelas, cometas, a Lua e o <strong>Sol</strong> entre outras<br />
figuras interessantes.<br />
O mago começou a explicar:<br />
- São representações <strong>do</strong> plano material e espiritual, da vida e<br />
da morte, <strong>do</strong> consciente e <strong>do</strong> inconsciente. Quan<strong>do</strong> um Amauta<br />
mostrava o amautério para um consulente, assim que ele olhava para<br />
o desenho, ali se projetava a energia de seus corpos espirituais,<br />
especialmente a <strong>do</strong> seu envoltório mental, onde está registra<strong>do</strong> o seu<br />
plano de vida. É o que acabou de acontecer com você.
O mago apanhou uma cuia que estava no chão e que continha<br />
vinte e uma pedrinhas, cada uma de uma cor ou matiz diferente.<br />
Com movimentos tranqüilos e harmônicos, despejou os<br />
pequenos seixos na palma de sua mão esquerda. Largan<strong>do</strong> a cuia,<br />
juntou as duas mãos, forman<strong>do</strong> uma concha e começou a agitar as<br />
pedrinhas, cantarolan<strong>do</strong>:<br />
- Sun o Sun...<br />
Jogou-as, em seguida, sobre o amautério e disse:<br />
- Cada pedra tem um significa<strong>do</strong> e recebe uma denominação<br />
mântrica sagrada, cuja tradução apenas os Amautas conheciam e<br />
mantinham em segre<strong>do</strong>, para que seus poderes não fossem<br />
desvirtua<strong>do</strong>s, como ocorreu com outros ensinamentos na Atlântida.<br />
Sun significa “a Luz”. Sun o Sun, quer dizer “O Grande Pai”, o Cria<strong>do</strong>r<br />
que sempre é invoca<strong>do</strong> antes de se lançar os seixos. As pedras,<br />
também chamadas de amautérias, quan<strong>do</strong> caem sobre o amautério,<br />
percorrem os desenhos energiza<strong>do</strong>s pela projeção áurica <strong>do</strong><br />
consulente. Assim, a interpretação <strong>do</strong> que está acontecen<strong>do</strong> com o<br />
indivíduo é simples. Primeiro, verifica-se o que cada pedra representa<br />
no lugar em que parou, e, posteriormente, analisa-se o conjunto <strong>do</strong>s<br />
significa<strong>do</strong>s.<br />
Apontan<strong>do</strong> os seixos, o mago foi explican<strong>do</strong>:<br />
- Essa pequena amautéria colorida, em uma moldura metálica<br />
de prata, representa o indivíduo e recebe o nome de yopaam. A<br />
pedra-madeira, de cor mais clara, significa o trabalho material e tem<br />
o nome de têpaam. A pedra em cinza-escuro, paannuim, diz respeito<br />
aos ganhos. A pedra-madeira, de cor mais escura, é panyopaam, os<br />
bens materiais. O cristal transparente simboliza o trabalho espiritual<br />
e possui o nome de têsun. Paansun é esse cristal branco, que indica<br />
os bens espirituais. O cristal amarelo-claro é nyum, as atividades<br />
mentais. O cristal rosa representa o amor e tem o nome de napaam.<br />
A família é identificada por esse seixo amarelo mais escuro. O seu<br />
nome é paan naô. A pedra rosa, com listras vermelhas, simboliza a<br />
amizade, é anapaam. Essa outra, vermelho transparente, significa as<br />
relações íntimas e é denominada de inapaam. Chanaiopaam é o<br />
karma representa<strong>do</strong> por essa pedra cinza brilhante. Já o dharma,<br />
chama<strong>do</strong> de juniopaam, é simboliza<strong>do</strong> pelo cristal verde-claro.<br />
Aquele, verde-escuro, refere-se aos conflitos e é denomina<strong>do</strong> de<br />
tekuá. As forças ocultas <strong>do</strong> mal estão representadas por essa pedra<br />
preta, sen<strong>do</strong> designada de kuá. A pedra azul-escuro designa os<br />
sofrimentos e é denominada de aghorá. O cristal cinza-claro é o que
indica as transformações, jurioum. O seixo violeta tem a haver com<br />
as faculdades sensitivas, onpaam. A proteção espiritual está<br />
representada pelo cristal azul transparente, denomina<strong>do</strong> de<br />
sunyopaam. O seixo colori<strong>do</strong>, na moldura prateada em forma de lua,<br />
significa o esta<strong>do</strong> emocional e recebe o nome de jacyopaam. Por fim,<br />
o guia espiritual é essa pedra <strong>do</strong>urada, com listras marrons<br />
brilhantes, chamada de sunoyosun.<br />
- E o que o amautério diz a meu respeito? - perguntei curioso.<br />
- Yopaam encontra-se próximo <strong>do</strong> abismo, sobre o qual voa<br />
têsun. Isso significa que, em breve, você será submeti<strong>do</strong> a outras<br />
provas em seu caminho.<br />
- Eu irei vencer?<br />
- O seu destino está pendente.<br />
- E o que deverei fazer?<br />
- Para superar o abismo, você terá que recorrer a têsun, o que<br />
quer dizer que somente vencerá o grande obstáculo, se realmente se<br />
voltar para os seus verdadeiros propósitos superiores. Caso contrário,<br />
cairá no abismo da expiação, onde deverá purificar a sua alma à<br />
custa de muito esforço e sofrimento. A luz <strong>do</strong> bem e das qualidades<br />
morais é a única ponte que lhe permitirá passar ileso, sobre o abismo<br />
forma<strong>do</strong> pelos desejos inferiores <strong>do</strong> próprio ser.<br />
- Mago, tenho confiança de que irei conseguir - respondi<br />
orgulhoso.<br />
- Agnã, lhe aguardam provas mais difíceis. O seu maior<br />
confronto acontecerá dentro de si mesmo. Não há cilada mais<br />
ardilosa para o espírito, <strong>do</strong> que a resultante de seus próprios desejos<br />
inferiores. Vamos descansar, amanhã terá que partir.<br />
No dia seguinte, no momento da despedida, perguntei:<br />
- Por que o seu rosto é sempre encoberto pelo capuz?<br />
- O que lhe importa isso?<br />
- Gostaria simplesmente de conhecê-lo.<br />
- Você já me conhece.<br />
- Mas eu nem sei o seu nome...<br />
- Os Amautas não se identificam. Manter-se inomina<strong>do</strong> faz<br />
parte <strong>do</strong> nosso juramento iniciático. Vá em paz e que a Divina Luz o<br />
ampare na grande prova que o aguarda.<br />
O mago acompanhou-me até à porta da caverna.<br />
Quan<strong>do</strong> comecei a me distanciar, ouvi um estron<strong>do</strong>so espirro.<br />
Olhei para trás e vi que voavam penas de yapakanim em volta <strong>do</strong><br />
Amauta.
Surpreso, ainda escutei ele dizer, já sumin<strong>do</strong> em meio da névoa<br />
espessa:<br />
- Acho que estou fican<strong>do</strong> velho...
51 - PRISIONEIRO <strong>DO</strong>S HOMENS VERMELHOS<br />
Desci a Ibitirama com muito cuida<strong>do</strong>, e não enfrentei nenhum<br />
perigo.<br />
Retornan<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> cheguei onde havia a grande pedra<br />
tombada, lugar em que salvei o Guipajé, ocorreu um novo terremoto,<br />
muito violento.<br />
Passa<strong>do</strong> o abalo sísmico, a grande rocha permaneceu tombada,<br />
da mesma forma como a encontrei da primeira vez. Em referência a<br />
ela, chamei o local de Cucuí.<br />
Continuei a caminhada de retorno à aldeia karib, onde os<br />
Setenários me aguardavam. Mas, em um da<strong>do</strong> momento, passei a<br />
ouvir estranhas vozes que me chamaram a atenção.<br />
Seguin<strong>do</strong> na direção daqueles sons, com cuida<strong>do</strong>, fui-me<br />
aproximan<strong>do</strong> de um grupo de dezoito homens que se comunicavam<br />
em uma língua desconhecida.<br />
Eram de grande porte, de pele avermelhada. Usavam tangas<br />
brilhantes e a<strong>do</strong>rnos da cor <strong>do</strong> sol. Seus utensílios eram reluzentes,<br />
como as suas armas de guerra.<br />
Estavam caçan<strong>do</strong> e, apesar de carregarem alguns animais já<br />
abati<strong>do</strong>s, não se mostravam satisfeitos. Andaram por um bom tempo,<br />
não perceben<strong>do</strong> que eu os seguia, até que avistaram uma jibóia,<br />
enroscada em um galho de árvore.<br />
Um <strong>do</strong>s caça<strong>do</strong>res lançou uma flecha que atingiu em cheio a<br />
cabeça da cobra, pela mandíbula. Ela caiu da árvore contorceu-se<br />
toda, até ficar completamente imóvel.<br />
Apanharam a jibóia e continuaram em frente. Fui atrás, mesmo<br />
saben<strong>do</strong> que me desviava <strong>do</strong> meu destino. Estava curioso em<br />
conhecê-los melhor.<br />
Acompanhei-os até a aldeia a que pertenciam. Preocupa<strong>do</strong> com<br />
a possibilidade de ser descoberto por eles, escondi o meu arco e<br />
flechas para que não me identificassem como um guerreiro.<br />
Subi em uma árvore e fiquei observan<strong>do</strong>. As mulheres usavam<br />
peças de teci<strong>do</strong> cintilante que lhes cobriam os seios e a cintura.<br />
Muitas calçavam sandálias de couro.<br />
Em um determina<strong>do</strong> momento, houve uma pequena agitação.<br />
Um garoto saiu de uma oca que, pelos apetrechos pendura<strong>do</strong>s a sua<br />
volta, parecia pertencer a um pajé, e correu para uma outra que se<br />
destacava das demais por ficar no lugar mais alto e possuir muitos<br />
enfeites <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s e vermelhos.
Um grande homem saiu dessa última palhoça, com uma fita<br />
vermelha na testa. Olhou para os la<strong>do</strong>s, como se estivesse<br />
procuran<strong>do</strong> alguém. Caminhou até a oca <strong>do</strong> provável pajé.<br />
Quan<strong>do</strong> ali chegou, um velho de cabelos e barba branca,<br />
vestin<strong>do</strong> uma toga escura, saiu ao seu encontro. Confabularam por<br />
alguns instantes. Em seguida, o homem com a fita na cabeça fez<br />
alguns sinais para outros homens que estavam ao seu la<strong>do</strong>. Estes<br />
adentraram na mata.<br />
Fiquei ansioso para saber o que estava acontecen<strong>do</strong> e aguardei.<br />
Não demorou muito e senti algo estranho, mas antes que eu<br />
pudesse fazer alguma coisa, percebi que uma flecha era lançada em<br />
minha direção. Não houve tempo para me mexer. Um zumbi<strong>do</strong>,<br />
segui<strong>do</strong> de um som seco e curto, a um de<strong>do</strong> <strong>do</strong> meu rosto, mostrava<br />
que eu deveria ficar totalmente para<strong>do</strong>. A seta foi cravada na árvore,<br />
ao la<strong>do</strong> direito da minha cabeça, a meio de<strong>do</strong> de distância.<br />
Começou uma gritaria ao pé da árvore. Com muita calma e<br />
bem devagar, fui olhan<strong>do</strong> para baixo. Os homens faziam sinais para<br />
que eu descesse.<br />
No chão, tentei explicar que era amigo e que vinha em paz,<br />
mas eles não me compreendiam. Fui amarra<strong>do</strong> e conduzi<strong>do</strong> para o<br />
acampamento.<br />
Constantemente me ameaçavam de morte. Faziam muitas<br />
perguntas com gestos, mas eu também não podia entendê-los.<br />
Levaram-me até o homem de fita vermelha na testa. Da forma<br />
como o tratavam, deduzi que era o chefe local.<br />
Novamente tentei explicar as minhas boas intenções e, quan<strong>do</strong><br />
já estava certo de que não seria mais compreendi<strong>do</strong>, o chefe da<br />
aldeia falou em karib:<br />
- Você é um guerreiro!<br />
- Não... ainda não! - respondi.<br />
- Então veio manda<strong>do</strong> por guerreiros para nos espionar,<br />
descobrir os tesouros <strong>do</strong>s nossos antigos! - afirmou impaciente.<br />
- Não, eu estou só e desarma<strong>do</strong>, minha tribo está muito longe.<br />
O velho de túnica escura aproximou-se <strong>do</strong> líder e conversou em<br />
voz baixa.<br />
Em seguida, o chefe local man<strong>do</strong>u novamente alguns homens<br />
para a mata. Não demorou muito e voltaram trazen<strong>do</strong> o arco e<br />
flechas que eu havia escondi<strong>do</strong>.<br />
- Você mente! - disse o homem furioso.
- Não. Deixei o arco e as setas no mato, justamente para que<br />
não pensassem que eu vinha guerrear - tentei justificar.<br />
- Onde estão os outros guerreiros? - insistiu.<br />
- Não há outros guerreiros. Estou sozinho.<br />
- Como chegou até aqui!<br />
- Eu havia desci<strong>do</strong> da grande montanha que desaparece nas<br />
nuvens e estava retornan<strong>do</strong> a uma aldeia karib, quan<strong>do</strong> encontrei os<br />
seus homens caçan<strong>do</strong>. Fiquei curioso e os segui.<br />
- Essas terras são sagradas, nenhum estranho tem a permissão<br />
de entrar. Você cometeu uma grande profanação e deve ser puni<strong>do</strong><br />
por isso.<br />
- Per<strong>do</strong>em-me, não tive essa intenção, pois não sabia disso.<br />
Não adiantaram as minhas explicações, o homem parecia louco.<br />
Começou a gritar e a multidão gritava junto com ele.<br />
Ainda amarra<strong>do</strong>, fui joga<strong>do</strong> em uma jaula que ficava em um<br />
buraco no chão.<br />
Depois de algum tempo, o chefe voltou, perguntan<strong>do</strong>:<br />
- Qual o seu nome?<br />
- Agnã.<br />
- É nome de guerreiro.<br />
- Quan<strong>do</strong> saí da minha tribo, eu não havia ainda passa<strong>do</strong> pelo<br />
ritual sagra<strong>do</strong> <strong>do</strong> grande guerreiro.<br />
- Não importa, a sua origem é tupi, que são conquista<strong>do</strong>res de<br />
terras, por natureza.<br />
- Como sabe sobre o meu povo?<br />
- Um antigo eremita tupi viveu em nosso meio quan<strong>do</strong> eu era<br />
menino. Com ele, descobri que temos os mesmos antepassa<strong>do</strong>s.<br />
- Se a nossa procedência é comum, então somos povos irmãos.<br />
- Não, a sua raça é o resulta<strong>do</strong> de uma miscigenação<br />
continental. Já o meu povo soube guardar a sua origem milenar.<br />
Preservamos a nobreza de nossa linhagem. Você é um impuro.<br />
Em seguida o homem saiu. Passei a noite ali, sem comida ou<br />
bebida e fiquei pensan<strong>do</strong> nos Setenários, desejan<strong>do</strong> que eles me<br />
encontrassem para que eu pudesse ser salvo.<br />
Na manhã seguinte, retiraram-me da jaula e fui amarra<strong>do</strong> a um<br />
tronco, de tal forma que fiquei abraça<strong>do</strong> a ele.<br />
O chefe da tribo, que era chama<strong>do</strong> de Temoc, aproximou-se de<br />
mim e disse:<br />
- Zuma, o nosso sacer<strong>do</strong>te, confirmou a sua história.<br />
- Então eu posso ir embora?
- Não. A sua impureza maculou esse lugar sagra<strong>do</strong>. Além disso,<br />
você tem o sinal <strong>do</strong> grande poder oculto.<br />
- Mas ainda sou um mero aprendiz.<br />
- Por isso mesmo deverá morrer logo.<br />
- E por quê?<br />
- A história da minha gente diz que as terras em que habitavam<br />
submergiram nas águas <strong>do</strong> oceano, em razão <strong>do</strong> uso indevi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
poderes, conferi<strong>do</strong>s àqueles que tinham os mesmos sinais que você.<br />
- Entretanto, vocês têm um feiticeiro?<br />
- Ele vive apenas para servir e não para mandar.<br />
- Também não desejo alcançar qualquer tipo de poder.<br />
- Porém, Zuma vê em você um grande perigo para o nosso<br />
povo.<br />
Sob as ordens de Temoc, um homem, de nome Calak<br />
apresentou-se com uma vara na mão.<br />
- O que vai fazer? - indaguei.<br />
- Você será castiga<strong>do</strong> pela sua ousadia de pisar em solo<br />
sagra<strong>do</strong>. Depois, no momento oportuno, será sacrifica<strong>do</strong> aos deuses.<br />
O carrasco passou a desferir-me fortes golpes nas costas. Os<br />
meus olhos encheram-se de lágrimas, mas não dei um só gemi<strong>do</strong>.<br />
Quan<strong>do</strong> Calak parou de me bater, o sangue escorria pelas<br />
pernas.<br />
Deixaram-me amarra<strong>do</strong> ao tronco, durante o dia inteiro. Sem<br />
nada para comer ou beber, o <strong>Sol</strong> parecia queimar como nunca e<br />
custava a se pôr.<br />
No final da tarde, o carrasco aproximou-se. Eu via em seu rosto<br />
o prazer de observar o meu sofrimento. Voltan<strong>do</strong> a ser chibata<strong>do</strong>,<br />
acabei não resistin<strong>do</strong> e desmaiei.<br />
Quan<strong>do</strong> recobrei os senti<strong>do</strong>s, ainda estava amarra<strong>do</strong> ao tronco<br />
e havia uma mulher ao meu la<strong>do</strong>. Já era noite, mas os seus olhos<br />
brilhavam como o dia. Tinha cabelos castanhos e uma feição muito<br />
bonita e amistosa, demonstran<strong>do</strong> compaixão pelo meu padecimento.<br />
Com uma bucha úmida, espremeu-a em minha boca e, assim,<br />
pude tomar um pouco de água. Deu-me uma pequena raiz para<br />
comer e depois, passou a esponja pela minha testa e rosto.<br />
Ensaian<strong>do</strong> um sorriso tími<strong>do</strong> e desajeita<strong>do</strong>, afastou-se de mim,<br />
logo que viu alguns homens se aproximan<strong>do</strong>.<br />
Durante a madrugada, ela retornou silenciosamente, trazen<strong>do</strong><br />
uma cuia com uma substância branca e pastosa.
Os <strong>do</strong>is homens que tinham a incumbência de montar guarda<br />
estavam <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>.<br />
Fazen<strong>do</strong> gestos para que eu não me mexesse e permanecesse<br />
quieto, ela passou a aplicar-me a pasta desconhecida nas extensas<br />
feridas em minhas costas. O ar<strong>do</strong>r foi maior <strong>do</strong> que o provoca<strong>do</strong> pelas<br />
vergastadas, entretanto, consegui conter-me, cerran<strong>do</strong> os dentes e<br />
paran<strong>do</strong> a respiração.<br />
Quan<strong>do</strong> ela terminou, passei a sentir um grande alívio e antes<br />
que eu fechasse os olhos, cain<strong>do</strong> em sono profun<strong>do</strong>, ela partiu<br />
sorrateiramente, sem acordar os guardas.<br />
No dia seguinte, fui acorda<strong>do</strong> com os chutes de Calak, que se<br />
mostrava contraria<strong>do</strong>.<br />
Temoc foi chama<strong>do</strong> e também ficou irrita<strong>do</strong>.<br />
- Não é possível! Quem o tratou? - perguntou nervoso.<br />
- Não sei o que você está queren<strong>do</strong> dizer - tentei disfarçar.<br />
- Não há feridas em suas costas. Quem lhe fez o curativo?<br />
- Ninguém. Dormi a noite inteira e os guardas permaneceram o<br />
tempo to<strong>do</strong> ao meu la<strong>do</strong>.<br />
Os guardas foram indaga<strong>do</strong>s sobre o que havia aconteci<strong>do</strong>, mas<br />
pareciam dizer que nada haviam visto e que mantiveram-se<br />
acorda<strong>do</strong>s durante a guarda.<br />
Não satisfeito, o chefe <strong>do</strong>s homens vermelhos convocou o<br />
feiticeiro.<br />
O diálogo foi curto, porém revela<strong>do</strong>r. Ciente da verdade, Temoc<br />
ficou furioso. Os guardas foram severamente açoita<strong>do</strong>s, a mulher que<br />
me ajudara foi confinada em sua oca, sob vigilância e eu fui joga<strong>do</strong><br />
na jaula subterrânea.
52 - O SACRIFÍCIO<br />
Durante <strong>do</strong>is dias permaneci naquele fosso, não me sen<strong>do</strong><br />
servida nenhuma refeição ou bebida. Era apenas retira<strong>do</strong> de lá para<br />
ser açoita<strong>do</strong>.<br />
Tentava comunicar-me mentalmente com os Setenários,<br />
porém, não conseguia. Embora pudesse des<strong>do</strong>brar para ir até a aldeia<br />
karib, evitei fazê-lo, pois Choam havia si<strong>do</strong> muito claro: eu só poderia<br />
realizar as viagens astrais com o seu acompanhamento.<br />
Na manhã <strong>do</strong> terceiro dia escutei um grande alvoroço, mas de<br />
onde eu estava não podia ver absolutamente nada. O dia to<strong>do</strong><br />
pareceu agita<strong>do</strong> e quan<strong>do</strong> começou o entardecer, fui retira<strong>do</strong> da<br />
jaula.<br />
Acreditei que seria surra<strong>do</strong> novamente, porém, os guardas<br />
carregaram-me até um lugar que parecia ser reserva<strong>do</strong> para rituais<br />
religiosos.<br />
Era uma plataforma de madeira e sobre ela havia uma tábua<br />
larga com um vinco em sua longitude. Uma das extremidades pendia<br />
para o chão, quase encostan<strong>do</strong> em um grande caldeirão, dentro <strong>do</strong><br />
qual algumas mulheres colocavam água e condimentos.<br />
Tochas e incensos espalhavam-se por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s. Ao soar<br />
de um sino, o povo se aproximou, forman<strong>do</strong> um semicírculo. As<br />
mulheres usavam um vesti<strong>do</strong> branco e curto, carregan<strong>do</strong> flores e<br />
ramos. Entre elas estava a mulher que me havia trata<strong>do</strong>.<br />
Os homens, cheios de a<strong>do</strong>rnos, ostentavam suas armas de<br />
guerra.<br />
Surgiram no eira<strong>do</strong> sete homens vesti<strong>do</strong>s com túnicas<br />
vermelhas. No centro deles, estava Temoc.<br />
Sob o coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> chefe da aldeia, to<strong>do</strong>s entoaram vários<br />
cânticos e rezas. Após um gesto seu, uma mulher, de túnica branca,<br />
com um cordel vermelho na cintura, trouxe nos braços uma menina<br />
vestida de branco, com uma coroa de flores na cabeça.<br />
A pequenina, que parecia estar desacordada, foi deitada sobre a<br />
tábua que tinha o vinco no meio. Em seguida, apareceu Calak,<br />
empunhan<strong>do</strong> uma faca <strong>do</strong>urada e posicionou-se ao la<strong>do</strong> da criança.<br />
Novos cânticos e invocações. A maioria <strong>do</strong> povo parecia delirar<br />
em transe lunático.<br />
A mulher, que se havia compadeci<strong>do</strong> de mim, derramava<br />
lágrimas abundantes pelo rosto.
Usan<strong>do</strong> a minha visão hiperfísica, notei que de seu peito partia<br />
uma luz rosada que se ligava à menina. Percebi então, que a criança<br />
era sua filha.<br />
Da aura da mulher partiam fagulhas pretas-avermelhadas em<br />
direção a Temoc, demonstran<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o ódio que ela sentia por ele,<br />
naquele momento.<br />
Também pre<strong>do</strong>minava o marrom-escuro, mancha<strong>do</strong> de cinzaclaro,<br />
limita<strong>do</strong> em parte de sua aura, representan<strong>do</strong> a depressão e o<br />
desespero conti<strong>do</strong>s.<br />
Não podia acreditar no que estava presencian<strong>do</strong>. Pensava que<br />
deveria ser eu o sacrifica<strong>do</strong>, mas tu<strong>do</strong> indicava que a menina seria<br />
imolada.<br />
Eu tinha que fazer alguma coisa, embora estivesse abati<strong>do</strong> e<br />
fraco. Lembrei-me da respiração prânica que Choam me havia<br />
ensina<strong>do</strong> para captar a maior quantidade possível de energia<br />
cósmica.<br />
Passei a reativar os meus centros energéticos, com a respiração<br />
compassada, entoan<strong>do</strong> os mantras de fortificação. De olhos fecha<strong>do</strong>s,<br />
concentrei-me ao máximo.<br />
Em pouquíssimo tempo eu estava plenamente revigora<strong>do</strong>,<br />
sentin<strong>do</strong> a força de dez homens.<br />
Quan<strong>do</strong> abri os olhos Temoc havia levanta<strong>do</strong> a mão direita.<br />
Calak, seguin<strong>do</strong> a sua ordem, ergueu o punhal.<br />
- Não! - gritei, chaman<strong>do</strong> a atenção de to<strong>do</strong>s e interrompen<strong>do</strong> a<br />
seqüência da oblação macabra.<br />
- Temoc, você não pode matá-la! - afirmei aos berros.<br />
O chefe da aldeia e <strong>do</strong> cerimonial ordenou que os guardas me<br />
contivessem.<br />
Com facilidade, lancei-os ao chão. Vieram mais quatro homens<br />
e foram to<strong>do</strong>s venci<strong>do</strong>s da mesma forma. Rapidamente subi na<br />
plataforma, antes que os demais guerreiros pudessem me impedir.<br />
Calak veio ao meu encontro, tentan<strong>do</strong> golpear-me com o<br />
punhal. Desarman<strong>do</strong>-o, ergui o carrasco no alto e joguei-o sobre os<br />
lanceiros que se aproximavam.<br />
Tirei a menina <strong>do</strong> altar e corri para dentro da floresta, com ela<br />
no colo.<br />
Após percorrer uma grande distância, em um determina<strong>do</strong><br />
local, ao la<strong>do</strong> de um lago transparente, deitei-a sobre a relva macia.<br />
Era uma linda menina que <strong>do</strong>rmia em sono profun<strong>do</strong>.
Passei a desfazer to<strong>do</strong>s os sinais <strong>do</strong> caminho que havia<br />
percorri<strong>do</strong>, próximo ao lago, para que não servissem de pista para os<br />
guerreiros de Temoc.<br />
Quan<strong>do</strong> voltei para a curumim, notei que os seus sinais de vida<br />
estavam fracos. Fiquei preocupa<strong>do</strong>. Examinan<strong>do</strong> os seus olhos e<br />
boca, percebi que o sedativo que lhe haviam ministra<strong>do</strong> era muito<br />
forte, poden<strong>do</strong> ser fatal.<br />
Novamente, usan<strong>do</strong> a minha clarividência, vi que a sua energia<br />
etérea estava se esgotan<strong>do</strong> lentamente e que uma substância tóxica<br />
se espalhava pela corrente sangüínea, atacan<strong>do</strong> os principais órgãos<br />
<strong>do</strong> corpo.<br />
Apliquei-lhe, rapidamente, uma seqüência de passes para<br />
estabilizar a força vital. Em seguida, procurei na mata algum antí<strong>do</strong>to<br />
que pudesse neutralizar o efeito nocivo <strong>do</strong> veneno em seu organismo.<br />
Perto dali, encontrei uma cicadácea, planta arborescente,<br />
parecida com a palmeira, diferencian<strong>do</strong>-se dessa pelo folíolo que<br />
apresenta uma nervura mediana nítida.<br />
Colhi a sua raiz e dela preparei uma poção que derramei gota a<br />
gota na boca da menina.<br />
Quan<strong>do</strong> terminei, o seu esta<strong>do</strong> ainda parecia inaltera<strong>do</strong>. Após<br />
algum tempo, ela conseguiu abrir os seus lin<strong>do</strong>s olhinhos. Coloquei-a<br />
em meu colo e abracei-a carinhosamente para que se sentisse<br />
amparada.<br />
Olhan<strong>do</strong> para mim, começou a piscar mais lentamente e, em<br />
um suspiro profun<strong>do</strong> e tranqüilo, partiu para o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s espíritos.<br />
Toma<strong>do</strong> por uma tristeza incontida, cantei ao pôr-<strong>do</strong>-sol a <strong>do</strong>r<br />
de uma alma sofrida:<br />
- Hummm... ô hummm...<br />
Hummm... ô hummm...<br />
Eah ô hummm... eah ô hummm...<br />
Eah... eah...<br />
Eah ô hummm... eah ô hummm...<br />
Ao meu canto somou-se o coral de vinte e uma mulheres que,<br />
silenciosamente, se aproximaram e permaneceram ao derre<strong>do</strong>r,<br />
ajoelhadas.<br />
No final <strong>do</strong> cântico, a mãe da menina, que ali estava, tomou-a<br />
de meus braços e sentou-se ao la<strong>do</strong>. Beijan<strong>do</strong>-a na testa, fez um<br />
sinal para as outras moças. Elas prepararam uma cama mortuária de<br />
madeira, delicadamente ornamentada de flores belíssimas.
A mulher, com delica<strong>do</strong> cuida<strong>do</strong>, deitou o corpo de sua filha<br />
sobre os galhos e varetas bem dispostos.<br />
No início da noite, a fogueira alta cremava a linda flor que<br />
inutilmente eu havia tenta<strong>do</strong> salvar.<br />
Um <strong>do</strong>ce perfume espalhou-se pela mata.<br />
Mais adiante, pude ver a mesma menina, vestida de branco,<br />
com uma coroa de flores na cabeça, corren<strong>do</strong> pela floresta, brincan<strong>do</strong><br />
com os curupiras...
53 - A SEDUÇÃO<br />
Não pudemos esperar até o final da cremação. Os homens de<br />
Temoc certamente logo surgiriam, atraí<strong>do</strong>s pela claridade da chama.<br />
As mulheres levaram-me cada vez mais para dentro da selva.<br />
Andamos a noite inteira. Durante o dia pouco descansamos,<br />
continuan<strong>do</strong> a caminhada para não sermos alcança<strong>do</strong>s.<br />
Atingimos um lugar em que tínhamos que fazer o cruzamento<br />
de um largo rio. As mulheres prepararam um plataforma feita de<br />
tronco de árvores, que serviria como uma balsa para a travessia.<br />
Habilmente manejada pelas moças, através de estacas<br />
compridas, a embarcação foi nos conduzin<strong>do</strong> para a outra margem.<br />
Quan<strong>do</strong> já estávamos próximos da terra, as mulheres ficaram<br />
agitadíssimas, pois avistaram três canoas ligeiras <strong>do</strong>s guerreiros de<br />
Temoc. Com a velocidade que desenvolviam, certamente logo nos<br />
interceptariam.<br />
- E agora? - perguntei a mim mesmo.<br />
A mulher, cuja filha havia morri<strong>do</strong>, aproximou-se de mim e, de<br />
dentro de um saco, tirou o meu arco e flechas.<br />
Senti-me alivia<strong>do</strong>, pois, embora com apenas cinco flechas,<br />
talvez pudesse retardar a aproximação <strong>do</strong>s guerreiros.<br />
As yaratins chegaram mais perto e um arqueiro lançou uma<br />
seta na direção de uma das moças. Mas antes que a acertasse em<br />
cheio no peito, instintivamente, apanhei a flecha em pleno ar, entre<br />
os olhares aturdi<strong>do</strong>s das jovens e <strong>do</strong>s guerreiros. Eu mesmo fiquei<br />
impressiona<strong>do</strong> com o feito inespera<strong>do</strong>.<br />
O arqueiro se preparou novamente, contu<strong>do</strong>, antes que<br />
pudesse fazer novo disparo, lancei uma seta que partiu o seu arco ao<br />
meio.<br />
Atirei outra flecha na direção da proa de uma das yaratins que<br />
estava mais próxima. Durante o seu percurso, ela tornou-se<br />
flamejante e, ao atingir a canoa, fez com que se incendiasse<br />
rapidamente. Os ocupantes, aterroriza<strong>do</strong>s, jogaram-se nas águas<br />
sen<strong>do</strong> salvos pelos outros companheiros.<br />
Diante disso, os guerreiros decidiram bater em retirada, ten<strong>do</strong><br />
que escutar os gritos estridentes de vitória das minhas novas amigas.<br />
Alcançan<strong>do</strong> a outra margem, continuamos a fuga.<br />
Depois de andarmos por quase um terço <strong>do</strong> dia, deparamo-nos<br />
com um difícil obstáculo. A mata era mais fechada e formada por<br />
espinheiros.
