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Pré-Seder laico na ASA O jornalista Alberto Dines fala sobre a ...

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2<br />

4<br />

ÓRGÃO INFORMATIVO E DE DIVULGAÇÃO CULTURAL DA ASSOCIAÇÃO SCHOLEM ALEICHEM DE CULTURA E RECREAÇÃO<br />

Ano XXIII Nº 135<br />

E MAIS...<br />

EDITORIAL<br />

Mulheres<br />

CRIPTO-JUDEUS<br />

A identidade partida<br />

HELENA LEWIN<br />

6<br />

8<br />

www.asa.org.br<br />

BECO DA MÃE<br />

As orelhas de Haman<br />

HENRIQUE VELTMAN<br />

Acervo CSZ<br />

Dia 1<br />

<strong>Pré</strong>-<strong>Seder</strong> <strong>laico</strong> <strong>na</strong> <strong>ASA</strong><br />

o de abril, domingo, às 18h30<br />

Tradicio<strong>na</strong>l comemoração de Pessach<br />

❏ Leitura de Hagadá especialmente escrita para o<br />

evento ❏ Participação do Coral da <strong>ASA</strong> ❏ Jantar completo<br />

DISCRIMINAÇÃO<br />

Ser rabi<strong>na</strong> em Israel<br />

SANDRA KOCHMANN<br />

A exclusão de mulheres<br />

DEBORAH GRENIMAN<br />

9<br />

10<br />

PENÍNSULA IBÉRICA<br />

A crise e o Messias<br />

RENATO MAYER<br />

SECURON (parte 6)<br />

Eliezer Steinbarg veio<br />

MOTL POLANSKY<br />

12 NOTAS<br />

Março/Abril de 2012<br />

ENTREVISTA<br />

O jor<strong>na</strong>lista<br />

<strong>Alberto</strong> <strong>Dines</strong> <strong>fala</strong><br />

<strong>sobre</strong> a próxima<br />

i<strong>na</strong>uguração da Casa<br />

Stefan Zweig<br />

Jacques Gruman<br />

Pági<strong>na</strong> 3<br />

Os ingressos, como sempre, somente serão vendidos com<br />

antecedência. Para alguns casos, é possível a entrega em domicílio.<br />

Informações <strong>na</strong> secretaria ou pelos telefones 2539-7740 e 2535-1808, das 10 às 18 horas


<strong>ASA</strong> nº 135 • Março/Abril de 2012<br />

2<br />

Mulheres<br />

Aproxima-se o Dia Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l da Mulher.<br />

Nascido <strong>na</strong>s lutas operárias do século passado,<br />

ele, a exemplo do 1º de Maio, costuma ser<br />

desfigurado por comemorações irrelevantes. Qual é a<br />

agenda femini<strong>na</strong> neste início de século?<br />

Apesar de destacados avanços recentes em questões<br />

como o direito a dispor do próprio corpo e o acesso ao<br />

mercado de trabalho, ainda há violações importantes<br />

em outros terrenos. Cerca de 603 milhões de adultas e<br />

meni<strong>na</strong>s vivem em países onde a violência doméstica<br />

contra a mulher ainda não é considerada crime. Mais<br />

de 600 mil mulheres são traficadas anualmente para<br />

exploração sexual. Menos de 1% dos gover<strong>na</strong>ntes do<br />

século 20 foram mulheres que chegaram ao poder por<br />

si mesmas (isto é, sem serem viúvas ou filhas de um<br />

gover<strong>na</strong>nte masculino). Grupos religiosos restringem<br />

os direitos civis das mulheres, num claro preconceito<br />

de gênero. Segundo dados da Organização Mundial da<br />

Saúde, mais de 20 milhões de abortos são realizados<br />

em condições precárias anualmente em todo o mundo,<br />

resultando <strong>na</strong> morte de cerca de 50 mil mulheres – situação<br />

agravada por pressões sociais/religiosas que restringem<br />

o acesso a um atendimento médico adequado das<br />

gestantes que pretendem interromper a gravidez.<br />

É ilusório imagi<strong>na</strong>r que mulheres no comando de<br />

empresas e/ou países tor<strong>na</strong>riam as sociedades mais tolerantes.<br />

O poder é ferramenta e subproduto da luta de<br />

classes. Não é uma questão de gênero. Mais importante<br />

seria uma união de esforços para elimi<strong>na</strong>r os gargalos<br />

que cerceiam os direitos mais elementares das mulheres.<br />

Não é mais possível conviver com preconceitos culturais<br />

e obscurantismo religioso, que as confi<strong>na</strong>m a tarefas<br />

domésticas e subordi<strong>na</strong>das. O direito à contracepção e à<br />

interrupção da gravidez deve ser universal, cabendo aos<br />

Estados massificar as informações <strong>sobre</strong> métodos contraceptivos<br />

e o acesso aos mesmos, reprimir as clínicas<br />

clandesti<strong>na</strong>s de aborto e oferecer atendimento qualificado<br />

às mulheres que desejarem interromper a gravidez.<br />

O combate à exploração sexual deve ser implacável. São<br />

lutas, entre outras, que se travam <strong>na</strong> política e podem<br />

unir homens e mulheres progressistas <strong>na</strong> construção de<br />

sociedades verdadeiramente igualitárias. ■<br />

Associação Scholem Aleichem de Cultura e Recreação<br />

Rua São Clemente, 155 – Botafogo<br />

Rio de Janeiro – RJ – CEP 22.260-001<br />

Tel:(21)2535-1808 Telefax:(21)2539-7740<br />

Home page: www.asa.org.br e-mail: asa@asa.org.br<br />

Presidente Mauro Band<br />

Vice-presidentes Horácio Itkis Schechter z'l e Gitel Bucaresky<br />

Secretárias Tania Mittelman e Rosa Goldfarb<br />

Tesoureiros Moisé Ghersgorn e Fany Haus Martins<br />

Diretores Jacques Gruman, Clara Goldfarb,<br />

Marcos David Somberg, Fanny Cytryn e Esther Kuperman<br />

<strong>ASA</strong> JUDAÍSMO E PROGRESSISMO é o órgão informativo e de<br />

divulgação cultural bimestral da Associação Scholem<br />

Estes dançam<br />

Aleichem de Cultura e Recreação.<br />

Home page: www.asa.org.br<br />

e-mail: asa@asa.org.br<br />

Editora e Jor<strong>na</strong>lista Responsável<br />

Sara Markus Gruman - (Reg. Prof. nº 12.713)<br />

Colaboradores do Boletim: David Somberg, Esther Kuperman,<br />

Heliete Vaitsman, Henrique Veltman, Jacques Gruman,<br />

Re<strong>na</strong>to Mayer e Tania Mittelman<br />

Programação Visual: Hama Editora<br />

Foto da capa: Evento nos salões do Botafogo Futebol Clube<br />

(out/1940) para angariar fundos para o Comitê Pró-Vítimas da<br />

Guerra. A partir da dir.: Lotte e Stefan Zweig, o presidente do<br />

Comitê, Marcos Constantino, e o reitor da Univ. do Brasil, Inácio<br />

de Azevedo Amaral, e sra. Em pé, o jor<strong>na</strong>lista Aron Neumann.<br />

Impressão: Stamppa<br />

Tiragem: 2.200 exemplares<br />

Coreógrafo Rafael Barreto de Castro<br />

NA <strong>ASA</strong><br />

Estes cantam<br />

DANÇA ISRAELI - Toda terça, às 18h30<br />

CÍRCULO DE LEITURA EM PORTUGUÊS -<br />

Quinze<strong>na</strong>lmente, terças, às 15h30<br />

CORAL DA <strong>ASA</strong> - Ensaios toda quarta, às 20h<br />

Regente Claudia Alvarenga<br />

Estacio<strong>na</strong>mento no local (pago) Saída S. Clemente da Estação Botafogo (sentido Humaitá)


ENTREVISTA / ALBERTO DINES<br />

<strong>ASA</strong> nº 135 • Março/Abril de 2012<br />

Há 70 anos, no dia 23 de fevereiro, suicidavam-se em casa, em Petrópolis, o escritor Stefan Zweig e sua mulher,<br />

Lotte. Para recordar a morte do autor de Brasil, um país do futuro, conversações com entidades do Rio e de São Paulo<br />

estão sendo mantidas pela Casa Stefan Zweig (CSZ), cuja i<strong>na</strong>uguração, prevista inicialmente para março, foi adiada<br />

para a temporada de inverno. Motivo do adiamento: “dinheiro curto”, conta<br />

o jor<strong>na</strong>lista e escritor <strong>Alberto</strong> <strong>Dines</strong>, presidente da CSZ.<br />

