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O homem é a natureza adquirindo consciência de si próprio Elisée ...

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O <strong>homem</strong> é a <strong>natureza</strong> <strong>adquirindo</strong> consciência <strong>de</strong> <strong>si</strong> próprio<br />

Elisée Reclus<br />

Há alguns anos, após ter escrito as últimas linhas <strong>de</strong> uma vasta obra, a Nouvelle<br />

géographie universelle, eu expressava o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> um dia po<strong>de</strong>r estudar o <strong>homem</strong> na<br />

sucessão das ida<strong>de</strong>s, da mesma maneira como o observara nas diversas regiões do<br />

globo, e estabelecer as conclusões sociológicas às quais fora conduzido. Concebi o<br />

plano <strong>de</strong> um novo livro, em que seriam explicitadas as condições do solo, do clima, <strong>de</strong><br />

todos os ambientes nos quais aconteceram os fatos da história, em que se mostraria a<br />

harmonia dos homens e da Terra; em que as condutas dos povos se explicariam, da<br />

causa ao efeito, por sua consonância com a evolução do planeta. Tal livro é o que<br />

apresento ao leitor.<br />

Logicamente, eu sabia <strong>de</strong> antemão que nenhuma pesquisa me faria <strong>de</strong>scobrir essa lei <strong>de</strong><br />

um progresso humano, cuja miragem sedutora se agita, sem cessar, em nosso horizonte,<br />

se afasta <strong>de</strong> nós e se dis<strong>si</strong>pa, para voltar a se formar <strong>de</strong> novo. Surgidos como um ponto<br />

no infinito do espaço, nada conhecendo sobre nossas origens nem nossos <strong>de</strong>stinos,<br />

ignorando até se pertencemos a uma única espécie animal ou se várias humanida<strong>de</strong>s<br />

nasceram suces<strong>si</strong>vamente para se extinguir e ressurgir novamente, nós estaríamos pouco<br />

à vonta<strong>de</strong> para formular regras <strong>de</strong> evolução ao <strong>de</strong>sconhecido, para combater o nevoeiro,<br />

na esperança <strong>de</strong> lhe dar uma forma precisa e <strong>de</strong>finitiva.<br />

Não. Mas nessa avenida dos séculos que os achados dos arqueólogos prolongam<br />

constantemente naquilo que foi a noite do passado, po<strong>de</strong>mos ao menos reconhecer o<br />

laço íntimo que liga a sucessão dos fatos humanos à ação das forças telúricas: é-nos<br />

permitido, seguir, no tempo, cada período da vida dos povos correspon<strong>de</strong>ntes à<br />

mudanças dos meios, observar a ação combinada da <strong>natureza</strong> e do próprio <strong>homem</strong>,<br />

reagindo sobre a Terra que o formou.<br />

A emoção que se tem ao contemplar todas as paisagens do planeta na sua varieda<strong>de</strong> sem<br />

fim e na harmonia que lhes dá a ação das forças étnicas, sempre em movimento, essa<br />

própria suavida<strong>de</strong> das coisas, nós as sentimos ao ver a procissão dos homens sob suas<br />

vestes <strong>de</strong> opulência ou <strong>de</strong> infortúnio, mas todos igualmente em estado <strong>de</strong> vibração<br />

harmônica com a Terra, que os carrega e os sustenta, o céu que os ilumina e os associa<br />

às energias do cosmo. E da mesma forma que a superfície das regiões nos apresenta,<br />

continuamente, sítios <strong>de</strong> beleza que admiramos com todo o po<strong>de</strong>r do nosso ser, o<br />

<strong>de</strong>curso da História nos mostra, na sucessão dos fatos, cenas incríveis <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za, cujo<br />

estudo e conhecimento só nos enobrece. A geografia histórica concentra, em dramas<br />

incomparáveis, em realizações esplêndidas, tudo aquilo que a imaginação po<strong>de</strong> evocar.<br />

Em nossa época <strong>de</strong> crise aguda, em que a socieda<strong>de</strong> se concentra tão profundamente<br />

abalada, em que o remoinho da evolução se torna tão rápido que o <strong>homem</strong>, tomado <strong>de</strong><br />

vertigem,procura um novo ponto <strong>de</strong> apoio para a direção <strong>de</strong> sua vida, o estudo da<br />

História é tanto mais interessante quanto mais o seu domínio, cada vez mais amplo,<br />

oferece uma série <strong>de</strong> exemplos mais ricos e mais variados. A sucessão das ida<strong>de</strong>s se<br />

torna para nós uma gran<strong>de</strong> escola, cujos en<strong>si</strong>namentos se or<strong>de</strong>nam diante <strong>de</strong> nosso<br />

espírito e acabam até por se agruparem em leis fundamentais.