A líder das vinte e uma jovens, aquela que havia perdi<strong>do</strong> a<br />
filha, começou a fazer uma série de gestos que interpretei como<br />
morte, apontan<strong>do</strong> seguidamente para os espinhos. Entendi que eles<br />
eram venenosos e que era preciso tomar muito cuida<strong>do</strong> para não<br />
ferir-se.<br />
Avançamos, cautelosamente, pelos espinheiros. Às vezes,<br />
ficavam tão compactos que passávamos a meio pêlo deles. A<br />
passagem pareceu uma eternidade, entretanto, acabamos<br />
conseguin<strong>do</strong>, sem que ninguém se ferisse.<br />
Andamos por mais <strong>do</strong>is dias, mal descansan<strong>do</strong> pelo caminho,<br />
acaban<strong>do</strong> por chegar a uma pequena nascente.<br />
A água, limpíssima, brotava da terra ao la<strong>do</strong> de uma montanha,<br />
cujas paredes íngremes, impossibilitavam sua escalada.<br />
A chefe das mulheres, fazen<strong>do</strong> gestos para que a seguíssemos,<br />
mergulhou sem me<strong>do</strong> na fonte. Todas as demais, uma a uma, foram<br />
pulan<strong>do</strong> para dentro <strong>do</strong> buraco d'água.<br />
Fiquei por último e, mesmo receoso, acabei in<strong>do</strong> atrás delas.<br />
A fonte ligava-se a um pequeno canal subterrâneo que logo<br />
dava no interior de uma caverna, de pouca luminosidade e de teto<br />
baixo. Ali as fugitivas me aguardavam.<br />
Seguin<strong>do</strong> para a nascente <strong>do</strong> curso d’água, que passava pelo<br />
interior da gruta, a um palmo de altura, atingimos a saída que ficava<br />
imediatamente abaixo de uma pequena cachoeira, que formava um<br />
tanque de água cristalina e de pouca profundidade.<br />
As moças começaram a brincar na piscina, feita pelas mãos da<br />
divina natureza, no coração da floresta.<br />
Ao derre<strong>do</strong>r, havia uma grande variedade de plantas e<br />
numerosos frutos. Antes de anoitecer, improvisamos um abrigo para<br />
to<strong>do</strong>s nós.<br />
Os dias foram passan<strong>do</strong> e, com o tempo, fui aprenden<strong>do</strong> a<br />
língua daquelas mulheres. Elas eram muito alegres, embora a maioria<br />
tivesse uma história triste para contar. A líder, que se chamava Tzá,<br />
mantinha-se quase sempre séria. O seu semblante mostrava o<br />
sofrimento <strong>do</strong> seu coração.<br />
- Terei que partir - comuniquei à chefe das moças.<br />
- Você não pode ir agora! - respondeu contrafeita.<br />
- Por que não? Vocês estão seguras nesse lugar, além <strong>do</strong> que,<br />
outras pessoas me aguardam.<br />
- Mas nós precisamos de você!
- Não sei em que mais poderia ser útil, vocês sabem fazer<br />
coisas melhor <strong>do</strong> que qualquer homem.<br />
- Mas não sabemos lutar. Só você pode nos ensinar!<br />
- Não posso fazer isso.<br />
- Como não? Só por que somos mulheres?<br />
- Não é isso.<br />
- Então qual é o problema?<br />
- Eu nem sou guerreiro!<br />
- No entanto, sabe manusear muitíssimo bem um arco e<br />
flechas, sem falar que pode pegá-las em pleno ar.<br />
- Porém não as uso nem para caçar. Quanto à flecha, foi pura<br />
sorte.<br />
- Você não tem que lutar conosco. Basta apenas que nos ensine<br />
a fabricar nossas armas de luta e nos adestre no manuseio.<br />
- Não posso fazer isso.<br />
- Nós somos a única esperança para salvar as crianças <strong>do</strong>s<br />
sacrifícios impostos por Temoc.<br />
- É pura loucura! Vocês são apenas vinte e uma mulheres e eles<br />
são centenas de guerreiros. Nem que se tornassem as melhores<br />
arqueiras, não conseguiriam vencê-los!<br />
- Agnã, temos o direito de tentar. A maioria de nós perdeu um<br />
filho por causa de Temoc. Muitas outras mortes ocorrerão, ainda mais<br />
agora, em que ele é capaz de realizar um ritual a cada semana, até<br />
nos capturar. Não podemos admitir que continue com esses<br />
assassinatos, disfarça<strong>do</strong>s de oferendas sagradas.<br />
- O seu pedi<strong>do</strong> me parece justo, contu<strong>do</strong>, estou muito confuso,<br />
não sei se devo envolver-me.<br />
- Você já está envolvi<strong>do</strong>, desde o momento em que tentou<br />
salvar a minha filha!<br />
Logo anoiteceu e as moças recolheram-se na grande oca que<br />
construímos. Fiquei ainda senta<strong>do</strong> à beira da lagoa, olhan<strong>do</strong> o reflexo<br />
das estrelas na superfície das águas.<br />
Tzá aproximou-se de mim e perguntou:<br />
- Você não vai <strong>do</strong>rmir?<br />
- Não, estou sem sono - respondi, sem olhar para ela.<br />
- Posso fazer-lhe companhia?<br />
Quan<strong>do</strong> me virei para responder que sim, notei que ela usava<br />
um vesti<strong>do</strong> curto, justo e quase to<strong>do</strong> transparente e que brilhava com<br />
a luz da fogueira.
Nunca antes a silhueta de uma mulher, ressaltada em seus<br />
detalhes íntimos, chamou-me tanta atenção. Senti uma sensação<br />
incomum e incômoda.<br />
Perceben<strong>do</strong> o meu prolonga<strong>do</strong> silêncio observa<strong>do</strong>r, ela<br />
perguntou:<br />
- Gostou <strong>do</strong> meu vesti<strong>do</strong>?<br />
Permaneci mu<strong>do</strong>, limitan<strong>do</strong>-me a concordar com a cabeça.<br />
- Eu o guar<strong>do</strong> há algum tempo - continuou - para usá-lo em<br />
minha noite de núpcias que, infelizmente, até hoje nunca tive.<br />
Conseguin<strong>do</strong> sair <strong>do</strong> transe temporário das observações,<br />
indaguei:<br />
- Mas você não se casou?<br />
- Não - respondeu com um sorriso singelo.<br />
- Então você é concubina de algum guerreiro?<br />
- Também não - disse, sem graça.<br />
- E a sua filha?<br />
- Em nossa aldeia é costume que as jovens percam a sua<br />
virgindade para um <strong>do</strong>s líderes <strong>do</strong> nosso povo. Foi dessa forma que<br />
tive uma filha de Temoc.<br />
- E ele teve coragem de mandar sacrificar a própria filha?<br />
- Para o meu povo, acostuma<strong>do</strong> a ser submisso, isso é um<br />
procedimento natural.<br />
Mudan<strong>do</strong> a sua fisionomia tristonha, Tzá complementou:<br />
- Eu não quero falar mais nisso, pelo menos nessa noite. Digame<br />
- continuou - você tem muitas mulheres?<br />
- Não, a única jovem que me foi prometida está muito distante<br />
daqui, provavelmente ainda confinada, aguardan<strong>do</strong> o meu regresso<br />
para casarmos.<br />
- E você até agora se mantém casto?<br />
- Sim - respondi meio sem jeito.<br />
Tzá tirou a roupa. Os seus longos cabelos ondula<strong>do</strong>s encobriam<br />
parcialmente os seios bem forma<strong>do</strong>s. Virou-se e calmamente<br />
adentrou nas águas, mergulhan<strong>do</strong> em seguida.<br />
Foi apenas um único mergulho, sain<strong>do</strong> logo depois.<br />
Caminhan<strong>do</strong> na minha direção fazia refletir ao luar, toda a<br />
beleza de sua nudez.<br />
Quan<strong>do</strong> ela chegou bem perto de mim, levantei-me<br />
rapidamente e permaneci para<strong>do</strong>, sem saber o que fazer.<br />
A linda mulher acariciou-me o rosto com o <strong>do</strong>rso da mão. Em<br />
seguida, com os de<strong>do</strong>s entre os meus cabelos, afagou
carinhosamente a nuca, ao mesmo tempo em que encostava os seus<br />
<strong>do</strong>ces lábios nos meus, em um beijo ardente e arrebata<strong>do</strong>r.<br />
Sentin<strong>do</strong> os seus seios roçan<strong>do</strong>-me o peito e a sua coxa direita<br />
subin<strong>do</strong> e descen<strong>do</strong>, entre as minhas pernas, abracei-a com força,<br />
deslizan<strong>do</strong> as minhas mãos pela sua pele macia e se<strong>do</strong>sa.<br />
Deitamos na relva. Ela ficou sobre mim e esfregou lentamente a<br />
sua pele molhada e fria em meu corpo quente e sua<strong>do</strong>.<br />
Em voz rouca, sussurrou em meus ouvi<strong>do</strong>s, excitantes<br />
murmúrios.<br />
Comecei a entrar em uma insuportável luta interior. Queria<br />
pertencer apenas a Uiramirim, mas desejava, incontrolavelmente,<br />
possuir e ser possuí<strong>do</strong> por aquela mulher.<br />
Morden<strong>do</strong> e arranhan<strong>do</strong>, com suas unhas compridas, os meus<br />
ombros, o meu peito e as minhas costas, ela levava-me à loucura,<br />
instigan<strong>do</strong> a manifestação <strong>do</strong> sentimento puro e inocente <strong>do</strong> animal,<br />
até então recolhi<strong>do</strong>, mas que agora ansiava por saltar ao mun<strong>do</strong> e<br />
urrar como a fera mais feroz e in<strong>do</strong>mável.<br />
Cerrei os dentes com a sensação mais incrível da minha vida.<br />
Era como se a terra tremesse e jatos de fogo saíssem pelo chão, por<br />
to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s, na fantástica e frenética dança <strong>do</strong>s quadris.<br />
Irrompeu pela noite inteira o furor delirante <strong>do</strong> desejo da carne.<br />
No amanhecer <strong>do</strong> novo dia banhamos os nossos corpos, ainda<br />
febris, nas águas da cachoeira...
54 - AS MULHERES GUERREIRAS<br />
Em <strong>do</strong>is dias preparei uma oca especialmente para Tzá e eu.<br />
Embora não a amasse, sentia-me preso a ela pelas sensações<br />
inéditas que experimentava.<br />
Acabei ceden<strong>do</strong> ao seu desejo de prepará-las para um combate.<br />
Escolhi na mata o melhor material para confeccionar as armas de<br />
guerra. Arcos, flechas e tacapes foram produzi<strong>do</strong>s com um cuida<strong>do</strong><br />
único, em to<strong>do</strong>s os pormenores.<br />
As mulheres aprenderam, com grande facilidade, a confeccionar<br />
os seus próprios instrumentos.<br />
Treinei-as incansavelmente. Surpreso, constatei que<br />
demonstravam uma habilidade incomum no manuseio das armas.<br />
Disciplinadas e muito dedicadas, esforçavam-se nos mínimos<br />
detalhes.<br />
Exigi o máximo de cada uma, principalmente na capacidade de<br />
concentração, conforme o meu avô havia-me ensina<strong>do</strong>. Tzá sempre<br />
se destacava em to<strong>do</strong>s os exercícios.<br />
No final de oito dias, quan<strong>do</strong> já revelavam uma capacidade fora<br />
<strong>do</strong> comum para flechar alvos móveis, com impressionante precisão, a<br />
líder disse:<br />
- Agnã, está na hora de atacarmos.<br />
- Vocês ainda não estão totalmente preparadas - ponderei.<br />
- Não importa, teremos que partir, pois sinto que novos<br />
sacrifícios irão ocorrer em breve. Temoc escolherá os filhos de nossos<br />
parentes para isso.<br />
- Embora tenham adquiri<strong>do</strong> grande perícia no uso <strong>do</strong> arco e<br />
flechas, vocês ainda não estão em condições de um combate corpo a<br />
corpo. O meu conhecimento sobre o emprego <strong>do</strong> tacape é muito<br />
limita<strong>do</strong>. Será difícil terem sucesso.<br />
- Não preten<strong>do</strong> expor minhas companheiras a um ataque<br />
frontal.<br />
- Então o que fará?<br />
- Tenho um plano de ação. Provavelmente Temoc está fora da<br />
aldeia com os seus melhores guerreiros, a nossa procura. Os homens<br />
que permaneceram devem ser, em sua maioria, simples guardas.<br />
Faremos um ataque durante a madrugada; jamais imaginarão essa<br />
possibilidade. O fator surpresa irá pegá-los despreveni<strong>do</strong>s. Agiremos<br />
rapidamente, com tempo apenas para resgatar os nossos parentes<br />
mais próximos.
- Mas e o feiticeiro?<br />
- Não se preocupe com ele.<br />
- Todavia, é o sacer<strong>do</strong>te que informa Temoc sobre tu<strong>do</strong> o que<br />
se passa.<br />
- Não agora.<br />
- E por que não revelaria o seu plano?<br />
- Porque teve a neta morta por Temoc.<br />
- Então ele é o seu pai?<br />
- Sim. Em vista disso, teme que eu também morra, perden<strong>do</strong> a<br />
última pessoa que ama. No entanto, não poderá enganar Temoc por<br />
muito tempo.<br />
- Quan<strong>do</strong> partirão?<br />
- Amanhã. Você virá conosco?<br />
- Não posso.<br />
- Precisamos de você!<br />
- Sou contra o derramamento de sangue.<br />
- Sem você, poderá haver muito mais mortes.<br />
Pensei um pouco e respondi:<br />
- Está bem, desde que se evite a morte de qualquer pessoa.<br />
- Agnã, quan<strong>do</strong> se luta por alguma coisa, mesmo ten<strong>do</strong> a<br />
certeza de uma vitória, não é possível desconsiderar qualquer<br />
sofrimento. É o risco que se corre. É verdade que cada la<strong>do</strong> terá a<br />
sua razão e se sentirá agin<strong>do</strong> conforme seus corretos princípios. Mas<br />
a minha <strong>do</strong>r só pode <strong>do</strong>er em mim. Por mais que alguém queira<br />
sentir o que sinto, só eu sei o quanto sofro. To<strong>do</strong> aquele que luta<br />
para não sofrer, acha que a sua peleja é a mais justa. Sei que as<br />
minhas atitudes não trarão a minha filha de volta, contu<strong>do</strong>, cada<br />
criança que morrer nas mãos de Calak, fará com que a minha <strong>do</strong>r<br />
aumente ainda mais.<br />
Convenci<strong>do</strong> a ajudá-las, preparei o sedativo para ser usa<strong>do</strong> nas<br />
pontas das flechas, no lugar <strong>do</strong> veneno que Tzá queria empregar.<br />
Depois de um longo percurso, na madrugada de Lua cheia,<br />
alcançamos o acampamento, que ficava no sopé de uma montanha.<br />
Um riacho descia <strong>do</strong> ponto mais alto, passan<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> das ocas <strong>do</strong>s<br />
principais guerreiros. Ele desaguava em um rio, em cuja margem<br />
superior ficavam as oguassus, onde se alojavam a maioria <strong>do</strong>s<br />
nativos.<br />
Estávamos to<strong>do</strong>s tingi<strong>do</strong>s de preto, conforme determinação de<br />
Tzá. Por sua ordem, duas jovens entraram ocultamente na aldeia,<br />
com a finalidade de observar o número de guerreiros que estavam
em vigília e de avisar as pessoas de confiança, que iríamos atacar,<br />
para que ficassem prontas para fugir.<br />
As moças retornaram com notícias alvissareiras. Eram poucos<br />
os homens que montavam guarda e os principais guerreiros<br />
realmente haviam saí<strong>do</strong> com Temoc e Zuma pela floresta à nossa<br />
caça.<br />
A líder explicou o plano de ataque:<br />
- Eu e mais quatro iremos subir pelo riacho sem que percebam,<br />
para acuá-los pela retaguarda. Os guardas que estão vigian<strong>do</strong> a<br />
margem <strong>do</strong> rio serão aborda<strong>do</strong>s em <strong>do</strong>is pontos distintos. Um<br />
próximo ao riacho, por um grupo de cinco guerreiras e outro mais<br />
afasta<strong>do</strong>, mas rente ao rio, por outro grupo de cinco. Após iniciarmos<br />
a ofensiva, Agnã e mais seis guerreiras avançarão pelo flanco<br />
esquer<strong>do</strong>, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> oposto <strong>do</strong> riacho, onde se encontram a maioria <strong>do</strong>s<br />
nossos parentes.<br />
Defini<strong>do</strong>s os integrantes <strong>do</strong>s grupos, to<strong>do</strong>s se posicionaram. O<br />
sinal de ataque partiu de Tzá. Ela e suas guerreiras atingiram os<br />
guardas com dar<strong>do</strong>s tranqüilizantes e atearam fogo nas ocas <strong>do</strong>s<br />
guerreiros que estavam <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>. Foi uma ação de grande coragem<br />
e maestria.<br />
Quan<strong>do</strong> observamos as primeiras chamas surgin<strong>do</strong>, em meio a<br />
uma rala névoa, começou o ataque geral.<br />
Os <strong>do</strong>is grupos, à margem <strong>do</strong> rio, facilmente puseram os<br />
guardas fora de combate e também atearam fogo nas oguassus.<br />
As flechas incandescentes cruzan<strong>do</strong> o céu, os guerreiros cain<strong>do</strong><br />
seda<strong>do</strong>s e feri<strong>do</strong>s e a gritaria ensurdece<strong>do</strong>ra de várias pessoas davam<br />
a impressão de que o assalto era realiza<strong>do</strong> por centenas de inimigos.<br />
Os bravos, que se encontravam <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> na aldeia, não<br />
tiveram chance para uma reação imediata. Aturdi<strong>do</strong>s, procuravam<br />
mais se esconder da ofensiva <strong>do</strong> que reagir a ela. Mal sabiam o que<br />
de fato acontecia.<br />
Antes que pudessem fazer alguma coisa, o meu grupo começou<br />
o numeroso resgate com muita rapidez e logo chegamos ao local<br />
combina<strong>do</strong> para a retirada em conjunto.<br />
Na contagem, estavam todas as guerreiras, mais trezentas e<br />
cinqüenta e nove mulheres, quatrocentas e trinta crianças e cento e<br />
treze homens, to<strong>do</strong>s ilesos.<br />
Partimos sem demora, deixan<strong>do</strong> para trás, centenas de<br />
guerreiros aterroriza<strong>do</strong>s, em meio a uma aldeia em chamas. No
entanto, Temoc logo saberia <strong>do</strong> ocorri<strong>do</strong> e iniciaria uma implacável<br />
perseguição.
55 - SOB O <strong>DO</strong>MÍNIO DA CARNE<br />
Com todas as dificuldades possíveis, caminhamos por <strong>do</strong>is dias<br />
consecutivos pela floresta, porém, muitos já estavam exaustos e não<br />
teriam condições de manter a mesma marcha. Em conseqüência,<br />
retardariam a nossa fuga e Temoc logo nos alcançaria. Durante um<br />
rápi<strong>do</strong> descanso, Tzá disse preocupada:<br />
- Agnã, estamos in<strong>do</strong> para um lugar muito mais seguro e de<br />
fácil defesa, em que seriam necessários milhares de homens para nos<br />
capturar. Temo, entretanto, que os guerreiros nos alcancem antes de<br />
chegarmos.<br />
O local em que havíamos permaneci<strong>do</strong> escondi<strong>do</strong>s era muito<br />
mais perto, porém, a travessia era muito perigosa para as crianças e<br />
i<strong>do</strong>sos.<br />
- Siga em frente, eu vou ficar. Tentarei retardar ao máximo os<br />
nossos persegui<strong>do</strong>res.<br />
- Como você vai fazer isso sozinho?<br />
- Prepararei armadilhas pelo caminho que, embora não causem<br />
a morte de ninguém, irão fazer com que avancem com muito mais<br />
cuida<strong>do</strong> e isso fará com que se atrasem.<br />
- Deixarei cinco guerreiras consigo para ajudá-lo.<br />
Tzá prosseguiu pela floresta, conduzin<strong>do</strong> os fugitivos. Caminhei<br />
mais devagar, com as jovens combatentes, espalhan<strong>do</strong> as arapucas<br />
pela trilha.<br />
Logo começamos a escutar os gritos desespera<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s homens<br />
de Temoc, que iam cain<strong>do</strong> nas ciladas.<br />
Passamos a fustigá-los freqüentemente e assim, sob constante<br />
tensão, tiveram que progredir com mais cautela, retardan<strong>do</strong> a<br />
caminhada.<br />
Dois dias após, escutamos a voz de Temoc em meio à mata,<br />
falan<strong>do</strong> na língua karib:<br />
- Agnã! Agnã! Tenho comigo uma criança. Caso você não se<br />
entregue imediatamente, ela será morta em oferenda aos deuses. A<br />
cada dia, uma será sacrificada.<br />
Quan<strong>do</strong> informei às guerreiras o que estava acontecen<strong>do</strong>, elas<br />
ficaram inconformadas e tive que contê-las para que não atacassem<br />
cegamente.<br />
- Como eu, sen<strong>do</strong> um estranho, posso me preocupar com a vida<br />
de suas crianças, mais <strong>do</strong> que você que as cria? - argumentei na<br />
língua nativa <strong>do</strong> líder <strong>do</strong>s homens vermelhos.
- Para o meu povo, isso é um costume natural que só traz a<br />
bênção <strong>do</strong>s deuses - respondeu no mesmo idioma.<br />
- E como esses deuses que os protegem, podem exigir o<br />
derramamento <strong>do</strong> sangue de inocentes?<br />
- É nisso que acreditamos. A oblação de um compensa a vida<br />
de to<strong>do</strong>s. Renda-se, ou não haverá outra alternativa.<br />
Des<strong>do</strong>brei e fui até onde Temoc se encontrava. Um menino de<br />
<strong>do</strong>is anos estava em seu colo. Com uma lâmina afiadíssima, ele<br />
pressionava o pescoço <strong>do</strong> pequeno a ponto de fazer-lhe escorrer um<br />
filete de sangue.<br />
Vi que seus pensamentos demonstravam sua firme disposição.<br />
Voltan<strong>do</strong> ao corpo físico, respondi:<br />
- Abaixe o seu punhal, pois a oferenda a seus deuses será a<br />
minha própria vida.<br />
Pela clarividência, percebi que Temoc ficara satisfeito, soltan<strong>do</strong><br />
a criança.<br />
- Venha, estamos aguardan<strong>do</strong>-o - disse o chefe <strong>do</strong>s guerreiros.<br />
Reuni as cinco jovens e mandei que fugissem o mais rápi<strong>do</strong><br />
possível e assim entreguei-me a Temoc, apresentan<strong>do</strong>-lhe o meu<br />
arco e flechas.<br />
- Você está falan<strong>do</strong> muito bem a minha língua. Onde estão as<br />
rebeldes? - perguntou.<br />
- Não sei, mas provavelmente muito longe daqui, em um lugar<br />
seguro.<br />
Olhan<strong>do</strong> fixamente em meus olhos, Temoc disse a to<strong>do</strong>s:<br />
- Voltemos a nossa aldeia para cuidar <strong>do</strong>s feri<strong>do</strong>s e mostrar ao<br />
povo que capturamos o grande e poderoso guerreiro tupi. Elas não<br />
poderão ir tão longe assim. Em breve iremos capturá-las e faremos<br />
delas o exemplo para to<strong>do</strong>s os demais que ousarem se insurgir contra<br />
as nossas sagradas tradições!<br />
De retorno à aldeia, notei que estava quase toda reconstruída.<br />
Muitos olhavam para mim com ódio, festejan<strong>do</strong> o feito da minha<br />
prisão. Esperan<strong>do</strong> pelo pior, fui conduzi<strong>do</strong> até a oca <strong>do</strong> senhor da<br />
aldeia.<br />
- Agnã, estou disposto a fazer um acor<strong>do</strong> com você - disse<br />
Temoc, em voz concilia<strong>do</strong>ra.<br />
- O que pretende? - perguntei, observan<strong>do</strong> a sua aura.<br />
- Quero que me ajude a trazer as fugitivas de volta.<br />
- E por que eu faria isso? Certamente irá sacrificá-las.
- Não, mesmo eu, chefe supremo desse povo, tenho algumas<br />
limitações em minhas atitudes. O meu prestígio foi abala<strong>do</strong> e quero<br />
resgatá-lo. Proponho que traga os renega<strong>do</strong>s e não haverá<br />
retaliações de minha parte.<br />
- Você não pode esconder a verdade, sei que em seu coração só<br />
há um sentimento: o desejo de vingança.<br />
- É verdade, não obstante, nem sempre o que sentimos é o que<br />
podemos fazer. Não posso matar ou castigar a to<strong>do</strong>s. Claro que as<br />
principais responsáveis serão punidas, mas eu pouparei suas vidas.<br />
Quanto a Tzá, nada lhe acontecerá, ten<strong>do</strong> permissão para ir embora<br />
com você, em respeito a Zuma. Também posso vê-lo como você é,<br />
Agnã. Deseja ser mais um pacifista, opon<strong>do</strong>-se à luta e mortes. É a<br />
sua chance de evitar mais derramamento de sangue.<br />
- As suas palavras parecem sinceras, mas não sei se devo<br />
atender o seu pedi<strong>do</strong>.<br />
- Não precisa responder agora. Como prova da minha boa<br />
vontade, não irei mandar açoitá-lo e nem jogá-lo no fosso. Você<br />
ficará apenas confina<strong>do</strong> em uma oca e receberá o tratamento digno<br />
de um visitante honra<strong>do</strong>. Terá algum tempo para pensar.<br />
Conforme as suas ordens, fui conduzi<strong>do</strong> a uma palhoça e ali<br />
permaneci. Do la<strong>do</strong> de fora, uma dezena de guerreiros montavam<br />
guarda.<br />
Quan<strong>do</strong> anoiteceu, três belas mulheres foram levar-me a<br />
refeição. A comida constituía-se apenas de alguns tipos de carne<br />
vermelha assada. Um vinho era a única bebida.<br />
Agradeci e respeitosamente recusei a oferta. Pedi apenas frutas<br />
e água, porém, uma delas, ponderou, temerosa:<br />
- Jovem guerreiro, não podemos levar de volta o que lhe<br />
trouxemos. Será uma grande ofensa, além <strong>do</strong> que, Temoc pensará<br />
que não lhe agradamos e certamente irá mandar nos castigar.<br />
- Não acredito que ele desse essa ordem.<br />
- Mas foi o que disse em público, antes de virmos para cá.<br />
Provavelmente ele mandará um ordenança até aqui para ver se o<br />
guerreiro se alimentou e foi bem servi<strong>do</strong>.<br />
- Então comam vocês e bebam to<strong>do</strong> o vinho. Assim, pensarão<br />
que me alimentei.<br />
- Também não podemos. Fizemos o voto sagra<strong>do</strong> da verdade,<br />
se mentirmos será pior Temoc não hesitará em nos matar.<br />
Perceben<strong>do</strong>, pela aura da moça, que estava sen<strong>do</strong> sincera,<br />
acabei concordan<strong>do</strong>.
Era difícil conseguir comer aquilo, no entanto, sob os olhares<br />
atentos das jovens, pouco deixei de resto.<br />
O vinho era realmente saboroso e logo fiquei embriaga<strong>do</strong>.<br />
Depois, pedi que elas saíssem da oca para que eu pudesse <strong>do</strong>rmir,<br />
mas elas recusaram:<br />
- Temos ordens para nos deitarmos com você - disse uma<br />
outra.<br />
A idéia estimulou a minha vontade animal que havia si<strong>do</strong><br />
despertada por Tzá. Ainda assim, tentei conter-me, entretanto, elas<br />
se despiram e começaram a acariciar-me. Não pude resistir ao que<br />
realmente desejava.<br />
Na manhã, Temoc foi ver-me. As mulheres saíram logo que<br />
entrou.<br />
- Teve uma boa noite? Alimentou-se bem? Foi bem servi<strong>do</strong>?<br />
Cada pergunta ecoava em meu ouvi<strong>do</strong> como um trovão. A<br />
minha cabeça <strong>do</strong>ía em meio a um mal-estar geral.<br />
Perceben<strong>do</strong> o meu esta<strong>do</strong>, ele explicou:<br />
- É o efeito <strong>do</strong> vinho, logo passará. Decidiu alguma coisa?<br />
- Não estou conseguin<strong>do</strong> pensar em nada.<br />
- Então não tenha pressa. Quan<strong>do</strong> estiver em condições, me dê<br />
a resposta, enquanto isso, desfrute o máximo que puder.<br />
As mulheres continuaram a me servir e a <strong>do</strong>rmir comigo<br />
durante as noites.<br />
No final de seis dias sentia-me pior <strong>do</strong> que se tivesse si<strong>do</strong><br />
açoita<strong>do</strong> por to<strong>do</strong> esse tempo. Foi o perío<strong>do</strong> suficiente para que não<br />
procurasse mais dispensar o vinho e a companhia das jovens.<br />
Ao entardecer fui retira<strong>do</strong> <strong>do</strong> confinamento para assistir a um<br />
castigo, em ato público.