A casa de Stefan<br />

<strong>ASA</strong> - A quem pertencia a casa<br />

de Zweig e como surgiu a ideia de<br />

transformá-la em museu?<br />

A.D. – A ideia surgiu numa reunião<br />

<strong>na</strong> casa da pianista Clara Sverner, grande<br />

amiga. Presentes, Hans Stern e sua mulher,<br />

Ruth, Tobias Cepelowicz, José Pio Borges e<br />

sua mulher, Nancy Hartstein, e Israel Beloch.<br />

Era 2004, eu termi<strong>na</strong>va a ampliação do<br />

meu livro [Morte no paraíso] para a 3ª edição.<br />

Imaginei que a repercussão, mais de<br />

vinte anos após o lançamento, chamaria a<br />

atenção de eventuais compradores da casa.<br />

Os proprietários, que, por coincidência,<br />

estavam encalacrados, com os impostos<br />

atrasados etc., toparam a nossa oferta. A<br />

coisa demorou muito porque não tivemos<br />

qualquer ajuda oficial, e houve muitas<br />

complicações burocráticas por se tratar de<br />

imóvel tombado. Escolhemos o projeto<br />

do arquiteto carioca Miguel Pinto Guimarães,<br />

que dividiu a obra em fases progressivas:<br />

primeiro, a restauração da casa<br />

para convertê-la no núcleo museológico,<br />

com a instalação do centro de memória<br />

dispondo de farto material audiovisual,<br />

depois, um auditório, a biblioteca, uma<br />

área de lazer etc.<br />

<strong>ASA</strong> - Com que recursos o projeto<br />

está sendo implantado?<br />

A.D. – A compra da casa foi bancada<br />

exclusivamente por recursos particulares<br />

– gente que gosta de Zweig, considera importante<br />

lembrar a sua história e também<br />

a dos demais refugiados que deixaram suas<br />

contribuições no campo das artes, ciências<br />

e cultura. A Prefeitura de Petrópolis vem<br />

oferecendo um pequeno apoio logístico.<br />

A Embaixada da Áustria fi<strong>na</strong>nciou uma<br />

mostra que fizemos em janeiro de 2011, e<br />

no segundo semestre de 2011 a Embaixada<br />

Alemã deu uma bela contribuição para a<br />

obra. Do governo brasileiro, por enquanto<br />

nenhuma ajuda. Estamos batalhando.<br />

<strong>ASA</strong> - Como contribuir fi<strong>na</strong>nceiramente<br />

ou fazer doações para a CSZ?<br />

A.D. – Temos recebido obras de e<br />

<strong>sobre</strong> Zweig em diversos idiomas, alguns<br />

doadores ofereceram material documental,<br />

mas a doação mais comovente foi a<br />

dos herdeiros do escultor petropolitano<br />

Aníbal Rodrigues Monteiro, dentista de<br />

profissão, que fez a máscara mortuária<br />

de Zweig antes de ser sepultado. Eles nos<br />

ofereceram a primeira cópia em bronze<br />

(existe outra em poder de um colecio<strong>na</strong>dor<br />

paulista). Há várias formas de contribuir.<br />

Estamos abrindo a possibilidade de<br />

comprar cadeiras para o nosso pequeno<br />

auditório. Cada cadeira terá como patrono<br />

um dos refugiados cuja documentação está<br />

sendo colecio<strong>na</strong>da no Memorial do Exílio<br />

que faz parte da CSZ. Se acharem algo nos<br />

antiquários do Brasil e do exterior comprem<br />

e façam a doação. Se precisarem de<br />

orientação, estamos às ordens. O nosso site<br />

é www.casastefanzweig.org.br .<br />

<strong>ASA</strong> - Quem são os profissio<strong>na</strong>is<br />

envolvidos no projeto?<br />

A.D. – O trabalho insano está sendo<br />

tocado por uma maravilhosa equipe de<br />

voluntários, todos amadores: a jor<strong>na</strong>lista<br />

e tradutora Kristi<strong>na</strong> Michahelles, que administra<br />

o site e toca um monte de coisas<br />

ao mesmo tempo, a historiadora Beatriz<br />

Cepelowicz Lessa, atuando como gerente<br />

executiva, o designer e poeta André Vallias,<br />

como curador da parte visual, o historiador<br />

Fábio Koifman, autor do livro Quixote <strong>na</strong>s<br />

Trevas, dirigindo o Memorial do Exílio; e<br />

também <strong>na</strong> linha de frente o historiador<br />

Israel Beloch, os economistas José Pio Borges<br />

e Re<strong>na</strong>to Bromfman, e o engenheiroempresário<br />

Tobias Cepelowicz.<br />

<strong>ASA</strong> - A quarta edição de Morte no<br />

paraíso, a ser lançada em abril, traz<br />

novidades?<br />

A.D. – Muitas novidades. Impossível<br />

Foto: Wolf Reich - Acervo CSZ<br />

Foto de Stefan Zweig (1940) para a capa ou<br />

contracapa do livro Brasil, país do futuro<br />

nomeá-las. O livro vem sendo construído<br />

em camadas desde 1979. É o mesmo livro,<br />

a mesma história, o mesmo desfecho, mas<br />

em cada atualização (já são quatro, inclusive<br />

para traduções em outros idiomas),<br />

o material se adensa, se articula. Biografia<br />

é matéria viva.<br />

<strong>ASA</strong> - Setenta anos após a morte de<br />

Zweig, o “país do futuro” e a comunidade<br />

judaica conhecem o autor? E o<br />

mundo, que lugar lhe reserva?<br />

A.D. – A relação da comunidade judaica<br />

com Zweig é complicada. Ele não<br />

foi um “escritor judeu”, foi um magnífico<br />

escritor que era judeu. Mas <strong>na</strong>s suas memórias<br />

assume-se ple<strong>na</strong>mente como judeu,<br />

judeu cosmopolita. Foi uma espécie de<br />

pupilo de Herzl e de Martin Buber, mas<br />

depois da Primeira Guerra rejeitou todos<br />

os <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lismos, inclusive o <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lismo<br />