A primeira categoria <strong>de</strong> acontecimentos que o historiador constata nos mostra como,<br />

pelo efeito <strong>de</strong> um <strong>de</strong><strong>si</strong>gual <strong>de</strong>senvolvimento nos indivíduos e nas socieda<strong>de</strong>s, todas as<br />

coletivida<strong>de</strong>s humanas, com exceção dos povos que permaneceram no naturismo<br />

primitivo, se <strong>de</strong>sdobram, por as<strong>si</strong>m dizer, em classes ou castas, não apenas diferentes,<br />

mas também opostas em interesses e tendências, até mesmo francamente inimigas em<br />

todos os períodos <strong>de</strong> crise. Tal é, sob mil formas o conjunto <strong>de</strong> fatos que se observa em<br />

toas as regiões do universo, com a infinita diver<strong>si</strong>da<strong>de</strong> que <strong>de</strong>terminam os sítios, os<br />

climas e o dédalo cada vez mais intricado dos acontecimentos.<br />

O segundo fato coletivo, conseqüência necessária do <strong>de</strong>sdobramento dos corpos sociais,<br />

é que o equilíbrio rompido <strong>de</strong> indivíduo a indivíduo, <strong>de</strong> classe a classe, oscila<br />

constantemente em torno <strong>de</strong> seu eixo <strong>de</strong> repouso: a violação da justiça sempre clama<br />

vingança. Daí, incessantes oscilações. Aqueles que comandam procuram permanecer<br />

como chefes, enquanto os que servem fazem esforços para reconquistar a liberda<strong>de</strong> e em<br />

seguida, arrastados pela energia <strong>de</strong> seu élan, tentam reconstituir o po<strong>de</strong>r em proveito<br />

próprio. As<strong>si</strong>m se suce<strong>de</strong>m guerras civis, complicadas com guerras estrangeiras,<br />

massacres e <strong>de</strong>struições, numa confusão contínua, finalizando diversamente, <strong>de</strong> acordo<br />

com o impulso respectivo dos elementos em luta. Ou então os oprimidos se submetem,<br />

tendo esgotado sua força <strong>de</strong> re<strong>si</strong>stência: morrem lentamente e se extinguem, não tendo<br />

mais a iniciativa que faz a vida; ou então é a reivindicação dos homens livres que os<br />

conduz, e no caos dos acontecimentos po<strong>de</strong>-se discernir verda<strong>de</strong>iras revoluções, isto é<br />

mudanças <strong>de</strong> regime político, econômico e social, <strong>de</strong>vidas à compreensão mais clara das<br />

condições do meio e a energia das iniciativas individuais.<br />

O terceiro grupo <strong>de</strong> fatos, relativos ao estudo do <strong>homem</strong> em todas as ida<strong>de</strong>s e regiões,<br />

no confirma que qualquer evolução na existência dos povos só po<strong>de</strong> ser criada pelo<br />

esforço individual. É na pessoa humana, elemento primário da socieda<strong>de</strong>, que é preciso<br />

procurar o choque impul<strong>si</strong>vo do meio, <strong>de</strong>stinado a se traduzir em ações voluntárias para<br />

difundir as idéias e participar nas obras que modificarão o feitio das nações. O<br />

equilíbrio das socieda<strong>de</strong>s só é instável por causa do distúrbio imposto aos indivíduos em<br />

sua franca expansão. A socieda<strong>de</strong> livre se estabelece pela liberda<strong>de</strong> alcançada, no seu<br />

<strong>de</strong>senvolvimento completo, a cada pessoa humana, primeira célula fundamental, que se<br />

agrega em seguida e se associa, como lhe agrada, às outras células da mutável<br />

humanida<strong>de</strong>. É na proporção direta <strong>de</strong>ssa liberda<strong>de</strong> e <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>senvolvimento inicial do<br />

indivíduo que as socieda<strong>de</strong>s ganham em valor e nobreza: é do <strong>homem</strong> que nasce a<br />

vonta<strong>de</strong> criadora que constrói e reconstrói o mundo.<br />

A “luta <strong>de</strong> classes”, a procura do equilíbrio e da <strong>de</strong>cisão soberana do indivíduo, tais são<br />

as três or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> fatos que nos revela o estudo da geografia social e quem no caos das<br />

coisas, se mostram bastante constantes para que se possa dar-lhes o nome <strong>de</strong> “leis”. Já é<br />

muito conhecê-las e po<strong>de</strong>r dirigir, segundo elas, sua própria conduta e sua parte <strong>de</strong> ação<br />

na gerência comum da socieda<strong>de</strong>, em harmonia com as influências do meio, conhecidas<br />

e analisadas a seguir. É a observação da Terra que nos explica os acontecimentos da<br />

História, e esta nos leva, por sua vez, a um estudo mais aprofundado do planeta, a uma<br />

solidarieda<strong>de</strong> mais consciente do nosso indivíduo, ao mesmo tempo tão pequeno e tão<br />

gran<strong>de</strong>, como o imenso universo.<br />

Fonte: ANDRADE, Manuel Correia <strong>de</strong> (org). Elisée Reclus. Geografia, coleção<br />

Gran<strong>de</strong>s cientistas sociais. São Paulo: Ática, 1985.

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