56 - O GRANDE MARTÍRIO<br />
Quan<strong>do</strong> vi quem seria puni<strong>do</strong>, fiquei profundamente aborreci<strong>do</strong>.<br />
Para justificar o ato, Temoc fez um solene discurso:<br />
- Por muitos anos, o sacer<strong>do</strong>te nos serviu com sua capacidade<br />
mística. Porém, depois da chegada <strong>do</strong> estrangeiro, passou a agir<br />
contra os interesses <strong>do</strong> nosso povo. Intencionalmente conduziu-nos a<br />
erros que possibilitaram o ataque covarde a nossa aldeia, revelan<strong>do</strong>se<br />
cúmplice das rebeldes, comandadas pela sua própria filha. Já não<br />
podemos mais confiar em suas palavras engana<strong>do</strong>ras, pois sua real<br />
intenção é trair os nossos costumes, nossa gente e nossos deuses.<br />
Por isso, ele será castiga<strong>do</strong>. Ainda não com a morte, porque teremos<br />
o prazer de vê-lo morrer apenas na presença de sua protegida.<br />
Com um sinal seu, Calak apresentou-se com um toco de<br />
madeira incandescente e se aproximou de Zuma que estava<br />
amarra<strong>do</strong> em um tronco.<br />
Um guerreiro segurou firmemente a cabeça <strong>do</strong> sacer<strong>do</strong>te,<br />
enquanto o carrasco aproximava a brasa <strong>do</strong> rosto <strong>do</strong> velho.<br />
Diante disso, eu gritei:<br />
- Parem com isso! Tenham clemência!<br />
Não atenderam o meu pedi<strong>do</strong>. Calak cegou a vista direita de<br />
sua vítima.<br />
Tentei intervir, contu<strong>do</strong>, fui facilmente conti<strong>do</strong> por um único<br />
guerreiro. Fiquei desespera<strong>do</strong>, ven<strong>do</strong> o ancião contorcer-se to<strong>do</strong> e a<br />
gritar de <strong>do</strong>r. Procurei reativar os meus chacras para adquirir mais<br />
força, porém, nem mesmo conseguia respirar direito.<br />
Calak, olhan<strong>do</strong> para mim, disse:<br />
- Agora, em sua homenagem, Agnã, irei cegar o outro olho <strong>do</strong><br />
trai<strong>do</strong>r!<br />
Impotente para esboçar qualquer reação que impedisse o ato,<br />
gritei o que pude, suplican<strong>do</strong> a Temoc que tivesse misericórdia.<br />
Mesmo assim, o carrasco friamente cumpriu a sua promessa.<br />
Fui toma<strong>do</strong> por um sentimento que jamais havia senti<strong>do</strong> antes.<br />
- O que está se passan<strong>do</strong> dentro de você, Agnã? Está com ódio?<br />
Quer vingar o sacer<strong>do</strong>te matan<strong>do</strong> Calak?<br />
Toma<strong>do</strong> pela fúria, não respondi. Em seguida, o líder da aldeia<br />
ordenou que o guarda me soltasse e me desse um punhal.<br />
Avancei sobre o cruel verdugo. Facilmente ele pôde me<br />
desarmar, jogan<strong>do</strong>-me no chão. Quan<strong>do</strong> ergueu o braço para desferir
o golpe mortal, Temoc interveio e man<strong>do</strong>u que me deixasse vivo. A<br />
contragosto obedeceu.<br />
Fui joga<strong>do</strong> no fosso com o feiticeiro, que ainda gemia pela <strong>do</strong>r<br />
imensa que sentia.<br />
Tentei fazer alguma coisa para atenuar o seu sofrimento,<br />
contu<strong>do</strong>, não consegui. A minha mente parecia estar vazia <strong>do</strong><br />
conhecimento e não podia me concentrar o suficiente para ajudá-lo.<br />
No dia seguinte, Temoc veio nos ver.<br />
- Então, Agnã, o seu prazer e as suas amarguras são de um<br />
homem comum? - perguntou com ironia.<br />
Permaneci cala<strong>do</strong> e ele continuou a provocação:<br />
- Também não quer me matar? Admita a verdade. Eu sei que<br />
sim, o seu silêncio é a confirmação de seus reais desejos. Agnã, você<br />
está derrota<strong>do</strong> e, vivo, é um homem morto. Traiu os seus mestres,<br />
suas convicções, traiu a si mesmo. Sua conduta e desejos não o torna<br />
mais digno da luz que busca e agora merece o destino cruel que o<br />
aguarda.<br />
Mantive-me em silêncio. Um sentimento de culpa fazia-me<br />
acreditar que ele estava certo. O dia passou sem nada para comer ou<br />
beber. O ancião, porém, mostrava-se sereno.<br />
- Ainda sente <strong>do</strong>r? - perguntei.<br />
- Não mais que a <strong>do</strong>r da alma.<br />
- Por que não fugiu quan<strong>do</strong> pôde?<br />
- Tinha que ganhar mais tempo para que a minha filha salvasse<br />
as crianças que puderam ser retiradas.<br />
- O que Temoc fará conosco?<br />
- Deverá usar-nos como isca para atrair as mulheres.<br />
- Mas ele havia-me pedi<strong>do</strong> para intermediar a rendição delas!<br />
- Foi apenas para lhe conquistar a simpatia, para ter alguma<br />
credibilidade, pois sabia o tempo to<strong>do</strong> que jamais você faria isso.<br />
- No entanto, eu vi em sua aura que estava sen<strong>do</strong> sincero.<br />
- Realmente, estava sen<strong>do</strong> sincero com o diabólico plano que<br />
armou.<br />
- Porém, eu perceberia se estivesse mentin<strong>do</strong>.<br />
- Quan<strong>do</strong> os sentimentos inferiores começam a se apoderar de<br />
um sensitivo, os seus julgamentos passam a se tornar não confiáveis<br />
até para si mesmo.<br />
- E por que iria querer a minha confiança se não tinha a<br />
intenção de cumprir com a sua palavra?
- Para poder tirar todas as suas forças. Ele tinha certeza que<br />
somente você poderia detê-lo e a única forma de evitar isso, seria<br />
destruir-lhe o íntimo.<br />
- Pois então conseguiu, porque sinto-me o último <strong>do</strong>s homens e<br />
o mais indigno <strong>do</strong>s mortais. Cedi à carne, à bebida, aos prazeres...<br />
- Realmente, são coisas que podem levar qualquer inicia<strong>do</strong> à<br />
queda espiritual. Você deveria ter aprendi<strong>do</strong> a <strong>do</strong>minar os seus<br />
desejos, a impedir o sexo animal e desenfrea<strong>do</strong>. Pessoas como nós<br />
são extremamente sensíveis.<br />
- Como evitá-las se passei a sentir grande necessidade delas?<br />
- Pela força de vontade, pelo esforço constante <strong>do</strong> autocontrole,<br />
com a atenção voltada apenas para o estu<strong>do</strong> e trabalho.<br />
- Era o que o senhor fazia quan<strong>do</strong> tinha a minha idade?<br />
- Meu jovem, quan<strong>do</strong> eu tinha a sua idade, possuía muitas<br />
mulheres, bebia to<strong>do</strong>s os vinhos e só gostava de carne crua.<br />
- Mas e a força de vontade, o autocontrole, a atenção voltada<br />
apenas às atividades?<br />
- Bem, naquela época, eu ainda não era um inicia<strong>do</strong>. Não sabia<br />
dessas coisas.<br />
- Então como pode achar que seja tão simples quanto diz? -<br />
perguntei indigna<strong>do</strong>.<br />
- Eu não disse que era simples. No caso <strong>do</strong> sexo, é preciso<br />
entender que o problema não está propriamente na união carnal, mas<br />
no vício, na dependência. Quan<strong>do</strong> o ato sexual é o complemento <strong>do</strong><br />
verdadeiro amor, ele consegue transmutar a energia animal em pura<br />
luz. Nesse caso, ocorre primeiramente a conjunção espiritual de duas<br />
almas. Qual seria o crime <strong>do</strong> amor?<br />
- Por isso que errei, eu não amava as mulheres com as quais<br />
me deitei. Temoc está certo, tornei-me um ímpio e perdi todas as<br />
minhas forças. Fui adverti<strong>do</strong> várias vezes que isso poderia acontecer<br />
e mesmo assim olvidei em me resguardar.<br />
- Agnã, o mal tem a pretensão de nos conhecer melhor <strong>do</strong> que<br />
a nós mesmos. Nada que se conquiste com o espírito é perdi<strong>do</strong> para<br />
as trevas. A sua força nunca o deixou. Você é que se afastou dela.<br />
Volte-se para si mesmo e reencontre o seu caminho e a luz mostrará<br />
que sempre esteve presente.<br />
- Quero acreditar em suas palavras, mas errei muito. Fui<br />
prova<strong>do</strong> e falhei.<br />
- Contu<strong>do</strong>, a sua prova talvez não tenha si<strong>do</strong> aquilo que lhe<br />
causou as falhas. Provavelmente, o seu maior teste seja a consciência
<strong>do</strong>s deslizes e a correção <strong>do</strong>s erros. Acredito que você esteja sen<strong>do</strong><br />
prova<strong>do</strong>, não pelos desacertos, mas pelos acertos que busca. Erga o<br />
seu rosto, enxugue as suas lágrimas e ponha-se de pé. Não há culpa<br />
e nem culpa<strong>do</strong>s, cada um faz aquilo que está de acor<strong>do</strong> com o seu<br />
estágio evolutivo e seja o que tenha que aprender, chegará o<br />
momento certo de encontrar-se verdadeiramente. Quan<strong>do</strong> voltar a<br />
enfrentar o mal, expulse de si os sentimentos ruins, pois são eles que<br />
o expõem às energias malignas e é justamente isso que Temoc quer.<br />
Ame, per<strong>do</strong>e e deseje a luz e então você se tornará um guerreiro<br />
imbatível.<br />
- Estou começan<strong>do</strong> a entender.<br />
- Mesmo? Então lhe pergunto: qual é o maior de to<strong>do</strong>s os<br />
martírios?<br />
- É não apenas acreditar que o mal existe, mas se achar<br />
impossibilita<strong>do</strong> de vencê-lo!<br />
Olhan<strong>do</strong> através <strong>do</strong>s olhos dilacera<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ancião, pude ver a<br />
sua plena satisfação, pelo brilho <strong>do</strong> olhar de sua alma.
57 - O RESGATE DE UMA ALMA<br />
O velho e eu permanecemos mais três dias no fosso,<br />
desprovi<strong>do</strong>s de qualquer comida. A água que podíamos beber vinha<br />
pelas gotas da chuva. Apesar disso, conseguimos nos manter vivos<br />
alimentan<strong>do</strong>-nos de puro prâna.<br />
No final <strong>do</strong> terceiro dia fomos retira<strong>do</strong>s <strong>do</strong> fosso e amarra<strong>do</strong>s<br />
em um tronco, no centro da aldeia.<br />
- O que vai acontecer? - perguntei ao sacer<strong>do</strong>te.<br />
- Temoc sabe que as guerreiras estão próximas e que algumas<br />
já nos observam. Ele quer que a minha filha acredite que seremos<br />
tortura<strong>do</strong>s ou mortos e assim fazer com que ela tente um ataque<br />
suicida para nos resgatar.<br />
- Se ela fizer isso não terá a menor chance. Pelo que estou<br />
ven<strong>do</strong>, ele tem quase <strong>do</strong>is mil experientes bravos e preparou bem as<br />
defesas.<br />
No início da noite, o senhor da aldeia se aproximou e disse:<br />
- Zuma já deve ter-lhe conta<strong>do</strong> o meu plano. É provável que a<br />
sua amada também se convença de que se trate de uma armadilha.<br />
Mas vou provocá-la a agir de qualquer forma. As mulheres são<br />
emocionalmente fracas e ela não suportará ver, impassivelmente, o<br />
sofrimento das pessoas a quem ama.<br />
Seguran<strong>do</strong> o meu arco e flechas, ele disse:<br />
- Como você pretenderia ser um guerreiro com esse arco e<br />
flechas de uma criança? Alguns <strong>do</strong>s meus homens dizem que essa<br />
sua arma é encantada, pois as flechas pegam fogo em pleno ar.<br />
Vamos ver se isso é verdade!<br />
Temoc logo irritou-se, porque mal conseguia esticar a corda <strong>do</strong><br />
arco.<br />
- Este arco nem serve para as crianças brincarem! - disse<br />
nervoso.<br />
Tentou então quebrá-lo, mas também não conseguiu. Sem jeito<br />
e diante <strong>do</strong>s olhares atônitos <strong>do</strong>s homens que o cercavam, jogou o<br />
arco e flechas no chão, pisotean<strong>do</strong>-os. Em seguida, ordenou aos<br />
guardas:<br />
- Preparem uma fogueira ao derre<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is. Vamos queimálos<br />
vivos!<br />
Voltan<strong>do</strong>-se para mim, disse em tom desafia<strong>do</strong>r:<br />
- Se sua magia é tão forte, quero ver se pode sobreviver ao<br />
fogo!
O velho, falan<strong>do</strong> baixinho, disse:<br />
- Agnã, você precisa fazer alguma coisa. Tzá está prestes a<br />
atacar e, se ela fizer isso, sucumbirá mais facilmente <strong>do</strong> que nós ao<br />
fogo.<br />
Lembran<strong>do</strong>-me <strong>do</strong> que havia aprendi<strong>do</strong> com o mago <strong>do</strong> tempo,<br />
concentrei-me ao máximo e passei a fazer as invocações mântricas:<br />
- Aiah ô ohumm... aiah ô ohumm...<br />
Nem bem terminei e os elementais da natureza manifestaramse.<br />
O vento aumentou repentinamente, de tal forma, que apagou<br />
as tochas que os guardas usariam para atear fogo na pilha de galhos<br />
secos que nos rodeavam.<br />
Nuvens negras cobriram o céu, fazen<strong>do</strong> o dia escurecer como a<br />
noite e trovões fizeram a terra tremer, anuncian<strong>do</strong> uma temível<br />
tempestade.<br />
Um raio atingiu em cheio o tronco em que estávamos<br />
amarra<strong>do</strong>s, transforman<strong>do</strong>-o em cinzas, sem que nos ferisse.<br />
Perplexos, os guerreiros ficaram paralisa<strong>do</strong>s. Temoc, veio ao<br />
meu encontro e disse:<br />
- Agnã, una-se a mim. Com os nossos conhecimentos<br />
<strong>do</strong>minaremos todas as terras e teremos to<strong>do</strong>s os homens e mulheres<br />
a nos servir. Divi<strong>do</strong> consigo o tesouro <strong>do</strong>s meus ancestrais, seremos<br />
invencíveis!<br />
- Não busco o poder ou a glória <strong>do</strong>s homens, mas a luz -<br />
respondi. - Você não poderá levar os tesouros materiais com seu<br />
espírito após a morte. A luz, porém, atravessa as fronteiras da vida e<br />
permanece mais íntegra e cristalizada no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s espíritos. O ouro<br />
que reluz em suas mãos, não é o mesmo que brilha para os meus<br />
olhos.<br />
Interrompen<strong>do</strong> o nosso diálogo, inúmeras flechas de fogo<br />
começaram a cruzar o céu, atingin<strong>do</strong> várias partes da aldeia, que<br />
logo incendiaram.<br />
Setas envenenadas e certeiras faziam os homens de Temoc<br />
caírem aos montes. Os guerreiros estavam sem coordenação e o<br />
ataque foi fulminante.<br />
Tzá, lideran<strong>do</strong> trezentas mulheres bem treinadas e algumas<br />
dezenas de homens, conseguiu desarticular a defesa bem posta da<br />
aldeia.
Calak, que estava ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> sacer<strong>do</strong>te, traiçoeiramente o<br />
golpeou pelas costas, antes que eu pudesse fazer alguma coisa e<br />
fugiu em seguida.<br />
Tentei conter a hemorragia <strong>do</strong> ancião, perceben<strong>do</strong> que a sua<br />
força vital se esvaía rapidamente.<br />
A grande guerreira, portan<strong>do</strong> uma espécie de tacape que<br />
possuía uma afiadíssima lâmina em sua parte oblonga, saiu ao<br />
encalço <strong>do</strong> covarde verdugo. Ele, perceben<strong>do</strong> que estava cerca<strong>do</strong> e<br />
que era inútil fugir, resolveu enfrentá-la.<br />
- Vou ensinar a você como luta um bravo! - esbravejou o<br />
carrasco.<br />
- Pensei que você só soubesse matar crianças e velhos<br />
indefesos!<br />
- Mulher atrevida, arrancarei a sua cabeça fora, em um piscar<br />
de olhos! - disse Calak, tentan<strong>do</strong> intimidá-la.<br />
Por três vezes ele inutilmente tentou golpeá-la com o punhal,<br />
porém, com grande habilidade, ela escapou de todas as investidas.<br />
- Você é rápida, mas não o bastante! Tente me acertar com<br />
esse tacape de criança! - falou provocativo, o homem que dava quase<br />
o <strong>do</strong>bro <strong>do</strong> tamanho dela.<br />
Teria si<strong>do</strong> melhor que não dissesse nada. Tzá, manobran<strong>do</strong> o<br />
seu instrumento de guerra com incrível agilidade, passou a atacar.<br />
Deixan<strong>do</strong> Calak zonzo com as evoluções que fazia, inesperadamente<br />
desferiu-lhe um golpe tão rápi<strong>do</strong>, que ele demorou alguns segun<strong>do</strong>s<br />
para perceber que a sua mão direita, que segurava o punhal, havia<br />
si<strong>do</strong> decepada.<br />
Nem bem a mão caía ao solo e a guerreira atingia-lhe o escroto<br />
impie<strong>do</strong>samente. O grande homem prostrou-se no chão e antes que<br />
pudesse soltar algum gemi<strong>do</strong>, em um último golpe, ela lançou-lhe<br />
fora a cabeça.<br />
- A única lição que aprendi com você é a de não ter piedade! -<br />
disse a vence<strong>do</strong>ra, ven<strong>do</strong> a cabeça <strong>do</strong> seu opositor rolan<strong>do</strong> pela terra.<br />
Temoc, que permanecia aturdi<strong>do</strong> o tempo to<strong>do</strong>, ao ver o seu<br />
melhor guerreiro decapita<strong>do</strong>, apanhou uma lança e, enfureci<strong>do</strong>, veio<br />
em minha direção.<br />
O velho, que estava em meus braços, mal poden<strong>do</strong> falar, disse:<br />
- Expulse de si os sentimentos ruins...<br />
Olhei para Temoc, que se aproximava rapidamente, para me<br />
matar. Ergui a mão direita e disse:<br />
- Que haja luz!
Quan<strong>do</strong> o líder da aldeia estava prestes a desferir o seu golpe,<br />
um imenso clarão surgiu na sua frente, fazen<strong>do</strong>-o tropeçar e cair no<br />
chão. Largan<strong>do</strong> a lança, levou as mãos ao rosto e gritou<br />
desesperadamente:<br />
- Estou cego! Estou cego! Acudam-me!<br />
Tzá aproximou-se dele e antes que pudesse atingi-lo<br />
mortalmente, eu interferi:<br />
- Deixe-o vivo! Ele já é um homem morto!<br />
Atenden<strong>do</strong> ao meu pedi<strong>do</strong>, ela veio em minha direção e<br />
perguntou:<br />
- Como está o meu pai?<br />
Olhei para ele e nada respondi. O sacer<strong>do</strong>te, reunin<strong>do</strong> as suas<br />
últimas forças, falou:<br />
- Filha... quan<strong>do</strong> fiz a minha iniciação sacer<strong>do</strong>tal... pedi ao Deus<br />
da magia... que, se um dia eu desviasse o meu conhecimento e<br />
poder... <strong>do</strong> caminho da luz... que eu fosse puni<strong>do</strong> com a morte como<br />
um trai<strong>do</strong>r...<br />
Agora... se as forças divinas considerarem o meu arrependimento...<br />
estarei feliz...<br />
- Pai, resista! Não vá embora, iremos começar uma vida nova,<br />
sem as atrocidades cometidas sob as ordens de Temoc!<br />
- Minha querida... per<strong>do</strong>e-me pelos anos que se passaram sem<br />
afeto e carinho... erroneamente achei que ser duro e firme lhe daria<br />
uma melhor educação...<br />
- Não precisa se justificar. Eu compreen<strong>do</strong> as suas atitudes.<br />
Jamais esquecerei as suas lições ministradas na calada da noite para<br />
que Temoc não soubesse.<br />
- Você é a única <strong>do</strong> nosso povo... que detém o conhecimento<br />
oculto... <strong>do</strong>s nossos ancestrais... Daqui para frente... você será a<br />
nova sacer<strong>do</strong>tisa...<br />
Olhan<strong>do</strong> para mim, o ancião disse suas palavras finais:<br />
- Agnã... siga o seu caminho... porque as suas provas já são<br />
passadas...<br />
Quan<strong>do</strong> o ancião deu o seu último suspiro, o combate já havia<br />
termina<strong>do</strong>. A tempestade acabou passan<strong>do</strong> sem que caísse uma única<br />
gota d'água sequer e o <strong>Sol</strong> despontou entre garbosas nuvens,<br />
anuncian<strong>do</strong> a vitória das mulheres guerreiras.<br />
A força de ataque perdeu cinco bravas moças e cinqüenta<br />
homens. Em compensação, a metade <strong>do</strong>s combatentes da aldeia
pereceram e muitos <strong>do</strong>s que sobreviveram estavam feri<strong>do</strong>s. Por<br />
determinação de Tzá, to<strong>do</strong>s os homens foram castra<strong>do</strong>s.<br />
No final da tarde, os mortos foram crema<strong>do</strong>s, como o costume<br />
local, entre os quais, o sacer<strong>do</strong>te.<br />
A aldeia passou a ser comandada pela líder feminina. Por seu<br />
decreto, os homens passariam a ter uma atitude mais servil, sen<strong>do</strong><br />
proibi<strong>do</strong>s de aprender a lutar.<br />
Na manhã seguinte Tzá veio ao meu encontro e disse:<br />
- Gostaria que você dividisse comigo a responsabilidade de<br />
governar o meu povo. Só você será o meu verdadeiro homem e<br />
senhor.<br />
- Não posso. Tenho que partir.<br />
- Você foi o único que não perdeu a virilidade. Eu esperava<br />
formar uma nova raça, com o seu sêmen frutifican<strong>do</strong> no ventre das<br />
mulheres dessa aldeia.<br />
- A oferta é interessante, mas já fiz a minha escolha.<br />
- Pretende se castrar?<br />
- Não - respondi, sorrin<strong>do</strong>.<br />
- Eu enten<strong>do</strong>, deixou o seu amor distante...<br />
- E tenho a esperança de encontrá-la novamente. Antes,<br />
todavia, há um longo caminho de aprendiza<strong>do</strong> pela frente, pelo qual<br />
devo passar.<br />
- Tolamente acreditei que pudesse conquistar o seu coração...<br />
- A nossa amizade, sincera e verdadeira, foi a nossa maior<br />
conquista.<br />
- Perdi a minha filha, o meu pai e agora você, o único homem<br />
que cheguei a amar. Jamais esquecerei o calor <strong>do</strong> seu corpo. Não<br />
haverá nenhum outro digno <strong>do</strong> meu carinho.<br />
- E como farão para a continuidade <strong>do</strong> seu povo, já que to<strong>do</strong>s<br />
os homens perderam a sua função reprodutora?<br />
- Esperaremos os meninos crescerem, com uma nova educação.<br />
Mas depois que fertilizarem algumas mulheres, também perderão os<br />
seus testículos. Até lá, talvez procuremos, pela floresta, algum<br />
espécime masculino para engravidar as minhas companheiras, antes<br />
de ser morto.<br />
- Por que agir dessa forma?<br />
- Se você ficar, evitará qualquer injustiça.<br />
- Não. Não transfira a mim a responsabilidade que cabe<br />
exclusivamente a você. O seu pai passou-lhe um valioso<br />
conhecimento.
- Em vida, quan<strong>do</strong> eu lhe cobrava uma atitude mais enérgica<br />
contra Temoc, ele dizia que não se poderia ser um sacer<strong>do</strong>te e um<br />
guerreiro ao mesmo tempo. Eu fiz a minha escolha.<br />
- E eu a minha.<br />
Sorri, apanhei meu arco e flechas e retirei-me silenciosamente,<br />
com a sensação de que um dia eu voltaria. Quan<strong>do</strong> estava prestes a<br />
entrar na floresta, Tzá gritou de longe, chaman<strong>do</strong> a minha atenção:<br />
- Agnã! Não estarei sozinha, você deixou em mim uma luz da<br />
sua vida! - disse a guerreira, passan<strong>do</strong> a mão em seu ventre.<br />
Ao la<strong>do</strong> daquela corajosa mulher, que em minhas narrativas<br />
para o meu povo, denominei de Cunhantã, pude ver uma menina<br />
vestida de branco, com uma coroa de flores na cabeça, seguran<strong>do</strong> as<br />
vestes de um velhinho, agora também vesti<strong>do</strong> de branco. Sorrin<strong>do</strong>,<br />
ele carregava no colo, um lin<strong>do</strong> mirim.<br />
Estavam felizes e eu pude partir em paz...
PARTE IV - FILHOS <strong>DO</strong> SOL<br />
58 - OS PRIMEIROS INCAS<br />
No terceiro dia de caminhada em direção da aldeia Karib,<br />
escutei a voz de Choam:<br />
- Agnã, siga para o oeste.<br />
- Choam? Onde você está? - perguntei, surpreso.<br />
- Estou longe, mas nessa direção, aguardan<strong>do</strong>-o, não demore.<br />
- E como eu posso ouvi-lo tão bem?<br />
- Você ouve a voz da minha mente.<br />
- Sei que você já fez isso antes, porém, como é possível?<br />
- Nossos espíritos estão muito liga<strong>do</strong>s, isso permite uma<br />
perfeita sintonia mental. Para aqueles que possuem uma capacidade<br />
de percepção sensorial, que ultrapasse as limitações humanas, fica<br />
muito mais fácil captar e transmitir os pensamentos, de uma forma<br />
tão clara como está sen<strong>do</strong> agora.<br />
- Você recebeu as mensagens que eu enviei?<br />
- Sim e orei muito para o seu sucesso.<br />
- Eu pensava que o venerável pudesse me ajudar mais<br />
diretamente.<br />
- A prova era sua. Há determinadas situações em que a melhor<br />
ajuda é apenas a oração.<br />
Foram vários dias de caminhada rumo aos Andes, até que<br />
cheguei próximo das grandes montanhas. Fiquei na dúvida como<br />
escolher por onde deveria iniciar a subida. Logo, porém, surgiu um<br />
ponto luminoso à minha frente, o mesmo que outrora havia<br />
possibilita<strong>do</strong> o meu primeiro contato com os Setenários.<br />
Seguin<strong>do</strong> a pequena luz, cheguei a uma determinada altitude,<br />
onde o frio e a falta de ar fizeram-me lembrar que deveria mudar o<br />
ritmo respiratório e ativar os centros energéticos.<br />
Após vários dias de caminhada, já ao anoitecer, vi uma<br />
claridade no meio da mata. Aproximan<strong>do</strong>-me, encontrei os Setenários<br />
senta<strong>do</strong>s ao derre<strong>do</strong>r da fogueira de luz, em profunda meditação.<br />
O ponto reluzente que me guiou, desapareceu no meio deles.<br />
Notei que havia um espaço no círculo que formavam, provavelmente<br />
reserva<strong>do</strong> para mim. Sentei-me silenciosamente e também comecei a<br />
meditar.
Revi to<strong>do</strong>s os últimos acontecimentos, todas as coisas que tinha<br />
feito e, depois disso, escutei, mentalmente, a voz de Choam a me<br />
perguntar:<br />
- Aprendeu alguma coisa?<br />
- Sim, venerável, aprendi muita coisa - respondi, também<br />
mentalmente.<br />
- Bom, muito bom. Busquemos a comunhão com o Supremo<br />
Cria<strong>do</strong>r.<br />
Após alguns instantes, passei a sentir uma profunda e terna<br />
paz. Vi inúmeros pontos <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s cain<strong>do</strong> sobre nós. Era um bálsamo<br />
que renovava o meu espírito sedento.<br />
No alto, pairou uma imensa bola de fogo, que trazia, em seu<br />
interior, uma estrela azulada de cinco pontas que emitia raios<br />
<strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s em to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s.<br />
Arrebata<strong>do</strong> em espírito, fui conduzi<strong>do</strong> à presença <strong>do</strong> Mestre <strong>do</strong>s<br />
Mestres, com Quem eu já havia sonha<strong>do</strong>. Envolvi<strong>do</strong> por uma imensa<br />
luz, aquele Ser, com os seus admiráveis olhos transluzentes, tocava a<br />
minha alma com uma ternura sem igual.<br />
Uma voz enigmática e retumbante, anunciou:<br />
- Obreiros da boa obra, atentem para a palavra de ordem! A<br />
hora será chegada para que os filhos <strong>do</strong>s homens recebam o Filho da<br />
Luz. Assim será!<br />
No dia seguinte, já renova<strong>do</strong> espiritualmente, prossegui a<br />
caminhada com os Setenários.<br />
Quan<strong>do</strong> atingimos o alto da última montanha, avistamos um<br />
lin<strong>do</strong> e imponente vale que tinha a forma de um gigantesco felino.<br />
Mesmo sem desejar usar a minha visão hiperfísica, pude ver que<br />
inúmeras entidades espirituais, de aspectos diferentes e estranhos,<br />
circulavam em várias direções, naquele lugar.<br />
- Aqui é onde os seres, entre os quais alguns vin<strong>do</strong>s de outros<br />
cantos <strong>do</strong> Universo, se preparam para levar aos homens, os sagra<strong>do</strong>s<br />
conhecimentos. É como se estivessem em um perío<strong>do</strong> de gestação<br />
espiritual, por isso esse lugar é conheci<strong>do</strong> como Cuzco, “O Umbigo <strong>do</strong><br />
Mun<strong>do</strong>” - explicou Choam.<br />
Descemos até o vale sagra<strong>do</strong> e logo encontramos um grupo de<br />
pessoas que nos aguardava. Vesti<strong>do</strong>s com roupas muito coloridas,<br />
usavam um tipo de gorro que cobria as orelhas. Antes de<br />
cumprimentá-los, Choam disse:<br />
- Agnã, você vai conhecer outros descendentes <strong>do</strong>s primeiros<br />
imigrantes <strong>do</strong> continente que desapareceram no mar. Diferentes <strong>do</strong>s
demais com quem já teve contato, esses representam a linhagem<br />
mais pura e fiel da mística Ordem Branca.<br />
Nossos anfitriões, muito felizes, reverenciaram os Setenários<br />
como se estivessem receben<strong>do</strong> a visita de deuses. Eu não entendia o<br />
que falavam, porém, não demoraria muito para que aprendesse a<br />
comunicar-me com facilidade.<br />
Ficamos aloja<strong>do</strong>s em uma edificação de pedras que tinha o teto<br />
de bambu e palha, sobre estruturas de cedro.<br />
Após alguns dias, seis homens, vin<strong>do</strong>s de direções diferentes,<br />
desceram das montanhas. Ao se apresentarem aos cheroupis,<br />
jogaram-se ao chão.<br />
- Ponham-se em pé! - ordenou Choam, contraria<strong>do</strong>.<br />
O Setenário, depois que abraçou a to<strong>do</strong>s com muito carinho,<br />
apresentou-me a eles:<br />
- Esse é Inti, que está receben<strong>do</strong> o conhecimento místico e<br />
astronômico <strong>do</strong> <strong>Sol</strong>. Jallpa é o estudioso da Terra e de seus<br />
fenômenos. Pára especializou-se no conhecimento das intempéries,<br />
os ciclos da chuva e de seus efeitos. Kori Kenti pesquisa a relação das<br />
energias <strong>do</strong> <strong>Sol</strong> com os fenômenos terrestres e seus efeitos nas<br />
criaturas. É fascina<strong>do</strong> por arco-íris. Ilhapa dedica-se ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
trovão e da ação <strong>do</strong>s elementais nessa manifestação da natureza.<br />
Chaska estuda as estrelas e as energias vindas <strong>do</strong> espaço.<br />
Em seguida, o cheroupi nos reuniu em um lugar mais reserva<strong>do</strong><br />
e disse:<br />
- Vocês têm passa<strong>do</strong> por inúmeros aprendiza<strong>do</strong>s e estão no<br />
final de uma preparação cuida<strong>do</strong>samente elaborada. Agora terão os<br />
últimos ensinamentos para a grande iniciação. Juntos, seguirão para<br />
o norte, onde encontrarão o sábio das montanhas. Ele é o mestre que<br />
desvenda os mistérios da mente humana. Devassan<strong>do</strong> o inconsciente,<br />
descobre os reais me<strong>do</strong>s e traumas de um homem que possam<br />
impedi-lo de alcançar os seus desejos e objetivos na vida. Nada lhe é<br />
oculto, tu<strong>do</strong> sabe. Com ele, vocês terão a oportunidade de descobrir<br />
muito mais sobre vocês mesmos.