judeu. Respeitava e elogiava o esforço dos<br />

pioneiros <strong>na</strong> Palesti<strong>na</strong>, mas achava que o<br />

sionismo não era solução para resolver com<br />

a urgência necessária o problema de todos<br />

os judeus. Em Londres, esteve próximo<br />

dos “territorialistas”, que defendiam uma<br />

solução de emergência para os judeus da<br />

Europa em qualquer parte do mundo (o<br />

Veltman tratou dos territorialistas <strong>na</strong> última<br />

edição do boletim). Quando menciono<br />

isso, a plateia judaica sente-se traída. O<br />

“país do futuro” tem uma vaga noção a<br />

respeito do autor. Mas, como cultores da<br />

História, achamos que vagas ideias são<br />

efêmeras e às vezes enganosas. ■<br />

3


<strong>ASA</strong> nº 135 • Março/Abril de 2012<br />

Os cripto-judeus eram os judeus<br />

convertidos compulsoriamente<br />

ao cristianismo, durante a<br />

Inquisição Portuguesa, praticantes em<br />

segredo de sua anterior fé judaica.<br />

Eles transitavam entre o mundo cristão,<br />

domi<strong>na</strong>nte, e o judaico, submetido e<br />

legalmente desaparecido, e sua inserção<br />

não ocorria nestes dois mundos, mas<br />

entre esses dois mundos. A profunda<br />

contradição do “estar entre” se consubstanciava,<br />

por um lado, <strong>na</strong> exibição, para<br />

o mundo exterior, de sua adesão cristã<br />

incondicio<strong>na</strong>l derivada do batismo a que<br />

tinham sido obrigados, e por outro, <strong>na</strong>s<br />

práticas relacio<strong>na</strong>das com sua anterior<br />

adesão religiosa judaica, e que se processavam<br />

secretamente, com cuidado e<br />

discrição, <strong>na</strong> intimidade familiar.<br />

Num processo sincrético, tentaram<br />

fundir, sem sucesso, a Lei de Cristo que<br />

garante salvação da alma individual e<br />

a Lei de Moisés que sustenta o preceito<br />

judaico da salvação da alma comu<strong>na</strong>l – a<br />

responsabilidade coletiva –, o que resultava<br />

em muitas incongruências devido ao<br />

abismo conflitual entre suas premissas<br />

antagônicas.<br />

Por que os instrumentos coercitivos<br />

derivados dos poderes do Estado e da<br />

Igreja – o terror e o controle social<br />

– mostraram-se incapazes de romper<br />

definitivamente as brechas do sentimento<br />

e das práticas judaicas exercidas em<br />

segredo e de apagar a memória judaica,<br />

embora tivessem decretado sua morte<br />

jurídica e religiosa?<br />

O exercício da clandestinidade privilegiava<br />

o locus familiar, onde se praticavam<br />

os costumes herdados, de forma<br />

bastante simplificada, despojada de seus<br />

cânticos e estudos teológicos, tendo em<br />

vista estar sob suspeita aos olhos vigilantes<br />

dos cristãos, velhos e novos, que<br />

assumiam a delação como um serviço<br />

à Igreja e à fé. Seus livros de estudos<br />

e de orações foram-lhes confiscados,<br />

4<br />

CRIPTO-JUDEUS<br />

A identidade partida<br />

Hele<strong>na</strong> Lewin / Especial para <strong>ASA</strong><br />

roubados ou queimados, tor<strong>na</strong>ndo a<br />

sua descendência formalmente menos<br />

instruída no conhecimento dos princípios<br />

bíblicos. O processo de transferência se<br />

fazia oralmente, com o gradual apagamento<br />

dos conhecimentos à medida que<br />

as gerações se sucediam.<br />

A transmissão em segredo ocorrida<br />

no âmbito doméstico se perpetuava sem<br />

deixar registro. A prática da endogamia<br />

substituiu, simbolicamente, a comunidade<br />

inexistente, ao realizar a integração<br />

entre iguais, reforçando dessa forma a<br />

resistência frente à sociedade cristã.<br />

A prática da<br />

endogamia reforçou<br />

a resistência frente à<br />

sociedade cristã.<br />

As comunidades, além de serem espaços<br />

de identidade, de pertencimento e<br />

de ajuda mútua, também preenchiam o<br />

papel de espaço integrador através das<br />

trocas afetivas, culturais e de solidariedade.<br />

Assim, os judaizantes produziram<br />

uma segunda metamorfose: substituíram<br />

o coletivo, inerente ao conceito de comunidade,<br />

pelo individual, a família e<br />

a casa.<br />

Por outro lado, a impossibilidade de<br />

criar comunidades devido a sua condição<br />

secreta aumentava o risco de assimilação<br />

<strong>na</strong> medida em que a fragmentação<br />

individual tem menor resistência para<br />

enfrentar o permanente estado de crise<br />

e de medo dos terríveis castigos impostos<br />

aos infiéis.<br />

A oposição entre o “nós’ e o “outro”,<br />

entre o privado e o público, entre a casa<br />

e a rua marcava os limites de circulação<br />

do conhecimento judaico acumulado<br />

pela lembrança daqueles que sabiam um<br />

pouco mais, mas que, no entanto, iam se<br />

esgotando ao longo das descendências.<br />

Quem era a responsável pela transmissão?<br />

A mulher, a mãe, a avó. E <strong>sobre</strong> elas<br />

pesava a maior suspeita de judaizamento<br />

visto haver a crença de que através do<br />

sangue e do leite materno o judaísmo<br />

era transmitido. O número de mulheres<br />

conde<strong>na</strong>das pela Inquisição sustentava<br />

essa premissa e, assim, os cristãos-novos<br />

judaizantes não poderiam alcançar a<br />

pureza de raça e de sangue mesmo que<br />

fosse por via do casamento com os<br />

cristãos-velhos, pois o racismo medieval<br />

constituía a base de exclusão dos cristãosnovos<br />

e, ao mesmo tempo, o privilégio<br />

e monopólio dos cristãos-velhos.<br />

O judaísmo, tendo sua fonte de<br />

recrutamento esgotada e até mesmo diminuída<br />

pela evasão e pelas dificuldades<br />

de seu reconhecimento tornou-se muito<br />

mais um exercício recorrente da ritualística<br />

judaica. O preparo para o Shabat e o<br />

acendimento de suas velas, a guarda do<br />

Dia do Perdão, a home<strong>na</strong>gem à heroí<strong>na</strong><br />

rainha Ester, a culinária, o funeral, entre<br />

outros, transformaram-se, ao longo do<br />

tempo, em práticas costumeiras baseadas<br />

<strong>na</strong> repetição automática, sem explicação<br />

e sem conteúdo do ponto de vista<br />

da formulação religiosa. Isto porque<br />

o fortalecimento religioso não pode<br />

ocorrer quando seus mitos fundantes<br />

são desconhecidos, quando as sagas de<br />

heroísmo em relação ao divino não se<br />

interpenetram com relativa coerência<br />

descritiva e quando a literatura religiosa<br />

não funcio<strong>na</strong> como um texto de apoio<br />

à prática ritual e da fé. No caso dos<br />

cristãos-novos judaizantes ocorre a<br />

prática do ritual, ou parte dele, como<br />

uma herança sem porquês, sem questio<strong>na</strong>mentos.<br />

Como exceção desse processo de<br />

reprodução automática dos costumes<br />

e das práticas religiosas que foram se<br />

tor<strong>na</strong>ndo ape<strong>na</strong>s uma lembrança difusa


sustentada pela repetição é possível<br />

citar a memória cristã-nova judaizante<br />

de Belmonte, que porta características<br />

diferenciadas em relação aos demais<br />

cristãos-novos portugueses visto seu<br />

isolamento geográfico e sua organização<br />

social para-comunitária.<br />

É possível enquadrar a repetição<br />

como o cumprimento de um mandamento<br />

e como demonstração de fé,<br />

principalmente, visando o fortalecimento<br />

intergeracio<strong>na</strong>l da memória e da<br />

diferenciação. Dessa forma, a memória<br />

não se esgotava em lembrar, mas ajudava<br />

a vivenciar práticas e costumes.<br />

Assim, a si<strong>na</strong>goga, outrora central<br />

<strong>na</strong> vida daqueles antigos judeus, foi justaposta<br />

à centralidade da casa, que<br />

passou a funcio<strong>na</strong>r como um espaço<br />

dedicado à fé secretamente vivida ,<br />

como uma experiência compartilhada<br />

pela família reforçada pela segregação<br />

espacial.<br />

Essa forçada substituição foi responsável<br />

por outro dramático deslocamento:<br />

o patrimônio judaico formal, que se fundava<br />

nos preceitos bíblicos, deu lugar ao<br />

patrimônio judaico informal, que passou<br />

a se centrar <strong>sobre</strong> a prática do ritual.<br />

Contudo, a liberdade de expressão<br />

dentro da casa era autocontrolada,<br />

criando gestos, códigos e si<strong>na</strong>is que se<br />

transformaram em uma nova gramática<br />

de comunicação. As condições vivenciais<br />

de uma religião e de uma cultura em<br />

segredo impossibilitaram a formulação<br />

de um discurso justificador e explicativo<br />

daquele contexto, principalmente para<br />

as gerações sucessivas, visto o segredo<br />

impedir a oxige<strong>na</strong>ção e aumentar a rigidez<br />

e o esclerosamento dos sentimentos,<br />

devido ao encolhimento do universo<br />

de contatos externos moldado pela desconfiança<br />

vigente. Dá-se a reprodução<br />

mecânica dos atos, fatos e palavras, que<br />

passam a ser destituídos de orientação<br />

de sentido. Porém, apesar desta pretensa<br />

alie<strong>na</strong>ção, sabiam distinguir os perigos a<br />

que estavam submetidos mormente em<br />

relação àqueles que se encontravam mais<br />

próximos, os parentes e a vizinhança,<br />

geralmente seus denunciadores.<br />

Os cripto-judeus eram indivíduos<br />

partidos e repartidos no seu contexto<br />

imediato. O primeiro e maior conflito<br />

e <strong>sobre</strong> qual o preconceito foi gerado e<br />

expandido referia-se ao relacio<strong>na</strong>mento<br />

entre o cristão- velho e o cristão-novo<br />

seguido pela segunda dicotomia, entre<br />

o cristão-novo católico e o cristão-novo<br />

judeu e, fi<strong>na</strong>lmente, entre o judaísmo<br />

formal e o não formal. Esses embates<br />

resultaram no desejo reprimido da fé<br />

e do mistério messiânico através da <strong>sobre</strong>vivência<br />

tímida e confi<strong>na</strong>da nos lares<br />

como uma forma de resistência.<br />