59 - A TERRA-SEM-MALES<br />
Partimos no dia seguinte, ansiosos por conhecer o ancião que<br />
nos proporcionaria novas instruções. Encontramos um lugar habita<strong>do</strong><br />
que ficava encrava<strong>do</strong> num estreito vale, cerca<strong>do</strong> por altas<br />
montanhas.<br />
O povo que ali vivia era muito antigo e parecia que estavam no<br />
apogeu de seu desenvolvimento espiritual, pois a grande maioria das<br />
pessoas tinha uma aura extremamente iluminada e limpa de resíduos<br />
inferiores.<br />
Procuramos o sábio por to<strong>do</strong>s os cantos da cidade, porém não o<br />
localizamos. Embora fosse muito conheci<strong>do</strong>, ninguém sabia onde<br />
poderia ser encontra<strong>do</strong>.<br />
Dois dias se passaram e já estávamos fican<strong>do</strong> desanima<strong>do</strong>s.<br />
- Será que ele partiu para as montanhas? - perguntou Inti.<br />
- Talvez tenha i<strong>do</strong> para outra cidade - disse Pára.<br />
- Pode ser que não queira nos receber - falou Ilhapa.<br />
Enquanto debatíamos sobre o possível paradeiro <strong>do</strong> ancião, um<br />
menino, aparentan<strong>do</strong> ter sete anos, usan<strong>do</strong> um colar no qual havia<br />
uma pedra amarela em destaque, aproximou-se e perguntou:<br />
- Vocês estão procuran<strong>do</strong> alguém?<br />
- Sim, um homem i<strong>do</strong>so que tem um grande saber - respondeu<br />
Inti.<br />
- Então vocês querem encontrar Cayawalla, o eremita das<br />
montanhas?<br />
- Sim, talvez seja ele. Onde podemos achá-lo? - perguntei.<br />
- Ninguém pode encontrá-lo.<br />
- E como faremos? - perguntou Chaska. - Viemos aqui<br />
justamente para ter com ele.<br />
- Se vocês realmente precisam de Cayawalla, ele saberá e<br />
certamente os encontrará - explicou o menino.<br />
- Mas já estamos há <strong>do</strong>is dias nesse lugar e ele não veio ao<br />
nosso encontro! - disse Kori, indigna<strong>do</strong>.<br />
- Talvez ele não queira nos ver - falou Jallpa.<br />
- Ou ele pode estar nos observan<strong>do</strong>, para ver como nos<br />
comportamos, para nos conhecer melhor - palpitou Inti.<br />
- Vamos nos separar. Quem sabe ele queira falar conosco<br />
individualmente? - sugeriu Ilhapa.
To<strong>do</strong>s concordamos com a idéia e decidimos que cada um iria<br />
para uma direção diferente e aguardaria o possível contato com o<br />
sábio. Após três dias, voltaríamos a nos encontrar.<br />
No momento de nos despedirmos, notamos que o menino havia<br />
se afasta<strong>do</strong> sem que percebêssemos.<br />
Segui rumo às montanhas e, após uma boa caminhada, parei<br />
para descansar, sentan<strong>do</strong>-me em uma pedra. De repente, tive uma<br />
estranha sensação.<br />
Parecia que a terra se movia lentamente. Fiquei em pé e nada<br />
vi de diferente, contu<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> olhei para o chão, vi <strong>do</strong>is enormes<br />
olhos.<br />
Permaneci para<strong>do</strong>, procuran<strong>do</strong> entender o que era aquilo. Na<br />
verdade, eu estava estarreci<strong>do</strong> e não conseguia mover-me. Para o<br />
meu maior pavor, ouvi uma voz cavernosa dizen<strong>do</strong>:<br />
- Saia de cima de mim!<br />
Olhan<strong>do</strong> novamente para o chão, vi que um grande rosto<br />
formava-se sob os meus pés; a testa franzia-se nervosamente. A<br />
pedra, onde eu havia senta<strong>do</strong>, era justamente o seu nariz.<br />
Consegui dar um salto para trás, cain<strong>do</strong> senta<strong>do</strong>. Com um<br />
estron<strong>do</strong> assusta<strong>do</strong>r, uma criatura gigante, na forma humana,<br />
ergueu-se <strong>do</strong> chão. Coberta de terra, aproximou-se de mim chegan<strong>do</strong><br />
tão perto que pensei que iria esmagar-me.<br />
- Desculpe! Não sabia que você estava debaixo de mim, não<br />
tive a intenção de incomodá-lo! - eu disse.<br />
A criatura soltou uma horripilante gargalhada.<br />
- O que faz por essa região? - perguntou seriamente.<br />
- Estou à procura de Cayawalla, o sábio. Quem é você?<br />
- O guardião da montanha <strong>do</strong> sábio. O que deseja dele?<br />
- Conhecimento para alcançar a luz.<br />
- O que trouxe para lhe oferecer em troca disso?<br />
Abrin<strong>do</strong> os braços, respondi:<br />
- Nada.<br />
O gigante ficou contraria<strong>do</strong>:<br />
- Como você vem até aqui e não traz nenhuma oferenda?<br />
- Mas eu não sabia que era necessário.<br />
- Vá embora e só retorne com uma dádiva ao mestre.<br />
Observan<strong>do</strong> astralmente a criatura, percebi que não se tratava<br />
de nenhuma ilusão ou forma-pensamento. Ela realmente possuía um<br />
corpo astral e mental, mas que eu não conseguia perscrutar. Afasteime<br />
dali, sem maiores reclamações.
Preocupa<strong>do</strong>, não sabia o que fazer. Passei a tarde colhen<strong>do</strong><br />
frutos, flores exóticas e pedras brilhantes. Depois voltei a encontrar<br />
Ibijara, nome que dei ao ser e que significava, em minha língua, o<br />
Senhor da Terra.<br />
- O que trouxe, insignificante mortal? - perguntou.<br />
- Colhi frutos deliciosos que o sábio haverá de ter prazer em<br />
saborear.<br />
- O mestre não precisa de sua comida.<br />
- Tenho lindas flores com um perfume sem igual.<br />
- Há coisas mais bonitas e perfumadas na terra <strong>do</strong> mestre.<br />
- Apanhei essas pedras que encontrei pelo caminho e que<br />
podem decorar a sua moradia.<br />
- Cayawalla mora nas montanhas de ouro, onde essas coisas<br />
não serviriam como tapete para os insetos rastejantes!<br />
Desespera<strong>do</strong>, lembrei-me de que carregava uns incensos da<br />
cidade que visitara.<br />
- Tenho ervas aromáticas para queimar, preparadas pelos<br />
melhores magos.<br />
- A terra <strong>do</strong> mestre já produz a sua própria fragrância mística.<br />
- Então o que eu poderia oferecer?<br />
- Nenhum bem que o homem possa ver ou tocar.<br />
- E o que poderia ser?<br />
Ibijara não respondeu. Triste, sentei-me no chão e pensei: “Não<br />
tenho nada de real valor, a não ser a minha boa vontade e o meu<br />
desejo de ser útil às pessoas, como os Setenários”.<br />
- A sua oferenda está aceita! - disse o gigante, para a minha<br />
surpresa. - Siga para o norte.<br />
Antes que eu pudesse fazer qualquer pergunta, a enorme<br />
criatura transformou-se em pó que se espalhou pela terra.<br />
Andei no senti<strong>do</strong> recomenda<strong>do</strong>. Na manhã <strong>do</strong> dia seguinte, uma<br />
névoa cobria toda a região em que me encontrava. Acabei por perder<br />
a direção em que seguia e resolvi sentar no chão e descansar.<br />
Conforme o <strong>Sol</strong> ia subin<strong>do</strong> no horizonte, a névoa ia sumin<strong>do</strong> e<br />
aos poucos meu espanto foi aumentan<strong>do</strong>.<br />
Percebi que me encontrava em um lugar lindíssimo, de relva<br />
verde, de flores belíssimas, com pássaros de plumagem brilhante,<br />
cruzan<strong>do</strong> o céu.<br />
Para a minha maior surpresa, o menino, que anteriormente<br />
havia conheci<strong>do</strong>, surgiu no meio das árvores fron<strong>do</strong>sas e veio até o<br />
meu encontro, dizen<strong>do</strong>:
- Seja bem-vin<strong>do</strong>!<br />
- Que lugar é esse? - perguntei, assombra<strong>do</strong>.<br />
- É a cidade perdida, onde se acham os homens de alma limpa,<br />
os filhos <strong>do</strong>s deuses.<br />
- E o que você faz aqui?<br />
- É o meu lar!<br />
- É onde também mora Cayawalla?<br />
- Sim.<br />
- E ele está aqui? Preciso vê-lo!<br />
- Tenha calma, há mestres que só surgem quan<strong>do</strong> o aprendiz<br />
está pronto.<br />
Resolvi ter paciência e aguardar os acontecimentos. Continuei<br />
então a conversar com o estranho mirim.<br />
- Nunca vi um lugar como esse! - eu observei admira<strong>do</strong>.<br />
- Aqui, a sublimidade de toda a natureza é resultante da<br />
ausência de pensamentos ruins, desejos e sentimentos inferiores.<br />
Não há <strong>do</strong>enças, nem guerras, nem mortes.<br />
- Então é um lugar muito procura<strong>do</strong>.<br />
- Sim, mas só se torna visível para aqueles que vêem a vida<br />
com os olhos de um espírito virtuoso. Alguns de seus antepassa<strong>do</strong>s<br />
conheceram esse lugar. Eram homens de alma limpa, descendentes<br />
de um povo avança<strong>do</strong> que conseguiu sobreviver ao afundamento de<br />
seu continente, onde havia o maior de to<strong>do</strong>s os conhecimentos que<br />
os mortais podiam obter.<br />
- Onde ficavam essas terras?<br />
- No meio <strong>do</strong> oceano ao nordeste.<br />
- E como se chamava?<br />
- Atlântida.
60 - DE VOLTA À ATLÂNTIDA<br />
O menino e eu passamos boa parte <strong>do</strong> dia conversan<strong>do</strong> sobre<br />
os mais diferentes assuntos. Ele tinha um eleva<strong>do</strong> saber para a sua<br />
idade e uma rapidez de raciocínio espantosa.<br />
O mestre não apareceu, mas isso não me preocupava tanto<br />
naquele momento. Eu me sentia menos ansioso para encontrá-lo.<br />
Ao cair da noite recolhemo-nos à choupana onde o mirim<br />
morava e continuamos a conversar. De to<strong>do</strong>s os assuntos o que mais<br />
me fascinava era a história <strong>do</strong> continente submerso. Minha mente<br />
fervilhava com inúmeras indagações e algo <strong>do</strong>ía dentro de mim, algo<br />
que eu não conseguia identificar. Alguma coisa havia sobre a<br />
Atlântida que me perturbava. Ele, perceben<strong>do</strong> que me afligia no<br />
íntimo, disse:<br />
- Muitas vezes, a vida presente é o complemento ou a<br />
continuação de vidas passadas.<br />
- O que quer dizer?<br />
- Que a sabe<strong>do</strong>ria divina providencia o aprendiza<strong>do</strong> da alma, de<br />
acor<strong>do</strong> com as suas possibilidades. Por vezes, há tropeços tão<br />
traumáticos no caminho <strong>do</strong> ser, que é necessário que se passe muito<br />
tempo para que ele possa retomar a vivência que foi interrompida.<br />
Certas experiências ou provas da alma podem ser suspensas por um<br />
grande perío<strong>do</strong>, face às dificuldades que ela teve, mas certamente<br />
prosseguirão no momento adequa<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> já estiver mais<br />
fortalecida e preparada. Todavia, enquanto não retomar o que foi,<br />
temporariamente, deixa<strong>do</strong> de la<strong>do</strong>, terá sempre a sensação de algo<br />
inacaba<strong>do</strong>. Por isso, há pessoas que passam a vida toda procuran<strong>do</strong><br />
algo que, aparentemente, até desconhecem o que seja. É estranho,<br />
mas verdadeiro.<br />
- E como se pode saber o que exatamente está faltan<strong>do</strong> em<br />
nossas vidas? - perguntei.<br />
- Normalmente a resposta está bem perto de nós. Porém,<br />
muitas vezes não acreditamos nisso. É tão simples que não<br />
admitimos a possibilidade de resolver os conflitos de uma maneira<br />
tão fácil. As indefinições, as amarguras, as dificuldades, o incômo<strong>do</strong><br />
da incerteza, os sofrimentos, muitas vezes surgem para levar o<br />
indivíduo a buscar, na vida espiritual, as soluções que tanto deseja. A<br />
sua dedicação espiritual, em conseqüência, o conduzirá,<br />
inevitavelmente, à reflexão interior: “O que estou fazen<strong>do</strong> é certo ou<br />
erra<strong>do</strong>?”; “Isso está de acor<strong>do</strong> com os meus princípios?”; “As minhas
atitudes estão condizentes com a nova vida de luz que busco?”.<br />
Começamos a achar as respostas a nossos problemas, a harmonizar a<br />
nossa alma aflita, quan<strong>do</strong> passamos a refletir. Isso porque, somente<br />
com a plena consciência, o espírito efetivamente evolui. O processo é<br />
interior, a busca é dentro de si mesmo, é o caminho mais curto.<br />
Quan<strong>do</strong> o ser não toma a iniciativa de descobrir os seus próprios<br />
mistérios, acaba seguin<strong>do</strong> por uma vereda mais longa, cheia de<br />
desenganos, tristezas, desencantos, decepções e grandes<br />
sofrimentos. Os problemas surgi<strong>do</strong>s no mun<strong>do</strong> exterior irão levá-lo,<br />
da mesma forma, a uma reavaliação de sua vida, pela reflexão<br />
interior. O objetivo continua o mesmo, o meio de atingi-lo é que pode<br />
ser diferente. Quanto mais consciência disso, menos sofrimentos<br />
teremos, pois a razão da <strong>do</strong>r não é outra, senão de nos alertar de que<br />
algo está erra<strong>do</strong>, levan<strong>do</strong>-nos a procurar a sua razão. Entenden<strong>do</strong><br />
porque dói, fica muito mais fácil remediar.<br />
Fui <strong>do</strong>rmir com as palavras <strong>do</strong> mirim ressoan<strong>do</strong> em minha<br />
mente. Uma sensação estranha de perda afligia a minha alma e<br />
inúmeras perguntas me torturavam o íntimo.<br />
Mal poderia imaginar que as respostas viriam tão rapidamente,<br />
naquela mesma noite. Assim que fechei os olhos, escutei a voz<br />
trêmula de um ancião:<br />
- Agnã, venha comigo.<br />
Abri os olhos e não vi ninguém. Levantei-me e percebi que o<br />
garoto não se encontrava mais na choupana.<br />
- Deite-se e prepare-se para uma viagem que só a sua mente<br />
pode fazer.<br />
- Quem está falan<strong>do</strong>? Onde você está?<br />
- Sou Cayawalla e falo consigo através de nossas mentes.<br />
Relaxe e siga as minhas instruções.<br />
Deitei-me e fechei os olhos. Mentalmente eu perguntei:<br />
- O que devo fazer?<br />
- Ative o centro frontal e o coronário, deixan<strong>do</strong> a sua mente<br />
vagar para um passa<strong>do</strong> longínquo.<br />
Fiz o que ele dissera.<br />
- As portas <strong>do</strong> inconsciente, que impediram a recordação das<br />
existências anteriores, serão abertas e você viajará no tempo,<br />
regressan<strong>do</strong> a uma vida muito distante.<br />
Fui sentin<strong>do</strong> algo estranho, difícil de descrever, e inúmeros<br />
acontecimentos passaram com uma incrível rapidez em minha mente.<br />
Entretanto, eu os via de uma forma clara e detalhada.
Entendi que eram fatos referentes a reencarnações passadas.<br />
Em um determina<strong>do</strong> momento, senti como se estivesse olhan<strong>do</strong> o<br />
planeta de um lugar distante <strong>do</strong> espaço. Aos poucos, fui<br />
aproximan<strong>do</strong>-me dele, ven<strong>do</strong> um continente quase to<strong>do</strong> ilumina<strong>do</strong>.<br />
- Esta é a Atlântida, milênios antes de sua total destruição -<br />
disse Cayawalla. - Foi um <strong>do</strong>s lugares escolhi<strong>do</strong>s como morada, pelos<br />
seres que vieram das estrelas, degreda<strong>do</strong>s de seu mun<strong>do</strong>, como já é<br />
de seu conhecimento. Nessas terras, o extraterreno, que se tornou<br />
responsável pela leva de expurga<strong>do</strong>s, chamava-se Posêi<strong>do</strong>n e era<br />
trata<strong>do</strong> como um deus pelos habitantes primitivos. Trouxe consigo<br />
grande conhecimento que possibilitou um avanço indescritível que<br />
nenhum outro continente, habita<strong>do</strong> por outros condena<strong>do</strong>s das<br />
estrelas, pôde alcançar. O líder da comunidade dividiu Atlântida<br />
politicamente em dez governos distintos, mas unos e indissolúveis,<br />
comanda<strong>do</strong>s por seus próprios descendentes. Assim permaneceu<br />
continuamente, durante milênios. Com o tempo, o povo estelar<br />
miscigenou sua cultura com os primitivos. Naquela época, os bens<br />
materiais não eram mais importantes que os espirituais e, por isso,<br />
muitos alcançaram a graça de não precisar reencarnar e vários<br />
exila<strong>do</strong>s puderam voltar para o seu planeta de origem. Por essa razão<br />
os que aqui permaneceram aos poucos foram forman<strong>do</strong> um povo<br />
mais mesquinho, materialista, ambicioso e egoísta. Por seus próprios<br />
erros, acabaram provocan<strong>do</strong> uma terrível catástrofe que fez<br />
submergir parte <strong>do</strong> continente. Nos séculos posteriores, puderam<br />
reerguer-se moralmente. Muitos regeneraram-se e também<br />
conseguiram retornar ao lar distante. Permaneceram reencarna<strong>do</strong>s os<br />
espíritos mais atrasa<strong>do</strong>s, que trouxeram de volta um perío<strong>do</strong> de<br />
trevas. Foi nessas circunstâncias que você vivenciou o fim da maior<br />
de todas as nações. Passei a sentir uma sensação realmente<br />
incrível. Era como se eu houvesse renasci<strong>do</strong> no passa<strong>do</strong>. Eu estava<br />
vesti<strong>do</strong> de túnica branca, com as bordas desfiadas e <strong>do</strong>uradas.<br />
Calçava sandálias de couro e usava um ramo pratea<strong>do</strong> na cabeça, na<br />
frente <strong>do</strong> qual havia a figura de uma serpente.<br />
Com uma mochila de teci<strong>do</strong> a tiracolo, andava pelas ruas e<br />
avenidas de uma cidade monumentalmente erigida. As casas eram<br />
mansões de pedras brancas, negras e vermelhas.<br />
As vias eram revestidas de pedras e, em quase todas as praças,<br />
havia chafarizes de águas quentes e frias e jardins belíssimos. Muitas<br />
pessoas caminhavam tranqüilamente, algumas conduzin<strong>do</strong> feras<br />
<strong>do</strong>mesticadas com uma fina corrente.
Majestosos templos espalhavam-se pela cidade, alguns em<br />
forma de pirâmides; outros tinham uma fachada imponente, com<br />
enormes colunas re<strong>do</strong>ndas que sustentavam arcos magistralmente<br />
esculpi<strong>do</strong>s, com símbolos correspondentes aos ensinamentos ali<br />
ministra<strong>do</strong>s.<br />
Durante a minha caminhada eu via veículos aéreos cruzan<strong>do</strong> o<br />
céu a baixa velocidade. Usavam um combustível à base de energia<br />
etérica, chama<strong>do</strong> de vrill.<br />
Em um determina<strong>do</strong> momento, entrei em uma das mansões.<br />
Havia algumas pessoas a minha espera e logo anunciaram aos<br />
senhores da casa:<br />
- O médico chegou! O médico chegou!
61 - O ZELA<strong>DO</strong>R DAS ALMAS<br />
Um serviçal conduziu-me aos aposentos de um moribun<strong>do</strong>, com<br />
mais de cento e trinta anos que já não enxergava. A sua mulher<br />
estava em pé ao seu la<strong>do</strong>. A senhora, ao ver-me entrar, disse<br />
satisfeita:<br />
- Meu amor, mandaram um médico templário!<br />
- Ainda bem, não suporto mais ser atendi<strong>do</strong> por homens sem<br />
vocação - disse o homem deita<strong>do</strong> em seu leito.<br />
Naquela época, a medicina havia atingi<strong>do</strong> um altíssimo grau de<br />
desenvolvimento, com recursos fantásticos. A grande maioria <strong>do</strong>s<br />
médicos se tornava especialista em uma <strong>do</strong>ença específica. Eram<br />
poucos os que tinham formação sacer<strong>do</strong>tal e que praticavam uma<br />
medicina tradicional e milenar.<br />
Até alguns séculos atrás, as crianças, em tenra idade, eram<br />
levadas aos monastérios para serem examinadas pelos Grão-mestres.<br />
Conforme as aptidões que apresentavam em suas auras, algumas<br />
eram encaminhadas para determina<strong>do</strong>s templos, onde permaneciam<br />
confinadas, receben<strong>do</strong> secretos ensinamentos.<br />
As que possuíam tendência para a cura, aprendiam durante<br />
muitos anos tu<strong>do</strong> a respeito de todas as <strong>do</strong>enças, como diagnosticálas<br />
e como usar os inúmeros recursos que a natureza facultava para<br />
os tratamentos. Nos mosteiros também desenvolviam os seus<br />
atributos mediúnicos para o mesmo fim.<br />
Antes de sair de sua casa iniciática, em idade adulta, o<br />
terapeuta templário comprometia-se a tratar <strong>do</strong> povo, sem receber<br />
nada em troca, nenhum tipo de valor, nem presentes e nem mesmo<br />
comida de quem quer que atendesse. Finalmente, passava por um<br />
último estágio no templo de Posêi<strong>do</strong>n, onde permanecia durante seis<br />
meses. No final, fazia um juramento solene de fidelidade ao reino de<br />
Atlântida.<br />
Entretanto, quan<strong>do</strong> um povoa<strong>do</strong> tinha conhecimento de que um<br />
xamã se aproximava, deixavam espalha<strong>do</strong>s pelo caminho diversos<br />
tipos de comida. Caso ele se alimentasse, na entrada ou na saída, era<br />
um sinal de bom presságio para to<strong>do</strong>s, principalmente para a família,<br />
cuja refeição ele havia escolhi<strong>do</strong>.<br />
Considera<strong>do</strong>s homens sagra<strong>do</strong>s, os sacer<strong>do</strong>tes da medicina<br />
eram respeita<strong>do</strong>s e temi<strong>do</strong>s por to<strong>do</strong>s, inclusive pelos governantes,<br />
pois acreditavam que dispunham <strong>do</strong> poder sobre a vida e sobre a
morte. Um olhar reprova<strong>do</strong>r a alguém, poderia significar uma terrível<br />
maldição, garantida a to<strong>do</strong>s os familiares, por seguidas gerações.<br />
No meu tempo, porém, a maioria <strong>do</strong>s terapeutas não<br />
apresentavam mais a vocação necessária e nem possuíam os<br />
poderes extrafísicos. Muitos deles eram filhos de dignitários que<br />
buscavam, no título de médico, o destaque social.<br />
Para suprir a falta de capacidade e qualidade natural de um<br />
antigo xamã, a ciência da minha época desenvolveu recursos<br />
tecnológicos para diagnosticar as <strong>do</strong>enças e tratar os enfermos. Isso<br />
não seria tão ruim, se não se esquecessem de que, grande parte das<br />
<strong>do</strong>enças, provêm de almas <strong>do</strong>entes. Mas, com o avanço da medicina,<br />
o espírito começou a ser ignora<strong>do</strong>.<br />
Outro fator que deteriorou o atendimento médico foi o interesse<br />
financeiro. Eram poucos os terapeutas que se preocupavam mais em<br />
atender ao paciente, <strong>do</strong> que em receber o seu pagamento.<br />
Eu era um <strong>do</strong>s raros médicos forma<strong>do</strong> por uma escola iniciática,<br />
que ainda seguia as orientações milenares. Na minha época, embora<br />
os clínicos templários fossem respeita<strong>do</strong>s, não eram mais trata<strong>do</strong>s<br />
como divinos.<br />
Com o conhecimento que possuía e usan<strong>do</strong> os meus atributos<br />
paranormais, passei a examinar o meu paciente. Observei os seus<br />
centros energéticos e toda a sua aura. O seu esta<strong>do</strong> era muito<br />
crítico.<br />
- Sacer<strong>do</strong>te, qual é o seu parecer? - perguntou a preocupada<br />
senhora.<br />
- A saúde dele está extremamente delicada e a tendência é de<br />
se agravar mais rapidamente.<br />
- O senhor está-me deixan<strong>do</strong> muito otimista! - resmungou o<br />
ancião.<br />
- Queira desculpá-lo, o meu mari<strong>do</strong> fez vários e caros<br />
tratamentos e os médicos sempre garantiam que ele seria cura<strong>do</strong>...<br />
- Mas até agora não tive nenhuma melhora - disse o <strong>do</strong>ente<br />
desaponta<strong>do</strong>.<br />
Seguran<strong>do</strong> firmemente a mão de sua mulher, continuou a falar:<br />
- O senhor é o primeiro a dizer-me que estou realmente mal.<br />
Continue sen<strong>do</strong> sincero. O que pode ser feito?<br />
- Fisicamente, pouca coisa, pois a energia vital está quase<br />
totalmente esgotada e, com isso, os órgãos <strong>do</strong> corpo físico tendem a<br />
parar de funcionar mais depressa.<br />
- Não precisava ser tão sincero! - reclamou.
- Deveria ser compreensível para o senhor, entender que, na<br />
sua idade avançada, é perfeitamente natural...<br />
- Que se morra naturalmente! - completou o moribun<strong>do</strong>.<br />
Sorri e retruquei:<br />
- Pelo meu voto sacer<strong>do</strong>tal, a minha primeira preocupação está<br />
voltada para o seu bem-estar espiritual. Sei que o senhor sempre foi<br />
um <strong>do</strong>s poucos políticos que se dedicou à causa <strong>do</strong> povo, com<br />
verdadeiro amor. Teve uma boa infância, a<strong>do</strong>lescência e o resto da<br />
vida inteira voltada para o bem da comunidade. O espírito, agora,<br />
reclama o descanso necessário, que já deveria ter desfruta<strong>do</strong>.<br />
- Quer dizer que estou fazen<strong>do</strong> hora extra? - perguntou com<br />
ironia.<br />
- Sim, é o que acho.<br />
- Meu amor, ele é um sacer<strong>do</strong>te, não veio aqui para dizer o que<br />
gostaríamos de ouvir e sim o que deve ser dito - tentou justificar a<br />
esposa <strong>do</strong> enfermo.<br />
- É verdade. To<strong>do</strong>s os caríssimos médicos que me trataram,<br />
fizeram muitas promessas que eu ficaria melhor, que até voltaria a<br />
enxergar. Acho que a minha alma estava mais cega <strong>do</strong> que o meu<br />
corpo enruga<strong>do</strong>, por não querer acreditar no fim da vida - concor<strong>do</strong>u<br />
o ancião.<br />
Beijan<strong>do</strong> as mãos de sua mulher, o sena<strong>do</strong>r pediu-lhe:<br />
- Minha querida, deixe-me a sós com o templário.<br />
A senhora saiu silenciosamente, com ar de desconfiada.<br />
- Quanto tempo me resta? - perguntou o i<strong>do</strong>so.<br />
- Três dias - respondi.<br />
- Não me parece muita coisa.<br />
O sena<strong>do</strong>r ficou pensativo e depois me perguntou:<br />
- Diga-me. Quantas pessoas o senhor atendeu nos últimos<br />
dias?<br />
- Onze pacientes, próximos da sua idade.<br />
- Algum deles melhorou?<br />
- Sim, to<strong>do</strong>s morreram.<br />
- Isso é muito reconfortante - disse com escárnio. - Por um<br />
acaso está aderin<strong>do</strong> à moda <strong>do</strong>s médicos especialistas?<br />
- Se continuar assim... - respondi sorrin<strong>do</strong>.<br />
- Muitos <strong>do</strong>s meus contemporâneos já se foram e poucos são os<br />
que restaram que ainda possuem alguma dignidade.<br />
- Realmente é estranho. Nunca atendi tantos chama<strong>do</strong>s para<br />
desencarnes de pessoas tão boas.
- E as más estão permanecen<strong>do</strong>, cada vez em maior número.<br />
Isso é muito preocupante. A nossa nação está caminhan<strong>do</strong> para um<br />
rumo perdi<strong>do</strong>. Antigamente, to<strong>do</strong>s os problemas da sociedade eram<br />
debati<strong>do</strong>s e resolvi<strong>do</strong>s com facilidade. Hoje, os governantes e<br />
políticos não têm o mesmo interesse. São hipócritas que visam<br />
apenas o próprio bem, não fazen<strong>do</strong> nada que não possibilite algum<br />
ganho ou vantagem. Vivemos dias de falsidade. Talvez seja melhor<br />
que eu vá embora mesmo para não testemunhar o fim de uma<br />
sociedade que está apodrecen<strong>do</strong>.<br />
Ouvi silenciosamente o que o sena<strong>do</strong>r dizia, concordan<strong>do</strong><br />
inteiramente com tu<strong>do</strong>.<br />
- Mas, por outro la<strong>do</strong> - continuou - é difícil ter que me separar<br />
da mulher que sempre amei. Não pudemos ter filhos, mas dedicamonos<br />
um ao outro, com to<strong>do</strong> o puro e intenso amor. Agora, o senhor,<br />
em meu leito de <strong>do</strong>r, diz que vou me afastar dela...<br />
O ancião, em meio às lágrimas, perguntou, inconforma<strong>do</strong>:<br />
- Como pode ter tanta certeza, se nem me examinou? To<strong>do</strong>s os<br />
outros médicos demoraram horas em análises detalhadas. Mesmo os<br />
que usavam apenas cristais e pêndulos, retornavam outras vezes<br />
para confirmar um diagnóstico e o senhor nem ao menos ouviu de<br />
mim o que sinto, quais são os meus sintomas.<br />
- Sena<strong>do</strong>r, o senhor sente <strong>do</strong>res no fíga<strong>do</strong>, os intestinos e o<br />
aparelho urinário já não obedecem a sua vontade. Não pode ficar em<br />
pé porque as suas pernas não o sustentam mais. Sente terríveis<br />
<strong>do</strong>res nas articulações. O peito e o braço esquer<strong>do</strong> <strong>do</strong>em<br />
cronicamente, inician<strong>do</strong> com um pequeno ar<strong>do</strong>r, anuncian<strong>do</strong><br />
problemas cardíacos. Está lúci<strong>do</strong>, não obstante a sua memória o<br />
engane freqüentemente. Não sente fome e não quer se alimentar.<br />
Sofre de constante insônia e os sonhos, que tem durante as poucas<br />
horas de sono, revelam uma cidade onde os familiares e amigos, que<br />
o precederam na morte, o aguardam sorridentes. O senhor tem uma<br />
enorme vontade de viver e sofre a angústia de se ver inváli<strong>do</strong> para a<br />
vida. Também não quer deixar a esposa para trás, com me<strong>do</strong> de<br />
nunca mais tê-la consigo.<br />
- Há algum erro em se desejar a vida? - perguntou tristonho.<br />
- Não e deve-se viver cada segun<strong>do</strong> dela; entretanto, não é<br />
erra<strong>do</strong> compreender que a morte é uma passagem para a verdadeira<br />
vida e que to<strong>do</strong>s os laços afetivos não se rompem com ela.<br />
- O senhor é um verdadeiro sacer<strong>do</strong>te, como há muito tempo<br />
não encontro! Contu<strong>do</strong>, tenho que me atrever a um pedi<strong>do</strong>. No dia da
minha morte, ministre a minha mulher uma droga que ela acredite<br />
ser um calmante, mas que, na verdade, a faça morrer sem <strong>do</strong>r.<br />
Assim irei tranqüilo para o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mortos, saben<strong>do</strong> que ela irá<br />
comigo.<br />
- Não posso lhe atender.<br />
- Não tenho descendentes, portanto, tu<strong>do</strong> o que possuo lhe<br />
ofereço em troca.<br />
- O senhor é um homem esclareci<strong>do</strong>, sabe que a vida deve ser<br />
respeitada até o último instante. É uma decisão divina o momento<br />
certo de viver ou de morrer.<br />
- Qualquer outro médico aceitaria a minha proposta.<br />
- Mas a lei divina, não!<br />
- Desculpe, estou aflito com a minha irremediável separação. É<br />
difícil aceitar isso serenamente.<br />
- Eu enten<strong>do</strong>.<br />
- Por favor, chame a minha esposa, ela deve saber de tu<strong>do</strong>.<br />
Na hora de me despedir, apresentei a conta <strong>do</strong> atendimento<br />
<strong>do</strong>miciliar.<br />
- Seus honorários são modestos, diante de sua capacidade, mas<br />
pelo que eu saiba, os médicos templários não cobram suas consultas<br />
- disse a senhora.<br />
- Não cobravam. Agora, o Esta<strong>do</strong> está deixan<strong>do</strong> de subsidiar a<br />
saúde pública e, inclusive, exige de to<strong>do</strong>s os médicos, sem exceção, o<br />
pagamento de uma taxa de atendimento, cujo valor é exatamente<br />
esse que lhe cobro.<br />
- Isso é um absur<strong>do</strong>! Como podem exigir tal coisa de médicos<br />
templários?! - disse o ancião, revolta<strong>do</strong>.<br />
- Também acho. Justificam, dizen<strong>do</strong> que o progresso está<br />
custan<strong>do</strong> muito caro. Mas as pessoas nas ruas comentam que o<br />
governo está usan<strong>do</strong> a maior parte <strong>do</strong> dinheiro para custear uma<br />
expedição militar.<br />
- Não tem cabimento, nosso povo nunca foi expansionista,<br />
mesmo porque as nossas leis proíbem tal procedimento - disse o<br />
sena<strong>do</strong>r.<br />
- Falam, também, que isso é necessário para se evitar uma<br />
agressão <strong>do</strong>s povos bárbaros.<br />
- É outro despropósito! Nenhum povo, na face da Terra, tem<br />
condições de nos atacar. Até mesmo as forças da natureza se curvam<br />
diante <strong>do</strong> nosso poder.
- Seja como for, os dias estão fican<strong>do</strong> diferentes e difíceis para<br />
to<strong>do</strong>s nós - concluí.<br />
- O senhor estará aqui no dia <strong>do</strong> meu desencarne?<br />
- Certamente, agora eu sou o zela<strong>do</strong>r de sua alma!
62 - O SEGRE<strong>DO</strong> DA ATLÂNTIDA<br />
No dia previsto para o desencarne <strong>do</strong> ancião, apresentei-me,<br />
como havia prometi<strong>do</strong>.<br />
Em épocas passadas, era comum o templário acompanhar a<br />
morte de alguém e zelar pela sua alma, até que estivesse segura na<br />
Cidade de Cristal, o lugar onde os espíritos, que houvessem cumpri<strong>do</strong><br />
a lei sagrada, poderiam morar. Esse costume, entretanto, acabou<br />
quase desaparecen<strong>do</strong>. Somente as pessoas mais religiosas é que<br />
solicitavam a presença de um sacer<strong>do</strong>te nessas ocasiões.<br />
- Quero aproveitar to<strong>do</strong>s os minutos que me restam ao la<strong>do</strong> da<br />
minha esposa - disse o sena<strong>do</strong>r.<br />
- É muito justo - concordei.<br />
A mulher <strong>do</strong> ancião sentou-se na cama ao seu la<strong>do</strong>. Estava<br />
nervosa e chorava copiosamente, mas em silêncio, para que ele não<br />
percebesse.<br />
- Templário! O meu coração e a minha mente estão abertos.<br />
Tenho a consciência tranqüila de ter segui<strong>do</strong> os nossos sagra<strong>do</strong>s<br />
mandamentos. Se cometi erros, quero agora me penitenciar - faloume<br />
o moribun<strong>do</strong>.<br />
- Vejo o seu coração, a sua mente e a sua alma, nada haven<strong>do</strong><br />
que lhe impeça o ingresso no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s santos! - afirmei com a<br />
autoridade a mim conferida pelo meu voto sacer<strong>do</strong>tal.<br />
- Então posso partir em paz! - exclamou, alivia<strong>do</strong>, o meu<br />
paciente.<br />
Seguran<strong>do</strong> a mão de sua esposa disse:<br />
- Amor da minha vida, cuide-se. Um dia haveremos de nos<br />
encontrar novamente...<br />
- Meu queri<strong>do</strong>, serei sempre sua, por toda a eternidade! -<br />
respondeu a senhora.<br />
O sena<strong>do</strong>r calou-se e tive a nítida impressão de que, dessa vez,<br />
seus olhos conseguiam ver o lin<strong>do</strong> rosto da musa que um dia<br />
encontrara no campo, corren<strong>do</strong> entre flores mimosas!...<br />
O seu ritmo respiratório, contu<strong>do</strong>, começou a diminuir<br />
rapidamente. O organismo ainda lutava desesperadamente para<br />
manter os sinais de vida, o que era quase impossível. O câncer já<br />
<strong>do</strong>minava boa parte <strong>do</strong> corpo.<br />
Após desmaios constantes, o ancião entrou em coma. A sua<br />
mulher ficou desesperada. Tive que ministrar-lhe uma <strong>do</strong>se de<br />
calmante à base de florais.
Mais tranqüila, porém, ainda inconformada com o destino <strong>do</strong><br />
mari<strong>do</strong>, disse em voz rouca e baixa:<br />
- Não sei como vou viver. Toda a minha vida foi voltada para<br />
ele. O que vou fazer?<br />
- Certamente o seu mari<strong>do</strong> desejará que a senhora viva da<br />
melhor maneira possível. Faça as coisas como ele gostaria que<br />
continuassem a ser feitas.<br />
A esposa <strong>do</strong> sena<strong>do</strong>r olhou para mim, mais demoradamente, e<br />
disse:<br />
- A minha vida prosseguirá normalmente. Irei agir como se ele<br />
estivesse ausente em uma longa viagem, o que era muito comum<br />
outrora. Cuidarei da casa para que ele encontre tu<strong>do</strong> em ordem ao<br />
retornar. Depois, partiremos juntos, para nunca mais nos<br />
separarmos.<br />
Uma lágrima rolou pelo rosto <strong>do</strong> ancião. No mesmo instante<br />
percebi, pela minha clarividência, que uma equipe médica, no plano<br />
espiritual, estava ao la<strong>do</strong> dele.<br />
Constatan<strong>do</strong> que havia acaba<strong>do</strong> de falecer, passei ao<br />
procedimento auxiliatório para o desenlace definitivo <strong>do</strong> seu espírito.<br />
A maioria das pessoas que morrem demoram um pouco para<br />
soltar-se <strong>do</strong> corpo físico e etérico, o que pode causar algum malestar.<br />
Como zela<strong>do</strong>r de sua alma eu tinha que ajudá-lo a livrar-se <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> físico, mais rapidamente.<br />
Passei a atuar nos centros energéticos <strong>do</strong> corpo astral, fazen<strong>do</strong><br />
com que os filamentos, que ainda se mantinham com o corpo etéreo,<br />
se desfizessem. Após, usan<strong>do</strong> a energia cósmica, ministrei-lhe passes<br />
longitudinais, para que o seu espírito se desprendesse de vez.<br />
A esposa <strong>do</strong> sena<strong>do</strong>r acompanhava tu<strong>do</strong>, atenta e<br />
silenciosamente. Quan<strong>do</strong> terminei, ela disse:<br />
- Gostaria tanto de saber como ele está...<br />
Aproximei-me dela e coloquei a minha mão direita sobre as<br />
suas sobrancelhas e falei:<br />
- Se é seu desejo...<br />
A partir de então, ativei o centro frontal da mulher e ela<br />
começou a ver o que se passava no plano espiritual.<br />
Lentamente, o espírito <strong>do</strong> seu esposo, ampara<strong>do</strong> pelos médicos<br />
espirituais, foi deixan<strong>do</strong> o corpo físico, pon<strong>do</strong>-se em pé, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
leito. Quan<strong>do</strong> abriu os olhos sorriu serenamente e com um gesto<br />
singelo despediu-se, sumin<strong>do</strong> no espaço.
Seguiu-se a cerimônia fúnebre, dirigida por mim, com to<strong>do</strong>s os<br />
rituais e orações apropriadas para o caso.<br />
Alguns dias depois fui chama<strong>do</strong> à sede <strong>do</strong> governo. A filha de<br />
Amon, nosso chefe de Esta<strong>do</strong>, estava seriamente enferma.<br />
O suntuoso palácio ficava no alto de uma colina, rodea<strong>do</strong> por<br />
três anéis de água e <strong>do</strong>is de terra. Pontes majestosas ligavam as<br />
partes da capital, construída no tempo de Atlas.<br />
Dentro <strong>do</strong> palácio dirigi-me ao templo de Posêi<strong>do</strong>n, que era o<br />
mais importante centro religioso, onde Amon aguardava-me em<br />
segre<strong>do</strong>.<br />
Uma muralha, revestida de prata na parte externa e de ouro na<br />
parte interna, rodeava a casa sagrada. No interior, o piso era de<br />
mármore branco e brilhante, o teto de marfim com detalhes em ouro<br />
e prata e as colunas revestidas de ouro branco.<br />
No centro <strong>do</strong> templo havia uma enorme estátua <strong>do</strong> nosso<br />
patriarca, em pé sobre uma biga, seguran<strong>do</strong> um tridente com a mão<br />
esquerda e as rédeas de seis cavalos ala<strong>do</strong>s, com a mão direita. Tu<strong>do</strong><br />
em ouro maciço.<br />
Próximo <strong>do</strong> altar, havia um homem louro, de cabelos<br />
encaracola<strong>do</strong>s e de barba rala, vestin<strong>do</strong> uma curta túnica vermelha,<br />
com detalhes em ouro. Perceben<strong>do</strong> que eu me aproximava, disse<br />
satisfeito:<br />
- Sólun, que bom que você veio! Eu estava aflito com sua<br />
demora!<br />
- Digníssimo, não deixaria jamais de atender ao seu chama<strong>do</strong>.<br />
O que há com sua filha?<br />
O semblante <strong>do</strong> soberano ficou contrista<strong>do</strong>...<br />
- Meu amigo, algo de terrível aconteceu. Minha menina está<br />
extremamente enferma!<br />
- Quais são os sintomas? - perguntei.<br />
- Ela perdeu parte <strong>do</strong>s cabelos e alguns dentes, tem diarréia e<br />
freqüentemente vomita tu<strong>do</strong> o que come. Sente <strong>do</strong>res terríveis pelo<br />
corpo as quais nenhuma droga faz passar.<br />
- O que disseram os médicos <strong>do</strong> palácio?<br />
- Não souberam diagnosticar. Apenas administraram alguns<br />
remédios que não surtiram qualquer efeito. Alguns já a<br />
desenganaram.<br />
- Mas se os mestres da medicina, com os recursos avança<strong>do</strong>s<br />
de que dispõem, não puderam encontrar a causa da <strong>do</strong>ença, como<br />
poderei eu?
- Sólun, você é a minha última esperança. No entanto, se não<br />
puder salvá-la, ampare-a na passagem da morte.<br />
O governante não conteve as lágrimas e ajoelhou-se pedin<strong>do</strong><br />
clemência aos deuses.<br />
- Excelência, deixe-me vê-la - disse, erguen<strong>do</strong>-o <strong>do</strong> chão.<br />
Fomos aos aposentos reais e, em um <strong>do</strong>s suntuosos quartos,<br />
uma criança de seis anos agonizava sob a atenção da mãe, de<br />
cria<strong>do</strong>s, enfermeiros e médicos.<br />
- Eu preciso que to<strong>do</strong>s se retirem - pedi a Amon, em voz baixa.<br />
Com um gesto, o governa<strong>do</strong>r ordenou que to<strong>do</strong>s saíssem.<br />
- Minha esposa e eu poderíamos ficar?<br />
- Claro!<br />
Não foi necessário muito tempo para perceber o que estava<br />
acontecen<strong>do</strong>. Uma luz, proveniente de uma energia extremamente<br />
poderosa, destruía rapidamente o corpo vital da garota e provocava o<br />
surgimento de células cancerígenas no corpo físico. Nunca vira algo<br />
pareci<strong>do</strong> antes. Assusta<strong>do</strong>, perguntei:<br />
- O que foi que aconteceu com a menina?<br />
O soberano, passan<strong>do</strong> as mãos nervosamente pelo rosto, não<br />
conseguia responder.<br />
- Amon, como velhos amigos que somos, diga-me o que houve,<br />
o esta<strong>do</strong> dela é desespera<strong>do</strong>r? Precisa me dizer!<br />
- Meu mari<strong>do</strong>, conte-lhe o que aconteceu - pediu sua esposa.<br />
Em prantos, o governante segurava a mão da filhinha e dizia<br />
histericamente:<br />
- Fui eu o culpa<strong>do</strong>! Ela morrerá por minha irresponsabilidade!<br />
Que desgraça!<br />
Mediquei pai e filha, aplican<strong>do</strong>-lhes também uma série de<br />
passes.<br />
- Digníssimo, deixemos a criança repousar. Por algum tempo<br />
ela não sentirá nenhuma <strong>do</strong>r.<br />
Enquanto a mulher permanecia ao la<strong>do</strong> da menina, o<br />
governa<strong>do</strong>r e eu fomos para o alpendre <strong>do</strong> quarto. Olhei para ele e<br />
aguardei que começasse a falar:<br />
- Conto com sua antiga fidelidade para manter em segre<strong>do</strong> o<br />
que vou revelar.<br />
Fiz um sinal com a cabeça, mostran<strong>do</strong>-lhe que poderia confiar<br />
em mim.<br />
- É de seu conhecimento que cada Esta<strong>do</strong> possui uma fonte<br />
gera<strong>do</strong>ra de energia. O que você e muitos desconhecem é que todas
as fontes, na verdade, são estações retransmissoras de um único e<br />
potentíssimo gera<strong>do</strong>r, que foi construí<strong>do</strong> e instala<strong>do</strong> a grande<br />
profundidade, em nosso território, na época de Posêi<strong>do</strong>n, pelos<br />
senhores que vieram <strong>do</strong> espaço com ele. É ele que controla os nossos<br />
vulcões, permitin<strong>do</strong>-lhes uma relativa atividade, sem que entrem em<br />
erupção. Atua nos mares <strong>do</strong> norte, evitan<strong>do</strong> que suas águas fiquem<br />
frias demais no inverno e que se aproximem as grandes e perigosas<br />
montanhas de gelo. Nós controlamos as tempestades, para que não<br />
devastem os nossos férteis campos, e evitamos a ausência de chuva<br />
por tempo prolonga<strong>do</strong>, o que poderia deixar a terra árida. Até mesmo<br />
os temíveis furacões permanecem em alto mar, sob a ação das<br />
energias liberadas por tal máquina, sob o nosso coman<strong>do</strong>. O seu<br />
poder é incalculável e até hoje não foi totalmente explora<strong>do</strong>. O povo<br />
sabe o que podemos fazer, mas não como fazemos e nem tem a idéia<br />
<strong>do</strong> que é possível ser feito. Na semana passada, eu estive na usina<br />
principal. Os nossos cientistas faziam uma série de experiências com<br />
algumas sementes. As plantas cresciam rapidamente. Mandei que<br />
algumas frutas fossem colhidas para que os nossos agricultores<br />
pudessem examiná-las. Assim, acondicionaram seis maçãs em um<br />
recipiente apropria<strong>do</strong>, revesti<strong>do</strong> de chumbo.<br />
- Por que to<strong>do</strong> esse cuida<strong>do</strong>? - perguntei.<br />
- A energia com que lidamos produz uma radiação que pode ser<br />
extremamente mortal. É uma luz invisível a olho nu, mas fatal a<br />
qualquer ser vivo. Como estávamos ainda tentan<strong>do</strong> controlar a<br />
radioatividade, que permanecia nas plantas, se alguém ficasse<br />
exposto a elas ou aos seus frutos, correria o risco de ser<br />
contamina<strong>do</strong>. O recipiente isola a ação maléfica <strong>do</strong>s terríveis raios.<br />
Para evitar que ocorresse algum acidente e temeroso de que a caixa<br />
caísse em mãos erradas, eu mesmo fiquei com ela. Sempre fui muito<br />
exigente com as normas de segurança, mas dessa vez, agi<br />
imprudentemente, levan<strong>do</strong> o recipiente para os meus aposentos, pois<br />
já era noite e os entendi<strong>do</strong>s só poderiam examinar as frutas no dia<br />
seguinte. Durante a madrugada, minha filhinha levantou-se e foi até<br />
o meu quarto. Ven<strong>do</strong> a caixa ao la<strong>do</strong> da cama, abriu-a e acabou<br />
comen<strong>do</strong> uma das maçãs. Quan<strong>do</strong> acordei, no dia seguinte, percebi o<br />
que havia aconteci<strong>do</strong>, mas já era tarde. Chamei os especialistas e<br />
eles confirmaram que as frutas estavam contaminadas, o suficiente<br />
para causar a morte de quem as ingerisse. Sólun, você é uns <strong>do</strong>s<br />
poucos médicos templários que restam, diga-me, há alguma coisa<br />
que possa ser feita para salvá-la?
- Dentro <strong>do</strong>s meus conhecimentos, não... Acredito que possa<br />
apenas aliviar as suas <strong>do</strong>res até a morte.<br />
Desconsola<strong>do</strong>, o soberano disse:<br />
- Faça o que puder fazer, tu<strong>do</strong> o que precisar estará a sua<br />
disposição.
63 - OS DEUSES COMEÇAM A MORRER<br />
A filha <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r não pôde ser salva e após alguns dias<br />
veio a falecer.<br />
Da mesma forma como ajudei o sena<strong>do</strong>r, também atuei no<br />
desencarne da menina. No caso dela, o meu trabalho foi mais fácil,<br />
pois, com poucos anos de vida, ainda não haviam se estabeleci<strong>do</strong><br />
to<strong>do</strong>s os laços reencarnatórios.<br />
Depois da solene cerimônia fúnebre, o governante chamou-me<br />
para uma conversa reservada:<br />
- Sólun, queri<strong>do</strong> amigo, to<strong>do</strong> o dinheiro que lhe entrego jamais<br />
corresponderá ao seu esforço, mas as forças divinas haverão de<br />
compensá-lo pela sua leal e amorosa dedicação.<br />
- Excelência, não posso aceitar o que me oferece.<br />
- Retire aquilo que acha que lhe é devi<strong>do</strong> e <strong>do</strong>e o restante, para<br />
a sua Ordem Templária. Porém, antes que parta, preciso<br />
confidenciar-lhe uma coisa muito importante! To<strong>do</strong>s nós estamos<br />
perceben<strong>do</strong> que a nossa sociedade está se deterioran<strong>do</strong>. Em toda a<br />
Atlântida, a ambição materialista supera a dedicação espiritual. Está<br />
ocorren<strong>do</strong> uma total inversão de valores e a maioria <strong>do</strong>s governantes<br />
não se mostra interessada em mudar essa situação. Como qualquer<br />
profunda alteração legal, as mudanças das leis, que regem a nação,<br />
necessitariam da aprovação unânime de to<strong>do</strong>s os governos. Mas as<br />
importantes reformas constitucionais arrastam-se interminavelmente<br />
nas mão <strong>do</strong>s políticos, enquanto o povo honesto, trabalha<strong>do</strong>r e<br />
volta<strong>do</strong> para a espiritualidade, agoniza diante <strong>do</strong> sorriso irônico e<br />
satírico <strong>do</strong>s aproveita<strong>do</strong>res.<br />
Preocupa<strong>do</strong>, eu permanecia atento a cada palavra.<br />
- Você sabe que o nosso Esta<strong>do</strong> não é apenas o maior de to<strong>do</strong>s,<br />
mas também o mais desenvolvi<strong>do</strong> e rico, uma vez que foi herda<strong>do</strong><br />
por Atlas, filho mais velho e predileto de Posêi<strong>do</strong>n. Temos os<br />
melhores cientistas, artistas, filósofos e em quase todas as atividades<br />
somos os primeiros. Tu<strong>do</strong> isso tem causa<strong>do</strong> muita inveja a outros<br />
governos. De alguns anos para cá, os demais governantes têm<br />
mostra<strong>do</strong> grande insatisfação com a divisão <strong>do</strong> continente, feita há<br />
milênios. Estão discordan<strong>do</strong> também <strong>do</strong> controle operacional <strong>do</strong><br />
grande gera<strong>do</strong>r, que é feito pelo nosso clã, conforme a lei que rege<br />
toda a nação, desde o início. As relações com os outros governa<strong>do</strong>res<br />
têm piora<strong>do</strong> e, em nossa última reunião, que ocorre tradicionalmente<br />
a cada seis anos, em que as diferenças entre os governos deveriam
ser resolvidas, conforme a Lei de Posêi<strong>do</strong>n, a maioria, sutilmente,<br />
ameaçou tomar o controle da usina. Somente Rama e Inka, famosos<br />
pela conduta pacifista e coerentes com os nossos antigos costumes,<br />
permaneceram <strong>do</strong> nosso la<strong>do</strong>. Os demais, que permitem a prática de<br />
sacrifícios de animais e até mesmo o holocausto humano, como é o<br />
caso de Satás, e que têm ambições expansionistas, mostraram-se<br />
irredutíveis quanto ao que fora conversa<strong>do</strong>. Como não houve acor<strong>do</strong>,<br />
nada foi registra<strong>do</strong> nas tábuas de ouro. Mas o mun<strong>do</strong> correrá grande<br />
perigo, caso a usina central caia em mãos ambiciosas. Por isso, eu<br />
determinei que, se tentassem tomá-la à força, que ela fosse<br />
imediatamente desativada e, se necessário, até mesmo destruída.<br />
- Não obstante, excelentíssimo, as conseqüências poderiam ser<br />
terríveis! - ponderei.<br />
- Muito mais <strong>do</strong> que possa imaginar. Há quase cinco milênios<br />
atrás, o uso incorreto <strong>do</strong>s recursos <strong>do</strong> potente gera<strong>do</strong>r chegou a<br />
mudar o eixo <strong>do</strong> planeta, o que provocou a catástrofe que resultou no<br />
afundamento de parte <strong>do</strong> nosso continente.<br />
- Excelência, uma decisão de tal porte não seria muito radical?<br />
- Talvez, mas foi escrito por Posêi<strong>do</strong>n que apenas Atlas e seus<br />
descendentes deveriam possuir e controlar a força <strong>do</strong>s deuses,<br />
justamente por uma questão de segurança. A lei <strong>do</strong> Patriarca é clara:<br />
“Se o poder <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> sol colocar a humanidade em risco, deverá<br />
ser extinto.”<br />
Quan<strong>do</strong> assumi o trono de meu pai jurei cumprir e fazer cumprir as<br />
escrituras sagradas. Hoje, os crápulas, sedentos pelo poder, ousam<br />
desobedecer os sacrossantos mandamentos. Também é preceito que<br />
o néctar <strong>do</strong>s deuses jamais fosse usa<strong>do</strong> fora <strong>do</strong>s limites da Atlântida.<br />
É mais uma regra sagrada que os sete governantes, lidera<strong>do</strong>s por<br />
Satás, querem violar, pois acham que é o momento de se conquistar<br />
os outros continentes. Muitos homens <strong>do</strong> nosso povo partiram para<br />
os diferentes cantos da terra, contu<strong>do</strong> sempre com o intuito de levar<br />
sabe<strong>do</strong>ria às sub-raças, de ajudá-las a se desenvolver e nunca para<br />
<strong>do</strong>miná-las e subjugá-las.<br />
Suspiran<strong>do</strong> profundamente, concluiu o estadista:<br />
- Por tu<strong>do</strong> isso, grande amigo, mantenha-se alerta quanto aos<br />
fatos que ocorrerem e prepare-se, no caso de ter que aban<strong>do</strong>nar o<br />
nosso continente. Se as coisas piorarem, tentarei avisá-lo, mas pode<br />
não haver tempo suficiente.<br />
Sain<strong>do</strong> <strong>do</strong> palácio fui ao templo onde depositei os valores<br />
recebi<strong>do</strong>s de Amon e passei a orar. Depois, voltei para a minha casa,
com a estranha sensação de que os nossos dias estavam por<br />
terminar.<br />
Reuni a minha família e, sem entrar em detalhes, mandei que<br />
estocassem os alimentos e água em um barco de nossa propriedade.<br />
Após algumas semanas, os governa<strong>do</strong>res reuniram-se<br />
novamente, em nossa capital. Fiquei apreensivo e dias depois<br />
procurei Amon.<br />
- O que decidiram? - perguntei a ele, logo que ficamos a sós.<br />
- Nada. Só tivemos discussões ainda mais acaloradas. Dessa<br />
vez a ameaça foi mais franca e contundente. Em conseqüência, pela<br />
primeira vez em nossa história, decretei esta<strong>do</strong> de alerta,<br />
determinan<strong>do</strong> o reforço militar na fronteira com os outros Esta<strong>do</strong>s e<br />
que um contingente arma<strong>do</strong> se deslocasse para a usina e a<br />
mantivesse sob constante guarda. Reduzi os funcionários que lá se<br />
encontravam em um quinto <strong>do</strong> efetivo, ten<strong>do</strong> em vista que não<br />
poderia confiar em alguns deles, pois eram procedentes das regiões<br />
<strong>do</strong>s nossos opositores. Por precaução, ordenei que algumas naves<br />
aéreas e marítimas de transporte permanecessem prontas para<br />
partir. A cada uma coube diferentes rotas, para que a nossa raça<br />
possa se espalhar entre os primitivos, em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>. Os<br />
principais homens e mulheres, que representam a nossa cultura,<br />
religião e ciência, foram avisa<strong>do</strong>s da situação.<br />
Antes que continuasse, Quíron, o comandante das forças<br />
militares, foi anuncia<strong>do</strong>. Amon permitiu que eu permanecesse na<br />
sala.<br />
- Excelentíssimo, trago uma urgente mensagem <strong>do</strong> governo de<br />
Satás - disse o general.<br />
O soberano desenrolou o papiro e sentou-se, antes de ler em<br />
voz alta:<br />
Amon, meu irmão pelo sangue <strong>do</strong>s nossos ancestrais.<br />
Informo-lhe que as minhas forças de guerra estão em combate<br />
no Oriente, além das colunas de Hércules.<br />
Nossos bravos venciam facilmente os primitivos, todavia, uma<br />
<strong>do</strong>ença terrível se apoderou da maioria deles, matan<strong>do</strong> centenas.<br />
Com isso, os inimigos começaram a recuperar as terras que já<br />
havíamos conquista<strong>do</strong>.<br />
Por essa razão, peço-lhe que mande para lá um grupo de<br />
médicos e uma força militar, equipada com suas melhores armas, em<br />
suas velozes naves de guerra.
Nenhum outro Esta<strong>do</strong> da nossa nação poderia nos ajudar mais<br />
rapidamente.<br />
Mil homens aguardam o seu socorro.<br />
Espero a sua providencial atitude, sob as bênçãos <strong>do</strong>s deuses.<br />
Terminada a leitura, Amon disse ao comandante:<br />
- Eu escreverei uma carta em resposta e você mesmo a levará<br />
até ele.<br />
O governa<strong>do</strong>r, ao escrever, foi falan<strong>do</strong> em voz alta:<br />
Satás, meu irmão pelo sangue <strong>do</strong>s nossos ancestrais.<br />
Suas notícias trouxeram-me grande tristeza, não só pela morte<br />
e sofrimento <strong>do</strong>s nossos compatriotas, mas também pela vossa<br />
respeitada, mas inadvertida, decisão de mandar uma expedição<br />
expansionista ao Oriente, sem o meu conhecimento e sem a<br />
autorização unânime de to<strong>do</strong>s os governantes.<br />
Mais <strong>do</strong> que isso, desrespeitou o que foi convenciona<strong>do</strong> pelos<br />
nossos antepassa<strong>do</strong>s, a lei que proíbe ações militares além das<br />
nossas fronteiras, salvo em caso de autodefesa.<br />
Dessa forma, recomen<strong>do</strong> que determine a imediata retirada <strong>do</strong>s<br />
combatentes <strong>do</strong> Oriente e que se apresente, em reunião<br />
extraordinária que convocarei, para que possa justificar seus atos.<br />
O corpo médico permanecerá de plantão para atender os<br />
solda<strong>do</strong>s feri<strong>do</strong>s ou <strong>do</strong>entes que regressarem.<br />
Que sua atitude seja per<strong>do</strong>ada pelos deuses.<br />
Após assinar, selou a carta e entregou-a ao general.<br />
- Excelentíssimo, não quero ousar contestá-lo, no entanto,<br />
Satás poderá não compreender suas razões, mesmo baseadas na lei -<br />
disse Quíron.<br />
- Eu sei, fiel comandante. Por isso, ponha as nossas forças em<br />
alerta máximo, inclusive as naves de guerra. Devem estar prontas<br />
para a ação. A minha Chancelaria dará ciência aos demais<br />
governantes.<br />
- Meu senhor, Satás poderá considerar isso um ato de guerra...<br />
- tentou ponderar o general.<br />
- Quíron, enten<strong>do</strong> a sua cautela, mas agora você deverá pensar<br />
e agir como um militar e não como um estadista. A nossa atitude é<br />
de defesa. Não seremos surpreendi<strong>do</strong>s por ninguém!<br />
- Vossa Excelência tem razão. Farei como me ordena.