Indivíduos desconfiados de pertencerem<br />

à tradição judaica, e passando a<br />

buscar explicações para certas reminiscências,<br />

hábitos e comportamentos de<br />

cuja apagada lembrança tinham alguma<br />

ressonância, se debruçam <strong>na</strong> descoberta<br />

de suas raízes históricas e genealógicas,<br />

procurando, através de organizações<br />

A busca de uma<br />

memória judaica se<br />

espalha pela América<br />

Lati<strong>na</strong>, incluindo o Brasil.<br />

culturais, pesquisadores ou outras fontes<br />

a explicação para a trajetória de<br />

seus ancestrais. Grupos <strong>na</strong> internet se<br />

auxiliam, fazendo circular informações<br />

entre seus membros, atingindo buscas e<br />

descobertas em vários países.<br />

Reunir fragmentos soltos que possam<br />

dar sentido às suas buscas em relação ao<br />

passado de seus familiares será capaz de<br />

produzir a aceitação, por esses indivíduos,<br />

de um judaísmo fiel a qual tradição<br />

judaica? Será essa procura um novo<br />

caminho para a aceitação do judaísmo<br />

como filosofia de vida? Ou ape<strong>na</strong>s uma<br />

curiosidade <strong>sobre</strong> suas origens, decorrente<br />

da publicação de muitos estudos<br />

que levantam a procedência judaica<br />

dos sefaraditas esquecidos pelo tempo,<br />

coincidindo com seus nomes familiares.<br />

Este movimento se espalha pela América<br />

Lati<strong>na</strong>, incluindo o Brasil, que mantém<br />

contato com pesquisadores, estudiosos<br />

<strong>ASA</strong> nº 135 • Março/Abril de 2012<br />

do tema e grupos de apoio e de interesse<br />

comum.<br />

Aqueles que declaram querer voltar<br />

ao judaísmo, após uma vida educada<br />

no cristianismo, ou mesmo aqueles que<br />

se confessam agnósticos poderão, de<br />

posse de seu passado judaico, produzir o<br />

modelo anterior ou terão que refundálo<br />

e criar um novo olhar judaico que<br />

corresponda a sua inserção neste novo<br />

contexto pretendido?<br />

No entanto, o processo de retorno,<br />

essa busca de uma memória judaica, não<br />

emerge aleatoriamente. Ele é o produto<br />

do conjunto integrado e simultaneamente<br />

interdependente de três processos: a<br />

desconstrução referida aos impedimentos<br />

que amarravam sua vinculação cristã,<br />

a construção relacio<strong>na</strong>da à descoberta de<br />

suas origens e a reconstrução ao produzir<br />

uma nova identidade, a judaica.<br />

A desconstrução se realiza através da<br />

procura de nomes comuns que possam<br />

identificá-los como tendo semelhanças<br />

de origem. Os nomes funcio<strong>na</strong>m como<br />

pegadas que o detetive busca para elucidar<br />

o mistério que se perdeu no tempo<br />

e no espaço. Essa fase é muito mais um<br />

resgate sentimental e nostálgico, que, no<br />

entanto, não oferece nenhuma segurança<br />

quanto à definição de sua ascendência<br />

judaica, considerando as inúmeras possibilidades<br />

de formas diferenciadas de<br />

um mesmo nome sem que tenham sido<br />

necessariamente judeus ou cristãos-novos<br />

judaizantes. São pistas, não são provas.<br />

A construção é o processo mais<br />

difícil porque se insere <strong>na</strong> questão crucial<br />

da definição do que é ser judeu e suas<br />

inúmeras controvérsias e, portanto, da<br />

escolha e do abandono do seu anterior<br />

perfil religioso-identitário. Fi<strong>na</strong>lmente,<br />

o terceiro item deste processo será<br />

decorrência do segundo: é o momento<br />

de reconstrução, uma nova identidade<br />

que o acompanhará daí para a frente,<br />

norteando sua vida, os princípios éticos,<br />

morais e religiosos de seu comportamento.<br />

Para tal terá que estar ple<strong>na</strong>mente<br />

convencido... ■<br />

Hele<strong>na</strong> Lewin, professora doutora em<br />

Sociologia, é coorde<strong>na</strong>dora do Programa<br />

de Estudos Judaicos da UERJ.<br />

5


<strong>ASA</strong> nº 135 • Março/Abril de 2012<br />

Não é fácil ser rabi<strong>na</strong> no Estado de<br />

Israel. Porque implica dois fatos:<br />

ser mulher e pertencer a um<br />

movimento religioso não ortodoxo, dois<br />

grupos que encontram a cada dia mais obstáculos<br />

dentro da sociedade israelense.<br />

Ser mulher, desfrutar da igualdade e<br />

dos mesmos direitos que os homens no<br />

século 21 dentro de uma sociedade considerada<br />

ocidental e do primeiro mundo<br />

deveria ser a coisa mais normal do mundo.<br />

Mas não é.<br />

Porque no moderno Estado de Israel,<br />

em alguns ônibus, as mulheres têm que<br />

sentar <strong>na</strong>s últimas filas; as mulheres não<br />

podem aparecer em cartazes de publicidade<br />

<strong>na</strong>s ruas de algumas cidades; as<br />

mulheres não podem cantar ou dançar<br />

perante determi<strong>na</strong>dos tipos de públicos;<br />

em alguns bairros, as mulheres têm que<br />

andar num lado específico da calçada;<br />

as mulheres têm determi<strong>na</strong>das horas de<br />

acesso ao ginásio de algumas universidades...<br />

Enfim, as mulheres têm a sua vida<br />

determi<strong>na</strong>da por outros.<br />

Por outro lado, ter o direito de pertencer<br />

ou de se identificar com qualquer<br />

movimento religioso judaico, ter a possibilidade<br />

de escolher as suas próprias autoridades<br />

religiosas, o seu próprio rabino ou<br />

rabi<strong>na</strong> para a si<strong>na</strong>goga do seu bairro, para<br />

a celebração do seu casamento ou para<br />

acompanhá-lo em qualquer momento feliz<br />

ou triste da sua vida deveria ser uma opção<br />

válida e livre para todo judeu ou judia no<br />

Estado judeu e democrático. Mas não é.<br />

Porque no moderno Estado de Israel<br />

as correntes religiosas judaicas que não se<br />

identificam com o Rabi<strong>na</strong>to central ortodoxo<br />

não recebem terra nem dinheiro das<br />

prefeituras para construir as suas próprias<br />

si<strong>na</strong>gogas; as comunidades religiosas não<br />

ortodoxas não recebem ajuda do Estado<br />

para pagar os salários dos seus rabinos/as;<br />

os casamentos celebrados por rabinos/as<br />

não pertencentes ao Rabi<strong>na</strong>to ortodoxo<br />

não são reconhecidos pelo Estado judeu...<br />

6<br />

DISCRIMINAÇÃO<br />

Ser rabi<strong>na</strong> em Israel<br />

Sandra Kochmann / Especial para <strong>ASA</strong><br />

Arquivo Pessoal<br />

A rabi<strong>na</strong> Sandra Kochmann ajuda o pai de um<br />

bar-mitsvando junto ao Muro Ocidental<br />

As mulheres e os judeus<br />

religiosos não ortodoxos<br />

têm a sua vida determi<strong>na</strong>da<br />

por outros.<br />

Enfim, as pessoas que se identificam com<br />

movimentos religiosos judaicos não ortodoxos<br />

têm a sua vida determi<strong>na</strong>da por<br />

outros.<br />

E aqueles “outros” que determi<strong>na</strong>m<br />

essas regras <strong>na</strong> sociedade israelense não<br />

são só os extremistas religiosos, mas são<br />

especialmente os políticos que, temerosos<br />

de não conseguir formar a sua coalizão de<br />

governo, entregam a dignidade, a liberdade<br />

de expressão, a igualdade de direitos<br />

e o pluralismo religioso em mãos de uma<br />

minoria fundamentalista.<br />

Contudo, eu escolho continuar sendo<br />

rabi<strong>na</strong> no Estado de Israel. Porque isso<br />

implica grandes desafios:<br />

1- O desafio de estimular as mulheres<br />

judias em Israel a assumir com orgulho o<br />

papel tão importante e essencial que elas<br />

têm – justamente pelo fato de serem mulheres<br />

– <strong>na</strong>s suas casas, <strong>na</strong>s ruas, no trabalho,<br />

<strong>na</strong> si<strong>na</strong>goga da corrente religiosa com<br />

a qual cada uma se identifica e dentro da<br />

sociedade onde cada uma escolhe morar.<br />

2- O desafio de nos encorajar mutuamente<br />

para lutar pela igualdade e pelo pluralismo<br />

religioso, cantando onde procuram<br />

nos silenciar, sentando <strong>na</strong> frente dos ônibus<br />

onde nos empurram para o último lugar,<br />

mostrando as nossas faces onde tentam<br />

nos censurar, estabelecendo comunidades<br />

e si<strong>na</strong>gogas igualitárias mesmo que os políticos<br />

não estejam a fim de apoiar.<br />

3- O desafio de educar as próximas<br />

gerações de israelenses – jovens mulheres e<br />

homens – para compreenderem que todo<br />

cidadão e cidadã do Estado merece respeito<br />

e para saberem que existe mais de um<br />

caminho válido – religioso ou não – para<br />

viver o judaísmo.<br />

Ser rabi<strong>na</strong> é uma vocação. Morar no<br />

Estado de Israel é cumprir com o meu sonho<br />

e o ideal sionista no qual cresci.<br />

E eu escolho a cada dia viver a minha vocação<br />

e o meu sonho nesta terra “tão terrível<br />

e tão bonita” – como escreveu o compositor<br />

Ehud Manor –, apesar de tudo.<br />

Porque, como cantamos no Hatikva, o<br />

hino <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l do povo judeu: “Enquanto no<br />

fundo do coração palpitar uma alma judaica...nossa<br />

esperança não estará perdida”...E<br />

eu não perco a esperança de que os valores<br />

mile<strong>na</strong>res do nosso povo, aqueles que nos<br />

ajudaram a superar tantas coisas e nos permitiram<br />

<strong>sobre</strong>viver até o dia de hoje, apesar<br />

de tudo, aqueles valores do respeito mútuo,<br />

da solidariedade e da união, voltem a surgir<br />

<strong>na</strong> sociedade israelense atual, para conseguirmos<br />

– como dizemos <strong>na</strong>s nossas rezas<br />

diárias – “melhorar o mundo inspirados pela<br />

nossa fé em Deus”.<br />

Lembranças, de Jerusalém. ■<br />

Sandra Kochmann é rabi<strong>na</strong> da Kehilah<br />

Masortit-Mishpachtit beBeit Hakerem<br />

(Jerusalém) e coorde<strong>na</strong>dora de casamentos<br />

e conversões do Movimento Masorti<br />

(conservador) em Israel. Foi rabi<strong>na</strong> da ARI<br />

(RJ) entre 2003 e 2005.