Se eu já estava atribula<strong>do</strong>, agora acabara de ficar apavora<strong>do</strong>.<br />
Era uma crise sem precedentes.<br />
- O que vai acontecer? - perguntei ao soberano.<br />
- Ou tu<strong>do</strong> ou nada! Rezemos aos deuses!<br />
Na sala de reuniões de Amon, havia um pequeno altar da<br />
divindade que era representada pelo <strong>Sol</strong>. Ali ele se ajoelhou e<br />
começou a orar. Saí silenciosamente...
64 - O INVENCÍVEL IMPÉRIO SUBMERGE<br />
Logo, a notícia da excursão expansionista de Satás foi<br />
divulgada. Pouco mais de duzentos homens regressaram <strong>do</strong> exterior,<br />
expulsos pelos primitivos. Estavam feri<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>entes, famintos e<br />
humilha<strong>do</strong>s.<br />
Diante da posição de Amon, nenhum outro governante ousou<br />
enviar algum reforço. Nem mesmo Satás. Não obstante, to<strong>do</strong>s<br />
sabiam que ele era um homem orgulhoso e vingativo. Assim, as<br />
relações governamentais poderiam piorar ainda mais.<br />
Outra informação foi divulgada, trazen<strong>do</strong> uma preocupação<br />
ainda maior. O contingente que guardava a usina principal fora<br />
ataca<strong>do</strong> por um coman<strong>do</strong> não identifica<strong>do</strong>. Todavia, conseguiram<br />
repelir o ataque. Em seguida, as fronteiras <strong>do</strong> nosso Esta<strong>do</strong> foram<br />
fechadas.<br />
O clima de tensão começou a pre<strong>do</strong>minar em to<strong>do</strong>s os lugares e<br />
a vida em Atlântida começou a se tornar insuportável.<br />
As divergências não ocorriam apenas entre os dirigentes <strong>do</strong>s<br />
Esta<strong>do</strong>s; no meio <strong>do</strong> próprio povo, os conflitos começaram a ocorrer<br />
com mais freqüência e por motivos tolos.<br />
Brigas entre pais e filhos tornaram-se comuns. A promiscuidade<br />
e desregramentos morais, em nome de uma liberdade longe <strong>do</strong>s<br />
princípios de igualdade, estavam conduzin<strong>do</strong> o país para um caos<br />
social.<br />
Não havia fome ou miséria que justificasse tantos furtos,<br />
roubos e assassinatos.<br />
Os menores de idade eram intocáveis, em razão de uma falsa<br />
defesa da cidadania infantil. Cientes da sua impunidade e<br />
mergulha<strong>do</strong>s nas drogas, toleradas por muitos Esta<strong>do</strong>s, formavam<br />
ban<strong>do</strong>s de delinqüentes que cometiam os crimes mais hedion<strong>do</strong>s.<br />
Com as leis elaboradas para beneficiar a classe social<br />
<strong>do</strong>minante, a justiça dificilmente condenava os mais afortuna<strong>do</strong>s.<br />
Contu<strong>do</strong>, os maiores criminosos encontravam-se na política e<br />
no governo, onde permaneciam também impunes diante de uma<br />
corrupção e desman<strong>do</strong>s sem fim.<br />
Interessa<strong>do</strong>s em dividir o povo para justificar a manutenção de<br />
um autoritarismo hereditário que os favorecia, bem como a toda a<br />
minoria elitista, orientavam os seus serviçais a insuflar as pequenas<br />
diferenças de etnia, começan<strong>do</strong> a provocar os grandes conflitos.
Se houvesse uma articulação intencional para a total destruição<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, ela não seria tão perfeita e eficiente quanto a própria<br />
realidade.<br />
Passaram-se os meses e eu acreditei que os problemas entre os<br />
governos haviam termina<strong>do</strong>, pois as fronteiras foram reabertas, com<br />
o fim <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de emergência, até que um dia, o céu começou a<br />
ficar encoberto por grossas nuvens de fumaça.<br />
Ficamos saben<strong>do</strong> que os vulcões <strong>do</strong> la<strong>do</strong> ocidental <strong>do</strong><br />
continente haviam entra<strong>do</strong> em maior atividade, sem que, entretanto,<br />
expelissem suas lavas. Mesmo assim, o fato causou grande<br />
apreensão.<br />
Os governantes tentavam acalmar o povo, afirman<strong>do</strong> que tu<strong>do</strong><br />
estava sob controle e que não havia razão para pânico.<br />
Não acreditei nas informações oficiais e fui pessoalmente até o<br />
palácio real, para falar com Amon.<br />
Após esperar por um bom tempo, um ordenança <strong>do</strong> soberano<br />
veio ao meu encontro:<br />
- Venerável sacer<strong>do</strong>te, infelizmente o governa<strong>do</strong>r está muito<br />
ocupa<strong>do</strong> e não poderá recebê-lo. Porém, ele me determinou que lhe<br />
entregasse esse bilhete .<br />
A mensagem estava selada. Apreensivo, abri no mesmo<br />
instante.<br />
Sólun, meu grande amigo e confidente nos intermináveis dias<br />
que passamos jejuan<strong>do</strong>, durante o nosso perío<strong>do</strong> de iniciação<br />
sacer<strong>do</strong>tal.<br />
Lamento não poder vê-lo, mas assuntos urgentes exigem minha<br />
total dedicação.<br />
Sen<strong>do</strong> fiel à nossa irmandade, rogo-lhe que parta o quanto<br />
antes com sua família. Siga para o Oriente, onde os nossos prepostos<br />
já iniciaram pequenas colônias.<br />
Vá com a bênção <strong>do</strong>s deuses.<br />
Percebi que esse era o sinal de que algo terrível logo adviria.<br />
Voltei às pressas para a minha casa e reuni to<strong>do</strong> os meus familiares.<br />
Coloquei-os a par <strong>do</strong> que se passava e disse-lhes que o pior estaria<br />
por vir, opinan<strong>do</strong> que partíssemos sem demora.<br />
Parte <strong>do</strong>s meus parentes não concor<strong>do</strong>u. Os meus pais e irmãos<br />
preferiram permanecer, confian<strong>do</strong> que nada ocorreria. Apesar da
minha insistência, não pude convencê-los, ten<strong>do</strong> que partir sem eles,<br />
para o meu grande sofrimento.<br />
A minha esposa, a minha filha de treze anos, o meu filho de<br />
dezessete, <strong>do</strong>is cunha<strong>do</strong>s e respectivas mulheres e filhos, mais o meu<br />
sogro e sogra, to<strong>do</strong>s embarcaram em minha nave marítima, levan<strong>do</strong><br />
apenas poucas coisas pessoais, além <strong>do</strong>s mantimentos.<br />
O barco não era grande, mas abrigava confortavelmente a<br />
to<strong>do</strong>s e possuía dispositivos de navegação e de segurança. Em caso<br />
de necessidade, ele podia sobrevoar até cinco metros acima das<br />
águas, por seis horas consecutivas.<br />
Aban<strong>do</strong>namos Atlântida, rumo ao Oriente. Era muito difícil<br />
deixar as pessoas a quem amava e tu<strong>do</strong> o que eu havia construí<strong>do</strong><br />
com muito sacrifício e seguir para um destino incerto. Mas a minha<br />
intuição estava correta.<br />
No dia seguinte, após a nossa partida, escutamos um estron<strong>do</strong><br />
ensurdece<strong>do</strong>r, vin<strong>do</strong> <strong>do</strong> continente que ficou para trás e que já não<br />
era mais avista<strong>do</strong>. Mesmo assim, pudemos ver uma gigantesca<br />
nuvem crescen<strong>do</strong> rapidamente no horizonte, na forma de um<br />
cogumelo, sobre as terras de Posêi<strong>do</strong>n.<br />
- Pelos deuses! - exclamei.<br />
- O que foi, papai? - perguntou a minha filha, muito assustada,<br />
como to<strong>do</strong>s os demais.<br />
- Amon deve ter ordena<strong>do</strong> a destruição de Atlântida - respondi<br />
em voz trêmula.<br />
- Mas não é possível, milhões de pessoas seriam mortas! - falou<br />
o meu sogro.<br />
Logo, algumas naves mais velozes cruzavam o céu sobre nós,<br />
na mesma direção. Um <strong>do</strong>s veículos aéreos estava em chamas e foi<br />
perden<strong>do</strong> altura até cair no mar.<br />
Conduzi o barco até o local da queda, para salvar a tripulação.<br />
Chegan<strong>do</strong> lá, encontramos apenas um sobrevivente, gravemente<br />
feri<strong>do</strong>. Recolhen<strong>do</strong>-o das águas, ele dizia, em esta<strong>do</strong> de choque:<br />
- Destruída! Destruída!<br />
Procurei acalmá-lo, ministran<strong>do</strong>-lhe um sedativo.<br />
- Precisamos fugir! - ele disse, antes de perder os senti<strong>do</strong>s.<br />
Percebi que, mesmo à grande distância <strong>do</strong> continente, a sua<br />
destruição poderia pôr-nos em perigo. Acionei o controle de<br />
navegação aérea, para nos deslocarmos mais rapidamente.<br />
- Olhem! Olhem! - gritou a minha esposa.<br />
- Pelos deuses! - exclamei, estarreci<strong>do</strong>.
Uma onda gigantesca, de mais de cinqüenta metros, vinha em<br />
nossa direção e não era possível ir mais rápi<strong>do</strong> e nem voar mais alto.<br />
Jogamos ao mar tu<strong>do</strong> o que havia no barco, inclusive os<br />
mantimentos, para conseguirmos mais velocidade, mesmo assim, ela<br />
aproximava-se cada vez mais.<br />
Fechamos os nossos olhos e começamos a orar. O impacto foi<br />
fulminante e eu desmaiei.<br />
Quan<strong>do</strong> recobrei a consciência, vi-me rodea<strong>do</strong> por outras<br />
pessoas. Será que havia si<strong>do</strong> um pesadelo? Uma forte <strong>do</strong>r na cabeça<br />
e no braço esquer<strong>do</strong> quebra<strong>do</strong>, faziam-me voltar à triste realidade.<br />
- Onde estou? - perguntei.<br />
- Em uma embarcação aérea - respondeu um deles.<br />
- Encontramos o senhor e uma garota no meio <strong>do</strong> oceano.<br />
Tiveram muita sorte! - disse um outro.<br />
- Minha família! Temos que procurar os meus parentes!<br />
- Lamento, mas só foi possível encontrar vocês <strong>do</strong>is. A menina<br />
não sofreu nada, milagrosamente, e diz ser a sua filha.<br />
- Não! Vocês não podem deixar os outros no mar!<br />
- Infelizmente, já não podemos mais perder tempo, uma<br />
terrível tempestade se aproxima e tenho sob a minha<br />
responsabilidade a vida de centenas de pessoas!<br />
Percebi que esse último que me dirigia a palavra era o<br />
comandante da nave e que <strong>do</strong>lorosamente estava certo.<br />
- Mas não se desespere, talvez outra embarcação os tenha<br />
localiza<strong>do</strong> - concluiu o marinheiro, tentan<strong>do</strong> me consolar.<br />
- Deixe-me ver a minha filha - pedi, resigna<strong>do</strong>.<br />
- Claro, mas cuidemos primeiro <strong>do</strong>s seus ferimentos.<br />
Depois de medica<strong>do</strong>, fui até a minha menina, que repousava<br />
em um leito. Ao beijar-lhe a testa, ela abriu os seus lin<strong>do</strong>s olhinhos e<br />
abraçou-me aos prantos.<br />
- Ana, meu amorzinho, tenha calma, tu<strong>do</strong> vai ficar bem. Nós<br />
ainda vamos encontrar a mamãe, o seu irmão e to<strong>do</strong>s os outros.<br />
Sem dizer nada, ela soluçava continuamente. Pedi ao<br />
encarrega<strong>do</strong> da enfermagem que lhe ministrasse um calmante.<br />
Depois que <strong>do</strong>rmiu em sono profun<strong>do</strong>, eu fui procurar o comandante<br />
da nave.<br />
- Capitão, eu sou...<br />
- Eu sei quem o senhor é. Sólun, o médico templário que<br />
renunciou ao palácio real para atender ao povo.
- Pode-me dizer o que aconteceu em Atlântida? Eu havia<br />
parti<strong>do</strong> um dia antes <strong>do</strong> grande estron<strong>do</strong>.<br />
- Foi tu<strong>do</strong> muito rápi<strong>do</strong>! Eu estava de prontidão com a minha<br />
tripulação, conforme ordens superiores, mas não sabia porquê. A<br />
única coisa de que tínhamos ciência, era que as erupções da costa<br />
oeste haviam mata<strong>do</strong> milhares de pessoas, naquele mesmo dia. De<br />
repente, os vulcões <strong>do</strong> nosso la<strong>do</strong> oriental passaram a emitir grandes<br />
rolos de fumaça negra, que logo escureceram mais o céu, já<br />
enegreci<strong>do</strong> pelas emanações <strong>do</strong>s vulcões <strong>do</strong> ocidente. Não demorou<br />
muito e estron<strong>do</strong>s terríveis surgiram por toda a parte. Em seguida,<br />
veio uma determinação para embarcarmos toda essa gente que aqui<br />
está, composta por sacer<strong>do</strong>tes, matemáticos, astrônomos,<br />
engenheiros etc. Quan<strong>do</strong> quase to<strong>do</strong>s já estavam a bor<strong>do</strong>, a terra<br />
tremeu pela primeira vez. Foi um tremor fraco, mas assusta<strong>do</strong>r.<br />
Notan<strong>do</strong> a gravidade da situação, determinei que zarpássemos<br />
imediatamente, mesmo sem ordem para isso. Por infelicidade, muitos<br />
não tiveram tempo de embarcar. Logo que começamos a flutuar<br />
alguns metros sobre as águas, ocorreu o segun<strong>do</strong> e terrível tremor.<br />
Nada permaneceu em pé. O porto desmanchou-se em um piscar de<br />
olhos, lançan<strong>do</strong> ao mar milhares de pessoas! Muitas embarcações<br />
não tiveram tempo de partir, sen<strong>do</strong> completamente destruídas no<br />
cais. As mansões, os templos, os monumentos, foram arrasa<strong>do</strong>s<br />
como se fossem de papel!<br />
O homem calou-se por instantes.<br />
- Ainda sobrevoei alguns lugares - continuou - para ver se podia<br />
salvar alguém, mas era impossível. O intenso tremor não parava,<br />
impedin<strong>do</strong> a nossa aterrissagem. Nem as imponentes colunas <strong>do</strong><br />
palácio real escaparam <strong>do</strong> terremoto. Não havia uma única<br />
construção em pé. Em seguida, surgiram por to<strong>do</strong>s os cantos, jatos<br />
de vapores que pareciam asfixiar as pessoas. Labaredas de fogo<br />
brotavam da terra, incendian<strong>do</strong> toda a cidade. As cenas eram<br />
horríveis. Não havia a menor chance de alguém sobreviver. Decidi<br />
aban<strong>do</strong>nar o sobrevôo pelo continente e afastar a nave o mais<br />
depressa possível, pois temia que os gases mortais pudessem nos<br />
alcançar. Quan<strong>do</strong> estávamos bem distantes dali, apareceu no<br />
horizonte, sobre a Atlântida, um sol, maior e mais intenso <strong>do</strong> que<br />
aquele que estava no firmamento. No mesmo instante, a terra soltou<br />
o seu grande e apavorante rugi<strong>do</strong>, transforman<strong>do</strong> o continente em pó<br />
e uma nuvem descomunal subiu às alturas. Rochas incandescentes e<br />
enormes foram lançadas à grande distância. A minha nave só não foi
atingida porque Posêi<strong>do</strong>n nos abençoou com sua misericórdia.<br />
Olhan<strong>do</strong> pelo meu visor, vi que as águas iam engolin<strong>do</strong> lentamente o<br />
que restava, arrastan<strong>do</strong> para o fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> mar até mesmo os navios,<br />
que muito antes haviam deixa<strong>do</strong> o porto. Os maremotos vieram com<br />
a mesma fúria, caçan<strong>do</strong> impie<strong>do</strong>samente todas as embarcações que<br />
não tinham um dispositivo de vôo para grande altitude. O Grão-<br />
sacer<strong>do</strong>te, que está a bor<strong>do</strong>, afirmou que Amon havia se<br />
transforma<strong>do</strong> no Deus <strong>Sol</strong>. Mas ainda não estamos salvos. O nosso<br />
combustível está chegan<strong>do</strong> ao fim e temos que descer no mar e usar<br />
as velas para navegarmos. Talvez não escapemos da tempestade que<br />
nos segue, desde que partimos.
65 - O RENASCER <strong>DO</strong>S DEUSES<br />
Na mesma noite o capitão determinou que a nave passasse a<br />
navegar sobre as águas, pois não havia mais combustível.<br />
A tempestade logo nos alcançou. Permaneci ao la<strong>do</strong> da minha<br />
filha, oran<strong>do</strong> fervorosamente.<br />
Ficamos à mercê da natureza enfurecida. Ondas enormes<br />
cobriam o navio, partin<strong>do</strong> os mastros como se quebrassem frágeis<br />
palitos! Depois de algumas horas de pânico, o tempo começou a<br />
melhorar.<br />
O barco estava muito avaria<strong>do</strong>. Sem combustível e sem as<br />
velas, ficamos à deriva, em pleno alto-mar...<br />
Ajudei a cuidar <strong>do</strong>s feri<strong>do</strong>s, inclusive <strong>do</strong> comandante.<br />
- E agora? O que será de nós? - perguntei a ele, depois que o<br />
mediquei com o que dispunha.<br />
- Pelos meus cálculos, se a corrente marítima não estiver muito<br />
alterada pelo afundamento da Atlântida, poderemos chegar nas novas<br />
terras em quarenta dias, caso não enfrentemos outra tormenta nas<br />
mesmas proporções, pois a estrutura <strong>do</strong> navio está muito<br />
comprometida. Os mantimentos perderam-se, mas temos no mar<br />
uma farta reserva. O problema maior é o dispositivo de<br />
dessalinização que ficou muito danifica<strong>do</strong>. Os técnicos informaram<br />
que somente em três dias conseguiriam repará-lo, mesmo assim,<br />
produzirá uma pequena quantidade de água pura por dia. Dessa<br />
forma, teremos que racioná-la.<br />
Nos dias seguintes, vimos muitos destroços de outras<br />
embarcações, flutuan<strong>do</strong> pelas águas.<br />
Eu estava triste e inconforma<strong>do</strong> por ter perdi<strong>do</strong> tantos<br />
familiares em tão pouco tempo e de mo<strong>do</strong> aterra<strong>do</strong>r. Consolava-me o<br />
fato de que Ana estava viva, embora ainda muito chocada.<br />
No qüinquagésimo nono dia, o casco <strong>do</strong> navio começou a<br />
romper-se em vários pontos. O capitão reuniu to<strong>do</strong>s os passageiros<br />
no convés e deu a notícia que nós temíamos:<br />
- Atenção! Quero que to<strong>do</strong>s mantenham a calma, pois a<br />
situação ainda está sob controle, mas o barco em breve irá<br />
naufragar!<br />
O seu apelo não adiantou nada. Muitos entraram em pânico e<br />
demorou algum tempo para que a maioria se apaziguasse.
- Não adianta entrar em desespero! - disse o comandante,<br />
tentan<strong>do</strong> controlar os mais aflitos. - Conforme a nossa carta de<br />
navegação, devemos estar bem próximos de terra firme - concluiu.<br />
- Mas se não é possível avistar nem a copa de um coqueiro,<br />
como quer que cheguemos até lá? Pelo que sabemos to<strong>do</strong>s os botes<br />
foram arrasta<strong>do</strong>s pelas ondas da tempestade! Muitos não conseguirão<br />
dar mais que dez braçadas! - discor<strong>do</strong>u um passageiro.<br />
- A tripulação está construin<strong>do</strong> algumas balsas e remos, com<br />
material <strong>do</strong> próprio navio, as quais poderão acomodar a to<strong>do</strong>s. A<br />
água será dividida, mas terá que ser ainda mais racionada, já que<br />
não poderemos levar o dessaliniza<strong>do</strong>r. Em cada flutua<strong>do</strong>r haverá <strong>do</strong>is<br />
ou três marinheiros que os instruirão nos procedimentos. É<br />
necessário que deixem aqui os seus pertences. A cooperação de<br />
to<strong>do</strong>s é fundamental para que possamos sobreviver! Assim que as<br />
balsas ficarem prontas, darei a ordem para aban<strong>do</strong>nar o navio.<br />
Faremos o transla<strong>do</strong> em ordem e sem correrias. Primeiro as crianças,<br />
mulheres e i<strong>do</strong>sos.<br />
Tu<strong>do</strong> pronto, o capitão determinou:<br />
- Aban<strong>do</strong>nar o navio! Aban<strong>do</strong>nar o navio!<br />
No entardecer <strong>do</strong> quinto dia, com muitos sofren<strong>do</strong> de forte<br />
insolação, avistamos o novo continente. To<strong>do</strong>s ficaram exultantes.<br />
Ajuda<strong>do</strong>s pela corrente marítima, na manhã seguinte,<br />
conseguimos atingir a praia. Cansa<strong>do</strong>s, deitamos na areia.<br />
Em seguida, o Grão-mestre passou a fazer as orações de<br />
agradecimento aos deuses, especialmente a Posêi<strong>do</strong>n.<br />
Quan<strong>do</strong> terminou, percebemos que estávamos cerca<strong>do</strong>s por<br />
centenas de homens de pele escura, arma<strong>do</strong>s de lanças e outros<br />
apetrechos primitivos de guerra.<br />
Preocupa<strong>do</strong>, o comandante recomen<strong>do</strong>u a to<strong>do</strong>s nós que<br />
permanecêssemos para<strong>do</strong>s e quietos.<br />
Ameaça<strong>do</strong>res, os selvagens aproximaram-se. O capitão tentou<br />
comunicar-se com eles, mas não entendiam o que falava. Fez então<br />
vários gestos, tentan<strong>do</strong> mostrar que não éramos guerreiros e nem<br />
invasores, apenas náufragos e que não tínhamos armas.<br />
De nada adiantou. Cada vez que gesticulava, os selvagens<br />
mostravam-se mais nervosos.<br />
Um <strong>do</strong>s primitivos chegou mais perto da minha filha. Eu a<br />
coloquei atrás de mim e disse:<br />
- Afaste-se de nós!
Evidentemente que ele não entendeu e tentou pegar nos<br />
cabelos de Ana. Ela ficou ainda mais apavorada e começou a chorar.<br />
Preocupa<strong>do</strong>, acabei empurran<strong>do</strong>-o para longe.<br />
- Sólun! - gritou o comandante. - Ele não quer machucá-la, só<br />
está curioso! Também somos estranhos para essa gente!<br />
- Não! Ninguém irá tocá-la! - afirmei, relutante.<br />
Novamente e mais irrita<strong>do</strong>, o selvagem tentou apalpar a minha<br />
filha, mas não permiti e, ao evitar que a tocasse, acabei jogan<strong>do</strong>-o no<br />
chão.<br />
Com um golpe rápi<strong>do</strong>, um outro aborígine enfiou a ponta de sua<br />
lança em meu peito. A minha filha gritou, desesperada!<br />
Caí no chão e, em seguida, os nativos agarraram-na, levan<strong>do</strong>-a<br />
para longe de mim. Inutilmente ela se debatia, tentan<strong>do</strong> fugir, sem<br />
que recebesse qualquer ajuda <strong>do</strong>s demais náufragos.<br />
Tentei me levantar, mas fui golpea<strong>do</strong> outra vez, agora pelas<br />
costas.<br />
- Salvem-na! Salvem-na! Cretinos, covardes! Salvem-na! -<br />
gritei para os meus compatriotas.<br />
Após um forte golpe na cabeça, acabei por desmaiar. Quan<strong>do</strong><br />
acordei, não havia mais ninguém ali, apenas as aves carniceiras. O<br />
sol ardia implacável. Ten<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong> muito sangue, não tinha forças<br />
para me mexer. Eu via a morte chegan<strong>do</strong>...<br />
De repente, as aves bateram asas, in<strong>do</strong> para longe. Uma<br />
sombra cobriu a minha visão <strong>do</strong> sol. Era um solda<strong>do</strong> atlante.<br />
- Ele está vivo! Tragam o médico! - gritou, para o meu alívio.<br />
O jovem que veio me socorrer era um médico palaciano, que<br />
não seguia a linha sacer<strong>do</strong>tal, mas isso não importava naquele<br />
momento. De sua mochila, ele tirou um sutura<strong>do</strong>r de cristal e tratou<br />
das minhas feridas. Depois, pegou um frasco que continha um líqui<strong>do</strong><br />
e disse:<br />
- Beba, é a água da vida! Você perdeu muito sangue!<br />
A água a que ele se referia, era um líqui<strong>do</strong> desenvolvi<strong>do</strong> pela<br />
nossa ciência que, logo após ingeri<strong>do</strong>, entrava na corrente sangüínea<br />
e multiplicava rapidamente as células <strong>do</strong> sangue.<br />
Após alguns minutos, eu já estava em pé, com os ferimentos<br />
trata<strong>do</strong>s e totalmente refeito.<br />
- Só pequenas cicatrizes, meu caro médico templário! - disse<br />
alegremente Quíron, que em seguida me abraçou.<br />
O cirurgião que havia me trata<strong>do</strong>, ao saber que eu era um<br />
sacer<strong>do</strong>te da medicina, cumprimentou-me com veneração.
- Como vê, Sólun, o avanço da nossa ciência não é tão ruim! -<br />
falou o eufórico general.<br />
- O seu trabalho é excelente! - afirmei ao médico.<br />
- Mas convém que o templário repouse, pois, ainda está sob<br />
cuida<strong>do</strong>s - recomen<strong>do</strong>u.<br />
- Não posso! Comandante - falei dirigin<strong>do</strong>-me a Quíron - os<br />
selvagens dessas terras levaram a minha filha e to<strong>do</strong>s os náufragos<br />
que se salvaram. Precisamos encontrá-los!<br />
- Eu já havia designa<strong>do</strong> uma nave para localizá-los, porque<br />
vimos as suas pegadas para o norte. Acabei de receber a informação<br />
de que já os acharam, dispersan<strong>do</strong> os aborígines. Venha para a<br />
minha nau-capitânia, vamos encontrá-los!<br />
Enquanto sobrevoávamos, perguntei ao general:<br />
- Como nos localizaram?<br />
- Determinei que todas as embarcações, aéreas ou marítimas,<br />
civis e militares, recebessem um sinaliza<strong>do</strong>r. Infelizmente, mesmo<br />
assim, apenas um décimo das naves puderam ser encontradas.<br />
- E Amon, sobreviveu ao holocausto?<br />
- Não. Mesmo saben<strong>do</strong> o que iria acontecer, fez questão de<br />
permanecer em Atlântida. Incumbiu-me de salvar o seu filho,<br />
Amonrá, para que a sua dinastia prosseguisse além <strong>do</strong>s mares.<br />
Após esse breve diálogo, chegamos na aldeia <strong>do</strong>s homens de<br />
pele escura. Fiquei ansioso!<br />
Pousamos em uma clareira, ao la<strong>do</strong> da outra nave que havia<br />
nos antecedi<strong>do</strong>. Outras duas permaneceram sobrevoan<strong>do</strong> o local,<br />
soltan<strong>do</strong> bolas de fogo para amedrontar e afastar os selvagens.<br />
A maioria <strong>do</strong>s náufragos estava sen<strong>do</strong> atendida junto <strong>do</strong> veículo<br />
aéreo. Aproximei-me de um deles e perguntei sobre o paradeiro da<br />
minha filha.<br />
- Sólun, não foi possível fazer nada, estávamos muito cansa<strong>do</strong>s<br />
e abati<strong>do</strong>s! - disse o interpela<strong>do</strong>. - Quan<strong>do</strong> chegamos aqui os nativos<br />
separaram as mulheres de nós. O capitão e mais três homens<br />
tentaram impedir, todavia, foram mortos no mesmo instante.<br />
Ninguém mais se atreveu a reagir.<br />
- O que você está me dizen<strong>do</strong>? Aonde ela está? - perguntei aos<br />
berros.<br />
- Lamento dizer, mas a maioria das mulheres foram estupradas.<br />
Sua filha resistiu e foi morta.<br />
- Não! Não é possível! - bradei desespera<strong>do</strong>.