A<br />

mídia judaica tem discutido ultimamente<br />

uma “nova” expressão<br />

em hebraico: hadarat <strong>na</strong>shim, a<br />

exclusão de mulheres. Ela vem entrando<br />

<strong>na</strong>s manchetes à medida que os israelenses,<br />

com crescente frequência, se defrontam<br />

com esforços de homens ortodoxos e ultraortodoxos<br />

para expulsar as mulheres dos<br />

espaços públicos que pensávamos compartilhar.<br />

Mulheres para a traseira dos ônibus.<br />

Mulheres fora do palco. Não se trata de<br />

um grupo fixando-se padrões; são grupos<br />

que, alegando um direito de manter os seus<br />

padrões mesmo no espaço público, exigem<br />

impô-los também aos demais.<br />

“Exclusão de mulheres” nem é uma<br />

expressão nova ou um fenômeno especificamente<br />

judaico ou israelense. O conceito<br />

de exclusão surge com regularidade em<br />

análises feministas e pós-coloniais de muitas<br />

sociedades que se consideram “ilumi<strong>na</strong>das”,<br />

e a expressão hadarat <strong>na</strong>shim foi cunhada<br />

há décadas para traduzir este conceito para<br />

o hebraico. O projeto feminista liberal tem<br />

sido rechaçar a exclusão de mulheres, e <strong>na</strong><br />

maioria das sociedades ocidentais os ganhos<br />

são palpáveis. No mundo, a crescente presença<br />

de mulheres no espaço público é um<br />

dos símbolos e medidas de uma sociedade<br />

moder<strong>na</strong>, liberal.<br />

Por isto os recentes incidentes provocaram<br />

arrepios em amplos setores da<br />

sociedade israelense, incluindo alguns rigidamente<br />

ortodoxos. Muitos dos chapéus<br />

pretos em Israel ainda gostam de se pensar<br />

como parte de uma sociedade moder<strong>na</strong><br />

e pluralista, <strong>na</strong> qual homens e mulheres<br />

se misturam nos locais de trabalho, <strong>na</strong>s<br />

universidades, <strong>na</strong>s clínicas, nos shopping<br />

centers. Também eles preferem a liberdade<br />

de seguir os seus próprios padrões de recato,<br />

e não tê-los impostos por outro grupo.<br />

A ideia de mulheres sendo expulsas de<br />

espaços anteriormente vistos como incontestes<br />

– a frente dos ônibus, a sala de aula,<br />

o palco – tor<strong>na</strong> plausível a possibilidade de<br />

que Israel esteja perdendo terreno como<br />

DISCRIMINAÇÃO<br />

A exclusão de mulheres<br />

Deborah Greniman / Especial para <strong>ASA</strong><br />

o tipo de sociedade moder<strong>na</strong> <strong>na</strong> qual se<br />

deseje viver.<br />

Uma mulher observante postou recentemente<br />

num blog sua foto com chapéu, saia<br />

longa e mangas compridas, e escreveu <strong>sobre</strong><br />

o poder que sente ao se impor a discipli<strong>na</strong><br />

do código de vestimenta ortodoxo. Para<br />

ela, poder marcar a sua fé pela escolha de<br />

suas roupas é estimulante. Para os homens<br />

ultraortodoxos, uma mulher que poste uma<br />

foto exibindo suas roupas – qualquer roupa<br />

– é um anátema.<br />

Haverá quem pense, então, que essa<br />

glória de fazer escolhas não se aplica às ultraortodoxas<br />

mais conservadoras, restringidas,<br />

desde o <strong>na</strong>scimento, pela censura de uma<br />

sociedade rigidamente patriarcal. Num es-<br />

De um modo geral, rabinos<br />

não mandam intimidar nem<br />

cuspir <strong>na</strong>s mulheres.<br />

tudo recente, entretanto, a erudita feminista<br />

Sima Zalcberg Block descobriu que mulheres<br />

hassídicas que haviam adotado uma forma<br />

particularmente rigorosa de vestir insistiam<br />

tê-lo feito por sua inteira escolha. Elas optaram<br />

por cobrir a roupa com grossas capas,<br />

embora nenhum rabino as tivesse instruído<br />

neste sentido. Bloqueado o caminho da autoexpressão<br />

por meio de uma liberalização<br />

maior, elas fazem escolhas no terreno que<br />

lhes sobra: expressam-se, com rigor cada vez<br />

maior, ocultando-se no espaço público.<br />

O outro lado da moeda, são os jovens<br />

ultraortodoxos que se expressam tentando<br />

impor rigidez crescente a todas as mulheres<br />

que cruzam os seus caminhos. Ainda que<br />

rabinos apoiem o seu zelo religioso, de um<br />

modo geral não mandam os seus discípulos<br />

intimidar as mulheres e cuspir nelas.<br />

Também para estes jovens essa é a escolha<br />

que lhes resta, uma sombria linha de<br />

conduta que lhes proporcione maior satisfação<br />

ou emoções baratas numa sociedade<br />

Arquivo Pessoal<br />

<strong>ASA</strong> nº 135 • Março/Abril de 2012<br />

Deborah Greniman é, junto com o marido,<br />

rabino Yehiel Greniman, membro veterano<br />

da comunidade ortodoxa liberal Kehilat<br />

Yedidya, em Jerusalém<br />

que as oferece com escassez. Mais do que<br />

isto, é a escolha possível numa comunidade<br />

cujo crescimento exponencial, abastecido<br />

pelo maior índice de <strong>na</strong>talidade do mundo<br />

ocidental, lhe permite flexio<strong>na</strong>r os músculos<br />

contra uma sociedade secular que vai ficando<br />

proporcio<strong>na</strong>lmente menor a cada dia.<br />

Não importa quanto os ultraortodoxos<br />

protestem contra a modernidade, a tendência<br />

moder<strong>na</strong> – ou talvez a huma<strong>na</strong> – por<br />

escolhas percorre todos os setores da sociedade<br />

e os põe em rota de colisão. Os dilemas<br />

talvez sejam maiores para os ortodoxos<br />

rígidos que não são fanáticos religiosos. Deve<br />

uma ortodoxa, ao embarcar, fazer a “pudica”<br />

opção de ir para a traseira do ônibus, ou<br />

deve ela, com firmeza, sentar-se <strong>na</strong> frente e<br />

resistir ao puxão à direita? Esse puxão para<br />

a direita corrói as escolhas dela assim como o<br />

direito do seu grupo de definir o seu próprio<br />

caminho, e é por isto que algumas ortodoxas<br />

vêm se posicio<strong>na</strong>ndo <strong>na</strong> vanguarda da luta<br />

contra o fa<strong>na</strong>tismo religioso. Para preservar<br />

a sua própria participação <strong>na</strong> sociedade<br />

moder<strong>na</strong>, elas não têm alter<strong>na</strong>tiva a não<br />

ser assumir uma posição firme. Os acontecimentos<br />

recentes estão demonstrando esta<br />

verdade igualmente para todos os demais<br />

setores da sociedade israelense. ■<br />

Deborah Greniman é editora de Nashim,<br />

publicado em conjunto pelo Schechter<br />

Institute of Jewish Studies e o Hadassah-<br />

Brandeis Institute, e de publicações em<br />

língua inglesa da Academia de Ciências e<br />

Humanidades de Israel.<br />

Tradução de S.M.G.<br />

7


<strong>ASA</strong> nº 135 • Março/Abril de 2012<br />

Minha mãe bem que gostaria, mas<br />

nenhum de nós (meu pai, meu<br />

irmão e eu) era muito ligado em<br />

religião. Apesar de nossa formação judaica e<br />

sionista <strong>na</strong> Escola Herzlia e, mais tarde, no<br />

Colégio Hebreu Brasileiro (CHB).<br />

Na verdade, tivemos uma educação<br />

judaica liberal, progressista.<br />

Tudo isso pra dizer que, de Purim,<br />

tenho poucas recordações, mesmo no<br />

colégio não lembro de nenhuma comemoração<br />

mais completa. Lembro, sim,<br />

dos humentashen, as orelhas de Haman,<br />

e do bolo de uva preta que minha tia<br />

Rivke fazia, delicioso – até hoje, aliás, é o<br />

bolo que marca, pra mim, esse período,<br />

que a Silvia amorosamente se esforça para<br />

produzir, sempre que ela encontra as tais<br />

uvas pretas...<br />

Sim, é verdade, <strong>na</strong>s aulas de Ta<strong>na</strong>ch e<br />

Talmud, o saudoso Jacob Fajngelerent nos<br />

falou de Ester & Cia, insinuando, até, que<br />

essa história de primos (Mordehai e Hadassa)<br />

estava mal contada. Ele sugeria que<br />

os dois eram marido-e-mulher, portanto,<br />

<strong>na</strong> melhor das hipóteses, o rei persa foi<br />

levado <strong>na</strong> conversa.<br />

Há ape<strong>na</strong>s uma ação obrigatória em<br />

Purim, que é ouvir a história da libertação<br />

dos judeus das mãos de seu inimigo,<br />

Haman. Pode-se debater se isso se deveu<br />

à manipulação sexual de Ester <strong>sobre</strong> o rei<br />

Ahashverosh a pedido de Mordehai ou,<br />

de fato, à intervenção divi<strong>na</strong>.<br />

O que não está em debate, porém, é<br />

a ferocidade da observância judaica do<br />

8<br />

BECO DA MÃE<br />

As orelhas de Haman<br />

Martins Associados - Advocacia Trabalhista e Societária<br />

Rua Se<strong>na</strong>dor Dantas, 20 Gr. 1509 - Centro - Telefone: 2240-9808<br />

Rosa<strong>na</strong> Yentas - Psicoterapia / Orientação Profissio<strong>na</strong>l<br />

Henrique Veltman / Especial para <strong>ASA</strong><br />

Reprodução<br />

Os oznei Haman vêm em diversas formas<br />

evento. O costume judaico é ficar bêbado,<br />

gritar, gritar e vibrar a matraca cada<br />

vez que o nome de Haman é lido em voz<br />

alta e, geralmente, lembrar a todos que<br />

mantemos rancor por muito tempo.<br />

Dessas sessões de gritaria e matracas eu<br />

lembro bem, <strong>na</strong>s salas de aula do CHB.<br />

Os alimentos de Purim, os oznei Haman,<br />

orelhas de Haman, vêm em diversas<br />

formas, que variam de biscoitos recheados<br />

a uma espécie de massa frita que comi,<br />

um dia, em casa do Xexéu z’l (apelido<br />

do querido Samuel Shechtman, saudoso<br />

companheiro dos bancos escolares).<br />

Fajngelerent nos contou, para horror<br />

nosso, que Haman e seus dez filhos foram<br />

todos empalados em estacas de madeira.<br />

Vocês lembram disso quando contam a<br />

meguilá para suas criancinhas queridas?<br />

Segundo os registros do Livro de Ester,<br />

a festa de Purim comemora o dia da vitória<br />

do povo judeu <strong>sobre</strong> os povos inimigos <strong>na</strong><br />

época medo-persa, durante o cativeiro <strong>na</strong><br />

Babilônia. Bem, é verdade que Haman,<br />

primeiro-ministro do rei, havia emitido um<br />

decreto determi<strong>na</strong>ndo que o povo judeu<br />

deveria ser extermi<strong>na</strong>do sem qualquer<br />

direito de defesa.<br />

Segundo a lei medo-persa, qualquer<br />

decreto, após emitido, não poderia mais<br />

ser revogado nem pelo próprio rei. Aí,<br />

a solução encontrada por Mordehai e<br />

pela rainha Ester foi emitir um segundo<br />

decreto, dando o direito aos judeus de se<br />

defenderem. E como se defenderam, foi<br />

o chamado pega pra capar...<br />

Purim é uma palavra hebraica derivada<br />

de outra palavra hebraica, pur, mas que<br />

muito provavelmente vem da palavra assíria<br />

puru, que se refere aos dados de jogos<br />

que são lançados para se determi<strong>na</strong>r a<br />

sorte de algo. Foi assim que Haman lançou<br />

o Pur e determinou que, no 13º dia do mês<br />

de Adar, os judeus deveriam ser extermi<strong>na</strong>dos.<br />

Mas graças aos encantos de Ester e<br />

à esperteza de Mordehai, quem se ferrou<br />

foi Haman. Um detalhe essencial: não há<br />

<strong>na</strong> Meguilá (que não foi incorporada ao<br />

Ta<strong>na</strong>ch) nenhuma referência a Deus. ■<br />

Henrique Veltman, carioca, 75 anos,<br />

casado, jor<strong>na</strong>lista, sociólogo e torcedor do<br />

América, é colaborador do Boletim <strong>ASA</strong>.<br />

Mauro Acselrad - Psiquiatria Clínica<br />

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O<br />

shames Manoel abre as portas da<br />

peque<strong>na</strong>, porém bela e centenária,<br />

si<strong>na</strong>goga Shaaré Tikva, no<br />

Rato, bairro de Lisboa. Pergunto-lhe pela<br />

comunidade: são umas duzentas famílias,<br />

aproximadamente. E como estão? Como<br />

todos os portugueses, me responde.<br />

Os portugueses estão desmotivados.<br />

Seu Antônio, dono de uma mercearia em<br />

arredor mais elegante, me conta, pouco<br />

antes do Natal: “Todos os anos, nesta<br />

época, eu quebrava regularmente cerca de<br />

50 quilos de nozes para vender aos fregueses.<br />

De uns tempos para cá, foi caindo e<br />

agora, já não mais, já não mais.” Teme-se<br />

o futuro, cortam-se gastos, o consumo se<br />

retrai, fecham os pequenos negócios.<br />

O mesmo se passa <strong>na</strong> vizinha Espanha.<br />

Afi<strong>na</strong>l, é idêntico o receituário de governos<br />

recentemente empossados, apressados em<br />

liquidar dívidas públicas, olhos tapados à<br />

realidade social. Aumento de impostos<br />

(inclusive <strong>sobre</strong> habitação própria) e de<br />

preços; corte de subsídios, por exemplo, à<br />

saúde; redução das cirurgias nos hospitais<br />

públicos; privatizações; demissão de funcionários,<br />

com redução de salários; aumento<br />

das horas de trabalho; adiamento de obras<br />

já programadas e por aí vai. A imagi<strong>na</strong>ção<br />

é grande quando se trata de pagar a dívida,<br />

garantindo à banca e ao sistema fi<strong>na</strong>nceiro<br />

a intocabilidade de seus ganhos.<br />

O capitalismo, que um dia foi industrial,<br />

inovador e produtivo, gerou uma<br />

massa imensa de recursos em busca de<br />

investimentos que rendam aos detentores<br />

de recursos saídas mais rentáveis:<br />

emprestar, criar aplicações derivadas de<br />

outros empréstimos e aplicações (derivativos),<br />

gerar títulos de toda sorte de<br />

dívidas, <strong>na</strong>da a ver com o mundo da<br />

produção. A fi<strong>na</strong>nceirização se faz em<br />

um mundo à parte e que se retroalimenta.<br />

Economistas brasileiros, reunidos em<br />

seminário no Itamaraty, avaliaram que<br />

o chamado mercado de capitais, sob o<br />

domínio dos grandes bancos, movimenta<br />

de cinco a seis vezes o PIB mundial, e o<br />

de derivativos, 435 trilhões de dólares<br />

PENÍNSULA IBÉRICA<br />

A crise e o Messias<br />

Re<strong>na</strong>to Mayer / Especial para <strong>ASA</strong><br />

Caricatura de capa da revista<br />

cômica espanhola El Jueves, <strong>sobre</strong> o<br />

primeiro-ministro espanhol Mariano<br />

Rajoy, nomeado no fi<strong>na</strong>l de 2011.<br />

Traduzida por Re<strong>na</strong>to Mayer<br />

Reprodução<br />

É uma situação que os<br />

velhos sábios da tradição<br />

judaica parecem ter<br />

antevisto.<br />

ou cerca de trinta vezes o PIB dos Estados<br />

Unidos.<br />

Mas não há ondas tecnológicas capazes<br />

de carrear estes recursos à semelhança das<br />

revoluções industriais do passado histórico?<br />

Há grandes avanços, sem dúvida,<br />

<strong>na</strong>s áreas de comunicação e informação,<br />

biotecnologia, equipamentos médicos,<br />

militares e química farmacêutica. E retrocessos<br />

também, com o apego ao petróleo<br />

e ao carvão como fonte de energia, com<br />

suas consequências climáticas tenebrosas.<br />

No balanço, ganham alguns setores, mas<br />

não as sociedades, incapazes de oferecer<br />

incentivos suficientes para absorverem o<br />

dinheiro que circula como capital fi<strong>na</strong>nceiro.<br />

É esse simulacro de progresso que<br />

faz com que até políticos conservadores<br />

falem em mudança de “paradigma do<br />

<strong>ASA</strong> nº 135 • Março/Abril de 2012<br />

capitalismo”, com regulação do mercado<br />

de capitais e controle mais rigoroso do que<br />

interpretam como especulação. Falam,<br />

mas, <strong>na</strong> Europa, práticas, propostas e<br />

métodos continuam os mais tradicio<strong>na</strong>is.<br />

Com prejuízo e empobrecimento de<br />

grande parte de sua população, junto a<br />

altos níveis de ociosidade da capacidade<br />

produtiva instalada e de sua mão de obra.<br />

Os ressentimentos estão por toda parte.<br />

Afloram ao denomi<strong>na</strong>r aquelas políticas<br />

de “pacto de agressão”.<br />

É uma situação que os velhos sábios da<br />

tradição judaica parecem ter antevisto. Ao<br />

<strong>fala</strong>rem do Messias (Será um indivíduo?<br />

Uma onda redentora? Uma revolução?<br />

A recomposição dos valores humanistas<br />

mais profundos? Um novo pensamento e<br />

forma de estar no mundo?), mencio<strong>na</strong>vam<br />

que sua vinda seria precedida de horrendas<br />

catástrofes, desespero, declínio da ética,<br />

da solidariedade e da moralidade. A era<br />

messiânica corrigirá o mundo e o restituirá<br />

a seu estado origi<strong>na</strong>l, de luz e paz.<br />