Passei a correr pela aldeia, para encontrá-la, gritan<strong>do</strong> o seu<br />
nome por to<strong>do</strong>s os cantos. Após tropeçar nos cadáveres <strong>do</strong>s<br />
navega<strong>do</strong>res, escutei Quíron me chaman<strong>do</strong>:<br />
- Sólun!<br />
Voltei-me para trás e vi o general, carregan<strong>do</strong> nos braços, o<br />
corpo da minha criança.<br />
Peguei-a no colo e chorei amargamente. A <strong>do</strong>r era<br />
insuportável...<br />
Após as cerimônias fúnebres, os mortos foram crema<strong>do</strong>s.<br />
Olhan<strong>do</strong> o fogo consumir o corpo da única pessoa que restava na<br />
minha vida, uma febre de inconformismo e de ódio começou a arder<br />
dentro da minha alma.<br />
Daquele momento em diante, passei a desacreditar nos deuses,<br />
embora guardasse segre<strong>do</strong> disso, para evitar represálias <strong>do</strong>s outros<br />
sacer<strong>do</strong>tes.<br />
Toma<strong>do</strong> por uma ira indescritível, jurei vingar a morte da minha<br />
filha em todas as oportunidades que tivesse de contato com os<br />
aborígines. Passaria a tratar a sub-raça com total desprezo, ven<strong>do</strong><br />
em qualquer um a figura <strong>do</strong> assassino de Ana.<br />
- Queimem a aldeia e cacem os primitivos! Os homens serão<br />
esfola<strong>do</strong>s vivos e as mulheres e crianças serão escraviza<strong>do</strong>s! -<br />
ordenou o general.<br />
Assim se sucedeu.<br />
A bor<strong>do</strong> da nave, Quíron comentou:<br />
- Sólun, to<strong>do</strong>s nós tivemos grandes perdas com a catástrofe.<br />
Também estou sozinho...<br />
- Se Amon não desse a ordem de destruir a usina, nada disso<br />
teria ocorri<strong>do</strong> - respondi, inconsolável.<br />
- Mas ele não deu essa ordem - contestou.<br />
- Se ele não determinou isso, quem foi o louco que man<strong>do</strong>u?<br />
- Ninguém.<br />
- Então, o que foi que aconteceu?<br />
- Como você ficou saben<strong>do</strong>, por uma questão de confiança,<br />
reduzimos os funcionários a um quinto <strong>do</strong> efetivo. Em razão disso, os<br />
turnos de trabalho aumentaram, diminuin<strong>do</strong> o intervalo de descanso.<br />
Um <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res a<strong>do</strong>rmeceu e quan<strong>do</strong> deu por si percebeu que<br />
havia um superaquecimento de um <strong>do</strong>s reatores. Ao tentar controlar<br />
a situação, acidentalmente desligou o dispositivo que controlava os<br />
vulcões. Foi o suficiente para que os funcionários, tensos pela<br />
atmosfera hostil entre os governantes e preocupa<strong>do</strong>s com uma
possível sabotagem, entrassem em pânico e aban<strong>do</strong>nassem o local.<br />
Quan<strong>do</strong> os engenheiros tentaram reassumir o controle, já era tarde.<br />
Ainda assim procuraram, por to<strong>do</strong>s os meios, reverter o quadro de<br />
risco e por <strong>do</strong>is dias trabalharam desesperadamente. Não<br />
conseguiram e morreram na explosão!<br />
- Por que não avisaram o povo desde o começo?<br />
- Qualquer notícia, de início, poderia causar uma histeria sem<br />
limites e proporcionar uma tragédia maior <strong>do</strong> que se podia esperar.<br />
Além <strong>do</strong> que, até o último instante, acreditava-se que era possível<br />
salvar o continente. Entretanto, to<strong>do</strong>s os chefes de Esta<strong>do</strong> foram<br />
avisa<strong>do</strong>s para que a<strong>do</strong>tassem as providências cabíveis para uma<br />
evacuação imediata, se fosse necessário. As embarcações, civis e<br />
militares, permaneceram em esta<strong>do</strong> de alerta máximo, prontas para<br />
zarpar. Sen<strong>do</strong> óbvio que não seria possível salvar a to<strong>do</strong>s, Amon<br />
tomou a difícil decisão de selecionar aqueles que deveriam ser<br />
embarca<strong>do</strong>s.<br />
- To<strong>do</strong>s os sobreviventes vieram para esse continente?<br />
- Não. Inka Kon, partiu para as terras <strong>do</strong> oeste. Para lá também<br />
se dirigiram os pagãos que cultuam os sacrifícios humanos, lidera<strong>do</strong>s<br />
por Chichen, sacer<strong>do</strong>te de Satás. Mais para o noroeste, Atabasca<br />
levou os seus descendentes. Rama e centenas de segui<strong>do</strong>res foram<br />
para o la<strong>do</strong> oposto, dirigin<strong>do</strong>-se ao nordeste, passan<strong>do</strong> pelas colunas<br />
de Hércules, levan<strong>do</strong> a bandeira <strong>do</strong> cordeiro como símbolo da paz. O<br />
filósofo Hélen e seus discípulos, que cultuam as artes, refugiaram-se<br />
em uma das ilhas de Greka.<br />
- O que faremos? - perguntei.<br />
- Também iremos atravessar o estreito de Hércules, mas<br />
permaneceremos ao norte desse continente de homens de pele<br />
negra. Procuraremos uma região já habitada por antigos explora<strong>do</strong>res<br />
atlantes, propícia para reconstruirmos o nosso império. Temos a<br />
maioria <strong>do</strong>s sacer<strong>do</strong>tes que guardam os conhecimentos de nossos<br />
antepassa<strong>do</strong>s. Vieram comigo, os melhores engenheiros, astrônomos,<br />
agricultores e os mais renoma<strong>do</strong>s obreiros. As forças militares que<br />
restaram serão suficientes para assegurar as conquistas das novas<br />
terras. Durante algumas semanas ainda poderemos usar as naves<br />
para o nosso deslocamento e para conhecer e estudar a região, pois,<br />
com o afundamento da Atlântida, parte das terras desse continente,<br />
que estavam submersas, sobrelevaram-se. Venha conosco, você é o<br />
único médico com voto sacer<strong>do</strong>tal. Vamos aproveitar o nosso<br />
infortúnio para resgatar as antigas tradições. Faremos uma nação
poderosa e rica, soberana em muitos conhecimentos. Nossas obras e<br />
os nossos feitos permanecerão pelos milênios, como prova da<br />
capacidade de um povo que não se entregou à desgraça!
66 - O PASSA<strong>DO</strong> QUE SE FEZ PRESENTE<br />
A lembrança pretérita era perfeitamente real e os sentimentos<br />
da época renasciam em mim com a mesma intensidade. As cenas<br />
prosseguiam e eu as vivenciava em to<strong>do</strong>s os detalhes.<br />
Assim que chegamos às novas terras, contemplamos um lin<strong>do</strong><br />
arco-celeste, que unia as águas <strong>do</strong> mar com as <strong>do</strong> rio caudaloso.<br />
Segun<strong>do</strong> o que as nossas sondas puderam verificar, era o maior rio<br />
<strong>do</strong> planeta.<br />
Os atlantes, que nos haviam antecedi<strong>do</strong> nessa região,<br />
chamavam-no de Nillo, que significava “vasto em energia”, por ter as<br />
margens férteis, em razão <strong>do</strong> limo especial que produz.<br />
Andan<strong>do</strong> à beira <strong>do</strong> Nillo, vi inúmeros papiros, provavelmente<br />
planta<strong>do</strong>s pelos primeiros colonos, pois era uma planta aquática<br />
originária da Atlântida, usada para fazer papel.<br />
Lembrei-me da primeira vez que havia visto e colhi<strong>do</strong> um<br />
papiro. Eu tinha sete anos. Foi às margens <strong>do</strong> rio Mós, em um <strong>do</strong>s<br />
vales de cultivo mais abundante <strong>do</strong> nosso extinto continente.<br />
Ali perto, ficava o mosteiro de Chavin, onde eu estudava desde<br />
os cinco anos, quan<strong>do</strong> os meus pais entregaram-me aos templários.<br />
Era uma verdadeira cidade, com o maior centro de cerimônias, em<br />
forma piramidal, de toda a nação.<br />
Inúmeros túneis uniam praças e câmaras religiosas que ficavam<br />
em níveis diferentes. Cada lugar, pintura ou escultura tinha um<br />
significa<strong>do</strong> e importância espiritual até mesmo o número de pedras e<br />
sua posição em uma edificação, guardavam segre<strong>do</strong>s místicos.<br />
As construções, normalmente, tinham uma estrutura maior,<br />
feita à base de grandes pedras que formavam plataformas que eram<br />
sustentadas por outras tantas, compostas por pedras bem menores e<br />
superpostas, perfeitamente encaixadas, sem argamassa.<br />
Significava que a pequena força de muitos poderia sustentar a<br />
grande força de poucos, referin<strong>do</strong>-se aos aprendizes e seus mestres.<br />
O culto, para quem olhasse apenas para as figuras expostas e<br />
nominadas, seria basea<strong>do</strong>, principalmente, nos felinos, nas serpentes<br />
e nas aves. Mas o significa<strong>do</strong> real precisava ser decifra<strong>do</strong>.<br />
Os felinos representavam a força interior <strong>do</strong> homem encarna<strong>do</strong>.<br />
As serpentes referiam-se às energias invisíveis que atuam em todas<br />
as coisas e criaturas. As aves significavam o espírito propriamente<br />
dito.
No dia em que eu havia colhi<strong>do</strong> um papiro, voltei para o<br />
mosteiro, por uma de suas câmaras subterrâneas. Acabei pegan<strong>do</strong> o<br />
caminho erra<strong>do</strong> e fui parar em uma praça na qual havia uma<br />
interessante escultura.<br />
Tratava-se de uma lança de cinco metros de altura, com a<br />
imagem de um felino antropomorfiza<strong>do</strong>, com o braço direito para<br />
cima e o esquer<strong>do</strong> para baixo.<br />
Fazen<strong>do</strong> um círculo em torno da escultura, estavam sete<br />
meninos senta<strong>do</strong>s de pernas cruzadas. Seis eram bem maiores <strong>do</strong><br />
que eu e um tinha a minha idade. Perceben<strong>do</strong> a minha curiosidade<br />
pela figura enigmática, o pequeno chela me perguntou:<br />
- O que lhe causa tanta admiração?<br />
- O felino na forma humana.<br />
- O que mais?<br />
- O estranho fato da mão direita estar para cima e a esquerda<br />
para baixo.<br />
- O que vem de cima? - perguntou.<br />
- As forças da luz divina - respondi.<br />
- O que vem de baixo?<br />
- As forças da terra.<br />
- O que é o felino no corpo de um homem?<br />
- A força oculta que o homem possui.<br />
- Quan<strong>do</strong> o homem descobrir o seu real poder interior e souber<br />
usar as forças divinas e da natureza, se tornará possui<strong>do</strong>r de uma<br />
arma (a lança), capaz de atingir os seus divinos objetivos (a lança<br />
apontada para o céu), que estariam além de sua capacidade normal<br />
(os braços). Junte-se a nós e venha meditar.<br />
Sentei-me ao la<strong>do</strong> esquer<strong>do</strong> dele, fechan<strong>do</strong> os olhos. A minha<br />
mente começou a divagar no espaço e no tempo. Senti que o meu<br />
centro coronário girava tão velozmente que me causava certa<br />
tontura. Se não estivesse senta<strong>do</strong>, talvez caísse no chão.<br />
Ao mesmo tempo, todas as lembranças começaram a se<br />
misturar dentro de mim. Pude me ver flutuan<strong>do</strong> nas águas <strong>do</strong> Nillo e<br />
depois despencan<strong>do</strong> de grande altura no mar. Mas caía lentamente.<br />
Ouvi a voz <strong>do</strong> menino dizen<strong>do</strong>:<br />
- As águas <strong>do</strong> rio são as suas emoções que obedecem à força<br />
<strong>do</strong> destino e correm a desaguar no mar de sua alma. Deixe os<br />
sentimentos fluírem livremente nos rios de suas vidas e ficará pleno<br />
de mais sabe<strong>do</strong>ria.
Quan<strong>do</strong> abri os olhos, estava ofegante e sua<strong>do</strong>, com o coração<br />
dispara<strong>do</strong>.<br />
Para a minha surpresa, eu estava nos Andes, na cidade que<br />
Choam havia nos indica<strong>do</strong> para encontrar o sábio das montanhas. Na<br />
minha frente havia uma escultura na forma de lança de cinco metros<br />
de altura. Tinha a figura de um felino antropomorfiza<strong>do</strong>, com o braço<br />
direito para cima e o esquer<strong>do</strong> para baixo.<br />
Em volta da estátua, estavam os aprendizes que Choam haviame<br />
apresenta<strong>do</strong>.<br />
Olhamos uns para os outros, desconfia<strong>do</strong>s e assusta<strong>do</strong>s. Do<br />
meu la<strong>do</strong> direito, em um espaço vago, havia um papiro...
67 - A ÚLTIMA PROVA<br />
Era incrível, mas cada um de nós havia passa<strong>do</strong> por uma<br />
experiência de regressão. Por esse processo, pude voltar no tempo e<br />
vivenciar a minha última encarnação na Atlântida.<br />
Cada um carregava em si alguns resquícios emocionais desse<br />
perío<strong>do</strong>, que precisavam finalmente ser compreendi<strong>do</strong>s e<br />
harmoniza<strong>do</strong>s. No meu caso, levei três vidas consecutivas,<br />
mergulha<strong>do</strong> no ódio e desprezo pelas raças primitivas.<br />
A conseqüência disso foi uma série de reencarnações entre os<br />
próprios aborígines que rejeitava e depois, entre os indígenas <strong>do</strong><br />
continente sul-americano.<br />
Depois de alguns milênios eu voltava a ter uma encarnação<br />
cheia de aprendiza<strong>do</strong>s ocultos, submeti<strong>do</strong> a provas que visavam<br />
comprovar se os problemas pretéritos haviam si<strong>do</strong> definitivamente<br />
supera<strong>do</strong>s.<br />
Quan<strong>do</strong> passamos a contar, um para o outro, a enigmática<br />
experiência regressiva, ficamos ainda mais impressiona<strong>do</strong>s, pois<br />
descobrimos que nos havíamos conheci<strong>do</strong> naquela época longínqua.<br />
Fiquei saben<strong>do</strong> que Jallpa havia si<strong>do</strong> o sena<strong>do</strong>r que eu tinha<br />
trata<strong>do</strong>; Inti fora Amon; Ilhapa, o general Quíron; Chaska, o capitão<br />
que nos salvara <strong>do</strong> naufrágio; Pára, era o Grão-mestre da<br />
embarcação e Kori Kenti, o médico palaciano que me tratou quan<strong>do</strong><br />
fui encontra<strong>do</strong> gravemente feri<strong>do</strong> nas novas terras.<br />
Retornamos felizes para o vale <strong>do</strong> grande felino. Lá, narramos a<br />
Choam a experiência que havíamos vivi<strong>do</strong>. Ele ouviu-nos com a sua<br />
habitual paciência e informou:<br />
- Vocês cumpriram todas as etapas <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong>. Agora terão<br />
a derradeira prova. Deverão separar-se e a cada um será designa<strong>do</strong><br />
um local de reclusão.<br />
O lugar que me foi destina<strong>do</strong> chamava-se Machu Picchu, a<br />
Cidade da Paz, que somente os mestres conheciam e que ficava no<br />
topo de uma das mais altas montanhas.<br />
O Setenário explicou o caminho que deveria seguir para chegar<br />
até lá e logo pus-me em marcha.<br />
Caminhei, seguin<strong>do</strong> o curso <strong>do</strong> rio Urubamba. Em seu leito<br />
havia enormes pedras esbranquiçadas, contra as quais as águas<br />
batiam, fazen<strong>do</strong> surgir belíssimas espumas. Às suas margens existia<br />
um vale muitíssimo fértil para muitos tipos de plantações.
Atingin<strong>do</strong> a base da grande montanha, passei a subir por<br />
caminhos estreitos, margea<strong>do</strong>s por impressionantes abismos.<br />
Quatro dias após eu ter deixa<strong>do</strong> o Umbigo <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, conseguia<br />
alcançar a Cidade da Paz. Era o único lugar plano entre picos agu<strong>do</strong>s.<br />
Uma verdadeira fortaleza natural.<br />
O clima era totalmente mágico. Ainda não havia construções<br />
físicas, mas a minha vidência revelava uma pequena, porém,<br />
fantástica cidade, erigida no plano astral. Nela havia terraços para<br />
agricultura, canais de águas, cisternas, centros de cultura e templos<br />
majestosos. Sem dúvida, uma projeção <strong>do</strong> que aquele lugar viria a<br />
ser.<br />
Um canto melodioso, belíssimo, fez-me sair <strong>do</strong> transe em que<br />
estava. No cume <strong>do</strong> pico mais alto, vi a silhueta de uma mulher que<br />
fez um sinal para que eu fosse até lá.<br />
O local era próximo, porém de difícil acesso. Qualquer<br />
escorregão poderia ser fatal. Cuida<strong>do</strong>samente, passo a passo, atingi o<br />
cimo.<br />
A moça era lindíssima. Estava usan<strong>do</strong> um vesti<strong>do</strong> branco, tão<br />
límpi<strong>do</strong> que reluzia. Tu<strong>do</strong> nela era especial. O olhar, os cabelos, o<br />
sorriso e a sua a<strong>do</strong>rável voz.<br />
Junto ao peito, ela segurava uma flor muito exótica, que tinha a<br />
forma de um cálice, na cor violeta, com sementes amarelas, fixas em<br />
uma haste que partia <strong>do</strong> seu interior. O seu perfume era inebriante,<br />
apesar <strong>do</strong> seu pequeno tamanho.<br />
Entregan<strong>do</strong>-me a flor, ela disse:<br />
- Cuide dela para mim. É delicada, e possui propriedades<br />
altamente medicinais. Precisa de muito cuida<strong>do</strong>, pois a sua extrema<br />
fragilidade deixa-a suscetível ao frio, ao calor, vento e chuva. Mesmo<br />
ao toque, ela é muito sensível, poden<strong>do</strong> morrer facilmente se não for<br />
tratada com carinho.<br />
Tão logo a peguei, a linda mulher foi embora, desaparecen<strong>do</strong><br />
entre as rochas.<br />
Sentei-me e coloquei a flor em meu colo. Com o passar das<br />
horas, comecei a ficar incomoda<strong>do</strong> por permanecer tanto tempo na<br />
mesma posição. Quan<strong>do</strong> fiz menção de mover-me, notei que ela<br />
perdera um pouco <strong>do</strong> seu brilho. Preocupa<strong>do</strong>, permaneci imóvel,<br />
como uma rocha, achan<strong>do</strong> que a jovem logo retornaria.<br />
Mas ela não voltou e a noite chegou com um vento forte e frio,<br />
dan<strong>do</strong> a impressão que cortava a pele. Com a reativação <strong>do</strong>s ierês e<br />
com o ritmo respiratório, pude conservar o meu calor.
Mantive a flor entre as minhas mãos e a to<strong>do</strong> o momento<br />
assoprava um ar quente, para que ela não sentisse tanto frio.<br />
Fiquei receoso de <strong>do</strong>rmir e deixá-la morrer. Resolvi não correr<br />
riscos e assim passei a noite toda acorda<strong>do</strong>.<br />
No dia seguinte, o sol surgiu com um calor sem igual. Eu suava<br />
aos jorros e abanava sem parar a frágil flor. Assim foi até o<br />
entardecer.<br />
A noite voltou mais fria e com um vento ainda mais forte.<br />
Sentia-me exausto, mas conseguia cuidar da minha protegida.<br />
Por várias vezes quase cochilei. Esforcei-me e permaneci<br />
acorda<strong>do</strong> a noite inteira.<br />
De manhã, o sol tornou a nos castigar. À tarde, grossas e<br />
escuras nuvens se formaram. Logo em seguida, caiu uma chuva<br />
torrencial, com pedras de gelo. Abriguei a bela flor, da melhor<br />
maneira possível e aproveitei para colher na boca, a água da chuva.<br />
A tempestade durou horas e, quan<strong>do</strong> terminou, escorria sangue<br />
pela minha testa, devi<strong>do</strong> aos golpes <strong>do</strong>s granitos de gelo. Abri as<br />
mãos, que estavam em concha, e vi a flor ainda mais bonita.<br />
Outra noite chegou e as <strong>do</strong>res que eu sentia no corpo eram<br />
tantas e tão fortes, que quase nem me incomodavam mais. Porém, o<br />
meu poder de concentração estava fican<strong>do</strong> cada vez mais débil.<br />
A fome começava a ficar insustentável e nem a reativação <strong>do</strong>s<br />
centros energéticos era suficiente para aplacá-la.<br />
Longe de mim, havia uma planta cujas pequenas raízes eram<br />
muito nutritivas. Todavia, quan<strong>do</strong> tentei sair da posição em que<br />
estava, a flor deu sinais de que iria murchar. Preferi permanecer <strong>do</strong><br />
mesmo jeito, suportan<strong>do</strong> também a tentação de devorar a própria<br />
protegida.<br />
Na manhã <strong>do</strong> dia posterior, um pequeno pássaro pousou em<br />
minha cabeça. Agitan<strong>do</strong>-a, o visitante foi embora, mas não demorou<br />
muito e ele voltou, pican<strong>do</strong> levemente o meu couro cabelu<strong>do</strong>.<br />
Por várias vezes eu o afugentei e sempre ele retornava. Era só<br />
o que me faltava! Um penu<strong>do</strong>, queren<strong>do</strong> fazer ninho na cabeça de um<br />
pena<strong>do</strong>!<br />
Acabei não achan<strong>do</strong> tão ruim, era ao menos uma companhia,<br />
além <strong>do</strong> que, cada vez que voava sobre mim, ele fazia um vento<br />
refrescante que a flor e eu compartilhávamos. É verdade que não<br />
faltou um pequeno desejo de transformá-lo, ora em almoço, ora em<br />
jantar, mas resisti.
No outro dia, a terra começou a tremer. Eu estava tão fraco<br />
que, se já era difícil manter-me naquela posição, daquele jeito,<br />
quanto mais com um terremoto!<br />
O tremor acabou passan<strong>do</strong>. Foram poucos minutos que<br />
pareceram uma eternidade. Olhei para a flor e ela estava ainda mais<br />
bonita.<br />
O pássaro, que havia fugi<strong>do</strong> no início <strong>do</strong> sismo, voltou trazen<strong>do</strong><br />
uma companheira.<br />
Maravilha! Agora eram <strong>do</strong>is bicu<strong>do</strong>s a me aporrinhar a cabeça!<br />
Fiquei torcen<strong>do</strong>: com sorte, ela poria apenas <strong>do</strong>is ovos e, para a<br />
alegria geral, seriam somente <strong>do</strong>is comporta<strong>do</strong>s filhotes, que logo<br />
aprenderiam a voar.<br />
Por fim, depois de mais uma noite, perdi a noção <strong>do</strong> tempo e<br />
cheguei ao meu limite máximo, cain<strong>do</strong> de la<strong>do</strong>. Os pássaros foram<br />
embora e outros passaram a voar em círculo sobre mim, esperan<strong>do</strong> o<br />
momento propício para devorar a minha carniça.<br />
A visão já turva impedia que eu visse se a flor permanecia viva.<br />
Também não conseguia mover-me, era impossível mexer um único<br />
de<strong>do</strong>. Sem tato, não podia sentir se ela estava bem.<br />
Até a visão hiperfísica não pôde ser ativada, não me permitin<strong>do</strong><br />
qualquer verificação astral. Assim, quan<strong>do</strong> o sol se pôs, não sentin<strong>do</strong><br />
mais o delicioso perfume, comecei a chorar um choro sem lágrimas,<br />
acreditan<strong>do</strong> que a flor havia morri<strong>do</strong>.<br />
- Por que chora?<br />
Ouvi surpreso a voz de Choam.<br />
Pude abrir um pouquinho os olhos e com muito esforço, falei<br />
pausadamente:<br />
- Venerável... não sou mais digno <strong>do</strong>s seus ensinamentos...<br />
- Por que se julga assim?<br />
- Esmoreci... perdi as minhas forças... acabei falhan<strong>do</strong>...<br />
... não sinto vida na bela flor que me foi entregue... não devo<br />
ser mais o seu aprendiz!<br />
O Setenário afastou as minhas mãos inertes, pegou a flor e<br />
disse:<br />
- Você está certo, Agnã, não deve ser mais o meu aprendiz!<br />
Agora, você já é um mestre!<br />
Mesmo com a visão embaçada, pude ver o brilho sem igual da<br />
pequena flor. Ela se transformou em pura luz lilás e <strong>do</strong>urada, que foi<br />
vazan<strong>do</strong> ente os de<strong>do</strong>s de Choam e cain<strong>do</strong> sobre mim.
Os segun<strong>do</strong>s que se passaram foram mágicos. Refiz-me<br />
inteiramente. Depois, o cheroupi voltou a falar:<br />
- Você já está pronto para o seu ritual de iniciação!
68 - A INICIAÇÃO<br />
- O que isso significa?<br />
- Iniciação diz respeito ao começo de algo. Iniciação esotérica é<br />
o início <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong> oculto. Ritual significa a prática invariável de<br />
uma série de atos sagra<strong>do</strong>s, para um determina<strong>do</strong> fim. O ritual<br />
iniciático é uma cerimônia mística que visa celebrar a consagração <strong>do</strong><br />
aprendiz, por ter alcança<strong>do</strong> um estágio <strong>do</strong> conhecimento oculto, após<br />
ter si<strong>do</strong> submeti<strong>do</strong> a testes, que colocaram à prova o seu saber.<br />
Você atingiu um nível em que aquilo que assimilou poderá ser<br />
passa<strong>do</strong> para as outras pessoas, mas nunca interromperá a<br />
continuidade <strong>do</strong> seu próprio aprendiza<strong>do</strong>. O termo “inicia<strong>do</strong>”, diz tu<strong>do</strong><br />
por si mesmo. Demonstra que o indivíduo iniciou o caminho <strong>do</strong><br />
aprendiza<strong>do</strong> que, embora esteja repleto de fases, nunca termina.<br />
Voltemos para Cuzco.<br />
No vale <strong>do</strong> grande felino encontramos os incas que estavam<br />
acompanha<strong>do</strong>s pelos outros Setenários. Não ficamos muito tempo ali.<br />
Logo seguimos para um lugar conheci<strong>do</strong> como Sacsayhuaman.<br />
Não chegava a ser uma cidade e nem mesmo um povoa<strong>do</strong>; no<br />
plano astral, entretanto, podia-se ver todas as edificações que seriam<br />
construídas.<br />
- Choam. Por que nesse lugar só há construções no mun<strong>do</strong><br />
espiritual? - perguntei.<br />
- Muitas coisas feitas pelos homens são realizadas,<br />
primeiramente, no plano <strong>do</strong>s espíritos. Isso acontece quan<strong>do</strong> há uma<br />
grande proteção espiritual, sen<strong>do</strong> desejo das entidades de luz que se<br />
reproduza no mun<strong>do</strong> físico, as obras que elas idealizam.<br />
Os incas e eu permanecemos em jejum durante sete dias.<br />
Depois desse perío<strong>do</strong>, fomos conduzi<strong>do</strong>s a um local especialmente<br />
reserva<strong>do</strong> para as cerimônias sagradas. Sentamos em círculo e<br />
permanecemos em profunda meditação, até o raiar <strong>do</strong> sol.<br />
Quan<strong>do</strong> um sino soou, eu abri os olhos e vi que tinha um<br />
Setenário senta<strong>do</strong> atrás de cada um de nós, sen<strong>do</strong> que Choam era o<br />
que estava comigo. A nossa volta, havia uma centena de outras<br />
pessoas, todas na mesma posição.<br />
Durante to<strong>do</strong> o dia, entoamos sons mântricos, que ressoavam<br />
com incrível poder. No plano astral, eu via colunas de fogo subin<strong>do</strong><br />
nas alturas, desaparecen<strong>do</strong> no espaço. Seres ala<strong>do</strong>s cruzavam o céu,<br />
por toda a parte. Centenas de entidades se aproximavam, algumas
vindas além <strong>do</strong> céu. Surgiu no firmamento uma imensa janela e por<br />
ela começou a cair sobre nós, um rio de águas prateadas.<br />
No anoitecer, uma pequena luz passou a brilhar no peito de<br />
cada um de nós, que continuávamos em meditação.<br />
Já tarde da noite, vieram <strong>do</strong> Oriente sete estrelas que se<br />
posicionaram acima de nós. Agruparam-se em círculo e de cada uma<br />
saiu um raio que nos atingiu individualmente, fazen<strong>do</strong> com que a<br />
pequena luz, em nosso peito, aumentasse em mil vezes o seu brilho.<br />
Com o entoar <strong>do</strong>s mantras, a luz aumentava ainda mais,<br />
chegan<strong>do</strong> a transformar a noite em pleno dia.<br />
Mentalmente, Choam começou a falar comigo:<br />
- Jovem Agnã, daqui para a frente qualquer pessoa que<br />
encontrar em sua vida passará a fazer parte <strong>do</strong> seu povo. Se você<br />
soube proteger a delicada flor que recebeu, saberá cuidar da enorme<br />
tribo que terá sob sua responsabilidade. Lembre-se, porém, de nunca<br />
exigir nada em troca <strong>do</strong>s benefícios que prodigalizar, nem mesmo<br />
reconhecimento. Assim, além de se resguardar <strong>do</strong> orgulho e da<br />
vaidade, sofrerá menos. Você passará fome e sede, suportará todas<br />
as intempéries, mas o seu povo deverá estar sempre ampara<strong>do</strong>.<br />
Sofrerá incompreensões, descréditos, invejas e ciúmes, contu<strong>do</strong>, seja<br />
firme em sua determinação. Todas as agruras e dificuldades poderão<br />
se tornar o seu cotidiano, no entanto, não deixe que a bela flor<br />
pereça, em momento algum.<br />
Assim que terminou, vi um senhor muito i<strong>do</strong>so se aproximan<strong>do</strong><br />
de mim. Colocou flores em meu colo e disse:<br />
- Nos lugares em que estiver, será o Senhor <strong>do</strong>s Vegetais.<br />
Todavia, estan<strong>do</strong> eles a seu serviço, para a vida e para a morte,<br />
estará assumin<strong>do</strong> o compromisso de preservá-los.<br />
Em seguida, depositou um cristal a minha frente e falou:<br />
- Você será o Senhor <strong>do</strong>s Minerais. Estarão sob as suas ordens,<br />
com to<strong>do</strong>s os poderes a eles inerentes. Será também o seu dever<br />
defender a terra.<br />
Depois, colocou um colar com penas de gavião e um dente de<br />
onça em meu pescoço, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Será o Senhor <strong>do</strong>s Animais. Dos aquáticos e rastejantes aos<br />
pássaros to<strong>do</strong>s estarão a seu serviço. Será sua responsabilidade<br />
protegê-los.<br />
Posteriormente, o pé direito <strong>do</strong> ancião penetrou na terra e o<br />
esquer<strong>do</strong> afun<strong>do</strong>u nas águas. As suas mãos voltaram-se para o céu.<br />
A esquerda tocou uma nuvem clara e a direita uma nuvem escura
que soltava relâmpagos. De sua boca saiu uma língua de fogo e, em<br />
sua barriga, uma massa plasmática se transformou no mun<strong>do</strong>.<br />
- Agnã, terá o <strong>do</strong>mínio sobre os elementos da terra, da água,<br />
<strong>do</strong> ar, <strong>do</strong> fogo e sobre a quinta essência, que o homem não vê, mas<br />
que dá forma a tu<strong>do</strong> o que se vê. O seu caminho não tem volta.<br />
Procure agir sabiamente e sobreviverá além da morte.<br />
Os demais inicia<strong>do</strong>s também receberam os seus desígnios e<br />
tiveram as suas recomendações.<br />
O ritual prosseguiu com muita magia.<br />
No dia seguinte, estávamos to<strong>do</strong>s felizes. Choam veio ao nosso<br />
encontro e disse:<br />
- Venham, faremos a nossa última viagem.