O Rabino Y. Loew, o Maharal de Praga,<br />

o mesmo que teria criado o Golem no ano<br />

de 1580, explica a propósito, dialeticamente,<br />

que só depois que o estado anterior<br />

perde sua identidade, um novo padrão<br />

pode desenvolver-se. O velho deve oscilar<br />

e cair antes que um mundo novo e puro<br />

possa ser criado, sendo nossa época uma<br />

de transição entre o velho e o novo.<br />

Diante do que estamos vendo, não há<br />

muitas razões para otimismo. Mas o outro<br />

lado de nossa tradição, o de luta, resistência<br />

e perseverança, recomenda que destaquemos<br />

o avanço dos movimentos sociais e<br />

a te<strong>na</strong>cidade generalizada da oposição às<br />

políticas recessivas que rompem com as proteções<br />

e serviços de bem-estar conquistados<br />

pelos povos. Assusta muito mais o sentido<br />

do que vi pintado num muro de Setúbal,<br />

ali mesmo em Portugal: “Rouba o rico mais<br />

próximo de ti.” Até porque, mesmo assim,<br />

muitos continuarão sem <strong>na</strong>da. ■<br />

Re<strong>na</strong>to Mayer, economista, é<br />

colaborador deste Boletim.<br />

9


<strong>ASA</strong> nº 135 • Março/Abril de 2012<br />

Além dos cursos públicos, feitos<br />

com nossas próprias forças, organizamos<br />

também apresentações<br />

de artistas e escritores. O que deixou especialmente<br />

agitados os nossos jovens foi<br />

a perspectiva de encontros com o grande<br />

fabulista Eliezer Steinbarg, muito popular<br />

e amado como um mestre da palavra e<br />

revolucionário. Para conseguir licença para<br />

esta apresentação precisávamos “preparar<br />

o poder” (fi<strong>na</strong>nceiramente). Foi difícil<br />

também alugar o salão do Chaim Abramovitch,<br />

um judeu rico de caráter duro. Tinha<br />

duas profissões, ou, como o povo dizia,<br />

duas “vacas leiteiras”: a grande balança,<br />

que ficava no meio da rua, bem defronte<br />

à sua casa, e o salão de teatro, nos fundos<br />

do terraço detrás da casa. Na balança<br />

pingava sempre algum dinheiro de cada<br />

carroça que alguém pesava. O salão rendia<br />

diariamente algo pelo aluguel a grupos de<br />

teatro ambulantes, casamentos, festas e cinema.<br />

Os dois irmãos Zitzer, ex-artistas de<br />

um grupo de teatro ambulante, que todas<br />

as sextas e sábados passavam um filme<br />

mudo, contavam tudo o que padeciam.<br />

Abramovitch sempre mudava o preço<br />

e exigia pagamento adiantado, além de<br />

muitos ingressos gratuitos.<br />

Ele foi particularmente duro com o Círculo<br />

Sholem Aleichem, onde sua adorada<br />

filha Súrcale era uma das figuras principais,<br />

tendo feito amizade com operários, tipos<br />

inferiores a ela. As relações entre pai e filha<br />

estavam abaladas, e todos temiam que<br />

ele não alugasse o salão para a noite de<br />

Steinbarg. Mas, inesperadamente, Súrcale<br />

assumiu o compromisso de conseguir o<br />

salão. Que medidas ela tomou para negociar<br />

com o pai, ninguém sabe. Pode ser<br />

que tenha ameaçado sair de casa, mudar<br />

de cidade ou coisa pior, mas o fato é que<br />

o pai ficou tão manso que nem cobrou<br />

adiantado como de costume. A tarefa de<br />

Ita e Hérshele foi vender os bilhetes <strong>na</strong><br />

cidade. A minha, preparar os cartazes. Tive<br />

de fazer o trabalho à mão durante toda<br />

a noite para que, <strong>na</strong> manhã seguinte, os<br />

cartazes fossem pendurados <strong>na</strong>s ruas. E<br />

10<br />

SECURON / PARTE 6<br />

Eliezer Steinbarg veio *<br />

Motl Polansky<br />

Caricatura do escritor Eliezer Steinbarg<br />

Reprodução<br />

logo nessa mesma tarde tinha sido convidado<br />

para tocar guitarra <strong>na</strong> orquestra<br />

que acompanhava um grupo teatral – uma<br />

oportunidade muito rara. Nenhum jovem<br />

de hoje pode compreender o significado,<br />

para um rapaz ávido de música como eu,<br />

de encontrar músicos profissio<strong>na</strong>is. Mas<br />

tive de recusar. Em uma peque<strong>na</strong> casa,<br />

em uma rua afastada, à luz de lampari<strong>na</strong>,<br />

eu preparava os cartazes. Meu coração<br />

chorava, mas ao mesmo tempo sentia que<br />

estava fazendo uma obra importante. Com<br />

afinco desenhei cada letra, especialmente<br />

as letras grandes e bonitas do nome de<br />

Eliezer Steinbarg.<br />

No dia seguinte, os cartazes olhavam<br />

com orgulho, das paredes, dos muros e<br />

postes telegráficos. A cidade toda sussurrava:<br />

“Vejam só, o grande Eliezer Steinbarg<br />

em Securon.”<br />

Steinbarg era muito amado e popular<br />

entre os amantes da cultura judaica, da<br />

criação judaica e do pensamento progressista.<br />

Seu nome era envolto em lenda.<br />

Falava-se <strong>sobre</strong> a vida modesta que levava<br />

em Tchernovitz, <strong>sobre</strong> seu humanismo e<br />

bondade, que, dizia-se, faziam milagres.<br />

Contavam que entre as crianças ninguém<br />

o reconhecia, pois ele se transformava em<br />

criança. Mesmo quando ainda não editadas,<br />

as fábulas de Steinbarg penetravam<br />

no povo, viviam no povo e andavam<br />

de cidade em cidade, de boca em boca.<br />

Muitas eram conhecidas de cor como<br />

aforismos populares e inteligentes. Com<br />

seu conteúdo democrático e progressista,<br />

com suas considerações humanistas, as<br />

fábulas ajudavam a espantar o desespero,<br />

consolavam e fortaleciam, clamando à<br />

atividade. Nas reuniões, particularmente<br />

entre as camadas avançadas, nunca se<br />

deixava de ler as fábulas de Steinbarg.<br />

Nos programas dos círculos de amadores,<br />

as fábulas ocupavam o primeiro lugar. Em<br />

que consistia esta força?<br />

Steinbarg viveu e criou em um tempo<br />

de muita luta social, quando as contradições<br />

e injustiças do sistema social pesavam<br />

como um grande fardo. O grande artista,<br />

com seu coração quente e humano, com a<br />

mente de um sábio popular e com grande<br />

amor pelo trabalhador e pelo oprimido,<br />

não podia ficar alheio aos conflitos sociais.<br />

Ele sofria com a triste realidade e cultivou<br />

em si o sonho dourado de um mundo<br />

justo e bom. Um mundo sem ofensas,<br />

sem opressões, sem maldades. Por toda<br />

parte ele via uma luta entre o bem e o<br />

mal, entre a justiça e a injustiça. Em suas<br />

fábulas, ele revela o cinismo, o orgulho,<br />

a mísera autossatisfação e todas as outras<br />

deformações do sistema social doente.<br />

Compreende-se assim o grande papel da<br />

criação de Steinbarg no desenvolvimento<br />

político e moral da juventude judaica da<br />

Bessarábia e de toda a Romênia, e como<br />

foi útil o seu contato vivo com a juventude<br />

trabalhadora.<br />

A noite de Steinbarg foi transformada<br />

em uma grande festa cultural. O salão estava<br />

superlotado, apesar de a cidade saber<br />

quem eram seus organizadores. Evidência<br />

disto era o Idel a correr de um lado para<br />

o outro organizando a entrada no salão,<br />

pequeno para tanta gente. Abramovitch<br />

corria, gritando: “Gente, vocês querem<br />

derrubar as paredes para que eu fique sem<br />

salão?” O público estava de pé entre os


ancos e encostado <strong>na</strong>s paredes laterais.<br />

Quando Steinbarg apareceu, explodiu<br />

uma ovação. Foi completamente impossível<br />

acalmar o público, especialmente<br />

os jovens. Baixinho, meio gordo, com a<br />

testa clara e larga de um sábio, ele parecia<br />

festivo. Com um amável sorriso, inclinouse<br />

levemente, os meigos olhos de criança<br />

mirando através de seus grossos óculos<br />

para todos os lados do salão.<br />

A conferência versava <strong>sobre</strong> o papel da<br />

literatura <strong>na</strong> vida social e <strong>sobre</strong> o processo<br />