69 - AS ESTRELAS RETORNAM AO CÉU<br />
Seguimos os Setenários em direção <strong>do</strong> sul e chegamos em um<br />
lugar fantástico.<br />
- Aqui viveu a antiga civilização Tiahuanaco - disse Choam.<br />
Na região, havia estátuas monolíticas próximas de um outro<br />
monumento que tinha a forma de uma enorme porta, com entalhes<br />
estiliza<strong>do</strong>s. Tu<strong>do</strong> estava aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> e em ruínas.<br />
- Para onde foram? - perguntou Inti.<br />
- Quan<strong>do</strong> demonstraram possuir a verdadeira sabe<strong>do</strong>ria,<br />
voltaram para o seu mun<strong>do</strong> distante.<br />
- O venerável refere-se aos exila<strong>do</strong>s das estrelas? - perguntei.<br />
- Sim, parte deles viveu por essas terras, antes mesmo <strong>do</strong><br />
afundamento da Atlântida. Sigamos adiante.<br />
Chegamos às margens de um portentoso lago, já perto <strong>do</strong><br />
anoitecer. Os Setenários ficaram olhan<strong>do</strong> fixamente para ele, durante<br />
algum tempo. Nós outros permanecemos em silêncio. Choam, depois,<br />
finalmente comentou:<br />
- Esse é o lago Titicaca, que significa “Lago nas Nuvens”. Às<br />
suas margens, surgiu a primeira ordem esotérica nesse continente,<br />
chamada de Irmandade <strong>do</strong>s Sete Raios, há milhares de anos atrás.<br />
O cheroupi falava com tal sentimento sau<strong>do</strong>sista, que dava a<br />
impressão de estar recordan<strong>do</strong> o passa<strong>do</strong> longínquo em que um dia<br />
esteve presente.<br />
- O venerável participou dessa irmandade? - arrisquei<br />
perguntar.<br />
Antes porém, que pudesse responder, um ponto luminoso no<br />
céu chamou a nossa atenção. Em princípio parecia uma estrela<br />
cadente, cruzan<strong>do</strong> o firmamento em uma velocidade vertiginosa.<br />
Suas manobras radicais, entretanto, nos fizeram crer que não se<br />
tratava de algo conheci<strong>do</strong>.<br />
Não demorou muito e aquele ponto começou a vir em nossa<br />
direção, aumentan<strong>do</strong> a sua luminosidade à medida que se<br />
aproximava.<br />
Quan<strong>do</strong> chegou mais perto, notamos que inúmeras luzes<br />
coloridas brilhavam intensamente ao re<strong>do</strong>r de uma luz principal que<br />
tinha a cor <strong>do</strong>urada.<br />
A grande bola de luz foi toman<strong>do</strong> forma ao parar sobre o<br />
imenso lago. Fiquei to<strong>do</strong> arrepia<strong>do</strong> e os incas também. Era uma nave
simplesmente enorme. Com as suas luzes refletin<strong>do</strong> nas águas,<br />
causava um efeito colori<strong>do</strong> ainda mais impressionante e bonito.<br />
Lentamente foi se aproximan<strong>do</strong>. Os Setenários mantinham-se<br />
impassíveis, observan<strong>do</strong> calmamente.<br />
A pouca distância de nós, a nau parou sobre o lago.<br />
Choam voltou-se para o nosso grupo e, com os olhos cheios<br />
d’água, disse:<br />
- Esse é o momento da nossa despedida.<br />
- Mas venerável... - comecei a falar, quan<strong>do</strong> ele me<br />
interrompeu.<br />
- Não, meu filho! É chegada a hora de partir.<br />
- Precisamos da sabe<strong>do</strong>ria <strong>do</strong>s mestres! - exclamou Inti, em<br />
pleno choro.<br />
- A nossa missão está cumprida e a de vocês se inicia.<br />
- Mas por que ir embora? - perguntou Jallpa, também<br />
inconforma<strong>do</strong>.<br />
- Por um longo tempo a<strong>do</strong>tamos esse mun<strong>do</strong> como a nossa<br />
própria casa, contu<strong>do</strong>, o nosso lar é outro, muito distante daqui e é<br />
para ele que temos que voltar.<br />
- E o que faremos? - indagou Kori.<br />
- Cada um já sabe o seu desígnio. Devem seguir o caminho<br />
para o qual foram prepara<strong>do</strong>s.<br />
Fomos abraça<strong>do</strong>s pelos Setenários, com o mesmo carinho que<br />
um pai abraça o seu filho.<br />
Os cheroupis foram caminhan<strong>do</strong> em direção da grande e<br />
resplandecente esfera, andan<strong>do</strong> por cima das águas. Quan<strong>do</strong><br />
chegaram debaixo dela, ficaram alinha<strong>do</strong>s, la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>. Só aí eu pude<br />
ver alguns deles, como na realidade haviam se apresenta<strong>do</strong> para<br />
mim.<br />
O Setenário da pedra verde no medalhão havia si<strong>do</strong> Bajé, o<br />
curandeiro.<br />
Itayara, que eu havia conheci<strong>do</strong> como Sri, era o cheroupi da<br />
pedra vermelha.<br />
Bayá, o mestre da dança, era o Setenário da pedra laranja.<br />
O cheroupi da pedra azul havia si<strong>do</strong> Guipajé, o Mago <strong>do</strong> Tempo<br />
e <strong>do</strong> Amautério.<br />
O Setenário da pedra amarela fora Ibijara, o Senhor da Terra, o<br />
Sábio das Montanhas e o menino Cayawalla.<br />
Uma luz saiu da nave e desceu sobre os veneráveis, se<br />
misturan<strong>do</strong> com o clarão cintilante que eles próprios emitiam.
Os mestres se transformaram em brilhantes estrelinhas que,<br />
em seguida, subiram para a embarcação de luz.<br />
A garganta apertou, seca, e as lágrimas caíram incontroláveis.<br />
Lentamente, o veículo estelar foi se afastan<strong>do</strong> e ganhan<strong>do</strong><br />
altura.<br />
Um enorme vazio começou a <strong>do</strong>er no peito.<br />
Logo, o barco espacial estava cortan<strong>do</strong> o céu, deixan<strong>do</strong> para<br />
trás o seu rasto luminoso e antes de sumir de uma vez, Pára<br />
perguntou:<br />
- Que seres são esses?<br />
- São homens que vieram das estrelas - respondeu Chaska.<br />
- Não. São seres de Luz, que vieram da Luz - discordei.<br />
Pudemos então escutar, pela última vez, a voz de Choam<br />
dizen<strong>do</strong>:<br />
- To<strong>do</strong>s nós somos filhos da Luz!
70 - <strong>FLECHA</strong> <strong><strong>DO</strong>URADA</strong><br />
Passamos a noite ali mesmo, em profunda meditação. Quan<strong>do</strong><br />
amanheceu, perguntei a Inti:<br />
- E agora, o que vocês irão fazer?<br />
- Voltaremos para Cuzco e daremos início a um trabalho árduo<br />
e demora<strong>do</strong>, que talvez atravesse os séculos. Iremos preparar uma<br />
nova civilização mística.<br />
- Venha conosco, Agnã! - convi<strong>do</strong>u-me Ilhapa.<br />
Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, tive uma visão<br />
sombria. Nela, eu via Uiramirim agonizante e o pajé Marapuama<br />
entoan<strong>do</strong> cânticos aos mortos.<br />
- Meus irmãos - comecei a responder - sinto-me honra<strong>do</strong> pelo<br />
convite, mas tenho pendências a resolver em minha tribo.<br />
- Vá, então, mas firmemos um pacto - disse Inti.<br />
- Qual? - perguntei.<br />
- Permaneceremos uni<strong>do</strong>s, passem os séculos, passem os<br />
milênios e, quan<strong>do</strong> a nossa missão terminar, faremos no espaço uma<br />
fraternidade que irá amparar to<strong>do</strong>s os povos desse continente.<br />
- Que nome daremos a ela? - perguntou Jallpa.<br />
Neste instante, formou-se um lindíssimo arco-celeste sobre o<br />
lago, sen<strong>do</strong> que uma das pontas tocava as margens a nossa frente.<br />
- Fraternidade <strong>do</strong> Arco-Íris! - respondeu Kori Kenti, abrin<strong>do</strong> um<br />
enorme sorriso.<br />
Na minha despedida, mais choradeira. Coloquei tu<strong>do</strong> o que<br />
havia ganho dentro de uma mochila. Amarrei as minhas últimas três<br />
flechas <strong>do</strong>uradas no meu arco e parti com a certeza de que nos<br />
veríamos novamente.<br />
Apressei os passos. Estava muitíssimo distante da região em<br />
que a minha tribo havia permaneci<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong>s anos e levaria<br />
incontáveis dias de caminhada.<br />
Quan<strong>do</strong> anoiteceu, subi em uma árvore para pernoitar. Como<br />
os Setenários haviam parti<strong>do</strong>, achei que já podia des<strong>do</strong>brar sem<br />
maiores censuras. Dessa forma, fui até onde Uiramirim se<br />
encontrava.<br />
Do la<strong>do</strong> de fora da oca havia muitas pessoas, a maioria<br />
parentes da minha bela flor. Algumas mulheres choravam e outras<br />
entoavam cânticos aos espíritos.<br />
Quan<strong>do</strong> entrei na palhoça, a visão foi terrível. Uiramirim estava<br />
deitada em uma rede. Magérrima, só pele e osso, mal podia falar.
O seu pai, o pajé Marapuama, estava muito abala<strong>do</strong> e<br />
permanecia ao seu la<strong>do</strong>. Ele não pôde detectar a minha presença<br />
astral, mas Uiramirim...<br />
... os seus olhos brilharam ao ver-me em espírito.<br />
- Meu amor, por que está assim? - perguntei.<br />
Porém, ela não podia me ouvir, passan<strong>do</strong> a pronunciar o meu<br />
nome baixinho, repetidas vezes.<br />
- Filha, o que está dizen<strong>do</strong>? - perguntou o curandeiro.<br />
- Pai - sussurrou nas mínimas forças - estou ven<strong>do</strong> Agnã...<br />
O pajé, achan<strong>do</strong> que ela começava a ter o delírio da morte,<br />
disse:<br />
- Então filha, você vai partir para a terra <strong>do</strong>s espíritos?<br />
- Sim... ele veio me buscar...<br />
- Não! - gritei inutilmente.<br />
- Uiramirim, eu estou vivo e venho lhe ver com os olhos da<br />
carne! - insisti.<br />
Não adiantou, não era possível que entendesse. Ela estava<br />
certa de que a minha presença, em espírito, era um sinal de que a<br />
sua morte se aproximava.<br />
- Pai...<br />
- Sim, minha pequena.<br />
- Quan<strong>do</strong> eu partir... ponha o meu corpo em uma canoa... deixe<br />
que desça o rio... depois... lance uma flecha em chamas.<br />
- Mas por que isso, filha?<br />
- A seta em fogo... representará o meu ama<strong>do</strong>... Quan<strong>do</strong> parte<br />
das cinzas <strong>do</strong> meu corpo... se perder ao vento... e o restante atingir<br />
as profundezas das águas... estarei unida ao meu ama<strong>do</strong>... de corpo<br />
e alma.<br />
- Farei tu<strong>do</strong> o que me pede - disse Marapuama.<br />
Extremamente desespera<strong>do</strong>, tentei novamente me comunicar<br />
com ela, inclusive fazen<strong>do</strong> alguns gestos para que pudesse me<br />
entender:<br />
- Uiramirim, eu estou vivo! Você não pode se entregar à morte<br />
desse jeito! Viva! Viva!<br />
Infelizmente ela não podia mais me ver. O meu esta<strong>do</strong><br />
emocional fez-me perder o controle sobre o des<strong>do</strong>bramento. Voltei<br />
tão rapidamente para o meu corpo físico, que acabei cain<strong>do</strong> da<br />
árvore.
Na queda, fraturei o pé esquer<strong>do</strong>. Passei o resto da noite<br />
tratan<strong>do</strong>-me e, quan<strong>do</strong> amanheceu, comecei a caminhar, usan<strong>do</strong> um<br />
galho como apoio.<br />
O pé <strong>do</strong>ía demais, mesmo com os remédios que tomei. Porém,<br />
nenhuma <strong>do</strong>r poderia ser pior <strong>do</strong> que aquela que eu sentia no<br />
coração.<br />
Após algumas horas, febril e com a perna inteira inchada, eu<br />
tive que parar. Usan<strong>do</strong> a minha vidência, fiquei aterroriza<strong>do</strong>.<br />
Vi o pajé tentan<strong>do</strong> sentir a respiração de Uiramirim. Tristonho,<br />
depois encostou o ouvi<strong>do</strong> no coração dela. Chorou copiosamente e<br />
anunciou a to<strong>do</strong>s a morte da filha.<br />
Eu não podia acreditar. Direcionei a minha visão para o corpo<br />
da minha amada e observei o seu coração. Ele batia, sim, mas tão<br />
fracamente, que as pulsações se tornaram imperceptíveis aos ouvi<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> pajé. A sua respiração também era muito ínfima e dificilmente<br />
poderia ser percebida.<br />
O duplo etéreo, embora extremamente debilita<strong>do</strong>, mantinha,<br />
ainda assim, todas as atividades indispensáveis ao corpo físico e os<br />
filamentos astrais não haviam si<strong>do</strong> desfeitos.<br />
Entretanto, os procedimentos fúnebres prosseguiram<br />
normalmente. Marapuama explicou aos parentes o desejo da filha. Os<br />
rituais foram então inicia<strong>do</strong>s, em respeito a sua última vontade.<br />
Uma canoa mortuária foi preparada à beira <strong>do</strong> rio principal. O<br />
corpo da minha querida foi carrega<strong>do</strong> pelo próprio pai. To<strong>do</strong>s<br />
choravam muito.<br />
Depois que Uiramirim foi colocada na yaratim, cobriram-na com<br />
os seus pertences e com muita palha seca, para que, quan<strong>do</strong> a flecha<br />
em chamas a atingisse, queimasse imediatamente.<br />
Fiquei aflito e muito angustia<strong>do</strong>. Eu estava longe demais e com<br />
o pé fratura<strong>do</strong>. Comecei a chorar copiosamente, culpan<strong>do</strong>-me pela<br />
morte atroz da minha prometida.<br />
Foi nesse momento, que senti uma mão em meu ombro.<br />
Quan<strong>do</strong> olhei para trás, vi Tapeyara. Sem falar nada, apontou para a<br />
frente e fez um sinal para que eu continuasse a caminhar.<br />
Muitas dúvidas poderiam surgir naquele momento, mas respirei<br />
fun<strong>do</strong> e levantei-me confiante.<br />
Ao re<strong>do</strong>r, eu vi os curupiras saltitan<strong>do</strong> entre as árvores e os<br />
silfos voan<strong>do</strong> a minha volta.
Comecei a caminhar, sem sentir nenhuma <strong>do</strong>r. Andan<strong>do</strong> cada<br />
vez mais rápi<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> dei por mim, estava corren<strong>do</strong> e a mata se<br />
abria à frente, para me dar passagem.<br />
Mesmo assim, eu não chegaria em tempo para salvar<br />
Uiramirim. Peguei então uma das flechas, armei o arco e a disparei<br />
em direção <strong>do</strong> céu. No meio de sua trajetória, ela explodiu, surgin<strong>do</strong><br />
inúmeras estrelinhas brilhantes, que logo formaram um portal de luz.<br />
Dei um salto em sua direção e, quan<strong>do</strong> passei por ele, caí em<br />
um pequeno monte, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> oposto da margem em que se<br />
encontrava a canoa mortuária, no exato instante em que o pajé dava<br />
a ordem para que a soltassem rio abaixo.<br />
O feiticeiro pôs fogo na ponta de sua seta, preparou o arco e<br />
lançou-a na direção da yaratim.<br />
Ten<strong>do</strong> que agir mais rapidamente, disparei uma flecha <strong>do</strong>urada.<br />
A seta que os curupiras haviam me presentea<strong>do</strong>, partiu ao meio<br />
a flecha em chamas, momentos antes de poder atingir a canoa<br />
fúnebre.<br />
O povo se assustou e to<strong>do</strong>s começaram a procurar o autor da<br />
façanha. Logo puderam me ver no alto <strong>do</strong> monte.<br />
Intrépi<strong>do</strong>, pulei nas águas <strong>do</strong> rio e interceptei a yaratim,<br />
levan<strong>do</strong>-a para a margem.<br />
To<strong>do</strong>s correram em minha direção, furiosos por eu ter<br />
interrompi<strong>do</strong> a cerimônia. Era um grave crime.<br />
Fui cerca<strong>do</strong> por vários guerreiros, entre eles o meu próprio pai,<br />
contu<strong>do</strong>, ninguém me reconhecia. Além de eu estar fisicamente<br />
muda<strong>do</strong> e não usar mais a tonsura, a roupa que vestia também era<br />
estranha ao meu povo.<br />
- Quem é você? Por que fez isso? - perguntou o curandeiro.<br />
- Sou Agnã, pajé Marapuama.<br />
A notícia causou extrema perplexidade em to<strong>do</strong>s. Não sabiam o<br />
que dizer, mas o meu pai, incrédulo, tomou a iniciativa e questionou:<br />
- Impossível! Agnã era o meu filho e está morto! Ele se afogou!<br />
- Mas o seu corpo foi encontra<strong>do</strong>? - perguntei.<br />
- Não, porém, com certeza acabou sen<strong>do</strong> devora<strong>do</strong> pelas<br />
vorazes piranhas!<br />
- Ele é Agnã! - disse o meu avô, interferin<strong>do</strong> no diálogo.<br />
- Somente ele poderia partir uma flecha ao meio, em pleno vôo!<br />
- concluiu.<br />
O meu pai se aproximou de mim, pôs as suas mãos em meus<br />
ombros. Examinou as minhas orelhas e o meu lábio, que haviam si<strong>do</strong>
perfura<strong>do</strong>s na minha primeira iniciação tribal. Olhou bem para os<br />
meus olhos e perguntou:<br />
- Filho, é você mesmo?<br />
- Sim pai, eu voltei para a nossa gente!<br />
- O que aconteceu com você? Por que nos aban<strong>do</strong>nou por tanto<br />
tempo? Por que partiu sem nos avisar?<br />
- Foi preciso. Meu pai compreenderá melhor quan<strong>do</strong> pudermos<br />
conversar mais tranqüilamente. Agora preciso cuidar de Uiramirim.<br />
- Não há o que fazer! Você interrompeu uma cerimônia fúnebre<br />
que ela mesmo desejou - explicou.<br />
- Minha filha se guar<strong>do</strong>u to<strong>do</strong> esse tempo, na esperança de que<br />
o seu prometi<strong>do</strong> retornasse, por mais que lhe disséssemos que você<br />
havia morri<strong>do</strong>. Ela morreu por sua causa! - disse, raivoso, o pajé.<br />
- Não! Ela não está morta! - discordei.<br />
- Continua enlouqueci<strong>do</strong>, tal como era quan<strong>do</strong> menino! -<br />
zombou o incrédulo.<br />
Aproximei-me de Uiramirim, sem que ninguém me impedisse.<br />
Tirei-a da canoa, deitan<strong>do</strong>-a sobre a relva, com a cabeça em meu<br />
colo. Acariciei os seus cabelos e disse:<br />
- Meu amor, eu voltei.<br />
- Ele está desvaira<strong>do</strong>! Não aceita a morte da minha filha, que<br />
eu mesmo constatei - alegou o curandeiro.<br />
- Vocês estão erra<strong>do</strong>s! - afirmei.<br />
Fiquei em pé e invoquei os poderes celestes e as forças da<br />
natureza. Estendi os braços sobre Uiramirim e passei a lhe transmitir<br />
toda a energia que havia capta<strong>do</strong>, restabelecen<strong>do</strong> a sua vitalidade.<br />
O próprio curandeiro pôde testemunhar, com sua principiante<br />
vidência, o tratamento de emergência que apliquei em sua filha.<br />
Em seguida, afaguei-lhe o rosto e disse:<br />
- Minha querida, estou aqui, ao seu la<strong>do</strong>. Quero que viva<br />
comigo, toda a vida que ainda teremos juntos.<br />
Para o espanto de to<strong>do</strong>s, a jovem finalmente abriu os olhos.<br />
- Ele ressuscita os mortos! - começaram a gritar.<br />
- Não, apenas dei vida a quem ainda vivia - respondi.<br />
Embora consciente, Uiramirim estava muito fraca, sem poder<br />
falar, e, no entanto, os seus olhos diziam tu<strong>do</strong> o que poderia ser dito.<br />
Levei-a para uma oca e recomendei o tratamento necessário. O<br />
seu pai não questionou.
Cansa<strong>do</strong> e necessitan<strong>do</strong> me isolar, fui para a chapada onde<br />
estive pela última vez, antes de deixar o meu povo. O lugar<br />
continuava lin<strong>do</strong>. Um filete d’água caía tênue sobre o lago.<br />
Iria começar uma nova vida, talvez mais cheia de aventuras.<br />
Ven<strong>do</strong> a minha tribo da onde eu estava e aprecian<strong>do</strong> toda a<br />
paisagem em minha volta, resolvi armar o arco, com a última seta<br />
<strong>do</strong>urada.<br />
Apontan<strong>do</strong>-a para o céu, lancei-a como se estivesse libertan<strong>do</strong><br />
um passarinho.<br />
A flecha fez uma curva no ar, deixan<strong>do</strong> um rasto <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>, que<br />
logo transformou-se nas cores <strong>do</strong> arco-celeste.<br />
Naquele momento, escutei o canto melodioso <strong>do</strong> uirapuru que<br />
preparava o seu ninho.<br />
À distância, meu pai e meu avô me observavam.<br />
- Quem é esse que faz essas coisas estranhas e mágicas? Será<br />
verdadeiramente o meu filho?<br />
O meu aryiá, sereno e altivo, respondeu:<br />
- Esse é o meu neto...<br />
... Flecha Dourada, o Guerreiro <strong>do</strong> Arco-Íris!
GLOSSÁRIO<br />
ABA MOROTINGA: homem de cabelos brancos.<br />
ABACAÉM: homem que cura.<br />
ABEAÇABA: homem cego.<br />
AGNÃ: o Terrível, o Temível.<br />
ANUAI: nome de um pássaro (anum-preto).<br />
ARAÇÁ: fruta silvestre de sabor muito agradável.<br />
ARAÇATUBA: o “lugar <strong>do</strong>s araçás”.<br />
ARAPUCA: armadilha.<br />
ARARIPE: “por sobre o mun<strong>do</strong>”.<br />
ARYIÁ: avô.<br />
BAYÁ: o Mestre da Dança.<br />
BEIJU: bolo feito de polvilho de mandioca fresca.<br />
BORÉ: espécie de trombeta feita <strong>do</strong> couro da cauda <strong>do</strong>s tatus.<br />
BOTOQUE: rodela de pedra ou madeira, usada pelos adultos nos<br />
orifícios das orelhas e lábio inferior.<br />
CABAÇA: vasilha feita <strong>do</strong> fruto seco da cabaceira, despoja<strong>do</strong> de<br />
miolo.<br />
CARBÉ: conselho <strong>do</strong>s principais guerreiros.<br />
CAÉM: poder de cura.<br />
CAIÇARA: cerca.<br />
CAAPI: cipó de ramos longos, com folhas opostas e oblongas, das<br />
quais se extrai um alcalóide de propriedade estupefaciente,<br />
emprega<strong>do</strong> pelos pajés em seus rituais.<br />
CAAPIÁ: planta herbácea e medicinal de flores e frutos pequeninos,<br />
agrupa<strong>do</strong>s num receptáculo carnoso.<br />
CAMACUÃ: “bico de seio”.<br />
CARAIBAGUARA: prova<strong>do</strong>r das comidas.<br />
CARAÍBA: espíritos maus.<br />
CARAÍVA: santo, sagra<strong>do</strong>.<br />
CARIRI: silencioso.<br />
CAUIM: bebida fermentada extraída de diferentes plantas,<br />
principalmente da mandioca <strong>do</strong>ce ou amarga, <strong>do</strong> milho e <strong>do</strong> caju. Era<br />
preparada por mulheres e somente as virgens tomavam parte na<br />
mastigação <strong>do</strong>s bagaços. A saliva ajuda a sacarificação <strong>do</strong> ami<strong>do</strong>,<br />
pelo fermento.<br />
CHEROUPI: meu pai.<br />
CHIBÉ: farinha da mandioca, misturada com água e às vezes<br />
temperada com frutas.
CHOAM: nome <strong>do</strong> cheroupi de pedra rosa no medalhão. Significa<br />
aurora.<br />
CICADÁCEA: planta arborescente, parecida com a palmeira,<br />
diferencian<strong>do</strong>-se dessa, pelo folíolo que apresenta uma nervura<br />
mediana nítida.<br />
COARACYGUASSU: <strong>Sol</strong>.<br />
CUCUI: pedra tombada.<br />
CUNHANTÃ: grande mulher; mulher corajosa.<br />
CURUMIM: jovem.<br />
CURUPIRA: espírito da natureza.<br />
CUZCO: cidade peruana cujo nome significa “O Umbigo <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>”.<br />
CY YBY: Mãe Terra.<br />
EMACIAYBA: <strong>do</strong>ença contagiosa.<br />
GUARAPUAVA: o rumor das garças.<br />
GUARANI: guerreiro.<br />
GUARAXAIM: cachorro-<strong>do</strong>-mato; guerreiro fareja<strong>do</strong>r.<br />
GUAYUPIÁYARA: feiticeiro.<br />
GUIPAJÉ: pássaro-feiticeiro.<br />
KARAWA: planta da qual se extrai a fibra para se fazer as cordas <strong>do</strong>s<br />
arcos.<br />
KARIB: nação indígena <strong>do</strong> Norte <strong>do</strong> Brasil, Venezuela, Guianas,<br />
Colômbia, Antilhas, das costas de Honduras, da Guatemala e <strong>do</strong> mar<br />
das Caraíbas. Conforme alguns historia<strong>do</strong>res, a língua desse povo era<br />
falada desde a costa da Flórida até o Brasil quan<strong>do</strong> Cristóvão<br />
Colombo descobriu a América. Após a conquista espanhola, sua<br />
população foi quase dizimada.<br />
KYÇABA: rede de <strong>do</strong>rmir.<br />
IBAPORA: O Habitante <strong>do</strong> Céu; designação dada ao Setenário de<br />
pedra violeta no medalhão; Senhor <strong>do</strong> Astral.<br />
IBIJARA: o Senhor da Terra.<br />
IBITIRAMA: montanha muito alta.<br />
IBY APITEREPE: “centro da terra”.<br />
IERÊ: redemoinho; centro energético.<br />
IGAPÓ: mata cheia de água; trecho da floresta onde a água, após a<br />
enchente <strong>do</strong>s rios, fica por algum tempo estagnada.<br />
IGARAPÉ: caminho da água; canal natural, estreito, entre duas ilhas,<br />
ou entre uma ilha e a terra firme.<br />
ITÃ: conchinhas.<br />
ITÃGUASSU: conchas grandes.<br />
ITANHAÉM: o lugar das pedras que falam.
JACARÉ-AÇU: jacaré muito grande.<br />
JACUMAÍBA: experiente condutor de canoa em pontos aonde a<br />
navegação é arriscada.<br />
JAUARANA: pessoa que nada como peixe e corre como cachorro.<br />
JECOEMA: amanhecer<br />
JEMOACANGAYBA: en<strong>do</strong>idecer.<br />
JIMBOEÇARA: mestre.<br />
MARABORA: o <strong>do</strong>ente.<br />
MARACÁ: baga, fruta da cuieira ou cabaceira, que serve de cuia ou<br />
chocalho.<br />
MARACUJÁ-AÇU: fruto que tem a propriedade de ser um calmante.<br />
MARAMONHANGARA: guerreiro.<br />
MARAPUAMA: certa erva medicinal; pajé.<br />
MIRIM: criança.<br />
MONGARAYBA: benzer.<br />
MOQUÉM: espécie de grelha feita de varas na qual se assavam<br />
carnes.<br />
MUÇURANA: corda feita de embira fabricada pelos chefes guerreiros e<br />
trançada especialmente para prender um prisioneiro.<br />
MUIRAPUAMA: erva que ajuda a estimular a sexualidade.<br />
MUJECA: pirão de cal<strong>do</strong> de peixe com farinha.<br />
MURIQUI: gente vagarosa.<br />
MUNHÃ: Deus Cria<strong>do</strong>r.<br />
MURUXAUA: chefe tribal.<br />
OCA: palhoça <strong>do</strong>s índios.<br />
OCARA: terreiro ou praça.<br />
OCAYBATÉ: oca construída no lugar mais alto.<br />
OGUASSU: grande oca.<br />
PAJÉ: chefe religioso. Na época também era sinônimo de feiticeiro.<br />
Hoje, pajé significa apenas o curandeiro da aldeia e o feiticeiro é<br />
aquele que usa os conhecimentos espirituais apenas para o mal.<br />
PAJELANÇA: reunião <strong>do</strong>s pajés para uma cura.<br />
PIRAÍBA: grande peixe de três metros de comprimento e cento e<br />
cinqüenta quilos de peso.<br />
PIRAIM: piranha vermelha.<br />
SUAÇU: vea<strong>do</strong>.<br />
SUAÇUETÊS: cervos.<br />
SUAÇUTINGA: vea<strong>do</strong> branco.<br />
SUCURI: cobra da família <strong>do</strong>s boídeos, que vive na água, em rios e<br />
lagoas, alimentan<strong>do</strong>-se de peixes, aves e mamíferos. Desprovida de
peçonha, chega a medir dez metros de comprimento. Comum nas<br />
regiões <strong>do</strong>s grandes rios e pântanos <strong>do</strong> Brasil.<br />
SUINDARA: coruja-branca.<br />
TABA: aldeia.<br />
TABANGA: aldeia das almas.<br />
TACAPE: arma ofensiva feita de pau, tipo porrete. A sua extremidade<br />
contundente, tem a forma mais ou menos elipsóide e achatada, que<br />
se afina até a ponta.<br />
TAPEYARA: o Senhor <strong>do</strong>s Caminhos.<br />
TAPIRA: anta.<br />
TAPIIRA: semelhante à anta.<br />
TAPIITI: lebre <strong>do</strong> mato.<br />
TAPITI: coelho.<br />
TARARUCU: fedegoso verdadeiro, arbusto de folhas grandes e<br />
amarelas, cuja vagem contém sementes escuras, duras e lisas. A<br />
raiz, servida em decocção, é um antí<strong>do</strong>to contra certos venenos.<br />
TEMBETÁ: primeiro significa<strong>do</strong>r de virilidade que antecedia o perío<strong>do</strong><br />
de puberdade. Consiste em uma pequena rodela de madeira ou<br />
pedra, que é colocada no orifício <strong>do</strong> lábio inferior <strong>do</strong> mirim.<br />
TIMBÓ: designação de uma espécie de plantas que produzem efeitos<br />
narcóticos em peixes. Quan<strong>do</strong> o pó dessas plantas é lança<strong>do</strong> na água,<br />
logo os peixes começam a boiar, poden<strong>do</strong> ser facilmente apanha<strong>do</strong>s<br />
com a mão.<br />
TYMBUABA: cachimbo.<br />
TUPÃ: Deus <strong>do</strong> Trovão.<br />
UBÁ: pesada canoa de difícil navegação, sem quilha e sem banco,<br />
feita normalmente de uma casca inteiriça de um tronco de árvore.<br />
UIRAMIRIM: pequena ave.<br />
UIRAPURU: pássaro de canto melodioso que só pode ser ouvi<strong>do</strong><br />
durante uns quinze dias por ano, quan<strong>do</strong> constrói o ninho e, ademais,<br />
apenas durante cinco a dez minutos, ao amanhecer. Segun<strong>do</strong> a<br />
lenda, to<strong>do</strong>s os demais pássaros silenciam para escutá-lo.<br />
URUBUCAÁ: folha de urubu; planta trepadeira que possui um grande<br />
poder sedativo nos casos de histerias, entre outros valores<br />
terapêuticos.<br />
URUARU: grande jacaré.<br />
URUGUAY: o “rio <strong>do</strong>s caramujos”.<br />
UYARA: a Senhora das Águas.<br />
UYBAJUBÁ: flecha <strong>do</strong>urada.<br />
XERIMAWA: animal de estimação ou criação.
XERIMBABO: animal de estimação ou criação.<br />
YACUMANS: remos.<br />
YAPAKANIM: gavião de <strong>do</strong>rso par<strong>do</strong>-acinzenta<strong>do</strong>, peito vermelho e<br />
listras brancas na barriga. A sua cauda é cinzenta com listras pretas.<br />
Natural da Região Norte <strong>do</strong> Brasil.<br />
YARATIM: canoa mais leve utilizada pelos chefes da tribo.<br />
YAWARA: onça.<br />
YAWARA PIXUNA: onça preta.<br />
YEROQUI: dança.