de criação do artista individual. Depois<br />

da conferência, Steinbarg leu suas fábulas.<br />

Gesticulava com as mãos e com o corpo<br />

todo, alisava a testa com os dedos, e com<br />

seus lábios grossos quase cantou e desenhou<br />

os perso<strong>na</strong>gens das fábulas. Ora ele<br />

se abaixava e se tor<strong>na</strong>va pequeno como<br />

a agulha da fábula “A agulha e a baioneta”,<br />

ora se esticava dando um pulo para<br />

o céu e respondendo debochadamente à<br />

baioneta que espeta os homens, soltando<br />

uma gargalhada zombeteira:<br />

“Hi,hi, hi e ha, ha, ha e ho, ho, ho<br />

Espeto eu o algodão, um espeto após<br />

o outro<br />

Sai uma camisa, uma roupa, uma<br />

coisa<br />

Mas ao homem espeta hoje, espeta<br />

amanhã<br />

E dele <strong>na</strong>da vai sair.”<br />

Outra vez os aplausos entusiasmados.<br />

Parecia uma demonstração contra a<br />

guerra. Cada fábula continha esperança e<br />

coragem, um chamamento direto à luta.<br />

A fábula “Arco-íris” agradou especialmente.<br />

Os jovens, entusiasmados, gritavam<br />

“Steinbarg, Steinbarg”, e, particularmente<br />

contente, ele terminou:<br />

“O quê? O mundo é louco?<br />

Escuro? Escorregadio? Desesperante?<br />

Penetra até nos ossos<br />

Mas, gente, quando o sol começar a<br />

brilhar...”<br />

A noite de Steinbarg foi um grande<br />

acontecimento, e durante muito tempo<br />

os jovens estiveram sob a impressão por<br />

ele deixada. Como foi grande a dor e a<br />

tristeza quando, pouco depois, chegou a<br />

notícia de que ele não estava mais entre<br />

os vivos. Dizem que com a morte de uma<br />

pessoa termi<strong>na</strong> a sua atividade. Isto não<br />

aconteceu com Steinbarg, criador cuja<br />

obra continua a ser valorizada em todo o<br />

mundo. Bem no centro da aleia principal<br />

do cemitério de Tchernovitz encontra-se<br />

o túmulo de Steinbarg, cujo monumento<br />

se parece com uma parede, destacando-se<br />

dos vizinhos por sua modesta, mas significativa,<br />

escultura com a inscrição em ídish:<br />

ELIEZER STEINBARG 1880 – 1932<br />

O monumento em alto relevo representa<br />

uma corti<strong>na</strong> aberta, o céu, estrelas,<br />

passarinhos voando, borboletas e a primeira<br />

frase de sua fábula “O martelo e o<br />

ferro”: “Tristes crianças neste mundo largo<br />

e amargo, vamos ao menos uma fábula<br />

Contavam que entre<br />

as crianças ninguém o<br />

reconhecia, pois ele se<br />

transformava em criança.<br />

saborear.” Triste e amargo, palavras que<br />

não dizem pouco <strong>sobre</strong> a sua própria<br />

vida. Basta lembrar que Steinbarg, figura<br />

marcante <strong>na</strong> literatura judaica, não conseguiu<br />

em vida ver editadas suas fábulas.<br />

Este grande livro só apareceu depois de<br />

sua morte. Será que isto foi casual, ou<br />

resultou de sua modéstia, ou de sua falta<br />

de capacidade de empreendimento, ou<br />

falta de fortes cotovelos para romper as<br />

dificuldades? Tudo é possível, pois não se<br />

deve esquecer o cerco que ele sofreu dos<br />

pequenos burgueses. A sua ironia contra<br />

a ordem social era muito aguda; suas<br />

flechas foram lançadas e acertaram onde<br />

era preciso.<br />

Mais tarde, começamos a preparar um<br />

concerto literário-musical. Resolvi ence<strong>na</strong>r<br />

“A <strong>na</strong>valha e a serra” e “A agulha e a baioneta”.<br />

Eu já havia começado a escrever a<br />

música para essas fábulas. Era verão. Passeando<br />

com alguns amigos fora da cidade e<br />

conversando <strong>sobre</strong> os planos do concerto,<br />

chegamos à floresta, onde nos sentíamos<br />

livres, sem ninguém para nos incomodar.<br />

Logo que nos sentamos <strong>na</strong> grama, surgiu<br />

Gavrilu com alguns gendarmes. Esse bandido<br />

– assim o chamavam, e ele era isso<br />

mesmo – de altura fora do comum, forte,<br />

uma grande cabeleira cobrindo a testa,<br />

um <strong>na</strong>riz inchado e nojento, nunca se separava<br />

de uma carabi<strong>na</strong> curta, que usava<br />

no ombro, e <strong>na</strong>s ruas andava sempre em<br />

<strong>ASA</strong> nº 135 • Março/Abril de 2012<br />

companhia de um ou dois gendarmes, e<br />

especialmente do sargento Yonescu. Sequinho,<br />

de <strong>na</strong>riz afilado e com feridas abertas<br />

no pescoço, ele era um cruel torturador a<br />

quem apelidaram de “sifilítico”. Gavrilu<br />

revistou cada um de nós. Nada havia<br />

de comprometedor. Só em meu bolso<br />

encontrou um livrinho de anotações com<br />

as notas de músicas para as fábulas. Seus<br />

olhos encheram-se de sangue, e eu senti<br />

um forte soco no rosto. “Ah! Estes são os<br />

si<strong>na</strong>is de conspiração”, disse, sem parar de<br />

bater. De <strong>na</strong>da serviram nossas alegações<br />

de que eram notas musicais. Seguraramnos<br />

alguns dias <strong>na</strong> gendarmeria, mas por<br />

fim tiveram de nos soltar. O concerto teve<br />

muito sucesso. Naturalmente os chefes<br />

superiores foram beneficiados e Gavrilu<br />

não se atreveu a impedir coisa alguma.<br />

Como de hábito, ele veio ao salão para<br />

dar uma espiada, bem <strong>na</strong> hora da ce<strong>na</strong><br />

de “A <strong>na</strong>valha e a serra”. Quando soube<br />

do que se tratava, rangeu os dentes: “Só<br />

por isto eu já daria muitos socos.” Nem<br />

desconfiava de que esses socos ele já os<br />

tinha dado antes e que os sentirei em meu<br />

rosto por toda a vida. E com muita honra,<br />

só porque esses socos têm relação com<br />

Eliezer Steinbarg. ■<br />

Tradução de Isaac Acselrad<br />

* Os capítulos anteriores estão disponíveis<br />

no site da <strong>ASA</strong>.<br />

11


<strong>ASA</strong> nº 135 • Março/Abril de 2012<br />

A <strong>ASA</strong>, em parceria com a Kinderland,<br />

está abrindo turmas de dança israeli para<br />

várias faixas etárias.<br />

■ Crianças de 8 a 10 anos<br />

(Leaká Chalom) – Quintas-feiras, das<br />

15h30 às 17 horas, professor Marcelo<br />

Foks.<br />

A partir de março, toda última quartafeira<br />

do mês será dia de música clássica<br />

<strong>na</strong> <strong>ASA</strong>. Sempre às 18h30, no auditório,<br />

grupos camerísticos mostrarão um repertório<br />

refi<strong>na</strong>do, a preços populares. Os dois<br />

primeiros programas serão:<br />

Dia 28 de março: Orquestra de Violões<br />

da AV Rio<br />

Dia 25 de abril: Duo Ritmata – Roberto<br />

de Brito (violão) e Rachel Castro<br />

(flauta)<br />

Ingressos: R$ 5,00 para sócios da <strong>ASA</strong><br />

e da AV Rio – Associação de Violonistas do<br />

Rio de Janeiro e estudantes da Escola de<br />

Música da UFRJ, e R$ 10 para os demais<br />

12<br />

NOTAS<br />

■ Jovens de 11 a 14 anos<br />

(Leaká Keshet) – Sextas-feiras, das 15 às<br />

17h30, professor Marcelo Foks<br />

■ Jovens de 14 a 17 anos<br />

(Leaká Atzmaí) – Quintas-feiras, das 17<br />

às 19h30, professores Luiz Filipe Barbosa e<br />

Ricardo Becker<br />

Cartas para <strong>ASA</strong>: Rua São Clemente, 155, fundos - Botafogo - Rio de Janeiro/RJ - CEP 22260-001;<br />

telefax (21) 2539-7740 ou e-mail asa@asa.org.br c.c para smgruman@terra.com.br<br />

Devem conter nome e endereço completos, telefone e assi<strong>na</strong>tura. Havendo restrição de espaço, poderão ser<br />

encurtadas sem autorização dos remetentes<br />

ORIENTAÇÃO PARA A ECT<br />

Foto Natalia Francisco de Oliveira<br />

O Círculo de Leitura<br />

da <strong>ASA</strong>, sempre em português,<br />

começou as atividades<br />

de 2012 em 10 de<br />

janeiro (foto). No próximo<br />

dia 20 de março, receberá<br />

como convidado Alfredo<br />

Tiomno Tolmasquim, autor<br />

de Einstein, o viajante da<br />

relatividade <strong>na</strong> América do<br />

Sul, que <strong>fala</strong>rá <strong>sobre</strong> sua<br />

obra e o processo de criação<br />

literária. A entrada é franca.<br />

O Círculo de Leitura se reúne<br />

quinze<strong>na</strong>lmente, às terçasfeiras,<br />

a partir das 15h30. O<br />

encontro é sempre seguido<br />

de um lanche.<br />

■ Jovens universitários<br />

(Leaká Kessem) – Quintas-feiras, das<br />

19h30 às 22 horas, professores Luiz Filipe<br />

Barbosa e Bru<strong>na</strong> Bergman<br />

Inscrições e informações com Ila<strong>na</strong><br />

(2266-1980) e Natalia (2535-1808 e 2539-<br />

7740), das 10 às 18 horas<br />

Endereço para devolução deste impresso: R. São Clemente, 155, fundos - Botafogo - Rio de Janeiro - RJ - CEP: 22260-001

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